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VIII COLÓQUIO MARX ENGELS

Grupo Temático 3 - Marxismo e Ciências Humanas

A questão do consenso na ditadura militar brasileira: apontamentos a


partir de Gramsci
Demian Bezerra de Melo∗
Resumo: Em 2004, uma série de eventos acadêmicos relacionados aos quarenta anos da implantação da
última ditadura brasileira evidenciaram a existência de fortes tendências relativizadoras, dispostas a
amenizar aspectos até então consensuais daquela experiência histórica. O propósito destas linhas agora é
o de atualizar este debate crítico de modo a poder verificar a influência das proposições revisionistas em
um tema capital: o apoio social à ditadura.
Palavras-chave: ditadura militar, consenso, revisionismo histórico

Abstract: In 2004, a series of academic events related to the fortieth anniversary of implementation of the
last Brazilian dictatorship showed the existence of strong relativizing trends, willing to soften hitherto
consensual aspects of that historical experience. The purpose of these lines is now updating this critical
debate in order to verify the influence of the revisionist propositions in a capital theme: social support to
the dictatorship.
Keywords: military dictatorship, consensus, historical revisionism

Em 2004, uma série de eventos acadêmicos relacionados aos quarenta anos da


implantação da última ditadura brasileira evidenciaram a existência de fortes tendências
relativizadoras, dispostas a amenizar aspectos até então consensuais daquela experiência
histórica, particularmente no que se refere às responsabilidades pelo golpe de Estado e o
papel da resistência armada à ditadura. Em outros trabalhos, tivemos a oportunidade de
elaborar críticas a esta historiografia (Cf. MELO, 2006; MELO, 2014a), partindo do
conceito de revisionismo histórico. O propósito destas linhas agora é o de atualizar este
debate crítico de modo a poder verificar a influência das proposições revisionistas em
um tema capital: o apoio social à ditadura.
A capacidade de regimes ditatoriais manterem sua dominação com amplas bases
de apoio nas chamadas “sociedades de massa” do século XX, sempre foi objeto de
muita polêmica entre os analistas. No início do século XX ninguém menos que Benito
Mussolini (1883-1945), já na condição de chefe de governo, escreveu o artigo “Forza e


Doutor em História pela UFF e Prof. Adjunto de História Contemporânea do IEAR-UFF. E-mail:
demian_pesquisa@yahoo.com.br

1
consenso”, publicado na revista fascista Gerarchia, em 1923, re-introduzindo o tema do
consenso no debate político contemporâneo. Do sociólogo Vilfredo Pareto (1848-1923),
ao dirigente comunista e filósofo Antonio Gramsci (1891-1937), passando pelo filósofo
liberal napolitano Benedetto Croce (1866-1952), a questão da capacidade do Estado
produzir um consenso ocupou as preocupações daqueles interessados no problema do
poder, seja de sua manutenção, seja do “assalto” ao mesmo (Cf. BIANCHI & ALIAGA,
2011: 19).1
Na historiografia a questão foi introduzida por Renzo De Felice, em um dos
volumes de sua magistral biografia de Benito Mussolini em meados dos anos 1970 (DE
FELICE, 1996 [1974]).2 Já naquela época, a proposição do autor recebeu um volume
significativo de críticas, a maior parte destas considerando que De Felice inflaciona o
consenso – a partir da ênfase na ideologia fascista e na psicologia de Mussolini –,
esvaziando a coerção, aspecto central em qualquer regime ditatorial.3
Num ambiente intelectual marcado pela influência da obra de Antonio Gramsci,
a introdução do tema do consenso para tratar do regime que selou a sua sorte, a
proposição de De Felice – ex-militante do Partido Comunista Italiano – parecia uma
grande provocação. Afinal, como se sabe, na problemática da hegemonia, cara ao
marxista sardo, o par dialético coerção/consenso tem um lugar central, e nos seus
Quaderni o consenso parece sempre associado ao regime democrático parlamentar.
O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno clássico do regime parlamentar,
caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de
modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao
contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da
maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública – jornais e
associações –, os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente
multiplicados. (GRAMSCI, CC 3, 2007: 95)

Não há nada, contudo, na obra gramsciana que desautorize pensar o consenso em


experiência ditatoriais, ainda que, diferentemente da abordagem defeliciana, Gramsci se
refira à capacidade da classe dominantes exercer sua dominação através de uma
combinação equilibrada entre coerção e consenso. Portanto, a questão do consenso não

1
Cf. BIANCHI, Alvaro & ALIAGA, Luciana. “Força e consenso como fundamentos do Estado.” Revista
Brasileira de Ciência Política, n.5, Brasília, pp.17-36, janeiro-junho de 2011, p.19.
2
Que começou a publicar em meados dos anos 1960 e terminou em meados dos anos 1990.
3
Ver a discussão na revista Passato e Presente (Roma, n.1, 1982, p.3-30), Discussioni. Il Mussolini di
Renzo De Felice, com a participação de Adrian Lyttelton, Jens Petersen e Gianpasquale Santomassimo.

