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da memória:
a responsabilidade
social dos
Jogos Olímpicos.
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Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita
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Os infratores serão punidos pela Lei nº 9.610/98.
Impresso no Brasil
Educação no Esporte.
A jornada das Olimpíadas Estudantis.
Maria Alice Zimmermann....................................................................... 47
Memória e história:
desafios metodológicos para os estudos do esporte.
Victor Andrade de Melo ........................................................................ 87
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Boa leitura.
Katia Rubio
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A perspectiva
A história da ciência é sempre um objeto controverso.
O estudo das Olimpíadas, como de tudo o mais, não pode ser
separado de como se consideram as transformações do estudo
dos jogos. Existe uma longa e respeitada tradição de considerar a
ciência como o acúmulo de conhecimento, de geração para geração,
acrescentado a realizações e descobertas anteriores. Nos ombros
de gigantes, até pequenos passos podem ser considerados como
progresso, conforme ponderavam nossos mestres renascentistas.
Essa abordagem tem sido descrita por alguns por enfatizar os
principais fatores internos que afetam mudanças em qualquer
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“ O conflito é o pai de todas as coisas, rei de tudo. Fez de uns deuses, de outros,
homens, uns escravos e outros livres”. Heráclito de Éfeso, cerca 490 a.C., citado
por Hipólito de Roma (Philosophumena, 9, 4).
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Bibliografia
Fontes antigas
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Literatura moderna
COUBERTIN, P. (1891): L’athlétisme: son rôle et son histoire, La
Revue Athlétique, 2, p. 204.
COUBERTIN, P. (1892): “Physical exercises in the modern world.
Lecture given at the Sorbonne (November 1892)”, in Müller,
N. (ed.) (2000): Olympism: selected writings of Pierre de
Coubertin. Lausanne:IOC, p. 287-300.
COUBERTIN, P. (1901): Notes sur l’éducation publique. Paris:
Hachette.
COUBERTIN, P. (1917?): Almanach olympique pour 1918.
Lausanne: [s.n.]
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Introdução
Nesse exercício reflexivo propomos uma leitura do
movimento olímpico como fenômeno social e, por essa
característica, sobre sua existência e resistência, somente possível
através de enfrentamento de dilemas e mudanças. Em outras
palavras, entendemos que o movimento olímpico, ao fazer
parte da dinâmica social mais ampla, nela afeta e é afetado, se
constitui e é constituído, a partir da resposta a questionamentos
por reinvenções constantes, que culminam em pontos de rupturas
necessárias para sua sobrevivência e continuidade. Essa dinâmica
pode ser observada quando percebemos, desde sua mobilização
encabeçada por Pierre de Coubertin ao final do século XIX até
os dias atuais, diversos períodos que podem ser mais ou menos
demarcados a partir de eventos marco.
Seguindo o referencial teórico que lançamos mão para a
leitura desse fenômeno, podemos entender que a dinâmica do
campo esportivo é influenciada por outros campos, especialmente
os campos político, midiático e econômico, cujas lógicas exigem
dos dominantes de seu campo a tomada de posicionamentos
que favoreçam a manutenção nessa posição (BOURDIEU, 1998).
Mais especificamente, o COI, na posição de dominante no campo
esportivo (BOURDIEU, 1983), mobiliza uma série de estratégias
para se manter como dominante enquanto detentor dos direitos
do evento esportivo considerado como um dos mais importantes
do mundo, demandando uma atuação consonante aos interesses
de dominantes nos outros campos mencionados (BOURDIEU,
1997). Aqui se percebe sua inclinação para o atendimento das
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As “crises” no Olimpismo
A intenção de Pierre de Coubertin em “reviver” os Jogos
Olímpicos surge a partir do seu interesse no esporte como
mobilizador de um sistema que envolvia a educação moral,
física e intelectual para enfrentamento de uma situação de crise
(BROWN, 2012). Após diversas viagens e investigação de distintos
sistemas, buscando um modelo para aplicar na educação de seu
país de nascimento, a França, Coubertin organizou suas ideias
com um caráter combinado, em que algumas das características do
modelo grego de jogos e atividades físicas passam a ser tomadas
como ferramenta pedagógica (MACALOON, 1981). Lucas (1980)
descreve que a compreensão de Coubertin sobre a filosofia grega,
evidenciada na tríade de moral, intelecto e corpo, estava bastante
interligada com o entendimento sobre a disciplina, a virilidade
e a postura esportiva que estaria sendo colocada em prática
nas grandes escolas inglesas. O Olimpismo surge, então, com a
ênfase nessa atitude que regia, ao menos na sua visão idealizada,
o funcionamento do esporte nas escolas inglesas (LUCAS, 1980).
Partindo dessa compreensão, uma mistura de nacionalismo
e internacionalismo teria sido a motivação para o “reviver” dos
Jogos Olímpicos. O primeiro, porque a derrota militar francesa
para a Prússia no ano de 1871 teria influenciado o entendimento
de Coubertin de que a preparação física e a disciplina eram
virtudes a serem desenvolvidas em seu país. Se essa preparação
e disciplina eram desenvolvidas pela cultura ginástica germânica,
o sistema de esportes da Inglaterra servia como um contraponto
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Referências
ANDRANOVICH, Greg; BURBANK, Matthew J.; HEYING, Charles
H. Olympic Cities: Lessons Learned from Mega-Event Politics.
Journal of Urban Affairs, v. 23, n. 2, pp. 113-131, abr. 2001.
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politics, consumption and culture. Philadelphia: Temple University
Press, 2012.
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11, n. 4, pp. 467-480, jul. 2008.
BLACK, David; VAN DER WESTHUIZEN, Janis. The allure of
global games for ‘semi-peripheral’ polities and spaces: a research
agenda. Third World Quarterly, v. 25, n. 7, pp. 1195-1214, 2004.
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Resumo
O esporte é um fenômeno sociocultural de múltiplos
significados e tem como finalidade o desenvolvimento integral do
homem como ser autônomo, democrático e participante, segundo
a legislação brasileira. A iniciação esportiva e as possibilidades
educacionais estão cada vez mais em destaque. Desde o início,
Pierre de Coubertin tinha em suas metas introduzir o esporte
na rotina escolar, e o que já era considerado pelos gregos como
elemento de grande valor no desenvolvimento da formação física
e moral dos seus cidadãos tem nos dias de hoje exercido fascínio
cada vez maior.
Essa jornada teve início em 2007, na rede Municipal de
Ensino da cidade de São Paulo. O Projeto Olimpíadas Estudantis
tem como proposta norteadora unificar e estimular a iniciação
esportiva nas escolas municipais. Em seu início houve a
preocupação de aproximar a prática e a iniciação esportiva com
aspectos educacionais implícitos nos esportes.
Introdução
A cidade de São Paulo está entre as dez capitais mais
populosas do mundo. O número de habitantes na região
metropolitana é de aproximadamente 19.684.000 e na cidade é
de 11.253.503.
A rede municipal de ensino da cidade de São Paulo é o
maior sistema do país, com quase um milhão de alunos, 8,2%
dos 11,3 milhões de habitantes da cidade. Somados aos pais e
familiares, envolve quase cinco milhões de pessoas, ultrapassando
a população da maioria das capitais brasileiras. Com mais de 83,8
mil funcionários, entre educadores e pessoal de apoio, a rede
tem 1.459 escolas espalhadas por todos os cantos da cidade,
administradas diretamente pela Secretaria Municipal de Educação.
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Dificuldades
Encontramos resistências, algumas de ordem organizativa
do Projeto, entre elas a obrigatoriedade do RG para a participação
nas competições. Dessa maneira, vários professores precisaram
fazer “mutirões” para levar os alunos a “Poupatempos” ou similares.
