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Revisão

Alexandre Camaru

Arte de Capa
Bruna Hasegawa dos Santos
Copyright© Fábio Araújo Oliveira
6604/3 – 100 – 64 – 2017

O conteúdo desta obra é de responsabilidade do(s)


Autor(es), proprietário(s) do Direito Autoral.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Oliveira, Fábio
Segredos, verdades e mentiras / Fábio Oliveira. - -
2 ed. - - São Paulo : Scortecci, 2016

ISBN 978-85-366-4493-6

1. Crônicas brasileiras I. Título.

15-10491CDD-869.8

Índices para catálogo sistemático:

1. Crônicas : Literatura brasileira  869.8

Rua Deputado Lacerda Franco, 98


São Paulo - SP - CEP 05418-000
Telefone: (11) 3032-1179
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A Mariah Coutinho de Araújo (in memoriam)
Sumário

Um encontro na Rua das Palmeiras.................................................9


Amor em segredo..............................................................................12
“Tome o que merece, maldita!!!”....................................................15
Segredos, verdades e mentiras.........................................................20
A minha Primeira Comunhão.........................................................25
Segredos da vida e da morte............................................................30
Abrir a porta......................................................................................34
Entre pai e filho.................................................................................40
A mulher e o piolho..........................................................................43
Dia de festa........................................................................................47
O destino de Gabriel........................................................................51
O vento e o mar................................................................................54
Buquê de flores..................................................................................58

Uma leitura de Segredos, verdades e mentiras.......................................60


Um encontro na Rua das Palmeiras

Mário dobrou a esquina que o conduzia à Rua das Pal-


meiras, onde morava desde que veio ao mundo. Ali tudo já
lhe era bastante conhecido, o que lhe dava a segurança de
transitar tranquilamente. Sentia-se em casa, mesmo não tendo
uma aproximação com as pessoas e coisas do lugar a ponto de
serem íntimos. Não! Isso não acontecia! Nem com ele, nem
com quase ninguém que morava naquela rua.
Eram umas dezenove horas de um desses dias chama-
dos de úteis. Mário vinha do trabalho e, talvez por se encon-
trar só, devaneava sobre o dia a dia. Esse era um dos momen-
tos mais prosaicos e repetidos em sua vida, porém ainda não
tinha encontrado meios de trapaceá-lo.
Ao atravessar a rua, a corridinha que precisou dar, por
causa de um dos poucos carros que estavam aumentando o
vazio de um estacionamento, fê-lo voltar à realidade que ele
considerava concreta. Olhou melhor a rua e não viu nenhum
conhecido. O lugar estava entregue aos forasteiros. Eram
poucos, mas eram forasteiros.
Mais à frente, o indigente que Mário via havia três me- Segredos, verdades e mentiras
ses, quase todos os dias, catava lixo. A cena já tinha se torna-
do tão habitual que não arrancava mais os “Coitado!”, “Que
situação!”, ditos por ele em seus primeiros gelados encontros
com aquela criatura. Certa vez, entretanto, até chegou a pen-
sar em lhe agradar com um prato de comida, mas temia criar
vínculos com o estranho. Dar-lhe comida poderia ser um elo
entre ordem e desordem, e isso seria insuportável para Mário.
Era melhor deixar as coisas como estavam.
Nesse trecho e nesse horário algo acontecia sempre: al-
guns segundos de seus pensamentos, quando muito minutos,
eram ocupados pelo indigente. Essa era uma de suas formas
de mostrar-se humano, porque ele precisava considerar-se as-
sim, ou menos desumano do que aqueles que o cercavam. 9
Também, nada nele, cidadão comum, era valorizado, a não ser
essa humanidade que lhe arranjaram. Cuidar dela, portanto,
era uma ocupação rentável.
Quando Mário se aproximou do indigente e iria descer
a calçada para contorná-lo e retomar o seu caminho: o cheiro!
Ou o mau cheiro! Algo de insuportável tinha-o invadido a
ponto de causar-lhe náusea. O cheiro era tão autoritário, tão
pleno, tão angustiante que adentrou nas entranhas do cidadão
comum sem pedir licença e ali fixou residência, dominando
os seus sentidos, enlouquecendo o homem, fazendo-o querer
uma outra vida em que não passasse por aquilo. Tapou o na-
riz, com uma das mãos, mas a náusea persistiu com a mesma
voracidade de um bicho faminto diante de comida. Então ta-
pou a boca, com a mesma mão, vazia, para segurar o vômito.
Desceu a calçada, viu de perto que a causa do seu sofrimento
era matéria-sustento de mais uma noite para o mendigo; ma-
téria podre. E pensar que a mão que tentava amenizá-lo do
sofrimento por qual passava – porque, nesse momento, era
apenas isso que cabia a ela – poderia tê-lo poupado disso, se
ele não tivesse temido. Sentindo-se tonto, contornou o indi-
gente e retomou o seu caminho, andando mais um pouco até
deixar totalmente livre aquela sua mão. Mas livre para quê?
Esse resto de caminho, como se fosse para intensificar
a agonia de Mário, tornou-se desconhecido e caótico. Mas o
que não se tornara isso agora? A sua casa? Porque até ele pró-
prio se sentia assim. E, por ironia, tudo isso o fazia começar a
perceber a si próprio e o outro. Além de sentir a podridão de
fora, começava a sentir a podridão de dentro, que não tinha
cheiro, não tinha forma, não tinha cor, não tinha sabor, porém
Fábio Oliveira

se revelava de modo cruel.


Finalmente Mário chegou em sua casa. Sua mãe serviu-
-lhe a janta, mas ele recusou degustá-la. Nessa noite não fez
mais nada, apenas foi deitar. E a janta? Foi para o lixo. Talvez
virasse refeição para o mendigo no dia seguinte. Quanto ao
comportamento do filho, Dona Maria atribuiu ao cansaço do
10 trabalho.
Pela manhã, o cidadão comum foi acordado pelo des-
pertador, como de costume, para ir ao trabalho. Sentia-se
pesado demais. Dormiu mal. Mas se levantou, fez a higiene
matinal, desjejuou e foi cumprir a sua obrigação: saiu de casa,
atravessou a rua e caminhou em direção à esquina que deixava
para trás a Rua das Palmeiras, lembrando do que tinha acon-
tecido na noite passada. Então cheirou a si próprio... e não
sentiu nada!

Segredos, verdades e mentiras

11
Amor em segredo

Era uma noite fria de inverno. Leonardo estava no


quarto, usando o computador e viajando pela internet. Berna-
dete, a pessoa que mais o amava no mundo, estava na sala
do pequeno apartamento, com vontade de realizar aquilo em
que não parava de pensar ultimamente. Quando pensava na-
quilo, como nesse momento, ora achava a coisa suprema, ora
assombrosa.
Eles se conheciam havia quase quarenta anos. Tinham
vivido tantas coisas juntos. Quando jovens, foram presos pela
Ditadura Militar. Ele só foi preso, ela foi presa e torturada.
Desde essa época, em que se conheceram, namoravam, mas
nunca moraram juntos.
O primeiro encontro de Leonardo e Bernadete foi
numa sessão de exibição do filme Terra em Transe, em um
cinema de São Paulo. Eles foram apresentados por amigos
em comum. Depois dali, todos foram a uma festa de estu-
dantes, onde aconteceu o primeiro beijo do casal. Naquela
época, os dois participaram juntos de leituras em grupo, de
passeatas organizadas pela UNE, e também de encontros
clandestinos.
Bernadete sempre foi muito dedicada a Leo, como o
chamava. Essa mulher amava-o muito, e talvez por isso sem-
pre aceitou as condições do seu amado para estar com ele.
Leonardo gostava muito dela, mas sempre agia a seu modo,
aproveitando-se dessa submissão feminina.
Fábio Oliveira

Nessa noite, Bernadete estava cansada da rotineira viagem.


Ela morava no Rio de Janeiro havia dez anos. Mudou-se de
São Paulo para lá para trabalhar como professora de Literatura
Brasileira em uma universidade pública. Leonardo, um arqui-
teto, sempre viveu em São Paulo. Desde a sua mudança, a
professora costumava viajar uma vez por mês para encontrá-
12 -lo. O arquiteto só a esperava.
O desejo de Bernadete era casar-se com seu amado.
Queria um casamento simples. Quando ainda eram jovens, já
pedia isso a ele, mas havia quase quarenta anos esse homem
adiava o casamento, porque achava que ainda não tinha chega-
do o momento certo para isso. Ao longo desse tempo, o que
mais evoluiu na relação do casal foram justamente os impedi-
mentos para que se selasse oficialmente a sua união.
Esse desejo da professora era muito grande. E agora,
com eles já bem próximos da velhice, achava que não mais
conseguiria realizá-lo. Às vezes pensava que Leo não a amava,
e isso estava atormentando-a ultimamente. Seria insuportável
ter certeza disso. Foi assim que Bernadete começou a substi-
tuir o seu desejo de casar, e na cabeça dela ser verdadeiramen-
te amada, por transformar-se em borboleta. Ultimamente não
tirava da cabeça a ideia de virar borboleta.
Já era quase meia-noite. O arquiteto continuava no
quarto, como se estivesse sozinho em sua casa, quando essa
mulher decidiu impulsivamente que aquele seria o momento
da metamorfose. Pegou uma cadeira na sala e foi até a janela.
Da cadeira fez sua escada para subir naquele retângulo agora
aberto e livre. Em pé no batente da janela, abriu os braços e
em forma de cruz, silenciosamente, atirou-se dali. Durante
a queda, ela foi uma borboleta de grandes asas azuis com Segredos, verdades e mentiras
contornos negros e círculos dourados. As asas ficaram vio-
letas. A borboleta voava muito rápido em direção ao campo
repleto de lindas margaridas. O grande campo virou um pe-
queno casulo e aguardava o ser que voava em sua direção
para abrigá-lo.
Do quarto do seu apartamento no décimo terceiro an-
dar, Leonardo ouviu um barulho enorme e gritou: “Amor, o
que aconteceu lá embaixo?” Sem resposta, continuou: “Amor,
sabe que barulho foi esse?” Ainda sem resposta, levantou-se
e foi até a sala perguntando: “Bernadete? Bernadete, cadê
você?” Olhou da janela e viu a rua com um amontoado de
pessoas em círculo. Algo estava acontecendo e sua compa-
nheira não estava em casa. 13
Leonardo desceu apreensivo. Já no elevador, não ou-
viu o interfone do seu apartamento tocar. Na entrada do seu
prédio, perguntou ao porteiro o que tinha acontecido, e ouviu
que a Dona Bernadete havia se jogado de lá de cima. Leo es-
tremeceu. Com o coração disparado e as mãos geladas, correu
para constatar o que estava no meio daquele círculo de gente
curiosa: era Bernadete desfigurada.
Ele voltou a seu apartamento chorando, sem ainda sa-
ber que viveria a pior madrugada de sua existência. Foi nessa
terrível noite que descobriu que Bernadete era a mulher da
sua vida, e que seria difícil continuar vivendo sem ela. Pensou
no casamento que poderia ter vivido com a professora, nos
filhos que não teve, no grande amor que ela nutria por ele, na
comida gostosa que ela fazia para os dois, na sua voz suave e
doce, no sexo gostoso que tinha com essa mulher, nas brigas
de casal e nas reconciliações...
Ainda nessa madrugada, na delegacia onde prestava seu
depoimento sobre o acontecido, sentiu-se sozinho. Não tinha
amigos, não tinha pais vivos e não tinha parentes com os quais
pudesse contar. Somente agora percebia que amou, amava e
sempre amaria Bernadete, e não teria mais a chance de dizer
isso a ela. Sentiu-se culpado pelo triste acontecimento e, mais
ainda, por achar que não havia cuidado do seu amor por esse
ser. Percebeu que vivera um grande amor em segredo.
Leonardo nunca mais conseguiu dormir à noite. Às ve-
zes, durante as madrugadas, tinha o estranho pensamento de
virar um peixe, mas, durante o dia, esquecia-se disso. Apesar
de tudo que lhe tinha acontecido, algo nele desejava viver,
como que quisesse testemunhar sua frágil existência.
Fábio Oliveira

14
“Tome o que merece, maldita!!!”

