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A

Helder Nogueira Andrade*

Revista de Filosofia
Hegel e Vico: o sentido da
história

RESUMO

Este artigo analisa as reflexões de Hegel e Vico sobre o sentido da história enquanto processo
compreendido filosoficamente pelo movimento em que o universal está expresso no particular e o
devir histórico desvela uma unidade inerente ao estabelecimento do homem enquanto sujeito
histórico no mundo. Em Vico a história é um processo gradual de humanização do homem, onde
através de elementos como a filologia, podemos compreender o sentido dessa humanização. Em
Hegel devemos compreender o sentido da história pelo movimento dialético onde as contradições
se evidenciam e a Razão é desvelada garantindo um desdobramento progressivo da liberdade.

Palavras-chave: Hegel; Vico; Teorias da História.

ABSTRACT

This article compares the accounts of the historical process proposed by Vico and Hegel. They both
share the vision that human beings are subjects of history and that there is a unity in the unfolding
of history. It will be claimed, nonetheless, that whereas Vico thinks history as a process of progressive
humanization that can be understood with the help of philology, Hegel believes it to be the place
where the contradiction of the dialectical process progressively manifests reason and asserts
freedom.
  
Key words: Hegel; Vico; Theories of History.

* Mestrando em Filosofia, Universidade Estadual do Ceará

28 Argumentos, Ano 1, N°.1 - 2009


Introdução de e utilidade comuns os indivíduos buscam
uma integração em uma comunidade política.
Este trabalho tem por finalidade refletir No pensamento hegeliano, devemos bus-
sobre a filosofia da história à luz das reflexões car perceber um movimento dialético na histó-
de Hegel e Vico, no sentido de compreender o ria e um sentido racional, enquanto fio condu-
processo histórico pela reflexão filosófica. tor do processo histórico, que garante a reali-
Para esses pensadores a História é movi- zação da idéia de liberdade, mas não com um
da pela busca de sentido, ou seja, pela deci- fim determinado, pois tal fio condutor apenas
fração do universal por trás do particular arti- nos mostra que há uma Razão na história. So-
culando a totalidade dos modos de ser e das bre isso, afirmou Hegel:
criações humanas no mundo. É realmente esse desejo pela compreen-
Nesse sentido, Vico argumentou em sua são racional, pelo conhecimento, e não
Ciência Nova que todos os povos passam por simplesmente por uma acumulação de
um estágio divino, um heróico e um humano, fatos diversos, que deveriam ser pres-
desenvolvendo-se progressivamente do pensa- supostos como aspiração subjetiva do
mento sensorial para o pensamento abstrato, estudo das ciências. Pois, mesmo que
da ética heróica para a moralidade e do privi- não se estivesse abordando a história do
légio para a igualdade de direitos. mundo com a reflexão e o conhecimento
da Razão, pelo menos se deveria ter a
Na história, temos um processo gradual
fé invencível e firme de que há Razão
de humanização do homem, pois o movimento na história, acreditando que o mundo
humano, no tempo, caminha para o melhor, ou da inteligência e da vontade consciente
seja, uma espécie de processo civilizador que não está abandonado ao simples acaso,
leva ao mundo civil, o qual mas deve manifestar-se à luz da Idéia
racional.
[...] provendo Deus, ordenou e dispôs
de tal modo as coisas humanas, que os Portanto, a história, impulsionada pela
homens, caídos da inteira justiça pelo Razão, deve ser entendida como um desdobra-
pecado original, entendendo fazer quase mento progressivo da liberdade, onde os acon-
sempre todo o diverso e até, freqüente- tecimentos não se dão ao acaso, mas antes são
mente, todo o contrário – pelo que, para guiados pelo desejo de realização da liberda-
servir a utilidade, viveram em solidão de que, por sua vez, é um desejo infinito, no
como animais selvagens -, por aquelas
sentido de realização plena da humanidade no
mesmas suas vias diversas e contrárias,
pela própria utilidade foram eles leva-
devir, que se torna inteligível na medida em
dos como homens a viver com justiça e que é racional.
conservar-se em sociedade e, assim, a Assim, tanto em Hegel como em Vico,
celebrar a sua natureza sociável; a qual, identificamos um sentido universal para o pro-
na obra, se demonstrará ser a verdadeira cesso histórico. Pretendemos, portanto, proce-
natureza civil do homem e, assim, existir der, neste trabalho, uma análise de algumas
um direito natural. Essa conduta da Pro- questões relevantes nas propostas de reflexão
vidência divina é uma das coisas de que filosófica da história dos dois pensadores.
principalmente se ocupa de refletir esta Na filosofia da história de Vivo pretende-
Ciência; pelo que, por esse aspecto, vem mos destacar algumas questões relacionadas à
ela a ser uma teologia civil reflectida da abordagem do processo histórico, identifi­
providência divina. 
cando a valorização de alguns elementos rele-
Assim do estágio divino ao humano, os vantes como a sabedoria poética, a filologia e
homens caminham no sentido da sociabilidade a religião enquanto elementos integradores da
que os impulsiona a viver com justiça e a con- humanidade no sentido de uma história da hu-
servar-se em sociedade, onde pela necessida- manização do homem e de sua formação social