No início, esse requisito representou um grande desafio, mas foi
superado com o passar do tempo, não sendo mais considerado
polêmico. Todavia, de certa forma ainda é uma dificuldade que
vários professores encontram. Ressalte-se, inclusive, que algumas
situações de alunos com pendência nos registros de nascimento,
entre outras questões como guarda de menor, que implicam a
regularização da documentação, puderam ser resolvidas com o
empenho dos professores e da direção da escola.
A cidade São Paulo, famosa por não parar nunca, tem
enfrentado nestes últimos anos o problema de mobilidade urbana.
Nós também sentimos na pele essas dificuldades ao transportar
nossos alunos para diversos cantos da cidade. O transporte na
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Diferencial do projeto
O objetivo é proporcionar a todos os participantes as
mesmas condições de competição. O fato de o projeto contar
com um cenário semelhante ao esporte de rendimento, com
eventos esportivos que vão desde as cerimônias de abertura,
entrega de medalhas até as competições de maneira estruturada,
com a competição formal, arbitragem, transporte, classificação
de equipes, medalhas e troféus, não significa que ter como
objetivo a especialização precoce ou mesmo a descoberta de
talentos. Entendemos que esse é processo natural e consiste em
oportunizar a vivência da competição, do esporte.
Essa vivência certamente gera e estimula o estado de
estresse, como ansiedade, “frio na barriga”, nervosismo, risos,
alegria, euforia pela vitória e superação. Assim como as lágrimas,
a tristeza da derrota, a insegurança da exposição, da desistência,
enfim, são relatos que ouvimos dos professores e dos alunos que
participam.
Com a premissa de proporcionar a democratização do acesso
no meio escolar, foram também consideradas questões de ordem
geral como a inclusão de alunos com deficiência, a participação
feminina no esporte e, principalmente, a inclusão social.
Para que esses objetivos sejam alcançados, discutimos
modelos de competição já consagrados e, a partir dessa
discussão, são apontadas questões norteadoras para uma prática
diferenciada, contidas no regulamento geral da competição:
1. Estimular outras modalidades esportivas, além das
tradicionais. Para estimular o desenvolvimento de outras
modalidades, as escolas que inscreverem equipes de futsal
ou handebol devem ter também equipes participando das
modalidades basquetebol ou voleibol;
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Considerações finais
O projeto Olimpíadas Estudantis entrou para o calendário
e planejamento de muitas escolas. Professores relatam que já no
primeiro dia de aula os alunos perguntam quando começariam os
“treinos” e as competições das Olimpíadas.
Embora o início do projeto tenha sido pela competição
propriamente dita, hoje contempla a iniciação esportiva, a
atualização dos profissionais que dela participam, além de
encaminhar alunos para treinamentos esportivos em clubes/
equipes.
Podemos apontar que ampliou e está consolidando os
momentos dedicados à iniciação esportiva na Rede Municipal
de Ensino.
A partir das Olimpíadas Estudantis, houve a implantação
de dois programas importantes para ressignificar o esporte
na escola:
1. Programa de incentivo ao esporte escolar, no qual
o professor pode formar turmas de iniciação esportiva no
contraturno para desenvolver e aperfeiçoar a prática esportiva,
sendo remunerado com aulas extras além da sua jornada de
trabalho.
2. Programa CEU Olímpico: os CEUs abrem espaço para
treinamento em algumas modalidades. A proposta é absorver
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Referências bibliográficas
BINDER, D. L. (2010). Teaching Olympism in schools: Olympic
Education as a focus on values education: university lectures
on the Olympics [on line article]. Bellaterra: Centre d’Estudis
Olimpics (UAB). International Chair in Olympism (IOC UAB),
[Acessado em: 28/05/14] http://olympicstudies.uab.es/2010/
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Paulo (2013) – Plano trabalho Federação do Desporto Escolar do
Estado de São Paulo.
FREIRE, P. (1996). Pedagogia da Autonomia, São Paulo: Paz e Terra.
GESSMAN, R. (1992). In Teaching Olympism in schools: Olympic
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Olimpics (UAB). International Chair in Olympism (IOC UAB),
2010. [Acessado em: 28/05/14] http://olympicstudies.uab.es/2010/
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KIDD, Bruce ( 1985), “The legacy of Pierre de Coubertin”, paper
presented at Olympic Academy of Canada, Vancouver, B.C. in
Binder, D. L. (2010) Teaching Olympism in schools: Olympic
Education as a focus on values education: university lectures
on the Olympics [on line article]. Bellaterra: Centre d’Estudis
Olimpics (UAB). International Chair in Olympism (IOC UAB),
[Acessado em: 28/05/14] http://olympicstudies.uab.es/2010/
docs/binder_eng.pdf
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Introdução
“Nada é compreensível ou explicado sem história”, já dizia
o Barão Pierre de Coubertin, idealizador dos Jogos Olímpicos da
Era Moderna (COI, 2000, p. 36). Também pudera, foi a influência
das antigas histórias helênicas que fizeram com que o barão se
empenhasse na recriação desse evento.
Entre os anos de 1875 e 1881, uma equipe de arqueólogos
alemães realizou uma escavação completa no santuário de
Olímpia, cujas primeiras tentativas haviam sido iniciadas um
século antes, e devolveram ao mundo ruínas que passaram quase
dois mil anos enterradas entre cinco e seis metros abaixo do
solo. Esse momento coincidiu com uma fase em que Coubertin,
pedagogo de formação, fazia estudos sobre a relação das práticas
de atividades físicas e dos jogos na educação dentro das escolas,
influenciado principalmente pelo trabalho de Thomas Arnold, na
Escola de Rugby.
Em sua obra Transatlantic Universities, que escreveu ao
visitar os Estados Unidos, observou jovens realizando diversos
exercícios de força, e um grande numero de trabalhadores indo
realizar práticas atléticas em seus horários livres, e segundo ele
(COI, 2000), “isso prova que mesmo o mais extenuante trabalho
braçal não substitui o esporte. Aqueles que veem nada mais a
não ser movimento físico no esporte podem perceber que um
lado interior dele lhes está escapando” (p. 94). Na mesma época,
conheceu o padre dominicano Henri Didon, o qual, na abertura de
um evento esportivo escolar em Arcueil, disse aos seus estudantes
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JAGUARIBE, H. Um estudo crítico da História. São Paulo: Paz e Terra,
2002. v.1, p. 42.
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www.olympic.org
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Até 1992 os Jogos Olímpicos de Inverno eram disputados no mesmo ano que
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sua versão de verão. A partir dessa edição, passaram a ser realizados de forma
intercalada a cada dois anos. Para tanto, foi realizada uma nova edição dos Jogos
de Inverno em 1994, retornando sua periodicidade quadrienal a partir de 1998.
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O Slopestyle
De acordo com a Wikipédia em sua versão em português,
“Slopestyle é uma modalidade do snowboard e do esqui que
consiste em manobras sobre caixas, trilhos [corrimão] e rampas”.
Ou seja, ela se inicia com o praticante realizando manobras em
obstáculos teoricamente artificiais (como corrimãos, contêineres
etc.) e termina com rampas “naturais”, sendo o importante não
o tempo de realização do percurso, mas sim a criatividade das
manobras realizadas.
Acredito que o slopestyle é uma modalidade “genial”,
representando a essência da esportividade contemporânea,
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“Nós criamos o BMX e estilo livre para fazer nossas próprias coisas, para expressar
nossa própria definição de esporte, e para ter liberdade para isso como quisermos,
e não para ter nossas opiniões sancionadas por um poder superior.”
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“Estamos muito satisfeitos com a inclusão do esqui e do snowboard slopestyle
no programa dos Jogos Olímpicos de Inverno. Esses eventos oferecem grande
entretenimento para os espectadores e aumenta ainda mais o apelo jovem a
nossa já consolidada linha de ação aos esportes olímpicos de inverno.” (tradução
livre). Texto original Disponível em http://www.gamesbids.com/eng/other_
news/1216135778.html. Acesso em: 25 mai. 2014.