Magali avistou aquele homem branco, jovem, mas um


pouco corcunda, e usando óculos e jaqueta jeans. Logo o
grupo das quatro putas em que ela estava naquela madru-
gada fria de terça-feira se inquietou. Do bando saíam risos
e ruídos. Elas conversavam, reclamavam, xingavam. Final-
mente o homem atravessava a rua para alcançar a calçada
onde as putas estavam, depois de muito questionar-se se de-
veria retornar àquele lugar.
Jéssica disse às outras que com aquele maluco não fa-
ria programa mesmo se ele pagasse cinco vezes mais o que
ela cobrava. Quando o homem já estava bem próximo delas,
Jéssica puxou Rita pelo braço, convidando-a para tomar uma
cerveja e dizendo que pagaria a bebida. As duas saíram falan-
do mal daquele homem. Rita também não aceitava fazer o
programa com ele.
O nome dele era Jorge. Aquele homem trazia a sua sa-
cola de sempre, com o conteúdo de sempre. Às putas daque-
la rua ele não contava onde morava, o que fazia, nem se ti-
nha mulher e filhos. Os comerciantes do lugar conheciam-no Segredos, verdades e mentiras
por meio das fofocas das putas e se divertiam bastante com
as histórias que elas contavam sobre ele. Mas elas só sabiam
sobre Jorge que ele pagava o dobro pelo programa, que apa-
recia ali quase uma vez por mês para procurá-las e que tinha
aquela mania esquisita de transar. Elas também deduziam
que o homem era pobre, por causa das roupas desgastadas
que ele usava e porque não tinha carro, o que lhe causava o
incômodo de sair pelas ruas com aquela sacola, sabe Deus
de onde ele saía até chegar ali, uma rua do centro da cidade.
Jorge encontrou as meninas – era assim que ele cha-
mava as putas – e acertou o programa com Magali. Ele era
um de seus poucos clientes fiéis, embora também raramen-
te saísse com outras poucas putas que o aceitavam. Os dois 15
despediram-se de Thalita, a outra menina com quem Ma-
gali estava nesse momento, e foram para o hotel barato de
costume, pertinho dali mesmo. Ele estava muito agitado e
ansioso. Quando os dois já estavam distantes de Thalita, ela
falou sozinha:
– Que merda de noite! Pra ganhar dinheiro hoje só
mesmo com um louco! E que frio, caralho! O jeito é cheirar
uma carreira!
Como sempre, na sacola tinha uma galinha. E estava
viva. A sacola era sempre a mesma, com estampa florida, tí-
pica de uma dona de casa. Depois que os dois entraram no
quarto do hotel, Jorge tirou o animal da sacola e o colocou
em cima da cama de casal. O bicho tinha os pés amarrados e
estava tão quieto que parecia exausto.
Magali era uma mulher jovem, branca, alta e forte.
Tinha pernas roliças, seios avantajados e uma barriga sa-
liente. Vestia uma blusinha amarela e uma minissaia preta.
Calçava um sapato de salto moderado e usava uma bolsa
preta e grande. Sua cara estava carregada por causa da ma-
quiagem. Ela tirou sua roupa, sentou na borda da cama e
acendeu um cigarro.
Jorge tinha ido ao banheiro e já voltava. Enquanto ele
tirava sua roupa, Magali olhou para a galinha e perguntou:
– É pra fazer como sempre, Jorge?
– Sim – respondeu.
Aquele homem deitou em uma toalha velha que colo-
cou no chão, em frente à cama. Magali já tinha terminado de
fumar e colocou o animal ao lado esquerdo dele. Com isso, o
seu pênis começava a enrijecer.
Fábio Oliveira

– Mame gostoso! – disse Jorge a ela.


Magali fez o sexo oral até vestir o membro daquele ho-
mem com um preservativo dela. Jorge continuava muito agi-
tado e ansioso. Ela falava pouca coisa. Ele não parava de olhar
alternadamente a galinha e a puta, que estava ajoelhada entre
suas pernas abertas. Finalmente a puta mudou sua posição e
16 sentou no cacete protegido, permanecendo de frente para o
homem. De repente, Jorge transformou-se, passou a agir com
agressividade e autonomia. Aquela sensação da qual ele tanto
precisava para sentir-se aliviado começava a rebentar. E ele
gritava, como um homem confiante que estava dominando
uma situação, frases como:
– Sua puta, sua vadia, pegue no pescoço dessa nojenta!
Maltrate essa imunda!!!
E Jorge começava a ter aquele seu prazer que não con-
seguia controlar, enquanto a galinha começava a sofrer violen-
tamente, e a puta começava a sentir-se totalmente submissa,
como realmente gostava de ser tratada.
Magali cavalgava no cacete do seu cliente, em movi-
mentos nem apressados, nem vagarosos, enquanto apertava
com uma de suas mãos de unhas pintadas de vermelho o pes-
coço da galinha indefesa, que batia as asas convulsivamente e
cacarejava desesperadamente. O animal parecia uma digna e
apavorada senhora sendo maltratada por desconhecidos sem
saber o porquê daquilo.
Jorge comportava-se achando que estava humilhando
a puta e a galinha com os muitos palavrões que falava, en-
quanto a puta de fato maltratava a galinha e se maltratava
também. Isso o deixava fora de si de tanto prazer. Quando
ele estava perto de gozar, gritou muito alto frases como: Segredos, verdades e mentiras
– Mate essa galinha maldita, sua vagabunda!!! Tire o
sangue dessa imunda!!! Tire essa devassa do mundo!!! Tome o
que merece, maldita!!!
Enquanto Magali torcia o pescoço da galinha em cima
do peito cabeludo de Jorge, ele gozava. O sangue espirrava
e jatos atingiam o rosto de Magali, os seus seios, e sujavam
sua barriga. Jorge tinha o tronco banhado por aquela poça
de sangue da coisa que ele considerava uma maldita.
A puta jogou a cabeça e o resto do corpo da galinha
em qualquer lugar, sem pensar no que estava fazendo. Ma-
gali estava cansada, mas com uma satisfação de ter cumpri-
do o seu dever. Jorge sentia-se aliviado. Eles levantaram-se
dali. Enquanto Jorge embrulhava a galinha em um plástico 17
preto que trouxera dentro da sacola, Magali limpava o chão
e o que via sujo de sangue com a toalha velha que ele tam-
bém trouxera na mesma sacola, e que servia de cama na-
quelas situações. Os dois queriam sair rápido daquele lu-
gar. Jorge juntou na sacola tudo que usara e pagou a puta
pelo seu serviço. Depois disso, eles saíram do quarto. A
puta estava calada.
O quarto do hotel já estava pago. Os dois retiraram suas
carteiras de identidade na recepção do lugar, despediram-se
da recepcionista e foram embora, cada um para um lado. A
recepcionista, depois que eles saíram, disse para si mesma:
– Tem cada doido nesse mundo! Bem que ele podia
deixar as bichinhas pra mim. Eu ia fazer um almoço tão bom
pros meninos. E o Tonho, gosta tanto de frango. E é uma
carne tão saudável...
Esse homem voltava para casa satisfeito, mas cansa-
do e sentindo um vazio enorme que não sabia explicar. Mais
uma vez ele se perguntava por que fazia aquilo, por que sentia
aquele desejo estranho, já que não queria realizá-lo. Mas fazia
e não conseguia interromper. Uma vez ficou seis meses sem
praticar, mas não resistiu a esse prazer, então passou a registrar
as datas em que fazia isso, como forma de controlar-se. Fez
promessa para livrar-se desse ato e parou de praticar nova-
mente por três meses, mas voltou a realizar esse desejo. Já
fazia quatro anos que tinha esse vício. Sentia culpa desde a
primeira vez em que praticou esse assustador ato. Mas o dese-
jo era incontrolável, dominava-o. E era tão bom.
Jorge também se perguntava por que tinha que ser jus-
tamente uma galinha. O que isso significava? O que possuía
Fábio Oliveira

aquele bicho que o atraía? Nas putas, ele não pensava. Nem
mesmo em Magali, que sempre o aceitava como cliente.
Magali voltou para a rua onde trabalhava. Já era qua-
se quatro horas da manhã. Ela não estava alegre, nem triste.
Encontrou Tanuxa, o travesti negro que comandava o comér-
cio sexual daquela rua. A puta pagou a comissão do dia à
18 sua cafetina, conversou muito pouco com ela e com as outras
putas que estavam por ali. Não encontrou mais Jéssica, Rita e
Thalita, então resolveu ir para casa. Tirou da sua bolsa o seu
sobretudo, vestiu e foi embora, pensando em Jorge. Mais tar-
de, tinha de trabalhar mais...

Segredos, verdades e mentiras

19
Segredos, verdades e mentiras

Num apartamento perdido na cidade,


Alguém está tentando acreditar
Que as coisas vão melhorar ultimamente.
A gente não consegue
Ficar indiferente debaixo desse céu.

(Lá vou eu, Rita Lee e Luiz Sérgio Carlini)

Era uma noite de sábado. Tinha chovido toda a tarde.


Carlos não tinha saído de casa naquele dia. A noite estava com
uma temperatura bastante agradável. Ele armou a rede na va-
randa do seu apartamento durante o crepúsculo. Fazia algu-
mas horas que estava deitado nela. Já tinha fumado alguns ci-
garros. Entre um pensamento e outro, adormecia e acordava.
O apartamento estava apenas com a luz da cozinha ace-
sa. Era um imóvel até grande, antigo, confortável e clean. Car-
los morava nele havia um ano. Ficava no centro da cidade, em
um edifício bem cuidado e conservado. A compra do apar-
tamento foi um grande sonho realizado para esse homem.
Desde então, nos seus horários de folga, passava mais tempo
em casa do que fora dela.
Aos 39 anos, achava que estava envelhecendo cedo de-
mais. Ultimamente vivia mais com a internet, os livros e a tele-
visão. Evitava encontrar os amigos, construir novas amizades.
Tentava evitar conviver com a dor alheia, acreditava que a sua
Fábio Oliveira

já era suficiente para suportar, embora sentisse falta de uma


paixão, de uma ocupação insana para o coração. Estava viven-
do tempos de atravessar desertos.
Ele era um homem alto e magro, usava óculos, estava
com início de calvície. Gostava de vestir-se de modo bási-
co. Sempre fora inseguro e ansioso, apesar de parecer forte
20 e guerreiro. Para os que estavam ao seu redor, parecia assim
porque já tinha conquistado muito em sua vida. Tinha saído
da casa de seus pais aos 17 anos para estudar na metrópole.
Um ano depois, seu pai veio a falecer. Teve de trabalhar para
sobreviver e também para ajudar na sobrevivência de sua mãe,
a pensão não era suficiente. Cursou jornalismo. Seu primeiro
emprego foi como vendedor em uma loja de calçados. Depois
estagiou em um jornal, onde progrediu profissionalmente e
permanece até hoje.
O trabalho era muito pesado para o jornalista Carlos,
que achava que a profissão lhe roubava a vida. Trabalhava
muito, achava que ganhava pouco e não gostava da rotina.
Além disso, mesmo escrevendo diariamente por conta de
sua profissão, queria dizer outras coisas que habitavam sua
cabeça, mas não tinha tempo, não sabia como, não se sentia
preparado, não tinha coragem, achava que não tinha chega-
do o momento certo...
Também queria conhecer o mundo, viver de lugar em
lugar, amando aqui e ali. Queria experimentar novas sensa-
ções, novos sabores, aprender coisas novas. Ele sabia que o
mundo era grande e queria estar no mundo do seu modo.
Achava que o seu dinheiro não era suficiente para todas as
suas realizações. Estava estudando inglês, pois seu chefe
lhe pedia isso, mas tinha dificuldade em aprender a língua. Segredos, verdades e mentiras
Já dominava o espanhol, mas queria falar francês, alemão
e mandarim. Conhecia a Argentina, mas queria conhecer a
Europa. Queria entender de filosofia, relações internacio-
nais, física... Mas também havia o limite do tempo, do corpo,
do pensamento...
Houve uma época em que o jornalista queria livrar-se
de suas responsabilidades e obrigações, e desejou tornar-se
um indigente, viver na rua, sobreviver da ajuda das pessoas,
fazer sexo livre como os animais, não possuir vínculos rígi-
dos com o mundo, mas acabou esquecendo-se disso. Depois
pensou em aventurar-se pelo mundo, vivendo como um itine-
rante, em constante movimento, sem um rumo certo, mas lhe
faltou a coragem para seguir adiante. 21
Nessa noite, na rede, Carlos pensava na sua infância,
na sua trajetória, fantasiava um romance perfeito, imaginava
a sua vida em outro país, sonhava em ganhar bastante dinhei-
ro... Pensou na falta que fazia o seu pai, na vida difícil que a
sua mãe levava, na professora que o maltratou, a sua primeira
professora, na sua primeira paixão aos 15 anos, no sofrimento
de amar, de não ser amado, na época boa da faculdade, na
época espinhosa da moradia de aluguel, todo mês um terço
do salário. Pensou nos bons amigos, eram poucos, nos maus
amigos, eram muitos. Queria livrar-se definitivamente de al-
guns, mas não sabia exatamente como. Fantasiou que estava
casado e era pai de três filhos, que sua esposa era uma mulher
compreensível, bonita e companheira. Os três filhos eram ho-
mens. O mais velho era um Don Juan, o do meio era músico e
muito parecido com ele, e o mais novo era sensível e delica-
do. A família morava em uma grande casa confortável, com
piscina e um campo de futebol. Tinha três cachorros, fiéis.
Também se imaginou solteiro, vivendo em Paris. Lá era amigo
de intelectuais. Bebia bons vinhos e comia bem. Trabalhava
numa universidade, era professor de História. Era respeita-
do pelos alunos, pelos colegas de trabalho. Lembrou que não
podia sair à noite tranquilamente na cidade onde vivia atual-
mente. Não tinha carro, era muito perigoso sair à noite, prin-
cipalmente a pé. Voltou a sonhar, agora queria ser rico. Era
filho de uma família tradicional. Fantasiou ganhar na loteria,
ser um milionário.
Acendeu um cigarro. Estava angustiado. Não queria ser
tudo o que era. Queria uma nova vida. Sentia que precisava
encontrar outro lugar no mundo. Estava despedaçado. Sentia-
Fábio Oliveira

