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Preservação

da memória:
a responsabilidade
social dos
Jogos Olímpicos.

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Conselho Editorial
Alberto Filipe Araújo, Universidade do Minho, Portugal
Ana Mae Barbosa, USP, Brasil
Aquiles Yañez, Universidad del Maule, Chile
Carlos Bernardo Skliar, FLACSO Buenos Aires, Argentina
Cláudia Sperb, Atelier Caminho das Serpentes, Morro Reuter/RS, Brasil
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do Imaginário, Brasil
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Quito, Ecuador
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Romênia
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de l’Université de Bourgogne, França
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Regina Machado, USP, Brasil
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Soraia Chung Saura, USP, Brasil

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Preservação
da memória:
a responsabilidade
social dos
Jogos Olímpicos.

São Paulo, 2014

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1ª Edição
2014
Publisher
Kendi Sakamoto, Ph.D
Assistente Editorial
Caio Peroni
Diretora Literária
Flavia Bosqueiro
Secretária executiva
Bruna Rodrigues
Catalogação na publicação
Shill Pettian CRB 8.8.6707
Revisora ortográfica
Denise Agostinetti
Editoração eletrônica
Marcos C. Nishida
Projeto gráfico da capa
Fernando Tuma

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Preservação da memória: a responsabilidade social dos Jogos Olímpicos.
São Paulo, Képos, 2014
Bibliografia
ISBN 978-85-8373-024-8

1. Memória 2. Esporte 3. História 4. Jogos Olímpicos

Todos os direitos reservados aos autores.

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita
ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações,
assim como traduzida sem a permissão, por escrito, dos autores.
Os infratores serão punidos pela Lei nº 9.610/98.

Képos é um selo da Editora Laços

Impresso no Brasil

Publicado por Editora Laços Ltda.


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Website: www.editoralacos.com.br
E-mail: contato@editoralacos.com.br

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Sumário
Tempo de diálogo sobre a preservação da memória
do esporte brasileiro. ...................................................................... 9

Parte I – Preservação e Legado


Os Jogos Olímpicos do R io de Janeiro:
aspectos históricos e sociais.
Pedro Paulo A. Funari............................................................................. 15

Movimento Olímpico: uma leitura sociológica


sobre desenvolvimento, cenários de crises e futuras
possibilidades de mudanças.
Bárbara Schausteck de Almeida; Wanderley Marchi Júnior................. 29

Educação no Esporte.
A jornada das Olimpíadas Estudantis.
Maria Alice Zimmermann....................................................................... 47

Presente e futuro do olimpismo: o legado da geração X.


Raoni Perrucci T. Machado..................................................................... 61

A Importância da preservação e construção


de acervos: a experiência do Centro de Memória
do Esporte (Esef-Ufrgs).
Silvana Vilodre Goellner........................................................................ 77

Memória e história:
desafios metodológicos para os estudos do esporte.
Victor Andrade de Melo ........................................................................ 87

Parte II – Memórias, Narrativas e Histórias de Vida


Memórias e narrativas biográficas
de atletas olímpicos brasileiros.
Katia Rubio............................................................................................ 105

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O universo das narrativas.
Luciana Ferreira Angelo........................................................................ 123

Narrativa vivida no desporto paralímpico português.


Ana Sousa; Rui Corredeira; Ana Luísa Pereira..................................... 139

A onipresença de João Havelange no esporte.


Sérgio Settani Giglio.............................................................................. 165

Memórias cruzadas: histórias que reescrevem


o esporte olímpico brasileiro.
Isaias Sodré da Nóbrega Junior; Júlia Frias Amato; Roberta Cardoso..... 187

Entre o passado e o presente: o jogo dos papéis nas


narrativas de transição de carreira de Paula e Agra.
Neilton de Sousa Ferreira Junior......................................................... 203

A condição do gregário no ciclismo de estrada.


Aspectos de uma prática competitiva singular no
esporte contemporâneo.
Rafael Campos Veloso........................................................................... 219

Sobre os Autores............................................................................ 233

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Tempo
de diálogo sobre
a preservação da memória
do esporte brasileiro
Há muito a história anda de mãos dadas com a cultura
e a psicologia social. Se tempos atrás essa proximidade e
confusão pareciam causar mal estar nos puristas defensores das
fronteiras do conhecimento e do pensamento, na atualidade essa
convivência não apenas é bem-vinda como também desejada uma
vez que a produção do conhecimento é cada vez mais pródiga
em apresentar referências inéditas nascidas da proximidade
entre diferentes teorias. O diálogo, mais do que desejado, se
mostra necessário.
Alguns temas encontram-se hoje nessa zona fronteiriça
entre diferentes campos do saber. A memória é um deles.
Gesto essencialmente humano por somar afetividade, cognição,
historicidade e cultura, tendo como figura central a pessoa que
narra o que recorda, na memória estão contidas as marcas do
tempo e dos grupos sociais aos quais pertencemos. Tema caro à
psicologia, psicofisiologia, neurociências e à biologia, passou a ser
do interesse da antropologia, da sociologia e da história, quando
o entendimento da memória saltou do campo da aprendizagem e
da educação e alcançou o campo social com a memória coletiva.
Le Goff (2013) aponta que a memória coletiva além de
uma conquista é também um instrumento e um objeto de poder.
“São as sociedades cuja memória social é, sobretudo oral, ou que
estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas
que melhor permitem compreender esta luta pela dominação
da recordação e da tradição, essa manifestação da memória”
(p. 435). Essa postura implica em dar voz, ou ainda deixar
expressar pela oralidade, tantos quantos forem os narradores de
um determinado grupo social.
O esporte, assim como outros fenômenos humanos,
apresenta as marcas de um fato que se configura como social
e se perpetua no atleta, olímpico ou não, como o narrador
de eventos que colaboram para a formação de um imaginário
esportivo. Isso porque na condição de protagonista do
espetáculo ele tanto é o herói de seu tempo como o anônimo
em um futuro chamado pós-carreira.

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Foram esses os temas tratados no IV Seminário de Estudos
Olímpicos e que aqui estão registrados. O livro foi dividido em
duas partes.
Na primeira delas, denominada Preservação e Legado,
encontram-se os textos nos quais são discutidas as questões
relacionadas ao Movimento Olímpico e ao Esporte a partir de
diferentes referenciais teóricos e metodológicos.
No capítulo de Pedro Paulo A. Funari encontramos uma
visão histórica sobre os Jogos Olímpicos e uma análise do que se
entende por legado dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.
Bárbara Schausteck de Almeida e Wanderley Marchi
Júnior fazem uma leitura sociológica sobre o desenvolvimento
do Movimento Olímpico, a partir do entendimento das rupturas
e cenários de crise ao longo de mais de um século de Jogos
Olímpicos, a face pública do Olimpismo.
Entendendo o esporte como parte do processo de educação
Maria Alice Zimmermann traz um relato sobre as Olimpíadas
Estudantis da rede municipal de Educação do Município de
São Paulo e os valores transformadores tanto dos estudantes
participantes quanto dos professores, formadores dessa geração
de estudantes-atletas.
O legado da geração X é a contribuição que Raoni Perrucci
T. Machado traz para esse debate ao analisar as práticas chamadas
de “radicais” no passado e que passaram a receber diferentes
denominações no presente e que indicam a necessidade do
Movimento Olímpico de se abrir para aquilo que a sociedade
aponta como tendência esportiva.
À frente de um dos principais Centros de Memória do
Esporte brasileiro, Silvana Vilodre Goellner discute a importância
da preservação e construção de acervos na preservação da
memória do esporte e compartilha a experiência desse trabalho
inovador e necessário.
O capítulo de Victor Andrade de Melo apresenta os desafios
metodológicos para os estudos do esporte a partir do referencial
da história e da memória e aponta para as inúmeras possibilidades
de trabalhos futuros.
A segunda parte do livro, denominada Memórias, narrativas
e histórias de vida, conta com a contribuição de diferentes autores
que ao se ancoram nas narrativas de atletas para fazerem suas
discussões sobre a memória do esporte.

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Katia Rubio apresenta sua contribuição sobre narrativas
biográficas a partir da perspectiva dos atletas olímpicos brasileiros
de diferentes gerações.
O universo das narrativas de jogadores olímpicos de futebol
é o tema de Luciana F. Angelo que se ateve a esse aspecto na
formação da identidade desses atletas.
Ana Souza, Rui Corredeira e Ana Luísa Pereira fazem uma
discussão sobre o esporte paralímpico a partir da história de vida
do principal atleta paralímpico português.
O encontro com João Havelange levou Sergio Settani Giglio
a refletir sobre a extensão desse atleta que se tornou um dos
dirigentes esportivos de maior influência no século XX.
A constatação de um erro sobre a identidade de Paulinho
Almeida, um jogador de futebol olímpico de 1952, levou Isaias
Sodré da Nóbrega Junior, Júlia Frias Amato e Roberta Cardoso
a refazerem a trajetória de um astro do Flamengo apagado das
memorias do esporte olímpico.
A transição de carreira é o tema central dos estudos de
Neilton de Sousa Ferreira Júnior que aqui discute a transformação
da identidade de Agra e Paula ao encerrarem a carreira de atletas
a partir da narrativa de suas histórias de vida.
Rafael Campos Veloso traz para discussão o papel do ciclista
gregário, atleta responsável por imprimir um ritmo acentuado às
provas de ciclismo de estrada, sabedor de que seu papel implica
em não disputar espaço no pódio.
A diversidade dos temas aponta para a multiplicidade dos
diálogos que o tema memória e narrativas propicia. Espero que a
leitura desses trabalhos desperte o mesmo interesse e paixão que
cada estudo ou história de vida provoca em nós pesquisadores.

Boa leitura.

Katia Rubio

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Parte I
Preservação
e Legado

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Os Jogos Olímpicos
do Rio de Janeiro: aspectos
históricos e sociais
Pedro Paulo A. Funari
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Começo por agradecer o convite de participar do Colóquio


sobre os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro e do volume
correspondente aos seus anais. Como estudioso das Ciências
Humanas, historiador, antropólogo e arqueólogo1, estarei voltado,
portanto, às reflexões de caráter histórico e social. Nesta ocasião,
apresentarei algumas considerações sobre a historicidade
dos jogos, a partir de uma abordagem externalista da história
dos fenômenos sociais. Em seguida, passarei a discorrer sobre
os jogos antigos, tanto por estarem, de alguma forma, ligados
à sua reinvenção na modernidade, como pela possibilidade de
aprendermos com a diferença (pace Paul Veyne). Por fim, os Jogos
Olímpicos serão tratados no contexto dos estados nacionais e do
imperialismo moderno.

A perspectiva
A história da ciência é sempre um objeto controverso.
O estudo das Olimpíadas, como de tudo o mais, não pode ser
separado de como se consideram as transformações do estudo
dos jogos. Existe uma longa e respeitada tradição de considerar a
ciência como o acúmulo de conhecimento, de geração para geração,
acrescentado a realizações e descobertas anteriores. Nos ombros
de gigantes, até pequenos passos podem ser considerados como
progresso, conforme ponderavam nossos mestres renascentistas.
Essa abordagem tem sido descrita por alguns por enfatizar os
principais fatores internos que afetam mudanças em qualquer

Bacharel em História, Mestre em Antropologia Social, Doutor em Arqueologia,


1

sempre pela Universidade de São Paulo, livre-docente e professor titular do


Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas, ex-secretáriodo
Congresso Mundial de Arqueologia.

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disciplina acadêmica. De fato, Eratóstenes, no século três a.C.,
não teria sido capaz de calcular o diâmetro do nosso planeta
sem os experimentos e raciocínios prévios de matemáticos e
geógrafos anteriores. Ele se utilizou de conhecimentos prévios
e não há discussão sobre isso. Mas dois outros tópicos têm de
ser acrescentados: o contexto e ambiente alexandrinos, por um
lado, e o destino de suas ideias. A Biblioteca de Alexandria como
instituição acadêmica resultante da saída do império alexandrino
da pólis da Grécia Antiga é fator determinante para explicar as
conquistas intelectuais, muito além do limitado escopo de cidades
em relação direta com o império e a sua visão de mundo. Foi um
movimento dependente da mudança da cidade para mundo, de
pólis para cosmopolitas.
Em alguns séculos o mundo não seria mais considerado
redondo, nem as precisas medidas da circunferência da Terra feitas
por Eratóstenes seriam consideradas certas. Por algumas centenas
de anos o mundo se tornou plano e nenhum matemático, geógrafo
ou filósofo grego, apesar de conhecido, era suficiente para mudar a
perspectiva perseverante da Terra como um lugar completamente
diferente. A ciência não é construída apenas sobre antecessores,
mas também mudando princípios. Então, mais importante que
acúmulo de conhecimento, os contextos históricos, políticos e
sociais são essenciais para determinar e explicar mudanças na
ciência. Isso também é chamado de abordagem externalista
da história da ciência, ao enfatizar como circunstâncias sociais
prevalecem ao moldar o pensamento científico, como considera
Thomas Patterson ao discutir a história social da Antropologia dos
Estados Unidos, e esse é o principal guia da abordagem usada neste
trabalho. Em termos filosóficos continentais, tomar Heidegger,
Wittgenstein, Derrida e Foucault, entre outros, também pode ser
uma maneira de focar na forma em que se é possível pensar e
falar em circunstâncias específicas. Qualquer que seja o nível de
sofisticação do nosso entendimento, seja ele pragmático da matriz
filosófica anglo-saxônica, ou mais elaborado e abstruso na linha
hermenêutica continental, alemã e francesa, é claro que há mais
do que o mero acúmulo de conhecimento, essa é a perspectiva
deste capítulo. As Olimpíadas modernas referem-se às antigas,
como veremos, e isso é fundamental para sua constituição, mas
também foram o resultado de condições modernas muito próprias
e particulares. Por isso, neste capítulo será dada atenção aos Jogos
antigos, modernos e, por fim, às especificidades das Olimpíadas
do Rio de Janeiro.

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Os Jogos antigos
As informações sobre os Jogos Olímpicos antigos (776 a.C.
– 393 d.C), de quatro em quatro anos, por 1.168 anos, são tardias
e parciais, e isso por dois motivos. Por um lado, a escrita grega
antiga tardou a ser usada em larga escala, e a literatura só irá
desenvolver-se aos poucos. Por outro lado, nem tudo o que se
passava nos Jogos, por seu caráter sigiloso, foi registrado de forma
mais explícita. Para além da literatura, as fontes arqueológicas
diretas, em Olímpia, e na iconografia, fornecem indícios muito
relevantes sobre os Jogos.
Dois aspectos parecem essenciais nos Jogos Olímpicos: a
religiosidade e a substituição da guerra pela disputa regrada entre
atletas. No primeiro aspecto, o termo moderno “religiosidade” dá
conta do que os gregos antigos denominavam ta theia, aquilo que
se refere aos deuses. Nesse aspecto, muitos estudiosos, a partir de
uma perspectiva antropológica, propuseram a aproximação dos
Jogos Olímpicos antigos aos jogos indígenas, por sua sacralidade.
Tanto as disputas, como as premiações, referiam-se, assim, a
valores abstratos, ligados à honra, timé, e ao reconhecimento
coletivo, sob a proteção dos deuses olímpicos. O segundo aspecto
vincula-se, ainda, à religiosidade, na medida em que os jogos
eram uma espécie de ritual de substituição da guerra pela luta
de atletas, um agon. A centralidade da guerra, pólemos, para os
antigos, pode ser avaliada pela famosa observação de Heráclito:

     (Polemos panton


men pater esti)   , i  
    ,   
   .2
O conflito ou a guerra é pai de tudo. Esse reconhecimento
do conflito como essência da vida social foi fundamental para que
os antigos gregos pudessem, séculos depois do início dos Jogos
Olímpicos, formular interpretações críticas e duradouras sobre a
vida em sociedade, koinonia, comunidade. O conflito podia ser

2
“ O conflito é o pai de todas as coisas, rei de tudo. Fez de uns deuses, de outros,
homens, uns escravos e outros livres”. Heráclito de Éfeso, cerca 490 a.C., citado
por Hipólito de Roma (Philosophumena, 9, 4).

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considerado em termos macro ou gerais, entre cidades gregas ou
mesmo entre gregos e bárbaros, mas também, e com a mesma
relevância, no interior de cada pólis, entre seus grupos sociais. O
agón, ou luta individual, a competição nos Jogos Olímpicos retoma
essa centralidade do conflito, por um mecanismo antropológico
de substituição da guerra e da morte pela regra do combate,
nomos, sob o domínio da justiça divina, thémis.
O ocaso dos Jogos Olímpicos antigos, na esteira do domínio
cristão do mundo, a partir do século IV d.C., ressalta como esse
caráter simbólico e religioso era mesmo essencial e não poderia
sobreviver incólume à nova cosmovisão cristã. Isso tudo mostra
como os Jogos Olímpicos antigos representaram, por mais de um
milênio, uma prática muito particular e, com certeza, distante do
sentido moderno ao qual este capítulo se volta agora.

Os Jogos modernos: nação e império


Os Jogos Olímpicos modernos (1896) surgem em um
contexto histórico, social e político muito diverso do antigo. Os
Jogos modernos aparecem em ambiente laico, em tudo diferente
da predominância religiosa dos antigos. Há algo em comum: o jogo
como ritual de substituição da guerra. A modernidade apresenta,
junto ao Iluminismo laico e mesmo infenso à religiosidade, duas
características: o predomínio das interesses dos nascentes estados
nacionais e de suas políticas imperialistas.
Os estados nacionais surgiram apenas no século XVIII, na
esteira do Iluminismo e de revoluções, como no caso paradigmático
da francesa (1789). O antigo regime estava baseado em estados de
direito divino, com súditos de uma monarca que pouco precisavam
ter em comum. Esses novos estados nacionais baseavam-se em
homogeneidade de cidadãos que deviam compartilhar origem,
idioma, cultura e território. Surgia, assim, o nacionalismo, que
devia dar sustentação a esses sentimentos subjetivos de pertença
e unidade. O romantismo e a idealização do caráter ou ethos
nacional, a partir do início do século XIX, irão consolidar o
nacionalismo como fator cultural central da modernidade. Em
paralelo, estados nacionais passaram a confrontar-se e a buscar
expandir-se e dominar os não-cidadãos, os colonizados. Na
década de 1860, o próprio conceito de imperialismo, com este
nome, surgia. Não por acaso, logo em seguida surgiram os Jogos
Olímpicos modernos. A Guerra da Crimeia (1853-1856) foi decisiva
nesse aspecto, como em tantos outros, pois o horror da guerra

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reavivou-se de forma tão contundente que levou à cunhagem
desse conceito que está conosco até hoje: imperialismo, guerra
entre potências colonialistas.
O Barão Pierre de Coubertin (1863-1937), grande criador
dos Jogos Olímpicos modernos, inspirou-se, de forma direta
e explícita, nos antigos com seu ritual de substituição da luta
armada pela disputa regrada, sob os auspícios não mais dos
deuses olímpicos, mas, agora, da Humanidade, princípio oriundo
do Iluminismo e da Revolução Francesa. Nada mais natural, dada
a confiança no ser humano. Os Jogos visavam, de alguma forma,
a contrapor-se à disputa militar entre os estados nacionais – à
semelhança da contenda entre as antigas cidades gregas – e a
refrear o ímpeto imperialista. Não há, pois, como desvencilhar
os Jogos Olímpicos modernos dos antigos. Mas, o contexto era
outro: capitalista, imperialista. Mais do que isso, a fase otimista e
pacifista iria durar pouco (1896, ano dos primeiros Jogos, e 1914,
início da Primeira Guerra Mundial e ocaso da Belle Époque, que
deu origem aos Jogos modernos).
Os Jogos Olímpicos modernos viriam a ser interrompidos
por duas Guerras Mundiais (1914-1918; 1939-1945) e, mesmo
em outras circunstâncias, os conflitos bélicos levaram a boicotes
que obscureceram a universalidade almejada pelo Barão de
Coubertin, como nos casos notáveis das Olimpíadas de Moscou
(1980) e Los Angeles (1984) no ocaso da Guerra Fria (1947-1989),
resultado do conflito bélico no Afeganistão. Não há, pois, como
desvencilhar os Jogos Olímpicos modernos do nacionalismo e
do imperialismo. Por um lado, confrontam-se estados nacionais,
não atletas individuais. O quadro de medalhas é uma ode ao
nacionalismo. As pretensões imperialistas também são, na mesma
medida, dominantes, pois as potências imperiais estão a dominar
também aí: Estados Unidos, União Soviética (depois, Rússia),
China, e assim por diante. O fim da Guerra Fria e a instituição
de um mundo novo não alterou essa dinâmica nacional/imperial.
E o Rio nisso tudo?

As Olimpíadas no Rio de Janeiro: nacionalismo


e imperialismo
As Olimpíadas no Rio de Janeiro, em 2016, inserem-se
nesse contexto nacionalista, imperialista e mesmo pós-moderno.
Claro, foi uma aventura em prol da grandeza do estado nacional
brasileiro, com pretensões imperiais, ao menos no âmbito local

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latino-americano, e nenhum lugar mais apropriado para isso
do que a antiga capital do império lusitano (1808), brasileiro
(1822), lux mundi, única entre tantas outras, maravilhosa, no
sentido etimológico de capaz de causar admiração e espanto.
As Olimpíadas do Rio de Janeiro moldaram-se aptas a fazer da
nação uma estrela de primeira grandeza, ao mesmo patamar de
Moscou, terceira Roma, de Paris ou de Roma (caput mundi e
cidade eterna), assim como das potências econômicas, como Los
Angeles, Tóquio ou Pequim. Além disso, inspirada em Barcelona,
a Olimpíada poderia transformar-se em oportunidade para
renovar a cidade e os equipamentos urbanos. Nesse quesito, não
há como não ser levado à ironia da oposição de uma Barcelona
industrial e industriosa, sempre atenta ao capital, e a autoimagem
do Rio como uma Roma da dolce vita. Havia, pois, desde o início,
tanto uma pretensão nacionalista como imperialista, à maneira
de Viena, que, de fato, nunca sediou uma Olimpíada. O Rio de
Janeiro, contudo, à diferença da antiga capital do Império Austro-
Húngaro, tão ligada à casa imperial brasileira, conseguiu, no
início do século XXI, a distinção de sediar uma Olimpíada.
Não cabe dúvida de que a aposta brasileira, além de
nacionalista e imperial, envolvia a promessa de uma renovação
urbana radical e redentora, inspirada, de maneira direta, em
Barcelona. Cidades portuárias e ensolaradas, tudo parecia indicar
que se poderia efetuar o mesmo milagre pelo toque de Midas
das Olimpíadas. Pouco importava que Barcelona fosse e seja o
centro industrial da Península Ibérica, nunca capital política, mas
sempre ambiciosa pela sanha do capital. O Rio de Janeiro não se
adequaria a esse modelo. Pouco importava ou importa.
As Olimpíadas do Rio de Janeiro, para além desses
paroxismos locais, representam a quintessência das contradições
brasileiras. Uma sociedade das mais desiguais do mundo, uma
metrópole das mais iníquas, investimentos parcos voltados para
melhorias urbanas, ingentes somas destinadas a poucos, tudo
tende a confirmar os mais obscuros prognósticos.
Oportunidades perdidas, talvez, ou mecanismos de
substituição, a partir da Grécia antiga. Desde sempre, os jogos
foram substitutos da guerra; a derrota em combate tem sido a
troca da morte pela vida. A esse respeito não cabe senão louvar o
espírito humano. Jogos antigos e modernos se aproximam neste
e em outros aspectos: um ritual que substitui a violência bruta
pela ordem (pace Norbert Elias e Eric Dunning). O processo
civilizatório transforma a disputa simulada em simulacro do

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massacre em campo de batalha. As regras são o sinal do respeito
ao coletivo, modelo da democracia e do estado de direito.

Desafios das Olimpíadas no Rio de Janeiro


Quando da submissão da proposta de realização dos Jogos
Olímpicos no Rio de Janeiro, os objetivos consistiam em fornecer
meios para uma melhora das condições de vida não apenas na
cidade sede, mas mesmo no país. Como dizia o então presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, em 2009: “aprovamos financiamento
significativo e abrangente, conscientes do legado que os Jogos
deixarão para o Rio de Janeiro”. Havia, pois, previsão de
investimentos públicos e privados induzidos em meios de
locomoção (avenidas, estradas, aeroportos), na melhoria das
condições ambientais, mas também, claro, no âmbito esportivo
em si. Nesse aspecto, houve o planejamento tanto do suporte
ao esporte olímpico, como a difusão mais ampla das práticas
esportivas. O apoio ao Olimpismo deu-se por meio de atividades
oficiais e acadêmicas instigadas pela realização dos jogos no Brasil.
Assim, por exemplo, multiplicaram-se as publicações e pesquisas
acadêmicas em todo o amplo espectro ligado ao desporto:
Educação Física, Fisiologia, mas também em muitas outras áreas,
como a Sociologia do Esporte. O impacto acadêmico, portanto, foi
e tem sido grande, como no caso de outros temas e efemérides,
que geram pesquisas e reflexões de grande fôlego e repercussão
para o futuro da investigação no tema esportivo e olímpico. Esse
talvez se possa dizer, pela experiência histórica, seja o legado
mais sólido e duradouro.
No que se refere ao desenvolvimento do esporte olímpico, a
situação é, em termos históricos, diversa. Os Jogos Olímpicos e sua
realização costumam impulsionar a prática do esporte olímpico
de forma muito desigual. Em países ricos ou centralizados, essa
repercussão é maior e mais persistente, pois há uma estrutura
olímpica fundada na abundância de recursos, em um caso, ou
na indução direta pelo Estado, nos outros casos. Essa situação
era mais evidente à época da contraposição entre as potências
capitalistas liberais e os Estados de economia centralizada – de
um lado, os Estados Unidos e seus aliados ; de outro, a União
Soviética e sua esfera. Com o fim da Guerra Fria (1947-1989),
mesmo assim, manteve-se essa polaridade entre modelos liberais,
de um lado, e outros parâmetros centrados na ação planejada do
Estado no apoio ao esporte olímpico.

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Isso significa que os Jogos Olímpicos não têm impacto,
de forma significativa e duradoura, na configuração do esporte
olímpico no país-sede, a não ser que já existam condições
materiais ou organizacionais bem estabelecidas. Países como o
Brasil, que não são ricos ou centralizados, não parecem ter um
rendimento olímpico melhorado de forma perene e sólida, nem
as práticas olímpicas foram tão beneficiadas, como atestam os
casos do México e da Grécia, ainda que esta última seja muito
mais rica, em termos de renda per capita, do que o Brasil ou o
México (22.083 dólares per capita na Grécia, ante 11.340 no Brasil
e 9.749 no México).
Nesse contexto, o Brasil entrou na aposta olímpica
sabedor das limitações estruturais para que os Jogos Olímpicos
pudessem produzir efeitos excepcionais, ou seja, que pudessem
ser diferentes da experiência história das Olimpíadas modernas.
Da mesma forma, e ainda mais, se pode considerar a questão da
renovação urbana e econômica que poderia resultar dos Jogos
Olímpicos. Não se poderia colocar demasiada ênfase nisso,
pois mesmo nos mais bem-sucedidos exemplos, os impactos
dependeram de fatores externos. O caso de Barcelona é o melhor,
pois foi a integração à então Comunidade Econômica Europeia
que permitiu a renovação urbana, enquanto Atenas contrasta,
exatamente, pela fragilidade da economia grega.
Outro aspecto importante refere-se à gestão de recursos
e, aqui também, o tema transcende os aspectos técnicos ou
esportivos. Em Olimpíadas recentes, como em Atenas e em
Sochi, houve suspeitas de desperdícios ou de apropriação de
recursos nem sempre em benefício da sociedade como um todo,
de forma a contribuir para minorar as desigualdades e fortalecer
os mecanismos de criação de riqueza. Nesses casos, assim como
no Brasil, tais perigos derivam da estrutura social, da trajetória
histórica dessas sociedades. O patrimonialismo, as relações
pessoais e hierarquizadas acabam por condicionar os meios
de gestão de recursos. No caso brasileiro, em particular, como
atestam Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda ou Roberto
DaMatta, algumas características resultaram numa das sociedades
mais desiguais do mundo e com gestão nem sempre transparente,
mesmo em ambiente de Estado de Direito e de plena liberdade. Os
movimentos sociais e as manifestações de rua, desde meados de
2013, apresentaram a Copa do Mundo de Futebol da FIFA como
um dos motivos de crítica social. A crítica, em grande parte, tem
se referido à eficácia na distribuição de recursos que deveriam,

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segundo muitos, beneficiar a população em geral. Esse é o outro
desafio dos Jogos Olímpicos e que, como nos demais casos, não
está no âmbito esportivo stricto sensu, mas é uma questão social
mais ampla.

O Rio de Janeiro a dois anos das Olimpíadas


O que esperar das Olimpíadas? Para um estudioso do
passado, nada mais triste do que especular sobre o futuro: nunca
alguém acertou a esse respeito, nem os mais prescientes. Não
seria, pois, o caso de projetar nada, mas de refletir sobre as
Olimpíadas como oportunidades e desafios. Como diria Aristóteles,
o que poderia ser é sempre mais relevante do que foi ou será.
O potencial, dynamei, abre perspectivas. As Olimpíadas de 2016
têm como modelo Barcelona, 1992, pelo potencial de renovação
urbana de uma cidade portuária e voltada para a beleza natural
e ambiental. O temor é que o resultado esteja mais próximo de
Atenas, em 2004, ou, pior ainda, os Jogos de Inverno de Sochi,
em 2014. Ou seja, em um lado do extremo, renovação urbana
e difusão de benefícios, e, no outro, corrupção e manutenção
de iniquidades. Isso, saberemos em algum tempo. Aqui, pode-se
tratar das expectativas e das esperanças. As Olimpíadas no Brasil,
no Rio de Janeiro, síntese dos aspectos mais profundos do país,
podem contribuir para mostrar ao mundo e ao próprio público
brasileiro como as disputas e diferenças são normais, aceitáveis,
parte da humanidade, se estiverem sobre o controle de normas
aceitas pelas partes. Portanto, as disputas podem ser mais do que
uma batalha entre estados nacionais pelo prestígio, mais do que
uma pretensão imperial e imperialista, como foi por tanto tempo
e em tantas circunstâncias.
Isso é realista? Difícil dizer, mas temos elementos para
ter essa esperança. O Brasil apresenta uma convivência com o
conflito que é secular, mas também está fundado na mescla até
a medula. As Olimpíadas podem fornecer uma oportunidade
única para mostrar a diversidade e o respeito à diferença como
valores. Só isso já valeria todo o esforço que se tem feito. O
espírito olímpico grego antigo, com sua ênfase na espiritualidade,
assim como o ímpeto laico e amistoso dos modernos, pode
fazer com que os jogos do Rio de Janeiro contribuam para um
mundo menos sujeito ao nacionalismo e ao imperialismo, duas
marcas centrais das Olimpíadas modernas. Se assim for, será
uma grande contribuição.

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Agradecimentos
Agradeço à colega Katia Rubio o convite de participar do
IV Seminário de Estudos Olímpicos, assim como aos colegas
que refletem sobre o tema esportivo: Helena Altmann, José
Olímpio Bento, Eric Dunning, César Montagner, Heloísa Reis,
Kimberley Schimmel e Carmen Lúcia Soares. Menciono, ainda,
o apoio institucional da Unicamp, do CNPq e da FAPESP. A
responsabilidade pelas ideias restringe-se ao autor.

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Movimento Olímpico:
uma leitura sociológica sobre
desenvolvimento, cenários de
crises e futuras possibilidades
de mudanças
Bárbara Schausteck de Almeida
Universidade Estadual de Londrina/Universidade Federal do Paraná
Wanderley Marchi Júnior
Universidade Federal do Paraná/CNPq

Introdução
Nesse exercício reflexivo propomos uma leitura do
movimento olímpico como fenômeno social e, por essa
característica, sobre sua existência e resistência, somente possível
através de enfrentamento de dilemas e mudanças. Em outras
palavras, entendemos que o movimento olímpico, ao fazer
parte da dinâmica social mais ampla, nela afeta e é afetado, se
constitui e é constituído, a partir da resposta a questionamentos
por reinvenções constantes, que culminam em pontos de rupturas
necessárias para sua sobrevivência e continuidade. Essa dinâmica
pode ser observada quando percebemos, desde sua mobilização
encabeçada por Pierre de Coubertin ao final do século XIX até
os dias atuais, diversos períodos que podem ser mais ou menos
demarcados a partir de eventos marco.
Seguindo o referencial teórico que lançamos mão para a
leitura desse fenômeno, podemos entender que a dinâmica do
campo esportivo é influenciada por outros campos, especialmente
os campos político, midiático e econômico, cujas lógicas exigem
dos dominantes de seu campo a tomada de posicionamentos
que favoreçam a manutenção nessa posição (BOURDIEU, 1998).
Mais especificamente, o COI, na posição de dominante no campo
esportivo (BOURDIEU, 1983), mobiliza uma série de estratégias
para se manter como dominante enquanto detentor dos direitos
do evento esportivo considerado como um dos mais importantes
do mundo, demandando uma atuação consonante aos interesses
de dominantes nos outros campos mencionados (BOURDIEU,
1997). Aqui se percebe sua inclinação para o atendimento das

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exigências das mídias, através do fornecimento de infraestrutura
necessária para veiculação das imagens dos eventos para mais de
200 territórios; no repasse dessas demandas para os países e as
cidades que sediam os eventos, motivados para verem também
as imagens locais difundidas e, quem sabe, gerando benefícios
tangíveis e intangíveis num futuro mais ou menos próximo; bem
como no aquecimento – em consequência do estabelecimento
dessa complexa rede – de mercados consumidores de produtos
relacionados aos eventos ou mesmo daqueles mercados capazes
de atuar na produção do espetáculo em si – fornecedores
de matéria-prima, construções, tecnologias, publicidade, entre
outros serviços.
Por vezes, o atendimento de demandas pelo movimento
olímpico, especialmente as que são vistas como externas àquelas
do próprio campo esportivo, com frequência caracteriza uma
quebra de paradigma e, não por acaso, é vista com desconfiança
num primeiro momento e, em alguns casos, saudosismo décadas
depois. Entre essas quebras, podemos exemplificar a aceitação
da participação de mulheres como atletas (ver RUBIO, 2011),
a liberação da participação de atletas tidos como profissionais
pelo rompimento com o ideal do amadorismo (ver RUBIO, 2002)
e a potencialização das possibilidades de ganhos financeiros,
especialmente a partir dos Jogos Olímpicos (ver PRONI,
2008) como três exemplos marcantes já presentes em debates
acadêmicos no Brasil.
Essas quebras ou rupturas, entre outras, poderiam ser
utilizadas como parâmetros para estabelecer marcos temporais
e períodos com similaridades consonantes às suas realidades
históricas, sem com isso ignorar as singularidades de cada edição
dos Jogos. Nesse sentido, o exame de determinadas características
que sejam prioritárias ou motivo de atenção do pesquisador permite
distintas propostas de periodização para compreender a história
do movimento olímpico moderno ou, mais especificamente, dos
Jogos Olímpicos a partir de 1896. Por exemplo, Lucas (1980)
aponta para sete fases, com base em momentos mais detalhados
de crescimento e crise em sua história temporal até o que se
apresentava no início dos anos 1980. Ao revisarem o histórico do
desenvolvimento urbano através dos Jogos Olímpicos, Chalkley e
Essex (1999) e Liao e Pitts (2006) entendem que existem quatro
fases diferentes sobre o que o evento mobilizava em relação às
mudanças de infraestrutura nas cidades sede. Já Rubio (2010)
propõe igualmente quatro fases, porém com datação distinta dos

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autores anteriores, pois enfatiza aspectos internos e externos que
de alguma forma influenciaram a dinâmica sob a qual o evento
e o próprio movimento olímpico eram regidos. Ainda outras
diferentes periodizações poderiam ser aplicadas com base em
variados critérios, tais como presidentes no poder, inserção de
novos países como membros, adoção de diferentes tecnologias
de transmissão, evolução econômica de patrocínios, variedade de
países, atletas ou público, e assim por diante.
Essas possibilidades reforçam nosso entendimento sobre
a existência de descontinuidades no percurso histórico do
movimento olímpico moderno sob a direção do COI. Partindo da
última ruptura desse percurso histórico, marcado pelos eventos
da década de 1980 que caracterizam o início da fase profissional
e espetacularizada dos Jogos Olímpicos, buscamos neste capítulo
identificar os efeitos que essa transição e as novas conformações
passaram a exercer durante esse período, apontando para os
elementos que, muitas vezes sob a denominação de “crise”, deixam
iminente a necessidade de novas mudanças e transformações para
sua sobrevivência e continuidade.

A última ruptura: profissionalização,


mercantilização e espetacularização dos
Jogos Olímpicos
Dentro das possíveis propostas de periodização, ao
falarmos de profissionalização podemos nos referir tanto à
profissionalização dos atletas, especialmente suas formas de
treinamento e conquista de recordes, quanto à organização do
evento em si (RUBIO, 2010). Sendo assim, o período entendido
como de profissionalização pode ser demarcado a partir da
década de 1980. Especialmente nos Jogos de Los Angeles 1984
já é possível notar uma transição entre a ênfase do evento em
aspectos políticos para uma ênfase nos seus aspectos econômicos
(HORNE; MANZENREITER, 2006), em um modelo típico de
incorporação do esporte na lógica capitalista de expansão de
mercado (GRUNEAU, 1984).
Essa edição dos Jogos Olímpicos possui diversas
particularidades. A partir da iniciativa de empresários locais, a
cidade de Los Angeles apresentou sua candidatura em 1977, sendo
posteriormente confirmada como a candidata estadunidense após
disputa com a cidade de Nova York. Com a desistência da cidade

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de Teerã (no Irã) ainda antes da reunião de decisão da cidade-sede
pelo COI, Los Angeles foi proclamada sede dos Jogos Olímpicos
de 1984 em setembro de 1978 (FINDLING; PALLE, 1996). Naquele
momento, o destaque do plano de candidatura era a intenção de
não onerar os habitantes com taxas ou impostos para custear o
evento (BURBANK, ANDRONOVICH, HEYING, 2002).
Essa tentativa de independência financeira marcaria a
singularidade desse evento em uma série de aspectos. Com
o endividamento de Montreal 1976 na memória recente e
a inexistência de candidaturas concorrentes, o comitê de
candidatura de Los Angeles teria barganhado com o COI a
necessidade de garantias financeiras públicas na candidatura
e para o evento em si, permitindo, assim, sua liberação para
uma administração totalmente privada (ANDRONOVICH,
BURBANK, HEYING, 2001). A segunda negociação se deu em
relação aos direitos de transmissão, que naquela oportunidade
se tornou responsabilidade do comitê organizador local e não
mais do COI (HILL, 1996; BURBANK, ANDRONOVICH, HEYING,
2002). O quadro estrutural anterior do movimento olímpico, de
esvaziamento do interesse de cidades para sede, aliado à postura
mais enérgica e proativa das lideranças privadas de Los Angeles,
devem ser considerados nesse inédito processo de independência
para negociações, que não veio a se repetir em nenhuma das
seguintes edições (COCHRANE; PECK; TICKELL, 1996; HILL,
1996; FINDLING; PALLE, 1996).
Para garantir o máximo de lucro e o mínimo de despesas, o
comitê organizador negociou o patrocínio de grandes empresas e
os direitos de transmissão, gerando uma arrecadação recorde em
comparação aos eventos anteriores. Sobre os custos, houve uma
forte mobilização para minimizá-los através do uso majoritário
de instalações esportivas já existentes. Como consequência, não
houve uma concentração dos locais de prova, sendo que algumas
competições estiveram dispersas para além dos limites da cidade
de Los Angeles, em grandes distâncias territoriais no sul do estado
da Califórnia. Ao final, apenas três instalações esportivas e poucas
obras de infraestrutura ou renovação urbana foram realizadas.
Outra redução de custos se deu a partir do emprego de mão de
obra de voluntários ao invés de pessoas contratadas, resultando
em 33 mil voluntários, um número superior ao de edições
anteriores (FINDLING; PALLE, 1996; GOLD; GOLD, 2007; HILL,
1996; BURBANK, ANDRONOVICH, HEYING, 2002; SCHERER,
2011; SZYMANSKI, 2011).

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Nesse desenho político, administrativo e financeiro, os Jogos
Olímpicos de Los Angeles 1984 são considerados um marco de
sucesso comercial e financeiro, já que seus lucros alcançaram US$
225 milhões a US$ 232 milhões, número que possui ainda maior
impacto considerando-se que o evento custou US$ 500 milhões
(WHITELEGG, 2000; BURBANK, ANDRONOVICH, HEYING, 2002;
PREUSS, 2004).
Na tentativa de otimizar os investimentos e gerar lucros,
outras cidades se sentiram motivadas a sediar futuros eventos e
as concorrências voltaram a existir nos anos seguintes (GOLD;
GOLD, 2007; GLYNN, 2008; TIEN; LO; LIN, 2011). Embora o caso
de Los Angeles tenha sido posteriormente tomado como modelo
a ser seguido por outras cidades, ele não necessariamente se
repetiu. Ainda que as mobilizações para candidaturas posteriores
também tenham se dado a partir de grupos privados, Atlanta
1996 e Salt Lake City (para os Jogos de Inverno de 2002) – para
considerar as cidades estadunidenses como objeto de comparação
– não possuíam as instalações necessárias de nível olímpico e
a infraestrutura urbana compatível, exigindo, assim, recursos
financeiros públicos e se tornando menos independentes no
processo de tomada de decisões. Mais do que isso, nesses dois
casos os Jogos Olímpicos serviam como justificativa para o
desenvolvimento de projetos urbanos além de supostos benefícios
simbólicos, o que não era o caso de Los Angeles (ANDRONOVICH,
BURBANK, HEYING, 2001).
Nesse sentido, é preciso ponderar que, embora Los Angeles
1984 sirva como case de sucesso e constantemente seja recuperado
para apontar a possibilidade de lucro que os Jogos Olímpicos
podem trazer para a cidade-sede, repetir esse modelo exigiria
um cenário com infraestrutura prévia e intencionalidades por
parte dos organizadores, o que atualmente não parece factível.
Essa dificuldade é marcante ao levarmos em consideração o
aumento do evento em si e das exigências técnicas das instalações
esportivas para o nível olímpico, mas também o retorno do
controle pelo COI das negociações de direitos de transmissão e
patrocínio, assim como o retorno das exigências relacionadas à
garantia financeira pública para aceitar as candidaturas olímpicas.
Independentemente dessa dificuldade – se não
impossibilidade – de repetição do caso de Los Angeles no
retorno lucrativo financeiro de se sediar o evento, o que se
observou a partir da década de 1980 até as edições de Jogos
Olímpicos mais recentes foi o aumento exponencial no tamanho

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do evento. Esse crescimento pode ser observado a partir de
diversos dados quantitativos: número de atletas (de 6.829 para
10.568 em 2012) (MILLER, 2012; INTERNATIONAL OLYMPIC
COMMITTEE, 2013), número de membros das comissões técnicas
(de aproximadamente 19 mil para 50 mil em 2004) (PREUSS,
2004), número de países participantes (de 140 para 204 em
2008) (MILLER, 2012), número de eventos – nas modalidades
esportivas, as competições conforme categorias e sexo (de 221
para 301 em 2012) (INTERNATIONAL OLYMPIC COMMITTEE,
2013) e arrecadação em patrocínio e direitos de transmissão
(de US$ 96 milhões em 1988 para US$ 957 milhões em 2012)
(INTERNATIONAL OLYMPIC COMMITTEE, 2012).
Considerando o crescimento do evento e dos diversos
dados quantitativos que o rodeia, discutimos, a seguir, dois
desdobramentos dessa realidade: a necessidade de uma
infraestrutura que demanda um alto grau de investimento
por parte das cidades que sediam os eventos; e, também por
essas demandas e visibilidade gerada pelo tamanho que os
eventos passaram a ter, a falta de articulação entre a realidade
apresentada pela realização dos Jogos Olímpicos e a filosofia que
os sustentariam, o chamado Olimpismo.

A transformação em “mega” evento:


custos, impactos e legados
Sob a direção dos presidentes Juan Antonio Samaranch
(1980-2001) e Jacques Rogge (2001 até 2013), os Jogos Olímpicos
tiveram uma ascendência em diversos aspectos e alcançaram
a proporção “mega” em visibilidade e alcance de audiência
internacional, assim como nas estruturas e mobilizações
necessárias para sua realização por parte de cidades e países
sede (HORNE; MANZENREITER, 2006). Conforme os dados
apresentados, houve um incremento nos custos da realização
dos eventos pelas cidades-sede, as quais necessitam fornecer a
infraestrutura para os atletas, suas equipes e delegações, bem
como para os eventos (competições), enquanto a arrecadação se
tornou cada vez mais concentrada e organizada, gerando recursos
financeiros substanciais administrados pelo COI.
Respaldados, ou em paralelo, aos dados quantitativos
de crescimento do evento nas últimas décadas, os discursos
externalizados na expectativa de convencimento ou entendimento
sobre os possíveis benefícios que sediar os megaeventos esportivos

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pode trazer são divididos em três grandes tendências: a
desenvolvimentista, a de criação ou remodelação de imagem e a
sociopolítica (BLACK; VAN DER WESTHUIZEN, 2004; BLACK, 2008).
Os argumentos desenvolvimentistas apontam que os
megaeventos esportivos proporcionam o crescimento em diversas
áreas. A expectativa do desenvolvimento urbano normalmente
justifica a liberação de recursos públicos para a realização de
obras que atendam as demandas do evento. Antes servindo como
consequência – porque os eventos seriam hospedados em uma
cidade ou região onde seria necessário efetivar investimentos
para suprir uma demanda maior –, atualmente eles servem como
motivação – porque as obras precisam ser realizadas, então a
cidade se candidata ao evento. Nesta última lógica, os eventos
servem para a realização de projetos locais, num período de tempo
bem definido (ANDRANOVICH; BURBANK; HEYING, 2001).
Mas apesar dos investimentos em infraestrutura, na
literatura existem dúvidas sobre até que ponto esses impactos são
positivos. O cenário que se apresenta é de que, em se tratando de
megaeventos, os benefícios são superestimados considerando os
elevados custos, usualmente subestimados (WHITSON; HORNE,
2006), embora essa constatação seja normalmente feita apenas
depois de o evento acontecer. Por isso, embora os países possam
se embasar nas experiências de sedes anteriores, ainda parece
existir não somente estratégias que ocultam esses fatos em
detrimento de selecionados casos de sucesso, mas também outras
motivações que se tornam suficientes para sobrepor esses riscos.
Assim, o segundo elemento seria de criação ou
remodelamento de imagem. Numa percepção dos megaeventos
como estratégias de globalização e reestruturação econômica
das cidades da década de 1990, esse aspecto acaba por ter como
finalidade última a atração de investimentos e negócios (HILLER,
2000). Especificamente os Jogos Olímpicos são entendidos por
L’Etang (2006) como o principal exemplo que mobiliza a agenda
de relações públicas no plano internacional: criar ou promover
ideologias, formatar mitos e ícones, promover produtos e ainda
criar pontos de referência e critérios internacionais.
Também sobre esses aspectos, ainda não existem fontes que
apontem para um incremento de longo prazo na imagem positiva
de cidades que sediaram megaeventos esportivos para turistas
(COATES; MATHESON, 2011). Essa estratégia unifica o discurso
em torno de um objetivo amplo e intangível, mas que permite
a inserção de diversas intenções mais pontuais daqueles que

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tomam decisões a respeito da candidatura e têm a possibilidade
de alcançar objetivos mais setoriais, como impacto no turismo
em curto prazo, instalações esportivas e investimento público
em infraestrutura (ANDRONOVICH; BURBANK; HEYING, 2001;
SHORT, 2008).
Inevitavelmente, debates sociopolíticos compõem os
dois elementos anteriores, mas nesse caso nos referimos aos
aspectos nacionais ou internos que vão além da proposta
desenvolvimentista e têm mais uma característica de crença ou
expectativa que povoam os discursos oficiais do que propriamente
são mapeados por pesquisas científicas (BLACK; VAN DER
WESTHUIZEN, 2004). Da mesma forma, tais aspectos não estão
totalmente desvinculados das ações ou impactos externos, em
que por vezes uma ação serve para ambos os objetivos (interno e
externo) (CORNELISSEN, 2008).
Novamente, nesse elemento existem interpretações que
apontam como motivação última da mobilização discursiva no
sentido sociopolítico como sendo o crescimento econômico.
Nessa linha, o engajamento social e um sentimento de bem-estar
e orgulho nacional/local viriam acompanhados de um maior
comprometimento das pessoas pelo trabalho e desenvolvimento.
A análise de Bourdieu vem sendo incorporada por outros autores
– por exemplo, Black e Van Der Westhuizen (2004) – para pensar
os benefícios social e cultural, para além do econômico, ainda que
o referencial dê margem para considerar uma futura conversão
de capitais principalmente se observadas suas manifestações
objetivadas e institucionalizadas (NOGUEIRA; CATANI, 1998).
Um aspecto desafiador que vem à tona durante a revisão da
literatura é a linha tênue – se é que qualquer divisão existe por
mais tênue que seja – entre aquilo que se entende por “motivo
para” e “impacto da” realização de um megaevento. Em geral, os
autores levantam uma vasta literatura que aponta para as possíveis
razões de sediar esses eventos, com base em casos anteriores
de sucesso econômico, urbano e político, principalmente, ainda
que não sejam poucas as obras que lembrem casos de insucesso,
questionem metodologias e apontem os riscos detrás dessas ações
(HORNE; MANZENREITER, 2006).
Sob esse entendimento, forma-se um círculo vicioso com
o discurso constante acerca da “necessidade” de adaptação
da infraestrutura para manter renovada a rede privada de
benefícios e realização de investimentos, com o financiamento
eminentemente público, apesar de os benefícios não serem

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tão públicos assim (HALL, 2006). Mas para isso, as intenções
de criação de uma imagem positiva para atrair consumidores,
turistas e negócios, estão imbricadas com inúmeros problemas
sociais relacionados à criminalização da pobreza, à negação de
determinados preceitos em direitos sociais e à comercialização
do espaço urbano, geralmente práticas cujas justificativas estão
travestidas em propostas de segurança dos espaços para os
futuros negócios (ANDREWS; SILK, 2012). Esses fatos, além da
dúvida sobre os reais benefícios e beneficiados com a realização
dos eventos, questionam o discurso do movimento olímpico,
em muitos casos desafiando sua continuidade. Na sequência,
apresentamos sumariamente como esse discurso foi construído
por Pierre de Coubertin e alguns dos momentos em que ele vem
sendo questionado nas últimas décadas.

As “crises” no Olimpismo
A intenção de Pierre de Coubertin em “reviver” os Jogos
Olímpicos surge a partir do seu interesse no esporte como
mobilizador de um sistema que envolvia a educação moral,
física e intelectual para enfrentamento de uma situação de crise
(BROWN, 2012). Após diversas viagens e investigação de distintos
sistemas, buscando um modelo para aplicar na educação de seu
país de nascimento, a França, Coubertin organizou suas ideias
com um caráter combinado, em que algumas das características do
modelo grego de jogos e atividades físicas passam a ser tomadas
como ferramenta pedagógica (MACALOON, 1981). Lucas (1980)
descreve que a compreensão de Coubertin sobre a filosofia grega,
evidenciada na tríade de moral, intelecto e corpo, estava bastante
interligada com o entendimento sobre a disciplina, a virilidade
e a postura esportiva que estaria sendo colocada em prática
nas grandes escolas inglesas. O Olimpismo surge, então, com a
ênfase nessa atitude que regia, ao menos na sua visão idealizada,
o funcionamento do esporte nas escolas inglesas (LUCAS, 1980).
Partindo dessa compreensão, uma mistura de nacionalismo
e internacionalismo teria sido a motivação para o “reviver” dos
Jogos Olímpicos. O primeiro, porque a derrota militar francesa
para a Prússia no ano de 1871 teria influenciado o entendimento
de Coubertin de que a preparação física e a disciplina eram
virtudes a serem desenvolvidas em seu país. Se essa preparação
e disciplina eram desenvolvidas pela cultura ginástica germânica,
o sistema de esportes da Inglaterra servia como um contraponto

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para não se adotar as técnicas do país que o derrotou
(GUTTMANN, 1984). Embora Coubertin tivesse apenas 8 anos
naquele momento, o insucesso na guerra afetou sua família e
sua geração, consequentemente. Ele teria se convencido de que
os métodos da educação esportiva inglesa, especificamente a
de rugby, seriam a razão para o desenvolvimento da Inglaterra
como potência no século XIX, podendo a França seguir um
caminho semelhante quando adotasse alterações em seu sistema
educacional (LUCAS, 1980).
Em relação ao internacionalismo, a proposta da
conferência em Sorbonne, em junho de 1894, com a presença
de representantes de nove países, mostra a intenção de tornar o
evento internacional (GUTTMANN, 1984). As exibições ou feiras
internacionais organizadas na França nos anos de 1878 e 1889
também indicam uma perspectiva semelhante no contexto mais
amplo nacional, em que elas serviriam como compensação do
isolamento diplomático e a estagnação econômica do país naquele
período (TOMLINSON, 1984). Para Paradis (2010), em comparação
a esses outros eventos, os Jogos Olímpicos foram mais bem-
sucedidos porque se mostraram não somente como exibição, mas
promoviam elementos de masculinidade e heroísmo com foco
nas capacidades e conquistas individuais, valores benquistos pelo
público em tempos de nacionalismo e imperialismo reinantes no
ambiente internacional, principalmente europeu.
Inúmeros fatores da filosofia na qual os Jogos Olímpicos
foram recuperados por Coubertin são controversos, tanto sobre
os métodos e as consequências do esporte nas escolas públicas,
quanto sobre as informações que historiadores mobilizam sobre
os Jogos Olímpicos antigos na Grécia, sendo que essas más
compreensões teriam resultado em um evento com base em falsas
premissas ou uma invenção de valores que embasariam a versão
moderna (HILL, 1996; TOMLINSON, 1984; YOUNG, 1985). Além
disso, outros indícios históricos colocariam em xeque até mesmo
o protagonismo de Coubertin como “pai” ou “fundador” do
movimento olímpico moderno (WEILER, 2004), o que aumentaria
o tamanho da “colcha de retalhos” dos ideais que embasam o
movimento olímpico (ZAKUS, 1992).
Sendo assim, com datação muito anterior àquela proposta
nesta análise, supostas crises no Olimpismo são identificadas
com frequência na literatura. Essas crises, em especial, denotam
uma incompatibilidade – ou uma compatibilidade conforme
a conveniência – entre os supostos valores mobilizados por

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Coubertin na construção da filosofia do Olimpismo ao final do
século XIX e as ações levadas a cabo pelo COI na gestão do
movimento olímpico e, em especial, dos Jogos Olímpicos no final
do século XX e início do século XXI.
Por um lado, entre os motivos para crises relacionadas ao
Olimpismo, podemos destacar o rompimento com o ideal amador
dos atletas (DONNELLY, 1996), o uso de doping e o esvaziamento
do fair play (EBER, 2008), a centralidade das negociações
financeiras (patrocínio e direitos de transmissão) (MAGUIRE et al.,
2008) e os casos de corrupção que envolvem, principalmente, a
escolha de cidades-sede para os Jogos Olímpicos (BOOTH, 2011).
Esses motivos oporiam fatos ou posicionamentos mais recentes,
especialmente do COI, àquilo que se entende como uma razão
mais pura para a prática esportiva.
Por outro lado, por razões justificáveis dentro dos valores
sociais mais contemporâneos, quebrar as oposições pela
participação da mulher, das diferentes classes sociais e de etnias,
antes impostas pela mesma filosofia coubertiniana, torna-se
menos problemático. Ainda que essas objeções façam parte das
tentativas de desqualificar o pensamento de Coubertin, é preciso
ressaltar que, com frequência, isolamos o agente social de seu
contexto histórico sem nos dar conta de que naquele período
as relações de classe, gênero e étnicas tinham demarcações
profundas (CHATZIEFSTATHIOU, 2008). Trazer ou não à tona
essas informações pode ser mais ou menos relevante conforme
a posição crítica para com o movimento olímpico. A modificação
desses elementos em comparação ao pensamento de Coubertin se
torna interessante para seus defensores, indicando a modernização
ou adaptação aos valores atuais, ou ainda são ignorados quando
se cobra uma atualização ou quebra na idealização dessa filosofia.

