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capa bacon fim 6/27/07 5:09 PM Page 1

Deleuze
Gilles Deleuze
tureza da violência na pintura de questão presente em todas as páginas deste livro é: como escapar questão presente em todas as
Bacon, e mostrar, por exemplo, por-
que ele pinta o grito, mais que o hor-
A da representação na pintura? Pois se o filósofo Gilles Deleuze A páginas deste livro é: como es-
capar da representação na pintura?
analisa detalhadamente a obra de Francis Bacon, não é apenas por
ror, Deleuze chama a atenção para o considerá-lo um dos maiores pintores contemporâneos. É sobretudo Pois se o filósofo Gilles Deleuze
fato de ele ser um pintor da força, da por encontrar no pintor irlandês um exercício do pensamento que (1925-95) analisa detalhadamente a

FRANCIS BACON LÓGICA DA SENSAÇÃO


intensidade, ou para a preeminência obra de Francis Bacon (1909-92),
pretende neutralizar a narração, a ilustração, a figuração. ...
existente em sua obra da força sobre a não é apenas por considerá-lo um
forma. Além disso, defende que, ao A singularidade de Bacon ... é apresentar uma figura não figurativa, FRANCIS BACON dos maiores pintores contemporâ-
apresentar esse trabalho de deforma- desfigurada, deformada por forças invisíveis que vêm de fora. ... neos. É sobretudo por encontrar no
ção no próprio curso de sua realização, Deleuze chama a atenção para o fato de ele ser um pintor da força, LÓGICA DA SENSAÇÃO pintor irlandês um exercício do pen-
fazendo-se ao vivo, Bacon pinta não só da intensidade, ou para a preeminência existente em sua obra da samento que pretende neutralizar a
forças, mas também o próprio tempo. narração, a ilustração, a figuração.
força sobre a forma. Além disso, defende que, ao apresentar esse tra-
Francis Bacon: Lógica da sensação, balho de deformação no próprio curso de sua realização, fazendo-se Guiado por essa temática, Deleuze
no entanto, não é apenas um livro ao vivo, Bacon pinta não só forças, mas também o próprio tempo. situa Bacon na história da pintura,
sobre Bacon ou mesmo sobre pintu- privilegiando Cézanne como aquele
ra. Ao expor os procedimentos em- Lógica da sensação é uma obra esclarecedora de um dos procedimen- de quem mais se aproxima pela im-
pregados por ele para livrar-se da re- tos principais utilizados por Deleuze na criação de seu próprio pensa- portância que a sensação tem em suas
presentação, Deleuze estabelece uma mento filosófico: a transformação em conceitos de elementos não obras. Mas também apresenta a origi-
aliança entre esse grande pintor e conceituais – perceptos e afetos – oriundos da literatura e das artes. nalidade de Bacon em relação a duas
literatos como Kafka, Artaud, Beckett tentativas contemporâneas de ultra-
R O B E RTO M A C H A D O
e vários outros que se notabilizaram passar a representação nas artes plás-
pelo mesmo projeto. Isso torna esta ticas: a pintura abstrata de Mondrian
obra esclarecedora de um dos proce- LEIA NA MESMA COLEÇÃO: e Kandinsky – que rejeita a figura-
dimentos principais utilizados por ção clássica, privilegiando as formas
Kallias ou Sobre a beleza, Friedrich Schiller
Deleuze na criação de seu próprio abstratas – e o expressionismo abstra-
pensamento filosófico: a transforma- Ensaio sobre o trágico, Peter Szondi to, a Action Painting de Pollock – que
ção em conceitos de elementos não Nietzsche e a polêmica sobre “O nascimento da tragédia”, dissolve todas as formas.
conceituais – perceptos e afetos – Roberto Machado (org.)
A singularidade de Bacon – pintor
oriundos da literatura e das artes. O nascimento do trágico, Roberto Machado
que não pretende representar obje-
R O B E RTO M A C H A D O Introdução à tragédia de Sófocles, Friedrich Nietzsche
tos, histórias, personagens, mas faz
Departamento de Filosofia, UFRJ questão da figura – é apresentar uma
figura não figurativa, desfigurada,
Ilustração da capa: Francis Bacon, Três estudos para um
deformada por forças invisíveis que
auto-retrato, 1979. vêm de fora. Assim, ao explicar a na-
capa bacon fim 6/27/07 5:09 PM Page 1