-se desamparado. Levantou-se e foi fazer um café. No rádio,


tocava “Não se afobe, não, que nada é prá já/ O amor não
tem pressa, ele pode esperar/ Em silêncio, num fundo de ar-
mário/ Na posta-restante, milênios, milênios no ar...”
Voltou para a rede e acendeu mais um cigarro. Ainda
sentia o gosto do café na boca. Cantava para si mesmo os
22 primeiros versos daquela canção que ficaram em sua memória
se refestelando. Lembrou-se daquela história triste do seu pas-
sado. Já fazia tanto tempo que tinha acontecido, mas ele não
conseguia esquecê-la. Lembrava quase todos os dias. Aquilo
não deveria ter acontecido. Se pudesse voltar no tempo, teria
feito tudo diferente, teria evitado o horror do acontecimento.
Em um impulso, como uma mãe que se joga na água para sal-
var seu filho do afogamento sem mesmo saber nadar, pensou
em escrever a história: criaria personagens, novas identidades,
e contaria tudo o que tinha acontecido.
Já eram quase dez horas. Carlos foi ao seu escritório
e ligou seu notebook. Estava ansioso. Checou os seus e-mails,
depois fez uma rápida pesquisa em um site de busca, e final-
mente começou a escrever aquela história. As ideias foram
despejadas de uma só vez. À meia-noite, sentiu-se cansado,
queria dormir. A crônica ainda estava inacabada. Ele estava
tranquilo, parecia mais leve, provava de uma estranha e con-
fortável sensação. Pensou em parar de fumar.
Pela manhã, acordou cedo e continuou a escrever an-
siosamente a sua crônica. Tinha urgência em terminá-la. Es-
crever sobre aquele horror lhe possibilitava um distanciamen-
to do acontecimento e uma reflexão sobre isso que ele jamais
tinha alcançado. Além disso, era bom poder escrever sobre
aquilo, jogar para fora, tirar de dentro. Segredos, verdades e mentiras
Quando Carlos terminou de escrever e revisar o texto,
estava encharcado de suor. Sorria. Sentia-se realizado. Fumou
um cigarro. Foi tomar um banho para depois almoçar. Já tinha
outra história para contar. Estava gostando de escrever de um
modo que achava que não se comprometia. Podia inventar,
falar de uma coisa de forma diferente e peculiar, manipular
os personagens, decidir os seus destinos, brincar com a vida,
estar em qualquer lugar, falar de qualquer coisa... Podia expe-
rimentar a sensação de considerar-se único. Nos textos que
escrevia para o jornal em que trabalhava, por motivos que ele
mesmo desconhecia, não sentia nada disso. Talvez, para ele,
escrever sobre política ou economia, o que mais fazia cotidia-
namente, fosse um eterno adiar de si mesmo. 23
Pensou em como era bom viver. Acabou sentindo pre-
guiça em sair para fazer a refeição, mas não tinha nada em
casa para comer. Decidiu pedir uma pizza por telefone. Estava
sem dinheiro, pagaria com seu cartão de crédito. Gostava des-
sas facilidades do mundo em que vivia.
Em breve a angústia voltaria a visitá-lo. Ele desejava ser
completo, inteiro, todo. Para ser assim, sentia a necessidade de
colocar um ponto final em cada história vivida, sonhada, mas
não o conseguia. E estranhamente a sua escolha pela escrita
também era uma escolha pela reticência, a fim de fugir de
suas impossibilidades ou de buscar contorná-las, diante dos
mistérios da vida.
Após poucos dias da escrita de sua primeira crônica,
lembrou-se de cenas que queria colocar no texto e foi revisá-
-lo mais uma vez. Mas, a cada revisão que fazia, um detalhe da
história surgia, detalhes que tinham sido apagados de sua me-
mória, mas que retornavam quando decidiam, como se tives-
sem vontade própria. Carlos não conseguia concluir a história
e libertar-se dela, o que o fazia ocupar-se com a sua escrita
num misto de prazer e sofrimento. Esse homem, na condição
de servo, não queria conhecer o segredo de sua libertação.
Fábio Oliveira

24
A minha Primeira Comunhão

Lembro-me daquele dia, era o dia da minha Primeira


Comunhão. Tinha 9 anos. Estava muito assustado e não que-
ria ir à igreja naquela manhã. Aquelas palavras da minha mãe
me atormentavam. Eu acreditava que aquilo iria acontecer co-
migo. Mas não tive saída, fui à igreja com minha família.
Essa foi a primeira vez em que me vesti como um adulto.
Usava uma camisa branca de manga longa e uma gravata bor-
boleta preta, da mesma cor da calça e do calçado. Os sapatos
apertavam meus pés, mas tive que enfrentá-los também. Car-
regava nas mãos uma vela fina e comprida.
Não parava de pensar na vergonha que iria passar na
frente de todos, mas não compartilhei isso com ninguém. A
cidade saberia que eu era um pecador. Minha mãe, meu pai,
o padre, meus amigos, meus padrinhos, meus tios e primos,
todo mundo iria descobrir. Já tinha planejado fugir de casa
depois que passasse tudo aquilo. Fugiria da cidade. Roubaria
dinheiro da carteira de meu pai, compraria uma passagem de
ônibus e iria para a capital. Lá ninguém me acharia.
Quando chegamos à igreja, ela já estava cheia de gente. Segredos, verdades e mentiras
A sua fachada era azul e branca. Tinha uma escada para se
alcançar a sua porta principal. Do lado direito, havia umas
árvores grandes e terra. Do outro lado, o que eu mais gosta-
va, havia um extenso gramado, onde eu brincava nos dias de
Catecismo.
Não demorou muito e a missa começou. Não me re-
cordo de muitos detalhes, somente daquele momento que
tanto me aterrorizava, o de receber a hóstia, o corpo de Cristo.
Como já tínhamos aprendido, participaríamos daquele ofer-
tório especial, levando para o altar pão, trigo, uva, coisas as-
sim, enquanto os fiéis dariam a sua contribuição costumeira.
Era a preparação para a Comunhão, tão temida por mim.
Havia muitas crianças, mas só algumas foram escolhidas para 25
participar desse ato, e eu era uma delas. A freira que orga-
nizou a fila me colocou na frente, para levar aquele grande
cálice dourado cheio de hóstias, que eu nunca soube como se
chamava realmente.
Eu estava mudo, suando muito. Segurei o cálice com
a mão direita e coloquei a outra em cima de uma plaquinha
com um lencinho, que o tapava. Eu estava nervoso e com
medo. No meio da igreja, achei que iria derrubar o cálice
e resolvi trocar de mão. Os fiéis estavam todos concentra-
dos, cantando em sintonia. E não é que derrubei mesmo!
Todos pararam de cantar e se voltaram para ver o que ti-
nha acontecido. O silêncio era absoluto e mortal. As hóstias
espalharam-se pelo chão da igreja. Todos olharam para mim.
Eu fiquei paralisado, os que estavam atrás de mim na fila
também, os fiéis também. Só duas pessoas se movimentaram
e resolveram o problema: o padre, que imediatamente pegou
outro cálice no próprio altar, cheio de hóstias também, e a
freira, que se ajoelhou, pegou o cálice quase vazio, me devol-
veu e deu um empurrãozinho nas minhas costas. Recomecei
a andar e parecia que tudo voltava ao normal. Foi como se a
Terra tivesse parado e voltasse a girar com um sopro divino.
Mas eu estava envergonhado, era tímido, e por um momento
esqueci aquele meu temor.
Terminado o ofertório, era a hora da Comunhão. As
velas de todas as crianças foram acesas. Olhei para o altar e
vi no centro a imagem de Cristo crucificado, com o rosto e o
resto do corpo cobertos de sangue, e uma expressão de muita
dor. Voltei a lembrar-me das palavras de minha mãe, de que
se alguém tivesse pecado, ao receber a hóstia, ela queimaria
Fábio Oliveira

em sua boca. Que arrependimento! Tinha me confessado há


dois dias, tinha contado os meus pecados ao padre, mas tinha
esquecido de contar um. Era apenas um. Não sei por que não
desisti de tudo. Já estava ali e fui até o fim.
Na hora de receber a hóstia, fechei os olhos e pedi
a Deus que me livrasse do fogo. Eu continuava pecador
26 por esquecimento, mas estava arrependido, não merecia ser
castigado. O padre veio até nós. Estávamos nos bancos da
frente, meninos de um lado e meninas de outro. Senti a hós-
tia na minha língua. Continuei com os olhos fechados. A
hóstia grudou no céu da minha boca – era um pãozinho
quase sem sal – e nada mais aconteceu. Abri os olhos e sorri.
Pensei que ou Deus gostava de mim e tinha me perdoado,
ou minha mãe havia mentido. Não demorou muito para eu
acreditar nessa segunda opção.
Em casa, já começava a superar o trauma da minha
Primeira Comunhão. Mas outra coisa me perturbava agora:
o momento em que derrubei o cálice. Lembrava-me disso e
sentia vergonha, o que persistiu por vários dias. Quando saía
para a rua, achava que todos me olhavam e comentavam o
incidente ocorrido na igreja. Lembrava-me também daquele
silêncio absoluto, incômodo e desconfortável.
Acredito que foi assim que algo de surpreendente acon-
teceu. Comecei a me interessar pelo silêncio. Procurava ficar
sozinho, afastado de todos, calado e pensativo. Pensava em
muitas coisas, no passado, no presente e principalmente no
futuro. Gostava de ficar no meu quarto. Também ia de bici-
cleta para o campo. Passava tardes inteiras lá. Nesse período,
quase não retornei à igreja; não queria mais ir lá e, embora
minha mãe insistisse para que eu fosse, meu pai não me obri- Segredos, verdades e mentiras
gava a isso. Ele também não gostava de ir à igreja, e quase não
ia mesmo.
Depois de alguns anos, comecei a me interessar pelos
sons. Gostava de ouvir diversos sons. Primeiro foram os sons
dos instrumentos, como o violão, a flauta, o violino, o piano, a
guitarra, o tambor; depois foram as vozes, as dos cantores, as
das cantoras; e finalmente os sons da natureza: os pássaros, a
chuva, os grilos, as cigarras... De repente, descobri que estava
apaixonado pela música.
A minha família achava-me um pouco estranho, dife-
rente dos meus dois irmãos, mas também não me incomo-
dava muito. Eu era um bom aluno e era isso que importava
para eles. Os meus irmãos eram mais velhos que eu e tinham 27
os seus amigos, acho que por isso também não me incomo-
davam muito.
Aos 14 anos, já me sentia grandinho e não quis festa
de aniversário. Em vez da festa, pedi um bom presente ao
meu pai. Foi uma grande emoção entrar em casa e encon-
trar na sala um grande piano negro. Parecia que o céu havia
tocado a terra para me trazer o melhor e maior de todos os
bens que alguém podia ter. Naquele dia, só existíamos eu e
o piano, nada mais.
Desde então, não me separei mais do instrumento.
Logo estava recebendo aulas da Senhora Madalena, uma ri-
gorosa professora. Quando aprendi a tocar uma música, a fa-
mília toda ficou orgulhosa. Nessa época, voltei a frequentar a
igreja e participei do coral. Foi assim o início da minha carrei-
ra de sucesso como pianista.
Essa é a memória que eu tenho desses fatos que marca-
ram para sempre a minha vida. Hoje a música é a coisa mais
importante para mim. Já são três décadas de convívio intenso
com ela. Depois da música, são os meus dois filhos, um lindo
casal, e depois minha querida esposa. Eu não digo isso a eles,
para não magoá-los. Acho que eles querem que eu os ame
mais do que qualquer outra coisa de que eu possa gostar.
O meu primeiro piano é uma relíquia para mim. Ele
fica na sala de estar, calado e me vigiando, às vezes sorrindo,
convivendo com a minha família.
Depois de casado, o meu contato com meus pais e meus
irmãos ficou cada vez mais raro. Mudei de cidade, depois de
estado, e agora moro em outro país. Mas me lembro de todos
eles com carinho e nos falamos por telefone de vez em quando.
Fábio Oliveira

