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ponto crítico Notas sobre “A sedução do lugar” de

Joseph Rykwert - do protesto ao projeto*

Regina Maria Prosperi Meyer


Arquiteta, professora doutora da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo - USP, Rua do Lago, 876, CEP 05508-900, São Paulo,
SP (11) 30914553, reginameyer@uol.com.br

O arquiteto e historiador Joseph Rykwert é uma


importante referência para história da cultura e,
primitiva, é uma busca da compreensão das relações
que se estabeleceram historicamente entre os
em particular da arquitetura, do urbanismo e das homens e suas mais decisivas criações materiais,
*Editora Martins Fontes – cidades. Foi, desde os anos 1960 um ativo cola- que utilizaram seus conhecimentos técnicos, suas
São Paulo, 2004.
borador de importantes e influentes publicações, crenças, seus desejos para as realizarem.
principalmente da italiana Domus e da holandesa
Fórum, nas quais publicou os seus artigos que mais Para todos que conhecem essa sua estima intelectual
tarde ganharam forma de livros. Em seus dois textos pela questão da origem, seu livro “A sedução do
mais conhecidos – “The Idea of a Town”, publicado lugar” poderá parecer, à primeira vista, uma abor-
em 1978, ainda não traduzido no Brasil, e, “ A Casa dagem nova na medida em ele agora se dirige para
de Adão no Paraíso” de 1972, recentemente tradu- o futuro das cidades, mais precisamente para a
zido e publicado pela Editora Martins Fontes, Rykwert cidade do século XXI. A leitura deste novo livro
se debruça sobre a questão da origem das cidades atesta sua fidelidade ao método analítico, já expli-
e da arquitetura. O uso da locução “questão da citado pela escolha da epígrafe da primeira edição
origem” tem aqui o objetivo de diferenciar sua de “On Adam House in Paradise” de 1972: “pour
interpretação da arquitetura e da cidade, procurando en revenir aux sources, on devait aller en sens
1
"Para voltar às origens deve- se afastar das abordagens que considerava esque- inverse”. 1
ríamos andar no sentido
inverso“ de René Daumal in máticas e deterministas, que entendia como simpli-
“Le Mont analogue”, epi- ficadoras e incorretas. Em “A Sedução do lugar” ele promete expli-
grafe utilizada por J. Rikwert
na edição de 1972 de seu livro
citamente no subtítulo de seu livro, construir uma
“ On Adam´s House in Para- Nesses dois livros Joseph Rikwert constrói seus visão do futuro das cidades do século XXI a partir
dise”, publicado pelo do
Museum of Modern Art Pa-
argumentos e cria uma narrativa histórica que nasce da cidade e do pensamento urbanístico que marca-
pers on Architectural, New de uma articulação muito pessoal de tudo aquilo ram os séculos XIX e XX. Alinhado com todos que
York.
que julga relevante na história da cultura material já afirmaram que a cidade do século XXI não será
e imaterial. A procura da idéia de cidade e do conceito uma forma degradada da cidade do século XX,
da cabana primitiva, como metáfora para a própria como tem sido algumas vezes apresentado, e muito
arquitetura, o conduz á um complexo registro da bem sinalizado por Bernardo Secchi, o autor se
origem cultural e mítica das duas entidades, valen- pergunta, sabendo correr o risco de ser acusado
do-se de conhecimentos e informações que vão de superficialidade ou ingenuidade: temos e vivemos
da paleontologia à psicanálise. Sua meta nesses nas cidades que merecemos? Ou, num tom ainda
importantes textos é mostrar que trabalhar com a mais singelo: nossas cidades são hoje ou, serão no
questão da origem é privilegiar a dimensão de futuro, um lugar satisfatório, um lugar à altura de
princípio e não de resultante, ou mesmo, de reflexo, nosso do percurso histórico e civilizatório, um lugar
como ainda hoje se faz, visto em interpretações que corresponda verdadeiramente aos nossos
deterministas do processo de constituição e desen- desígnios? Utilizando sua grande marca – a capaci-
volvimento das cidades e da arquitetura. A sua dade criativa de propor questões e explora-las através
procura da gênese, tanto da cidade e da cabana de uma abordagem histórica na qual sua sólida

