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1, p 43-51, 2016
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Resumo: O artigo visa a discutir a prática psicanalítica junto ao paciente com câncer, focalizando a relação transferencial como
possibilidade de novas subjetivações. O evento traumático promove singulares respostas quanto aos efeitos psíquicos para cada
sujeito, tendo como saída não só o desenvolvimento de uma possível neurose traumática. Para ilustração, um caso clínico é
apresentado, através do qual se faz ressaltar o movimento histérico ao se ter a sexualidade despertada pelo adoecimento.
2 Psicólogo, Psicanalista, Membro fundador da Associação Psicanalítica Clínica Freudiana de Uberlândia (MG), Professor Associado da Graduação e Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: jlparavidini@gmail.com
Gizelle Mendes Borges Cunha, João Luiz Leitão Paravidini
de higiene pela criança; situações traumáticas que desamparo, reações identificadas como estando
colocam em risco todo o projeto identificatório do presentes numa circunstância traumática.
sujeito ao não serem metabolizadas e, dessa forma, Na constituição da situação traumática, o sujeito
integradas ao psiquismo (FAVERO, 2009). Para esta não consegue realizar a reconstrução de seu universo
discussão, o segundo enfoque é fundamental. simbólico, já que essa nova experiência não tem
Ferenczi (2011b) pontuou, no artigo “Reflexões sobre possibilidade de ser integrada ao universo de sentido
o trauma”, que haverá uma comoção psíquica diante da do sujeito, frente à ausência de representantes por
não preparação para o evento traumático. O “choque” meio dos quais tenha acesso ao psiquismo
trará a aniquilação do sentimento de si, como a não (QUINTANA, 1999).
capacidade de agir, pensar e resistir em defesa própria. Nessa perspectiva, após o tratamento, torna-se um
Essa comoção psíquica advém de o sujeito sentir-se desafio para o paciente o retomar da vida, por ela ter sido
seguro de si, o que gerou a ilusão de que determinado transformada e invadida, seja pela avalanche de
fato não poderia acontecer com ele, a exemplo da sentimentos despertados ou pelas mudanças reais na sua
ocorrência de câncer, que ainda se caracteriza como um rotina, e será nesse terreno delicado que o paciente se
adoecimento estigmatizado. Trata-se de uma doença sentirá fragilizado, angustiado e vulnerável diante da
grave que estaria projetada nos outros, até o momento constatação “do limite imposto pela presença indefectível
em que acontece com ele próprio. da finitude” (MOURA, M. T., 2013, p. 402).
Nesse sentido, o trauma parece gerar um estado Esse encontro com o limite da vida pode trazer à tona
de anestesia diante da suspensão das atividades questões emocionais adormecidas que se reacendem
psíquicas. Um estado de passividade é instalado com como uma urgência a ser atendida. Relações podem ser
a ausência de defesas, da percepção e até mesmo do revistas, projetos esquecidos ser retomados e sonhos,
pensamento. Com isso, nenhum traço mnêmico despertados. Talvez não se pense ou não sejam possíveis
existirá dessas impressões, nem mesmo no grandes transformações desse sujeito que vive um abalo
inconsciente, não sendo possível posteriormente o psíquico provocado pela doença, mas há que se considerar
acesso às origens da comoção pela memória o surgimento de possibilidades de pensar a maneira de se
(FERENCZI, 2011b). posicionar perante a vida e, assim, permanecer vivo.
