mesma, à sua própria originalidade.
Ela nasceu de refle- PREFÁCIO
xões durante fi prática psicoterápica, e está começ~ndo a
renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. E uma
nova visão do homem na sua existência cotidiana, do seu
tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimen-
sões diferentes de nossa existência para podermos reen-
contrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos aque-
les que são sensíveis à necessidade de inserir mais alma
em todas as atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisamente res-
tituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração de
sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem
da alma", como C. G. Jung o desejava.
Léon Bonaventure
6 7
Os termos mais importantes da psicologia moderna,
embora originalmente tivessem sido baseados na expe-
riência, acabaram se tornando conceitos teóricos e, hoje
em dia, são pouco mais do que jargão, palavras cujo sig-
nificado é inteiramente aceito sem a menor reflexão. Neste
livro, o uso acentuadamente pessoal que faço de alguns
deles tem uma relação mais próxima com a imagem com
a qual estou trabalhando, servindo nesse sentido como
uma expressão mais direta da leitura psíquica de uma
imagem.
Tomemos, por exemplo, o termo "movimento psíqui-
co" que é constantemente utilizado em todo este livro.
Considero o movimento psíquico essencial a uma psi-
coterapia hermética. Mais especificamente, este termo
tem um significado dramático quando concebemos a
psicoterapia como um processo dedicado a movimentar
hermeticamente aquela parte da psique que foi paralisa-
da pela história de vida ou pelas experiências da pessoa.
Acredito que não seja difícil para o leitor imaginar o com-
plexo mistério da doença em termos de fixação, para-
lisação ou petrificação. Infelizmente, ao longo de sua his-
tória, o homem ocidental preservou cada vez menos
maneiras de ser iniciado na natureza de sua própria psi-
que; a iniciação, portanto, tbrnou-se uma das principais
áreas de interesse de Jung dentro da psicoterapia, a sa-
ber a iniciação na natureza do inconsciente reprimido,
pro~esso que é fundamental a qualquer r~sgate do equi-
líbrio psicodinâmico. Esta é, por consegumte, uma pers-
pectiva da psicoterapia em que Hermes - na qualidade
de arquétipo do inconsciente - é o guia: o único, quase o
tempo todo. Para mim, o movimento psíquico encontra-
se não só no cerne mesmo da psicoterapia, como também
no da própria vida.
O sentido com que emprego os termos "vínculo" e
"vinculador" talvez seja novo para o leitor. Hermes é co-
nhecido como o mensageiro dos deuses; em outras pala-
vras, no plano mitológico, ele conecta os deuses e deusas
entre si e com os homens; nesse sentido, é o vinculador.
Isso é fundamental para que haja o entendimento das
várias maneiras como aparece nos sonhos, aos quais em-
presta sua significação própria, e também na vida, à qual
confere sua visão hermética pessoal. Sendo assim, quan-
do emprego esse termo, valho-me de uma conotação mui-
to específica. Como este livro se baseia em imagens, ima-
ginemos que Hermes toca aqueles pontos em que nossas
aflições são mais doloridas e, dessa forma, cria nosso vín-
culo com eles e, ao mesmo tempo, faz a conexão deles
conosco. No papel de vinculador, proporciona uma nova
maneira de ver um determinado episódio de nossas vi-
das, ou de uma patologia, que durante muito tempo exer-
ceu sobre nós um domínio inconsciente. Ao mesmo tem-
po, ele revela o valor psíquico daquilo que não parecia
ser relevante ou que havia se mantido oculto. Dessa for-
ma, Hermes éum deus de transformação.
É fundamental ao estudo da psicologia junguiana a
compreensão do termo "arquétipo". Contudo, ficaria feliz
se o leitor estivesse preparado para aceitar minha versão
pessoal do mesmo: que a cultura ocidental é arquetípica
em suas raízes culturais gregas (Homero e Hesíodo), e
8 9
que o uso do termo arquétipo, na psicologia e na psico-
terapia, é uma tentativa de usar o legado desses dois pri-
meiros poetas. Dentro dessa mesma tradição grega, po-
demos afirmar apenas que a psique aprende através dos
arquétipos.
Os dois parágrafos acima deverão ser, creio, sufi-
cientes para dar ao leitor uma idéia do modo como uso
outros termos psicológicos. Por exemplo, associo o termo
"transferência" mais a um movimento psíquico do que ao
processo geralmente conotado. No mesmo sentido, a
psicoterapia, que é o principal assunto deste livro, é vista
dentro de uma concepção que ultrapassa em muito o tra-
tamento analítico: nossa sobrevivência exige que viva-
mos nossas vidas como se estivéssemos em constante
psicoterapia, conferindo prioridade à nossa psique, per-
mitindo-lhe diferenciar entre o que é psíquico e fala à
sua natureza singular, e o que não é, e deixando-a viver
os sentimentos, sensações e emoções que a alimentam.
Essa é a mais imediata maneira de fazermos a conexão
com nossa natureza, com nossos instintos, com a história
e com a vida que vivemos. Em outras palavras, a psico-
terapia, nesse sentido, é uma tentativa de tornar a vida
tão psíquica quanto pudermos, de manter nossa psique
em movimento. Caso fracassemos, precisaremos supor-
tar as dolorosas conseqüências da perturbação psicológi-
ca, de uma enfermidade, ou a sua decorrência mais co-
mum - uma vida repetitiva e estagnada.
Hermes e seus filhos destina-se ao terapeuta que, in-
tuitivamente, sente que seus atendimentos clínicos de-
pendem do encontro entre duas psiques, propiciado por
Hermes, encontros psíquicos herméticos, por meio dos
quàis pode ocorrer o resgate do equilíbrio psicodinâmico.
Esse é o território de Hermes, mensageiro dos deuses,
mestre da persuasão, mestre gatuno, guia de almas, ins-
trutor de Asclépio, e o companheiro interior do terapeuta,
na solidão de sua clínica cotidiana. É nesse território que
o terapeuta vê-se livre do reducionismo de teorias pre-
concebidas, e se diferencia das muitas psicologias do
mundo atual. Aqui é onde a psicoterapia se torna um tra-
balho psíquico criativo e em que o terapeuta pode come-
çar a amar seu ofício, da mesma maneira como o artista
ama sua arte.
Em igual medida, este livro destina-se também ao
leitor em geral que, em sua mais solitária dimensão, sen-
te o vazio e a estupidez da época em que está vivendo, e
sabe, secreta e hermeticamente, que algum sentido é dado
à sua vida naqueles instantes esparsos nos quais Hermes,
com seu bastão, misteriosamente o toca.
Uma versão anterior deste trabalho foi publicada por Spring Publications em 1977.
A presente edição foi completamente revista e ampliada. Todas as citações e
ilustrações apresentam seus respectivos créditos nos lugares correspondentes;
as referências a Jung foram extraídas do Collected Works (CW) of C. G. Jung,
(Bollingen Series XX), traduzido por R. F. C. Hull, editado por H. Read, M. Fordham,
G. Adler e Wm. McGuire, Princeton University Press, Princeton, NJ, também pu-
blicado na Grã-Bretanha por Routledge and Kegan Paul, Londres.
10
1
HERMES - PSICOTERAPIA -
O HERMAFRODITA
Este livro propõe-se espelhar a dinâmica psíquica de
Hermes, este deus esquivo, em nossa vida diária. Para
tanto, iremos nos valer da herança clássica e também de
alguns trabalhos eruditos, assim como dos cineastas con-
temporâneos e dos noticiários do mundo em que vivemos.
Como sou psicoterapeuta, é natural que as minhas refle-
xões decorram de minha prática na área, realizando uma
espécie de trabalho em que Hermes tem a primazia e no
qual o interesse básico se volta para o movimento psíqui-
co: ou bem nos movemos psiquicamente, ou estamos es-
tagnados. Quero oferecer a Hermes e a suas eventual-
mente estranhas aparições imagéticas um lugar essencial
na psicoterapia, coligando a imaginação hermética à re-
cuperação do equilíbrio psíquico e concebendo o terapeuta
como criador de imagens. Para tanto, exige-se uma psico-
terapia consciente das manifestações mitológicas da psi-
que, que se debruce sobre os conflitos das pessoas com
uma imaginação mítica. Em outras palavras, é uma psi-
cologia dos arquétipos que traz consigo uma obrigação de
aperfeiçoar o estudo básico da mitologia e de igualá-lo ao
estudo da psicologia. Este continua sendo um imenso cam-
po de explorações.
Essa abordagem está perfeitamente dentro da tra-
dição junguiana. Jung foi o primeiro a dar importância a
11
Hermes na psicoterapia, através de suas interpretações
do simbolismo hermético e de seus estudos alquímicos,
numa obra que levou à psicologia profunda. Ele também
foi o primeiro a introduzir o estudo dos arquétipos na
psicologia moderna, abrindo dessa forma novos rumos
para a percepção da natureza humana, e novas possibili-
dades das quais ainda estamos só parcialmente cientes.
Historicamente, a abordagem da psicologia através do
estudo da mitologia provavelmente apareceu em seu mais
amplo espectro e mais clara perspectiva na geração atual
de analistas junguianos que estão contribuindo cada vez
mais para o estudo dos arquétipos. No entanto, quero que
fique entendido que não estou em absoluto propondo uma
"técnica". O obJeJiyo de UlI!a Psi~ºJºgiªbªseadªno arqué-
tipo é "olhar através" dasitllaç:1o PaIªillceptivar o movi-
ITlE:nltQPElíqllico,em vez...desimplesmente reduzir a condi-
窺dopacieIlte à sua contraparte mítica. Precisamos ler
a mitologia e os trabalhos dos estudiosos para obtermos
os elementos básicos necessários a uma reflexão e maior
aproximação das constelações que surgem na psicotera-
pia. Durante todo o decorrer de nossas leituras de mito-
logia, temos de estar continuamente conscientes do rela-
cionamento entre a psicologia e a mitologia, para nos
precaver de errar o alvo com nossas introvisões psico-
terapêuticas, e também de nos ater em excesso às simila-
ridades dos mitologemas com as situações do paciente.
Desnecessário dizer que não estou defendendo nem
o estudo completo da mitologia, nem seu estudo em sen-
tido acadêmico. Através. . de §ellpróprio psiquismo, o psi-
cÓ!ogoprecisa .es.taf. s.illtonizado comesse lastro mitológi-
co,ou. Yeratravéf'; Qêle. Acredito que a psique da pessoa
pode ser imaginativamente estimulada apenas pelos mi-
tos que tenham afinidade com sua própria natureza, his-
tória e personalidade, ou seja, por aqueles mitos que a
pessoa vive em relação com seus complexos básicos. N 0-
12
vos mitos, que aparecem com novos complexos (pedaços
da vida), desafiam a psique a se movimentar e, quando
existe uma resposta a esse desafio, o psicoterapeuta ad-
quire novas perspectivas e atitudes para sua prática
psicoterapêutica. Mas, ao mesmo tempo, é importante
perceber que existem arquétipos tão distantes da psique
dº analista que, quando aparecem em uma constelação
!lualítica, ele só pode fazer alguma coisa com o paciente
que os está trazendo se for capaz de aceitar a tarefa de
aprender com conflitos arque típicos distantes de sua pró-
pria configuração arquetípica e experiência de vida: ou
seja, quando se tornar mais familiarizado com elementos
psíquicos que lhe são remotos e desconhecidos.
Analisemos uma aparição muito antiga e primitiva
de Hermes, na versão apresentada por um erudito con-
temporâneo. W. K. C. Guthrie começa sua discussão de
Hermes da seguinte forma:
... (primeiro) deveremos ouvir com atenção a advertência
do Professor Rose: "Não devemos nos esquecer da possibi-
lidade de que os arcádios tenham-no encontrado na
Arcádia, quando ali chegaram, e que seu nome não seja
absolutamente grego". Teremos mais a dizer quanto a isso,
mas no momento precisamos somente notar que não ex-
cede o possível cogitar que os gregos tenham encontrado e
adotado um antigo deus próprio do local e que o tenham
denominado de novo. Vejamos ainda a opinião de Boisacq,
para quem "a etimologia de Hermes é desconhecida". Ten-
do, porém, apresentado estas necessárias conjecturas, de-
veremos corroborar com firmeza a opinião do Professor
Nilsson quando declara: "O nome é daqueles poucos cuja
etimologia é transparente, e significa' aquele da pilha de
pedra' ".1
É evidente que para Guthrie, em sua investigação
do nome "Hermes", o que Nilsson tem a dizer é mais útil
1 W.C.K. Guthrie, The Greehs and Theil' Gods, Univ. Paperback, Methuen,
Londres, 1968, pp. 87-88.
13
do que a afirmação de Boisacq, com sua informação que
não leva a lugar algum. Nenhuma imagem pode proce-
der do "desconhecido". Contudo, a "pilha de pedra" é uma
imagem em si, capaz de mobilizar a imaginação.
Guthrie antecede o que disse acima informando-nos
que "é cansativo estar sempre percorrendo os labirintos
da controvérsia". 2 Os psicólogos, contudo, em especial
nesse sentido, não são eruditos. Quando lemos a imagem
que um deus tem para a psicologia, temos de evitar aque-
las controvérsias eruditas que, em parte, têm ligação com
a história pessoal do estudioso, com o momento que ocu-
pa na história da erudição e com sua propensão a dar
muita importância à historiografia do campo no qual está
trabalhando. 3 Walter Otto, na conclusão de seu magis-
tral trabalho sobre Hermes, ofer~ece a nós, psicólogos, um
sábio conselho a respeito da inutilidade de se deixar ar-
rastar por essa espécie de erudição labiríntica:
N essa espécie de concepção de uma deidade, não pode ter
sentido diferenciar entre atributos anteriores e posterio-
res, ou buscar alguma linha de desenvolvimento que
conecte uns aos outros. A despeito de sua multiplicidade,
são na realidade apenas um, e se um determinado traço
isolado se salientou depois dos outros, ainda continua ten-
do o mesmo significado básico que então encontrou uma
nova expressão. Qualquer que tenHa sido antigamente a
concepção feita de Hermes, um esplendor vindo das
profundezas deve ter causado uma tal impressão que, des-
de então, o mundo passou a ser percebido no deus, e o
deus, no mundo inteiro. 4
A primeira visão de Hermes oferecida por nossos es-
tudiosos do· classicismo grego é a de uma "pilha de pe-
Ibid., p. 87.
2
Norman Brown, Hermes the Thief: The Evolution of a Myth, Vintage Books,
3 5 Brown, Hermes the Thief, op.cit., pp. 34, 38-40.
Nova York, 1969, p. 3 ss.
4 Walter F. Otto, The Homeric Gods, trad. Moses Hadas Thames and
Hudson, Londres, s.d., p. 124.
14
dras". As pilhas de pedras são colocadas ao longo do ca-
minho para marcá-los; também serviam para assinalar
os limites entre aldeias, cidades e regiões, como sinais
geográficos, para fixar os perímetros e as fronteiras. 5 Tais
pilhas de pedras, demarcando estradas e fronteiras geo-
gráficas, também foram os altares primitivos consagra-
dos a Hermes. ~ pilha de. pedras, na realidade, é uma
imagem arquetípica<leum deus. Portanto, podemos di-
zer que esse deus, Hermes, "Senhor das Estradas", como
veio a ser conhecido, t.mnhémdemarca I19Sêostrajetos e
limites psicológicos, assinala o perímetro de nossas fron-
teiras psicológicas e estabelece o território a partir do
qual, em nossa psique, tem início o desconhecido, o es-
trangeiro.
Hermes concretizou sua epifania como deus do co-
mércio naqueles altares primitivos nas fronteiras. Em
épocas anteriores, assim como hoje, em nossa psique, o
comércio de HerlIlel' teve e tem ele_mentos de silêncio, 10-
groefurto,jngredientes que sempre são importantes no
comércio, e também na interação com o desconhecido, nas
fronteiras de nossa psique. Conforme veremos depois, 6
porém, nestas barganhas ou transações nas fronteiras,
Hermes pode tanto nos indicar o caminho como nos de-
sencaminhar.
Podemos examinar ainda uma outra visão de Her-
mes, com sua aparência itifálica (Ilustração 1):
As imagens religiosas erguidas para ele ou eram em esti-
lo 'Cileno', no qual a imagem era um falo de madeira ou
pedra, ou então naquele estilo correlato em que a imagem
era um pilar retangular com uma cabeça e um falo ereto,
imagem que em nossa linguagem é chamada de herma. 7
6 Ver o capítulo II sobre o Hino homérico a Hermes.
7 K. Kerényi, The Gods ofthe Greeks, trad. Norman Cameron, Thames and
Hudson, Londres, 1951, p. 171.
15

o herma itifálico é uma imagem com um forte com-
ponente sexual, que expressa o aspecto sexu~l ~e .Hermes.
Mesmo dentro das limitações destas duas pnmltlvas apa-
rências de Hermes, a pilha de pedras e o herma, pode-
mos afirmar que, além de ser um deus fálico, fortemente
vinculado com a sexualidade, ele é muito mais que isso,
em razão de sua forma de pilha de pedras, de senhor dos
caminhos. Ao longo de todo este livro, uma de minhas
intenções é~~ªILr:eSf:}ntªr:ªjd~iªdf:}~gJJ!;}nol3sa sexualidade
(tema de tanta rel~vânciaparaªpsjcologja deste nosso
século) demarca, como sinais rodoviários, ol3caminhos que
percorremos nÇ!. vida; qUe as nossasfantasias e imagens
sexuais, a nossa imagjnação, participam das transações
psicológjcas que acontecem nos limites de nossa psique,
e com isso assinalam os âmbitos interno e externo da vida.
As observações quanto a Hermes, que apresentei
acima, foram escritas há dez anos e atualmente são con-
firmadas pela análise de Walter Burkert:
Não é só o signo fálico que pertence a Hermes, mas tam-
bém a pilha de pedras; na verdade, "Hermes" deriva dela:
hérma é apenas uma pedra colocada com certa intenção,
donde Hermáas ou Hermáon. Esta inter-relação é expli-
cável precisamente a partir da função de signo, tanto do
falo como da pedra. 8
Ele ainda nos leva mais atrás nessa retrospectiva,
aprofundando nosso conhecimento de Hermes, ao associar
herma a uma observação que vem da etologja:
... existem algumas espécies de símios, que vivem em gru-
pos, nos quais o macho age como guarda: ele se senta vigi-
lante nos marcos territoriais mais remotos que delimitam
a área daquele grupo, de frente para o exterior, expondo
seu órgão genital ereto. 9
8 Walter Burkert, Structure and History in Greek Mythology and Ritual,
University of California Press, Berkeley, 1979, p. 41.
9 Ibid., p. 40.
16
Temos aqui um caso de ligação com Hermes que vai
além do extremo mais primitivo dessa imagem - remon-
t~ndo, provavelmente, àquele "deus local primitivo" perce-
bIdo ~or Guthrie, ou àquele "tempo ancestral, um esplen-
dor vmdo das profundezas", na observação profundamente
r~mântic~ d~ Otto. Ambos confirmam a atração dos estu-
dIOSOS classlcos pela mitologia grega, que, nas palavras
de Burkert, é a mais avançada entre as arcaicas e a mais
arcaica entre as avançadas. A observação de Burkert ex-
traída da etologia permite-nos incluir o animal entre as
mais sofisticadas e civilizadas imagens arquetípicas de
Hermes --:- a do realizador de conexões, deus do comércio,
mensageIro dos deuses, senhor dos caminhos - e corro-
bora nossa intuição acerca do nível instintivo das artes e
atividades herméticas.
A contribuição de Burkert traz o aspecto animal vivo
de ~m arquétipo, o que é diferente do animal enquanto
atnbuto de um arquétipo, como, por exemplo, a águia de
Zeus, ou a.v~ca de Hera, ou as eventualmente espetacu-
lare~ apançoes de macacos nos sonhos, prenunciando um
m~vlIr;e~to e uma mudança inesperados numa situação
pSlcologlca. A presença de Hermes em nós permite-nos
sentir nossa própria dimensão primitiva, experimentar a
sensação do instinto. Isto é essencial a qualquer com-
preensão de Hermes: a imediata sensação da realidade de
nosso ser. A mim parece que assim é como a humanidade
o homem em todos os tempos, vem percebendo Hermes:
Agora que j á temos uma primeira configuração bási-
ca de Hermes, leiamos ,uma passagem do Dionysus de
Otto, em que descreve o caráter estranho e esquivo de
~ermes. Ternos, desse modo, a oportunidade de ler com
mteresse a análise que um erudito faz de um conceito e
ao mesmo tempo, de nos apossar dele e lucrar com um~
controvérsia erudita tão marcadamente oposta à nossa
leitura dessa imagem: •
17
 Em sua origem, o deus Hermes talvez tenha sido apenas
um protetor, e os pilares e pilhas de pedras na frente das
casas de lavradores, e ao longo das estradas, apontam a
sua presença. Mas todos os elementos que definem o seu
caráter - o paradoxo de guiar e desencaminhar, do re-
pentino oferecer e espoliar, a sabedoria e a astúcia, o espí-
rito de amor propiciatório, o feitiço das penumbras, a es-
tranheza da noite e do dia, esse todo diverso, que é
inesgotável e contudo em ponto algum nega a unidade
deste ser - supõem-se que sejam apenas um complexo de
idéias que, gradualmente, desenvolveu-se a partir do modo
de vida de seus adoradores, dos desejos e propensões des-
tes, das suas idéias, que eram enriquecidas pelo amor que
tinham por contar histórias. 10
Bem, nas últimas quatro linhas deste impecável re-
trato de Hermes, podemos ver que o estudioso afastou-se
das imagens para usar uma linguagem conceituaI que
__ªgoraclores.clE3 Hermes na era pagã continua como uma
nos distrai e distancia delas. Entretanto, nesta passa-
gem, ele nos oferece a chance de diferenciar entre duas
maneiras de pensar: a conceituaI e a criadora de ima-
gens e mitos. Quando Otto escreveu este trecho, ele esta-
va às voltas com uma controvérsia, mas nós não iremos
prender-nos a ela: sua imagem de Hermes, conquanto mol-
dada pela controvérsia, estimula-nos a imaginar a ima-
gem de Hermes.
Nesta tentativa de mostrar de que maneira pode-
mos nos apossar das idéias dos estudiosos, também há a
tentativa de delimitar essas duas formas de pensar, que
correm o risco de serem confundidas. Quando o psicólogo
cOllceitua seu pensamellto, pode vir a se envolver em con-
trovérsias e, com isso, perder seu próprio ponto de vista;
s~.,ernvez disso, perma,nece fiel ao pensa::rIleIltomítico,
conserv~:::se mais.. no, .âmbito, das atividacles básicas da
psique. E praticamente o mesmo risco que existe quando
10 Walter F. Otto, Dionysus, trad. Robert B. Palmer, Indiana University
Press, Bloomington e Londres, 1961, p. 9.
18
o ~sicól,ogo ,co~cretiza os dados dos estudiosos: sua pre-
111IS S8,. e pSIqmca e sua abordagem consiste em tentar
detectar se o material que lê nos estudos acadêmicos é
atraente ao seu psiquismo e se pode encontrar nesses tex-
tO!_~~_ aIlalogias c:apazes de expandir Slla visão psicotera-
p~ll,tICa. Do meu ponto de vista, o estudo do trabalho eru-
dito cabe como fonte de orientação e estímulo para a
minha própria psique.
Tendo isso em mente, nosso interesse pelo trecho de
Otto é formar uma imagem de Hermes como' protetor.
Essa passagem também estimulou-me a imaginação e
pude ver Hermes em sua difícil posição como deus dos
limítrofes. Podemos vê-lo enquanto protetor nas imagens
dos "pilares e pilhas de pedras à frente da~ casas de fa-
zenda e ao longo das estradas", e o que era válido para os
l!1e~~!or~y~!i_clI;l:J~Il~ª a psique de hoje. Além disso, pode-
mos ver Hermes como um deus com um lugar definido de
protetor e auxiliar na difícil aventura da psicoterapia
moderna. Apesar dos aspectos herméticos de divindade
marginal, desonesta, traquinas, larápia e embusteira
paradoxalmente podemos oferecer-lhe o crédito complet~
de.s~mp8,pE:llºg Protgi9...r_ºªYêÜ~9terªpia. Não é um papel
que possa ser "provado" (isso seria uma armadilha que
nada tem a ver com Hermes), mas conforme formos avan-
çando tentarei torná-lo evidente.
. Vamos imaginar que o próprio Hermes tenha forne-
cIdo a. ener~a e a inspiração para o enriquecimento de
s~a mItologIa,: Algumas histórias em que aparece, e prin-
CIpalmente o BinQhº111~rico a Hermes", serão emprega-
das como fonte de imagens para o nosso estudo de Hermes
e~ relação à psicoter~pia. Devemos ter em mente, po-
rem, que ao lado das mcontáveis histórias acerca deste
deu~, seu aspecto mais primitivo como sinalizador dos
cammhos com suas linhas-limites e sua aparência itifá-
19
lica assim como a implicação de seu papel de protetor,
se~pre se mantiveram presentes. A proteção que ele ofe-
rece tem um significado peculiar, com sua "bênção" her-
mética e, assim como na vida, ela aparece na psicoterapia
dentro das complexidades de Hermes - "o súbito ofere-
cer e espoliar" - protegendo o movimento psicológico
tanto do analista como do paciente com sua posição
limítrofe, proteção que nunca implica em dependência ou
poder.
Para permitir-nos aprofundar ainda mais nossa re-
flexão psicoterapêutica e adquirir mais informações so-
bre as qualidades de Hermes, voltemos para a inigualável
versão que dele faz Otto em seu The Homeric Gods:
Mas essa maravilhosa destreza torna-o o ideal e também
o patrono dos servos. Tudo que é esperado de um servo
diligente - habilidade para acender o fogo, para rachar a
boa lenha, para assar e fatiar a carne, para verter o vinho
- vem de Hermes, cujas qualidades fazem dele um servo
tão eficiente para os olímpicos. l l
Depois, Otto prossegue: "Confessadamente, estas não
são artesnobres ... "12 E, "se comparamos Hermes com seu
irmão Apolo ou com Atena, observamos nele uma certa
faltacledignidade".13 Contudo, "embora o mundo de Her-
~~~K ~ão seja ex"~elso, e inclusive suas manifestações ca-
racterísticas produzam uma impressão definitivamente
indigna e em geral bastante dúbia, mesmo assim - e
isso é-verdadeiramente olímpico - ~l~_gêtª llluito longe
de ser vulgar e repygrmnte".14
Otto está nos dizendo que essas duas qualidades com-
plementares de Hermes - a de "servo diligente" e sua
"ausência de dignidade" - por serem verdadeiramente
11 Otto, The Homeric Gods, op.cit., pp. 104-105.
12 Ibid., p. 105.
13 Ibid., p. 104.
14 Ibid., p. 123.
20
olímpicas são arquetípicas.~Se,UºLy!r:tjnstÇl.nte, imagi-
namos um psicoterapeuta que insiste bastante no aspec-
to dignificado de sua personalidade, podemos concluir,
sem muita necessidade de especulação, que ele tem pou-
co contato com Hermes. Se nós, psicoterapeutas, nos com-
portamos de modo excessivamente dignificado no nosso
trabalho, então como entrar em contato com aquela par-
cela dos pacientes que, principalmente, procuram os ana-
listas para discutir os aspectos não dignos de sua vidas?~
Só um Hermes alheio à dignificação na pessoa do analis-
ta pode constelar uma comunicação com o lado sem dig-
nidade da vida, e pode avaliar herme~icamente o que foi
relatado como desprovido de nobreza~Só essa avaliação
hermética do não dignificado no outroí (e aqui, seguimos
Otto em sua visão do "não-dignificado" quando o compa-
ra à dignidade de Apolo e Atena), PQdeJQrnecer-aquele
entendimento profundo de importância fundamental para
a psicoterapia. A P:3_ic::º-texªpiª !lªO~~_!:l1:l1trabalho excelso
e a constelação desse aspecto básico de Hermes precisa
QçQrrer no nível assinalado por essa dimensão não digni-
ficada._
Ao lado das observações proporcionadas pela face não
dignificada de Hermes está seu papel de servo dos deu-
ses. A arte da psicoterapiaé ll111 aserv'idão. A atitude de
servir pertence à tradição junguiana clássica, na qual o
p-sicQterapeuta é tão-somente o servo do processo te-
rapêutico, seja qual for o_nível em que eSSe processo se
!IlQyiJ!!g}!te. 15 Mesmo que a idéia do terapeuta como ser-
15 Segundo a minha própria experiência psicoterapêutica, parece que
Hermes pode ser igualmente o servo do arquétipo da cura, centrado emAsclépio
(ver Kerényi, Asklepios: A/'chetypal Image of the Physician's Existen~e, tra~.
