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FILOSOFIA
Neste artigo tratarei de estabelecer a relevância didática
do cinema nas aulas de Filosofia, sem preocupações de
remeter para uma outra questão, que é a da relação entre
Filosofia e Cinema.
O CINEMA NA DIDÁTICA DA FILOSOFIA
É possível uma relação entre cinema e filosofia? De que tipo será essa
relação? Como se conjugam a filosofia e o cinema, que cruzamentos
correm entre o inteligível e a imaginação? Devemos falar de filosofia
através do cinema ou de filosofia no cinema?
mais radical que defende o cinema como criação filosófica.” Será necessário
demonstrar que ao nível da didática da Filosofia esta dicotomia é artificial e que
interessará, isso sim, determinar as condições em que tal utilização é legítima.
Este problema não é novo, mas está profundamente relacionado com a emergência
do audiovisual na contemporaneidade.
3. “Vamos estudar filosofia, e isto que vamos fazer é, por isso mesmo, uma falsidade”,
disse Ortega Y Gasset. E tinha razão, embora não pelos motivos aparentes.
Os alunos do século XXI têm poucas semelhanças com os seus antecessores. Existe
um sentimento generalizado de desinteresse dos alunos pelo conhecimento, de
alienação, o que não deixa de ser paradoxal numa Era Tecnológica, numa Sociedade
do Conhecimento em que a informação está amplamente disponível, ainda que não
uniformemente distribuída. A massificação da informação não parece ter conduzido
os seres humanos a um maior sentido crítico face à realidade nem é evidente que
todos saibam como agir perante a ubiquidade informativa. Perante tanta informação,
estudar parece ser uma inutilidade. Estudar transformou-se em apenas mais uma
obrigação, e não uma necessidade. Assim se compreendem as palavras de Gasset:
estudar é uma falsidade porque a facilidade de acesso à informação tornou inútil o ato
de buscar o conhecimento. Neste contexto, como conquistar os alunos para a
Filosofia?
Em Teaching Philosophy, Wright e Bowery afirmam que
exigência que se coloca é que o filme contenha filosofia, isto é, que nele estejam
presentes elementos filosóficos que permitam um trabalho pedagógico que seja
próprio da Filosofia.
O mundo dos adolescentes de hoje é altamente imagético, virtual, icónico, pelo que o
trabalho escolar, frequentemente baseado em textos, é tendencialmente
percecionado como aborrecido ou ultrapassado. Estabelecida a relação com o
quotidiano do aluno através do Cinema, a distanciação crítica face ao senso comum,
o questionamento dos dogmas e a capacidade de análise crítica podem ser facilitadas,
o que seria muito proveitoso para a didática da Filosofia.
Ainda que o Cinema não constitua, como em tempos se pensou, uma revolução na
sala de aula, não deixa de ser uma abordagem radicalmente diferente. Em vez de
solicitar ao aluno que decore os conteúdos que lhe são magistralmente transmitidos,
o trabalho didático sobre um filme interpela o aluno, leva-o a problematizar, a
reconstituir argumentos, a procurar significações e a construir conceitos e narrativas.
Para que tal aconteça é necessário assegurar a devida planificação pedagógica, como
veremos. Como afirma Reina (2014:124), “o filme pode e deve ser encarado como um
importante instrumento no ensino da Filosofia, um meio que facilite a aprendizagem
dos conteúdos filosóficos”, mas para tal o Professor terá de ser um mediador,
preparando as atividades que devem ser efetuadas antes e após a visualização do
filme, para que este não se converta unicamente num objeto de motivação inicial ou
exemplificação ilustrativa. Consequentemente, o filme deve ir ao encontro dos temas,
conteúdos e problemas a discutir na disciplina, gerando análises e debates que caberá
ao professor dinamizar e gerir. Um filme apresenta-se como um excelente meio para
proporcionar a reflexão crítica, a criatividade e a capacidade de trabalhar em grupo.
A utilização didática do Cinema foi perspetivada pela primeira vez em 1931 (Reina,
2014:11). Nos seus primórdios, o cinema era sobretudo uma ilustração da vida
quotidiana, mas ao longo do século XX evoluiria para a narrativa. O interesse filosófico
da vida quotidiana ilustrada por imagens em movimento era, convenhamos, bastante
reduzido, pois esse cinema reduz-se ao mero entretenimento e, quando muito, a um
veículo de propaganda ideológica. Mas a partir do momento em que os filmes
constroem histórias, narrativas, torna-se possível discutir problemas filosóficos
levantados pelo filme e identificar nele os seus principais conceitos e argumentos,
para o que vai ser necessário interpelar a consciência crítica do espectador, que passa
a desempenhar um papel ativo na sua interpretação.
