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Anais do VI Encontro de Administração Política

Niterói, 2 a 4 de setembro de 2015


ANAIS DO VI ENCONTRO DE ADMINISTRAÇÃO POLÍTICA
Apresentação

O VI Encontro de Administração Política, realizado em setembro de 2015 na Universidade Federal


Fluminense, UFF, em Niterói, teve como tema central A Administração e a Instabilidade Internacional e
Nacional.
Em torno deste tema, mais de cinquenta trabalhos selecionados aprofundaram 5 Eixos Temáticos:
a) Administração Política Brasileira e Internacional, com exposições voltadas para a análise/proposição
relacionada à administração política que se verifica no Brasil e no Exterior e suas interfaces e reflexos sobre
a vida nacional.
b) Administração Política, Distribuição e Desenvolvimento, com textos dirigidos à análise dos efeitos da
administração política brasileira sobre a distribuição da riqueza e da renda e sobre o desenvolvimento
nacional.
c) Administração Política das Políticas Públicas, trazendo estudos desenvolvidos sobre a administração
política das políticas públicas brasileiras.
d) Ensino, Pesquisa e Epistemologia da Administração Política, versando sobre o ensino, a pesquisa e a
epistemologia da administração política, contemplando-se inclusive aspectos históricos da formação da
administração e da administração política como campo de conhecimento.
e) Administração Política e Questões Sociais, reunindo trabalhos dirigidos à análise/proposição da
administração política das questões sociais, inclusive os aspectos relacionados às lutas sociais brasileiras.
Aqui estão reunidos a produção apresentada nos 3 dias de exposições e debates ocorridos. São textos
originais, muitos de pesquisas recentemente realizadas, e estão integralmente expostos neste site do
Encontro.
E com muita satisfação que os colocamos como uma contribuição ao estudo da administração, tendo como
ótica a amplitude que se estende dos métodos às relações sociais de trabalho; dos sistemas organizacionais
aos efeitos econômicos, sociais e políticos das decisões públicas e privadas – enfim, o rico campo em que
a administração deve se colocar, incluindo, mas indo muito além das técnicas e ferramentas.
Aproveitamos para registrar mais uma vez os muitos agradecimentos que devemos a colegas docentes,
estudantes e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Administração da UFF, aqueles a quem se
deve creditar todo o sucesso alcançado pelo VI EAP.
A todas e todos uma boa leitura.
Claudio Gurgel
Coordenador Geral do VI Encontro de Administração Política
Análise do Conselho Municipal de Política Urbana de Niterói (COMPUR) a
partir da Teoria da Democracia Deliberativa Habermasiana

Angeline Coimbra Tostes de Martino Alves


Cláudio Roberto Marques Gurgel

Introdução

A proposta deste trabalho é fazer uma análise do Conselho Municipal de Política


Urbana de Niterói (COMPUR), como instituição participativa, para o controle social e o
accountability, tendo por base teórica a democracia deliberativa habermasiana.
Optou-se por essa teoria como referencial teórico à análise do estudo empírico por se
tratar de uma teoria que está em consonância com a expectativa de que a comunicação entre
os homens, em busca de condições éticas de vida, possa resultar em ações e deliberações
justas. Parece adequado trabalhar com este referencial, quando se trata de estudos acerca de
participação social, cidadania, controle social, cujo a priori é a possibilidade de diálogo entre
partes distintas e interesses diferenciados.
A metodologia utilizada é a revisão bibliográfica e o estudo de caso, cujo objeto
empírico foi supracitado. Utilizou-se da observação não-participante das reuniões do conselho
e de entrevistas semiestruturadas com 2 conselheiros, a técnica para tratamento dos dados das
entrevistas foi a análise de discurso (VERGARA, 2008).
Serão apresentadas duas seções, além da introdução e das considerações finais. Uma
seção que apresenta as principais características da teoria habermasiana da democracia
deliberativa; e a segunda seção dedica-se a apresentar os resultados da pesquisa empírica.

2 A Democracia Deliberativa Habermasiana

Segundo Leonardo Avritzer (2000), nos dois últimos séculos, a teoria democrática
girou em torno do conceito de deliberação utilizado de formas distintas: autores como
Habermas e Cohen, utilizam deliberação como “ponderar, refletir”; enquanto outros autores,
como Rousseau, Schumpeter e Rawls, utilizam o termo como “decidir, resolver”. Aqueles
abordam o processo e estes o momento de decisão.
O elemento argumentativo no interior do processo deliberativo, como tendência
contemporânea, segundo o autor, surgiu na teoria democrática a partir dos anos 1970.
Para a teoria democrática deliberativa, o processo de decisão governamental necessita
de sustentação por meio da deliberação dos indivíduos racionais em fóruns amplos de debate
e negociação. No entanto, a deliberação não é resultado de uma agregação de preferências
fixas individuais. A deliberação resulta de um processo de comunicação, em espaços públicos,
que antecede e auxilia a própria formação da vontade dos cidadãos (FARIA, 2000).
Nesse sentido, segundo Habermas (1995), quando as formas de comunicação estão
suficientemente institucionalizadas, a política dialógica e a política instrumental entrelaçam-
se no campo das deliberações. Tudo gira em torno das condições de comunicação e dos
procedimentos que outorgam, à formação institucionalizada da opinião e da vontade políticas,
sua força legitimadora.
A preocupação de Habermas ao elaborar o conceito de democracia deliberativa era o
modo como os cidadãos fundamentam racionalmente as regras do jogo. Enquanto para a
democracia liberal a fundamentação de um governo democrático está no voto; a teoria do
discurso habermasiana propõe um “procedimento ideal para a deliberação e a tomada de
2  

decisão”, que avançaria na fundamentação e legitimação das regras democráticas (FARIA,


2000, p. 48). A teoria do discurso habermasiana considera a cidadania como um ator coletivo,
que reflete o todo e age por ele.
Um dos principais conceitos dessa teoria é o de espaço público ou esfera pública, que
o autor entende como um fenômeno social elementar e que
 
pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos,
tomadas de posição e opiniões. [...] A esfera pública constitui principalmente uma
estrutura comunicacional do agir orientado para o entendimento, a qual tem a ver
com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os
conteúdos da comunicação cotidiana. [...] O espaço de uma situação de fala,
compartilhado intersubjetivamente, abre-se através das relações interpessoais que
nascem no momento em que os participantes tomam posição perante os atos de fala
dos outros, assumindo obrigações ilocucionárias. Qualquer encontro que não se
limita a contatos de observação mútua, mas que se alimenta da liberdade
comunicativa que uns concedem aos outros, movimenta-se num espaço público,
constituído através da linguagem. Em princípio, ele está aberto para parceiros
potenciais do diálogo, que se encontram presentes ou que poderiam vir a se juntar.
[...] os processos de formação de opinião, uma vez que se trata de questões práticas,
sempre acompanham a mudança de preferências e de enfoques dos participantes –
mas podem ser dissociados da tradução dessas disposições em ações. Nesta medida,
as estruturas comunicacionais da esfera pública aliviam o público da tarefa de tomar
decisões; as decisões proteladas continuam reservadas a instituições que tomam
resoluções. Na esfera pública, as manifestações são escolhidas de acordo com temas
e tomadas de posição pró ou contra; as informações e argumentos são elaborados na
forma de opiniões focalizadas. Tais opiniões enfeixadas são transformadas em
opinião pública através do modo como surgem e através do amplo assentimento de
que “gozam”. [...] Na esfera pública luta-se por influência, pois ela se forma nessa
esfera. Nessa luta não se aplica somente a influência política já adquirida (de
funcionários comprovados, de partidos estabelecidos ou de grupos conhecidos, tais
como o Greenpeace, a Anistia Internacional, etc.), mas também o prestígio de
grupos de pessoas e de especialistas que conquistaram sua influência através de
esferas públicas especiais [...] a influência política que os atores obtêm sobre a
comunicação pública, tem que apoiar-se, em última instância, na ressonância ou,
mais precisamente, no assentimento de um público de leigos que possui os mesmos
direitos. [...] temos que fazer uma distinção entre atores que surgem do público e
participaram na reprodução da esfera pública e atores que ocupam uma esfera
pública já constituída, a fim de aproveitar-se dela. Tal é o caso, por exemplo, de
grandes grupos de interesses, bem organizados e ancorados em sistemas de funções,
que exercem influência no sistema político através da esfera pública. Para preencher
sua função, que consiste em captar e tematizar os problemas de sociedade como um
todo, a esfera pública política tem que se formar a partir dos contextos
comunicacionais das pessoas virtualmente atingidas (HABERMAS, 1997, p. 92-94).

Desde sua origem, este conceito tem algumas características ligadas ao debate
democrático contemporâneo:

[...] a ideia de um espaço para a interação face-a-face diferenciado do Estado, onde


os indivíduos interagem uns com os outros, debatem as decisões tomadas pela
autoridade política, debatem o conteúdo moral das diferentes relações existentes ao
nível da sociedade e apresentam demandas em relação ao Estado. Os indivíduos no
interior de uma esfera pública democrática discutem e deliberam sobre questões
políticas, adotam estratégias para tornar a autoridade política sensível às suas
deliberações. Nesse sentido, o conceito de publicidade estabelece uma dinâmica no
interior da política que não é movida nem por interesses particularistas nem pela
tentativa de concentrar poder com o objetivo de dominar outros indivíduos. Pelo

   
3  

contrário, a ideia aqui presente é de que o uso público da razão estabelece uma
relação entre participação e argumentação pública (AVRITZER, 2000, p. 36).

O autor alemão rompe com a formulação rousseuniana de deliberação, conforme


Avritzer (2000), ao destacar a existência de uma dimensão argumentativa na relação Estado-
sociedade, que vai além da formação da vontade geral.
Nesse sentido, ressalta Vitale (2006, p. 551) que “Habermas identifica sérios limites
no conceito de razão adotado nos últimos séculos, que teriam obstruído a implementação do
projeto emancipador anunciado pelo Iluminismo”.
Ele tenta inserir a ideia de um consenso discursivo em uma teoria reflexiva da ação
social. Segundo Avritzer (2000), essa construção teórica é feita na obra, Teoria do Agir
Comunicativo, a partir de duas dimensões centrais:

i) a construção de um conceito de mundo social, reflexivamente adquirido; e

ii) a ideia de uma forma de ação que seja intersubjetiva e voltada para o consenso
comunicativo.

O mundo da vida, segundo Habermas (2012), é um conceito complementar ao do agir


comunicativo. Ele se relaciona com os três mundos que os sujeitos tomam por base para
definir situações comuns, quando agem orientados pelo entendimento: subjetivo, objetivo e
social.
O filósofo propõe que a sociedade seja simultaneamente concebida como mundo da
vida e sistema. Este representado pelo mundo socioeconômico, no qual os sujeitos estão
inseridos.

A definição de uma situação estabelece uma ordem social. Através dela participantes
em um processo de comunicação atribuem os vários elementos de uma situação de
ação a cada um dos três mundos - o objetivo, o social e o subjetivo, e, desse modo,
incorporam a situação de ação atual no seu mundo da vida pré-interpretado. A
definição da situação por uma outra parte que diverge da definição de um de nós,
coloca um problema de tipo peculiar, pois, em um processo cooperativo de
interpretação ninguém possui o monopólio da interpretação correta (HABERMAS,
1984, I, p.100 apud AVRITZER, 2000, p. 38).

Para o autor, a afirmação de Habermas representa uma tentativa sociológica de


reincorporar a argumentação do mundo social. A dinâmica dessa tentativa é supor a presença
de um mundo com pré-interpretações distintas e propor uma solução para o problema
sociológico da produção da ordem que envolva o consenso argumentativo das partes sobre as
características da ordem social em disputa. A isso Habermas denomina de ação/agir
comunicativo, nas suas próprias palavras:

O agir comunicativo depende de um processo de interpretação cooperativo em que


os participantes se referem simultaneamente a algo no mundo subjetivo, no mundo
social e no mundo objetivo; mesmo que no ato de sua manifestação ele consiga
enfatizar respectivamente apenas um dos três componentes. Os falantes e ouvintes
utilizam o sistema de referência dos três mundos como uma moldura no interior da
qual tecem e interpretam definições comuns relativas à situação de sua ação. Nesse
sistema de referência, eles não se referem diretamente a algo no mundo, mas
relativizam suas próprias exteriorizações tendo em vista a possibilidade de que o
outro ator venha a contestar a validade delas (HABERMAS, 2012, p. 221).

O agir comunicativo, conforme Avritzer (2000), teria as seguintes características:

   
4  

a) o seu meio é a utilização pragmática da linguagem;


b) envolveria orientações em relação ao mundo;
c) seria teleológica1; e
d) implicaria assumir características reflexivas em relação ao mundo.

Habermas supõe, segundo o autor, que as formas de argumentação são próprias do


mundo social e por isso continuam tendo presença plena nas sociedades contemporâneas.
Também admite as interpretações diferentes em situações diversas, no que diverge de
Rousseau, que acreditava que os que divergiam da vontade da maioria estavam errados.
Também diverge de Rawls, que pressupunha que bastaria supor uma posição de limitação de
informação para que os indivíduos cheguem a determinados consensos. Ao contrário, “o
problema habermasiano será o de que as diferenças de perspectiva e orientação são suficientes
para gerar polêmicas em relação às normas” (Ibid.). Foi tentando transferir a ideia de
argumentação própria da Sociologia interpretativa para o campo da política, que Habermas se
aproximou da discussão acerca da democracia deliberativa.
Habermas começa um processo de aplicação da sua concepção de teoria do discurso à
política contemporânea com a publicação da obra Teoria do Agir Comunicativo. Essa
aplicação foi operacionalizada com a percepção de que:

o problema da legitimidade na política não está ligado apenas, tal como supôs
Rousseau, ao problema da expressão da vontade da maioria no processo de
formação da vontade geral, mas também estaria ligada a um processo de deliberação
coletiva que contasse com a participação racional de todos os indivíduos
possivelmente interessados ou afetados por decisões políticas (Ibid., p. 39).

Essa formulação, segundo Avritzer (2000), leva Habermas à elaboração do chamado


princípio D: que diz que apenas as normas-ações, com as quais todas as pessoas que possam
ser afetadas podem concordar como participantes de um discurso racional, são válidas.
O autor ressalta as duas características do princípio D:

I) não é a contagem de votos o que muda a relação entre maioria e minoria, é


preciso chegar a uma posição racional no debate político que a satisfaça;

II) existe uma mudança no conceito de preferência.

Avritzer (2000) explica, em relação ao último item, que para o filósofo alemão a
política deliberativa deve ser concebida como uma conjuntura que depende de uma série de
processos de negociação regulados de forma justa e pela argumentação, em suas mais
variadas formas.
Em relação à intersubjetividade, Habermas (2012, p.230-231) afirma que “o conceito
de ‘mundo da vida’ não permite subordinações análogas; ao utilizá-lo, os falantes e ouvintes
não podem se referir a ele como ‘algo intersubjetivo’. Isso ocorre porque quem age
argumentativamente segue na direção do seu mundo da vida, do seu horizonte. São as

                                                                                                                       
1
Teleologia, conforme o dicionário de Português Michaelis, online, significa, na Filosofia: “Filos Teoria das causas finais;
conjunto de especulações que têm em vista o conhecimento da finalidade, encarada de modo abstrato, pela consideração dos
seres, quanto ao fim a que se destinam”. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=teleologia>. Acesso em:
07-maio-2015.
   
5  

estruturas do mundo da vida que determinam quais as formas de intersubjetividades possíveis


para o entendimento.
O mundo da vida, diz o autor, é o lugar transcendental em que os atores se encontram.
É a partir dele, de um mundo da vida comum, que os falantes e ouvintes se compreendem no
mundo subjetivo, objetivo e social.
O problema da intersubjetividade tem a ver com a possibilidade de sujeitos variados
compartilharem o mesmo mundo da vida.
O mundo moderno, destaca Vitale (2006), trouxe consigo um dilema complexo. O
processo de fragmentação da sociedade, representado também pelo individualismo liberal,
gerou um desequilíbrio nas esferas de valor. As instituições surgidas com o Estado moderno e
o sistema capitalista prevalecem sobre as outras esferas de valor. O individualismo prevalece
sobre a solidariedade, por exemplo, tão importante para o bom desenvolvimento democrático,
inclusive na versão deliberativa habermasiana.
A questão não é a existência ou o avanço do sistema. Segundo a autora, a questão é a
lógica e a estrutura do sistema que se super desenvolvem, com o encolhimento do mundo da
vida. O que significa dizer que a racionalidade instrumental parece ser a única razão possível
e limita a emancipação da razão colocando em xeque a modernidade.
Confome Vitale (2006), Habermas denomina esse processo de colonização do mundo
da vida por imperativos sistêmicos, o que constituiria numa sociopatologia.
A colonização do mundo da vida é como o que ocorre na atualidade, a economia e a
administração pública, seus valores se sobrepondo aos valores culturais, sociais e éticos dos
sujeitos e da coletividade. Na teoria democrática deliberativa habermasiana, a racionalidade
instrumental e a racionalidade argumentativa devem conviver, com a segunda legitimando a
primeira. Não o contrário, como ocorre no processo de colonização do mundo da vida.
Habermas demonstra que é necessário ir além de uma razão subjetiva, propõe uma
mudança de paradigma, a intersubjetividade, o processo de decisão dialógico (Vitale, 2006).
A sociedade contemporânea, para avançar na emancipação da razão moderna, precisa superar
o individualismo e avançar na intersubjetividade, na solidariedade. Fortalecer a razão
dialógica, argumentativa, comunicativa, é avançar na democracia.
A democracia deliberativa, segundo Habermas (1995), assume um papel intermediário
entre a democracia liberal e a democracia participativa. Essa concepção mediadora, recebe
críticas de liberais e de republicanos.