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Considerações finais
Vimos que o Movimento Olímpico passava por dificuldades
no final do século passado em relação à renovação de audiência
entre o público jovem, e que encontrou nas atividades físicas na
natureza uma possível saída para esse problema, apostando em
suas características na adequação para as mudanças da própria
sociedade.
Apesar disso, Thorpe e Wheaton (2011) mostraram que
atletas e entusiastas pertencentes à “geração X” ainda sofrem certos
preconceitos pela diferença de ideologia frente ao fenômeno
esportivo, mas que paradoxalmente sua essência está fortemente
vinculada desde o início aos princípios presentes na Carta
Olímpica. Muitas vezes precisamos de programas especializados
em Educação Olímpica para transmitir valores a praticantes de
outras modalidades, mas que já estão inerentes aos praticantes
das modalidades esportivas na natureza. Além do estudo citado
pelos autores, utilizamos, aqui também, a prova do slopestyle
como exemplo de como isso poderia ser feito. Ou seja, dada a
popularidade do skate no Brasil, principalmente entre as camadas
de maior vulnerabilidade socioeconômica; a existência de um
ídolo para as crianças se espelharem; o potencial educativo dessa
modalidade e da presença no programa olímpico, acredito que
tenhamos um ambiente propício para a elaboração de programas
educacionais, mas ainda não explorado. De acordo com a
Federação Internacional de Esqui, existe apenas um programa
educacional relacionado ao esqui na América do Sul, realizado na
cidade de Bariloche, na Argentina6.
Frente a esse quadro, portanto, observamos que desde o
final do século passado o Comitê Olímpico Internacional vem
apresentando ações com o intuito de integrar os objetivos do
Movimento Olímpico com as questões ambientais. Apesar disso,
poucos estudos têm se dedicado à apropriação desse legado
http://wiki.f is-ski.com/index.php/Esqui_Escolar/skiing_for_school_
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Referências bibliográficas
BENTO, J. O. Desporto: Discurso e substância. Belo Horizonte:
Instituto Casa da Educação Física, 2013.
BETRÁN, A. O.; BETRÁN, J. O. Propuesta de una classificación
taxonômica de las actividades físicas de aventura en la naturaleza.
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41, p. 108-123, 1995.
BETRÁN, J. O. Dossier las Actividades Físicas de Aventura en la
Naturaleza: Análisis sociocultural. Apunts. N. 41, 1995.
CAMPS, A.; CARRETERO, J. L.; PERICH, M. J. Aspectos normativos
que inciden en las actividades físico-deportivas en la naturaleza”.
Apunts. N. 41, p. 44-52, 1995.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis:
Vozes, 1994.
COI. Pierre de Coubertin - Olympism: selected writings. International
Olympic Committee, Lousanne, 2000.
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Mais informações estão disponíveis em <http://www.ufrgs.br/ceme/site/>.
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Pode ser acessado no seguinte endereço: <http://www.lume.ufrgs.br/>.
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Disponível em <http://sabi.ufrgs.br>.
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Referências
ALBERTI, Verena. História oral e a experiência do CPDOC. Rio
de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil, 1989.
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Mais informações em: <http://www.ufrgs.br/ceme/site>.
Produzidos pelo Grupo de Estudos sobre Esporte, Cultura e História (GRECCO),
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ste artigo incorpora algumas reflexões apresentadas em outras ocasiões, algumas
E
delas em parcerias com outros colegas. Tais produções foram citadas em notas
de rodapé.
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SALOMÃO, Waly. Carta aberta a John Ashbery. In: SALOMÃO, Waly. Algaravias.
2
p. 1, 15 de março de 1877.
88
de 1894.
MELO, Victor Andrade, SANTOS, João Manuel Malaia Casquinha, FORTES, Rafael,
5
89
MELO, Victor Andrade de. Esporte e lazer: conceitos. Rio de Janeiro: Apicuri/
6
Faperj, 2010.
SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia, COSTA, Maurício da Silva Drumond,
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91
In: HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo:
Paz e Terra, 1997. p. 306.
HOBSBAWM, Eric J. A produção em massa de tradições: Europa, 1870 a 1914.
12
In: HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo:
Paz e Terra, 1997. p. 309
MELO, Victor Andrade, SANTOS, João Manuel Malaia Casquinha, FORTES, Rafael,
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BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 105.
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CARR, Edward. O que é História? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
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Introdução
Buscando em minha própria memória, tenho lembrança de
competições olímpicas desde os Jogos Olímpicos de Munique, em
1972, menos pelo atentado que ocorreu na Vila Olímpica e muito
mais pelas apresentações de Olga Korbut, uma soviética que usava
marias-chiquinhas e, juntamente com Ludmilla Turischeva, fazia o
impossível para que a ginástica artística de então fosse na trave
de equilíbrio ou nas paralelas assimétricas. A ginástica era um
sonho para mim, e embora eu sonhasse em ser como elas, sabia
de minhas limitações físicas e materiais para chegar até aquilo.
Passados quatro anos, essa sensação de impotência
ficou ainda maior ao ver Nádia Comaneci ser a primeira atleta
a conquistar a nota 10 nas provas de trave e das paralelas
assimétricas, elevando em muito o que Olga fizera na edição
anterior dos Jogos Olímpicos. Sem saber ou entender das políticas
que levavam o país a ser o que era no campo esportivo, buscava
de alguma forma estar próxima daquele fenômeno, praticando
esporte na escola e participando das competições escolares, que
tinham um significado proporcional aos Jogos Olímpicos para
estudantes da cidade em que vivia. E naqueles momentos eu
buscava reproduzir, fosse na gestualidade ou mesmo no design
dos uniformes, o feito dos atletas que admirava.
E assim como as ginastas soviéticas, atletas como Adhemar
Ferreira da Silva, Joaquim Cruz, Jesse Owens, Aída dos Santos,
Jackie Silva e tantos outros não apenas marcaram a história dos
Jogos Olímpicos em sua época, mas também perpetuaram seus
feitos na memória de diferentes gerações e com isso despertaram
ou mantiveram acesa a chama do desejo de crianças e jovens
de se tornarem atletas. Foram necessários muitos anos para que
eu entendesse que aquele processo de identificação que se deu
comigo era muito mais comum do que podia imaginar, e que
outras tantas crianças e jovens também começavam a praticar
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As narrativas biográficas
O início do percurso metodológico da pesquisa se deu
a partir das histórias de vida. Entendidas como uma forma
particular de história oral, foram utilizadas como um instrumento
para captar e organizar a memória por apreender valores que
transcendiam o caráter individual do que era transmitido e que
se insere na cultura do grupo social ao qual narrador pertence
(Rubio, 2001). Essa construção considera os dados relevantes
da trajetória do narrador dando uma ideia do que foi sua vida
e do que ele mesmo é nesse momento. Essa atitude reflexiva
permite a reexperimentação de situações passadas não apenas do
ponto de vista do desenrolar dos fatos, mas pela ressignificação
de episódios marcantes para o narrador, que se permite inverter
(ou subverter) a narrativa obedecendo a uma cronologia própria
da afetividade implicada no evento ocorrido, dando ao seu texto
um contexto. Para tanto, busquei Bosi (1993), Delgado (2006),
Ferraroti (1983) e Meyer (1998), que apontaram os caminhos
da Psicologia Social e da Antropologia para o entendimento de
histórias pessoais relacionadas ao esporte.
Esse quadro ganhou complexidade no momento em que
as questões relacionadas à formação da identidade e ao cenário
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ara a Psicologia, o termo insight é entendido como compreensão interna,
P
compreensão súbita, apreensão súbita, visão súbita, discernimento, perspicácia
(Sandler, Dare e Holder, 1977). Diante da impossibilidade de tradução
literal, refere-se a esse conceito o neologismo intravisão (Abel, 2003).
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Referências bibliográficas
ABEL, M. C. O insight na psicanálise. Psicologia Ciência e
Profissão, Brasília , v. 23, n. 4, dez. 2003. Disponível em <http://
pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
98932003000400005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 27 ago. 2014.