r sco 4 2[2006 revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo programa de pós-graduação do departamento de arquitetura e urbanismo eesc-usp 153
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cultura tem um papel central – ele percorre a história das cidades” assinado por Walter Gropius e Martin
das cidades e das teorias e práticas urbanísticas do Wagner retomaram as questões discutidas na
século XX reafirmando sua tese acerca do enorme Bauhaus em Berlim, então definitivamente fechada,
poder de atração que elas exerceram sobre os e já propunham formas de dispersar a população
homens. E, ao mesmo tempo, como um contraponto que congestionava as grandes cidades em cidades
indica as tremendas fragilidades da teoria e da prática satélites situadas ao longo de super-highways. Outro
urbanística propostas pelo Movimento Moderno manifesto, de 1947 assinado por mais de quarenta
que procurou imprimir um itinerário - prefixado, arquitetos alemães, quando a guerra já havia
uniforme e universal - às cidades e metrópoles de terminado - “Um apelo no pós-guerra: demandas
todo o planeta. fundamentais” - afirmando que a reconstrução das
cidades representava a possibilidade de reconstruir
Com a autoridade de quem produziu os dois a própria devastação espiritual deixada pela da
clássicos já citados acima, nos quais tanto a cidade Segunda Grande Guerra.
como da arquitetura, são colocadas como elementos
do processo civilizatório, Rikwert rejeita, energi- Sem entrar no mérito desses manifestos e das
camente, as hipóteses que postulam o fim da cidade. propostas, penso que os arquitetos pareciam
Mesmo reconhecendo as dificuldades atuais, para esquecer que estavam trabalhando na mesma
ele a cidade continua sendo a conquista mais preciosa sociedade que acabara de produzir o mais alto grau
e inalienável da civilização humana. A globalização de irracionalidade. Seguindo os parâmetros de
que ele reconhece ser uma poderosa força econô- eficiência militantemente defendidos nos Con-
mica operando nas cidades contemporâneas, cujas gressos Internacionais de Arquitetura Moderna (os
metas econômicas não se realizarão dentro da nova CIAM) emergiram os novos projetos, nos quais o
etapa do modo de produção capitalista, sem que uso da estatística parecia ser mais decisivo para a
as cidades desempenhem seu papel de centro de formulação de projetos urbanísticos do que qualquer
decisão político e econômico, mas, sobretudo referência histórica. Nesse ponto Rykwert presta
cultural, no sentido mais pleno e forte do termo. uma grande contribuição para a reavaliação do final
dos CIAM e dos questionamentos ao Movimento
Ao propor uma reflexão sobre as cidades do século Moderno. Embora não seja uma reflexão totalmente
XXI, o autor não se lança num projeto antecipatório original, seu depoimento é muito eloqüente por
ou visionário. Pelo contrário, ele observa a cidade ter como ponto de partida a produção das cidades
dos séculos XIX e XX para delas retirar os elementos do pós–guerra e, sobretudo pela forma como aborda
essenciais para a construção da cidade do futuro. a sua insatisfação com o ensino que recebia naquele
Remete à sua própria experiência como um jovem momento, como jovem emigrado e estudante de
cidadão do segundo pós-guerra europeu, quando arquitetura e urbanismo na Bartllet Scholl of
os países começaram, a partir de 1945 a enfrentar Architecture em Londres.
a tarefa de reconstruir suas cidades a partir das
ruínas deixadas pelos bombardeios. Lamenta, No primeiro capítulo de seu livro - Encontrando
entretanto, que naquele momento a ideologia do algum lugar na vastidão do espaço - ele mostra
Movimento Moderno desprezasse a sensibilidade que ao contrário de muitos de seus estimados
histórica, pois a experiência da guerra transformara predecessores, não vê na desordem urbana das
o passado em objeto de horror. cidades tidas como caóticas, nenhuma ameaça grave
ou incontornável. Pelo contrário, sua grande cruzada,
Os profissionais modernistas, que como ele mesmo seguindo o mesmo ponto de vista de Jane Jacobs,
observa, vinham se preparando desde o final do é contra a cidade anônima, aquela cuja ausência
século XIX e mais fortemente no início do século de identidade justifica o uso da palavra distopia.
XX, acreditaram que das ruínas e das cinzas das Porém, para que essa posição não corra risco de
duas guerras poderiam “fazer nascer” novas cida- parecer simplificadora, enfatiza que está também
des, concebidas e construídas para abrigar uma fundada na rejeição da imagem corrente da cidade
sociedade moderna e igualitária. Em 1943, através contemporânea, muito presente em textos produ-
do manifesto “Um programa para a reconstrução zidos a partir dos anos 1950, que a vê como