3 O Conselho Municipal de Política Urbana de Niterói (COMPUR)

O Conselho Municipal de Política Urbana de Niterói-RJ foi criado pela lei municipal
nº 2.123/2004, que alterou a lei municipal nº 1.157/1992, que instituiu o Plano Diretor de
Niterói. Atua no controle social dos instrumentos de implementação do Plano Diretor, que
gerem dispêndio de recursos públicos, que devem passar por sua apreciação. Integra o
Sistema Municipal de Planejamento Urbano (SMPU), coordenado pela Secretaria Municipal
de Urbanismo e Mobilidade Urbana (SMU), que é o órgão central do sistema, responsável por
sua coordenação.
Trata-se,

[de] um órgão colegiado que reúne representantes do poder público e da sociedade


civil, permanente e deliberativo conforme suas atribuições, integrante da
administração pública municipal, tendo por finalidade assessorar, estudar e propor
diretrizes para o desenvolvimento urbano com participação social e integração das
políticas fundiária e de habitação, de saneamento ambiental e de trânsito, transporte
e mobilidade urbana (art. 104, Lei Municipal no. 2123/2004, grifos nossos).

   
6  

Além de integrar o SMPU, o COMPUR é parte integrante do Sistema Nacional do


Conselhos de Cidades e é vinculado funcionalmente ao Órgão Gestor da Política Urbana
Municipal (SMU).
É composto de 18 (dezoito) membros titulares e de 18 (dezoito) membros suplentes,
respeitando a seguinte proporcionalidade entre os segmentos, estabelecida pela Conferência
Nacional das Cidades para o Conselho Nacional das Cidades: 5 (cinco) representantes
indicados pelo Poder Executivo, 2 (cinco) representantes indicados pelo Poder Legislativo, 5
(cinco) representantes indicados pelos Movimentos sociais e populares, 2 (dois)
representantes indicados pelo Segmento empresarial, 2 (dois) representantes indicados pelos
Trabalhadores, 1 (um) representante indicado pelas Entidades profissionais e acadêmicas e 1
(um) representante indicado pelas Organizações não governamentais (ONG) (Lei municipal
nº 2123/2004, art. 104, §2º.).1
A presidência do conselho é indicada pelo Poder Executivo, em geral assumida pelo
responsável pela Secretaria de Urbanismo e Mobilidade Urbana.
Além do COMPUR e do Conselho Municipal de Meio Ambiente e Recursos Hídricos,
deverão ser utilizados, para garantir a gestão democrática da cidade, os seguintes instrumentos
(art. 104, § 5º):

III - debates, audiências e consultas públicas;


IV - conferências sobre assuntos de interesse urbano e ambiental;
V - iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de
desenvolvimento urbano;
VI - acesso às informações disponíveis;
VII- encontros locais e de Câmaras Temáticas, a serem promovidos periodicamente
pelos órgãos municipais responsáveis;
VIII- integração dos conselhos de políticas setoriais no Conselho Municipal de
Política Urbana.

Eleitos na 5ª Conferência Municipal da Cidade de Niterói-RJ, ocorrida em maio de


2013, os conselheiros que compõem o COMPUR, para o período de 2013-2016, estão
distribuídos por segmento:

Poder Executivo: 5 conselheiros titulares, todos representantes de pastas do poder Executivo,


exceto um conselheiro suplente, que integra uma empresa pública municipal, a Empresa
Municipal de Moradia Urbanização e Saneamento (EMUSA);

Poder Legislativo: 2 vereadores, atualmente, da base governista;

Movimentos Sociais e Populares: 5 conselheiros titulares, todos integrantes da Federação das


Associações de Moradores de Niterói (FAMNIT);

Empresarial: 2 conselheiros, sendo um da Concessionária de Águas Niterói e outro da


Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Niterói (ADEMI);

Trabalhadores: 2 conselheiros, sendo um da Associação dos Funcionários da Companhia de


Limpeza de Niterói (ASCLIN) e outro do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do
Estado do Rio de Janeiro (SEPE). Observa-se nesse segmento que os suplentes representam
respectivamente outras entidades: o Sindicato dos Bancários de Niterói e a ABIO (Associação
de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro);

   
7  

Profissionais e Acadêmicos:1 conselheiro do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), com 1


suplente da Universidade Federal Fluminense (UFF);

Organizações Não Governamentais (ONGs): 1 conselheiro da Associação Cultural de


Apoio à Cidadania e Capacitação Profissional (ACACICAPP), que é uma associação privada.
O que se observa é que a representação da sociedade civil, sobretudo no que diz
respeito a movimentos sociais e populares está concentrada na FAMNIT. Talvez por ser a
federação que representa todas as associações comunitárias do município, como disse um de
seus representantes e conselheiro numa das reuniões.
No entanto, uma vez que essa federação seja cooptada, põe por terra toda a
possibilidade de representação do segmento, que é fundamental à representação de interesses
das classes menos favorecidas e que mais necessitam de políticas públicas para melhorar a sua
qualidade de vida. Soma-se a isso, o fato de representarem 5 votos no conselho, num universo
de 18 votos, ou seja, 27,8% dos votos, o que representa quase um terço da capacidade de
decisão no conselho e quase metade do poder de decisão da sociedade civil.
Para agravar a situação, de fato há problemas de legitimidade. Segundo um dos
conselheiros entrevistados, a 5ª Conferência das Cidades “foi menos participativa que as
anteriores, [...], um setor que defendia algumas pautas parou de defender essas pautas. [...]
FAMNIT mudou posicionamentos históricos nessa última conferência” (Informação Verbal2).
Como observa o sociólogo Renato Figueiredo, o movimento de bairros em Niterói
está “condenado à morte”, desde àquela época pelo menos. Isso ocorre em virtude das
dificuldades de sobrevivência apresentadas pela FAMNIT3 e pela
Federação das Associações de Moradores de Áreas Carentes de Niterói (FAMACNIT), que à
época disputavam o movimento de bairro na cidade (A Tribuna, 04-jul-2009).
A mesma matéria mostra que o enfraquecimento dessas entidades se deve à
“partidarização e cooptação de lideranças por governos municipais e estaduais, com o
objetivo claro de frear suas lutas” (Ibid.), um problema que atinge toda a região
metropolitana.
Esse relato corrobora com as impressões da autora ao acompanhar as reuniões do
COMPUR durante todo o ano de 2014.
Durante o ano ocorreram 8 reuniões ordinárias e 3 reuniões extraordinárias,sendo que
4 reuniões não ocorreram por falta de quórum.
O que se vê nos dados coletados é que há uma ausência grande dos conselheiros da
sociedade civil nas reuniões do conselho. Os que mais participam são os representantes do
Executivo e os representantes dos empresários.
Das 11 reuniões realizadas (ordinárias e extraordinárias), a frequência foi analisada
apenas nas 8 reuniões ordinárias que efetivamente foram realizadas e nas 4 reuniões que não

                                                                                                                       
2
Entrevista do dia 25-jun-2015, com conselheiro do COMPUR.
3
“[...] Fundada em agosto de 1983 por pessoas ligadas ao PDT, a FAMNIT agora é um reduto de petistas. Em 2008, na
disputa interna do PT entre o deputado estadual Rodrigo Neves e André Diniz (ex-secretário de Cultura), sete dos 21
diretores da entidade, inclusive o presidente, o vice-presidente, assinaram documento apoiando a pré-candidatura do vereador
à sucessão do então prefeito de Niterói, Godofredo Pinto. Diretor da FAMNIT e filiado ao PT, Paulo Lourenço, o Paulo
Viradouro, é contra partido ditando a política do “Movimento de Bairros”. ‘Estou há 15 anos no movimento de bairros e acho
que, agora, os interesses dos partidos e pessoas são colocados acima das necessidades das comunidades’, afirmou (A Tribuna,
04-jul-2009). Paulo Viradouro é atual conselheiro do COMPUR.  
   
8  

ocorreram por falta de quórum4, haja vista a ausência das atas das reuniões extraordinárias no
sítio da secretaria na data em que os dados foram coletados.5
Gráfico 1: Média Aritmética da Frequência dos Conselheiros do COMPUR por Segmento – 2014

Fonte:Elaboração própria a partir das atas das reuniões – 2014.


*Não foram computadas as atas das reuniões extraordinárias e da ata da reunião ordinária de setembro de 2014,
pois não constavam no site da Secretaria de Urbanismo e Mobilidade Urbana de Niterói, no dia 28-jul-2015.

Como se verifica do Gráfico 1, observa-se os que tiveram frequência positiva, destaca-


se o segmento Empresarial, com a maior média de presença às reuniões, seguido pelo Poder
Executivo, depois pelas Entidades Profissionais e Acadêmicas, pelos Trabalhadores e pelo
Poder Legislativo.
As menores frequências ocorreram no segmento Movimentos Sociais e Populares e no
segmento Organização Não Governamental.
A respeito da frequência, um dos conselheiros afirma que “[...] A questão dos
interesses está por trás da lógica que a prefeitura usa, ela tenta trabalhar o tempo todo com a
ideia de um consenso...[falso]”.2 Essa informação corrobora com a impressão da autora, de
que a resposta a essa questão está na relação de interesses, que por trás da ideia de um
consenso, de um falso consenso, faz com que somente os conselheiros cujos interesses
convergem para ele tenham o interesse em se fazerem presentes às reuniões.
Nesse sentido, dizem Avritzer e Pereira (2005), por um lado, os atores políticos,
eleitos atuam sob restrição temporal (intervalos eleitorais); por outro, os cidadãos têm tempo
limitado para o desempenho de ações voluntárias; e as lideranças comunitárias têm múltiplos
canais para demandarem mudanças políticas. Portanto, os atores têm motivos para
continuarem participando em instituições participativas se perceberem sua eficácia como
veículos efetivos de mudanças, o que parece não ser o caso.

                                                                                                                       
4
Consta das atas das 4 reuniões que não ocorreram por falta de quórum a presença dos conselheiros.
5
O Secretário Executivo forneceu à autora as atas das reuniões ordinárias até agosto de 2014. As demais foram coletadas no
sítio – www.urbanismo.niteroi.rj.gov.br – no dia 28-jul-2015. Notou-se a ausência da ata da reunião ordinária do mês de
outubro.

   
9  

Pela composição do conselho observa-se uma distribuição de 7 conselheiros que


representam os interesses do Governo e 11 conselheiros que representam os interesses da
sociedade civil, inclusos nesse número, os segmentos de trabalhadores, movimento social,
profissionais técnicos da área e ONGs.
No entanto, o que se verifica na dinâmica do conselho é que esses interesses não são
distribuídos de forma tão simples. Desde a primeira reunião, em janeiro de 2014, onde a pauta
versava sobre a aprovação de uma minuta de lei que aumentaria o gabarito em alguns locais
da cidade, lei esta conhecida como “lei dos hotéis”, ficou evidente o que a literatura tem por
consenso quando trata de conselhos de políticas públicas.
Primeiro, observou-se que havia cooptação de conselheiros por parte do governo. Por
outro lado, os discursos de alguns representantes do governo se dirigiam no sentido de
favorecer a ampliação do gabarito das construções da cidade e atender ao interesse das
empresas hoteleiras. Se nem todos discursaram, a votação deixou isso claro.
Um dos secretários de governo, que é conselheiro, chegou a dizer que recebeu vários
empresários do setor e que a cidade não pode perder a oportunidade desse investimento. No
entanto, essa “oportunidade” é vista sem crítica. Ou seja, que venham os investimentos, custe
o que custar. O que sinaliza uma possibilidade de “troca de favores”, clientelismo e
patrimonialismo.
Ocorre que essa minuta foi aprovada. Com poucos votos contrários, apenas 2
conselheiros votaram contra, um deles representante dos profissionais técnicos, que parecia
um lutador solitário. Houve contraditório de um dos conselheiros do segmento governo, mas
foi uma posição que pareceu, ao longo da pesquisa, inédita.
Nesse trabalho, parte-se do entendimento de que esses vícios e atitudes espúrias já
registrados na literatura sobre o tema, são conhecidos. No entanto, é importante destacar, que
nesse conselho é como se esse tipo de comportamento fosse algo banal, natural do jogo
político. Ficou muito claro que todos estão cientes e a situação não oferece solução.
Portanto, o que se observa é que de 11 conselheiros que representam a sociedade civil,
o conselho tem cerca de 2 votos que refletem uma discussão, que expressa a preocupação com
o bem comum, com a ação coletiva. Assim mesmo, apesar da visão crítica, um dos votos, o
dos técnicos, que representa um contraponto diante do posicionamento privatista dos demais.
As proposições apresentadas nas reuniões sempre são oriundas do governo, a partir da
Secretaria de Urbanismo e Mobilidade Social, cuja secretária é a presidente do conselho.
As principais proposições do ano de 2014 giraram em torno das seguintes pautas: “lei
de hotéis”6, tema cuja discussão se iniciou em 2013; plano ambiental; revisão do Plano
Diretor de Niterói (1992); e Plano Urbanístico de Pendotiba (PUR de Pendotiba).
Muitas questões que parecem ser acertadas, ou terem alcançado um consenso, são
mascaradas e, finalmente, o protagonismo dos atores estatais e seus interesses se sobrepõem,
sem a menor justificativa. Um dos entrevistados cunhou a forma com que os atores estatais se
comportam de “tergiversação com desfaçatez”.
Quando se trata dos interesses do governo é preciso observar que o COMPUR trata de
questões urbanas e a cidade de Niterói sofre há alguns anos com uma elevada especulação
                                                                                                                       
6
O projeto de lei 10/2014, oriundo da mensagem-executiva, cria a Lei de Estímulo ao Desenvolvimento da Infraestrutura de
Turismo. “Conhecida como Lei de Hotéis, a mensagem, segundo a Prefeitura, visa adequar a agenda de desenvolvimento
econômico do município e do estado ao potencial turístico e aos megaeventos como os jogos olímpicos e paraolímpicos de
2016. A mensagem contou com 15 votos favoráveis e três contrários e precisará retornar à pauta para uma nova votação. Os
vereadores ainda podem apresentar emendas ao projeto que serão analisadas e votadas durante a segunda votação”.
Disponível em: http://camaraniteroi.rj.gov.br/2014/04/22/camara-aprova-em-primeira-discussao-lei-dos-hoteis/. Acesso em:
30-jan-2015.

   
10  

imobiliária, que tem impactado na vida das pessoas diretamente, com muitas externalidades
negativas: problemas de mobilidade urbana, problemas de poluição, elevação da população,
inflação no preço dos imóveis, problemas relativos à saturação das redes de esgoto, água e
saneamento básico em geral, etc. Tudo isso ocorre com a conivência do Legislativo e do
Executivo.7
O grupo político no governo teve mais de 50% da receita de campanha bancada por
empresas do setor imobiliário (Norberto Odebretch, OAS, Andrade Gutierrez, etc.), que
atuam nos três níveis da federação. Esse fato, associado ao exposto a seguir, bem como ao que
essas empresas têm feito no cenário fluminense e nacional, levanta a questão da necessidade
da reforma política, no sentido de por fim ao financiamento empresarial de campanha eleitoral
para evitar a influência, com amparo legal, de empresas privadas, na agenda pública.
Nesse sentido, Scheffer e Bahia (2015) apontam que “[a]s eleições de 2014 acentuam
tendências que ainda não eram nítidas nos pleitos anteriores. O primeiro destaque é o aumento
exponencial do volume de doações – se comparado às eleições de 2002, 2006 e 2010”.
Segundo um dos conselheiros entrevistados, a maior dificuldade que encontram para
representar seus interesses está no:

projeto político de cidade, essa é a dificuldade. A prefeitura tem um projeto político


de cidade que é o oposto do que eu defendo. Enquanto eu acredito num projeto
político de inclusão social, que combata as desigualdades, a prefeitura tem uma ideia
de cidade que é uma cidade pensada a partir dos interesses do mercado imobiliário,
sendo ele de pequena escala ou de grande escala (Informação Verbal).