R. Manheim Bollingen Foundation, Nova York, 1959), que, de maneIra maIs
diferenciada, sabe como vincular o paciente com o arquétipo que o deixou
doente, promovendo a recuperação de sua saúde por meio dessa conexão. ~a
prática clínica, constato pouca incompatibilidade entre a constelação curativa
de Asclépio (o curador no paciente) e a cura por meio do arquétipo no complexo
21
vo seja tradicional, isso não significa que o t:rapeuta seja
um servo em si; pelo contrário,~isso quer dIzer uma luta
diária com os outros aspectos da personalidade (aqueles
arquétipos que têm características d~gnifica~a~) que go~­
tariam de assumir o comando da pSlCoterapla.fUma atI-
tude dignificada em geral não é servil e pode ser vista em
contexto como uma identificação com formas arquetípicas
alheias ao apenas pôr-se a serviço do processo psíquico.
exemplo, quando o analista prefere manter-se afer-
rado ao lado dignificado da vida não é mais servo do pro-
cesso e dessa maneira pode mostrar-se propenso a uma !
identificação com o arquétipo do curador em suas múlti- .
pIas manifestações. Ao insistir em sua dignidade~ ele é
menos capaz de ser um servo do processo de cura ..
É importante que, em nossa discussão do Hermes
não dignificado, ou seja, do seu aspecto como servo da
psicoterapia, tenhamos em mente o claro depoimento de
Otto de que, embora Hermes sej a tanto servo como uma
entidade não dignificada, está sempre "distante do vul-
gar e do repugnante". Otto nos aconselha a usar a habili-
dade de Hermes para lidar com o não dignificado. Assim,
quando discutimos esse aspecto dentro da psicoterapia,
não existe implicação de vulgaridade. A vulgaridade está
evidentemente ausente em Hermes e aliás transtornaria
a ligação hermética com esse componente que é chamado
de falta ,de dignidade, além de prejudicar a avaliação do
mesmo)Diria que Hermes tem uma predileção toda sua
pelo lidar com o lado não dignificado da personali.dade;
seu estilo e sensibilidade podem promover um mOVImen-
to psicológico, ou gg~amarrªr º;êllºêcloêǺ~pl~~?~'Lclign~­
ficagQs, que comprImem a pSIque do p~cIente.INa PSI-
coterapia de hoje, uma das reações de um analista ao ser
que deixou o paciente enfermo. O relacionamento entre. Hermes e A~clépio é
bem conhecido. Ver as instruções de Hermes para AscléplO na Hermetrca, ed. e
trad. Walter Scott, volume I (Dawsons de PaU MaU, Londres, 1968).
22
confrontado com o lado não dignificado de um paciente é
constelar nele o seu lado dignificadoiPodemos suspeitar
nesse procedimento a repulsa contra o não dignificado.
Talvez seja uma repulsa contra o próprio Hermes, expres-
sa através da apresentação do dignificado, que é um ele-
mento pertinente a um outro arquétipo, a saber, o de Apolo
e Atena, de acordo com Otto. EstE::)ssãQ~rquétipos que
repr<':!â!3ntamaQmáximoos valores imediatos do coletivo.
Uma tal reação passa longe do alvo e perde a possibilida-
de de uma conexão com Hermes por intermédio de sua
característica não dignificada.
Voltando a Otto, ele diz: "O mundo de Hermes não é
de modo algum um mundo heróico". E atesta o que diz
com o seguinte:
Odisseu e Diomedes invocam Atena em sua empreitada
noturna e a deusa vem. Mas Dólon, que está prestes a
pa;tir em uma aventura muito parecida, nessa mesma
noIte, mas cuja confiança não está depositada no heroísmo
e sim na astúcia, na malícia, e acima de tudo na sorte
recomenda-se, de acordo com o "Rhesus" de Eurípedes, ~
Hermes, que deve guiá-lo em segurança tanto na ida quan-
to na volta. 16
Tentemos traduzir estas linhas de Otto numa abor-
dag~m para a psicoterapia. O mundo da psicoterapia, em
partIcular o da voltada para Hermes, além de não ser
dignificado e de pôr-se a serviço, não é heróico. Se consi-
deramos que a psicoterapia é uma--;~~Iltti;~, dentro da
tradiçãojunguiana uma aventura pelo inconsciente, per-
cebemos que uma atitude heróica é superficial diante das
exigências de um tal empreendimento. Assim Hermes _ _ 0_._" ____ , . , _,.,
oferece as imagens da atitude "não-heróica" na aventura
da psicoterapia que, como dissemos antes, depende da
pr,oteção de Hermes e, por que não?, também da sorte.
16 Otto, The Homeric Gods, op. cit., p. 122.
23
 Refletimos anteriormente sobre a tendência a uma
identificação com o arquétipo do curador, mas agora de-
vemos nos conscientizar de uma possível identificação com
o herói. Com relação à psicoterapia, a ênfase da identifi-
cação recairia sobre a cura enquanto feito heróico, possi-
velmente uma das mais inflacionadas de todas as idElnti-
fic~ções. A identificação com o heroi como curador tem
seu próprio lastro arquetípico - para mencionar apenas
r' um exemplo, Aquiles realiza uma cura rápida de Pátroclo
durante a batalha. 17 Essa é uma imagem que nos dá a
idéia do curador como herói, o que hoje em dia seria o
médico militar. Não obstante, é uma metáfora para a cura
que se mostra inaplicável a uma psicoterapia hermética,
cujo objetivo é.a aventura de mobilizar a pessoa ao longo
dos cfiminhos de sua profundidade psíquica. Nem mes-
lIl"~~oque poderia ser entendido como uma situação de
emergência, por exemplo um psicoterapeuta recebendo
um paciente inesperado na clínica, uma atitude de herói-
curador seria válida.
Otto diz, especificamente, que Hermes é o "mais
amistoso dos deuses para os homens",18 evidentemente
um traço específico dessa divindade. Ele "... é um olímpi-
co genuíno. Sua essência possui a liberdade, a amplidão
e o fulgor por meio dos quais reconhecemos o reino de
Zeus. No entanto, ele tem propriedades que o distinguem
nitidamente dos filhos de Zeus ... "19 Embora seja olímpi-
co , Hermes é diferente das outras deidades do Olimpo.
Discutimos seu aspecto limítrofe, um atributo que em si
mesmo torna-o diferente dos outros deuses, os quais pa-
17 No trabalho de Michael Grant e John Hazel, Who's Who in Classical
Mythology (Weidenfeld e Nicholson, Londres, 1973) consta uma ilustração de
um ''vaso com figura em vermelho, de Vulci (Etrúria), ca.500 a.C". Essa ilus-
tração exibe "Aquiles cuidando do ferimento de seu amigo Pátroclo".
18 Otto, The Homeric Gods, op. cit., p. 104.
19 Ibid., p. 104.
24
recem ser o centro dos aspectos específicos da vida aos
quais emprestam sua marca. Hermes permeia o mundo
.todo por causa de sua habilidade para fazer conexões. A
partir de sua linha-limite, el~.Se vincula com as esferas
º
dos outros deuses e tem i J11;E)fGâmhhpsíquico com eles.
Ele é o vinculador e o mensageiro dos deuses.
O aspecto limítrofe de Hermes favorece sua amis-
tos~da1e, ou, em termos mais arquetípicos, ele é o mais
amIstoso com os demais deuses e deusas. Não luta com
nenhum deles quando estão ocupados engalfinhando-se
uns com os outros. 20 Hermes não tem necessidade de lu-
t-ªfpªJ:ELgarantir seu centro; ele nem tem um. Se in-
ternalizamos o lado amistoso de Hermes, então é Hermes
em nós que como anfitrião recebe oseomplexQs p~iç(üógi­
cos cen~rados nos outros deuses. Podemos imaginar uma
pessoa:mdo pelas estradas da vida (ou da psicoterapia),
protegIda por Hermes, às vezes sentindo medo do cami-
nho, de sua escuridão e de sua desolação. Sentimos medo
de nossa solidão; sentimo-nos sós muito mais vezes do
que percebemos. É precisamente nesses momentos que
H~r~~s. faz ~ua .ep~fania; quando sentimos que a
pnmItlvI~ade mstmtlva mencionada na primeira parte
deste capItulo, quando
, . nossas preces vão para Hermes e ,
ao rezar, nos sentlmos sua porção amistosa. O poema de
Robert Creeley intitulado "Prece a Hermes" é uma epifania
hermética nesse sentido; eis seus primeiros versos:
Hermes, deus
das encruzilhadas,
da existência cruzada,
protegei estes pés.
Eu ofereço.
Imaginação
é a maravilha do real,
2° Ibid.,p. 105.
25

e eu estou
dolorosamente aflito
com os duplos diabólicos,
com as coisas em dois,
desta meia-vidÇl,
21
este lusco-fusco.
O poeta confirma a sensação de que Hermes ~ urr:
. desespero de nossa solidão; e ele oferece nao so
amIgo no - h 'tO
companheirismo como ainda suas conexoes ermelças
para os nossos conflitos, mantendo os complex~s em ill,?-
vimento e permitindo que a vida psíquica e a pSlcoterapla
se desenvolvam.
Para descrever as dupliCidades deste deus, Otto .~s~
a analogia da noite: "Perigo e proteção, terror ~ tranqmh-
zação, certeza e dubiedade - tud? i~,so a, nOIte encerra
em si ... "22 Do próprio Hermes ele dIz: Esta em sua nat1.~_­
reza não pertencer a nenhuma localidade e nem po~smr
nenhuma morada permanente; está sempre .a camlllho,
entre o aqui e o mais além ... "23 Com estas llllhas, Otto
nos apresenta a própria essência da natureza de Hermes,
provavelmente uma entre suas muitas qualidades e a q.u e
mais nos desafia quando somos confro,?tados c~om. a lll,-
cumbência de inseri-la numa percepçao terap~utlca. E
aqui, nessa duplicidade de estar "sempre a ca~lllho, en-
tre o aqui e o mais além," que Otto nos proporclOna um~
outra imagem, mais próxima do psíquico do que a confI-
gurada pelos limites de pedra, pOIS no~ ~ferece uma
introvisão do conceito de limítrofe. No hmltrofe (a du-
plicidade), existe ausência de separaçã?, por exemplo, en-
tre dia e noite. "Sente-se aquele pecuhar estado penum-
21 Robert Cree1ey, "Prayer to Hermes", in Spring 1980, (Spring Publications,
Dallas, 1980), p. 60. . 25 Casas de reabilitação são inclusive denominadas "casas a meio caminho".
22 Otto, The Homeric Gods, op. ctt., p. 120.
23 Ibid.,p. 117.
26
broso de espírito, e embora seja dia segundo o relógio,
pensamos nas incertezas da noite ... "24 Todos esses ele-
'I mentos - a duplicidade, estar no aqui e no mais além, o
ânimo penumbroso - levam-nos para referências ar-
quetípicas para as quais a psiquiatria e a psicoterapia
cunharam o quadro "limítrofe", Temos um referencial
imaginativo arquetípico para uma condição patológica
expressa num conceito. O termo psiquiátrico "condição
limítrofe" pode ser entendido como uma expressão pato-
lógica deste aspecto peculiar em Hermes, cuja natureza
ou ser é limítrofe. fPodemos ver essa condição numa vida
vivida dentro da duplicidade, um pouco numa instituição
mental e um pouco na cidade,25 semi -neurótica com aces-
sos psicóticos, tanto como uma expressão de uma patolo-
gia hermética quanto na qualidade de uma manifestação
de sua verdadeira essência, algo que todos experimenta-
mos sendo, como somos, semi-doentes, semi-curados, en-
quanto nossas vidas se movem ao longo da estrada que
corre entre a enfermidade e a curaJ
Otto descreve um outro modo de Hermes fazer sua
epifania:
Mas, o maravilhoso e o misterioso que são peculiares à
noite podem também aparecer durante o dia como repen-
tino escurecimento ou um sorriso enigmático. Esse misté-
rio da noite vista no dia, essa treva mágica à clara luz do
sol, é o reino de Hermes que, em eras posteriores, e com
bons motivos, os magos reverenciaram como seu mestre.
Para a sabedoria popular, isto se faz sentir no notável silên-
cio que de repente cai sobre a mais animada das conver-
sas; diz-se que, nesse instante, Hermes entrou na sala ...
O momento estranho pode tanto significar má sorte quanto
um oferecimento amistoso, uma maravilhosa e feliz coin-
cidência. 26
24 Ibid.,p. 118.
26 Otto, The Homeric Gods, op. cit,., pp. 117-118.
27
 E Otto com esta bela descrição, permite-nos ainda
um outro f~rto de um erudito e carrega Hermes direta-
mente para dentro do consultório. Todos nós já sentimos
uma epifania de Hermes, expressando-se desta maneira
incrível, e tão prenhe de seu próprio significado e valor.
Esses momentos estranhos são a manifestação pe-
culiar de Hermes. É nas ocasiões destas epifanias que
ele mais nos mobiliza, e seu aparecimento nos impele a
permanecer em silêncio. É então que nos confere suas
dádivas mais significativas, em que se revela o mais amis-
toso dos deuses, em que nos vincula com nosso instinto
primitivo, em que nos apresenta ao seu próprio mundo
arquetípico limítrofe ou, dizendo ,melhor, a um mundo
diferente do dos outros deuses. "E no pleno sentido de
um mundo, quer dizer, de um mundo inteiro, e não no de
uma fração da soma total da existência, que Hermes ins-
pira e rege. Todas as coisas lhe pertencem, mas elas apa-
recem sob uma luz diferente da dos reinos dos outros deu-
ses".27 Já podemos vislumbrar um mundo de imensa
importância para a arte da psicoterapia.
Agora, eu gostaria de continuar apresentando as
minhas impressões pessoais a respeito de como Hermes
apareceu no consultório dos principais pioneiros da psi-
cologia moderna - Freud e Jung. Sabemos que, no lega-
do deixado por Jung, Hermes/Mercúrio recebe destaque
especial, e seria desnecessário contar as inúmeras cita-
ções feitas a respeito, nas Obras Completas. Jung foi um
homem hermético, possuidor de um profundo entendimen-
to da psicologia de Hermes, e a presença deste deus foi
evidente em toda a sua vida, e ao longo do caminho que
sua criatividade traçou. Jung deixou como herança uma
psicologia que, em grande medida, é ~ermética tanto em
sua concepção como em sua prática. E mais do que pro-
27 Ibid., p. 120.
28
vável que tenha sido Hermes quem o guiou até o vaso
alquímico, onde ele encontrou o continente para sua psi-
que e que tornou possível sua experiência da alma. Seu
estudo dos tratados alquímicos deu-lhe a necessária li-
~h~-1imite a partir da qual poderia passar à análise do
l~mItrofe em si e, através de Hermes, das muitas possibi-
hdades da psique. A alquimia é uma psicologia do para-
doxo, uma psicologia limítrofe, o que implica que só pode
ser apreendida através de Hermes guiando o caminho
rumo ao inconsciente.
Jung vislumbrou que o tratado alquímico era uma
?x~r~ssão ~ de um processo simbólico (o processo da
I:r:dIvIduaçao), ,no q~al os ~ímbolos, expressando oposi-
çoes em conteudos InCOnSCIentes, demarcam o caminho
ao longo do processo analítico da individuação, processo
esse que se expressa paradoxalmente. Jung escreveu:
"Como Mercúrio é o nome principal de uma substância
ancestral, merece ser mencionado aqui como o paradoxo
~ ." . 28 E e 1e começou seu capítulo sobre
por exce I enCIa
Parado:::.a dizendo: "O tremendo papel que os opostos e
sua umao desempenham na alquimia ajuda-nos a com-
preender por que os alquimistas gostavam tanto dos pa-
~adoxos. Para obter essa união, tentaram não só visualizar
Juntos os opostos como também buscaram expressá-los
n. u m mesmo 10 l'~l" 29 D
ego . . passou a apresentar uma
epOls,
I~agem do que estava acontecendo nas almas dos alqui-
mIstas, valendo-se de muitos exemplos de suas declara-
ções paradoxais, as quais evidenciam como o paradoxo
contem tanto complexidades espirituais como patológi-
cas. Numa nota de rodapé, com referência ao acima ex-
posto, podemos ler um trecho do tratado de Bonus e ver
como o alquimista expressava um paradoxo:
28 oe 14, § 38.
29 Ibid., § 36.
29
 Portanto, tudo que são capazes de dizer e declarar a res-
peito de virtudes e vícios, do céu e de todas as coisas
corpóreas ou incorpóreas, sobre a criação do mundo ... e de
todos os elementos ... e quanto à vida e à morte, o bem e o
mal, a verdade e a falsidade, a unidade e a multiplicidade,
a pobreza e as riquezas, aquilo que voa e que não voa, a
guerra e a paz, o conquistador e o conquistado, a labuta e o
repouso, o sono e a vigília, a concepção e o nascimento, a
infância e a velhice, o macho e a fêmea, o forte e o fraco ... 3o
Como deixamos entrever antes, não foi uma escolha
caprichosa de Jung mergulhar nos tratados alquímicos.
Sugerimos que foi Hermes, o senhor dos caminhos, que
atiçou a curiosidade de Jung e o levou até a alquimia -
para "Fazer Mercúrio com Mercúrio".31 A alquimia fazia
parte de sua própria tradição histórica e centrava o con-
flito daquele homem suíço, estudando psicologia no iní-
cio deste século. Jung tinha uma herança religiosa parti-
cular, uma patologia familiar, uma fome de erudição e
conhecimento cultural, além das raízes medievais de sua
alma suíça. Na alquimia, ele encontrou a imagética sim-
bolizada com base na qual era-lhe possível enxergar atra-
vés de si e do mundo. A atitude de Jung permitiu-lhe acei-
tar Hermes com suas complexidades, aceitar a epifania
hermética e essa orientação, ao longo dos rumos desco-
nhecidos da psicoterapia. Para Jung, a psicoterapia tor-
nara-se um afazer hermético limítrofe (paradoxal). Her-
mes efetuou um definido aparecimento no consultório
analítico de C. G. Jung.
Sej a qual for a noção que fazemos dos alquimistas e
de sua contribuição histórica, reconhecemos que seu tra-
balho forneceu-lhes os recursos com os quais perscrutar
o inconsciente, trabalhar sobre suas projeções psíquicas,
movimentar suas psiques, e conter sua loucura. Graças a
30 Ibid., § 42, nota 1.
Ibid., § 37.
31
30
Jung, podemos agora reconhecer que elegantes psicólo-
gos foram eles: ajudaram-nos a acostumar nossos olhos
para contemplar o que é chamado de o inconsciente. Nós
psicólogos, precisamos desse exercício para treinar noss~
percepção e nos familiarizar com a linguagem do incons-
ciente, neste caso, a linguagem da linha-limite herméti-
ca alquímica. Esse treinamento em alquimia nos ensina
a ser mais ou menos capazes de entender a série de so-
nhos alquímicos de algum paciente, e de nos acostumar
com o limítrofe, ponto a partir do qual podemos enxergar
o material psíquico do outro. Quando "vemos" o material
e somos capazes de acompanhar os. símbolos eas .ima-
gens com alguma precisão, já estamos em psicoterapia.
J;>ela leitura da alquimia, tOmamos conheGÍrnentode inia-
gens e.Símbolos bastante estranhose alheios à personali-
dade consciente, conforme são apresentados pelo incons-
c~ente. Ficamos mais familiarizados com os aspectos
bIzarros, assustadores, às vezes aterrorizantes do incons-
ciente. Presumimos qUE) sejam expressões d~ natureza
humana tentando compensar essa mesma natureza. O
"material" básico da psicoterapia é uma reflexão em tor-
no de imagens; de acordo com Jung, trata-se de uma re-
flexão instintiva e, ao mesmo tempo, de um acontecimen-
to. Jung dizia repetidamente que a psicoterapia é deveras
uma arte; mas uma arte desenvolvidia_partirdQ instin~
to.da refl~xão. Aqui, podemos começar a enxergar a
pSIcoterapIa como um laboratório de imagens conduzido
pela habilidade artesanal de um psicoterapeuta e por sua
capacidade de gerar imagens.
Voltando-nos para Freud, agora, embora devamos
mantê-lo mais como um baixo-relevo histórico, podemos
perceber que, apesar de sua orientação cientifica Hermes
o mais psicológico dos deuses, também fez-se' present~
nele. Freud era um homem "vitoriano" J'udeu vienense
d ' I ' , ,
o secu o XIX. Suas descobertas psicológicas, no início
31
deste século, estavam impregnadas das comple~idades
da ciência natural de então, do pudor ~exual da epo~a,~ e
das fantasias monoteístas e patriarcaIs de sua tradIÇao
judaica. .
Enquanto Freud estava construind? sua teOrIa da
sexualidade, é questionável que algum mmuto sequer ele
tenha dentro de sua tradição judaica, pensado que tam-
bém e~tava às voltas com deuses pagãos reprimidos. Ele
e seus seguidores estavam convencidos de estarem estu-
dando mais uma das muitas ciências naturais que se sa-
lientavam na época. Nesse sentido, seu ponto de obser-
vação estava centrado no lado orgânico, biológico e físico
da sexualidade, e sua teoria principal vinculava a en.fer-
midade mental (a histeria e a neurose) com a sexualIda-
de. Consideravam que as complicadas perturbações se-
xuais participavam de um relacionamento de causa ~
efeito com a enfermidade que estavam estudando. EVI-
dentemente não estavam cientes de que existem deuses
na sexualid~de, particularmente Hermes, o vinculador,
além da história e dos instintos. Sendo assim, qualquer
concepção que tenhamos da sexualidade e, desnecessário
dizer, qualquer teoria da sexualidade, não pode ser vista
somente em termos de uma história pessoal. Cada deus
tem uma sexualidade em particular. A visão pagã da se-
xualidade - em todas as suas várias formas - implica
em politeísmo/polimorfismo, numa visão que entra em
32
conflito com a herança religiosa monoteísta de Freud.
Em sua momentosa descoberta da sexualidade como um
campo de pesquisas, esses pioneiros da psicologia moder-
na não estavam a par da interferência de pelo menos um
32 Ao longo deste livro, estarei tr~zendo ma~s inform~ç~es a este respeit?
Ver também: "Qn Cultural Anxiety" ln Symboltc and ClLnwal Appl'oaches Ln
Practice and Theol'y: Pl'oceedings of the Ninth International Congl'ess foI'
Analytical Psychology, Jel'llsalem, 1983, eds. Luigi Zija e Robert Hinshaw,
Daimon Verlag, Zurique, 1986.
32
deus pagão em suas psiques, alguém de aparência itifálica
e que é o mensageiro dos deuses, aquele vinculador que é
capaz de conectar-se com a sexualidade dos outros deu-
ses. A repressão era uma questão pessoal e eles não ti-
nham a menor consciência do cristianismo como repressor
da sexualidade e do corpo emocional. Chegaram até a
confundir (o que seus seguidores ainda fazem) esses dois
níveis principais da repressão psíquica. E, evidentemen-
te, não percebiam nem a época repressiva em que esta-
vam vivendo (vitoriana), e nem a natureza repressora de
seu próprio judaísmo.
As raízes religiosas e históricas de nossos pioneiros
não lhes permitiram manter a linha-limite entre o pênis
físico e orgânico e a imagem fálica do deus, para não
mencionar seu papel como senhor dos caminhos. Toda a
energia daqueles estudiosos foi canalizada para uma teo-
ria do pênis-libido-sexualidade que, numa dimensão
arquetípica, pode ser ligada a Hermes. Assim, esse deus
que, entre os muitos aspectos de sua natureza, não quer
ser contido pelos limites de estudos científicos sérios, frag-
mentou-se como um pouco de mercúrio, esparramou-se e
dispersou-se, fazendo com que aqueles sérios e científi-
cos pioneiros vienenses da psicologia moderna de final
de século encontrassem o foco de sua atenção, o pênis
igualado com a sexualidade, simbolizado por toda parte
(Ilustração 2). Sua seriedade deixou-os cegos para a gra-
ça de Hermes, para sua tolice e estranheza na sexualida-
de; eles foram incapazes de aceitar a aparência não dig-
nificada, esquiva, não científica, de Hermes. Sua atitude
resultou numa psicologia do ego, com uma sexualidade
de ego. A linha-limite de Hermes não poderia aparecer
em sua ênfase na cisão entre o ego e o que chamavam de
ido Todas as ricas possibilidades da vida psíquica esta-
vam bloqueadas porque não existia ligação com elas, de
uma perspectiva limítrofe' favorável. Dali em diante,
33
limítrofe era o limiar e a censura. A psique, enquanto
alma do homem, desaparece dos estudos da psicologia.
Esta passa a ser não o estudo da psique e seu movimen-
to mas a fantasia de uma psicologia centrada no ego e
re~paldada por idéias e técnicas preconcebidas. A sexua-
lidade era vista como uma atividade egóica e o limítrofe,
onde Hermes pode aparecer tanto como vinculador como
na sua função sexual, foi cunhado como termo só para
demarcar os limites do território psicológico além do qual
o ego não poderia passar. Em sua psicanálise, Freud fez a
única coisa que podia: repetir a história da repressão psí-
quica do povo judaico.
Por seu lado, Jung havia encontrado Hermes atra-
vés de seus estudos do gnosticismo, dos contos de fada
(The Spirit Mercury), da antropologia e, como já assina-
lamos, da alquimia; Hermes tornou-se o que poderia ser
chamado de a matriz de sua psicologia. Assim que a
simbologia e a imagética de Hermes tornaram-se uma
parte básica dos estudos de Jung, o limítrofe que ele de-
marca passou a dar apoio a uma atitude que abriu a pos-
sibilidade de se estudar a psicologia profunda. Também
abriu o caminho para se ver a sexualidade segundo aque-
la própria linha-limite de Hermes, onde, além de seu as-
pecto físico, ela pode ser considerada em termos das co-
nexões arquetípicas impessoais feitas por Hermes. A
sexualidade, portanto, tornou-se não só a causa traumá-
tica da doença mental a ser curada, como uma entre as
muitas manifestações válidas da psique do homem. A
sexualidade - com seus traumas, inibições, fantasias e
imagética - tornou-se mais um elemento da transfor-
mação possível da alma do que uma enfermidade locali-
zada que paralisa ou petrifica a psique.
Ter uma impressão dos conflitos religiosos, raciais,
geográficos e históricos das psiques de Freud e Jung aju-
da-nos a aprofundar nosso entendimento dos legados que
34
nos outorgaram, de seus métodos, sistemas, concepções
psicológicas etc. Passamos agora a estudar um episódio
em suas vidas que, além de relevante para o que estou
tentando dizer, oferece ainda mais esclarecimentos e re-
flexões acerca de uma outra aparição de Hermes.
A ruptura de Jung com Freud sempre teve o tom de
uma discórdia entre pai e filho, ou mestre e discípulo.
Chegou inclusive a ser entendida como dissidência, nu-
ma visão que nos permite detectar a pobreza de espírito
de algumas pessoas diante dessa separação. Mas veja-
mos o que Jung tem a dizer sobre sua mútua análise de
sonhos, durante aquela viagem aosEstados Unidos, em
1909:
Estávamos juntos diariamente, e analisávamos os sonhos
um do outro. Naquela época, eu tive uma série de sonhos
importantes, mas Freud não conseguiu entender nada
deles. Não pensei nisso como um depoimento sobre ele,
pois acontece eventualmente de o melhor analista não
conseguir decifrar o enigma de um sonho. Era uma falha
humana e eu nunca pensara em interromper nossas aná-
lises de sonhos por esse motivo. Pelo contrário, esse tra-
balho significava muito para mim, e eu considerava o nosso
relacionamento extraordinariamente valioso. Para mim,
Freud era uma personalidade mais madura, experiente,
mais velha, e sentia-me como um filho, nesse sentido. Mas
então aconteceu um episódio que acabou sendo um severo
golpe contra todo o relacionamento.
Freud teve um sonho - não consegui transmitir de ime-
diato o problema que ali era trabalhado. Interpretei-o do
melhor modo que pude, mas acrescentei que havia muito
mais a ser dito, desde que ele pudesse adiantar-me al-
guns detalhes adicionais de sua vida particular. A reação
de Freud a estas palavras foi uma expressão estranha no
seu rosto - um ar de absoluta desconfiança. Então ele
disse: "Mas eu não posso arriscar a minha autoridade!"
N aquele mesmo instante ele a perdera completamente.
Aquela sentença incinerou-se por si em minha memória
e, no final de nosso relacionamento, já estava totalmente
35
 esquecida. Freud havia colocado a autoridade pessoal aci-
ma da verdade. 33
A descrição apresentada por Jung destes dois homens
interagindo, discutindo, interpretando os sonhos um do
outro, dá-nos uma imagem bastante ingênua de ambos.