1
VICO, Giambattista. Princípios de ciência nova – acerca da natureza comum das nações. Edição de 1744. Lisboa: Fundação Calouste,
2005. p. 4.
2
HEGEL, G.W.F. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história. 2ª. ed. São Paulo: Centauro, 2001. p. 54.

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à luz dos valores e dos modos de pensar de ditos fundadores das nações gentias até as for-
cada povo. mulações mais racionais. Como escreveu Vico:
No pensamento hegeliano acerca da fi- [...] é que nós descemos finalmente às
losofia da história pretende-se enfatizar o sen- mentes tolas dos primeiros fundadores
tido racional do Espírito universal enquanto das nações gentias, todos de robustís-
desdobramento progressivo da liberdade no simos sentidos e vastíssimas fantasias; e
processo histórico. - por isso mesmo, pois não tinham mais
Por fim, pretendemos identificar, na his- do que a única faculdade, e mesmo assim
tória, o sentido universal apresentado pelos toda confusa e estúpida, de poder usar a
dois pensadores. Existem, porém, em ambos, mente e a razão humanas -, comprova-se
diferenças na abordagem e no sentido do pro- que os princípios da poesia eram, não
cesso de universalização da existência humana apenas diferentes, mas também totalmente
contrários daqueles que, até agora, se
no tempo.
pensou, e que, por essas mesmas ra-
zões, surgem como princípios ocultos da
Vico e os Três Tempos do Mundo – sabedoria poética, ou seja, a ciência dos
Poesias/Mitos, Filologia, Costumes e poetas teólogos, a qual foi, sem dúvida,
a primeira sabedoria do mundo para os
Religião Superando a “Obscuridade gentios.
das Causas” e Revelando o Sentido A poesia foi a primeira sabedoria do
da História mundo para os gentios, onde os chamados poe­
tas teólogos, aparecem como construtores da
A filosofia da história de Vico baseia-se cultura e divulgadores dos costumes. Os mitos
na inter-relação linguagem, pensamento e e as poesias são temas centrais no pensamento
mito/poesia, no sentido da superação da “obs- de Vico. Na sua filosofia da história, mitos e poe­
curidade das causas”, buscando uma unidade sias constituem a chave para a compreensão
da cultura humana e, portanto, um sentido dos mistérios de épocas longínquas da história,
para o processo histórico. pois as artes chegaram antes da filosofia na
Esse sentido vincula-se inicialmente à significação do mundo, constituindo-se como
imaginação e à sabedoria poética, escapando algo universal e atribuindo um sentido a histó-
do monopólio da razão, pois os poetas são ria da humanidade. Os princípios que compõe
identificados como construtores da cultura e a matéria poética são: a fábula, o costume, o
divulgadores dos costumes dos homens. decoro, a sentença, a locução e a sua evidên-
O mundo humano nasce de uma ordem cia, a alegoria, o canto e por último o verso.
imagético-religiosa fundamentada pela crença Nesse sentido, o caminho traçado por
na superação do barbarismo com a unificação Vico envolve a procura da verdade dos primei-
das idéias e costumes nas práticas religiosas ros autores/poetas que seriam fundadores das
que fundam o mundo civil. nações. Posteriormente (Vico define uma pas-
Assim, o matrimônio foi a primeira das sagem de mais mil anos), temos o apareci-
coisas humanas a dar origem às famílias e, mento dos escritores, o surgimento da escrita.
posteriormente, às repúblicas, levando os ho- Assim, das primeiras culturas fundamen-
mens a viver em sociedade. A segunda das coi- tadas na oralidade de suas fábulas e mitos até o
sas humanas foram as sepulturas onde ocorre o domínio da escrita, temos um longo caminho
reconhecimento da mortalidade do corpo e a que deve ser compreendido pelos filósofos que
imortalidade da alma. desejam refletir sobre o sentido do processo his-
Para Vico, a história é um processo gra- tórico. O saber filosófico deve ser articulado ao
dual de humanização do homem, onde pela filológico, entendido aqui numa amplitude que
contribuição da metafísica temos a possibilida- envolve língua, história e cultura de cada povo.
de de empreender uma história das idéias hu- Com isso, a filosofia deve se dedicar a
manas, captando desde as “mentes tolas” dos filologia, ou seja, preocupar-se com todas as