A atual gestão divulgou fartamente, nos jornais, com panfletos, na internet, nos
outdoors espalhados pela cidade, inclusive painéis eletrônicos, nos ônibus e nas contas de
água, a construção do Planejamento Estratégico para Niterói, cujo projeto recebeu o nome de
“Niterói Que Queremos”8.
Esse projeto tem por horizonte 20 anos e conforme divulgado na imprensa local, a
secretária de Planejamento, Modernização da Gestão e Controle afirma que é “um plano
totalmente elaborado através da iniciativa privada de Niterói” (O Fluminense, 19-set-2014).
Ela disse ainda que: “a partir do plano, Niterói terá uma gestão com metas e resultados”
(Idem).
Esse planejamento foi elaborado com o apoio técnico e metodológico da empresa
Macroplan Prospectivas, Estratégias & Gestão9, que já fez trabalhos dessa natureza em outras
cidades. Além disso, segundo palavras do próprio prefeito “[a]pós a divulgação será
necessário a captação de novos recursos para dar continuidade à estruturação dos projetos e
consequentemente a execução e obtenção dos resultados almejados” (Ibid.). Observa-se que
esse Planejamento Estratégico foi bancado por empresários.
O que se observa é que o município está sob uma gestão do tipo gerencial, com metas
e resultados, alinhado com o Movimento Brasil Competitivo, obtendo portanto um olhar
empresarial sobre a cidade. Apesar de ter se elegido pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o
que se verifica é que essa gestão está longe de ser uma gestão social, o que marcou os
primeiros governos municipais petistas, eleitos a partir da década de 1990.
                                                                                                                       
7
É sabido que questões demandadas pela sociedade civil no Judiciário, no intuito de frear o boom imobiliário, tiveram
decisão contrária à sociedade, sobretudo sob a alegação de que isso iria interferir na arrecadação do município. No entanto,
como o COMPUR não tem integrantes do Judiciário, preferiu-se por manter a afirmativa com foco apenas no Poder
Executivo e no Poder Legislativo, ali representados diretamente.
8
Disponível no sítio: http://www.niteroiquequeremos.com.br
9
Esta empresa se apresenta na internet - http://www.macroplan.com.br/ - como “[u]ma das mais experientes consultorias
brasileiras em cenários prospectivos, administração estratégica e gestão orientada para resultados”. Disponível em:
http://www.macroplan.com.br/Quemsomos.aspx. Acesso em: 20-jan-2015.
   
11  

Isso implica concessão aos interesses do mercado, na maioria das vezes em prejuízo
do interesse público e do bem estar da população, sobretudo a mais necessitada. É o que se
apresenta nos resultados que aqui estão sendo apresentados.
Quanto ao método utilizado de consulta à população, citado no sítio de promoção e
divulgação do “Niterói Que Queremos”, observam-se três etapas: entrevistas com
especialistas, congressos e pesquisa de opinião.
Conforme matéria do Bouças:

Como meio de estratégia, foram realizadas 40 entrevistas qualitativas no município,


a pesquisa web com mais de 5.500 pesquisas respondidas no site
niteroiquequeremos.com.br, o Congresso Regional que levou cerca de mil pessoas
ao Caio Martins e agora, já em fase final, o Concurso de Redação, Redação Ilustrada
e Desenho “Criando a Niterói do Amanhã”, que envolve os alunos do 1º ao 9º ano
do ensino fundamental municipal, através da pergunta “Que Niterói você quer?”
para saber os anseios da população e o que a cidade necessita no momento (O
Fluminense, 19-set-2014).

Esse processo tem sido divulgado como participativo, mas vê-se com facilidade que
não tem nada a ver com o conceito de participação social e cidadania, tratado nesse trabalho.
A etapa referente às entrevistas, envolve a ausculta de 40 especialistas, que têm seu
anonimato preservado.
Em relação ao que chamaram de consulta pública, feita na web, refere-se a um
formulário, a ser respondido pela internet, com perguntas dirigidas. No cenário de quase 500
mil habitantes, cerca de 5.550 habitantes teriam respondido.
É preciso observar ainda que o acesso à internet não é universalizado em Niterói; o
questionário, que dirige as respostas, é uma forma de evitar o diálogo direto com a população
e evitar o conflito, que naturalmente existe.
Com relação aos congressos, foram anunciados cinco congressos, um em cada região
administrativa, urbanística da cidade. Isso se resumiu a apenas um congresso, como citado
acima, no Estádio Caio Martins, que contou com um público ínfimo, pouco mais de 1 mil
pessoas.
Portanto, essa estratégia se mostra perigosa, porque pode estar embasada e carregada
de interesses obscuros. A população não participa, o que demonstra que a agenda pública é
determinada pelo mercado. O prefeito se reuniu com empresários, em Icaraí, bairro nobre da
cidade, que possui o IDH mais elevado da região metropolitana segundo o IBGE.
A repercussão que essa estratégia teve no COMPUR mostrou-se presente em cada
proposição apresentada pelo governo, como no Plano Diretor e no PUR de Pendotiba, por
exemplo. Os planos de desenvolvimento relativos a esses instrumentos urbanísticos trouxeram
essas etapas, de forma explícita, como legado do Planejamento Estratégico: consulta pública
digital, entrevista com especialistas e, no geral, audiências públicas ou seminários, para
atender ao quesito congresso.
Ademais as audiências públicas são obrigatórias no caso do Plano Diretor, no entanto,
no PUR de Pendotiba, a previsão apresentada ao COMPUR era de consulta pública e
entrevista com especialistas.
Ressalte-se a prática observada, relativa a atitude dos gestores de política urbana e
atores estatais que sempre que surgiam movimentos com potencial de conflito, como foi o
caso da AMAJA e da AME PENDOTIBA, reuniam-se com eles isoladamente, pedindo
sugestões. Uma forma de amenizar conflitos ou até mesmo de cooptar, a depender da
receptividade.
É aparente a falta de abertura do governo para a participação da sociedade, sobretudo
porque os interesses a que representam colidem com os da sociedade em geral.
   
12  

Assim, fica evidente o compromisso do governo, de sua agenda, com o mercado.


A respeito da participação social no PUR de Pendotiba, o presidente da AMAJA,
Associação de Moradores e Amigos de Jardim América, um bairro, da região de Pendotiba,
afirmou em seu relatório crítico a respeito do diagnóstico apresentado pela prefeitura para o
PUR de Pendotiba, o seguinte:

Pendotiba é uma Região grande com sub-regiões com características distintas tanto
do ponto de vista sócio-econômico, como da ocupação. Para que a participação seja
realmente popular deveria haver pelo menos um evento em cada sub-região, além de
questionários amplamente divulgados e distribuídos previamente.
A participação da população conforme citada também no artigo 8º, § 3º da Lei
2123/2004 – Plano Diretor de Niterói, foi reduzida a umas poucas reuniões mal
divulgadas e conduzidas, nas quais compareceram alguns representantes de
associações. É questionável inclusive o quanto esse reduzido grupo efetivamente
representa a população. Não foram feitas pesquisas mais amplas, com questionários
bem elaborados e objetivos. Tanto assim, que não há no diagnóstico resultados
tabulados de quaisquer pesquisas.
Entendemos que reunir representantes de associações para que as mesmas mostrem
numa planta quais são os problemas que conhecem, é apenas uma parte de um
trabalho sistemático para montar um diagnóstico (RIZZO, 2015, p. 49-50, sic).

Conforme um conselheiro entrevistado (AA3), “o PUR de Pendotiba [...], é


estimulado pelas empresas locais que saíram prejudicadas na OUC. Então, é um cala a boca
para as empresas locais. Quem vai construir com o PUR de Pendotiba? A ADEMI, as
empresas menores” (Informação Verbal10).
Em relação ao potencial de votos no conselho, assim considerando os interesses
envolvidos, o mercado apresenta pelo menos 66,67% dos votos, o equivalente a 12 votos.
Garantia de vitória nas deliberações.
Um fato muito discutido e que foi encaminhado ao Ministério Público, foi a
contratação da Fundação Getúlio Vargas - FGV Projetos para a assessoria técnica da
prefeitura na revisão do Plano Diretor. O debate foi pautado sob dois principais argumentos: a
falta de licitação e a contratação de uma empresa sem histórico ou tradição em questões de
planejamento urbano11.
A falta de licitação está sendo tratada via Ministério Público (MP), visto que os vários
questionamentos feitos no conselho tiveram respostas evasivas. Principalmente, depois que
recorreram ao MP, a resposta dos atores estatais é sempre a mesma: “estamos, através da
Procuradoria, respondendo às questões junto ao Ministério Público”12.
Essa é uma constatação da dificuldade de controle social, vistos a falta de
transparência e accountability. Isso porque, sendo um conselho com capacidade deliberativa,
o questionamento dentro desse espaço merece resposta motivada aos seus membros. Uma
resposta como essa denota que para os atores estatais a obrigação de responder passou a
existir a partir do momento em que o MP entrou em ação.
Ademais, é importante destacar que enquanto conselheiros, os representantes técnicos
atuam com visão crítica a respeito das proposições feitas pelo governo e com olhar maior ao
interesse público. Essa diferença em relação ao posicionamento dos demais conselheiros se
faz presente nas reuniões, na fala desses conselheiros, bem como na análise crítica que fazem

                                                                                                                       
10
Entrevista realizada em 25-jun-2015.
11
A respeito, ver a crítica feita por Jorge Martins (2015), em seu artigo “Desvio de Finalidade no Plano Urbanístico Regional
de Pendotiba”. Disponível em: <http://www.participa.br/lab-par.ufrj/blog/desvio-de-finalidade-no-plano-urbanistico-
regional-de-pendotiba-niteroi>. Acesso em: 20-fev-2015.
12
Anotações de campo.
   
13  

dos projetos apresentados pela prefeitura. Inclusive, são atores sociais que destacam e exigem
participação social nos debates, mesmo não sendo muitas vezes atendidos.
Destaca-se ainda que há uma certa reserva do poder público em relação aos trabalhos e
pesquisas desenvolvidos pela UFF, que tem tradição e experiência em política urbana. Essa
reserva parece existir por questões político-partidárias.
O fato é que o governo contratou sem licitação a FGV Projetos, para assessorar a
Prefeitura nos trabalhos de revisão do Plano Diretor de Niterói, um custo de cerca de R$ 1,9
milhão.13 O caso ainda não foi sanado junto ao MP.
No que tange ao COMPUR, verifica-se com clareza o que Losurdo (2004) apresenta
como característica da democracia representativa: o “entrelaçamento entre desemancipação e
emancipação”. Ou seja, o protagonismo dos atores estatais, representantes dos interesses do
mercado, não permitem que haja emancipação social, através desse espaço público. O que
resulta numa sobreposição da democracia representativa perante à participativa.

4 Considerações Finais

O que se verifica no COMPUR é que as proposições são exclusivas dos atores estatais,
que representam forte e nitidamente os interesses do mercado.
Não há paridade, visto que os interesses são distribuídos de forma a favorecer os
representados pelo Estado-mercado.
O poder de deliberação não se mostrou ativo, trata-se de um conselho consultivo, que
é utilizado pelo governo para “legitimar” ou legalizar suas ações.
Apresentam com nitidez características firmadas na literatura como: cooptação, troca
de favores, clientelismo, etc.
Os fatores de tensão e conflito existentes surgem a partir de poucos conselheiros, em
geral, integrantes do FOPUR, como os representantes técnicos do setor (IAB) e acadêmicos.
São fortalecidos pelos partidos de oposição. Além disso, através de associações e membros da
sociedade civil que participam por questões pontuais.
No entanto, o arranjo institucional, então existente, não colabora para que haja
resistência às iniciativas dos atores estatais. Visto que nas audiências públicas, por exemplo,
que o governo se ausenta, como ocorreu na audiência pública convocada pela oposição com o
apoio dos movimentos sociais.
Fora a força do Ministério Público, que é para onde convergem as demandas de
oposição ao governo, a sociedade se mostra um tanto quanto impotente quanto ao estado de
coisas que os atores estatais criam. O que traduz uma ideia de judicialização da política, haja
vista que esse mecanismo é sempre muito utilizado e os demais na maioria das vezes
mostram-se ineficazes no curto prazo.
A agenda de políticas públicas de Niterói, pelo exemplo setorial (política urbana), é
determinada pelo mercado.
A forma de conter conflito mostra o uso limitado do COMPUR, com o intuito de
manter o protagonismo dos interesses do capital. Isso viabiliza o monópolio de atores na
representação de interesses (empresários, empreiteiras, etc.).
O processo deliberativo no COMPUR não se sustenta, como na democracia
deliberativa habermasiana, pela deliberação dos indivíduos racionais via amplos fóruns de
debate e negociação.

                                                                                                                       
13
Mais detalhes sobre esse caso da contratação da FGV Projetos poder ser lido na matéria do jornal O Globo, Bairros, 08-
dez-2014. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/mp-investiga-contratacao-da-fgv-sem-licitacao-para-
realizacao-do-plano-diretor-de-niteroi-14755946. Acesso em: 16jul-2015.
   
14  

A Teoria do Agir Comunicativo, de Habermas, possui duas dimensões: a construção


do conceito de mundo social, adquirido reflexivamente; e a ação intersubjetiva, voltada para o
consenso comunicativo. No entanto, o falso consenso que se busca demonstrar no ambiente
do COMPUR mostra que não há um reflexão, uma construção do mundo social pela ação da
intersubjetividade.
A suposição de Habermas de que a argumentação é própria do mundo social, não se
verifica no causa em pauta. Isso põe por terra a ideia de legitimidade na política expressa pelo
autor, que estaria ligada ao processo de deliberação coletiva. Na prática, as decisões de
políticas públicas no COMPUR mostram-se ilegítimas, sob essa ótica.
Como demonstra Vitale (2006), a questão é a lógica do sistema e sua estrutura que se
superdesenvolvem, com o encolhimento do mundo da vida. Esse processo é o que Habermas
denomina de colonização do mundo da vida por imperativos sistêmicos, considerado pelo
autor como uma sociopatologia.
Na prática, o mundo da vida, composto por suas dimensões subjetivas, objetivas e
sociais, são o horizonte e de onde os cidadãos buscam o argumento para a ação intersubjetiva
no espaço público. Se o sistema se sobrepõe a essas dimensões - do sujeito, das suas
necessidades materiais, do trabalho e das suas relações enquanto ser social -, fica a economia
se sobrepondo à sociedade e à política. Enquanto aquela deveria ser uma forma de
aperfeiçoamento, complementar a estes.

Referências Bibliográficas

AVRITZER, Leonardo. Teoria Democrática e Deliberação Pública. São Paulo: Lua Nova,
n. 49, 2000. pp. 25-46. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n50/a03n50.pdf>. Acesso
em: 12jul2014.

FARIA, Cláudia Feres. Democracia Deliberativa: Habermas, Cohen e Bohman. São Paulo:
Lua Nova, n.49, 2000. pp. 47-68. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n50/a04n50.pdf.
Acesso em: 07jul2014.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo: sobre a crítica da razão


funcionalista. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. Vol. 2, 811p.

______. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
vol. II, 1997. pp. 92-98.

______.Três Modelos Normativos de Democracia. São Paulo: Lua Nova, n. 35, 1995.
Tradução: Gabriel Cohn e Álvaro de Vita. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ln/n36/a03n36.pdf. Acesso em: 30ago2014.

LOSURDO, Domenico. Democracia ou Bonapartismo. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ;


São Paulo: Editora da UNESP, 2004. 376 p.

MARX, Karl; e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre:


L&PM, 2014. 132p.

VERGARA, Sylvia C. Métodos de Pesquisa em Administração. São Paulo: Atlas, 2008.

   
15  

VITALE, Denise. Jürgen Habermas, Modernidade e Democracia Deliberativa. Salvador:


Caderno CRH, v. 19, n.48, set.-dez/2006. pp. 551-561. Disponível em:
http://www.cadernocrh.ufba.br/viewarticle.php?id=430. Acesso em: 07jul2014.

                                                                                                                       
1
A renovação do Conselho se dá durante a Conferência Municipal da Cidade, que ocorre a cada 2 anos, sendo permitida sua
recondução, a critério do estabelecido na regulamentação de sua representação (art. 7º do Regimento Interno COMPUR).
2
Entrevista a conselheiro.

   
A Constitucionalização do Financiamento Privado de Campanhas:
legitimação e crise de representatividade

Diego Leonardo Davi Santos Silva (UFAL)


Renato Luis Pinto Miranda (UFAL)

Resumo
O presente artigo aborda algumas das nuances institucionais referentes ao financiamento
das campanhas eleitorais no Brasil. O texto problematiza a consecução da reforma
política em andamento, tomando como objeto a composição desse novo arranjo
institucional e os seus possíveis fatores de influência. A identificação do padrão
organizativo instaurado em meio à constitucionalização do financiamento privado de
campanha ganha centralidade nas análises empreendidas, revelando a interdependência
entre a correlação das forças produtivas e a arquitetura institucional do Estado. A
investigação parte do levantamento bibliográfico acerca dos principais conceitos
atinentes ao financiamento de campanha, passando pela análise da materialidade
institucional do arcabouço jurídico proposto, mediante a identificação das seletividades
estratégicas nele inseridas. Ao final, chega-se ao exame do debate político e das
votações da reforma política, em tramitação. O contexto estudado manifesta indícios de
uma crise de representatividade na democracia brasileira, haja vista a baixa capacidade
de influência dos clamores sociais sobre as manobras legislativas operadas em torno da
questão.