Diante de toda essa repercussão no Em relação a esse assunto, Fleury (2008) traz a
funcionamento do aparelho mental, a consequência ideia de que a doença pode ser vista como uma
imediata diante do trauma é a angústia, que oportunidade de reedição da castração e o encontro
corresponde ao sentimento de não ser possível se com a morte, um despertar, considerando que o
adaptar à situação de desprazer. Com isso, o movimento da vida está pautado na incessante busca
desprazer toma grandes proporções, fazendo para o alcance da completude. Quando há um
exigências de que uma válvula de escape seja “tropeço” no traumático, deparamo-nos com a dor na
encontrada. A autodestruição surge como uma ordem do insuportável. Essa dor, ao ser constatada,
possibilidade de libertação dessa angústia, e o que se aponta para a não possibilidade do gozo pleno.
tem de mais fácil a ser destruído são a consciência e a Dessa maneira, ao se considerar a ideia de um evento
coesão das formações psíquicas; disso resulta a trazer ameaça à vida, ou ao menos se configurar como
desorientação psíquica (FERENCZI, 2011b). uma probabilidade pelo sujeito, ocorrerá a retomada da
O câncer como evento traumático e o fragilidade da condição humana e de separação ou, ainda,
funcionamento psíquico de divisão desse sujeito frente à experiência de castração
A doença, como objeto de ameaça à vida, traz e finitude. Isso acaba por abrir a possibilidade de
uma situação em que o aparelho psíquico é invadido caracterização de um trauma.
por uma profusão de estímulos contra os quais não Nesse momento se instala um espaço possível
consegue se defender, marcando o desafio do sujeito para a subjetividade, que precisará ser sustentado
no seu processo de falar daquilo que lhe escapa por outra pessoa (MOURA, M. T., 2013). Esse outro
(AVELAR, 2011). Assim, a situação de adoecimento poderá ser o psicanalista que, por meio do seu
trará sentimento de angústia e sensação de manejo em cada caso via transferência, poderá
acompanhar a construção singular de sentido para o teve também destaque na relação transferencial.
vivido pelo sujeito, com o aparecimento da sua Segundo o seu relato, o câncer na mama foi
história atravessada pela doença. Nessa articulação, a descoberto cerca de três anos atrás, em uma consulta
vida psíquica se colocará em evidência ao se ter a de rotina. O diagnóstico apontou um câncer precoce
morte em primeiro plano, o que tende a tornar com chance de cura, e nenhuma evidência da presença
possível o enfrentamento das situações impostas pela da doença foi detectada no seu corpo após a realização
doença, além do cuidado das urgências que a doença do tratamento cirúrgico e quimioterápico. Ela estava
pode despertar em cada um. em tratamento hormonal para consolidação da cura e
O analista, primeiramente, terá a função de acolher para prevenção de recidiva.
a dor inassimilável pelo paciente frente ao trauma, Margarida se referiu a dificuldades em relação à
para, em seguida, conseguir auxiliá-lo a transformá-la sua sexualidade para lidar com as suas próprias
em dor simbolizada, passível de ser dita e ouvida. A experiências. Discorreu com riqueza de detalhes a
partir disso, considerando uma ruptura que o trauma tentativa de estupro aos 20 anos de idade, no
impõe, de descontinuidade, o analista poderá abrir caminho para o trabalho. Relatou ainda outros
espaço para que ocorram construções e, por episódios de abuso sexual, dois deles na infância,
consequência, a continuidade (MOURA, S. T., 2013). atribuídos por ela à ausência da mãe nos seus
O caso de Margarida cuidados, ora deixando-a sozinha em casa, ora aos
Margarida tinha 58 anos de idade quando chegou cuidados de pessoas estranhas.
ao consultório para o primeiro atendimento e relatou Na sua família de origem, Margarida é a caçula de
se sentir com mais idade. Com o semblante sofrido, três filhos, tendo uma irmã mais velha e um irmão
cabelos brancos, roupas usadas, sem nenhum entre elas. A mãe morreu há 28 anos. Contou que
requinte, passava mesmo essa impressão. Casada há teve quadro de depressão, diagnosticado por um
mais de 30 anos, Margarida é mãe de três mulheres médico no período em que ainda se encontrava
em fase adulta. gestante. Frisou que o seu adoecimento se deu diante
Nesse atendimento, ela relatou o seu sentimento da dor sentida pela perda da sua mãe. Acreditava que
de angústia frente à possibilidade de estar sendo passara a se sentir muito sozinha, pois ela lhe dava
novamente traída pelo marido, o que associou a sensação de segurança. Vale aqui lembrar que, ao
extensas lesões presentes na sua pele. Falou do relatar episódios de abuso na infância, alegou não ter
diagnóstico de psoríase. Acreditava estar passando sido protegida por essa mãe.