VICO, Giambattista. Princípios de ciência nova – acerca da natureza comum das nações. p. 7-8.
3

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histórias das línguas, os costumes e os fatos dos zação, de estado, de direito etc. As três formas
povos, pois apenas dessa forma podemos tri- ou o ciclo das três eras indicam um movimento
lhar o caminho da “história ideal eterna.” nos modos de pensamento e as condições de
[...] a filosofia dedica-se aqui a examinar possibilidade para as mudanças no sentido dos
a filologia (ou seja, a doutrina de todas deslocamentos principais nos valores e modos
as coisas que dependem do arbítrio de pensar.
humano, como são todas as histórias das Com isso, Vico percebe que o ciclo co-
línguas, dos costumes e dos factos, tanto meça com a idade dos deuses, onde o homem
da paz como da guerra dos povos), a não havia descoberto a si mesmo e exteriori­
qual, pela sua deplorada obscuridade zava, na figura de divindades, os eventos de
das causas e quase infinita variedade dos sua vida e os fenômenos naturais, utilizando,
efeitos, teve quase um horror de sobre ela para tanto, a linguagem poética; posterior-
reflectir; e traduzi-la em forma de ciência, mente, temos a idade dos heróis, permeada,
ao revelar nela o desenho, de uma história
ainda, de fantasia e imaginação na compreen-
ideal eterna, sobre a qual transcorrem no
são do mundo, onde algumas famílias assumem
tempo as histórias de todas as nações:
de modo que, por este seu outro aspecto
a posição de mando nas comunidades, regu-
principal, vem esta Ciência a ser uma lam os conflitos existentes e controlam a posse
filosofia da autoridade. Pelo que, em das terras, consolidando-se como uma aristo-
virtude de outros princípios de mitologia cracia. Nesse momento, os homens dividem-se
aqui revelados, que vão no seguimento em aristocratas (donos das terras) e plebeus
dos outros princípios da poesia aqui (trabalhadores). Essa divisão implica em cons-
descobertos, se demonstra terem sido as tantes conflitos sociais por conta das disputas
fábulas verdadeiras e rigorosas histórias pelas terras; finalmente, temos a idade dos ho-
dos costumes das antiqüíssimas gentes mens onde ocorre o surgimento de democra-
da Grécia e, primeiramente, que aqueles cias ou repúblicas populares livres, onde a re-
deuses foram histórias dos tempos em que ligião e os mitos poéticos declinam mediante a
os homens da mais rude humanidade
difusão da filosofia.
gentílica acreditavam que todas as coisas
Na idade dos homens, as relações de
necessárias ou úteis ao gênero humano
eram deidades.
mando superam o controle e a ordem aristo-
crática e passam a ser alvo de disputa pelos
A história ideal, eterna, articula as histó- diferentes grupos de cidadãos provocando
rias de todas as nações no sentido de uma in- uma quebra na unidade que vinha sendo cons-
tegração do processo universal de humaniza- tituída desde a idade dos deuses com a crença
ção do homem em uma espécie de lógica in- religiosa e, na idade dos heróis, com a disci­
terna dos acontecimentos ditada por uma série plina aristocrática. Portanto, o movimento histó-
de elementos que transcendem ao monopólio rico na idade dos homens suplanta a ordem
da razão. antiga pelo racionalismo individualista e de-
Assim, identifica-se a força da imagina- senvolve uma progressiva desintegração in-
ção pelas poesias, fábulas e até mesmo as di- terna das sociedades facilitando o avanço das
vindades do mundo antigo como elementos ameaças externas.
profundamente esclarecedores da existência Assim, a idade dos homens, momento do
histórica dos diferentes povos. desenvolvimento da razão, traz consigo o ger-
Vico identifica dois significados para a me de sua destruição pelo individualismo ex-
história ideal-eterna que normalmente são uni- presso no racionalismo que dissolve as crenças
ficados. O primeiro seria a determinação das e dogmas relativizando os valores definidos nas
formas, categorias ou momentos ideais do es- primeiras idades e indicando um retorno ao es-
pírito na sua sucessão ideal; o segundo indica tado caótico dos primórdios da humanidade.
uma espécie de determinação aprioristicamen- Todo esse processo de unificação articu-
te empírica da ordem em que para todas as lado no ciclo das três eras vincula-se a um es-
nações devem suceder três formas de civili­ tudo sobre os valores e os modos de pensar