Uma reflexão sobre indícios de mudanças


Mais do que um posicionamento favorável ou crítico ao
movimento olímpico, através dessas reflexões em diálogo com
a literatura buscamos evidenciar que existem desafios a serem
superados para a continuidade da realização dos Jogos Olímpicos
e das demais ações do movimento olímpico em si. Ao trazermos o
caso de Los Angeles 1984, tido como caso de sucesso a ser seguido
por outras cidades, evidenciamos sua singularidade e que aquele
exemplo é incompatível com a realidade atual. De fato, um olhar
um pouco mais aprofundado sobre esse caso e o crescimento do

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evento nas décadas seguintes apenas reforça a insustentabilidade
econômico-financeira dos Jogos Olímpicos em seu formato
atual sem o investimento público. Na sequência, indicamos que
as motivações ou justificativas para sediar os eventos por parte
dos setores públicos costumam ser intangíveis, dificultando sua
aferição. Mais que isso, as expectativas de retorno (em diversos
sentidos) são muitas com estimativas mínimas de gastos, a priori;
mas o que se vê a posteriori é a inversão desse quadro – altos
custos financeiros e sociais para um retorno questionável.
Essa realidade, de um evento profissionalizado,
mercantilizado e espetacularizado, gera uma condição delicada
sobre a compatibilidade com os discursos de amizade, respeito
e excelência do Olimpismo. Descrevemos como historiadores
percebem a criação da filosofia que embasaria a proposta de
Coubertin ao “reviver” os Jogos Olímpicos, deixando evidente
sua perspectiva idealizada, mesmo para aquele período histórico.
Sendo assim, a simples transferência desses conceitos para todos
os níveis ou de maneira anacrônica e absoluta apresenta óbvia
limitação. Mas entendemos que o distanciamento, cada vez mais
evidente e público entre discursos e impactos sociais dos Jogos
Olímpicos, torna sua continuidade insustentável ou, no limite,
questionável, tendo em vista esses “desarranjos ideológicos”
– conscientes ou inconscientes, se é que isso seja possível na
dimensão que o movimento olímpico tem se direcionado.
A falência de discursos e pressupostos originários do
Olimpismo tem se mostrado latente e cede espaço cada vez
mais avassalador à lógica do mercado, da profissionalização
e do espetáculo. Obviamente que essas nossas observações
não são novidade e, em hipótese alguma, uma leitura que não
considera o inevitável envolvimento e desenvolvimento de
todas as esferas sociais nesses processos, inclusive o esporte.
Ingênuo seria imaginar o evento mais representativo do esporte
mundial desconectado, ou melhor, desalinhado com essas lógicas
macrossociais.
Contudo, o que nos chama a atenção é a “silenciosa”
submissão a esses preceitos estruturados que, pela própria
ótica bourdieusiana, tornam-se estruturantes do que podemos
chamar campo esportivo e seu “habitus olímpico”. O lado singelo
do fair play, o altruísmo das condições de respeito, amizade,
solidariedade e integração dos povos passam a soar como um
paradigma vencido, uma sinfonia totalmente desencontrada,

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ou no melhor da metáfora, desafinada, tendo ainda a sua frente
um maestro (ou um conjunto deles!) e uma orquestra que não
leem a mesma partitura.
Esses exemplos, entre muitos outros que poderiam
ser mobilizados, são alguns dos indícios da demanda por
mudanças na realidade do movimento olímpico. No estágio atual,
principalmente considerando a realidade brasileira de preparação
para sediar os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016,
buscamos chamar a atenção para as demandas e a proporção
das necessidades da cidade que recebe o evento. Esse aspecto
influencia, de forma mais ou menos direta, na organização e
na disseminação de informações sobre o evento que teve sua
eleição definida, especialmente nos períodos que antecedem
sua realização. A recusa ou a baixa margem entre aceitação e
negação sobre sediar ou não os eventos futuros em consultas
democráticas, políticas e pesquisas de opinião em países como
Noruega (GODDARD, 2014), Polônia (BUTLER, 2014a), Suíça
(MACKAY, 2013a) e Alemanha (MACKAY, 2013b) são fortes
argumentos que convidam para uma revisão das formas atuais de
organização dos Jogos Olímpicos, que deverão passar por uma
revisão em 2020 para voltar a atrair as cidades para o processo
olímpico (BUTLER, 2014b), ou ainda, se inserir nesse contexto de
maneira mais democrática e, principalmente, consciente de seus
custos e consequências.

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Secretaria de Educação do Município de São Paulo.

Resumo
O esporte é um fenômeno sociocultural de múltiplos
significados e tem como finalidade o desenvolvimento integral do
homem como ser autônomo, democrático e participante, segundo
a legislação brasileira. A iniciação esportiva e as possibilidades
educacionais estão cada vez mais em destaque. Desde o início,
Pierre de Coubertin tinha em suas metas introduzir o esporte
na rotina escolar, e o que já era considerado pelos gregos como
elemento de grande valor no desenvolvimento da formação física
e moral dos seus cidadãos tem nos dias de hoje exercido fascínio
cada vez maior.
Essa jornada teve início em 2007, na rede Municipal de
Ensino da cidade de São Paulo. O Projeto Olimpíadas Estudantis
tem como proposta norteadora unificar e estimular a iniciação
esportiva nas escolas municipais. Em seu início houve a
preocupação de aproximar a prática e a iniciação esportiva com
aspectos educacionais implícitos nos esportes.

Introdução
A cidade de São Paulo está entre as dez capitais mais
populosas do mundo. O número de habitantes na região
metropolitana é de aproximadamente 19.684.000 e na cidade é
de 11.253.503.
A rede municipal de ensino da cidade de São Paulo é o
maior sistema do país, com quase um milhão de alunos, 8,2%
dos 11,3 milhões de habitantes da cidade. Somados aos pais e
familiares, envolve quase cinco milhões de pessoas, ultrapassando
a população da maioria das capitais brasileiras. Com mais de 83,8
mil funcionários, entre educadores e pessoal de apoio, a rede
tem 1.459 escolas espalhadas por todos os cantos da cidade,
administradas diretamente pela Secretaria Municipal de Educação.

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São 936.432 alunos, em 546 escolas de ensino fundamental
e 45 Centros Educacionais Unificados (CEU). Fazem parte desse
sistema aproximadamente 2.600 professores de Educação Física
(Prefeitura de São Paulo, Secretaria de Educação do Município de
São Paulo – 2013)
O Projeto Olimpíadas Estudantis da rede Municipal de
Ensino da cidade de São Paulo teve seu início em 2007 com a
proposta norteadora de unificar e estimular a iniciação esportiva
nas escolas municipais e colaborar com o desenvolvimento
do esporte.
Para tanto, o projeto promove atualização em pedagogia
esportiva, abordando seus diferentes significados. O processo
não se limita ao ensino e à aprendizagem esportivos, mas sim ao
que é chamado por Paes (2009) de ensino-vivência-aprendizagem
socioesportiva.
Há também a formação na atualização das regras das
variadas 14 modalidades esportivas realizadas para os professores
envolvidos, ocasiões em que são convidados árbitros e técnicos das
modalidades para cursos e palestras com nossos professores. Em
alguns momentos são sugeridas as alterações dos regulamentos
visando estimular a participação dos alunos e propiciar situações de
vivências de sucesso como, por exemplo, altura da rede, distâncias
das provas de atletismo, tamanho da bola, sistema de disputa.
Este com certeza é o grande diferencial, o regulamento, que
será abordado mais adiante.
A competição proporciona, de maneira igualitária, a estrutura
necessária de arbitragem (dois árbitros e mesário, no caso das
modalidades coletivas; e equipe de arbitragem, cronometristas,
staffs, no caso das modalidades individuais), transporte da escola
ao local da competição, lanche, socorristas, ambulâncias, staff,
ambiente virtual para inscrições e acompanhamento e notícias
das competições, coordenadores de modalidades, para a plena
realização das atividades nas treze Diretorias Regionais de
Educação (DREs) – divisão política/administrativa da Secretaria
Municipal de Educação.
Alguns números a seguir indicam a complexidade da
competição, sendo 14 campeonatos divididos em fase regional
e municipal, 7.000 jogos coletivos, 21 competições de atletismo
envolvendo aproximadamente 18.000 alunos, 2.440 ônibus, 34.000
medalhas, 1.800 troféus.
Desde a primeira edição das Olimpíadas Estudantis
construiu-se um regulamento para a competição que buscava, além

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de democratizar o acesso dos participantes, torná-lo um projeto
que fizesse parte do cotidiano das escolas.

O projeto – Olimpíadas Estudantis


A realização das Olimpíadas Estudantis tem incentivado
cada vez mais o desenvolvimento de iniciação esportiva na escola,
estabelecendo uma ponte significativa entre esporte e educação.
Teve sua primeira edição em 2007 com aproximadamente 29.000
participações e, em 2013, esse número subiu para 103.000, com
399 escolas e 45 CEUs (Centros Educacionais Unificados).
Segundo Luguetti & Böhme (2011), as práticas esportivas
escolares (PEEs) podem ser consideradas como a possibilidade
de um aprofundamento do conhecimento e da prática esportiva.

Participação e evolução por modalidade e categorias.


Participam das “Olimpíadas Estudantis” os alunos
devidamente matriculados nas Escolas Municipais de Ensino
Fundamental – EMEFs, Escolas Municipais de Ensino Fundamental
e Médio – EMEFMs, Escolas Municipais de Educação Especial –
EMEEs, e Centros Educacionais Unificados – CEUs, da Rede
Municipal de Ensino. Os alunos são divididos em “categorias”,
estabelecidas de acordo com suas faixas etárias, conforme
segue abaixo:
• Infantil: alunos entre 15 e 17 anos;
• Mirim: alunos entre 13 e 14 anos;
• Pré-Mirim: alunos entre 11 e 12 anos;
• Sub-10: alunos entre 09 e 10 anos;
Alunos com 08 anos nas modalidades Ginástica Artística,
Ginástica Rítmica e Natação.
Em cada categoria há uma limitação de participação diferente,
conforme segue:
•C  ategoria Infantil: podem participar de até duas
modalidades coletivas, com participação livre nas
modalidades individuais;
•C  ategorias Mirim e Pré-Mirim: podem participar
de uma modalidade coletiva, com participação livre
nas modalidades individuais;
•S  ub-10: somente poderão participar das modalidades
Ginástica Artística, Ginástica Rítmica e Natação (Portaria
Intersecretarial SME/SEME nº 05 e FEDEESP 2013).

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As atividades esportivas podem ser desenvolvidas no
tempo adicional após as atividades escolares, ampliando a
permanência do tempo do estudante na escola e nos CEUs.
O esporte na escola, segundo Paes (2009), é importante
devido a várias razões: por ser um dos conteúdos de Educação
Física, por ser a escola uma agência de promoção e difusão da
cultura e até mesmo por uma questão justiça social, uma vez
que em outras instituições o acesso ao esporte é restrito a um
número reduzido de crianças e jovens que se associam a clubes
esportivos, tornando-se clientes de academias ou participam de
escolas de esporte.
O Projeto não visa somente organizar jogos e
campeonatos. Um dos principais objetivos é democratizar
o acesso, permitindo aos menos talentosos tecnicamente
experimentar também diferentes esportes. Esse princípio
conduzirá à motivação em popularizar todas as modalidades,
viabilizando, assim, o estímulo à prática esportiva nas escolas
durante o ano todo.
A cada ano introduzimos uma nova modalidade,
fornecendo aos professores formação para vivenciá-las
nas escolas e preparar seus alunos para a “competição
demonstração”, nos moldes de um Festival. Foi assim com
as modalidades tênis de campo, rugby, duatlo e tênis de
mesa. Oportunizamos, assim, a experimentação de diferentes
modalidades, ampliando o leque de situações diferenciadas
de competição. Dessa maneira, despertamos interesses em
modalidades que nunca praticaram.
Vários jogos e competições são realizados em estádios
e ginásios considerados como marcos importantes da cidade,
tais como piscina e ginásio do Pacaembu, pista de atletismo do
Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa, pista de atletismo
do Complexo Constâncio Vaz Guimaraes – Ibirapuera, algumas
unidades SESC e alguns clubes particulares (Esperia, com suas
treze quadras de Tênis de Campo e pista de atletismo; Paulistano,
para a etapa de Judô, AABB, Clube Guapira), colaborando na
promoção do sentimento de pertencimento e cidadania.
O fato de os alunos jogarem representando a escola, e nas
fases subsequentes da competição representarem a sua região
e, possivelmente, sua cidade, implica estimular cada vez mais
sua inclusão ao grupo. Muitos professores relatam as mudanças
positivas no comportamento dos alunos que participam das
competições, dos times e das equipes.

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Formação dos professores
Desde 2007 realizamos anualmente formação para os
professores das escolas e CEUs. Dessa formação, que é aberta
a todos os professores da rede municipal, participam também
diretores de escola, coordenadores pedagógicos e professores de
Educação Infantil.
Em média, são oferecidos três cursos de diferentes
modalidades esportivas, com foco na atualização de metodologia
pedagógica, arbitragem, modalidades paralímpicas e apresentação
de novas modalidades que serão introduzidas ao projeto.
No Fórum do Esporte Escolar, realizado em parceria com
o SESC, discutimos, a cada edição, temas pertinentes ao cenário
atual e ao projeto, tais como a participação feminina no esporte,
a inclusão de alunos com deficiência, o esporte como ferramenta
de inclusão social e valores olímpicos.
Em 2010, ampliamos as modalidades realizando também
as Paralimpíadas Estudantis, com as modalidades vôlei sentado,
que foi um sucesso nas escolas, atletismo e tênis de mesa. Essas
competições de caráter participativo, como um festival, premiam
todos os participantes. Aqui o objetivo também é oportunizar
que mais alunos com deficiência tenham acesso ao esporte. A
competição é realizada no Clube Esperia, com toda a estrutura
necessária para favorecer a experiência positiva.

Dificuldades
Encontramos resistências, algumas de ordem organizativa
do Projeto, entre elas a obrigatoriedade do RG para a participação
nas competições. Dessa maneira, vários professores precisaram
fazer “mutirões” para levar os alunos a “Poupatempos” ou similares.
No início, esse requisito representou um grande desafio, mas foi
superado com o passar do tempo, não sendo mais considerado
polêmico. Todavia, de certa forma ainda é uma dificuldade que
vários professores encontram. Ressalte-se, inclusive, que algumas
situações de alunos com pendência nos registros de nascimento,
entre outras questões como guarda de menor, que implicam a
regularização da documentação, puderam ser resolvidas com o
empenho dos professores e da direção da escola.
A cidade São Paulo, famosa por não parar nunca, tem
enfrentado nestes últimos anos o problema de mobilidade urbana.
Nós também sentimos na pele essas dificuldades ao transportar
nossos alunos para diversos cantos da cidade. O transporte na

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porta da escola para levar as equipes para as competições demanda
uma boa logística. Convivemos com atrasos de percurso, ônibus
que quebram etc. Infelizmente, os equipamentos esportivos estão
distantes dos nossos alunos, localizando-se, em sua maioria, na
região central da cidade, sendo necessário esse deslocamento das
equipes de regiões distantes para as competições. É o caso, por
exemplo, das pistas de atletismo que utilizamos.
Toda essa estrutura é possível graças a um convênio
firmado entre a Secretaria Municipal de Educação e a instituição
participante do edital público de chamamento.

Diferencial do projeto
O objetivo é proporcionar a todos os participantes as
mesmas condições de competição. O fato de o projeto contar
com um cenário semelhante ao esporte de rendimento, com
eventos esportivos que vão desde as cerimônias de abertura,
entrega de medalhas até as competições de maneira estruturada,
com a competição formal, arbitragem, transporte, classificação
de equipes, medalhas e troféus, não significa que ter como
objetivo a especialização precoce ou mesmo a descoberta de
talentos. Entendemos que esse é processo natural e consiste em
oportunizar a vivência da competição, do esporte.
Essa vivência certamente gera e estimula o estado de
estresse, como ansiedade, “frio na barriga”, nervosismo, risos,
alegria, euforia pela vitória e superação. Assim como as lágrimas,
a tristeza da derrota, a insegurança da exposição, da desistência,
enfim, são relatos que ouvimos dos professores e dos alunos que
participam.
Com a premissa de proporcionar a democratização do acesso
no meio escolar, foram também consideradas questões de ordem
geral como a inclusão de alunos com deficiência, a participação
feminina no esporte e, principalmente, a inclusão social.
Para que esses objetivos sejam alcançados, discutimos
modelos de competição já consagrados e, a partir dessa
discussão, são apontadas questões norteadoras para uma prática
diferenciada, contidas no regulamento geral da competição:
1. Estimular outras modalidades esportivas, além das
tradicionais. Para estimular o desenvolvimento de outras
modalidades, as escolas que inscreverem equipes de futsal
ou handebol devem ter também equipes participando das
modalidades basquetebol ou voleibol;

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2. Incentivar a participação de diferentes alunos. Para
evitar a “monopolização” dos mais habilidosos, ficou restrita
a participação do aluno em apenas uma modalidade coletiva.
Dessa maneira, o professor é incentivado a ampliar o número
de alunos participantes para a formação das equipes em outras
modalidades coletivas;
3. Incentivar a participação feminina. Considerando
o baixo número da participação feminina, para se garantir a
equivalência de homens e mulheres, no ano de 2010 incluímos
no regulamento que toda escola deverá inscrever ao menos uma
equipe coletiva feminina (Rubio, Meira e Zimmermann, 2013).

Alguns encaminhamentos dos alunos/equipes


decorrentes do projeto
No decorrer dos anos, alguns dos nossos alunos/equipes
foram encaminhados para outras competições escolares.
Tivemos a feliz oportunidade de enviar duas equipes para jogos
internacionais, como, por exemplo, a equipe infantil de voleibol
masculino da EMEF Euclides da Cunha, da região do Campo
Limpo, que participou do campeonato mundial de escolas católicas
em 2010 em Tours, na França. Foi certamente uma experiência
inesquecível para aqueles jovens. Outra equipe foi encaminhada
no mesmo ano para Doha, Qatar, para participar da Gymnasíade
Escolar na modalidade atletismo.
A seguir, a listagem das demais competições:
• Campeonato Brasileiro de Judô – Maceió.
• Gymnasíade Escolar – Doha – Atletismo.
• Jogos Escolares Estaduais – Jaboticabal,
Presidente Prudente.
• Seletiva Panamericana – São Paulo.
• Campeonato Brasileiro de Atletismo – Juiz de Fora.
• Campeonato Estadual de Voleibol – Águas de Lindoia.
• Campeonato Mundial FISEC – Voleibol – Tours França.
• Campeonato Brasileiro de Futsal – Brasília.
• Campeonato Brasileiro de Handebol – Brasília.
• Seletiva Nacional para as Gymnasíade – Natação –
Brasília.
• Vários alunos para Treinamento em Esporte de
Rendimento – Centro Olímpico de Treinamento
e Pesquisa COTP, Clubes como E.C. Pinheiros,
Esperia, Círculo Militar.

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A Educação Olímpica
Segundo Freire (1996), educar é ensinar e humanizar.
No que se refere aos conteúdos, ensinar não é transferir
conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção
ou a sua construção.
Para Binder (2010), desde os anos 1970 os estudiosos
olímpicos continuaram a reformular as ideias pedagógicas
do Olimpismo. Para Gessman (1992), o núcleo do sistema de
valores olímpicos é o constante desenvolvimento do potencial
de cada ser humano. Sua ênfase é sobre o desporto escolar, e ele
sugeriu áreas que seriam ligadas ao tema (prática, treinamento
de aprendizagem e competições) realizadas em correspondência
com a ideia olímpica. Essas áreas de ensino e aprendizagem nas
escolas incluem o Olimpismo: fair play, saúde, assunção de riscos
e aventuras, desenvolvimento artístico e criativo e sociabilidade.
A articulação entre pontos de correspondência entre o
Olimpismo e os objetivos gerais da educação olímpica foram
apontados por Kidd (1985):
• Participação em massa, que Coubertin chamaria de
“Juventude da Democracia”;
• Esporte como educação;
• Esportividade: a adoção de um alto padrão
de esportividade, que Coubertin chamou de
“novo código cavalheiresco”;
• Troca cultural;
• Compreensão internacional;
• Excelência.
Considerando os sete grandes valores – amizade, excelência,
respeito, coragem, determinação, inspiração e igualdade –, as
Olimpíadas Estudantis foram concebidas para serem não somente
a execução dos jogos e competições, mas para motivar alunos e
professores a exercerem seu protagonismo nesse processo; uma
participação efetiva e real em competições onde podem exercitar
conceitos como fair play, ética, excelência, trabalho em grupo e
as responsabilidades advindas do ganhar e do perder (Rubio
et al., 2013).
A inclusão da perspectiva dos valores olímpicos na proposta
iniciada em 2007 foi a ampliação de um modelo de esporte na
escola que busca associar a competição aos valores. Isso significa
que não só o regulamento, mas a participação dos escolares
apresenta um estado de constante movimento, tanto no que se

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refere à adequação dos limites impostos pela especificidade da
competição, como também à expectativa dos professores no que
diz respeito às metas a atingir (Rubio et al., 2013).
Desta maneira, foi introduzido e desenvolvido, em 2012 e
2013, o Programa de Educação Olímpica. Além de formação para
os professores, o Programa contou com uma pesquisa respondida
por 131 professores e 398 alunos.
Os professores conheceram e discutiram como auxiliar
o trabalho em sala de aula, oferecendo elementos para melhor
compreensão e aproveitamento da temática Olimpismo, valores
olímpicos e Jogos Olímpicos.
Três destaques aparecem nas respostas da pesquisa:
• Autocontrole (respeito a si, respeito ao adversário,
ética esportiva);
• Excelência (importância do treino, superação das
dificuldades, disposição);
• Trabalho em equipe (planejamento, integração,
equipe esportiva).
Mais do que buscar resultados de forma indiscriminada,
as Olimpíadas Estudantis concretizam-se como um campo
privilegiado de formação discente e docente (Rubio et al., 2013).
A contextualização dos conteúdos discutidos, trazendo
para a realidade do professor, seja na aula ou na situação das
competições, aproximou as referências teóricas da educação
olímpica à realidade do cotidiano escolar. Os relatos apontaram
que os temas abordados podiam ser observados nas situações
rotineiras vividas também no contexto do núcleo social no qual
estão envolvidos os amigos, a família e os colegas de trabalho.
Isso destaca que a produção do conhecimento só encontra sentido
se estiver diretamente relacionada com a aplicação no cotidiano
(Rubio et al., 2013).
Segue relato da professora Valníria Lopes, da EMEF João
Sussumo Hirata, realizado via e-mail quando lhe foi perguntado
se ela possuía alguma experiência com os alunos com relação ao
curso de valores olímpicos:
Algo que eles aprendem e compartilham através do esporte e
que faz parte dos valores olímpicos é a amizade. Os laços de
amizade se tornam muito fortes, eles se ajudam com palavras
de incentivo e até treinando. Além disso, as amizades que
eles criam fora da escola. Amizades (namoros também) que
começaram em quadra durante os jogos, depois no facebook

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e convites para festas e passeio no Ibirapuera entre as escolas.
Especificamente, a EMEF Anne Sullivan, que é composta por
alunos surdos, foi muito bem acolhida pelos demais alunos,
não foram tratados de modo diferente. Há de se ressaltar o
trabalho do professor Ivanildo, que os levou aos jogos e permitiu
a socialização entre os alunos. Como no Sussumu temos
muitos alunos “especiais”, o contato foi mais próximo entre
eles. O interessante foi responder questões como: “Professora,
por que eles estão nessa competição? Eles deviam estar numa
competição especial”, ou ouvir: “Professora, eles não deviam
perder, eles são especiais”. Aprenderam alguns sinais de libra.
Estou enviando um vídeo feito por uma aluna de incentivo à
equipe de voleibol masculino de 2012. Depois envio fotos da
socialização entre a EMEF Anne Sullivan e as demais escolas
da DRE. Esses momentos não dão pra deixar de registrar.
Ah! Nem tudo é perfeito. Se eles puderem levar vantagem, o
discurso sobre valores é esquecido, principalmente em relação
à participação em competição.

Considerações finais
O projeto Olimpíadas Estudantis entrou para o calendário
e planejamento de muitas escolas. Professores relatam que já no
primeiro dia de aula os alunos perguntam quando começariam os
“treinos” e as competições das Olimpíadas.
Embora o início do projeto tenha sido pela competição
propriamente dita, hoje contempla a iniciação esportiva, a
atualização dos profissionais que dela participam, além de
encaminhar alunos para treinamentos esportivos em clubes/
equipes.
Podemos apontar que ampliou e está consolidando os
momentos dedicados à iniciação esportiva na Rede Municipal
de Ensino.
A partir das Olimpíadas Estudantis, houve a implantação
de dois programas importantes para ressignificar o esporte
na escola:
1. Programa de incentivo ao esporte escolar, no qual
o professor pode formar turmas de iniciação esportiva no
contraturno para desenvolver e aperfeiçoar a prática esportiva,
sendo remunerado com aulas extras além da sua jornada de
trabalho.
2. Programa CEU Olímpico: os CEUs abrem espaço para
treinamento em algumas modalidades. A proposta é absorver

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os alunos que se destacam nas escolas e estimular a difusão das
modalidades esportivas nesses equipamentos. Os especialistas
também iniciam “estágios” de acompanhamento junto a equipes
de competição em alguns clubes e entidades parceiras, como E.
C. Pinheiros, Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa, S. C.
Corinthians, Liceu Pasteur e Spac, para desenvolver a proposta
de treinamentos para as turmas desde a iniciação ao rendimento.
Com essas ações podemos identificar, nas diversas regiões
da cidade, as modalidades mais e menos desenvolvidas, os
professores envolvidos e, dessa maneira, propor intervenções
para estimular o desenvolvimento do esporte na rede. É possível
oportunizar palestras com atletas, cursos específicos para os
professores e vivências em clínicas esportivas para os alunos.
Segundo Gessman (1992:33), “A ideia olímpica não pode
ser entendida sem uma compreensão de sua missão educacional”.
Ou conforme Rubio et al. (2013) os valores olímpicos são, no seu
limite, essencialmente valores humanos .
Rever o conceito de Olimpismo na prática dos tempos
atuais e propor o estreitamento entre esporte e educação durante
os jogos, realizados com mais de 100.000 participações em 14
modalidades com crianças de 8 a 17 anos, em uma das maiores
cidades da América Latina, é um grande desafio. A cada edição das
Olimpíadas Estudantis aprende-se como manter acesa a chama
e como beneficiar o processo educacional com tão considerável
fenômeno que é o esporte.
De acordo com Rubio (2007):
[...] superado o romantismo inicial que moveu e motivou a
criação do Movimento Olímpico, assistimos na atualidade a
uma complexa trama de interesses a mover ideais e ações no
campo olímpico. De um sonho multicultural e multiétnico
a um dos maiores negócios do planeta os Jogos Olímpicos, a
maior realização do Comitê Olímpico Internacional, tornam-
se uma fonte inesgotável de reprodução de valores e de
projeção da dinâmica social.
Dessa forma, o Programa de Educação Olímpica nos leva
a refletir e discutir as reais possibilidades do esporte em nossa
cidade e em nosso país, que muito em breve receberá a 31ª edição
dos Jogos Olímpicos, fazendo-nos enxergar e compreender que,
às vezes, o esporte pode também ser o vilão da história. Para
Parlebas (apud Paes e Balbino, 2009), o esporte é aquilo
que se fizer dele.

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A escola pode estimular a prática esportiva; pode
perfeitamente realizar a iniciação no esporte com qualidade,
mas é preciso criar condições para o desenvolvimento esportivo
após essa fase. Na escola, estimulamos as vivências esportivas,
motivamos a formação de equipes para disputas em campeonatos.
Muito mais que descobrir talentos, temos a missão de formar
cidadãos, por isso democratizamos o acesso, proporcionando
a experimentação do esporte na infância e na adolescência. Os
valores olímpicos vêm colaborar sobremaneira com essa missão.
Identidade, autoconfiança, autoestima, vitória, derrota, superação,
igualdade, respeito mútuo e fair play. Amizade e fraternidade.
A busca da excelência com ética e compromisso.

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física na infância e na adolescência, 2ª ed., Porto Alegre: Artmed,
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DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. (Acessado em 10 de
novembro de 2013). http://portalsme.prefeitura.sp.gov.
b r / R e g i o n a i s / 1 0 9 1 0 0 / A n o n i m o S i s t e m a / M e n u Te x t o .
aspx?MenuID=61&MenuIDAberto=47
PORTARIA INTERSECRETARIAL SME/SEME nº 05, de 17/05/2011
(2011), que dispõe sobre as “Olimpíadas Estudantis”, instituindo
o “II INTERCEUS” e as “II Paraolimpíadas Estudantis” da rede
municipal de ensino, e dá outras providências. Prefeitura do
Município de São Paulo.
RESOLUÇÃO nº 10, de 7 de março de 2006, aprovando as Políticas
Setoriais de Esporte de Alto Rendimento, de Esporte Educacional
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social. São Paulo: Casa do Psicólogo.
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Presente e futuro do olimpismo:
o legado da geração X
Raoni P. T. Machado
Universidade Federal de Lavras – Minas Gerais

O processo histórico é a sequência, no tempo e


no espaço, das ações humanas que afetam as
condições que influenciam, de qualquer forma,
outras ações humanas.1

Introdução
“Nada é compreensível ou explicado sem história”, já dizia
o Barão Pierre de Coubertin, idealizador dos Jogos Olímpicos da
Era Moderna (COI, 2000, p. 36). Também pudera, foi a influência
das antigas histórias helênicas que fizeram com que o barão se
empenhasse na recriação desse evento.
Entre os anos de 1875 e 1881, uma equipe de arqueólogos
alemães realizou uma escavação completa no santuário de
Olímpia, cujas primeiras tentativas haviam sido iniciadas um
século antes, e devolveram ao mundo ruínas que passaram quase
dois mil anos enterradas entre cinco e seis metros abaixo do
solo. Esse momento coincidiu com uma fase em que Coubertin,
pedagogo de formação, fazia estudos sobre a relação das práticas
de atividades físicas e dos jogos na educação dentro das escolas,
influenciado principalmente pelo trabalho de Thomas Arnold, na
Escola de Rugby.
Em sua obra Transatlantic Universities, que escreveu ao
visitar os Estados Unidos, observou jovens realizando diversos
exercícios de força, e um grande numero de trabalhadores indo
realizar práticas atléticas em seus horários livres, e segundo ele
(COI, 2000), “isso prova que mesmo o mais extenuante trabalho
braçal não substitui o esporte. Aqueles que veem nada mais a
não ser movimento físico no esporte podem perceber que um
lado interior dele lhes está escapando” (p. 94). Na mesma época,
conheceu o padre dominicano Henri Didon, o qual, na abertura de
um evento esportivo escolar em Arcueil, disse aos seus estudantes

1
JAGUARIBE, H. Um estudo crítico da História. São Paulo: Paz e Terra,
2002. v.1, p. 42.

61

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que seu principal lema deveria ser citius, altius, fortius, ou seja,
mais rápido, mais alto e mais forte. Coubertin, que estava presente
nessa ocasião, desde então usou isso como lema do Olimpismo.
Resumidamente, esse foi o contexto em que o Olimpismo
surgiu e os Jogos Olímpicos foram recriados. Para o barão, a
filosofia de vida dos antigos helenos era perfeitamente adequada
para ser adaptada à vida moderna.
Já no final do século XIX, Pierre de Coubertin pôde observar
que o esporte, apesar de incipiente, estava se organizando para
que os atletas pudessem quebrar um recorde, ou que pudessem
oferecer o melhor espetáculo possível. Ciente de que esse
processo de especialização também ocorreu na Grécia antiga,
sendo inclusive alvo de crítica por pensadores daquela época,
o barão, durante seu movimento para a recriação dos Jogos,
antes mesmo da realização de sua primeira edição, insistiu em
seu caráter amador, promoveu debates e instituiu normas para
assegurar que isso fosse seguido.
Associado a isso, seguindo a linha da educação grega,
segundo a qual os melhores atletas procuravam realizar a prática
com mais dificuldade, a fim de aumentar seu mérito pela vitória,
ele dizia que vencer não era o único objetivo, e por muitas
vezes sequer era um objetivo, mas sim mostrar seu valor. Ele
acreditava que a desonra não estava em ser batido, mas sim em
não lutar. Fazer renascer os Jogos não era o único objetivo de
Coubertin, mas também criar um sistema institucionalizado que
envolveria atitudes morais dos indivíduos e, por consequência,
de toda a humanidade. Esse era o início dos ideais do Olimpismo
(COI, 2000).
Contudo, o que levou quase um milênio para acontecer
na Antiguidade não levou sequer um século para ocorrer na
atualidade. O fenômeno esportivo moderno foi trilhando o
caminho que seu idealizador temia. Com o desenvolvimento dos
meios de comunicação e da grandeza do espetáculo, o resultado
das disputas e seu apelo popular foram chamando a atenção de
governantes e patrocinadores para exporem seus “produtos”. A
consequente supervalorização da vitória levou os atletas a se
especializarem, a se profissionalizarem, e a buscarem métodos,
lícitos e ilícitos, cada vez mais desenvolvidos, para se chegar ao
triunfo, deixando de lado os ideais de seu criador. Os Jogos, então,
salvo as distintas peculiaridades de seus momentos históricos,
foram caminhando pela mesma trajetória que percorreram dois
mil anos antes.

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O esporte competitivo como um todo foi caindo nessa
armadilha criada pela contemporaneidade; ele precisa se tornar
um espetáculo interessante de ser assistido, cuja audiência
atrairá os patrocinadores, que sustentarão sua própria existência
(Machado e Rubio, 2014).
Estaria, então, o Olimpismo fadado a viver em um mundo
ideal, imaginário, separado da real expressão do fenômeno
esportivo?
A saída foi surgindo espontaneamente. Vem sendo
curiosamente construída como resultado de um processo
originado pela principal consequência da modernidade, que é o
seu impacto ambiental. Bento (2013) diz que “o esporte é parte
integrante da sociedade e por isso, subordinado a um sistema
de normas e valores nela predominante, ou seja, aparentemente
não há valores específicos do desporto diferente dos vigentes no
contexto social” (p. 116). Se por um lado a contemporaneidade
foi minando os princípios educativos no esporte pretendidos
em sua origem, por outro nos apresentou o caminho pelo qual
deveríamos seguir. A situação é menos paradoxal do que de início
possa parecer.
Quando o homem se deu conta dos impactos de sua própria
existência, e que aquilo que existia poderia não mais existir, um
movimento de “apropriação” do ambiente natural foi acontecendo,
e com isso surgiu uma série de novas modalidades esportivas com
características próprias diferentes do modelo tradicional, indo
novamente ao encontro dos ideais do Olimpismo. Vamos a elas.

As atividades físicas na natureza


Podemos dizer que, em geral, as atividades físicas na
natureza, tal como a conhecemos hoje, são um conjunto de
práticas recreativas que surgiram durante a década de 1970,
desenvolvendo-se durante a década de 1990 e se consolidando
nos dias atuais, associadas ao cenário dos novos hábitos da
sociedade pós-industrial (Betrán, 1995). Muitas nomenclaturas
referentes a esse tema são encontradas na literatura, sendo mais
utilizada no Brasil a denominação “Atividades Físicas de Aventura
na Natureza”, ou simplesmente AFAN, assim designada por
Betrán e Betrán (1995). A justificativa dos autores para isso é
que dessa forma ela possa significar aquelas “atividades físicas de
tempo livre que buscam por uma aventura imaginária, sentindo
emoções e sensações hedonistas fundamentalmente individuais

63

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e em relação com um ambiente ecológico natural. São atividades
que se situam e compartilham com os novos valores sociais da
pós-modernidade” (p. 112). Contudo, optamos por suprimir
a palavra “aventura”, por não acreditar ser possível generalizar
essa aventura imaginária preconizada pelo autor, quer seja em
sua manifestação recreativa voluntária e livre, ou sob a forma
de modalidade esportiva. Pelo exposto, utilizaremos, então, a
nomenclatura “Atividades Físicas na Natureza”.
Porém, muitas vezes a aventura realmente existe,
independentemente de sua dimensão. Feixa (1995) diz que o
imaginário simbólico está presente nas atividades físicas na
natureza, recuperando o universo de emoções controladas. A
aventura imaginária, vivenciada ao vivo, se antes era altamente
técnica e imprevisível, atualmente está muito mais acessível.
Um dos fatores que ajudaram o seu desenvolvimento
e contribuíram para sua massificação é a tecnologia atual, que
possibilita construir equipamentos que permitem a qualquer
pessoa deslizar pelo ar, pela água e pela terra de forma cada vez
mais fácil e sem grandes exigências técnicas. A identificação dessas
atividades com as características da sociedade pós-moderna a
tornam parte do mercado de consumo e de serviços, possibilitando
a oferta de múltiplas possibilidades adequadas ao perfil de cada
praticante (Betrán, 1995), fazendo com que se transforme em
um mercado em crescente expansão, surgindo novas modalidades
e tendências ano após ano, sempre em um constante exercício de
ressignificação de atividades já consolidadas.
Para Schwartz (2006), nossas opções de lazer são
construídas enquanto somos ainda crianças e são influenciadas
principalmente pelos nossos pais, mas também pelos amigos, pela
escola, por outros adultos, e, sobretudo, pela mídia. Associado
a isso, o já mencionado crescente avanço tecnológico, que se
tornou bastante acentuado durante a segunda metade do século
passado, junto com o aumento das informações disponíveis,
viabilizado pelo desenvolvimento dos meios de comunicação em
massa, possibilitaram aos indivíduos buscar novas alternativas,
e, dentre elas, foram surgindo “as experiências emocionalmente
ricas, proporcionadas pelas atividades na natureza” (p. 104).
Então, com essa espécie de “comercialização” do ambiente
natural, instaura-se um novo modelo cultural e esportivo.
Ao mesmo tempo em que os meios de comunicação
divulgam o esporte competitivo por todos os cantos do planeta,
tornando-o o principal fenômeno social deste século, Betrán

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e Betrán (1995) acreditam que a prática esportiva tradicional
vai perdendo espaço no campo recreativo para outras espécies
de atividades físicas não competitivas. Essas atividades podem
surgir adaptando-se uma modalidade esportiva já existente ou
através de “modas” esportivas que surgem motivadas por bons
resultados de uma equipe nacional em um megaevento esportivo,
caracterizando o legado sociocultural.
Camps e colaboradores (1995) também acreditam que
essas atividades físicas estão recebendo um aumento progressivo
do número de praticantes, aprimorando as estruturas envolvidas,
associando-se a um grande desenvolvimento de produtos ligados
às demandas dessas atividades, o que resulta em mais recursos
econômicos voltados para sua promoção e consumo, tornando-
se um atrativo para mais profissionais envolvidos diretamente
com elas, e gerando, também, um desenvolvimento de produtos
complementares a essas práticas. Por outro lado, isso pode gerar
sérios impactos negativos na natureza, quer pelo uso excessivo e
descuidado em algumas regiões, ou por um aumento demográfico
descontrolado em áreas de grande potencial turístico, esportivo ou
recreacional, além do óbvio risco aos praticantes sem experiência
ou auxiliados por guias sem formação profissional adequada.
Marinho e Bruhns (2003) vão na mesma direção e apontam
que o aumento da demanda e o desenvolvimento tecnológico
fizeram com que surgissem melhores equipamentos, promovendo
práticas mais diretas e harmônicas com a natureza e possibilitando
a realização de atividades impensáveis sem os equipamentos
adequados. Motivada por isso, hoje temos uma indústria que
trabalha com equipamentos específicos para essas práticas,
cujos potenciais de uso estão constantemente sendo testados,
descobrindo-se novas possibilidades com relativa frequência, que
são divulgadas praticamente de forma instantânea pela internet.
Portanto, o que era em princípio uma atividade temerária,
restrita a um pequeno grupo “marginal” que punha em risco sua
própria vida, hoje se torna um importante segmento da atividade
física relacionada ao saudável, ao ecológico, e que está disponível
a praticamente toda a população. Consolida-se como uma
atividade de tempo livre, como novas modalidades esportivas,
explorando cada vez mais suas próprias potencialidades, e
também promovendo o ecoturismo ou o turismo “de aventura”,
cada vez mais massificado, principalmente influenciado pelo
desenvolvimento tecnológico, pelo modismo ecológico e pelos
meios de comunicação social.

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Com isso, a aproximação dessas modalidades esportivas
com o Movimento Olímpico, apesar de lenta, foi inevitável, como
veremos a seguir.

A relação com o Movimento Olímpico


Podemos dizer que, em geral, os megaeventos esportivos são
eventos de curto prazo, com duração variável de duas semanas a
um mês, mas com consequências de longo prazo para a localidade
que os abrigou. Vemos melhoras duradouras na infraestrutura
local, um impacto significativo na economia e na vida social, além
da divulgação da cidade na mídia de uma maneira que jamais se
conseguiri (Machado, 2007). Essa exposição não se restringe à
cidade, mas também a muitas modalidades esportivas das quais
o público em geral não está acostumado a ver pela televisão,
podendo despertar um interesse que não se daria de outra forma.
A apropriação dessa situação vai ao encontro do que diz
Sahlins (1990): “um evento transforma-se naquilo que lhe é dado
como interpretação” (p. 16). Será justamente por meio dessa
exposição das modalidades pela mídia que interpretaremos essas
modalidades esportivas, e também sob a ótica preconizada pelo
Comitê Olímpico Internacional (COI, 2010) por meio da Carta
Olímpica¸ cujas missões destacamos a procura por “encorajar
e apoiar uma atitude responsável pelos problemas do ambiente,
promover o desenvolvimento sustentável no desporto e exigir
que os Jogos Olímpicos sejam organizados em conformidade”, e
“promover junto das cidades e países anfitriões o legado positivo
dos Jogos Olímpicos”, e “encorajar e apoiar as iniciativas que
integrem o desporto na cultura e na educação” (p. 11). Contudo,
apesar de bem pautado nesse documento, Veerman (2008) diz
que desde a criação da Comissão de Esporte e Meio Ambiente,
em 1995, até os Jogos Olímpicos de Inverno de Torino, em 2006,
período em que cobriu seu estudo, nenhum projeto de educação
olímpica ambiental foi criado, mesmo com a crescente presença
das modalidades esportivas realizadas na natureza no programa
olímpico.
A primeira aproximação entre os dois se deu basicamente
junto com a recriação dos Jogos Olímpicos na Era Moderna.
Em 1894, dois anos antes da realização de sua primeira edição,
Coubertin disse que pretendia dar uma espécie de premiação para
a melhor caça e para a melhor e mais impressionante escalada que
ocorresse durante o período entre o final de uma edição dos Jogos

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e o início da outra, devendo o competidor apresentar evidências
de seu feito a um júri, e gostaria de acrescentar uma terceira, na
categoria de aviação. Porém, como nos mostram Kluge e Lippert
(2013), na 12ª reunião do COI realizada em 1911, na cidade de
Budapeste, foram apresentadas as dificuldades de se realizar o
julgamento do grau de dificuldade da escalada, assim como os
riscos que escaladores não profissionais gerariam contra a própria
vida. E para não existir contradição com o princípio Olímpico
do amadorismo, não foi permitida a participação de escaladores
profissionais, nem mesmo guias pagos na disputa. Cobertin,
por fim, deu-se por vencido e resolveu não dar continuidade a
essas premiações. Contudo, sabe-se que nos Jogos de 1924 foram
realizadas premiações na categoria de montanhismo para o
Dr. Jacot-Guillarmod, por sua expedição ao Monte Everest (COI,
2000); para os irmãos alemães Franz e Toni Schimid, na edição
de 1932; e para os suíços Ehepaar e Hettie Dyhrenfurths (Kluge
e Lippert, 2013).
Além disso, ao comentar sobre as modalidades a serem
disputadas durante a segunda edição dos Jogos, em Paris (1900),
o Barão de Coubertin sugeriu que: “a Suécia, algum dia, organize
Jogos Olímpicos de inverno no gelo e na neve” (COI, 2000,
p. 381), sendo a primeira vez que esse assunto foi tratado. Os
Jogos de fato vieram a acontecer, mas não foram organizados
pelos suecos, e sim pelos franceses, somente em 1924, na cidade
de Chamonix.
Se essa era a realidade no final do século XIX e início
do XX, o que pudemos observar no centenário seguinte é bem
diferente. As práticas de atividades físicas na natureza foram
surgindo, se consolidando, e aos poucos ganhando espaço no
disputado programa olímpico.
Durante a realização dos Jogos Olímpicos de Verão em
2016, na cidade do Rio de Janeiro, de acordo com o site do COI2,
treze modalidades esportivas classificadas como “de aventura” ou
“na natureza” serão disputadas, distribuindo-se um total de 79
medalhas (43 no masculino, 30 no feminino e 6 mistas). Esse
número representa aproximadamente 25% do total de eventos
disputados, se tomarmos como base os 302 realizados em Londres
– 2012, o que torna significativa a influência que podem exercer
na população em geral. Vejamos, abaixo, quais são elas, assim
como a distribuição das medalhas.

2
www.olympic.org

67

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• Tiro com arco (2 masculinas e 2 femininas)
• Tiro esportivo (9 masculinas e 6 femininas)
• Equitação (6 mistas)
• Pentatlo moderno (1 masculina e 1 feminina)
• BMX (1 masculina e 1 feminina)
• Mountain bike (1 masculina e 1 feminina)
• Ciclismo de estrada (2 masculinas e 2 femininas)
• Natação 10k (1 masculina e 1 feminina)
• Triatlo (1 masculina e 1 feminina)
• Canoagem sprint (8 masculinas e 4 feminina)
• Canoagem slalon (3 masculinas e 1 feminina)
• Remo (8 masculinas e 6 femininas)
• Vela (6 masculinas e 4 femininas)
Quando nos referirmos aos Jogos Olímpicos de Inverno,
esse número aumenta ainda mais devido às próprias características
de suas modalidades. Das 15 modalidades esportivas presentes no
programa de Sochi – 2014, 6 possuem características “de aventura”
ou “na natureza”, e distribuíram a maior parte das medalhas em
disputa. Dos 98 eventos realizados, essas modalidades foram
responsáveis por 56 delas, sendo 29 masculinas, 26 femininas e
uma mista, tal como podemos ver a seguir:
• Biatlo (5 masculinas, 5 femininas e 1 mista)
• Ski alpino (5 masculinas e 5 femininas)
• Ski cross country (6 masculinas e 6 femininas)
• Ski freestyle ((5 masculinas e 5 femininas)
• Combinado nórdico (3 masculinas)
• Snowboard (5 masculinas e 5 femininas)
Esse vem sendo o resultado do crescente apelo midiático
para essas práticas, algumas bastante tradicionais e outras bem
recentes, como o sloopestyle (voltaremos a ela mais a frente),
com inúmeros programas televisivos direcionados a esse tema,
sendo inclusive, por exemplo, disponibilizados dois canais
por assinatura na TV brasileira exclusivamente voltados a essa
temática – o canal Off, pertencente ao grupo Globosat, e o
canal independente WooHoo, o que ilustra o grande interesse
pela população para essas práticas esportivas, gerando um
consequente mercado de consumo.

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A “geração X”
O sinal de alerta para o Movimento Olímpico acendeu no
início do século XXI. Um estudo citado por Thorpe e Wheaton
(2011) apontou que nos Jogos de Sidney – 2000 houve uma
redução de 50% na audiência, pelo público jovem, de homens
entre 18 e 34 anos de idade. Parecia que o modelo tradicional
de esporte ia perdendo espaço, e novas estratégias para atrair
esse público se tornavam necessárias. Destaca-se a criação dos
Jogos Olímpicos da Juventude, cuja primeira edição se deu em
Singapura – 2010, e a inserção das modalidades esportivas “de
aventura”, que estavam ganhando popularidade em número de
praticantes e de audiência, principalmente nos X-Games.
Vimos no início deste texto que apesar de as manifestações
das atividades físicas na natureza sob forma esportiva terem
despontado durante a década de 1970, foi somente vinte anos
mais tarde que elas começaram a ser ressignificadas, deixando
de lado seu caráter formal, com regras tradicionais, e passaram a
se desenvolver com regras mais flexíveis, abrindo espaço para a
criatividade dos praticantes, criando um ambiente praticamente
informal e não institucionalizado das práticas de estilo livre. Logo
no início da década de 1990, o esqui de estilo livre passou a fazer
parte do programa olímpico de inverno, estreando em Albertville
– 1992, e, no ano de 19983, em Nagano, foi a vez do snowboard
ganhar seu espaço. A inserção dessas modalidades trouxe maior
imprevisibilidade ao resultado final de muitas provas, assim
como estimulou a imaginação pelo risco nos espectadores, o que
despertou bastante interesse, melhorando os níveis de audiência.
Nos Jogos de Verão, a primeira tentativa se deu com o windsurfe,
em 1984, porém não da forma como os fãs queriam, como
veremos mais a frente, e somente em Atlanta – 1996 houve uma
nova tentativa de aproximação das modalidades na natureza com
a inserção do mountain bike e da canoagem slalon, e o BMX
apareceu valendo medalha somente a partir de 2008.
Além da inserção no programa olímpico, esse movimento
foi visto pela rede de televisão norte-americana ESPN como
uma oportunidade mercadológica, e, em 1995, lançou em
Rhode Island (EUA) o denominado “The Extreme Games”, ou

Até 1992 os Jogos Olímpicos de Inverno eram disputados no mesmo ano que
3

sua versão de verão. A partir dessa edição, passaram a ser realizados de forma
intercalada a cada dois anos. Para tanto, foi realizada uma nova edição dos Jogos
de Inverno em 1994, retornando sua periodicidade quadrienal a partir de 1998.

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simplesmente, “X-Games”. Estima-se que um público aproximado
de 198 mil pessoas acompanharam as 9 modalidades esportivas
apresentadas naquela edição. Dois anos mais tarde, além da
versão de verão, foi inaugurado os “Winter X-Games”, agradando
os fãs do esporte na neve. No ano seguinte, em 1998, foi a vez
da Ásia de ganhar seu evento local, sendo escolhida a cidade
de Pukhet, na Tailândia, como cidade-sede. Somente a partir de
2010 a Europa passou a receber a sua etapa local. Esses eventos
possuem periodicidade, sempre adaptando seu programa para
atender as novas tendências nos “esportes radicais”. Em 2013,
foi realizada uma tentativa de expansão globalcom a criação
do “Global X-Games”, constituído de cinco etapas, realizadas
anualmente em cinco locais diferentes. Além dos tradicionais
eventos nos Estados Unidos, receberiam os X-Games as cidades
de Barcelona, Munique e Foz do Iguaçu. No entanto, essa tentativa
não deu certo e em 2014 voltaram a ser realizados como antes.
Já consolidado como um megaevento de grande apelo midiático,
os X-Games são popularmente chamados de “as olimpíadas dos
esportes radicais”. As características de muitas modalidades que
fazem parte do seu programa são redefinidas após cada edição,
fazendo com que esse evento assuma um papel central na difusão
e globalização dos “esportes radicais”.
No início, esse processo de aproximação parece ter se
constituído naturalmente. Contudo, as características dessas
modalidades esportivas, assim como as dos atletas, praticantes e
entusiastas são desde seu princípio um pouco diferentes daquelas
que podemos atribuir ao “padrão dominante”, e esse grupo é o
que denomino “geração X”.
A origem desse grupo se deu em meados da década de 1960
com o movimento contracultura iniciado nos Estados Unidos, isto
é, um movimento social que visava contestar os valores vigentes
na sociedade. Seus precursores, os beatniks, propunham um
questionamento sobre o consumismo e o otimismo do governo
norte-americano no período pós-guerra, e o seu enfrentamento
era através de uma contestação articulada e reflexiva sobre
os padrões culturais dominantes. Os hippies, símbolos desse
movimento, possuíam entre suas diversas características o apreço
à natureza, enfrentamentos anticompetitivos, um individualismo
junto com a cooperatividade, e por serem contrários ao que se
considerava “normal”, eram também contrários aos modelos
esportivos tradicionais. Os jovens, que eram a maioria entre os
que aderiram a esse movimento, acabaram por revolucionar

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os modos de se vestir, de se comportar, e de reagir frente às
demandas da sociedade.
Uma dessas revoluções foi justamente no campo esportivo.
As características citadas anteriormente, tanto dos hippies como
das próprias atividades físicas na natureza, possuíam uma enorme
afinidade. Ao fugir das quadras e dos campos padronizados e ir ao
encontro do ambiente natural, longe das regras institucionalizadas,
os hippies puderam ressignificar uma série de atividades já
existentes, realizando-as em harmonia com a natureza, sem se
preocupar se estavam fazendo de acordo com a técnica correta ou
se obedeciam ao padrão tático preestabelecido. Enfim, podiam,
dentro de seu grupo, realizar atividades, cada qual de acordo com
seu nível de desenvolvimento, utilizando-se muito mais de sua
criatividade do que de suas capacidades motoras determinadas
fisiologicamente.
Assim nasceram as atividades físicas na natureza.
Diferentemente das modalidades esportivas tradicionais, não
possuem limitação de tempo e espaço e os praticantes podem se
confrontar com eles próprios em busca de superar limites impostos
pela natureza, ou intrínsecos a eles mesmos. Logicamente, para se
adaptar aos eventos competitivos, algumas mudanças tiveram de
ser feitas, tal como, por exemplo, a determinação de um tempo
limite para apresentação, de percursos predefinidos e de códigos
de pontuação para manobras realizadas. E, assim, essas práticas
foram gradualmente absorvidas pelos programas de diversas
competições esportivas.
Um estudo realizado por Thorpe e Wheaton (2011)
buscou analisar esse movimento de aproximação através das
características de três modalidades esportivas: o windsurf, o
snowboard e o BMX.
Pela análise dos autores, a primeira modalidade, o windsurfe,
como dissemos anteriormente, apesar de ter sido a precursora das
atividades físicas na natureza a fazer parte do programa olímpico,
não teve fácil aceitação de todas as partes. O maior público dessa
modalidade decorria de sua manifestação freestyle, contudo, nos
Jogos Olímpicos, foi inserida juntamente com as provas de iatismo
sob o formato de regata. Porém, o estilo desses novos atletas não
causou boa impressão perante a comunidade mais conservadora
dos iatistas, nem atraiu os fãs do windsurfe para essa “corrida”,
dado que queriam ver as manobras do estilo livre. Já o snowboard,
depois do seu enorme sucesso durante a primeira edição dos
X-Games de Inverno, em 1997, por decisão do Comitê Olímpico

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Internacional (COI), foi incluído já no ano seguinte nos Jogos,
porém, sob os cuidados da Federação Internacional de Esqui, e
não a de Snowboard. Muitos atletas e fãs ficaram descontentes
com essa arbitrariedade do COI e com os rumos que a modalidade
teria a partir disso, o que gerou inclusive boicotes por parte
de alguns atletas. Tais boicotes, contudo, não tiveram a mesma
força daqueles realizados pelos skatistas, que foram contrários a
tornar a modalidade “olímpica” por acreditar que o “espírito” do
skate é incompatível com o conservadorismo olímpico. Por fim,
o BMX, uma modalidade oriunda da criatividade de crianças e
adolescentes, que adaptaram suas bicicletas e o terreno para se
parecerem com as provas de motocross, foi incorporada pela União
Ciclista Internacional UCI como modalidade esportiva oficial em
1993, e em apenas três anos já ocupava grande parte do programa
dos X-Games, mas estreou nos Jogos Olímpicos apenas em 2008.
O grande sucesso fez com que se iniciasse um movimento para
usar o BMX freestyle como nova modalidade nos jogos, mas
encontrou grande resistência dentro dos próprios atletas, como
ilustra a frase citada pelos autores do estudo: “We created BMX
freestyle to do our own thing, express our own definition of sport,
and to have the freedom to express this how we please; not to have
our opinions sanctioned by a higher power” (p. 841).4
Além dessas três modalidades, existe uma quarta que acredito
representar a essência do fenômeno esportivo contemporâneo,
que é o snowboard slopestyle. Vejamos o porquê.

O Slopestyle
De acordo com a Wikipédia em sua versão em português,
“Slopestyle é uma modalidade do snowboard e do esqui que
consiste em manobras sobre caixas, trilhos [corrimão] e rampas”.
Ou seja, ela se inicia com o praticante realizando manobras em
obstáculos teoricamente artificiais (como corrimãos, contêineres
etc.) e termina com rampas “naturais”, sendo o importante não
o tempo de realização do percurso, mas sim a criatividade das
manobras realizadas.
Acredito que o slopestyle é uma modalidade “genial”,
representando a essência da esportividade contemporânea,

4
“Nós criamos o BMX e estilo livre para fazer nossas próprias coisas, para expressar
nossa própria definição de esporte, e para ter liberdade para isso como quisermos,
e não para ter nossas opiniões sancionadas por um poder superior.”