por uma “crise”, com várias lesões pelo corpo, além O pai de Margarida morreu quando ela tinha
do aparecimento de um herpes na região dorsal, que apenas quatro meses de vida; ele sofria de alcoolismo
dizia doer muito. Ressaltou ainda o seu sofrimento ao e promovia um ambiente familiar muito tenso e
perceber que as filhas estão fazendo suas próprias violento. Após ser ameaçada de morte pelo marido, a
escolhas. Falou do seu medo de ser esquecida pelas mãe de Margarida fugiu com os filhos para outra
filhas quando percebe que elas não precisam mais cidade. Em seguida receberam a notícia do suicídio do
dos seus cuidados. pai. Ela então fez associação entre a saída deles e a
Ao ouvir a história de vida de Margarida, pareceu- ação do pai: “Acho que ele não conseguiu ficar sem a
nos que um duelo parecia estar marcado por ameaças gente”, e completou o relato dizendo “que triste”,
que podiam estar em todos os lados, o que gerava mas sem demonstrar emoção.
desconfiança, insegurança e conflitos com ela Margarida relatou ter tido uma infância difícil,
mesma. Esse movimento me fez lembrar uma marcada pelo adoecimento mental da irmã –
brincadeira da infância, muito praticada pelas diagnóstico de esquizofrenia. Disse que ela era muito
meninas – “bem-me-quer, mal me quer” – com as rígida e com humor inconstante. Toda a família
pétalas da flor margarida. A brincadeira acontecia prestava cuidados a essa irmã, para não contrariá-la
quando a menina ficava em dúvida quanto ao apreço em nenhum momento, por ela ter o sentimento de
sentido pelo seu amado. Margarida parecia gostar perseguição sempre presente. Em diversas
muito de “brincar” com a possibilidade de ser ou não passagens, reclamou da sensação de não ser vista ou
amada pelo outro e isso, não podendo ser diferente, considerada pela mãe, sentindo-se a filha preterida.
Nesse momento, mais uma vez ela pontuou a que, gestante de Margarida, o pai tentou matá-la afogada
ausência de cuidados e proteção esperados de sua mãe. no rio, o que a fez fugir da cidade. Margarida foi registrada
A paciente revelou ainda, posteriormente, que a irmã sem o nome do pai e se queixou de não ter tido contato
também apresenta quadro de psoríase. Abriu-se espaço nem mesmo com a família dele.
para se pensar numa forma de pertencimento a essa Quanto ao câncer, ela trouxe brevemente a
família que Margarida encontrou ao se identificar com história de sua ocorrência, sem muitos detalhes.
essa irmã por meio de adoecimentos. Demonstrou mais urgência em falar do seu momento
Quanto às suas atividades laborais, foram atual e das associações que fazia com fatos vividos no
interrompidas desde o início do tratamento do passado. O câncer talvez seja mais uma eclosão do
câncer. Disse ter entrado com pedido judicial de que se mostrou impossível de ser silenciado: uma
aposentadoria, mas a advogada esclareceu ser difícil história marcada por traumas em busca de
o ganho da causa por falta do laudo médico favorável ressignificações, além da sua sexualidade, que foi
à aposentadoria. Trabalhava com corte e costura, tem reacendida após a ocorrência do adoecimento e
todas as ferramentas em casa, inclusive a representa ameaça.
possibilidade de retomar a clientela para voltar a O câncer foi mencionado pela paciente como
executar o trabalho, mas, quando chegou para o disparador para reflexões feitas quanto à sua vida, não
atendimento, afirmou não ter ânimo. na configuração de uma neurose traumática, mas
No decorrer dos atendimentos, que tiveram numa situação que a levou a resgatar sua vida sexual.