N aquela época, Freud e Jung interpretavam mutuamen-
te seus sonhos, sem saber quase nada das implicações
dessa espécie de atividade. Há já alguns anos, vinham
discutindo a descoberta do fenômeno da transferência,
mas suas discussões haviam se baseado principalmente
no material apresentado por seus pacientes e, com isso,
tinham formulado uma visão científica externa do fenô-
meno. Parece que não se haviam dado conta de que con-
tar os sonhos um para o outro, no setting de uma viagem
de navio entre a Europa e a América, implica em uma
situação transferencial, que contém inevitavelmente um
tom emocional. Mas nosso interesse é compreender cla-
ramente como Hermes apareceu na carne da história da
psicologia moderna, naquelas sessões de análise de so-
nhos, no navio. Teremos também um vislumbre das psi-
ques de ambos os homens e da repercussão do episódio
entre eles para o legado essencial da psicologia contem-
porânea.
Inconscientemente respaldado por sua raça, religião
e história, Freud mostrou seu estilo de transferência atra-
vés de sua fantasia autoritária, patriarcal, judaica. Jung
viveu o impacto transferencial daquele encontro de uma
outra forma. Se havia tentado lidar com o sonho de Freud
de igual para igual, era porque Hermes já estava presen-
te dentro dele, tentando guiar o relacionamento e enxer-
gar claro dentro do sonho do outro, segundo o seu limite
de observação. O que estamos chamando de a linha-limi-
33 C. G. Jung, Memories, Dreams, Reflections, ed. Aniela Jaffé, trad. R. e C.
Winston, Collins and Routledge & Kegan Paul, Londres, 1963, p. 154.
36
te de Hermes implica em uma simetria de relacionamen-
to, que é uma abordagem hermética característica, pois
esse deus é o "mais amistoso de todos os deuses para os
homens". Além disso, a insistência de Freud em sua au-
toridade e dignidade não combina com uma psique her-
mética, não é compatível com Hermes que, basicamente,
é um deus não-autoritário. Como já vimos antes, Hermes
está mais interessado no lado não dignificado da psique,
e isso Freud não estava disposto a deixar entrever.
Jung havia feito sua transferência de modo herméti-
co. Na psique de Jung, Hermes buscou a abordagem li-
mítrofe do outro e da imagética onírica. Em todo o desen-
rolar desse episódio, Hermes estava presente em Jung,
como caminho transferencia.l. Durante todo o resto de sua
vida, .[l!ng dedicou uma grande parte de seu trabalho a
pôr a·l:trli:r!f?ferência hermética em palavras, símbolos e
i!lYªgl?:ris~~ll.!!lªtra!lsferência que não pode ser concebi-
da.~!lY ..t~IJ:l1PS. dealltpridade, poder, sistema ou técnica
r~d:ntiY:ª:nºrqlJe,pf:lnl início de conversa, Hermes não é
técnico .e:êsquhm~se à redução. fragmentando-se por toda
pªrte,..cQmo.fez.na época do simbolismo peniano~ O opus
alquímico de Jung deu-nos a primeira lição psicológica
sobre·1à retórica de Hermes34 - Hermes expressando-se
a partir de sua linha-limite em linguagem própria, de
um modo que é muito distante do da linguagem bem-ar-
ticulada que Freud ofereceu à psicologia moderna.
Eu gostaria de capturar a imagem do momento real
em que Jung sentiu dentro de si como, de repente, o rela-
cionamento com Freud estava rompido. Pode-se perce-
ber, da parte de Freud, um uso indevido da palavra "au-
toridade". A meu ver, essa situação pouco tem a ver com
autoridade. Autoridade é algo que tem uma conotação
uma retórica e uma sensibilidade mais amplas para li~
34 Para uma d'Iscussao
- maIS
. comp1eta, ver o capItulo
' 6 sobre Príapo.
37
dar com situações desse tipo. Para uma verdadeira auto-
ridade, não existe nenhum risco em entrar psicologica-
mente no que poderia ser vergonhoso no plano pessoal.
Evidentemente, o sonho de Freud tinha complexos ver-
gonhosos e, sem Hermes à mão para lidar com esse estar
sendo "encurralado", ele os bloqueou, não se valendo de
autoridade, mas sim do uso da força. A força é o aspecto
mais extremo da não-imagem; ali existe, em vez de ima-
ginação, um deserto estéril. O Hermes em Jung sentiu
de imediato o uso da força, e destruiu-se então a possibi-
lidade de o relacionamento prosseguir. Certamente essa
ruptura foi para ele uma experiência anímica profunda.
Pelo modo como Jung fala disso, podemos perceber o con-
flito em sua personalidade: embora sentisse hermetica-
mente a ruptura, expressou-a em termos da consciência
que tinha naquela época, consciência essa que era produ-
to da consciência suíça coletiva, do seu histórico de pro-
testante, e da fantasia de uma verdade científica, tão pre-
dominante naqueles primeiros tempos da investigação
psicológica. Vejo Jung, naquele momento, nas malhas de
um conflito entre a repentina percepção hermética do uso
do poder e da força, e uma consciência imbuída da per-
cepção consciente de sua época.
Para o leitor não é difícil perceber esta cena de im-
portância tão notória para a concepção da psicologia mo-
derna: do lado de Freud, a transferência, constelando
poder no analista com uma mera fachada de autoridade,
e disfarçando suas limitadas noções sobre a natureza
humana; do lado de Jung, a repentina constatação her-
mética refletindo a ruptura emocional de um relaciona-
mento. Por trás da cena, dois deuses diferentes - o da
submissão, e Hermes, o deus interior, que rapidamente
se vincula com um acontecimento interno e que não se
submete, nem mesmo ao seu pai. Parece evidente que
esse acontecimento, tão claramente descrito por Jung,
38
tenha sido suficiente para concretizar o término do vín-
culo, embora depois disso a relação houvesse continuado
durante ainda alguns anos, como se fosse necessário tem-
po para que o acontecimento interior repercutisse no as-
pecto externo do relacionamento, e para que a ruptura
final pudesse enfim ocorrer. Parece que isso é comum no
encerramento de uma relação seja entre enamorados,
amigos ou no vínculo psicoterapêutico, em cujo caso a te-
rapia prossegue mesmo que a relação tenha efetivamen-
te terminado. O que parece é que a psique não consegue
aceit~r de imediato a realidade de uma ruptura.
E provável que Jung tenha sofrido muito tentando
fazer os outros entenderem sua abordagem hermética. O
mesmo tipo tedioso de críticas quanto ao seu obscuran-
tismo e falta de "ciência" mantém-se hoje em dia, embora
desde o início ele tenha feito referências implícitas a essa
questão. Alguns de seus seguidores ainda tentam encon-
trar uma fundamentação "científica" para o seu traba-
lho, ou provas. Desse ponto de vista, podemos perceber
que, para Jung, discussões sobre transferência, e até so-
bre o termo em si, eram um aborrecimento. Durante uma
aula nas Conferências de Tavistock ele disse:
Uma transferência sempre é um obstáculo, nunca uma
vantagem.ppde-se curarapesm' da transferência, não por
causa dela. Uma outra razão para a transferência em
especial para suas formas danosas, é uma provocação da
parte do analista. Existem determinados analistas, lamen-
to dizê-lo, que trabalham pela transferência porque acre-
ditam, embora eu não saiba por quê, que a transferência
é útil e até mes:t;I0 necessária como parte do tratamento;
portanto, os pacIentes têm de ter uma transferência. Cla-
ro que essa idéia está inteiramente equivocada. Tenho tido
alguns casos que vêm me procurar depois de uma outra
análise e que, depois de mais ou menos uma quinzena,
entram em desespero. Até então as coisas estavam indo
muito bem, e eu me sentia bastante confiante de que o
caso iria resolver-se ot1mamente, quando de repente o
39
 paciente me informa que não pode prosseguir com o tra-
tamento e logo em seguida começa a c~orar. Eu pergun-
to: "Por ~ue você não pode prosseguir? E problema de di-
nheiro , ou o motivo
, é outro?" E ele diz: "Não, dinheiro não
é a razão disso. E que não tenho uma transferência". Ao
que eu observo: "Graças a Deus, que você não, tem uma
transferência! A transferência é uma doença. E anormal
ter uma transferência. As pessoas normais nunca têm
transferências". Depois disso, a análise é retomada outra
vez calma e construtivamente. 35
Com base nessa citação, podemos concordar que, do
ponto de vista de Hermes, são de fato um transtorno a
necessidade da transferência, depender dela, manejá-la,
ter técnicas transferenciais etc. E, apesar dessa apla,
ainda vemos muitos analistas junguianos terrivelmente
preocupados com a transferência em termos de depen-
dência. Suspeita-se que provavelmente estejam mais in-
teressados em usar a força, o poder, com todas as suas
implicações de dependência, do que em aprender a arte
mais psíquica da recuperação do equilibrio psicodinâmico,
que, para mim, tem a ver como que Jung disse em sua
palestra em Tavistock. Eu nem teria introduzido a ques-
tão da transferência neste trabalho se o próprio Jung,
usando esse termo, não houvesse escrito um livro
intitulado The Psychalagy af the Transference 36 , no qual
ele ampliou o contexto que a psicologiajá havia estabele-
cido em torno de um fenômeno que estava sendo con-
ceptualizado dentro de uma noção estreitíssima. Assim,
neste estudo de Hermes, mantenhamos a palavra "trans-
ferência", e tentemos encontrar novas cores para esse
quadro. O livro de Jung sobre a transferência é de leitura
difícil. Apesar disso, por meio do simbolismo alquímico,
35 C. G. Jung, Analytical Psychology: Its Theory and Practice, Routledge
and Kegan Paul, Londres, 1968, pp. 169-170.
36 Agora incluído nas Obras Completas, VoI. XVI, Princeton, 1958, 1979.
40
ele nos leva mais perto de uma psicoterapia guiada por
Hermes. O tratado alquímico de Arnaldo de Villanova, e
a interpretação que dele faz Jung, expressa uma condi-
ção limítrofe bizarra e obscura. No entanto, pode-se per-
ceber um movimento psicológico dentro dessa linha-limi-
te (ou talvez por causa dessa própria situação limítrofe)
no qual Hermes colocou tanto o alquimista que escreveu
o tratado como o psicólogo que nele encontrou elementos
através dos quais expressar o movimento psicológico da
transferência.
O que foi visto pelos alquimistas e por Jung em ter-
mos de símbolos e paradoxos, nós, em nossa clínica, gos-
taríamos de ver em termos de limítrofe e imagens. Hoje,
somos capazes de enxergar esse tipo de condição, ou pa-
tologia, que historicamente manteve-se oculto nos véus
da ilusão de uma autocentração no homem, de seu supos-
to controle da própria vida, até que essa perspectiva racio-
nal caiu por terra e a psicologia despertou. Hoje, temos de
pensar de um modo que nossos pais, no início do século,
nem poderiam conceber; temos de pensar em termos de
limítrofes, linhas-limite, imagens e também falta de ima-
gens, que nos contam suas próprias histórias. E somos
mais capazes de detectar, diagnosticar, se preferem, o
extraordinário espectro limítrofe de hoje, com a ajuda dos
instrumentos que Jung criou - a psicologia profunda com
suas diferentes percepções da loucura do homem, mais de
acordo com a época em que estamos vivendo e com as ne-
cessidades psicológicas contemporâneas. ~emos em termos
de imagens porque a plasticidade da imagem, na minha
opinião, fornece um contexto mais favorável para refle-
xões e provoca mais movimento psicoterapêutico do que a
linguagem do símbolo I Sim, estou ciente de que um símbo-
lo pode ser uma rede para capturar e reunir a psique,
mas o símbolo também pode interromper o movimento
psíquico de investigação da própria natureza e da vida.
41
 Se seguirmos a linha junguiana do processo psicoló-
gico da individuação, veremos que é o mov~mento trans-
ferencial que o leva em frente. Esse mOVImento trans-
ferencial limítrofe é dominado pelo Hermafrodita, com.
todas as referências concomitantes a este processo - o
Rei e a Rainha, a Fonte, a Água, a Alma-Criança, a Lua,
o Vento do Espírito etc. Mas o motivo central desse pro-
cesso é o Hermafrodita, uma criança nascida de Hermes
e Afrodite.
o HermafrQ9ita,um paradoxo hermético, duja
bisse~~~Üdade reconcilia o conflito de opostos, represen-
ta uma nova dimensão consciente. Diria que todos os atri-
butos de Hermes que mencionamos até agora estão con-
tidos no Hermafrodita, que os traduz numa complexa
linguagem própria. Por um lado, o Hermafrodita oferece
seu próprio campo de reflexões e, por outro, seus símbo-
los e imagens particulares (sua linguagem peculiar) afe-
ta o processo analítico da psicoterapia. Tenho em mente
aqui não só o movimento psicológico que o Hermafrodita,
com todo o simbolismo que a ele está coligado, traz para o
processo analítico, como também os casos mais comple-
xos e difíceis, tanto de homens como de mulheres, que
em sua primeira sessão psicoterapêutica afirmam que são
hermafroditas. 37
Com o Hermafrodita, a psicologia começa a ser psi-
cologia em seu mais profundo sentido. Se pensamos no
Hermafrodita como uma consciência particular em si
mesma, então, dentro de seu próprio nível de conscien-
tização ela apreende aquela realidade básica da vida que
torna a psique possível: o homem e a mulher. D Her-
mafrodita nos intl'odll~.naê.complexidades do masculino
e dofeminÍIlO dentro de uma única imagem simétrica.
Essa imagem da oposição masculino/feminino contida
37 Ver capítulo 6 sobre Príapo.
42
dentro de uma simetria não foi abordada por nenhuma
outra escola de psicologia. 38
AiIllagética do IIernmfrQditaimplicaem uma.deci-
didajndicação domo:v:imento tanto transferencial como
psíquico na psicoterapia. Contudo, naquilo que estamos
chamando de movimento transferencial, não podemos
deixar de lado a_neçe.~sária. eon13ciência hermética bis-
sexual do analista, porque ao liberar a imaginação das
polaridades sexuais, .Ella pode constelar um movimento
psicológico que, em si, não é nem masculino nem femini-
nQ.Essa espécie de transferência, que não é "apreensível"
dentro das polaridades e associações de "homem" e "mu-
lher", não paralisa os complexos; pelo contrário, encoraja
um movimento psicológico mercurial. Ela tem uma cono-
tação realmente muito diferente da que lhe foi atribuída
pelos pioneiros vienenses da psicologia moderna. É isso
que faz do Hermafrodita um dinamismo tão profunda-
mente importante e fundamental para aquela psicologia
que, de acordo com Jung, não precisa, ou melhor dizen-
do, tenta prescindir de uma transferência concreta, e que
empenha-se em promover a tmnsferênciÇl hermética, cujo
possível resultado.seria .a.13!nte.se..b~!:Jnªfro<lita.
De modo algum, isso significa uma questão simples
para o analista, considerando que ele tem de apreender
a transferência segundo o ponto de vista do Hermes-
Hermafrodita, e refletir os símbolos e as imagens que pro-
cedem dos complexos, a fim S!~.ªyªljªJ:' Q.!l1Qvimento
transferencialque.elesJrnprimem, .em VEl.Z .dp . c.On:flito
tnmsferencial. Isso requer vigor, resistência e uma deli-
cada arte do analista, uma vez que a imagética do Herma-
frodita costuma ser repulsiva. Hermes e o Hermafrodita,
38 Isto seria uma resposta mais psicológica à "alegação" feminista de que
as mulheres são o mesmo que os homens. Para a consciência hermafrodita, os
homens e as mulheres são iguais.
43
enquanto elementos do trabalho psicoterapêutica, têm
tido reduzida popularidade; Hermes porque é muito es-
quivo, sem dignidade, e o Hermafrodita porque aparece
de modo repugnante nos sonhos, ou na declaração da pes-
soa de que ela é hermafrodita.
N o primeiro capítulo, tomamos cantata com algumas
das qualidades básicas, imagens e símbolos de Hermes.
Agora, estamos às voltas com um de seus filhos, o Her-
mafrodita. Nossa intenção é tentar ler a imagem, não o
simbolismo, do Hermafrodita com uma atitude que pos-
sa aperfeiçoar a visão que temos dele, mesmo quando sua
imagética, apesar de assinalar um determinado estado
psicológico de um paciente, é profusamente grotesca e
repugnante tanto ao paciente como ao analista. Antes de
irmos em frente com a nossa discussão, vejamos a ima-
gem do Hermafrodita, tal como aparece no texto clássico
de Ovídio, Metamorfoses:
O quanto a fonte de Sálmacis tem má-fama, como enerva
com suas águas debilitantes e amolece e enfraquece todos
os homens que nelas se banham vocês estão prestes a ou-
vir. A causa é oculta; mas o poder debilitante da fonte é
bem-conhecido. Um pequeno filho de Hermes e da deusa
Citera foi pelas náiades criado dentro das cavernas de Ida.
Em seu belo rosto, a mãe e o pai podiam ser claramente
vistos; seu nome ele também tirou deles. Depois de quin-
ze anos terem se passado, ele deixou suas montanhas na-
tais e abandonou sua mãe adotiva, Ida, desfrutando de
passeios por terras desconhecidas, vendo rios que lhe eram
estranhos, e com tal ânsia que o difícil lhe parecia apenas
leve. Chegou inclusive até as cidades da Lícia e aos Cários,
que habitam em volta da Lícia. Ali, deparou com um lago
de águas cristalinas do qual se podia ver até o fundo. Não
cresciam nele os juncos de pântano, nem a grama de charco
que não dá frutos, nem os juncos espinhosos; a água é
clara. Mas a margem desse lago é rodeada por grama
macia e arbustos de folhagem sempre verde. Uma ninfa
habita no lago, uma ninfa que não gosta de caçar, nem é
propensa a vergar o arco ou lutar com pés ligeiros. Ela,
44
dentre todas as náiades, não segue as céleres pegadas de
Diana. Muitas vezes, dizem, suas irmãs provocam-na:
"Sálmaris, pega agora ou a lança de caça, ou a aljava pin-
tada, e sacode essa preguiça com o ardor da caçada". Ela,
porém, não toma da lança de caça nem da aljava pintada
-, nem sacode sua preguiça com os ardores da luta , mas
as vezes banha seus formosos membros em seu próprio
lago; geralmente, penteia seus cabelos com escova de buxo,
muitas vezes se mira naquele límpido espelho das águas
para ver o que mais pode torná-la bela. Agora, envolta por
um manto transparente, ela se deita na grama nova ou
perto dos arbustos, para repousar. Costuma colher flores;
nesta ocasião, ocorreu também ela estar apanhando flo-
res quando viu o rapaz e ansiou possuir aquilo que estava
vendo.
Ainda não se aproximou dele, porém, embora estivesse
ansiosa por fazê-lo, mas esperou até se acalmar, até ter
arrumado suas vestes e composto seu rosto, e tomando
todos os cuidados para parecer linda. Depois ela falou: "Ó
jovem, que mais se deve crer que seja um deus, se tu és
verdadeiramente um deus; deves ser Cupido. Se és mor-
tal, felizes os que te deram à luz, abençoado é teu irmão
feliz arda de fato alguma irmã que tiveres, e tua ama qu~
te deu de mamar. Mas muito, ó muito mais feliz do que
todos estes é aquela que, se existe para ti alguma noiva
prometida, aquela que julgares digna de ser tua esposa.
Se esta já existe, que minha alegria feneça; mas, se ela
não existe ainda, que eu seja tua, tua noiva, e que possa-
mos nos unir pelos laços do matrimônio." A virgem então
nada mais falou. Mas o jovem enrubesceu e corou, pois
não sabia o que é o amor. Mesmo assim, aquele rubor caiu-
lhe bem. Essa é a cor das maçãs que pendem nos pomares
ensolarados e no marfim pintado. É a cor da lua quando
em eclipse, vermelho sob branco, quando os vasos de co-
bre em vão estrondam para aliviá-la. Quando a ninfa su-
plicou e orou por pelo menos um ósculo fraternal e estava
em vias de lançar seus braços em volta daquel~ pescoço
alvo como neve, ele gritou: "Pára, ou terei de fugir e sair
daqui - abandonando você". Sálmacis tremeu diante de
tal a~eaça e disse: "Cedo o lugar para você, belo desco-
nheCIdo ... " e deu-lhe as costas, fingindo que ia embora.
No entanto, olhava o tempo todo para trás, e num arvore-
45
 do próximo abaixou-se e esc~mdeu-se~ de joel?os dobra-
dos. O menino, então, sentIndo-se lIvre e so, como se
niguém o estivesse vendo, caminha de um lado para outro
pela grama mergulha os dedos e os pés nas águas que
vêm lambe; as margens. Agora, seduzido pelo frescor da
correnteza repousante, arroja de si os finos trajes que co-
briam seu corpo esguio. Nesse momento, a ninfa sente-se
enfeitiçada e seu amor se incendeia quando ela contem-
pla aquele ~orpo desnudo. Seus olhos brilham como quan-
do o rosto refulgente do sol se reflete na superfície de um
vidro que se segure na direção de seus raios. Ela mal con-
segue suportar a demora, mal tolera adiar s~a felicidade,
tão ansiosa está para tê-lo em seus braços, tao loucamen-
tejá. Ele, depois de ter dado palmadinhas em todo o corpo
com as mãos em concha, mergulha na lagoa e nada com
braçadas alternadas e um corpo luzidio, que atravessa a
superfície transparente como se pudéssemos emoldurar
figuras de marfim ou lírio,s bran~?s em vidro t~anslúcido.
"Eu venço, ele é meu!", grIta a nmade, e despoJando-se de
todas as suas vestes também mergulha naquelas águas; e
o agarra com força enquanto ele tenta s~ ~esvencilhar dela,
rouba-lhe beijos relutantes, faz-lhe canClas, toca-o em seu
peito que a rejeita, pendura-se nele,P?r tO?OS os lados.
Finalmente, enquanto ele tenta ao maXlmo lIvrar-se dela,
ela o rodeia com seus braços como uma serpente, quando
o rei dos pássaros a apanha e a está carregando para o
alto dos ares; esta, pendurada por suas garras, enrola suas
vestes em torno da cabeça e pés dele, emaranhando sua
cauda nas asas adejantes daquele pássaro. Ou, como tan-
tas vezes a hera faz abraçando o grande tronco das árvo-
res ou como o pólipo do mar que mantém seu inimigo
ap;isionado no fundo do oceano com tentáculos que o cer-
cam por todos os lados. O filho de Atlas resiste o ~ais. que
pode e nega à ninfa a alegria que ela tanto anseIa VIVer;
mas ela se firma contra ele e tanto que até parece que
cresceram grudados. "Pode se esforçar o quanto quiser,
menino malvado" ela grita, "mesmo assim você não vai
6
escapar de mim. deuses, concedei-me isto: que não exis-
ta dia por vir que possa separar-me dele, ou ele de mim".
Os deuses atenderam sua prece. Pois os dois corpos, uni-
dos como estavam, foram fundidos num só, com um só
rosto e uma só forma para os ambos. Assim como se en-
46
xerta um ramo em alguma árvore, e se podem ver os ga-
lhos crescendo como um só, e com a vida em comum al-
cançam a maturidade, também aqueles dois corpos esta-
vam unidos num íntimo abraço: não eram mais dois, nem
se podia mais assim chamá-los, um de mulher, o outro de
homem. Não pareciam nem uma coisa nem outra, e as
duas ao mesmo tempo.
Quando ele viu então que as águas em ,que mergulhara
tinham feito com que se tornasse apenas meio-homem, e
que ali seus membros tinham se debilitado, Hermafrodita
estendeu as mãos e chorou, embora não com uma voz
masculina, dizendo: "Ó meu pai, ó minha mãe, concedei
esta dádiva a seu filho que traz o nome de vós dois: aquele
que entrar como homem nestas águas que saia delas meio-
homem, e que fique debilitado ao tocá-las". Seus pais ou-
viram a prece daquele seu filho biformado, e dotaram as
águas desse poder inacreditáve1. 39
A elegante versão que Ovídio oferece para a história
do. Herm.afrodita nos dá uma imagem deveras remota da
estranne.za de sua simbolização alquímica e de sua inva-
riáyel,caracterí!3tica repulsiva nos sonhos e fantasias
modernas. Nos!3aatenção é atraída pela diferença de re-
preséntação,:na poesia mítica do Mediterrâneo e na alqui-
mia medieval, assim como nas suas aparições modernas.
Essa/diferença nos leva a especular se a estranheza e a
t:8pulsividade de suas simbolizações e paradoxos não se-
riam ainda um.outro modo histórico de expressão de um
8;tquétipo que foi reprimido pelo cristianismo. A aparên-
ci.adas imagens, dos símbolos e paradoxos e das fantasias
em.· t!lEuQ.d!:LHermafrodita são, dentro da abord/lgem
jynm!im!a.G.lá§sk/l,O.que poderíamos chamar de conteú-
QjJ,§,ÍncQn!3ClentJlS, .de.elementos muito. alheio.s às exigên-
~a_.diuu~nf'iªQ.Con!3cie:pte da vida diária. Quando es-
§§t§?2elementQê irrornpem na psicoteI'apia,precü~am ser
39 Ovídio, Metamorphoses, trad. F.J. Miller, Loeb Library, Heinemann,
L"órldres, 1916, Livro IV, pp. 199-205.
47
contidos porque a estranheza que manifestam, em ~i~tu­
de do teor de sua inconsciência, tende a desestabIlIzar
tallto o analista como o paciente. Conforme veremos num
próximo capítulo, esses conteúdos pertencem a uma psi-
cologia distanciada da formação acadêmica em psiquia-
tria e psicoterapia, cujos treinamentos reduzem esses ele-
mentos psicológicos conflitivos a categorias nosológicas,
eliminando dessa maneira a possibilidade do movimento
psíquico contido na imagética do Hermafrodita, com sua
consciência própria.
Sempre é um desafio conter e refletir a imaginação
do Hermafrodita por causa de sua dupla duplicidade. Por
um lado é bissexual, com uma patologia obscura, e, por
outro, é um mobilizador psíquico. Quando o analista é con-
frontado com as complexidades do Hermafrodita, é-lhe
essencial configurar uma consciência hermafrodita. Con-
tudo, existe uma outra abordagem para todas essas difi-
culdades, em especial se o psicoterapeuta estiver interes-
sado em imagens e imaginação, e sentir que praticamente
todo o seu atendimendo depende disso. Na versão de
Ovídio para o Hermafrodita, o profissional tem uma ima-
gem de imenso valor psicoterapêutico.
A aparência do Hermafrodita, desde o período medie-
val, apresenta-nos uma imagem que transmite uma pa-
tologia repugnante, como já dissemos antes, e por isso
poderíamos dizer que é uma imagem impossível (Ilustra-
ção 3). Quando essa imagem impossível do Hermafrodita
surge num paciente, exibindo sua poderosa patologia para
o psicoterapeuta, ela pode alterar ou anular o equilíbrio
da atitude psicoterapêutica do analista, e ele acaba re-
jeitando a imagem impossível ou reduzindo-a a um enqua-
dramento psiquiátrico. Portanto, quero chamar a aten-
ção do leitor em particular para a graciosa beleza da
poética de Ovídio, porque ela nos proporciona uma ima-
gem verdadeiramente funcional para a psicoterapia, um
48
Hermafrodita mais acessível através das imagens pagãs,
que nos oferece uma visão hermafrodita mais pura do
que a conflitiva imagem medieval simbólica. A poesia e a
arte de Ovídio oferecem aquilo que poderiamos chamar
de uma imagem "possível" de ser apreendida pelo analis-
ta (Ilustração 4). Ele pode tornar sua essa imagem clás-
sica e, com isso, ser capaz de conter todo o impossível,
grotesco, repulsivo e tresloucado na imaginação da apa-
rência de um Hermafrodita com uma versão clássica que
pode servir de guia e proteção em meio a toda a confusão
do estranho aparecimento do Hermafrodita na psico-
terapia.
A complexidade da imagem de Ovídio nos dá muitos
elementos sobre os quais refletir. Depois de banhar-se
nessa lagoa misteriosa com a ninfa Sálmacis, o belo jo-
vem, que lembra Eros, dá-se conta de sua nova condição
(que dá significado a seu nome, Hermafroditus), sentin-
do-se debilitado. Quando o Herm.afrQdita aparece na
psicoterapia, vem acompanhado por uma sensação de
enfraquecimento, em oposição à ilusão da força das pola-
ridades masculinas e femininas, com o ingrediente "ma-
chi§ta" de q!l~estão impregnadas. Para o analista é um
desafio perceber esse enfraquecimento. É um elemento
difícil de ser detectaçlo em sua realidade, para que rece-
ba seu devido valor. E muito fácil diagnosticá-lo pejorati-
vamente como depressão, em cujo caso o analista vê-se
propenso a considerá-lo em seu lado negativo, mais do
que como um movimento na direção de uma nova consciên-
cia. Essa condição de fraqueza é essencial para tornar
possível a condição hermafrodita limítrofe, que demarca
o movimento psicoterapêutico da velha dimensão conscien-
te para uma consciência mais psicológica. Desnecessário
dizer que as exigências da sociedade e do ambiente do
indivíduo, as quais não permitem fraquezas, podem so-
mar-se às dificuldades tanto do paciente como do analis-
49
ta em sua tarefa de avaliação da nova organização
hermafrodita da consciência. A psicoterapia afiliada à
consciência coletiva é mais propensa a cobrar uma reali-
zação de vida praticamente em oposição à fraqueza. Até
na psicologiajunguiana, a batalha é pela força, pelo en-
frentar, tomar decisões, ser responsável, efetuar l,lm tra-
balho criativo consistente etc. Não obstante, o componente
da fraqueza na imagem clássica do Hermafrodita nos in-
troduz no cerne mesmo da percepção da transferência
regida por Hermes/Hermafrodita: sua realização é a de-
bilitação.