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mesclando o ambiente da natureza com a cidade, realizando
uma apropriação do urbano com criatividade, associado aos
altos saltos do half pipe. Presente nos X-Games de inverno desde
2002, teve sua estreia no programa olímpico em Sochi – 2014. O
presidente do COI na época, Jacques Rogge, assim se manifestou:
“We are very pleased with the addition of ski and snowboard
slopestyle (…) in the Olympic Winter Games program. Such events
provide great entertainment for the spectators and add further
youthful appeal to our already action-packed line-up of Olympic
winter sports”5.
A dinâmica do slopestyle faz com que os atletas olhem para
o ambiente em que estão inseridos sob uma nova perspectiva,
sendo obrigados a explorá-lo e ressignificá-lo a partir do seu
tempo e espaço comum, criando uma possibilidade para se
atribuir e ampliar os significados que por muitas vezes passam
despercebidos, o que se revela um importante elemento educativo.
A tomada de consciência sobre esses locais e o estabelecimento
de relações, segundo Certeau (1994), faz com que os praticantes
entendam os lugares a que pertencem, ou mesmo os que utilizam
para as práticas da modalidade, e o compreendam como parte
integrante de um organismo, e possuam reflexos de ações locais
ao interagirem de diversas maneiras.
Com esse potencial educativo ímpar, associado às demandas
do grande público pelas modalidades “radicais”, ou “de ação”, foi
natural que o slopstyle logo se inserisse no programa olímpico,
sendo praticamente “intimado” a tomar parte dos Jogos.
Por ser extremamente acessível, dado que sua prática pode
se dar em qualquer ambiente urbano, natural, ou combinado,
rapidamente se popularizou. Para realizar a iniciação esportiva
nessa modalidade, basta simplesmente não interferir e deixar a
criatividade dar conta do processo. Isso faz com que seja bastante
fácil trabalhar com ela, não apenas na neve; pode ser executada
com o skate e até mesmo como um parkour. No Brasil temos
alguns skatistas que conseguiram bastante sucesso internacional,
sendo o principal deles Bob Burnquist, recordista de medalhas nos

5
“Estamos muito satisfeitos com a inclusão do esqui e do snowboard slopestyle
no programa dos Jogos Olímpicos de Inverno. Esses eventos oferecem grande
entretenimento para os espectadores e aumenta ainda mais o apelo jovem a
nossa já consolidada linha de ação aos esportes olímpicos de inverno.” (tradução
livre). Texto original Disponível em http://www.gamesbids.com/eng/other_
news/1216135778.html. Acesso em: 25 mai. 2014.

73

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X-Games e praticamente sem contar com investimento público.
Hoje é um dos principais nomes da Megarampa (skate big air),
cuja solicitação motora não é muito diferente das exigidas pelas
provas do slopestyle, sendo ainda um campo a ser explorado
no Brasil.

Considerações finais
Vimos que o Movimento Olímpico passava por dificuldades
no final do século passado em relação à renovação de audiência
entre o público jovem, e que encontrou nas atividades físicas na
natureza uma possível saída para esse problema, apostando em
suas características na adequação para as mudanças da própria
sociedade.
Apesar disso, Thorpe e Wheaton (2011) mostraram que
atletas e entusiastas pertencentes à “geração X” ainda sofrem certos
preconceitos pela diferença de ideologia frente ao fenômeno
esportivo, mas que paradoxalmente sua essência está fortemente
vinculada desde o início aos princípios presentes na Carta
Olímpica. Muitas vezes precisamos de programas especializados
em Educação Olímpica para transmitir valores a praticantes de
outras modalidades, mas que já estão inerentes aos praticantes
das modalidades esportivas na natureza. Além do estudo citado
pelos autores, utilizamos, aqui também, a prova do slopestyle
como exemplo de como isso poderia ser feito. Ou seja, dada a
popularidade do skate no Brasil, principalmente entre as camadas
de maior vulnerabilidade socioeconômica; a existência de um
ídolo para as crianças se espelharem; o potencial educativo dessa
modalidade e da presença no programa olímpico, acredito que
tenhamos um ambiente propício para a elaboração de programas
educacionais, mas ainda não explorado. De acordo com a
Federação Internacional de Esqui, existe apenas um programa
educacional relacionado ao esqui na América do Sul, realizado na
cidade de Bariloche, na Argentina6.
Frente a esse quadro, portanto, observamos que desde o
final do século passado o Comitê Olímpico Internacional vem
apresentando ações com o intuito de integrar os objetivos do
Movimento Olímpico com as questões ambientais. Apesar disso,
poucos estudos têm se dedicado à apropriação desse legado

http://wiki.f is-ski.com/index.php/Esqui_Escolar/skiing_for_school_
6

kids%28Argentina%29. Acesso em: 25 mai 2014.

74

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por profissionais do esporte e suas potenciais utilizações como
ferramenta educativa através da educação olímpica. A tendência
das pesquisas nessa área procuram prioritariamente avaliar
o impacto das instalações esportivas no meio ambiente e as
influências que os megaeventos terão no turismo, deixando essa
lacuna no campo educacional e sociocultural.
O preenchimento dessa lacuna por meio de futuras
pesquisas poderá ter efeitos positivos ao meio ambiente, dado
que praticantes de atividades físicas na natureza, assim como os
ecoturistas, tendem a possuir uma melhor consciência ecológica,
além do fato de o contato direto com o meio ambiente ser
extremamente favorável à construção de valores educativos nesse
sentido, como demonstrou Certeau (2014). Então, além de procurar
formas de aproximação dessas atividades de maneira voluntária
e livre pela população em geral, pensando nos seus benefícios
educativos, ao potencializar a utilização dessas práticas enquanto
modalidades esportivas é possível fazer com que um numero
maior de praticantes venham a se tornar atletas competitivos
nessas modalidades, aumentando as chances de bons resultados
esportivos em médio prazo.

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76

Preservação da memória_Portugues.indd 76 07/10/14 18:51


A
importância da preservação
e construção de acervos:
a experiência do Centro de
Memória do Esporte (Esef-Ufrgs)
Silvana Vilodre Goellner
Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ESEF-UFRGS)

Considerado como um fenômeno de grande significação


na cultura contemporânea, o esporte, em suas mais diferentes
manifestações, vem ocupando diferentes espaços destinados à
preservação da memória, tais como museus, arquivos e centros
de documentação. No Brasil, tal aspecto ganha maior visibilidade
em função da organização de eventos como a Copa do Mundo
de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, os quais
têm demandado maior divulgação da cultura, da tradição, da
identidade e da história esportiva de nosso país. Em função desse
contexto, é possível perceber inúmeras ações voltadas para a
identificação, preservação e divulgação de acervos esportivos,
sejam eles pessoais ou institucionais. Afinal, não há história
sem memória e, para entendermos o presente, necessariamente
precisamos recorrer ao passado, ao tempo já vivido, seus vestígios,
continuidades e descontinuidades.
Tendo em vista a relevância da memória para a produção de
histórias e, mais especificamente, de histórias narrem a trajetória
do esporte no Brasil, seus primórdios e desdobramentos, considero
relevante destacar a função social desempenhada pelos museus,
centros de memória e acervos privados ou públicos, cujo foco é
o esporte em suas diferentes manifestações, visto que abrigam
experiências que ajudam a entender o presente bem como
perspectivar o futuro. Para tanto, compartilho da identificação
desses espaços como lugares de memória (VON SIMSON, 2000),
na medida em que preservam registros materiais e imateriais de
nossa história esportiva por meio da preservação de documentos
de diferente natureza em suportes físicos e digitais.
Essa identificação advém da conceituação proposta por
Pierre Nora, ao expressar que esses “são lugares, com efeito
nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional,
simultaneamente, somente em graus diversos” (1993, p. 21).

77

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Ou seja, os acervos esportivos são lugares de memória, visto que
estão imbuídos das funções de seleção e guarda da memória e da
simbologia que a envolve, preservando, assim, representações da
identidade coletiva.
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não
há mais memória espontânea, que é preciso criar arquivos,
que é preciso manter aniversários, organizar celebrações,
pronunciar elogios fúnebres, notariar atas porque essas
operações não são naturais (NORA, 1993, 13).
Uma das reflexões sobre a função social dos lugares de
memórias, focalizados aqui a partir de acervos esportivos, recai
na ideia de que esses espaços guardam vestígios do tempo
transcorrido. Assim, “de alguma forma e segundo critérios
previamente estabelecidos realizam o trabalho de coletar, tratar,
recuperar, organizar e colocar à disposição da sociedade a
memória de uma região específica ou de um grupo social retida
em suportes materiais diversos” (VON SIMSON, 2000, p. 65).
Se considerarmos que os lugares de memória sistematizam
e selecionam aquilo que deve ser preservado e aquilo deve ser
descartado, ganha relevância o papel político e pedagógico de
quem neles atua, visto que decorre dessa intencionalidade o
registro (ou não) do que outrora foi vivenciado por pessoas,
grupos e instituições.
Tal entendimento tem orientado as ações empreendidas
pelo Centro de Memória do Esporte da Escola de Educação
Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CEME)
no que tange à produção, preservação e divulgação de acervos
esportivos, dentre as quais destaco o programa de história oral e
o seu repositório digital.

O Centro de Memória do Esporte e a preservação


e produção acervos
O Centro de Memória do Esporte surgiu em 1997, com
os objetivos de reconstruir, preservar e divulgar a memória do
esporte, educação física, lazer e dança no Rio Grande do Sul e no
Brasil; implementar a produção científica no campo da história e
da memória das práticas corporais e esportivas; realizar exposições
permanentes e itinerantes; oferecer oficinas para escolas e outras
instituições públicas e privadas; dar acessibilidade à informações
relacionadas à memória das práticas corporais e esportivas;
organizar seminários, palestras e eventos temáticos; disponibilizar

78

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o acervo via recursos computacionais; produzir conhecimento
a partir de pesquisas realizadas no acervo; organizar acervo oral
composto por depoimentos de pessoas com contribuição para
a estruturação do campo das práticas corporais e esportivas no
Brasil; gestar informações sobre memórias das práticas corporais
e esportivas no Brasil por meio do movimento de acesso livre à
informação científica.
Esses objetivos foram formulados a partir da compreensão
de que, como um lugar da memória, o CEME é um espaço de
produção cultural, pois é a partir da especificidade de seu acervo
que são elaborados seus programas educativos, bem como sua
política de documentação e informação. Seu acervo comporta nove
coleções: Escola de Educação Física da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Educação Física e Esporte, Dança, Recreação e
Lazer, Olímpica, Universíade 1963, Colégio Brasileiro de Ciências
do Esporte, Movimento de Estudantes de Educação Física e
Programa Segundo Tempo. O CEME integra a Rede de Museus e
Acervos Museológicos da UFRGS (REMAM) e está registrado no
Sistema Estadual de Museus do Estado do Rio Grande do Sul1.
Considerando a diversidade de seu acervo, sua atuação
mantém relações com três tipos de instituições que atuam com a
produção e a preservação de fontes históricas: museus, arquivos
e bibliotecas. A característica museológica incorpora-se devido
à natureza de alguns objetos que preserva, fundamentalmente,
aqueles reconhecidos como tridimensionais (vestuário, medalhas,
troféus, entre outros), os quais possibilitam a organização de
exposições consideradas aqui como estratégias para ampliar
a acessibilidade de seu acervo ao público não acadêmico. A
materialização dessa ação parte do entendimento de que:
A característica mais importante de uma exposição
museológica é que ela facilita o encontro entre o visitante e o
objeto tridimensional. Somente a exposição fornece um contato
controlado com um objeto autêntico, e ela pode realizar isto de
maneira segura tanto para o objeto – em termos de segurança
e conservação – quanto para o visitante. Para isso, o museu
pode utilizar-se de vários modos de exposição: exposições
permanentes, exposições temporárias, comemorativas,
circulantes, ‘portáteis’ – que vão e voltam com o objetivo de
atrair visitantes e promover o museu –, exposições móveis –
sem lugar fixo – e exposições ‘emprestadas’ (SILVA, 2002, p. 1).

1
Mais informações estão disponíveis em <http://www.ufrgs.br/ceme/site/>.

79

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Afetar o visitante, uma das funções de uma exposição,
tem requerido da sua equipe ações interdisciplinares,
fundamentalmente, com instituições museológicas, na medida em
que organizar o modo de apresentar objetos ao público pressupõe
conhecimentos que envolvem dados aprofundados sobre aquilo
que é exposto, assim como conhecimentos relacionados à própria
estética da exibição.
Além do trabalho sistemático de recolha, higienização,
identificação e catalogação de acervo esportivo, considero
relevante destacar duas experiências implementadas pelo Centro
de Memória do Esporte no que respeita à produção e preservação
de acervos esportivos.

O Programa de História Oral


Além do trabalho de natureza museal e arquivística, o
CEME desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão que,
em grande medida, estão direcionadas à produção e divulgação
de fontes históricas. Com relação à produção de fontes, merece
destaque o projeto “Garimpando Memórias”2, que se constitui
por meio da realização de entrevistas que são transformadas
em documento escrito e disponibilizadas para consulta.
Fundamentado no aporte teórico-metodológico da história oral, o
projeto está direcionado para a coleta de depoimentos de pessoas
que atuaram e atuam na estruturação e legitimação das práticas
corporais e esportivas3. Desenvolvido desde 2004, tem como
objetivo valorizar a oralidade reconhecendo sua importância
como fonte histórica e sua pertinência aos estudos que dialogam
com a memória, aqui entendida como:
[...] uma produção do passado sob a luz da experiência vivida,
das emoções, da subjetividade e parcialidade explícitas, que é
constantemente reelaborada e transformada de acordo com
questões do presente. Já a história é uma construção crítica
sobre o passado, um relato produzido a partir de métodos
definidos. As fontes orais, logo, apresentam memórias, que
devem ser trabalhadas pelos estudiosos a fim de produzirem
histórias (MELO, 2013, p. 161).

Aprovado pelo Comitê de Ética da UFRGS, sob o número 2007710, em outubro


2

de 2007, com apoio do Cnpq e do Ministério do Esporte.


As entrevistas podem ser acessadas na coleção Depoimentos do Repositório
3

Digital, localizada em <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/40502>, e também


no portal do CEME, disponível em <http://www.ufrgs.br/ceme/site/entrevistas>.

80

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A utilização de fontes orais consolida um dos modos de
usar a memória na produção acervos, seja na criação dos registros,
seja na construção narrativa que se faz a partir da utilização dos
registros produzidos.
No que respeita à história oral, considero necessário apontar
que, desde meados do século XX, vários autores a utilizam de
diferentes formas e em diferentes campos disciplinares, tanto na
produção de textos científicos quanto literários. (THOMPSON,
1992; FERREIRA e AMADO, 1996). No caso específico do
“Garimpando Memórias”, tomamos como referência inicial o
trabalho desenvolvido pelo Centro de Pesquisa e Documentação
de História Contemporânea no Brasil (CPDOC), compreendendo
a história oral como:
[...] um método de pesquisa (histórica, antropológica,
sociológica, etc.) que privilegia a realização de entrevistas
com pessoas que participaram de, ou testemunharam,
acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma
de se aproximar deste objeto de estudo. Como consequência, o
método de história oral produz fontes de consulta (entrevistas)
para outros estudos, podendo ser reunidas em um acervo
aberto a pesquisadores. Trata-se de estudar acontecimentos
históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais,
etc., à luz de depoimentos de pessoas que deles participaram
ou os testemunharam (ALBERTI, 1989, p. 1-2).
A partir dessa ancoragem, operamos com a entrevista
compreendendo-a como um registro de memória e,
consequentemente, como uma forma de produção de fontes
a enriquecer o acervo do CEME, visto que seu processamento
articula pesquisa e documentação. Além do próprio depoimento
se constituir como uma fonte primária, a experiência de dez
anos de realização do projeto já demonstrou que o contato com
os entrevistados tornou-se ainda um modo bem-sucedido de
ampliação do acervo, sobretudo iconográfico e documental. Ao
rememorarem aspectos relacionados a sua vida pública, muitas
pessoas demonstram interesse em doar materiais por entender
que a instituição preservará aquilo que talvez seus amigos e
familiares não demonstrem interesse ou cuidado.
Considero relevante destacar que o projeto “Garimpando
Memórias” e as pesquisas que derivam dele partem do entendimento
de que a memória revela, simultaneamente, lembranças coletivas
e interpretações particularizadas. Com isso afirmo que operamos
com a memória entendendo-a como a reconstrução de um tempo

81

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que já passou, o que implica dizer que, ao ser acessada, há
possibilidade de falhas, distorções, esquecimentos ou acréscimos.
Em função dessa percepção, mostra-se pertinente, na etapa
de processamento das entrevistas4, a realização de pesquisas
complementares àquilo que foi narrado, de modo a entrelaçar
memória e história. Essa articulação, além de promover maior
densidade ao documento produzido, tem possibilitado ainda que
as memórias relatadas façam parte de exposições, seminários,
oficinas, mostras fotográficas, produção de vídeos, enfim,
atividades que visibilizam a memória como algo vivo a dizer de
ontem e de hoje. Tem possibilitado, sobretudo, que narrativas
não oficiais sejam registradas, uma vez que a história oral:
[...] permite ouvir histórias de indivíduos e grupos que
de outra forma seriam ignorados; permite expandir os
horizontes do nosso conhecimento sobre o mundo; e estimula
o questionamento de nossas próprias hipóteses a respeito das
experiências e dos pontos de vista de outras pessoas e culturas
(PATHAI, 2010, p. 124).
Essa possibilidade tem orientado as ações do projeto
“Garimpando Memórias”, que soma quase 500 entrevistas realizadas
e mais de 300 disponibilizadas no formato digital5, cumprindo,
desse modo, com uma importante função social, qual seja, a
produção de registros a partir da escuta atenta a pessoas que, em
seus depoimentos, materializam memórias individuais e coletivas.

O Repositório Digital do Centro de Memória


do Esporte
Atento às políticas de produção e acesso à informação,
o Centro de Memória do Esporte reuniu esforços no sentido
de promover maior visibilidade e acessibilidade ao seu acervo
utilizando, para tanto, ferramentas relacionadas ao acesso livre
à informação por meio da criação do seu repositório digital,

O processamento das entrevistas envolve as seguintes etapas: transcrição,


4

pesquisa, copidesque, devolução ao entrevistado, assinatura de carta de cessão


de direitos autorais, catalogação no acervo e disponibilização para consulta.
As entrevistas podem ser acessadas na coleção Depoimentos do Repositório
5

Digital, localizada em <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/40502>, e também


na página da internet do CEME/UFRGS, disponível em <http://www.ufrgs.br/
ceme/site/entrevistas>.

82

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seguindo a mesma estruturação do LUME – Repositório Digital da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul6.
Essa iniciativa integra também o plano político da UFRGS,
dada a importância que a instituição atribui à produção do
conhecimento e a sua difusão.
A tecnologia da informação tem um papel estratégico na
UFRGS, não apenas como possibilidade de expansão dos
serviços bibliotecários e instrumento fundamental para o
ensino presencial e a distância, mas também como fonte de
indicadores gerenciais e de integração com outros repositórios
de ensino e pesquisa no país. A grande quantidade de
conhecimento produzido nas universidades faz com que seja
necessário, além da sua difusão e uso, a sua preservação,
por isso a importância de projetos como este (PAVÃO et al.,
2008, p. 2).
A criação de repositórios digitais tem marcado a política
institucional de várias outras universidades brasileiras com a função
de compartilhar o que é produzido pelos seus pesquisadores.
Segundo Masson (2008), os repositórios apresentam algumas
características específicas, a saber: a) são tecnologias de
informação desenvolvidas para organizar, coletar, disseminar
e preservar informações e conhecimentos; b) são ferramentas
criadas para contribuir com o avanço de pesquisas; c) sua
arquitetura tem forma de rede interoperável, possibilitando novas
formas de avaliação das produções científicas e do desempenho
dos pesquisadores, bem como a interação e democratização
do acesso à informação e conhecimento e potencializando a
colaboração entre pesquisadores e a sociedade em geral; d) são
ferramentas flexíveis que podem ser adaptadas às constantes e
rápidas mudanças da sociedade contemporânea; e) são sistemas
que surgem no contexto da convergência tecnológica digital
tendo na Internet o seu ponto central.
Para o desenvolvimento dos repositórios digitais foi
importante a implementação do software DSpace, recomendado
pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia
(IBCIT), por possibilitar a criação desses repositórios:
[...] com funções de captura, distribuição e preservação da
produção intelectual, permitindo sua adoção por outras
instituições em forma consorciada federada. O sistema desde

6
Pode ser acessado no seguinte endereço: <http://www.lume.ufrgs.br/>.

83

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seu início teve a característica de ser facilmente adaptado
a outras instituições. Os repositórios DSpace permitem o
gerenciamento da produção científica em qualquer tipo de
material digital, dando-lhe maior visibilidade e garantindo a
sua acessibilidade ao longo do tempo (Instituto Brasileiro de
Informação em Ciência e Tecnologia, 2012).
O Repositório Digital do Centro de Memória do Esporte
foi incorporado ao LUME em maio de 2012 e seus itens são
disponibilizados a partir de cinco coleções: a) Audiovisual –
abriga documentos no formato de vídeos (filmes, depoimentos,
slides, videoconferências etc.) e sonoros (entrevistas de rádio,
músicas etc.); b) Depoimentos – comporta as entrevistas realizadas
pelo projeto “Garimpando Memórias” (disponibilizadas na
íntegra para consulta, tanto no Repositório quanto no Sistema
Automatizado das Bibliotecas (SABi) e o catálogo eletrônico do
Sistema de Bibliotecas da UFRGS7; c) Documentos – caracterizada
por documentos de diferentes naturezas, tais como leis, atas,
reportagens de jornais, correspondências, planos de aulas,
súmulas esportivas, entre tantas outras. Para a sua disponibilização
no Repositório são digitalizados e publicados em formato pdf;
d) Iconográfica – comporta imagens em diferentes suportes:
fotografias, cartazes, desenhos, pinturas, banners, entre outras.
Além desse material, é possível visualizar as exposições presenciais,
itinerantes e virtuais realizadas com temáticas relacionadas às
suas coleções específicas; e) Tridimensional – abriga objetos,
tais como vestuário, medalhas, itens e equipamentos esportivos,
entre outros. Esses objetos são fotografados e as imagens
podem ser visualizadas no Repositório acompanhadas de suas
especificidades como, por exemplo, tamanho, peso, textura,
bem como a origem e a história de cada peça, ressaltando se
já integrou alguma exposição, seja ela organizada pelo próprio
CEME ou emprestada para outra instituição.
Essas coleções podem ser pesquisadas no Repositório
através de metadados (dados que descrevem o documento) criados
especificamente para facilitar as buscas e acessos, a saber: ano,
autor, título, palavras-chave e acervos. A recuperação baseia-se nas
pesquisas de modo simples e avançado, percorrendo as coleções
e acervos, e o sistema oferece, caso haja interesse em conhecer,
as estatísticas de uso dos itens, indicando os mais acessados, bem
como os países e as cidades que protagonizam os acessos.

7
Disponível em <http://sabi.ufrgs.br>.

84

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Acredito, ainda, que outro aspecto inovador desse
Repositório consiste no acesso à diversidade dos registros que
integram cada coleção e que podem ser facilmente utilizados pelo
usuário. Além de visualizar o documento e coletar informações
específicas sobre ele, é possível fazer um download e, assim,
utilizá-lo em suas pesquisas e interesses. Cumpre-se, assim, outra
função social, qual seja, a adesão ao movimento de acesso livre à
informação científica. Por acesso livre, define-se a disponibilização
ilimitada, na internet, de literatura acadêmica ou científica,
possibilitando a qualquer pessoa ler, fazer download, copiar,
imprimir, pesquisar ou referenciar (link) o texto completo dos
documentos (RODRIGUES, 2005). Sua manifestação tem se dado
a partir de diferentes iniciativas, tais como o uso de software livre,
o download de arquivos de música, os e-books (livros eletrônicos),
os repositórios digitais e os periódicos eletrônicos. Esse novo
modelo distingue-se “por consentir o acesso sem barreiras, sem a
exigência do uso de senhas, licenças ou mesmo o pagamento de
assinaturas para fazer a consulta nos sites ou nos exemplares”
(CRESPO e CORREA, 2006, p. 2).
Além do Repositório Digital, que já disponibiliza mais de
dois mil itens, o CEME mantém outras tecnologias de informação
e documentação, dentre as quais destaco o portal na internet8,
ferramenta por meio da qual se obtém informação sobre o
desenvolvimento de todas as suas atividades. Nesse portal
também é possível acessar as produções de sua equipe, tais como
livros, artigos, teses, dissertações, monografias, multimídias,
assim como as entrevistas do projeto “Garimpando Memórias”
e os livros eletrônicos da coleção GRECCO9, produzidos com
objetivo de conferir maior visibilidade e acesso ao seu acervo,
potencializando, dessa forma, sua função política e pedagógica,
assim como sua responsabilidade social.

Referências
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de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil, 1989.

8
Mais informações em: <http://www.ufrgs.br/ceme/site>.
Produzidos pelo Grupo de Estudos sobre Esporte, Cultura e História (GRECCO),
9

estão disponíveis em <http://www.ufrgs.br/ceme/site/publicacoes/ebooks>.

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Preservação da memória_Portugues.indd 85 07/10/14 18:51


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Paz e Terra, 1992.

86

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Memória
e história:
desafios metodológicos para
os estudos do esporte1
Victor Andrade de Melo
Universidade Federal do Rio de Janeiro

A memória é uma ilha de edição – um qualquer


passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.
Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?
A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.
Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.
Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queimas de arquivos, divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.
Que importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna alguma adequada,
seja grega seja bárbara,
para depositá-las?
(...)
E os dias sucedem-se e é firmada a intenção
de transmudar todo veneno e ferrugem
em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.

1
 ste artigo incorpora algumas reflexões apresentadas em outras ocasiões, algumas
E
delas em parcerias com outros colegas. Tais produções foram citadas em notas
de rodapé.

87

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Ao prazer do bel-prazer,
como quem aperta um botão da mesa
de uma ilha de edição
e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo
Corrigindo:
o humano fado 2.

O longo extrato da poesia, o olhar atento do poeta


sintonizado com seu tempo, de pronto nos apresenta alguns
desafios a ter em conta para pensarmos na relação entre a memória
e a história. Se a segunda, no seu formato acadêmico, aspira à
cientificidade, uma forma de distanciamento racional, a primeira
é fundamentalmente marcada pelo calor dos acontecimentos
(mesmo quando há um espaçamento temporal entre o que foi
vivido e o momento em que é lembrado).
Se a memória, como percebe o poeta, é uma ilha de
edição, não seria a história também o mesmo, com seus
recortes espaciais, temporais e metodológicos? Memória e
história não são da mesma forma criações humanas marcadas
pela provisoriedade, pelos limites das condições de expressão,
pelas expectativas e projetos de passado e futuro, pelos
enquadramentos do presente? Da mesma maneira, as duas não
padecem de uma mesma impossibilidade de sucesso, dado
que é impossível recriar exatamente o passado conforme ele
existiu? Nesse sentido, não seriam ambas um similar esforço de
interpretação do fardo e do fado humano?
Temos aqui uma discussão sobre os limites, ou talvez seja
melhor falar das especificidades, entre o trabalho do historiador
profissional e outros esforços sociais de rememorar. Machado de
Assis brinca com essa distinção:
E repare o leitor como a língua portuguesa é engenhosa. Um
contador de histórias é justamente o contrário do historiador,
não sendo um historiador afinal mais do que um contador
de histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor, nada
mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem culto,
letrado humanista; o contador de histórias foi inventado pelo
povo, que nunca leu Tito Lívio e entende que contar o que se
passou é só fantasiar 3.

SALOMÃO, Waly. Carta aberta a John Ashbery. In: SALOMÃO, Waly. Algaravias.
2

São Paulo: Editora 34, 1996.


ASSIS, Machado. História de quinze dias. Ilustração Brasileira, Rio de Janeiro,
3

p. 1, 15 de março de 1877.

88

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O grande literato ainda ironizou o dilema em outra ocasião:
“Mais tarde, poetas e historiadores concordariam em dizer que as
três pessoas da ilha é que deram ocasião ao título desta; a diferença
é que os poetas diriam a coisa em verso, sem documentos, e os
historiadores di-la-iam em prosa, com documentos”4.
Estamos a sugerir que o exercício da memória não é
exclusividade de um profissional, tampouco tem fim, função ou
formato únicos. Devemos também, de imediato, afastar qualquer
ideia de que exista uma hierarquia entre os diversos envolvidos
com a tarefa. Todavia, é necessário marcar e compreender as
diferenças da performance de quem se envolve com o tema, as
distintas responsabilidades que cercam os esforços dos agentes.
A pesquisa histórica, conforme concebida a partir de um
conjunto de compreensões teóricas e metodológicas que se
estruturaram no decorrer do tempo por agentes normalmente
integrantes de um campo acadêmico, tem uma série de
peculiaridades que precisam ser reconhecidas e utilizadas, sem o
que a confundimos com outros esforços de exercício da memória.
Adotemos uma definição. Por memória, compreende-
se uma produção do passado sob a luz da experiência vivida,
das emoções, da subjetividade e parcialidade explícitas,
constantemente reelaborada e transformada de acordo com as
questões do presente. Já a história é uma construção crítica sobre
o passado; melhor dizendo, uma discussão sobre um tema, em
tempo e espaço arbitrados, entabulada a partir de determinados
procedimentos metodológicos5.
Para além dos muros universitários, sem sempre é
reconhecida essa distinção. Isso em si não é um problema. O
problema é se nós, pesquisadores envolvidos com a tarefa específica
de lançar olhares advindos de uma perspectiva acadêmica, que
tem aspirações e inspirações na ciência, não reconhecermos as
devidas diferenças e abandonarmos (ou desconhecermos) os
procedimentos que devem nortear os nossos esforços a partir da
especificidade de nossa atuação.
No caso dos estudos do esporte, há algumas peculiaridades
que devemos ter em conta, especialmente porque em muitas

ASSIS, Machado. A semana. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, p. 1, 11 de março


4

de 1894.
MELO, Victor Andrade, SANTOS, João Manuel Malaia Casquinha, FORTES, Rafael,
5

DRUMOND, Maurício. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro:


7 Letras, 2013.

89

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ocasiões as ideias de memória e história se confundiram na
trajetória do objeto. Não seria equivocado dizer que no campo
esportivo, desde cedo, se valorizou certa visão de registro de
dados e fatos que se relaciona à difusão de ideias de grande
utilidade para sua consolidação: o heroísmo, a coragem, a
grandiosidade das conquistas humanas. Os “feitos esportivos”
devem ser preservados e exibidos: testemunhar, documentar, “to
record” – o recorde como dimensão central que permite lembrar
a constante necessidade de superação.
É também comum, desde seus primórdios (estamos nos
referindo à transição dos séculos XVIII e XIX), relacionar o esporte
com um suposto passado longínquo, de forma a, estrategicamente,
reiterar sua importância. Essa mobilização pode ser observável
também na institucionalização de outras práticas corporais: da
educação física (como justificativa para a implementação dessa
disciplina escolar), da ginástica (como inspiração na elaboração
dos métodos gímnicos) e mesmo da dança (nos discursos sobre
as peculiaridades das propostas de dança moderna).
Além disso, vale ter em conta que as origens do fenômeno
esportivo (do “esporte moderno”) se encontram no mesmo
momento histórico em que se erigia a ideia de Estado-Nação,
noção com a qual rapidamente se articulou. De fato, a prática
configurou-se inserida e articulada com o quadro de mudanças
que marcou a construção do ideário e imaginário da modernidade6.
Desde o século XIX, a prática esportiva tem sido utilizada
como estratégia para forjar discursos identitários, inclusive
representações relacionadas à ideia de nacionalidade. As
competições constantemente assumem um caráter de ode à
nação: quando entram em campo os símbolos nacionais, a paixão
pelo esporte não poucas vezes se confunde com o amor à pátria,
compondo uma performance de declaração de vínculos de
lealdade ao país7.
Tais eventos podem ser encarados, dessa forma, como
“lugares de memória”, como entendidos por Pierre Nora: loci em
que é construída a consciência histórica de um povo. Os lugares

MELO, Victor Andrade de. Esporte e lazer: conceitos. Rio de Janeiro: Apicuri/
6

Faperj, 2010.
SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia, COSTA, Maurício da Silva Drumond,
7

MELO, Victor Andrade de. Celebrando a nação nos gramados: o Campeonato


Sul-Americano de Futebol de 1922. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57,
v. 1, p. 151-174, 2012.

90

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de memória não se constituem necessariamente de espaços
físicos, mas também de elementos simbólicos. São monumentos,
personalidades, obras de arte, acontecimentos que ancoram
a visão de um passado em comum, ajudando a materializar
uma identidade construída. Como observa Nora, “a memória se
enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”8.
Elementos esportivos podem se constituir em lugares de memória
quando são “investidos de uma aura simbólica”.
Nora sugere que três aspectos coexistem na configuração
de um lugar de memória: o material, o funcional e o simbólico.
No Brasil, algumas competições esportivas, notadamente as de
futebol, na materialidade de seus jogos, torneios e produtos,
exercem funções que vão desde se constituir em uma importante
opção de lazer para parte significativa da população até servir
como mecanismo para reforçar vínculos diversos. Tais eventos
mobilizam representações que ajudam na cristalização da memória
e da identidade coletivas. Em outros países pode-se observar algo
semelhante ao redor de outras modalidades, como o ciclismo na
França e o beisebol nos Estados Unidos.
Vale também dialogar com a ideia de “comunidade
imaginada” proposta por Benedict Anderson. Para o autor, a
nação deve ser encarada como uma entidade presumida por seus
membros, que compartilham símbolos próprios de identificação
mútua. Mesmo que nunca se encontrem numa totalidade, os
indivíduos se sentem como parte atuante de um grupo, pois “na
mente de cada um existe a imagem de sua comunhão”9. Os eventos
esportivos permitem à comunidade celebrar essa construção
coletiva e demonstrar publicamente sua pertença ao todo.
O esporte é, assim, não poucas vezes, encarado como uma
representação de supostas “características intrínsecas” de um
povo: como um importante elemento de afirmação cultural, ao
redor do qual se constituem “tradições inventadas”10.
Eric Hobsbawm faz uma distinção entre as invenções
“políticas” e as invenções “sociais” de tradições. As primeiras
seriam fruto de movimentos organizados ou intervenções estatais

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto


8

História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993. p. 9.


9
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e
expansão do nacionalismo. Lisboa: Edições 70, 2005. p. 25.
10
HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo:
Paz e Terra, 1997.

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– como festas cívicas e eleições de heróis nacionais. Já as segundas
seriam as geradas por grupos sociais sem uma organização mais
formal ou sem um objetivo político explícito. Comumente as duas
dimensões se mesclam, até mesmo por interesse de dirigentes em
se vincular a celebrações populares. Para Hobsbawm, como “uma
das novas práticas sociais mais importantes do nosso tempo”11,
“tanto o esporte das massas quanto o da classe média uniam a
invenção de tradições sociais e políticas (...) constituindo um
meio de identificação nacional e comunidade artificial”12.
Assim, em um mundo cada vez mais globalizado, em poucos
anos certos fatos esportivos ganharam status de tradição nacional.
Mesmo quando a ideia de nação tornou-se mais frágil em função
do desenvolvimento econômico transnacional, o esporte manteve
o papel de construtor e consolidador de discursos identitários, de
celebração da pátria. Com isso, não afirmamos que a prática tem
sido somente usada como parte de uma estratégia deliberada de
manipulação e controle, mas sim que se insere dialogicamente no
processo de construção de um imaginário que torna mais estável
o cotidiano dos membros de uma comunidade, tornando-se,
assim, parte da memória coletiva.
Logo, em função dessa constante sobreposição entre as
ideias de memória e história na trajetória do campo esportivo, os
investigadores do tema devem tomar ainda mais cuidados no que
tange à compreensão da relação entre ambas. Podemos começar
por melhor entender como isso foi tratado nas pesquisas que
nos antecederam, à busca de perceber os limites desses esforços,
sinalizações do que devemos evitar.
No cenário brasileiro, as primeiras iniciativas foram
protagonizadas por antigos praticantes e/ou apaixonados pelas
modalidades, sem a preocupação de uma discussão histórica
propriamente dita13. Por exemplo, um dos autores que primeiro

HOBSBAWM, Eric J. A produção em massa de tradições: Europa, 1870 a 1914.


11

In: HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo:
Paz e Terra, 1997. p. 306.
HOBSBAWM, Eric J. A produção em massa de tradições: Europa, 1870 a 1914.
12

In: HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo:
Paz e Terra, 1997. p. 309
MELO, Victor Andrade, SANTOS, João Manuel Malaia Casquinha, FORTES, Rafael,
13

DRUMOND, Maurício. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro:


7 Letras, 2013.

92

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escreveu sobre a trajetória do turfe, observou: “Mais vale tarde do
que nunca. Já não é cedo para se escrever a história do turfe nacional,
história que, na falta de testemunhas oculares e de documentos já
hoje raríssimos, poderá ser para o futuro adulterada”14.
No caso do remo, também se pode perceber preocupação
semelhante em 1909, no livro de Alberto Mendonça, que, junto
com Ernesto Curvello Júnior, foi um dos primeiros a sistematizar
observações sobre sua trajetória:
Evidentemente sabido é que dificuldades de monta teríamos
de encontrar na compilação de fatos históricos sobre a vida
deste esporte, assim como na coleção de documentos a ele
referente; porquanto, até a presente data é conhecida de
sobejo a deficiência das publicações sobre o nosso movimento
esportivo, hoje, felizmente, em grau de desenvolvimento
notório15.
Se essas primeiras iniciativas foram eminentemente
esforços de preservação de memória, esforços posteriores
estariam mais sintonizados com as perspectivas historiográficas
de seu tempo. Nesse aspecto, devemos destacar as obras de Inezil
Penna Marinho, um dos mais importantes estudiosos brasileiros
da história do esporte e da Educação Física.
Sua produção, sem dúvida, apresenta alguns limites que
devem ser considerados à luz dos olhares contemporâneos: a
utilização exclusiva de fontes documentais; um caráter “militante”,
a investigação servindo para provar e legitimar posições
previamente estabelecidas; a preocupação exacerbada com o
levantamento de datas, nomes e fatos; uma abordagem centrada
fundamentalmente na experiência de grandes expoentes; o
uso de uma periodização política geral em detrimento de uma
periodização interna.
Todavia, mesmo com essas observações, deve-se perceber
que seus estudos possuem uma sensível diferença, principalmente
no que se refere à compreensão metodológica. Além disso,
destacam-se seus investimentos na história brasileira, até então
pouco abordada, sua erudição e a utilização de documentos
diversificados. A obra de Inezil é um exemplo de pesquisa
histórica bem desenvolvida nos padrões da escola metódica, cuja

PACHECO, Eduardo. Crônicas do turf fluminense. Rio de Janeiro: s.n., 1893. p. 7.


14

MENDONÇA, Alberto B. História do sport náutico no Brazil. Rio de Janeiro:


15

Federação Brazileira de Sociedades de Remo, 1909. Sem página.

93

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influência foi muito grande no Brasil, segundo os parâmetros
propostos por Langlois e Seignobos.
Na verdade, em alguns de seus artigos já se pode identificar
mudanças na concepção de história, apontando-se para uma
perspectiva mais interpretativa. Contudo, o que preponderou foi
sua visão centrada no levantamento de datas e fatos. Vejamos
que, nesse aspecto, seus esforços de história, embora diversos
pelas preocupações metodológicas, ainda se aproximavam de um
exercício de preservação de memória.
Na década de 1980, materializam-se críticas a essa visão de
história, notadamente em função de uma maior proximidade com
inspirações advindas do marxismo. O intuito, no cenário de um
país que se democratizava e de uma área de conhecimento que
passava por um processo de reavaliação, era lançar olhares mais
críticos sobre a trajetória do esporte e da educação física no Brasil.
O que ocorre é que, a despeito da sua importância, esses
esforços foram desprovidos de claras preocupações metodológicas,
sendo mesmo obras mais confusas, incompletas, superficiais.
A periodização continuou a se submeter a especificidades
exteriores ao objeto, referendando uma impressão de linearidade
tão presente nas fases anteriores. A história era entendida como
responsável por explicar linearmente o presente, fato agravado
por uma compreensão que parte para o passado com hipóteses
confirmadas a priori. A exasperação da crítica ao caráter factual
que marcou a etapa anterior resultou no dispensar de datas, fatos
e nomes, em uma deficiente operação das fontes. Trata-se menos
de pesquisas históricas propriamente ditas e mais de ensaios
de filosofia da história (muito inconsistentes, aliás). Tampouco
podem ser consideradas como eficazes contribuições para a
preservação da memória.
Na verdade, é somente a partir da década de 1990 que
surgem preocupações metodológicas mais denotadas no que
tange à investigação histórica que se debruçou sobre o esporte e a
educação física, para ser mais preciso, sobre as práticas corporais
institucionalizadas. A sistematização e utilização desse conceito,
aliás, é um indicador da busca de maior precisão nos esforços
de pesquisa.
O que alguns autores têm sugerido é que a História
das Práticas Corporais Institucionalizadas é um campo de
investigação que se debruça sobre manifestações culturais que
passaram por processos de institucionalização que guardam
algumas similaridades, como o esporte, a educação física

94

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(entendida tanto como uma disciplina escolar quanto como uma
área de conhecimento), a ginástica, a dança, as atividades físicas
“alternativas” (antiginástica, eutonia, ioga etc.), alguns fenômenos
análogos de períodos anteriores à Era Moderna (as práticas
de gregos, os gladiadores romanos, os torneios medievais, um
grande número de manifestações lúdicas de longa existência),
entre outras (como, por exemplo, a capoeira).
Para facilitar o entendimento e/ou em função de questões
operacionais, sugiro usar como metonímia o termo História do
Esporte, o que não exclui ou substitui os enfoques específicos
ligados aos diferentes objetos. Ou seja, a História do Esporte (no
sentido de História das Práticas Corporais Institucionalizadas)
englobaria as histórias da educação física, da ginástica e do próprio
fenômeno esportivo, entre outras, que investigam separadamente
os temas, mas sempre os entendendo tanto inseridos em um
contexto específico quanto na relação que estabelecem com
outras práticas corporais de seu tempo.
Essas mudanças no âmbito da História do Esporte, no
caso do Brasil, se observaram primeiro na área de Educação
Física e posteriormente no campo acadêmico da História, que
também passava por transformações, notadamente em função das
provocações da Nova História Cultural, estando os historiadores
mais atentos às diversas práticas sociais. Esses novos aportes
foram antecedidos por uma maior valorização do tema no âmbito
da Sociologia e da Antropologia, compreensões que de alguma
forma influenciaram a nova perspectiva de investigação histórica.
O que se pode observar, nas duas últimas décadas, é um
notável aperfeiçoamento das iniciativas de pesquisa. Percebe-
se, inclusive, uma maior sistematização e institucionalização dos
estudos, uma configuração mais clara da História do Esporte
como um campo de investigação. Todavia, se os avanços são
alvissareiros, há ainda um longo caminho a trilhar. Pretendo
aqui recuperar alguns pontos que considero relevantes para que
possamos pensar no futuro das nossas iniciativas.
Um primeiro ponto que gostaria de destacar é a necessidade
de refletirmos melhor sobre as potenciais contribuições de nossas
investigações. Ao melhor compreender a trajetória histórica dos
fenômenos, podemos colaborar para desvendar algo das suas
questões contemporâneas, tanto no que se refere a um melhor
entendimento dos papéis sociais que desempenham as práticas
investigadas quanto no que se tange, inclusive, a possibilidades
mais diretas de aplicação.

95

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No entanto, se essa dimensão não pode ser negligenciada,
não se pode perder de vista que as práticas corporais
institucionalizadas têm sua configuração articulada com as
dimensões sociais, culturais, econômicas e políticas de um dado
contexto. Elas fazem parte do patrimônio de um povo, da memória
afetiva de indivíduos e grupos, sendo também importantes
ferramentas na construção da ideia de nação e na formulação
de identidades de classe, gênero, etnia, entre outras. Por essa
conformação, são objetos cuja investigação pode contribuir para
desvendar, de forma multifacetada, o cenário em que se inserem.
Isto é, a História do Esporte tem um duplo compromisso,
duas dimensões que podem estar mais ou menos articuladas: a
melhor compreensão do tema a partir de sua inserção social e o
melhor entendimento da sociedade a partir do tema.
Para exponenciar essas possibilidades de contribuição, o
esforço central é seguir investindo no aperfeiçoamento de nossas
iniciativas de pesquisa, sendo uma de nossas necessidades
mais urgentes a busca de maior rigor metodológico. Ainda há
muitos estudos que desconhecem ou não se detêm sobre essa
importante dimensão da investigação histórica. Além disso, só
recentemente, e de forma tímida, vemos a busca de diversificação
das alternativas metodológicas.
Muitos seriam os exemplos possíveis, alguns já apresentados
em outras ocasiões. Aqui citarei apenas um deles. Noções como
as de construção, invenção e imaginação, caras a boa parte dos
historiadores da cultura16, podem ser particularmente instigantes
quando pensadas em relação ao esporte, afinal, o panteão esportivo,
na contemporaneidade, é uma das principais manifestações de
sentimentos como paixão, idolatria e orgulho nacional. Histórias
heroicas e dramáticas, produzidas e reproduzidas nas conversas,
nos filmes, nas casas, nos livros, nos meios de comunicação
(especialmente no jornalismo esportivo), nos jogos eletrônicos e
nas brincadeiras infantis, constituem-se assuntos relevantes para
o pesquisador.
Ao historiador, contudo, não cabe tanto desmascarar mitos
– embora isso seja também parte da sua tarefa, dependendo do
estudo que se pretenda realizar –, mas compreender, interpretar
e explicar os complexos mecanismos de difusão, repetição

BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 105.
16

96

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e produção de memória pelos quais determinadas narrativas e
explicações se tornam hegemônicas, ao passo que outros relatos
e versões são relegados ao esquecimento ou ao subterrâneo17.
Não se trata de exercitar teorias da conspiração, segundo
as quais tudo que existe é fruto de acordos de bastidores entre
poderosos, mas de desvelar os processos históricos pelos quais
se constroem os mitos, em geral articulados com a legitimação
social de certas pessoas, grupos e entidades. Isso pode se dar de
maneira planejada, fortuita, casual, intencional, não intencional –
caminhos de forma alguma excludentes entre si.
Muitos outros seriam os exemplos possíveis no que tange a
certas dimensões da história política e história econômica, entre
outras. Na verdade, ao chamar a atenção para esses aspectos,
alertamos para a necessidade de não adotarmos a postura que
Marieta de Morais Ferreira chama de “produtores de história”
(history makers)18, autores que produzem trabalhos sem se ater
aos cuidados metodológicos, comumente considerando suas
fontes como se fossem um retrato fiel do que ocorreu no passado,
reproduzindo discursos de memória como se verdade fossem.
A questão é simples e óbvia, mas deve ser relembrada
inclusive em função da característica multiprofissional do
campo de investigação da História do Esporte (na qual atuam
“historiadores de formação”, mas também oriundos de outras
áreas). Qualquer que seja a opção teórica/metodológica adotada,
a história do esporte é sempre história: são os debates da
disciplina (bem como das ciências humanas e sociais como um
todo) que devem nortear nossa atuação, independentemente da
área original de formação do pesquisador.
Nesse sentido, uma história do esporte vai se cruzar com
muitas outras histórias: a) seja no que se refere às dimensões –
Política, Cultural, Social, Econômica etc.; b) seja no que se refere
às abordagens – Oral, Serial, Análise de Discurso, Quantitativa,
Micro-História etc.; c) seja no que se refere aos domínios –
Corpo, Gênero, Urbana, Arte etc.; d) seja no que se refere aos
recortes temporais – Antiga, Medieval, Moderna, Contemporânea,
Tempo Presente.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de


17

Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.


FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e história oral. Topoi,
18

Rio de Janeiro, n. 5, p. 314-332, 2002.

97

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Uma das possibilidades que menos temos utilizado é
a História Comparada, um método que apresenta múltiplas
possibilidades para o historiador do esporte. Podemos, por
exemplo, comparar modalidades distintas em um mesmo
cenário. O contraste do tempo/momento de estruturação e
desenvolvimento de cada prática ajuda-nos a compreender de
forma multifacetada não só a configuração do campo esportivo
no local, como também a lançar um olhar sobre os diferentes
contextos históricos.
Interessante também seria compararmos diferentes cidades
de um mesmo país. No caso brasileiro, já temos um conjunto
de estudos sobre algumas localidades, notadamente capitais
(Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto
Alegre, entre outras). Não temos, contudo: a) investigações
sobre muitos municípios, especialmente os de menor porte; b)
praticamente não temos estudos comparados. Essa possibilidade
de investigação poderia nos apresentar um panorama ampliado
e mais aprofundado sobre o desenvolvimento do fenômeno
esportivo pelo Brasil, nos ajudando a testar hipóteses de trabalho.
Há ainda a possibilidade de compararmos diferentes
países e/ou cidades de distintos países. Em função da
proximidade geográfica e de algumas similaridades históricas,
que semelhanças e dessemelhanças haveria, por exemplo, na
configuração do campo esportivo nas nações da América do
Sul? Teria essa perspectiva de investigação alguma contribuição
a dar ao estudo de nosso continente? Esse tipo de iniciativa
parece urgente e fundamental, inclusive porque a estruturação
da História do Esporte na América Latina é menor do que no
continente europeu e nos Estados Unidos. Observe-se que não
estamos falando da qualidade das pesquisas, no que estamos
pari passu com a produção mundial, mas sim da conformação
do campo de investigação.
Muitas alternativas de uso da História Comparada poderiam
ser ainda apontadas. Quero, contudo, citar pelo menos mais uma:
compararmos países que compartilham dimensões culturais, como
o idioma. Por exemplo, parece interessante insistir na prospecção
de elementos que possam contribuir para pensar as semelhanças
e dessemelhanças de algumas experiências dos países de língua
oficial portuguesa, ampliando nosso entendimento tanto sobre
nossas histórias nacionais quanto sobre a cultura lusófona no
mundo. Podemos colaborar com esses esforços a partir do caso
específico do esporte.

98

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Vale lembrar que temos poucos estudos sobre o esporte
nos países africanos de língua oficial portuguesa, nações que
estabeleceram relações materiais e simbólicas constantes com
o Brasil. As investigações sobre as práticas esportivas podem
também ajudar a desvendar essa história em comum19.
Ao falarmos das questões metodológicas, devemos
conceder espaço especial para discutir o uso de fontes. No cenário
nacional, temos usado majoritariamente documentos e periódicos
(ainda mais esses últimos). Há um grande desafio: a dificuldade
de acessar material diversificado em função da pouca organização
de nossos arquivos, tanto de instituições governamentais
quanto das próprias entidades esportivas. Todavia, há também
desconhecimento ou negligência por parte dos pesquisadores,
especialmente no que tange a importantes repositórios pouco
procurados.
Outro desafio deve ser assumido pelos pesquisadores: o
uso de fontes de diferentes naturezas: filmes, fotografias, obras
de artes plásticas, relatos de viajantes, obras literárias, peças
dramatúrgicas (teatro e dança), material publicitário, músicas.
Valeria ainda a pena pensar em um uso mais frequente de fontes
orais. Há muito o que pode ser utilizado para buscar novos
olhares sobre nossos temas.
No que tange à fonte oral, muitos cuidados devem ser
observados. Essa é uma das alternativas em que mais se confundem
os aspectos da memória com os esforços da pesquisa histórica.
Em alguns casos, inclusive, as publicações são praticamente a
reprodução de relatos, não havendo maior investimento no sentido
de elaborar alguma síntese ou análise. Há ainda interpretações
que “embarcam” na posição do entrevistador sem ter em conta os
cuidados metodológicos necessários.
Não devemos confundir essa abordagem anterior com
uma possibilidade de investigação que aparece com frequência
crescente nos trabalhos de história oral. O intuito do historiador
não é a construção de uma interpretação crítica sobre o passado,
mas sim a discussão das representações presentes em discursos
e memórias. Para os que se interessam por esse enfoque, mais
importante do que a veracidade dos fatos, é o modo como as

BITTENCOURT, Marcelo, NASCIMENTO, Augusto, MELO, Victor Andrade de


19

(Orgs.). Mais do que um jogo: o esporte e o continente africano. Rio de Janeiro:


Apicuri, 2010.

99

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pessoas concedem sentido ao que vivenciaram, como conectam a
experiência individual com o contexto social, como o passado se
torna parte do presente e como as pessoas se utilizam dele para
interpretar as suas vidas e o mundo ao seu redor 20. Os relatos orais
são, assim, não apenas fontes para o trabalho dos historiadores,
mas também seu objeto de estudo.
Devemos chamar a atenção para o óbvio: há cuidados
metodológicos que são comuns a todos os tipos de fontes,
enquanto alguns são peculiares a cada alternativa. O pesquisador
não pode negligenciar esse debate.
Há ainda um ponto para o qual gostaria de chamar a
atenção: a necessária ampliação dos temas investigados. No senso
comum é corrente a afirmação de que o Brasil é o país do futebol.
Independentemente dos exageros, é inegável o grau de popularidade
desse esporte. Nesse sentido, consideramos compreensível que
essa seja a modalidade que mais tem merecido atenção dos
pesquisadores: houve tempo em que falar em história do esporte
no Brasil praticamente significava falar de história do futebol.
O quadro está mudando alvissareiramente, mas permanecem
numerosas as modalidades esportivas e práticas corporais que
requerem maior atenção e investimento dos historiadores
brasileiros. Aliás, mesmo no que se refere ao futebol, percebe-se
a necessidade de diversificar as investigações, muito centradas em
grandes clubes, grandes ídolos e grandes cidades.
Outra dimensão que merece ser destacada é o grande
número de estudos relacionados à relação entre esporte e
identidade nacional. Gênero, classe social, questões raciais/
étnicas, localismos, entre outros, são enfoques sobre os quais o
historiador também pode e deve se debruçar quando trata das
práticas corporais.
Devemos ainda pensar nos diversos recortes temporais. Se
temos, por exemplo, no cenário brasileiro, muitos estudos sobre a
segunda metade do século XX, poucos são os que se debruçaram
sobre o século XIX. Ampliar nosso olhar sobre os diferentes
tempos históricos é tão importante quanto as dimensões antes
apontadas.
Para concluir, devemos lembrar que as práticas corporais
institucionalizadas são transtemporais: é raro, no decorrer da

THOMSON, Alistair. Fifty years on: an international perspective on oral


20

history. The Journal of American History, v. 85, n. 2, p. 581-595, 1998.

100

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história, encontrar um período ou um grupo social que não tenha
registrado alguma forma de manifestação dessa natureza. Da
mesma forma, vale considerar que estamos lidando com práticas
influentes e presentes em vários países. O esporte, por exemplo,
destaca-se por sua notável transnacionalidade.
Por essas características, a investigação de tais práticas
pode contribuir para tensionar os próprios limites da disciplina
História, inclusive por induzir os pesquisadores à busca de
diálogos multidisciplinares. Aliás, deveríamos também refletir
melhor sobre que contribuições o debate e as competências
específicas da Educação Física poderiam dar à pesquisa histórica.
Elas podem estar fundamentalmente no que tange à melhor
compreensão do cotidiano, dos movimentos, das estratégias de
intervenção. Trata-se de um programa a ser construído.
Vale lembrar que as práticas corporais já recebem
atenção de muitas áreas de conhecimento: algumas que podem
ser consideradas mais óbvias (como Economia, Sociologia,
Antropologia, Psicologia, Economia e Comunicação Social), outras
que soam mais curiosas (Oftalmologia do Esporte, Enfermagem
do Esporte, Odontologia Esportiva). Isso tem relação com um
meio universitário crescentemente especializado, mas também
com a popularidade do fenômeno esportivo.
Tendo em vista esse quadro, sem significar que a História
do Esporte deva deixar de existir enquanto “subdisciplina”, é
importante ter em conta sua contribuição para a constituição de
um campo de investigação ao redor do tema a partir de uma
perspectiva multidisciplinar, transdisciplinar e, quem sabe,
interdisciplinar: os Estudos do Esporte. No nosso ponto de vista,
nesse projeto devemos nos aproximar da perspectiva dos Estudos
Culturais, algo distinto do que ocorre no cenário internacional,
onde os Sports Studies parecem se constituir a partir de uma
predominância da Sociologia21.
Enfim, há cerca de duas décadas iniciou-se no Brasil
a conformação do campo da História do Esporte: de ofício e
interesse de poucos, paulatinamente o tema vem ocupando
espaços e desempenhando papéis de protagonismo. Embora
notáveis tenham sido os avanços, cabe-nos seguir investindo na
qualidade de nossas investigações e no aperfeiçoamento de nossas

Como exemplo, ver: COAKLEY, Jay, DUNNING, Eric. Handbook of sports


21

studies. Los Angeles: Sage, 2000.

101

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iniciativas, inclusive ampliando o debate com outras disciplinas e
para espaços exteriores à universidade, atraindo maior número
de interessados, extrapolando os fóruns específicos, evitando a
formação de guetos autorreferentes. Esse desafio, que se coloca
para a ciência brasileira, é particularmente caro à História do
Esporte, por lidar com um objeto que desperta imenso interesse
e paixões.
Para além dos desafios em âmbito nacional, uma necessidade
premente se impõe: aprofundar o contato com pesquisadores que
se debruçam sobre o tema no cenário internacional. Contudo,
exortamos que este seja um caminho de mão dupla, traçado não
pelos modelos restritivos e etnocêntricos que dificultam e mesmo
impedem um intercâmbio amplo, contínuo e intenso.
No início da década de 1960, Edward Carr, em livro que
se tornou referência, lançou uma provocação, quase um grito de
guerra, certamente uma convocação, que teve grande impacto
entre os historiadores: “quanto mais sociológica a história se
torna, e quanto mais histórica a sociologia se torna, tanto melhor
para ambas”22. Parafraseando Carr, parece ser possível afirmar
que: “Quanto mais a História olhar para o esporte, e quanto mais
o esporte considerar a História, tanto melhor para os dois”.