Palavras-chave: Financiamento de Campanhas – Crise de Representatividade –


Reforma Política

1  
Introdução

Desde os primórdios das civilizações políticas representativas, identificam-se


determinações acerca do financiamento de campanha daqueles que se candidatavam ao
exercício de mandatos públicos. Inicialmente, antes da criação dos partidos políticos, o
financiamento era feito pelo próprio candidato, o que acarretava em certa exclusão
daqueles menos abonados do processo de representatividade democrática, pois com o
financiamento independente, apenas uma pequena parcela da população
economicamente privilegiada tinha condições de arcar com o ônus da campanha,
perpetuando-se assim as estruturas de poder e dominação. Com o advento dos partidos
políticos, dotados, inicialmente, apenas da função de arrecadar fundos para as
campanhas, também passaram a surgir outras modalidades de financiamento, para além
dos fundos estritamente privados (SPECK, 2005, p. 125).
Na contemporaneidade, o cenário político nacional revela também forte
interdependência entre as formas de financiamento eleitoral e a consolidação da
representatividade da classe política. Cada vez mais se buscam fontes privadas para o
financiamento de campanhas, desencadeando as conhecidas trocas de favores,
compromissos entre os doadores e futuros eleitos, o que, inegavelmente, incita a prática
de corrupção durante a execução do mandato.
A forma sob a qual se desdobra o financiamento da campanha eleitoral afigura-
se, desse modo, enquanto um dos principais pontos de condicionamento entre a
correlação das forças produtivas e a composição das estruturas públicas. A definição do
papel do Estado vai ganhando assim um cunho político-administrativo cada vez mais
permeado pelos interesses maximizadores daqueles agentes capazes de subsidiar as
campanhas eleitorais. Nesse sentido, o presente trabalho busca investigar, a partir dos
fundamentos da Administração Política, qual padrão organizativo vem sendo delineado
pelos esforços de constitucionalização do financiamento privado de campanha no
Brasil.
Objetiva-se problematizar aqui a discussão sobre a composição desse arranjo
institucional como expressão de uma tendência estrutural de administração das relações
sociais mediante a intensificação dos mecanismos de influência entre atores mais
economicamente privilegiados e os representantes políticos. Esta investigação dedica-
se, portanto, à abordagem dos conceitos e elementos fundamentais da temática,
articulando-os com algumas reflexões sobre a composição institucional do Estado e
alguns dados político-partidários recentes sobre a reforma política ainda em tramitação.
As análises aqui propostas partem de um levantamento bibliográfico sobre o
tema, principalmente nas áreas da Ciência Política e Economia Política, evidenciando os
traços normativos institucionais do Estado nesse âmbito. Seguidamente, a análise
documental percorre os diplomas legais e os textos referentes às propostas de reforma,
identificando o perfil da arquitetura institucional pretendida e, ao final, cotejando-o com
o contexto do debate político e o exame de dados das correspondentes votações. Desse
modo, o presente artigo encontra-se estruturado nas seguintes seções: a primeira traz
alguns conceitos gerais acerca do financiamento de campanhas, fazendo um apanhado
geral sobre a utilização dos seus diferentes tipos (público, privado e misto); a segunda
trata da construção do conceito de representatividade política; a terceira sobre a
composição organizativa do Estado; a quarta apresenta o contexto da reforma política; e

2  
 
por fim, apresentação das considerações finais, juntamente com algumas perspectivas a
cerca do tema proposto pelo presente artigo.

Financiamento de Campanhas

Entende-se por financiamento de campanhas valores econômico doados a


partidos e/ou candidatos para arcar com as despesas no processo eleitoral. No cenário
político atual, a maioria dos países, principalmente os Latino-americanos, utiliza o
sistema de financiamento de campanhas misto, havendo uma predominância da forma
privada de doações, excluindo-se dessa lista a Venezuela que adota o financiamento
puramente público.
Segundo Delia Rubio (2004):
“No que se refere aos fundos privados, à maioria dos
países latino-americanos prevê limites e restrições que se
vinculam à qualidade do financiador (concessionários do
Estado, sindicatos, governos ou indivíduos estrangeiros),
à qualidade das doações (anônimas ou por meio de
procurações “cegas”) e ao montante dos aportes”.

Vejamos agora o quadro 1, limitações quanto ao aporte de doações de fundos


privados em alguns países da America Latina

Quadro 1: Limitações de Doações

Proibição de Proibição de
Limitações
Países Doações Doações
as doações
Anônimas Estrangeiras
ARGENTINA Sim Sim Sim
BRASIL Sim Sim Sim
COLÔMBIA Não Não Não
CHILE Sim Sim Sim
URUGUAI Não Não Não
VENEZUELA Não Não Não
Elaboração: os autores com base em RUBIO (2004)
((2004(2004)
O sistema de financiamento de campanhas, tratando apenas os fundos públicos,
traz em seu aparato institucional-legal um paradoxo democrático, onde optando-se por
privilegiar o mero reconhecimento ou registro de pessoa jurídica como forma de
concessões igualitárias incita o surgimento de novos partidos, podendo ter como efeito a
criação de partidos de fachada, sem o devido comprometimento político-representativo,
com objetivo maior de se apropriar do dinheiro público, tornando-se assim mais um
negócio do que instituição política. Por outro lado, se aplicar a concessão de fundos
unicamente com base na força eleitoral, apesar de corrigir o efeito anterior, favorece o
status quo¹ e dificulta a diversificação do sistema partidário, além de prejudicar a
criação e a manutenção de novos partidos (RUBIO, 2004). Com isso, fica clara a
delicada relação existente entre concessão igualitária de fundos públicos e democracia

3  
 
representativa, e a atenção que se deve ter no balanceamento da distribuição desses
fundos.

Existe no Brasil o chamado Fundo Partidário (FP) que é uma Assistência


financeira aos partidos políticos e única fonte direta de financiamento público, ainda
que não exclusivamente público, dado que parte dos recursos é oriundo de doações de
pessoas físicas ou jurídicas, direto na conta do FP. Este fundo foi criado, em 1965, no
inicio do regime militar, estipulando-se que 20 % de seus valores seriam distribuídos
igualmente entre todos os partidos e 80% conforme a proporcionalidade do partido na
câmara dos deputados. Tal mecanismo tinha a pretensão de viabilizar a equidade nas
disputas eleitorais e de retrair a influência do poder econômico sobre as campanhas,
diminuindo a dependência já existente entre candidatos e recursos privados. Contudo, a
distribuição efetiva do fundo só ocorreu em 1974, vindo, no inicio da década de 1980, a
adotar o regime de distribuição exclusivamente proporcional à representatividade na
Câmara. A Constituição de 1988 assegurou o FP a todos os partidos, independente de
sua representatividade, muito embora o valor determinado para distribuição igualitária
fosse pouco expressivo, apenas 1%, porcentagem que seria majorada para 5%, em 2007,
atenuando-se, de certo modo, tal desigualdade na distribuição dos recursos (SOUSA,
2010)
Ainda sobre o cenário brasileiro, Gomes (2012, p. 292) esclarece que:

“No Brasil, as agremiações políticas recebem recursos públicos e


privados cuja forma de arrecadação submete-se a um complexo
regramento legal, havendo controle quanto à origem, montante que
cada pessoa pode doar gestão e destino que lhes é dado, bem como
sobre a prestação de contas”.

O Brasil adota um sistema de financiamento misto, com predominância de


fundos privados, obedecendo às determinações legais quanto às formas de doações (art.
23 da Lei nº 9.504/97); gastos eleitorais (lei Eleitoral Art. 26); fontes vedadas (art. 24 da
Lei nº 9.504/97); data-limite (art. 20 da Resolução do TSE nº 23.217/2010) e prestações
de conta (art. 29, § 3º, da Lei nº 9.504/97).
Referente à origem dos recursos destinados aos partidos políticos, a
Constituição Federal define como fundo especial de assistência financeira em seu art.
38:

“I - multas e penalidades pecuniárias aplicadas nos termos do Código


Eleitoral e leis conexas;
II - recursos financeiros que lhe forem destinados por lei, em caráter
permanente ou eventual;
III - doações de pessoa física ou jurídica, efetuadas por intermédio de
depósitos bancários diretamente na conta do Fundo Partidário;
IV - dotações orçamentárias da União em valor nunca inferior, cada
ano, ao número de eleitores inscritos em 31 de dezembro do ano
anterior ao da proposta orçamentária, multiplicados por trinta e cinco
centavos de real, em valores de agosto de 1995.”

A lei eleitoral estabelece a proibição de qualquer candidato ou partido político


receber direta ou indiretamente doações de origem estrangeiras, organizações políticas e
sociais, fornecedores do Estado e anônimas. Essas medidas estimulam ambientes mais

4  
 
transparentes no campo eleitoral, favorecendo assim a fiscalização como forma de
prevenção da corrupção, não só por parte do poder público, mas também da sociedade.
No tocante ao financiamento público indireto, além do uso de edifícios
públicos para atividades políticas e do incentivo para divulgação e/ou distribuição de
publicações, o acesso à mídia é um dos mais importantes aspectos das campanhas, haja
vista o amplo poder de difusão e influência dos meios de comunicação em massa, o que
torna de extrema importância para as estratégias de campanha dos candidatos cada
fração de tempo a eles concedida. Assim, a propaganda eleitoral exerce três funções
essenciais: a condição que propicia ao partido ou ao candidato de reforçar no eleitor a
intenção de voto; outra que se refere à capacidade de fazer o eleitor mudar de ideia e,
assim, capturar votos de outro candidato concorrente; e, por fim, a função de
convencimento dos eleitores indecisos (FIGUEIREDO & ALDÉ, 2005). Essa última
função é tão essencial para um candidato em campanha que pode acabar por decidir
uma eleição, dado o percentual de votos brancos e nulos, quase 7%, em relação à
diferença entre os candidatos a presidência na eleição de 2014, cerca de 3%.
A seguir, no Quadro 2, veremos uma síntese das informações relacionadas ao
financiamento de campanhas eleitorais no Brasil:

Quadro 2: Financiamento de campanhas eleitorais no Brasil


Proibições quanto à origem das contribuições privadas

Org. Políticas Pessoas Fornecedores


Estrangeiras Anônimas
e Sócias Jurídicas do Estado
Sim
Sim Não Sim Sim
Financiamento público indireto

Uso de edifícios
Acesso gratuito Incentivos para
Isenção impostos/ públicos para
aos meios públicos divulgação/distribuição Transporte
dispensa atividades
ou privados de publicações
políticas
Sim Não Sim Sim Não
Financiamento público direto

Critério de
Condições de acesso ao financiamento e barreira legal
distribuição

Misto -
Partidos reconhecidos que tenham oficializado candidaturas nacionais para o segmento
força eleitoral
igualitário (30%), e partidos que tenham participado na última eleição de deputados
(95%) e
nacionais para a porção proporcional (70%). Não se fixa limite mínimo.
equidade (5%)

Acesso aos meios de comunicação

Proibição de
Acesso gratuito à Fórmula de distribuição de
propaganda
mídia tempos e espaços
paga na mídia

Um terço por igual entre todos os partidos com candidatos


Sim legalmente inscritos, 2/3 divididos proporcionalmente pelo
Sim
(rádio e televisão) número de representantes de cada partido na Câmara de
Deputados. Em meios públicos e privados.

Elaboração: os autores com base em ZOVATO (2005)

5  
 
 

Representatividade Política

Ao longo do tempo, diferentes posições e análises teóricas vêm sendo lançadas


sobre a conexão entre a representação política e a eficiência das instituições
democráticas. Considerando a premissa básica de que o povo não governa diretamente,
e, portanto, elege um representante como porta-voz da vontade coletiva, a possibilidade
de esse representante se desviar da incumbência inicial que lhe foi atribuída ganha
relevo nos estudos e reflexões na área.
A partir da teorização do contrato social, Thomas Hobbes procura estabelecer os
pactos e acordos firmados pela população e seus governantes, tendo dessa forma dois
aspectos centrais, que são: autorização e delegação. Através da teoria contratualista,
Hobbes, define que por meio do pacto social os indivíduos fundam o Estado, que
institucionaliza a autoridade, e assim criam um modelo de representatividade político-
popular (AIRES, 2009).
Tratando-se da teoria política moderna, dois pensadores destacam-se, John
Locke e Jean-Jacques Rousseau, onde respectivamente um se destaca por defender a
democracia representativa, através da representação político-parlamentar e outro por
defender a democracia participativa (SELL, 2006, p. 103). Rousseau, afirma que:

A soberania não pode ser representada pela mesma razão pela qual
não pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral e a
vontade não se representa. É ela mesma ou é outra, não há meio
termo. Os deputados do povo não são, nem podem ser seus
representantes; não passam de comissários seus, nada podendo
concluir definitivamente. É nula toda a lei que o povo não retificar. O
povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a
eleição dos membros do parlamento; uma vez eleitos, ele é escravo,
não é nada (...). No momento em que um povo se dá representantes,
não é mais livre, não mais existe (1973, p. 113-114).

Ainda sobre democracia participativa rousseauniana, com o clamor dos últimos


anos por mais democracia, resta intrínseca a necessidade de se obtê-la conjuntamente
com a democracia direta. Não basta apenas ser representada, a sociedade deve exercer
seu poder também de forma direta. Por mais dificultoso que pareça a consultiva pública,
principalmente ao se tratar de países com numerosa população, os assuntos de vital
importância, que alterem substancialmente a vida dos seus cidadãos, devem se utilizar
de mecanismos de participação direta, como, por exemplo, as consultas públicas, os
referendos, a participação popular em conselhos, dentre outras formas. Esse conceito
trazido por Rousseau, apesar de já há bastante tempo, não se faz de modo algum
antiquado, mas sim uma concepção político-social que continua fortemente presente na
contemporaneidade, servindo como um ponto referencial de como pode ser conduzida a
democracia pelas nações (BOBBIO, 1987).
Se de um lado da moeda da democracia representativa temos a sociedade, do
outro temos os políticos. A classe política sempre teve grande destaque, por se tratar de
cidadãos que, a partir de um processo, democrático ou não, se tornam figuras públicas,
condicionadas por atividades e obrigações políticas previamente definidas. Segundo

6  
 
Weber, o político profissional deveria ser economicamente dispensável, não
necessitando dessa forma, ter sua atuação voltada para obtenção de recursos em favor
próprio, nem depender do financiamento privado para suas campanhas, a fim de evitar
um comprometimento das forças públicas com o capital privado (1996).
As três dimensões de destaque nas democracias representativas – Estado,
mercado e sociedade –, desenvolvem assim uma relação de dependência e disputa,
culminando, por vezes, numa aliança entre dois desses atores, na busca por se tornarem
a força predominante do sistema. Frequentemente, Estado e mercado acabam compondo
tal aliança. Não se pode ignorar, entretanto, o fato de novas concepções virem
quebrando esse paradigma, principalmente no âmbito do proeminente modelo de
administração denominado Governança Pública. Na definição de Löffer (2001), tal
modelo poderia ser percebido como:

Uma nova geração de reformas administrativas e de Estado, que têm


como objeto a ação conjunta, levada a efeito de forma eficaz,
transparente e compartilhada, pelo Estado, pelas empresas e pela
sociedade civil, visando uma solução inovadora dos problemas sociais
e criando possibilidades e chances de um desenvolvimento futuro
sustentável para todos os participantes. (2001, p. 211 – grifo nosso).

O “tripé” formado pela disposição desse atores, embora aparentemente esboce a


formação de um sistema social mais democrático e participativo, pode ser questionado
em razão da desproporcional capacidade de determinação dos mesmos. A Governança
Pública enquanto formato organizativo proeminente pode revelar-se problemática diante
do poder de influência de alguns atores individuais que, dissimulando uma pretensa
horizontalidade nas interações, empreendem uma subordinação das estruturas públicas,
de modo a garantirem uma composição institucional tendente a garantir seus privilégios.