Além disso, os estudos-padrão da psicologia jun-
guiana têm pouco ou nada a ver com a fraqueza obtida
por um Hermafrodita na lagoa. O treinando em análise
junguiana deve analisar-se tanto com um homem como
com uma mulher, e existe a tendência a mudar de analis-
ta quando a análise parece que não está mais "funcio-
nando". Surpreendentemente, essa troca nunca foi dis-
cutida, até agora, do ponto de vista de seu poder de abalar
e até mesmo fragmentar uma imagem arquetípica, ou pelo
menos de impedir o aparecimento do Hermafrodita, que,
em si, contém tanto o masculino quanto o feminino, as-
sim como aquilo que "funciona" e o que "não funciona".
Estou perfeitamente ciente de que a "realização" do Her-
mafrodita na lagoa, o pré-requisito da organização
hermafrodítica da consciência, é difícil de ser aceita pela
psicologia e de encontrar um lugar próprio no campo da
psicoterapia. Ap:;;iç91ºgiª"~j1!ng]!iªIlª", <lªlnesIlla forma
çomooutras atividadEl:;;dª vülª, _ElffiPrElsta à fraqueza a
habitual conotação depJ;ElcÍatória.
Este pode ser o lugar onde se abordar a assim-cha-
mada transferência/contratransferência. Quanto ao nos-
so estudo dos arquétipos, temos de ter em mente que to-
dos os diferentes deuses, em suas variadas psicologias e
configurações arquetípicas, têm suas próprias maneiras
50
transferenciais. Segundo a perspectiva alquímica, cada
deus ou deusa tem seu próprio metal, água, fogo etc. Por-
tanto, dentro de uma visão arquetípica, algumas confu-
sões de transferência/contratransferência poderiam ser
vistas como uma situação em que o analista reage ao pa-
ciente a partir de um arquétipo que não está analitica-
mente constelado; o arquétipo constelado no paciente é
diferente. Assim, confrontando o paciente com um mode-
lo ao qual ele é incapaz de corresponder naquele momen-
to, a confusão está criada e não só isso como também mais
dependência transferencial em relação ao analista. Nada
está relacionado longe de Hermes, que é o vinculador, nem
do Hermafrodita, que contém a possibilidade de se atin-
gir um novo campo de consciência. Não existe conexão
simétrica entre analista e paciente, e nem um vínculo
apropriado é feito com o arquétipo constelado no paciente.
N a qualidade de entidade bissexual, o Hermafrodita,
com sua natureza limítrofe hermética em quem a sexua-
lidade e a fantasia se encontram, é um mobilizador psí-
quico constantemente assinalando o relacionamento
transferencial que temos com os nossos complexos e a
nossa patologia. Isto não é simplesmente uma transfe-
rência terapêutica curativa, e sim mais viver toda uma
existência em termos do movimento transferenciaL Nos-
sa memória, nossos relacionamentos com os outros, nos-
sa visão de mundo, e de nós mesmos, metamorfoseia-se
em vida. Em termos explícitos, viver a vida é mais im-
portante do que a ilusão de uma realização concreta
alcançada através de uma psicoterapia.
Se o movimento na vida é o que realmente se obtém
da psicoterapia, então o movimento que o analista impri-
me à sua própria vida é fundamental para que ele venha
a ter condições de constelar no outro um movimento em
sua vida; seu movimento transferencial em relação aos
próprios complexos é a substância que produz a psico-
51
terapia, e não uma técnica fixa ou uma noção preconcebi- cedida a Hermafrodita, que nossa organização herma-
da. Encontramos uma nova persp~ctiva segundo a qual frodítica de consciência, com todas as suas peculiarida-
entender o termo "transferência". E movimento na vida. des limítrofes, penumbrosas e debilidades - que jamais
E aqui chegamos àquelas questões que os analistas da é a assim chamada consciência de ego, mas o dinamismo
minha geração se fazem: a minha própria análise está que nos mantém indo hermeticamente adiante pelas es-
concluída? Será que eu tenho energia para entrar numa tradas da vida - é constantemente recriada por nossos
nova análise agora que estou mais velho? O meu relacio- anseios e rejeições.
namento com a minha mulher, os encontros com os cole-
gas e amigos, são para discutir o nosso movimento psí-
quico suficientemente? Agora, sendo mais preciso e
prático: depois de alguns anos, estou clinicando desta for-
ma, mas como estarei clinicando no futuro? Nessa medi-
da, está sempre presente a questão de como a vida deve-
rá ser vivida amanhã, de como nossos atendimentos hoje
serão diferentes dos de ontem.
Por fim, leiamos novamente a imagem clássica do
Hermafrodita no Metamorfoses de Ovídio. Filho de Her-
mes e Afrodite, o Hermafrodita é muito belo e lembra
Eros; ingressa em nosso mundo e encontra u}Ila determi-
nada ninfa, que não pertence ao séquito de Artemis nem
se interessa por caçar, mas que gosta de pentear seus
cabelos e olhar para seu reflexo no espelho das águas da
lagoa à qual ela pertence. Seu repentino desejo assim que
vê o jovem (fantasia), e a timidez e recusa deste em rela-
ção a tal desejo, aquela brincadeira da natureza entre o
anseio e a rejeição deste anseio até que se dê o "aconteci-
mento" durante o banho na lagoa, oferece-nos uma linda
imagem a partir da qual refletirmos sobre uma constân-
cia da psique humana. Eis aí uma boa imagem para a
psicoterapia que reverte para a vida. Esse anseio e repú-
dio arquetípicos podem ser vistos como o dinamismo que
faz a psique e a vida se mover. Talvez seja essa pendulação
que insufla a transferência, permitindo-nos vê-la em ter-
mos de um constante movimento de nossa vida psicológi-
ca. Diz-nos a imagem, na prece da ninfa e na dádiva con-

52 53

2 parte dentro dela, e os caldeirões abundantes.
O HINO HOMÉRICO A HERMES
Desde o seu primeiro dia de nascido numa gruta da
Arcádia, e desde seus primeiros atos, tal corno estão re-
gistrados no "Hino homérico a Hermes", ternos da natu-
reza de Hermes urna imagem que revela as característi-
cas essenciais desse deus tão esquivo. O Hino conta que,
ao meio-dia do dia em que nasceu, " ... ao pisar além do
umbral da ampla caverna de teto alto, encontrou um cá-
gado bem ali e ficou completamente encantado. Pois foi
Hermes quem pela primeira vez tornou o cágado um can-
tor".1 O Hino conta em seguida corno, depois de ter mata-
do o animal, ele engenhosamente criou urna lira do seu
casco. Bem, isto não teria muita importância para o estu-
do da psicologia, se a história não nos dissesse que, com
essa lira, Hermes entoou por assim dizer a primeira de
todas as canções:
Ao toque de sua mão, ela soou maravilhosamente; e, ao
dedilhá-la, o deus cantou doces árias improvisadas, do
modo como os jovens fazem com seus bandos nos festi-
vais. Ele cantou sobre Zeus, o filho de Cronos, e Maia, a
bem-calçada, e a conversa que tiveram antes, no aconche-
go do amor, contando toda a gloriosa saga de sua própria
concepção. Ele também celebrou as criadas da ninfa e sua
1 Todas as citações extraídas do "Hino homérico a Hermes" pertencem a
Hesiod: The Homeric Hymns and Homerica, trad. Hugh G. Evelyn-White, Loeb
Classical Library, Heinemann, 1914, p. 365 ss.
54
casa fulgurante, os tripés que se espalhavam por toda
As implicações desse primeiro ato de Hermes pare-
cem ter passado virtualmente despercebidas pela psicolo-
gia e, claro, pouca presença têm na psicoterapia. A primei-
ra conduta de Hermes, quanto ao que hoje em dia se
expressa em terminologia técnica corno os complexos ma-
terno e paterno, foi simplesmente fazer urna linda cone-
xão com seu pai e sua mãe. Todos sabemos corno a
psicoterapia tem principalmente mantido sua atenção fo-
calizada na situação parental e, em virtude desse enfoque,
Hermes desapareceu da psicoterapia. Mas a primeira coi-
sa que ele fez foi cantar seu pai e sua mãe. Naquele pri-
meiro momento, ele imediatamente estabeleceu com eles
um vínculo adequado, eliminando de urna vez por todas as
especulações em torno de ligações positivas e negativas,
de complexos paterno e materno, de vergonha perante a
sexualidade dos pais, de culpa por ter sido fruto do amor.
Discutimos até aqui vários aspectos de Hermes e a
importância dos mesmos para a psicologia. Agora, estamos
lidando mais com as imagens deste deus, e esta imagem
em especial oferece algo de importância decisiva para o
nosso estudo, que consiste em distinguir o histórico de
caso óbvio (pai/mãe) de corno o estamos estudando aqui.
A canção de Hermes em louvor aos pais nos diz que
aquilo que é "óbvio" não lhe diz respeito, quer dizer, a
parte pai-mãe da história de cada um. Poderia ser dito
que é óbvio que ele vem de urna difícil situação paren-
tal. Contudo, Hermes aceita seus pais do modo corno
eles são e não deixa que eles o tornem mais neurótico
do que ele é.
Também são óbvias as questões herdadas do históri-
co médico de caso as quais, sem exceção, os psicólogos
fazem ao paciente: e quanto ao seu pai e sua mãe? Corno
se sente a respeito deles? Depois dessa espécie de per-
55
guntas, aparecem os diagnósticos - ainda mais apavo-
rantes a Hermes - que vão desde uma "profunda" ques-
tão edipiana até concepções intermináveis, cômodas e
superficiais de complexos materno ou paterno "positivos"
ou "negativos". Na maioria absoluta dos casos, a aborda-
gem psicoterapêutica desses históricos de caso consistiu
em exagerar em sua importância, em vez de considerá-
los apenas como ponto de referência e deflacionar a im-
portância inconsciente atribuída às deidades pa-
rentais. 2 O histórico de caso pode ajudar-nos a ficar a par
da história daquela pessoa, de seus componentes e com-
plexos, e pode ser um referencial proveitoso. Mas ~eu valor
maior para a psicoterapia está em qlle nos permite de-
tectar no paciente, cOlllaori~ntação de Hermes, aqueles
elelll~lltOêqlJ~Pertençem mais.à sua. natureza. e que não
mudam, 3 em contraposiçá() ao possível movimento psico-
lÓg!<:O .clªq1!el~ judiV1dlJo,
Se pensamos em termos de histórico de caso, estamos
vendo a situação parental, na melhor das hipóteses, do
ponto de vista de um outro arquétipo, mas não segundo a
perspectiva de Hermes. Em vez de fazer todo aquele alar-
de psicológico em sua primeira "passada", ou, poder-se-ia
dizer, em sua primeira sessão analítica, Hermes cantou
alegremente ao pai e à mãe. Cantou por eles, apesar do
fato de que, segundo uma análise do "histórico" de sua
família, temos um pai relativamente neurótico, apesar
de regente do Olimpo. De sua mãe, Maia, também pode-
se dizer que teve uma história de vida confusa. Seu pai
era Atlas, e sabemos um pouco da inflação, da neurose e
da depressão daquele Titã que tem a fantasia de carre-
gar o mundo inteiro nos ombros.
2 Para uma reflexão sobre um histórico de caso, ver o ensaio de James
Hillman "The Fiction ofCase History: A Round", in Religion as Story, Harper
& Row, Nova York, 1975.
3 Ver Capítulo IV, nota de rodapé 18.
56
Não obstante, no dia em que nasceu, Hermes cantou
com alegria sobre os pais e, ao mesmo tempo, dentro de
um estilo verdadeiramente hermético, quer dizer, um tan-
to zombeteiro. Para mim, essa imagem poderia ser a pe-
dra angular da psicologia, porque significa a oportunida-
de de retificar o desnecessário abuso de se ver o complexo
paterno/materno como a metáfora "escolhida" para ex-
pressar a "neurose". Esse ponto de vista, tão exagerado,
e nas raízes da psicologia do século XX, procede de outros
arquétipos4 e dajm.ªg~tiC:llcleHerrnes, o vinculador, aque-
le que pode realizar seu próprio vínculo com a realidade
psíquica, histórica, parental (o complexo).
Depois que Hermes entoa o primeiro de todos os
cânticos, o Hino continua:
Mas, enquanto ele cantava tudo isso, seu coração se ocu-
pava de outras coisas. E ele tomou a lira oca e a deitou em
seu berço sagrado e, saltando daquele salão de doces aro-
mas para um posto de vigia, alimentava travessas inten-
ções em seu coração - de fazer aquelas coisas que os pa-
tifes realizam na calada da noite, pois ele ansiava por
provar da carne.
Essa parte da lenda, que fala da malícia de Hermes e
de seu desejo de comer carne, começa a aprofundar nossa
percepção da psicologia hermética. À primeira visão do
mundo além de sua caverna, o cenário que se lhe descortina
a partir de sua posição de vigia, é talvez um espelho a
refletir sua natureza ardilosa. Essa imagem parece fazer
a ligação entre sua natureza maliciosa e seu anseio de co-
mer carne, e é aqui que está o foco de meu interesse e
preocupação. De _t~r.percebido sua natureza astuciosaveio
13eu desejo de saborear;a~ne~ como se esses dois el~IIlen­
!o§tiveêsem um vínculo profundo e primordilll. O mito
4 Hefesto seria um exemplo arquetípico de ressentimento contra os pais; cf.
Homero, A Odisséia, trad. E.V. Rieu, Penguin, Harmondswroth, 1946, p. 130.
57
aponta para um passado que está nas origens da human~­
dade um passado de interesse essencial para o conhecI-
mento moderno, que tem dedicado muita atenção à busca
d~ alimento e ao abate de animais valendo-se da invenção
humana da lança de madeira endurecida ao fogo. Além da
fala é isso que diferencia o homem dos outros animais: em
ter~os antropológicos, o homem é o animal que mata ou-
tros animais com armas, desequilibrando dessa maneira
a ecologia da vida na terra. O tratamento desses comple-
xos mitológicos por estudiosos como C. S. Kirk e W. Burkert,
em cujos trabalhos baseio as minhas reflexões, permi~e­
nos sentir a ligação peculiar dos gregos com esse conflIto
básico que está na raiz mesma da cultura. 5 Bem, de acor-
do com o Hino, é Hermes quem, com suas graciosas arti-
manhas, consegue vincular-se com esses escuros comple-
xos. Quero agora citar uma passagem extraída de Burkert,
que leva a uma reflexão da viva concretude que esses com-
plexos básicos têm para a humanidade:
A perspectiva histórica, porém, embora preserve a e~cita­
ção do enredo, traz até nós uma mensagem a respel~o da
situação da humanidade que não é inteiramente antlqua-
da. Resgatado mais de uma vez de um beco-sem,-s.aída "pelo
uso da tecnologia violenta, o homem tem sobreVIVIdo trI~n­
falmente mas continua correndo perigo pela ameaça Im-
plícita em ter violado a matéria. A antítese entre nature-
za e cultura é mais do que um jogo lógico: pode ser fata1. 6
O parágrafo de Burkert alertando para o perigo que
corre a sobrevivência da humanidade é deveras arrepian-
te. 7 Para mim, suas penetrantes observações são uma obra-
5G.S. Kirk, Myth: lts Meaning and Functions in Ancient and Other Cultures,
Cambridge University Press, Cambridge, ~970! Walter l?urk~rt, Structure and
History in Greek Mythology and Ritual, U mverslty of Califorma Press, Berkeley,
1979.
6 Walter Burkert Structure and Histary in Greek Mythalagy and Ritual, p. 34.
7 Jung advertiu 'quanto à fatalidade de um event~a~ excesso po~ulacion~l
do mundo, preocupação baseada no excesso de procl'laçao, levando a sua pro-
58
prima em termos do estudo da teoria dos complexos de
Jung, e tem uma decidida validade para que os estudos
em psicologia as assimilem. Podemos sentir como ele tam-
bém está completamente envolvido por esses complexos,
e que qualquer tentativa no sentido de um distanciamento
fatalmente redunda numa redução.
No "Hino homérico a Hermes", existe uma evocação
da noite escura dos tempos do passado humano. O conhe-
cimento entende que a base da cultura, isto é, o ritual
religioso e o pensamento mitológico, são produtos da pro-
cura do alimento. Eu diria que matar animais usando
armas, o ritual religioso e o pensamento mitológico, jun-
tos, compõem um complexo básico e conflitante na hu-
manidade. É notável como o "Hino homérico a Hermes",
produto de uma poética mitológica campesina (a Escola
da Beócia), tem uma intuição da "noite escura" e a apre-
senta com uma graça e um humor que não têm paralelos
em outros mitos desse tipo, tornando mais fácil alcançar
o leitor moderno em geral e, dessa maneira, mostrando-
se mais adequado para o estudo e as reflexões modernas.
Em nosso trabalho psicoterapêutico, estamos acos-
tumados a ver o que possivelmente tem uma conexão com
esses complexos: a patologia no nível do instinto da fome
- desde a obesidade até a anorexia nervosa, passando
por casos que vão de moderados a muito graves e des-
trutivos. Esses casos desafiam e sobrecarregam a imagina-
ção do analista, deixando-o impotente diante de tais pa-
pria destruição. Meu artigo "Moon Madness - Titanic Love" in 1m ages af the
Untauched (Spring, Dallas, 1982) apresentou o excesso como um componente
titânico na natureza humana. Estamos vivendo numa época de excessos cada
vez maiores, algo incapaz de refletir de volta. A advertência de Burkert pode
ser tomada como complementar à de Jung: este referiu-se ao excesso no pre-
sente pensando no futuro, e Burkert assinala a presença contínua dos comple-
xos mais antigos (a escuridão noturna) na humanidade, os quais encontram-
se na própria base dos conflitos entre a natureza e a cultura.
59
tologias, pois, em vez de uma regulação instintiva e
arquetípica da sobrevivência, existe a loucura. Quero in-
troduzir aqui uma rápida comparação: na psicose e na
esquizofrenia, somos às vezes capazes de detectar um
arquétipo, mesmo que desregulado ou fragmentado, mas
no caso da anorexia nervosa eu, pelo menos, sou incapaz
de me valer dessa noção. Para termos alguma idéia do
que está se passando na natureza desses casos, precisa-
mos usar uma abordagem mítica, como a de Walter Bur-
kert, ou uma imaginativa, como a do psicossomatólogo
Alfred Ziegler. Este último autor concebe que a anorexia
nervosa é um movimento ascendente, que começou no
Paleolítico, época em que, de acordo com demonstrações
obtidas pelos achados arqueológicos, as deusas que eram
adoradas eram figuras que serviam como modelos de obe-
sidade. 8 Se Ziegler atiça a nossa imaginação com sua no-
ção de um movimento ascendente ascético, também per-
mite-nos conceber determinados casos de obesidade em
termos de uma natureza que contém alguns elementos
estacionados no nível de um complexo paleolítico, e esses
corpos têm um formato semelhante ao das deusas cuja
imagem Ziegler observou tão bem:
Sua aparência, ou melhor, o formato dessa mãe primaI ou
dessas figuras cúlticas femininas primordiais costuma
beirar o grotesco: o tronco é extremamente amplo e corpu-
lento, e a parte posterior projeta-se em nádegas imensa-
mente gordas (esteatopigia). Essas figuras parecem sina-
lizar uma posição de reverência conferida ao comer e ao
que é material em geral, incluindo as posses. 9
Voltando ao Hino, as reflexões acima também pode-
riam se aplicar à repetida impressão de que existe uma
forte faceta patológica na fobia ou na rejeição do comer
8 Alfred Ziegler, Archetypal Medicine CSpring, Dallas, 1983, p. 101.
9 Ibid., p. 101.
60
carne, como se esses complexos arcaicos e conflitivos es-
tivessem assim ganhando expressão. Quando refletimos
sobre as pessoas que não comem carne, a exclusão desse
alimento sugere uma exclusão de Hermes em sua psique
e, claro, de seu atributo como vinculador psicológico. A
patologia desses indivíduos revela uma distorção no, ou
falta de relacionamento com a flexibilidade e a versatili-
dade desse arquétipo (lacuna)~O estudante de psicologia
que teve a oportunidade de observar casos desse tipo terá
constatado outros fatores no quadro patológico:tuma fan-
tasia de pureza e assepsia, rigidez, sensação de~uperio­
ridade, projeção indutora de culpa nos que comem carne,
falta de consciência de qualquer traço de crueldade e
destrutividade em si mesmos.tA imagem da necessidade
de Hermes de comer carne sugere que, quando as ima-
gens arquetípicas que podem nos vincular com um comer
instintivo estão ausentes, então comer torna-se um siste-
ma, paranóico se quiser. Mas devemos igualmente estar
cientes de que esse tipo de sistema paranóico poderia ser
visto como uma tentativa, por parte da natureza, de "con-
ter" uma patologia mais profunda, e aqui estamos diante
de uma perspectiva que tentapenetrar mais profunda-
mente nessas complexidades. me qualquer modo, quan-
do essa síndrome ocorre, temos a impressão de existir
uma lacuna onde Hermes e suas traquinagens deveriam
estar ocupando um lugar psíquico]
O Hino vai em frente e descr~~e como Hermes reali-
zou o primeiro passo para satisfazer seu desejo de comer
carne usando de astúcia:
O Sol estava descendo para baixo da terra, na direção do
Oceano, com seus cavalos e carruagem, quando Hermes
veio correndo até as sombrias montanhas de Pieria onde
o gado divino dos deuses abençoados ficava guardado e
pastava na macia e selvagem campina. Destas reses o
filho de Maia, arguto matador de Argos, apartou então
cinqüenta cabeças que mugiam em alto e bom som e as
61
 tangeu transversalmente por um local arenoso, reviran-
do suas patas para o lado. Além disso, valendo-se de um
hábil estratagema, inverteu as marcas de seus cascos,
fazendo com que os da frente fossem para trás e os de
trás para frente, ao mesmo tempo em que ele passou a
andar do outro lado. Então teceu sândalo com vime, ali
na areia do mar, e criou coisas lindas, impensadas,
inimagináveis, pois mesclava e juntava tamarisco com
ramos de murta, formando grandes braçadas de feixes
dessa madeira jovem, e depois de amarrá-los, com folhas
e tudo, embaixo dos pés, fez com que lhe servissem de
sandálias.
Assim é que, no mesmo dia em que nasceu, aparece
como um ladrão muito esperto capaz de efetuar um dos
primeiros tipos de roubo - o furto de cabeças de gado.
Existem muitas histórias e baladas a respeito de roubo
de gado, o que nos oferece a sensação primordial da auro-
ra da cultura e da literatura. Provavelmente, essa histó-
ria nos está relatando a habilidade que o homem tem para
deslocar o gado. Pela paleontologia sabemos que sua ha-
bilidade em cercar animais para então abatê-los foi de-
senvolvida muito cedo. Meu interesse consiste em tradu-
zir para a psicologia essa atividade do homem no alvorecer
da cultura e, como uma questão particular, o furto psico-
lógico, pois são ambas atividades respaldadas pelo mes-
mo deus, Hermes.
A partir da historicidade da literatura mítica pode-
mos perceber a elegância de uma imaginação que apre-
senta um deus por trás do ato de furtar. Podemos locali-
zar a presença dessa mesma força primordial como
dinamismo que está por trás de nosso próprio furtar psi-
cológico. A imagem desse primeiro roubo, que aliás foi
cometido contra o próprio irmão de Hermes, Apolo, per-
mite-nos conjecturar que o roubo psicológico é invaria-
velmente cometido contra alguém que nos é ou está pró-
ximo: nesse conto, o furto acontece dentro do âmbito dos
62
laços fraternos. É preciso que se esteja psicologicamen-
te muito perto para que seja viável o roubo psicológi-
CO,10 para que uma psique furte a outra.
Estaremos furtando das imagens do "Hino homérico"
os conteúdos que precisamos para perceber Hermes em
uma psique, furtando de uma outra. Ou, dito de outro
modo: IHermes em nós está lendo o Hino, senão nós o es-
taríamos fazendo do ponto de vista do assim-chamado
ego (e tirando dele lições de moral a respeito da sombra
etc.), ou a partir de um outro arquétipo, em cujo caso po-
deríamos lê-lo como um absurdo total, uma peça de lite-
ratura naive, ou como uma curiosidade para estudos his-
tóricos.J
A imagem de Hermes roubando gado e o modo como
ele levou os animais fez com que minha imaginação vin-
culasse esse movimento ao furto psicológico. Ao direcionar
aquelas reses,IHermes estimulou um movimento
retrogressivo) habilmente realizado por meio das sandá-
lias e da inversão das pegadas do gadoJnum movimento
que vai em certa direção mas parece que vai em outnCi
Gostaria de convidar-nos a imaginar esse movimentá'
peculiar como a imagem a partir da qual abordar o furto
psicológico, uma suposição que é muito difícil de ser pos-
ta em palavras. O furto psicológico pertence às artima-
nhas da psique hermética, e trata-se de um furto de im-
portância básica para a psicoterapia.
10 Gostaria que o leitor colaborasse comigo e visse o furto psicológico como
um processo diferente do do furto concreto, embora ambos ocorram dentro da
mesma metáfora e imagética. Os motivos dos furtos, ataques mafiosos, se-
qüestros, os batedores de carteira etc., aparecem freqüentemente em sonhos e
podem significar ou um conteúdo reprimido no paciente que, em algum mo-
mento, foi concretamente furtado, ou pode ser um primeiro aparecimento de
Hermes como o ladrão psicológico, e até mesmo as duas coisas. Nem o
plagiarismo, as paródias, ou a obscura patologia da cleptomania têm ligação
com o furto psicológico ao qual estou me referindo, embora possam pertencer a
um aspecto desta atividade arquetípicil de Hermes. Sobre a cleptomania com
relação a Hermes, ver Murray Stein, Midlife, Spring Publications, Dallas, 1983.
63
 Minhas reflexões a respeito do furto de Hermes fo-
ram desencadeadas pela importância que Giulio Camillo
dá às sandálias de Mercúrio, que ele transformou em urna
das Categorias de seu Teatro da Memória. 11 Camillo diz
que a Categoria "As sandálias de Mercúrio" representa
as atividades naturais do homem - o que o homem faz
por natureza. Ora, o que Hermes faz com suas sandálias
é roubar o gado de seu irmão Apolo. Foi com base nisso
que minhas idéias desenvolveram-se até formular o con-
ceito de que o furto psicológico é urna atividade natural e
básica de Hermes na psique. Essa imagem transmite, pelo
modo corno ele usa as sandálias, de que maneira essa
atividade psíquica ocorre.lEle estimula um movimento
para trás. Psicologicamente, podemos vincular essa ima-
gem com a concepçl\o de Jung quanto ao movimento re-
trogressivo da libid04 Contudo, quero manter urna distin-
ção ou linha-limite~entre o movimento retrogressivo da
libido e a regressão, mesmo que esse movimento retro-
gressivo possa ser vist,9 corno semelhante ao conceito psi-
cológico de regressão~ Poderíamos dizer que se trata da
necessária regressão até a memória (pessoal e arque-
típica) que propicia o furto psicológico e traz consigo no-
vos insightsa
Ternos de ter em mente os dois lados do furto psico-
lógico. Existe o que tornamos do outro, por exemplo, du-
rante urna proveitosa discussão na qual nos apossamos
das idéias do nosso interlocutor. E existe o que Hermes
rouba de nós, dos complexos e arquétipos que são tocados
em nossa regressão. Conforme está descrito no Hino, a
criação primordial de Hermes - suas sandálias - está
intimamente conectada com o roubar. O modo corno as
confeccionou e usou dá-nos mais visão desse atributo do
11 Frances A. Yates, The Art of MemO/y, RoutIedge & Kegan Paul, 1966,
cap. 6.
64
que o modo corno as sandálias apareceram mais tarde na
iconografia de Hermes/Mercúrio, na qual vieram a signi-
ficar mais Hermes corno mensageiro dos deuses e senhor
do comércio. O Hino realiza essa conexão básica entre as
sandálias e o furtar, da mesma forma corno Giulio Camillo
fez em seu Teatro da Memória, em que ele colocou as "ati-
vidades naturais" do homem na Categoria "As sandálias
de Mercúrio". Para mim, é concebível que o furtar psico-
lógico seja urna atividade natural: roubar de si mesmo e
de urna outra psique.