22
CARR, Edward. O que é História? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

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Parte II
Memórias, Narrativas
e Histórias de Vida

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Memórias
e narrativas
biográficas de
atletas olímpicos brasileiros
Katia Rubio
Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP)

Introdução
Buscando em minha própria memória, tenho lembrança de
competições olímpicas desde os Jogos Olímpicos de Munique, em
1972, menos pelo atentado que ocorreu na Vila Olímpica e muito
mais pelas apresentações de Olga Korbut, uma soviética que usava
marias-chiquinhas e, juntamente com Ludmilla Turischeva, fazia o
impossível para que a ginástica artística de então fosse na trave
de equilíbrio ou nas paralelas assimétricas. A ginástica era um
sonho para mim, e embora eu sonhasse em ser como elas, sabia
de minhas limitações físicas e materiais para chegar até aquilo.
Passados quatro anos, essa sensação de impotência
ficou ainda maior ao ver Nádia Comaneci ser a primeira atleta
a conquistar a nota 10 nas provas de trave e das paralelas
assimétricas, elevando em muito o que Olga fizera na edição
anterior dos Jogos Olímpicos. Sem saber ou entender das políticas
que levavam o país a ser o que era no campo esportivo, buscava
de alguma forma estar próxima daquele fenômeno, praticando
esporte na escola e participando das competições escolares, que
tinham um significado proporcional aos Jogos Olímpicos para
estudantes da cidade em que vivia. E naqueles momentos eu
buscava reproduzir, fosse na gestualidade ou mesmo no design
dos uniformes, o feito dos atletas que admirava.
E assim como as ginastas soviéticas, atletas como Adhemar
Ferreira da Silva, Joaquim Cruz, Jesse Owens, Aída dos Santos,
Jackie Silva e tantos outros não apenas marcaram a história dos
Jogos Olímpicos em sua época, mas também perpetuaram seus
feitos na memória de diferentes gerações e com isso despertaram
ou mantiveram acesa a chama do desejo de crianças e jovens
de se tornarem atletas. Foram necessários muitos anos para que
eu entendesse que aquele processo de identificação que se deu
comigo era muito mais comum do que podia imaginar, e que
outras tantas crianças e jovens também começavam a praticar

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esporte tendo alguém fabuloso como espelho. E mesmo diante
da impossibilidade de vir a ser um atleta de nível olímpico, a
paixão despertada por aqueles artistas do movimento tornaram
muitos indivíduos amantes, espectadores e seguidores das
práticas esportivas, por ver nelas a possiblidade da transformação
do humano em algo divino.
Essas lembranças que tenho de minha infância me levaram,
de forma deliberada ou inconsciente, a estudar a importância
da figura dos atletas olímpicos para o desenvolvimento de um
imaginário esportivo brasileiro. A relevância de conhecer suas
histórias era imperiosa não apenas para o entendimento do que é o
esporte contemporâneo, mas para humanizar o atleta, colocando-o
no papel de protagonista de um espetáculo globalizado, muito mais
do que competitivo do ponto de vista esportivo, tornando os Jogos
Olímpicos um dos maiores fenômenos culturais do século XXI.
O objetivo deste capítulo é discutir o papel das narrativas dos
atletas olímpicos brasileiros para a constituição da memória social
do esporte brasileiro e de um imaginário esportivo. Este estudo
é possível em função da pesquisa Memórias olímpicas por atletas
olímpicos brasileiros, realizada nos últimos quinze anos a partir da
narrativa das histórias de atletas brasileiros que participaram dos
Jogos Olímpicos. Por meio dessa pesquisa foram realizadas mais
de 1.300 entrevistas em formato de histórias de vida, de onde foi
possível extrair não apenas os dados objetivos da trajetória dos
atletas olímpicos brasileiros, mas também conteúdos de ordem
latente que permitem a inferência sobre questões relacionadas à
construção da subjetividade dessas pessoas e da construção de
suas identidades tanto como atletas como cidadãos e pós-atletas.

Memória social e histórias de vida


Desde o começo do presente século, como que portando
um fio de Ariadne, entrei no labirinto das histórias de atletas
olímpicos brasileiros. Lanço mão da metáfora do labirinto, uma
vez que não é tarefa difícil entrar nesse universo de análise, mas
pouco se sabe o que encontrar pelo caminho ou como regressar
ao exterior após uma aventura quase iniciática como essa.
A questão inicial que mobilizou a pesquisa Memórias
Olímpicas por atletas olímpicos brasileiros era a relação que havia
entre a escolha pela carreira de atleta e uma atitude heroica que
se revelava no tipo de vida que essas pessoas se determinavam
a ter depois dessa escolha. Desde então, o desejo de resgatar

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essas histórias tornou-se o agente mobilizador de minha carreira
acadêmica, responsável pela mobilização para realizar pesquisas
e também por buscar caminhos metodológicos que oferecessem a
possibilidade concreta de interpelação e interpretação dos dados,
que jorravam como água de uma mina abundante. A pesquisa
teve início com os medalhistas olímpicos, atletas que desde
1920 participaram de Jogos Olímpicos e por seus desempenhos
alcançaram o pódio, local destinado apenas aos três melhores
resultados na competição. Isso significava um número restrito de
atletas, afinal, dos 1.800 brasileiros que participaram de alguma
edição olímpica, apenas 324 (sendo 108 mulheres e 226 homens)
alcançaram esse lugar, superando todas as limitações de ordem
pessoal, social e material. O contato com esse grupo deu início
a um processo denominado cartografia do imaginário esportivo
brasileiro (Rubio, 2001), cujas memórias apontaram para
situações relacionadas a treinamentos, competições, a estrutura
institucional do esporte brasileiro, sempre pela perspectiva e
compreensão do protagonista do espetáculo esportivo.
Uso o termo “pessoa” porque há nele uma dimensão
social, conforme aponta Sá (2007). Segundo o autor, “a referência
à ‘pessoa’ implica reconhecê-la como produto de processos de
socialização, como ocupando posições e desempenhando papéis
sociais, como dotada de uma identidade construída através da
interação social e como reflexivamente ciente desta” (p. 292). Essa
condição o distingue tanto do sujeito, uma criação moderna e
produtor de subjetividade, como do indivíduo, ente isolado no
contexto social.
A busca inicial pelas histórias de vida deu-se pelo
entendimento de que era preciso permitir que os atletas
organizassem suas lembranças, trajetórias e memórias, de forma
a relatar não apenas os componentes objetivos dessa vivência
como as principais conquistas, as participações olímpicas, quem
os influenciou, mas principalmente os componentes de ordem
pessoal e subjetivos carregados de afetividade e emoções de
toda espécie. A associação entre essas duas instâncias traria
as pistas necessárias para o entendimento da complexidade
de uma pessoa que alia a condição de um nível de habilidade
motora extraordinária à condição humana ordinária, que
partilha das mesmas angústias e expectativas dos demais que
vivem em sociedade
Conforme aponta Bosi (1993), muito mais do que
qualquer fonte o depoimento oral ou escrito necessita esforço

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de sistematização e claras coordenadas interpretativas (p. 277). O
esforço inicial, então, em dominar o método resultou na definição
do primeiro grupo da pesquisa restrito aos medalhistas olímpicos.
A questão norteadora dessas histórias era o entendimento da
motivação intrínseca de seres humanos que também vivem uma
metavida de duração limitada. Isso porque muitos deles afirmam,
ao longo de suas narrativas, que o atleta é um ser que morre
duas vezes: uma em vida, ao final da carreira atlética, e outra no
momento em que para de respirar.
Foram necessários alguns anos para que eu entendesse a
natureza desse trabalho, que se aproximava de uma “história das
mentalidades”, assim como define Le Goff (1976). Para o autor,
“o primeiro atrativo das mentalidades reside precisamente na
sua imprecisão”, e efetivamente comecei a perceber, ao longo
do encontro e contato com os atletas, que a heterogeneidade e
as diferenças eram o agente unificador desse grupo, tornando a
própria pesquisa imprecisa. Inúmeras vezes respondi de forma
também imprecisa aos questionamentos sobre como realizar a
análise dos dados obtidos pelas entrevistas, uma vez que me
colocava claramente em uma posição distante da análise do
discurso ou do conteúdo, caminho mais curto para quem busca a
pesquisa com entrevista.
Le Goff (1976) aponta que a falta de limites levou os
historiadores das mentalidades a buscar uma aproximação com
outras ciências humanas, como a demografia, que permite a
quantificação de comportamentos; a etnologia, que busca o
entendimento dos aspectos culturais relacionados com o fenômeno;
à sociologia, para uma compreensão dos aspectos sociais
envolvidos com o indivíduo; e a psicologia, para o entendimento
das atitudes individuais e coletivas. Essas aproximações ganharam
contornos claros após o contato com a narrativa de atletas de
diferentes modalidades, períodos históricos e contextos sociais,
distinguindo-os por aquilo que os singularizava, ou seja, suas
histórias pessoais, porém aproximava-os quando se tratava das
questões que marcavam suas histórias, como as dificuldades ou
impedimentos em competições, fosse por questões de ordem
política ou institucionais. O entendimento dessas razões aflorava
das narrativas mescladas de afetividade, o que favoreceu o reviver
de lembranças quase sempre seguidas de expressões como “eu
nunca tinha falado sobre isso” ou “eu não imaginei que pudesse
me lembrar desses detalhes” ou ainda “eu nunca tinha contado
isso a ninguém”.

108

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No processo de organização das lembranças traduzidas em
narrativas estão implicadas questões caras ao campo da memória
social, isso porque, conforme sugere Halbwalchs (2006), a
memória não é uma reprodução literal de experiências vividas,
mas uma recriação do passado a partir das vivências acumuladas,
do momento vivido e das influências do contexto social e cultural
do sujeito. Para o autor, “nossa memória não se apoia na história
aprendida, mas na história vivida. Por história devemos entender
não uma sucessão cronológica de eventos e datas, mas tudo o que
faz com que um período se distinga dos outros, do qual os livros
e as narrativas em geral nos apresentam apenas um quadro muito
esquemático e incompleto”.
Ao se referir à própria trajetória, invariavelmente, os atletas
trazem em suas narrativas a lembrança de pessoas e profissionais
que influenciaram o desejo pelo esporte, pela busca de melhores
condições de vida e de treinamento ou a convivência com outros
atletas que também competiam naquele momento histórico e cujas
carreiras se cruzaram, apontando para a necessidade premente de
contextualizar essas situações para promover o entendimento de
episódios marcantes de suas vidas e de seus resultados. Destaque-
se, nesse processo, que os resultados competitivos obtidos, sejam
eles vitoriosos ou não, estão intimamente associados a conjunções
adversativas que visam estabelecer ideias de oposição, contraste
ou compensação a respeito desses episódios. Essas construções
são ainda mais comuns entre os que ocuparam as segundas ou
terceiras posições no pódio ou ainda entre os que não chegaram
a nele subir. Em se tratando de atletas de modalidades coletivas,
essa condição é ainda mais evidente porque vários deles narram
suas memórias sobre um mesmo conteúdo vivido, apontando
para a subjetividade que envolve a construção e elaboração
desse conteúdo ainda que vivido coletivamente. Percebida
essa multiplicidade de interpretações, e, consequentemente, de
verdades sobre um mesmo fato, passei a adotar uma postura mais
compreensiva e menos analítica da narrativa, por entender que
cada pessoa carrega uma verdade sobre uma situação ocorrida.
Mais do que verdades universais, o trato com as narrativas sugere
verdades parciais, individuais ou mesmo momentâneas, afirmadas
na intensidade das memórias que emergem sobre o tema em
questão. Lidar com essa imprecisão, além de gerar desconforto
sobre a condução do processo, exigiu uma busca constante sobre
a condução das entrevistas e também da análise do material que
delas emergia. Diferentes histórias individuais ganhavam um

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caráter coletivo quando somadas a outras narrativas já colhidas
em outros momentos. Isso representava, para mim, um trabalho
redobrado de busca desses mínimos múltiplos comuns que
permitiram a construção de cenários temporais e pessoais.
Ariés (1990) aponta que no tempo presente, vivido pelo
historiador, está a origem do interesse pelas mentalidades, que
busca a ruptura entre o tempo do historiador e o tempo da história
propriamente dita, o passado. “A análise dessas transferências de
ideias e de sensibilidade permite subtrair do presente fatias do
passado e adelgaçar o presente a ponto de torná-lo transparente”
(p. 173). A observação dessas rupturas permite, inclusive, o
entendimento das transformações nas instituições e a influência
destas no desenrolar da carreira dos atletas.
Quando se iniciou a busca pelos atletas medalhistas,
encontrei vários deles na condição de “pós-atletas1” com a
ruptura entre presente e passado materializada. Diante de mim
encontravam-se pessoas com parte de suas trajetórias marcadas
pela vida competitiva, pela glória e visibilidade que sua atividade
lhes conferia, e após o afastamento dessa etapa desenvolveram
outras identidades, vinculadas ou não ao esporte. Alguns desses
atletas tiveram sua imagem indelevelmente associada ao longo de
anos ou décadas à modalidade que praticaram e aos títulos que
conquistaram, mas a maioria deles tem essas imagens de realizações
guardadas em álbuns, fitas de vídeo e lembranças pessoais
registradas na própria memória. A depender de como se deu esse
processo de construção da nova identidade, ou mesmo do sucesso
alcançado após a mudança, a narrativa construída como sujeito
“do presente” carrega com cores mais acentuadas ou tênues as
glórias ou dissabores do passado. Ou, em outros casos ainda, esse
processo não ocorreu, ainda que muitos anos tenham se passado,
e a narrativa, então, vem carregada de uma mescla confusa do
passado com o presente, com referências recorrentes a um sujeito
que já não mais existe, mas que permanece maior e mais forte do
que a pessoa que narra a própria trajetória no presente.
Essa constatação confirma a tese de Pollack (1992) de que
a memória é, em parte, herdada e não se refere apenas à vida

Termo utilizado para se referir aos atletas que já viveram a transição de


1

carreira, deixaram de ser atletas competitivos de nível olímpico e no presente


desempenham novos papéis sociais (Rubio, 2012). Isso porque entendemos que
o atleta não perde o esse vínculo com o seu passado, daí a impossibilidade de ser
designado como um ex-atleta.

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física da pessoa. Ela sofre flutuações em função do momento em
que está sendo processada e manifestada, por isso a necessidade
de se entender os motivos que levam a sua estruturação. Daí a
afirmação de que a memória é um fenômeno construído.
Entendo por fenômeno construído a expressão verbalizada
de um fato ressignificado pelo narrador, posto que se refere a
algo já ocorrido e presentemente revivido por meio da fala, na
qual ganha nova forma tanto descritiva quanto afetiva.
A narrativa, segundo Benjamim (2012), durante longo
tempo floresceu em um meio artesão e ela própria é, em certo
sentido, uma forma artesanal de comunicação. “Ela não está
interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada, como
uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida
do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim, imprime-se
na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na
argila do vaso” (p. 221). Foi possível constatar, ao longo dessas
quase duas décadas de trabalhos com os olímpicos brasileiros,
que o convite à reflexão sobre a própria história leva a pessoa
a uma atitude de recolhimento introspectivo que favorece a
criação de imagens e lembranças, permitindo a reconstrução
da memória. As diferenças temporais e geográficas marcam as
narrações, porém o laço que une os narradores das diferentes
modalidades em momentos históricos distintos é a condição de
ser atleta que, embora tenha sofrido profundas transformações
ao longo do século XX, mantém uma unidade relacionada à
busca da excelência, ao caráter competitivo da atividade e a
submissão a um sistema marcado pela hierarquização e força
das instituições que viabilizam sua vida. Essas aproximações
e distanciamentos permite afirmar que a memória social do
esporte olímpico é constituída pelas relações estabelecidas
com as lembranças geradas por todos os que participaram do
processo de construção da carreira dos atletas, seja a partir da
escola, dos clubes brasileiros e estrangeiros e dos profissionais
que interferiram, direta ou indiretamente, na trajetória de todos
aqueles que participaram de Jogos Olímpicos.
Pollack (1992) aponta que tantos os acontecimentos
vividos pessoalmente como aqueles compartilhados, seja pelas
lembranças de outros ou pela oralidade, constituem a memória
individual e a coletiva. “Podem ser acontecimentos dos quais
a pessoa nem participou, mas que, no imaginário, tomaram
tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que
ela consiga saber se participou ou não” (p. 02).

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Há que se destacar o fato de que a memória pessoal está
situada no cruzamento das redes nas quais nos encontramos no
presente e das múltiplas interferências determinadas pela vida
em sociedade.
Halbwachs (2006) afirma que somos levados a lembrar
de algo porque assim nos fazem agir aqueles que vivem e
compartilham conosco, sem que para isso seja necessário
estarmos juntos de forma presencial. “No primeiro plano da
memória de um grupo se destacam as lembranças dos eventos e
das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros
e que resultam de sua própria vida ou de suas relações com os
grupos mais próximos, os que estiveram mais frequentemente em
contato com ele.”
Da inevitável relação entre o indivíduo com o grupo ao
qual pertence faz-se a percepção do eu e do outro e também
se registram as marcas que pontuam as histórias de vida, tanto
em uma perspectiva cronológica e linear quanto na recursividade
da memória que trafega de forma cíclica, movida pelas redes
de significados criadas com a finalidade de responder aos
acontecimentos de uma existência.

As narrativas biográficas
O início do percurso metodológico da pesquisa se deu
a partir das histórias de vida. Entendidas como uma forma
particular de história oral, foram utilizadas como um instrumento
para captar e organizar a memória por apreender valores que
transcendiam o caráter individual do que era transmitido e que
se insere na cultura do grupo social ao qual narrador pertence
(Rubio, 2001). Essa construção considera os dados relevantes
da trajetória do narrador dando uma ideia do que foi sua vida
e do que ele mesmo é nesse momento. Essa atitude reflexiva
permite a reexperimentação de situações passadas não apenas do
ponto de vista do desenrolar dos fatos, mas pela ressignificação
de episódios marcantes para o narrador, que se permite inverter
(ou subverter) a narrativa obedecendo a uma cronologia própria
da afetividade implicada no evento ocorrido, dando ao seu texto
um contexto. Para tanto, busquei Bosi (1993), Delgado (2006),
Ferraroti (1983) e Meyer (1998), que apontaram os caminhos
da Psicologia Social e da Antropologia para o entendimento de
histórias pessoais relacionadas ao esporte.
Esse quadro ganhou complexidade no momento em que
as questões relacionadas à formação da identidade e ao cenário

112

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político geral e específico passaram a compor as narrativas
coletadas. Não escapou à escuta desses depoimentos os processos
migratórios vividos principalmente pelos atletas originários do
norte-nordeste, a discriminação de gênero enfrentada pelas
mulheres ou as raciais e de identidade sexual, a alteração de
atitude em função da necessidade de superar o assédio moral ou
mesmo o abuso sexual por parte de dirigentes ou membros de
comissões técnicas, exigindo outros referenciais de análise para a
compreensão desses cenários.
A partir de então, entendi e adotei a postura de Hall (2000;
2001) e de Farrarotti (1991), segundo a qual não há isenção para
o pesquisador, principalmente nas Ciências Humanas, e que o
observador está intimamente implicado com sua pesquisa, que
altera continuamente seu campo de observação, na medida em que
interage com ele. Estar diante dos fenômenos sociais, descrevê-
los, analisá-los, significa atuar. Essa condição é ainda mais aguda
quando se está diante de um narrador mobilizado e sensibilizado
por remexer uma história que, em muitos casos, estava como
que embrulhada cuidadosamente em papel de seda e guardada
dentro de um armário distante da luz e do ar. Ao revirá-las, de lá
saíram novas significações para fatos devidamente acomodados
em um momento histórico em que isso foi necessário. O passado
trazido para o presente revive no narrador situações esquecidas
ou deliberadamente escondidas, que passam a exigir um tributo
por terem sido “acordadas”.
Poirier, Valladon e Raybaut (1999) entendem que com
as histórias de vida o investigador tentará encontrar o ele, o
campo exterior da personalidade, a envolvente do narrador num
momento dado, ou seja, aquele a quem atribuiu um valor pessoal
(dando-lhe, assim, uma existência em si e fora de si). Dessa forma,
a história de vida “é considerada não como um produto acabado,
tal como é geralmente apresentada, mas como uma matéria prima
sobre a qual, e a partir da qual, se tem de trabalhar” (p. 38).
O exercício da narrativa envolve o esforço da busca de
imagens e lembranças do passado de alguém que transforma essas
informações em verbalização, ou escrita, promovendo, assim, a
recriação ou transcriação de uma história. Nessa dinâmica estão
implicados o exercício da memória, a ação do recordar, a captura
do tempo e a transposição para uma forma de linguagem. Se no
passado a oralidade era a via principal das produções narrativas,
a linguagem escrita se apropriou dessa construção e, depois,

113

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se desdobrou em diferentes estilos, fosse poético, romanesco,
informativo e, porque não, deformativo.
Por isso a importância de a narrativa ser tomada como
linguagem a partir da dimensão adotada pelos Estudos Culturais
(Hall, 2000; 2001; Woodward, 2000), tomada como uma
posição privilegiada na construção e circulação do significado,
conforme Guareschi, Medeiros e Bruschi (2003) e Silva (2000). A
linguagem vai além do relato ou da transmissão com neutralidade
dos significados e passou a constituí-los. Dessa forma, os
considerados fatos naturais, também denominados realidade, são
tidos como fenômenos discursivos, cujos significados surgem a
partir dos jogos de linguagem e dos sistemas de classificação nos
quais estão inseridos. E assim, o discurso não é entendido no seu
aspecto linguístico ou como um conjunto de palavras, mas como
um conjunto de práticas que produzem efeitos no sujeito.
Nessa perspectiva, tudo o que se pensa ou se diz da
realidade é um reflexo e uma projeção da experiência vivida
como real, independente da afirmação dessa realidade exterior
ao sujeito e dos sentidos que são dados a ela. Isso representa a
existência de uma materialidade conectada com o que se pensa
e se diz, ligada ao discurso. Embora a realidade seja intangível, é
sabido que ela existe e que está conectada com a representação
que se tem dela (Veiga-Neto, 2000).
As memórias históricas orais englobam fenômenos da
memória social que, conforme Sá (2007), constituem as fontes
não documentais com que lida a história oral. A preocupação
do psicólogo social se dá não com a preservação dos relatos ou
com a confiabilidade das fontes, “mas com o processo e com as
circunstâncias segundo os quais tais memórias são construídas,
reconstruídas ou atualizadas por conjuntos sociais mais ou menos
amplos e, por diferentes critérios, suficientemente circunscritos”
(p. 294).
Se na oralidade a recriação de uma narrativa era uma
constante entre as gerações, a linguagem escrita operou uma
restrição na forma de comunicação do conteúdo narrado, restando
ao leitor a capacidade de multiplicar interpretações sobre o texto.
As representações verbais da memória permitem a recriação da
história do sujeito, favorecendo a elaboração de construções
identitárias. Nesse sentido, essas narrativas biográficas são
também narrativas identitárias e favorecem diferentes perspectivas
de análise (Carvalho, 2007; Fanton, 2011; Khoury, 2001;
Maluf, 1999; Oliveira, 2011; Pena, 2004).

114

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As narrativas biográficas são entendidas como discursos
individuais que oferecem uma compreensão do sujeito que narra,
do mundo e das próprias experiências acumuladas na trajetória
da existência.
Schutze (2014) entende que essa forma de narrativa,
carregada de experiências pessoais de caráter cotidiano, promove
uma proximidade das situações vivenciadas pelo narrador tanto
no que se refere à intensidade como à veracidade dos fatos. Isso
é possível por se entender que o narrador expressa uma história
única e singular.
As narrativas biográficas dos atletas olímpicos brasileiros,
iniciadas como histórias de vida, constituíram-se como reencontro
do sujeito-atleta com sua subjetividade, do indivíduo-atleta
com sua identidade, ou identidades, e da pessoa-atleta com a
sociedade no momento em que operava um ser competitivo e de
vida pública, no caso dos pós-atletas, e, no presente, como atores
de outros papéis sociais. Essas posições do sujeito tornaram-se
manifestas tanto para alguns atletas, como para mim, na condição
de pesquisadora, a partir do encantamento que ambos viviam
com a elucidação de um fato não significado anteriormente.
Esses insights 2 ajudavam, por um lado, o atleta a elaborar
situações vividas e não esclarecidas até aquele momento, fosse
pela impossibilidade de revivê-las ou pela simples falta de
oportunidade estimulá-las; por outro, permitiram que eu
“conversasse” com o método e fosse entendendo o que ele não
era. Durante um tempo acreditei que fosse história de vida,
depois, que se tratasse de história oral, ou quase biografias, até
chegar às narrativas biográficas.
Ricoeur (2010) entende que existe, entre a atividade de
narrar uma história e o caráter temporal da experiência humana,
uma correlação que não é puramente acidental, mas apresenta
uma forma de necessidade transcultural. O tempo torna-se tempo
humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e
a narrativa alcança sua significação plenária quando se torna uma
condição da existência temporal (p. 93).
Daí a importância e a necessidade de compreensão da
dimensão do tempo nas narrativas biográficas.

2
ara a Psicologia, o termo insight é entendido como compreensão interna,
P
compreensão súbita, apreensão súbita, visão súbita, discernimento, perspicácia
(Sandler, Dare e Holder, 1977). Diante da impossibilidade de tradução
literal, refere-se a esse conceito o neologismo intravisão (Abel, 2003).

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A temporalidade e a narrativa
O tempo é certamente uma característica fundamental
da experiência humana. A experiência direta que se tem dessa
dimensão envolve o presente, uma vez que o passado é recriação
e o futuro é ficção, e o sentido de duração vem justamente dessas
duas formas de criação, mediado pelo uso da linguagem.
Nesta pesquisa a questão desencadeadora da narrativa não é
uma pergunta, mas um convite em que sujeito é solicitado a contar
sua história. A reação subsequente já indica pontos para a análise.
Isso porque alguns iniciam suas narrativas pelos pais, local e data
de nascimento; outros, pela sua iniciação esportiva, uma vez que já
foi anunciada a intenção da pesquisa sobre sua trajetória olímpica;
há, ainda, aqueles que, mesmo tendo recebido essa informação,
uma vez mais questionam: “minha história de vida, ou minha
história de vida no esporte?”. Não bastasse isso, a organização do
discurso também remete a outras possíveis interpretações, uma
vez que ele pode se dar de forma linear ou cíclica.
Se o discurso e sua narrativa se apresentam como um dos
pilares para a compreensão das histórias de vida, o desenrolar
temporal dessa narração se apresenta como um segundo elemento
imprescindível para uma cartografia das memórias do narrador.
Em uma primeira categorização ele poderia ser dividido em
tempo cíclico e tempo linear.
O tempo cíclico relaciona-se com a recursividade presente
em eventos que se alternam e se repetem, determinando prazos
capturados pelo tempo linear. Assim são as estações do ano,
que se repetem incessantemente, mas que os calendários do
tempo linear definem em dias e meses precisos em cada um dos
hemisférios. Ainda que o tempo seja quase sempre visto como um
elemento linear, tem-se também a concepção daquele tempo que
parece nunca se esgotar, transformando-se na medida em que se
reveste de significado, o tempo cíclico.
A concepção linear (ou aberta) do tempo, segundo
Mazzoleni (1992), caracteriza a moderna cultura ocidental e foi
a chave teológica para identificar a realidade religiosa hebraico-
cristã como um unicum cultural; já a concepção cíclica (ou
periódica), própria do mundo antigo, da sociedade alto-medieval,
das civilizações orientais e das classes rurais, está relacionada
com os chamados primitivos e orientada pelos mitos de fundação
e pelos ritmos cósmicos, contrapondo-se a um tempo histórico. A
diferença básica na concepção dessas duas modalidades de tempo

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está na “consciência histórica”, ou seja, para as sociedades que
operam numa contínua desistoricização do real por meio do mito e
do rito, opera o tempo da previsibilidade e da segurança, oferecido
pelo ciclo astronômico e sazonal; já onde há o desenvolvimento
dos meios de produção, a sedentarização, o crescimento dos
centros urbanos e da articulação social, constituindo um Estado
de Direito, há a emersão para a consciência do sentido do tempo
em direção ao futuro, que é próprio de uma cultura histórica.
A perspectiva histórico-antropológica de tempo busca
situar o ser humano enquanto sujeito histórico, o que não implica
depreciação das culturas orais ou sobrevalorização daqueles que
ofereceram os paradigmas históricos aos “povos civilizados”.
Acredita-se que o tempo sagrado se associa ao tempo profano,
constituindo a visão global que nossa cultura possui hoje sobre a
dimensão do tempo.
De uma perspectiva diferente, Cassirer (1977) considera o
tempo não como forma específica da vida humana, mas como
condição geral da vida orgânica, existente na medida em que se
desenvolve no tempo. “Não é uma coisa, mas um processo – uma
corrente contínua, incessante, de acontecimentos, onde jamais
se repete com a mesma forma idêntica” (p. 89). Sendo assim, o
sujeito nunca está localizado num instante isolado. Há em sua
vida os três modos de tempo – passado, presente e futuro –,
formando um todo que não pode ser desagregado em elementos
individuais.
Diante dessa ordem, o ser humano desenvolveu a memória
e a hereditariedade. Na memória estão implicadas mais que
a presença e a soma total de resíduos de vivências ocorridas,
supondo um processo de reconhecimento e identificação, não
bastando que fatos ocorridos se repitam. É preciso que sejam
ordenados, localizados e relacionados com diferentes pontos no
tempo, implicando, necessariamente, o conceito de uma ordem
serial, correspondendo ao plano espacial.
Cassirer (1977) afirma que no homem não se pode descrever
a lembrança como o simples retorno de um acontecimento,
como uma imagem enevoada ou a reprodução de impressões
anteriores. “Não se trata unicamente de uma repetição, senão
de um renascimento do passado, supõe um processo criativo e
construtivo. Não basta recolhermos dados isolados da nossa
experiência passada; precisamos realmente recordá-los, organizá-
los, sistematizá-los e reuni-los num foco de pensamento. Esta
espécie de recordação nos dá a forma humana característica

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da memória e a distingue de todos os outros fenômenos da vida
animal ou orgânica” (p. 89). Portanto, a memória simbólica
seria o processo pelo qual o indivíduo se situa num tempo não
linear, indo além da repetição de uma experiência vivida; ele a
reconstrói, fazendo da imaginação o elemento necessário para a
verdadeira recordação.
Diante dessas considerações, seria possível dizer que a
criação temporal é subjetiva e se desenvolve ao longo da vida do
sujeito, levando consigo os registros armazenados na trajetória de
sua história de vida.
Safra (1999) aponta que a experiência temporal
experimentada em nossa cultura é vivida como sequencial,
fruto de deslocamentos no espaço e convencionada pelo uso do
calendário ou do relógio. E é esse tempo que permite a apreensão
da realidade compartilhada, visto que organiza as experiências
do ciclo de vida da pessoa, sua história, seu contato com seu
meio social, traçando sua trajetória. Porém, ao longo do processo
maturacional, o indivíduo experimentará várias formas de tempo.
Seriam eles: tempo compartilhado – no qual se tem a possibilidade
do uso da organização do tempo, que se dá pelo contraste entre
a presença e a ausência do outro significativo. O tempo já não é
só uma expressão do si mesmo, mas articulado com a noção de
um outro; tempo convencionado – organizado com as medidas
utilizadas pela cultura de um determinado grupo social. É o tempo
do encontro; tempo transicional – é o tempo do faz de conta, do
encantamento, no qual se pode dispor dos diferentes sentidos da
temporalidade sem que o senso de continuidade seja perdido;
tempo das potencialidades – território das possibilidades, recursos
e anseios do self, a experiência do que está para acontecer. Ainda
que já haja construção, é a disposição para novas realizações.
Havendo um desenvolvimento satisfatório do self, segundo
Safra, o indivíduo pode viver essas diversas modalidades de
tempo, permitindo e facilitando suas relações e tornando ainda
mais ricas as diferentes experiências vividas.
Diante das várias considerações feitas sobre o tempo e
seu significado subjetivo e social, é possível, então, reconhecer
a dimensão que o relato de história de vida adquire tanto para o
narrador como para o pesquisador. Passível de ser analisada numa
perspectiva linear ou cíclica, dela se podem extrair elementos
históricos coletivos, mas também individuais, capazes de compor
uma cartografia do sujeito e do grupo ao qual ele pertence e das
transformações significativas ocorridas ao longo dessa trajetória.

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Considerações finais
Os Jogos Olímpicos da Era Moderna transformaram-se em
um dos maiores fenômenos socioculturais do planeta. Ao longo
de um século de existência, provocaram mudança de hábitos,
introduzindo o esporte na agenda da educação e da saúde,
mediante o uso da figura do atleta como o agente multiplicador
de grandes feitos e de ideal identitário. O atleta passou, então,
a ser utilizado de forma institucional como porta-voz de um
estilo de vida e de um devir profissional que o aproxima da
figura espetacular do herói. Retirado dessa condição mítica e
reumanizado, seja durante o exercício da carreira competitiva ou
na condição de pós-atleta, pode o atleta ressignificar sua trajetória
a partir do ato reflexivo que envolve a organização e verbalização
de suas memórias.
Esse gesto envolve não apenas uma imersão nos fatos
que marcam sua trajetória de forma objetiva e linear, mas
também remete à emergência de conteúdos afetivos, muitas
vezes reprimidos para a sobrevivência ao momento em que a
situação ocorreu. O momento da verbalização dessa narrativa a
torna inequivocamente solidária, pois afirma um compartilhar, ao
mesmo tempo em que expõe a pessoa e seus conteúdos mais
íntimos e permite ao pesquisador a transcriação dessa biografia,
ampliando seu conteúdo para o entendimento de uma esfera
maior como o grupo social de pertencimento, a modalidade
praticada, os resultados obtidos naquele momento histórico e o
esporte olímpico brasileiro de forma mais ampla.
Entendo que a principal, senão maior, contribuição das
narrativas biográficas dos atletas olímpicos brasileiros é a
possibilidade de conhecimento desse ser publicizado como divino
em essencialmente humano.

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O universo das narrativas
Luciana Ferreira Angelo
Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP)

“Pesar de tudo
Pesar do peso
Pesar do mundo
sobre si mesmo...”
Pesar do mundo
José Miguel Wisnik/Paulo Neves,
para o espetáculo “Onqotô” – Grupo Corpo (2005).1

Compartilhar as emoções que uma narrativa promove faz


parte de um exercício de autoconhecimento...
Inspirada pelo espetáculo de balé “Onqotô”, do Grupo
Corpo, que tem como ponto de partida uma discussão sobre a
“paternidade” do Universo apresentando, de um lado, a teoria do
Big Bang e, do outro, a máxima formulada por Nelson Rodrigues
sobre o clássico do futebol carioca – “O Fla-Flu começou quarenta
minutos antes do nada” –, inferindo que a brasilidade teria
influenciado a concepção do universo, apresento imagens vivas
de atletas de futebol de diferentes épocas e gerações.
No espetáculo Tão Pequeno, com coreografia elaborada por
Rodrigo Pederneiras e trilha sonora criada por Caetano Veloso e
José Miguel Wisnik, a partir do poema de Luís de Camões e com
a presença de um só bailarino sobre o palco, várias interpretações
foram instigadas sobre movimentos de acolhimento, encolhimento,
nascimento, ressurgimento e explosão muscular, de vida e de
transformação. Não é à toa que o futebol, expressão de movimento,
cultura, vida e paixão, mostre-se como uma das legitimidades
do surgimento do Universo, Universo esse apresentado no texto
deste capítulo, que pretende circular nas matrizes reflexivas da
linguagem dos entrevistados para que distintos pontos possam ser
vislumbrados na constituição das identidades desses indivíduos,
assim como os bailarinos desvendam em suas pontas e meias
pontas, no seu ritmo e cadência, uma concepção do Universo.
Portanto, parto da narrativa e do trabalho com
as transcrições das entrevistas realizadas durante a execução
da minha tese de doutorado que faz parte do projeto de pesquisa

1
“Onqotô”, espetáculo de dança do Grupo Corpo, produzido por Alê Siqueira.

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Memórias olímpicas por atletas olímpicos brasileiros, coordenado
pela professora doutora Katia Rubio.
“Conte-me a sua história”. Convite simples e ao mesmo
tempo complexo. O começo de tudo, como o começo do Universo,
meu Universo, seu Universo. Universo constituído de memórias,
fatos, emoções, singularidades. O convite para a construção de
significados na constituição do desejo. Alguns, ora íntimos, por
vezes intimidados, ora sagazes e extrovertidos, quase sexualizados
pelo reconhecimento público.
O fazer dialético, o jogo para conter o todo e a parte, o vice-
versa, a antítese e a síntese. Ampliando a narrativa e não tendo
retorno ao início, aproximando-se do buraco negro. Oferta de
uma gama de possibilidades, alternativas, significados, evolução
e transformação.
O método de História de Vida utilizado neste trabalho
se constitui por registrar as narrativas colhidas em entrevistas
(Meihy e Holanda, 2007, p. 21) que, neste caso, foram
gravadas em câmera de vídeo. Com o olhar e atenção voltados
para as significações da narrativa que desvendaram a formação da
identidade atlética, seu entendimento de trabalho e carreira, suas
fases de transição e criação de “universos”, as perspectivas sociais,
econômicas e culturais das diferentes épocas foram reveladas e
apresentaram a característica de um grupo que obteve sucesso
no futebol, ao mesmo tempo em que viveu sob o regime de
amadorismo da prática esportiva.
Essa metodologia se torna adequada por permitir recuperar
experiências que, apesar de não trazerem do fato sua veracidade
propriamente dita, contribui para a compreensão das identidades
culturais, de onde provém o pensamento (Rubio, 2006). Inserido
em dado contexto, o indivíduo torna-se parte integrante do
próprio processo de construção da história, ou seja, uma extensão
dela, podendo fornecer indícios de como a cultura incide sobre a
correspondência às experiências pessoais. Ou como Bosi (1994)
e Pollak (1989) reforçam, essa tradição metodológica considera
experiências e observações empíricas como possíveis pontos de
referência e indicadores de uma memória coletiva específica,
sustentadoras de identidades culturais.
A existência da história oral depende da intervenção de
um entrevistador que promova uma provocação para acessar
a memória, coletando uma versão das histórias gravadas. O
resultado deve ser entendido como um ponto de intersecção entre
duas subjetividades – a do atleta ou ex-atleta e a do pesquisador,

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as visões culturais de ambos, as memórias do entrevistado e as
indagações do entrevistador, as percepções do narrador e do
pesquisador, entre outros (Rubio, 2001; 2004; 2006; 2011).
As entrevistas foram realizadas em locais escolhidos pelos
convidados, prevendo local reservado (presencial ou virtual),
de forma a preservar a integridade do sujeito, bem como a do
entrevistador, e a qualidade da entrevista. O tempo de duração
da entrevista também foi determinado pelo sujeito, de acordo
com a sua disponibilidade. Os depoimentos foram obtidos com
o consentimento prévio do entrevistado, mediante termo de
responsabilidade, , no qual são esclarecidos os procedimentos de
pesquisa, bem como do destino dos dados fornecidos.
As narrativas biográficas dos sujeitos foram transcritas,
preservando-se todos os detalhes e idiossincrasias contidas nas
verbalizações de cada um tais como repetições, ênfases, silêncios,
lapsos, hesitações, rupturas do discurso e aspectos selecionados
pelos narradores. Após a releitura dos textos, como parte do
exercício de sua interpretação do conteúdo, os dados brutos foram
submetidos à análise de perspectiva sociocultural e transcriação.
Segundo Meihy e Holanda (2007), a transcriação diz respeito
ao processo de reelaboração do discurso, visando preservar sua
essência, porém, conferindo-lhe roupagem complementar, de
maneira a melhor nos aproximar do real significado do que se
quis transmitir. Este último procedimento metodológico busca
contribuir com a consolidação de uma cultura de memória e
atentar para a responsabilidade do retorno social da pesquisa.
Nesse sentido Bachelard (1990) aponta que :
[...] quer-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar
imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar as imagens
fornecidas pela percepção, ela é sobretudo a faculdade de nos
liberar das imagens primeiras, de mudar as imagens (p.1).
Considerou-se neste trabalho a interatividade e a
construção dos sentidos, a versão dos fatos, o momento em que o
convite ao passado reconstitui (busca fragmentos que compõem a
reconstrução) e reconstrói (organiza a memória) o conhecimento,
pois além de refletir experiências vividas ativamente pelo sujeito,
o atleta ocupa, no mundo contemporâneo, espaço que transcende
o aspecto objetivo outrora atribuído, ou seja, é uma instituição
em constante processo de ressignificação (Rubio, 2001).
Diferentemente de muitas outras áreas de relações e atuação do
indivíduo, o esporte é um contexto que propicia, principalmente

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ao protagonista, as experiências afetivas e emocionais em graus
elevados, que marcam primeiramente seu corpo e podem dar à
memória um conteúdo ainda mais humano.

O palco, o Universo
Jogador de futebol! Um dos principais “produtos de
exportação” nacional!2 Cerca de oitocentos jogadores profissionais
deixam o país ao ano – e mesmo assim mantêm-se uma dezena
de times com capacidade de competir não só em campeonatos
nacionais como internacionais. Atualmente, essa situação tem
tido sua lógica minimamente invertida quando da valorização da
moeda nacional (real) frente a outras divisas.
Esse fato poderia ser interpretado como um sinal de
superioridade em relação aos centros de formação futebolistas,
mas, na realidade, a nem sempre conhecida trajetória desses
jogadores que se tornaram profissionais evidencia uma preparação
qualitativa dos jovens para os desafios da profissão, e muito
menos para os prováveis insucessos.
Segundo Damo (2007), no Brasil são gastas em torno de
5.000 horas de treinamento, em um período de dez anos, focando
o aprendizado corporal e quase nada no aprendizado intelectual.
A quantidade de horas sugere três fases no processo de formação
de um atleta de futebol: endógena (o clube promove os jogadores
vindos das categorias de base, estimulando a economia e os
vínculos de identidade clube/atleta), exógena (empresas mentoras
do projeto que forma os “pés de obra”, lucrando com a venda dos
passes) e híbrida (conciliando a formação afetiva das “pratas da
casa” com a produção do mercado).
Considerando-se o processo de formação e avaliando-se o
mercado de trabalho existente para os atletas profissionais da
modalidade, não é possível encontrar muitas opções para efetivar
a prática profissional. Assim, sem a expansão do mercado e com
a presença das grandes torcidas vinculadas ao futebol espetáculo,
o autor aponta que o clubismo (identificação com o clube e não
necessariamente com o jogador) pode ser um fator limitante
para a profissionalização dos atletas, estimulando a circulação

O ESTADO DE SÃO PAULO. Força do real ajuda a reverter exportação de


2

jogadores brasileiros, diz “Financial Times”. Disponível em: http://www.estadao.


com.br/noticias/esportes,forca-do-real-ajuda-a-reverter-exportacao-de-jogadores-
brasileiros-diz-ft,746336,0.htm. Acesso em: 27 mai. 2012.
Disponível
 em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/07/110718_
jogadores_brasil_finanial_times_rw.shtml. Acesso em: 05 jan. 2013.

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e vazão dos talentos esportivos no mercado exterior, que vive
também esse processo de estagnação, diminuindo a oportunidade
e aumentando a competitividade.
No início da carreira esportiva, a criança ou jovem carrega
não apenas o desejo de uma prática que envolve prazer e esforço,
mas também o referencial de outros que, antes deles, criaram uma
imagem gloriosa de si mesmos por meio do êxito em competições.
A carreira deixa registrada no imaginário do qual o atleta pertence
marcas que servirão de exemplo a muitas outras gerações. E da
mesma forma que os anos vitoriosos se perpetuam na memória
social, os passos seguidos adiante também acompanham os novos
rumos adotados pelo atleta ao finalizar sua trajetória competitiva.
Se a prática esportiva promove o desenvolvimento
da identidade atlética, o final da sua carreira representará a
necessidade de mudança de um papel social, construído desde a
infância, para o desenvolvimento de uma nova identidade. Assim
como o processo de formação, a transição para um novo papel
social também se dá como processo, o que demanda do sujeito
tempo e recursos emocionais e materiais para sua concretização
(Rubio, 2012).
O termo identidade, nessa concepção sociológica,
preenche o espaço entre o mundo “interior” e “exterior” – entre o
mundo pessoal e o mundo público. O fato de projetarmos a “nós
próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que
internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de
nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com
lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural.
A identidade, então, costura o sujeito à estrutura; estabiliza
tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam
(Hall, 2001, p. 11).
A partir dessa concepção de identidade, entende-se que
a construção da identidade atlética passa pela construção do
próprio eu e da autoafirmação que dá ao sujeito consciência de
si e um lugar no mundo. A identificação faz com que o indivíduo
não só se aproprie, mas se torne parte daquilo ao qual está
identificado. Em contrapartida, deixar de ser atleta representaria
o que Hall (2001) entende como um momento de ruptura ou de
descentração do sujeito. Modificam-se as primeiras concepções
acerca de si mesmo, de crenças, valores e conceitos, configurando
o que o autor vai entender por crise de identidade, ou seja, quando
aquilo que acreditamos ser fixo e inflexível passa a se fragmentar
e perder sua preponderância central. Para Hall (2001) essa crise

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de identidade é parte de um processo maior de transformação,
responsável por desestruturar bases e princípios sociais que
ofereciam certa solidez no mundo, mas que o submete a novas
possibilidades.
Considerando-se que na sociedade brasileira o futebol
surge como caminho para ascensão social, este capítulo se propõe
a discutir, a partir da história de vida de quatro atletas olímpicos
brasileiros do sexo masculino, a concepção de carreira e suas
fases de transição como fatores constituintes da carreira atlética,
bem como situações e fatores que os levaram ou os levarão à
finalização das mesmas, assumindo que o próprio trabalhador
poder ser produzido como uma mercadoria que nem sempre
tem um valor reconhecido pelo mercado e pode ser descartado a
qualquer momento no meio do percurso.
“Onqotô?” onde é que eu estou?
“Pronqovô?” para onde eu vou?
”Qemqosô?” quem eu sou?
Em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo em
agosto de 2005, ano em que o Grupo Corpo completou 30 anos
de existência, José Miguel Wisnik ressaltou que “onqotô tanto
parece uma palavra africana quanto oriental e indígena, como se
rodasse por toda parte”, assim como a companhia de dança, que
rodou o mundo em 30 anos de existência. Desde o “não-cenário”
pensado por Paulo Pederneiras até a trilha sonora remetem a
formas circulares como uma aldeia, um planeta e um estádio de
futebol3.
Para Rodrigo Pederneiras, coreógrafo, “A busca da
identidade se dá na terra, e o corpo é este veículo que viaja
sobre ela”. Essa frase é essencial para a ideia da formação de
identidade e das histórias de vida também dos atletas de futebol
entrevistados.
Interessante é ter um grupo mineiro atravessando as
narrativas dos entrevistados, mas considerando-se que os mineiros
são um exemplo de identidade cultural baseada na cultura
popular, a tradição mineira e a mineiridade tornam-se atração!
Sabe-se que a história da mineirice tem um aspecto sociopolítico
dominante (Costa e Nercolini, 2010)4 e que não há cultura

Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u52551.shtml.
3

Acesso em: 24 ago. 2014.


Disponível em: http://www.cult.ufba.br/wordpress/24557.pdf. Acesso em:
4

24 ago. 2014.

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que se mantenha em estado original. Sentidos e significados são
ressignificados por meio da reconfiguração das relações globais;
o rompimento se faz necessário! “Cada indivíduo sentir-se-á mais
ou menos atraído, mais ou menos interpelado por cada um desses
cenários” (HALL, 1997).
Com os termos em mineirês: “onqotô” (“onde é que eu
estou), “proqonvô” (“para onde eu vou”) e “quemqosô” (“quem
eu sou”), a questão existencial só pode ser entendida através
dessas sonoridades se houver um entendimento prévio da
linguagem regional. Como bem assinalado por Costa e Nercolini
(2010), o trabalho artístico mostra que, para o entendimento
das questões globais, faz-se necessário primeiro compreender
suas particularidades, a fim de que possam expressar questões
maiores que o limite da cultura. Assim, trilhemos pelas histórias
de vida dos atletas de futebol para compreendermos mais sobre a
identidade atlética e seus aspectos.

Breve história do esporte – “onqotô?”


A cronologia do esporte moderno auxilia o entendimento
da estrutura de negócios vigente, que interfere diretamente na
gestão da carreira esportiva.
O esporte moderno surgiu no final do século XIX como
produto das transformações pelas quais passava a sociedade
inglesa. Originalmente concebido como uma prática aristocrática,
uma atividade de ócio e um meio de educação social dos filhos
de classes sociais não trabalhadoras, esse fenômeno sofreu
transformações quando da apropriação pelas demais classes
sociais, resultando na sua massificação e popularização.
A estrutura do esporte na sociedade inglesa era estratificada,
classificando de diferentes formas seus praticantes. Existia o esporte
praticado por profissionais, como era o caso do boxe e das corridas
a pé, o esporte escolar praticado nas universidades e Public Schools,
e o esporte amador praticado basicamente pela aristocracia,
que dominava a direção das instituições esportivas, base para a
constituição do Movimento Olímpico (Le Floc’Moan, 1969).
Segundo Toohey e Veal (2007), o amadorismo foi uma
construção do século XIX cuja função era servir aos ideais da
nobreza proclamados pela Era Vitoriana. A proposta original
do amadorismo no esporte era não apenas distinguir, mas
principalmente separar os chamados gentlemen amateur dos
trabalhadores de todas as categorias. O que fundamentou essa

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divisão foi a crescente participação da classe média e trabalhadora
nas atividades esportivas e de lazer em geral, consideradas, a priori,
privilégios da aristocracia.
O entendimento dessa dinâmica é fundamental para a
compreensão da defesa do amadorismo ao longo de mais da
metade do século XX. Hobsbawm e Ranger (1997) apontam a
importância do esporte para a classe operária, por ampliar a
visibilidade social e questionar a sociedade classista.
A competitividade da sociedade contemporânea levou a
um inevitável abandono das atividades tidas como amadoras,
que na essência do termo seriam aquelas praticadas por amor,
em detrimento das ações especializadas, passíveis de serem
desenvolvidas dentro de uma estrutura profissional que leva à
especialidade máxima, e isso não ocorreria somente com o esporte
(Elias e Dunning, 1992). Assim, no passado o amadorismo foi
considerado uma virtude humana e condição sine qua non para
qualquer atleta olímpico. Mas, mais do que um valor ético, essa
imposição era um qualificador pessoal e social dos atletas que se
dispunham a seguir a carreira esportiva (Rubio, 2003).
A partir da necessidade de quantificar a performance surge
a tecnologia corporal, a regulação burocrática, as competições,
a espetacularização e a mercadorização das práticas esportivas
(Ardoino e Brohm, 1995). E para que se dê sustentação a essa
estrutura, o sistema hierárquico é criado com o objetivo de gerir
o mundo do esporte: o COI (Comitê Olímpico Internacional), que
controla os esportes olímpicos, e a FIFA (Federação Internacional
de Futebol), que gerencia especificamente tudo o que se refere ao
futebol (Giglio, 2013).
A profissionalização alterou a organização esportiva, tanto
do ponto de vista profissional quanto institucional. O esporte se
tornou carreira profissional cobiçada, um meio de ascensão social
e uma opção de vida. A competição atlética ganhou visibilidade
e complexidade ao se tornar espetáculo esportivo e produto da
indústria cultural (Giglio e Rubio, 2013).
No Brasil, o amadorismo seguiu proximamente o modelo
desenvolvido no mundo. O que se observa ao longo da primeira
metade do século XX é que o esporte praticado de forma amadora
gerou uma representação social do atleta, que variava do sujeito
excêntrico, caso pertencesse à aristocracia, ou vagabundo, se a sua
origem fosse relacionada às classes populares. A via alternativa
para esses dois modelos eram os militares, que por força do
ofício eram obrigados a praticar esporte, o que levou muito deles

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a chegarem aos Jogos Olímpicos. A profissionalização era tão
inevitável quanto a competição é para o esporte (Rubio, 2005).
No futebol, o profissionalismo tem seu registro datado
de 1885, sendo que na Inglaterra, no ano seguinte, foi criada a
International Football Association Board, entidade cujo principal
objetivo era estabelecer e mudar as regras do futebol quando
necessário e garantir a uniformização e o controle (Franco
Júnior, 2007; Toledo, 2002).
Segundo Giglio (2013), com a estruturação das regras uma
nova condição se solidifica no campo esportivo: as competições
internacionais. As seleções nacionais representavam um
confronto entre nações, e foi isso o que se observou na primeira
edição dos Jogos Olímpicos Modernos, em Atenas, Grécia, na
qual o futebol foi o segundo esporte coletivo a participar como
esporte de exibição. E foi na quarta edição dos Jogos Olímpicos
de Londres, Reino Unido, que o futebol participa como esporte
de competição. Vale ressaltar que, pela amplitude dos Jogos, as
disputas olímpicas valiam como campeonatos mundiais até 1930,
quando foi realizada no Uruguai a primeira Copa do Mundo
(Franco Júnior, 2007).
Com a amplitude de fronteiras, o aumento de público e
o número de eventos relacionados à modalidade, as federações
perceberam que administrar o jogo significava mantê-lo
sob controle e divulgá-lo, e que os custos disso implicavam
em estratégias de gerenciamento para a sua manutenção. A
mercantilização do futebol fez com que a modalidade passasse de
status de esporte para a condição de serviço ou bem comercial,
pois já se apresentava como atividade lucrativa (Pereira, 2008).
Diante da estrutura hierarquizada da Federation
Internacionale de Football Association (FIFA, 1904) a partir da
década de 1930, Damo (2008) sugere a necessidade de entender o
jogador como pessoa e mercadoria. O conceito de comodificação,
desenvolvido por Giullianotti (2007, p. 13) e estudado por
Giglio e Rubio (2013), refere-se ao jogador que tem seu trabalho
reconhecido, aumentando suas chances de transformá-lo em
rendimento financeiro. Deve-se considerar, no entanto, a limitação
do mercado do futebol. Giglio e Rubio (2013) apontam que o valor
de uso, que atesta quanto vale cada atleta, só será materializado
quando o desportista é consumido (vendido). Caso contrário, o
jogador poderá ter o seu valor fixado, mas se não for negociado
o valor estipulado nada vale.

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No Brasil, o futebol tem sua origem datada em final de
1800, tendo uma partida mítica entre marinheiros ingleses no Rio
de Janeiro – 1870 (Franco Júnior, 2007), partidas em São Paulo
– 1895, organização de jogos entre paulistas e cariocas – 1901 e as
primeiras competições oficiais ocorrendo em 1914. Porém, até o
início da década de 1930, a organização da modalidade no Brasil
possuía um “ethos amador” (Elias e Dunning, 1992), ou seja, era
mais uma forma de divertimento e prazer do que um fim em si mesmo.
Patrocinados pelo governo de Getúlio Vargas (1930-1936)
e com a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho, de
1º de maio de 1943 (CLT), a profissão de jogador de futebol foi
regulamentada e a democratização se inicia com a contratação
de jogadores sem restrição social ou étnica. Mas foi na década
de 1970, com a modernização advinda da construção dos centros
de treinamento e profissionalização do futebol, que se passou a
reconhecer a profissão como fonte de renda vantajosa para todos
os agentes envolvidos com a modalidade (jogadores, treinadores,
dirigentes e políticos) e a atividade tornou-se veículo de marketing
e representação ideológica (Franco Júnior, 2007).
A década de 1990 foi importante para o Brasil: a intensa
mobilização jurídica estabeleceu regras e leis para a formatação
do que hoje chamamos de Sistema Nacional do Desporto. A Lei
Zico (nº 8.672/93) pôs fim à tutela do Estado ao esporte, pautando
a autonomia das entidades esportivas. Sem muitos avanços, foi
promulgada em 1998, a Lei Pelé (nº 9.615/98), que corroborou
o futebol e suas prerrogativas, deixando as discussões sobre a
estrutura esportiva relegadas a segundo plano. E a partir da Lei
Pelé novas leis foram elaboradas, tendo no futebol um modelo a
ser seguido como modalidade profissionalizada.

Histórias de vida, narrativas vívidas: “pronqovô?”,


“qemqosô?”
Profissão: atleta profissional de futebol. No Brasil, apesar de
regulamentada pela CLT na década de 1970, e em 1982 fazer parte
da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO, p. 38), os relatos
dos entrevistados selecionados para este trabalho apresentam
diferentes realidades vividas.5

Ministério do Trabalho e Emprego. Classificação Brasileira de Ocupações (CBO).


5

Portal do Trabalho e Emprego. Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/


cbosite/pages/saibaMais.jsf >. Acesso em: 25 fev. 2013.