4
Idem., p. 9.

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desencadeados pelos desenvolvimentos inter- tempo instrumentos inconscientes e mo-
nos das sociedades ou culturas e revela um mentos daquela atividade interior em que
sentido para a história. desaparecem as formas particulares e o
espírito em si e para si prepara o trânsito
ao grau imediatamente superior.
Hegel e a História como Sistema
Assim, a compreensão do sentido da his-
– o Sentido Racional do Espírito tória no pensamento hegeliano passa pelo estu-
Universal no Desdobramento do integrado de todos os aspectos da existência
Progressivo da Liberdade humana, no sentido dialético. Portanto, apenas
na análise sistêmica do processo histórico pode-
O sistema hegeliano deve ser entendido se atribuir sentido ao mesmo e captar o espírito
como um movimento que busca garantir uma do mundo, pois, como Hegel afirma, é na cons-
unidade na totalidade. Esta deve ser percebida ciência real e imediata que devemos buscar o
pela interdependência das partes que a com- valor e o significado de elementos como as vir-
põem, ou seja, totalidade, unidade e interde- tudes, as paixões, a justiça ou o esplendor da
pendência são características necessárias do vida coletiva. Porém, o pensador nos exorta que
sistema. na realidade imediata podemos apenas captar
A totalidade do sistema hegeliano en­ fragmentos ou abstrações do Todo, pois apenas
volve a lógica, entendida como o estudo do através da História universal atingimos a com-
“pensamento puro” (destituído de realidade) preensão da ação do espírito universal
ou da “idéia em si” (relação forma e conteúdo), A justiça e a virtude, a violência, o vício,
a filosofia da natureza, entendida como a Idéia o talento, a ação, as grandes e peque-
fora de si ou “para-si” (exteriorização) e a filo- nas paixões, o crime e a inocência, o
sofia do espírito, entendida como a “Idéia em si esplendor da vida individual e coletiva, a
e fora de si”, onde a liberdade se efetiva. independência, a felicidade e a desgraça
O pensamento hegeliano busca apreen- dos Estados e dos indivíduos, é no domí-
der o processo histórico como sistema, estabe- nio da consciência real imediata que têm
lecendo à luz da Razão o sentido da história, definidos o seu significado e o seu valor,
nele encontram o seu juízo e sua justiça
buscando compreender a estrutura objetiva da
embora incompletos. A história universal
realidade histórica pela razão dialética, garan-
está fora destes pontos de vista. Nela
tindo o progresso das ciências humanas, sem adquire um direito absoluto o momento
as quais seria impossível refletir sobre a totali- da idéia do espírito universal que é a sua
dade do processo. atual expressão; o respectivo povo e as
Portanto, ciências como economia, so- suas ações aí obtêm realização, felicidade
ciologia, política e antropologia adquirem uma e glória.
importância fundamental no entendimento sis-
Portanto, a compreensão dialética da his­
têmico da história, pois essas ciências possibi-
tória no pensamento hegeliano requer uma
litam um maior entendimento da estrutura ob-
percepção do processo histórico como sistema,
jetiva da realidade histórica, desde os indivíduos,
que na interdependência das partes, desde a
passando pelos povos, chegando aos estados.
consciência real e imediata até o momento da
idéia do espírito universal, busca a totalidade
Nesta marcha do espírito, os Estados, os
no sentido de perceber uma unidade nos vá-
povos e os indivíduos erguem-se singular-
mente no seu definido princípio particular rios momentos do processo, desde o indivíduo
que se exprime na constituição de cada na sua subjetividade até a concretização do es-
um e se realiza no desenvolvimento da tado através da especificidade de um povo his-
sua situação histórica; têm eles a cons- toricamente constituído.
ciência deste princípio, no interesse por Destacamos que o sistema hegeliano
ele estão absorvidos, mas são ao mesmo deve ser percebido como um movimento aberto