duração de pouco mais de seis meses, Margarida Foi a maneira que ela encontrou para se manter viva e
chorou ao falar do sentimento de exclusão e do não se mortificar, como talvez fizesse antes do câncer.
desfecho da sua vida: insatisfações no casamento, na Assim, Margarida se mantinha numa posição de
vida profissional e social, sem me provocar, num desconfiança, marca da sua chegada ao mundo e a
primeiro momento, qualquer emoção. Diante de um partir da qual parece se posicionar na vida. Ficava no
choro histérico seguido pela ação de esfregar as lesões lugar de preterida, o que era mantido pelos ataques
com as mãos após a fala “olha como eu estou”, promovidos constantemente contra si mesma em
permaneci, em princípio, paralisada, perdendo por processos de somatização, inclusive os que estão
alguns segundos a capacidade de pensar, tomada por estampados na sua pele – extensas e avermelhadas
um sentimento de repulsa pela aparência das feridas. lesões da psoríase –, órgão escolhido não ao acaso: a
Não consegui vê-la ou ouvi-la; apenas as feridas se pele como fronteira que delimita o contato com o
mantinham presentes. Eu a colocava de fora, outro e como elemento que define o contorno do seu
impactada pela aparência das lesões físicas. Sua corpo, delineando as curvas de um corpo feminino.
intenção talvez fosse me chocar ou apenas se mostrar. Vários episódios ilustraram esse lugar que ela
Nesse sentido, o desafio se deu na relação ocupava, o de desprezada e não amada, que fortemente
transferencial com a possibilidade de construção de mobilizava seu sentimento de desamparo: a morte dos
um vínculo de confiança. Com a presença de uma pais; o adoecimento da irmã; a traição do marido e das
realidade externa, as lesões no seu corpo, sentia-me filhas; as dificuldades para lidar com a saída das filhas de
pressionada a sair do campo simbólico e da realidade casa; o trabalhar com costura em um cômodo
interna da paciente. Impactada pelo que estava construído no quintal, nos fundos da casa, dizendo que
vendo, via-me tentada a perguntar pelas sensações ficava isolada, de fora; e o medo, vivido na transferência,
corporais que as lesões causavam e dar orientações de que eu me cansasse dela ou que ela deixasse de ser
quanto aos cuidados médicos. Portanto, por alguns importante para mim.
instantes, eu me ausentava da posição de escuta do Margarida encontrou, como via de manifestação
que não estava sendo dito, mas ficando atenta ao que da sua dor, ou da atuação dela, o seu corpo. As lesões
estava sendo mostrado. presentes no seu corpo revelaram o seu sofrimento,
Margarida contou ainda que a sua chegada à vida dos mas um sofrimento ainda não reconhecido pelo seu
seus pais foi marcada pela desconfiança; o pai suspeitava aparelho mental, caracterizado por um estado
que ela pudesse ser fruto de uma traição. A mãe relatou emocional primitivo, diante da dificuldade de
elaboração de perdas e de alcance do simbólico. ameaça, uma vez que esse outro não é confiável. E,
Sentimentos de abandono, desamparo e de nesse caso, os outros são o pai e a mãe que não a
ausência de proteção marcaram a investigação dos protegeram, o marido que também não lhe deu
temas feminilidade, sexualidade e maternidade, o segurança, deixando-a à mercê de um lamentável
que parece ter trazido à tona conflitos edipianos destino: adoecer e/ou enlouquecer como as
importantes, através dos episódios que mulheres da sua família (a irmã e a mãe).
demonstravam ausência de um pai e desencontros Recorro à metáfora da costura e penso na linha da
com a mãe, capazes de promover o processo de vida da paciente, que se apresentava cheia de
identificação dela com os aspectos desvalorativos e embaraços; mas, no decorrer dos atendimentos, ela
mortificadores dessas figuras parentais. percebeu a ocorrência de alguns “desembaraços”, com
Ela afirmou não saber como é ser mulher e, por a possibilidade de realizar investimentos narcísicos.