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responsável pela iniqüidade social. A conjugação sistema de lugares. Aponta com ênfase para a
dessas duas questões – a desordem como um aspecto ameaça que representa e proliferação do não lugar
vital e a desigualdade social e econômica como uma no sentido proposto pelo etnólogo francês Marc
questão não inerente à cidade e, embora reafirme Augé, que é a forma mais eficaz de destruição da
sua convicção que o conflito social se aprofunda no identidade urbana. Sua aspiração ao escrever esse
meio urbano, Rykwert reforça á sua análise do livro é contribuir para que se recupere nas cidades
percurso. Concluímos os primeiros capítulos conven- do século XXI, esses sistemas de lugares entendidos
cidos que nem a cidade distópica comandada pela como “espaços providos de sentido histórico”,
tecnologia informacional, nem tampouco a cidade como espaços urbanos nos quais a sua constituição
da desigualdade social ocuparão o centro de sua física e simbólica, assim como as contradições
reflexão sobre a cidade do século XXI. inerentes ao convívio das diferenças – de classe, de
etnia, de religião, de modo de vida, de ponto de
A premissa que a cidade do século XXI, assim como vista político, de aspirações – permaneçam vivas e
a do século XX, não pode e não deve buscar impor possam se manifestar concretamente na vida urbana.
ordem ao caos , conduz o autor á certeza que há
mais vigor na cidade desordenada do que na apática Assentada sua posição diante do tema e do objeto
ordem urbana burocraticamente conquistada através – a cidade do século XXI - Rykwert parte para um
de planos diretores obcecados com uma ordenação relato da evolução histórica da cidade, buscando o
técnica e abstrata do uso do solo. Mas, fica bem fio da meada que atravessa toda cultura e que
explicitado que para ele a ordem e o caos são vistos culmina com a presença avassaladora da indústria
como duas categorias inteiramente interdepen- que “inchou as cidades, inundando e explodindo
dentes, e que sua determinação de encontrar “algum o seu tecido urbano”. Para ele foi o convívio entre
lugar no interior do imenso espaço contemporâneo” o progresso material e a pobreza urbana, ambos
não pressupõe a simples substituição de um pelo produzidos pela industrialização e urbanização em
outro. Ele concentra seus argumentos na rejeição nova escala, o responsável pelas questões que
à cidade anônima, na apatia social e cultural dos passaram a afligir as cidades a partir das primeiras
novos espaços urbanos produzidos a partir de décadas do século XIX. É impossível não apontar
preceitos formalistas. Ele lamenta e crítica a existência nesse trecho a fragilidade de sua análise que no
de cidades vazias de significado, nas quais a própria início se mostra tão avessa ao pensamento deter-
história acaba não tendo meios de se integrar. E minista que privilegia as questões econômicas para
essa não é, de forma alguma, uma premissa simples, explicar o desenvolvimento das cidades. Na sua
pois nela está embutida sua crítica explícita e de incursão no território do pensamento urbano e
longo alcance ao pensamento e ao partido dos urbanístico que dominou o século XIX ele enfatiza
projetos urbanos de orientação modernista, que que as teorias e proposições foram todas marcadas
propunham intervir nos problemas urbanos que a pela certeza, no final generalizada, do custo social
revolução industrial introduziu em todo o mundo imposto pela forma de industrialização e de urba-
utilizando parâmetros uniformes e generalizáveis. nização das cidades.

Para se distanciar dos que hoje adotam os ar- A comparação entre os benefícios econômicos do
gumentos do fim da cidade e, conseqüentemente, capitalismo industrial e as dolorosas visões da vida
do fim da arquitetura e do urbanismo, tal como os material da população das maiores cidades do
conhecemos até aqui, Rykwert deixa bem clara sua mundo, nesse primeiro ciclo urbano regido pela
convicção que a cidade é uma das mais completas indústria, produziu um conjunto de críticas e
sínteses do processo civilizador e que há ainda propostas que na análise de Rykwert encaravam
muitas estratégias a serem experimentadas para os problemas urbanos e sociais como algo passível
que ela continue evoluindo. Seus argumentos de reversão. Sua revisão desse pensamento que
mostram que ele permanece seduzido pela cidade marcou o século XIX é descrita no capítulo -
e por seus atributos. Em seu livro sinaliza claramente “Primeiros Socorros” -, onde aponta as mais repre-
seu comprometimento com o exercício “da recon- sentativas teorias utópicas e revolucionárias. Estão,
quista da urbanidade” que não prescinde de um ali reunidos, Saint Simon, Robert Owen, Charles