132

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Para exemplificar a fase de amadorismo nacional, A. M.,
nascido em 1947, revelou que sua trajetória no futebol começa
aos 16 anos de idade jogando no infantil do Corinthians (SP).
Progrediu nas categorias de base do clube, chegando até a
seleção juvenil paulista. Foi convidado para participar dos
Jogos Olímpicos de 1968, no México, ocasião em que o Brasil
enviou a seleção ao México sem nenhuma estrutura. Não havia
médico, roupeiro nem qualquer tipo de apoio. Apesar de o time
ser “badalado”, as condições de transporte e manutenção eram
praticamente inexistentes.
Na década de 1970, apesar dos investimentos e tentativas
de modernização do futebol nacional, encontramos na narrativa
de E. L. M, originário do interior do Estado de São Paulo e jogador
desde os 17 anos da Portuguesa de Desportos e do Comercial
de Ribeirão Preto, uma descrição de fatos que nos remete aos
Jogos Pan-Americanos do México (1975) com a conquista da
medalha de ouro e a participação na seleção nacional que foi
aos Jogos Olímpicos de Montreal (1976). Mesmo com a conquista
da medalha e a participação nos Jogos Olímpicos, o atleta,
que estava sem contrato formal, ao regressar ficou três meses
parado e discutindo valores contratuais, pois o de venda (valor
do seu trabalho) estava abaixo do mercado. Na época, era praxe
jogadores assinarem em branco os famosos contratos de gaveta,
que davam amplos poderes à administração do clube.
Nessa época, também é necessário considerar que,
para disputar os Jogos Olímpicos, o atleta não poderia ser
profissionalizado, o que levou E. L. M., assim como muitos
esportistas, a atrasar esse processo, dando justificativas suficientes
para que seu clube gerenciasse a situação com vantagens
financeiras expressivas. Com a falta de reconhecimento e as
negociações frequentes, o atleta conseguiu sua transferência para
outros clubes, em outros estados e cidades, até que em 1990
resolveu encerrar a carreira e retornar à sua cidade de origem,
que o reconheceu e até os dias atuais lhe fornece condições de
investir na carreira do funcionalismo público.
O falta de valorização do atleta profissional e a forma
amadora pela qual era tratado surge também no relato de A. S.,
atleta que foi aos Jogos de Sidney em 2000. Sua narrativa aponta
que a preparação para os Jogos foi boa na fase da conquista
para a vaga olímpica, mas que posteriormente, na fase da
pré-competição, por fatores relacionados a dificuldades com
planejamento, organização e dúvidas quanto a convocar ou não

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jogadores mais experientes, a seleção foi prejudicada e treinou por
duas vezes com uma mesma seleção latino-americana, agregando
pouco valor aos resultados obtidos.
Coincidência ou não, os três atletas relatam que, após os
Jogos Olímpicos, no retorno aos seus times de origem, o que
vivenciam é uma desvalorização. A. M. é dispensado, tendo de
peregrinar por times de menor expressão para se manter na
carreira esportiva – o que também ocorreu com E. L. M. e com
A. S. –, pois, durante sua participação nos Jogos, foi negociado
com um clube italiano que não cumpriu o contrato, fazendo com
que o jogador retornasse ao Brasil em busca de recolocação no
mercado esportivo.
Avalie-se que estamos abordando épocas relacionadas ao
“puro” amadorismo (A. M. – final da década de 1960), amadorismo
velado (E .L. M. – década de 1970 e início de 1980) e o que se
denomina prática profissional (A. S. – final do século XX). O que
se pode considerar a partir dessas distintas representações?
A palavra trabalho tem sua origem na ideia do trabalho
escravo, pois o homem livre não trabalha, pensa. O sentido do
trabalho é um conceito complexo que sofreu transformações ao
longo do último século, particularmente em função das mudanças
tecnológicas observadas na era pós-industrial. Para o atleta de
futebol, o trabalho no contexto esportivo é apenas mais um
dentre tanto outros. Por isso, A. M., que tem sua vida de trabalho
limitada pelo campo de atuação, não sobrevive ao amadorismo
existente na sua época e passa a buscar o desempenho em outra
atividade profissional para sobreviver, assumindo outros papéis
sociais (marido, pai, comerciante, entre outros). E. L. M., no
entanto, sem estudo nem opção de trabalho, submete-se às regras
do mercado limitante e encerra de forma pouco reconhecida sua
carreira atlética. Já A. S., que não vive a fase do amadorismo, mas
sim a da espetacularização na modalidade (Damo, 2007), passa a
viver as leis da oferta e da procura no mercado, ainda em busca
da continuidade do seu trabalho.
Os valores e normas impostos pelo modelo atual de
organização e gestão dos clubes esportivos entram em tensão
com elementos centrais da cultura esportiva e das tradições
profissionais. Isso é extraído da narrativa de M. P., atleta que
participou dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996. Conta que
desde a infância seu desejo era ser ídolo, ser reconhecido pela
torcida e pelo clube em que jogava. Ao passar os primeiros quinze
anos de sua carreira no mesmo clube, vivenciou as agruras do

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processo de formação da identidade do ser atleta, gerenciando
estudo, trabalho e carreira esportiva. Seu projeto de vida era ser
um atleta que teria conhecimento para embasar suas opiniões,
e por isso é um dos poucos que finalizou curso superior e uma
especialização. Esse caminho o levou a cuidar dos processos
de identidade de atletas mais jovens, ao mesmo tempo em que,
acreditando no seu planejamento para o futuro, construiu uma
carreira em que o trabalho como atleta profissional de futebol
alicerçou o papel de gestor esportivo que desenvolve atualmente.
As contradições vividas pelos atletas profissionais
apresentam as relações de poder em um campo de forças
caracterizado pela alta capacidade de quem domina para induzir
quem está dominado a locomover-se até a meta ordenada. O que
faz a diferença na trajetória de cada um desses atores é a obra
esportiva criada a partir do processo de identidade.
A construção da identidade se dá durante as fases da vida
de um indivíduo em que as angústias surgem em processos de
tomada de decisão. Uma delas é a escolha profissional, que faz
parte da juventude, tendo como principal característica o aspecto
da transição. O mundo do trabalho atualmente é um constructo
teórico-prático que alcança, além dos limites institucionais,
as diversas dimensões da vida; a profissional é uma delas, e a
carreira é constituída na sua relação com o cotidiano.
Assim, as teorias de desenvolvimento e gestão de carreira
procuram contribuir para auxiliar o indivíduo a ser um agente
interpretativo das suas próprias necessidades capaz de planejar
a sua própria vida e encarar o papel de trabalhador inserido
numa constelação de outros papéis, percebendo que a carreira é
individual e compreendendo o seu passado, de forma a delinear
o futuro (Super, 1957). Nos exemplos dos atletas citados
anteriormente, observamos que nenhum deles teve contato com
algum agente que pudesse intervir diretamente no aconselhamento
da carreira. No entanto, quando não incentivados pela família na
busca do estudo (A. M., E. L. M. e A. S.), a finalização da carreira
foi mais difícil e com poucas oportunidades de reconfiguração.
Os caminhos para a gestão da carreira esportiva do atleta (M. P.)
e uma opção de futuro se tornaram possíveis, desde a infância
e adolescência, devido ao apoio dos familiares e grupo social,
que permitiu desenvolver alternativas e caminhos de futuro com
ancoragens em sua carreira constituídas durante a carreira atlética.
Nos estudos da área da Administração, os autores Borges
e Casado (2013) apontam que para o desenvolvimento de uma

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nova profissão é necessário, além das transformações sociais,
maneiras de demarcação de uma posição social e pertencimento
a um grupo profissional. Essa relação é constituída individual e
coletivamente, por influência dos contextos histórico, econômico,
cultural e político.
Assim, por meio das narrativas dos quatro atletas
entrevistados, observamos que as décadas de 1960, 1970, 1990
e 2000 revelam significados da carreira esportiva no futebol
semelhantes em suas concepções culturais, mas diferentes nas
estruturas sociais, reguladas pelas leis do mercado esportivo.
Porém, os projetos individuais são estruturados na construção
de temas de vida (estudo, conhecimento, planejamento,
sobrevivência, entre outros) que auto-organizam a personalidade e
o autoprogresso na adaptação à carreira, moldando o ajustamento
vocacional.
Se a carreira atlética é composta por no mínimo três fases
– iniciação, competição e aposentadoria –, e até pouco tempo
era considerada pelas ciências da gestão como não-carreira
(Martini, 2012), é por ser assunto de tão pouco interesse, há
necessidade de se desenvolver o tema nas instituições ligadas ao
âmbito esportivo, criando a importância do mesmo nas discussões
dos grupos de atletas profissionais.

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Narrativa vivida no desporto
paralímpico português
Ana Sousa1; Rui Corredeira1,2; Ana Luísa Pereira
Departamento de Atividade Física Adaptada, FADEUP, Portugal
1

2
Centro de Investigação em Atividade Física e Lazer (CIAFEL), FADEUP, Portugal

Introdução
Os primeiros Jogos Paralímpicos foram realizados
em Roma – 1960. Desde então, distintos marcos históricos
e evolutivos transformaram essa prova no auge de realização
desportiva para atletas com deficiência (Brittain, 2010; Howe,
2008; Legg & Steadward, 2011). Atualmente, esses Jogos são
o reflexo e a expressão máxima do desporto para pessoas com
deficiência vocacionado para o alto rendimento: o desporto
“(Para)Olímpico”.
Tal como nos Jogos Olímpicos, as expectativas face
aos resultados do atleta paralímpico têm crescido, sendo
acompanhadas por uma crescente visibilidade e notoriedade
nacional e internacional (Schantz & Gilbert, 2008). A presença
nos Jogos Paralímpicos é, pois, o culminar de um percurso de
excelência no desporto. É nesse palco que o atleta paralímpico
expõe as suas habilidades, atingindo resultados que, muitas
vezes, transcendem limites percebidos como intransponíveis.
Mas alcançar tão distinto cenário exige do atleta elevado
comprometimento, empenho, treino árduo e a construção de um
caminho preenchido de vitórias e derrotas nos mais variados
palcos internacionais.
A prática de uma modalidade desportiva ao nível da
alta competição e a construção de um percurso desportivo de
sucesso representam um processo complexo. O fato de um atleta
ser detentor de elevado potencial e talento para a prática de
uma modalidade não constitui, por si só, garantia para a vitória.
O contexto histórico e social também é determinante na sua
carreira, e quando nos referimos a atletas de elite com deficiência,
a complexidade inerente ao contexto aumenta face à diversidade
edificadora do desporto paralímpico.
Em Portugal, o desporto para pessoas com deficiência
ultrapassa os quarenta anos de existência. Apesar das nove
participações portuguesas em Jogos Paralímpicos e das medalhas

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conquistadas pelos atletas portugueses, muito pouco se sabe
sobre a vida desses atletas (Sousa, Corredeira, & Pereira,
2013a). Nesse contexto, a fim de compreender o desporto
paralímpico em Portugal, de entrever o significado dessa prática
e de conhecer o percurso desportivo de atletas com deficiência
que competem ao mais alto nível, recorremos à narrativa (Sousa,
Corredeira, & Pereira, 2013b). Trazer as experiências vividas
à memória do sujeito é a única forma de entrever seu sentido e
essência (Bruner, 2004). É recorrendo à recordação e à reflexão
sobre os fenómenos da vida vivida que somos capazes de lhes
atribuir significado (Van Manen, 1990), podendo partilhar com
os outros as nossas experiências e vivências marcantes.
O ser humano é um natural contador de histórias que
através da narração se torna capaz de construir suas próprias
realidades e modos de ser (Atkinson, 1998; Josselson,
2006). Narrar uma história pessoal ou uma experiência vivida
representa, portanto, um ato eminentemente humano (idem,
ibidem). Mas as narrativas representam muito mais do que
meras histórias contadas; retratam verdadeiras criações sociais.
Cada sujeito nasce e cresce numa cultura constituída por um
leque próprio e diverso de narrativas colocadas em prática nas
suas atividades quotidianas através das mais variadas formas
de interação social (Atkinson, 1998). A narrativa é, assim,
intercultural: reflete o tempo, o espaço e a sociedade em que se
insere (Bell, 2002).
Na experiência do mundo, o ser humano percorre os mais
distintos contextos de atuação, preenchendo a sua vivência do
mundo de histórias para contar. No caso do praticante, o cenário
desportivo é um espaço privilegiado para uma experiência
vivida carregada de significado(s), particularmente quando se
compete em tão extraordinário cenário como sucede com o
atleta paralímpico.
Embora os discursos sobre o atleta paralímpico sejam
conduzidos no sentido de o habilitar e de lhe reconhecer valor,
seus feitos permanecem “anónimos”, sem se ouvir o que esses
atletas, realmente, têm para dizer. Foi também com esse objetivo
que demos voz a Lenine Cunha: o atleta paralímpico português
mais medalhado. Pretende-se valorizar a riqueza e singularidade
das palavras do atleta, ambicionando compreender esse tipo de
prática desportiva através do seu olhar e da sua vivência única e
pessoal. Para tal, apresenta-se a sua narrativa, organizada numa
perspectiva temporal e estruturada.

140

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A narrativa de Lenine Cunha
Lenine nasceu em 1982, em Mafamude, concelho3 de
Vila Nova de Gaia, onde hoje vive. Aos 4 anos, um ataque de
meningite levou-o a deixar de falar e de andar, provocou-lhe
graves limitações na audição e visão, atraso no desenvolvimento
cognitivo e na memória; aspetos que conduziram à deficiência
intelectual.
Iniciou-se na competição regular com 6 anos, mas foi no
atletismo para pessoas com deficiência que se tornou conhecido
pelos diversos títulos conquistados. Aos 16 anos ingressou
no desporto paralímpico e, desde então, tem marcado o seu
percurso desportivo por inúmeras medalhas e troféus, sendo o
atleta paralímpico português mais medalhado de sempre. Hoje
se dedica exclusivamente à prática desportiva e compete em
distintas provas de atletismo: velocidade, barreiras, estafetas4,
saltos e provas combinadas para a classe F205, onde representa o
Clube de Gaia.
No decorrer do seu percurso, evidenciam-se os resultados
de excelência obtidos nas diversas competições nacionais e
internacionais de que participou. Enquanto atleta de elite, esteve
presente nos Jogos Paralímpicos de Sidney 2000 e Londres
2012, onde conquistou o 4º lugar e uma medalha de bronze,
respetivamente. Nos Global Games6 realçam-se 3 medalhas de
ouro, 2 de prata e 3 de bronze. Do seu vasto palmarés7 fazem
ainda parte 33 medalhas de ouro em Campeonatos da Europa,
18 de prata e 17 de bronze; e em Campeonatos do Mundo 34
medalhas de ouro, 30 de prata e 21 de bronze.
Num transcendente percurso, Lenine sagrou-se recordista
mundial nas provas de triplo-salto8, 60 metros com barreiras,

3
 ivisão administrativa territorial adotada em Portugal semelhante aos municípios
D
no Brasil.
4
Revezamento.
5
Para poderem competir, todos os atletas com deficiência intelectual têm de ser
submetidos a um processo de classificação. Caso sejam considerados elegíveis
para competir, esses atletas enquadram-se nas provas para a classe F20.
6
Esses jogos foram criados pela Federação Internacional de Desporto para Pessoas
com Deficiência Intelectual a (International Sports Federation for Persons with
Intellectual Disability - INAS-FID) para “substituir” os Jogos Paralímpicos dos
quais os atletas com deficiência intelectual foram afastados entre 2000 e 2012,
devido a erros na classificação desportiva de atletas da seleção espanhola.
7
Rol de títulos.
8
Salto triplo.

141

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110 metros com barreiras, 400 metros com barreiras, estafeta
4x100 metros e 4x200 metros, salto em comprimento9, pentatlo,
heptatlo e salto à vara10 e recordista europeu na prova de triplo-
salto. Acrescem ainda na sua carreira 14 troféus de “Melhor
Atleta” conquistados em Campeonatos do Mundo e da Europa;
um troféu de “Melhor Performance” e os troféus de “Atleta mais
Medalhado nos Global Games” em 2004 e 2009. Face a essa
carreira inigualável, Lenine foi distinguido por diversas entidades
públicas, desportivas e autárquicas, destacando-se as nomeações
para a Gala do Desporto promovida pela Confederação de
Desporto de Portugal, na categoria de Atleta Masculino, nos anos
de 2005, 2009 e 2012.

No dia em que tudo mudou


Dando início à sua história, Lenine começou por reportar-
se à forma como surgiu a deficiência intelectual quando era
ainda criança.
Tinha 4 anos, quase 5, quando tive um ataque de meningite.
A minha mãe tinha-me posto a dormir e lembrou-se de ir ao
quarto ver como é que eu estava… e ainda bem que ela foi!
Quando ela abriu a porta eu estava em convulsões, a revirar
os olhos… e ela levou-me logo para o hospital. Na altura eu
não estava doente nem nada, foi repentino. A minha mãe
sabia o que era porque um irmão dela tinha falecido de
meningite. Isto seis anos antes de mim. Então ela ficou logo
muito preocupada e levou-me para o hospital.
Esse evento mudou, definitivamente, a vida de Lenine que,
até então, era uma criança muito ativa e sorridente. A meningite
alterou radicalmente o seu percurso de vida e teve consequências
diretas no seu trajeto pessoal.
Afetou-me a visão do lado esquerdo e a audição. (…) Hoje
ainda vejo mal, fiquei com um olho mais fechado e não
consigo pôr lentes. E afetou-me em nível intelectual também
um bocado… ou melhor, um “bocadão” [sorriso]. Também
deixei de andar. Era como se eu tivesse de começar a viver
novamente e tivesse de reaprender tudo de novo. O andar
foi rápido porque também não foi assim tão forte. Em nível
intelectual, a partir daí, tive sempre muitas dificuldades.

9
Salto em distância.
10
Salto com vara

142

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Tive que ir para a escola quase um ano depois desse episódio,
aos 6 anos, e fui sem saber falar quase. Ainda falava muito
mal, ainda dizia mamã, papá e pouco mais… perdi tudo
com a meningite.
A perda de capacidades e competências, numa idade vital
em nível do desenvolvimento da criança, tornaram o trajeto escolar
de Lenine repleto de obstáculos e percalços. Foi conseguindo
progredir até ao 8º ano de escolaridade, momento em que as
dificuldades se exacerbaram, desistindo da escola. Pese embora o
apoio dado nas aulas de acompanhamento de que se beneficiou
ao longo dos anos e na terapia da fala, as dificuldades foram
sempre muitas e as retenções começaram a aglomerar-se, ao
mesmo tempo em que a sua motivação decrescia. A saída precoce
da escola fez com que fosse integrado no mundo do trabalho
ainda muito jovem, tendo em vista ajudar a sua família na época.
Anos mais tarde, no ano letivo de 2005/2006, Lenine regressou à
escola e concluiu o 9º ano.

Encontro com o desporto


O desporto surgiu aos 6 anos através do Andebol11.
Todavia, rapidamente os treinadores perceberam a sua elevada
predisposição para o atletismo e Lenine iniciou, com apenas
7 anos, aquela que viria a ser uma carreira de elevado sucesso
no desporto.
O desporto vem passado um ano e meio de ter tido o ataque
de meningite, isto é, aos 6 anos. Existiam os jogos juvenis de
Gaia em que se praticam as modalidades quase todas e as
coisas estão organizadas por freguesias. Então, cada freguesia
levava, por exemplo, no atletismo, os cinco melhores atletas
para representarem a freguesia. Eu comecei pelo Andebol, mas
eu não tinha muito jeito para aquilo. Então o meu treinador
viu que eu corria bastante, que tinha boa resistência e, não
sei se é genético, mas eu tinha duas primas que chegaram a
correr com a Rosa Mota e com a Fernanda Ribeiro. O meu pai
também corria bem. Não era atleta, mas corria por gosto e
tinha boa resistência. Aliás, quando eu era novo ele ia correr
e de vez em quando eu ia com ele. Na altura o treinador do
Andebol falou com o do atletismo; disse que eu tinha boa
resistência e comecei a ir aos treinos. Um ano depois, comecei

11
Handebol.

143

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a praticar mais a sério. Mesmo a sério foi desde os 7/8 anos e
pronto, até hoje, já lá vão 24 anos [sorriso]. (…) Comecei por
fazer corrida de fundo e corta mato12 e depois aos 12 anos
iniciei-me na marcha. Quando cheguei aos 15 anos, disse que
estava farto de fazer isso… Queria fazer outras coisas, queria
lançar, queria saltar, queria fazer velocidade e não tem
nada a ver uma pessoa que faz provas de fundo passar assim
para saltador e velocista. A conversão levou algum tempo
ainda… Nessa altura, com 14 anos saí do Candal e fui para
o Boavista, como juvenil. E comecei a fazer outras coisas, mas
os treinadores sabiam que eu tinha sido um marchador e que
ia ser difícil mudar… Mas viam que eu tinha força de vontade
e espírito competitivo e apostaram em mim. (…) Entretanto,
comecei a fazer saltos e eu lembro-me que aos 17 anos, no
primeiro ano de júnior, fui segundo no desporto “normal”. Fui
vice-campeão de juniores em pista coberta, atrás do Nelson
Évora13 na altura [sorriso]. (…) Lembro-me que foi o Nelson
Évora que ganhou com uma grande margem, mas no fundo
fiquei em segundo.
Iniciou-se no atletismo através da competição regular,
em regime integrado com os restantes atletas. Nos primeiros
anos especializou-se nas provas de meio-fundo e fundo, mas
a adolescência marcou a transição para as provas de velocidade
e para os saltos, disciplinas em que alcançou o reconhecimento,
somando inúmeras vitórias no seu trajeto desportivo.
Ainda hoje Lenine está inscrito e compete em provas do
campeonato regular de atletismo. Estreou no Clube Desportivo do
Candal, passou pelo Boavista Futebol Clube, pelo Futebol Clube
do Porto e atualmente representa o Académica de Coimbra.

Deficiência? Eu?
Em 1999, aos 16 anos, Lenine passa a integrar o desporto
para pessoas com deficiência e a participar em competições
adaptadas. Na época, Lenine mostrou-se relutante em aceitar o
convite feito pelo engenheiro Costa Pereira, selecionador nacional
na área da deficiência intelectual. Explica por que:

12
Cross Country.
13
Atleta olímpico português de referência no atletismo nacional. Ao longo da sua
carreira, Nélson Évora arrecadou inúmeras medalhas nacionais e internacionais,
tendo-se destacado como campeão do mundo e como campeão olímpico nas provas
de triplo salto e salto em comprimento, provas em que Lenine Cunha compete.

144

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No final de 1999, em outubro ou novembro… eu estava no
Futebol Clube do Porto e treinava na Maia. (…) Entretanto, o
Costa Pereira, que é agora meu treinador e que faz parte da
ANDDI [Associação Nacional de Desporto para Pessoas com
Deficiência Intelectual], tinha-me visto numa competição… Na
altura, uma rapariga, que é minha vizinha, estava no desporto
adaptado como federada na ANDDI e disse a esse treinador
que eu tinha tido dificuldades na escola e que tinha tido um
ataque de meningite. E, então, um dia, o engenheiro Costa
Pereira veio falar comigo e perguntou-me o que é que se tinha
passado, quis saber o meu currículo académico e, no final, fez-
me o convite para me federar também na ANDDI e participar
nas competições deles. (…) Mas a palavra “deficiente mental”
caiu-me muito mal. Há anos que treinava com os “normais”
e para mim “deficientes mentais” eram aquelas coisas
profundas e não como eu sou. Na altura até fiquei chateado.
Lembro-me de lhe dizer: “Está a gozar comigo? Eu não sou
deficiente!” e ele respondeu: “Ah, mas não são “deficientes”,
é desporto para jovens que tiveram dificuldades na escola,
dificuldades de aprendizagem e assim”. (…) Ele então disse:
“Se quiseres podes vir ver uma prova nossa e vais ver que não
é nada de anormal” e lá aceitei ir, mas fiquei sempre com o
pé atrás. Não estava à espera de ver pessoas como eu... mas
fui ver a prova e não achei aquilo nada de anormal. (…)
Entretanto, fui treinar com o engenheiro Costa Pereira, que
é meu treinador desde 1999, início de 2000… já há catorze
anos. Fiz a inscrição em 1999 e como já era um bom atleta,
rapidamente comecei a ter bons resultados e em 2000 fui logo
aos Jogos Paralímpicos. (…) Saíram nessa altura os mínimos
para os Jogos e no salto em comprimento o mínimo era de 6
metros. Eu, logo na minha primeira prova que fiz pela ANDDI,
consegui 6,15 metros e foi mínimo. Nessa prova entrei logo no
projeto paralímpico. Isto em janeiro ou em fevereiro de 2000.

De partida para o sucesso


Superada a resistência inicial em incluir o seu nome no
desporto para pessoas com deficiência, Lenine rapidamente
ascendeu ao palco paralímpico. Na sua primeira competição de
atletismo para pessoas com deficiência intelectual, garante um
lugar na missão paralímpica portuguesa para Sidney 2000.
No desporto adaptado fui ao meu primeiro Campeonato da
Europa de pista coberta em 2000, na Suécia. Foi a minha
primeira grande viagem de avião. Hoje já viajei tudo, já corri
mundo… Foi a primeira competição internacional e fui 3º na

145

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prova de salto em comprimento. E visto ser o 3º já era uma
promessa para os Jogos, mesmo sendo o membro mais jovem
da missão paralímpica nesse ano. Entretanto, a treinar, no
verão, fiz 6,25 metros e bati o meu recorde pessoal.
Os resultados logrados na competição garantiram-lhe
o acesso direto aos Jogos Paralímpicos. Sendo o atleta mais
novo da missão paralímpica portuguesa presente em Sidney,
mas também o mais inexperiente nesse tipo de competição, a
experiência anterior que detinha no desporto convencional fez
com que Lenine fosse encarado como forte candidato à obtenção
de medalhas. Essa rápida ascensão ao desporto paralímpico
surpreendeu Lenine, e a notícia de que estava apurado para
participar na competição mais nobre do desporto para pessoas
com deficiência deixou-o extasiado.
Receber aquela notícia de que ia foi totalmente inesperado…
Não sabia o que eram os Jogos Paralímpicos. Tinha visto os
Olímpicos na televisão, mas Paralímpicos nunca tinha visto
nenhum. Não sabia como era, pois não era tão falado como
é hoje. Não dava nada na televisão. Na altura, os últimos
tinham sido em 96, em Atlanta, e não tinha ouvido falar
nada. Mas sabia que ia ser no mesmo estádio em que os
Olímpicos, no mesmo espaço… e claro que fiquei muito
contente. Ainda por cima na Austrália! Eu queria era viajar
na altura, e ir ao outro lado do mundo era um sonho, ainda
mais para um miúdo que tinha apenas 17 anos como eu.
(…) Mas o trabalho de agosto e setembro foi fundamental
para me preparar e viu-se pelo resultado. Foram mais 40
cm que eu consegui saltar nos Jogos. Fui para Sidney com
6,25 metros e fiz lá 6,62. Fiquei em 5º lugar na altura, mas
depois subi para 4º quando um atleta foi desclassificado.
(…) Mas estar num estádio como aquele foi arrepiante…
Aquilo era o maior estádio do mundo, na altura, e levava
110 mil pessoas. No dia da minha prova estavam cerca de
70 mil e claro que eu estava a tremer por todos os lados.
Era novo, inexperiente ainda… mas saí-me bem. (…) Mas
também eu gosto de barulho, gosto de confusão e pedi
palmas ao público e isso me deu motivação para, logo no
primeiro salto, fazer 6,40 metros. Bati logo o meu recorde
pessoal nesse salto. (…) Foi uma experiência única. É uma
das competições que me ficou marcada. Marcou a cerimónia
de abertura, a aldeia paralímpica, o estádio, a minha prova
em si, as pessoas, os australianos que são muito simpáticos...
Os portugueses emigrantes que eu conheci lá e com quem
ainda hoje mantenho contacto foram extraordinários
nestes Jogos. (…) Marcou-me quase tudo, mas marcou-me

146

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mais porque, a partir daí, o Lenine mudou. O Lenine que
se conhece hoje foi devido à presença nesses Jogos. A partir
daí dei um salto muito grande no desporto, comecei a me
dedicar muito mais… Depois fui vice-campeão “normal” de
juniores no ano a seguir, muito pelo trabalho que tinha feito
para Sidney e isso me fez perceber que se me dedicasse ia
longe. Continuei a trabalhar mais e um mês depois já estava
nos 6,80 metros. Começaram a surgir convites entretanto,
e quando dou por mim já estou nos 7 metros. A partir daí
comecei a fazer as provas da ANDDI e comecei a ganhar 5/6
medalhas por campeonato, porque trabalhava para aquilo e
treinava muito bem.
Atentando a esse excerto, é possível depreender o valor
atribuído pelo atleta à sua primeira participação paralímpica.
Não obstante as inesquecíveis vivências que a participação nessa
competição lhe proporcionou, não apenas no que se refere a
resultados desportivos, mas também ao ambiente da competição,
a maior marca foi deixada na identidade do atleta. No seu
discurso, é perceptível um renovado comprometimento com
o treino e com a competição.
É a partir de Sydney que Lenine define como meta futura
a sua presença nos Jogos Paralímpicos seguintes.
Em Sidney, nos primeiros Jogos, foi marcante porque, para
mim, o Lenine cresceu e tornou-se o atleta que é hoje derivado
a esses Jogos. Nessa prova senti que tinha capacidades para
chegar longe. Marcou-me porque foram os meus primeiros
Jogos e ter ficado em 5º lugar foi ótimo, ainda mais porque
tinha apenas 17 anos. E ficou marcado porque a partir daí
eu disse: “Vou treinar porque eu quero ganhar uma medalha
paralímpica”. Quando regressei de Sidney eu disse: “O meu
sonho é ganhar uma medalha paralímpica e não vou desistir”.
E marcou-me porque treinei bastante para chegar onde
cheguei até hoje e para ganhar tantas medalhas. Mas, sem
dúvida, a competição que mais me marcou foi a de Londres e
a medalha também… [sorriso].

Empurrado para fora do palco paralímpico


Apesar do promissor percurso que Lenine estava a construir
no desporto paralímpico, o seu o sonho desabou em 2001. Após os
Jogos Paralímpicos de Sidney, em 2000, os atletas com deficiência
intelectual foram afastados da competição por fraudes detectadas
em nível da classificação desportiva dos atletas da seleção espanhola

147

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de basquetebol. Na época, um jornalista infiltrou-se na equipa
e descobriu que vários atletas sem deficiência iriam competir.
A INAS-FID (International Sports Federation for Persons
with Intellectual Disability), responsável pela elegibilidade dos
atletas para competir, foi afastada do IPC (International Paralympic
Committee). Consequentemente, todas as modalidades para
pessoas com deficiência intelectual ficaram fora dos Jogos. O
escândalo destruiu o sonho que Lenine estava ainda a edificar,
afastando-o dessa competição por doze anos.
Na altura não liguei muito. Vi pelo telejornal quando estava
no café e liguei para o meu treinador a perguntar o que se
passava e ele respondeu: “Não te preocupes, não temos nada
a ver com isso”. Mas dias depois rebenta a bomba de que o
IPC nos tinha banido dos Jogos até ordem em contrário.
(…) Isto foi a meio de 2001 que rebentou o escândalo de
que a Espanha tinha levado atletas sem deficiência aos
Paralímpicos. A equipa de basquetebol não tinha nenhum
atleta que cumprisse as normas para competir. E isso foi um
escândalo muito grande. Veio-se a descobrir que os jogadores
estavam a receber do presidente da federação espanhola para
se calarem, mas tiveram azar porque se meteu na equipa um
jornalista do jornal “A Marca” que contou tudo. Foi muito
mau para nós porque, por causa de uns, pagaram todos. E
eu se ganhei a medalha de bronze agora nos Jogos [2012], se
calhar em 2004 e em 2008 tinha ganho uma medalha de outra
cor… Sim, porque o meu recorde pessoal é de 7,16 metros, mas
já o consegui em 2005, quando era mais novo. Hoje acredito
que já não consigo chegar lá. Mas em 2004 ou em 2008 podia
ter ganho uma medalha melhor do que esta… mas pronto,
estou contente com esta.
Na época, o sentimento foi de revolta, mas também de
incerteza, pois não sabia quando teria novamente a oportunidade
de regressar à competição. É com tristeza que hoje fala das
oportunidades que perdeu quando estava ainda no apogeu da
sua performance desportiva. Na sua ótica, a decisão do IPC
não só inviabilizou a conquista de medalhas, como também lhe
impossibilitou o acesso às bolsas paralímpicas. A esse respeito, o
atleta refere-se à falta de apoio sentida ao longo desses doze anos
e à vontade de desistir que muitas vezes o assolou.
As provas do INAS-FID havia na mesma, mas já não era a
mesma coisa… Depois de teres estado nuns Jogos Paralímpicos
só queres regressar e eu estava impedido de fazê-lo. (…) Em
2004, adorava ter ido à Grécia, mais ainda ter ido a Pequim

148

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em 2008... E foram anos de sofrimento sem apoio nenhum.
Depois via os meus amigos de outras áreas, que tinham estado
comigo em 2000 nos Jogos, a irem para os Jogos seguintes e
aí [emociona-se] … vieram-me as lágrimas… Porque eu podia
lá estar! Foram coisas que custaram. Eu sofri bastante com
isso. Foram doze anos sem apoio nenhum, sem emprego e sem
poder ter acesso às bolsas porque estávamos fora do projeto
paralímpico, e essa foi a minha maior dificuldade.
A impossibilidade de competir nos Jogos Paralímpicos
poderia ter ditado o final da sua carreira desportiva, mas Lenine
nunca desistiu. Apesar da falta de apoio, do sofrimento e da
escassez de reconhecimento experienciadas nesse período, o
espírito competitivo impediu-o de desistir, o que, hoje reconhece,
poderia ter sido um grande equívoco. Porém, confessa que a
opção de renunciar ao desporto se fixou no seu pensamento
diversas vezes.
Senti que não me davam apoio e não me davam o respectivo
valor quando eu chegava das competições. Às vezes, voltava
da competição com 6/7 medalhas e não me davam o respectivo
valor... Nós chegávamos das competições e não havia ninguém
no aeroporto, nem jornais, nem imprensa, nada… isso dói.
(…) Sabia bem se desse uma notícia sobre mim ou sobre o resto
dos atletas da seleção que traziam sempre muitas medalhas.
A recompensa era muito pequenina pelo esforço todo e claro
que a motivação começou a desvanecer. (…) Treinava, mas
a motivação não era a mesma! Mas treinava porque tinha as
provas do INAS-FID e tinha recordes para bater [risos]. Tinha
também compromissos com o clube e não queria deixá-los
mal. Claro que me desanimava não ir aos Jogos, mas tinha
outras provas para ir, tinha o Campeonato do Mundo do INAS,
tinha os Campeonatos da Europa de pista coberta, de ar livre
e tinha de treinar para isso. Mas sempre senti falta daquela
coisa de preparar-me para uns Jogos… Continuei a lutar para
isso porque sabia que nós íamos voltar um dia e eu tinha de
lá voltar. E depois porque eu gosto disto também, é verdade,
eu amo isto. Por mais motivação que não tivesse, eu, se não
estiver a treinar durante dois dias, já estou com saudades
[sorriso]. (…) E depois, ganhar aquelas medalhas todas nos
campeonatos também me deu ânimo, o bater recordes do
mundo sabia mesmo bem [risos].
A paixão do atleta pelo desporto e a responsabilidade
assumida com o clube que representava parecem ter sido basilares
para que ele se mantivesse na competição. Do mesmo modo,

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os extraordinários resultados desportivos que sempre conquistou,
aliados ao prazer que a superação dos seus próprios limites lhe
proporcionava, formaram um conjunto de condições favoráveis à
sua motivação no desporto.

De regresso à competição
Oito anos mais tarde, chegou finalmente a decisão tão
esperada pelo atleta:
Em 2008, depois dos Jogos de Pequim, saiu a notícia de que
nós íamos voltar e que íamos passar por testes rigorosos
comandados pelo IPC. Passados doze anos, finalmente
pude voltar… mas tive medo de não conseguir. (…) Fiquei
assustado derivado aos novos testes que íamos fazer. (…)
Depois nós começámos a pensar: “Será que os melhores vão
ficar de fora?”; “Será que eu vou ficar de fora?”. Eu trabalhei
tanto para fazer boas marcas e tinha medo de morrer na
praia. (…) Nós fizemos testes psicotécnicos e depois testes
específicos para o salto em comprimento. (…) Aí passei
uma fase grande de ansiedade porque tive receio de não
passar. Mas agora, com o novo exame que fizemos, já fiquei
classificado definitivamente. Não tenho de me preocupar com
mais nada porque está feito!
Diante da oportunidade de regressar aos Jogos Paralímpicos,
a incerteza dominou seus pensamentos durante alguns meses. A
possibilidade de não ser aprovado nos rígidos testes definidos
para a reclassificação dos atletas aumentou sua ansiedade perante
o desejo desmedido de reviver a experiência dos Jogos.
Soube que fiquei classificado de vez apenas antes de irmos
para os Jogos… Ufa! Custou aquele tempo… Foi na Holanda,
em 2012, no Campeonato da Europa que soube. Foi o último
teste que nós fizemos, depois de não sei quantos… e finalmente
saiu a lista a dizer que tinha sido aceito, foi um alívio! [sorriso]
Durante o ciclo paralímpico precedente aos Jogos de
Londres, em 2012, Lenine reconhece que atingiu um dos pontos
altos do seu percurso desportivo. Na realidade, em 2008,
o atleta conseguiu um forte patrocínio individual que lhe permitiu
readquirir o alento e apoio necessários de que sentiu falta nos
anos anteriores. O patrocínio foi fundamental para que pudesse
dedicar-se por inteiro ao desporto e veio permear todo o esforço
e empenho desenvolvidos pelo atleta ao longo de vários anos de
uma carreira repleta de troféus.

150

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Os melhores anos para mim foram de 2008 até hoje: consegui
o patrocínio do Banif. Tivemos uma reunião em 2008 e
depois comecei a ganhar por esse patrocínio até 2012. (…)
O patrocínio foi durante os quatro anos e deu-me grande
motivação para treinar porque não tinha de me preocupar
com mais nada. Tanto é que se não fosse o Banif tinha
desistido e tinha arranjado um emprego para sobreviver.
(…) Eu dediquei a medalha de bronze também a eles porque
sem eles não tinha ganho esta medalha, não tinha mesmo.
(…) Entretanto, só voltei a entrar na bolsa em 2010, quando
foi aprovado o regresso da deficiência intelectual aos Jogos
Paralímpicos. Fui para o projeto paralímpico em 2010 e
entrei direto para a categoria mais alta, a dos medalhados em
Campeonatos do Mundo e Europa.
Nesse testemunho, Lenine demonstra a relevância que os
patrocínios adquirem no percurso desportivo de um atleta de alta
competição. Sem apoio, os atletas são forçados a trabalhar e a
relegar o desporto para segundo plano. O que, para ele, impede a
progressão do desporto para pessoas com deficiência em Portugal,
remetendo essa prática desportiva ao amadorismo. Lenine teve de
trabalhar para subsistir e relata como é importante que se lute
pela profissionalização dos atletas paralímpicos:
Já tive de trabalhar em 1999 e 2000, como eletricista numa
empresa. Quando cheguei dos Jogos de Sidney, em 2000, fui
despedido. E por ir representar Portugal, imagine-se… Depois
fui trabalhar para um ginásio e fiquei lá até 2003. E desde
2003 que só consegui mesmo part-times. Por isso o patrocínio
foi um alívio. Finalmente pude dedicar-me só ao desporto, isso
também é bem visível nos meus resultados.
Regressando à experiência paralímpica de Londres, os
momentos que antecederam o regresso à competição foram
vividos pelo atleta com grande ansiedade. A época desportiva que
precedeu a competição não decorreu de acordo com o esperado
e os seus resultados desportivos verificaram uma tendência
decrescente. Talvez o misto de sentimentos vivenciados nessa fase
o justifique, de certo modo.
Saber que ia aos Jogos e treinar para isso, após doze anos,
foi uma emoção muito grande. Eu disse que ia ganhar uma
medalha! Não é estar a ser convencido, mas eu disse que me ia
esfolar todo para ganhar uma medalha. Mas tinha medo das
lesões. Com 29 anos, as lesões começam a aparecer e tive muito
medo de algo acontecer e de não ir. (…) Entretanto, esta época,

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eu falo de 2012, as provas de pista coberta não correram nada
bem. As provas de ar livre na Suécia e na Holanda também
não me tinham corrido nada bem. Na Holanda era mais um
teste para os Jogos e fiz apenas 6,42 metros, fiquei em 3º. Mas
acho que isso também foi derivado ao cansaço das competições
anteriores. (…) Voltei em grande e até comecei a fazer treinos
bi-diários por iniciativa própria. O meu treinador sabia, mas
fui eu que tive a iniciativa de fazer bi-diários… eu não ia
perder aquela oportunidade, ainda mais porque sabia que
conseguia chegar lá e ganhar algo [sorriso].
A consciência anunciava-lhe a conquista da medalha pela
qual havia esperado tanto tempo, e a crença nas suas competências
levou-o a acreditar que tal feito seria concretizável.

O sonho tornado realidade


Na véspera da partida para Londres, Lenine estava
extremamente nervoso. Tinha chegado a hora de partir para viver
o sonho que idealizara durante doze anos.
Quando chegou finalmente a hora de ir… quando dei por nós,
eu e o meu treinador, já estávamos a dizer: “Vamos amanhã”
e eu só pensava: “Não, não quero ir” [risos]. Depois eu tinha
visto os Jogos Olímpicos na televisão e sabia que ia competir
naquele estádio… a emoção era enorme! Eu via aquele estádio
na televisão, nos Jogos Olímpicos, e ficava com um friozinho
na barriga… Só pensava: “Ai meu Deus, eu vou lá estar mais
tarde! Eu também vou estar ali!”.
O atleta contou-nos a sua experiência desses Jogos. Seu
discurso centra-se sobretudo na competição, pois foi na prova
que viveu os episódios mais significativos no retorno ao cenário
paralímpico.
Fui para os Jogos e revivi tudo o que tinha vivido em 2000.
Claro que a aldeia olímpica e o estádio eram diferentes, mas
foi espetacular! Só quis aproveitar todos os bocadinhos que
tive lá… (…) Dois dias antes da minha prova fui treinar e
estava a fazer 6,10 metros. Eram os nervos, era a pressão
também e eu estava a sentir muito aquilo. (…) Ainda por
cima, dois dias ou três antes da minha prova, o coordenador
do atletismo tinha-me dito que o chefe de missão, o Carlos
Lopes, lhe tinha confidenciado que no atletismo eu e a Inês
Fernandes éramos os únicos aspirantes a medalhas. E na
altura saiu uma grande fotografia minha nos jornais quase
todos cá em Portugal… porque nessa altura não tínhamos

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ganho nenhuma medalha ainda nos Jogos. (…) Soube disso
porque falava com os meus pais todos os dias e eles disseram-
me: “Olha, compra o jornal porque saiu uma notícia a dizer:
‘Lenine, uma das esperanças’” (…), e senti um bocado de
pressão nessa altura. Se bem que os meus amigos diziam:
“Vais conseguir ganhar, vais ganhar uma medalha”. Sabia
bem esse apoio… mas não aliviava em nada a pressão que
estava a sentir. (…) Depois… não é bem ter dever com essas
pessoas porque eu podia chegar lá e podia-me lesionar, mas eu
gostava de lhes dar essa alegria. Gostava de dar isso aos meus
pais, ao meu treinador, aos meus amigos e aos portugueses…
Gostava de mostrar-lhes que o Lenine está cá para lutar por
eles também! (…) E lembro-me que dois dias antes fui treinar e
tudo me corria mal, mas eu sentia-me bem… eram os nervos…
não sei. Entretanto, fui para a prova, comecei o aquecimento
e estava nervoso à “brava”! Lembro-me de estar a correr com
os “phones” e estar a pensar naquela gente toda que vai lá ao
estádio e que me estava a ver… Depois sentir aquele frio na
barriga, a sério que foi difícil de gerir, mesmo com os anos
de experiência que tenho. Fiz o aquecimento e na despedida
para a câmara de chamada, com o meu treinador, vieram-
me as lágrimas aos olhos e eu disse: “Seja o que Deus quiser,
vou fazer o meu melhor”. (…) Eram seis e meia e o estádio
ainda estava a começar a encher. Entrei lá dentro, comecei
a olhar à volta e pensei: “Vamos concentrar, Lenine, porque
este é o teu momento”. Comecei a descontrair mais e a tentar
libertar ao máximo. Mas no aquecimento estava-me a dar
tudo nulo, eu bem que puxava para trás, mas dava-me tudo
mal. Nessas provas ganhas mais velocidade por estares ali com
a confiança toda e é normal que a corrida dê sempre um pé a
mais. Mas mesmo começando mais atrás, nesse dia, estava-me
a dar sempre nulo…. Nessa fase vieram muitos pensamentos
à minha cabeça: “Será que eu vou ganhar medalha?” Os
treinos não tinham corrido bem, mas uma pessoa que treinou
para aquilo, que se sente bem fisicamente só pensa nisso. Só
pensava: “Eu quero muito ganhar a medalha, gostava muito
de ganhar a medalha”. Sabia que havia uma chance e eu
queria era uma medalha, não queria saber a cor sequer.
(…) Na apresentação, nós estávamos todos em fila antes
de começar a prova e eu era o penúltimo a saltar. Estava
a decorrer uma prova de fundo e, entretanto, um atleta inglês
ganha e nós estávamos em fila virados para o público… com
o público já ali. Nem ferros tem a separar… E eles começam
a gritar… uma coisa completamente arrepiante, mas que me
deu uma “pica” imensa para a prova [sorriso].

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O nervosismo, sentido e alimentado pela pressão social que
lhe era incutida através dos meios de comunicação social e dos
elementos da comitiva portuguesa em Londres, tornou os episódios
que precederam a competição marcantes. Esses acontecimentos
elevaram o próprio sentido de responsabilidade de Lenine, para
quem, corresponder às expectativas daqueles que lhe eram mais
significativos, se constituía como um objetivo primordial.
O primeiro salto realizado pelo atleta na prova garantiu-lhe
a medalha de bronze em Londres e permitiu-lhe viver um dos
momentos mais importantes da sua vida. A emoção e o entusiasmo
com que narra a conquista do bronze transparecem na entoação
de cada uma das palavras, no sorriso sempre presente na sua face
e nas lágrimas que surgiram no seu rosto.
Só de recordar o momento da prova já estou a ficar arrepiado
[emocionado]. Lá em baixo ouve-se muito o público! Só me
lembro de estarmos todos em fila e as pessoas a gritarem com
as bandeiras todas em pé e nós a olharmos uns para os outros
a sorrir porque o ambiente era incrível! Era um barulho
insuportável! Comecei a chorar por ver a motivação do
público… Entretanto, ainda fiquei mais nervoso. Começaram
a apresentar os atletas e quando foi a minha vez senti o meu
coração “tum tum tum”. Aí tentei agarrar o público porque
gosto de confusão, gosto de barulho. Há pessoas que não se
dão bem com isso, mas eu dou-me muito bem. Tentei agarrar o
público, fiz logo uns corações com as mãos voltadas para eles,
porque sei que tens de ser simpático se queres o apoio deles…
Entretanto, saltam todos os atletas. O espanhol fez nulo no
primeiro salto, o croata faz logo 7 metros, o polaco fez 6,20
metros (…) e eles saltaram todos primeiro do que eu. Eu era o
penúltimo a saltar. Começa a chegar a minha vez e a cabeça
parece que começa a ver a medalha (…). Quando começa a
chegar à minha altura o coração dispara completamente…
Ponho-me na minha zona de corrida… puxei meio passo para
trás e estava-me a dar aquela pica toda… Aí, quando me virei
para frente, estava a minha imagem no ecrã, eu estava a ser
filmado naquela altura. Começo a pedir palmas ao público e a
mim bastou-me 3 ou 4 palmas e… a sério… foi o estádio todo a
apoiar-me, foi incrível! Lembro-me de respirar fundo e lá vou
eu. Só sei que quando acabo de saltar ouço assim “OHHHH”...
Eu tenho a mania de acabar de saltar e espreitar para ver
onde é que ficou, mas dessa vez nem olhei para trás e vim-
me embora, nem quis ver. Não tinha dado nulo pelo menos,
mas não fazia ideia que o salto tinha sito ótimo. Claro que
eu depois olhei para o público para agradecer, bati palmas
para mostrar também o carinho que senti da parte deles.

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Entretanto, sai a marca no monitor, de 6,95, e eu fiquei…
nem sei explicar… Vou para a beira do meu treinador na
bancada e digo: “Não acredito!” Comecei a ficar nervoso
com aquela mistura de sentimentos. O meu treinador deu-me
apoio, a minha fisioterapeuta chorava e a mim vieram-me as
lágrimas aos olhos. Não contava nada com aquela marca logo
no primeiro salto. Estava tudo a correr-me mal antes… E eu
sabia que com aquela marca era quase certo, eu sabia: “Isto é
medalha!”. E depois eu sentia-me tão bem que só arrisquei nos
saltos seguintes. Então o segundo salto foi nulo, mas era para
7,10... E nesse salto eu posso dizer que senti que voei… esse
daria o ouro. Não consegui, mas foi muito bom mesmo assim.
Em nível motivacional, Lenine manifesta a imensa gratidão
pelo apoio do público, destacando o seu papel fundamental. A
relevância desse elemento foi enaltecida, não apenas durante as
provas, como também nas diversas mensagens de reconhecimento
recebidas através das redes sociais.
Para o atleta, a conquista da medalha de bronze foi vivida
e festejada como se de ouro se tratasse. Embora o lugar ocupado
não fosse o mais elevado no pódio da competição, para Lenine o
feito alcançado no seu pódio pessoal e na vida foi, sem dúvida,
o mais elevado que algum dia poderia ter obtido. O seu sonho
finalmente concretizou-se e os momentos posteriores à vitória
foram relatados como se de uma conquista titânica se tratasse.
Depois da prova recebi comentários no “Facebook” de ingleses
que foram lá ver a prova a dizer que tinha sido um espetáculo
e que o Lenine tinha sido um espetáculo dentro do espetáculo.
Porque eu sei que chamo pelo público e eu, depois do primeiro
salto, comecei-me a divertir. Comecei-me a rir, comecei a dizer
adeus ao público, ainda cheguei a dar um autógrafo no meio
da prova na bancada [risos]. (…) E o público agarrou-se a
mim mesmo. E eu fiz uma festa depois quando acabou…
Quando fiz o último salto, fiquei à beira do meu treinador na
bancada, ele deu-me a bandeira e só me lembro que comecei
a chorar no meio da pista de cócaras. Entretanto, eu dou-me
muito bem com o atleta espanhol, é um grande amigo meu,
já treinámos juntos várias vezes. Ele acabou de saltar e eu
só me lembro de dizer-lhe: “Vai buscar a bandeira”. E fomos
dar a volta ao estádio. Isso era algo que sempre quis fazer.
Antes da prova já pensava: “Eu, se ganhar uma medalha, vou
dar a volta ao estádio!” Porque doze anos depois eu tinha de
aproveitar aquilo tudo! (…) Eu tinha de aproveitar aquilo
que não aproveitei em 2004 e em 2008, até porque pode ser a
minha última medalha nos Paralímpicos.

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A consagração do herói
A experiência da subida ao pódio foi marcante para Lenine.
Nessa fase da entrevista, seu discurso tornou-se mais pausado
devido à forte emoção associada às recordações do evento, e as
lágrimas surgiram no seu rosto muito naturalmente.
Entretanto, foi a hora da cerimónia [hesitação]. Desculpa…
Eu quando recordo isto ou quando vejo a cerimónia no
vídeo começo a chorar, completamente [lágrimas nos olhos].
A cerimónia (…) aí é que senti o carinho do público, aí sim.
Eu subi ao pódio e disseram: “O representante de Portugal a
ser imposto, Lenine Cunha” e eu estava a tremer por todos os
lados…. Entretanto, recebo a medalha, faço assim [faz um
coração com as mãos que é a sua imagem de marca] para
a câmera e aí o público dá um berro enorme… porque as
provas param todas quando é a cerimónia e está a dar no
ecrã. Quando fiz isso o estádio veio abaixo, eles gritaram
tanto que, aí sim, comecei a chorar… não aguentei. Comecei
a chorar, pus as mãos na cara para tentar esconder, mas eu
estava sufocado com tanta emoção e com tantos sentimentos
que iam cá dentro. Só eu sei o que passei e sofri para conseguir
chegar ali... E não quero falar mais porque a emoção não
deixa (…) depois eu quero-me exprimir e não há sentimentos,
não consigo exprimir aquilo porque foi tão bom [muito
emocionado, chora].
À saída do estádio paralímpico, as emoções fortes
continuaram. O reconhecimento de que tanto sentiu falta
durante os anos em que se viu impedido de participar nos
Jogos Paralímpicos foi, enfim, reconquistado pelo atleta.
A experiência do pódio estendeu-se para além da cerimônia
de entrega das medalhas e prosseguiu no seu regresso à
aldeia paralímpica.
Quando cheguei cá fora foi tudo a pegar em mim ao colo
(…) eu fui no autocarro até à aldeia com a medalha ao
pescoço e, entretanto, chegámos à cantina e vieram dar-
me os parabéns! Começaram a chover mensagens! Já tinha
30 mensagens porque havia gente que tinha visto a minha
prova em direto na internet. Quando cheguei ao quarto, fui ao
meu “Facebook” e tinha 600 e tal notificações [risos]. Depois,
eram os telefonemas…. Mas antes disso, quando cheguei cá
fora, liguei para os meus pais e aí é que foi mais marcante
para mim. O meu pai é muito difícil de chorar e (…) [o atleta
começa a chorar, muito emocionado]. Desculpa… Ele sabia
que eu tinha sonhado tanto com aquilo… E depois eu, quando

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saí da prova, tinha dito que esta medalha era dedicada à
minha falecida irmã, aos meus pais, aos meus amigos e a
todos aqueles que me apoiaram e ao meu treinador também,
claro. Foi uma vitória muito especial para mim, mas também
para todos aqueles que me rodeiam, daí ter sido tão sofrida
e tão emocionada. (…) Na realidade, eles sabiam que o meu
sonho era ganhar uma medalha paralímpica, e doze anos
depois o sonho tornou-se realidade.
Nesse momento do percurso de Lenine, o reconhecimento
do seu valor foi uma das melhores recompensas face ao esforço
empregado até então. Depois de passar anos a conquistar
medalhas em competições internacionais sem ser noticiado, a
obtenção da medalha de bronze nos Jogos Paralímpicos revelou-
se primordial na notoriedade alcançada pelo atleta.
Quando chegámos ao aeroporto… o voo já vinha atrasado e eu
queria era chegar cá fora, dar as entrevistas e ir, porque ainda
tínhamos de vir de carro para o Porto. Mas eu, quando saio cá
fora… eu e o Macedo [atletas medalhados]... foi uma loucura!
Quando entrámos, o público começou a gritar e viraram-se as
câmeras para nós. Começaram a fazer perguntas e eu tinha
dito em 2000 que o meu sonho era ganhar uma medalha
paralímpica e o sonho realizou-se doze anos depois. Quando
cheguei ao Porto, estavam os meus pais, a família, os vizinhos…
todos a darem beijinhos e abraços… Depois, na rua, e até
mesmo no shopping, houve pessoas que me reconheceram e me
deram os parabéns. Foi tudo muito gratificante. E depois foram
as entrevistas todas… Senti que finalmente fui reconhecido e
que tive visibilidade. Entretanto, saíram os nomeados para a
gala do desporto e eu fui nomeado com o Cristiano Ronaldo.
Em quarenta e tal atletas, ficar no grupo de finalistas foi
ótimo. Senti que tive visibilidade e isso deu-me motivação para
continuar. (…) Quando eu ia a competições internacionais,
às vezes saía qualquer notícia pequenina no jornal, mas
não estava ninguém no aeroporto como está quando vêm os
atletas “normais” de uma competição. Eu às vezes vinha de
competições com tantas medalhas (…) era um feito! Cheguei a
vir com 8 medalhas, 7 de ouro e uma de prata, por exemplo.
Nessa competição bati o recorde do mundo em duas provas,
no pentatlo e no triplo-salto, ganhei o troféu de melhor atleta
dos Campeonatos, mas cheguei cá e continuei a treinar como
se nada fosse. Só em 2005 é que recebi, pelo presidente da
Câmara de Gaia, a medalha de mérito da cidade. É um prémio
que só se ganha uma vez na vida e foi gratificante, mas nada
como foi agora nos Jogos.

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Facilmente se depreende a relevância atribuída pelo atleta à
visibilidade dos seus feitos desportivos. É importante que a mídia
assuma um papel mais ativo na difusão dos resultados obtidos
por esses atletas, não apenas durante os Jogos Paralímpicos, mas,
fundamentalmente, no decorrer dos quatro anos de preparação
realizada ao mais elevado nível.

