You are on page 1of 11

KIRIKU: HETERÔNIMO DA INFÂNCIA

COMO EXPERIÊNCIA E DA EXPERIÊNCIA DA INFÂNCIA

Renato Noguera1
UFRRJ
renatonoguera@ymail.com

Resumo
Existem personagens na literatura e/ou no cinema que retratam bem a possibilidade da
infância como experiência estar radicalmente manifestada na experiência da infância?
As pistas para enfrentar essa indagação estão no filme Kiriku e a feiticeira (1998),
dirigido por Michel Ocelot, e nos poemas da costa-marfinense Tanella Boni, Géntu
Ndaw [Sonhos de infância] (2016). O referencial teórico na filosofia da diferença, nas
formulações de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Para os pensadores franceses, tudo
começa com um problema, uma questão que precisa necessariamente ser enfrentada; a
trindade filosófica é formada pelo plano de imanência, personagens conceituais e o
conceito, este último em função do problema. Considerar a história de Kiriku e a
feiticeira como um texto filosófico, traçar seu plano de imanência, realçar os
personagens conceituais e o seu conceito mais importante. Vale destacar que o filme é
baseado num conto tradicional do Império Wolof. Um dos objetivos é descrever
parcialmente o filme que narra o conto, ressaltando os aspectos mais interessantes. Em
linhas gerais, um povo dominado por uma “malvada” feiticeira chamada Karabá que
captura todos os homens adultos, restando apenas mulheres, crianças e um homem
velho. A tese filosófica é que somente a experiência da infância atrelada à infância
como experiência é capaz de resistir às maiores crises. Kiriku é justamente o heterônimo
dessa filosofia, personagem conceitual que traz um conceito de infância – ndaw na
língua wolofe – que nos convida a pensar na infância como experiência no contexto da
experiência da infância.

Palavras-chave: Kiriku; Infância (Ndaw); Infância (Infantia).

1
Doutor em Filosofia, professor do Departamento de Educação e Sociedade do Programa de Pós-
Graduação em Educação, Demandas Populares e Contextos Contemporâneos e do Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da UFRRJ.
Primeiras palavras
Um dos nossos pontos de partida deste trabalho é um filme, a bem dizer, uma
adaptação audiovisual no formato de desenho animado de uma história tradicional
africana: Kiriku e a feiticeira. Para tanto, selecionamos o seguinte problema: como pode
a experiência da infância manifestar a infância como experiência? Ou ainda, como a
infância enquanto experiência emerge na experiência da infância?
A fim de interpelar a trama vivida pela personagem Kiriku, elegemos o contexto
filosófico proposto pelos franceses Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-
1992) ao lado de sucinta incursão sobre a exposição fotográfica do canário Angel Luis
Aldai (1949) acompanhada por poemas da filósofa Tanella Boni (1954), trabalho que
durou cinco anos até chegar ao público, cuja exposição nomeada em wolofe Gentú
Ndaw significa “Sonhos de Infância”.

Figura 01 – Cartaz do filme Kirikou et la sorciere no Festival de Annecy em 1999

Fonte: https://hojetemcinema.wordpress.com/tag/ficha-tecnica-kiriku-e-a-feiticeira/

A partir dessas referências, vamos encaminhar leitoras e leitores para uma


abordagem que faça de “Kiriku” o nome de infância (ndaw) capaz de ser uma
experiência da infância no contexto de sua própria infância como experiência.