BENJAMIN, W. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 2012. v. 1
BOSI, E. A pesquisa em memória social. Psicologia USP, S. Paulo,
4 (1/2), p. 277-284, 1993.
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“Pesar de tudo
Pesar do peso
Pesar do mundo
sobre si mesmo...”
Pesar do mundo
José Miguel Wisnik/Paulo Neves,
para o espetáculo “Onqotô” – Grupo Corpo (2005).1
1
“Onqotô”, espetáculo de dança do Grupo Corpo, produzido por Alê Siqueira.
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O palco, o Universo
Jogador de futebol! Um dos principais “produtos de
exportação” nacional!2 Cerca de oitocentos jogadores profissionais
deixam o país ao ano – e mesmo assim mantêm-se uma dezena
de times com capacidade de competir não só em campeonatos
nacionais como internacionais. Atualmente, essa situação tem
tido sua lógica minimamente invertida quando da valorização da
moeda nacional (real) frente a outras divisas.
Esse fato poderia ser interpretado como um sinal de
superioridade em relação aos centros de formação futebolistas,
mas, na realidade, a nem sempre conhecida trajetória desses
jogadores que se tornaram profissionais evidencia uma preparação
qualitativa dos jovens para os desafios da profissão, e muito
menos para os prováveis insucessos.
Segundo Damo (2007), no Brasil são gastas em torno de
5.000 horas de treinamento, em um período de dez anos, focando
o aprendizado corporal e quase nada no aprendizado intelectual.
A quantidade de horas sugere três fases no processo de formação
de um atleta de futebol: endógena (o clube promove os jogadores
vindos das categorias de base, estimulando a economia e os
vínculos de identidade clube/atleta), exógena (empresas mentoras
do projeto que forma os “pés de obra”, lucrando com a venda dos
passes) e híbrida (conciliando a formação afetiva das “pratas da
casa” com a produção do mercado).
Considerando-se o processo de formação e avaliando-se o
mercado de trabalho existente para os atletas profissionais da
modalidade, não é possível encontrar muitas opções para efetivar
a prática profissional. Assim, sem a expansão do mercado e com
a presença das grandes torcidas vinculadas ao futebol espetáculo,
o autor aponta que o clubismo (identificação com o clube e não
necessariamente com o jogador) pode ser um fator limitante
para a profissionalização dos atletas, estimulando a circulação
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Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u52551.shtml.
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24 ago. 2014.
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Referências bibliográficas
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intelligence critique du phénoméne sportif contemporaisn. In:
BAILLETTE, F. & BROHM, J. M. (Eds.), Critique de la modernité
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139-150, 2008.
136
137
138
2
Centro de Investigação em Atividade Física e Lazer (CIAFEL), FADEUP, Portugal
Introdução
Os primeiros Jogos Paralímpicos foram realizados
em Roma – 1960. Desde então, distintos marcos históricos
e evolutivos transformaram essa prova no auge de realização
desportiva para atletas com deficiência (Brittain, 2010; Howe,
2008; Legg & Steadward, 2011). Atualmente, esses Jogos são
o reflexo e a expressão máxima do desporto para pessoas com
deficiência vocacionado para o alto rendimento: o desporto
“(Para)Olímpico”.
Tal como nos Jogos Olímpicos, as expectativas face
aos resultados do atleta paralímpico têm crescido, sendo
acompanhadas por uma crescente visibilidade e notoriedade
nacional e internacional (Schantz & Gilbert, 2008). A presença
nos Jogos Paralímpicos é, pois, o culminar de um percurso de
excelência no desporto. É nesse palco que o atleta paralímpico
expõe as suas habilidades, atingindo resultados que, muitas
vezes, transcendem limites percebidos como intransponíveis.
Mas alcançar tão distinto cenário exige do atleta elevado
comprometimento, empenho, treino árduo e a construção de um
caminho preenchido de vitórias e derrotas nos mais variados
palcos internacionais.
A prática de uma modalidade desportiva ao nível da
alta competição e a construção de um percurso desportivo de
sucesso representam um processo complexo. O fato de um atleta
ser detentor de elevado potencial e talento para a prática de
uma modalidade não constitui, por si só, garantia para a vitória.
O contexto histórico e social também é determinante na sua
carreira, e quando nos referimos a atletas de elite com deficiência,
a complexidade inerente ao contexto aumenta face à diversidade
edificadora do desporto paralímpico.
Em Portugal, o desporto para pessoas com deficiência
ultrapassa os quarenta anos de existência. Apesar das nove
participações portuguesas em Jogos Paralímpicos e das medalhas
139
140
3
ivisão administrativa territorial adotada em Portugal semelhante aos municípios
D
no Brasil.
4
Revezamento.
5
Para poderem competir, todos os atletas com deficiência intelectual têm de ser
submetidos a um processo de classificação. Caso sejam considerados elegíveis
para competir, esses atletas enquadram-se nas provas para a classe F20.
6
Esses jogos foram criados pela Federação Internacional de Desporto para Pessoas
com Deficiência Intelectual a (International Sports Federation for Persons with
Intellectual Disability - INAS-FID) para “substituir” os Jogos Paralímpicos dos
quais os atletas com deficiência intelectual foram afastados entre 2000 e 2012,
devido a erros na classificação desportiva de atletas da seleção espanhola.
7
Rol de títulos.
8
Salto triplo.
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9
Salto em distância.
10
Salto com vara
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11
Handebol.
143
Deficiência? Eu?
Em 1999, aos 16 anos, Lenine passa a integrar o desporto
para pessoas com deficiência e a participar em competições
adaptadas. Na época, Lenine mostrou-se relutante em aceitar o
convite feito pelo engenheiro Costa Pereira, selecionador nacional
na área da deficiência intelectual. Explica por que:
12
Cross Country.
13
Atleta olímpico português de referência no atletismo nacional. Ao longo da sua
carreira, Nélson Évora arrecadou inúmeras medalhas nacionais e internacionais,
tendo-se destacado como campeão do mundo e como campeão olímpico nas provas
de triplo salto e salto em comprimento, provas em que Lenine Cunha compete.
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149
De regresso à competição
Oito anos mais tarde, chegou finalmente a decisão tão
esperada pelo atleta:
Em 2008, depois dos Jogos de Pequim, saiu a notícia de que
nós íamos voltar e que íamos passar por testes rigorosos
comandados pelo IPC. Passados doze anos, finalmente
pude voltar… mas tive medo de não conseguir. (…) Fiquei
assustado derivado aos novos testes que íamos fazer. (…)
Depois nós começámos a pensar: “Será que os melhores vão
ficar de fora?”; “Será que eu vou ficar de fora?”. Eu trabalhei
tanto para fazer boas marcas e tinha medo de morrer na
praia. (…) Nós fizemos testes psicotécnicos e depois testes
específicos para o salto em comprimento. (…) Aí passei
uma fase grande de ansiedade porque tive receio de não
passar. Mas agora, com o novo exame que fizemos, já fiquei
classificado definitivamente. Não tenho de me preocupar com
mais nada porque está feito!
Diante da oportunidade de regressar aos Jogos Paralímpicos,
a incerteza dominou seus pensamentos durante alguns meses. A
possibilidade de não ser aprovado nos rígidos testes definidos
para a reclassificação dos atletas aumentou sua ansiedade perante
o desejo desmedido de reviver a experiência dos Jogos.
Soube que fiquei classificado de vez apenas antes de irmos
para os Jogos… Ufa! Custou aquele tempo… Foi na Holanda,
em 2012, no Campeonato da Europa que soube. Foi o último
teste que nós fizemos, depois de não sei quantos… e finalmente
saiu a lista a dizer que tinha sido aceito, foi um alívio! [sorriso]
Durante o ciclo paralímpico precedente aos Jogos de
Londres, em 2012, Lenine reconhece que atingiu um dos pontos
altos do seu percurso desportivo. Na realidade, em 2008,
o atleta conseguiu um forte patrocínio individual que lhe permitiu
readquirir o alento e apoio necessários de que sentiu falta nos
anos anteriores. O patrocínio foi fundamental para que pudesse
dedicar-se por inteiro ao desporto e veio permear todo o esforço
e empenho desenvolvidos pelo atleta ao longo de vários anos de
uma carreira repleta de troféus.