As batalhas de um campeão
O trilho percorrido por Lenine foi pautado por diversos
obstáculos. Além das adversidades referidas, como a falta de
apoio, a escassez de reconhecimento e a desmotivação associada
ao afastamento dos atletas com deficiência intelectual das
competições organizadas pelo IPC, nem sempre a intensidade e
volume de treino realizado pelo atleta foram fáceis de tolerar.
Treinar para a multiplicidade de provas em que compete revelou-
se uma tarefa complexa, mas também essencial para manter a
motivação elevada. Nesse contexto, a conquista de um número
elevado de medalhas por competição surge como um prémio
superior que Lenine sempre ambicionou conquistar e que está
relacionado com a sua própria personalidade.
Partindo do conhecimento adquirido no decorrer da sua
carreira, Lenine partilhou a sua perspectiva sobre a conjuntura
atual do desporto para pessoas com deficiência em Portugal.
Para ele, é fundamental que esse tipo de prática desportiva
assuma uma maior visibilidade em contexto nacional, através
de uma efetiva divulgação e informação da sociedade em geral.
Concomitantemente, o atleta atribui um papel primordial ao
CPP, entidade que deverá liderar um trabalho sério e refletido,
orientado para a seleção de talentos, uma vez que é evidente a
elevada média de idades dos atletas paralímpicos portugueses
que ainda competem no desporto de elite. Nessa conformidade,
destaca as escolas como contexto privilegiado e primário de
intervenção e realça a necessidade de as estruturas organizativas
atuarem no sentido da aproximação das condições proporcionadas
a atletas olímpicos e paralímpicos. Para Lenine, este representa o
único meio viável para a manutenção dos atletas paralímpicos
portugueses em lugares cimeiros.
Primeiro, eu acho que não há visibilidade que chegue porque
há muitos miúdos com deficiência, seja ela qual for, que não
sabem onde é que se pode praticar desporto paralímpico. E
acho que o Comité Paralímpico (…) devia investir nas escolas.

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Ir às escolas e dar palestras. Falar um bocadinho do que
são os Jogos Paralímpicos e do que é o desporto adaptado…
para chamar jovens. Ir às escolas primárias, secundárias,
preparatórias, procurar pessoas com deficiência que talvez
estejam interessadas em praticar qualquer desporto seria
essencial. Falta maior divulgação nessa área. Este ano foram
comigo a Londres atletas que agora têm quase 40 anos e temos
de renovar a equipa. Também a questão das bolsas. O que
nós ganhamos não chega para nada (…) Se os olímpicos
ganham o triplo de nós e eles já se queixam, o que faremos
nós? Eu, com o valor de uma bolsa olímpica, treinava de
manhã e à tarde e já não precisava trabalhar. (…) Portugal,
se quer trazer medalhas no futuro, tem de apostar mais no
desporto paralímpico. Porque os outros países estão a apostar
nisso. A minha primeira competição foi em 2000, em termos
paralímpicos, e eu vejo uma diferença brutal nos últimos doze
anos, brutal! O nível competitivo é muito maior e hoje em dia
o desporto paralímpico é muito mais competitivo.

Os mais significativos
Refletindo no seu percurso, Lenine enaltece os pais e o
treinador como as pessoas que mais o marcaram nas suas proezas
desportivas. No que se refere aos pais, o atleta destaca a sua
educação. Apesar das suas limitações cognitivas, os pais de
Lenine sempre atuaram no sentido do desenvolvimento da sua
autonomia e nunca o impediram de aproveitar as oportunidades
que lhe foram surgindo ao longo da vida.
Os meus pais desde os 12/13 anos, sabendo o problema que
eu tinha, sempre me prepararam para o que vinha a seguir.
Eles já estavam a pensar no meu futuro e trabalharam para
que eu fosse o mais autónomo possível. Às vezes as pessoas
perguntam-me qual é a minha deficiência porque eu sei falar
bem, mas foi derivado à educação que eu tive em que os meus
pais tentaram compensar as minhas dificuldades. (…) Estou
muito agradecido porque se não fossem eles não tinha a vida
que tenho hoje... (…) Depois, quando surgiu o convite de ir
para a ANDDI, os meus pais aceitaram de bom grado porque
sabiam o problema que eu tinha. Mas há alguns pais que não
aceitam, e eles podiam ter-me impedido. (…) Então, quando
eu lhes disse que ia representar Portugal aos Jogos, eles
apoiaram-me ainda mais. (…) Os meus pais acompanhavam-
me muito, foram ver algumas provas minhas e apoiaram-me
imenso. (…) Tudo o que tenho hoje e tudo o que ganhei é
devido à motivação que eles me deram também.

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Também o treinador é referido como significativo na sua
caminhada desportiva. O fato de ser orientado há catorze anos
pelo mesmo treinador fortaleceu a cumplicidade e a amizade
existentes entre ambos e que se estende para além da pista
de atletismo.
Sem dúvida o meu treinador. Foi ele que me aturou esses
anos todos. Nós somos cão e gato às vezes, mas a amizade
está sempre lá. Ele também sabe o atleta que tem, sabe as
dificuldades que eu passei e sei que posso contar com ele como
um amigo. Se não fosse ele, eu não era o Lenine que sou hoje,
não tinha ganho as medalhas que ganhei, principalmente a
deste ano, porque ele sempre acreditou que eu a ia ganhar.
(…) Sempre esteve lá, sempre disse que eu ia ganhar uma
medalha e fazer um grande feito. (…) Quem esteve lá sempre
foi o meu treinador e os meus pais, que me puseram a praticar
desporto. O meu treinador é muito importante por ter feito de
mim o atleta que sou hoje, e os meus pais, a pessoa que sou.

O porvir
Ao perspectivar o seu futuro desportivo, Lenine é
prudente. As suas capacidades já não correspondem ao pico
de forma atingido anos antes e a vontade de assumir diferentes
papéis sociais começa a manifestar-se, ainda que ligada ao meio
desportivo.
Daqui para frente quero ganhar medalhas e ter os olhos no Rio
de Janeiro. Ainda falta muito, mas é agora que se começa a
trabalhar para isso. Estou apurado automaticamente porque
fui medalhado. (…) Eu gostava de ganhar uma medalha e
gostava de acabar em grande, mas vai ser difícil. Vão começar
a aparecer atletas mais jovens agora… A competição está
muito mais forte e isso se vê pelos resultados das medalhas que
Portugal tem trazido. (…) Depois vamos ver… um ano antes
eu faço as contas. (…) Eu fiz um balanço, para entregar ao
Banif, do que ganhei em quatro anos… e foram 51 medalhas
internacionais. Hoje não vou dizer que vou ganhar isso outra
vez, mas acho que vou pôr um limite de 40. (…) Também
há provas que eu vou deixar de fazer porque a idade já não
perdoa e já não tenho aquela resistência de correr para um
lado e para o outro como na minha juventude. (…) Depois,
eu gostava muito de trabalhar em algo ligado ao desporto.
(…) Por exemplo, se fosse ali no estádio onde eu treino era
ótimo. Nem que seja para recepcionista ou até mesmo para

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segurança, não sei. (…) Depois dos Jogos do Rio de Janeiro,
como tenho o curso de grau 1, gostava de ser treinador. (…)
Estou a pensar também em voltar a estudar. Para mim vai
ser difícil, mas vou tentar. Ou então gostava de dar aulas aos
miúdos na escola primária, ensiná-los a correr e a viver para
o desporto como sempre fiz.

Eu sou o desporto
Da história de Lenine emana o ideal olímpico e, também,
paralímpico: “citius, altius, fortius”. Um desportista nato, que vive
a competição ao limite e que se supera a cada instante para se
revelar o melhor de todos os atletas. É alguém que “ama” o desporto
e que por isso se entrega para o experienciar profundamente. No
palco desportivo, Lenine gosta de assumir o protagonismo nas
provas, representa o papel principal como se fosse sempre seu e
de forma gloriosa. Tal como um autêntico guerreiro faz quando
enfrenta uma batalha, Lenine domina a cena desportiva.
O seu dinamismo, a ambição, a força de vontade e o espírito
competitivo que fazem parte da sua própria identidade, levaram-
no à conquista do mérito desportivo que hoje lhe reconhecemos
e em que as 153 medalhas internacionais conquistadas à data da
entrevista falam por si só.
Sou muito ambicioso. Como atleta tenho muita garra, muita
garra… Acho que basta ver pelos anos em que lutei para não
desistir e pela minha determinação. Quando estou determinado
a conseguir uma coisa vou até ao fim e às vezes até excedo as
expectativas, às vezes até fico admirado comigo mesmo… Por
isso acho que foi a minha ambição, determinação, paixão e
garra que me levaram bem alto. Mas, acima de tudo, tenho
muito espírito competitivo. (…) E nas provas eu tenho de sofrer
até ao fim; mesmo que doa, eu tenho de sofrer até ao fim. É esse
o meu espírito competitivo.
O desporto assume, então, uma função vital na vida do
atleta, sendo enaltecido diversas vezes:
O desporto é o que eu gosto, é a minha vida. Às vezes a
motivação de que precisava para continuar vinha daí. Porque
eu gosto disto, eu amo isto! Não sei mais nada, eu só sei fazer
isto. (…) Uma vez perguntaram-me assim: “Se não tivesses o
ataque de meningite como é que seria?” E eu não posso dar
graças a Deus, mas às vezes penso que se não fosse o ataque de
meningite eu não tinha ganho as medalhas que ganhei nem

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ninguém conhecia o Lenine. (…) Mas confesso que já pensei
várias vezes em desistir, principalmente depois de sabermos
que não íamos aos Jogos em 2004 e 2008. Mas eu amo isto e
não consigo desistir. Eu não sei como é que vai ser a minha
vida quando acabar a minha carreira no desporto… Não sei
como é que vou reagir, nem quero pensar sobre isso. Tenho
muito receio, porque acho que não vou conseguir viver.

Conclusão
Para Lenine Cunha, o desporto assume um significado
primordial, sendo relevante pelas experiências vividas nesse
contexto desportivo, mas também pelas marcas visíveis deixadas
na construção da sua identidade: uma identidade atlética.
A experiência vivida no imaginário paralímpico revestiu-se
de significado, sendo destacadas na narrativa do atleta, através de
episódios marcantes, histórias de superação e de transcendência.
No seu percurso desportivo salientam-se a iniciação precoce no
desporto regular e, mais tarde, no desporto para pessoas com
deficiência; a rápida ascensão ao desporto de elite; a longa
carreira edificada na alta competição e a excelência dos seus
resultados de alto nível. Um trajeto que se distingue pelo elevado
comprometimento com a prática desportiva, pelo sucesso e pelo
reconhecimento social, mas também por inúmeros obstáculos.
Como um verdadeiro ser dotado de transcendência, Lenine foi
superando cada barreira que colocavam no seu caminho e tornou-
se o atleta português mais medalhado de sempre. Através dos seus
resultados de excelência foi ganhando notoriedade e visibilidade,
conquista que partilha com os seus “mais significativos”.
Na sua narrativa é ainda exposto um contexto desportivo
nacional adverso, onde se reclama maior apoio e se impõem
amplas e profundas transformações no sentido de impulsionar
o desporto paralímpico e valorizar o atleta paralímpico nacional. A
história de Lenine mostra-nos a necessidade de profissionalização
do atleta paralímpico, considerando-a como fator crucial para o
êxito desportivo, a par com o comprometimento e a dedicação
exclusiva ao desporto. Percebemos o mesmo noutros atletas
paralímpicos portugueses que entrevistámos num estudo mais
amplo e representativo da realidade nacional e do qual Lenine
também faz parte.

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A onipresença de João
Havelange no esporte
Sérgio Settani Giglio
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Introdução
Em 2014 a Federação Internacional de Futebol (FIFA)
completou 110 anos de existência. Com mais filiados do que
a Organização das Nações Unidas (ONU)1, a FIFA, apesar das
recentes acusações de corrupção, apresenta-se como uma
entidade sólida e de grande influência no mundo esportivo.
Ao longo desse tempo, oito presidentes ocuparam o posto de
mandatários do futebol mundial, sendo que apenas um deles
não era da Europa ocidental. O único presidente de “fora” foi o
brasileiro de descendência belga Jean-Marie Faustin Goedefroid
de Havelange ou apenas João Havelange.
Mas qual brasileiro Havelange representa? Descendente
de europeus, de família aristocrática e que falava várias línguas,
atributos que o colocavam em um determinado lugar dentro
da sociedade brasileira. Os postos administrativos que ocupou
fizeram com que outros dois elementos de distinção, a vestimenta
(uso de terno) e a alimentação (comidas elaboradas e restaurantes
finos) reforçassem que Havelange não era um brasileiro comum
(ROCHA, 2013a) exatamente por se afastar das características de
muitos brasileiros. Enfim, tinha uma série de capitais culturais
que o colocavam no metiê esportivo. Portanto, Havelange possuía
o capital simbólico para traçar sua trajetória dentro do campo
esportivo (BOURDIEU, 1983), que fora construída, especialmente,
com a conquista do tricampeonato mundial de 1970 quando
era presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD).
E graças a esse capital simbólico, construído ao longo de sua
trajetória, ele não era apenas um brasileiro tentando o posto de
presidente da FIFA2.

A FIFA possui 209 países filiados, enquanto a ONU tem 193. Disponível em
1

http://pt.fifa.com/aboutfifa/organisation/associations.html;
http://www.onu.org.br/conheca-a-onu/paises-membros/ – Acesso em: 5 jul. 2014.
Agradeço a esses apontamentos feitos pelo professor doutor José Paulo Florenzano
2

na defesa do doutorado.

165

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Não bastasse ser o “único” no rol do seleto grupo de
presidentes da FIFA, foi o segundo que mais tempo ficou no
poder, perdendo apenas para o fundador Jules Rimet (que ficou
33 anos, enquanto Havelange permaneceu por 24 anos). Portanto,
a trajetória de João Havelange no mundo esportivo necessita ser
investigada. Exatamente por ter ocupado uma série de cargos no
campo esportivo brasileiro e o maior posto do mundo do futebol
profissional, Wisnik (2008, p. 331) refere-se a Havelange como o
“cartola dos cartolas”. Essa referência é construída exatamente
porque “a figura de Havelange é conhecida por incorporar nela
os traços singulares e as características paradigmáticas do que se
espera de como deve agir um dirigente” (ROCHA, 2013b, p. 84).
A proposta desse texto é discutir a sua trajetória tendo
como foco a “memória viva” do esporte. Para isso, utilizo uma
entrevista feita com João Havelange no início de 2012 no Rio de
Janeiro3. Foram dois encontros realizados em dias consecutivos,
totalizando 3h30 de entrevista, mais uma hora e meia de almoço
em uma conversa informal.
Como forma de dialogar com a sua história, tendo claro
que o entrevistado conta a sua verdade (BOSI, 2003), trouxe
outras fontes – livros, artigos e jornais – para compor um mosaico
da trajetória de Havelange, sem pretender, com isso, estabelecer
verdades e mentiras sobre o que tenha contado. Pelo contrário, a
utilização de várias fontes é uma forma de analisar o mesmo fato
por diversos ângulos. Na primeira parte do texto apresento os
elementos da entrevista para, depois, na segunda parte, discutir
e analisar os pontos levantados a partir da história de Havelange,
mesclando as diferentes fontes.
Portanto, analiso como a imagem de Havelange, na
qualidade de figura pública, fez com que certos discursos se
solidificassem em detrimento de outros. Além disso, por meio
de suas representações – entendidas no sentido trabalhado
por Chartier (1988) de que não são neutras, pelo fato de terem
sido construídas, o que faz com que sejam determinadas pelos
grupos que as produzem – foi possível entender como, de fato,
Havelange e sua equipe foram ágeis ao definir as estratégias
políticas adotadas para ser manter no poder durante tanto tempo.

A entrevista foi realizada para o projeto de pesquisa coordenado pela professora


3

doutora Katia Rubio, intitulado “Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos”.


A entrevista foi conduzida pela professora Katia Rubio e por mim.

166

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Frente a frente com João Havelange
Após muitos anos de tentativas sem sucesso, e entendendo
como funciona o jogo de relações do alto escalão da política e do
esporte brasileiro, a professora Katia Rubio conseguiu agendar, por
meio de um amigo em comum, uma entrevista com João Havelange.
Ele foi atleta olímpico da natação em 1936 e do polo aquático em 1952.
Seguimos para o Rio de Janeiro, eu e a professora Katia
Rubio, para realizarmos uma série de entrevistas naquela semana
em que lá permanecemos. Entre elas, estava a entrevista de João
Havelange, que, para o meu doutorado, em que discuti a relação
de oposição entre o COI e a FIFA em relação ao futebol olímpico
(GIGLIO, 2013), muito me interessava ouvi-lo falar sobre o esporte
brasileiro e o tempo em que ficou na presidência da FIFA.
Pela experiência acumulada ao longo do projeto “Memórias
Olímpicas por Atletas Olímpicos”, deduzi que o horário agendado
para a entrevista (11h), especialmente pelo fato de ser um senhor
de idade e estar perto do horário do almoço, seria um sinal de
que talvez não quisesse falar, sobretudo por ter chegado com
uma hora de atraso. De imediato vieram as desculpas justificadas
por uma série de desencontros em sua rotina diária, que se inicia
sempre com o nado de 1.500 metros e fisioterapia.
Como a professora Katia Rubio foi o contato inicial,
Havelange centrou nela a sua narrativa. Esse fato também se fez
presente em outras entrevistas e, assim como aconteceu com
Havelange, isso não impediu que outros entrevistadores pudessem
interagir. Sem se importar com o horário, falou sem parar durante
uma hora e meia e interrompeu sua narrativa apenas para nos
convidar a almoçar com ele. A conversa se prolongou de modo
informal na churrascaria localizada no Aterro do Flamengo. Ao
final do almoço fomos surpreendidos com outro convite, para
continuar a conversa no dia seguinte no Country Club, um clube
inglês localizado em Ipanema.
Havelange nos contou sua história de vida e por ser uma
figura pública foi requisitado inúmeras vezes a contá-la. Tanto
é que as histórias que nos contou também aparecem – e não
poderia ser diferente – em outras fontes, tais como um especial
publicado pela Folha de S. Paulo em 19984, em sua biografia

Muito do que falou na entrevista também foi contado por Havelange para o
4

jornal Folha de S. Paulo em um caderno especial por ocasião da Copa de 1998


quando estava prestes a deixar a presidência da FIFA. Consultar: “Era Havelange
– Especial Copa 98”. Folha de S. Paulo, 8 de junho de 1998, p. 1-12.

167

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oficial (PEREIRA e VIEIRA, 2011) e na biografia não autorizada
(RODRIGUES, 2007), além do documentário “Conversa com JH”,
do diretor Ernesto Rodrigues (2013), que é fruto do livro que trata
da sua biografia não autorizada. Desse modo, pôde reelaborar
constantemente os fatos vividos fazendo com que as mesmas
histórias fossem contadas. Em suma, nesse processo de contar
e recontar a sua história, estabeleceu fatos que poderiam ser
contados e, portanto, se tornaram fatos públicos, enquanto outras
experiências foram relegadas ao esquecimento por terem ficado
restritas ao ambiente privado.
Ao trazer a sua versão dos fatos e de sua história, conforme
já dito, Havelange contou a sua verdade (BOSI, 2003). Por possuir
uma intensa vida pública desde a época em que assumiu como
diretor de polo aquático do Botafogo em 1937, passando depois
a presidente da Federação Paulista de Natação de 1949 a 19515,
presidente da Federação Metropolitana de Natação em 19526, vice-
presidente da CBD em 19567 e, finalmente, presidente da CBD
em 19588, sua história se confunde à do esporte brasileiro. Por
esse motivo, em sua narrativa está presente aquilo que Halbwachs
denominou de “quadro social da memória”. De acordo com
Halbwachs (2006), sempre nos relacionamos com duas memórias:
a nossa, que é individual, e a coletiva, que é construída a partir da
relação com a sociedade.
Em suma, por conta dessa relação, afirma o autor, essa
memória está conectada a uma memória histórica. Seguindo
essa linha, Pollak (1992) sustenta que existem três elementos
constituintes da memória: os acontecimentos, as pessoas e os
lugares. E podemos interseccionar esses três aspectos apontados
por Pollak com a memória histórica, afinal, estarão presentes nela.
A narrativa de Havelange pode ser analisada a partir do
quadro social da memória proposto por Halbwachs, inclusive
como forma de perceber a onipresença do dirigente em vários
aspectos do esporte nacional e mundial, bem como de sua
relação com a política e os políticos brasileiros e estrangeiros.

5
Em carta ao sócio, cita a existência de caixa dois em sua empresa.
“Natação. O novo presidente da F. M. N.”. O Estado de S. Paulo, 5 de março
6

de 1952, p. 11
“Eleito o vice-presidente da C. B. D.”. O Estado de S. Paulo, 20 de dezembro
7

de 1956, p. 20.
“A Posse dos Novos Diretores da C. B. D.”. O Estado de S. Paulo, 16 de janeiro
8

de 1958, p. 14.

168

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Desse modo, muitas de suas lembranças são fruto daquilo que se
sobrepôs, enquanto imagem, do que ele viveu, pelo simples fato
de que o exercício de relembrar é feito a partir do presente.
Se o que vemos hoje toma lugar no quadro de referências de
nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças
se adaptam ao conjunto de nossas percepções do presente. É
como se estivéssemos diante de muitos testemunhos. Podemos
reconstruir um conjunto de lembranças de maneira a
reconhecê-lo porque eles concordam no essencial, apesar de
certas divergências (HALBWACHS, 2006, p. 29).
A dificuldade em relembrar alguns fatos ou a predileção do
entrevistado em explorar outros aspectos de sua trajetória de vida
que não tanto de suas participações olímpicas também aconteceu
com Havelange ao privilegiar a narrativa dos fatos relativos ao
período em que foi presidente da FIFA. Ao menos enquanto
detalhamento das informações, sua narrativa pode ser entendida
nas palavras de Halbwachs (2006, p. 34-35): “Entre esses fatos, os
que neles estavam envolvidos, em nós há uma descontinuidade,
não apenas porque o grupo no seio do qual nós os percebíamos
materialmente já não existe, mas porque não pensamos mais nele
e não temos nenhum meio de reconstruir sua imagem”.

Havelange no poder e o poder de Havelange


Antes de chegar à FIFA, Havelange tinha construído uma
carreira no âmbito esportivo. Se na sua adolescência fora atleta de
natação e futebol, este último vetado pelo seu pai, na fase adulta
assumiu uma série de cargos administrativos. Quando perguntado
como gostaria de ser lembrado, se como esportista ou o estadista
que fez a FIFA maior que a ONU, Havelange disse que queria “[...]
ser lembrado como administrador, que é o que eu sou”9. Toda
essa experiência acumulada e especialmente o tempo que ficou
à frente da CBD, ajudado com a visibilidade da conquista dos
três campeonatos mundiais de futebol, indicavam que Havelange
estava pronto para concorrer à presidência da FIFA. No entanto,
teria que enfrentar um forte rival: o inglês Stanley Rous.
A rivalidade entre Rous e Havelange foi fortemente
estabelecida quando houve a indicação de Havelange como

“Polêmica e bilionária, negociação sobre Copa de 2002 divide a Fifa. Era Havelange
9

– Especial Copa 98”. Folha de S. Paulo, 8 de junho de 1998, p. 9.

169

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candidato para a presidência da FIFA pela Confederação Sul-
Americana de Futebol. Segundo Rous, “havia um compromisso
entre nós dois. Havelange não se candidataria desta vez”10. O início
dos desentendimentos entre os dois é ilustrado por Havelange11:
Em 1966 eu tive uma maldade do Stanley Rous que eu ganhei
dele. Os ingleses é que mandavam. Então, a Copa do Mundo
foi na Inglaterra e eles não queriam que eu fosse tricampeão,
eu fui com a delegação, avisa, antes fui lá para ver hotel,
tudo, avisei que chegaria a Sochaux, e que a tal hora e de tal
maneira. Isso era a FIFA e a Federação local alemã, inglesa.
Me deixaram esperando duas horas no aeroporto e eu não
disse nada. Fui para o hotel e perguntei se podia ver onde
o time ia treinar, me disseram: “não, doutor Havelange”.
Trouxeram a chave e eu fui, mandei abrir tudo, tinha capim,
o campo tinha capim deste tamanho (indicando cerca de 1
metro de altura), esse foi o presente! Até cortar tudo, botar
em ordem, eu treinei dez dias no fundo do hotel, veja a
delicadeza. Bom, tive os três primeiros jogos, veja bem,
Portugal, Hungria e Bulgária, são três. Foram dois, quatro,
seis, três jogos, nove, dos nove, sete eram ingleses e dois eram
alemães. Voltei pra casa, me acabaram com o time. Foi o
presente, não disse nada. Antigamente, havia a despedida que
era feita na municipalidade. O prefeito me convidou, o time
vinha embora, e o Rous estava na porta, me estendeu a mão
e eu fiquei como estava, ele ficou me olhando, faz um exame
de consciência e você vai saber a razão, que ele tinha feito
comigo uma maldade e eu voltei.
Essa rivalidade foi apresentada pelo semanário francês
Nouvel Observateur a partir de uma oposição entre os candidatos
quando afirmou que a disputa seria entre “Stanley Rous, o
reacionário do futebol, contra Havelange, um progressista que
deseja modificar o esporte”12. Essa dualidade era representativa da
forma como cada candidato se posicionava em relação ao futebol.
Rous era visto como um conservador por não querer mudanças
no futebol, enquanto Havelange posicionava-se como uma pessoa
que ampliaria a ação do futebol no mundo todo.

“Um empresário no futebol”. O Estado de S. Paulo, 12 de junho de 1974, p. 20.


10

Texto de Teixeira Heizer.


Sempre que algum nome aparecer sem data e com uma citação, corresponderá
11

à fala do entrevistado.
“Os franceses já esperavam a derrota de Rous”. O Estado de S. Paulo, 12 de
12

junho de 1974, p. 21. Texto de Reali Júnior.

170

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Rous imaginava que poderia ser reeleito nas eleições da
FIFA em 1974, tendo como discurso a manutenção da tradição
conservadora da entidade, e via Havelange como uma ameaça à
manutenção dessa condição: “Não concordo com os métodos de
João Havelange e espero vencê-lo em Frankfurt para que ele não
coloque em prática seus planos que não acredito que sejam os
ideais para uma entidade como a FIFA”13
Durante muitos anos, Rous foi um defensor de uma tradição
futebolística que privilegiava a Europa em detrimento dos demais
continentes. Segundo Darby (2002, p. 48), essa hegemonia europeia
começou a ser ameaçada quando houve um aumento do número
de filiados da FIFA. Com essa expansão, independentemente
da tradição futebolística ou da qualidade dos jogadores, toda
associação membro tinha direito a voto. Foi muito atento a essa
configuração que Havelange, como um estrategista, percebeu que
os continentes africano e asiático estavam esquecidos na gestão
de Rous e sabia que principalmente a África, devido aos inúmeros
problemas que haviam tido com Rous, seria uma forte aliada à sua
campanha para chegar ao poder.
No entanto, a tática de Havelange de visitar todos os países
que votariam fez a diferença14. Segundo Darby (2002, p. 85), o
sucesso de Havelange foi reconhecer e entender as conexões entre
a política internacional e o esporte e, em seu caso específico, o
futebol, enquanto Rous, ao separar o esporte da política, acabava
por demonstrar uma visão conservadora. Quando Stanley Rous
foi derrotado por João Havelange nas eleições para a FIFA, assim
declarou: “Quero dar minhas congratulações a João Havelange.
Espero que a FIFA continue florescendo. Fiz tudo para desenvolver
o futebol, até ter uma triste manhã como esta”15.
Além do pequeno número de presidentes eleitos, a presença
maciça de europeus revela quem comandou e comanda o esporte
no mundo. Nessa estrutura esportiva, com o passar do tempo
os votos das regiões consideradas periféricas, tais como América
do Sul, África e Ásia, tornaram-se imprescindíveis para que um
presidente fosse eleito, conforme indica a manchete da Folha de
S. Paulo: “Voto africano decide hoje o sucessor de Havelange”16.

13
“O velho sir abandona sua tradicional fleuma: vai derrotar Havelange”. Folha de
S. Paulo, 9 de abril de 1974, p. 24.
14
“O Brasil ganhou a FIFA”. Folha de S. Paulo, 12 de junho de 1974, p. 17 – Esportes.
“A triste manhã de Stanley Rous”. O Estado de S. Paulo, 12 de junho de 1974, p. 20.
15

“Voto africano decide hoje o sucessor de Havelange”. Folha de S. Paulo, 8 de junho


16

de 1998, p. 6 – Esportes.

171

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Anos antes, em 1972, as mudanças na estrutura da FIFA já podiam
ser vistas no lugar ocupado pelos continentes africano e asiático:
“os afro-asiáticos, contudo, possuem quase a metade dos votos da
FIFA e podem assim fazer impor sua presença agora, mais do que
no passado”17.
De acordo com Darby (2002, p. 43), durante os anos 1950-
1960 havia um domínio europeu na FIFA canalizado por meio
do seu presidente, Stanley Rous. Em sua análise, essa hegemonia
europeia foi enfraquecida com a eleição de Havelange em 1974,
e a perda de poder dos europeus se materializou com uma
resistência à democratização e à globalização do futebol. Nesse
contexto, o continente africano teve um papel importante nesse
processo, pois foi com o apoio da África que Havelange venceu
Rous na disputa pela presidência da FIFA.
Até aquele momento, em 1974, Rous detinha o segundo
maior tempo de presidência da entidade (13 anos) ficando atrás
apenas do francês Jules Rimet. Por seu trabalho a favor dos Jogos
Olímpicos de Londres, em 1948, recebeu o título de “Sir”. Antes
disso, havia sido árbitro com atuação internacional, além de ter
participado da redação das novas regras do futebol em 1938.
O site da FIFA destaca que em sua gestão a Copa do Mundo
transformou-se em um espetáculo televisivo, sendo transmitida
em cores a Copa de 1970.
Durante os primeiros 70 anos da FIFA, o poder esteve
concentrado nas mãos de dois presidentes franceses (35 anos) e
três ingleses (31 anos)18. O restante ficou dividido entre a ausência
de um presidente (1918 a 1921) e o curto mandato de um belga
(apenas um ano)19. Essa dominação europeia acabou quando João
Havelange foi eleito para assumir a presidência em 1974.
Havelange foi o sétimo presidente da FIFA20 e o primeiro
não europeu a dirigir a entidade. Porém, antes de chegar à
presidência da FIFA, Havelange presidiu a CBD:

“Rous com medo dos rebeldes”. Folha de S. Paulo, 20 de agosto de 1972, p. 57


17

– Esportes.
Os presidentes franceses foram Robert Guérin (1904-1906) e Jules Rimet (1921-
18

1954) e os ingleses foram Daniel Burley Woolfall (1906-1918), Arthur Drewry


(1955-1961) e Stanley Rous (1961-1974).
O belga Rodolphe William Seeldrayers ficou no cargo entre 1954-1955, ano em
19

que faleceu.
Perfil de Havelange no Boletim Olímpico. Consultar: Bulletin du Comité
20

International Olympique, n. 86, maio de 1964, p. 82-83. “Are our Members


Sportsmen?”.

172

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[...] foi de 1955 a 1974, não 1952, eu fui eleito vice-presidente
do Sylvio [Padilha] em 52 e depois assumi e fui até ir para
FIFA, em 1974. [...], eu lhe faço uma pergunta: quantas vezes
um presidente da República foi a um estádio? Não conhece.
Eu, quando estava na CBD, todos os anos, quando tinha o
futebol e mais 24 modalidades amadoras, eu ia quatro vezes
por ano a todos os estádios, a todas as federações. Assim que a
gente deveria dirigir o Brasil e na FIFA dos 178 eu só não fui
ao Afeganistão e o mínimo que eu fui foi 3 vezes [...].
Um ano antes de ser eleito presidente da FIFA, Havelange
acompanhou a solicitação de Maurício Toledo (ARENA),
deputado federal por São Paulo, para abertura da Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o prejuízo na CBD, que
vinha sendo causado pela campanha de Havelange ao posto de
presidente da FIFA21.
Embora presidindo a CBD por quase duas décadas,
Havelange diz que sofreu muitas críticas por não ter sido um
atleta do futebol, apesar de sua experiência nos juniores do
Fluminense. Segundo ele:
[...] recebi críticas muitos fortes do meu país quando eu assumi
porque eles diziam que eu era nadador e não entendia nada
de futebol, e eu disse a eles que amanhã eu posso ser presidente
de um banco, não entender nada, mas ter um diretor pra
cada coisa. No futebol tem o técnico, tem o supervisor, tem o
massagista, tem isso, tem aquilo, pronto.
Havelange não recebeu apenas críticas internas, sofreu
também pelo fato de ser um brasileiro no meio de europeus, e,
durante a entrevista, em vários momentos destacou tal dificuldade.
Apesar de ressaltar essa condição, já em 1975, após seu primeiro
ano no cargo de presidente, afirmou que era normal a Europa
ocupar uma posição prioritária dentro do mecanismo da FIFA22.
Seus 24 anos à frente do futebol mundial ficam somente atrás dos
33 anos que o francês Jules Rimet ocupou o cargo.
Dias antes da eleição da FIFA, o então presidente da UEFA,
o italiano Artemio Franchi, declarou que “[...] se o candidato
brasileiro derrotar Stanley Rous na eleição de terça-feira, os países
europeus poderão se desligar da FIFA e fundar uma federação
independente. Isso porque eles não podem imaginar a FIFA

21
“Era Havelange – Especial Copa 98”. Folha de S. Paulo, 8 de junho de 1998, p. 4.
Olympic Review, n. 95-96, setembro – outubro de 1975, p. 419. Fédération
22

Internationale de Football Association (FIFA). One year of Presidency.

173

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controlada por um sul-americano”23. Essa condição adversa e de
resistência de boa parte dos europeus era manifestada, segundo
Havelange, de várias maneiras, inclusive em uma reunião do COI:
Eu fui com a Ana Maria [sua esposa]. Nós chegamos, eu fui
à suíte, descemos quase na hora do jantar e estavam todos
os membros no hall do salão em que eu ia tomar a minha
posição na assembleia, que era presidida pelo Stanley Rous,
pelo Avery Brundage, desculpe. E, quando eu desci, estavam
todos no salão, a maioria ingleses, e eu me apresentei,
e apresentei a minha senhora, Ana Maria. Ninguém se
levantou pra cumprimentar a minha senhora. Como se eu
fosse lixo. Como se eu cheirasse mal. Então, veja, não é fácil
ser brasileiro no exterior.
Naquele momento, os europeus discordavam que um país
sem representatividade no futebol pudesse ter o mesmo voto de
um país europeu, por exemplo. Reclamavam porque, se houvesse
privilégio de algumas nações na hora da votação, certamente a
Europa conseguiria eleger um presidente, pois naquele momento
havia 33 federações vinculadas a ela, enquanto na América do Sul
eram apenas 10.
Havelange foi uma peça chave quanto à mudança do futebol
para um negócio altamente lucrativo. Desde o seu discurso, após
ser eleito presidente da FIFA em disputa com Rous (venceu
por 68 votos a 52), Havelange indicou o caminho que seguiria:
unidade e expansão do futebol24. Como ele mesmo disse na
entrevista: “[...] modéstia à parte, eu modifiquei tudo no mundo
[do futebol]”. Sua estratégia foi a de atrair patrocinadores para
a Copa do Mundo, e, a partir dessa relação, conseguiu realizar
seu ambicioso projeto de transformar a FIFA em uma grande
potência esportiva, afinal, conforme Havelange ressaltou: “qual
é a companhia de publicidade ou firma que faz publicidade, que
não quer estar ao lado?”. Como o próprio Havelange informou,
para ser um patrocinador de destaque a empresa precisa investir
“150 milhões de dólares” e como “são 15, 1 bilhão e 750 milhões
já vem daqui, foi um dos presentes que eu dei à FIFA, são 15”.
Essa visão de transformador do cenário futebolístico
mundial também é partilhada pelo site da FIFA quando pontua
que Havelange comandou um “[...] período de profundas

23
“O candidato visita a sua seleção”. O Estado de S. Paulo, 9 de junho de 1974, p. 57.
Olympic Review, n. 80-81, julho – agosto de 1974, p. 367. Fédération lnternationale
24

de Football Association (FIFA).

174

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mudanças na organização”25. As transformações promovidas por
Havelange estavam indicadas em seu plano de ação caso fosse
eleito presidente da entidade. Entre os oito pontos, destacavam-
se: aumento do número de equipes para disputar a Copa do
Mundo, criação da Copa do Mundo de futebol júnior, construção
da sede da FIFA e ampliação das competições de clubes da Ásia
e da África26.
O plano de ação de governança de Havelange era, ao
mesmo tempo, ambicioso e preciso. Ambicioso por querer se
expandir para regiões e categorias até então pouco atendidas, e
preciso por entender que essas ações garantiriam, como de fato
aconteceu, a sua permanência no cargo durante muitos anos.
Para Rocha (2013a, p. 18), “Havelange quer passar a imagem
daquele que calcula e antecipa todos os movimentos, prevê as
jogadas dos agentes do campo, porque tem nele incorporado
valor social fundamental na sociedade capitalista: uma ética
do trabalho e a vontade de vencer, a partir da racionalização
extrema do mundo social”. Entendo que Havelange, de fato, era
uma pessoa que entendia muito bem como estava constituído
o campo esportivo (BOURDIEU, 1983) pelo qual transitava.
Sabia que para se manter no poder era preciso criar uma rede
de relações, pois sem elas seria rapidamente colocado fora do
sistema. Portanto, sem essa racionalização provavelmente não
teria ficado tanto tempo no poder.
Entre os patrocinadores mais fiéis à FIFA estão a Adidas e
a Coca-Cola. A Adidas tornou-se, ao longo do tempo, uma grande
aliada de Havelange ( JENNINGS, 2011; SMIT, 2007), porém, ele
diz que nem sempre foi assim: “Quando eu cheguei à FIFA em
1974, a Adidas já era [a patrocinadora] e ela fez naquela ocasião
uma campanha a favor do Stanley Rous contra mim”.
Já a Coca-Cola, muito atenta à visibilidade e disseminação
de sua marca por meio do esporte, patrocina os Jogos Olímpicos
desde 192827 e, segundo Soares e Vaz (2009, p. 488), o contrato
com o COI vai até 2020 e ela “[...] foi uma dessas empresas
que nos anos 1970 investiu na disseminação da imagem que o
gosto de seu produto atinge todas as culturas, povos e etnias”.

Disponível em <http://pt.fifa.com/aboutfifa/organisation/president/pastpresidents.
25

html> – Acesso em: 8 jul. 2014.


Olympic Review, n. 80-81, julho – agosto de 1974, p. 368. Fédération lnternationale
26

de Football Association (FIFA).


27
Olympic Review, n. 247, junho de 1988, p. 222. Tribute to sixty years of support.

175

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A transformação promovida pela FIFA durante a presidência de
Havelange é assim indicada no site da entidade:
[...] Havelange se destacou como administrador de futebol pelo
aumento do número de participantes da Copa do Mundo da
FIFA de 16 para 32, pela criação de novas competições (os
Mundiais Sub-17 e Sub-20 no final da década de 80; a Copa
das Confederações da FIFA e a Copa do Mundo Feminina da
FIFA no início da década de 90) e pela maior participação de
seleções da Ásia, África, CONCACAF e Oceania, regiões que
juntas haviam tido apenas três vagas na Copa do Mundo da
FIFA 1974. O número de funcionários da sede da FIFA em
Zurique passou de 12 para quase 120 em função das maiores
responsabilidades comerciais e de organização28.
Ao conseguir expandir o futebol para todos os cantos
do planeta, a FIFA também ampliou seu controle e conseguiu
transformá-lo em um negócio altamente rentável. De acordo com
Havelange, isso nem sempre foi assim:
[...] quando eu fiz a primeira Copa como presidente, que
foi na Argentina, o resultado bruto da Copa: 78 milhões de
dólares, quatro anos depois, ela foi na Espanha, 82 milhões
de dólares, modifiquei tudo. A senhora sabe quanto é hoje?
Dois bilhões e 400 milhões. Agora tem um outro lado, hoje
a FIFA tem 210 países filiados, e se puser em cada país não
sei quantos clubes, para cada clube, se eu tenho o treinador,
tenho o massagista, tenho o roupeiro, tem isso, tem aquilo,
sabe quantas pessoas com o futebol comem todos os dias?
Duzentas mil! E tem mais, se multiplicar por cinco, que é a
família, um milhão de pessoas comem todos os dias graças ao
futebol. Esse foi o presente que eu dei. Em vinte anos, não dá.
Então, veja a importância do futebol e como ele deve ser bem
tratado e, aqui, a força que ele é hoje em dia.
Após a gestão de Havelange, o futebol transformou-se
rapidamente rumo à valorização dos grandes contratos, tanto
dos eventos quanto de muitos dos jogadores mais famosos. Um
homem que fez parte da trajetória de Havelange foi o suíço
Joseph Blatter, que já trabalhava na FIFA há 23 anos quando
assumiu a presidência da entidade em 1998, sendo 17 como
secretário de Havelange. O site da FIFA destaca que, em sua
gestão, ampliou as competições da entidade, implantou o

Disponível em <http://pt.fifa.com/aboutfifa/organisation/president/pastpresidents.
28

html>. Acesso em: 8 jun. 2014.

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Torneio de Clubes da FIFA e os mundiais de Futebol de praia
(Beach Soccer) e de futsal29.
Segundo Tomlinson (2005), os rumos do futebol ao longo
do século XX estão diretamente entrelaçados com as trajetórias
de Rimet, Rous, Havelange e Blatter, devido às relações políticas
e sociais que cada um deles estabeleceu, permitindo que o
futebol se transformasse em uma força globalizada. No entanto,
essa força globalizada se viu abalada em 2012 quando a FIFA
divulgou, durante a gestão de Blatter, um documento que citava o
envolvimento de João Havelange e seu ex-genro e ex-presidente
da CBF, Ricardo Teixeira, no final dos anos 1990, no recebimento
de pagamentos da extinta empresa de marketing esportivo,
International Sport and Leisure (ISL), em troca de facilidades na
aquisição dos direitos de televisão das competições organizadas
pelas FIFA30. Devido à repercussão do caso, e para não ser julgado
pelo COI e pela FIFA, Havelange renunciou ao cargo de membro
do COI em 2011 quando se iniciaram as denúncias e em 2013
deixou o cargo de presidente de honra da FIFA31.
Em 2011, uma denúncia da TV inglesa BBC apontou
que João Havelange e seu ex-genro e então presidente da CBF,
Ricardo Teixeira, receberam propinas da empresa ISL, que era a
responsável pela comercialização dos direitos de TV da Copa do
Mundo. A FIFA decidiu que não levaria para o Comitê de Ética tal
denúncia32. Sobre esse episódio e a repercussão dentro do COI,
Havelange comentou:
[...] eu fui do Comitê Olímpico como membro 48 anos, por
eleição. O tempo passou e eu presidente, e nesses, quanto, 48
anos, devem ter se realizado mais do que 110 assembleias
e eu faltei, acho que a 4 ou 5. Uma eu me lembro, foi no
Japão, porque eu tinha a Copa do Mundo, no dia que tinha,
tinha a abertura da Copa, não ia deixar de ir. Enfim,

Disponível em <http://pt.fifa.com/aboutfifa/organisation/president/pastpresidents.
29

html>. Acesso em: 8 jul. 2014.


O documento da FIFA, datado de 2010, pode ser consultado no próprio site
30

da entidade sob o título Order on the dismissal of the criminal proceedings.


Disponível em: <www.fifa.com/mm/document/affederation/footballgovernance/
01/66/28/60/orderonthedismissalofthecriminalproceedings.pdf> – Acesso em:
18 jul. 2014.
“Havelange deixa Fifa para não ser punido”. O Estado de S. Paulo, 1º de maio de
31

2013, p. A29; “Havelange, 96, renuncia a cargo na Fifa para não sofrer punição”.
Folha de S. Paulo, 1º de maio de 2013, p. D4.
“Havelange é investigado por caso de suborno”. O Estado de S. Paulo, 15 de
32

junho de 2011, p. E2 – Esportes.

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nunca faltei a nada. Bom, agora eu recebo uma carta do
Rogge, pra eu me apresentar na Comissão de Ética. E, eu
aí, respondi a ele, isso baseado em um jornalista inglês, e
eu aí fiz uma carta a ele, mandando um documento, eu
nunca fui chamado ao processo, rodou dez anos, ele está
arquivado e só pode ser aberto daqui há dez anos, é a lei
suíça. Então, por essa me mandou um carta, assim, e me
disse que então eu seria recebido para o Comitê Olímpico
para dar explicações. E aí fiz uma carta a ele dizendo que
depois de 48 anos, e haver cumprido com todas as minhas
obrigações e missões sem nunca faltar, que eu não aceitava
esse sistema de ser interrogado por membros e digo, ao lado
dessa sua carta tem uma outra carta em que o senhor tem a
minha demissão e acabou, eu saí. Então, depois de 48 anos,
ouvir isso e ter isso, e ter eleito esse filho daquilo é duro,
sabe por quê? Nasci aqui.
As dificuldades encontradas por Havelange à frente da FIFA
foram constantemente justificadas pelo fato de ser um brasileiro
diante de uma estrutura europeia. Um de seus grandes rivais em
busca do poder, o inglês Rous, ilustra de forma simbólica esse
duelo entre a América do Sul e a Europa. No entanto, Havelange
desconsidera que possuía uma série de requisitos para estar ali,
desde o domínio de varias línguas até a experiência acumulada
na presidência de várias instituições esportivas brasileiras e de
empresas particulares.
O fato é que a reclamação de Havelange traz à tona o
controle exercido pela Europa no esporte mundial, seja dentro do
COI ou da FIFA. E que sem a rede de relações estabelecida pelo
“circuito-Havelange” (ROCHA, 2013b) não teria conseguido chegar
e se manter no poder. Devido ao grande número de europeus
presentes nas duas entidades, o resultado é a presença de uma
forma de pensar parecida que faz e fez com que as duas entidades,
COI e FIFA, estejam constituídas dentro dos mesmos princípios.
Nesse sentido, sob o ponto de vista financeiro, tanto os Jogos
Olímpicos quanto a Copa do Mundo estão estruturados dentro de
um mesmo discurso e de uma mesma lógica: a possibilidade de
gerar negócios diretos e indiretos (RUBIO, 2010).
A referência a uma presença majoritariamente europeia
não significa que sempre existiu unidade e consenso entre os
membros desse continente, mas enquanto grupo eles possuíam
mais poder, isto é, maior número de votos que os demais. Essa
condição circular das decisões refere-se aos interesses da maioria,
por exemplo, quando da escolha das sedes.

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Nesse jogo de poder a troca de votos concede o direito de
sediar os dois maiores eventos esportivos do mundo, os Jogos
Olímpicos e a Copa do Mundo de futebol. Na FIFA a distribuição
de seus membros apresenta-se, atualmente, de modo mais
homogêneo em comparação à distribuição do COI. Embora a
Europa ainda tenha a maioria, o aumento dos membros da Ásia
revela o funcionamento da estrutura, afinal, as próximas sedes do
evento serão Rússia (2018) e Catar (2022). O aumento do número
de membros provavelmente foi conquistado por meio de apoios
aos países que sediaram a Copa do Mundo nas últimas décadas.
Esses vínculos entre os membros e a quantidade de votos são
explicitados nas palavras de Havelange:
Agora foi decidida a Copa do Mundo na Rússia pra 2018 e
eu recebo, um dia, uma carta do Putin e outra do Medvedev,
que é o presidente, duas cartas lindas em russo, já traduzidas
em francês, eu as tenho aqui, me pedindo se eu podia fazer
alguma coisa. E eu respondi a eles que não tinha condições,
porque já não votava, mas não faltaria a eles, pela estima e
o respeito, para dar uma palavra ao presidente. Telefonei pro
Blatter, eu disse: olha eu recebi assim, assim e eu gostaria que
tu pensasse. Eu fui e disse a ele: não esqueço que eu fiquei 24
anos e tu estiveste ao meu lado durante 18 anos. Ele disse: “é
verdade”. E os mais leais na minha administração foram a
União Soviética e todos os países satélites, nunca me faltaram!
Havelange revela a lógica estabelecida nesse jogo de poder.
A condição essencial da qual ele fala é a gratidão que se consolida
quando existe retribuição ao apoio recebido por algum país. Rocha
(2013b, p. 86) denominou de “circuito-Havelange” essa estrutura
na qual Havelange estava inserido, a qual possuía uma grande
“cadeia de ligações por meio de intensa distribuição e troca de
dádivas” que iam além de meros presentes e se estabeleciam por
meio de “festas, gentilezas, recepções, trocas jocosas, tributos,
até mesmo fofocas [...]”. Também fazia parte dessa dinâmica
a distribuição de ingressos, o envio de cartões natalinos e o
conhecimento dos nomes das pessoas com quem se convivia.
Portanto, a expressão “nunca me faltaram” evidencia que
sempre soube por onde articular as ações para obter apoio
no comando da FIFA e como tudo estava vinculado à troca de
dádivas, o que o colocava numa complexa rede de relações. Essa
circulação de ações em torno do poder, que colocou regiões
periféricas como centro das decisões, revela o que Foucault (2005,
p. 51) denominou de teoria da dominação. Segundo ele:

179

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[...] em vez de partir do sujeito (ou mesmo dos sujeitos) e
desses elementos que seriam preliminares à relação e que
poderíamos localizar, se trataria da própria relação de
poder, da relação de dominação no que ela tem de factual, de
efetivo, e de ver como é essa própria relação que determina os
elementos sobre os quais ela incide. Portanto, não perguntar
aos sujeitos como, por quê, em nome de que direito eles podem
aceitar deixar-se sujeitar, mas mostrar como são as relações
de sujeição efetivas que fabricam sujeitos. [...] mostrar como
os diferentes operadores de dominação se apoiam uns nos
outros, remetem uns aos outros, em certo número de casos se
negam ou tendem a anular-se.
A ideia colocada por Foucault é fundamental para entender
como se estabeleceram as relações entre os membros das
entidades para definir o voto de cada um. Nesse caso, sujeitar-se
a uma condição de dominação revelou ser uma estratégia para,
ao longo dos anos, conseguir ampliar o número de membros de
seu país. Ou seja, essa subordinação em aceitar a condição de
dominação funcionou como uma dinâmica de todo o sistema da
entidade, pois somente por meio dela é que os membros dos
países periféricos poderiam conquistar alguma posição de poder
dentro da estrutura. Em troca do apoio por meio do voto a favor
das potências, os países periféricos do cenário esportivo tiveram a
promessa de que em algum momento teriam mais representantes
e com isso o direito de sediar os grandes eventos esportivos.
Como a estrutura está apoiada sob os mesmos alicerces,
e seus membros, independentemente do local de origem, são
sustentados por essa estrutura, pode-se prever quais são as
escolhas quando as votações são realizadas. Nesse sentido,
Havelange ilustra a escolha do presidente do COI para explicar
como se constituem os apoios nesse jogo de poder:
A eleição do Samaranch tinha mais quatro candidatos, tinha
um canadense e mais dois ou três da Europa. E o Samaranch
tinha vindo aqui e eu me dava com ele, desde a Copa do
Mundo na Espanha, enfim, essas coisas. E eu tinha dito a ele
que ficava com ele, em 1980, e antes de se realizar a eleição
eu fiz uma carta a ele dizendo que ele ia ter tantos votos, 54
votos, e ele precisava de 53 pra passar na primeira. Mandei
a carta e fiquei esperando a eleição, veio a eleição, ele teve
não os 54 que precisava, dava 53, ele teve 55 e foi eleito, em
1980. E ele deixou em 2001, em Moscou, quando entrou o
Rogge. O Rogge se apresenta a ele e mais quatro pessoas. E
todos quiseram me ver, eu era presidente da FIFA e era o mais

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antigo, e aí não o mais velho, o mais antigo. E aí, eu os recebi
cada um de Leipzig e no final eu disse: “Samaranch eu fico
com você”. No dia da eleição, em 1981, de novo em Moscou,
eu fiz uma carta a ele, dizendo que ele seria eleito no segundo
turno com 54 votos. Ele foi eleito no segundo turno com 54
votos. E ele tem essa carta em mãos.
Nessa estrutura do COI, os votos são realizados pelos
membros da entidade. Embora atualmente existam membros de
todos os continentes, ao longo da história olímpica nunca houve
uma igualdade numérica entre os membros de cada país ou
continente. Essa desigualdade gera uma concentração de poder
entre os membros com maior número de representantes, e essa
condição faz com que várias alianças sejam estabelecidas a fim de
obter mais votos para um determinado representante.
Sob essa perspectiva das alianças, faço uma analogia da
estrutura da FIFA (que pode ser estendida para entender o COI)
com um brinquedo chamado popularmente de cubo mágico,
também conhecido por cubo de Rubik. Trata-se de um cubo (cada
face é formada por nove pequenos quadrados) com seis faces
de diferentes cores (amarelo, azul, branco, laranja, vermelho e
verde). O objetivo é que, ao mesmo tempo, cada face possua
apenas uma cor.
Nessa analogia com a FIFA, podemos caracterizar os cinco
continentes com uma cor e a restante representaria a FIFA. Como
o objetivo é fazer com que cada face tenha apenas uma cor,
considero as ações de movimentar os pequenos quadrados como
representativas das relações internas e externas de cada continente.
Ao mover uma peça, altera-se diretamente a configuração da face
movimentada – no caso, um continente –, o que pode afetar ao
outra face, portanto, os outros continentes.
As ações nunca são isoladas, pelo simples fato de as peças
(continentes) pertencerem a uma mesma estrutura (FIFA). Os
movimentos das peças, fazendo com que as cores se misturem,
representam as articulações dos membros do FIFA em busca de
apoio para determinadas candidaturas. A definição da escolha
acontece quando cada uma das faces apresenta apenas a sua cor.
Estabelecida a ordem das cores, o brinquedo está pronto para
ser recomeçado e, nesse caso, representa o início de uma nova
disputa para sediar a Copa do Mundo.
Por meio dessa analogia com o cubo mágico é possível
entender que João Havelange realmente sabia o número de
votos que cada candidato receberia. Sendo membro do COI, ele

181

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tinha acesso ao fluxo de poder que se estabelecia a cada disputa
para sediar os Jogos, além de saber o número de membros que
poderiam votar e quem eles tradicionalmente apoiariam ao longo
dos anos. Tendo em vista a existência de um pequeno número
de membros votantes, essas disputas, estabelecidas sob uma
perspectiva democrática, faz com que uma série de alianças e
trocas de favores (ora se apoia alguma candidatura e ora se é
apoiado) se estabeleça entre os membros.
Há algum tempo existe uma disputa em torno do COI e
da FIFA para realizar a maior competição esportiva de todos os
tempos. A cada nova edição, seja dos Jogos Olímpicos ou da Copa
do Mundo de futebol, espera-se um crescimento da audiência e,
consequentemente, do número dos patrocinadores. Foi possível
perceber que as duas entidades são muito mais próximas do que
se imaginava. Membros da FIFA integram o quadro do COI, como
no caso do presidente da FIFA, Joseph Blatter, membro do COI
desde 1999, do qual João Havelange também foi membro durante
muito tempo (1963-2011).

Considerações finais
De atleta a dirigente, Havelange consolidou sua presença
no campo esportivo brasileiro e mundial. No primeiro capítulo
de sua biografia autorizada, inúmeros momentos históricos
são listados e de alguma forma relacionados com a trajetória
de Havelange (PEREIRA e VIEIRA, 2011). Desse modo, o texto
sugere a onipresença de Havelange no cenário mundial. Em
outras palavras, funciona como forma de sugerir que ele foi uma
pessoa muito influente, com muito poder e que estabeleceu uma
extensa rede de relações. Essa onipresença também foi indicada
por outros dirigentes quando denominaram Havelange (ROCHA,
2013a) como o “cartola dos cartolas” (WISNIK, 2008).
Ao longo de todo esse período em que foi dirigente
esportivo, Havelange acumulou poder, circulou junto a vários
presidentes da ditadura militar brasileira e visitou praticamente
todos os países membros da FIFA para se estabelecer no poder
por 24 anos. No Brasil, mesmo quando assumiu a presidência da
FIFA quis continuar na presidência da CBD. Como não conseguiu,
viu o poder da entidade mudar de mãos. Nunca pretendeu se
manter longe do poder, porquanto, muito tempo depois de ter
perdido o controle da CBD (posteriormente CBF), conseguiu
eleger seu então genro, Ricardo Teixeira (1989-2012).