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Fourier, Piotr Kropotkin, John Ruskin, Karl Marx, de Haussmann e de Barcelona dirigida pelas idéias
Friedrich Engels. Apesar de lidar com um tema, já e planos do catalão Ildefons Cerdá.
muito visitado pela história e crítica do urbanismo,
o autor recorta com muita sutileza as relações entre Essa passagem do livro Rykwert traz pouca reno-
os reformadores sociais da primeira metade do século vação interpretativa, seu texto é muito descritivo.
XIX, e as propostas de reconstituição completa da Diante do imenso e rico acervo de análises feitas
estrutura social e econômica de sua segunda por historiadores de diversas orientações, a pauta
metade. das realizações em todo mundo industrializado que
era então constituída pela ampliação da oferta de
É nesse trecho do livro que ele propõe uma questão habitação e a circulação viária, a nova obsessão
de fundo que merece destaque, sobretudo pela dos planejadores urbanos, Rykwert nos oferece
sua atualidade ao perguntar: “foram essas idéias apenas uma súmula e não um olhar investigativo.
utópicas – socialistas e revolucionárias - efetivamente Ele percorre os novos conjuntos habitacionais que
forças transformadoras no caso das cidades?” A já ganharam abordagens definitivas, como é o caso
sua resposta é prontamente respondida e é negativa, do ótimo “Viena Vermelha” de Manfredo Tafuri
porém deixa no ar alguma ambigüidade. Pois, se (1980), com pouca contribuição reflexiva. Cita o
por um lado ele diz acreditar no poder intelectual essencial das experiências da criação dos conjuntos
dessas idéias e na sua capacidade de produzir habitacionais nas primeiras décadas do século XX
fermentação social e, por outro, considera que o sem analisar as suas importantes distinções. Ele
processo de constituição dos problemas urbanos parte dos suburbanos siedlungens alemães, passan-
é algo inexorável, no qual o pensamento refor- do pelos intra-urbanos höffes vienenses, pelas
mador, o utópico e o revolucionário buscam um centrais mietskasernen de Berlim, vai até as company
objeto ideal sem, no entanto, conseguir alcançá- towns das maiores cidades americanas, e alcança
lo. Melhor dizendo, penetraram apenas as idéias os conjuntos HBM (Habitation Bon Marché) de Paris,
que não corriam o risco de interromper a marcha acrescentando apenas que todas essas propostas
desse inexorável processo. Ao fechar esses dois respondiam a uma demanda que havia se gene-
longos relatos históricos, acreditamos estar bem ralizado a partir da necessidade da industria de
próximo do que ele mesmo acredita ser a ante-sala alojar a classe operária em maior número e com
“da cidade do amanhã”, prometida no subtítulo mais qualidade.
do livro.
Apesar do aspecto superficial do trecho é justo
Mas, consciente que não havia tocado em questões registrar a sua contribuição ao enfatizar dois as-
essenciais para abordar o tema da cidade do século pectos da questão urbana naquele contexto. A
XXI, Rykwert faz uma nova incursão no século XIX, primeira é o fato da cidade industrial ter adquirido
conduzido agora pelas tremendas questões relacio- status de questão teórica e de proposta de projeto;
nadas ao crescimento populacional e a necessidade e a segunda é o fato da ferrovia assumir um papel
de abrigar a crescente população urbana, sobretudo de grande infraestrutura que tudo organizava. Tomar
a nova classe média e o operariado industrial. Nesse ferrovia como a chave da organização dos territórios
outro registro o autor não trabalha apenas com as urbanizados nos quais a habitação para a massa
idéias, mas com a sua articulação com o projeto de operária predominou é uma idéia bastante difun-
adaptação da cidade medieval às exigências da dida, entretanto ele traz uma contribuição ao analisar
produção industrial. Aborda aí tanto a expansão as cidades por esse viés. Pois o trio - habitação,
territorial das cidades , quanto à intensa construção fábrica e ferrovia – foi o inquestionável motor das
de novos sistemas viários adequados para atender cidades industriais em todo mundo.
a demanda dos novos meios de fazer circular nas
cidades – tanto as pessoas quanto a mercadoria. Ao descrever a realização da cidade do século XX,
Esse balanço é feito através de uma análise surpreen- de seus aspectos mais essenciais, de evidenciar o
dentemente morna das realizações monumentais percurso do pensamento teórico que a acom-
protagonizadas por Paris sob o comando do Barão panhou, para podermos enfim pensar a cidade do