Referencial filosófico
Deleuze e Guattari (1992) constituem a principal fonte de nossa orientação
teórico-metodológica neste artigo. Nessa obra, os dois pensadores afirmam que a
filosofia não está nos registros da reflexão, da comunicação, tampouco do
entendimento. Também não pode ser confundida com “ciências referenciais como
sociologia, antropologia ou psicologia”, porque a filosofia “é criação, mas não
simplesmente arte de inventar conceitos” (MOSTAFA; CRUZ, 2009, p. 24). É preciso
ainda não confundir a consistência dos conceitos filosóficos com um substantivo ou
uma definição. Um substantivo de uma língua, seja qual for, não é naturalmente um
conceito; os substantivos se propõem universais. O substantivo “criança” espera
comunicar uma ideia universal. Ora, os conceitos são necessariamente singulares, o que
os diferem do teor universal, por serem potência de antevisão de novas formas de vida,
de novos mundos. Assim, a filosofia tem por “missão” “criar novos mundos possíveis e
só a ela compete essa tarefa” (MOSTAFA; CRUZ, 2009, p. 25).
O conceito remete sempre a “um problema, a problemas sem os quais não teria
sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida da sua solução”. O
problema é o ponto de partida da filosofia, somente refletindo sobre problemas “que se
consideram mal vistos ou mal colocados (pedagogia do conceito)” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, p. 27-28) é que o conceito se faz necessário. De qualquer maneira, o
conceito não aparece isolado: é uma das instâncias daquilo que os dois pensadores
chamam de trindade filosófica.
Deleuze e Guattari caracterizam a filosofia como um exercício que envolve três
instâncias: plano de imanência, personagens conceituais e os conceitos. Para filosofar, é
preciso conjugar estes três verbos: traçar, inventar e criar. A trindade filosófica está no
cruzamento entre os verbos e as instâncias. Primeiro, traçar um plano de imanência, em
seguida inventar personagens conceituais e, por fim, criar conceitos. Sem perder de
vista que o problema é o que anima a vontade de pensar. Os conceitos precisam ser
interessantes, importantes ou notáveis; um conceito filosófico nunca precisa ser
“verdadeiro” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 108). Um conceito é criado em função
de um problema para que possamos pensar por meio dele, o que o torna uma instância
operativa, catalisadora e capaz de agenciar possibilidades.
As personagens conceituais são criadoras de conceitos como heterônimos
das(os) filósofas(os), perfazendo aquilo que os pensadores nomeiam ocupação do plano
de imanência e participação em sua instauração. Por sua vez, o plano de imanência é
justamente um território que emerge do caos, um tipo de configuração que nos permite
orientarmo-nos no pensamento. Não representa exatamente um conceito pensado ou
pensável, mas uma imagem do que significa pensar. O plano de imanência é absoluto,
não se caracteriza por ser um projeto ou um programa, tampouco um meio para alguma
coisa, mas um suporte dos conceitos. As personagens conceituais povoam esse suporte,
podendo apresentar-se como simpáticas ou antipáticas. Ou seja, em favor da(do)
filósofa(o) quando são personagens simpáticas e antipáticas quando resistem e rivalizam
com o heterônimo da(o) filósofa(o).

Kiriku como heterônimo das infâncias


Nós partimos de um axioma hipotético: “Toda história, esteja em que mídia for,
pode ser filosofia”. Vale destacar que axioma é uma sentença corriqueira na área de
matemática que denota uma evidência verdadeira e necessária. Ora, um axioma é
indemonstrável, um tipo de aposta ou “crença primeira”. Como hipótese, é sempre uma
possibilidade, alguma coisa que precisa ser obrigatoriamente demonstrada e provada.
Um tipo de conjectura. Daí, a afirmação de que partirmos de um axioma hipotético
constitui um contundente paradoxo.
A história que vamos ler filosoficamente. Ou ainda, a história que aqui tratamos
como um texto de filosofia se chama Kiriku e a feiticeira. Por isso pedimos que leitoras
e leitores não avancem deste ponto sem assistir ao filme, o desenho animado de 75
minutos disponível no youtube2. A produção envolveu três países, França, Bélgica e
Luxemburgo. O diretor é um francês que passou parte da infância e juventude na África
ocidental. Em resumo, a sinopse diz que um menino recém-nascido, a criança mais nova
de uma aldeia africana, fala e anda desde que nasceu. Essa criança se incumbe de
enfrentar uma poderosa feiticeira chamada Karabá. Ela eliminou todos os guerreiros da
aldeia, incluindo o seu pai, secou a fonte d’água e apoderou-se do ouro das mulheres.
Importante notar que o menino é visto como um bebê. Porém, seus feitos impõem um
tratamento ambíguo: Kiriku é ovacionado duas vezes por salvar outras crianças de uma
armadilha de Karabá, também é celebrado quando consegue entrar na fonte e
restabelece a saída da água. Entretanto, seus feitos heroicos são comemorados muito
rapidamente. A maior parte do tempo, toda a aldeia o trata com descrédito, exceto sua
mãe.