Meus pais vivem com os empregados; meus irmãos casaram,


saíram de casa e construíram suas novas famílias também.
Sempre tive vontade de perguntar a minha mãe por que
ela me disse aquilo na minha Primeira Comunhão, mas nunca
tive coragem de ir até o fim. Talvez tivesse medo da respos-
ta. Durante muito tempo achei que ela não gostava de mim,
28 e que apenas me suportava porque era obrigada, porque de
qualquer forma eu sou seu filho. Tentei encontrar um motivo
para isso, mas não o encontrei. Pensei em muitas coisas. Gos-
taria muito de ter essa conversa com ela antes da sua morte,
ou da minha, mas parece que ainda não chegou o momento
certo para isso. Acho que ainda estou tentando me convencer
de que foi uma brincadeira, e eu levei tudo muito a sério.

Segredos, verdades e mentiras

29
Segredos da vida e da morte

A descoberta que pode revolucionar o mundo contemporâneo,


mudando o que se sabe sobre ciência, religião e sociedade

David Blunt, em reportagem especial para O Correio


New York (Estados Unidos da América)

A morte é isso: o início de uma viagem sem fim. Mas


uma viagem que está presa à vida eternamente. Essa conexão
e essa relação de dependência determinam o que é a morte.
Foi o cientista Albert White quem descobriu o segredo da
morte e publicou recentemente parte da sua pesquisa de uma
vida inteira na revista americana New Science. O mundo cien-
tífico foi pego de surpresa e ainda debate o assunto. Alguns
poucos cientistas confiam nos resultados da investigação, ou-
tros resistem a acreditar.
O britânico Albert White é médico e físico. Ele possui
doutorado em genética e pós-doutorado nessa área e em físi-
ca quântica. Trabalhou em várias universidades pelo mundo
e publicou diversos livros e artigos ao longo de sua carreira.
Hoje trabalha na Universidade Central Americana, em Nova
York, cidade dos Estados Unidos onde mora atualmente,
mas ele pensa em parar: “Agora quero descansar. Já con-
tribuí demais para a ciência. Outros ocuparão o meu lugar,
certamente”, disse o cientista em uma entrevista exclusiva
na sua casa.
Fábio Oliveira

Segundo White, a morte é uma passagem para um


estágio de consciência eterna do sujeito. Sem o corpo e a
vida, nesse estágio a consciência sobrevive como um pen-
samento imutável e indestrutível, ao contrário do que acon-
tece na vida, na qual se pensa na consciência, mas fora dela
também, e esse fora perturba constantemente o consciente,
30 modificando-o.
Dessa forma, depois da morte o sofrimento é sempre
o mesmo, assim como o prazer. Tudo é sempre igual. Passa-
do e presente são sempre os mesmos, e não há futuro. Me-
dos, vícios, fraquezas, dores... Fé, esperança, alegrias. Tudo é
sempre igual. A partir do momento que alguém morre, não se
mudará mais nada nele.
A vida é esse percurso que possibilita a repetição, mas
também a inovação. É a possibilidade de criação que Deus dá
ao ser humano para que ele construa sua caminhada. Na vida,
o que pode ser sempre igual, também pode ser sempre dife-
rente, dependendo sempre da atitude do sujeito. A vida sofre
o peso do corpo, da carne. Sofre também o peso dos outros,
tanto dos que vivem quanto dos que já se foram. Na vida, o
sujeito entra numa grande batalha para definir como estará e
permanecerá depois da morte.
White descobriu que com a morte a consciência so-
brevive sem o corpo. Ele não chama isso de vida, e sim de
sobrevida: “É o puro reino da língua. O sujeito existe apenas
em pensamento, suportando a vida que construiu”. O cien-
tista afirma que isso é possível porque o quanta, conjunto das
menores partículas existentes no ser humano, não se acaba
com a morte, e é cada uma dessas partículas, chamada de
quantum, que contém o consciente de um sujeito. E, como Segredos, verdades e mentiras
essas partículas não se extinguem com a morte do indivíduo,
o pensamento do sujeito continua existindo.
Antes de White, ninguém tinha conseguido perceber a
existência do quantum, nem na vida nem depois que o corpo
morre. Mas ele não só enxergou isso como conseguiu captar
todo o conteúdo armazenado na partícula. Isso aconteceu de-
vido à codificação do quantum. A partícula possui uma lingua-
gem biológica específica, chamada de “conscinoma”, muito
parecida com a da genética. Ao codificá-la, é possível traduzir
o seu conteúdo para a língua histórica específica da fase de
vida de um determinado corpo.
Para o pesquisador, cada corpo morto libera uma série
de quantum. É o conjunto dessas partículas que armazena toda 31
a vida de um indivíduo. Em um processo natural, a princípio
as partículas até então invisíveis liberadas pelo corpo morto
ficam sobre a pele, onde permanecem até o início da putre-
fação da carne. A partir daí, elas se espalham pelo ar, para
nunca mais serem reunidas novamente. Dessa forma, com a
morte, o pensamento imutável passa a ser fragmentado, cons-
truindo o que ele chama de sobrevida. Ou seja, nessa última
etapa agora conhecida, o sujeito deixa de ser uma unidade,
para existir despedaçado.
White conseguiu capturar essas partículas nesse mo-
mento em que elas ainda estão sobre a pele. Isso só foi possí-
vel graças à criação, pela equipe do cientista, de um aparelho
chamado de nanoscópio, que possui não só a capacidade de
aumentar um organismo em até dez bilhões de vezes como
também de codificá-lo em conscinoma. Como as partículas
são indestrutíveis, não houve problema para armazená-las e
conservá-las.
Até o momento, doze corpos de homens e oito de
mulheres tiveram seu quanta codificado, graças a um progra-
ma de pesquisa no qual os próprios indivíduos, todos por-
tadores de doenças crônicas e em estágio terminal de vida,
autorizaram a investigação. Após as suas mortes, as suas fa-
mílias entregaram à equipe de White relatos sobre a vida dos
investigados em documentos lacrados, que só foram abertos
para conferência depois que as codificações foram apresen-
tadas em público.
Resta-nos agora esperar os efeitos desse acontecimento
para a sociedade. Se o mundo científico comprovar a desco-
berta de White, isso revolucionará o que conhecemos sobre
Fábio Oliveira

religião, ciência e sociedade. “Tudo que sabemos sobre a vida


e a morte, tanto do ponto de vista científico, quanto do ponto
de vista religioso, terá que ser revisado”, afirma Karen Santos,
uma pesquisadora brasileira membro da equipe de White.
No momento, o pesquisador dos segredos da vida e da
morte, como já é conhecido, e toda sua equipe apenas come-
32 moram o que consideram a maior descoberta do século XXI,
e uma das maiores de todos os tempos. Eles acreditam que,
com os resultados dessa pesquisa, a “alma” passará a ter mais
valor em nossa sociedade, enquanto que o corpo perderá mui-
to do valor que possui.
Outro motivo de comemoração para Albert White é a
garantida publicação da sua pesquisa em um livro que está
por vir. Quanto a isso, podemos garantir que o sucesso de
vendas será absoluto, o que mudará radicalmente a vida desse
homem, que promete entrar para a História aos 72 anos de
idade. Só nos resta esperar e conferir!

Segredos, verdades e mentiras

33
Abrir a porta

Seu Carlos fechou a porta de seu apartamento e saiu


para encontrar seus velhos amigos. Pegou o elevador e cum-
primentou as pessoas que ali estavam, um casal de jovens na-
morados e uma senhora. Ninguém mais entrou no elevador e
todos desceram em silêncio.
Depois de andar por alguns minutos, esse senhor che-
gou ao local. Passou pela grande porta de vidro e viu o salão
repleto de gente se movimentando, em um intervalo entre
uma partida e outra. Olhou para o canto que procurava e en-
controu os seus amigos. Eram quatro pessoas, todos homens.
Foi até lá.
– Boa noite! – disse o senhor, já puxando uma cadeira
para se sentar.
– Boa noite! – responderam Seu Vicente e Seu Ronaldo.
– Então foi você quem me trouxe sorte! Acabei de
“bingar”! Duzentinhos! – exclamou Seu Manoel, o mais espi-
rituoso do grupo.
– Fiquei à espera do “vinte e três” e não saiu – reclamou
Seu Reinaldo, o mais rico.
A conversa continuava, animada como sempre. Logo
passava a mocinha bonita e simpática vendendo as cartelas
do bingo.
– Quantas, Seu Carlos?
– Uma só, minha filha. Hoje quero gastar pouco, mas
quero ganhar muito dinheiro – disse sorrindo.
Fábio Oliveira

– Boa sorte a todos! – respondeu a jovem, deixando


uma cartela para cada um dos senhores da mesa. Depois con-
tinuou o seu trabalho com os outros jogadores que estavam
à sua espera.
Em instantes começava uma nova partida. “Primeiro
número: cinquenta e sete”, anunciava o locutor. Os homens
34 da mesa de Seu Carlos divertiam-se. “Comecei bem”, dizia um.
Eles gostavam de estar entre si. Falavam do passado,
das suas famílias, das suas amantes, dos seus trabalhos. Fala-
vam do presente, de futebol, de mulheres – principalmente
das safadas –, de dinheiro. Todavia não falavam muito do
futuro.
A noite corria como um coelho, e esses senhores não
percebiam o tempo passar. Conversavam, riam, discutiam, jo-
gavam, tomavam café, fumavam cigarro, paqueravam. Eram
sempre as mesmas coisas. Ao saírem dali, praticamente não se
encontravam. O que ficavam sabendo sobre esse intervalo era
apenas aquilo que contavam no próximo encontro.
Já era quase de manhã quando eles decidiram ir embora
do lugar. Seu Carlos não havia ganhado nada. Isso o deixava
triste, mas no outro dia voltaria confiante em recuperar o que
perdeu. Ainda acreditava que o bingo lhe daria o que não ha-
via conseguido conquistar na vida.
Ao chegar à frente do seu prédio, o senhor encontrou
o portão do edifício aberto e entrou. Já em frente à porta
de seu apartamento, colocou a mão no bolso da calça e não
encontrou suas chaves. Procurou no outro bolso e nada. Re-
vistou todos os bolsos que tinha e a chave não estava lá. Ele
começou a irritar-se. Sentia-se muito cansado e estava com
sono. Pensou no que fazer. Achou que tinha perdido a chave Segredos, verdades e mentiras
no bingo. Decidiu chamar um chaveiro.
Passaram-se quase duas horas do momento em que saiu
para resolver o problema até a porta ser aberta. Pagou ao cha-
veiro, agradeceu e entrou em casa exausto. O lugar estava va-
zio. Lembrou a época em que sua esposa era viva. Estranhou
aquela sensação. Já fazia muito tempo que ele não ficava acor-
dado até aquele horário. As madrugadas no bingo tiravam-lhe
as manhãs.
Foi dormir sem tomar o seu medicamento. Tinha pas-
sado do horário para isso e agora ele havia esquecido. Acor-
dou no meio da tarde; tinha passado do horário habitual de
seu almoço também. Voltou a lembrar-se da manhã desse
dia, em que o sol iluminava a sala pela abertura da velha 35
cortina marrom e desbotada. Sentiu-se só. Já havia se esque-
cido de se sentir assim. Fez um café para tomar. Ainda estava
cansado, e resolveu não sair nessa tarde para encontrar os
amigos do bairro, conversar e jogar damas. Comeu frutas.
Ligou a televisão, mas se sentiu entediado. Desligou a tevê e
ligou o rádio. Deitou no sofá, mas não conseguiu dormir. A
cabeça não parava de pensar. Lembranças do passado insis-
tiam em retornar.
Depois de muito tempo assim, foi ao guarda-roupa e
pegou uma das caixas empoeiradas que sua falecida espo-
sa tinha guardado. Dentro dela, havia fotos, cartas e bara-
tas. Isso o incomodou de repente. Olhou as fotos com ca-
rinho. Lembrou-se de Dona Helena, sua mulher, como ela
era linda, e que senhora distinta. Lembrou-se dos seus três
filhos, todos casados. Os olhos encheram-se de lágrimas
quando viu imagens de seus netos. Porém havia também
recordações indesejáveis. Lá estava a sua irmã invejosa.
Também estava a sua sogra perversa, já morta. Resolveu
rasgar algumas fotos e deixar só as que realmente interes-
savam no momento. Ficou em dúvida sobre algumas e as
manteve.
Além de ver as fotos, leu algumas cartas. Havia men-
sagens de quando ele e Dona Helena eram jovens, namora-
vam e trocavam declarações de amor. Essas ele guardaria para
sempre. Havia também cartas de parentes endereçadas a ele,
outras endereçadas a ela. Rasgou boa parte desse arquivo.
No decorrer do dia, Seu Carlos pensou em algumas
pessoas com as quais se relacionava, mas de quem não gos-
tava de verdade. Sofria em saber que evitava encontrar seu
Fábio Oliveira