2
é colocada apenas no nível do apoio social a um governo, nem pode ser confundida com
a noção mais usual de legitimidade.
Mais ou menos consciente dos problemas que envolvem o uso do conceito de
consenso, a historiografia latino-americana vem paulatinamente incorporando o mesmo
para pensar o apoio social ao ciclo de ditaduras militares dos anos 1960/1970 (Cf. p. ex.
ROLLEMBERG & QUADRAT, 2010; LVOVICH, 2010). No que se refere à ditadura
militar brasileira, são historiadores da Universidade Federal Fluminense que têm
trabalhado nessa chave, especialmente Daniel Aarão Reis e Denise Rollemberg.
Em outro lugar (2014a) já tivemos a oportunidade de submeter à crítica as
proposições de Aarão Reis, cabendo aqui apenas lembrar que a mesma está inserida em
sua reflexão sobre a memória social da ditadura, sendo sugerido que nesta tem havido
um “silêncio” quanto suposto ao apoio da sociedade ao golpe e aos governos ditatoriais
mais repressivos, como o de Médici, além da substantiva performance eleitoral do
partido de sustentação da ditadura, a Arena (Cf. AARÃO REIS, 2010). De cara, a
fragilidade empírica da tese do apoio “da sociedade” à deposição de Goulart ficou
evidenciada pela lembrança dos levantamentos produzidos pelo Instituto Brasileiro de
Opinião Pública e Estatística (IBOPE) em março de 1964, que demonstram um
substancial apoio ao governo Goulart e sua agenda reformista.4 Tendo ficado
desconhecidas durante toda a ditadura, foi só no fim dos anos 1980 que as mesmas
foram conhecidas pela comunidade acadêmica.5 No questionário utilizado pelo Ibope,
em resposta à pergunta “Se o Presidente João Goulart também pudesse candidatar-se à
Presidência”, temos o seguinte resultado:6
Na Cidade de Votariam Nele Não Votariam Não Sabem
Fortaleza 57,0% 34,0% 9,0%
Recife 60,0% 28,0% 12,0%
Salvador 59,0% 32,0% 9,0%
Belo Horizonte 39,0% 56,0% 5,0%
Rio de Janeiro 51,0% 44,0% 5,0%
São Paulo 40,0% 52,0% 8,0%
Curitiba 41,0% 45,0% 14,0%
Porto Alegre 52,0% 44,0% 4,0%

4
Publicamos estes levantamentos em forma fac-similar em Melo (2014b).
5
A partir de uma comunicação do cientista político Antonio Lavareda em um simpósio da ANPOCS.
6
“Resultados comparados da pesquisa de opinião realizada nas cidades de Fortaleza, Recife, Salvador,
Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.”, 9 a 26 de março de 1964. Fundo
Ibope, MR/0277, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas (SP), folha 19.

3
Ou seja, não só seu governo possuía apoio, como parte significativa do
eleitorado poderia apoiar uma eventual mudança na Constituição que lhe permitisse
concorrer a mais um mandato. Lembrando unilateralmente das Marchas com Deus pela
Família, e se esquecendo desta comprovada popularidade do governo deposto, Daniel
Aarão Reis acabaria por se aproximar da própria memória dos vencedores em 1964, que
sempre buscou explicar o evento como resultado de um “clamor popular” pela
intervenção militar.
A riqueza de informações disponíveis nestes levantamentos do IBOPE,
disponíveis no Arquivo Edgar Leuenroth (AEL) para a consulta dos pesquisadores
desde os anos 1990, motivaram outro pesquisador a reexaminar a questão de modo mais
cuidadoso. Em artigo publicado na revista Tempo, o historiador mineiro Rodrigo Patto
Sá Motta (2014) comparou os levantamentos de março de 1964 com outros feitos em
maio e junho do mesmo ano e em fevereiro do ano seguinte, onde foi possível
demonstrar que o apoio majoritário à deposição de Goulart se construiu após o golpe,
sendo esta extremamente efêmera. No que pese o perturbador apoio de massas às
primeiras ações da ditadura contra as esquerdas, já em fevereiro de 1965 o apoio ao
governo Castello Branco estava em baixa, provocado, entre outras coisas, pelas medidas
que levaram à prorrogação do mandato do marechal. Assim, embora possa ser
constatado o apoio a medidas eminentemente autoritárias, isso não se traduzia num
grande apoio à implantação de uma ditadura – que na verdade já estava em curso.
Já o apoio ao governo Médici, o mais repressivo de todo o período, é geralmente
afirmado tendo em vista um levantamento do IBOPE feito em 1971, onde o ditador
aparece apoiado por 82% dos entrevistados. A dificuldade em considerar esse dado
como um retrato da realidade – deixando de lado uma problematização mais pertinente
do próprio conceito de “opinião pública” – reside na desconsideração que é feita à
relações de forças encontradas num contexto altamente repressivo como era o do início
dos anos 1970, onde o slogan adotado pelo governo era nada mais nada menos que
“Brasil, ame-o ou deixe-o”. Qual seria então o valor de um levantamento naquelas
condições? Comparativamente é interessante como o autor recalcou os levantamentos
de opinião pública feitos ainda num contexto democrático (o pré-golpe de 1964) e tem
valorizado esta sobre o presidente Médici.
Em seu livro Ditadura e democracia no Brasil, Aarão Reis chega ao ponto de
sugerir que o auge do apoio ao governo do general Médici foi durante os festejos do
sesquicentenário da Independência do Brasil, em razão do grande número de pessoas