Deleuze
Gilles Deleuze
tureza da violência na pintura de questão presente em todas as páginas deste livro é: como escapar questão presente em todas as
Bacon, e mostrar, por exemplo, por-
que ele pinta o grito, mais que o hor-
A da representação na pintura? Pois se o filósofo Gilles Deleuze A páginas deste livro é: como es-
capar da representação na pintura?
analisa detalhadamente a obra de Francis Bacon, não é apenas por
ror, Deleuze chama a atenção para o considerá-lo um dos maiores pintores contemporâneos. É sobretudo Pois se o filósofo Gilles Deleuze
fato de ele ser um pintor da força, da por encontrar no pintor irlandês um exercício do pensamento que (1925-95) analisa detalhadamente a

FRANCIS BACON LÓGICA DA SENSAÇÃO


intensidade, ou para a preeminência obra de Francis Bacon (1909-92),
pretende neutralizar a narração, a ilustração, a figuração. ...
existente em sua obra da força sobre a não é apenas por considerá-lo um
forma. Além disso, defende que, ao A singularidade de Bacon ... é apresentar uma figura não figurativa, FRANCIS BACON dos maiores pintores contemporâ-
apresentar esse trabalho de deforma- desfigurada, deformada por forças invisíveis que vêm de fora. ... neos. É sobretudo por encontrar no
ção no próprio curso de sua realização, Deleuze chama a atenção para o fato de ele ser um pintor da força, LÓGICA DA SENSAÇÃO pintor irlandês um exercício do pen-
fazendo-se ao vivo, Bacon pinta não só da intensidade, ou para a preeminência existente em sua obra da samento que pretende neutralizar a
forças, mas também o próprio tempo. narração, a ilustração, a figuração.
força sobre a forma. Além disso, defende que, ao apresentar esse tra-
Francis Bacon: Lógica da sensação, balho de deformação no próprio curso de sua realização, fazendo-se Guiado por essa temática, Deleuze
no entanto, não é apenas um livro ao vivo, Bacon pinta não só forças, mas também o próprio tempo. situa Bacon na história da pintura,
sobre Bacon ou mesmo sobre pintu- privilegiando Cézanne como aquele
ra. Ao expor os procedimentos em- Lógica da sensação é uma obra esclarecedora de um dos procedimen- de quem mais se aproxima pela im-
pregados por ele para livrar-se da re- tos principais utilizados por Deleuze na criação de seu próprio pensa- portância que a sensação tem em suas
presentação, Deleuze estabelece uma mento filosófico: a transformação em conceitos de elementos não obras. Mas também apresenta a origi-
aliança entre esse grande pintor e conceituais – perceptos e afetos – oriundos da literatura e das artes. nalidade de Bacon em relação a duas
literatos como Kafka, Artaud, Beckett tentativas contemporâneas de ultra-
R O B E RTO M A C H A D O
e vários outros que se notabilizaram passar a representação nas artes plás-
pelo mesmo projeto. Isso torna esta ticas: a pintura abstrata de Mondrian
obra esclarecedora de um dos proce- LEIA NA MESMA COLEÇÃO: e Kandinsky – que rejeita a figura-
dimentos principais utilizados por ção clássica, privilegiando as formas
Kallias ou Sobre a beleza, Friedrich Schiller
Deleuze na criação de seu próprio abstratas – e o expressionismo abstra-
pensamento filosófico: a transforma- Ensaio sobre o trágico, Peter Szondi to, a Action Painting de Pollock – que
ção em conceitos de elementos não Nietzsche e a polêmica sobre “O nascimento da tragédia”, dissolve todas as formas.
conceituais – perceptos e afetos – Roberto Machado (org.)
A singularidade de Bacon – pintor
oriundos da literatura e das artes. O nascimento do trágico, Roberto Machado
que não pretende representar obje-
R O B E RTO M A C H A D O Introdução à tragédia de Sófocles, Friedrich Nietzsche
tos, histórias, personagens, mas faz
Departamento de Filosofia, UFRJ questão da figura – é apresentar uma
figura não figurativa, desfigurada,
Ilustração da capa: Francis Bacon, Três estudos para um
deformada por forças invisíveis que
auto-retrato, 1979. vêm de fora. Assim, ao explicar a na-
Francis Bacon
Lógica da Sensação
Gilles Deleuze