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4. Esta perspetiva é claramente defendida por autores como Gilles Deleuze, para
quem o cinema expõe e provoca novas ideias filosóficas. Deleuze considera que o
cinema, mais do que expor ideias filosóficas, é ele próprio gerador de novas ideias;
contudo, tal não se faz pela via do logos, da racionalidade, da inteligência, mas pela
via do pathos, dos afetos e das perceções. Ou seja, o cinema tem a capacidade de
nos fazer pensar, tal como a filosofia, mas as suas vias de possibilidade de reflexão
são diferentes. Para Deleuze, a função do cinema não é apenas a de representação
do real, mas também a sua problematização, reconfiguração, recriação e
transfiguração. Isto é, o cinema pensa. Sobre isto, Cabrera (2006:8) afirma que
À primeira vista, pode ser assustador falar do cinema como de uma forma
de pensamento, assim como assustou o leitor de Heidegger inteirar-se de
que “a poesia pensa”. Mas o que é essencial na filosofia é o
questionamento radical e o caráter híper-abrangente de suas
considerações. Isto não é incompatível, ab initio, com uma apresentação
“imagética” (por meio de imagens) de questões, e seria um preconceito
pensar que existe uma incompatibilidade. Se houver, será preciso
apresentar argumentos, porque não é uma questão óbvia.
filosofia e ser mais do que mero entretenimento, não adquirindo, no entanto, o estatuto
de serem intrinsecamente filosofia como, por exemplo, as Meditações sobre a
Filosofia Primeira de R. Descartes, ou a Critica da Razão Pura de I. Kant. (Pacheco,
2015:10).
Se quanto à relação entre cinema e filosofia as posições mais relevantes estão
minimamente clarificadas, resta ainda determinar o interesse pedagógico do cinema
para a Filosofia. Do exposto resulta que tanto através da problematização, da criação
de conceitos e da atribuição de significação, como através da argumentação, das
experiências mentais e dos contraexemplos, vislumbra-se ser possível a utilização
pedagógica do cinema nas aulas de Filosofia.
Podemos afirmar, em consonância com Reina (2014:132), que um bom filme com
interesse filosófico contém determinadas caraterísticas:
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5. Competências linguísticas
6. Competências atitudinais
Podemos objetar contra uma ou outra destas conceções teóricas, mas é relativamente
consensual que estes são os marcos em função dos quais a didática da filosofia se
deverá processar.
Reina (2014:90) afirma que, mais do que ilustrar, os filmes permitem a criação de
conceitos e a problematização da realidade por parte do espectador. Além disso, o
filme permite a re-significação e a criação de novos conceitos filosóficos, provocando
“o pensamento e [desenvolvendo] a reflexividade e criticidade do sujeito da
aprendizagem”. Em “Branca de Neve”, de João César Monteiro, o “facto de o
espectador se confrontar com um grande número de fotogramas negros acaba por
implicá-lo ainda mais na interpretação do filme” (Rodrigues, 2008:46).
Cabrera 82006) defende que o Cinema, tal como a Filosofia, é gerador de conceitos,
distinguindo-se o conceito textual do conceito imagético.
Esta crítica não parece ser muito pertinente, pois, tal como acima foi exposto,
Brennifier considera que o aprofundamento conceptual é uma das tarefas da Filosofia.
Também Neves Vicente remete para a Filosofia a competência específica de
conceptualização, e Costa vê na Filosofia, entre outras, a competência conceptual
como uma das suas competências essenciais. Nesta linha de ideias, é legítimo afirmar
que na Antiga Grécia uma das tarefas dos filósofos consistia na depuração da
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Esta é uma crítica ponderosa que deve ser devidamente considerada. A generalidade
dos filmes tem uma duração superior a 50 ou 90 minutos, o que implica a sua exibição
em duas ou mais aulas diferentes. Mesmo em filmes mais curtos, o professor pode
interromper a exibição do filme para fornecer “a interpretação correta” ou outros dados
que podem coartar a criatividade do aluno, a sua capacidade de interpretação ou de
reconstrução dos argumentos filosóficos.
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Acresce que a interrupção do filme ou a sua exibição parcial rompem a sua unidade
estética e impedem o aluno de aceder à totalidade da obra e, consequentemente, da
sua compreensão.
Mas, como diz Reina (2014: 11), “é a partir do momento em que o cinema passa a
“contar histórias” que se tem, em certa medida, a possibilidade de desenvolver
problematizações, tornando-o um campo fértil para a presença do pensamento
filosófico.” Portanto, também esta objeção não parece ser convincente. Não há razões
para pensar que o caráter ilusório ou representativo do cinema é impeditivo da
elaboração didática de competências filosóficas. Ao ilustrar questões filosóficas, ao
estimular a reflexão crítica, ao permitir a atribuição de significado e sentido, ao
problematizar, o filme está a contribuir para o ensino da filosofia e isso em nada o
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diminui enquanto obra de arte. Acresce que não se espera que um aluno se torne
especialista em Filosofia só pelo facto de ver filmes, ainda que estes sintetizem toda
a história da Filosofia. O filme é um instrumento didático que potencializa a aquisição
de conteúdos e competências tidos como próprios para a disciplina.
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Uma das muitas possibilidades é a utilização de guiões. Os guiões de filme podem ser
muito variados e a sua utilização deve ser vista como parte de uma metodologia
didática de abordagem ao filme, e não como um fim em si mesmo.
Eis um modelo possível de guião de análise de filme:
Título
Ficha técnica
Sinopse
Objetivos e competências visados
Relação com os conteúdos programáticos
Questões fechadas para acompanhamento da narrativa (questões de escolha
múltipla, completamento de espaços, verdadeiros e falsos, correspondência de
conceitos, etc.)
Questões fechadas ou abertas para levantamento e discussão dos problemas,
das teorias, dos conceitos e dos argumentos presentes no filme
Atividades (ensaio, debate, trabalho de grupo, ficha de trabalho, etc.)
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Referências bibliográficas
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http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/35789/R%20-%20D%20-
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Wright, J. L. e Bowery, A-M. (2003). Teaching Philosophy. Disponível em
https://www.pdcnet.org/pdc/bvdb.nsf/purchase?openform&fp=teachphil&id=tea
chphil_2003_0026_0001_0021_0042
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