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157
As batalhas de um campeão
O trilho percorrido por Lenine foi pautado por diversos
obstáculos. Além das adversidades referidas, como a falta de
apoio, a escassez de reconhecimento e a desmotivação associada
ao afastamento dos atletas com deficiência intelectual das
competições organizadas pelo IPC, nem sempre a intensidade e
volume de treino realizado pelo atleta foram fáceis de tolerar.
Treinar para a multiplicidade de provas em que compete revelou-
se uma tarefa complexa, mas também essencial para manter a
motivação elevada. Nesse contexto, a conquista de um número
elevado de medalhas por competição surge como um prémio
superior que Lenine sempre ambicionou conquistar e que está
relacionado com a sua própria personalidade.
Partindo do conhecimento adquirido no decorrer da sua
carreira, Lenine partilhou a sua perspectiva sobre a conjuntura
atual do desporto para pessoas com deficiência em Portugal.
Para ele, é fundamental que esse tipo de prática desportiva
assuma uma maior visibilidade em contexto nacional, através
de uma efetiva divulgação e informação da sociedade em geral.
Concomitantemente, o atleta atribui um papel primordial ao
CPP, entidade que deverá liderar um trabalho sério e refletido,
orientado para a seleção de talentos, uma vez que é evidente a
elevada média de idades dos atletas paralímpicos portugueses
que ainda competem no desporto de elite. Nessa conformidade,
destaca as escolas como contexto privilegiado e primário de
intervenção e realça a necessidade de as estruturas organizativas
atuarem no sentido da aproximação das condições proporcionadas
a atletas olímpicos e paralímpicos. Para Lenine, este representa o
único meio viável para a manutenção dos atletas paralímpicos
portugueses em lugares cimeiros.
Primeiro, eu acho que não há visibilidade que chegue porque
há muitos miúdos com deficiência, seja ela qual for, que não
sabem onde é que se pode praticar desporto paralímpico. E
acho que o Comité Paralímpico (…) devia investir nas escolas.
158
Os mais significativos
Refletindo no seu percurso, Lenine enaltece os pais e o
treinador como as pessoas que mais o marcaram nas suas proezas
desportivas. No que se refere aos pais, o atleta destaca a sua
educação. Apesar das suas limitações cognitivas, os pais de
Lenine sempre atuaram no sentido do desenvolvimento da sua
autonomia e nunca o impediram de aproveitar as oportunidades
que lhe foram surgindo ao longo da vida.
Os meus pais desde os 12/13 anos, sabendo o problema que
eu tinha, sempre me prepararam para o que vinha a seguir.
Eles já estavam a pensar no meu futuro e trabalharam para
que eu fosse o mais autónomo possível. Às vezes as pessoas
perguntam-me qual é a minha deficiência porque eu sei falar
bem, mas foi derivado à educação que eu tive em que os meus
pais tentaram compensar as minhas dificuldades. (…) Estou
muito agradecido porque se não fossem eles não tinha a vida
que tenho hoje... (…) Depois, quando surgiu o convite de ir
para a ANDDI, os meus pais aceitaram de bom grado porque
sabiam o problema que eu tinha. Mas há alguns pais que não
aceitam, e eles podiam ter-me impedido. (…) Então, quando
eu lhes disse que ia representar Portugal aos Jogos, eles
apoiaram-me ainda mais. (…) Os meus pais acompanhavam-
me muito, foram ver algumas provas minhas e apoiaram-me
imenso. (…) Tudo o que tenho hoje e tudo o que ganhei é
devido à motivação que eles me deram também.
159
O porvir
Ao perspectivar o seu futuro desportivo, Lenine é
prudente. As suas capacidades já não correspondem ao pico
de forma atingido anos antes e a vontade de assumir diferentes
papéis sociais começa a manifestar-se, ainda que ligada ao meio
desportivo.
Daqui para frente quero ganhar medalhas e ter os olhos no Rio
de Janeiro. Ainda falta muito, mas é agora que se começa a
trabalhar para isso. Estou apurado automaticamente porque
fui medalhado. (…) Eu gostava de ganhar uma medalha e
gostava de acabar em grande, mas vai ser difícil. Vão começar
a aparecer atletas mais jovens agora… A competição está
muito mais forte e isso se vê pelos resultados das medalhas que
Portugal tem trazido. (…) Depois vamos ver… um ano antes
eu faço as contas. (…) Eu fiz um balanço, para entregar ao
Banif, do que ganhei em quatro anos… e foram 51 medalhas
internacionais. Hoje não vou dizer que vou ganhar isso outra
vez, mas acho que vou pôr um limite de 40. (…) Também
há provas que eu vou deixar de fazer porque a idade já não
perdoa e já não tenho aquela resistência de correr para um
lado e para o outro como na minha juventude. (…) Depois,
eu gostava muito de trabalhar em algo ligado ao desporto.
(…) Por exemplo, se fosse ali no estádio onde eu treino era
ótimo. Nem que seja para recepcionista ou até mesmo para
160
Eu sou o desporto
Da história de Lenine emana o ideal olímpico e, também,
paralímpico: “citius, altius, fortius”. Um desportista nato, que vive
a competição ao limite e que se supera a cada instante para se
revelar o melhor de todos os atletas. É alguém que “ama” o desporto
e que por isso se entrega para o experienciar profundamente. No
palco desportivo, Lenine gosta de assumir o protagonismo nas
provas, representa o papel principal como se fosse sempre seu e
de forma gloriosa. Tal como um autêntico guerreiro faz quando
enfrenta uma batalha, Lenine domina a cena desportiva.
O seu dinamismo, a ambição, a força de vontade e o espírito
competitivo que fazem parte da sua própria identidade, levaram-
no à conquista do mérito desportivo que hoje lhe reconhecemos
e em que as 153 medalhas internacionais conquistadas à data da
entrevista falam por si só.
Sou muito ambicioso. Como atleta tenho muita garra, muita
garra… Acho que basta ver pelos anos em que lutei para não
desistir e pela minha determinação. Quando estou determinado
a conseguir uma coisa vou até ao fim e às vezes até excedo as
expectativas, às vezes até fico admirado comigo mesmo… Por
isso acho que foi a minha ambição, determinação, paixão e
garra que me levaram bem alto. Mas, acima de tudo, tenho
muito espírito competitivo. (…) E nas provas eu tenho de sofrer
até ao fim; mesmo que doa, eu tenho de sofrer até ao fim. É esse
o meu espírito competitivo.
O desporto assume, então, uma função vital na vida do
atleta, sendo enaltecido diversas vezes:
O desporto é o que eu gosto, é a minha vida. Às vezes a
motivação de que precisava para continuar vinha daí. Porque
eu gosto disto, eu amo isto! Não sei mais nada, eu só sei fazer
isto. (…) Uma vez perguntaram-me assim: “Se não tivesses o
ataque de meningite como é que seria?” E eu não posso dar
graças a Deus, mas às vezes penso que se não fosse o ataque de
meningite eu não tinha ganho as medalhas que ganhei nem
161
Conclusão
Para Lenine Cunha, o desporto assume um significado
primordial, sendo relevante pelas experiências vividas nesse
contexto desportivo, mas também pelas marcas visíveis deixadas
na construção da sua identidade: uma identidade atlética.
A experiência vivida no imaginário paralímpico revestiu-se
de significado, sendo destacadas na narrativa do atleta, através de
episódios marcantes, histórias de superação e de transcendência.