É aqui que podemos conceber a psicoterapia corno
ofício que cabe no âmbito das atividades naturais do ho-
mem, e não só corno urna superestrutura de teorias, con-
ceitos e técnicas.jiQuero discutir a. qui corno a atividade (.
natural de furtar, dentro de um movimento retrogressivo, I
pertence à transferência analítica:,\ Urna grande parte da .
análise está baseada nas possibilidades herméticas que {d
o analisando tem de furtar do analista, e vice-versa. Es-
tivemos vinculando esse furto hermético a um movimen-
to retrogressivo da libido, que Jung percebeu corno o pro-
cesso que abre caminho rumo ao desenvolvimento
psíquico.
dfiUma análise movimenta-se de acordo com o potencial
do analista para ser objeto de furto. Corria sobre Jung a
história de que ele teria dito que um analista pode aju-
dar seu paciente só até onde ele mesmo chegou, e nem
um passo além. ITendo em vista os objetivos desta nossa
discussão, a declaração de Jung pode ser parafraseada
da seguinte maneira: pode-se ir com um paciente somen-
te enquanto se tem algo que possa ser roubado. Para que
haja um constante furtar dentro da transferência analí-
tica, o analista precisa ter em si bastante que possa ser
roubado, e a parte Hermes de sua alma deve aceitar o
furto hermético e sua movimentação implícita: o movi-
mento retrogressivo. O favorecimento do movimento
65
retrogressivo promove uma retomada da ligação com os
~maisdiferentes complexos, com as mais diferentes par-
tes da história e da memória da pessoa. O conceito do
analista como uma tela sobre a qual o paciente projeta
seus conteúdos psíquicos, ou o inconsciente, não se coa-
duna com o modelo hermético, pelo menos não de acordo
com o que entendo e percebo como sendo relativo a
Hermes.
Hermes chegou ao estábulo, na colina, com seu gado
roubado:
Então, depois de ter alimentado adequadamente o gado
que mugia forte, dando-lhe forragem e tendo-o conduzido
para o estábulo ... ele juntou uma pilha de madeira e co-
meçou a buscar a arte do fogo. Escolheu um ramo esguio e
firme de louro e desbastou-o com a faca ... segurando-o fir-
memente em sua mão: e a fumaça quente subiu no ar.
Pois foi Hermes quem primeiro inventou os gravetos que
incandescem e o fogo. A seguir, pegou vários gravetos se-
cos e os empilhou num monte bem compacto, preenchen-
do um sulco cavado: a chama começou a brilhar, e logo
abriu e se espalhou, num estrépito de fogo queimando sol-
to. E enquanto a força do glorioso Hefesto estava come-
çando a atiçar o fogo, ele arrastou duas vacas de chifre,
que vieram mugindo, e as trouxe para junto do fogo, pois
havia nele uma grande força. Ele arrojou ambas ao solo,
arfando sobre suas costas, e rolou-as de lado, e dobrando
o pescoço dos animais perfurou sua artéria vital. Depois
foi de tarefa em tarefa: primeiro cortou a generosa carne
com gordura, e a atravessou com varetas de madeira, e
tostou a carne e o venerável lombo e o abdome, cheio de
sangue escuro, todas as partes juntas. Colocou as partes
no chão, e espalhou as entranhas sobre uma rocha rugo-
sa: e agora lá estão elas, após muitas e muitas eras, após
um tempo extensamente longo, depois de todos estes acon-
tecimentos, e ali permanecem continuamente.
Gostaria de acrescentar essa imagem de Hermes,
como o homem primordial fazendo a fogueira, à linha de
pensamento que viemos constituindo; estou me referin-
66
do às atividades naturais do homem em psicoterapia. Essa
imagem é dotada de um intenso poder de mobilização em
sua expressão e, sem dúvida, pode oferecer ao homem -
de ontem, hoje e amanhã - a conscientização. Damo-nos
conta, a partir do contexto do Hino, que um ladrão, um
mestre gatuno, acendeu o fogo primordial e continua fa-
zendo-o enquanto o homem habitar a superfície da terra.
A imagem do furtar, centrada na Categoria "As san-
dálias de Mercúrio" do teatro de Camillo, e a imagem do
que acende o fogo - ambas atividades naturais do ho-
mem - contrastam com a Categoria Prometeu. 12 Esta é
a Categoria de um outro ladrão, um ladrão do fogo; mas,
neste caso, ele se identifica com seu roubo e entra na in-
flação de roubar "para o bem da humanidade", como
Ésquilo faz Prometeu dizer em sua tragédia. Uma psico-
terapia arquetipicamente orientada, mais vinculada com
as fontes da vida, precisa ter condições de diferenciar cla-
ramente entre essas duas formasdefurta,r.
Usando outras palavras pã~a ~:Ú~;~';~esma coisa:
a psicoterapia mais natural e hermética sempre se con-
fronta com a historicidade prometeica, o que conduz a
um conflito inevitável. Assim como acontece hoje, em
outras esferas da vida, a psicoterapia vive o conflito en-
tre uma consciência hermética e um "conhecimento
prometeico" .13 As muitas novas descobertas que a
psicoterapia emprega, para o "bem" do paciente men-
talmente enfermo - novas técnicas, insulina, eletro-
choque, a pílula mais recente - ou conflitam com a
psicoterapia natural de Hermes, ou podem encorajar um
eixo referencial, um vaso, para um outro aparecimento
de Hermes na psicoterapia.
12 Ibid., p. 146.
13 Paolo Rossi, Philosophy, Technology and the Arts in the Early Modem
Era, trad. Salvador Attanasio, ed. Benjamin Nelson, Harper Torchbooks,
Evanston, 1970, Apêndice III.
67
 A última imagem deste trecho é muito bonita. O poe-
ta toca o inefável, como se tivesse uma extraordinária
consciência daquilo sobre o que está escrevendo, como se
já estivesse ciente da eternidade das imagens com as quais
está lidando. Ele transmite de que modo a imagem esta-
rá na memória humana, pelo tempo afora. Ele estava
escrevendo acerca da memória arquetípica da humani-
dade, sobre a memória por trás de nossa memória de uma
vida longamente vivida e, mais exatamente, sobre uma
memória condizente com os filhos de Hermes.
O episódio seguinte, no Hino, descreve de que modo
Hermes realiza uma coisa muito importante: o sacrifício.
Essa passagem nos dá uma pista sobre o próprio ritual
do sacrifício. As características essenciais de um deus são
demonstradas no modo como ele executa o sacrifício. O
objeto sacrifical para aquele deus é revestido pelo deus
de um ritual de sacrificio. Os deuses e as deusas têm cada
qual seus próprios rituais de sacrifício, e os sacrifícios
feitos a cada uma das divindades conotam suas variadas
características. 14
Nesta discussão do sacrifício de Hermes, irei nova-
mente introduzir Prometeu como sua contraparte. Pro-
meteu também foi um sacrificador, e ele se oferece como
baixo-relevo a partir do qual podemos refletir sobre o que
entendemos do sacrifício de Hermes.
Em seguida, o satisfeito Hermes arrastou as ricas carnes
que havia preparado e colocou-as sobre uma pedra lisa e
chata; dividindo-as em doze porções ao acaso, tornou cada
uma delas inteiramente perfeita. O glorioso Hermes de-
sejava a carne sacrifical, pois o suave sabor instigava-o,
embora fosse um deus. Não obstante, seu orgulhoso cora-
ção não se entregou ao anseio de devorar a carne, muito
14 Picatrix, Das Ziel des Weisen von Pseudo-Magriti, trad. Helmut Ritter e
Martin Plessner, Warburg Institute, Londres, 1962, descreve os rituais de sa-
crifício exigidos pelos diferentes planetas.
68
embora ele a desejasse ardentemente. Ele porém colocou
de lado a gordura e toda a carne, no estábulo de teto alto,
erguendo aquela oferenda o mais alto possível, como sÍm-
bolo de seu roubo juvenil.
A imagem do sacrifício de Hermes nos dá uma su-
gestão do que poderia ser chamado de as atividades reli-
giosas diárias do homem, em torno do sacrifício. O sacri-
fício é um motivo religioso central, mas também tem uma
profunda inserção psicológica. Parece que a religião, em
termos do modo como Hermes faz seu sacrifício, está tão
naturalmente internalizada que é difícil distinguir a li-
nha-limite onde fica demarcada a psiquização 15 de Her-
mes em relação ao que chamamos de religião. Talvez seu
sacrifício proporcione a energia para uma existência na-
turalmente religiosa, para a existência de uma religião
como atividade natural, para o "religare" do si com os
outros. Para mim, o sacrifício de Hermes em termos psi-
cológicos desafia qualquer outro modelo. É o único
modelo que pode ser concebido em termos de uma total
psiquização e internalização, ao promover a rotação (rota-
tio) da libido, o que mantém a economia psíquica viva e
em movimento.
Se pensamos nesse sacrifício em relação à psico-
terapia, essa imagem nos dá uma noção daquele sacrifí-
cio diário que Hermes em nós oferece constantemente a
todos os deuses, inclusive a si mesmo, embora - e este é
o ponto - ele nunca se identifique com a oferenda
sacrificial. ItJ1illsacrifícioconstante no qual cada um dos
de'llS!'lª .s.e apossa de . . sua porção "inteiramente perfeita".
N a homenagem que Hermes presta aos deuses, temos
uma imagem do que poderia estar na base da palavra
"tol~rância", de um modo como não se pode encontrar em
15 A idéia da psiquização vem de Jung, The Structure and Dynamics of the
Psyche, oe 8, § 234. '
69
 nenhuma outra parte. Estou conferindo à palavra "tole-
rância" tanto uma conotação comum quanto uma cono-
tação utópica. Contudo, meu interesse é introjetar seu
conteúdo para imaginar a tolerância que a natureza de
Hermes oferece.
Durante a nossa discussão do furto, referi-me às
"Sandálias de Mercúrio", como uma Categoria do Teatro
de Camillo que se contrapõe à Categoria "Prometeu".
Tanto Hermes como Prometeu são ladrões e os dois são
sacrificadores. Seus dois modelos entram em conflito no
homem ocidental, sendo apreendidos somente se puder-
mos diferenciar quem são os ladrões. pÇlrec~quesacrifí­
Çi9 e r()ubo estão inter:-relacionados .
.. --Aqu"Cprecisamos fazer uma distinção nítida entre
Hermes e Prometeu. De acordo com Jung, Hermes é o
arquétipo do inconsciente. 16 Sabemos que uma de suas
principais incumbências era agir como o mensageiro dos
deuses, tarefa inconcebível sem a mais extrema tolerân-
cia. Prometeu não é um deus. É uma figura titânica (em-
bora Esquilo o chamasse de deus). "Há muitas indicações
de que (o nome Titã) adquiriu a conotação de 'selvagem',
,reb elde,'ou ta 'e mesmo ,perverso,, em oposIção
. aos olím-
piCOS ... "17 E o aspecto "desmedido" da natureza titânica
sob o disfarce do conhecimento e da tecnologia prometei~
cas, tornou-se tão predominante na época histórica atual
que passou a ser um requisito básico para o analista cul-
to saber como detectar em si e no paciente a dimensão
hum~na titânica, isenta de imagens, e como lidar com
ela.18' Camillo viu Prometeu como o portador daquilo que
16 OC 13, § 284.
17 Otto, The Homeric Gods, op.cit., p. 33.
18. Escrevi sobre a natureza titânica em "Moon Madness _ Titanic Love:
Meetmg of ~athology and Poetry" in Images of the Untouched, (eds. Joanne
Stroud e Gal.l Thomas, Pegasus, Dallas, 1982), tema no qual ainda estou bas-
tante envolVIdo, com novos trabalhos em andamento. Aqui, estou apenas refe-
70
o homem faz movido pela necessidade e, eu acrescenta-
ria, pela sobrevivência. Precisamos enxergar essamoti-
vação para a sobrevivência como um processo sem liga-
ção com as raízes instintivas da natureza. Como a história
contemporânea nos revela de relance, o homem está cada
vez mais alienado de sua natureza. Prometeu de modo
algum manifesta o lado sem dignidade e enfraquecido que
existe em Hermes; pelo contrário, ele quer governar o
mundo mas, em virtude da energia indiferenciada de sua
natureza titânica, essa motivação se torna somente uma
ambição de poder. Ele demonstra tão-somente uma re-
beldia desconfiada e arrogante que se volta contra for-
mas arquetípicas de vida, formas aliás em relação às quais
é mestre no trabalho de localizar para sabotar ou des-
truir. Prometeu manifesta aquela falta de tolerância que
percebemos nas incontáveis maneiras de catequizar, tão
predominantes hoje em dia, e que tanto divergem da ati-
tude hermética.
Hermes furta e depois sacrifica aos deuses tudo que
furtou, ao passo que Prometeu sacrifica aos deuses e, .no
cerne de seu sacrifício, ele ludibria e rouba. Se o sacrIfí-
cio de Hermes parece ser o sacrifício religioso por exce-
.
lência, então o sacrifício de Prometeu éjustamente o opos-
to - é manifestamente anti-religioso. Podemos presumIr,
com base nisso, que a função anti-religiosa no homem é
de caráter prometéico. Podemos aprender com essas duas
imagens do sacrificador e do ladrão, e inclusive com a do
embusteiro, vinculando-nos com elas e dando-lhes vida
dentro de nós. Hermes, o enganador mitológico, como ire-
mos ler adiante no Hino, é aquele que realiza o mais com-
pleto e verdadeiramente generoso sacrifício.
rindo-me a ele mas é importante estudar essa ameaça às formas de vida, que
força Hermes ~ compensar o desafio prometeico, ao aprofundar internamente
sua natureza. Um estudo acadêmico cabal do desafio prometeico é o de E. R.
Dodds, The Ancient Concept of Progl'ess, Clarendon Press, Oxford, 1973.
71
 o sacrifício é um outro importante ponto de atenção
na psicologiajunguiana. Em seu Tipos Psicológicos, 19 ele
discutiu de que maneira o sacrifício apareceu em dois
PadnOls da Igreja, Orígenes e Tertuliano, em termos dos
tipos extrovertido e introvetido. Orígenes sacrificou sua
masculinidade de uma maneira externa concreta, enquan-
to Tertuliano aceitou o sacrifício interno de seu intelecto.
Gostaria de examinar novamente esses dois sacrifícios ,
elaborados por Jung em relação com os tipos, agora de
um ângulo mais arquetípico. Podemos ver que tanto
Tertuliano como Orígenes foram apanhados por trás, por
uma literalização do sacrifício religioso, enquanto esta-
vam tentando imitar Cristo (imitatio Christi). Para nós,
hoje, os sacrifícios de Tertuliano e Orígenes parecem bi-
zarros e patológicos, desprovidos de psiquização. Se atual-
mente não vemos tantos exemplos desse tipo peculiar de
sacrifício no contexto da religião, onde historicamente sua
patologia esteve sendo contida, constatamos porém, com
razoável freqüência, fantasias patológicas de sacrifício
religioso tanto no continente psicoterapêutico como na
arena política mundial, cenário no qual o aparecimento
do sacrifício encontrou ainda outro continente. Identifi-
camos essa mistura de religião com política na auto-imo-
lação de monges budistas, nos sacerdotes guerrilheiros e
nos terroristas muçulmanos.
A psicoterapia junguiana dedica uma grande aten-
ção ao sacrifício, em grande parte por causa de suas fun-
ções psicológicas. O movimento terapêutico para dentro
do inconsciente exige o "acontecimento" do sacrifício da
pri~eira função que, na terminologia junguiana, refere-
se a persona obsoleta e desgastada, a velhas atitudes de
ego etc. Poder-se-ia dizer que o processo da individuação
19 C.G. Jug, Psychological Types, trad. H. G. Baynes, Routledge & Kegan
Paul, Londres, 1923, p. 19 ss.
72
é refletido numa seqüência de sacrifícios, experimenta-
dos principalmente nos sonhos, e verificados nas sensa-
ções de mudança e movimento na personalidade. A abor-
dagem do sacrifício nos sonhos varia de acordei com os
critérios de cada analista junguiano (num espectro que
vai desde Hermes até Prometeu). Não obstante, o concei-
tojunguiano clássico baseia-se no sacrifício do quejá está
ultrapassado, o que lhe confere um toque hermético. O
sacrifício de rotina, concretizado pela "vontade", desper-
ta nossas suspeitas. É um gesto prometéico, neste caso
para o "bem" qa saúde da alma. O sacrifício é um "acon-
tecimento"; e, desse ponto de vista, podemos detectar a
intervenção de Hermes, que pode nos guiar ao longo do
caminho do inconsciente e que conhece o modo e o mo-
mento justos do sacrifício.
Um dos pilares centrais da obra de Jung foi a liga-
ção que realizou entre a psicologia e a religião. Toda a
sua erudição e experiência puseram-se a serviço de sua
tentativa de delimitar o conflito em si mesmo, delinean-
do a invisível linha-limite em que psicologia e religião
fazem fronteira e se encontram. Ele disse reiteradas ve-
zes que é até aí, no máximo, que podemos avançar com a
psicologia. Desse ponto em diante é a religião. Uma das
maiores realizações de Jung foi contribuir - para a pato-
logia - com os insights que colheu da religião. Quando
estava trabalhando no Burghõzli, a clínica psiquiátrica
da universidade de Zurique, sua descoberta de um vín-
culo entre os delírios mentais dos pacientes e a religião
foi uma primeira e essencial contribuição nesse sentido.
Indubitavelmente, esse foi o primeiro sinal de que o estu-
do da psicologia estava avançando rumo a terra firme, e
ali estava o início do estudo dos arquétipos como a religio-
sidade natural e herdada, no homem. Não podemos igno-
rar neste seu trabalho de uma vida inteira a constelação
de um conflito: ele às vezes unia as fronteiras da psicolo-
73
gia e da religião, e às vezes demarcava-as como dois cam-
pos separados.
Ao discutirmos o sacrifício, um elemento central da
religião, como está no Hino homérico a Hermes, é nova-
mente necessário que tentemos captar em profundidade
essa linha-limite. Se, por exemplo, referimos a imagem
homérica do sacrifício de Hermes à do de Abraão, outro
sacrificador religioso, o sacrificio deste último é concebido
dentro do âmbito da fé. O furto e o logro, que tanto fazem
parte da imagética que estamos lendo em relação a Hermes,
aparentemente não estão presentes. Contudo, podemos
analisar a imagética ritualística do sacrifício de Abraão e,
ao mesmo tempo, nos deslocar até aquele limite entre psi-
cologia e religião no ponto onde ambas se tocam, e dessa
forma estaremos incluindo o lado furtador/enganador de
Hermes sem a menor intenção de destruir o contexto re-
ligioso segundo o qual é entendido o sacrifício de Abraão.
Em nossa tentativa de delimitar essa linha-limite
entre a psicologia e a religião, devemos apreendê-la a
partir da óbvia realidade de que um psicoterapeuta não é
o sacerdote de nenhuma religião. Um excessivo número
de psicólogos cai na armadilha de confundir as duas coi-
sas. E, a partir de nossas percepções dessa linha-limite,
precisamos fazer um vínculo mais fluido entre a patolo-
gia e a religião, na psicoterapia. Temos consciência de
que a psicologia dos arquétipos lida com elementos que,
na história da cultura ocidental, pertenceram original-
mente à religião. A maioria desses elementos religiosos
forma a base do trabalho padrão da psicologia moderna,
independentemente de ela ser freudiana oujunguiana. A
religião vive em nós; suas formas, ou a ausência destas,
refletem-se em nossa vida diária e, com mais exatidão,
na prática psicoterapêutica.
Depois de seu sacrifício, Hermes voltou para casa,
deslizou para dentro do seu berço e ficou deitado ali brin-
74
cando. A seguir ocorre um episódio com sua mãe, que ao ser
inteirada de seus procedimentos, castiga-o por suas ati-
tudes erradas, com o que Hermes se percebe como ladrão:
"N ão somente isso, como tentarei o melhor pla?o que exi~­
tir e com ele alimentarei continuamente a mIm e a voce.
Não nos contentaremos em permanecer aqui, como você
afirma distantes de todos os deuses e sem receber ne-
nhum~ oferenda, nenhuma prece. Melhor viver em com-
panhia com os deuses imortais, continuamente, ricos,
repleto~ de posses, desfrutando de abundância de grãos,
do que ficar sentados para sempre numa caverna som:
bria' e no que diz respeito à honra, também eu entrareI
no rito' que Apolo tem. Se meu pai não o der a mim, ~u ~e
empenharei - e para isso sou capaz - em ser o prmCIpe
dos ladrões."
Hermes está nos dando aqui a imagem de um deus
que batiza a si mesmo, por assim dizer, e consagra sua
própria divindade por meio da afirma?ão de um d~ seus
principais atributos - furtar. Não precIsamos repetIr que
centramos seu furto no furtar psíquico que consideramos
tão essencial à psicologia hermética.
Em seguida o Hino nos conta como, no dia seguinte,
Apolo, ciente do roubo de suas cinqüenta vacas, se~e ~s
peculiares pegadas deixadas por Hermes e os ammms.
Chega à caverna onde seu irmão está deitado no berço, e
os dois irmãos se enfrentam. Apolo, enfurecido, pede o
gado de volta, e Hermes encantadoramente engana-o da
seguinte maneira:
"Filho de Leto, que palavras tão duras acabas de pronun-
ciar? Foi o gado do campo que você veio aqui procurar? Eu
não vi esses animais ... Por acaso sou um ladrão de vacas,
uma pessoa robusta? Isso não é tarefa pa~a mim P?is me
interesso por outras coisas: gosto de dormIr, e do leite dos
seios de minha mãe ... e de banhos quentes ... uma verda-
deira maravilha ... seria se o bebê recém-nascido conse-
guisse atravessar a entrada da casa com ~ado do campo:
acho que dizes coisas extravagantes. NascI ontem, e meus
75
 pés são muito macios I?ara esse chão tão duro ... Farei u~
juramento solene ... e Juro que nem sou culpado, nem VI
ninguém que tenha roubado as suas vacas - quaisquer
que sejam suas vacas, pois só as conheço por ouvir dizer."
Com essas palavras ditas a Apolo, aparece um outro
elemento característico de Hermes. Ele engana o irmão
sem o menor constrangimento. Antes de discutirmos esse
ardil hermético, e para mantermos a seqüência do Hino,
iremos fazer uma pequena digressão para apanhar ain-
da outro traço da sua psicologia.
... Febo Apolo ... pegou a criança e começou a carregá-la.
Mas, naquele momento, o robusto Matador de Argos ti-
nha seus planos e, enquanto Apolo segurava-o nas mãos,
enviou um presságio, um servo diligente, mensageiro rude,
e espirrou diretamente atrás dele. Quando Apolo o ouviu,
deixou cair no chão o glorioso Hermes que assim escapou
de suas mãos.
Estas linhas, um pouco confusas, descrevem de que
modo Hermes consegue confundir Apolo, para se prote-
ger. Parece-me que, ao criar essa confusão, Hermes está
expressando os augúrios que pertencem à sua psicologia.
Talvez e:stivesse ensinando Apolo, famoso por seus pres-
ságios, um outro tipo de agouro, para que Apolo viesse a
respeitá-lo. Podemos ver que os presságios de Hermes,
manifestos de maneira tão corporal, deixam Apolo em
situação de completa incapacidade para dar conta do que
está acontecendo. Não há dúvida de que ficou completa-
mente aborrecido. Deixa cair Hermes e os dois irmãos
estão agora prontos para um novo movimento. Gostaria
de dizer mais algumas coisas sobre esses augúrios de
Hermes, tão repulsivos à mentalidade apolínea.
A surpresa de Apolo com os presságios de seu irmão
nos dá uma primeira indicação da diferença entre ele e
Hermes. Apolo é famoso pelo sagrado oráculo de seu san-
tuário em Delfos. Esse oráculo era consultado pela pi-
76
tonisa , uma sacerdotisa que, sentada num tripé, em es- .
tado de possessão, recebia a resposta na forma de emg-
mas poéticos que os sacerdotes interpretavam. O oráculo
de Apolo precisa de um elemento externo e oferece uma
resposta a uma pergunta específica. O oráculo apolíneo
vinha em palavras, a,º-Rªs~o_queospresságios de Hermes,
manifestos no corpo, tinham uma expressão fisiqlógica,
som:ática, carregada de uma tonalidade afetiva, emocio-
.l1al. Podemos arriscar-nos a dizer que os augúrios her-
-~éticos têm uma estranha ligação com o sistema nl:mro-
vegetatiyo, expressando-se com a mesma autonomia, e
são um outro exemplo da ligação que Hermes tem com os
estratos mais profundos da natureza humana, num vín-
culo até certo ponto semelhante ao que Burkert traçou
entre o herma primitivo e o reino animal. Temos de dife-
renciar entre esse tipo de expressão corporal e as mani-
festações hipocondríacas ou histéricas as quais, embora
tenham uma estranha ligação com o corpo, são repetitivas
e carentes da introvisão de Hermes. Os presságios her-
méticos podem vir de repente, em lampejos, muito pare-
cidos com intuições, no sentido de enxergar através, como
uma transparência, tal como Kerényi discutiu em seu
Hermes: Guide af Sauls,20 e que, de maneira muito parti-
cular, reagem a uma dada situação, fazendo com que o
corpo configure um pressentimento. Esse tipo de pres-
sentimento, expresso através do corpo, pode aparecer no
analista como uma i I1 ttlição relacionada com a situação
analitica em que ele'estátrabalhando.
Em seu seminário dos sonhos, Jung referiu-se ao
pressentimento do ventre que ronca, e produz um baru-
lho que é ouvido a uma certa distância de quem está es-
cutando, e que provoca o que é chamado de um presságio
20 K. Kerényi, Hermes, Guide af Sauls, Spring Publications, Zurique, 1976,
p.126.
77
no diálogo subseqüente. Muitos analistas já sentiram essa
espécie de presságio hermético e, na melhor das hipóte-
ses, podem fazer um vínculo hermético entre eventos psi-
cológicos e o corpo. Com seu "rude mensageiro", Hermes
apresenta o lado traquinas de sua natureza. Trata-se, sem
dúvida, de um outro lado muito primitivo do deus, que é
difícil para nós perceber em nossa cultura. No entanto,
podemos registrar uma insinuação de sua relevância ao
ler, de Paul Radin, The Trickster 21, e também os seminá-
rios de Jung sobre Kundalini Yoga, em que ele discute
esse lado "rude" na natureza da consciência do Mulhadara
Chakra, e seus paralelos na cultura ocidental. Uma refe-
rência mais exata e direta ao presságio como aspecto do
ventre que ronca é feita por E. R. Dodds. Numa discus-
são dapsyche em Homero ele diz:
O "thumos" de urna pessoa lhe diz que ela agora deve co-
mer ou beber, ou assassinar um inimigo, lhe dá conselhos
quanto a que ação empreender, põe palavras em sua boca ...
A pessoa pode conversar com isso, através ou de seu "co-
ração" ou de sua ''barriga'', praticamente corno se fosse
com outra pessoa. 22
Infelizmente, nossa cultura perdeu muito do conta-
to com o espirrar como presságio hermético. Espirrar tor-
nou-se cada vez mais uma questão para médicos e pas-
sou a ser chamado, calma e depreciativamente, de uma
"pequena reação alérgica", embora algo da antiga atitu-
de permaneça nas palavras "Deus te abençoe", ou "Saú-
de", como expresões que aparecem em várias línguas. No
seu Origins af Eurapean Thaught,23 Onians refere-se à
antiga tradição, na cultura ocidental, dos augúrios em-
Paul Radin, The Trickster, Schocken Books, Nova York, 1972.
21
E.R. Dodds, The Greeks and the lrratianal, University ofCalifornia Press,
22
Berkeley, 1968, p. 16.
23 Richard Broxton Onians, The Origins af Ellrapean Thallght, Cambridge
University Press, 1954.
78
butidos nos espirros. Um pouco dessa antiga atitude ain-
da resiste em certos aspectos folclóricos de nossa cultura,
como na magia gálica, em que as Meigas, provavelmente
relíquias das antigas sacerdotisas celtas espanholas, tra-
balham com seus augúrios através de espirros.
Na Odisséia, existe um exemplo de como funciona
um presságio mediante espirros. Quando Eumeu já está
com o Estranho em sua cabana há três dias e três noites,
Penélope convida-o a conversar com ela. Ele conta episó-
dios sobre Odisseu, todas as suas dolorosas aventuras,
que era nascido em Creta e alegava conhecer Odisseu
através da família deste, dizendo ter ouvido que Odisseu
estava vivo, bem e rico. Depois de escutar tudo isso, Pe-
nélope começa a falar sobre o ambicioso comportamento
dos Pretendentes, e a seguir ela diz:
"A verdade é que não existe niguém corno Odisseu incum-
bido de purgar a casa desta enfermidade. Ah, se pelo me-
nos Odisseu pudesse voltar para o seu país! Ele e seu fi-
lho logo os vingariam por seus crimes."