Composição organizativa do Estado

Inserido numa totalidade de relações e determinações diversas, o ente público


assume feições “adequadas” ao processo de acumulação, em conjunturas historicamente
concretas, através de estratégias e de políticas públicas projetadas em razão de forças
sociais particulares. As formas institucionais estatais constituem-se, logo, em integração
com as especificidades do período, estágio e conjuntura material na qual se realizam,
adquirindo contornos estratégico-relacionais intrínsecos, conforme as peculiaridades
históricas do seu contexto (JESSOP, 2009). Assim, a efetiva apreensão dos reais
condicionantes das ações e das políticas públicas empreendidas pelo Estado deve ser
buscada, primeiramente, na interdependência deste com as relações de produção e a
divisão social do trabalho por ela implicada, vinculando-se, dessa forma, a constituição
material institucional do Estado ao conjunto do campo das lutas sociais e às
contradições do seu movimento (POULANTZAS, 1980).
Os mecanismos de perpetuação das relações de produção e sua reprodução
expressam-se por meio de estratégias legislativas e administrativas incrustadas no
próprio aparato institucional do Estado, as quais inscrevem meios de “seletividade” nas
suas articulações internas e organização das estruturas formais de conservação. Essas
“seletividades estratégicas” vão, ao longo do tempo, institucionalizando as regras
operativas de exclusão, mediante a composição de arranjos, os quais trazem,
intrinsecamente, a definição do que poderia ser considerado como efetivamente
necessário, ou não, na elaboração das políticas públicas, conservando, dessa forma, os
elementos essenciais à reprodução do sistema de acumulação. Delineiam-se assim

7  
 
processos político-administrativos tendentes a garantirem interesses específicos (OFFE,
1974).
Com isso comprometimento do Estado com as forças de mercado acaba por
gerar uma dupla subordinação, onde a priori temos a dependência do candidato
interessado na sua eleição ou reeleição através do financiamento de suas campanhas e a
posteriori com a pressão exercida pelos seus financiadores para se obter isenções
tributárias e subsídios ou políticas favoráveis a seus interesses, limitando dessa forma a
margem de atuação do Estado sobre a economia, políticas públicas e na governabilidade
de um modo geral. Como indício da subordinação dos candidatos as forças de mercado,
no que se refere ao financiamento de campanhas, veremos a seguir os gráficos 1, 2 e 3
que demonstram a relação do custo de campanhas x representatividade:

Gráfico 1 - Percentual de estados em que os dois candidatos a governador com maior votação
tiveram maiores gastos em campanha na eleição de 2014

18.5%  

Sim  

Não  

81.5%  

Fonte: TSE, 2014

Gráfico 2 - Percentual de deputados federais eleitos que tiveram os maiores gastos de campanhas
em 2010

28.1%  

Sim  

Não  

71.9%  

8  
 
Fonte: TSE, 2010

Gráfico 3: Evolução dos gastos de campanhas de candidatos eleitos a presidente


 R$400,000,000.00    

 R$350,000,000.00    

 R$300,000,000.00    

 R$250,000,000.00    

 R$200,000,000.00    

 R$150,000,000.00    

 R$100,000,000.00    

 R$50,000,000.00    

 R$-­‐        
2000   2002   2004   2006   2008   2010   2012   2014   2016  
Fonte: TSE, 2010

Como exposto, podemos notar uma relação direta de dependência entre


candidatos e financiadores, uma vez que a maior parte dos recursos vem de particulares.
Essa relação também denota um condicionamento da atuação dos representantes
políticos, que durante o exercício de seu mandato, parte de suas ações podem ser
voltadas a beneficiar, direta ou indiretamente, seus financiadores, a fim de garantir sua
estabilidade política e já visando sua manutenção futura no cargo.

O contexto da reforma política


É sabido que a reforma política lança uma perspectiva de renovação da relação
entre Estado e Sociedade, relação esta, por vezes, desgastada em meio à constante
superveniência de notícias que mencionam a inabilidade política dos representantes
públicos. Nesse cenário, a reforma sugere um largo diálogo com a sociedade, bem como
a constituição de marcos regulatório na defesa e ampliação da democracia participativa.
Entretanto, para reaver essa representação da sociedade se faz necessário um
rompimento com a subordinação existente entre o Estado e o capital corporativo, o que
até então se desenha como pouco provável, haja vista, justamente, ser tal relação de
dependência instaurada no momento em que os representantes públicos ascendem ao
poder (NOZAKI, 2015).
A atual reforma política em tramitação no Brasil se traduz no conjunto de
propostas de emendas constitucionais (PEC) da legislação eleitoral, com intuito de dar
maior respaldo na vontade do eleitor sobre o sistema eleitoral, em relação ao resultado
final das urnas, a fim de promover maior representatividade, concedendo a sociedade o
amplo direito de participar de forma direta dessas mudanças (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 2013). Esses conjuntos de proposta fazem referencia, dentre outros
aspectos a:

9  
 
i) Definição do sistema eleitoral: proposta que consiste na eleição de
deputados federais, estaduais e vereadores conforme seu número de
votos, sem depender da votação que obteve seu partido. (Proposta
rejeitada);

ii) Coligações partidárias: prevê o fim da união de partidos na disputa


eleitoral e o compartilhamento de votos obtidos por seus candidatos,
evitando assim que determinado candidato pouco votado seja eleito
devido sua coligação conseguir muito votos. (Proposta rejeitada);

iii) Cláusula de barreira: propõe uma restrição ao fundo partidário, passando


a ter direito aos recursos do FP e do tempo em rádio e tv apenas aos
partidos que tenham concorrido com candidatos próprios à câmara dos
deputados e tenham eleito pelo menos um representante no congresso
nacional. (Proposta aprovada em primeiro turno);

iv) Periodicidade das eleições: ser estabelecida eleição única para


presidentes, governadores, prefeitos deputados e vereadores a partir de
2022. (Proposta rejeitada);

v) Reeleição: fim da reeleição para presidentes, governadores e prefeitos.


(Proposta aprovada em primeiro turno);

vi) Voto: estabelece o voto facultativo para todos os cidadãos, independente


de sua idade. (Proposta rejeitada);

vii) Tempo de mandato: define como tempo de mandato para todos os cargos
eletivos – Presidente, Governador, Prefeito, Senador, Deputado Federal,
Deputado Estadual e Vereador cinco anos. (Proposta aprovada em
primeiro turno);

viii) Idade mínima para cargos, diminui a idade mínima de Governador e vice
para 29 anos. (Proposta aprovada em primeiro turno);

Além dos aspectos acima citados, uma das propostas traz a inclusão na
Constituição Federal do financiamento privado de campanhas, que até então vem tendo
questionada a sua constitucionalidade. Um dos pontos de questionamento faz referência
a doações de empresas, pois, segundo o entendimento do Procurador-Geral da
República, Rodrigo Janot, pessoas jurídicas não são cidadãos, não detém direito de
sufrágio e não possuem direitos políticos, sem qualquer condição, portanto, de interferir
diretamente no processo eleitoral. E como demonstrado nos gráficos 1, 2 e 3, o
custeamento das campanhas influencia diretamente nas eleições. Ainda segundo Janot:

Não há fundamento para que pessoas jurídicas, cujo objeto social é


estranho à participação no processo político, geralmente voltada à
consecução de lucro, tenham a possibilidade de interferência direta no
processo eleitoral de maneira a potencializar seu desequilíbrio e

10  
 
afetar-lhe o fim e ao cabo a própria legitimidade (SECRETARIA DE
COMUNICAÇÃO SOCIAL, 2013).

O tema também é polêmico devido ao grande número de casos de corrupção


envolvendo doações de campanhas eleitorais, a exemplo da “Operação Lava Jato” que
constatou que dos 32 partidos políticos registrado no Brasil, 28 receberam doações das
empresas investigadas na operação. Notória, portanto, se faz a influência político-
econômica exercida pelas grandes corporações. Não só no Brasil, mas ao redor do
globo, a proporção do poderio dessas corporações frente aos Estados nacionais mostra-
se cada vez mais perceptível.2 Conforme demonstra o estudo feito pela Conferência das
Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento, das 100 maiores entidades
econômicas do mundo, 29 eram empresas no ano de 2000.
A proposta de inclusão do financiamento privado de campanhas na
Constituição Federal (PEC 182/07), de autoria do deputado Celso Russomanno (PRB-
SP), foi recentemente aprovada na câmara dos deputados, após a manobra política do
presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que tinha feito um acordo político de tratar o
tema em seção única, devido à expectativa de aprovar com folga do projeto.3 No
entanto, com apenas 266 votos favoráveis, não foi possível aprovar o projeto, e com isso
Cunha recuou no acordo e organizou nova votação, pressionando seus aliados a votarem
a favor, resultando na aprovação com 330 votos, 22 a mais do que o necessário. As
únicas legendas que votaram totalmente contra foram o PT, PPS e o PCdoB e também o
PDT quase em sua totalidade. Um dos argumentos usados por Cunha para angariar
votos, segundo a reportagem da Folha, foi a possível aprovação de regras que
endureceriam a subsistência dos partidos “nanicos”.
A pressão do Presidente surtiu notório efeito, tendo nada menos que 71
deputados, mudando seus votos, literalmente do dia para a noite, uma vez que a
aprovação ocorreu 1 dia depois da primeira seção que não conseguiu aprovar o projeto,
sendo que 15 deputados de partidos pequenos (PEN, PHS, PMN, PRP, PRTB, PSDC,
PSL, PTC, PTdoB, PTN e PV) mudaram seus votos.  
Ainda na mesma data foram apreciadas e negadas as propostas de emenda
constitucional (PEC) do deputado Leonardo Picciani (PMDB-RJ) que previa o
financiamento exclusivo de campanhas com recursos públicos e deputada Jandira
Feghali (PCdoB-RJ) que previa a doação de pessoas físicas aos partidos políticos

Considerações Finais
Sob o ponto de vista da Administração Política, pode-se perceber a coordenação
de esforços inerente às relações sociais como parte de um processo que permeia a
composição das estruturas públicas, permitindo a inserção de interesses diversos na
pauta da reforma política. A constitucionalização do financiamento privado de
campanha vem a legitimar, nesse sentido, a inserção de interesses individuais privados
no delineamento do aparato estatal brasileiro, ampliando-se os mecanismos de
influência de atores sociais já economicamente fortalecidos.
Tal padrão organizativo esboça uma crise de representatividade política na
sociedade brasileira, na medida em que, mesmo em meio a fortes pressões populares
acerca da questão, a classe política não demonstrou qualquer constrangimento em,
repentinamente, mudar de posição no decorrer da votação. O clamor social por mais

11  
 
transparência nos processos eleitorais acabou sendo preterido em prol de forças e
coalizões pouco explícitas. Perde-se assim a oportunidade de implementação de uma
reforma política discutida sobre bases claras e voltada para interesses efetivamente
coletivos. O que parece cada vez mais perceptível diante disso é o fato de que, quanto
maiores os percalços para a reforma política, mais evidente se mostram a importância da
sua realização.
Evidenciada o quão nebulosa pode ser a compreensão da presente temática,
sugere-se como caminho de aprofundamento para as investigações subsequentes a
mensuração objetiva da correlação entre os valores investidos nas campanhas e as
práticas adotadas após as eleições. A análise minuciosa de tais resultados face ao perfil
das licitações posteriormente realizadas pelos governos, seguida de uma investigação
dos respectivos contratos firmados parece um bom percurso a ser trilhado, tanto pelos
estudos da área como pelas entidades político-jurídicas de controle.
Se a composição desses arranjos normativos vem sendo amplamente
influenciadas pelo capital corporativo, a partir da inserção de seletividades estratégicas
na materialidade institucional do Estado, uma das alternativas parece estar na também
inserção de novas seletividades estratégicas nesses arcabouços, porém, desta vez,
seletividades que visem garantir um escopo de possibilidades condizentes com a
consolidação democráticas e tendentes a neutralizarem os mecanismos de atuação e
influência de setores mais privilegiados da sociedade.

Notas
¹ Status quo é um termo do latim que significa o estado atual das coisas ou no mesmo estado que antes.
O status quo diz respeito a fatos, situações, coisas, ambientes e conjunturas. Geralmente o status quo esta
relacionado a expressões como: manter o status quo, defender o status quo, mudar o status quo e etc.
 
2
  Os partidos políticos são apontados como as instituições que menos inspiram confiança para a
sociedade, como demostra a pesquisa realizada pelo Latinobarometro 2004, em parte essa desconfiança
deve-se a improdutividade da classe política, e sua aliança com o capital privado, como será apresentado
no decorrer do artigo.
3
Folha de São Paulo, Reportagem: Câmara decide incluir na Constituição financiamento privado das
campanhas. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/1634650-camara-decide-
incluir-na-constituicao-financiamento-privado-das-campanhas.shtmlt

Referências

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Grupo de trabalho destinado a estudar e elaborar


propostas referentes à reforma política e à consulta popular sobre o tema.
Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1176709&fi
lename=PEC+352%2F2013>. Acesso em 21 de Maio 2015.

12  
 
FIGUEIREDO, M. & ALDÉ, A. Intenção de Voto e Propaganda Política: efeitos e
gramáticas da propaganda eleitoral. In: Actas do III Sopcom, VI Lusocom e II
Ibérico – vol. IV, 2005. Disponível em: <ttp://bocc.ubi.pt/pag/figueiredo-alde-intencao-
voto-propaganda-politica.pdf>. Acessado em 25 Maio, 2015.

GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 8. Ed. São Paulo: Atlas, 2012.

LÖFFLER, Elke. Governance: Die neue Generation von Staats- und Verwaltungs-
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<http://plataformapoliticasocial.com.br/qual-e-a-crise-politica-brasileira-hoje/>. Aceso
em 28 Maio 2015.

OFFE, Claus. Structural Problems of the Capitalist State: Class rule and the political
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RUBIO, Delia Ferreira. Fundos públicos versus fundos privados. Artigo Científico.
Disponível em<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
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SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. PGR considera inconstitucional


financiamento de campanhas eleitorais por pessoa jurídica. Disponível em:
<http://noticias.pgr.mpf.mp.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_constitucional/pgr-
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juridica>. Aceso em 10 Maio. 2015.

SELL, Carlos Eduardo. Introdução à Sociologia Política: política e sociedade na


modernidade tardia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

SILVA, SUELLEM HENRIQUES DA. Democracia e representação política: um


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SOUZA, Cíntia Pinheiro Ribeiro de. A evolução da regulação do financiamento de


campanha no Brasil (1945-2006). Disponível em: <http://www.tre-
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2006/indexb7dc.html?no_cache=1&cHash=9e86778cb4f0a1ef62855dfd15e012f4>.
Acesso em 10 Maio 2015.

13  
 
SPECK, Bruno W. (2006). O financiamento de campanhas eleitorais. in AVRITZER,
Leonardo e ANASTASIA, Fátima, Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte: Ed.
FMG, PP. 153-158.

WEBER, Max. A Política como Vocação. In: WEBER, Max. Ciência e Política, Duas
Vocações. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. p. 53-124.  

14  
 
A relação entre ciência e ideologia na crítica da administração política

Leandro Theodoro Guedes (UFJF)

Resumo:
O objetivo deste artigo é contribuir para a discussão da relação entre ciência e ideologia na
crítica da administração política a partir de uma apreensão marxiana do problema, sob o
prisma ontológico. Mostra-se que esta discussão percorreu um longo percurso ao longo da
história. Expõe-se primeiramente a consensualidade dentre os autores da administração
política, que predominantemente compreendem a ideologia negativamente, ora identificando-
a à falsidade, ora ao sistema de ideias do adversário. De uma maneira geral, contrapõem-na à
ciência. Ontologicamente, verificamos que o cerne do problema está na função social que uma
ciência pode ou não operar na realidade concreta, podendo desta maneira articular-se também
como ideologia. Por fim, a pesquisa mostra que a administração política porta uma ideologia
intermediária, que desvela os enlaces fundamentais do capitalismo, mas que não oferece
resposta prática para a superação dos problemas.

1. Introdução

O ensaio teórico é uma pesquisa que tem como proposta fazer uma discussão sobre a
relação entre ciência e ideologia na crítica da administração política tendo o critério
ontológico como força motriz. Conscientes de que este debate se encontra devidamente
aberto, buscamos assim contribuir para a crítica deste campo trazendo esta nova perspectiva.
Para tal estudo será necessária uma análise de textos dos autores aqui considerados
expoentes na administração política, Santos e Gomes, bem como Caribé. Tendo este último
realizado estudos pontualmente pertinentes a este tema.
É sabido que a delimitação do campo da administração política propiciou a abertura
de uma série de discussões ligadas à organização do trabalho e distribuição da riqueza, que
levaram adiante a elaboração de um projeto de desenvolvimento nacional, discussões que
extrapolam os aspectos mais restritos ligados à chamada administração profissional (Santos,
2001). Este empenho toma forma concreta na maioria dos trabalhos publicados sobre o tema
na Revista Brasileira de Administração Política. Ao mesmo tempo, é notável o esforço dos
autores para elevar este conjunto de reflexões à condição de ciência. Dito de outra maneira,
ressaltamos aqui o esforço para a constituição da cientificidade da administração política,
matéria recorrente que inclusive sustentou a criação de tal revista.
A temática da relação entre ciência e ideologia, sobretudo no decorrer do século XX,
tem rendido intermináveis discussões e um extenso número de páginas, acrescem-se a isto as
tendências epistemologizantes que predominam os debates da administração política. Estas
razões são suficientes para justificar a importância deste estudo. Não é da alçada de nosso
texto, porém, empreender uma discussão pormenorizada da ciência ou da ideologia
isoladamente. O escopo deste trabalho está delimitado no interesse de avaliar a maneira pela
qual a sistematização científica atingida pela administração política até o presente momento
se articula como ideologia.
A ideologia, por seu turno, protagoniza uma miríade de polêmicas que se acentuaram
fortemente durante o século XX. No positivismo, por exemplo, a exigência de uma ciência
neutra e isenta de juízos de valores a separa da ideologia, que poderia dar algum viés político
ou moral a esta ciência, culminando então numa antinomia entre ideologia e ciência (Löwy,
1991). Esta conceituação adentrou o marxismo na medida em que o próprio Engels trouxe à
tona conexões da ideologia com a falsa consciênciai. Outros, como Althusser e seu corte
1
epistemológico, seguiram na mesma direção, tomando a ideologia como correspondente a
falsidade, mistificação, imaginário e outros termos que seguiam uma direção contrária àquilo
que a ciência se proporia, (Vaisman, 1996). Decerto, grande parte dessas polêmicas habita
em correntes diversas do marxismo, de tal sorte que o volume de discussões perfaz um
espiral de debates que, por sua vez, acabam por distanciar-se diametralmente do tratamento
autêntico que Marx havia dado ao problema. O próprio filósofo, em seu trabalho mais
científico, O Capital, recusa o pressuposto positivista que uma ciência deve se blindar de
posições políticas, ao dizer que a obra que publicara “só pode representar a classe cuja
missão histórica é o revolucionamento do modo de produção capitalista” (MARX, 2013, p.
87).
Analisaremos, portanto esta temática, matrizando a construção da categoria da
ideologia sob o prisma marxiano. Nesse sentido, constatou Vaisman (1996) que na obra do
autor alemão é possível encontrar vários elementos que contribuem para uma apreensão
desta categoria. Contudo não existe uma sistematização teórica a respeito do tema, o que não
retira da categoria sua importância em relação à causalidade da atividade humana sobre a
natureza e sobre a própria humanidade. Este resgate, por conseguinte, nos será elementar
para apreender como se dá a própria articulação entre ciência e ideologia neste prisma.
Feitas estas considerações, iniciaremos nosso trabalho expondo o caminho trilhado
por Santos e Gomes no intuito de construir uma cientificidade para a administração política,
em seguida, tentaremos reunir elementos que mostrem tanto nos seus escritos quanto nos de
Caribé a existência ou não de uma relação entre ciência e ideologia. Na tentativa de oferecer
uma contribuição mostraremos como esta relação se articula ontologicamente, na medida em
que exerce uma função social na luta de classes, (Lukács, 2013). E partindo da classificação
de Mészáros (2008), mostraremos em qual posição ideológica (conservadora, intermediária
ou revolucionária) se enquadra a administração política.