No seu percurso desportivo salientam-se a iniciação precoce no
desporto regular e, mais tarde, no desporto para pessoas com
deficiência; a rápida ascensão ao desporto de elite; a longa
carreira edificada na alta competição e a excelência dos seus
resultados de alto nível. Um trajeto que se distingue pelo elevado
comprometimento com a prática desportiva, pelo sucesso e pelo
reconhecimento social, mas também por inúmeros obstáculos.
Como um verdadeiro ser dotado de transcendência, Lenine foi
superando cada barreira que colocavam no seu caminho e tornou-
se o atleta português mais medalhado de sempre. Através dos seus
resultados de excelência foi ganhando notoriedade e visibilidade,
conquista que partilha com os seus “mais significativos”.
Na sua narrativa é ainda exposto um contexto desportivo
nacional adverso, onde se reclama maior apoio e se impõem
amplas e profundas transformações no sentido de impulsionar
o desporto paralímpico e valorizar o atleta paralímpico nacional. A
história de Lenine mostra-nos a necessidade de profissionalização
do atleta paralímpico, considerando-a como fator crucial para o
êxito desportivo, a par com o comprometimento e a dedicação
exclusiva ao desporto. Percebemos o mesmo noutros atletas
paralímpicos portugueses que entrevistámos num estudo mais
amplo e representativo da realidade nacional e do qual Lenine
também faz parte.
162
163
Introdução
Em 2014 a Federação Internacional de Futebol (FIFA)
completou 110 anos de existência. Com mais filiados do que
a Organização das Nações Unidas (ONU)1, a FIFA, apesar das
recentes acusações de corrupção, apresenta-se como uma
entidade sólida e de grande influência no mundo esportivo.
Ao longo desse tempo, oito presidentes ocuparam o posto de
mandatários do futebol mundial, sendo que apenas um deles
não era da Europa ocidental. O único presidente de “fora” foi o
brasileiro de descendência belga Jean-Marie Faustin Goedefroid
de Havelange ou apenas João Havelange.
Mas qual brasileiro Havelange representa? Descendente
de europeus, de família aristocrática e que falava várias línguas,
atributos que o colocavam em um determinado lugar dentro
da sociedade brasileira. Os postos administrativos que ocupou
fizeram com que outros dois elementos de distinção, a vestimenta
(uso de terno) e a alimentação (comidas elaboradas e restaurantes
finos) reforçassem que Havelange não era um brasileiro comum
(ROCHA, 2013a) exatamente por se afastar das características de
muitos brasileiros. Enfim, tinha uma série de capitais culturais
que o colocavam no metiê esportivo. Portanto, Havelange possuía
o capital simbólico para traçar sua trajetória dentro do campo
esportivo (BOURDIEU, 1983), que fora construída, especialmente,
com a conquista do tricampeonato mundial de 1970 quando
era presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD).
E graças a esse capital simbólico, construído ao longo de sua
trajetória, ele não era apenas um brasileiro tentando o posto de
presidente da FIFA2.
A FIFA possui 209 países filiados, enquanto a ONU tem 193. Disponível em
1
http://pt.fifa.com/aboutfifa/organisation/associations.html;
http://www.onu.org.br/conheca-a-onu/paises-membros/ – Acesso em: 5 jul. 2014.
Agradeço a esses apontamentos feitos pelo professor doutor José Paulo Florenzano
2
na defesa do doutorado.
165
166
Muito do que falou na entrevista também foi contado por Havelange para o
4
167
5
Em carta ao sócio, cita a existência de caixa dois em sua empresa.
“Natação. O novo presidente da F. M. N.”. O Estado de S. Paulo, 5 de março
6
de 1952, p. 11
“Eleito o vice-presidente da C. B. D.”. O Estado de S. Paulo, 20 de dezembro
7
de 1956, p. 20.
“A Posse dos Novos Diretores da C. B. D.”. O Estado de S. Paulo, 16 de janeiro
8
de 1958, p. 14.
168
“Polêmica e bilionária, negociação sobre Copa de 2002 divide a Fifa. Era Havelange
9
169
à fala do entrevistado.
“Os franceses já esperavam a derrota de Rous”. O Estado de S. Paulo, 12 de
12
170
13
“O velho sir abandona sua tradicional fleuma: vai derrotar Havelange”. Folha de
S. Paulo, 9 de abril de 1974, p. 24.
14
“O Brasil ganhou a FIFA”. Folha de S. Paulo, 12 de junho de 1974, p. 17 – Esportes.
“A triste manhã de Stanley Rous”. O Estado de S. Paulo, 12 de junho de 1974, p. 20.
15
de 1998, p. 6 – Esportes.
171
– Esportes.
Os presidentes franceses foram Robert Guérin (1904-1906) e Jules Rimet (1921-
18
que faleceu.
Perfil de Havelange no Boletim Olímpico. Consultar: Bulletin du Comité
20
172
21
“Era Havelange – Especial Copa 98”. Folha de S. Paulo, 8 de junho de 1998, p. 4.
Olympic Review, n. 95-96, setembro – outubro de 1975, p. 419. Fédération
22
173
23
“O candidato visita a sua seleção”. O Estado de S. Paulo, 9 de junho de 1974, p. 57.
Olympic Review, n. 80-81, julho – agosto de 1974, p. 367. Fédération lnternationale
24
174
Disponível em <http://pt.fifa.com/aboutfifa/organisation/president/pastpresidents.
25
175
Disponível em <http://pt.fifa.com/aboutfifa/organisation/president/pastpresidents.
28
176
Disponível em <http://pt.fifa.com/aboutfifa/organisation/president/pastpresidents.
29
2013, p. A29; “Havelange, 96, renuncia a cargo na Fifa para não sofrer punição”.
Folha de S. Paulo, 1º de maio de 2013, p. D4.
“Havelange é investigado por caso de suborno”. O Estado de S. Paulo, 15 de
32
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178
179
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181
Considerações finais
De atleta a dirigente, Havelange consolidou sua presença
no campo esportivo brasileiro e mundial. No primeiro capítulo
de sua biografia autorizada, inúmeros momentos históricos
são listados e de alguma forma relacionados com a trajetória
de Havelange (PEREIRA e VIEIRA, 2011). Desse modo, o texto
sugere a onipresença de Havelange no cenário mundial. Em
outras palavras, funciona como forma de sugerir que ele foi uma
pessoa muito influente, com muito poder e que estabeleceu uma
extensa rede de relações. Essa onipresença também foi indicada
por outros dirigentes quando denominaram Havelange (ROCHA,
2013a) como o “cartola dos cartolas” (WISNIK, 2008).
Ao longo de todo esse período em que foi dirigente
esportivo, Havelange acumulou poder, circulou junto a vários
presidentes da ditadura militar brasileira e visitou praticamente
todos os países membros da FIFA para se estabelecer no poder
por 24 anos. No Brasil, mesmo quando assumiu a presidência da
FIFA quis continuar na presidência da CBD. Como não conseguiu,
viu o poder da entidade mudar de mãos. Nunca pretendeu se
manter longe do poder, porquanto, muito tempo depois de ter
perdido o controle da CBD (posteriormente CBF), conseguiu
eleger seu então genro, Ricardo Teixeira (1989-2012).
182
p. 92. No mesmo jornal, porém do dia 19 de abril de 1974, na entrevista feita com
Havelange (“Buscar os votos, tática de Havelange”), são indicados 141 países
filiados, mas dois deles estavam suspensos (África do Sul e Rodésia).
“Buscar os votos, tática de Havelange”. O Estado de S. Paulo, 19 de abril de 1974, p. 21.
34
Olympic Review, n. 113, março de 1977, p. 165. “Two initiatives by the Fédération
35
183
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184
185
187
188
189
Amadorismo x profissionalismo
Nas primeiras décadas dos Jogos Olímpicos da Era
Moderna, o esporte era praticado por membros da aristocracia
dos países competidores e encarado como atividade amadora,
porém, esse termo era interpretado de diferentes formas. A
entrada do futebol como modalidade inscrita no programa oficial
dos Jogos Olímpicos se dá em Londres, em 1908, apesar de ter
sido apresentada como modalidade exibição em Paris, em 1900.
