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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

Discussão
“Tornar-se pessoa” (1961)
Carl Rogers

Atividade para a disciplina de Psicologia Fenomenológica-


Existencial I, ministrada pelo Prof. Diogo no primeiro se-
mestre do ano de 2018 para o curso de Psicologia.

Régis Cardoso

Curitiba
2018
Introdução

Carl Rogers contribuiu imensamente com a psicologia ao escrever sobre novas formas de abor-
dar a clínica, resgatando uma postura humanista que centra a terapia no paciente. O presente trabalho
é um fichamento crítico de alguns pontos elementares de sua obra, Tornar-se Pessoa (1961), articu-
lando alguns de seus temas centrais com as concepções filosóficas de Heráclito, da Gestalt-Terapia e
da psicanálise freudiana. Com “fichamento crítico”, quero dizer que é, ao mesmo tempo, uma apre-
sentação destes elementos centrais, uma articulação que tenta desvelar a essência da postura rogeri-
ana, bem como relações e reflexões que eu mesmo fiz acerca da obra.

Neurose, fluidez e aceitação

Fica claro desde o começo que um dos pontos centrais da prática rogeriana é buscar fazer com
que o sujeito abrace a mudança. Ao percorrer as sete fases do processo de tornar-se pessoa, Rogers
estabelece que uma das principais características típicas dos primeiros estágios (pouco desenvolvidos,
por assim dizer) é exatamente a incapacidade do sujeito de se engajar numa relação ativa e trans-
formadora com o presente e com as experiências imediatas. Isso fica particularmente evidente
quando ele diz que os sete estágios vão “da rigidez à fluidez”.
Este caminho filosófico, de compreender a mudança como parte constitutiva da realidade, co-
meçou há mais de 500 anos antes de Cristo, com Heráclito. Filósofo da mudança, Heráclito certa-
mente foi uma influência de peso a toda espécie de pensamento fenomenológico, sobretudo ao enfa-
tizar o devir: tudo é um constante vir-a-ser; nada é de maneira estática. Parece-me que Rogers
resgata essa concepção ontológica ao fazer um esforço para atribuir à experiência humana ideal a
harmonia com a fluidez da realidade.
Isso vai em direção ao que propõe a própria Gestalt-terapia, que busca emancipar o sujeito de
suas percepções fixadas. A ideia é combater as neuroses ao questionar a estabilidade artificial
que elas geram na vida do sujeito. Essa rigidez de percepção própria das neuroses faz com que o
sujeito se isole do contato com o mundo, prendendo-o a formas antigas de visualizar e interpre-
tar a realidade. Tanto Rogers quanto a Gestalt propõem uma atitude terapêutica no sentido de rees-
tabelecer o sujeito no presente, em contato frutífero com a mudança, buscando-se realizar en-
quanto pessoa.
Outra pedra-angular do pensamento rogeriano que vale a pena destacar é a necessidade de pro-
duzir, na clínica, um ambiente de total aceitação, no qual o paciente se sinta livre (muitas vezes pela
primeira vez na vida) a entrar em contato com seu verdadeiro eu, inclusive descobrindo-o. Nesse

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aspecto, me ocorre que esta “aceitação incondicional a quem se é”, para que “se possa ser livremente”,
é algo que o terapeuta precisa produzir para suplantar uma deficiência desta aceitação na infância do
sujeito. Muitas vezes, não há esta aceitação dentro do próprio lar, fazendo com que a pessoa se veja
obrigada a vestir máscaras para ser aceita — de maneira que, eventualmente, essas máscaras se aco-
plem à sua própria identidade, e de repente não se saiba mais sobre quem se é. Abaixo, trago um
excerto em que Rogers fala diretamente sobre essa questão:

“[O cliente] aprende quanto do seu comportamento, até mesmo dos


sentimentos que vivencia, não é real, não sendo algo que flui das reações
genuínas de seu organismo, mas sim constitui uma fachada, uma frente, atrás
da qual está se escondendo. Descobre o quanto sua vida é guiada por aquilo
que pensa que ele deveria ser, e não por aquilo que é. Frequentemente des-
cobre que ele só existe em resposta às exigências dos outros, que parece não
ter nenhum eu próprio, e que está somente tentando pensar, e sentir e se com-
portar de acordo com a maneira que os outros acreditam que deva pensar, e
sentir e se comportar.”