5
HEGEL, GWF. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 308.
6
Idem., p. 309.

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e dinâmico, pois apenas dessa forma poderia Nesse sentido, a filosofia do espírito articula
ser constituído por seres humanos reais e acima as seguintes dimensões do espírito: a subjetiva, a
de tudo historicamente constituídos. individualidade onde se efetiva a consciência de
No entanto, para a compreensão do si imediata; o espírito objetivo, onde temos o de-
mundo humano, entendido como o mundo senvolvimento da eticidade que se estabelece
onde a liberdade se efetiva, devemos compre- pelo homem nas instituições como a família, a
ender o movimento do espírito como a essência sociedade civil e o Estado; o espírito absoluto ex-
em-si-e-para-si-essente que, ao mesmo tempo, presso na arte (sensibilidade), na filosofia (con-
é para si como consciência e que se repre- ceito “puro”) e nas representações religiosas.
senta a si mesma. Como nos afirma Hegel: Na História, temos o desenvolvimento da
O espírito é a substância e a essência unidade totalizada do sistema, no qual a liber-
universal, igual a si mesma e permanente: dade se realiza, num contínuo movimento dia-
o inabalável e irredutível fundamento e lético, podemos perceber uma continuidade
ponto de partida do agir de todos, seu na descontinuidade, captando o sentido racio-
fim e sua meta, como [também] o Em-si nal do processo histórico:
pensado de toda a consciência-de-si.
O elemento de existência do espírito uni-
Essa substância é igualmente a obra
versal – que é intuição e imagem na arte,
universal que, mediante o agir de todos
sentimento e representação na religião,
e de cada um, se engendra como sua
pensamento puro e livre na filosofia – é,
unidade e igualdade, pois ela é o ser-
na história universal, a realidade em ato,
para-si, o Si, o agir. Como substância,
em toda a sua acepção: interioridade
o espírito é igualdade-consigo-mesmo,
e exterioridade. Constitui a história um
justa e imutável; mas como ser-para-si, é
tribunal porque, na sua universalidade
a essência que se dissolveu, a essência
em si e para si, o particular, a sociedade
bondosa que se sacrifica. Nela cada um
civil e o espírito dos povos em sua irisada
executa sua própria obra, despedaça
realidade apenas são como algo da natu-
o ser universal e dele toma para si sua
reza da idéia separada; neste elemento, o
parte. Tal dissolução e singularização da
movimento do espírito consiste em tornar
essência é precisamente o momento do
isso evidente.
agir e do Si de todos. É o movimento e
a alma da substância, e a essência uni- Assim, a história deixa de ser um simples
versal efetuada. Ora, justamente por isso registro de fatos e relatos ocorridos em uma
– porque é o ser dissolvido no Si – não é dada sucessão temporal e apresenta uma com-
a essência morta, mas a essência efetiva preensão dos acontecimentos pelo uso da ra-
e viva. zão dialética, definida como propulsora da his-
O espírito deve ser entendido como efe- tória. Nesse sentido, Lima Vaz nos esclarece:
tividade ética, a vida ética de um povo, onde
[...] a Razão presente no existir (Dasein)
todas as figuras da consciência são abstrações histórico dos indivíduos e das comunida-
do espírito. Na filosofia do espírito, podemos des é manifestada em ações, instituições,
compreender a substância e a essência univer- fins etc. Sem a presença da Razão como
sal no movimento dialético, proporcionada na enteléquia ou alma do seu vir a ser, o de-
dissolução e na unidade dos momentos. senrolar empírico da história mergulharia
Compreendendo o processo de frag- no puro aleatório ou no absurdo. Eis por
mentação do universal, no sentido da singula- que, afirma Hegel, a Filosofia só pode
pensar a história quando um ciclo históri-
rização da essência no agir de todos, Hegel
co se cumpriu e as razões nele presentes
esclarece que “a história do mundo está no podem ser dialeticamente articuladas.
domínio do espírito”, pois a realidade mais
concreta do Espírito apresenta-se na história Com isso desenvolve-se um encadea-
do mundo. mento “interior” e “necessário” entre as épocas