190
191
192
Desatando os nós
Enquanto fazíamos a busca, Paulinho não tinha rosto,
não era um jogador dos mais populares, nem havia matérias
exclusivas com ele em jornais e revistas da época. Infelizmente,
o fator tempo foi limitante mais uma vez, quando soubemos da
notícia, em um portal de internet de Campos dos Goytacazes,
de que o jogador Paulo Almeida, que havia atuado no Flamengo
no início dos anos 1950, havia falecido em novembro de 2013.
Conforme Bosi (2003), “Quando se trata da história recente, feliz
o pesquisador que se pode amparar em testemunhos vivos e
reconstituir comportamentos e sensibilidades de uma época”.
Uma estratégia de que dispúnhamos era procurar
informações por meio dos clubes nos quais os jogadores falecidos
haviam jogado. Entramos em contato com o departamento
histórico do Clube de Regatas do Flamengo e conseguimos a
informação, naquele momento surpreendente, sobre a existência
de um torcedor rubro-negro que manteve contato com Paulinho
nos seus últimos anos de vida e é reconhecido como seu maior
fã. Até os dias atuais, em todas as partidas do Flamengo o
torcedor leva uma faixa com o nome de seu ídolo e a seguinte
frase atribuída a Paulinho: “O Flamengo foi o sonho da minha
adolescência. É amor pra vida inteira”. Esse torcedor é Fabiano
Moço, que reside em Campos dos Goytacazes, e através das redes
sociais conseguimos nos aproximar e conhecer um pouco mais
sobre a trajetória de Paulinho. A partir desse contato, chegamos
ao jornalista Péris Ribeiro, conterrâneo e conhecedor da história
de Paulinho, o qual inclusive publicou alguns textos que contavam
o caminho percorrido pelo atleta. Da paixão de um amante do
193
Contextos e versões
Se a História é escrita através das versões contadas por
aqueles que dominaram ou foram vitoriosos em determinadas
situações, isso talvez explique a importância de se fazer uma
busca minuciosa e consultar fontes distintas quando se tem a
intenção de escrever sobre um fato histórico e de onde podem
surgir várias versões. Para Rubio (2010), “Não há dúvida de que
os eventos históricos são ditados pelas ações humanas, que
imprimem suas marcas diante da projeção dada àquele que narra
o fato ou a ideia que o anima”.
A possibilidade de se produzirem diferentes versões de uma
mesma história e a questão da imagem criada pelos vencedores
demonstram uma relação curiosa, como por exemplo, com o
grupo de descendentes japoneses Shindo Renmei, descrito no livro
Corações Sujos, do escritor brasileiro Fernando Morais. Durante
o período pós-Segunda Guerra, em 1945, alguns descendentes
japoneses que viviam no Brasil fundaram essa associação e
passaram a perseguir os imigrantes japoneses que aceitavam o
fato de que o Japão havia perdido a guerra. Esse grupo atuou,
principalmente, no interior dos estados de São Paulo e do Paraná
“caçando os conterrâneos traidores”, que foram denominados
194
195
Reconstruindo a memória
Os mais de sessenta anos que separam a participação
nacional nos Jogos Olímpicos de Helsinque e nossa pesquisa
acabaram sendo determinantes para que não tivéssemos acesso
a essa narrativa, que poderia ser esclarecedora e impediria a
ocorrência de erros. Afinal, nada é mais autêntico que a narração
do próprio personagem. Conforme aponta Bosi (2003), “Mais que
o documento unilinear, a narrativa mostra a complexidade do
acontecimento. É a via privilegiada para chegar até o ponto de
articulação da História com a vida quotidiana”.
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Considerações finais
Conforme Halbwachs (2006), não há apenas uma memória
individual, mas também uma memória do grupo, que existe
199
200
Referência bibliográfica
201
Websites:
Blog “Tardes de Pacaembu – O futebol sem as fronteiras do tempo”
Disponível em: http://tardesdepacaembu.wordpress.com.
Acervo jornal O Globo
Disponível em: http://acervo.oglobo.globo.com/
202
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Pra mim não foi uma coisa imediata porque, assim que parei
de jogar, eu já estava dando aula à tarde na Associação
Alumni e no Colégio Santo Américo todas as manhãs. Então
eu não tive muito tempo para pensar nisso. É óbvio, você sente
falta, mas eu continuei frequentando o Clube, joguei nos
veteranos do Sírio junto com os meus contemporâneos. Na
verdade era só por farra, mas era uma forma de continuar
mantendo o espírito competitivo, até que a frequência foi
abaixando [Agra].
Depois de passar por um período de dúvidas (originais),
avaliar possibilidades, perdas e ganhos, o pós-atleta segue em
busca de alternativas, ensaiando novos papéis, filiando-se a
outros grupos e contextos, compartilhando experiências e/ou
recorrendo à ajuda profissional (DRAHOTA e EITZEN, 1998). A
estratégia que Paula encontrou para lidar com a saída do papel
foi, primeiramente, atribuir significado distinto ao término da
carreira atlética, recurso que estruturou a maneira como encarou
as mudanças. Em outras palavras, os primeiros passos que deu
rumo à transição não foram concebidos como um fim, mas como
uma possibilidade de exploração de novos horizontes, certa de
que as exigências internas e externas por resultados, resiliência
para lidar com altos graus de estresse e bom desempenho
permaneceriam fazendo parte de sua vida.
A experiência de Agra, por sua vez, sugere que a saída
do papel de atleta pode ser menos custosa quando sustentada
pela vivência de papéis da vida cotidiana em paralelo com a
carreira atlética. O tipo de recurso que utilizou para lidar com a
diminuição da intensidade e frequência da prática esportiva foi
o desengajamento paulatino através de competições na categoria
veterano, pelo tempo que considerou necessário. Drahota e Eitzen
(1998) sugeriram que à fase buscando alternativas devam ser
acrescentadas diferenças de época, pois atletas profissionais se
diferem dos atletas amadores no que se refere ao tipo de transição
e conjunto de alternativas de enfrentamento das implicações
da mudança. Atletas profissionais carecem de tempo hábil
para desenvolver outros interesses e papéis e se tornam mais
vulneráveis às crises da transição do que os amadores, por sua vez
mais habituados à dupla jornada de trabalho e, consequentemente,
menos vulneráveis às crises de transição, condição que encontra
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Criando o ex
Então, é algo que não é fácil, vou ser sempre vista como a
jogadora de basquete, por mais que eu esteja me esforçando
como uma nova gestora. Já estou há dez anos nessa história
(como gestora) e vou ser sempre vista como a Paula que jogou
basquete [Paula].
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Introdução
O ciclismo de estrada possui características muito singulares
no tocante à construção da vitória. Tais características possuem
origem no sistema de competição dessa modalidade. O formato
mais famoso de disputa é o esquema de “grandes voltas”, em
que os atletas percorrem longas distâncias por dias seguidos. O
cenário de disputa são estradas de uso comum da população,
que ligam cidades e vilarejos, com centenas de quilômetros de
altimetrias variadas, situadas entre as mais altas montanhas até
estradas de planície ao nível do mar.
Esporte popular entre os europeus e originário desse
continente, possui competições com tamanha tradição que nos
dias atuais se tornaram verdadeiros monumentos e instituições
do ciclismo e do esporte moderno (Dauncey e Hare 2005).
Dentre as competições mais tradicionais podemos destacar o Giro
D’Italia, a Vuelta de España e, principalmente, o Tour de France.
