Professional Documents
Culture Documents
Renato Noguera1
UFRRJ
renatonoguera@ymail.com
Resumo
Existem personagens na literatura e/ou no cinema que retratam bem a possibilidade da
infância como experiência estar radicalmente manifestada na experiência da infância?
As pistas para enfrentar essa indagação estão no filme Kiriku e a feiticeira (1998),
dirigido por Michel Ocelot, e nos poemas da costa-marfinense Tanella Boni, Géntu
Ndaw [Sonhos de infância] (2016). O referencial teórico na filosofia da diferença, nas
formulações de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Para os pensadores franceses, tudo
começa com um problema, uma questão que precisa necessariamente ser enfrentada; a
trindade filosófica é formada pelo plano de imanência, personagens conceituais e o
conceito, este último em função do problema. Considerar a história de Kiriku e a
feiticeira como um texto filosófico, traçar seu plano de imanência, realçar os
personagens conceituais e o seu conceito mais importante. Vale destacar que o filme é
baseado num conto tradicional do Império Wolof. Um dos objetivos é descrever
parcialmente o filme que narra o conto, ressaltando os aspectos mais interessantes. Em
linhas gerais, um povo dominado por uma “malvada” feiticeira chamada Karabá que
captura todos os homens adultos, restando apenas mulheres, crianças e um homem
velho. A tese filosófica é que somente a experiência da infância atrelada à infância
como experiência é capaz de resistir às maiores crises. Kiriku é justamente o heterônimo
dessa filosofia, personagem conceitual que traz um conceito de infância – ndaw na
língua wolofe – que nos convida a pensar na infância como experiência no contexto da
experiência da infância.
1
Doutor em Filosofia, professor do Departamento de Educação e Sociedade do Programa de Pós-
Graduação em Educação, Demandas Populares e Contextos Contemporâneos e do Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da UFRRJ.
Primeiras palavras
Um dos nossos pontos de partida deste trabalho é um filme, a bem dizer, uma
adaptação audiovisual no formato de desenho animado de uma história tradicional
africana: Kiriku e a feiticeira. Para tanto, selecionamos o seguinte problema: como pode
a experiência da infância manifestar a infância como experiência? Ou ainda, como a
infância enquanto experiência emerge na experiência da infância?
A fim de interpelar a trama vivida pela personagem Kiriku, elegemos o contexto
filosófico proposto pelos franceses Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-
1992) ao lado de sucinta incursão sobre a exposição fotográfica do canário Angel Luis
Aldai (1949) acompanhada por poemas da filósofa Tanella Boni (1954), trabalho que
durou cinco anos até chegar ao público, cuja exposição nomeada em wolofe Gentú
Ndaw significa “Sonhos de Infância”.
Fonte: https://hojetemcinema.wordpress.com/tag/ficha-tecnica-kiriku-e-a-feiticeira/
Referencial filosófico
Deleuze e Guattari (1992) constituem a principal fonte de nossa orientação
teórico-metodológica neste artigo. Nessa obra, os dois pensadores afirmam que a
filosofia não está nos registros da reflexão, da comunicação, tampouco do
entendimento. Também não pode ser confundida com “ciências referenciais como
sociologia, antropologia ou psicologia”, porque a filosofia “é criação, mas não
simplesmente arte de inventar conceitos” (MOSTAFA; CRUZ, 2009, p. 24). É preciso
ainda não confundir a consistência dos conceitos filosóficos com um substantivo ou
uma definição. Um substantivo de uma língua, seja qual for, não é naturalmente um
conceito; os substantivos se propõem universais. O substantivo “criança” espera
comunicar uma ideia universal. Ora, os conceitos são necessariamente singulares, o que
os diferem do teor universal, por serem potência de antevisão de novas formas de vida,
de novos mundos. Assim, a filosofia tem por “missão” “criar novos mundos possíveis e
só a ela compete essa tarefa” (MOSTAFA; CRUZ, 2009, p. 25).
O conceito remete sempre a “um problema, a problemas sem os quais não teria
sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida da sua solução”. O
problema é o ponto de partida da filosofia, somente refletindo sobre problemas “que se
consideram mal vistos ou mal colocados (pedagogia do conceito)” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, p. 27-28) é que o conceito se faz necessário. De qualquer maneira, o
conceito não aparece isolado: é uma das instâncias daquilo que os dois pensadores
chamam de trindade filosófica.
Deleuze e Guattari caracterizam a filosofia como um exercício que envolve três
instâncias: plano de imanência, personagens conceituais e os conceitos. Para filosofar, é
preciso conjugar estes três verbos: traçar, inventar e criar. A trindade filosófica está no
cruzamento entre os verbos e as instâncias. Primeiro, traçar um plano de imanência, em
seguida inventar personagens conceituais e, por fim, criar conceitos. Sem perder de
vista que o problema é o que anima a vontade de pensar. Os conceitos precisam ser
interessantes, importantes ou notáveis; um conceito filosófico nunca precisa ser
“verdadeiro” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 108). Um conceito é criado em função
de um problema para que possamos pensar por meio dele, o que o torna uma instância
operativa, catalisadora e capaz de agenciar possibilidades.