2
É importante assistir o filme antes de prosseguir na leitura, segue o link:
https://www.youtube.com/watch?v=RZEIapOVY_c
Figura 02 – Kiriku

Fonte:http://static.cineclick.com.br/sites/videos/imagens/2bf34027afb49b
9ba9f294b6144b5ab5.jpg

Na busca para livrar a aldeia de Karabá, o menino consegue descobrir com o


avô, o Velho Sábio da Montanha, o motivo pelo qual a feiticeira ataca a aldeia: “Karabá
é má, porque sofre uma dor incrível”. Por fim, Kiriku ajuda Karabá a se restabelecer,
retirando-lhe a causa da dor. Em seguida, por meio de um beijo torna-se adulto e retorna
enamorado para a aldeia com Karabá e os guerreiros que estavam desaparecidos.
É preciso começar pelo plano de imanência. Aqui o denominamos de wolof,
nome de uma etnia, um povo que vive na África ocidental, principalmente no Senegal.
No entanto, o plano de imanência não pode ser confundido como uma representação
factual de um território geográfico, tal como elucidamos no artigo Denegrindo a
filosofia, ao tratar do tema:
A consistência do plano de imanência está intimamente ligada à imagem do
pensamento e aos elementos pré-filosóficos. “Deleuze o definira, previamente, ao
mesmo tempo como horizonte e como solo” (PRADO JR., 2000, p. 308). Para fins de
enegrecimento (aumento da compreensão e do entendimento), o plano de imanência
como solo da produção filosófica deve ser considerado como pré-filosófico. Enquanto
horizonte, o plano de imanência deve ser tomado como imagem do pensamento. Todo
plano de imanência tem natureza pré-filosófica e mantém uma relação inseparável com
a não-filosofia, isto é, todo plano de imanência é uma imagem do pensamento. A
afroperspectividade é uma imagem do pensamento, uma maneira de estabelecer o “que
significa pensar” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 53) e como tal, um modo de
reivindicar e selecionar o mais característico do pensamento: criar. Enquanto plano de
imanência a afroperspectividade é “o movimento infinito ou o movimento do infinito”
(Ibidem), movimento infinito de africanidades, movimento de incontáveis
desterritorializações e reterritorializações africanas. [...] sua peculiaridade está assentada
em ritmos que emanam de territorializações, desterritorializações e reterritorializações
de consistências africanas, africanizantes e africanizadas (NOGUERA, 2011, p. 7-8).