Francis Bacon
Lógica da Sensação

Equipe de tradução:
Roberto Machado (coordenação)
Aurélio Guerra Neto
Bruno Lara Resende
Ovídio de Abreu
Paulo Germano de Albuquerque
Tiago Seixas Themudo

Rio de Janeiro
Título original:
Francis Bacon: Logique de la sensation

Tradução autorizada da edição francesa,


publicada em 2002 por Éditions du Seuil, de Paris, França
Copyright © 2002, Éditions du Seuil
Uma primeira edição desta obra foi publicada em 1981
por Éditions de la Différence
Copyright da edição brasileira © 2007:
Jorge Zahar Editor Ltda.
rua México 31 sobreloja
20031-144 Rio de Janeiro, RJ
tel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800
e-mail: jze@zahar.com.br
site: www.zahar.com.br
Todos os direitos reservados.
A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo
ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
Obra publicada com o apoio do Ministério da Cultura francês —
Centro Nacional do Livro
Projeto gráfico e composição: Susan Johnson
Capa: Miriam Lerner
Ilustração da capa: © The state of Francis Bacon, Três estudos para um
auto-retrato, 1979, licenciado por Autvis, Brasil, 2007 /
© Coleção particular / Connaught Brown, Londres /
The Bridgeman Art Library

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Deleuze, Gilles, 1925-1995


D39f Francis Bacon: lógica da sensação / Gilles Deleuze; equipe de tradução,
Roberto Machado (coordenação)... [et al.]. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
(Estéticas)

Tradução de: Francis Bacon: logique de la sensation


ISBN 978-85-378-0025-6

1. Bacon, Francis, 1909-1992. 2. Pintura – Filosofia. I. Título. II. Série.


CDD: 700.1
07-2451 CDU: 75.01
Sumário

Advertência 9
Nota à tradução brasileira 10

[01] A área redonda, a pista 11


A área redonda e seus análogos * Distinção entre a Figura e
o figurativo * O fato * A questão dos matters of fact * Os três
elementos da pintura: estrutura, Figura e contorno * Papel das
grandes superfícies planas (aplats)

[02] Nota sobre as relações da pintura antiga com


a figuração 17
A pintura, a religião e a fotografia * A respeito de dois con-
tra-sensos

[03] O atletismo 20
Primeiro movimento: da estrutura à Figura * Isolamento *
O atletismo * Segundo movimento: da Figura à estrutura * O
corpo escapa: a abjeção * A contração, a dissipação: pias, guar-
da-chuvas e espelhos

[04] O corpo, a vianda e o espírito, o devir-animal 28


O homem e o animal * A zona de indiscernibilidade * Carne e
osso: a vianda (viande) desce dos ossos * A piedade * Cabeça,
rosto e vianda

[05] Nota de recapitulação: períodos e aspectos de Bacon 35


Do grito ao sorriso: a dissipação * Os três períodos sucessivos
de Bacon * A coexistência de todos os movimentos * As fun-
ções do contorno
[06] Pintura e sensação 42
Cézanne e a sensação * Os níveis de sensação * O figurativo e a
violência * O movimento de translação, o passeio * A unidade
fenomenológica dos sentidos: sensação e ritmo

[07] A histeria 51
O corpo sem órgãos: Artaud * A linha gótica de Worringer * O
que quer dizer “diferença de nível” na sensação * A vibração *
Histeria e presença * A dúvida de Bacon * A histeria, a pintura
e o olho

[08] Pintar as forças 62


Apresentar o invisível: problema da pintura. A deformação,
nem transformação nem decomposição * O grito * O amor
pela vida em Bacon * Enumeração das forças

[09] Pares e trípticos 70


Figuras acopladas * A luta e o acoplamento de sensação * A
ressonância * Figuras rítmicas * A amplitude e os três ritmos *
Dois tipos de matters of fact.