Trago também outro excerto, desta vez retirado da crônica “Persona” da Clarice Lispector, ex-
posta no livro “A Descoberta do Mundo”:

Mesmo sem ser atriz nem ter pertencido ao teatro grego – uso uma
máscara. Aquela mesma que nos partos de adolescência se escolhe para não
se ficar desnudo para o resto da luta. Não, não é que se faça mal em deixar
o próprio rosto exposto à sensibilidade. Mas é que esse rosto que estava nu
poderia, ao ferir-se, fechar-se sozinho em súbita máscara involuntária e ter-
rível. É, pois, menos perigoso escolher sozinho ser uma pessoa. Escolher a
própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. (...)
(...) depois de anos de verdadeiro sucesso com a máscara, de repente –
ah, menos que de repente, por causa de um olhar passageiro ou uma palavra
ouvida – de repente a máscara de guerra de vida cresta-se toda no rosto como
lama seca, e os pedaços irregulares caem como um ruído oco no chão. Eis o
rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E ele
chora em silêncio para não morrer. Pois nessa certeza sou implacável: este
ser morrerá. A menos que renasça até que dele se possa dizer “esta é uma
pessoa”.

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Nesse sentido, as neuroses seriam, de acordo com o próprio Rogers, maneiras que o sujeito
encontrou para se preservar, estratégias defensivas inconscientes para se adequar a certos ideais
normativos internalizados. Uma postura terapêutica que enfatiza uma aceitação completa e efetiva
não apenas combate essas neuroses — de maneira a mostrar para o paciente que ele pode ser a si
mesmo sem medo de represálias ou julgamentos —, como também permite que sua personalidade
seja efetivamente desenvolvida, sem restrições e sem esta dependência tóxica em relação à visão do
outro sobre si. Fazer com que o paciente se sinta aceito é, desta forma, absolutamente fundamental
para que seja devolvida a ele a titularidade sobre sua própria existência, a autonomia sobre a sua
própria maneira de ser — sempre, não nos esqueçamos, de maneira fluida e presente.
Junto ao esforço de criar um clima de aceitação, existe em Rogers a preocupação de instaurar
uma terapia que se diz não-diretiva, isto é, que não é conduzida pelas expectativas do terapeuta, e
sim pelas necessidades do paciente, a partir de sua própria experiência. Quando se fala em Rogers, a
chave para entender sua terapia é pensar que ela é centrada no paciente — e enquanto pessoa, isto é,
enquanto um ser profundamente complexo, subjetivo e fluido. Nesse aspecto, pude fazer uma relação
desta postura com a que é exigida de um psicanalista, quando Freud estabelece que um analista não
pode introduzir seus próprios desejos e significantes no paciente. Ainda que de uma forma psicanalí-
tica, ele está dizendo essencialmente a mesma coisa que Rogers: a força-motriz da análise deve partir
do paciente, de suas próprias experiências, afetos e representações; não de uma imposição do tera-
peuta.
Na medida em que o paciente vai encontrando sua própria autonomia (utilizando a aceitação e
a escuta do terapeuta como suporte, mas a sua própria autenticidade como força), a tendência é que,
cada vez mais, ele seja capaz de se reconectar com seus sentimentos, em vez de tratá-los como objetos
externos. Vai havendo, com isso, o que Rogers chama de crescente maleabilidade dos sentimentos
e das vivências. Cada vez mais, o paciente se torna capaz de se apropriar das mudanças no momento
presente, sempre com sua própria riqueza imediata e subjetiva. Passam a ser cada vez menos fre-
quentes tentativas de combater, negar ou desviar os sentimentos; em vez disso, há um movimento
progressivo de lidar com as mudanças de maneira rica, presente e criativa, não mais defensiva.

Reflexões finais

Embora cada uma das estruturas teóricas articuladas no presente trabalho — isto é, as concep-
ções de Rogers, Heráclito, Freud e da Gestalt-terapia — partam de diferentes premissas teóricas, e
portanto se aninhem em paradigmas distintos, quando se estabelece um diálogo entre elas no que diz
respeito às temáticas referentes à rigidez de percepção, pode-se observar uma certa convergência.
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Cada um à sua maneira, esses sistemas teóricos prezam pela possibilidade de o sujeito renovar-se
por meio da abertura de perspectiva, de conseguir enxergar a realidade de formas que se atualizem,
e que não fiquem acorrentadas ao passado. Para isso, o terapeuta deve tentar criar um clima de acei-
tação incondicional.
A contribuição de Rogers para a psicologia vai muito além de suas sistematizações conceituais.
Antes, ela vai muito mais no sentido de promover esta postura que o terapeuta deve adotar frente ao
paciente, de centrar nele a terapia, o que significa não imprimir a ele preconcepções definidas, e sim
deixar as próprias necessidades do paciente guiar o processo terapêutico.

Bibliografia

➢ ROGERS, Carl R. Tornar-se pessoa. 5. ed São Paulo: Martins Fontes, 2001.


➢ Aulas de Feno I.
➢ Conhecimentos pessoais acerca do conceito freudiano de neurose, bem como das con-
cepções filosóficas de Heráclito.

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