Em que consiste esse plano? Pois bem, o plano de imanência wolof é uma
possibilidade afroperspectivista. Não cabe exatamente um estudo comparativo; mas,
vale a pena exibir um contraste. Os registros europeus de histórias endereçadas para
crianças tais como o clássico dos irmãos Grimm, em que Jacob Grimm (1785-1863) e
Wilhelm Grimm (1786-1859) catalogam dezenas de histórias que governantas, amas e
mães contavam para as crianças. No livro publicado em 1812, pela primeira vez
mer tudo o tempo todo, as consequências podem ser terríveis, como uma bruxa aparecer
para jantar irmã e irmão, caso engordassem. A Bela adormecida diz para as meninas que
a menstruação vai levá-las para um mundo completamente diferente, a adolescência
parece com uma eternidade sonolenta até que a moça de torne uma jovem adulta pronta
para encontrar seu príncipe encantado.
No caso da aventura de Kiriku, uma história popular ocorre no Império Wolof –
civilização formada por cinco reinos: Waalo, Kayor, Baol, Sine e Saloum
aproximadamente de 1360 a 1890 na África ocidental. A história da África
(M’BOKOLO, 2009, 2011) ensina que por séculos a imponência dessa civilização era
comentada por todo o continente. Pois bem, interessante notar que durante o século XIX
os irmãos Grimm publicaram em 1812, época que os wolofes resistiam às investidas
francesas e continuavam contando as aventuras de Kiriku para adultos e crianças. Salta
aos olhos de quem assiste ao filme o fato de a menor criança da aldeia, a mais infantil
dentre todas, ser justamente a mais apta a resolver os problemas. De todo modo, as
outras crianças, assim como Kiriku, não são tuteladas pelos adultos. Esses são
apresentados de modos diversos; mas, fica bastante explícita a ideia de que alguns
sofrem de adultescimento, tipo de adulteração que os torna incapazes de pensar além
das cercanias ordinárias já apresentadas pela opinião comum. Apenas, a criança mais
investida de infância – Kiriku – consegue caminhar pelas estradas interditadas. Em
geral, os adultos dizem que não se pode passar por elas. Porém, a mãe de Kiriku e o seu
avô dizem que justamente por ele ser criança, por ser pequeno, isto é, por conta de sua
infância é que pode passar pelos lugares que adultos não imaginam. Ora, o plano de
imanência wolof é afroperspectivista. A sua consistência está em ser um ponto de vista
de criança enxergando o mundo adulto gigante e inóspito com brechas, as quais, por sua
vez, são impossíveis de serem dribladas por adultos. Somente as pessoas pequenas
podem passar pelas frestas estreitas.
O plano de imanência é habitado por personagens conceituais: Kiriku, o
personagem simpático que advoga a filosofia wolof da infância, e Karabá, a rival
antipática. Também existem personagens que aparecem em grupos: as outras crianças;
as mulheres; os guerreiros; as sentinelas de Karabá. No filme, descobrimos no fim da
trama que as sentinelas de Karabá são os guerreiros enfeitiçados. Além dessas, há as
personagens individuais: o Velho da Aldeia e outras três que existem em função
relacional parental com Kiriku, a mãe, o tio e o avô. Kiriku funciona como heterônimo
da concepção de infância da filosofia wolof. O avô é um tipo de mentor, assim como a
mãe, que funciona como aliado pró-personagem simpático. Karabá é a rival, a
personagem conceitual antipática que oferece resistência, a qual à primeira vista supõe-
se ser vencida por Kiriku.
Ora, o combate e a disputa não são necessariamente sinônimos de uma
competição em que um lado deve sair vitorioso. Karabá funciona como antagonista de
Kiriku, o que proporciona um encontro ou choque infancializante. Se as outras crianças
elogiam e objetam Kiriku, algumas vezes dizem: “como ele é pequeno” ou, “ele é um
bebê, ele é muito criança”. Em outros momentos, celebram porque são salvas pelo
menino; mas, logo o esquecem. Essa mesma relação de ambiguidade se dá com as
mulheres da aldeia. Uma das mulheres afirma categoricamente que o menino nada
poderá fazer para ajudar, por ele ser muito pequeno. As sentinelas de Karabá tentam
capturar o menino, elas são típicas personagens antipáticas assistentes.
O Velho da Aldeia, por sua vez, é um personagem conceitual que inspira
equívoco: no início parece sábio, adiante assemelha-se a um bobo – um adultescido.
Vale analisarmos sobre esse conceito trazido pelo Velho da Aldeia. Por adultescimento,
entendemos um processo de desqualificação e esquecimento da infância, o que significa
abandoná-la por uma confusão existencial. Ou seja, o Velho é um personagem
conceitual do adultescimento consumado, um adulto que está colonizado demais pela
“maturidade”. O tio de Kiriku segue o mesmo caminho, apesar de seu sobrinho ter lhe
salvado de Karabá, o jovem adulto está adultescendo.
Karabá, a feiticeira, é justamente a “porta-voz” do conceito de adultescimento, o
que a faz poderosa e perigosa para a aldeia. Na trama, podemos aprender com o Velho
Sábio da Montanha que dialoga com o neto sobre a insistente pergunta:
Kiriku: – Por que Karabá, a feiticeira é má?
Velho Sábio da Montanha: – Porque ela sofre, ela sofre dia e noite sem parar.
Kiriku: – Por quê?
Velho Sábio da Montanha: – Porque enfiaram na coluna vertebral dela um
espinho envenenado.
Kiriku: – Por quê?
Velho Sábio da Montanha: – Você está certo em perguntar “por que” a cada
resposta minha, mas de porque em porque voltaremos até a criação do mundo. E
com você mais longe ainda, sem que tenhamos tido tempo de falar de Karabá, a
feiticeira, que é o que lhe interessa.
Kiriku concorda e o Velho Sábio da Montanha explica que o espinho colocado
por alguns homens dá os poderes mágicos. Com isso temos um quadro filosófico que
desnaturaliza a brutalidade da feiticeira. Karabá está dilacerada por várias experiências
negativas com homens que quiseram dominá-la e explorá-la. Isso a tornou sagaz e
poderosa para desconfiar dos homens, passando a desconfiar também das outras
mulheres e das crianças.
O adultescimento é um processo de descrédito em relação aos outros,
estabelecendo que a única relação possível é a de dominação, preenchendo o binômio:
senhor(a) e servo(a). Kiriku, deitado no colo do avô, pede-lhe um talismã. O Velho
responde que a força dele vem da ausência de talismã: Karabá vence os que creem estar
protegidos e não duvidam das coisas. Entretanto, “ela fica desarmada diante da
inocência pura e de uma inteligência sempre atenta e livre”.
O adultescimento é o conceito rival da infância. Considerando, além das
contribuições de Deleuze e Guattari (1997), as ideias de Giorgio Agambem (2005),
Sônia Krammer (1995), Walter Kohan (2007) e Anete Abramowicz, Diana Levcovitz,
Tatiane Consentino Rodrigues (2009), conjecturamos o seguinte: o adultescer tem início
com a restrição da infância a uma etapa cronológica, esquecendo-se de seu caráter de
condição de possibilidade de “rupturas, experiência de transformação e sentido das
metamorfoses de qualquer ser humano, sem importar a idade” (CARVALHO, 2012, p.
20). Ora, contra o adultescimento, há um tipo de adoecimento existencial que diminui a
infância.
De volta ao problema que mobiliza este trabalho, podemos recolocá-lo num
cruzamento de cinco questões: 1) O que é infância? 2) O que quer dizer experiência da
infância? 3) O que significa a infância como experiência? 4) É possível que a
experiência da infância e a infância como experiência constituam o mesmo sujeito? 5) A
infância é indispensável para instauração de novos modos vida?