[10] Nota: o que é um tríptico? 79


A testemunha * O ativo e o passivo * A queda: realidade ativa
da diferença de nível * A luz, reunião e separação

[11] A pintura antes de pintar... 91


Cézanne e a luta contra o clichê * Bacon e as fotografias * Ba-
con e as probabilidades * Teoria do acaso: as marcas acidentais
* O visual e o manual * Estatuto do figurativo

[12] O diagrama 102


O diagrama segundo Bacon (traços e manchas) * Seu caráter
manual * A pintura e a experiência da catástrofe * Pintura abs-
trata, código e espaço óptico * Action Painting, diagrama e espa-
ço manual * O que não convém a Bacon nesses dois caminhos
[13] A analogia 113
Cézanne: o motivo como diagrama * O analógico e o digital *
Pintura e analogia * O estatuto paradoxal da pintura abstrata *
A linguagem analógica de Cézanne e a de Bacon: plano, cor e
massa * Modular * A semelhança redescoberta

[14] Cada pintor resume à sua maneira a história da


pintura... 123
O Egito e a apresentação háptica * A essência e o acidente * A
representação orgânica e o mundo táctil-ótico * A arte bizan-
tina: um mundo ótico puro? * A arte gótica e o manual * A luz e
a cor, o ótico e o háptico

[15] A travessia de Bacon 135


O mundo háptico e seus avatares * O colorismo * Uma nova
modulação * De Van Gogh e Gauguin a Bacon * Os dois aspec-
tos da cor: tom vivo e tom matizado, grande superfície plana e
Figura, superfícies e filetes

[16] Nota sobre a cor 144


A cor e os três elementos da pintura * A cor-estrutura: as
grandes superfícies planas e suas divisões * Papel do preto * A
cor-força: as Figuras, os filetes e tons matizados * As cabeças
e as sombras * A cor-contorno * A pintura e o gosto: bom e
mau gosto

[17] O olho e a mão 155


Digital, táctil, manual e háptico * A prática do diagrama * Re-
lações “bem diferentes” * Michelangelo: o fato pictural

Notas 163
Lista de quadros de Francis Bacon citados no texto 178
Advertência

Cada uma das rubricas a seguir considera um aspecto dos


quadros de Bacon, numa ordem que vai do mais simples ao
mais complexo. Mas essa ordem é relativa e só vale do ponto
de vista de uma lógica geral da sensação.
É evidente que todos os aspectos coexistem. Eles con-
vergem na cor, na “sensação colorante”, que é o ápice dessa
lógica. Cada um dos aspectos pode servir de tema para uma
seqüência particular na história da pintura.

9
Nota à tradução brasileira

A lista dos quadros de Francis Bacon mencionados por


Deleuze, e indicados por números na margem, está no final
do livro, com os títulos em inglês e em português. As repro-
duções podem ser encontradas com facilidade em vários
sites da Internet, catálogos e livros sobre Bacon.

10
[01]
A área redonda, a pista

A área redonda delimita freqüentemente o lugar onde


está sentado o personagem, quer dizer, a Figura. Sen-
tado, deitado, inclinado ou em outra posição. A área
redonda ou oval pode ocupar maior ou menor espa-
[3, 4] ço: pode transbordar pelas laterais do quadro, estar
no centro de um tríptico etc... Muitas vezes ela é au-
[14, 17] mentada ou substituída pela área redonda da cadeira
na qual o personagem está sentado, pela área oval da
cama na qual está deitado. Ela se expande nas pasti-
lhas que cercam uma parte do corpo do personagem
[5] ou nos círculos giratórios que rodeiam os corpos.
Mas até mesmo os dois camponeses só formam uma
Figura com relação a uma terra envasilhada, conti-
da estritamente na área oval de um vaso. Em suma,
o quadro comporta uma pista, uma espécie de circo
como lugar. É um procedimento muito simples, que
consiste em isolar a Figura. Há outros procedimentos
[6, 19] de isolação: pôr a Figura em um cubo, ou melhor, em
um paralelepípedo de vidro ou vitrificado; colocá-la
[22] num trilho, numa barra estirada, como no arco mag-
nético de um círculo infinito; combinar todos esses
meios, a área redonda, o cubo e a barra, como nos
[25] estranhos sofás avolumados e arqueados de Bacon.
São lugares. De todo modo, Bacon não esconde que
tais procedimentos são quase rudimentares, apesar