filho mais velho, Ricardo. Tinha amado tanto o primogêni-


to quando ele era criança, mas agora sentia certa indiferen-
ça. Também não gostava do seu próprio irmão Leônidas,
mesmo percebendo que ele o admirava muito, o que lhe
causava desconforto. Percebeu que os laços familiares o
obrigavam a demonstrar certos afetos que ele não conse-
36 guia sustentar.
Nessa noite, não foi ao bingo. Estava envolvido em
pensamentos e recordações do passado. Não se sentiu dispos-
to para sair de casa. O que queria mesmo era continuar vascu-
lhando, vasculhando, limpando, arrumando, pondo as coisas
nos lugares que considerava apropriados para abrigá-las.
No outro dia acordou mais cedo e continuou a faxina.
No entanto não era uma limpeza qualquer, era uma faxina na
sua memória. Pouco depois do seu café, pegou outra caixa
empoeirada, dessa vez uma que ele mesmo guardava. Só ha-
via documentos ali. Muitas contas pagas de vários anos, cor-
respondências comercias, contratos vencidos de vários tipos,
boletos de loteria etc. Percebeu que nada daquilo ainda tinha
valor para si e rasgou tudo.
Nessa noite, voltou ao bingo, procurou a chave perdida
e não a encontrou. Sentiu-se desanimado, sem saber o porquê
disso, e foi embora antes do horário habitual, surpreendendo
aqueles seus amigos de jogo, tanto pela ausência considerada
sem motivo no dia anterior como pelo retirada repentina e
antecipada desse dia.
No seu terceiro dia de faxina, Seu Carlos abriu o guar-
da-roupa, olhou aquele amontoado de peças antigas, mofadas
e começou a se desfazer da maior parte delas. De Dona Hele-
na, só deixou o vestido que usava no dia de sua própria morte. Segredos, verdades e mentiras
Dele mesmo, apenas deixou as roupas que vestia atualmente.
Todo o resto foi para os sacos.
Esse senhor perguntava-se por que não tinha feito isso
antes, por que tinha acumulado tantos pertences que somente
agora achava desnecessários. Percebia que tinha mais objetos
do passado do que do presente. E a faxina continuava. Nos
dias que se seguiram, a limpeza continuou ininterrupta.
Os vizinhos começaram a notar que o lixo dele aumen-
tara e se modificara: sacos de papéis, sacos de roupa, caixas
de papelão vazias, até mesmo móveis velhos. Ficaram preocu-
pados, conversaram entre si e, quando encontraram oportu-
nidade, perguntaram-lhe se iria mudar-se dali. Ele respondeu
que ainda não sabia e não quis prolongar a conversa. 37
Depois de muito tempo tentando esvaziar o seu lar, Seu
Carlos percebeu que não adiantava ter tanta pressa assim. Ti-
nha acumulado muita coisa, durante muitos anos, portanto
precisava de paciência e calma para aquela limpeza. Come-
çou a sentir-se cansado dessa tarefa. E, após algum tempo
sem jogar, voltou ao bingo. Estava mais feliz do que de costu-
me. Seus amigos comemoraram o seu retorno. Foi uma noite
agradável, e esse senhor ganhou duas partidas. Lá pelas duas
horas da madrugada, com dinheiro no bolso, resolveu ir em-
bora. Precisava ir. Os outros reclamaram, tentaram impedir,
porém ele estava firme em sua decisão e saiu assim mesmo.
Pegou um táxi e voltou para o seu apartamento pensando em
Cassandra, a puta com quem se relacionava havia muitos anos.
No outro dia, acordou mais cedo, tomou banho, fez
sua refeição matinal, perfumou-se, foi ao banco retirar o di-
nheiro da sua aposentadoria e fez um empréstimo também, o
primeiro de sua vida. Não sabia como o pagaria, mas resolve-
ria isso com o tempo. Depois foi procurá-la. Tinha decidido
viver com a mulher que amava. Não importava mais o que os
outros poderiam dizer. Pensava que merecia fazer isso por ele
mesmo.
Chegando ao apartamento dela, encontrou a mulher
com a cara de quem tinha acabado de acordar. Cassandra ves-
tia uma camisola vermelha e calçava chinelos bastante usados.
O cabelo estava preso e desarrumado. O rosto ainda tinha
vestígios de maquiagem. As unhas eram grandes e com esmal-
te vermelho descascado. O coração de Seu Carlos batia forte
e acelerado.
– O que foi, homem?! Que aconteceu pra tá aqui numa
Fábio Oliveira

hora dessa?
– Bom dia, meu amor!
– Diga logo, que eu sei que coisa boa não é!
– Vem morar comigo, arrumei toda a minha casa pra
você!
A mulher não estava segura sobre que atitude tomar,
38 mas, depois de conversar muito, duvidar do pedido, impor
condições e chorar de emoção, aceitou o convite. Depois fize-
ram sexo e, na cama mesmo, planejaram passar a lua de mel na
cidade da família dela, no interior do Paraná. Gastariam todo
o dinheiro do empréstimo para realizarem os seus desejos.
“Ainda dá tempo pra abrir portas em nossas vidas”, disse Seu
Carlos. E Cassandra gargalhou de felicidade!

Segredos, verdades e mentiras

39
Entre pai e filho

A banda de rock preferida de Bruno estava naquela ci-


dade para uma única apresentação. Uma banda famosa no
mundo inteiro e com uma legião de fãs, principalmente os
adolescentes. Na sua escola, só se falava nisso. Bruno não gos-
tava de baladas, mas esse show era imperdível para ele. Porém
sabia que seria impossível convencer sua mãe a deixá-lo ir ao
espetáculo.
Primeiro ele conversou com seu pai, o engenheiro Pe-
dro, um herói para o adolescente. Um homem honesto, tra-
balhador, dedicado à família e compreensivo. Amava a sua
família.
– Sua mãe não vai deixar você ir, filho, mas não custa
nada tentar! – disse o homem.
O rapaz sentiu-se encorajado pelo pai e foi pedir a sua
mãe. Helena era dona de uma pequena loja de tecidos. Uma
mulher bonita, destemida e uma fervorosa cristã. Amava, cui-
dava e protegia a sua família com todas as suas forças. Tinha
orgulho de tudo que havia construído na vida.
– Em nome de Jesus, filho, você sabe que não pode ir a
um lugar assim! – disse a mulher.
Entretanto, Bruno não conseguiu abandonar a ideia
de conhecer a banda de que tanto gostava. Voltou a conver-
sar com o seu pai, a quem pediu mais uma vez para ir ao
show, mas dessa vez pediu para ir escondido da mãe, depois
de explicar a posição dela sobre a situação. Pedro fez algu-
Fábio Oliveira

mas perguntas, certificou-se de que seria seguro o filho sair


daquela forma e concordou com a aventura juvenil, mas
disse que isso seria um segredo só deles, um segredo de pai
e filho.
Nessa noite de sexta-feira, dia do espetáculo, Helena
esperava o seu filho para jantar e depois irem todos à igreja,
40 mas ele não apareceu. A mãe começou a ficar preocupada.
Para localizá-lo, ligou para os parentes e amigos dele à procura
de alguma informação sobre o paradeiro do rapaz, mas não o
encontrou. Ele tinha sumido, ou melhor, fugido.
Bruno encontrou alguns amigos na estação de metrô e
foram juntos ao show. Havia muita gente no lugar, de diferen-
tes estilos, o que o agradava. Lá ele cantou, dançou, namorou
pela primeira vez e se divertiu bastante. Foi uma noite ines-
quecível para o adolescente de 16 anos. Ao contrário de seus
amigos, não bebeu nem fumou. Não tinha vontade de fazer
tais coisas, também lhe faltava coragem. Ele compartilhava de
muitos dos ensinamentos aprendidos em sua igreja e com sua
própria mãe.
Em casa seus pais, que não foram à igreja, ficaram à
espera do rapaz. Helena já suspeitava onde ele estava. Ela
passou essa primeira parte da noite orando e rezando. Não
conseguiu dormir, nem deixou seu esposo ir dormir. Ele
também rezou com sua esposa, mas cochilou várias vezes
sentado na sua poltrona. Fingia não ter participação algu-
ma no acontecido, e ela nem desconfiava disso. Mas, se ela
soubesse que ele não só consentiu clandestinamente a fuga
como também a tinha financiado, o mundo desabaria naque-
le telhado que os abrigava.
Na verdade Pedro considerava um excesso o que a sua Segredos, verdades e mentiras
mulher estava fazendo, pois achava que o filho ainda era uma
criança e tinha o direito de experimentar outras coisas na vida,
mas ele ficava calado e procurava não se importar com isso.
Conhecia bem sua esposa e gostava dela do jeito que era. Sen-
tia-se seguro a seu lado e pensava que não saberia mais viver
sem sua companhia. Havia entrado para a igreja por sua causa,
como condição para namorarem e casarem. Ele casou depois
dos 30. Antes disso, aproveitou bastante a vida. Agora, era um
cristão dedicado.
Por conta da religião a que pertencia, as noites de sexta
e as manhãs e tardes de sábado eram sagradas para essa famí-
lia. Nesse período, os fiéis não podiam trabalhar, fazer sexo
nem fazer compras, por exemplo. 41
Às onze horas, Bruno chegou em sua casa. Já estava
preparado para levar uma surra. Ao ver seu filho entrar, Helena
começou a chorar e se ajoelhou, gritando:
– Eu te repreendo, Demônio... Essa casa é de Deus,
minha família é de Jesus, deixa meu filho em paz!
Enquanto a mulher orava, Pedro foi abraçar seu filho,
certificar-se de que tinha chegado bem, deu-lhe um beijo e
piscou o olho para ele, como sinal de que tudo estava sob
controle. Bruninho riu timidamente, sem que sua mãe visse.
Ela levantou-se do chão, se recompôs, recuperando sua alti-
vez e autoridade, e olhou diretamente nos olhos do menino.
Esse foi em direção a ela e, repetindo o gesto do pai, deu-lhe
um abraço e um beijo.
– Em nome de Jesus, eu te repreendo, Satanás, o meu
filho é de Deus! – dizia Helena.
A surra esperada não aconteceu. Em vez disso, a mulher
foi à cozinha preparar um lanche para o filho, sem se cansar
de orar. Ele acompanhou-a. Para agradá-la, disse que estava
arrependido e que não faria mais aquilo. Para agradá-la ainda
mais, disse que não havia lugar melhor do que a igreja e o seu
próprio lar, o que tinha sua parcela de verdade para o rapaz.
Da sala, Pedro ouvia tudo e agradecia a Deus pela famí-
lia que tinha: uma esposa fiel, corajosa e de fibra, e um filho
esperto, amoroso e confiante em si mesmo. Então foi para o
quarto dormir.
Quando Bruninho foi dormir também, pensava que
agora tinha outro problema para resolver. Havia conhecido
uma garota no show, com quem namorou. Foi apenas um en-
contro, mas ele sabia que ela era especial. Eles trocaram o
Fábio Oliveira

número de seus celulares. O menino não a tirava da cabeça,


mas sabia que ela não era como as meninas de sua igreja. Pare-
cia ser uma garota muito extravagante. Dormiu pensando em
como namorar aquela menina, com o consentimento de sua
mãe. Helena não fazia ideia do que lhe esperava.