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O maior passo de Havelange foi vencer a eleição para a
presidência da FIFA. A ação de Havelange, por ser calculada e por
entender como estava estruturado o poder (FOUCAULT, 2005),
permitia-lhe projetar sua vitória na disputa pela presidência da
FIFA33. Isso era possível porque ele tinha clareza de três elementos
essenciais do mundo esportivo: o que, como e por que assumir
determinados posicionamentos no mundo do futebol. Para
concretizar esses três elementos, Havelange sabia que precisaria
conhecer de perto e de dentro os seus possíveis eleitores, e para
isso sabia que se recebesse “[...] o voto de todos os países onde
estive, terei mais do que o necessário para alcançar a vitória, ainda
na primeira votação, obtendo mais de dois terços dos votos34.
Portanto, Havelange apostou na política certa quando investiu
na criação de uma rede de relações sustentada pela “troca de dádivas”
(ROCHA, 2013b). Sua vitória evidenciou que a convicção de Rous
em se manter no poder fez com que investisse em uma política
infrutífera, pois sem oferecer “dádivas” aos membros se isolou no
poder e não teve o apoio necessário para vencer a disputa.
Afinal, a ação de João Havelange ao assumir a FIFA estava
centrada em dois aspectos: desenvolvimento do futebol entre os
países membros (100 países naquele momento) e organização
de uma Copa do Mundo para juniores (sub-19)35, patrocinada
pela Coca-Cola36.
Em sua entrevista, ressaltou o “presente que deu ao
futebol” transformando-o em um verdadeiro negócio que
movimenta bilhões de dólares e que gera uma grande quantidade
de empregos. No entanto, não destacou que a atual estrutura do
esporte brasileiro também é fruto de sua gestão à frente da CBD,
da centralização do poder que construiu em sua gestão e da maior
atenção dada ao futebol em relação aos demais esportes.
Sua saída do COI (2011) foi justificada como sendo
perseguição pelo fato de ser brasileiro. No entanto, mesmo antes

“Havelange faz contas: já venceu”. O Estado de S. Paulo, 9 de dezembro de 1973,


33

p. 92. No mesmo jornal, porém do dia 19 de abril de 1974, na entrevista feita com
Havelange (“Buscar os votos, tática de Havelange”), são indicados 141 países
filiados, mas dois deles estavam suspensos (África do Sul e Rodésia).
“Buscar os votos, tática de Havelange”. O Estado de S. Paulo, 19 de abril de 1974, p. 21.
34

Olympic Review, n. 113, março de 1977, p. 165. “Two initiatives by the Fédération
35

lnternationale de Football Association by João Havelange, President of the FIFA


and IOC member in Brazil”.
Olympic Review, n. 130-131, agosto – setembro de 1978, p. 560. Fédération
36

Internationale de Football Association (FIFA).

183

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da entrevista realizada, Havelange e Ricardo Teixeira foram
acusados de receber suborno. Em 2013, renunciou ao cargo
de presidente honorário da FIFA para não sofrer punições em
meio às acusações de corrupção. Em sua narrativa, Havelange
ressaltou as dificuldades encontradas pelo fato de ser brasileiro
e, assim, explicou como perseguição, especialmente do jornalista
inglês Andrew Jennings, as acusações que vinha recebendo
sobre corrupção.
O fato é que, ao narrar a sua história de vida, Havelange
ressaltou o que o valoriza como administrador esportivo, seus
feitos em prol do esporte, deixando de lado os acordos ilegais
que fez para se consolidar no poder. Desse modo, ao traçar uma
trajetória de sucesso, tenta consolidar sua imagem como alguém
que promoveu ações favoráveis ao esporte de modo geral, e ao
futebol de modo específico, consolidando-se como uma figura
onipresente no mundo esportivo.

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2003.
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WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo:
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Memórias cruzadas: histórias
que reescrevem o
esporte olímpico brasileiro
Isaias Sodré da Nóbrega Junior; Júlia Frias Amato; Roberta Cardoso
Grupo de Estudos Olímpicos – Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP)

“Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da


informação é decisivamente responsável
por esse declínio. Cada manhã recebemos
notícias de todo o mundo. E, no entanto,
somos pobres em histórias surpreendentes”.
(BENJAMIN, 1985, p. 203)

As pesquisas sobre eventos históricos atualmente são


facilitadas pela possibilidade de se encontrar informações
sobre qualquer assunto via internet. No entanto, a relação entre
a divulgação da informação e a confiabilidade dos dados é
inversamente proporcional, ou seja, quanto mais amplo o campo
para publicar, menor a preocupação em checar e esclarecer os
fatos. Além da falta de credibilidade, a quantidade de notícias
irrelevantes relacionadas a determinados episódios também
aumentou e dificilmente são encontradas histórias que contém
novas versões para os acontecimentos.
As narrativas de outros personagens imprimem novo
significado a um fato contado a partir de uma perspectiva já
relatada. Com a intenção de buscar histórias que contassem
a experiência de representar o Brasil em edições de Jogos
Olímpicos, partimos em busca daqueles que são os personagens
principais dos Jogos Olímpicos e tornaram-se o grande legado
esportivo: os atletas (RUBIO, 2013). “Podemos notar que é
crescente o reconhecimento dos atletas como principal legado,
se tornando importante ferramenta para a propagação do ideal
olímpico” (RUBIO, 2007).
O projeto “Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos
Brasileiros” tem como objetivo dar voz aos personagens principais
do esporte olímpico nacional que, ao contarem suas trajetórias,
descrevem, através de suas próprias narrativas, a história do
esporte olímpico brasileiro. Ao longo dos anos, o Brasil foi
representado em 22 edições de Jogos Olímpicos por 1.800 atletas.

187

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Seria ideal se tivéssemos a oportunidade de ouvir todos eles,
porém, o tempo é um adversário cruel nessa tarefa. Ao buscarmos
informações específicas sobre os jogadores brasileiros de futebol
que disputaram os Jogos Olímpicos de Helsinque em 1952,
encontramos fontes que, ao longo da pesquisa, mostraram-se
equivocadas e conflitantes, muitas vezes devido à despreocupação
em esclarecer histórias semelhantes. Existe uma grande distância
temporal entre o fato e a pesquisa, e nesse período muitas
transformações ocorreram no mundo. Com o avanço da internet
e a quase completa extinção das editorias específicas nas
redações de jornais e revistas, a informação veiculada é cada vez
mais rápida e acessível, porém, muitas vezes pouco confiável. A
busca pela exclusividade dos fatos e a urgência em se divulgar
uma notícia em primeira mão faz o jornalismo atual cometer
imprecisões e tornar-se refém de falsas entrevistas, histórias
inventadas e notícias incompletas. Com isso, a atualização de
uma matéria postada na rede ocorre de minuto em minuto. O
desencontro de informações faz com que as erratas estejam
muito mais presentes nas edições.
Na internet, é comum encontrarmos diversas fontes
de informação replicando a mesma versão de um fato, sem a
preocupação de checar se o relato aconteceu como está descrito.
Com isso, é recorrente que a busca por alguma informação
obtenha resultados diversos, todos eles com o mesmo conteúdo.
Ironicamente, o mesmo meio que descrevemos como um
fator que prejudica a pesquisa acadêmica com a publicação
de notícias imprecisas é o mesmo que facilita a busca por
informações que esclarecem e “encurtam” a distância temporal.
Para exemplificar essa situação, utilizamos como exemplo
o que encontramos no acervo digitalizado e de acesso livre
disponibilizado pela Fundação Biblioteca Nacional. Trata-se da
Hemeroteca Digital Brasileira, que viabiliza a visualização de
jornais, periódicos e revistas antigas, datadas desde o século XVII.
A qualidade desse material foi vital para localizarmos informações
sobre personagens que viveram suas experiências olímpicas no
passado e os quais não tivemos a oportunidade de entrevistar. Foi
a partir desse acervo que encontramos informações de resultados,
clubes que os atletas representavam, notícias do embarque às
vésperas das competições, relatos de jornalistas enviados às
cidades-sede dos Jogos Olímpicos dos quais o Brasil participou e
até mesmo “minibiografias” daqueles que competiram pelo país
em uma edição olímpica.

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Além das fontes de informações básicas de internet, existem
outras que apresentam a mesma facilidade de acesso, porem, com
conteúdo único e cuidadoso. Na maioria dos casos, são blogs
de pessoas que pesquisam temas específicos, escrevem seus
textos baseados em anos de vivência e, em geral, são movidas
pela paixão por aquele assunto. Trata-se de estudiosos informais
de determinadas áreas, cujo conhecimento também pode ser
importante para pesquisas acadêmicas.
Através da pesquisa em documentos oficiais do COB
e do COI, listamos os nomes dos jogadores de futebol que
representaram o Brasil nos Jogos Olímpicos de Helsinque, em
1952, e buscamos seus dados demográficos para incluí-los em
nosso banco de dados. São atletas nascidos, em sua maioria, na
década de 1930, e que após a passagem pela seleção olímpica
não tiveram grande destaque em suas carreiras. Em um desses
documentos oficiais constava o seguinte registro como atleta
participante da delegação brasileira de futebol: “Paulo Almeida
(Paulinho de Almeida)”.
A busca de informações sobre a carreira do atleta citado
nos documentos oficiais nos levou ao blog “Tardes de Pacaembu –
O futebol sem as fronteiras do tempo”. Nele havia uma descrição
detalhada da carreira de um certo Paulinho, nascido na década de
1930. Segue abaixo um resumo do texto publicado no blog:
Paulo Almeida Ribeiro atuava como lateral-direito e teve
passagem marcante na história de mais de cem anos do Clube
de Regatas Vasco da Gama. Nascido em 1932, em Porto Alegre,
e revelado pelo Internacional, assinou seu primeiro contrato
profissional com o Vasco em 1951. “Paulinho de Almeida”,
como era conhecido no futebol, é descrito como um jogador
de grande capacidade técnica, forte na marcação e que apoiava
muito o ataque, uma característica incomum para um defensor na
época. Além de ter atuado por muitos anos e figurar na seleção
cruzmaltina de todos os tempos, Paulinho de Almeida teve sucesso
também pela seleção brasileira, sendo convocado para a Copa do
Mundo de 1954 na Suíça.
Ao observar esse currículo após todos esses anos, e distante
das questões que envolviam o esporte olímpico na época, alguns
detalhes escaparam das fontes usuais da internet, que informam ter
esse jogador participado dos Jogos Olímpicos de Helsinque, e esse
engano acabou sendo replicado. Durante muito tempo as equipes
olímpicas de futebol eram representadas por jogadores amadores, e
o futebol era um dos esportes considerados profissionais no Brasil.

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A descrição da carreira do lateral Paulinho de Almeida
continha um dado incompatível com a informação de que o atleta
teria participado dos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952.
Segundo o escritor do blog, Paulinho de Almeida assinou um
contrato profissional com o Vasco da Gama em 1951, fato que
o tornava um atleta profissional e automaticamente o impedia
de disputar os Jogos Olímpicos de Helsinque no ano seguinte,
competição que exigia dos atletas a condição de amador. Essa
foi a indicação e o motivo da busca pela informação precisa. Da
paixão desses aficionados pelo esporte surgem as lacunas que
contradizem uma informação inicial, e assim foi no caso do atleta
olímpico Paulinho.
Se o Paulinho de Almeida, do Vasco, não tinha condições
de representar o Brasil nos Jogos Olímpicos, quem era o jogador
presente nos documentos oficiais do COI e do COB?
Aqui cabe uma informação relevante: em um período de
doze anos, a seleção brasileira principal conquistou três Copas do
Mundo (1958, 1962 e 1970) e foi representada por 51 diferentes
jogadores. No período de 1952 a 1972, o Brasil disputou cinco
edições do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos (1952, 1960,
1964, 1968 e 1972), e dos 51 jogadores campeões mundiais,
apenas três representaram o Brasil em Jogos Olímpicos.
Esclarecido o motivo do engano replicado pelos meios
de informação, é importante contextualizar a discussão que
havia na época em relação ao termo amadorismo. Em termos de
comparação, ser atleta profissional era o mesmo que ser imoral,
tal a forma como era encarado o fato de se receber um salário
em troca de representar um clube ou seleção em uma competição
esportiva. “O secretário geral do Comitê Executivo Schricker,
reforçava que o amador era aquele que sempre se envolveu com
o esporte em busca do prazer e de benefícios físicos e morais sem
que existisse algum ganho material” (GIGLIO, 2013).

Amadorismo x profissionalismo
Nas primeiras décadas dos Jogos Olímpicos da Era
Moderna, o esporte era praticado por membros da aristocracia
dos países competidores e encarado como atividade amadora,
porém, esse termo era interpretado de diferentes formas. A
entrada do futebol como modalidade inscrita no programa oficial
dos Jogos Olímpicos se dá em Londres, em 1908, apesar de ter
sido apresentada como modalidade exibição em Paris, em 1900.

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Nessa época, já havia sido criada a Football Association (FA) na
Inglaterra e o esporte crescia em popularidade em vários países
do mundo. Embora o futebol já fosse praticado por profissionais
e os clubes crescessem cada vez mais, principalmente na Europa,
na competição olímpica ficou decidido que participariam apenas
jogadores amadores.
A dificuldade em definir o termo amador se estendeu
durante os ciclos olímpicos seguintes, e a cada edição dos
Jogos havia uma iminente ameaça de se retirar o futebol do
programa olímpico. De acordo com Giglio (2013), “As definições
do termo amador continuaram a aparecer. Porém, pelo fato das
Associações Esportivas dos diversos países adotarem diferentes
leis no sentido de definir o conceito, tornou-se difícil se chegar
a um consenso”.
Em 1912, nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, iniciou-se
um movimento pela permanência do futebol no programa dos
Jogos Olímpicos, fato que ocorreu, principalmente, em virtude
da popularidade que o futebol conquistou, proporcionando
a oportunidade de competir também aos jogadores que não
faziam parte da aristocracia. Afinal, não se pode esquecer que
foram sobretudo os operários das indústrias os responsáveis pela
popularização do futebol.
Após o cancelamento da edição olímpica de 1916,
ocasionado pela Primeira Guerra Mundial, cada vez mais o
movimento olímpico foi influenciado pelo aspecto político, e é
na edição de 1920 que acontece o primeiro boicote da história
dos Jogos Olímpicos. “A relação entre o esporte e a política
começa a ficar mais evidente quando os Jogos voltam a ser
disputados no período após a Guerra, com a recusa da Bélgica,
país sede de 1920, em convidar a Alemanha” (GIGLIO, 2013).
Outros países se recusaram a participar dos Jogos de Antuérpia,
em virtude da exclusão dos alemães da competição. Segundo
Rubio (2010), “Por causa disso Áustria, Hungria, Bulgária, Polônia
e Rússia, países também atingidos pelo conflito, recusaram-se a
participar do evento, marcando o primeiro boicote da história dos
Jogos Olímpicos”.
A discussão sobre o tema amadorismo continua nos anos
seguintes. Nos congressos e reuniões realizados após os Jogos
Olímpicos de 1928, as entidades que controlavam os Jogos (COI)
e o futebol (FIFA), fundada em 1904, não entraram em acordo.
Ficou decidido, então, que na edição de 1932, em Los Angeles,
o futebol seria excluído do programa olímpico. Em resposta

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à exclusão dos Jogos Olímpicos, em 1930 foi disputada a primeira
edição da Copa do Mundo de futebol organizada pela FIFA.
Apesar de ter criado o seu próprio torneio mundial, a FIFA
ainda mantinha grande interesse em sustentar o futebol como
modalidade olímpica. As discussões sobre o amadorismo foram
retomadas e, após novas resoluções estabelecidas pelas partes
interessadas, o futebol retornou aos Jogos Olímpicos em Berlim,
em 1936. A edição olímpica de Berlim é considerada como a
responsável pela modificação do panorama dos Jogos Olímpicos
no mundo, em virtude da utilização da competição esportiva
como propaganda de um regime político. Após a sua realização,
o tema amadorismo volta a ser discutido.
Com os efeitos da Segunda Guerra Mundial, as edições
olímpicas de 1940 e 1944 foram canceladas. Segundo Rubio
(2010), antes da Segunda Guerra Mundial os Jogos Olímpicos
se firmaram como um grande evento mundial e o pós-guerra
colocou o movimento olímpico dividido pela Guerra Fria em dois
blocos: os capitalistas e os socialistas. Nesse momento, o debate
sobre o tema amadorismo começa a ganhar novos parâmetros,
que seguem em pauta até a disputa dos Jogos Olímpicos de
Londres, em 1948. Com a disputa de capitalistas versus socialistas,
as indefinições sobre a competição justa nas atividades esportivas
aumentaram, pois os países do bloco capitalista alegavam que a
preparação de seus atletas era inferior em relação à dos atletas
do bloco socialista. Nos países socialistas, os atletas eram tratados
como funcionários do Estado e se dedicavam às atividades
atléticas em tempo integral. Essa vantagem era mais evidente no
futebol, pois as equipes dos países ocidentais eram representadas
por jogadores jovens e que ainda não haviam se profissionalizado,
aumentando, assim, a diferença técnica dentro de campo, pois o
futebol profissional havia tomado conta dos clubes nesses países
e os jogadores amadores eram muito poucos.
A FIFA criticava a organização do COI, deixando claro que
não abria mão da participação do futebol nos Jogos Olímpicos,
exaltando a popularidade da modalidade no mundo. O COI,
por sua vez, discutia internamente as demandas de amadorismo
e profissionalismo, que eram cada vez mais questionadas em
função da vantagem que as equipes do bloco socialista levavam
em relação aos adversários. Alguns países, como a Argentina,
diziam que não participariam do torneio olímpico de futebol em
virtude do baixo nível técnico de seus jogadores amadores. No
COI havia a intenção de buscar uma aproximação entre os países

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do Ocidente e do Oriente, porém, também era defendida a ideia
de exclusão do futebol em virtude da questão do amadorismo.
“A aristocracia presente no COI esteve dividida entra a retórica
da congregação e a efetiva antipatia em relação ao comunismo”
(RUBIO, 2010). Ou seja, o COI vivia um dilema entre o ideal
olímpico de Pierre de Coubertin e os movimentos políticos.
É nesse contexto histórico que a seleção olímpica brasileira
de futebol foi formada para participar pela primeira vez de uma
edição do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de Helsinque,
em 1952. A equipe era constituída por jovens jogadores, em
início de carreira e sem contrato profissional com os clubes em
que atuavam.

Desatando os nós
Enquanto fazíamos a busca, Paulinho não tinha rosto,
não era um jogador dos mais populares, nem havia matérias
exclusivas com ele em jornais e revistas da época. Infelizmente,
o fator tempo foi limitante mais uma vez, quando soubemos da
notícia, em um portal de internet de Campos dos Goytacazes,
de que o jogador Paulo Almeida, que havia atuado no Flamengo
no início dos anos 1950, havia falecido em novembro de 2013.
Conforme Bosi (2003), “Quando se trata da história recente, feliz
o pesquisador que se pode amparar em testemunhos vivos e
reconstituir comportamentos e sensibilidades de uma época”.
Uma estratégia de que dispúnhamos era procurar
informações por meio dos clubes nos quais os jogadores falecidos
haviam jogado. Entramos em contato com o departamento
histórico do Clube de Regatas do Flamengo e conseguimos a
informação, naquele momento surpreendente, sobre a existência
de um torcedor rubro-negro que manteve contato com Paulinho
nos seus últimos anos de vida e é reconhecido como seu maior
fã. Até os dias atuais, em todas as partidas do Flamengo o
torcedor leva uma faixa com o nome de seu ídolo e a seguinte
frase atribuída a Paulinho: “O Flamengo foi o sonho da minha
adolescência. É amor pra vida inteira”. Esse torcedor é Fabiano
Moço, que reside em Campos dos Goytacazes, e através das redes
sociais conseguimos nos aproximar e conhecer um pouco mais
sobre a trajetória de Paulinho. A partir desse contato, chegamos
ao jornalista Péris Ribeiro, conterrâneo e conhecedor da história
de Paulinho, o qual inclusive publicou alguns textos que contavam
o caminho percorrido pelo atleta. Da paixão de um amante do

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futebol antigo à dedicação de um jornalista e de um amigo do ex-
jogador, fomos revelando a seguinte história:
Paulo de Almeida era atacante e atuou por algumas
temporadas pelo Flamengo, depois se transferiu para o
Palmeiras e rodou por países da América do Sul. Mais
conhecido no meio do futebol como Paulinho, mas chamado
por alguns jornais da época como “Paulinho Almeida” (sem
o “de”), nasceu em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio
de Janeiro, em 1933, e é um quase homônimo do primeiro e
mais famoso Paulinho.
Dois jogadores de futebol, nascidos em datas próximas, que
atuaram por equipes do Rio de Janeiro e tiveram passagens pela
seleção brasileira. Essa coincidência de datas, nomes e trajetórias
criou certa confusão. Provavelmente, ao buscarem os relatórios
oficiais dos jogos, alguns autores de livros e sites, que apenas
informam dados demográficos dos atletas, encontraram os nomes
Paulinho, Paulinho Almeida e até mesmo Paulinho de Almeida,
e associaram-no ao primeiro e mais famoso jogador, defensor
histórico do Vasco e que disputou uma Copa do Mundo.

Contextos e versões
Se a História é escrita através das versões contadas por
aqueles que dominaram ou foram vitoriosos em determinadas
situações, isso talvez explique a importância de se fazer uma
busca minuciosa e consultar fontes distintas quando se tem a
intenção de escrever sobre um fato histórico e de onde podem
surgir várias versões. Para Rubio (2010), “Não há dúvida de que
os eventos históricos são ditados pelas ações humanas, que
imprimem suas marcas diante da projeção dada àquele que narra
o fato ou a ideia que o anima”.
A possibilidade de se produzirem diferentes versões de uma
mesma história e a questão da imagem criada pelos vencedores
demonstram uma relação curiosa, como por exemplo, com o
grupo de descendentes japoneses Shindo Renmei, descrito no livro
Corações Sujos, do escritor brasileiro Fernando Morais. Durante
o período pós-Segunda Guerra, em 1945, alguns descendentes
japoneses que viviam no Brasil fundaram essa associação e
passaram a perseguir os imigrantes japoneses que aceitavam o
fato de que o Japão havia perdido a guerra. Esse grupo atuou,
principalmente, no interior dos estados de São Paulo e do Paraná
“caçando os conterrâneos traidores”, que foram denominados

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“corações sujos”. Seus integrantes acreditavam que as notícias
veiculadas no Brasil sobre o fato de o Japão estar sendo derrotado
eram falsas, fruto de conspiração dos países inimigos na batalha.
Passaram, assim, a divulgar avisos em jornais e rádios deturpando
os fatos para convencer os imigrantes japoneses no Brasil de que
o Japão, pelo contrário, estava vencendo a guerra.
Utilizamos esse exemplo para dizer que a perspectiva de um
fato tem relação com a oportunidade de se contar uma história.
Para cada episódio existem diferentes versões, e todos os que
tiverem oportunidade contarão o caso de uma determinada forma.
Portanto, a credibilidade de uma fonte é importante quando se
deseja extrair uma informação para contar uma história que não
pode ser narrada pelo próprio personagem.
O sociólogo francês Marc Bloch (2002) define a História
como a “ciência dos homens no tempo”, pensando o passado
como uma “estrutura em progresso”, pois não se pode saber
tudo a partir de um documento, por mais completo que seja. As
observações feitas com base em documentos oficiais levou-o a
pensar nas diferentes versões descritas sobre um mesmo fato que,
se analisadas em conjunto, poderiam fornecer mais informações
ao leitor. Para o autor, quando se busca apurar a verdade de um
fato, nada deve ser descartado, sequer um documento falso. Isso
porque, inclusive a falsificação pode conter indícios que levem à
veracidade das informações nele veiculadas.
Ainda sob a ótica de Bloch, é de grande importância
contextualizar o período histórico ao se analisar um documento,
mas o autor enfatiza que mesmo os mais claros e mais
complacentes documentos não falam senão quando sabemos
interrogá-los. Os vestígios que nele aparecem funcionam como
possibilidades de análise, e se o pesquisador estiver atento a esses
elementos poderá caminhar a partir das pistas fornecidas pelo
próprio documento. Em uma das entrevistas do projeto “Memórias
Olímpicas por Atletas Olímpicos Brasileiros”, nos deparamos com
uma situação inusitada. Com o intuito de entrevistar determinado
atleta para a pesquisa, realizamos buscas em acervos de jornais.
Localizamos, então, o clube ao qual ele era filiado, procuramos
pelo departamento da modalidade e conseguimos contatá-lo para
marcar um encontro.
Na entrevista o atleta nos contou sua trajetória no esporte e,
ao narrar sua experiência olímpica, emocionou-se ao dar detalhes
precisos e peculiares, como descrições da vila olímpica, refeitório
dos atletas e sobre a própria competição, porém alguns vestígios

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foram deixados. Nada fazia supor que ele estivesse se passando
pelo atleta olímpico. A constatação do equívoco surgiu apenas
quando o entrevistado assinou o termo de consentimento
da pesquisa e percebemos que seu sobrenome não era o
mesmo do atleta que buscávamos. Ao refazer as pesquisas em
acervos de jornais e sites sobre a modalidade, percebemos
que seu nome não condizia com registros sobre a competição
e por isso passamos a questionar seu depoimento. Apesar de
ambos os atletas terem o mesmo nome e defendido o mesmo
clube, os sobrenomes eram distintos. Após rever a entrevista
concedida foi possível observar que o atleta se apropriou de
outros testemunhos e, a partir disso, construiu sua identidade,
afirmando-se como atleta olímpico. Segundo Bloch (2002), nossa
memória pode pegar emprestado testemunhos de outros que
sejam mais exatos, fazendo-nos corrigir e rearranjar as nossas
próprias lembranças, estas que são ligadas a questões afetivas e
podem ser reconstruídas ou simuladas através dessas vivências.
De acordo com Bruner (1986), “A estratégica tarefa de contar –
seja a história contada para consumo próprio ou de outrem, e
as duas coisas sempre acontecem – é tornar a narrativa crível.
Criar essa narrativa não significa mentir deliberadamente ou,
como devem fazer os escritores de ficção, usar um fragmento
de memória para a elaboração de uma história; ao agirmos
assim, buscamos uma verossimilhança que satisfará a nós e a
nossos ouvintes”.
Apesar do registro da narrativa do atleta não-olímpico,
ainda não tivemos a oportunidade de ouvir a história daquele
que competiu, de fato, nos Jogos Olímpicos. Continuamos a
pesquisar sobre seu paradeiro nos meios digitais, nos clubes e na
confederação, mas por enquanto sem êxito.

Reconstruindo a memória
Os mais de sessenta anos que separam a participação
nacional nos Jogos Olímpicos de Helsinque e nossa pesquisa
acabaram sendo determinantes para que não tivéssemos acesso
a essa narrativa, que poderia ser esclarecedora e impediria a
ocorrência de erros. Afinal, nada é mais autêntico que a narração
do próprio personagem. Conforme aponta Bosi (2003), “Mais que
o documento unilinear, a narrativa mostra a complexidade do
acontecimento. É a via privilegiada para chegar até o ponto de
articulação da História com a vida quotidiana”.

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Os acontecimentos históricos são percebidos pelos
indivíduos de maneira subjetiva, e para isso é preciso sempre
buscar nos testemunhos de outros uma melhor compreensão dos
fatos. Para o pesquisador, não basta conhecer os fatos ocorridos;
é necessário compreender seu significado dentro dos contextos
históricos em que foram concebidos. Sendo assim, a recorrência
às testemunhas é valiosa, pois o documento, tal como qualquer
testemunho, pode apresentar erros, incoerências ou omissões.
“O vocabulário dos documentos não é, a seu modo, nada mais
que um testemunho precioso, sem dúvida, entre todos; mas
como todos os testemunhos, imperfeito; portanto, sujeito à
crítica” (BLOCH, 2002).
É importante ressaltar que essa busca parte do zero,
tamanha a falta de informações pessoais a respeito do futebol
olímpico brasileiro. A participação do Brasil no torneio de futebol
dos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, foi a primeira
da História. Nessa época, os jogadores que representaram a
seleção brasileira eram jovens, com média de idade de 19 anos.
Poucos tiveram a oportunidade de seguir carreira no futebol
profissional em grandes clubes de repercussão nacional, tendo
em vista a concorrência que havia nas equipes. Além disso, os
jogadores que se destacavam precocemente eram contratados
pelas equipes profissionais e por isso não poderiam disputar a
competição olímpica.
Paulinho vestiu a camisa 8 e as cores do Flamengo, onde é
reverenciado por torcedores até o presente. Defendendo o time
carioca, sagrou-se campeão e foi artilheiro. A história de Paulinho
não acaba, mesmo após seu falecimento. A memória coletiva e as
referências dos grupos de que participou nos ajudaram a resgatar
e evidenciar sua história.
Paulo de Almeida (Paulinho Almeida) nasceu em 15 de
setembro de 1933, em Campos dos Goytacazes, no estado do
Rio de Janeiro, e começou a se destacar jogando pelo Goytacaz
Futebol Clube. Dizem os jornais da época que atuava como
ponta-direita e tinha grande habilidade. Logo foi chamado pelo
Flamengo, onde começou a atuar aos 17 anos e já se destacou
na categoria de aspirantes. Aos 18 anos participou do grupo que
foi aos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, mas não jogou,
sendo preterido por outro atacante, Milton Bororó, que mais tarde
seria seu companheiro de clube. O fato de não ter atuado em
nenhuma das três partidas da seleção nacional na competição

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o exclui de outras fontes de informação sobre os atletas que
participaram de Jogos Olímpicos. O site “Sports Reference” é
uma ferramenta utilizada para a busca de resultados obtidos
por equipes e atletas. Nele existe uma seção que contabiliza a
participação de atletas olímpicos com resultados das provas de
que participaram, porém, aqueles que não entraram em campo, os
chamados reservas, não estão relacionados no site. Nessa época,
a regra oficial do futebol não permitia substituições durante as
partidas. Por exemplo, caso algum atleta se machucasse, a equipe
deveria continuar competindo com um jogador a menos. Por essa
razão, dos 18 jogadores brasileiros que viajaram para a disputa
dos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, apenas 11 constam
na relação do “Sports Reference”.
Após voltar da competição olímpica, Paulinho foi integrado
à equipe principal do Flamengo e começou a ter oportunidades,
embora o time fosse formado por jogadores mais experientes.
Paulinho participou da campanha do Flamengo no tricampeonato
estadual nos anos de 1953, 1954 e 1955. Essa equipe foi
marcante na história do clube rubro-negro e é retratada pelo
jornal O Globo e pela Revista Placar como “rolo compressor”.
Paulinho foi o artilheiro do time na temporada, fazendo 23 gols
em todo campeonato, inclusive marcando três vezes na goleada
por 6x1 aplicada no clássico contra o Fluminense em dezembro
de 1955. A edição do jornal O Globo de 19 de dezembro de
1955 elegeu Paulinho como um dos destaques da partida:
“No ataque Paulinho e Dida foram as figuras principais,
desbaratando a defesa adversária com a rapidez de movimentos
e boa classe de jogo”.
Suas atuações na temporada de 1955 o credenciaram à
seleção brasileira principal e Paulinho participou da primeira
excursão de amistosos pela Europa feita pela seleção, em 1956.
Foram sete jogos no período de 8 de abril a 9 de maio de 1956.
Paulinho entrou para a história da seleção brasileira ao marcar o
primeiro gol pelo Brasil em uma partida no estádio de Wembley,
na derrota sofrida por 4x2 contra a Inglaterra, como consta no
livro Seleção Brasileira 1914-2006 (2006). Após essa série de
amistosos, Paulinho deixou de ser convocado para a seleção
brasileira principal e não participou da equipe que, em 1958,
tornou-se campeã do mundo, com nomes consagrados como
Gylmar, Djalma Santos, Didi e Nilton Santos. Paulinho permaneceu
no Flamengo até 1957, onde marcou 60 gols em 127 jogos. Jogou,
ainda, pelo Palmeiras e conquistou o Supercampeonato Paulista

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em 1959. No entanto, não conseguiu se firmar como titular, pois
tinha como companheiro de equipe e posição o grande Julinho
Botelho, jogador histórico do clube alviverde. Jogou também
pelo River Plate em 1960, marcando 4 gols em 14 jogos; e no
Estudiantes de La Plata na Argentina, em 1961, registrando 3
gols em 17 jogos. Jogou por equipes da Venezuela e do Equador,
mas infelizmente não temos dados sobre os clubes em que atuou
nesses países, nem por quais temporadas.
Em conversas com Péris Ribeiro, o jornalista nos contou
que, após encerrar sua carreira de atleta, Paulinho passou por
dificuldades típicas de jogadores de futebol da época, e uma
de suas últimas alegrias foi participar de um encontro com os
tricampeões dos anos 1950 – promovido pelo Flamengo –, no
qual pôde encontrar seus companheiros de clube, como Índio,
Esquerdinha, Evaristo e outros. Seu aniversário de 80 anos foi
também bastante comemorado em Atafona (município de São
João da Barra, vizinho a Campos dos Goytacazes). O ponta-direita
teve três filhas, era viúvo e veio a falecer em 09 de novembro de
2013, três meses após seu aniversário, de enfisema pulmonar.
Ainda que nosso objetivo seja contar um pouco da trajetória
de Paulinho e tantos outros personagens olímpicos que já se foram,
os fatos, os números, os jogos e as estatísticas não substituem os
sentimentos de cada indivíduo ao contar sua própria história e
seus “causos”. O registro obtido de informações e documentos
oficiais resulta apenas uma formalidade para não deixarmos à
sombra aqueles que já foram esquecidos por tanto tempo. Assim
como no caso de Paulinho, outros atletas olímpicos não tiveram
seus depoimentos registrados, não nos permitindo conhecer a
subjetividade, o olhar, a expressão que dá vida à pesquisa. Nesse
caso específico, não pudemos ouvir do próprio personagem qual
sua reação frente a sua ausência da seleção brasileira nos anos
seguintes, visto que ele fez parte do grupo base que venceu a
primeira Copa do Mundo pelo Brasil na Suécia. Não tivemos a
oportunidade de ouvir suas impressões sobre a Vila Olímpica de
Helsinque, lugar até hoje distante do imaginário de atletas e não-
atletas. Não soubemos quais suas sensações ao jogar no Maracanã
lotado e marcar três gols em um “Fla-Flu”.

Considerações finais
Conforme Halbwachs (2006), não há apenas uma memória
individual, mas também uma memória do grupo, que existe

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para além do indivíduo, uma vez que o ponto de referência para
recordar e localizar essas lembranças parte dos contextos sociais
que servem como base para a reconstrução da memória. Ou
seja, a memória individual é formada a partir de referências da
memória coletiva dos grupos nos quais o indivíduo está inserido,
sendo um ponto de vista que sempre se modifica conforme as
relações mantidas entre o indivíduo e os diversos meios. O autor
denomina esses grupos, ou suportes sociais, de “quadros sociais
de memória”, e Casadei (2010) faz referência sobre a obra de
Halbwachs quando cita: “As memórias de um indivíduo nunca são
só suas, uma vez que nenhuma lembrança pode existir apartada
da sociedade”.
Buscando esclarecer e conhecer melhor a história do
jogador, conseguimos – com o jornalista já mencionado – o
contato de um sobrinho e afilhado, que leva o mesmo nome de
seu tio olímpico. Mas após sucessivas tentativas frustradas, não
foi possível ouvir o relato dos familiares sobre sua vida fora dos
gramados ou detalhes sobre seu pós-carreira. Em sua obra O
Narrador (1985), Benjamin destaca que, com o passar dos anos,
as pessoas estão perdendo o contato comunicável, a capacidade
de intercambiar experiências e a qualidade de escutar e entender
o que alguém narra. Segundo o autor, “Ao longo do tempo, a
experiência de narrar e contar histórias entrou em decadência e
as trocas entre as pessoas estão deixando de ser comunicáveis”.
Assim como ocorreu em algumas entrevistas feitas ao
longo do projeto “Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos
Brasileiros”, o primeiro contato, nesse caso com a família, foi
recebido de forma desinteressada e houve certa resistência em
abordar o assunto em relação à história de Paulinho. Podemos
relacionar isso ao timing do participante, ou seja, o tempo próprio
ou tempo pessoal que ele necessita para se sentir à vontade para
compartilhar sua versão da história. Às vezes isso não ocorre ou
até mesmo há recusa em participar da pesquisa por ausência de
entendimento ou desinteresse. Como pesquisadores, é preciso
respeitar o espaço pessoal de cada indivíduo e compreender a
dor que talvez possa existir para certas pessoas e/ou famílias em
rememorar o passado. O silêncio tem sua importância, podendo
significar muitas questões.
“Ainda que o tempo seja quase sempre visto como um
elemento linear, onde, ao nascer, o sujeito traça uma linha e por
ela segue até chegar à morte numa perspectiva de continuum,
tem-se também a concepção daquele tempo que parece nunca

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se esgotar, transformando-se na medida em que se reveste de
significado” (RUBIO, 2013, p. 35). O passado não pode ser
modificado, mas pode ser ressignificado e esclarecido, de acordo
com o que o pesquisador descobre e quais pistas ele busca. Ao
olharmos por essa lente que aproxima mais as histórias, nos
damos conta do quanto o depoimento vivo informa mais que
qualquer estatística.

Referência bibliográfica

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre


literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985
BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício de historiador.
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Websites:
Blog “Tardes de Pacaembu – O futebol sem as fronteiras do tempo”
Disponível em: http://tardesdepacaembu.wordpress.com.
Acervo jornal O Globo
Disponível em: http://acervo.oglobo.globo.com/

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Entre
o passado e o presente:
o jogo dos papéis nas narrativas
de transição de carreira de
Paula e Agra
Neilton de Sousa Ferreira Júnior
Grupo de Estudos Olímpicos – Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP)

O herói parte do mundo cotidiano e se aventura


numa região de prodígios sobrenaturais;
ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva;
o herói retorna de sua misteriosa aventura
com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes.
(Joseph Campbell)

“Paula, após 28 anos dedicados à carreira atlética, passou


a compartilhar suas experiências no esporte na condição
de gestora. Assumiu a coordenação do Centro Olímpico de
Treinamento e Pesquisa de São Paulo e a Secretaria de Esporte
de Rendimento no Ministério do Esporte do Governo Federal,
cargo que deixou para criar o próprio Instituto, Passe de
Mágica, onde alcança centenas de crianças e adolescentes com
educação através do esporte” (Enciclopédia Olímpica Brasileira).

“Eduardo Agra, após 22 anos como atleta, deu continuidade


à carreira de professor de inglês e anos depois tornou-se
coordenador da Associação Alumni. Era tradutor e intérprete
de jogadores e treinadores de basquetebol estrangeiros,
quando foi convidado a atuar como comentarista de esportes
norte-americanos para os canais ESPN” (Enciclopédia
Olímpica Brasileira).

Ambos os desfechos correspondem a questões que nos


últimos anos têm ganhado cada vez mais repercussão: o que
acontece quando o atleta deixa de ser atleta? Que caminhos
percorre para dar continuidade à vida? O que é ser um pós-
atleta? Longe de querer entrar na discussão sobre o movimento
de valorização da memória que vem mobilizando meios de
comunicação e vertentes diversas das ciências humanas, minha
intenção neste ensaio é promover uma reflexão mais densa sobre
como o pós-atleta lida com a condição de ex e de que maneira
o passado interage em seu processo particular de mudança de
papel e reinserção no presente.

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As experiências de Paula e Eduardo Agra nos oferecem
elementos para a compreensão desse processo, pois, através
de suas narrativas biográficas, podemos nos aproximar do
contexto das significações e ressignificações de papéis, bem como
das peculiaridades cotidianas que estruturaram e estruturam
suas transições e que só a arte de narrar pode capturar.
Segundo Benjamin (1987:200), a narrativa é rica de um saber
e sapiência práticos:
[...] tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão
utilitária. Essa utilidade pode consistir, seja num ensinamento
moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou
numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador
é um homem que sabe dar conselhos. Mas se dar conselhos
parece hoje algo de antiquado é porque as experiências estão
deixando de ser comunicáveis.
Assim, os pós-atletas vão representar aqui esse tipo raro
de narrador, classificado por Benjamin como “aquele que tem
muito para contar, por muito conhecer das viagens que fez”,
ao mesmo tempo em que é “aquele que, ganhando a vida sem
necessariamente ter saído de sua terra, tornou-se conhecedor de
suas histórias e tradições”. Segundo Halbwachs (2006), através da
memória e experiência narradas é possível pôr em questão o que
está dado, ampliar o que já é conhecido, ou mesmo reforçar um
conhecimento consagrado. Para Rubio (2001: 2004), é por meio
da narrativa que o atleta/pós-atleta pode traduzir experiências
vivenciais, inerentes à sua carreira esportiva, trazendo-nos um
panorama do contexto em que construiu e desconstruiu sua
identidade, em outras palavras, quem ele foi, o que ele é.

O atleta olímpico e o contexto da transição


Atletas que atingiram o nível olímpico, o prestígio popular
e, em alguns casos, a ascensão financeira através de grandes feitos,
enfrentam um dos maiores dilemas de suas carreiras quando chega
a hora de sair desse papel e dar novo rumo a vida. Essa transição
implica a mudança de uma identidade particular e publicamente
significada para outra a ganhar significado, processo marcado
tanto por desencantos e desencontros quanto por redescobertas e
renascimentos (COAKLEY, 1983).
Além dos primeiros questionamentos sobre o que fazer
e o que ser, atletas de alto nível têm pela frente o desafio de
integrarem-se a um mercado de trabalho e ao mundo cotidiano

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que, a priori, não compreende quem eles são, senão através
de quem eles foram. Nesse momento, pressupostos pessoais e
mundo pretendido também permanecerão em desacordo, até que
as ressignificações e pontos de virada aconteçam (EBAUGH,
1988; SCHLOSSBERG, 1981). Segundo Rubio (2001: 179):
Assim como para o herói, que viveu a experiência do chamado
e da aventura, retornar consiste em aceitar o real, depois de
ter passado por uma experiência da visão da completeza, que
traz satisfação à alma, as alegrias e tristezas passageiras, as
banalidades e ruidosas obscenidades da vida, para o atleta,
deixar o cenário competitivo é se adequar a um mundo
cotidiano do qual há muito ele se afastou e se desacostumou
a pertencer.
É consenso na literatura da transição de carreira atlética
a ideia de que a imersão no contexto esportivo e a forte
identificação do indivíduo com o papel de atleta são nocivas ao
processo de saída desse papel para o desempenho e satisfação
em outros (BAILLIE e DANISH, 1992; WEBB et al., 1998; LALLY,
2007; GROVE et al., 2007; PRICE, MORRISON e ARNOLD, 2010).
Segundo Lally (2007), a identidade pode ser entendida como uma
visão multidimensional de si tão estável quanto dinâmica, mas é
possível que uma dessas visões se torne preponderante, bem com
uma lente através da qual o indivíduo passa a ver a si mesmo
e o mundo. Price, Morrison e Arnold (2010) acrescentam que
a formação atlética unidimensional dificulta o reconhecimento
de competências de enfrentamento e exploração de outras
configurações, tornando o atleta vulnerável à transição.
Essencialmente, a carreira atlética é caracterizada por um
forte compromisso psicológico, físico e de tempo, com um papel
cujas expectativas de realização não são apenas individuais, mas
sociais. O indivíduo que a aspira, desde a tenra idade é estimulado
a internalizar a imagem do ídolo, representante vitorioso de
emblemas que ascendeu social e financeiramente através dos
grandes feitos (RUBIO, 2001). Essa imagem acaba por dominar
aquilo que Webb et al., (1998) chamaram de autoconceito global,
restringindo, assim, a capacidade do atleta de se ver em outros
papéis e contextos.
Embora impere a crença de que a dedicação exclusiva
à carreira atlética seja indispensável para se alcançar
bons resultados, é crescente a discussão que reconhece o
desenvolvimento de interesses para além do esporte como uma
fonte de recursos psicológicos e sociais de enfrentamento bem-

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sucedido das implicações da transição. Segundo Price, Morrison
e Arnold (2010), atletas que desenvolvem, equilibradamente,
interesses significativos durante a carreira esportiva constroem
identidades atléticas “mais elásticas”, tão flexíveis à possibilidade
de descontinuidade no esporte de alto nível e às implicações da
perda de um papel significativo quanto aos desafios da transição
e dos novos papéis da vida pós-atleta.
O envolvimento com o papel de atleta integrado a interesses
da vida cotidiana também está relacionado às experiências de
transição voluntariamente desencadeadas (RUBIO e FERREIRA
JUNIOR, 2012), aos comportamentos de enfrentamento sustentados
por maior percepção subjetiva de controle sobre a mudança
(WEBB et al., 1998) e à utilização de competências transferíveis.
Segundo Mcknight et al. (2009), competências transferíveis são
atributos aprendidos na carreira atlética como, por exemplo, a
necessidade de trabalho árduo para alcançar metas, que na vida
pós-atleta pode se traduzir na obstinação com que novos papéis
são aprendidos e metas profissionais são buscadas. A capacidade
de liderança, resiliência e administração de situações fortemente
estressantes também são atributos muito presentes no papel de
atleta e encontram amplo espaço de aplicação na vida cotidiana
e profissional (COAKLEY, 1983; RUBIO, 2001; MCKNIGHT et al.,
2009; RUBIO e FERREIRA JUNIOR, 2012). A questão é que esse tipo
de carreira atlética, integrada à interesses para além do esporte,
não é a realidade da grande maioria de atletas que buscam ou que
tentam se manter em alto nível. A característica arrebatadora do
imaginário e contexto esportivo contemporâneo tem sido um dos
principais empecilhos ao desenvolvimento de identidades atléticas.
Segundo Rubio (2001), o processo de desenvolvimento
do esporte no mundo moderno foi amplamente influenciado
pelas transformações socioculturais ocorridas principalmente
durante o século XX, e seus desdobramentos estenderam-se até
os dias de hoje, trazendo para a prática esportiva características
do modelo industrial e neoliberal, como a racionalização do
elemento mítico do esporte, a orientação para os resultados e a
espetacularização do desempenho.
Essas mudanças foram fundamentais para a constituição
das representações sociais sobre o protagonista esportivo, que
em tempos mais remotos foi idealizado como extensão da
necessidade humana de contato com o divino; em finais do século
XIX, pensado como um nobre e descompromissado amante
da prática esportiva; mas hoje tornou-se uma das figuras mais

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exploradas pela indústria cultural e científica, um profissional,
referência de sucesso financeiro idolatrada enquanto ídolo,
ao mesmo tempo marginalizada e esquecida na sua condição
humana (RUBIO, 2001; 2006).
Diferentemente do princípio da superação dos próprios
limites e da ritualística que justificavam sua presença na cultura
esportiva da Antiga Grécia, o atleta contemporâneo é aquele que
tem na sua preparação competitiva o meio pelo qual pode superar
os outros, manter-se em alto nível e, assim, garantir seu sustento.
Seu corpo, amplamente utilizado como instrumento de afirmação
político-ideológica em tempos de guerra, agora é arena da batalha
tecnológica contra os limites humanos e recordes. Diante desse
contexto, é no mínimo razoável afirmar que não haveria outro
papel cujas expectativas sociais se estendam a tantas dimensões
como o de atleta.
Ser atleta é destacar-se entre os comuns, alcançando feito
suficientemente satisfatório aos anseios sociais por referências
de conduta e reforço da autoestima. É fazer parte de um plano
tão superior que deixar de ser atleta pode representar não mais
saber quem se é, e, para a sociedade, não mais existir. Esse
imaginário se evidenciou e continua a se evidenciar nas centenas
de histórias de vida de pós-atletas e atletas olímpicos brasileiros,
que devido às suas proezas não explicadas e à obstinação com
que perseguem metas, são comparados a heróis mitológicos,
plenos de autossuficiência. Tal crença é capaz de dessensibilizar e
afastar a sociedade da preocupação em conhecer e reconhecer as
dificuldades por que passa o atleta em sua busca por um lugar no
pódio e por um lugar na vida. À espera de mais um grande feito
do atleta, ignoramos o último, talvez o mais significativo, que é
o retorno à vida comum, quando recupera sua condição humana
e passa a compartilhar suas experiências como que “cumprindo
com o propósito” do seu chamado à aventura (RUBIO, 2001).
Maria Paula Gonçalves da Silva, Magic Paula, nasceu em
Oswaldo Cruz, interior de São Paulo, em 11 de março de 1962. Era
praticante assídua de diferentes modalidades esportivas durante
a infância, mas na adolescência começou a se destacar jogando
basquetebol. Aos 12 anos, recebeu convite para jogar na cidade
de Assis. Dois anos depois foi jogar em Jundiaí, quando passou a
ser convocada para a seleção brasileira. Profissionalizou-se pela
equipe Unimep/Piracicaba, onde jogou por oito anos. Jogou por
uma temporada na Espanha numa equipe madrilena chamada
Tintoretto. Com a seleção brasileira, foi medalhista de ouro nos

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Jogos Pan-Americanos de Havana, em 1991, e integrou a primeira
equipe feminina de basquetebol brasileira a disputar uma edição
olímpica, em 1992. Sagrou-se campeã mundial na Austrália, em
1994, e foi medalhista de prata nos Jogos Olímpicos de Atlanta,
em 1996. No ano seguinte, disputou seu último campeonato
mundial pela seleção. Em clubes, Paula ainda passou por Ponte
Preta/Campinas, Leite Moça/Sorocaba e BCN/Osasco, quando, em
2000, encerrou definitivamente a carreira atlética. Formada em
Educação Física e Gestão, passou a encarar novos desafios dentro
do contexto esportivo.
Eduardo Nilton Agra Galvão, o Agra, nasceu em 31 de julho
de 1956 e começou a jogar basquetebol no Clube dos Portugueses
em Recife, sua cidade natal. Era apenas um adolescente e
coadjuvante entre os melhores jogadores da cidade quando aceitou
convite para seguir carreira atlética em São Paulo. Após participar
de um campeonato sul-americano pela seleção brasileira juvenil,
transferiu-se para a equipe do Esporte Clube Sírio, com a qual se
sagrou campeão mundial de clubes em 1979. A vontade de dar
mais visibilidade à carreira atlética o levou, no mesmo ano, para
os Estado Unidos, onde passou quatro anos estudando na Kansas
State University, rodando o país inteiro a disputar a Elit Eights e
Sweet Sixteens. De volta ao Brasil para jogar pelo Palmeiras, quis
retornar à seleção brasileira e realizar seu maior sonho: participar
de uma edição olímpica. Exibia ótima condição física e técnica,
o que lhe permitiu integrar a equipe que disputou os Jogos
Olímpicos de Los Angeles em 1984. Do Palmeiras, transferiu-
se para o Corinthians, onde ganhou notoriedade. Em finais dos
anos 1980, passou a jogar profissionalmente na equipe da Pirelli,
em Santo André. A essa altura conciliava a função de professor
de inglês com a carreira atlética, atividades que se tornaram
concorrentes na medida em que a demanda de trabalho e as
necessidades da família aumentaram. Agra ainda voltaria para o
Sírio nesse período, mas para encerrar a carreira atlética em 1991.
O processo de saída do papel de atleta para outro papel
segue ritmo e formas distintas para cada indivíduo. Soma-se a isso
o conjunto de experiências que acumulou ao longo da carreira
esportiva e a forma particular de lidar com a mudança. Embora
apresentem semelhanças, as experiências de Paula e Agra trazem
distinções importantes para que possamos pensar de forma ampla
o jogo dos papéis na transição de carreira. A seguir, estabeleço
um diálogo entre as narrativas de transição de cada pós-atleta e a
teoria da saída de papel.

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Tornando-se um pós-atleta
Drahota e Eitzen (1999) realizaram importante trabalho
sobre a saída do papel de atletas para outros papéis,
acrescentando características específicas a um modelo de análise
que desenvolveram com base na teoria da saída de papel de Helen
Ebaugh. Socióloga e ex-freira, Ebaugh investigou a experiência
de saída de papéis sociais relevantes em adultos e percebeu
que, apesar das distinções individuais no que diz respeito à
experiência de mudança de papéis, tendemos a obedecer certos
padrões de comportamento dentro de um processo de transição
classificado como tornar-se um ex, que inclui quatro estágios:
primeiras dúvidas, buscando alternativas, ponto de virada,
criando o ex-papel.

Primeiras dúvidas ou dúvidas originais?


[...] foi como que por intuição! Algo me dizia que eu tinha que
me preparar. Sempre fui muito observadora, acompanhava
atletas que iam chegando nesse momento e falava comigo:
“Quero ser que nem aquele”. Muita gente se perde nesse
momento e eu não poderia cometer o mesmo erro. De livre e
espontânea vontade, falei para mim: “Preciso entender o que
vai ser isso na minha vida”; então, fui buscar a terapia para
entender um pouco quem sou eu. Quando você está no meio
do esporte, você pensa: “Só sei fazer isso e acabou! Sou boa
nisso e acabou!”. E é aí que a gente peca, porque a hora que
acaba tudo isso é que começa uma nova fase [Paula].

Nasceu meu filho em 1990, eu tinha começado a pegar outras


responsabilidades nas escolas e o meu corpo também não
aguentava mais. Eu era um cara que ia a 110 km/h, mas passei a
ter muitas dores e não conseguia me recuperar tão rapidamente.
Mas eu sempre vi na minha carreira muitos exemplos daqueles
que não conseguem parar, e eu sempre falava pra mim: “Eu
quero parar quando estiver por cima” [Agra].
Conforme ilustram as narrativas, as primeiras dúvidas são
provocadas por variáveis situacionais diversas, marcando um
primeiro momento de questionamento, avaliações e considerações
sobre o papel atual e os significados da mudança (EBAUGH, 1988).
Por ser o papel de atleta desempenhado em um contexto altamente
competitivo e instável, é próprio dessa atividade que a mudança
para outro papel seja encarada como algo iminente. Foi pensando
nisso que Drahota e Eitzen (1998) sugeriram que as primeiras

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dúvidas são, no caso atleta, dúvidas originais, considerando os
riscos (lesões, decréscimo de desempenho, demissões, quebras de
contrato com patrocinador) que continuamente levam os atletas
a pensarem a forma como sairão desse papel e buscarão outro.
Paula, ciente da finitude da condição de atleta e estimulada pela
experiência de transição de outros atletas, no alto dos seus 25
anos de carreira esportiva buscou recursos que lhe permitissem
compreender melhor a própria transição, a qual foi elaborada não
como um fim, mas como o início de uma nova fase da vida, com
a possibilidade de assumir papel na gestão do esporte.
Agra, por sua vez, teve sua saída do papel de atleta
pensada a partir do decréscimo no desempenho atlético, que, se
desconsiderado em virtude da continuidade na carreira atlética,
poderia frustrar a transição que queria vivenciar voluntariamente e
não como resultado de demissão desmoralizadora. A concorrência
de atividades também foi determinante para a sua mudança, que
não se configurou como uma transição propriamente dita, mas
como uma reorganização de prioridades em que o papel de atleta
passou a dar maior espaço para os papéis de pai e professor.
O fato de terem vivenciado carreiras atléticas longevas
(28 e 22 anos, respectivamente) e a obtenção de metas pessoais
importantes parecem abrir espaço para a reflexão sobre a
possibilidade de exploração de outros horizontes. Importante
ressaltar, também, que a saída do papel dos pós-atletas ocorreu de
forma voluntária, do contrário eles não passariam pelas primeiras
dúvidas, como é o caso da maioria dos atletas, que terminam suas
carreiras esportivas repentina e abruptamente. A saída voluntária,
por sua vez, sugere o fechamento de um ciclo.

Buscando alternativas ou diferença de época


As pessoas me dizem: “Você não tem vontade de estar lá?”.
Não! Eu sinto que foi tudo muito bem digerido. Acho que
uma coisa em que tem que se estar muito atento é quando
você quer que aquilo perdure para a vida toda. Seu passado
vai ficar, não há como ignorar, mas você tem que construir
algo que te faça bem, que te dê prazer, que faça com que
se sinta útil e continue... Não precisa nem ser no segmento
que você viveu. A partir do momento que você começa a se
envolver com outras coisas, você não dá margem para as
incertezas ou fica vivendo do passado. Ficar naquele luto
não é legal se não for como algo que foi bom lá, no passado,
mas que passou. A gente passou a vida inteira buscando se

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realizar e ter sucesso, e chega uma hora em que você fala
“Não busco mais nada?” [Paula].

Pra mim não foi uma coisa imediata porque, assim que parei
de jogar, eu já estava dando aula à tarde na Associação
Alumni e no Colégio Santo Américo todas as manhãs. Então
eu não tive muito tempo para pensar nisso. É óbvio, você sente
falta, mas eu continuei frequentando o Clube, joguei nos
veteranos do Sírio junto com os meus contemporâneos. Na
verdade era só por farra, mas era uma forma de continuar
mantendo o espírito competitivo, até que a frequência foi
abaixando [Agra].
Depois de passar por um período de dúvidas (originais),
avaliar possibilidades, perdas e ganhos, o pós-atleta segue em
busca de alternativas, ensaiando novos papéis, filiando-se a
outros grupos e contextos, compartilhando experiências e/ou
recorrendo à ajuda profissional (DRAHOTA e EITZEN, 1998). A
estratégia que Paula encontrou para lidar com a saída do papel
foi, primeiramente, atribuir significado distinto ao término da
carreira atlética, recurso que estruturou a maneira como encarou
as mudanças. Em outras palavras, os primeiros passos que deu
rumo à transição não foram concebidos como um fim, mas como
uma possibilidade de exploração de novos horizontes, certa de
que as exigências internas e externas por resultados, resiliência
para lidar com altos graus de estresse e bom desempenho
permaneceriam fazendo parte de sua vida.
A experiência de Agra, por sua vez, sugere que a saída
do papel de atleta pode ser menos custosa quando sustentada
pela vivência de papéis da vida cotidiana em paralelo com a
carreira atlética. O tipo de recurso que utilizou para lidar com a
diminuição da intensidade e frequência da prática esportiva foi
o desengajamento paulatino através de competições na categoria
veterano, pelo tempo que considerou necessário. Drahota e Eitzen
(1998) sugeriram que à fase buscando alternativas devam ser
acrescentadas diferenças de época, pois atletas profissionais se
diferem dos atletas amadores no que se refere ao tipo de transição
e conjunto de alternativas de enfrentamento das implicações
da mudança. Atletas profissionais carecem de tempo hábil
para desenvolver outros interesses e papéis e se tornam mais
vulneráveis às crises da transição do que os amadores, por sua vez
mais habituados à dupla jornada de trabalho e, consequentemente,
menos vulneráveis às crises de transição, condição que encontra

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apoio em outros estudos que abordam direta ou indiretamente
o tema (OGILVIE e TAYLOR, 1993; DRAHOTA e EITZEN, 1998;
RUBIO e FERREIRA JUNIOR, 2012).