2. Ciência e ideologia na administração política

O debate acerca da cientificidade da administração política ocupa posição central em


uma profusão de textos que ao longo da primeira década do século XXI contribuíram para
delimitar seu campo e avançar nas suas compreensões epistemológicas. Este esforço é
envolvido por um alto grau de dificuldade em razão de se tratar de um tema exiguamente
examinado na história da administração, como nos mostra, por exemplo, Santos (2009).
Autor que certamente ocupa posição de destaque dentre os intelectuais deste campo.
Reconhecidamente, este autor “detém-se, com mais acuidade, nos aspectos epistemológicos
da administração política” (GOMES, 2012, p. 14). Seguindo a argumentação de Santos, a
tentativa de dar um passo adiante para esta construção sistemática exigia a construção de
bases teórico-metodológicas para o campo, “que orientassem nossos estudos, a construção
de uma epistemologia que nos possibilitasse melhorar o nosso entendimento empírico da
trajetória do capitalismo” (SANTOS, 2009, p. 921).
Em suma, sua tentativa tem por objetivo “o aprofundamento das bases de definições
conceituais” (SANTOS, 2001, p. 937). Isto vai dar o tom da imposição do rigor científico.
Este processo tem por objetivo prático, conforme afirma Gomes (2012, p. 15), “concentrar-
se e aplicar o método-analítico da administração política para compreender como se
desenvolve a dinâmica da gestão das relações sociais de produção...”.
Em decorrência, a constituição daquelas bases, portanto, tornar-se-ia possível a
realização do objetivo epistemológico da administração política, qual seja, “ser um campo de
conhecimento (produzido historicamente), dotado de finalidade e objetividade que permitem
a sua transmissão, e que está estruturado através de método, teorias e linguagens próprias,
que visa compreender e orientar as atividades humanas”. (SANTOS, 2009, p. 926).
2
Em primeiro lugar, pode-se acompanhar em materiais diversos, a preocupação dos
autores no que cerne a delimitação do objeto. Trata-se de um aspecto primaz na fundação
das bases dessa epistemologia. Dentre os elementos que protelam esta delimitação está a
falta de preocupação em sistematizar cientificamente a administração, visto que “os
estudiosos pouco se importam com isso” (SANTOS, 2001, p. 61), acentuando a tendência
para a obtusidade, tendo em vista a produção elevada de “manuais a-históricos, acríticos e
destituídos de sujeitos com teorizações vulgares e efêmeras” (GOMES, 2012, p. 8). O outro
elemento reside no fato de que o desenvolvimento das teorias da administração, no curso da
história, tem apresentado consensualmente a organização como objeto da administração.
Santos (2001) enfrenta esta tese, apresentando problemas nesta definição, posto que a
organização não é um objeto exclusivo à administração. Dessa maneira conclui-se que: “do
ponto de vista do enquadramento científico, a administração é um ‘campo disciplinar’
inteiramente indefinido” (SANTOS, 2001, p. 61).
Reconhecendo a necessidade de redefinição do objeto, temos que, “é a gestão e não a
organização que caracteriza o objeto e que dá autonomia à administração enquanto um
campo próprio do conhecimento/.../ Assim, cabe à administração estruturar formas de gestão
que viabilizem os objetivos da organização” (SANTOS, 2009, p. 930). Este esforço de
Santos certamente deve ser ressaltado. Sua delimitação epistemológica do objeto é
contributiva na medida em que proporciona o entendimento da administração enquanto
pratica social e avança na elaboração de teorias de potencial efetivação quando mediatizadas
por esta prática.
O autor considera, portanto, que tendo a gestão como ponto de partida, a
administração política surge como um campo específico com a finalidade de conduzir essa
gestão de maneira que se chegue à consolidação do bem-estar da humanidade. Nesse sentido,
a empresa de dar à administração uma nova significação, incorporando elementos críticos e
menos restritos, orientando-se pela finalidade supracitada, é confirmada por Gomes:
Esse movimento denominado “administração política” objetiva ultrapassar os
horizontes limitados de investigação que dominam a área de conhecimento,
extrapolando, também, os limites impostos pela incapacidade, ou desinteresse, da
ciência econômica (economics) contemporânea de trabalhar em uma perspectiva
mais abrangente e interdisciplinar (GOMES, 2012, p. 9).

Vimos assim que a construção da epistemologia é de grande importância para os


autores da administração política na consolidação de sua cientificidade. O trabalho de
Santos, reverberado por Gomes evidencia claramente esta preocupação. Contudo, no
processo de delimitação do objeto, campo e metodologia não é possível encontrar nas
determinações de Santos uma relação direta com a ideologia, ao menos não podemos
encontrar enunciados dessa ligação na letra de seu texto. Não significa, porém, que a
ideologia é uma categoria ausente em todo o conteúdo elaborado por este e outros autores.
N’O Manifesto da Administração Política para o Desenvolvimento do Brasil,
podemos finalmente identificar a ideologia, e recorrentemente. Cabe dizer que o objetivo do
autor no material em tela já se põe de maneira a encaminhar possíveis ações contributivas da
administração política em direção a uma sociedade mais igualitária, e não mais construir a
sustentação epistemológica para o campo. Veremos, contudo, que a tematização da ideologia
vai confirmar as posições epistemologizantes assumidas pelo autor nos textos analisados
anteriormente. A tendência de apreender a ideologia como falsificadora, e portanto, oposta à
ciência, se materializa no ideário de Santos, é isto que se depreende quando lemos a seguinte
passagem
No setor intelectual, o campo das ciências sociais, por exemplo, é pródigo em

3
ideologizar o processo investigativo e, assim, falsear a realidade, particularmente
quando se trata da abordagem empírica: é comum depararmos com afirmações
livres do tipo: dada a crise da economia keynesiana ou, quando não, dada a crise
do Estado de Bem-Estar keynesiano ou a crise fiscal do Estado ou, ainda, dada a
globalização, e assim por diante. (SANTOS, s/d, p. 3)

Analisando esta passagem, podemos ver de maneira suficientemente nítida que a


acepção tomada pela categoria pode ser representada por dois momentos facilmente
decantados. O primeiro deles diz respeito ao distanciamento entre a ideologia e os nexos
reais. A categoria é sentenciada como falsificadora, deteriorando a investigação das ciências
sociais. Esta acepção aproxima o autor coincidentemente ou não das correntes positivistas. A
outra acepção tomada pela ideologia, atestando a luta de ideias posta em tela, é o fato de ser
considerada ideia do adversário. Nesse caso, que também não é novidade, a origem deste
significado remonta a tempos ainda mais remotos, tendo sido usada em grande monta em
discursos políticos, por exemplo, nos de Napoleão Bonaparte, (Vaisman 1996; Chauí, 2008).
Sinteticamente, ambas as acepções cujos enlaces mais centrais não são de todo distantes,
mostram que, para o autor, categoricamente a ideologia possui uma acepção negativa,
tratando-se de um conceito que obstrui o desvelamento das conexões reais. Esta é sua
característica mais intrínseca.
A demarcação dessas duas acepções é fundamental, pois em passagens seguintes elas
vão se alternando, sendo portanto, reafirmadas. A questão da falsidade vai se deslocando
para um caráter ainda mais obscurecedor, e de maneira acabada, adquire traços de
dogmatismo, pois lemos que “em verdade, trata-se de uma ideologia que passa a ser
venerada como os dogmas religiosos, que não podem receber qualquer contestação.”
(SANTOS, s/d, p. 3). Ao mesmo tempo, no embate teórico entre o keynesianismo e o
neoliberalismo, a ideologia é usada para condenar o sistema de ideias do adversário, neste
caso, o ideário neoliberal. Isto aparece em variados momentos: “Portanto, esse é um período
marcado por um discurso ideológico construído e posto em prática pela corrente neoliberal e
que assegura a ineficiência dos serviços públicos gerenciados pelo Estado” (SANTOS, s/d,
p. 13), ou ainda: “Esse contexto foi criado devido às sucessivas crises do capitalismo,
encaradas ideologicamente como crise do Estado” (SANTOS, s/d, p. 13).
Nota-se porém, que em momentos esparsos, as constatações evidentes nas passagens
anteriores, dão lugar a uma acepção não tão negativa da categoria. Quando o problema da
luta de classes é situado pelo autor, por exemplo, a luta ideológica passa a ser reconhecida:
“Nas relações capital/trabalho, a luta política e ideológica tem como centralidade a disputa
pelo excedente.” (SANTOS, s/d, p. 26). Em outros momentos a ideologia simplesmente
toma contornos de sistema de ideias. Isso aparece, por exemplo, na afirmação do autor
segundo a qual, este está imbuído na “construção de uma ideologia protetora dos interesses
da sociedade em sua totalidade; e o comprometimento do trabalho de todos nós com o
Projeto da Nação” (SANTOS, s/d, p. 24, grifo do autor). Ou, adicionalmente, quando
mostra que “A ‘administração política’ é entendida como o arranjo das possibilidades
técnicas, políticas e ideológicas existentes a partir das relações sociais de produção, e que
permitem definir a melhor concepção de gestão na execução do projeto de nação”
(SANTOS, 2002, p. 935). Nesse último caso, a ideologia nomeia justamente o ideário
necessário para a prática da administração política, perdendo-se de vista sua avaliação
epistemológica (a questão do falso). Em todos os trechos citados neste parágrafo, é possível
identificar que a ideia de ideologia do autor tende a tomar contornos outros, distantes da
ideia de falsidade tão presente em outros momentos. Assim, não podemos dizer que a
ideologia aparece para Santos, somente assumindo aquele caráter negativo. É bem verdade
que a identificação com falsidade e com as, por assim dizer, ideias do adversário são
elementos marcantes, porém, é preciso admitir que em outros momentos, foi possível
4
registrar a categoria tomando características consideravelmente diferentes.
Cabe destacar que a relação entre ciência e ideologia, não adquire para Santos, uma
importância fundamental. Isso acontece, em primeiro lugar, em razão de um aspecto mais
amplo, que se explica pelo fato de seus escritos voltados para a cientificidade, em que está
detalhada a construção epistemológica da administração política, não conterem uma
tematização da categoria da ideologia; e em segundo lugar, em razão de um aspecto mais
específico da própria ideologia, pois quando esta aparece, toma uma série de significações e
se apresenta de maneira muito geral e oscilante, assim, o autor não tem como ponto de
partida um critério que delimite uma compreensão do problema. Estas constatações nos
permitem compreender que a concepção de ideologia em Santos, se configura de um lado,
compondo o arcabouço teórico do adversário, ou meramente servindo para nomear um
sistema de ideias (como a própria administração política); e de outro, há uma compreensão
ligada à falsidade, ao pensamento que mistifica o real, ou processo que inviabiliza a
apreensão autêntica da empiria. Mas estes múltiplos significados aliados ao emprego da
categoria de maneira não tão rigorosa (visto que a própria administração política pode se
articular como ciência e ao mesmo tempo portar uma ideologia protetora dos interesses da
sociedade), nos impedem de rastrear efetivamente quais fontes exerceram uma influência
mais decisiva neste autor. A atribuição da ideologia à falsidade encontrada na maior parte
dos textos indica que não existe uma relação de coexistência desta categoria com a ciência,
havendo aí uma cisão, ou uma relação oposta entre estas duas categorias.
Caribé, por sua vez, é um dos poucos autores que se debruça diretamente sobre a
relação entre ideologia e ciência, tendo em conta os estudos da administração política, dando
inclusive, mais atenção à elaboração da ideologia. No artigo Ciência ou ideologia? A
constituição do campo da Administração Política, mostra que esta área do conhecimento é
construída cientificamente com alicerces na “racionalidade instrumental”, e no amálgama de
saberes empíricos e teóricos que cingiam o campo da administração anteriormente. Ao
mesmo tempo, esta construção é premida por aspectos ideológicos que escondem a realidade
para garantir o controle da classe dominante (Caribé, 2008). Aceitando, assim, os preceitos
epistemológicos cunhados por Santos e Gomes.
Contudo é justamente a atenção que dedica à relação entre ciência e ideologia que
nos move a empreender uma análise mais profunda em seus escritos.
Com base em uma nota de rodapé contida neste artigo, é possível encontrar uma
indicação de que o artigo supracitado se trata de uma síntese do primeiro capítulo da
dissertação de mestrado do mesmo autor intitulada Das fábricas ao estado, do estado às
fábricas: a formação dos gestores enquanto classe. O acesso a este texto nos permite
delinear com mais precisão os achados do autor ao tema que nos é precípuo. Tendo como
ponto de partida a própria crítica à administração, e perspectivando sua análise ancorado na
luta de classes, afirma que “a Administração se consolida muito mais como uma justificativa
para a dominação de uma classe sobre os trabalhadores do que como ciência. Daí a
quantidade de discursos ideologizados, sem muita fundamentação científica, mas de grande
utilidade prática.” (CARIBÉ, 2006, p. 10). Este trecho já dá o tom da crítica do autor,
mostrando que a ideologia tem servido à dominação de uma classe (não necessariamente a
classe dos proprietários, mas uma classe à parte, a classe dos próprios gestores, nas suas
palavras), confere assim à categoria um efeito marcante na prática, ou seja, efeito que
mantém e controla os trabalhadores na condição de dominados. Temos em mente que
quando o autor se refere à administração, não excetua a administração política:
“Administração Política e a Profissional nada mais são do que partes do mesmo processo.
Estão completamente relacionadas e uma só existe em função da outra.” (CARIBÉ, 2006, p.
16).
Disso segue que por mais diferentes que possam ter sido as abordagens de
5
organização da produção ao longo da história, elas sempre foram elaboradas por uma classe
definida, e, por conseguinte, “as diferenças entre essas concepções, em princípio tão
antagônicas, caem por terra quase completamente” (CARIBÉ, 2006, p. 10).
Querendo dizer assim, que por mais que exista uma miríade de maneiras de gerir a
produção, essencialmente todas essas formas habitam um lugar comum, todas emergem da
classe dominante. Desta forma, esta maneira de se organizar a produção deveria ter sido
problematizada pelas classes subalternas, o que, todavia, não tem sido feito, especialmente
pelo fato deste aspecto, o gerir, ser relegado constantemente pela crítica. Nessa direção,
afirma o autor:
essa marginalização nos impediu, enquanto a classe não possuidora dos meios de
produção, de realizar uma crítica mais elaborada ao “como foi feito”, nos
obrigando, historicamente, a praticar os mesmos equívocos – ou, analisando de
forma mais distante: levou-nos a perpetuar formas de dominação mesmo quando
no discurso o caminho apontava para o inverso. (CARIBÉ, 2006, p. 10)

Ressalta ainda a necessidade histórica desta classe trabalhadora em elaborar maneiras


de gestão que superem a administração tal qual se desenvolveu no capitalismo, nas suas
palavras, a auto-organização do proletariado. Isto se desdobra também na crítica
empreendida pelo autor à administração política que ao reter aspectos da administração
profissional, pereniza esta dominação (Caribé, 2006).
Apontamos estes traços preambulares para mostrar que além de seguir a tendência do
ideário da administração política de pensar a ideologia cindida da ciência, essa categoria,
aqui particularmente analisada sob a luta de classes, adquire também um papel de dominação
inerentemente ligado às formas de administração da produção mais comuns. Assim sendo,
na sequência, podemos reter mais elementos no tocante ao tratamento do autor à categoria da
ideologia. Desta maneira afirma o autor que
O foco deste trabalho, no geral, é buscar os fundamentos da administração
enquanto ideologia. Na verdade, achamos que a administração é muito mais isso
do que qualquer outra coisa. Mas é verdade também que qualquer ideologia tem
sua base na realidade e serve para explicar pelo menos a realidade daqueles que a
utilizam como instrumento de dominação (CARIBÉ, 2006, p. 24).