42
A mulher e o piolho

Dizem por aí que no interior da Bahia o aparecimento


de um bichinho nojento marcou o início de uma tragédia
em uma jovem família. Isso aconteceu com Antônio Trin-
dade e sua esposa Maria do Socorro. Casados havia cinco
anos, eles não tinham filhos. Tiveram um, mas não vingou.
Que Deus o abençoe, amém! Depois disso, a mulher não
engravidou mais.
Trindade trabalhava como peão numa grande fazenda
de laranja. Lá ele plantava, colhia e limpava a terra, juntamente
com dezenas de outras pessoas de vários lugares da redonde-
za, que chegavam para o trabalho andando, de bicicleta, de
moto, em cima de caminhões.
Já na sua pequena propriedade, Trindade cultivava fei-
jão e mandioca. O lugar ainda tinha uma horta e dois pés de
laranja, um de jaca, um de goiaba e um coqueiro. Também
havia uma pequena criação de galinhas. Ali tudo plantado ou
criado era para o próprio consumo. Socorro cozinhava, costu-
rava, cuidava das galinhas e da horta, lavava a roupa no riacho
ali perto, ouvia rádio. Segredos, verdades e mentiras
O homem saía de casa às cinco horas da manhã para
trabalhar e chegava às seis da tarde. Ao chegar, tomava seu
banho, comia e descansava na rede, que ficava dentro da casa
mesmo; era hora de ouvir o rádio, primeiro as notícias, depois
a cantoria. Na hora de dormir, ele estava revigorado, e qua-
se nunca dispensava o que achava que existia de melhor no
mundo deixado por Deus: o sexo com a pessoa amada, aquele
momento de o corpo tremer como o chão em um terremoto,
de gemer de alívio como quem escapa da morte, de relaxar
como se tivesse a vida de um rei.
Eles costumavam ir dormir por volta das dez horas da
noite. No lugar, ainda não tinha energia elétrica, mas havia
promessas do prefeito de logo implantá-la. As casas ficavam 43
distantes umas das outras. À noite, os vizinhos não costuma-
vam se encontrar; era cada família em seu próprio lar.
Fazia um mês que Trindade andava com problemas com
a sua mulher. Tudo começou em uma noite de lua cheia. Foi
nessa noite que, depois de possuir o corpo de sua esposa e de
sentir aquela velha e nova sensação de que nasceu mais uma
vez, quando já iam dormir, ela coçou vorazmente a cabeça.
– O que é isso, muié?
– Parece piôio, Tonho.
– Trate disso logo, pra num passá ni mim.
Algo nessa noite começava a acontecer! Do lado de fora
da casa, morcegos voavam atordoados em todas as direções,
assombrando os outros animais. O vento soprava forte, fa-
zendo as folhas secas subirem alto. As cobras fugiam sem sa-
ber do quê.
Nos dias que se seguiram, a mulher não parou de coçar
a cabeça depois de fazer sexo com seu esposo. Após uma se-
mana do aparecimento do bicho, já coçava a cabeça na hora
de tirar a roupa e ir deitar-se. Ele comprou remédio para pio-
lho na farmácia da cidade, mas não adiantou. Depois de quin-
ze dias, era o marido voltar do trabalho, entrar em casa, que a
tal coceira começava.
Trindade ficou intrigado, porque a sua mulher usou o
remédio para piolho que ele comprou e nada foi resolvido.
Além disso, ele não pegou o bicho. A cunhada mais nova de
Socorro também vasculhou a cabeça da mulher, à procura do
pequeno vilão, e não encontrou nada. Mais intrigado ficou o
homem quando essa sua irmã disse que durante o dia ela não
sentia nada e que a coceira na cabeça só começava à noite.
Fábio Oliveira

Ele passou a achar que essa coceira era mentira, e isso


o deixava desconfiado: “Essa muié tá de cunversa cumigo!!!
Tá inventano piôio pra num se deitá cumigo!!! Um piôio que
ninguém vê, que ninguém pega, e que num tem cura!!! Onde
já se viu isso?” A desconfiança cresceu tanto que esse homem
já estava achando que ela tinha outro macho. E não conseguiu
44 mais tirar essa ideia da cabeça.
O suposto piolho estava tirando o sono desse homem.
Ele passou a vigiar a sua mulher, que praticamente não saía de
casa por conta dos seus afazeres domésticos. Quando saía, es-
tava quase sempre com ele. Sozinha, ela só ia ao riacho perto
de onde vivia, para lavar a roupa. Ele seguiu sua esposa por
uma semana, durante os seus curtos intervalos de trabalho
para o almoço, mas não descobriu nenhuma traição, só que
ela realmente não coçava a cabeça longe dele.
A notícia já corria a vizinhança daquela comunidade ru-
ral. Alguns achavam que ela estava ficando louca, era “a louca
do piolho”, outros achavam que era safadeza da mulher, e
“mulher safada era capaz de tudo”. Os amigos de Trindade
conversavam com ele sobre o assunto, tentando entender o
que estava acontecendo, mas isso só perturbava ainda mais a
já remota paz do peão.
Foi assim que a ideia de estar sendo traído o dominou
completamente. Nessa circunstância, em um dia ensolarado,
aproveitou o seu horário de almoço e foi à procura de sua es-
posa, como já vinha fazendo ultimamente, mas não a encon-
trou em casa, então foi ao riacho em que ela lavava a roupa,
onde a encontrou. Era a hora de um acerto de contas.
Trindade aproximou-se lentamente, com passos pesa-
dos. Maria do Socorro ficou surpresa ao vê-lo: Segredos, verdades e mentiras
– Que foi Tonho? Tá aqui por quê? – A mulher come-
çava a coçar a cabeça.
– Que é isso ni sua cabeça, muié?
– É piôio, Tonho.
– Fale a verdade, muié.
– Tô falano, Tonho.
Ele começou a ouvir vozes perturbadoras e insistentes,
mandando-o destruí-la: “Mate ela! Mate ela! Mate ela!”.
– Fale a verdade ou te mato, desgraçada.
– É piôio.
As vozes assassinas ficaram mais altas e graves e o ho-
mem agarrou o pescoço da mulher:
– Me mostre o piôio ou te mato. 45
– Aqui, aqui o piôio – Socorro fazia o movimento de
esmagar o bicho com as unhas dos polegares.
– Cadê o piôio, que num vejo? – Ele apertava com for-
ça o pescoço dela, que não conseguia mais falar, nem podia
respirar bem, mas continuava esmagando o bicho com suas
unhas:
– Aaaii! Aaaii! Aaaaa!
Com toda a sua força, o homem empurrou o corpo de
sua mulher para dentro daquelas águas escuras:
– Fale a verdade ou te mato!
Socorro agonizava, mas continuava repetindo o gesto
de esmagar o bicho, com os braços para fora do riacho. O
homem ficou em silêncio, ouvindo aquelas vozes e afogando
sua esposa, até ela se silenciar também.
De repente, o céu escureceu, trovejou e uma chuva forte
caiu. O dia tinha virado noite. Antônio Trindade voltou para
sua casa apressado, sem enxergar bem o caminho. Já em casa,
sem fome, deitou na rede molhado, sozinho e dormiu. Sonhou
que vivia em uma comunidade onde ele era o mais importante
e respeitado. Era também um fazendeiro dono de uma imensa
propriedade e de muitas cabeças de gado. Tinha muitas mu-
lheres e muitos filhos. Em uma floresta, à noite, estava sendo
perseguido por bichos desconhecidos e assustadores, que cada
vez mais se aproximavam. Ele fugia desesperado, mas as suas
pernas perdiam força. Trindade acordou. Abriu os olhos e não
viu nada. Já era a manhã de outro dia ensolarado, mas ele não
sabia. Levantou-se da rede na escuridão e se bateu contra a
parede. Passou a mão nos próprios olhos, que lacrimejavam.
Ainda não tinha notado o acontecido: estava cego!
Fábio Oliveira

Até hoje o povo conta essa história nas rodas de con-


versa, nos bares, no descanso do trabalho, em casa, nas fes-
tas... Ninguém realmente sabe a verdade, nem o paradeiro de
Antônio Trindade. Alguns preferem não opinar sobre os fa-
tos, outros defendem o homem, outros defendem a mulher.
O que todos concordam, entretanto, é que piolho é coisa que
46 não tem valor, e só traz complicação!
Dia de festa

Como parte das comemorações do fim do ano letivo de


2009, a Escola Municipal Princesa Isabel organizou uma festa
para os funcionários no pátio do próprio estabelecimento de
ensino. As mulheres optaram por ficar responsáveis pela co-
mida da festa, e os poucos homens pela bebida. A diretora da
escola designou a si mesma uma tarefa que considerava espe-
cial, a de encarregar-se da música, para garantir boa diversão
a todos.
A festa começou às quatro horas da tarde do dia 21 de
dezembro. A maioria dos funcionários era casada e acabou
levando seus maridos ou esposas e filhos pequenos para o
evento; havia também alguns pares de namorados. As soltei-
ras foram sozinhas, talvez na esperança de voltarem acompa-
nhadas. Aquele fim de tarde animado prometia surpresas.
Quitutes, bolos, refrigerante, cerveja, caipirinha, con-
versas sobre o ano letivo que estava acabando, muitas recla-
mações dos professores a respeito do comportamento de seus
alunos, do nível de aprendizagem deles, da atitude de seus pais
em reuniões e reclamações também do salário indigno que Segredos, verdades e mentiras
recebiam. O clima era de desabafo e descontração.
Entretanto, Dulce estava tensa, mais do que de cos-
tume. Ela era uma professora novata da escola, nomeada
para esse trabalho naquele mesmo ano. Ela tinha medo de
ficar sozinha num lugar assim; podia exagerar na bebida e
perder o controle. Nessas ocasiões, precisava da presença
do seu marido, Otávio, que a vigiava e protegia. Mas nesse
dia teve de ir só, pois ele estava doente, com febre alta, e
ela não queria faltar à primeira confraternização com seus
novos colegas.
Embora tivesse tentado seguir as recomendações do
seu esposo para controlar-se, Dulce acabou não resistindo
ao ambiente descontraído da festa e tomou uma caipirinha. 47
Ficou animada e bebeu um pouco mais. Sem os olhos vi-
gilantes e protetores do marido, ela exagerou na bebida. A
professora séria e competente, respeitada por todos e te-
mida pelos alunos, transformou-se. Deu muitas gargalha-
das, como se outra pessoa risse por ela; dançou livremente,
mostrando um estranho mas sedutor movimento de corpo;
finalmente subiu em cima de uma mesa e fez seu espetá-
culo. Todos até então se surpreenderam com a sua atitude,
porém se divertiram com isto, em conhecer o lado animado
da professora.
Dulce, todavia, foi além. Sem controle de si mesma, ti-
rou a roupa – ficando apenas de calcinha e sutiã –, falou pala-
vrões, correu até uma árvore e subiu nela, com a agilidade de
uma criança experiente na ação.
As suas colegas mais próximas a seguiram e lhe pediram
que descesse, à distância os homens riam e admiravam o seu
corpo escultural, algumas mulheres falavam mal da surpreen-
dente professora, as crianças não entendiam muito bem o que
acontecia e ficaram meio assustadas.
Dulce parecia não ouvir nada e não obedecia a ninguém.
Trepada na goiabeira, continuava falando obscenidades, xin-
gando aqueles de quem não gostava, contando os segredos
que sabia dos conhecidos, assustando a todos.
De repente, como por um feitiço, o vento sacudiu com
força as folhas e galhos daquela árvore e os seus frutos verdes
e maduros despencaram. Mais estranho que isso, caro leitor,
foram as formigas correndo desesperadamente para dentro
da terra, como se pressentissem um horror por vir. Sincera-
mente, não sei se há ligação entre os fatos, mas algo naquele
Fábio Oliveira

dia ficou sem explicação.