7
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. p. 305.
8
HEGEL, GWF. Princípios da filosofia do direito. p. 307.
9
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia IV - introdução a ética filosófica 1. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 393.

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e as chamadas fases da história, a partir desse de apropriação do passado pelo presente e a
encadeamento que se efetiva no tempo, enten- reflexão do próprio presente.
da-se aqui “tempo humano”, portanto cons- Essa reflexão sobre o processo histórico é
ciente de si mesmo, podemos estabelecer uma definida pela ação da filosofia que é essencial-
interdependência entre a memória do pas­sado, mente retrospectiva limitando-se a refletir sobre o
a percepção do presente e a projeção do futuro. passado e o presente, pois não podemos prever
Hegel procura compreender através da ou predeterminar o futuro, mas, acima de tudo,
filosofia da história o que ele define como a na- estabelecer uma conciliação com o presente.
tureza da história em si, ou seja, captar dialeti- Com isso, identificamos o tempo como
camente o desenvolvimento do espírito no tempo, uma estrutura unitária e contínua do mesmo
nos seus diversos momentos, procurando per- processo totalizado. Assim, as partes ou épocas
ceber a Razão como lei do mundo, desde o e fases da história possuem uma articulação in-
fato imediato registrado até a busca do sentido terior e necessária, onde na dialética dos espí-
histórico na reflexão filosófica. Portanto, de­ ritos particulares dos povos, os acontecimentos
vemos compreender racionalmente o processo são representados pelos espíritos dos povos
histórico enquanto algo determinado e efetivo, limitado,
É realmente esse desejo pela compreen- tendo sua autonomia como algo subordinado,
são racional, pelo conhecimento, e não passando para a história mundial universal.
simplesmente por uma acumulação de Esse movimento inclui e relaciona o momento
fatos diversos, que deveriam ser pres- particular e específico e o momento universal:
supostos como aspiração subjetiva do Esse movimento é a via da libertação da
estudo das ciências. Pois, mesmo que substância espiritual, o ato pelo qual o fim
não se estivesse abordando a história do último absoluto do mundo nele se cum-
mundo com a reflexão e o conhecimento pre, [pelo qual] o espírito que primeiro só
da Razão, pelo menos se deveria ter a é essente em si, se eleva à consciência e à
fé invencível e firme de que há Razão consciência-de-si, e assim à revelação e à
na história, acreditando que o mundo efetividade de sua essência essente em si
da inteligência e da vontade consciente e para si, e se torna para si mesmo, o espí-
não está abandonado ao simples acaso, rito exteriormente universal, o espírito-do-
mas deve manifestar-se à luz da Idéia mundo. Enquanto esse desenvolvimento é
racional.10 no tempo e no ser-aí, e por isso, enquanto
Assim, a Razão é o elemento propulsor história, seus momentos e graus singula-
do devir histórico, mas, para além desse ele- res são os espíritos-dos-povos; cada um,
mento racional, a história só pode ser perce­ como espírito singular e natural em uma
determinidade qualitativa, é determinado
bida como um processo sistêmico quando
para ocupar somente um grau, e para só
identificamos a possibilidade de articulação cumprir uma tarefa do ato total.11
dos diversos elementos que fazem parte da
existência humana no tempo. Assim, a história mundial universal apa-
O tempo deve ser entendido como um rece como o momento de unidade no sistema,
continuum e irreversível articulador da ação no sentido da identificação do espírito do mundo.
humana, porém, não é um todo homogêneo e Porém, o movimento dialético da história é es-
desarticulado, mas um processo de articulação tabelecido no tempo, como algo aberto, pois
das fases e períodos da história, garantindo a não podemos prever o futuro e a compreensão
possibilidade do entendimento de todo o pro- do todo só pode ser estabelecida pelo entendi-
cesso histórico. mento integrado de todos os momentos. Com
Esse tempo humano, consciente de si isso cada momento torna-se fundamental para
mesmo, entendido por Hegel como algo intrín- a percepção do sentido do processo histórico
seco nas coisas finitas, é inerente ao homem, buscando captar aquilo que é universal ou o
no presente, pela ação da memória, no sentido espírito do mundo.