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século XXI, o autor desvia-se de sua meta e perde Celebration é o de se transformar em condomínio
de vista os dilemas atuais e as potencialidades de fechado. Por enquanto, não se vêem pobres por
transformação da cidade contemporânea. O seu lá, certamente nenhum morador de rua. E, se existe
enorme domínio do tema, sua indiscutível e sólida uma presença policial, ela é discreta a ponto de se
erudição, o obriga a passar em revista quase tudo tornar invisível”. (pág. 261).
que de alguma forma foi relevante para a formulação
das propostas e, também, para o fracasso da cidade É justamente nesse ponto do livro que situo minha
contemporânea. Cita desde a construção da nova perplexidade, pois diante dessa pouco inovadora,
capital brasileira – Brasília - até o amargo fim, mesmo que bastante rica peregrinação pela história
imposto por Margaret Thatcher, ao Greater London da cidade e do urbanismo, o modelo que emerge
Council – GLC - (Conselho da Grande Londres) no para a cidade do século XXI é a quinta-essência da
início dos anos 80, passando pelos parques temá- cidade construída sob o comando de todos os
ticos americanos. Todo arsenal teórico e prático parâmetros do capitalismo industrial – Manhattan
tão longamente aperfeiçoado pelos arquitetos - cujos atributos o autor erige em paradigma ao
urbanistas foi se condensando no conceito criado apontar o manhantanismo como uma das marcas
por Rykwert da cidade dos abrigos, que nada mais da urbanização contemporânea. Fica claro quando
é do que a cidade na qual o edifício e o espaço nos detemos nos argumentos de Rykwert que
público funcionam como entidades em guerra – caminhos propostos pelos urbanistas não eram
um contra o outro – e a qualidade arquitetônica e viáveis, ou desejáveis, para o desenvolvimento do
funcional do edifício é reconhecida pela sua capaci- modo de produção capitalista na sua nova etapa –
dade de neutralizar de forma eficiente tudo que o a da globalização - e a nossa frustração é então
cerca, tudo que vem de fora. inevitável. O “novo” modelo é fruto de outras lógicas
e, apesar do que diz o autor, o skyline de Manhattan
Abordando em dois capítulos temas tão complexos é um produto coletivo e nem todos os arquitetos e
como “A fuga da cidade: espaço vivido e espaço urbanistas convocados nos dois ciclos anteriormente
virtual” e “Os subúrbios e as novas capitais”, descritos, o das idéias e aquele das realizações,
Rykwert finalmente encerra sua longa travessia rumo almejou nada semelhante, embora se reconheça
ao presente, reafirmando seu conhecimento, mas universalmente o interesse em relação a tudo que
deixando exposta sua pouca compreensão da cidade se encontra ali construído. A grande prefiguração
contemporânea. Não é por acaso que esses dois da cidade onde a técnica está a serviço do projeto
capítulos possuem um tom mais moralista do que encontra-se tematizada na cidade dos manifestos
analítico e que as citações de McLuham aí com- futuristas e, sobretudo, nos desenhos do “Projetto
parecem como premonições de uma vida urbana di uma Cittá Nuova” produzidos pelo jovem arquiteto
desprovida da essência da urbanidade que é italiano Antonio Sant´Elia em 1914, aliás, esquecido
inseparável da presença física dos cidadãos. Para nesse livro que trata, justamente, do futuro da cidade.
introduzir em seu livro o imenso e contemporâneo
tema dos subúrbios, ele faz um vôo rasante pelas Há, na abertura do capítulo que em tese deveria
idéias do Ebenezer Howard e outros tantos que se ser o final – “Para o Novo Milênio” - um parágrafo
alinharam às propostas da cidade jardim, nos que vale a pena reproduzir em parte: “Já se afirmou,
levando, diretamente, a proposta e realização da a respeito de Manhattan, que se ela nunca foi uma
polêmica criação urbana americana denominada – capital, com certeza é a cidade do capital. Seu famoso
Celebration - na qual acredita que a busca do “lugar” skyline é um verdadeiro gráfico que registra as
e da “comunidade” são os aspectos definidores flutuações dos valores imobiliários e das ambições
do partido urbanístico com o qual trabalhou um dos magnatas desde que Nova York arrebatou de
grupo de arquitetos nova-iorquinos contratados Chicago a liderança na construção de edifícios altos
pela empresa Disney. Rykwert, não se ilude, conhece após 1890, e continuou a ser constantemente
a insuficiência da proposta, mas seu comentário é transformado por especulações e rivalidades”.
irrisório diante da dimensão do problema de criações
urbanas desse tipo, quando afirma: “o inevitável De acordo com a análise do autor, todas as cidades
perigo que corre um empreendimento como do mundo, e as publicações especializadas estão