Conclusões (as componentes do conceito de infância/ndaw)


Em 2008, o projeto Géntu Ndaw começou percorrendo mais de 20.000 km, ao
passar por países como Burkina Faso, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Mali, Níger e
Togo, o que proporcionou ao fotógrafo Angel Luis Aldai visitar dezenas de povos. A
filósofa costa marfinense Tanella Boni escreveu poemas para acompanhar fotos de
crianças das etnias wolofes, asantes, fulas, dentre outras. A produção do material
terminou em 2013. Dois anos depois, Aldai iniciou uma série de exposições do trabalho
fotográfico. De cinco de fevereiro a 30 de abril de 2015, poemas e fotos foram expostos
na Casa da África, Madrid na Espanha. No ano seguinte, a Casa Árabe abrigou a
exposição em suas instalações na cidade de Madri – no período de 23 de maio a 17 de
julho de 2016.

Figura 03 – Cartaz da Exposição na Casa Árabe em Madri, 2016

Fonte: http://thediplomatinspain.com/en/casa-arabe-and-casa-africa-
exhibit-gentu-ndaw-childhood-dreams/

As fotos, assim como os poemas, trazem uma perspectiva muito interessante


sobre a infância, uma vez que na modernidade ocidental a infância foi corriqueiramente
apresentada como algo a ser superado. Fazendo da infância uma fase em que se tem
direito à brincadeira, mas, principalmente, à educação escolar, fotos e poemas são
decisivos para preparação de uma criança para o mundo adulto.
A infância, assim, se justifica como tempo de preparação para a criança se tornar adulta
e alçar-se ao estatuto de sujeito completo. Esta ideia de negatividade reproduz-se com
base em uma série de normativizações – operacionalizadas por meio de diretrizes,
legislações e do mercado cultural para a infância – que também difunde uma ideia
universal de infância e de ser criança, desconsiderando as desigualdades sociais e as
diferenças culturais (ARENHART, 2016, p. 23).