Foi assim até chegar Otávio, queimando em febre e
já prevendo o vexame. Alguém tinha ido chamá-lo para re-
solver a situação desconfortável que se instaurara na festa
familiar. O volume da música agora estava baixinho, como
se fosse o fim do evento. Ao ouvir a voz do seu marido
48 mandando-a descer dali, Dulce desabou em lágrimas, perdeu
o equilíbrio e caiu da árvore. Ele foi ajudá-la, mas ela não ha-
via se machucado gravemente, apenas teve alguns arranhões.
– Vista a sua roupa e vamos pra casa, querida. Agora tá
tudo bem! – disse o marido.
Cada um dizia algo sobre o acontecimento, encerrando
aquela festa:
– Nossa, a mulher enlouqueceu!!!
– Isso é encosto, ela tem que se tratar num terreiro!
– Eu acho que ela tem a Pombagira!
– Ela tá de corpo aberto, aí recebe os espíritos malignos!
– Você viu a força do vento, derrubando tudo? Quase
me derrubava também!
– Tô toda arrepiada! O que foi aquilo?
– É muita inveja que as pessoas têm dela, aí ela capta
essa energia ruim!
– Ela é uma safada, isso é o que ela é!
– Esse tipo de mulher eu conheço, deve ter um passado
assombroso!!!
– Coitada, que vergonha!
– Meu Deus, como ela vai ter coragem de encarar todo
mundo depois disso?
– Ah, isso pode acontecer com qualquer um! Deve tá
passando por uma fase difícil e ficou sem rumo!!! Segredos, verdades e mentiras
– Cara, a mulher é filé, hein! Se ela vacilar, eu como!
– Tem marido que é corno e não sabe!
Otávio levou sua mulher para casa, com um cuidado e
uma atenção com o ser que só um homem sensível e apaixo-
nado pode ter. Já imaginava que teriam de sair daquele terri-
tório, como já fizeram em tantas outras cidades. O aconteci-
do poderia desencadear a curiosidade daquelas pessoas pelo
passado de Dulce, mas, enquanto pudesse, ele não permitiria
que descobrissem os segredos dela, os quais ele comparti-
lhava. Tinha a certeza de que os outros não compreenderiam
os fatos. Mas ele continuaria a seu lado para sempre.
Já em seu lar, Dulce tomou um banho frio, preparou o
jantar do seu esposo e permaneceu calada todo o restante da 49
noite. Tinha se tornado ainda mais séria, rígida, compenetra-
da e dura. Pensava por que essas coisas tinham de acontecer
com ela: “Em um momento, coloco tudo a perder!” Sentia um
aperto no peito que não conseguia descrever. Olhou para o
marido e sentiu ainda mais gratidão e respeito por ele. Achava
que viveriam juntos para sempre.
Fábio Oliveira

50
O destino de Gabriel

O ônibus chegou à rodoviária de São Paulo e estacionou


em sua plataforma. A maioria dos passageiros já estava em pé
antes mesmo da porta do veículo se abrir. Algumas crianças
pequenas ainda dormiam, mas foram acordadas com o choro
alto de um bebê. Os homens eram os mais impacientes, por
isso mesmo eram os primeiros da fila para desembarcarem.
Alguns agradeciam a Deus por todos terem chegado com vida
àquela cidade; outros ligavam para os conhecidos, avisando
que finalmente tinham chegado. Todos estavam cansados da
viagem de quase quarenta horas.
Quando a porta se abriu, rapidamente os passageiros
desembarcaram e começaram uma breve agitação na platafor-
ma para pegarem seus pertences. Ninguém queria ser o último
a sair dali, o que causava certa bagunça. O despachante con-
feria as etiquetas e distribuía as malas, caixas, sacolas, sacos e
todas as outras coisas trazidas no bagageiro do ônibus.
O jovem Gabriel foi um dos primeiros a sair da plata-
forma. Carregava apenas uma mochila nas costas. Tinha dei-
xado para trás sua mãe, seu pai e seus seis irmãos em uma Segredos, verdades e mentiras
roça no interior do Ceará. Ele seguia o fluxo de pessoas, meio
perdido, assustado e temeroso com o desconhecido. Viu que
as pessoas eram levadas para cima por alguma coisa que não
sabia o que era e achou isso estranho, mas continuava seguin-
do o fluxo. De repente viu uma escada que saia de dentro do
chão e se movimentava, o que o fez parar repentinamente de
susto, atrasando a fila e ouvindo reclamações. Saiu dali meio
envergonhado e ficou observando de longe, até enxergar uma
escada de concreto como as que ele já conhecia. Algumas
poucas pessoas subiam por ela e ele fez o mesmo.
Já no andar de cima, muita gente ia e muita gente vi-
nha, os corredores eram enormes, havia lojas de tudo que
era tipo. Gabriel continuava andando meio perdido. Mais 51
adiante encontrou umas cadeiras e se sentou. Pensou no que
faria para começar a procurar o seu tio Tonico naquela cida-
de. Tudo parecia ser muito diferente do que ele imaginou e,
para complicar a situação do jovem, ele não tinha nenhum
endereço daquela cidade, apenas nomes em sua memória:
Antônio Ribeiro, conhecido como Tonico, irmão do seu pai
e esposo de Maria das Graças, conhecida como Dadá.
Sabia que seria bem recebido pelo seu tio, ao encontrá-lo.
Pediria ajuda a ele para morar por um tempo em sua casa, até
conseguir um trabalho. Não faria corpo mole; trabalharia em
qualquer coisa, só queria ganhar dinheiro, melhorar de vida,
ajudar sua família e mais tarde trazer seus irmãos para traba-
lharem em São Paulo também.
Fazia dez anos que o jovem retirante não via esse seu
tio. A última vez quando isso tinha acontecido Gabriel ainda
era uma criança. Lembrava que seu tio gostava muito dele e
prometeu levá-lo àquela cidade. Não sabia o que tinha acon-
tecido depois: nenhuma notícia esses anos todos, mas ele não
tinha se esquecido da promessa e estava ali para relembrá-lo.
Achava que Tonico podia ter perdido seu endereço postal, ou
que ainda estava esperando melhorar de vida para convidá-lo,
entretanto o rapaz não queria mais esperar.
O jovem não sabia exatamente como começar essa nova
etapa de sua aventura. Estava preocupado, mas não perdeu a
confiança. Sentado, com a sua mochila em cima das próprias
pernas, via aquele mundão de gente passando em sua frente
de um lado para o outro. Contou o dinheiro mais uma vez,
para certificar-se de quanto ainda tinha e de quanto gastara na
viagem. Havia gastado mais do que planejara; tudo tinha sido
Fábio Oliveira

muito caro.
Gabriel resolveu sair da rodoviária, para tentar encon-
trar o seu tio. Perguntou a algumas pessoas onde ficava a saída
para a rua. Uma delas lhe indicou um caminho. O jovem se-
guiu a indicação, desceu uma escada e chegou ao passeio. Viu
alguns hotéis e alguns bares. Entrou em um desses botecos e
52 pediu uma dose de cachaça. Bebia em pé mesmo, encostado
no balcão. O bar tinha gente, mas não estava cheio. Logo con-
versava com um desconhecido, contando a sua situação:
– Você é maluco, rapaz! Sem endereço você nunca vai
achar seus parentes nessa cidade!
– Mas é tão grande assim, cara!!!
– Isso aqui parece o mar, nunca acaba! Você anda, anda,
anda, e nunca chega ao fim!
– Mas tenho fé em encontrar!!
Depois de o jovem retirante beber por poucas horas,
saiu dali e foi caminhar pelas redondezas. Já era mais de meia-
-noite. Andou até encontrar algumas pessoas que viviam na
rua. Conversou com algumas delas e contou novamente a sua
situação. Também ouviu o que os outros tinham para desa-
bafar. Gabriel estava começando a conhecer São Paulo por
meio de histórias de ilusão, abandono, solidão, sofrimento,
resistência e persistência. Acabou dormindo ali mesmo, para
economizar o resto de dinheiro e também para continuar ten-
do algum tipo de companhia naquela madrugada.
O desamparo seria a sua moradia a partir de então.
E dele o jovem não sairia mais. Nessa condição conhece-
ria ruas, avenidas, túneis, viadutos, feiras livres, mercados,
praças, calçadas, marquises. Conheceria o frio, a insônia,
a fome, privações de todos os tipos. Por fim, conheceria a Segredos, verdades e mentiras
morte prematuramente.

53
O vento e o mar

João Alberto não sabia por que isso havia acontecido:


viver atormentado por aquelas insistentes imagens.
Durante muito tempo, ele havia achado que o surgi-
mento das imagens coincidia com o casamento de sua mãe.
Ela foi a pessoa que ele mais amou na vida e nesse momen-
to sentia que um forasteiro a havia roubado dele, mas com
a vontade secreta dela própria, o que lhe impossibilitava de
tomar qualquer atitude para evitar aquela união, pois, mesmo
sendo criança, já era um cidadão íntegro.
Ele viveu a sua infância em uma casa com muitas pes-
soas, a grande maioria mulheres: os seus bisavôs, a sua tia-avó,
cinco tias e sua mãe. Durante esse período não conheceu o
seu pai, o que só foi acontecer quando tinha 15 anos. Foi um
único encontro, e o adolescente continuou sem um nome pa-
terno no seu registro de nascimento.
Antes mesmo de sua mãe casar, ele tinha visto seus
bisavôs morrerem, já havia ganhado uma irmãzinha e tinha
presenciado a saída de sua mãe da casa onde ele morava para
que ela construísse uma nova família. O menino, com 12 anos
de idade, decidiu permanecer onde estava, recusando o con-
vite da mãe para ir morar com ela. Isso parecia ter sido o seu
primeiro trauma do qual ele tem consciência. Mesmo tendo
recusado o convite, ele não aceitava a concordância de sua
mãe sobre o fato.
As imagens eram sempre de um vento feroz, que arras-
Fábio Oliveira