As personagens conceituais são criadoras de conceitos como heterônimos
das(os) filósofas(os), perfazendo aquilo que os pensadores nomeiam ocupação do plano
de imanência e participação em sua instauração. Por sua vez, o plano de imanência é
justamente um território que emerge do caos, um tipo de configuração que nos permite
orientarmo-nos no pensamento. Não representa exatamente um conceito pensado ou
pensável, mas uma imagem do que significa pensar. O plano de imanência é absoluto,
não se caracteriza por ser um projeto ou um programa, tampouco um meio para alguma
coisa, mas um suporte dos conceitos. As personagens conceituais povoam esse suporte,
podendo apresentar-se como simpáticas ou antipáticas. Ou seja, em favor da(do)
filósofa(o) quando são personagens simpáticas e antipáticas quando resistem e rivalizam
com o heterônimo da(o) filósofa(o).
2
É importante assistir o filme antes de prosseguir na leitura, segue o link:
https://www.youtube.com/watch?v=RZEIapOVY_c
Figura 02 – Kiriku
Fonte:http://static.cineclick.com.br/sites/videos/imagens/2bf34027afb49b
9ba9f294b6144b5ab5.jpg
Em que consiste esse plano? Pois bem, o plano de imanência wolof é uma
possibilidade afroperspectivista. Não cabe exatamente um estudo comparativo; mas,
vale a pena exibir um contraste. Os registros europeus de histórias endereçadas para
crianças tais como o clássico dos irmãos Grimm, em que Jacob Grimm (1785-1863) e
Wilhelm Grimm (1786-1859) catalogam dezenas de histórias que governantas, amas e
mães contavam para as crianças. No livro publicado em 1812, pela primeira vez
mer tudo o tempo todo, as consequências podem ser terríveis, como uma bruxa aparecer
para jantar irmã e irmão, caso engordassem. A Bela adormecida diz para as meninas que
a menstruação vai levá-las para um mundo completamente diferente, a adolescência
parece com uma eternidade sonolenta até que a moça de torne uma jovem adulta pronta
para encontrar seu príncipe encantado.
No caso da aventura de Kiriku, uma história popular ocorre no Império Wolof –
civilização formada por cinco reinos: Waalo, Kayor, Baol, Sine e Saloum
aproximadamente de 1360 a 1890 na África ocidental. A história da África
(M’BOKOLO, 2009, 2011) ensina que por séculos a imponência dessa civilização era
comentada por todo o continente. Pois bem, interessante notar que durante o século XIX
os irmãos Grimm publicaram em 1812, época que os wolofes resistiam às investidas
francesas e continuavam contando as aventuras de Kiriku para adultos e crianças. Salta
aos olhos de quem assiste ao filme o fato de a menor criança da aldeia, a mais infantil
dentre todas, ser justamente a mais apta a resolver os problemas. De todo modo, as
outras crianças, assim como Kiriku, não são tuteladas pelos adultos. Esses são
apresentados de modos diversos; mas, fica bastante explícita a ideia de que alguns
sofrem de adultescimento, tipo de adulteração que os torna incapazes de pensar além
das cercanias ordinárias já apresentadas pela opinião comum. Apenas, a criança mais
investida de infância – Kiriku – consegue caminhar pelas estradas interditadas. Em
geral, os adultos dizem que não se pode passar por elas. Porém, a mãe de Kiriku e o seu
avô dizem que justamente por ele ser criança, por ser pequeno, isto é, por conta de sua
infância é que pode passar pelos lugares que adultos não imaginam. Ora, o plano de
imanência wolof é afroperspectivista. A sua consistência está em ser um ponto de vista
de criança enxergando o mundo adulto gigante e inóspito com brechas, as quais, por sua
vez, são impossíveis de serem dribladas por adultos. Somente as pessoas pequenas
podem passar pelas frestas estreitas.
O plano de imanência é habitado por personagens conceituais: Kiriku, o
personagem simpático que advoga a filosofia wolof da infância, e Karabá, a rival
antipática. Também existem personagens que aparecem em grupos: as outras crianças;
as mulheres; os guerreiros; as sentinelas de Karabá. No filme, descobrimos no fim da
trama que as sentinelas de Karabá são os guerreiros enfeitiçados. Além dessas, há as
personagens individuais: o Velho da Aldeia e outras três que existem em função
relacional parental com Kiriku, a mãe, o tio e o avô. Kiriku funciona como heterônimo
da concepção de infância da filosofia wolof. O avô é um tipo de mentor, assim como a
mãe, que funciona como aliado pró-personagem simpático. Karabá é a rival, a
personagem conceitual antipática que oferece resistência, a qual à primeira vista supõe-
se ser vencida por Kiriku.