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para confirmar sua observação, buscam esse skyline a arquitetura e o urbanismo naquele preciso
de prestigio. Os arquitetos responsáveis pelos momento. Fica claro para o autor que está encerrado
objetos que compõem esse “cenário do amanhã” o ciclo da profissão iniciado na metade do século
perderam segundo Rykwert a batalha na medida XVI, através da construção em Florença de um
em que o “negócio” dos grandes edifícios escapou artefato único, de caráter polissêmico. Esse visou
de suas mãos e passa para as mãos de profissionais afirmar uma forte identidade cultural urbana por
denominados genericamente - designers de arquite- meio de um poder - político, técnico e construtivo
tura - que equivale dizer para a mão dos “produtores - capaz de intervir no futuro da cidade, valendo-se
de formas e imagens”. Convocados a participar de de um conhecimento específico concentrado na
grandes equipes onde o seu papel é cada vez mais figura de um profissional liberal: o arquiteto
aviltado, os arquitetos e urbanistas, na medida em urbanista.
que decidem sobre parcelas cada vez menores do
que é efetivamente construído ocupam-se de Na cidade do amanhã, pensada a partir nessa
aspectos assessórios e muitas vezes contraditórios primeira década do século XXI, de acordo com o
com a própria essência de seu metier. De acordo autor de “A sedução do lugar”, somos convocados
com sua observação a força da difusão de imagens a rever e rejeitar a famosa frase de Daniel Burham
transforma o mundo urbano de todo o planeta quando preparava em 1909 o magnífico Plano de
em clones de Manhattan: “o mundo urbano vive Chicago: “não façam planos pequenos, pois eles
hoje uma manhatização de sua imagem” . não têm a capacidade de mexer com a imaginação
dos homens”. Opondo-se à Burham e em tom de
Nesse ponto do livro, é preciso enfrentar uma conclusão Rykwert explicita: é necessário ser sóbrio,
pergunta incomoda, porém necessária: se reconhe- modesto e efetivo; ele aconselha diante dos impasses
cermos como verdadeiras as observações do autor do presente procurar um outro caminho: “é preciso
sobre a cidade do futuro e, sobretudo, sobre o fazer muitos pequenos planos”. Para ele é chegada
fraco desempenho dos arquitetos diante dos proble- a hora de deixar de lado a intoxicação da grande
mas urbanos contemporâneos, porquê então não arquitetura e dos grandes planos, porém, como
aceitar o que nos aponta Rykwert e integrar sua não nos diz em nome do quê, a sua observação
visão ao nosso escopo de trabalho, tanto acadêmico parece mais um exorcismo do que uma análise das
como profissional? Considero interessante saber nossas possibilidades técnicas e culturais de criar
de onde vem nossa indignação diante de suas a cidade da sociedade do século XXI.
conclusões. Em primeira instância, parece haver uma
certa dificuldade em detectar a origem do mal estar E, como um dal capo al fine, voltamos ao início do
neste capítulo final. Porém, o bom senso nos diz livro: o elogio da postura sóbria no tratamento
que é preciso encarar e nos insurgirmos contra o das cidades equivale dizer que as cidades não estão
problema e não contra quem o aponta. Como diziam mais, obrigatoriamente, ameaçadas de desapare-
os antigos, quando o sábio aponta para a lua os cimento, mas que qualquer utopia poderá compro-
desavisados olham para o seu dedo. Portanto, ouso meter o seu futuro. Aliás, as previsões para o futuro
aqui avançar uma hipótese: acredito que a reação da cidade, nesse – “epílogo” - são todas de um
dos arquitetos diante desse diagnóstico final de pragmatismo cruel e às vezes bem desestimulante.
Rykwert está relacionada à forma fatalista como Revelam simpatia pelos pontos de doutrina do New
ele o descreve. Urbanism que, por sua vez, recupera alguns aspectos
da “cidade jardim” do final do século XIX, vê as
O que nos assalta nesse capítulo, denominado torres corporativas de Manhattan como um inelutável
sintomaticamente “epílogo” é que observada, de modelo formal, embora reconheça serem a fonte
todos os ângulos, a cidade do século XXI fecha um de muitos problemas urbanos, finalmente, encara
ciclo de atuação profissional aberto no Renascimento a highway como o investimento público que domina
quando Brunelleschi aceitou da família Médici o os programas de governo. E, como desdobramento,
desafio de projetar a cúpula de Santa Maria del juntando esses pontos vem a constatação do papel
Fiore, como uma “obra síntese” que marcasse as reduzido do “arquiteto do amanhã”, destituído
relação ali presente entre a sociedade florentina e de suas atribuições e colocado numa categoria de