Competições popularmente conhecidas como as “Grandes Voltas”,
nas quais centenas de quilômetros são percorridos em cada etapa
diária e com duração de até três semanas, como acontece nos
dias atuais. Duas delas, o Tour de France e o Giro D’Italia, são
competições centenárias, cujas primeiras disputas datam de
1903 e 1909, respectivamente. A Vuelta de España, igualmente
antiga, mas um pouco menos tradicional que suas vizinhas,
conheceu sua primeira edição em 1935. Durante todo o período
de existência, essas competições foram interrompidas apenas
durante as grandes guerras e as guerras civis (Dauncey e Hare
2005). Outra forma de disputa muito tradicional no ciclismo de
estrada são as chamadas Clássicas da Primavera. As Clássicas são
corridas de poucas etapas, ou de apenas uma, que acontecem
durante a primavera europeia. São marcadas por percorrerem
centenas de quilômetros por estradas rudimentares dos campos
europeus, sendo algumas originais do período medieval. Entre
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1
odas as informações básicas sobre esses eventos podem ser obtidas em seus
T
respectivos sites oficiais:
- Tour de France: www.letour.fr
- Giro d’Italia: http://www.gazzetta.it/Speciali/Giroditalia/2013/en/index.shtml
- Vuelta a España: www.lavuelta.com
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A UCI (União Ciclística Internacional) promove uma divisão de nível de equipes pela
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Reforma institucional:
campanha de mundialização
Nesse período transicional, diversas tendências do esporte
moderno começavam a influir no ciclismo profissional. O
ciclismo se encontrava em uma fase de monotonia e encontrou
significativas mudanças sob as ações do então novo presidente da
FICP5, Hein Verbruggen. Na visão de Verbruggen, o ciclismo era
um “velho trem parado”. Um dos motivos devia-se ao fato de que
estrutura competitiva das equipes era baseada em uma espécie de
“estrela solitária” (líder), que obtinha a função de tentar a vitória
em todas as competições. Esse esquema era uma espécie de cartas
marcadas, no qual os gregários controlavam6 o jogo de todas as
corridas deixando a dinâmica da competição sempre isomorfa
e pouco atraente. Os outros motivos, segundo o presidente,
decorriam de práticas que estagnavam a modalidade, tal como a
corrupção na compra e venda de resultados e o doping.
Verbruggen empreendeu três ações que se tornaram os
pilares dessa fase de reestruturação institucional: a globalização
Controlar uma corrida significa realizar uma série de ações realizadas por parte
6
dos gregários, para anular qualquer desempenho que possa alterar o resultado e
desfavorecer o seu líder. A mais comum delas é anular todos os ataques adversários.
Quando todas as equipes realizam a mesma estratégia, a competição perde a
dinâmica, tornando o resultado previsível.
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Órgão máximo e controlador, a UCI (União Ciclística Internacional) tem sua jurisdição
7
existente há mais de cem anos. Durante sessenta anos a UCI supervisionou o ciclismo
de estrada amador e profissional. Em 1964, por pressões do Comitê Olímpico
Internacional para eliminar a possível influência do profissionalismo no ciclismo
olímpico, a UCI foi dividida em duas subfederações: a Fédération Internacionale du
Cyclisme Professionel (FICP), que cuidava do ciclismo profissional, e a Fédération
Internacionale Amateur de Cyclisme (FIAC), responsável pelo ciclismo amador
olímpico (Ibid). Com a admissão de profissionais a partir dos anos 1990, essas
instituições foram eliminadas e o ciclismo passou a ser governado por uma única
autoridade, retornando à UCI em 1993 (Brewer 2002).
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Período Contemporâneo
A estrutura de “estrela única” da equipe do período Clássico
era um risco para o patrocinador, que via suas chances de espaço
na mídia depositadas na expectativa de vitória de apenas um
atleta. Diante da racionalização do investimento do capital, a nova
estrutura intraequipe diminui esses riscos. Na década de 1990,
as mudanças do período de Reforma foram verdadeiramente
institucionalizadas, solidificando-se na modalidade. Na organização
da equipe, a maior característica foi a maleabilidade da rígida
estrutura hierárquica do período Clássico entre líderes fixos e
gregários subordinados. O sistema de ranking parece ter firmado
a condição do gregário no profissionalismo e clareado algumas
motivações de sua prática, pois permitiu maior visibilidade
e melhores contratos. Nas palavras do gregário australiano
Alan Peiper:
So points became really importante. Points really became
money. The old system of team leaders and domestiques 8 was
to be undermined. (…) With no points, domestiques had no
bargaining power at the end of the year. When it came time to
talk contract, the sprints you had led out and the work you had
done became overshadowed by ‘how many points do you have’.
Domestiques began to be inspired by points, and the desire to
do well grew (Peiper 1992, in Brewer 2002 p. 290).
As equipes passaram, então, a realizar contratações
igualitárias, trazendo para o mesmo time vários atletas com talento
para assumir a liderança do time em uma corrida. Essa situação
proporciona o trânsito de funções em diferentes tipos de corrida.
Nessa condição, o gregário, em uma determinada corrida, pode
se tornar líder, desde que o percurso e as condições o favoreçam.
Além da quebra de hierarquias, esse sistema proporciona às
equipes acumular mais vitórias durante a temporada.
Brewer (2002), ao comparar a estrutura da função do
gregário do período Clássico como o do período Contemporâneo,
chama a atenção ainda para a existência de um tipo de atleta
gregário (Contemporâneo) que emergiu em razão da visibilidade
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Expressão para designar os gregários na língua inglesa.
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Considerações finais
O ciclismo de estrada é um esporte conhecido por envolver
esforço coletivo, glória e consagração individuais. Quando ao
pódio, na celebração maior do vitorioso, a luz que encontra o
herói forma à sua sombra o rosto de seu gregário.
A estratégia realizada ao longo da competição transforma
o ciclismo em uma modalidade semelhante ao jogo de xadrez,
com a realização de um jogo de equipe em uma modalidade
individual, favorecendo a figura individual do capitão. Os ciclistas
gregários, como soldados em um front, garantem o êxito de uma
estratégia que visa facilitar a vitória do capitão, destacando uma
atitude de abnegação e entrega incomum no esporte, que valoriza
a competição e a busca da excelência capazes de gerar a vitória.
As histórias de vida desses atletas apontam que o conceito
de ética no esporte, e mesmo o de fair play, passa necessariamente
pela compreensão da cultura da modalidade, constituída a partir
da sua própria história. A nobreza da performance desse peão do
tabuleiro de xadrez, colocado em xeque ao longo da competição,
promove o brilho do rei e a continuidade de outras partidas, que
podem ou não ser jogadas no mesmo tabuleiro. Essa forma de
competir reforça e valoriza o caráter heroico do atleta, que lança
mão da conquista, desejo maior de quem dedica a própria vida a
chegar em primeiro lugar.
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Ana Sousa
Doutorada em 2014 em Ciências do Desporto e mestre em Atividade Física
Adaptada. Professora e investigadora na área do desporto para pessoas
com deficiência na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
desde 2009; orientou duas dissertações de mestrado; tem publicações
em capítulos de livros, artigos em revistas nacionais e internacionais
peer-review.
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Roberta Cardoso
É jornalista formada pela Universidade São Judas e pós-graduada em
Gestão e Marketing Esportivo pela Trevisan Escola de Negócios. Atua
há 10 anos na área de comunicação e faz parte do Grupo de Estudos
Olímpicos da EEFE-USP.
Rui Corredeira
Doutorado em 2008 em Ciências do Desporto e mestre em Atividade
Física Adaptada. Professor e investigador na Faculdade de Desporto da
Universidade do Porto desde 2002, sendo Diretor do curso de mestrado
em Atividade Física Adaptada na mesma faculdade desde 2009. Tem
como principais interesses de estudo as variáveis psicossociais na área
do desporto para pessoas com deficiência, a saúde mental e a sua
relação com a atividade física; orientou várias dissertações de mestrado
e doutoramento; tem diversas publicações em capítulos de livros, artigos
em revistas nacionais e internacionais peer-review.
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