Assim que ela concluiu estas palavras, Telêmaco deu um
forte espirro que ecoou por toda a casa, da maneira mais
alarmante. Penélope riu e voltou -se para Eumeu. 'Vá ago-
ra", ela disse com animação, "e traga-me esse estranho
aqui. Você não percebeu corno meu filho espirrou urna bên-
ção sobre tudo o que eu disse? Isso significa a morte, de
urna vez por todas, de todos os Pretendentes: homem al-
gum pode escapar a esse presságio."24
Temos uma interessante observação psiquiátrica,
segundo a qual os esquizofrênicos são incapazes de espir-
rar. Quando conseguem fazê-lo, este é um sinal de me-
lhora. A respeito desta observação, os analistas que tra-
balham com pacientes psicóticos têm constatado que, após
um prolongado trabalho psicoterapêutico, eles têm uma
24 Homero, The Odyssey, trad. E. V. Rieu , Penguin, Harmondsworth, 1946,
Livro XVII, p. 273.
79
 crise de espirros. Consideram que esse espirrar os está
livrando de uma possível contaminação psicótica ~m de-
corrência de seu trabalho.
Após o episódio dos presságios, segue-se uma longa
conversa entre os dois irmãos até o momento em que eles
saem juntos para apresentar a questão perante Zeus, seu
pai. Apolo denuncia Hermes e conta a história de seu gado
roubado. Depois Hermes retruca:
"Zeus, meu pai, eu realmente lhe direi a verdade, pois sou
confiável e não posso contar mentiras. Ele veio à nossa
casa hoje, procurando por suas vacas trôpegas ... Não trou-
xe nenhuma testemunha consigo, nem qualquer um dos
deuses abençoados que tenham presenciado o roubo, mas
com grande violência ordenou-me que confessasse ... ele
tem o vigor da gloriosa juventude, enquanto eu nasci ape-
nas ontem ... Acredite no que lhe digo ... eu não levei as
vacas dele para minha casa ... nem atravessei o umbral:
isto eu digo honestamente ... Você mesmo sabe que eu não
sou culpado: e farei um grande juramento quanto a isso ...
E al?U~ dia ir~i puni-lo, p~r mais forte que ele seja, por
seu ImpIedoso mterrogatorlO; agora, porém, faça o favor
de ajudar o mais jovem."
Assim falava o cileno, Matador de Argos, lançando longos
e sedut~res olhares, com as fraldas nos braços, e não se
des~encIlhava delas. Mas Zeus riu e gargalhou ao ver aque-
le pIrralho armando tramas maliciosas e ardilosamente
negando sua culpa no caso das vacas.
Chegamos aqui à imagem apropriada para discutir
o logro segundo suas raízes arquetípicas. Lograr é um
ato que pertence a um deus. Todos os deuses são impor-
tantes, mas o dos enganadores e do lograr é pa:r:ticular-
mente crucial ao legado da psicologiajunguiana.[Jung es-
creveu muito a respeito de Hermes/Mercúrio, e Ror isso
ele é de importância capital para a sua psicologia)
Durante a nossa discussão do lograr, quero nianter-
me bem próximo da imagética de Hermes, primeiro en-
ganando o irmão, e depois seu pai. Não devemos nos
80
posicionar a partir daquelas gastas noções de uma socie-
dade que exige a verdade, somente a verdade e nada mais
que a verdade, pois essas concepções procedem de outras
tradições da cultura ocidental. É somente por meio da
conexão com as imagens - de Hermes enganando o ir-
mão Apolo, e o pai Zeus - que podemos chegar a alguma
idéia aproveitável a respeito do lograr. Hermes apresen-
tou arte e desfaçatez em sua artimanha e as duas facetas
fazem igualmente parte de sua natureza. Eu gostaria de
ler essa cena de um pai com seus dois filhos com, tanta
exatidão quanto possível. Ao reagir com uma risada à
cara-de-pau de Hermes em sua estratégia para enganá-
lo , Zeus está aceitando a natureza e o estilo de ser e viver
de seu filho. Não sabemos como Apolo reagiu mas pode-
mos supor que, sendo sua configuração arquetípica o exato
oposto da de Hermes, ele deve ter ficado completamente
indignado por estar sendo ludibriado de maneira tão na-
tural. ~:polo iIlte:r:~ssa-se po:r:detectar a falsidade e bus-
car a verdade; é o deus qam,oderação, qualidade que seu
irmão não exibe em seu embuste. Apolo rege a limpeza
ritual, tanto em sel! aspecto purificador religioso, como
no que diz respeito aos modos. Já vimos como aquela rude
barriga barulhenta de Hermes era incompreensível a
Apolo. Este governa o mundo acadêmico, seu fulgor e sua
ordem racional. Podemos dizer que ele está por trás do
que chamamos de sucesso na sociedade, elementos que
Hermes pode reconhecer, mas com os quaisjamais se iden-
tifica.
Zeus é o Fazedor da Chuva, o pater familias, o prin-
cípio regente, equilibrador da personalidade. Sozinho é
quem se incumbe do princípio do monoteísmo, da forma
como os gregos o concebiam,25 mas, acima de tudo, ele é o
25 Martin P. Nilsson, Histary af Grf!ek Religian, trad. F.J. Fielden, w.w.
Norton, Nova York, 1964, é recomendado para os leitores interessados.
81
 princípio da tolerância no polit~íSl!lO grego:~le tem res-
peito e tolerância pelas individualidades e diferentes na-
_t~i~~as de seus irmãos e irmãs, de seus filhos e filhas.
Zeus centrou a religião grega e seu modo de vida. Ele e o
filho Apolo pertencem à categoria dos portadores
arquetípicos da consciência coletiva; são representantes
da situação. Um dos sobrenomes de Apolo é "a consciên-
cia de Zeus'~, significando o filho que servia como um es-
pelho no qual o pai refletia determinados aspectos da vida,
além de sua própria consciência. Tomemos como exem-
pIo aquele pai que é negociante ou tem carreira profis-
sional, e cujo filho segue depois com êxito o caminho tra-
çado pelo pai. Este alimenta a sua própria consciência e
impede que ela se petrifique por meio de seu interesse
pelos estudos e atividades do filho, o qual, por sua vez
reflete o espírito da época, e a distância entre as gerações
é neutralizada. Uma variação desta cena de Zeus com os
dois filhos aparece no tratado alquímico "The Book of
Lambspring".26 Zeus e Apolo aparecem como o Rei e o
Príncipe, dentro do simbolismo do rei velho e desgastado,
doente e rígido, e do príncipe com as novas idéias. É
Hermes quem faz a ponte entre eles, desencadeando uma
reconciliação do novo com o velho, num nível mais eleva-
do. Podemos portanto perceber que esse encontro entre Zeus
e seus dois filhos é, em si, arquetípico, e oferece movi-
mentação psicológica e uma ampliação da consciência.
Zeus também é o princípio da autoridade, e eu gos-
taria de pedir ao leitor que mantivesse essa cena como
um espelho no qual refletir o episódio envolvendo Freud e
Jung, conforme nossa discussão no capítulo precedente.
Comojá dissemos antes, de acordo com Jung, Hermes
é o arquétipo do inconsciente, e ele também é um enga-
26 Arthur Edward Waite, The Hermetic Mllsellm, Robinson & Watkins, 1973,
vol.I.
82
nador. Ele é o deus que propicia o movimento psíquico, e
portanto podemos postular que também seu lograr per-
tence às complexidades do movimento psíquico. Otto es-
creve que Hermes" ... é o espírito de uma constelação que
recorre nas mais diversas condições e que engloba tanto
a perda como o ganho, a malícia e também a delicadeza.
Embora uma boa parte disso possa parecer questionável
de um ponto de vista moral, é não obstante uma configu-
ração que pertence aos aspectos fundamentais da reali-
dade viva ... "27 E podemos acrescentar o logro às perdas e
aos ganhos, à malicia e à delicadeza. Hermes apresenta-
se como um enganador que aceita essa realidade, ,uma
realidade muito diferente da de seu irmão Apolo. Se pe-
garmos o diálogo entre ambos e o transpusermos nos ter-
mos psicológicos modernos poderemos ver que se trata
de uma conversa entre a consciência coletiva, ou super-
ego, e o inconsciente. A elegância do velho Hino permite-
nos vislumbrar algo desses dois lados da psique, muito
antes de ambos terem aparecido com o tremendo abismo
que os separa na cultura ocidental. O conflito entre a cons-
ciência regente (equivalente a Zeus eApolo) e o inconscien-
te (equivalente a Hermes) é bem conhecido como o cerne
da psicoterapia. O Hino nos dá uma aula a respeito de
como essas duas forças psíquicas podem unir-se de novo,
sem qualquer símbolo de união: esses dois deuses, essas
duas forças, aceitam a realidade uma da outra, aceitam
as diferenças entre ambas e, apesar disso, continuam em
frente conversando, dialogando, ludibriando.
Os princípios regentes, Zeus eApolo, mesmo que não
enganem da mesma maneira descarada de Hermes, men-
tem sem sombra de dúvida quando o espírito que repre-
sentam não tem mais validade histórica. Quando a de-
claração que defendem não é mais válida, ou quando o
27 Otto, The Homeric Gods, op. cit., p. 122.
83
 pressuposto sobre o qual se baseiam não tem nada a ver
com a pessoa, ou para quem a mensagem é endereçada,
então essa declaração ou promessa torna-se falsa. Con-
tudo, o principal interesse desta parte do Hino seria
mantê-lo como um modelo do filho mais novo enganando
o irmão mais velho e o pai, e com isso criando a conexão
psicológica propriamente dita e introduzindo-os num
modo de ser muito estranho aos dois: a psicologia do lo-
gro. O segredo desse tipo de artimanha é que é herméti-
ca. Hermes jamais cairia na cilada de falar com o irmão
mais velho e o pai do ponto de vista da consciência vigen-
te que ambos representam.
Muitos analistas viram psiques paralisadas ou vi-
das destruídas porque um filho mostrou-se incapaz de
corresponder à exigência parental de ingressar numa
carreira acadêmica organizadinha, tornando-se um bri-
lhante sucesso no mundo apolíneo de hoje, e existem aque-
le~ casos nos quais o filho é incapaz de expressar sua pró-
prIa n_atu~eza porque ela pertence a um outro arquétipo
que nao o Imposto pelas exigências dos pais e da socieda-
de. A c?nsciência vigente de hoje é tão apolínea que tudo
o que fICa de fora é execrado. O filho é incapaz de expres-
sar sua natureza de maneira aceitável, como Hermes faz
no Hino, ou seja, enganando, ludibriando de modo her-
mético, o que protegeria sua psique, mobilizá-Ia-ia e re-
lativizaria a imagem do pai.
~ermes enganando s~u irmão mais velho e seu pai
deverIa ser levado em consIderação pela psicoterapia, pois
abre um intercâmbio mais amplo com o seu irmão con-
for~e ve~e~os mais adiante no Hino. No nível da ~sico-
10gIa famlhar, essa cena nos dá a oportunidade de perce-
ber o logro como uma outra forma de estabelecer contato
com as divindades do lar. Hermes vincula de muitos mo-
dos. Podemos acrescentar sua artimanha perante Apolo
e Zeus ao modo como ele se vinculou ao pai e à mãe no dia
84
em que nasceu, naquele primeiro cântico. As duas. posi-
ções pertencem ao mesmo complexo e à mesma atItude.
Em nosso estudo deste deus, iremos ver que ele usa essas
maneiras de se vincular mais de uma vez.
N a psicoterapia, quando o analista alega que é só
analista e que o paciente é só paciente, há um elemento
de falsidade na situação. O analista que exige a verda-
de e nada mais que a verdade possivelmente está mais
no papel de confessor religioso, com certas caracterí~ti­
cas inquisitoriais, do que no de um adepto de uma PSICO-
terapia alicerçada em imagens herméticas. Uma atitude
como essa cria assimetrias na situação arquetípica, ou
seja, o analista que sabe a "verdade" e espera do anali-
sando que ele conte essa "verdade". Não vemos ne~se. c?n-
trato aquela simetria ue Hermes em que o logro e VIVIdo
em senso hermético, como veículo propiciatório para o es-
tabelecimento de um vínculo e para a mobilização psí-
qUIca. .
Depois de ouvir seus dois filhos, Zeus põe as COIsas
em ordem. Convoca os dois a se unir e ir em busca do
gado. É como se estivesse dizendo .aos seus filhos que
passassem a se conhecer, que começassem a saber mais
da natureza um do outro. Em termos de nosso estudo dos
arquétipos, baseado no reconhecimento das diferenças nos
padrões arquetípicos dos deuses e deusas, esse pr?cesso
de familiarização recíproco parece ser o modo maIS pro-
veitoso de se considerar essa parte da história. Zeus con-
firma sua ordem inclinando a cabeça (numinosum).
Os dois irmãos, com Hermes mostrando. o caminho,
dirigem-se para o rio Alfeu onde ele tinha deixado o gado:
Agora, enquanto Hermes entra na caverna de pe-
dras e começa a tanger para fora o gado vigoroso, o filho
de Leto, olhando para o lado, vê os couros das vacas es-
tendidos sobre a rocha nua. E de imediato pergunta ao
glorioso Hermes:
85
 "Como é que você, seu malandro habilidoso, conseguiu
esfolar duas vacas, recém-nascido e impotente como é?
De minha parte, aterroriza-me a força que será tua: não
há necessidade de que continues crescendo, filho cileno
de Maia!"
Assim dizendo,Apolo trançou fortes pedaços de vime com
suas mãos, significando que amarrava Hermes com fir-
meza; mas os pedaços não se atavam e o vime se partiu e
caiu no chão ao lado de Hermes e imediatamente come-
çou a brotar do chão sob seus pés ... Entrelaçando-se uns
com os outros, os brotos rapidamente cresceram e cobri-
ram todo o gado que se agitava e dispersava, insuflados
pela vontade do furtivo Hermes, de tal sorte que Apolo
ficou estupefato e assistiu.
Com esse episódio, estamos provavelmente diante da
diferença essencial entre os dois irmãos. Ap()l()telltaçon-
trolar os movimentos de Hermes. Evidentemente ele está
~,~ ""' ' , ,
com medo de algo desconhecido que ultrapassa sua com-
preensão da habilidade de Hermes para matar duas va-
cas no mesmo dia em que nasceu. Fiel à sua natureza,
Hermes escorrega das mãos do irmão que o mantinham
cativo. Pode-se dizer que essa imagem transmite o quan-
to Hermes é esquivo, e até onde vai a impossibilidde de
jamais capturá-lo, o que, durante a Idade Média, foi sim-
bolicamente visto no mercúrio alquímico. ExistellIll ou-
tro asp~etojIl1P()r:tante nesta imagem porqueelasugere
que H~r,mes.llª() pode ser contido po. r nenhu.. ma outra for-
, , ."'
ma: as formas convencionais de Apolo - idéias brilhan-
tes, fala cQnceitl11l1refiIlada e respeito pela academia etc.
- não atam Hermes.
Em sua prática, o psicoterapeuta tem que lidar qua-
se que diariamente com o aspecto conflitivo desta ima-
gem, seja em termos do filho já mencionado cuja nature-
za é incapaz de responder às exigências dos pais, seja em
termos da tarefa terapêutica mais dramática de tentar
desatar hermeticamente aquele paciente cujo problema
86
maior é uma afiliação grande d~~a~s para o mundo
apolíneo. Apolo centraliza a conSClenCIa do ho~em mo-
derno e somos cientes do perigo e da patologIa dessa
unilateralidade. Jtpreciso.ll111agrttnde dose ~e arte e
paciência herméticas para desatar uma pessoa da ~ua
rigidez apolínea, a qual, corroborada pelo sucessso na vI.da
e na sociedade, em geral vem acompanhad~ d~ uma lll-
quietação profunda, de u~a s~ns~~ã? de.~use~cIade ~en­
tido, de depressão, histerIa hIstrIomCa e quel~as pSICOS-
,. ticas. Essa desatracação deve ser mantIda den~ro
soma . . ,.' ., tIpo
dos limites da vida psíquica hermetIca, Ja que esse
de paciente é cheio de medo pois iguala o desatar das
amarras ao caos. .
Para distrair e enganar Apolo, Hermes toma da lIra
e começa a tocar e cantar:
E Febo Apolo riu feliz; pois a doce pulsação da músi~a
maravilhosa foi direta até seu coração, e ,:m sua,:e anse~o
apossou-se de sua alma enquanto ele OUVIa .... e fOI toma o
por um anelo que não se mitigava, e abnndo sua boca
falou para Hermes palavras aladas: .
"Matador de vacas, embusteiro, ó ~ta:efado, companheI-
ro de festas, esta tua canção vale cmq~enta vacas e acre-
dito que agora poderemos encerrar pacIficamente a nossa
desavença. Mas diga-me uma coisa, hab.ilidoso filho de
Maia: esse maravilhoso objeto está contIgo desde o ~e~
. t u algum deus ou mortal deu-o para tI ....
naSCImen o, o . , '1 h m
(Evidentemente, para Apolo é ~IfIcI v~r o que o om,e
faz naturalmente.) Pois maravIlhoso e este som r~ce~­
emitido que ouço ... Que habilidade é essa? Que_ c~ntI~o
para os anseios do desesperado? Que tipo de cançao. POIS,
em verdade aqui estão três coisas à .I?~o, todas ao mesmo
tempo entre as quais escolher - o JubIlo, o amor e o doce
sono .. .' Estou inteiramente deslumbrado, ó filho de Zeus,
com teu suave tocar."
Então Hermes respondeu:lhe com ~stuci?sas pala~as:
''Você me faz perguntas cUIdadosas, o Reahzado.r-Mor, n~
entanto não sinto ciúme de que penetres em ~mhaarte.
hoje tu ~ conhecerás. Pois meu intento é ser amIstoso con-
87
 tigo, tanto em pensamento como em palavras. Agora, tu
sabes muito bem de tudo, em teu coração, pois senta-te no
lugar de maior honra entre os deuses imortais ... e és divi-
no e forte. O sábio Zeus te ama, como de fato é certo, e
deu-te esplêndidos presentes ... Bem, és livre para apren-
der tudo que quiseres; mas, como assim parece, teu cora-
ção está muito fortemente disposto a tocar a lira, cantar e
representar, proporcionando-se dessa maneira a alegria;
toma então de mim este presente e oferece-me, meu ami-
go, a dádiva de me conceder glória ... Ó glorioso filho de
Zeus, darei esta lira e, de minha parte, pastarei junto com
o gado alvoroçado nas campinas das encostas e planícies
que alimentam também os cavalos; assim, as vacas sendo
cobertas pelos touros, repetidamente, terão incontáveis
bezerros machos e fêmeas. E veja, agora, negociador como
és, que não há necessidade de continuares furiosamente
irado."
Quando Hermes terminou de dizer estas coisas, es-
tendeu a lira, e Febo Apolo a tomou, colocando pronta-
mente seu chicote fulgurante na mão de Hermes, com o
que ordenou-o guardião das manadas. O filho de Maia
recebeu-o com alegria, enquanto ... o senhor Apolo reali-
zador-mór pegava a lira ... e tentava tanger corda por cor-
da. Soava medonho o toque daquele deus ...
A forma como Hermes toca a lira encanta Apolo e o
gelo é quebrado. Os dois irmãos começam a negociar. Ao
entregar sua lira a Apolo, a generosidade de Hermes con-
vida um gesto de retribuição da parte de Apolo, e ele não
tem mais tanta necessidade de reaver seu gado.
Quando Hermes diz: "Não sinto ciúme de que pene-
tres em minha arte: hoje tu a conhecerás. Pois meu in-
tento é ser amistoso contigo, tanto em pensamento como
em palavras", ocorre uma manifestação mais sutil e pro-
funda de sua natureza. Ele aceita a ganância de Apolo,
não tem necessidade alguma de guardar ciumentamente
sua música para si, e está pronto para ser amistoso com
ele, sem se preocupar se a natureza do irmão é ou não
88
diferente da sua. Ele demonstra a sua generosidade sem
ciúme e a amistosidade é fundamental à sua natureza. Co-
mo Otto, acentua Hermes e, o maIS . amlS' toso dos deuses. 28
Peter Walc;tt, em seu livro Envy and the Greeks 29 ,
discute como, na literatura clássica e cristã, as palavras
inveja e ciúme são sinônimas, embora signifiquem duas
coisas diferentes.
O ciúme mencionado acima, no contexto do Hino, tem
a conotação de inveja - inveja dos atributos, da in-
ventividade. Hermes está dizendo para o seu irmão que
não tem ciúme, inveja, de nada que Apolo possa vir a fa-
zer com a lira que ele inventou, e este ponto merece des-
taque e reflexão: ele não vai sentir inveja, nem ciúme, de
Apolo ter êxito como patrono da música. ~~s p~de-se
perceber como Apolo seria propenso a s~ntI~ Inveja das
idéias e habilidades da outra pessoa. AlnvE;lJa faz parte
do relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo, ao
passo, que o ciúme (como iremos discutir no capítulo 3)
tem uma conotação sexual e implica em três pessoas, UI~a
das quais - geralmente - é do sexo oposto. Hermes dIZ,
com muita, clareza, que a inveja não faz parte de sua na-
tureza.
Neste ponto, pretendo fazer alguns comentários acer-
ca da inveja. Nos estudosjunguianos, a inveja vem sendo
discutida principalmente em relação com os contos de
fada' no motivo das duas irmãs mais velhas que sentem
inveja da mais nova (Cinderela, Eros e Psique etc.), exis-
te a tendência de resolver a inveja, no nivel fácil do con-
to-de-fadas com a destruição das duas irmãs, implican-
do assim n~ existência de uma nova percepção consciente
da inveja. Esta costuma ser considerada uma questão de
sombra, da qual a pessoa deve ter consciência. Contudo,
28 Ibid"p. 107. : _"
29 Aris & Phillips: Warminster, 1978, Capítulo 1, "Introduçao .
89
 a par de suas implicações psicossomáticas estavam os
junguianos da primeira geração, entre os quais princi-
palme~te a. srta. Barbara Hannah, que, em suas pales-
tras, dIscutIa sobre o "olho gordo" como manifestação fí-
sica da inveja. Podemos estar certos de que Hermes em
sua vinculação COI~ sua natureza psicossomática, ;api-
damente constatarIa qualquer expressão fisica peculiar
de inveja.
~o le:mo~s Walcott, pecebemos que, na cultura gre-
g~, a mveJa nao era um pecado capital, como é no cristia-
lllsmo. Em vez disso, havia uma clara percepção de suas
complexidades e implicações. A pena para quem causas-
se muita invej.a era o o~tracismo. Isto demonstra o quan-
to devem ter sIdo conscIentes desse sentimento. Podemos
imaginar Hermes desaparecendo toda vez que o mesmo é
conste~ado, pois ,percebe sua dimensão maligna, como a
percebIam tambem os gregos. A inveja está incluída no ca-
tálogo de emoções de W. B. Stanford, em seu Greek Tra-
gedy and the Emotions, mas evidentemente não aparece
nenhum~ persona~em invejosa na tragédia grega: este
era conSIderado vIl demais e, portanto, incompatívePO
No que tange ao aspecto musical desta parte do Hino
tenho ~tendido diversos músicos profissionais em psi~
coterapla, todos eles apolíneos, exibindo o que provavel-
m~n~e é uma patologia apolínea, em suas noções de que a
mUSIca deve basear-se somente em disciplina e em técni-
cas que levem à perfeição, todos estes elementos eviden-
temente regidos por Apolo. Traziam um quadro de neu-
rose de culpa projetada nas regras da disciplina da técnica
e d~ perfeição, e a psicologia que os caracte~izava era
basICamente regida pelo puer aeternus, o êxito e o SUces-
so, com muitos acessos de mau-humor histérico, de críti-
30 W.B. Stanford, Gl'eek Tragedy and the Emotions Routledg & K
Paul, Londres, 1983, p. 35. ,e
90
cas e eventualmente psicopatia. Viviam e tocavam sua
música apenas pelo lado de Apolo, ignora.ndo completa-
mente o corpo, o corpo psíquico, que pod~rIa cont:r t~nto
eles mesmos como sua arte. A noção subjacente ~ ~mha
abordagem da psicoterapia desses pacientes consIstIa em
propiciar um movimento de regresso de Apolo a H~rmes,
deixando que este último pegasse novamente sua lIra e a
tocasse, daquela sua maneira hermética, tão au~ente
como necessária na concepção musical do homem oCIden-
tal cuja música está basicamente delimitada pelos ro-
mânticos sentimentos cerebrais de Apolo.
Voltemos agora mais uma vez ao látego fulgurante,
atributo ou símbolo do pastor. O simbolismo do past?r é
um motivo importante na cultura ocidental. Esse atrIbu-
to oferecido a Hermes por Apolo como parte da barganha
d~ paz, tornou -se simbolizado e tem a cono~açã? de um
líder conduzindo seus seguidores. Otto tambem dIZ a esse
respeito: "Hermes é o espírito mais gentil ~ue conduz o
. rebanho de seu abrigo pela manhã, e confIavelmente o
, caminhos ... " No entanto, ele acrescen t a: "M as
dirige pelos
aqui também esse prestativo serviço é somente um lado
. tamb'em po de ext ravIar..
. " 31
da atividade. O gula .
Assim como na cultura ocidental, em que o sImbolIs-
mo do pastor tem sido fundamental, també~ nos estu~os
psicológicos ele aparece nos líder~s de varIadas te~den­
cias que "pastoreiam" seus seguIdores. Essa metafora
do pastor não está desprovida de um cert? fundamento.
Temos todos um débito para com aqueles lIderes e funda-
dores da psicologia, pois eles abriram a porta para essa
ciência e nos transmitiram suas descobertas, seu co-
nhecimento e sua experiência. Temos testemunhado como
os seguidores de uma escola em particular beneficiaram-
se grandemente das orientações de seu líder. Porém, tam-
egan
31 Dtto, The Homeric Gods. op. cit., p'; 110.
91
bém podemos ver que, embora aproveitando em muitos
sentidos dessas diretrizes, eles não obstante se extravia-
ram. Talvez esse extravio tenha ocorrido em virtude de
uma tendência a absolutizar o ensinamento de um mes-
tre, transformando-o em algum tipo de teologia. Abso-
lutizar não tem nada a ver com Hermes. Esse tipo de
seguidor não se manteve dentro da constância do arqué-
tipo - mostrando o caminho e extraviando - em seu
duplo eixo de pastor interno e externo.
O conhecimento básico que o analista obtém da his-
tória da psicologia e de sua escola é uma coisa, e o modo
como ele se apropria hermeticamente de uma figura re-
levante em seu campo, de seus pacientes e do mundo em
que vive, é outra. A atitude predominante na psicologia
do século XX é a de seguidores de uma escola, praticando
psicoterapia através de dogmas confeccionados a partir
do conhecimento adquirido e de se viver, falando psico-
terapeuticamente, a vida dentro de uma seita. Isso está
muito longe da atitude que propicia a movimentação psí-
quica com a captação das muitas novas possibilidades
oferecidas pelo viver; pelo contrário, os eventos existen-
ciais são reduzidos e rotulados de acordo com o conheci-
mento autorizado pela escola.
Após essa interação inicial, os dois irmãos regres-
sam ao "enevoado Olimpo, deleitando-se com a lira. En-
tão o sábio Zeus ficou contente e tornou os dois amigos".
Parece que foi em virtude da influência do convívio com
Zeus que "Hermes amou continuamente o filho de Leto".
Nesse ínterim, Hermes conseguiu inventar um outro ins-
trumento musical: "os foles cujo som é ouvido ao longe".
Em relação a um ato de criação, dar de presente o que foi
criado torna possível criar uma outra coisa? Na discus-
são precedente sobre o sacrifício, ficou comprovado que,
quando ele é apropriado, permite à energia entrar em
movimerito de rotação (a rotatio alquímica), e com isso
92
evita-se a petrificação. Agora, do mesmo modo, no dar de
presente aquilo que foi criado existe a possibilidade de
mais energia para uma nova criação. A impressão que se
tem é que esse movimento da libido só acontece dentro
da esfera arquetípica de Hermes.
Existe uma certa contradição no fato de o mestre ga-
tuno não sentir absolutamente nenhum ciúme (inveja)
quando seu irmão tenta furtar sua arte. A amistosidade
e a generosidade de Hermes são muito comovedoras se
pensarmos que são uma peculiaridade do deus que, supos-
tamente, é o fraudador e o ladrão por excelência. E um outro
lado de sua natureza que podemos agregar à sua atitude
de fazer sacrifícios aos deuses, da mais honrosa das ma-
neiras embora seja o maior dos gatunos e embusteiros.