11
12 Francis Bacon: Lógica da sensação

das sutilezas de suas combinações. O importante é que eles


não forcem a Figura a se imobilizar; pelo contrário, devem
tornar sensível uma espécie de itinerário, de exploração da
Figura no lugar, ou em si mesma. É um campo operatório.
A relação da Figura com seu lugar isolante define um fato: o
fato é... o que acontece... E a Figura, assim isolada, torna-se
uma Imagem, um Ícone.
Não apenas o quadro é uma realidade isolada (um fato),
não apenas o tríptico possui três painéis isolados que não se
devem, sobretudo, reunir numa única moldura, mas a própria
Figura também está isolada no quadro, pela área redonda ou
pelo paralelepípedo. Por quê? Bacon diz com freqüência: para
conjurar o caráter figurativo, ilustrativo, narrativo que a Figura
necessariamente teria se não estivesse isolada. A pintura não
tem nem modelo a representar, nem história a contar. Por
isso, possui como que duas vias possíveis para escapar do fi-
gurativo: em direção a uma forma pura, por abstração; ou em
direção a um puro figural, por extração ou isolamento. Se o
pintor faz questão da Figura, se toma a segunda via, será para
opor o “figural” ao figurativo.1 A primeira condição é isolar a
Figura. O figurativo (a representação) implica, com efeito, a
relação entre uma imagem e um objeto que ela deve ilustrar;
mas implica também a relação de uma imagem com outras
imagens em um conjunto composto que dá a cada um o seu
objeto. A narrativa é o correlato da ilustração. Entre duas fi-
guras, há sempre uma história que se insinua ou tende a se
insinuar para animar o conjunto ilustrado.2 Isolar é, então,
o modo mais simples, necessário, embora não suficiente, de
romper com a representação, interromper a narração, impe-
dir a ilustração, liberar a Figura: para ater-se ao fato.
Evidentemente o problema é mais complicado: não ha-
veria outro tipo de relação entre as Figuras que não fosse
A área redonda, a pista 13

narrativo, e do qual não decorreria nenhuma figura-


ção? Figuras diversas que levariam ao mesmo fato,
que pertenceriam a um mesmo fato único, em vez de
contar uma história e remeter a objetos diferentes em
um conjunto de figuração? Relações não narrativas
entre Figuras, e relações não ilustrativas entre as Fi-
guras e o fato? Bacon não parou de fazer Figuras aco-
[14, 17] pladas que não contam história alguma. Além disso,
[5, 19] os painéis separados de um tríptico têm uma relação
intensa entre si, mesmo que esta relação nada tenha
[22, 25] de narrativa. Bacon reconhece com modéstia que a
pintura clássica conseguiu constantemente traçar
esse outro tipo de relação entre Figuras, e que essa
ainda é a tarefa da pintura por vir: “... evidentemente
muitas das maiores obras-primas foram feitas com
um determinado número de figuras numa mesma
tela, e é natural que todo pintor queira muito fazer
isso. ... Mas a história que é contada de uma figura a
outra anula antes de mais nada as possibilidades que
a pintura tem de agir por si mesma. Há nisso uma
grande dificuldade. Mas um dia surgirá alguém capaz
de pôr diversas figuras numa mesma tela.”3
Qual seria então esse outro tipo de relações en-
tre Figuras acopladas ou distintas? Chamemos essas
novas relações de matters of fact, por oposição às re-
lações inteligíveis (de objetos ou de idéias). Mesmo
se reconhecermos que Bacon já conquistou ampla-
mente esse domínio, é sob aspectos mais complexos
do que aqueles que consideramos agora.
Ainda estamos no aspecto simples do isola-
mento. Uma figura está isolada na pista, na cadeira,
na cama ou no sofá, na área redonda ou no parale-
14 Francis Bacon: Lógica da sensação