4
que afluíram ao desfile militar (AARÃO REIS, 2014: 81). Cabe aqui transcrever a
forma como o autor entende a noção de consenso:
Numa gama diferenciada de atitudes que contribuíram para a estabilidade do
governo e do país merecem ainda ser registradas a simpatia não entusiasta, a
neutralidade benévola, a indiferença, ou, no limite, a sensação de absoluta
impotência. Ziguezagueando entre elas, em atitudes ambíguas ou ambivalentes,
muitos erravam em áreas indefinidas de penumbra, que um autor chamou de
zona cinzenta. Em determinados momentos, parecia que o governo havia
conseguido construir, em torno de si, uma espécie de consenso, embora o debate
sobre a questão, e sobre o próprio conceito, ainda permaneça em aberto.
(AARÃO REIS, 2014: 83-84)

Preliminarmente cabe apontar que esta formulação difere da elaboração gramsciana já


que desloca a questão da dominação de classe para a das diferentes atitudes individuais
perante o poder. Um dos mais influentes divulgadores e intérpretes da obra de Gramsci
no Brasil, Carlos Nelson Coutinho também já havia abordado o tema do consenso sob a
ditadura, reconhecendo que em alguns momentos esta conseguiu um consenso passivo
entre alguns setores importantes das classes sociais brasileiras, no entanto nunca se
efetivou um consenso ativo, como (alega ter conseguido) o regime fascista na Itália
(COUTINHO, 1999: 202 e 216-217).
A questão do consenso também já havia sido mencionada no trabalho de
Youssef Cohen, The Manipulation of Consent (1989), onde através de entrevistas com
trabalhadores feitas entre os anos 1972 e 1973 – em suma, a partir de um trabalho de
campo – alegou haver uma grande adesão ao governo Médici, em razão de uma suposta
presença entre os trabalhadores da ideologia estadonovista, que alegadamente estariam
interessados em um “Estado forte” e ao mesmo tempo “benevolente” (COHEN, 1989:
39). Deixando de lado qualquer possibilidade de considerar o último regime ditatorial
como “benevolente”, Cohen parece não ter buscado matizar seu levantamento de
opinião do início da década com os massivos protestos operários do fim dos anos 1970,
que se chocaram com a política econômica da ditadura.
Denota-se que sem levar em conta a relação de forças sociais, num regime que
embora tenha capacidade de produzir algum consenso, sendo uma ditadura, não se
funda no consenso, predominando a força, exagerar esse ponto nos parece temerário.
Afinal, sob o argumento de que se pretende desconstruir uma memória confortável da

5
sociedade sobre a ditadura, acaba-se confluindo numa em proposições que, numa
sofisticada linguagem acadêmica, reabilita-se a memória dos vencedores. E ao contrário
do que se afirma com certa freqüência, tal memória parece cada vez mais influente.

BIBLIOGRAFIA
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pp.171-186, 2010.
____________. Ditadura e democracia no Brasil. Do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de
Janeiro: Zahar, 2014.
BIANCHI, Alvaro & ALIAGA, Luciana. “Força e consenso como fundamentos do Estado.” Revista
Brasileira de Ciência Política, n.5, Brasília, pp.17-36, janeiro-junho de 2011.
COHEN, Youssef The Manipulation of Consent: The State and Working-Class Consciousness in Brazil.
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COUTINHO, Carlos Nelson. “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira.” In. Gramsci: um estudo
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GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Notas sobre Maquiavel e o Estado moderno. Vol. 3. Rio de
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LVOVICH, Daniel. A questão do consenso durante a ditadura militar argentina: problemas
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Niterói (RJ), v.20, p.1-21, 2014.
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Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Brasil e América Latina. Rio de Janeiro:
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