Ponto de virada e (des)identificação


Eu acho que você tem que se preparar para isso, dizer assim:
“Ou começo a viver uma outra fase ou vou ficar vivendo
daquilo, do passado, e que cada vez mais vai ser algo que vai
diminuir”, entendeu? [Paula].

O técnico me deu a bola na mão, e disse: “Toma conta”.


Então, nesses três anos que joguei no Corinthians eu virei uma
espécie de líder. Eu era um cara que, para a TV aberta, falava
mais e tinha mais oportunidades de representar a equipe em
programas de rádio e TV. Foi uma fase da minha vida em que
eu me conheci melhor como líder. Isso veio a me ajudar, logo
em seguida, na minha profissão como professor [Agra].
O papel de atleta nunca é integralmente encerrado – não
raros os exemplos de atletas que mudam de níveis altamente
competitivos para níveis menos competitivos, mantendo-
se em atividade por motivos de saúde, para continuarem
experimentando do protagonismo esportivo em alguma escala,
ou para compartilharem suas experiências de vida com outros
atletas e pós-atletas, dentre outras possibilidades. Nesse sentido,
o maior desafio enfrentado pelos pós-atletas talvez não seja a
forma como eles se retiram do papel de atleta, mas sim como se
identificam enquanto ex (DRAHOTA e EITZEN, 1998).
Um aspecto comum entre as experiências de ponto de
virada de Paula e Agra foi a maneira ressignificada com que
lidaram com o papel de atleta. Ebaugh (1988) classificou esse
aspecto como uma (des)identificação, momento em que os
indivíduos deixam de se relacionar consigo mesmos e com o
mundo mediante o papel do qual se retiraram e seguem em busca
de novas identificações. Num primeiro momento dessa transição,
a condição de atleta – no plano do autoconceito e da identidade
pública (WEBB et al., 1998) – pode se apresentar como um
recurso de enfrentamento da tensão entre passado, presente e
futuro causada pela saída de um papel significativo e mudança
para outro a ganhar significado. Num segundo momento, o pós-
atleta tende a quebrar essa condição, reunindo seus fragmentos
para estruturar um novo papel (DRAHOTA e EITZEN, 1998).

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Embora os pontos de virada dependam da disponibilidade
de mecanismos e recursos do próprio pós-atleta, a forma como a
sociedade lida com a condição de ex também é fundamental para
a concretização dessa transição. Segundo Ebaugh (1988), o desafio
nesse processo encontra-se não só na forma como concebe a si
mesmo enquanto ex e como ele encara a forma como a sociedade
lida com sua condição de ex e com o novo papel. Pós-atleta e
sociedade articulam, de forma distinta, características do papel
anterior, e as condições de ex-participante de... ex-vencedor do...
medalhista nos... proeminente quando... tanto pode constituir
estruturas centrais do reconhecimento da condição de ex quanto
“vias” de acesso ao novo papel. Nesse sentido, uma característica
em comum nas experiências de Paula e Agra é que o pós-atleta
não traz para o novo papel apenas os feitos no esporte, mas
representações sobre as condições necessárias para alcançá-
los, transferindo esse princípio para outras instâncias da vida.
Em outras palavras, o momento de saída de papel e apropriação
de outro também é uma fase de aplicação de competências
aprendidas no esporte para outro contexto.
Ainda no que se refere a essa fase de ponto de virada, é
importante ressaltar que não há um tempo determinado para seu
desfecho, ou mesmo um desfecho que se possa considerar final,
tampouco uma transição “bem-sucedida” ou “malsucedida”. A
busca pelo quem eu sou é um processo contínuo, não determinado
apenas pela percepção de ajustamento e nível de satisfação do ex
em seu novo papel (WEBB et al., 1998). Ajustamento e satisfação
com a vida de pós-atleta são dimensões essencialmente subjetivas,
e apenas duas dentre as diversas janelas através das quais o ponto
de virada deve ser avaliado.

Criando o ex
Então, é algo que não é fácil, vou ser sempre vista como a
jogadora de basquete, por mais que eu esteja me esforçando
como uma nova gestora. Já estou há dez anos nessa história
(como gestora) e vou ser sempre vista como a Paula que jogou
basquete [Paula].

Teve uma época na minha vida que, além de tudo o que eu


fazia nas escolas, nunca deixei de acompanhar o esporte
norte-americano. Sem internet, toda semana eu ia na Far
Book Store buscar periódicos da New York Times, e assim
eu fui me atualizando. Foi uma época também em que os

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jogadores e treinadores vinham aqui ministrar clínicas,
e numa oportunidade dessas procuram na Associação
Alumni, onde eu trabalhava, um intérprete com um
mínimo de conhecimento de esporte. Daí fui indicado pela
empresa e então passei a trabalhar com isso. Em um desses
eventos eu conheci o Luciano Silva, da ESPN, que quando
precisou de um substituto para a função de comentarista
de basquetebol internacional, pensou: “Um cara que fala
inglês, acompanha a NBA, jogou basquete em alto nível?
Vou trazer o Agra” [Agra].
A quarta e última fase da saída do papel, denominada por
Ebaugh como criando o “ex-papel”, segundo Drahota e Eitzen
(1998), pode ser entendida também como comportamentos
associados à saída do papel de atleta. É o momento mais
importante para o processo de saída do papel de atleta, e também
o mais difícil, visto que muitos atletas podem levar anos para
romper com o papel anterior, ou mesmo não conseguir. No
entanto, segundo Ebaugh (1988), o processo de tornar-se um ex
sempre envolverá tensão entre o passado e o presente, em que
uma identificação com aquilo que se foi têm de ser incorporada
em um papel futuro. Ter sido um atleta proeminente é diferente de
nunca ter sido atleta. Não-atletas não trazem consigo as marcas de
um papel anterior tão distinto e, portanto, não enfrentam o desafio
de inserirem a condição de pós-atleta em um novo autoconceito e
contexto. A autora ainda ressalta que uma das últimas implicações
da saída de um papel significativo para outro está relacionada
às implicações que essa mudança gera sobre outras pessoas. No
caso da saída do papel de atleta, os impactos negativos estão
relacionados aos problemas financeiros e processos de mudança
que familiares, amigos, equipes esportivas, clubes, empresas e
patrocinadores sofrem. Já os impactos positivos podem ocorrer
quando, por exemplo, o pós-atleta projeta-se ou passa a interferir
na sua realidade a luz das experiências, conhecimentos e atributos
que trouxe do esporte consigo.
Paula, por exemplo, é a idealizadora e gestora do Instituto
Passe de Mágica, o qual atende mais de 700 crianças e adolescentes
usando o basquetebol como ferramenta educacional e de
desenvolvimento social. Ela também gerencia recursos financeiros
de incentivo ao esporte olímpico brasileiro, além de compartilhar
suas experiências de superação na carreira atlética, realizando
palestras e consultoria para profissionais das mais distintas áreas.
Agra, por sua vez, há nove anos trabalha para os canais ESPN

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como comentarista de esportes norte-americanos. Antes de chegar
à TV, trabalhou por quase trinta anos como professor de inglês
em colégios, e até hoje é professor e coordenador da Associação
Alumni, instituição voltada ao ensino da língua inglesa. Sua
experiência como atleta ampliou-se quando foi jogar e estudar
nos Estados Unidos, de onde trouxe o novo idioma e o apreço
pela cultura esportiva estadunidense.
Hoje, minha situação em relação ao esporte olímpico
brasileiro acho que é muito forte. A partir do momento em
que o Instituto Passe de Mágica passou abrir espaço para o
núcleo de alto rendimento, um projeto que me fascina, que é o
apoio ao atleta, eu começo aí a ajudar muito. Com uma visão
de ex-atleta, do que eu vivi como ex-atleta, e agora como uma
gestora... essa mescla [Paula].

Eu estou realizado assim. Esse trabalho aqui [comentarista]


me dá muita satisfação. Continuo ainda dando aulas. E a
minha família está em Recife, sempre visito. Então, hoje em
dia eu me considero um cara realizado [Agra].
No que diz respeito à relação que os pós-atletas estabelecem
com os novos papéis no momento presente, suas avaliações,
embora distintas, se complementam. Paula sugere um processo de
criação do ex que envolve a inserção e intervenção do indivíduo
no mundo como forma de significação do novo papel, narrando
que as características de sua experiência como atleta de alto nível
interferem significativamente em sua função como uma gestora
mais sensível às necessidades dos atletas que buscam a condição
olímpica. Agra, por sua vez, parte de uma dimensão de satisfação
com a condição de ex, tendo a realização profissional como um
desdobramento do desempenho de atividades sobre as quais
detém significativo conhecimento, bem como os esportes norte-
americanos e a língua inglesa.
Em última análise, as narrativas biográficas em diálogo
com a teoria da saída de papel sugerem que ser um pós-atleta é
transitar pelo passado e trazer para o presente um conjunto de
experiências, expectativas, atributos, conhecimentos, perspectivas
e poder aplicá-los em um novo contexto e papel. Esse novo papel,
no entanto, é articulado conforme as pressuposições e relações
que a sociedade estabelece com a condição de ex, possibilitando
ou inviabilizando sua inserção no mundo. Segundo Ebaugh
(1988), ser um ex é um fenômeno sociologicamente único e
envolve tensão entre o passado, o presente, bem como um

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processo de (des)identificação com um papel anterior, para que
seus fragmentos estruturem novos papéis.
As experiências aqui descritas sugerem que o papel de
atleta profissional nunca é encerrado completamente e que o
maior desafio imposto a essa carreira talvez não esteja na (des)
identificação, mas sim na forma ressignificada com que indivíduo
e sociedade lidam com a condição de ex. Os tipos de enfrentamento
da saída de papel variaram significativamente, destacando-
se a atribuição de significados (em Paula) e a manutenção de
atividade paralela à carreira atlética e o desengajamento paulatino
da atividade atlética em alto nível (em Agra). As narrativas
apresentam formas distintas de enfrentamento da saída do papel
de atleta, indicando não haver uma forma mais eficaz que outra.
No entanto, a preparação para o término se apresentou em ambas
as experiências como fator crucial da construção de novos papéis.
A relação que a sociedade estabeleceu com os pós-
atletas estava fortemente relacionada à memória de seus feitos.
E foi através dessa memória que expectativas e atributos da
experiência atlética contribuíram com a inserção dos pós-atletas
no cotidiano. A narrativa de Agra, em concordância com as
considerações de Ogilvie e Taylor (1993), Drahota e Eitzen (1998)
e Price, Morrison e Arnold (2010), sugeriu que a manutenção da
vida profissional, em paralelo com a carreira atlética, constitui
uma identidade suficientemente flexível e menos vulnerável aos
problemas da transição de carreira. Price; Morrison e Arnold
(2010) complementam essa consideração discorrendo sobre
a importância da relação equilibrada entre carreira atlética e
interesses para além do esporte, de maneira que o atleta não
esteja tão distante dos papéis e da vida cotidiana que passarão a
fazer parte da sua realidade quando se tornar um pós-atleta.
As narrativas biográficas mostraram-se úteis à discussão
sobre a saída do papel de atleta, pois sendo uma forma distinta de
traduzir para a linguagem memórias de experiências vivenciais,
nos levam até a dimensão cotidiana dos encontros, desencontros,
rupturas e ressignificações que determinam as mudanças. Como
foi possível perceber, as experiências de Paula e Agra trazem em
si, implícita e explicitamente, sugestões práticas. Contido nas
expressões “você tem que...” e “eu vi muitos exemplos de atletas
que...” há um saber trazido de uma experiência vivencial e de
observação dos sucessos e infortúnios de atletas contemporâneos
que indicaram para os pós-atletas – e foram transmitidos por eles
– caminhos, sugestões e significados.

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Referências
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política. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
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LALLY, P. Identity and athletic retirement: A prospective study.
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International Journal of Sport and Society. V. 1, N. 3, 2010.
RUBIO, K. O atleta e o mito do herói: imaginário esportivo
contemporâneo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
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RUBIO, K. ; FERREIRA JUNIOR, N. S. A transição durante a fase
do amadorismo. In: RUBIO, K. Destreinamento e transição de
carreira no esporte. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.
WEBB, W. M; NASCO, S. A; RILEY, S; HEADRICK, B. Athlete
identity and reactions to retirement from sports. Journal of Sport
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A
condição do gregário no
ciclismo de estrada. Aspectos de
uma prática competitiva singular
no esporte contemporâneo.
Rafael Campos Veloso
Grupo de Estudos Olímpicos – Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP)

Introdução
O ciclismo de estrada possui características muito singulares
no tocante à construção da vitória. Tais características possuem
origem no sistema de competição dessa modalidade. O formato
mais famoso de disputa é o esquema de “grandes voltas”, em
que os atletas percorrem longas distâncias por dias seguidos. O
cenário de disputa são estradas de uso comum da população,
que ligam cidades e vilarejos, com centenas de quilômetros de
altimetrias variadas, situadas entre as mais altas montanhas até
estradas de planície ao nível do mar.
Esporte popular entre os europeus e originário desse
continente, possui competições com tamanha tradição que nos
dias atuais se tornaram verdadeiros monumentos e instituições
do ciclismo e do esporte moderno (Dauncey e Hare 2005).
Dentre as competições mais tradicionais podemos destacar o Giro
D’Italia, a Vuelta de España e, principalmente, o Tour de France.
Competições popularmente conhecidas como as “Grandes Voltas”,
nas quais centenas de quilômetros são percorridos em cada etapa
diária e com duração de até três semanas, como acontece nos
dias atuais. Duas delas, o Tour de France e o Giro D’Italia, são
competições centenárias, cujas primeiras disputas datam de
1903 e 1909, respectivamente. A Vuelta de España, igualmente
antiga, mas um pouco menos tradicional que suas vizinhas,
conheceu sua primeira edição em 1935. Durante todo o período
de existência, essas competições foram interrompidas apenas
durante as grandes guerras e as guerras civis (Dauncey e Hare
2005). Outra forma de disputa muito tradicional no ciclismo de
estrada são as chamadas Clássicas da Primavera. As Clássicas são
corridas de poucas etapas, ou de apenas uma, que acontecem
durante a primavera europeia. São marcadas por percorrerem
centenas de quilômetros por estradas rudimentares dos campos
europeus, sendo algumas originais do período medieval. Entre

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as mais tradicionais estão Paris-Roubaix, Milano-Sanremo, Tour
de Flandres, Tirreno-Adriatico e Liège-Bastogne-Liège.
Para sagrar-se vitorioso em tamanha jornada competitiva, os
atletas utilizam-se de situações de apoio indireto e direto. O apoio
indireto é dado, principalmente, por uma caravana de veículos,
valendo-se de mecânico, diretor-técnico, médico e equipamentos
de reserva, que acompanham o pelotão por todo o percurso de
competição. O apoio direto é formado por um ou mais atletas
da equipe, conhecidos como ciclistas gregários. A função dos
ciclistas gregários é, literalmente, doar sua energia, sacrificar sua
performance e resultado, para apoiar e aumentar as condições
de sucesso e chances de vitória do líder (capitão) de sua equipe.
O ciclismo de estrada possui um jogo estratégico intrincado
e complexo em sua disputa semelhante ao jogo de xadrez. Com
as peças sobre rodas, as estradas assumem a forma de um
verdadeiro tabuleiro de xadrez, no qual os atletas protagonizam
uma campanha para favorecer – e defender – a vitória do capitão
de sua equipe. Ainda conforme essa analogia, uma equipe de
ciclismo é formada por peças de especialidades, habilidades e
funções distintas, além de seu respectivo capitão. Nesse contexto,
os ciclistas gregários assumem o front dessa batalha para garantir
o êxito do estratagema ideal contra os adversários, as dificuldades
de cada terreno, as forças da natureza e até mesmo contra o acaso
e o imponderável.
Dentro da competição toda a tática é pautada em uma
espécie de manipulação da resistência do vento, criando situações
para a formação de vácuos aerodinâmicos que reduzem o desgaste
do ciclista. Esse é o motivo pelo qual os ciclistas se agrupam
em “pelotões” durante as corridas, pois os atletas posicionados
à frente, geralmente gregários, se desgastam com “a cara no
vento”, reduzindo a resistência do vento para os demais ciclistas
e poupando a energia de seus líderes. Esse é um dos motivos
pelos quais a unidade básica do ciclismo de estrada é coletiva,
uma equipe. No ciclismo de estrada um líder forte não é capaz
de vencer sem o apoio de uma equipe. E uma equipe forte não é
capaz de vencer sem um líder forte (Brewer, 2002).
Outro fator que alimenta a peculiaridade dessa condição é
de que no ciclismo de estrada, apesar de o atleta vitorioso se valer
de esforços individuais e coletivos de uma equipe atuante dentro
e fora do jogo, o reconhecimento formal é apenas individual.
A modalidade nos jogos olímpicos, não obstante contar com
apenas uma etapa, também é disputada com tais características

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e estratagemas. Nesse caso, quando presente a função do gregário,
temos candidatos diretos a uma medalha olímpica com o objetivo
de abnegar seu sucesso na missão de favorecer a vitória (medalha)
de outro atleta da equipe de sua delegação.
Na condição de gregário, o atleta entra no campo de disputa
não em busca da vitória, como é a tônica do esporte moderno, mas
para uma missão de doação de sua potência aos objetivos de vitória
de outro atleta, que é o líder da equipe. Tal condição caracteriza
uma prática singular no esporte, visto que toda a organização da
prática esportiva profissional contemporânea é estruturada na
valorização da vitória e celebração do vitorioso (Rubio, 2006).
Considerando a condição do gregário no ciclismo constituir-
se de uma série de ações coletivas na disputa, tal prática se torna
singular e destoante da tônica das modalidades individuais por
caracterizar o sacrifício de sua energia em favor de outro atleta
que, mesmo sendo da mesma equipe, representa um adversário
no campo formal da disputa e competição. Essa prática propõe
ao atleta na condição de gregário um vertedouro de valores
e representações imaginárias singulares com um toque de
contraponto quando consideramos que, na estrutura do esporte
contemporâneo, o objetivo é vencer (Rubio, 2006).

Contextualização histórica do surgimento


da prática do gregário no ciclismo
Para uma boa compreensão e contextualização da condição
do gregário no ciclismo de estrada é necessário lançar o olhar para
a estrutura, a história e as bases institucionais dessa especificidade
do ciclismo. Uma característica marcante dessa modalidade é que,
ao longo do século XX, seu desenvolvimento ocorreu de forma
simbiótica com suas principais competições. Seria impossível
qualquer análise a respeito do ciclismo de estrada, e de seus
atletas, ausente o conhecimento dessas competições. Daucey e
Hare (2005) referem-se a uma delas, o Tour de France, como uma
instituição do esporte moderno. Essas competições, ou verdadeiras
instituições, são alvo do desejo dos ciclistas, e, para a maioria,
esse desejo se traduz em ir até o final e concluir a competição.
Tais competições formam o que hoje é conhecido como o circuito
Pro Tour, formado pelas três “grandes voltas”, (o Tour de France,
o Giro d’Italia a Vuelta de España) e algumas outras competições
de menor porte, mas com grande pontuação da União Ciclística
Internacional. O entendimento do formato dessas competições

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é essencial para se compreender a origem e o papel dos ciclistas
gregários. Com o intuito de contextualização, farei uma breve
explanação dessas competições.
As três “grandes voltas” possuem estruturas similares quanto
ao formato de competição. As três são disputadas em vinte e uma
etapas diárias, que podem atingir mais de duzentos quilômetros,
e são interrompidas por apenas dois dias de descanso. O trajeto
de cada etapa geralmente é a ligação de um município a outro,
passando por estradas vicinais e cruzando campos, montanhas,
vilarejos e até pelo centro das cidades que cruza, formando um
grande “cinturão” no país em que é disputada. Essas competições
provocam grande mobilização da população local, que geralmente
enfeita as cidades e corre para a beira das estradas para apoiar
seus atletas favoritos com gritos, empurrões e até distribuindo
água aos atletas. As montanhas, palco de lendárias disputas, são
os locais mais concorridos entre os torcedores, que chegam a
acampar uma semana antes da etapa apenas para garantir um
bom lugar à beira da estrada. São consideradas as competições
mais extenuantes do planeta, e os atletas que concluem essa
jornada chegam a percorrer mais de três mil quilômetros em
apenas vinte e um dias. O atleta que não conclui alguma etapa
é automaticamente desclassificado e excluído da disputa. O
vitorioso é aquele que conclui todas as etapas somando o menor
tempo, e quem garante as condições ideais para o herói são seus
gregários e demais trabalhadores da equipe1.
Tour de France – Considerada a mais importante e
tradicional entre as “voltas”, conheceu sua primeira edição em
1903 e obtém a maior repercussão na mídia. Configura-se como o
maior objeto de desejo dos ciclistas, tanto pela vitória quanto pela
simples participação.
Giro d’Italia – Considerada pelos atletas e especialistas
como a mais difícil de concluir entre as três provas. Isso porque
o percurso inclui as mais duras e altas montanhas da Itália. Sua
primeira edição realizou-se em 1909.
Vuelta a España – Menos tradicional entre as três, porém
igualmente antiga, foi disputada pela primeira vez em 1935.

1
 odas as informações básicas sobre esses eventos podem ser obtidas em seus
T
respectivos sites oficiais:
- Tour de France: www.letour.fr
- Giro d’Italia: http://www.gazzetta.it/Speciali/Giroditalia/2013/en/index.shtml
- Vuelta a España: www.lavuelta.com

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Também com duras montanhas em seu percurso, tem sido palco
de competições muito acirradas nos últimos anos. É caracterizada
por uma prova mais aberta, tendo em vista que os principais
nomes do ciclismo dão preferência ao Tour e ao Giro.
Postas essas informações preliminares, é notória a
extensão da história do ciclismo. A modalidade já integrava a
primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, realizados
em 1896 na cidade de Atenas. Para evitar que o foco deste
trabalho seja desvirtuado entre os fatos históricos, limitar-me-
ei à contextualização histórica referente a pontos e períodos de
grande influencia nas relações institucionais que fundaram o
profissionalismo na modalidade. Benjamin Brewer (2002) analisa
as transformações institucionais do ciclismo a partir da década de
1950, na qual o fator da comercialização começava a acontecer
com mais força, erigindo o profissionalismo no ciclismo.
Brewer (2002) divide o ciclismo profissional em três fases:
1950-1984 – período Clássico ou de Pré-reforma, 1984-1989
período de Rapid Change ou de Reforma e período de Pós-
reforma ou Contemporâneo.

Período Clássico (1950-1984)


Para o referido autor, esse foi o período de maturação do
que ele chamou de “o esporte mais popular do Oeste Europeu”. Em
relação aos atletas, o período é marcado por pouca especialização
técnica e grande hierarquia entre ciclistas líderes e gregários. O
padrão das equipes consistia em menos de quinze atletas para
todas as competições da temporada e poucos trabalhadores de
apoio. Esse apoio consistia em um ou dois mecânicos, um diretor-
técnico e um assistente, e um profissional que, depois, cuidava
da saúde e recuperação dos atletas. Quando esses times com
poucos integrantes eram montados, não se levava em conta que
os atletas poderiam ficar doentes, lesionados ou fora de forma,
desfalcando o time.
A pouca estrutura das equipes era financiada até a década
de 1950 por fábricas de bicicleta. As temporadas de 1953 e 1954
ficaram marcadas pela entrada dos primeiros patrocínios de
empresas de produtos não esportivos, a Nivea beauty products
e St. Raphael alcoholic behavior. Entretanto, o patrocínio ainda
era insuficiente e não permitia bons salários e boa infraestrutura.
Segundo Brewer (2002), na hierarquia das equipes a
tônica era a formação em torno de um ciclista líder, que seria

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responsável pela tentativa de vitória em todas as empreitadas da
equipe. Ciclistas com falta de talento e (ou) carisma para assumir
o papel de liderança eram relegados ao trabalho subordinado
de gregário. No período Clássico, esses ciclistas trabalhavam
em outros empregos fora da temporada de competições, pois o
salário era insuficiente para garantir-lhes a subsistência.
Para o historiador George Nicholson (1991), poucos
esportes possuem um sistema de hierarquias tão rígidas quanto o
ciclismo. Em sua descrição, depois do líder a equipe continha um
ou dois atletas de destaque, que ele chamou de senior protected,
e os demais eram subordinados ao trabalho de gregário. O autor
ainda sugere que a condição de gregário teria “queimado” muitos
talentos antes que tivessem a chance de serem exibidos. Quanto
ao período em questão, afirma que o ciclismo era praticado
por atletas provenientes da classe baixa, assistidos por fãs que
eram do mesmo meio e apenas os líderes ganhavam dinheiro
suficiente para manterem a si próprios e os treinos, mas poucos
alcançavam riqueza.
Voltando a Brewer (2002), nesse período os ciclistas eram
oriundos principalmente de quatro países do Oeste Europeu:
Itália, França, Bélgica e Espanha. Países menores como Suíça,
Holanda e Portugal também contribuíram com alguns corredores.
Alguns poucos ciclistas britânicos também mantiveram carreira
em algumas equipes continentais2, mas sem muito sucesso.
Muitos profissionais e times raramente saíam de seus países para
competir, preferindo focar em corridas de significância regional e
nacional. Ciclistas de fora do Oeste Europeu eram muito raros e
os poucos que haviam eram tratados como novidade. E assim se
manteve até meados da década de 1970.
Para o autor, a função de gregário faz com que muitos atletas
convivam em condições similares, por muitas corridas, durante
muitos dias, enfrentando as mesmas dificuldades. Essa situação

A UCI (União Ciclística Internacional) promove uma divisão de nível de equipes pela
2

obtenção de licenças, que lhes garantem o direito de participar em determinadas


competições. Atualmente, essas licenças são distribuídas mediante a classificação das
equipes em um ranking submetido a, basicamente, três níveis: equipes regionais –
equipes e clubes filiados a federações nacionais, equipes continentais – que recebem
a licença para disputar competições internacionais da UCI e podem ser convidadas
a participar de competições do circuito ProTour (essa licença é referida como Wild
Card), e, finalmente, as equipes com o selo ProTour, que recebem licença para
disputar as três grandes voltas (Tour de France, Giro d’Italia e Vuelta a España) e
atualmente representam vinte e duas equipes, todas oriundas do continente europeu.

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cria um clima de fraternidade entre os atletas que culminou em
uma espécie de código de conduta dentro das corridas, conhecido
como rules of the road. Os líderes são respeitados por atletas
também de outras equipes. Um bom exemplo dessa ética vinda
do respeito e da fraternidade é a situação onde os competidores
não realizam ações de “ataque”3 quando algum líder tem
problemas mecânicos ou um grupo de atletas resolve parar para
urinar. Essa ação clara de fair play permite que os atletas voltem
tranquilamente ao pelotão4, que não para de rodar, para então
continuar o jogo. É uma espécie de pausa combinada entre os
atletas, mas como o pelotão não pode parar, os atletas apenas
diminuem o ritmo e não realizam ações de ataque que possam
interferir no resultado da corrida.
A formação das equipes como é conhecida hoje, com a
consolidação da função do gregário, decorre de motivos práticos
e de necessidades básicas de sobrevivência. O fato que afirma
essa ideia ocorreu durante a edição do Tour de France de 1953,
quando a estrela francesa Louison Bobet convenceu um grupo de
trabalhadores e corredores a sacrificar suas chances de sucesso,
aplicando suas forças a seu favor em troca de receberem parte da
divisão da premiação em caso de vitória de Louison (Woodland
2000, p. 163-164).
Para Brewer (2002), esse tipo de arranjo foi a tônica do
período Clássico. Esse tipo de esquema passou a ser utilizado
também em corridas menores, realizadas em pequenas cidades
e vilarejos situados no interior da França e Bélgica por onde
passava o Tour de France. Essas pequenas corridas representavam
a espinha-dorsal do rendimento dos ciclistas. A partir deste
momento, os líderes de equipe passaram a insistir que seus
gregários fossem incluídos nos contratos dos circuitos mais
lucrativos, recompensando-os durante a temporada.
Em resumo, o período Clássico foi marcado por novos
acordos financeiros, estrutura hierárquica rígida, baixos salários
e pouca interface com a ciência da medicina e treinamento,

Os ataques no ciclismo constituem ações em que o atleta desprende grande energia


3

para tentar definir o resultado da competição, buscando andar destacado do pelotão


para a tentativa de vitória ou por questão de estratégia, como no caso dos gregários.
No ciclismo, os atletas agrupam-se em “pelotões” para obter vantagens aerodinâmicas.
4

A literatura especializada aponta que um ciclista, aproveitando-se do vácuo


aerodinâmico, reduz significativamente o desgaste físico em relação aos atletas que
se localizam à frente com a “cara no vento”. Os valores de redução de desgaste
apontados variam entre 6% até 30%, dependendo do autor e do protocolo adotado.

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mesmo porque estes últimos não contavam muitos avanços.
Diante desses novos arranjos financeiros e da hierarquia dentro
do time, vemos o papel do gregário reforçado.

Período de transição e reforma (1984-1989)


O ano de 1984 foi o ano da revolução do ciclismo moderno,
pois foram observadas mudanças significativas no campo do
treinamento e na estrutura das equipes. Nesse período houve
um aumento significativo de ciclistas não europeus nas grandes
corridas, com destaque para atletas oriundos da Colômbia,
que realizaram sua primeira participação no Tour de France
de 1983 e retornaram em 1984 com resultados significativos.
Nesse espírito inclusivo ocorreu, no mesmo período, grande
aumento da participação de ciclistas de países de língua inglesa.
Frequentemente referidos como “legião estrangeira”, eram
oriundos principalmente do Reino Unido, Austrália e um pouco
menos dos Estados Unidos. O fluxo de ciclistas estrangeiros
nessa época acarretou algumas mudanças no pelotão Pro Tour,
mas não suficiente ainda para alterar as estruturas tradicionais
do esporte (Brewer 2002).
A chegada do ciclista estadunidense Greg LeMond
representou mudanças mais significativas na estrutura do esporte,
principalmente no tocante a negociações e salários. O atleta
assinou contrato com uma tradicional equipe francesa chamada
La Vie Claire, que era organizada por Bernard Hinald, um dos
maiores ídolos do ciclismo francês. Com um estilo rígido de
negociação, o atleta conseguiu um contrato de um milhão de
dólares por três anos, valor que jamais havia sido pago no ciclismo.
O contrato milionário de LeMond provocou rapidamente uma
onda de aumento na escala de salários das estrelas das equipes.
O executivo francês da La Vie Claire, Bernard Tapie, possibilitou a
aquisição de diversas estrelas na tentativa de “arrastar” o ciclismo
profissional para dentro do século XX (Brewer 2002).
Vale ressaltar que nesse período a comercialização do
esporte ganhava cada vez mais força, impulsionada pelo capital
privado em lucrativos esquemas como direitos de transmissão,
patrocínios e disputas comerciais, ao exemplo do famoso caso da
disputa entre as fabricantes de material esportivo Adidas e Puma,
que se infiltraram em grandes entidades do esporte e alteraram
as relações mais internas e ideológicas, alavancando a estrutura
profissional no esporte (Smit, 2007).

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Apesar de a estrutura intraequipe permanecer com poucas
alterações em relação ao período Clássico, essa nova tendência
parece apontar mudanças nas relações dentro da equipe, ajudando
a firmar o papel do gregário. O autor traz o depoimento de um
dos gregários da La Vie Claire, o americano Andy Hampstein,
para quem a vitória pessoal é secundária. Segundo o atleta,
algum ciclista da La Vie Claire tem que ganhar e eles (equipe)
sempre trabalham uns pelos outros. Diz, ainda, que a filosofia
dos atletas dessa equipe era de que a própria La Vie Claire era a
capitã e todos deveriam trabalhar e sacrificar suas forças por ela
(Brewer 2002, p. 286).
Observamos, então, a transição de pequenos investimentos
de fabricantes de bicicletas no período Clássico, para uma sofisticada
estrutura de marketing de grandes corporações que seguiam as
tendências comerciais e do esporte em voga naquela época.

Reforma institucional:
campanha de mundialização
Nesse período transicional, diversas tendências do esporte
moderno começavam a influir no ciclismo profissional. O
ciclismo se encontrava em uma fase de monotonia e encontrou
significativas mudanças sob as ações do então novo presidente da
FICP5, Hein Verbruggen. Na visão de Verbruggen, o ciclismo era
um “velho trem parado”. Um dos motivos devia-se ao fato de que
estrutura competitiva das equipes era baseada em uma espécie de
“estrela solitária” (líder), que obtinha a função de tentar a vitória
em todas as competições. Esse esquema era uma espécie de cartas
marcadas, no qual os gregários controlavam6 o jogo de todas as
corridas deixando a dinâmica da competição sempre isomorfa
e pouco atraente. Os outros motivos, segundo o presidente,
decorriam de práticas que estagnavam a modalidade, tal como a
corrupção na compra e venda de resultados e o doping.
Verbruggen empreendeu três ações que se tornaram os
pilares dessa fase de reestruturação institucional: a globalização

Fédération Internacionale du Cyclisme Professionel.


5

Controlar uma corrida significa realizar uma série de ações realizadas por parte
6

dos gregários, para anular qualquer desempenho que possa alterar o resultado e
desfavorecer o seu líder. A mais comum delas é anular todos os ataques adversários.
Quando todas as equipes realizam a mesma estratégia, a competição perde a
dinâmica, tornando o resultado previsível.

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da modalidade, a criação da copa do mundo de ciclismo e a
elaboração de um sistema de ranking para a classificação de
competições.
Globalização: A ação da globolização foi marcada mais por
uma mudança ideológica, cujo intuito era atrair novos atletas e
fãs de várias partes do mundo. Assim, o calendário de corridas
foi expandido para além do Oeste Europeu e houve maior
abertura para novas equipes e atletas de países não tradicionais
na modalidade. A globalização coincidiu com o colapso e
reintegração das nações comunistas, que rapidamente forneceram
excelentes atletas.
Copa do Mundo: Com a criação da Copa do Mundo de
Ciclismo, a modalidade, além de ganhar corridas adicionais que
vieram a se tornar tradicionais, possibilitou a especialização de
ciclistas de “corridas de um dia”. Embora a função do gregário
seja a mesma nessas disputas, essas competições permitiram a
vitória de outros tipos de ciclistas que não os tradicionais líderes
das “grandes voltas”. Houve aqui uma mobilização hierárquica
com relação à busca pela vitória. A Copa do Mundo seguiu os
princípios da globalização.
Ranking de competições: Considerada a ação mais poderosa
em termos de transformação da dinâmica da modalidade, consiste
em um sistema de classificações de pontos de todas as competições
da temporada, conhecido como o ranking de pontos da UCI7.
O ranking não leva em conta somente a vitória em corridas,
mas também em fatores como a participação em competições
e a permanência em várias etapas de uma “grande volta”. Essa
mudança deu visibilidade a bons atletas, além dos grandes
vitoriosos, abalando um pouco mais a estrutura hierárquica do
período Clássico e colocando alguns gregários mais na mira dos
holofotes. O ranking, que também é por equipes, possibilitou
maior dinâmica na modalidade, atraindo maior atenção da mídia

Órgão máximo e controlador, a UCI (União Ciclística Internacional) tem sua jurisdição
7

existente há mais de cem anos. Durante sessenta anos a UCI supervisionou o ciclismo
de estrada amador e profissional. Em 1964, por pressões do Comitê Olímpico
Internacional para eliminar a possível influência do profissionalismo no ciclismo
olímpico, a UCI foi dividida em duas subfederações: a Fédération Internacionale du
Cyclisme Professionel (FICP), que cuidava do ciclismo profissional, e a Fédération
Internacionale Amateur de Cyclisme (FIAC), responsável pelo ciclismo amador
olímpico (Ibid). Com a admissão de profissionais a partir dos anos 1990, essas
instituições foram eliminadas e o ciclismo passou a ser governado por uma única
autoridade, retornando à UCI em 1993 (Brewer 2002).

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e de investimentos em patrocínio. O ranking de pontos da UCI
passou a ser a porta de entrada na modalidade, tanto de atletas e
equipes quanto de investimento (Brewer 2002).

Período Contemporâneo
A estrutura de “estrela única” da equipe do período Clássico
era um risco para o patrocinador, que via suas chances de espaço
na mídia depositadas na expectativa de vitória de apenas um
atleta. Diante da racionalização do investimento do capital, a nova
estrutura intraequipe diminui esses riscos. Na década de 1990,
as mudanças do período de Reforma foram verdadeiramente
institucionalizadas, solidificando-se na modalidade. Na organização
da equipe, a maior característica foi a maleabilidade da rígida
estrutura hierárquica do período Clássico entre líderes fixos e
gregários subordinados. O sistema de ranking parece ter firmado
a condição do gregário no profissionalismo e clareado algumas
motivações de sua prática, pois permitiu maior visibilidade
e melhores contratos. Nas palavras do gregário australiano
Alan Peiper:
So points became really importante. Points really became
money. The old system of team leaders and domestiques 8 was
to be undermined. (…) With no points, domestiques had no
bargaining power at the end of the year. When it came time to
talk contract, the sprints you had led out and the work you had
done became overshadowed by ‘how many points do you have’.
Domestiques began to be inspired by points, and the desire to
do well grew (Peiper 1992, in Brewer 2002 p. 290).
As equipes passaram, então, a realizar contratações
igualitárias, trazendo para o mesmo time vários atletas com talento
para assumir a liderança do time em uma corrida. Essa situação
proporciona o trânsito de funções em diferentes tipos de corrida.
Nessa condição, o gregário, em uma determinada corrida, pode
se tornar líder, desde que o percurso e as condições o favoreçam.
Além da quebra de hierarquias, esse sistema proporciona às
equipes acumular mais vitórias durante a temporada.
Brewer (2002), ao comparar a estrutura da função do
gregário do período Clássico como o do período Contemporâneo,
chama a atenção ainda para a existência de um tipo de atleta
gregário (Contemporâneo) que emergiu em razão da visibilidade

8
Expressão para designar os gregários na língua inglesa.

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alcançada pela fama pela mídia. Trata-se de um gregário com
notáveis talentos para assumir a condição de capitão e líder
de uma equipe, designado pelo autor como “super gregário”,
mas que escolhe seguir a carreira de sacrificial worker como
forma de amenizar ou escapar das pressões inerentes do esporte
profissional. Aqui se configura uma relação completamente
distinta dos gregários do período Clássico, que não tinham tal
possibilidade.
No período Contemporâneo, a estrutura financeira que
mantém as equipes seguem as mesmas características da organização
do esporte moderno visto em outras modalidades. A estrutura de
patrocínios que sustenta os times profissionais geralmente segue a
mesma racionalização e lógica da comercialização e investimento de
grandes corporações, que culmina na influência de todos os níveis
da estrutura do esporte. Para a esfera do atleta essa organização
refletiu em salários até então jamais vistos na modalidade. Apesar
de ainda haver bom grau de hierarquia no ciclismo, os gregários
também passaram a ser contratados com boa remuneração. Esse
fator de carreira e subsistência parece configurar um elemento
motivacional na função de gregário no ciclismo de estrada. Essa
essência pode ser captada no discurso do ciclista brasileiro de
Murilo Fischer, que representou o Brasil no ciclismo de estrada
nos Jogos Olímpicos de Sydney, Atenas, Pequim e Londres. Fischer
é gregário da equipe francesa Française de Jeux e compete
por equipes do Oeste Europeu há dez anos, sempre na função
de gregário:
Para ter uma carreira longa, é preciso ser honesto e fazer o
que tem que ser feito. Esta é uma mentalidade que se aprende
com tempo. Hoje, sendo sincero, não penso em vencer. Nesse
tempo todo como profissional sempre fiz o meu trabalho. (...)
Hoje em dia é mais difícil encontrar ciclistas comprometidos
com isso, gente com vontade de trabalhar, e isso, acredito, fez
a diferença (Fischer, 2013 pp. 16).
Porém, o ranking de pontos da UCI estimula a
competitividade também nos gregários que encaram a corrida de
forma mais agressiva com o intuito de obter boa classificação.
Como dito antes, uma boa posição no ranking de pontos da UCI
permite maior visibilidade e bons contratos. Dessa maneira, temos
uma grande mudança na dinâmica das competições em relação ao
passado, pois na atualidade não temos mais o gregário passivo do
período Clássico. O gregário contemporâneo, além de trabalhar

230

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para a vitória de seu líder, empreende uma jornada de motivações
pessoais. Ironicamente, a competitividade e o nível das corridas
aumentaram, tornando cada vez mais difícil a vitória dos líderes.
O gregário australiano Adan Hansen entrou na temporada de
2012 para um seleto grupo de trinta e dois atletas que conseguiu
concluir as três “grandes voltas” no mesmo ano, sendo inclusive
o único ciclista a alcançar tal proeza nessa temporada. Sobre a
essência de uma atuação mais ativa e competitiva do gregário
contemporâneo, Hansen diz:
Foi uma grande conquista pessoal. Como um gregário, é muito
difícil poder estabelecer os meus próprios objetivos e brigar por
eles. Não é esta a minha função no time. Conseguir fazer algo
tão difícil foi um feito muito legal para mim. (...) Acho que é
isto que tenho feito. [Hansen refere-se aqui sobre a questão
de ser bem sucedido profissionalmente no ciclismo]. Não sou
líder do meu time, não sou um grande campeão, mas tenho
uma carreira consolidada (Hansen 2013, pp. 16-17).

Considerações finais
O ciclismo de estrada é um esporte conhecido por envolver
esforço coletivo, glória e consagração individuais. Quando ao
pódio, na celebração maior do vitorioso, a luz que encontra o
herói forma à sua sombra o rosto de seu gregário.
A estratégia realizada ao longo da competição transforma
o ciclismo em uma modalidade semelhante ao jogo de xadrez,
com a realização de um jogo de equipe em uma modalidade
individual, favorecendo a figura individual do capitão. Os ciclistas
gregários, como soldados em um front, garantem o êxito de uma
estratégia que visa facilitar a vitória do capitão, destacando uma
atitude de abnegação e entrega incomum no esporte, que valoriza
a competição e a busca da excelência capazes de gerar a vitória.
As histórias de vida desses atletas apontam que o conceito
de ética no esporte, e mesmo o de fair play, passa necessariamente
pela compreensão da cultura da modalidade, constituída a partir
da sua própria história. A nobreza da performance desse peão do
tabuleiro de xadrez, colocado em xeque ao longo da competição,
promove o brilho do rei e a continuidade de outras partidas, que
podem ou não ser jogadas no mesmo tabuleiro. Essa forma de
competir reforça e valoriza o caráter heroico do atleta, que lança
mão da conquista, desejo maior de quem dedica a própria vida a
chegar em primeiro lugar.

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Bibliografia
BREWER, B. D. Comercializatoin in professional cycling 1950
– 2001: Institutional transformation and the racionalization of
“doping”. Sociology of Sport Journal, nº 19, p. 276 – 301, 2002.
DAUNCEY, H.; HARE, G. The Tour de France: A Pre-Modern
Contest in a Post-Modern Context. The Tour de France 1903-2003:
A Century of Sporting Structures, Meanings and Values. pp. 1-29.
Taylor & Francis e-Library, Londres 2005.
FISCHER, M. O Brasil no ProTeam. VO2Max. nº 89, pp. 15-17,
2013, Fevereiro.
HANSEN, A. Herói da Resistência. VO2Max. nº 90, pp. 15-17,
2013, Março.
NICHOLSON, G. Le Tour. The rise and rise of the Tour de France.
Londres: Hodder and Stoughton, 1991.
RUBIO, K. Memória e imaginário de atletas medalhistas olímpicos
brasileiros. Tese de livre-docência. Universidade de São Paulo.
São Paulo, 2004.
RUBIO, K. Medalhistas olímpicos brasileiros: histórias, memórias
e imaginário. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
RUBIO, K. O imaginário da derrota no esporte contemporâneo.
Psicologia & Sociedade; 18, 1, 86-91; jan/abr. 2006.
SMIT, B. Invasão de campo: Adidas, Puma e os bastidores do
esporte moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
UCI Rules. UCI Regulations in Force. Disponível em: < http://
www.uci.ch/templates/BUILTINNOFRAMES/Template1/layout.
asp?MenuId=MTY2NjU&LangId=1>. Acesso em: 13 Fev. 2013.
WOODLAND, L. The unknown Tour de France. San Francisco:
Van der Plas Publishers, 2000.

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Sobre os Autores
Ana Luísa Pereira
Doutorada em 2004 em Ciências do Desporto. Professora e investigadora
de Sociologia do Desporto entre 1999 e 2013 na Faculdade de Desporto
da Universidade do Porto. Foi membro das associações científicas EASS,
ESA e integrou as I&D CIFI2D e ISFLUP; coordenou e fez parte da
equipe de diversos projetos financiados; ganhou dois prêmios de mérito
científico; orientou inúmeras dissertações de licenciatura, mestrado
e doutoramento; publicou cerca de 40 artigos em revistas nacionais e
internacionais peer-review; coeditou dois livros. Atualmente é aprendiz
de escritora de ficção. luisatnunes@gmail.com ou analp@fade.up.pt

Ana Sousa
Doutorada em 2014 em Ciências do Desporto e mestre em Atividade Física
Adaptada. Professora e investigadora na área do desporto para pessoas
com deficiência na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
desde 2009; orientou duas dissertações de mestrado; tem publicações
em capítulos de livros, artigos em revistas nacionais e internacionais
peer-review.

Bárbara Schausteck de Almeida


Professora colaboradora no curso de Bacharelado em Educação Física
(DEF-CEFE) na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Aluna do
programa de doutorado em Educação Física pela Universidade Federal
do Paraná, atuando na linha de pesquisa Sociologia e História do Esporte.
Tem experiência na área de Educação Física, atuando principalmente nos
seguintes temas: sociologia do esporte, megaeventos, políticas públicas,
financiamento, gestão esportiva e marketing esportivo.

Isaias Sodré da Nóbrega Junior


É bacharel em Educação Física (PUC-PR). Especialista em Ciências do
Treinamento Desportivo (PUC-PR). Mestrando em Psicologia do Esporte
(UAB-Barcelona) e membro do Grupo de Estudos Olímpicos (EEFE-USP)

Julia Frias Amato


É psicóloga formada pela Universidade Mackenzie. Especialista em
Psicologia do Esporte pelo Instituto Sedes Sapientiae e membro do
Grupo de Estudos Olímpicos (EEFE-USP).

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Katia Rubio
Graduada em Jornalismo e Psicologia. É mestre em Educação Física
pela EEFE-USP, doutora em Educação pela FE-USP. Fez pós-doutorado
em psicologia social na Universidade Autônoma de Barcelona.
É professora associada da Escola de Educação Física e Esporte da USP.
Autora e organizadora de 19 livros, coordenadora do Centro de Estudos
Socioculturais do Movimento Humano e do Grupo de Estudos Olímpicos
da EEFE-USP e membro da Academia Olímpica Brasileira. Pesquisadora
Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Luciana Ferreira Angelo


Psicóloga, mestre em Educação pela FEUSP. Coordena o Curso de
Especialização em Psicologia do Esporte e do Exercício do Instituto
Sedes Sapientiae (SP). Presidente da Associação Brasileira de Psicologia
do Esporte (ABRAPESP) 2013-15.

Maria Alice Zimmermann


Graduada em Educação Física pela Fefisa. Professora de Educação
Física da Rede Municipal de Ensino, Coordenadora das Olimpíadas
Estudantis da Rede Municipal de Ensino e das atividades de Esportes
da Secretaria Municipal de Educação desde 2006, envolvendo os CEUs
e Escolas Municipais. É integrante do Grupo de Estudos Olímpicos da
Escola de Educação Física da USP. Realiza especialização em Gestão
Pública na UNIFESP.

Neilton de Sousa Ferreira Junior


Graduado em Educação Física pelo Centro de Ciências Biológicas e da
Saúde da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É mestre em Educação
Física pela Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de
São Paulo e membro pesquisador do Grupo de Estudos Olímpicos na
mesma instituição. Em 2013, tornou-se membro da Academia Olímpica
Brasileira (IOA).

Pedro Paulo Funari


Bacharel em História, mestre em Antropologia Social, doutor em
Arqueologia, sempre pela USP, livre-docente e professor titular da
Unicamp, distinguished lecturer, Stanford University.

Rafael Campos Veloso


Bacharel e licenciado em Educação Física pela Universidade Metodista
de São Paulo (UMESP). Especialista em Treinamento Desportivo pelo

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Centro de Estudos em Fisiologia e Treinamento (CEFIT-SP). Integrante
do Grupo de Estudos Olímpicos (EEFE-USP).

Raoni Perrucci Toledo Machado


Professor adjunto na Universidade Federal de Lavras. Bacharel
em Esporte, mestre e doutor em Educação Física pela Universidade de
São Paulo. É membro da Academia Olímpica Brasileira.

Roberta Cardoso
É jornalista formada pela Universidade São Judas e pós-graduada em
Gestão e Marketing Esportivo pela Trevisan Escola de Negócios. Atua
há 10 anos na área de comunicação e faz parte do Grupo de Estudos
Olímpicos da EEFE-USP.

Rui Corredeira
Doutorado em 2008 em Ciências do Desporto e mestre em Atividade
Física Adaptada. Professor e investigador na Faculdade de Desporto da
Universidade do Porto desde 2002, sendo Diretor do curso de mestrado
em Atividade Física Adaptada na mesma faculdade desde 2009. Tem
como principais interesses de estudo as variáveis psicossociais na área
do desporto para pessoas com deficiência, a saúde mental e a sua
relação com a atividade física; orientou várias dissertações de mestrado
e doutoramento; tem diversas publicações em capítulos de livros, artigos
em revistas nacionais e internacionais peer-review.

Sérgio Settani Giglio


Professor da Faculdade de Educação Física da Unicamp. Doutor em
Ciências pela Escola de Educação Física e Esporte da USP e mestre em
Educação Física pela Unicamp. Líder do Grupo Interdisciplinar de Estudos
sobre o Futebol (GIEF) e integrante, do Grupo de Estudos Olímpicos
(GEO-USP) e do Núcleo de Apoio à Pesquisa do Futebol e Modalidades
Lúdicas (LUDENS-USP) e é um dos editores do site Ludopédio.

Silvana Vilodre Goellner


Mestre em Ciências do Movimento Humano (UFRGS), Doutora em
Educação (UNICAMP) e Pós-Doutora em Desporto (Universidade do
Porto) É professora da Escola de Educação Física da UFRGS onde
atua na graduação e no programa de pós-graduação em Ciências do
Movimento Humano. Coordenadora do Centro de Memória do Esporte
(ESEF/UFRGS) e do Grupo de Estudos sobre Esporte, Cultura e
História (GRECCO). Pesquisadora Produtividade em Pesquisa do CNPq.
Email: vilodre@gmail.com

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Victor Andrade de Melo
É professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde atua na
graduação e nos Programas de Pós-Graduação em Educação e em História
Comparada/Instituto de História. É coordenador do Sport: Laboratório de
História do Esporte e do Lazer (www.sport.historia.ufrj.br). É bolsista de
Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Wanderley Marchi Júnior


Graduado em Educação Física e Técnico Desportivo pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1987), Mestre em Educação
Física pela Universidade Estadual de Campinas (1994), Doutor em
Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (2001) e Pós-
doutorado em Sociologia do Esporte pela West Virginia University/USA
(2012). É professor associado da Universidade Federal do Paraná atuando
na pós-graduação, nível de mestrado e doutorado, respectivamente nos
departamentos de Educação Física e de Ciências Sociais. Coordena o
grupo de pesquisa CEPELS/Centro de Pesquisas em Esporte, Lazer e
Sociedade/UFPR e é vice-presidente da Asociación Latinoamericana de
Estudios Socioculturales del Deporte/ALESDE. É bolsista de Produtividade
em Pesquisa do CNPq.

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Lançamentos de Livros
da Editora Laços

1000 pensamentos inspiracionais para viver em equilíbrio,


de Fagner Gouveia
A Caminho do Sucesso, de Edno de Souza
A Legitimidade do Poder Judiciário no Regime Democrático:
Uma Reflexão no Pós-Positivismo, de Gabriel Dolabela Raemy
Rangel
Alice no mundo das Comunicações, de Ferenc Richter Filho
e Kendi Sakamoto
A nova era da Administração, de Mara Lúcia Diotto
Aproximações ao Imaginário, de Marcos Ferreira-Santos e Rogério
de Almeida
Aromaterapia na Vida Diária - Receitas para Viver Melhor,
de Rosângela Vecchi Bittar
A Terapia Floral na Oncologia: tratando a pessoa, não a
doença, de Rosângela Vecchi Bittar

Blanko e Outras Histórias, de Fábio De Bari


Cinema e Contemporaneidade, de Rogério de Almeida e Marcos
Ferreira Santos
“Coaching” Financeiro - Criando um estilo de vida vencedor,
de Carlos Eduardo de Athayde Guimarães
Destruição C riativa ou P asárgada, de Ronaldo Rangel
Desvendando os segredos do Argan, de Inocência Manoel Deus
Joga dados, de Hilton James Kutscka
Disfunção competitiva. A Q ualidade de Serviços
Conquistando Clientes, de Rubens Cukier, PhD
Educação e Culturas Infantis: crianças pequeninas brincando
na creche, de Patrícia Dias Prado

Emagreça sem medo, de Adriana de Araújo


Ética nas Empresas em um Mundo globalizado, de Roberto
Vertamatti
Gerenciando Relacionamentos, fidelizando clientes, de João
Prestes de Oliveira Neto

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Gestão da Hospitalidade Aplicada nas Igrejas Cristãs em
Luanda, de Faustino Bala Francisco, Ph.D
Hipnose: Marketing das Religiões, de Fabio Puentes
Hospitalidade em Shows de Música: Um Estudo Sobre as
Relações entre os Profissionais dos Bastidores, Artistas e
Espectador nas Casas de Espetáculos, de Isaira Maria Garcia de
Oliveira
Hot Rod - A essência, de Fernando Serra e Seldio Gomes
Identidades & Sensibilidades: o cinema como espaço de
leituras, de Iranilson Buriti e José Otávio Aguiar

Imagem Pessoal e Etiqueta – o caminho mais curto para o


sucesso, de Agni Melo e Cristina Gontijo

Inconsciência Secreta, de Sandro Vera


It Coaching, de Allan Rangel
Jogos Tradicionais, de Soraia Chung Saura e Ana Cristina
Zimmermann
Leitura Dinâmica, de Adriana de Araújo
Localização do Ponto de Venda – O Marketing em Boa
Companhia, de Carlos Alberto Dias e Roberto Garcia de Oliveira
Manual das Essências Florais do Sistema Saint Germain no
Alzheimer, de Rosangela Vecchi Bittar
Manual Prático de Coaching, de Noscilene Santos
Multimodalidade Logística – O Modal Rodoviário e suas
Implicações, de Prof. Me. Cláudio Roberto Gomes e Prof. Esp. Daniel
Gomes Ribas
O Call Center do Dr. Hanz, de Kendi Sakamoto, Luiz Edmundo
Cunha e Claudir Franciatto
O Bicho da Maçã, de Regiane Napoli
O Português de Angola, de António Francisco Armando, MSc
O professor como gestor universitário, de Claudia Bock
Os benefícios das essências florais de Bach na cura do
Alzheimer, de Rosangela Bittar
Palavras, simplesmente palavras, de Edvan Cajuhy
Poder do propósito, de Olimar Tesser e Andréia Severino

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Processo Coletivo - curso de Direito processual coletivo,
de Alexandre Zeitune
Produção dinâmica na Logística - o fluxo de satisfação do
cliente, de Claudiney Fullmann

Psicologia Positiva - A Arte de Materializar Sementes de


Sonhos, de José Claudemir Oliveira
Sob as asas de uma borboleta contos, poesias e reflexões,
de Ana Paula Tome
Sobre a ideia do ser humano, de Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio
e Rogério de Almeida
Social C ontact C enter - A revolução das R edes S ociais,
de Kendi Sakamoto
Socorro!!! Não Sei Mais Educar! (E agora???), de Prof. Rafael
Angelo Abud
Terapia floral e Cabala - o repertório das 22 essências
florais - Árvore da vida, de Glória Salviano

Tópicos de Economia, de Ronaldo Rangel e Dirceu Raiser


Trabalho Acadêmico - G uia prático para elaboração,
de Hilda Maria Cordeiro Barroso Braga

Editora Laços Ltda.


Av. Paulista, 1.159 – cj. 815 – CEP 01311-200 – Jardins – SP
Website: www.editoralacos.com.br
E-mail: contato@editoralacos.com.br

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