lepípedo. Ela só ocupa uma parte do quadro. O que


preenche, então, o restante do quadro? Para Bacon,
algumas possibilidades estão excluídas, ou não têm
interesse. O que preenche o resto do quadro não será
uma paisagem, como correlata da figura, nem um
fundo do qual surgiria a forma, nem um informal,
claro-escuro, espessura da cor onde se moveriam as
sombras, textura onde se daria a variação. Mas ca-
minhamos rápido demais. Há, no início da obra, Fi-
guras-paisagens, como o Van Gogh, de 1957; há tex- [1]
turas extremamente nuançadas, como Figura numa
paisagem ou Figura estudo I, de 1945; há espessuras e [7, 8]
densidades como a Cabeça II, de 1949; e há sobretudo [11]
o suposto período de dez anos, que Sylvester diz ser
dominado pelo sombrio, o obscuro e a nuance, an-
tes de retornar ao preciso.4 Mas isso não exclui o fato
de que aquilo que é destino passa por desvios que
parecem contradizê-lo. Pois as paisagens de Bacon
são a preparação do que aparecerá mais tarde como
um conjunto de curtas “marcas livres involuntárias”
riscando a tela, traços assignificantes desprovidos de
função ilustrativa ou narrativa: daí a importância
da relva, o caráter irremediavelmente relvado des-
sas paisagens (Paisagem, 1952; Estudo de figura numa [12]
paisagem, 1952; Estudo de babuíno, 1953; ou Duas fi- [13, 15]
guras na relva, 1954). Quanto às texturas, ao espesso, [2]
ao sombrio e ao flou, eles já preparam o grande pro-
cedimento de limpeza local, com pano, vassourinha
ou escova, em que a espessura é estendida sobre uma
zona não figurativa. Ora, os dois procedimentos, o de
limpeza local e o de traço assignificante, pertencem
a um sistema original que nem é o da paisagem, nem
A área redonda, a pista 15

o do informal ou do fundo (apesar de estarem aptos,


em virtude de sua autonomia, a “se fazer” paisagem,
fundo e até sombra).
O que ocupa sistematicamente o resto do qua-
dro são grandes superfícies planas (aplats) de cor
viva, uniforme e imóvel. Finas e duras, elas têm
uma função estruturante, espacializante. Mas não
estão embaixo da Figura, atrás ou para além dela.
Estão rigorosamente ao lado, ou melhor, em volta,
e são apreendidas por e em uma visão próxima, tá-
til ou “háptica”, assim como a própria Figura. Nes-
se estágio, não há relação alguma de profundidade
ou de distanciamento, nenhuma incerteza das luzes
e das sombras, quando se passa da Figura às gran-
des superfícies planas. Nem a sombra nem mesmo
o preto são sombrios (“tentei tornar as sombras tão
presentes quanto a Figura”). Se as grandes superfí-
cies planas funcionam como fundo, é sobretudo em
virtude de sua estrita correlação com as Figuras, é a
correlação de dois setores num mesmo Plano igualmente
próximo. Essa correlação, essa conexão, é dada pelo
lugar, pela pista ou pela área redonda, que é o limite
comum aos dois, o seu contorno. É o que diz Bacon
em uma importante declaração, à qual voltaremos
muitas vezes. Ele distingue na sua pintura três ele-
mentos fundamentais: a estrutura material, a área
redonda-contorno e a imagem. Se pensarmos em
termos de escultura, é preciso dizer: o suporte, o pe-
destal que poderia ser móvel, a Figura que passeia no
suporte com o pedestal. Se fosse preciso ilustrá-los
(e é preciso, de certo modo, como em Homem com
[16] o cachorro, de 1953), diríamos: uma calçada, poças,
16 Francis Bacon: Lógica da sensação

personagens que surgem das poças e fazem seu “pas-


seio cotidiano”.5
Só mais tarde poderemos procurar o que esse
sistema tem a ver com a arte egípcia, com a arte bi-
zantina etc. O que conta agora é a proximidade ab-
soluta, a co-precisão, da grande superfície plana que
funciona como fundo e da Figura, que funciona como
forma, no mesmo plano de visão próxima. É esse sis-
tema, essa coexistência de dois setores um ao lado do
outro, que fecha o espaço, que constitui um espaço
absolutamente fechado e giratório, muito mais do
que se procedêssemos com o sombrio, o obscuro ou
o indistinto. Eis por que há flou em Bacon, até mes-
mo dois tipos de flou, mas que pertencem ambos a
esse sistema da mais alta precisão. No primeiro caso,
o flou é obtido não por indistinção, mas, ao contrá-
rio, pela operação que “consiste em destruir a niti-
dez pela própria nitidez”.6 Por exemplo, o homem
de cabeça de porco, Auto-retrato, de 1973. Ou ainda [9]
o tratamento dos jornais, amassados ou não: como
diz Leiris, os caracteres tipográficos são nitidamen-
te traçados, e é sua própria precisão mecânica que se
opõe à sua legibilidade.7 No outro caso, o flou é obtido
pelos procedimentos de marcas livres, ou de limpe-
za, que também pertencem aos elementos precisos
do sistema (haverá ainda outros casos).

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