Kiriku é heterônimo de outra infância. Daí, encontramos subsídios práticos e


teóricos nas fotos de Aldai e poemas de Boni. Justamente na própria palavra “ndaw”.
Kiriku é, justamente, a infância como experiência e a própria experiência da infância
porque não pode vivenciar infantia. Mas, ndaw. Se a palavra em sua gênese latina quer
dizer “ausência de fala”, em wolof, a palavra consagra uma singularidade presente nos
verbos correr e levar. À medida que a palavra “daw” significa “corrida”, ao se
acrescentar a letra “n”, transforma-se em infância. O sentido de corrida dentro do
contexto cultural aproxima-se de devir. Dizer “corrida” no radical da palavra infância
aponta para a singularidade do conceito imanado por Kiriku. A infância é experiência de
percorrer caminhos. Na história, Kiriku corre bastante, a ele percorre vários caminhos.
O conceito de infância significa (per)correr (pelos) caminhos. Infância é movimento, é
estar em movimento. Os poemas de Boni expressam o movimento da infância,
justamente a característica singular de Kiriku: estar em movimento! A filósofa diz que a
infância é a expressão do movimento, uma vez que a singularidade do conceito de
infância está ancorada no movimento. O adultescimento é seu oposto, falta de gosto
pelo movimento, incapacidade de deixar o lugar em que se está. A infância é justamente
a capacidade de ocupar vários lugares. Assim, uma pedagogia do conceito só pode ser
conduzida por alguém que vive a experiência da infância, alguém em movimento. Como
Kiriku é criança, ele consegue vivenciar a experiência da infância, movimentando-se no
percurso próprio da infância como experiência: criando novos caminhos.

Referências

ABRAMOWICZ, Anete; LEVCOVITZ, Diana; RODRIGUES, Tatiane. “Infâncias em


educação infantil” In Pro-Posições, Campinas, v. 20, n. 3 (60), p. 179-197, set./dez.
2009.

AGAMBEM, Giorgio. Infância e história:destruição da experiência e origem da


história. Belo Horizonte:UFMG/Humanitas, 2005.

ALDAI, Angel; BONI, Tanella (poemas). Exposição fotográfica Géntu Ndaw (Sonhos
de Infância) Casa Árabe, Madrid, 23/05/2016 a 17/07/2016.

ARENHART, Deise. Culturas infantis e desigualdades sociais: questões de geração e


classe social em duas escolas cariocas. Petrópolis/RJ: Vozes, 2016.

BONI, Tanella. “A dignidade da pessoa humana: da integridade do corpo e da luta para


o reconhecimento”. Revista tempo brasileiro, jan.-mar. n. 168. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2007.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980.
CARVALHO, Janete. “Potência do ‘olhar’ e da ‘vox’ não dogmáticos dos professores
na produção dos territórios curriculares no cotidiano escolar do ensino fundamental” In
CARVALHO, Janete. Infâncias em territórios curriculares. Petrópolis/RJ: DP et Alii,
2012.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34,
1992.

GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhem. Contos de fadas dos irmãos Grimm. São Paulo:
Iluminuras, 2001.

KOHAN, Walter. Infância, estrangeiridade e ignorância: ensaios de filosofia e


educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

KRAMER, Sônia. A infância e sua singularidade. In: BRASIL. Ministério da


Educação. Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de
6 anos de idade. Brasília, DF, 2006. p. 19-21.

KI-ZERBO, Joseph (Org.). História Geral da África. Volumes I, II, III, IV. São Paulo:
Ática/Unesco, 1982.

M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Salvador/São Paulo:


EDUFBA/Casa das Áfricas, 2009. Tomo I (Até o século XVIII).

M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Salvador/São Paulo:


EDUFBA/Casa das Áfricas, 2011. Tomo II (Do século XIX aos nossos dias).

MOSTAFA, Solange Mustel; CRUZ, Denise Viunisk da Nova. Para ler a filosofia de
Gilles Deleuze e Félix Guattari. Campinas: Alínea, 2009.

NOGUERA, Renato. “Denegrindo a filosofia: o pensamento como coreografia de


conceitos afroperspectivistas”. In Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia –
Brasil, v.4, n.2, dezembro/2011, pp. 1-19.

You might also like