Esta passagem é importante para delimitar a ideia do autor de que a administração é


instrumento de dominação, logo ideologia. Não é à toa que o autor “se preocupa mais com
os efeitos da Administração enquanto dominação do que como ciência” (CARIBÉ, 2006, p.
34). Ao afirmar que as ideologias possuem sua base na realidade, o autor indica que possa
existir certo grau de reciprocidade entre este elemento subjetivo e a objetividade. Porém não
é possível afirmar se esta esquematização se aproxima de uma ontologia, dado que o autor
não avança nesta elaboração e confirma a posição estática da ideologia enquanto expressão
de uma determinada classe.
Seguindo a argumentação do autor, servindo estritamente à classe dominante, e
reafirmando acima de tudo, os pressupostos de dominação da administração, a ideologia, é
também fundamental para restringir a abrangência do estudo das escolas da administração
que tende a certa obtusidade, relegando, por exemplo, a receptividade da crítica marxista
neste campo. É o que diz quando afirma que, “A negação da possibilidade da abordagem
marxista para os Estudos Organizacionais na maioria das escolas de administração não só
mostra a opção ideológica e de classe deste campo como também impede uma melhor
delimitação do mesmo” (CARIBÉ, 2006, p. 28).
Decerto que a análise da ideologia é aqui respaldada na luta de classes, podemos
observar a aproximação de Caribé com Marx quando deixa claro que o filosofo alemão
6
sustentará os elementos mais importantes para seu estudo da ideologia “faz-se importante
entender o que é ideologia – conceito que de tão usado e gasto se encontra sob inúmeras
interpretações. Para tanto, trazemos as ideias de Marx e Engels” (CARIBÉ, 2006, p. 34).
Portanto, deixando claro que não é de seu interesse partir de conceituações
apriorísticas, mas da própria história concreta da humanidade, explica que “compreender o
que é história para Marx e Engels é de fundamental importância para compreendermos a
ideia de ideologia /.../. O que importa para Marx, então, é a atividade social, a práxis, a
própria vida na prática e a forma como os homens se relacionam” (CARIBÉ, 2006, p. 34-5).
Assumindo a preponderância da atividade prática sobre a realidade, e entendendo que esta
atividade é fundamental na constituição da consciência, o autor dá seguimento mostrando
que “A consciência é resultado da atividade social, da práxis. Cada pessoa (ou grupo social)
possui sua própria prática social, oriunda do seu modo específico de vida e por isso possuem
diferentes consciências.” (CARIBÉ, 2006, p. 36). E assim, a ciência vai aparecer para revelar
estas relações como são. A ideologia, sob esse critério, tem função imediatamente contrária à
ciência “Toda forma de conhecimento que não tem objetivo mostrar a realidade (e
lembramos que para Marx a realidade é a luta de classes) é uma ideologia, oposto de
ciência.” (CARIBÉ, 2006, p. 36). A principal razão, portanto para a decorrência desse
processo é que nas ideologias, a subjetividade é preponderante à prática “As ideologias
constroem o real através das ideias, substituindo o primeiro pelo segundo” (CARIBÉ, 2006,
p. 36). Dessa maneira invertem a relação de preponderância estabelecida pela objetividade, e
esta inversão obstrui a capacidade do homem em compreender os nexos reais das coisas,
elidindo-os. Mais adiante, o autor tenta ainda expor o efeito que a ideologias causam na
formação das consciências, afirmando que
as ideias dominantes de uma sociedade não é o conjunto de todas as idéias
existentes na própria, e sim, somente, o conjunto de idéias da classe dominantes,
fruto de sua própria realidade. Todos os membros então passam a ter a mesma
consciência da classe dominante, mas de fato essa consciência só é consciência
para a classe dominante, pois para esse grupo há uma base material. Para os
dominados essa “consciência” não passa de ideologia, pois não tem ligação com
sua realidade. (CARIBÉ, 2006, p. 36)

Ao dizer que a posição de classe dominante é suficiente para construir uma


consciência unívoca e geral, correspondente a esta classe dominante, Caribé sugere da
mesma maneira que a luta de ideias é natimorta, pois existe uma consciência geral que
impede a articulação de qualquer espécie de ideia insurgente. Isto contradiz o próprio texto
do autor, quando diz que as pessoas possuem diferentes consciências, e o próprio ideário do
autor erigido sob a perspectiva da classe trabalhadora, sendo um consciente defensor dos
interesses desta. O texto do autor brasileiro é uma prova concreta de que consciências
dominantes não homogeneízam integralmente a sociedade. Elucidativamente, na famosa
passagem d’A Ideologia Alemã, segundo a qual, “Os pensamentos da classe dominante são
também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes” (MARX, 2002, p. 48)ii, mostra o
autor alemão que a posição de maior alcance na formação das consciências, “o poder
espiritual dominante” (MARX, 2002, p. 48) ocupado pelo ideário da classe dominante em
relação aos demais, não é suficiente para eliminar a efetividade desses demais, tão somente
pode favorecer a classe dominante na luta de ideias. Seja como for, neste excerto podemos
ver como opera a ideologia de acordo com a apreensão do autor, ou seja, quando o sistema
de ideias da classe dominante é apropriado pela consciência da classe dominada, ele se
configura como ideologia por não ter lastro na realidade desta classe dominada. Por fim, em
tom conclusivo, afirma:
Portanto, a Administração para nós é uma ideologia porque se caracteriza por um
7
conjunto de ideias das classes dominantes, principalmente dos gerentes, que visam
subordinar os trabalhadores à sua lógica, à exploração e ao seu modo de vida. Esse
conjunto de ideias, quase transverte de ciência, de modo algum pode ser adotado
pelo proletariado como ferramenta. (CARIBÉ, 2006, p. 38-9)

Caribé lega um estudo da relação entre ideologia e ciência ancorado na luta de


classes, contudo suas conclusões estabelecem, assim como visto em Santos, uma oposição
entre ciência e ideologia, ainda que o expoente da administração política não deixe claro sua
acepção da ideologia (haja vista a mudança de significado da categoria quando este autor
reconhece a luta de classes). As referências de Chauíiii contribuem para Caribé apreender a
categoria como uma elucubração imaginária, que não possui lastro na realidade, mas a
característica principal a se destacar é a identificação da ideologia aos interesses dominantes
e evidenciando sua função exclusivamente como a manutenção das relações de produção
estabelecidas pela ordem do capital. Este vício impede a categoria de mostrar qualquer
vínculo com a ciência e, por conseguinte, a distância de se configurar como instrumento de
luta para a classe trabalhadora. “Daí a importância de separar o que é ideologia, o que é
conhecimento útil para a classe dos gestores e o que é instrumento de libertação para o
proletariado” (CARIBÉ, 2006, p. 28). Desse ângulo, as similaridades com Althusser ficam
mais fortes ainda em Caribé, de maneira que “A reprodução da força de trabalho tem pois
como condição sine qua non não só a reprodução da “qualificação” desta força de trabalho,
mas também a reprodução da sua sujeição à ideologia dominante” (ALTHUSSER, 1974, p.
22). A despeito de haver ou não influência direta do francês, é importante afirmar que não
há, definitivamente relação de proximidade entre ciência e ideologia para este autor, mas
sim, uma relação de oposição.
No corpo teórico da administração política é consensual a ideia de que não há uma
relação próxima entre ciência e ideologia. De maneira que a primeira categoria, premida pela
epistemologia, se consolida como o desvelamento da realidade e a aquisição da razão, a
segunda se configura em geral como seu oposto, comumente ligada a falsidade. Esta ligação
acontece, seja pela denúncia da mistificação do real, seja pelo efeito ilusório que opera na
consciência. Ademais se identifica esta categoria ao adversário teórico ou à classe
dominante. Faremos agora uma proposição para encarar o problema sob outro prisma, o
prisma ontológico, que nos remete ao marxismo mais próximo de Marx, inexplorado até o
presente momento pela administração política.

3. Crítica ontológica à ideologia da administração política

Compreendemos que A Ideologia Alemã, texto que serviu de base para Caribé
estabelecer os enlaces mais centrais da categoria da ideologia tendo supostamente Marx
como ponto de partida, é de modo geral, a obra mais utilizada em se tratando das abordagens
marxistas sobre o tema, (Vaisman, 1996). Nessa obra, Marx tematiza a categoria de maneira
mais aberta, fornecendo elementos para se chegar a aproximações de suas determinações da
categoria, pois como o próprio Caribé (2006, p. 34) afirma sobre o conceito de ideologia,
“que de tão usado e gasto se encontra sob inúmeras interpretações”. Na mesma direção, é
entendido ser impossível chegar a uma teria geral da ideologia mesmo nos escritos do autor
alemão (Vaisman, 1996). Reconhecidamente, a discussão mais importante deste texto se
concentra na crítica de Marx ao idealismo dos filósofos neohegelianos. É sob este contexto
que surge a acepção de ideologia ligada à falsidade, tão ressonante na contemporaneidade.
Contudo a identificação imediata à falsidade tal qual fizeram os autores brasileiros, em
especial Caribé, carece de uma precisão e rigor quanto aos próprios escritos de Marx.
Antes de adentrarmos na discussão da ideologia, acompanhemos a argumentação de
Marx no tocante à ciência:

8
Conhecemos uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser
examinada de dois lados, dividida em história da natureza e história dos homens.
/.../ A história da natureza, a assim chamada ciência natural, não nos diz respeito
aqui; mas, quanto à história dos homens, será preciso examiná-la, pois quase toda a
ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou a uma
abstração total dela. A ideologia, ela mesma, é apenas um dos lados dessa história
(MARX; ENGELS, 2007, p. 86-7).

É importante reter desta passagem que para Marx, a questão da ciência não se
conecta com os pressupostos epistemológicos que exigem uma série de conceitos
apriorísticos para se conhecer a realidade concreta. Aqui a ciência trata da apreensão do
desenvolvimento da atividade humana sobre a natureza. A história nada mais é do que esse
desenvolvimento. Neste mesmo trecho, mostra-nos também como a história dos homens tem
sido distorcida pelas ideologias no que pode ser considerada uma “operação típica do
idealismo filosófico” (VAISMAN, 1996, p. 147). Portanto, certamente é possível depreender
neste texto, que para Marx, a ideologia é um processo que mistifica a realidade, processo
inerente à filosofia idealista alemã, ideia que ganha fôlego através da passagem na qual
lemos que “Se em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo
como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida”
(MARX; ENGELS, 2007, p. 94). A respeito dessa passagem curta, mas consideravelmente
profunda, nos explica Vaisman:
a inversão não remete à ideia falsa, mas à falsidade de que as ideias gerem o ser.
Dizer, portanto, que ‘em· toda ideologia os homens e suas relações aparecem
invertidos’, é denunciar a inversão ontológica especulativa onde o mundo
efetivamente existente é concebido como produto da ideia, das representações, em
suma, da consciência (VAISMAN, 1996, p.150).

Este excerto é importante para entendermos que como mostra Marx, a ideologia não
é um conceito falso em si, não carrega a falsidade em seu conteúdo. Recorrendo à reflexão
de Vaisman, nesta famosa passagem do texto de Marx, compreendemos que a ideologia se
liga ao processo especulativo da filosofia idealista alemã, qual seja, colocar a ideia, a
subjetividade como o demiurgo da objetividade. Nas palavras do próprio Marx, “A nenhum
desses filósofos ocorreu a ideia de perguntar sabre a conexão entre a filosofia alemã e a
realidade alemã, sobre a conexão de sua crítica com seu próprio meio material” (MARX &
ENGELS, 2007, p. 84), o que significa dizer se tratar de uma inversão ontológica, pois se
essa inversão quando desfeita, resultará que a atividade prática dos homens condicionará sua
consciência e suas ideias, e assim sua atividade concreta será a força motriz da história. O
que acontece então é que esta ideologia pode desvelar-se falsamente, mas sempre como
consequência daquele processo especulativo, nunca como essência imanente de si. Caribé
identifica a inversão entre ser e pensar, mas não é capaz de situar isto na particularidade do
idealismo alemão, tampouco identifica situações outras expressas pela ideologia, as quais
veremos em seguida.
Este momento é marcante nesta obra, porém não é o único em que a categoria da
ideologia ganha significância. Noutras passagens é possível ver Marx desenvolvendo de
modo nominativo o complexo formado pelas formas de consciência. Seguindo suas palavras,
podemos ler que:
A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem como as formas
de consciência a elas correspondentes, são privadas, aqui, da aparência de
autonomia que até então possuíam. Não têm história, nem desenvolvimento; mas
os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais,
9
transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu
pensar (MARX; ENGELS, 2007, p. 94).

Nesse momento, a categoria possui uma acepção consideravelmente diferente


daquela vista anteriormente. Marx a usa simplesmente para dar nome a este complexo
composto pela moral, religião, metafísica e etc.., as chamadas formas de consciência. Ao
mesmo tempo é preciso destacar como este complexo no qual a ideologia está contida, não
se desenvolve autonomamente das relações concretas, e, portanto, não possui uma história
própria. Sua historicidade depende dos acondicionamentos das relações materiais. Noutras
palavras, “a moral, a religião, a metafisica e qualquer outra ideologia não têm história, no
sentido de que não possuem uma historicidade própria ou imanente, pois fazem parte da
história humana global da produção da vida e das formas de consciência que a ela
correspondem.” (VAISMAN, 1996, p. 86).
N’A Ideologia alemã, por conseguinte, é possível reter dois momentos fundamentais
que dão conteúdo e forma à categoria da ideologia. Primeiramente é um “termo que
denuncia o defeito ontológico da propositura especulativa que inverte a relação de
determinação entre ser e pensar” (VAISMAN, 1996, p. 245). Conservando assim um grande
teor de criticidade. Diferentemente, porém, do segundo momento em que “ideologia é um
termo onto-nominativo, pois simplesmente designa em conjunto um enorme complexo, ou
seja, as assim chamadas formas superestruturais e as formas de consciência, mas não as
explica” (VAISMAN, 1996, p. 245). Desta maneira é possível dizer que Santos (muito
embora não se apoiem no marxismo) e Caribé não compreendem tal categoria à luz de Marx.
Isto se comprova, sobretudo, por depositarem à categoria uma determinação estritamente
parcial (seja para falar do adversário, seja para falar da classe dominante) e identifica-la ao
pensamento falso. Pudemos ver que para Marx interessa mais o processo especulativo que
obstrui a potencialidade da filosofia idealista de compreender os nexos reais, bem como as
formas de consciência, que no entanto, não estão inadvertidamente sob o domínio de uma
determinada classe.
Prosseguindo na análise do autor alemão acerca da ideologia, cabe o recurso a uma
passagem do Prefácio para a contribuição da crítica da economia política de 1859, onde diz
Marx
Com a transformação da base económica, toda a enorme superestrutura se
transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é
necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições
econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência
natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas» em
resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste
conflito e o conduzem até o fim. (MARX, 1982, p. 25).

Nesta passagem, a condição superestrutural das formas ideológicas ou formas de


consciência é reiterada. Em relação à questão da autonomia, vemos aqui que da mesma
maneira que esta superestrutura não porta uma autonomia total em relação às condições
econômicas, ela também não está em correspondência imediata com a base. As mudanças
nas relações econômicas podem gerar efeitos mais ou menos profundos nas formas
superestruturais que além das formas ideológicas também compreendem a superestrutura
jurídica e política. Com relação ao exame da ideologia, em primeiro lugar, é possível dizer
que
Marx. na passagem do Prefácio de 59 /.../, identifica "as formas ideológicas" o
universo jurídico-político e ao conjunto das formações ideais de uma dada
sociedade, isto é, a uma vasta gama de atividades, inclusive as culturais e

10
espirituais, buscando, ao mesmo tempo evidenciar a sua relação com o conflito
social (VAISMAN, 1996, p.234).

Destaca-se, portanto, esta relação da ideologia com o conflito social evidenciada por
Marx. Não se trata da ideia de que a ideologia corresponde unicamente aos interesses de uma
classe dominante, tampouco tem por função o controle da classe dominada. Pelo contrário,
quando afirma que é através dessas ideologias que os homens podem tomar consciência do
conflito (da luta de classes) e o levam adiante até sua resolução, Marx quer dizer que a
ideologia pode muito bem servir à classe trabalhadora, ou dominada, pois a resolução dos
conflitos implica diretamente na superação da sociedade de classes. É fundamental, portanto
que se considere o todo da trama argumentativa de Marx para fazer a avaliação de como a
ideologia se constrói para este autor, e uma das contribuições tencionadas por este texto é
justamente empreender este exercício.
Orientando-se por esta passagem do prefácio, o filósofo húngaro Lukács nos oferece
alguns avanços no tratamento da categoria em relação aos lineamentos de Marx.
Alicerçando-se nesta passagem, é claro ao dizer que “A ideologia é sobretudo a forma de
elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente e
capaz de agir” (LUKÁCS, 2013, p. 465). Portanto, trata-se da maneira como estas formas de
consciência podem orientar as consciências e causar efeito na realidade concreta. Em outras
palavras, “o produzido é determinado pela sua produção, o que significa que o ser da
ideologia é determinado pela sua produção, que é e só pode ser social. E, em termos gerais,
portanto, ela está presente em todas as ações humanas, enquanto orientação ideal”
(VAISMAN, 2010, p. 50). Assim toda ideação é elaborada mediante a prática dos homens,
mas não se pode dizer, contudo que toda a espécie de ideação é ideologia, o filósofo húngaro
chama a atenção para uma potencialidade que pode ou não ser realizada:
Essa possibilidade universal de virar ideologia está ontologicamente baseada no
fato de que o seu conteúdo (e, em muitos casos, também a sua forma) conserva
dentro de si as marcas indeléveis de sua gênese. Se essas marcas eventualmente
desvanecem a ponto de se tornarem imperceptíveis ou se continuam nitidamente
visíveis é algo que depende de suas – possíveis – funções no processo dos conflitos
sociais (LUKÁCS, 2013, p. 465).