isso, não soube ensinar as filhas. Ao relatar suas Diante do câncer e de outras circunstâncias da sua
preocupações quanto à vida amorosa das filhas, vida, como o retorno de viagem da vizinha, que se
culpava-se e ao mesmo tempo esperava que a mostrou revitalizada e com quem ela desconfiava que
herança familiar de casamentos fracassados se o marido estivesse tendo um caso amoroso, a
propagasse. Isso está pautado na maneira como as sexualidade de Margarida foi reavivada e o seu
mulheres da sua família são tratadas e como ela impasse com o feminino se revelou. Houve o despertar
afirma apresentar-se nas relações: como um objeto, de dores e conflitos internos, elementos edipianos que
e mais, um objeto descartável – em um movimento tiveram como manifestação uma mobilidade histérica,
característico da histeria. o não domínio de afetos eróticos.
A compulsão à repetição do que não foi elaborado Nessa perspectiva, Margarida não apresentou
trouxe consigo a manifestação da pulsão de morte, sintomas clássicos de uma neurose traumática diante
pelo seu movimento sadomasoquista, na busca de do adoecimento pelo câncer, como talvez fosse
punição, o que parece estar presente também na sua esperado. A amarração psíquica encontrada foi a
relação com o marido e com as filhas, ao se colocar produção de sintoma histérico, sua erotização,
em situações que geram sentimento de rejeição segundo Mello Neto (2012), como um elemento vital,
diante de fantasias e idealizações. Em alguns uma forma de neutralizar o trauma e abrir caminhos
momentos ela chegava a dizer: “Parece que eu busco para efetuar ligações.
o sofrimento”. Mas, em atualizações na nossa Margarida trouxe isso tão bem construído que o
relação, a compulsão à repetição ganhou significado erótico parecia estar em tudo, inclusive nas tentativas
transferencial, como possibilidade de subjetivação de conquista e retenção de objetos de amor.
dos seus sintomas. Apresentou-se sedutora e no deixar-se seduzir, como
Margarida promovia ataques aos elementos que apareceu na relação transferencial. Evidenciou o seu
poderiam conectá-la à vida, em um movimento de apreço por agraciar os fatos da sua vida, inclusive a
grande desvalorização de si mesma. A vida era vista ocorrência do câncer. Trouxe também o seu tropeço
como ameaçadora, marcada por traições e na construção da sua identidade feminina, ao buscar
possibilidades de morte. Inclusive o que seria um modelo feminino a ser copiado, mas ao mesmo
essencial para a manutenção da vida – comida e sexo tempo desbancado, e na procura de respostas para as
–, para ela, “beira” a morte. A possibilidade de se ligar perguntas não passíveis de saturação.
ao outro era encarada por ela como um perigo, já que Assim, ela fez dos cortes da vida a costura da
pode acabar em tragédia. histeria, como um arranjo frente ao que lhe escapa,
Houve ainda uma repetição de responsabilizar o produção que traz uma elaboração dita “superior”
outro pelos seus medos e por tudo que acreditava (MELLO NETO, 2012), que talvez seja a elaboração
não alcançar ou “não dar certo” na sua vida. O seu que se pode alcançar com a via da produção de uma
discurso foi pautado pela alegação de que muito neurose traumática em outros casos.
depende do outro – “preciso de alguém que me puxe” A transferência e os efeitos do trauma
–, por não lhe ter sido ensinado cuidar de si mesma.
O câncer, num primeiro momento, pode configurar-
Mas, ao mesmo tempo, isso se tornou uma grande
se como uma circunstância paralisante, ao produzir
acolhimento da pulsão, até então sem lugar, para que realizado de construções possíveis, pontes para que o
ela possa se configurar no campo do dizer, ser colocada paciente realize o atravessamento dessas fendas e
em palavra, mesmo que parcialmente. veja possibilidades para continuar a transitar na vida.
