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2.

1 – “Nas brumas do tempo”: a constituição do Território Negro da Jahyba

Maria Flávia Ribeiro Rodrigues

No médio São Francisco, zona de transição entre ecossistemas


diversos, estruturou-se e organizou-se uma sociedade com
características próprias, em que o eixo crucial consiste na articulação
de diversidades culturais, de identidades contrastivas, de
racionalidades díspares, mas complementares, e de projetos
civilizatórios construtores da civilização brasileira, que permitem
pensar o Norte de Minas como a síntese de nossa nacionalidade.
(COSTA, 2006, p.8)

Segundo Costa (2006), o território no qual se localiza a sociedade norte mineira


existiram diversas sociedades indígenas que se localizaram na região da bacia do médio
São Francisco. Segundo esse autor não há estudos específicos que mostrem como era o
modo de vida desses povos, mas, no entanto, torna-se possível dizer, baseado em estudos
de outras áreas onde, assim como no norte de Minas, havia a presença de mais de uma
sociedade indígena, que essas se articulavam em “totalidades sociais hierárquicas ou
simbólicas” (COSTA, 2006, p.13).
A partir da historiografia paulista e baiana podemos extrair informações
importantes para a compreensão da “historia da raiz” da sociedade norte - mineira, que
teria a sua formação constituída com a chegada de bandeiras paulistas, Essas
historiografias informam a presença de pequenos grupos de africanos e seus descendentes
que, fugidos da escravidão, deram origem a quilombos. Além dos indígenas, essa seria
outra característica societária existente no interior da bacia do médio São Francisco. Esses
povos teriam se localizado principalmente no interior da floresta de caatinga arbórea
existente no “vale do rio que, posteriormente, passou a ser denominado como Verde
Grande” (Costa, 2006, p.14).
Esses povos procuravam por um lado áreas nas quais pudessem manter algum
contato com a sociedade escravocrata, mas que não corressem o risco de serem apanhados
e entregues novamente a escravidão. Por esse motivo buscavam áreas dentro do território
brasileiro que não fossem habilitadas por outros povos como os indígenas e áreas nas
quais os portugueses e seus descendentes tivessem receio de entrar por algum motivo,
mesmo estando próximos aos povoados. Os quilombolas buscavam lugares com
“barreiras estruturais”, ou seja, lugares que dispunham de algum impedimento para o
estabelecimento de relações de fora para dentro, esses impedimentos poderiam ser de
ordem natural ou social. Por questões naturais entende-se o fato de nessa região ocorrer:
“a existência de malária, de corredeiras e cachoeiras, serras íngremes, furnas ou vãos,
‘nos cafundós do Judas’, dentro de florestas, etc., ou seja, por questões sociais, terras que
não tinham nenhum valor econômico, principalmente” (Costa, 2006, p:14). Ao se
localizarem em áreas de difícil acesso podiam, ao mesmo tempo, manter contato com os
de fora à medida que se encontravam protegidos ao retornarem ao seu espaço. Nesses
espaços produziam alimentos e o que fosse necessário a sua sobrevivência.

Nesses locais, os africanos e seus descendentes construíram pequenas


comunidades com algum tipo de produção agrícola, pecuária,
extrativista, mineratória e, em poucas, como praça de guerra. As
diversas pequenas comunidades mantinham entre si vínculos sociais
para proteção do território negro, esses vínculos estruturam redes de
parentesco no interior de quilombos, também chamados de mocambos
ou calhambos.
(COSTA,2006, p.14)

Nessa região os quilombolas organizaram uma agricultura de “furado” que


possibilitava a produção de alimentos nos períodos de seca, já que nesses espaços as terras
se conservavam úmidas. Com essa agricultura de “furado” garantiam para o grupo a
fartura de alimentos nos períodos de seca regional, além de permitir o fornecimento de
alimentos para as povoações brancas que viviam nas encostas das serras que circundavam
o vale do Verde Grande, ou mesmo, à aquelas que viviam nas chapadas dessas mesmas
serras, onde as terras ficavam ainda mais secas nesses períodos de falta de chuvas.

No caso dos africanos e seus descendentes vivendo no vale Rio Verde


Grande, em decorrência da presença de um grande número de lagoas
formadas nas dolinas no interior da floresta de caatinga arbórea, devido
à umidade, havia o cultivo de produtos agrícolas, notadamente,
mandioca, milho, arroz, feijão e fava, banana, dentre outros produtos,
nas margens dessas lagoas, regionalmente conhecidas como furados.
(COSTA, 2006, p:14)

Nesse período, segundo o mesmo autor, o gado era criado solto no interior da
floresta, e esse costume perdurou por muito tempo até que as terras fossem divididas
décadas depois.
Costa (2006 apud Santos 1997) indica a existência de contatos entre antigos
membros da comunidade indígena Xacriabá com negros aquilombados no interior da
floresta de caatinga arbórea existente no vale do Rio Verde Grande. Segundo esse autor,
as relações estabelecidas eram pautadas na reciprocidade e na solidariedade não havendo
uma perspectiva hierárquica ou competitiva.

Em resumo, podemos dizer que antes da chegada dos portugueses e


seus descendentes, existia na área média da bacia do Rio São Francisco
uma sociedade multicultural e multiétinica, organizada pelos
princípios de reciprocidade e solidariedade, com relações sociais
articuladas fortemente por parentesco e, possivelmente, por casamento
interétinico, por ser esta uma característica das sociedades indígenas
brasileiras.
(COSTA, 2006, p.15)

O que se verificou durante o período colonial foi uma intensa tentativa de


embranquecimento da população norte- mineira, porém, apesar dessa tentativa a
população conseguiu conservar até hoje grupos étnicos ( Barth: 2000) que ainda
sobrevivem nessas regiões mantendo praticas culturais específicas aos grupos, não
tornando com isso possível aquele êxito. Segundo Costa (2006):

A expansão verificada, apesar da produção do embraquecimento e da


etnicização do sertão, não conseguiu realizá-la plenamente, devido à
resistência oposta e semelhante dos outros, principalmente os negros
que ocuparam historicamente uma ampla área do território
regional(...), e de outras populações tradicionais que se constituiriam
como realidades diversificadas no interior da sociedade norte -
mineira.
(COSTA, 2006, p.28).

As condições históricas e as características ecológicas possibilitaram, dentro dessa


área, a constituição de um grande território, denominado por Costa (1999) de Território
Negro da Jahyba1, que se estende por mil e seiscentos quilômetros, do vale rio Verde
Grande em Minas Gerais, até as proximidades de Xique-Xique, na Bahia, podendo ser
considerado como o maior território negro existente fora da África.

1
Segundo Costa (1997) Jahyba pode assumir três significados: 1- água podre; 2 água ruim ou brenhas
do mato.
Nessa imensa extensão de terras se encontram vários grupos negros, convivendo
e estabelecendo vínculos de parentesco. A fundação de Agreste está inserida nesse
contexto, se organizando como uma das unidades populacionais autônomas nesse
território que, através da interação com as demais, constituiu o que Costa (1999) chamou
de sociedade negra da Jahyba.

REFERÊNCIAS

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