Hermes dá sua lira para Apolo, que retribui dando
ao irmão seu látego fulgurante e ordenando-o "Guardião
dos Rebanhos". É como se, com essa barganha, começas-
se a despontar em cada um o reconhecimento da nature-
za do outro. Será que esse intercâmbio envolvendo dois
homens de naturezas diferentes poderia ser o que os leva
ao amor ao eros entre homens, através de uma negocia-
ção pri~ordial? O presente de Apolo, seu chicote que bri-
lha e ter tornado Hermes o guardião dos rebanhos são
ato~ que poderiam ser considerados uma expressão do
eros entre os homens. Poderia perfeitamente pertencer
ao lastro arquetípico da cavalaria: um amistoso reconhe-
cimento, da parte de cada um, das qualidades do outro,
na ausência de invejas. Mais adiante neste estudo, quan-
do chegarmos à história de Hermes e Dríope, iremos dis-
cutir o eros entre os homens, dentro de um enqua-
dramento arquetípico. Nesta imagem à nossa frente,
temos um novo referencial a partir do qual elaborar uma
noção do que está por trás do termo "magnanimidade". A
magnanimidade poderia ser concebida como aquele reco-
nhecimento que se efetua sem mesquinhez. A imagem da
93
 negociação, do fácil intercâmbio entre os deuses, pode
sugerir uma espécie de psicoterapia que aceite a barga-
nha como modo de ligação e mobilização psíquica, como
um outro caminho para vincular esses dois arquétipos,
tão distanciados um do outro na nossa cultura, numa se-
paração que só resulta em conflito e patologia.
Historicamente, a principal oposição entre duas es-
truturas psíquicas (entre dois deuses com seus padrões
arquetípicos) tem sido mantida pela oposição entre Apolo
e Dioniso. Desde Orfeu, passando por Nietzche e chegan-
do em Jung, sabemos o que significa a tentativa de reu-
nir naturezas tão opostas: no caso de Orfeu, um mito da
destruição; no de Nietzche, um ingrediente de sua loucu-
ra; no de Jung, uma percepção profunda de onde a des-
truição e a loucura podem acontecer. Jung observou que,
ao diagnosticar o conflito entre essas duas naturezas opos-
tas no indivíduo, está-se diagnosticando uma patologia
em profundidade. Em sua concepção dos tipos psicológi-
cos, com base nas naturezas opostas do ser humano (os
opostos), ele discutiu as duas personagens que acabei de
citar, Apolo e Dioniso. A introdução dessa noção na
psicoterapia foi, provavelmente, uma tentativa de recon-
ciliar essas duas naturezas opostas, embora as idéias de
Jung se movessem em outra direção, especificamente,
rumo à reconciliação dos opostos, à totalidade psíquica
etc. Mas esses dois antagonistas, Apolo e Dioniso, pode-
riam encontrar um modelo no relacionamento entre Apolo
e Hermes, no Hino, e que lhes teria servido como cami-
nho intermediário capaz de propiciar a mobilização psi-
cológica. Então a própria idéia da reconciliação dos opos-
tos que, na psicoterapia, tem geralmente significado
mover a unilateralidade apolínea para os recessos mais
reprimidos da psique, que é onde está Dioniso, tornar-se-
ia desnecessária e, afinal de contas, só seria possível
contanto que Hermes servisse de guia da psique.
94
Discutimos até agora dois modos de reconciliar es-
ses dois arquétipos: enganando e negociando. Nossa pró-
xima passagem no Hino oferece reflexões complementa-
res acerca de maneiras de se entrar em contato:
"Filho de Maia, guia e astuto, temo que me roubes a lira e
junto meu arco curvo, pois tens uma incumbência dada
por Zeus, que é a de instituir atos de negociação entre os
homens, em todas as partes desta terra abundante. Ago-
ra, se simplesmente me fizeres o juramento sagrado dos
deuses, seja consentindo com um aceno de cabeça, ou atra-
vés das poderosas águas do Estige, estarias me dando tudo
de que preciso para agradar e acalmar meu coração."
Então , o filho de Maia acenou com a cabeça e, pro-
meteu que nunca furtaria nada que pertencesse Aque-
le-que-atira-Ionge, e que nunca se aproximaria de sua
forte morada.
Mas Apolo, filho de Leto, jurou ser companheiro e
amigo de Hermes, comprometendo-se ajamais amar ou-
tro entre os imortais, fosse ele deus ou humano nascido
de Zeus, mais do que amava Hermes: e o Pai enviou uma
águia em sinal de confirmação.
O quadro se aprofunda. Primeiro, estabelece a dife-
rença entre os dois irmãos. Apolo é paranóico e teme ser
roubado por Hermes. No entanto, ao mesmo tempo, reve-
la na narrativa que Hermes tem "uma incumbência dada
por Zeus, que é a de instituir atos de negociação entre os
homens ... " Nessa imagem, encontramos um ponto comum
no cerne da alma humana onde cabem o medo paranóico
de ser roubado e a tarefa dada por Zeus de instituir o
comércio na terra. É uma imagem importante como pon-
to de referência para podermos perceber tanto a oposição
como a reunião dos dois irmãos em nós.
Os historiadores nos falam de um antagonismo en-
tre o comércio e o poder regente despótico. O relaciona-
mento entre o centro reinante de um reino e as fronteiras
95
desse domínio, que são o local onde acontece o comércio,
pode dar-nos, por um lado, a imagem arquetípica, e, por
outro, as evidências históricas do que está se passando
naquele reino. Os historiadores contam que, quando o
relacionamento entre o poder central (o Rei) e os comer-
ciantes flui e é cooperativo, o reino prospera, mas que
quando o poder regente torna-se despótico, desenvolvem-
se antagonismos e conflitos sérios entre ele e o comércio,
e fica estagnada a prosperidade daquele reino. A imagem
histórica mostra uma condição psicológica com a qual
Jung lidou simbolizando-a lindamente em suas interpre-
tações aI químicas. O despotismo e a rigidez do Rei prova-
velmente têm a ver com seu medo de ser roubado, e esse
medo provém de seu inconsciente, que desafia todas as
tentativas de racionalizá-lo. Ao longo de toda a história,
o despotismo tem bloqueado o comércio, e aquilo que é
válido para a economia histórica também o é para a psi-
que. A imagem histórica é semelhante à que temos de
alguns pacientes, com quem não vislumbramos nenhu-
ma possibilidade de intercâmbio; não existe encontro: o
centro é despótico e isso exclui a fleXibilidade necessária
a qualquer comércio. Essa exclusão do comércio pode even-
tualmente dar a impressão de que provém de um medo
avassalador. Não há como vermos Hermes, deus do co-
mércio, nesses pacientes.
Colocando as elaborações acima numa metáfora te-
rapêutica teríamos o seguinte: quando Hermes, no papel
de deus do comércio, de fato aparece num caso de severa
rigidez, começamos a observar melhoras nesse paciente.
Quando a imagem de Hermes, o deus do comércio, não é
reprimida, ele promove o relacionamento das pessoas
entre si, a descoberta do mundo e a variedade que vive-
mos hoje em nossas vidas. Hermes propicia intercâmbios,
interações e sobrevivência, tanto na história como na psi-
que. Ao longo de toda a história, a negociação tem sido
96
um dos caminhos para a sobrevivência natural, e é um
dos modos como dois padrões arquetípicos conflitantes
podem se reunir. Há momentos nos quais todos temos
medo de ser roubados ou enganados, e com esse receio
vem o despotismo (poder). Temos de perceber que, quan-
do esse despotismo aparece, com sua faceta paranóica e
psicopática, não há lugar para Hermes negociar, não há
espaço para um encontro entre essas duas naturezas opos-
tas em nossa alma. Da mesma forma na psicoterapia: se
o medo não é aceito quando aparece o aspecto enganador
de Hermes, então a situação analítica corre o risco de
mover-se na direção de um poder despótico, e a psique
estagna. Nesse momento, a situação torna-se assimétrica.
N o relacionamento entre paciente e analista, existe
um antiquado denominador de "entendimento". Já em
1912,32 Jung considerava o anseio de entender como um
anseio pela mãe e uma regressão ao complexo materno.
Vezes e vezes seguidas, o entendimento é buscado como a
base da situação terapêutica. Há psicoterapeutas que pen-
sam que uma verdadeira psicoterapia significa saber qual
é a causa do cerne do distúrbio daquele paciente; então,
toda a atividade analitica encaminha-se para esse objeti-
voo Essa não é apenas uma concepção assustadora, como
igualmente pretensiosa e alarmante para a consciência her-
mética, pois esta sentiria o risco que corre quando sua
movimentação psíquica é substituída por uma personali-
dade monstruosa. O "Hino homérico a Hermes" oferece um
escopo mais amplo, pois nos mostra dois deuses, por trás
de duas diferentes estruturas arquetípicas na psique, que
lidam um com o outro dentro de uma psicologia de inter-
câmbio e negociação. Sua interação sugere um outro mo-
delo para a psicoterapia. Não é preciso "saber" ou ter um
profundo entendimento do outro, pois existe uma psicolo-
32 CW 5, § 682.
97
gia de intercâmbios que, em si mesma, é terapêutica. A
mais popular preocupação entre junguianos é com a
unilateralidade da personalidade, presa demais à lu-
minosidade de Apolo; esta cena da negociação é sugestiva
do que seria a exigência terapêutica mínima: incentivar a
consciência polarizada a familiarizar-se com seu oposto.
O relacionamento entre os dois irmãos melhora subs-
tancialmente quando Hermes promete que "nunca furta-
ria nada que pertencesse àquele-que-atira-Ionge, e que
nunca se aproximaria de sua forte morada". Diante des-
sa promessa, existe uma demarcação dos territórios de
ambos, o que, naturalmente, tranqüiliza Apolo; logo este
está pronto para amar Hermes mais que a todos os ou-
tros. A estipulação de limites para seus dois campos de
ação, a demarcação de fronteiras, desencadeia um movi-
mento rumo ao amor, ao eros, envolvendo os dois irmãos.
Foi criada uma distância legítima. Hermes mostra que é
capaz de fazer uma diferenciação, que essa capacidade não
é só atributo de Apolo. Esta demarcação de limites entre
duas figuras arquetípicas oferece-nos uma outra imagem
a partir da qual refletir sobre o eros entre homens.
E Apolo jurou também: "Na verdade, tornar-te-ei apenas
um presságio para os imortais e todos os semelhantes, em
quem meu coração confia e aos quais respeito. Além dis-
so, irei oferecer-te um esplêndido bastão de riquezas e bens:
é feito de ouro, com três galhos, e irá manter-te ileso, ca-
paz de realizar todas as tarefas, em atos e palavras de
boa qualidade, que afirmo conhecer pelos pronunciamen-
tos de Zeus. Porém, quanto à criança nascida dos céus,
nobre e profetizadora, da qual indagas, não é legítimo para
ti saber dela, assim como também não o é para os deuses
imortais: só a mente de Zeus conhece isso. Estou compro-
metido com um juramento e voto solene que fiz, segundo o
qual mais nenhum dos deuses eternos exceto eu deve to-
mar ciência do sábio conselho de Zeus. E não me peças tu,
meu irmão, portador do cetro de ouro, que te diga quais
são os desígnios que pretende o onividente Zeus ...
98
Mas digo-te ainda uma coisa, Filho da gloriosa Maia e de
Zeus que domina as égides, gênio portador da fortuna para
os deuses: há certas pessoas sagradas, nascidas como ir-
mãs, três virgens aladas, cujas cabeças são espargidas por
branco alimento, e que habitam numa crista do Parnaso.
Além de mim, são as professoras de adivinhação ... De sua
casa, ora voam para cá, ora para lá, alimentam-se de favos
de mel e tudo ocasionam. Quando estão inspiradas, de-
pois de haverem comido mel amarelo, dispõem-se a falar
a verdade; se, porém, foram privadas do doce alimento
divino, então falam inverdades, enquanto saem e entram
dos lugares como um enxame. Estas, portanto, dou a ti;
pergunte corretamente a elas e delicie seu coração com o
que disserem; caso venhas a ensinar algum mortal a fa-
zer isso, geralmente ele irá escutar uma resposta - se
tiver sorte."
Realizando a vontade de Zeus, Apolo faz Hermes ser
"apenas um presságio para os imortais e todos os seme-
lhantes". Essa imagem parece estar dizendo que o pró-
prio Hermes é um presságio. O presságio nos dá uma sen-
sação de prognóstico, de pressentimento; é uma previsão.
Recebemos um alerta que nos vincula com nossa nature-
za, e que sempre está dentro das limitações de nossa pró-
pria história.
A sensação mais extrema seria uma espécie de pres-
ságio proveniente de meios naturais: o reino de Hermes,
aquilo que acontece na natureza do homem. Pode-se di-
zer que esse tipo de augúrio se manifesta a partir da li-
gação de Hermes com o instinto básico que o homem na-
tural tem para a sobrevivência. Podemos imaginar uma
pessoa viajando pelas obscuras estradas da vida, sendo
guiada ou extraviada por Hermes, e necessitando de um
pressentimento instintivo capaz de marcar seu desloca-
mento por essa estrada. Esse tipo de presságio, ou orien-
tação, tanto vincula a pessoa com a sua natureza como
procede dessa natureza no momento necessário à sobre-
vivência. Quando Hermes aparece nos sonhos e fanta-
99
si as pode ser entendido como presságio, seja orientando
a psicoterapia, seja transmitindo o prognóstico contido
naquele presságio.
De todo modo, Hermes - ou qualquer um de seus
atributos - ao aparecer nas fantasias e nos sonhos cons-
titui um sinal de que o movimento psíquico foi constela-
do, abrindo assim caminho para as possibilidades her-
méticas na psicoterapia. Atendi certa vez um médico, na
casa dos 50 anos, cuja unilateralidade era muito rígida.
Ele costumava vir me ver de tempos em tempos, repleto
de distanciamentos e suspeitas a respeito da psicoterapia.
Com o tempo, acabou me contando um sonho reiterado
no qual sentia que havia pessoas no jardim de sua casa.
Ele descia a escada com uma arma no mesmo momento
em que o ladrão estava abrindo a porta, e então dispara-
va todas as balas do tambor, matando o ladrão. Ficava
muito satisfeito com sua atitude no sonho e mais tarde
também quando desperto, apesar de todos os meus esfor-
ços para refletir sua atitude destrutiva e repressora com
relação a uma parte de si mesmo. Ele desapareceu e, al-
guns anos depois, fiquei sabendo que havia sofrido um
grave ataque do coração. Deixo que o próprio leitor faça
suas conjecturas.
Discutimos anteriormente os aspectos preliminares
do lado premonitório de Hermes, manifesto nas reações
físicas. Agora, a narrativa descreve a verdadeira epifania
de Hermes como um presságio propriamente dito. O que
antes era muito difícil para Apolo agüentar agora está
plenamente aceito. Além disso, delimita os campos de ação
dos dois irmãos, o território de cada qual, e demonstra
uma aceitação cada vez maior.
Então Apolo diz: "Além disso, irei oferecer-te um es-
plêndido bastão". O bastão, ou cetro, de Hermes tem sido
considerado seu lado mágico. Mais tarde, esse cetro tor-
nou -se o símbolo da medicina, deste modo vinculando
100
Hermes com as complexidades do arquétipo da cura e,
nessa medida, com Asclépio. A intimidade de sua ligação
com Asclépio foi constatada na era helenística, e expres-
sa na literatura hermética. Os presságios de Hermes, que
antes discutimos com relação ao corpo, incluem agora o
novo atributo do bastão que, mediante o seu toque, reali-
za todas as tarefas e introduz um toque de magia.
As noções de magia, de reino mágico da psique e de
expectativas mágicas de cura e restabelecimento do equi-
líbrio, apresentadas pela antropologia, não têm variado
muito desde o homem primitivo, até o moderno. Este,
como todos sabemos, é repleto de expectativas mágicas
deslumbradas, como a espera pela pílula mais recente,
ou os mais atualizados raios laser que irão curar seus
males. Essa espécie de expectativa mágica atingiu há al-
guns anos o pico de sua estupidez e ignorância quando o
mundo científico pensou que a energia atômica fosse uma
panacéia curativa, quando, na realidade, hoje resta-nos
curvar-nos servilmente diante de seu terrível potencial
de destruição. Expectativas mágicas acompanham todas
as pessoas que entram em psicoterapia, independente-
mente de seu status intelectual, idade, ou tipo de confli-
tos que estejam sofrendo. A psicologiajunguiana tem dado
uma certa atenção ao lado mágico da restauração do
equilibrio psicodinâmico, discutindo os contos de fada nos
quais aparece o bastão mágico (a varinha de condão), e
as curas xamânicas relatadas no material antropológico;
além disso, tem detectado sua presença na psicoterapia,
naquelas súbitas e profundas conscientizações que, por
serem tão repentinas, dão a impressão de serem mágicas.
Tem existido uma certa preocupação com a possibili-
dade de os terapeutas tornarem-se identificados com os
elementos mágicos do arquétipo, com o poder mágico da
cura, e com uma prática psicoterapêutica que assim fi-
que impregnada por expectativas mágicas. É aqui que o
101
 charlatão entra na psicoterapia com seus slogans mági-
cos, tais como "a psicoterapia é um caminho para a indi-
viduação", ou "a psicoterapia é uma atividade limpa,
pura", negando dessa maneira as complexidades arque-
típicas consteladas em torno do termo "mágico". Uso a
palavra "slogan" neste contexto porque ela exprime a atra-
ção do plano externo do coletivo pelas curas mágicas. Não
se pode, no entanto, fazer um "slogan" da função inferior
de Jung, ou das idéias de Ziegler a respeito dos traços
recessivos da natureza humana. 33 Até onde conseguimos
mobilizá-las, as complexidades da cura mágica têm uma
ligação com o arquétipo da cura, mas foram discutidas
principalmente com relação ao poder, por causa da iden-
tificação ~nconsciente do clínico com esse aspecto do ar-
quétipo. As vezes, é experimentado um estado de "pos-
sessão". Eu diria que a possessão é um dos modos como o
arquétipo funciona. Por exemplo, não posso conceber a
energia dos cirurgiões, operando dia e noite, durante ho-
ras a fio, sem sentir o menor esgotamento, inclusive numa
idade em que a capacidade física tende a diminuir, senão
como uma possessão. Repetindo, foi constatada a presen-
ça do elemento poder quanto à identificação com o arqué-
tipo, e essa identificação rompe o arquétipo da cura, que
então não funciona mais. Ou, para expressar-me na lin-
guagem de Hermes: Hermes desaparece de cena. O
terapeuta é abandonado em sua luta, com toda a força de
seu poder, contra a enfermidade de seu paciente, que en-
tão se torna um joguete, alimentando o poder desse clíni-
co impiedoso. Esse poder, que decorre de uma identifica-
ção com o arquétipo, poderia ser aceito como não tão
terrivelmente depreciativo em si mesmo. Sem cinismo,
poderíamos dizer que, na aventura curativa que envolve
33 Alfred Ziegler, Archetypal Medicine, op. cit., "Theoria" Spring
Publications, Dallas, 1983.
102
tanto o paciente como o terapeuta, existem duas histórias,
dois destinos, encontrando-se no tempo. Esse é um acon-
tecimento sincronístico, nem bom nem mau, um destino,
e deve ser incluído em tudo o que denominamos de cura.
Seja qual for a nossa postura a respeito do curar, tanto
nos casos de emergências, como nas aventuras em pro-
fundidade, trata-se de um encontro fortuito entre tera-
peuta e paciente, e sentimos a presença de Hermes ex-
pressando-se como senhor dos caminhos, guiando nossa
psique e nosso corpo, ou extraviando-nos.
Em termos de cura, o poder tem sido discutido no
contexto de um arquétipo cindido: o poder mágico como
uma tentativa de lidar com o arquétipo fragmentado da
cura, mas cura alguma pode advir de um arquétipo que
está rompido. Pessoalmente, não tenho interesse em dis-
cutir a idéia do arquétipo cindido. Talvez ele lance algu-
ma luz sobre o poder e também nos permita enxergar
mais nitidamente uma loucura que esteja se apoderando
do relacionamento entre o clínico e o paciente. No entan-
to, no que me diz respeito, quando o poder entra no pro-
cesso da cura o arquétipo simplesmente não funciona e
Hermes, o vinculador, desaparece.
Na realidade, sabemos muito pouco sobre o poder
em si, e para nós é difícil aceitar que esteja tão profunda-
mente enraizado na natureza humana, usando e mani-
pulando as formas de vida, os arquétipos. O poder é o
maior dos desafios aos estudos em psicologia porque todo
o conhecimento que é adquirido pela assim-chamada pro-
fissão de cura pode ser transformado em noções superfi-
ciais a serem usadas por um clínico ávido por poder, só
pelo prazer do exercício desse poder.
Minha abordagem particular da imagem de Hermes
como mágico foi estimulada pelo trabalho dos estudiosos
modernos, os quais oferecem novas perspectivas e uma
'
reflexão sobre como o espírito de nosso tempo quer
103
reapreender aquilo que se subentende pelo termo "mági-
co". Em vez de voltar-me para estudos antropológicos, con-
tos de fadas e xamanismos, prefiro recorrer a Frances
Yates, que escreve:
... a visão dos sistemas mnemônicos de Bruno como ances-
trais mágicos da máquina mental só tem um valor parcial
e não deve ser estendida muito adiante. Se deixarmos de
lado o termo "mágico" e pensarmos nos esforços de um
artista oculto da memória, dirigidos para extrair da psi-
que algumas combinações de imagens "arquetípicas", en-
tramos no território de algumas das principais tendên-
cias do pensamento psicológico moderno. Contudo, assim
como na analogia com a máquina mental, eu não enfati-
zaria uma analogiajunguiana, que poderia confundir mais
do que esclarecer. 34
Imitemos a srta. Yates e deixemos a palavra "mági-
co" de lado, e passemos a pensar nos termos daquelas
combinações psíquicas de imagens arquetípicas - as com-
binações que os pacientes trazem e as que surgem na si-
tuação analítica, as quais o terapeuta já aprendeu e que
compõem sua memória psicoterapêutica. A analogia que
a srta. Yates está evitando depende da linha de pensa-
mento junguiano que se esteja seguindo: a da amplificação
filogenética, a dos contos de fada, a do xamanismo etc., "que
poderia confundir", ou empurrar-nos para uma identifica-
ção com o poder, como já discutimos, ou a da abordagem
arquetípica em que a combinação das imagens arque-
típicas constela o campo em que pode transcorrer uma
reflexão e em que Hermes pode aparecer.
A imagem de Hermes com seu báculo mágico, fazen-
do uma de suas epifanias, precisa ser inserida numa
psicoterapia que se alicerça em arquétipos. Hermes era
seguidor de Mnemosine (a Memória), e ele é o vinculador.
Esses dois aspectos herméticos podem combinar-se com
34 Yates,The Art of MemO/y, op. cit., p. 252.
104
as imagens arquetípicas que sublinham o termo "mági-
co", passando então a contê-las dentro do sistema da
memória do processo psicoterapêutico, não como algo
aparentemente mágico mas sim bem enraizado numa
memória que pode propiciar movimento psíquico. Essa
combinação de Hermes com Mnemosine, vista como a
memória da alma com seu componente emocional, é o que
torna possível a arte da psicoterapia e o pensamento
analógico. Sabemos que as analogias complementam a
reflexão e são o que mais mobiliza a psique. 35
Quando Apolo diz para Hermes que não é legítimo
que ele aprenda a vaticinar, o Hino parece estar implici-
tamente dizendo que pressagiar não é atribuição de
Hermes, embora, como sabemos, ele efetivamente tenha
recebido o dom da profecia. Vaticínios são verdades e, como
o Hino esclarece, não se pode falar muito em verdades no
tocante a Hermes. Vaticínios, profecias e oráculos são ele-
mentos que pertencem ao domínio de Zeus e Apolo. 36 Es-
ses fenômenos ocorreram na Grécia, numa época em que
havia a necessidade histórica de todas as possibilidades
da psique. É difícil conceber uma psicoterapia divinatória,
embora pareçam existir psiques que só encontram algum
equilíbrio através de um constante correlacionar do ma-
terial psicoterapêutico, dos sonhos e fantasias com previ-
sões e antecipações do futuro. E não nos esqueçamos de
que esse componente está em todos: é arquetípico.
Hermes, no entanto, efetivamente recebe um estra-
nho tipo de dom divinatório na forma de um exótico trio
35 Refletir sobre as analogias e a arte da retórica está na base da cultura
ocidental; em A Ilíada, quando Agamemnon enviou seus três embaixadores-
Odisseu, Fênix e Ajax - para pedirem desculpas a Aquiles e persuadirem-no
a voltar à batalha, foi Fênix quem mais o sensibilizou ao se valer da analogia
de Meléagro. Ver George A. Kennedy, Classical Rhetoric and its Christian and
Secular Tradition fmm Ancient to Modern Times, eroom Helm, Londres, 1980,
pp. 11-15.
36 H.W. Parke, Greek Oracles, Hut~hinsoh, Londres, 1967.
105
de irmãs virgens que parecem ser criaturas parecidas com
abelhas. Essa imagem oferece-nos uma impressão de como
o lado virginal da psique aparece em Hermes. Poderia
ser o modo como Hermes vincula-se com o elemento
Ártemis/Diana virginal, através de seu próprio ciclo Luna,
numa conexão mediada pelas três irmãs que aparecem
aqui e ali, falando verdades ou falsidades, a depender da
quantidade de mel que recebem? Podemos perceber que,
com esse tipo de profetização, desaparecem a verdade e a
falsidade e a vivência de ambas como pólos opostos. Com
base em todas as informações que já acumulamos a res-
peito de Hermes, ele não se incomoda com o que é verda-
deiro ou falso.
Pode iniciar psicoterapia um paciente que apresen-
ta uma forte constelação dessa espécie de profetização
(forte componente hebefrênico, virginal) e que, para o
analista, costuma apresentar mel, só mel. Nesse caso, as
três virgens podem servir como recurso, no sentido de
essa ser uma psicoterapia "melíflua", em que verdade ou
falsidade não são a questão principal. Pois, enquanto o
analista estiver ciente da constelação ativada, pode abor-
dar o paciente de dentro dessa constelação, assegurando
que ocorra a psicoterapia. Mas, se o analista não estiver
inteirado desse dinamismo, então não é possível nenhu-
ma psicoterapia e o ciclo lunático virginal desse paciente
será tão-somente intensificado.
Com base em nossa leitura desta passagem do Hino,
torna-se evidente que existe uma certa mescla arquetípica
na profetização. Esta capacidade é comum aos dois ir-
mãos, embora cada qual tenha um estilo próprio. Depen-
dendo da fina e aguçada percepção do analista de qual
arquétipo deve estar dominando a situação, muito pode
ser resgatado para a psicoterapia. Como nossa preocupa-
ção é o lado prático da psicoterapia, temos de tentar in-
troduzir alguma diferenciação entre os elementos da
106
profetização. A previsão do futuro e a profetização acon-
tecem na psicoterapia tanto de modo apolíneo como her-
mético. A interpretação de sonhos ou uma discussão po-
dem ser conduzidas segundo a proposta apolínea para a
previsão de futuro. A conexão arquetípica do analista com
Apolo, contribuindo com um toque brilhante, prático e
científico, encaminha a situação rumo às necessidades
oraculares da psique. Ou a resposta pode vir do lado her-
mético da profetização. As três irmãs virgens, que apare-
cem dentro do complexo de Hermes, guiam a constelação
divinatória de acordo com o mel que o paciente leva para
o analista. Este, se não tiver consciência do seu dinamis-
mo pessoal das virgens profetizadoras, exige cada vez
mais mel para retribuir com cada vez mais profecias. Ele
pode tornar-se inconsciente de uma situação que, no mí-
nimo, tem um toque hebefrênico; mas, se tiver consciên-
cia desse mel virginal na psicoterapia, então, apesar de
sua aparente puerilidade, Hermes está presente.
Com base nesse atributo comum a Apolo e Hermes,
seu dom divinatório, podemos especular que se, no meio
de um processo transferencial guiado por Hermes, com
todos os seus complexos associados, aparece um enigma
que tenta ser decifrado por meio de um oráculo, deve ha-
ver a percepção bem consciente de que agora ocorre uma
constelação da imagética arquetípica da profetização, e
que esse é um elemento compartilhado pelos dois irmãos.
Isso acarreta a possibilidade de a situação analítica her-
mética por inteiro ser tomada de assalto por Apolo e seu
modo oracular, profetizador, de prever acontecimentos.
Apolo diz a Hermes que as previsões das três irmãs
virgens podem ser ensinadas aos mortais. Provavelmen-
te, ele está se referindo a alguma coisa que é ensinada
mais comum ente do que pensamos, algo de que todos
aprendemos um pouco. Mas podemos suspeitar também
que a profecia de Apolo pode ser igualmente ensinada:
107
uma interpretação oracular dos sonhos, planos para atos
a longo prazo, retificações morais etc.