Para isso, o trabalho muito depende do processo Considerações finais
de investigação e interpretação, para que se consiga O trabalho analítico ofereceu espaço favorável ao
caminhar para fontes mais primitivas. Não se pode desenvolvimento psíquico da paciente na construção,
perder de vista a promoção da reflexividade por parte via relação transferencial, de sentidos aos sintomas
do paciente, o não poupar o paciente para que ele apresentados. Tentativas de contato com o
consiga acessar a representação da destrutividade sofrimento não representado, mas rumo à
que descarrega contra si mesmo, também tão atual simbolização, fizeram com que sentimentos
na relação transferencial. ganhassem voz, indicando outro caminho de
Além disso, o trauma evidencia lacunas no processo de comunicação e descarga que não o corpo, mudando
recordar, o que cria entraves no processo de compreensão, a rota de movimentos de destrutividade.
na busca, pelo paciente, de construções ou de respostas Frente ao câncer, esse caminho pôde se abrir
aos seus questionamentos diante do vivido traumático. pelas manifestações histéricas, para Margarida, numa
Trabalhar essa ausência implica, para o analista, acionar sua conduta de se reaver após a ocorrência do câncer e
criatividade e sua disponibilidade para auxiliar o paciente não mais se mortificar ao ter a sua sexualidade
ao longo do processo de construção. despertada. Esse processo analítico propiciou o
Nesse sentido, as contribuições clínicas de contato mais apurado com a sua história de vida e
Ferenczi se mostram extremamente úteis, na medida familiar e, posteriormente, a perspectiva de outros
em que indicam um norte para a valorização ou maior desfechos e possibilidades.
consideração da dimensão afetiva, auxiliando no O uso das metáforas foi um caminho encontrado,
processo de superação desses obstáculos que bem como dosagens de humor, estando sempre
impedem o avanço da análise. Uma dessas presente a dimensão criativa. Além disso, a dimensão
contribuições consiste na técnica ativa, usada quando afetiva, enfatizada por Ferenczi, ganhou destaque
a livre associação de ideias se encontra estagnada, e para a retomada da associação livre, tendo, na
se caracteriza pelo uso de comandos, como análise, espaço para costurar ou alinhavar histórias
intervenções do tipo aconselhamento e sugestões, na que foram atravessadas pelo adoecimento e por
intenção de provocar uma nova distribuição de episódios traumáticos, processo no qual a
energia pulsional (FERENCZI, 2011a). Outra se refere elaboração, quando possível, aconteceu.
ao “tato psicológico”, que corresponde ao “sentir
Houve resgate da parte do ego que não foi
com” e que permite aproximação entre analista e
soterrada pelo trauma, considerando que o
analisando, estando o primeiro mais próximo do
psiquismo não se estagnou, sendo, assim, possível
sofrimento do segundo, auxiliando o analista na
continuar no percurso de elaborações para que a
condução do trabalho analítico (AVELAR, 2011).
pulsão de vida ganhasse mais espaço com novas
Aspecto relevante para reflexão acerca do manejo possibilidades subjetivas, por meio de uma nova
da transferência é que ela precisa caminhar, narrativa para falar do que ocorreu, e se apropriar de
apostando na emergência da vida como potência de representações possíveis, enlaçada à experiência de
ligação e movimento de elaborações. Mas, diante do cada uma delas e pelos efeitos da fantasia – invenções
trágico do trauma, ainda é preciso suportar o construídas por essa mulher que permitiu a ela
impossível de ser desfeito. Pelo limite que é imposto reordenar as marcas herdadas e outras adquiridas no
ao processo de análise, o trauma vai deixar rastros caminhar pela vida, ou ainda suportar aquilo que não
que não serão apagados e nem mesmo silenciados, encontra representação.
permanecendo sem alcance de representações; por
isso continuará a pressionar. Mas isso pode ser mais
bem sustentado pelo paciente diante do
bordejamento feito no processo de análise em torno
da abertura provocada pelo trauma, com o trabalho
Referências
AVELAR, A. O traumático e o trabalho psicanalítico: uma
reflexão sobre o lugar do analista. Estudos de Psicanálise, n.
36, p. 29-42, 2011.