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designer arquitetônico, o que cria um panorama amanhã; o exemplar concurso milanês conduzido
muito sombrio para a “cidade do amanhã”. pela Pirelli para reutilizar o seu antigo território
industrial no momento em que se transferia para a
Acredito que é bem difícil ser otimista diante da Biccoca; as duas ameaças sob a forma de novos
cidade contemporânea e, se é verdadeiro afirmar empreendimentos às cidades históricas – a Defénse
que a “cidade do século XXI” não será uma forma em Paris e Docklands em Londres; o fenômeno do
degradada da cidade do século XX, e se em muitos crescimento das cidades asiáticas simbolizado pelo
aspectos é dela que retiraremos os elementos vitais avanço do manhattanismo em Pundog; tudo é visto
para prosseguir, mais que nunca é preciso entender como tentativas, como caminhos já “obsoletos”.
a cidade como uma Obra da sociedade para que Mesmo os arquitetos do Novo Urbanismo, antes
com ela se possa trabalhar. Não acredito que haja poupados são aqui, um pouco ingenuamente,
ilusões e que estejamos à espera de milagres, mas criticados pela “solução gerencial” que desloca o
seguramente queremos travar um bom combate, “cidadão” para uma nova situação jurídica de
sobretudo nós todos que acreditamos, incluindo “usuário” de um território com leis próprias nos
o próprio autor no início de seu livro, que a cidade seus “condomínios fechados”.
não é, pelo menos no momento, um objeto descar-
tável e que ela é ainda o maior testemunho do O livro ganharia se o autor tivesse dominado seu
engenho humano. Nesse capítulo final Rykwert anseio de alcançar os fatos quentes que movem a
abandona sua mais atraente e estimável caracte- mídia diária e fechado sua reflexão na observação
rística – selecionar, descrever e analisar com rigor acerca do papel dos “pequenos projetos”, ou na
intelectual e grande criatividade os fatos urbanos procura das ONG capazes de mobilizar a opinião
como fatos da cultura. dos moradores de um local e dos cidadãos metro-
politanos e usando suas próprias palavras conseguir
Talvez confundindo um pouco o final do seu texto “alcançar um tipo de entendimento e mobilizar-
com uma derradeira etapa da própria cidade, o se para propor soluções - não apenas bloquear os
autor passa em revista acontecimentos e projetos piores excessos dos destruidores de cidades”. A
que possuem mais afinidades com uma agonia do ausência de uma reflexão sobre o atual panorama
que um futuro difícil, porém vivo. Fatos como o e complexidade da cidade contemporânea, tema
choque dos dois Boiengs contra as torres gêmeas tão amplamente discutido, compromete as últimas
do World Trade Center em 2001; as ambições páginas de “A sedução do lugar”. Rykwert teria
descabidas do prefeito de Houston de na sua contribuído muito se tivesse grafado no subtítulo
administração incluir a cidade no rol das cidades de seu livro - do protesto ao projeto – e não a
mundiais através de uso abusivo do manhatanismo; cidade do amanhã, pois assim teria oferecido um
do esforço feito pela administração da cidade caminho para a investigação sobre os atributos da
francesa de Lille de ganhar maior presença no cidade contemporânea, para o conhecimento de
contexto europeu através de um projeto onde a suas dinâmicas, deixando o caminho aberto para
sua situação geográfica pudesse ser explorada pelo entender e continuar o trabalho de projetar para e
projeto de Rem Kollhass para assim se tornar um nas cidades do século XXI.
exemplo da força da mobilidade na cidade do

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