Ora, o combate e a disputa não são necessariamente sinônimos de uma
competição em que um lado deve sair vitorioso. Karabá funciona como antagonista de
Kiriku, o que proporciona um encontro ou choque infancializante. Se as outras crianças
elogiam e objetam Kiriku, algumas vezes dizem: “como ele é pequeno” ou, “ele é um
bebê, ele é muito criança”. Em outros momentos, celebram porque são salvas pelo
menino; mas, logo o esquecem. Essa mesma relação de ambiguidade se dá com as
mulheres da aldeia. Uma das mulheres afirma categoricamente que o menino nada
poderá fazer para ajudar, por ele ser muito pequeno. As sentinelas de Karabá tentam
capturar o menino, elas são típicas personagens antipáticas assistentes.
O Velho da Aldeia, por sua vez, é um personagem conceitual que inspira
equívoco: no início parece sábio, adiante assemelha-se a um bobo – um adultescido.
Vale analisarmos sobre esse conceito trazido pelo Velho da Aldeia. Por adultescimento,
entendemos um processo de desqualificação e esquecimento da infância, o que significa
abandoná-la por uma confusão existencial. Ou seja, o Velho é um personagem
conceitual do adultescimento consumado, um adulto que está colonizado demais pela
“maturidade”. O tio de Kiriku segue o mesmo caminho, apesar de seu sobrinho ter lhe
salvado de Karabá, o jovem adulto está adultescendo.
Karabá, a feiticeira, é justamente a “porta-voz” do conceito de adultescimento, o
que a faz poderosa e perigosa para a aldeia. Na trama, podemos aprender com o Velho
Sábio da Montanha que dialoga com o neto sobre a insistente pergunta:
Kiriku: – Por que Karabá, a feiticeira é má?
Velho Sábio da Montanha: – Porque ela sofre, ela sofre dia e noite sem parar.
Kiriku: – Por quê?
Velho Sábio da Montanha: – Porque enfiaram na coluna vertebral dela um
espinho envenenado.
Kiriku: – Por quê?
Velho Sábio da Montanha: – Você está certo em perguntar “por que” a cada
resposta minha, mas de porque em porque voltaremos até a criação do mundo. E
com você mais longe ainda, sem que tenhamos tido tempo de falar de Karabá, a
feiticeira, que é o que lhe interessa.
Kiriku concorda e o Velho Sábio da Montanha explica que o espinho colocado
por alguns homens dá os poderes mágicos. Com isso temos um quadro filosófico que
desnaturaliza a brutalidade da feiticeira. Karabá está dilacerada por várias experiências
negativas com homens que quiseram dominá-la e explorá-la. Isso a tornou sagaz e
poderosa para desconfiar dos homens, passando a desconfiar também das outras
mulheres e das crianças.
O adultescimento é um processo de descrédito em relação aos outros,
estabelecendo que a única relação possível é a de dominação, preenchendo o binômio:
senhor(a) e servo(a). Kiriku, deitado no colo do avô, pede-lhe um talismã. O Velho
responde que a força dele vem da ausência de talismã: Karabá vence os que creem estar
protegidos e não duvidam das coisas. Entretanto, “ela fica desarmada diante da
inocência pura e de uma inteligência sempre atenta e livre”.
O adultescimento é o conceito rival da infância. Considerando, além das
contribuições de Deleuze e Guattari (1997), as ideias de Giorgio Agambem (2005),
Sônia Krammer (1995), Walter Kohan (2007) e Anete Abramowicz, Diana Levcovitz,
Tatiane Consentino Rodrigues (2009), conjecturamos o seguinte: o adultescer tem início
com a restrição da infância a uma etapa cronológica, esquecendo-se de seu caráter de
condição de possibilidade de “rupturas, experiência de transformação e sentido das
metamorfoses de qualquer ser humano, sem importar a idade” (CARVALHO, 2012, p.
20). Ora, contra o adultescimento, há um tipo de adoecimento existencial que diminui a
infância.
De volta ao problema que mobiliza este trabalho, podemos recolocá-lo num
cruzamento de cinco questões: 1) O que é infância? 2) O que quer dizer experiência da
infância? 3) O que significa a infância como experiência? 4) É possível que a
experiência da infância e a infância como experiência constituam o mesmo sujeito? 5) A
infância é indispensável para instauração de novos modos vida?
Fonte: http://thediplomatinspain.com/en/casa-arabe-and-casa-africa-
exhibit-gentu-ndaw-childhood-dreams/
Referências
ALDAI, Angel; BONI, Tanella (poemas). Exposição fotográfica Géntu Ndaw (Sonhos
de Infância) Casa Árabe, Madrid, 23/05/2016 a 17/07/2016.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980.
CARVALHO, Janete. “Potência do ‘olhar’ e da ‘vox’ não dogmáticos dos professores
na produção dos territórios curriculares no cotidiano escolar do ensino fundamental” In
CARVALHO, Janete. Infâncias em territórios curriculares. Petrópolis/RJ: DP et Alii,
2012.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34,
1992.
GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhem. Contos de fadas dos irmãos Grimm. São Paulo:
Iluminuras, 2001.
KI-ZERBO, Joseph (Org.). História Geral da África. Volumes I, II, III, IV. São Paulo:
Ática/Unesco, 1982.
MOSTAFA, Solange Mustel; CRUZ, Denise Viunisk da Nova. Para ler a filosofia de
Gilles Deleuze e Félix Guattari. Campinas: Alínea, 2009.