tava seu corpo pelas ruas da cidade, como se fosse um galho


de árvore à mercê de uma força estranha. O vento arruinava
tudo que encontrava pela frente: edifícios e casas, carros, ár-
vores, postes de iluminação, sinaleiras, placas de sinalização.
Os edifícios despedaçavam-se no ar, atirando para fora uma
enorme quantidade de corpos; as casas bailavam um balé
54 trágico, girando num grande círculo como se tivessem num
caldeirão; carros, árvores, postes e tudo mais que era levado
pelo vento se tornavam poderosas armas.
Com o passar dos anos, outras imagens apareceram,
como variações das primeiras. Uma bastante recorrente era
a de um mar violento que invadia a praia com ondas bravas,
engolindo o seu corpo e varrendo o que encontrava diante de
si. Em contato com tal brutalidade, qualquer coisa se tornava
vulnerável. O mar não avisava quando iria invadir; gostava de
fazer surpresas, como um ladrão esperando sua vítima.
Foi só na vida adulta que João Alberto percebeu que
essas imagens surgiram a partir da sua primeira experiência
sexual, quando ele tinha 13 anos. Aconteceu com um garoto
três anos mais velho que ele, e por iniciativa desse seu amigo.
Durante muito tempo os dois permaneceram juntos, se en-
contrando escondidos e descobrindo os prazeres do sexo; às
vezes simulando ser um casal, outras vezes fingindo serem
apenas amigos.
Desde a época em que passou a sonhar com as catástro-
fes, desejava que acontecessem de fato, mas ao mesmo tempo
temia passar por tais situações. Por um lado, queria vivenciar
os desastres e sentir seu corpo flutuando no ar ou sendo inva-
dido por águas geladas, para ter a sensação de ser totalmente
dominado por algo superior a ele, que o fizesse ter um respei- Segredos, verdades e mentiras
to que ainda não tinha por nada nem ninguém. Por outro lado,
temia morrer diante de fatais experiências, pois tinha consciên-
cia da fragilidade humana, da sua própria fragilidade.
Essas imagens passaram a guiar a sua vida. Não habi-
tavam apenas os seus sonhos, mas também o seu cotidiano.
Durante a sua primeira relação sexual com uma mulher,
desejou que o vento feroz mostrasse a sua força, dominando
tudo o que estava em sua volta. E foi além: quis inclusive
que o próprio vento fizesse o trabalho por ele e dominasse
o corpo negro e gordo da garota, penetrando-a e fazendo-a
sentir-se fêmea. Foi pensando assim que ele conseguiu ir até
o fim da relação, preservando a condição que ele acreditava
ser a de macho. 55
No seu primeiro dia de trabalho, como professor de
Geografia, ao entrar em sala de aula e ver os alunos a sua
espera, desejou que o mar invadisse o lugar e deixasse todas
aquelas criaturinhas imóveis e temerosas às suas ordens de
mestre. Mas o que presenciou foi outra catástrofe grudar na
voz mansa de sua timidez e no suor do seu nervosismo: alu-
nos correndo, falando alto, brigando entre si, indiferentes a
qualquer autoridade que ele quisesse impor.
Quando comprou o seu primeiro carro e saiu para diri-
gir sozinho, quis que o vento feroz arruinasse com a vida de
todos que estavam em seu caminho, para que não presencias-
sem o seu vexame: motorista habilitado atrapalhando o trân-
sito da cidade movimentada, ora deixando o carro morrer, ora
correndo o risco de atropelar alguém.
À noite João Alberto demorava pegar no sono, como
se sentisse culpado pela sua impotência para resolver seus
conflitos durante o dia. Daí vinha uma angústia; vinha também
uma ansiedade, como se pudesse resolver instantaneamente
algo que o incomodava, mas não conseguia ainda enxergar a
solução.
Assim esse homem suportava a sua realidade, dia após dia.
Quando João Alberto comprou sua própria casa, já na
sua maturidade, algo novo passou a acontecer: agora ele dese-
java ser o próprio vento e o próprio mar. Aos poucos, olhava-se
no espelho e percebia modificações em si mesmo, até não se
ver mais como um menino indefeso, mas como um homem
batalhador.
Um dia, algo surpreendente aconteceu. Entrou para to-
mar um café em uma nova padaria do centro da cidade e foi
Fábio Oliveira

atendido por uma jovem atenciosa e sorridente. Ao vê-la, os


seus olhos brilharam e o seu coração acelerou. Havia se en-
cantado por ela como nunca havia se interessado por outra
mulher. Seus olhos acompanhavam-na por onde ela ia. Ao
receber o seu café e pão com manteiga das mãos da desconhe-
cida, olhou-a fixamente e sorriu timidamente. Ela iniciou uma
56 conversa breve, mostrando interesse também.
Nesse dia, o pensamento de João Alberto esteve volta-
do para Marina, a jovem que havia arrebatado o seu coração.
No fim da tarde, voltou à padaria para vê-la mais uma vez.
Nesse segundo encontro, a conversa durou um pouco mais, e
trocas de elogios escaparam.
No final dessa mesma semana, no sábado à noite, o ca-
sal foi ao cinema. No escuro do lugar, aconteceu o primeiro
beijo. Os lábios de Marina estavam mornos e molhados; a sua
pele era macia. João Alberto desejou possuir o corpo da garo-
ta e amá-la para sempre.
Marina se apaixonou pelo homem, sem se interessar
pelo seu passado. Para ela, só importava o presente e o futuro.
Queria dar a ele uma família, filhos, carinho, cuidados e amor.
E foi justamente o amor que ela tinha por ele que fez com que
esse homem encontrasse o seu lugar no mundo.
Os dois se casaram, e João Alberto passou a ter noites
tranquilas, a sentir-se inteiro, a conhecer a sensação de prote-
ção, a se dedicar à mulher que o amava e a quem ele venerava.

Segredos, verdades e mentiras

57
Buquê de flores

Naquela tarde cinzenta e fria de agosto, Roberto esta-


va sem rumo: tinha sido demitido há cinco meses, depois de
vinte anos de trabalho no banco. Foi o seu primeiro e único
emprego; não tinha outra qualificação profissional, não tinha
formação acadêmica.
Pelas ruas do centro da cidade, ele andava e se sentia
engolido pelo tempo. Pensava na sua esposa e nos seus três
filhos; pensava em como seria o futuro de sua família, em
como pagaria as contas de cada mês, no que todos comeriam,
vestiriam; pensava nos estudos dos seus filhos, em como eles
fariam para cursar um curso universitário.
A sua esposa, Marlene, era professora das séries iniciais
do Ensino Fundamental e o seu salário não cobria as despe-
sas mensais da família. Os filhos ainda precisavam estudar, e
Roberto considerava um prejuízo a vida forçá-los a trabalhar
prematuramente.
Nesse dia, o destino levou esse homem para uma pra-
ça. Estava inconformado por não conseguir um novo emprego
até o momento, depois de muitas tentativas. Havia feito várias
entrevistas; sentiu-se humilhado em algumas, teve esperança
em outras. O dinheiro que ganhou pelo tempo de serviço no
banco acabaria em alguns meses, e pensar nisso o deixava aflito.
Sentado no banco, como se fosse um zumbi, ele viu
um mercado de flores. Ao lado do mercado, havia bares. Quis
beber, como vinha fazendo ultimamente, mas não desejava
Fábio Oliveira

continuar se desentendendo com sua mulher por causa da sua


embriaguez, logo desistiu da ideia.
Depois de um bom tempo ali, decidiu comprar flores
para sua esposa, como se estivesse pedindo socorro a um des-
conhecido. Foi até uma das lojas do mercado, caminhando
devagar, correndo o risco de ser atropelado pela multidão que
58 não tolerava fracassados e indecisos. Feita a compra, viu uma
loja fechada, com o anúncio de aluguel na porta. Depois foi
para sua casa.
Nessa noite, Roberto amou como há muito tempo não
fazia. Foi dormir pensando no efeito das rosas vermelhas em
Marlene; um sopro de vida alcançava a sua alma. Mas, nos dias
seguintes, o homem manteve sua rotina de espinhos: voltou a
beber, a chegar em casa embriagado, a discutir com a sua es-
posa, a desiludir-se com a vida, a perder as esperanças quanto
a um novo emprego.
Uma semana depois de ter comprado as flores, Rober-
to voltou ao mercado para repetir a compra. Dessa vez con-
versou com as pessoas do lugar, com os vendedores antigos
principalmente. Descobriu flores novas, os sentimentos asso-
ciados a elas, a importância das cores, dos perfumes. Voltou
para casa com um buquê de flores do campo, e mais uma
noite amou como na adolescência.
Foi assim que Roberto decidiu alugar uma loja no mer-
cado de flores e trabalhar nesse ramo. Teve de trabalhar duro,
empregar o dinheiro que ainda tinha, acordar cedo, conhecer
um novo universo. Durante vários meses, viveu apreensivo
com a nova experiência, com medo de que algo desse errado
e perdesse o capital que restava. Mas uma força desconhecida
o empurrava para a batalha.
O trabalho deu certo, e a sua relação com sua esposa
Segredos, verdades e mentiras

só melhorava. Roberto, desde que entrou naquele mercado,


jamais passou uma semana sem presenteá-la com flores e,
nesses momentos, ele se sentia ainda mais realizado.
Uma vez por semana o homem ia ao banco para re-
solver questões financeiras. Entrava sobressaltado no lugar,
lembrando um tempo em que viver era um grande enigma
assombroso. E ao sair do banco, sorria, deixando para trás um
passado que não queria mais vivenciar.
Só agora, em meio a gardênias, jacintos, angélicas, cra-
vos, lírios, margaridas, rosas, tulipas e tantas outras flores,
Roberto percebia o quanto não gostava do seu trabalho no
banco, o quanto morria a cada dia com aquela obrigação, o
quanto pesava para ele aquela rotina. 59
Uma leitura de
Segredos, verdades e mentiras

No meu exemplar da primeira edição do livro Segredos,


verdades e mentiras, de Fábio Oliveira (Scortecci Editora: São Pau-
lo, 2013), estão registradas as seguintes notas autógrafas: “Para
Carol, aguardando os seus valiosos comentários”. Diante de
tais palavras, senti-me movida a responder o “convite” e/ou
“espécie de gentil intimação” feito(s) pelo autor. Passado o pri-
meiro momento de satisfação com a leitura, veio a preocupação
com o cuidado que eu deveria dispensar a esta difícil tarefa que
me foi confiada e que espero poder cumpri-la a contento. Passo
então a empreender uma das leituras possíveis para a obra.
A princípio, devo salientar – ocupando duas posições
distintas: a de leitora do senso comum e a de estudiosa da li-
teratura – a feliz escolha do título, que, por si só, já é convida-
tivo e incita o leitor a percorrer as páginas do livro, tentando
desvendar “segredos, verdades e mentiras” que circundam o
universo dos personagens, bem como a construção da trama
das treze crônicas do cotidiano contidas no livro. Em tempos
de exposição avassaladora do íntimo nos meios midiáticos, é
de se esperar que o leitor se sinta motivado a adentrar a obra
em busca de perscrutar os “segredos” que lhe possam ser re-
velados através das narrativas.
Ao palmilhar página a página, o leitor logo vai per-
cebendo que o segredo é a mola-mestra da constituição do
perfil dos personagens. Por meio de histórias tristes e pun-
Fábio Oliveira

gentes, o autor revela o lado obscuro da natureza humana,


reunindo na composição das histórias “verdades” e “men-
tiras”, isto é, entrelaçando o “real” e o “ficcional” num
exercício de representação dos mistérios e/ou do lado te-
nebroso da vida. Quem nos fala do espanto, do vazio, do
abismo, do mal-estar e do paraíso em que os personagens
60 estão envoltos é Fábio Oliveira. Entre a realidade e o delírio
os personagens transitam e, assim, o autor desvenda as pro-
fundezas da alma, colocando o leitor diante de vidas que se
perdem e se encontram em labirintos, tudo isso ofertado
por meio de uma linguagem simples, acessível e objetiva. Fi-
losofia, existencialismo, intimismo se imiscuem nas dobras
das narrativas, tudo isso compondo um misto de reflexivi-
dade e mundanidade.
Aliás, esses e outros fios ligam as histórias contadas
em Segredos, verdades e mentiras, apesar da independência cria-
tiva, narrativa e semântica que cada uma delas reserva ao
leitor. Todas as narrativas expõem o conflito existencial dos
personagens e guardam, até certa altura, um ar de mistério
que, por vezes, vai sendo desvendado ou, de outro modo,
lançado à curiosidade daquele que se lança à leitura da obra.
Os personagens, em sua maioria, vivem o complexo de Ma-
cabéa, ou seja, vivem de si mesmos como se comessem as
próprias entranhas, para citar a feliz interpretação do nar-
rador Rodrigo S. M. ao se referir à personagem clariceana,
interpretação que, ao meu ver, pode ser estendida aos per-
fis construídos por Fábio Oliveira. Por meio deles, o autor
reflete sobre alguns dilemas do ser no mundo: a solidão, a
incomunicabilidade, o desolamento. O silêncio que domina
o universo dos personagens, tal como descreve o autor na Segredos, verdades e mentiras
crônica A minha primeira comunhão, é um “silêncio absolu-
to, incômodo e desconfortável” (OLIVEIRA, 2013, p. 29).
Assim como ocorre nas narrativas de Clarice Lispector, em
Segredos, verdades e mentiras o referido escritor traz à cena ho-
mens e mulheres que não têm plena consciência de si ou do
mundo à sua volta e se descobrem ou descobrem o outro
num instante epifânico. Outro elo que une as histórias é
que os personagens são movidos pela pulsão dos desejos,
dos mais inofensivos aos mais torpes, segundo os padrões
“da moral e dos bons costumes”. Nesse sentido, movem-se
entre a pulsão de “Eros” e de “Thanatos”, isto é, entre a
pulsão pela vida, pela realização dos sentidos, e a pulsão
pela morte. 61
Tantas outras coisas poderiam ser ditas acerca do livro
de estreia na prosa literária de Fábio Oliveira, mas prefiro dei-
xar que outros leitores encontrem outras chaves de leitura ao
abrir e fechar as páginas de Segredos, verdades e mentiras.

Ana Carolina Cruz de Souza


Profa. Ma. de Literatura Brasileira –
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Fábio Oliveira

62
Contato com o Autor
faoliveira@ig.com.br
www.graficascortecci.com.br

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