Comunicar-se com Marte, dialogar com os espíritos,
Relatar o comportamento do monstro marinho ,
Descrever o horóscopo, os arúspices, ou a bola de cristal,
Observar doenças nas assinaturas, evocar
A biografia a partir dos vincos da palma da mão
E as tragédias inscritas nos dedos; proferir augúrios
Através de sortilégios, ou folhas de chá,
decifrando o inevitável
Com cartas de baralho, dedilhando pentagramas
Ou ácidos barbitúricos, ou dissecando
A imagem recorrente em terrores pré-consientes -
Explorar o útero, o túmulo, ou sonhos;
tudo isso é corriqueiro ... 3?
Tudo isso é de fato corriqueiro e, como já sabemos,
há arquétipos que lhe dão contorno e base. E, se são ati-
tudes que têm aparecido durante todo o desenrolar da
história da humanidade, então aparecem no consultório
do analista. Temos de nos tornar conscientes do modo
como aparecem em nossas psiques e de suas implicações
no que vem a seguir.
N a conclusão do Hino, Hermes recebe um último tra-
balho: " ... que ele seja apontado como o único mensageiro
para H a d es ... ",38 e essa lllcum
. b enCIa outorga- lhe o status
A •
de ser o único dos olímpicos a lidar diretamente com as
profundezas e mistérios do reino dos mortos, tarefa espe-
cífica e importante do ponto de vista psicológico. Estou
seguro de que, nesta altura, o leitor já está suficiente-
mente familiarizado com a personalidade de Hermes e
com as qualidades herméticas para perceber como ele é
idealmente adequado para essa incumbência, especial-
37 T.S. Eliot, Four Quartets, Faber and Faber, Londres, 1944, The Dry
Salvages, p. 32.
38 "Hino homérico a Hermes", op. cit., p. 405.
108
mente em virtude de sua ligação com o nível do homem
primitivo, a qual se dá de uma maneira que nenhum ou-
tro habitante do Olimpo consegue igualar.
A tarefa de guiar a alma pelo mundo inferior não
pode ser minimizada, nem omitida da psicologia, e me-
nos ainda da psicoterapia. Morte é morte - o sempre
temível oposto da vida - apesar do fato de nossa cultura
ter sistematicamente reprimido o que a morte é para a
psique. Nessa repressão, de trágicos antecedentes, És-
quilojá no século V a.C. havia discernido a mão repressora
de Prometeu tentando abafar o fato da morte.
"Sim. Fiz com que os homens não antevissem mais sua
morte."39
Eis uma fala formidável que, retrospectivamente,
parece profética; ela também permite que percebamos
claramente a fonte dessa repressão histórica e o processo
de reforçamento que a acentuou ao longo do cristianis-
mo. Em nossa época atual, essa repressão atingiu um
ponto tão extremo que os rituais, as emoções e os senti-
mentos atinentes à morte, com todas as suas imagens
correspondentes, praticamente desapareceram. Após o
colapso e o fracasso dos valores religiosos tradicionais
relativos à morte - aqueles valores éticos e moralistas
avaliados na balança de céu e inferno - a tensão psíqui-
ca de opostos, central às crenças religiosas do homem
ocidental, foi dissipada. Nenhum imaginário no entanto
apareceu para ocupar seu lugar, no que tange à vida psí-
quica do homem, às suas emoções e patologia. Desde o
final da Idade Média, a religião vem se mostrando mais
interessada em sua dimensão secular do que em seus
mistérios religiosos e na morte. A morte não é mais uma
preocupação da religião comum. O homem moderno en-
39 Ésquilo, Prometheus Bound, Petiguin, Harmondsworth, 1961, p. 28.
109
contra-se sozinho diante de sua morte - um fato que
temos de aceitar. Se, porém, do ponto de vista da psicolo-
gia profunda, constatamos sua desolação perante a mor-
te, isso é-lhe vantajoso porque proporciona-lhe a liberdade
de tornar a morte uma preocupação íntima e imaginativa,
toda sua, num processo de progressiva familiarização com
suas imagens e emoções particulares sobre a morte, o que
enriquece sua vida psíquica. É claro como isso é impor-
tante, e meu objetivoconsiste em conferir à morte um
lugar central na psicoterapia.
Essa mesma liberdade permite-me imaginar a mor-
te naquela "noturna escuridão" à qual o Hino alude; per-
mite que a minha própria primitividade "leia" aquela es-
curidão noturna como o faria um exemplar do pensamento
mítico, o homem primordial, cheio de assombro e horror,
percebendo a morte como morte, num choque arrasador
que lhe traz a primeira conscientização de si mesmo, cho-
que que começou a torná-lo humano - o despertar do
instinto de reflexão, início da vida psíquica, da cultura,
das crenças religiosas. Os historiadores da pré-história,
paleontólogos, antropólogos, etologistas e biólogos ofere-
cem-nos suporte suficiente para que imaginemos como,
de repente, houve a percepção clara e indiscutível da
morte, causando um tal choque à natureza do homem
que enfim surgiu a consciência especificamente humana
- o refletir sobre a morte do outro, provavelmente des-
perto pelo ritual da morte de animais, vinculando a mor-
te ritual com uma imaginação incipiente: os primórdios
do pensamento mítico e da poesia. Mas, avancemos mais
um pouco com nossa imaginação e vej amos que o homem
primordial, mobilizado por sua percepção da morte e pres-
sionado por sua imaginação, começa a pronunciar suas
primeiras palavras articuladas. A morte então deixa de
ser simplesmente um ritual animal: o mito falado estava
a caminho. Quero enxergar essa consciência específica
110
da morte como um aspecto essencial das complexidades
que contribuem para as mudanças psicobiológicas a par-
tir das quais nasceu a fala. 4o Acredito que essa tentati-
va de penetrar na escuridão noturna é uma intuição
válida, tendo em vista o meu interesse de expandir a
psicoterapia, colocando a morte em primeiro plano. Ao
mesmo tempo, a escuridão noturna pode ser imaginada
como uma dimensão dentro de nossa própria natureza,
dimensão na qual a imaginação tem suas raízes mais
profundas, onde as imagens primordiais que ali foram
arquivadas mobilizam o que hoje denominamos de psi-
que - nossos instintos e corpo emocional psicossomático
- assim como mobilizam muitas outras concepções ima-
ginativas de nossa psique. As primeiras percepções cons-
cientes que o homem teve da morte formaram sua psi-
que básica. 41
Mantendo em mente essa abordagem imaginaI da
morte e da fala, e da consciêcia psíquica, vej amos a psico-
logia moderna. Historicamente, a mente científica, pres-
sionada pela enfermidade mental, apoderou-se da ne-
cessidade que o homem tem de "investigar" sua psique.
A relação de causa e efeito estimulou um novo interesse
pela vida psíquica. Ao mesmo tempo, um vasto acervo
de conhecimento foi acumulado, formando o que poderí-
amos chamar de uma "cultura psiquiátrica". Esse é o
peso - a realidade - desta cultura que já se transfor-
mou num complexo histórico para o mundo de hoje, su-
40 Os estudos efetuados pelo homem moderno acerca de seus primórdios
como ser humano, nos quais fundamento méus pensamentos, sem dúvida com-
põem um campo apaixonante e fascinante de reflexões. O principal interesse
da literatura está centrado na caça como a origem da fala. Quero simplesmen-
te incluir a consciência que o homem tem de sua própria morte como um ingre-
diente importante - o mais imaginativo e metafísico, se quiserem - mas o
mais psíquico, a meu ver, além de todas as especulações a esse respeito.
41 E.R. Dodds, The Greeks and the lrrational, University ofCalifornia Press,
Berkeley, 1968, Ca. V, "The Greek Shamans and the Origin of Puritanism".
111
jeito aos mesmos conflitos e pressões geográficas, ra-
ciais, religiosas e históricas. Sem sombra de dúvida, tor-
nou-se um complexo muito importante. Temos apenas de
considerar como acabou se tornando o mais poderoso par
de óculos com os quais enxergar a natureza e o comporta-
mento do homem. Tornou-se indispensável. Num nível
mais familiar, o complexo da cultura psiquiátrica explica
as infinitas concepções psicoterapêuticas, para não men-
cionar os fármacos que diariamente aparecem nos la-
boratórios neuroquímicos.
Próximos como estamos do término deste século, ve-
mos como esse complexo psiquiátrico afeta o mundo todo,
mas, desnecessário dizer, ainda mais especialmente aque-
las pessoas que têm um envolvimento profissional com o
mesmo. O mundo é cada vez mais inundado por uma pro-
fusão de teorias e técnicas terapêuticas, e o complexo con-
tinua se expandindo. Tal como acontece com qualquer
outro complexo, podemos nos identificar com ele, ser in-
conscientes dele, ser possuídos por ele etc. Sobretudo,
assim como qualquer outro complexo, este pode ser
destrutivo e a única forma de ser viável lidar com ele é
como Jung ensinou: circumambulando em torno dele, ou,
como Hermes faz classicamente, pondo um pé dentro en-
quanto mantém o outro fora. É evidente, contudo, que
muitos estudantes de psicologia foram tomados pela pro-
fusão de teorias e afogaram-se no complexo, ou então li-
daram com ele da maneira mais incomum pela qual po-
demos lidar com um complexo: através do poder. Hoje o
poder substitui, ocupa o lugar, do que deveria ser o nosso
principal foco de atenção: a psique. O único relaciona-
mento decente que podemos ter com este complexo, o único
modo como podemos proteger a nossa psique, é tentando
guardar uma distância correta em relação a ele, e então
furtarmos hermeticamente os seus conteúdos ou permu-
tarmos com ele.
112
Existe um outro elemento predominante na cultura
psiquiátrica, mais forte e mais arquetipicamente defini-
do, do que a mente científica moderna: o puer aeternus;
pode-se inclusive dizer que esses dois elementos se fun-
diram. Só Jung e seus seguidores fizeram do puer aeternus
um foco de interesse; viram-no, porém, em termos de um
arquétipo bicéfalo - como oposição entre puer e senex,
entre infância e adolescência versus idade adulta e ve-
lhice. Bem, meu interesse aqui é considerar o puer em
oposição ao Hermes ctônico, mensageiro do reino dos
mortos, que poderia ser o elo entre o puer e o senex ao
permanecer em oposição exclusiva ao puer voador.
É somente em termos dessa mistura - da reunião
da mente científica com o puer voador - que podemos
ter uma visão mais psicológica dos complexos que regem
a cultura psiquiátrica e os estudos da psicologia. A causa
da enfermidade mental, de acordo com o modo como os
pioneiros da mentalidade científica costumavam vê-la,
deveria ser localizada na infância, na meninice pessoal
do doente, o que daria um selo distintivo à psicologia e
reforçaria a noção de que a psicoterapia (preocupação
deste livro) está sendo limitada ao causalismo da infân-
cia. Uma grande parte da cultura psiquiátrica, a psica-
nálise, e mais do que uns poucos seguidores de Jung têm
concentrado suas atenções basicamente na infância, para
evitar dizer que estão nas malhas do complexo da mente
científica e da psicoterapia vigente do puer aeternus, os
dois componentes predominantes da cultura psiquiátri-
ca. Esse foco sobre a infância pode ser visto como uma
projeção do puer, dando carta branca à ciência. Se consi-
derarmos este complexo por um prisma mais psicológico,
veremos que é um culto moderno para a velha religião do
puer, que é a ciência de hoje no altar do puer, numa per-
versa adoração deslocada de contexto. Digo deslocada de
contexto porque vivemos num mundo já desequilibrado,
113
do ponto de vista arquetípico, em virtude das dominadoras
complexidades do puer ascendente. Aqui, este arquétipo
pode ser visto como um importante aspecto da consciên-
cia coletiva vigente (a história inteira do homem ociden-
tal oferece um testemunho disso) - uma psicologia mui-
to distorcida ou a mais pura loucura. Além disso, a força
dominante do puer no campo da psicologia não dá espaço
para outras concepções psicológicas, mesmo na psicolo-
gia junguiana, na qual uma grande parte do seu legado
ainda precisa encontrar um encaminhamento adequado.
Pois, o puer só aprende em relação com o que é compatí-
vel com sua configuração arquetípica, ou seja, qualquer
conhecimento que proceda de um outro arquétipo é auto-
maticamente traduzido segundo sua própria visão de puer
aeternus. Ele só consegue enxergar nos termos de sua
consciência puer voadora arquetípica. Essa é uma cons-
ciência capaz de conceber uma abundância de teorias e
psicologias mas, por causa de sua polarização, está mui-
to distante daquele ponto médio da consciência que tor-
na a psicoterapia possível, e ainda mais longe de uma
psicoterapia baseada na imagem do Hermes guiando a
alma até o reino dos mortos e até as muitas possibilidades
metafóricas que ali se lhe apresentam. A psicologia dos
opostos é estranha à consciência do puer aeternus.
Existe um outro ingrediente a ser acrescentado a
essas complexidades que estamos analisando: quando os
estudantes modernos de psicologia focalizam seus estu-
dos na infância como a causa da doença mental, circuns-
crevem seus interesses segudo as limitações da tradição
médica. Hoje, a tradição médica cura em termos de doen-
ças específicas, e, mitologicamente, está fixada no "peca-
do original" de Asclépio de rejeitar Hades, rejeição que
tem levado à concretização do resgatar a vida das garras
da morte, e ao prolongamento artificial da vida como o
principal objetivo da medicina. Mas, ao mesmo tempo,
114
essa atitude tem bloqueado qualquer acesso, da parte da
psicoterapia, ao que poderia desencadear uma transfor-
mação psíquica mais dinâmica: a morte como mobilizador
psíquico primordial, mesmo numa doença que poderia ser
considerada como especificamente causada pelo históri-
co familiar (complexos pessoais). Estamos começando a
constatar que existe uma séria discrepância arquetípica
entre a tradição da cura e uma psicoterapia preocupada
com a morte, com um Hermes ctônico capaz de guiar a
alma até o reino dos mortos.
Vejamos agora como os dois homens mais importan-
tes da psicologia deste século abordaram a morte, em ter-
mos gerais, com relação aos sonhos. Lembremo-nos, aqui,
que o material onírico é a mais próxima manifestação
com que contamos daquilo que é desconhecido em nós -
o id, o inconsciente, o irracional, a sombra de nossa natu-
reza etc. Os sonhos dão-nos informações - claras, obscu-
ras, enigmáticas - a respeito de nosso estado psicológi-
co, da direção que nossa psique está tomando, e até de
um prognóstico sobre nossa vida. Sendo assim, primeiro
vejamos como Freud considerava os sonhos em que hou-
vesse o elemento da morte. Sua concepção serve como a
imagem primordial, no sentido de que ele foi um pioneiro
e, com isso, a morte nos sonhos recebeu seu selo indelé-
vel, influenciando profundamente o que veio depois.
Quando Freud dizia que a morte de uma figura de pai ou
mãe, irmão ou amigo íntimo era a expressão da realiza-
ção de um desejo, podemos nos dar conta da imensa cul-
pa que a pessoa devia sentir por ter sonhado isso, para
nem citar a paralisia total de sua psique e o poder que
era assim conferido ao seu analista. Freud foi o produto
de uma tradição religiosa e racial calcada na culpa; sua
visão da morte como realização de desejo era a única abor-
dagem coerente possível de dar crédito à validade de sua
teoria do complexo de Édipo. Sua interpretação da morte
115
nos sonhos encaixava-se em sua teoria e em seu interes-
se pela infância. Sendo assim, naquela primeira impres-
são a culpa imprimiu um selo indelével sobre a história
da psicoterapia moderna, e a mensagem metafórica da
morte para a psique ficou perdida.
Por outro lado, Jung baseou a principal noção de sua
psicologia psicoterapêutica nas mudanças da meia-ida-
de, e com isso sua abordagem do material onírico sobre a
morte consistiu em vê-la como uma indicação de um mo-
vimento iniciático, uma preparação para a segunda me-
tade da vida, como o início de um relacionamento mais
próximo e intenso com o término da própria existência.
Essa visão intuitiva da metanóia e a ênfase no preparo
para a morte é evidentemente mais psíquica do que o
redutivo estreitamento do foco da atenção apenas sobre
a infância. O fim é mais importante do que o começo. Jung
mobilizou os sonhos com material acerca da morte levan-
do-os a se tornar concepções escatológicas influenciadas
pela história da cultura ocidental, em relação com a imor-
talidade da alma e a vida após a vida. Os estudiosos mo-
dernos vêm rastreando as raízes dessas noções, locali-
zando-as no xamanismo do homem primitivo, e sua
hipótese é que tenham sido assimiladas pelas doutrinas
pitagórica e órfica, e mais tarde pela facção ascensional
do cristianismo. Parece que, psicologicamente, Jung per-
tenceu a esta tradição.
O modo como Freud e Jung lidaram principalmente
com sonhos de morte oferece-nos uma visão de um aspec-
to essencial em suas psiques e personalidades; nesse
mesmo sentido, em psicoterapia, a concepção de morte
de um determinado paciente - como ele fantasia suas
imagens da morte, sua atitude emocional perante a mes-
ma - constitui um quadro que poderia ser visto como
um diagnóstico, por assim dizer, de sua psique, e tam-
bém um prognóstico de seu movimento psíquico. Em si
116
mesmos, os sonhos de morte oferecem um espectro de
possibilidades que vão desde o diagnóstico e a movimen-
tação psíquica até uma psicoterapia profunda, ou a con-
clusão da mesma.
Nos planos arquetípico e psicoterapêutica, Hermes
ser apontado como o guia da alma até o mundo inferior
tem uma conotação muito diferente das concepções ge-
rais de Freud e Jung. "Arquetípico" significa o que per-
tence à natureza humana; todos temos um Hermes a guiar
nossa alma até o reino dos mortos e lá por dentro, e a
concepção dessa tarefa varia com a constituição psíquica
de cada pessoa, com seus antecedentes religiosos, cultu-
rais, e seus complexos, ou com as diferentes fantasias,
imagens, emoções e sentimentos relativos à morte. Po-
rém, mais do que isso, a morte poderia ser compreendida
como uma constância na psique, e os sonhos de morte
como eventos que tocam nossos complexos animais/ins-
tintivos/primitivos e míticos, pois meu interesse é vin-
cular esses sonhos ao mais antigo de nossos complexos -
o da escuridão noturna. Numa dimensão psicoterapêutica,
isso quer dizer que as imagens de morte podem aparecer
no aqui-agora terapêutico, podem irromper no processo
terapêutico a qualquer momento, inclusive numa primei-
ra sessão, independentemente da idade do paciente, e de
ele estar ou não num quadro de depressão patológica, de
estar estressado pela morte recente de um ente querido,
ou de estar sendo acossado por uma morte antiga que
deixou marcas profundas na memória de sua alma. O
aparecimento da morte na psicoterapia é um aconteci-
mento com sua própria imediaticidade e emoções e, em
virtude de sua profundidade, oferece, acerca do paciente,
uma perspectiva imaginaI sem paralelos. Pode, não obs-
tante, desestabilizar o equilíbrio do analista mais expe-
riente e habilidoso. Em geral, ocorre uma atitude estereo-
tipada com respeito à morte, na qual o analista permanece
117
rigidamente apegado a suas próprias concepções cultu-
rais e, por isso, não consegue reagir com uma atitude
imaginativa, capaz de corresponder à imagética da mor-
te constelada no paciente. Sobretudo, a excepcionalidade
do aparecimento de imagens de morte pode mobilizar o
analista à concretização de uma possível morte real, ati-
tude essa que decorre de emoções transmitidas pelo ter-
mo "morte", e de aspectos do arquétipo do curador relati-
vos à morte, e que já foram objeto de citação anterior.
Hermes, como mensageiro do reino dos mortos, per-
mite-nos também abordar a depressão como um nível
constante em nossa natureza. Sabemos que a imagética
psíquica da morte e a depressão são tão semelhantes que
às vezes até se sobrepõem. Se, na dimensão arquetípica,
o puer aeternus voador está em oposição à percepção da
morte, então ele, obviamente, está em oposição à depres-
são. Quando a consciência dominada pelo puer precisa
confrontar a morte em sentido religioso, existe a tendên-
cia imediata a esquivar-se da realidade emocional da
morte. A história religiosa do homem ocidental tem se
preocupado mais com a ressurreição do que com a morte.
De modo similar, e num contexto terapêutico mais coti-
diano, quando o lado depressivo de nossa natureza exige
tornar-se presente na vida, o puer voador tende a rejeitar
sua presença, e a resistir permanecer na depressão, ou
dispõe-se a antecipar imediatamente o estágio pós-
depressivo; esse é um exemplo típico de como o puer move
qualquer constatação ou experiência para sua própria
configuração arquetípica, revelando uma presunção
inflacionada e, ao mesmo tempo, as tristes limitações de
sua visão.
O homem ocidental tem predileção pela atividade e
pelo esforço, viés que o deixa cego para qualquer percep-
ção da morte e da depressão como elementos arquetípicos
que fazem parte de sua natureza. A medicina moderna
118
considera a época em que a cura era concebida como re-
pouso e descanso em "spas", praias, e montanhas, com
uma pausa indiretamente permitindo acesso à depres-
são, como um passado muito distante e decrépito. Vive-
mos numa época em que a cura é visualizada como cirur-
gias de final de semana, com garantias de que o paciente
poderá retomar suas atividades na segunda pela manhã;
como maratonas psicoterapêuticas de final de semana,
com garantias de pronta eliminação de pendências emo-
cionais. No pico da montanha de atividades do homem
moderno, o estilo de cura atualmente em moda consiste
em muitos exercícios, praticar corrida, e coisas assim,
numa tendência que se tornou um "slogan" e cabe muito
bem nas expectativas unilaterais fáceis: a promessa de
uma saúde melhor, de um coração mais forte, de uma
vida mais longa e feliz. Em outras palavras, existe uma
rejeição total da associação da doença com a depressão, e
da necessidade de se oferecer uma in-direção hermética
que leve até a depressão. Isso é lugar-comum em nossa
moderna sociedade tecnológica, uma espécie de cura que
não consente nem com o tempo mínimo necessário para
que a psique tome ciência do que está acontecendo em
sua própria natureza e em seu próprio corpo. Descansar,
repousar e deprimir acabaram por se tornar os feitos mais
difíceis de se realizar. Na verdade, precisamos do estado
de ânimo de "Sunday, Bloody Sunday" para conseguir-
mos aquela gota de depressão e suas imagens coligadas,
que tanta falta nos fazem. Sem a depressão não podemos
existir; ela é um componente básico da vida; é arquetípica.
A depressão, por assim dizer, tornou-se tão desesperada
buscando um canal de saída que facilmente é constatada
hoje em tensões e conflitos psicológicos, e em quadros
psicossomáticos. Somente uma minoria de curadores tem
interesse por esta situação; psicoterapeutas insólitos que,
em seu modelo básico de atuação, incluem o lento movi-
119
mento incubatório da psique e o processo da desacele-
ração. A depressão é central a qualquer processo de cura.
Apesar disso, a depressão também é uma doença, a
depender de sua quantidade e complexidade numa de-
terminada pessoa. Pode tratar-se de uma depressão psí-
quica, de um sinal de enfermidade psicossomática séria,
ou de morte iminente. E, quando consideramos um qua-
dro depressivo, os muitos recursos e medicamentos cria-
dos pela "cultura psiquiátrica", citados antes, desde o
eletrochoque até a mais recente droga antidepressiva, não
podem ser ignorados.
Com respeito à depressão, meu interesse é dirigir-
me ao clínico, e não ao paciente, porque é óbvio que uma
visão psicoterapêutica da mesma depende de o analista
ter consciência da depressão, inclusive da sua própria.
Para apreendermos o que a última imagem do Hinoinsi-
nua para uma terapia da depressão, e para deixar que a
imaginação de Hermes dê conta disso, dentro dos limites
arquetípicos da imagem, é essencial contar com uma cul-
tura antropológica e religiosa. E embora, como acabamos
de mencionar, o conjunto de todo o conhecimento psicopa-
tológico não possa ser ignorado, o terapeuta deve ser capaz
de perceber que a depressão é uma expressão natural de
certas complexidades, segundo a natureza e a entidade
psíquica de cada pessoa. Mas, novamente, temos de nos
dar conta do quanto é simplesmente difícil para nós acei-
tar a nossa natureza. A depressão foi importante no pro-
cesso de cura de Jung, e aqueles dentre nós que se bene-
ficiaram de seus ensinamentos sabem que o movimento
psicológico e um estado de depressão são fatores coliga-
dos. É como se fosse a pausa que a natureza faz para
tornar possível à consciência apreender novos conteúdos
inconscientes.
Concentremo-nos agora imaginativamente nos âm-
bitos em que Hermes serve de guia, pois não só isso nos
120
oferece metáforas como também pode nos encaminhar
para uma psicoterapia compensatória. A mais imediata
compensação à nossa unilateralidade pode ser encontra-
da na dupla imagem metafórica da depressão e da morte.
Não pode haver a transformação psíquica sem opostos com-
pensatórios. Agora, na psicoterapia de hoje, somos repeti-
damente confrontados com pessoas que vivem como se não
tivessem corpo, como se seu corpo lhes fosse uma entidade
inteiramente alheia. Sabemos que a repressão histórica e
religiosa, concepções filosóficas e científicas e ainda, por
fim mas não em último lugar, a tecnologia moderna alie-
naram-nos daquilo a cujo respeito deveríamos ser psíqui-
cos: o nosso corpo. Parece que o objetivo da psicoterapia,
nesse sentido, é propiciar a sensação de se estar vivendo
no próprio corpo, um conseguimento que parece tão fácil,
especialmente hoje, quando o corpo entrou tanto na moda.
Mas, ,se levarmos em conta como a história tem rejeitado o
corpo emocional psíquico, assim como fez com a depres-
são, trata-se pelo contrário de um feito notável.
Com base na literatura clássica e especializada a
respeito de Dioniso,42 ficamos a par do fato de que ele é o
deus que representa o corpo psíquico e emocional, assim
como as sensações de nosso próprio corpo. Tanto mitoló-
gica como historicamente, Dioniso é o mais rejeitado de
todos os deuses. E também sabemos o quão sistematica-
mente o homem ocidental tem rejeitado seu corpo emo-
cional, por causa dos complexos ascensionais espirituais
do cristianismo. Sendo assim podemos nos valer da ima-
gem de Dioniso como uma metáfora para aquele corpo
42 Para quem não é versado na literatura referente a Dioniso e pode se
beneficiar de um estudo do corpo psíquico e emocional, recomendo o trabalho
de Ivan M. Linforth, The Arts af Orpheus (University of California Press,
Berkeley, 1941), especialmente o Capítulo V, "Myth ofthe Dismemberment of
Dionysus"; e W.B. Stanford, Greek Trqgedy and the Emotions, Routledge &
Kegan Paul, Londres, 1983.
121
psíquico e emocional reprimido a cujo respeito sabemos ção específica. A última imagem do "Hino homérico a
tão pouco, e que pertence ao imaginário que cerca a indi- Hermes" coaduna-se muito bem com o princípio da
cação de Hermes como o mensageiro até o reino dos mor- psuchogogia: Hermes conduzindo a psique, sem qualquer
tos - o corpo morto, o corpo inexistente do homem de tipo de intervenção, rumo à sua própria essência.
hoje. Sejam quais forem as especulações que possamos
ter com respeito a Dioniso e Hades, como o mesmo ser,
essa associação está implícita no relacionamento que vie-
mos estabelecendo entre a morte, a depressão e o corpo
psíquico (o corpo que a psique pode sentir). É aqui que
Hermes entra, guiando a alma até o mundo inferior, numa
imagem que implica em um movimento gravitacional.
Certamente que não existem garantias de se alcançar esse
movimento compensatório rumo a um corpo psíquico,
rumo à constituição de um contexto em que nosso sofri-
mento psicossomático não nos pareça tão terrivelmente
desconhecido: em que ele possa ser visto como um acon-
tecimento hermético.
Como viemos discutindo nas últimas páginas, a psico-
terapia interessada em movimentar a psique até o corpo
exige uma consciência hermética, uma familiaridade com
os ciclos herméticos e sua in-direção, um razoável confor-
to diante da depressão, uma ausência de idéias preconce-
bidas, e confiança depositada nas palavras e na imagina-
ção, com respeito à morte como o mobilizador psíquico
primário. Se a morte está nas origens do pensamento re-
ligioso e mítico e da poesia, então, quando a morte é pos-
ta em palavras, a terapia através da fala, a "cura pela
fala", alcança seu mais profundo significado, e nesse con-
texto gestos e palavras podem ser entendidos como
terapêuticos em si, pois estão isentos do peso da história,
e nele pode se dar o acontecimento de um diálogo tera-
pêutico que toque em complexos fundamentais - como o
da morte e o da fala.
O termo psuchogogia significa, literalmente, a psi-
que que é dirigida por si mesma, e nisto existe uma emo-

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