10
HEGEL, G.W.F. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história. p. 54.
11
HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830). III. A filosofia do espírito. São Paulo: Loyola, 1995. p. 321.

34 Argumentos, Ano 1, N°.1 - 2009


Pelo entendimento racional podemos dução de Paulo Meneses, com a colaboração de
perceber o sentido da história enquanto pro- Pe. José Machado. São Paulo: Loyola, 1995.
cesso dialético de articulação das partes no _____. Fenomenologia do espírito. 4. ed. Tra-
sentido da busca pela unidade, onde a verda- dução de Paulo Meneses, colaboração de Karl-
de da história do mundo revela-se como pro- Heinz Efken e José Nogueira Machado. Rio de
duto da própria Razão. Janeiro: Vozes, 2007.
Nesse sentido, através do conhecimento
_____. Lecciones sobre la filosofia de la histo-
sistemático da história, o homem pode compre-
ria universal. Alianza Universidad, 1989.
endê-la e realizar um progresso na consciên-
cia da liberdade que se aprofunda num desen- _____. Princípios da filosofia do direito. Tradu-
volvimento por graus onde cada mudança no ção de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins
espírito é um progresso.12 Fontes, 2003.
SOARES, Marly Carvalho. Sociedade civil e
sociedade política em Hegel. Fortaleza: Ed.
Referências Bibliográficas UECE, 2006.
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia
HEGEL, G.W.F. A razão na história: uma introdu- IV - Introdução a ética filosófica 1. 2. ed. São
ção geral à filosofia da história. 2. ed. Tradução Paulo: Edições Loyola, 2002.
de Beatriz Sidon. São Paulo: Centauro, 2001. VICO, Giambattista. Princípios de ciência nova
_____. Enciclopédia das ciências filosóficas em – acerca da natureza comum das nações. Edi-
compêndio (1830). III. A filosofia do espí­rito. Tra- ção de 1744. Lisboa: Fundação Calouste, 2005.

12
Cf. SOARES, Marly Carvalho. Sociedade civil e sociedade política em Hegel. Fortaleza: EdUECE, 2006. p. 193.

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