Seguindo a reflexão de Vaisman (2010, p. 51), “Algo, portanto, transforma-se em


ideologia, não nasce necessariamente ideologia, e essa transformação depende de vir a
desempenhar uma função precisa junto às lutas sociais em qualquer nível destas”. Desta
maneira o que realmente importa é a função social desempenhada pela ideologia junto à luta
de classes. Assim se dá a apreensão desta categoria sob o prisma ontológico (Vaisman,
2010). Para que fiquem evidentes as diferenças entre esta apreensão ontológica e uma
apreensão mais próxima às concepções de Althusser, por exemplo, de talhe mais
epistemológico, Lukács é preciso:
Nem um ponto de vista individualmente verdadeiro ou falso, nem uma hipótese,
teoria etc., científica verdadeira ou falsa constituem em si e por si só uma
ideologia: eles podem vir a tornar-se uma ideologia, como vimos. Eles podem se
converter em ideologia só depois que tiverem se transformado em veículo teórico
ou prático para enfrentar e resolver conflitos sociais, sejam estes de maior ou
menor amplitude, determinantes dos destinos do mundo ou episódicos. (LUKÁCS,
2013, p. 467)

Definindo assim como critério último para reconhecer uma ideologia ou não, o efeito
da ideia sobre as consciências, bem como a efetivação prática para dirimir conflitos sociais.
Em consequência, não é possível, sob este critério, estabelecer uma cisão predeterminada
11
entre ciência e ideologia. A este respeito, cabe a seguinte elucidação:
A astronomia heliocêntrica ou a teoria do desenvolvimento no âmbito da vida
orgânica são teorias científicas, podem ser verdadeiras ou falsas, mas nem elas
próprias nem a sua afirmação ou negação constituem uma ideologia. Só quando,
depois da atuação de Galileu ou Darwin, os posicionamentos relativos às suas
concepções se converteram em meios para travar os combates em torno dos
antagonismos sociais, elas se tornaram operantes – nesse contexto – como
ideologias. (LUKÁCS, 2013, p. 467)

Enquanto teoria, uma elaboração ideal cientificamente sistematizada orienta a práxis


social humana, dirimindo conflitos na luta de classes, se, e somente se, tornar-se de fato
ideologia.
Portanto, premidos do critério ontológico podemos afirmar que a administração
política pode ser uma ideologia, a partir do momento em que constitui um ideário
direcionado à orientação da prática, dirimindo conflitos. Agora interessa-nos identificar qual
a posição essa ideologia pode portar, se trata meramente de uma apologia ao status quo, se
diferentemente existe um esclarecimento definido da realidade, mas que carece de ações em
direção ao rompimento, ou se é de fato uma ideologia revolucionária.
Meszáros (2008) desenvolve sua argumentação a respeito da ideologia tendo como
fontes mais diretas Marx e Lukács. Na introdução de seu texto Filosofia, ideologia e ciência
social existem elementos que comprovam estas referências, primeiro combatendo a restrição
do problema ao talhe epistemológico, depois, reconhecendo a determinação ontológica de
consciência prática necessária e vinculação de interesses na ideologia situando sua posição
central na luta de classes e pontuando a inexistência de uma autonomia total desta
consciência. Fundamentalmente, em Mészáros, o problema ganha novas dimensões quando
este autor define um espectro de posições ideológicas que vão desde uma posição mais
conservadora, passando por uma posição intermediária chegando finalmente à posição
ideológica revolucionária.
Nas palavras do autor, a mais conservadora, certamente alinhada aos interesses
burgueses opera “adotando e glorificando a contiguidade do sistema dominante - não
importa se problemático ou contraditório - como o horizonte absoluto da própria vida social”
(MESZÁROS, 2008, p. 11). Na medida em que a eternização do capitalismo é o objetivo, a
maneira como esta ideologia se constrói (verdadeira ou falsa) pouco importa. A questão que
emerge à luz do dia é justamente a efetividade prática de tal ideologia, de maneira que um
sem número de exemplos pode ser encontrado no próprio ideário da administração
profissional. Tragtenberg (2006) assinala o teor conservador das primeiras teorias
administrativas do século XX, nomeando-as propulsoras de uma harmonia participacionista,
imbuídas na tarefa de obliterar os conflitos sociais. Assim, “a influência espontânea do
discurso ideológico dominante, para além das camadas de seus verdadeiros beneficiários,
residem exatamente em seu apelo pacificador à "unidade" e aos interesses associados...”
(MESZÁROS, 2008, p. 12).
Na direção contrária, há a posição ideológica revolucionária que “questiona
radicalmente a persistência histórica do próprio horizonte de classe, antevendo, como
objetivo de sua intervenção prática consciente, a supressão de todas as formas de
antagonismo de classes” (MESZÁROS, 2008, p. 11). Tendo assim a incumbência “de
superar as limitações associadas à produção do conhecimento prático, no interior do
horizonte da consciência social dividida, nas condições de uma sociedade dividida em
classes” (MESZÁROS, 2008, p. 11), obviamente trata-se de uma posição completamente
antagônica à anterior, não somente por ser sua negação, mas também por ter a
responsabilidade de viabilizar consciências que munidas da necessidade prática da superação
12
do capitalismo, podemos situar nessa corrente, o marxismo autêntico por exemplo.
Essas duas posições constituem assim os extremos desse espectro, por serem
claramente a representação da consciência prática de capital e trabalho. Contudo entre elas
existem uma série de ideologias que por um lado, não caem na apologia dogmática e por
outro não levam adiante um projeto de superação das contradições reais. Ao argumentar
sobre este conjunto, Mészáros é enfático;
expõe, com êxito significativo, as irracionalidades da forma específica de
sociedade de classe, sem dúvida anacrônica, que é rejeitada a partir de uma nova
posição de vantagem, mas sua crítica é viciada pelas contradições de sua própria
posição social – igualmente determinada pelas classes sociais, mesmo se
historicamente mais avançadas (MÉSZÁROS, 2008, p. 11).

Constitui-se, portanto por aquele sistema de ideias que consegue compreender as


contradições fundamentais do capitalismo, seus êxitos, mas, sobretudo suas mazelas.
Entretanto, limita-se a sua crítica, não é capaz de empreender uma alternativa que supere
este modo de produção. Podemos classificar a administração política justamente neste
conjunto. Seus autores compreendem vários problemas evidentes como a tendência de
mistificação da realidade exercida pela administração, a falta de um campo nesta área que se
preocupe com questões de desenvolvimento social e diminuição da desigualdade, e, com
profunda propriedade a denúncia da leitura incorreta por parte dos economistas ortodoxos a
respeito das crises estruturais do capitalismo nas últimas décadas. Estes e muitos outros são
méritos irrevogáveis da administração política, isto é, desvelar a realidade tal qual ela é de
fato. A limitação se dá necessariamente por não se tratar de uma ideologia que irrompa as
barreiras do capital, ou seja, suas proposições circundam a amenização dos antagonismos
através de políticas púbicas oriundas do Estado, empenhando-se em grande parte por
estabelecer um pacto entre classes. Tendo esse horizonte para oferecer uma resposta prática
que seja capaz de interditar o projeto neoliberal em curso no Brasil. É o que podemos
compreender no trecho que segue
a gestão torna-se imprescindível como instrumento no auxílio da pactuação dos
interesses divergentes e diversificados estabelecidos pelas relações sociais de
produção. E, portanto, as condições de sobrevivência material da sociedade
dependem das forças do Estado para estabelecer o mínimo de condições de
sociabilidade, minimizar externalidades negativas causadas pela produção
capitalista e compensar as perdas materiais e sociais causadas pelo processo de
acumulação. (GOMES, 2012, p. 18)

Após mostrar como um programa de habitação e saneamento básico pode ser basilar
para o sucesso de outros programas como de educação, saúde, segurança pública e
transporte, Santos (s/d) explica que o objetivo que orienta tais políticas se dá da seguinte
forma:
a maior conquista de uma política social com essa concepção seria a promoção de
uma maior integração comunitária, um maior grau de sociabilidade entre os
indivíduos e, sobretudo, maiores e melhores condições de aprendizagem política
no exercício fecundo da cidadania – tornando, assim, a sociedade brasileira mais
plural e mais democrática. (SANTOS, s/d, p. 18)

Em última instância, o que se coloca à luz do dia para a administração política é uma
reforma na administração estatal que possa definitivamente colocar em prática medidas
progressistas que atenuem a desigualdade social e concilie de certa maneira os antagonismos
através de uma organização da produção menos centralizada nas mãos de poucos, com
13
propostas direcionadas “aqueles que têm preocupações em vê-las [as riquezas] distribuídas
de modo justo” (SANTOS, s/d, p. 31). Portanto, o grande impedimento para esta ideologia se
fazer revolucionária é justamente não se compreender ideologia com potencialidade de uma
mudança radical na sociedade, por decorrência, não oferece alternativas para a superação das
classes sociais. Ao contrário, assenta-se sob medidas que nem mesmo contestam sua
existência.
Cabe notar ainda a semelhança da administração política com aquilo que Marx
nomeou sincretismo desprovido de espírito. Pensadores que muito embora tivessem uma
posição de classe bem definida, não encaravam a realidade visando simplesmente a
manutenção de seus privilégios, portando assim considerável lucidez.
Homens que ainda reivindicavam alguma relevância científica e que aspiravam ser
algo mais do que meros sofistas e sicofantas das classes dominantes tentaram pôr a
economia política do capital em sintonia com as exigências do proletariado, que
não podiam mais ser ignoradas (MARX, 2013, p. 87).

Salienta ainda que o principal representante era Stuart Mill, não sem destacar o
intento do inglês em conciliar o inconciliável, ou seja, acomodar dentro de uma formação
societal interesses de classes visceralmente antagônicas. Este é o limite quando não se coloca
no horizonte um projeto que se articule com o objetivo de superar a ordem vigente do
capital.

4. Considerações Finais

Os resultados da pesquisa mostram que, de fato, uma incursão materialista sobre os


problemas da administração política é contributiva na medida em que põe em evidência uma
nova ótica para encarar seus problemas práticos. Este artigo procurou explicitar que do
prisma marxiano a categoria da ideologia não assume necessariamente um aspecto negativo
de contraposição à ciência, tampouco caracteriza o sistema de ideias do adversário ou de
uma classe dominante (apreensão comum aos intelectuais da administração política que
deram importância ao estudo desta categoria). De sorte que aqui procuramos evidenciar os
limites da apreensão epistemológica, que ao estabelecer a cisão entre verdadeiro ou falso,
opõe ciência e ideologia. Um estudo ontológico mostrou como esta “ciência administrativa”
se erige a partir de uma determinação social – bem entendida como condições de
possibilidade de uma forma de pensamento particular – e está intrinsecamente ligada aos
conflitos de classe, podendo revelar ou não os problemas postos pela realidade, mas
exercendo, indefectivelmente, uma função social, podendo assim ser ideologia. A concepção
mais restrita da ideologia impede que estes intelectuais assimilem que as soluções dadas aos
problemas os quais se dispõem a resolver têm efeito sobre as consciências dos indivíduos e
reconfiguram a relação entre as classes, ainda que estas soluções não sejam resolutivas a
ponto de se articularem como um projeto revolucionário.
Nessa esteira, verificamos que, ao passo em que estes intelectuais identificam
diversos problemas de ordem econômica e social na gestão e distribuição da riqueza no
Brasil, desenvolvem soluções para este problema que se limitam ao intento de reorganizar
estas questões através da intervenção estatal, elaborando políticas sociais mais inclusivas e
promotoras da redução da desigualdade. Com efeito, não se trata de uma ideologia
conservadora, pois não se puderam rastrear apologias ou defesas abertas ao capitalismo. Ao
mesmo tempo, embora se empreenda uma análise realista, não se trata de uma ideologia
revolucionária, pois a solução prática para os problemas não supera a ordem do capital. O
que se verifica então é que se trata de uma ideologia intermediária. Isto merece ser destacado
haja vista que a construção histórica do pensamento administrativo é toda ela permeada por
14
ideologias conservadoras. A administração política é certamente um campo progressista
neste sentido; sincrético, mas também progressista.
Pudemos observar de uma maneira geral, que os debates na administração política
poderiam se beneficiar de uma compreensão marxiana do problema da ideologia e da não
contradição por princípio entre ideologia e ciência, favorecendo uma apreensão do problema
científico mais atinente ao campo do materialismo histórico. Em outros termos, temos a
plena convicção de que a apreensão ontológica dos problemas da administração política
pode render ainda um sem número de novos estudos, que por sua vez, podem trazer diversas
contribuições para a realização prática do fazer administrativo direcionado ao bem-estar da
sociedade.

Referências
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1974.
CARIBÉ, Daniel Andrade. Ciência ou ideologia? A constituição do campo da
Administração Política. Revista Brasileira de Administração Política. São Paulo: vol. 1, n.1:
31-44. Hucitec. Out. 2008.
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gestores enquanto classe. Dissertação de mestrado (Administração). Salvador. UFBA. 2006.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia? 2. ed. São Paulo: Brasiliense. 2008.
ENGELS. Friedrich. Carta, Engels para Franz Mehring, Londres, 14 jul. 1893. In
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LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma crítica marxista. São
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LUKÁCS, Georg. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo. 2013.
MARX, Karl. O Capital. livro 1. São Paulo: Boitempo. 2013.
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MESZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social: ensaios de afirmação e negação.
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SANTOS, Reginaldo Souza et al. Bases teórico-metodológicas da administração política.
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Nov/Dez. 2002.
TRAGTENBERG, Maurício, Burocracia e Ideologia. 2. Ed. São Paulo: Editora Unesp. 2006
VAISMAN, Ester. A Determinação Marxiana da Ideologia. Tese de doutorado (Educação).
Belo Horizonte: UFMG/FAE. 1996.
15
VAISMAN, Ester. Ideologia e sua determinação ontológica. Verinotio, Belo Horizonte, n.
12, ano VI: 40-64. Out. 2010.

i
Esta referência se deve à alusão feita por Engels em carta a Franz Mehring, em que o primeiro diz: “La
ideología es un proceso que, aun cuando se opera con conciencia por el así llamado pensador, se opera con uma
falsa consciência. Las verdaderas motivaciones que lo mueven permanecen desconocidas para él; de otro modo,
no se trataría de un proceso ideológico.” (MEHRING, 2009, p. 149). Com a ressalva que não se trata de uma
identificação automática entre ideologia e falsa consciência, Engels assevera que o processo ideológico está
ligado a uma consciência que desconhece suas forças moventes, e por isso, é falsa. Não entraremos aqui nesta
polêmica, mas este exemplo nos basta, para mostrar como o próprio Engels inseriu a questão do falso no
tratamento da ideologia na história do marxismo.
ii
Utiliza-se nesse momento a edição de A ideologia alemã da editora Martins Fontes. A mesma utilizada pelo
autor.
iii
É preciso dizer aqui que muito embora Caribé considere seu estudo da ideologia pautado por Marx, as
referências decisivas citadas por ele em seu texto são de Chauí. Inclusive algumas imputadas por ele a Marx. A
título de exemplo, no tópico, O que é ideologia, que por ventura é homônimo a um livro de Chauí, o autor cita a
seguinte passagem aqui transcrita ipsis litteris “A História não é, portanto, o processo pelo qual o Espírito toma
posse de si mesmo, não é a história das realizações do Espírito. A história é história do modo real como os
homens reais produzem suas condições reais de existência. É história do modo como se produzem a si mesmos
(pelo consumo direto ou imediato dos bens naturais e pela procriação), como produzem e reproduzem suas
relações com a natureza (pelo trabalho), do modo como produzem e reproduzem suas relações sociais (pela
divisão social do trabalho e pela forma de propriedade, que constituem as formas das relações de produção). É
também história do modo como esses homens interpretam todas essas relações, seja numa interpretação
imaginária, como a ideologia, seja numa interpretação real, pelo conhecimento da história que produziu ou
produz tais relações (MARX, 2002 apud CARIBÉ, 2006, p. 35)”. Porém, não é possível encontrar isto em A
ideologia alemã, mas é possível encontrar este excerto integralmente em Chauí (2008, p. 48-9), cuja primeira
edição data de 1980.

16
VOLUNTARIADO CORPORATIVO Y RESPONSABILIDAD DE LA EMPRESA:
APROXIMACION A LA GESTIÓN DE LOS RECURSOS HUMANOS

José Paulo Cosenza (jcosenza@vm.uff.br)


Departamento de Contabilidade
Faculdade de Administração e Ciências Contábeis
Universidade Federal Fluminense

María Isabel Saz Gil (sazgil@unizar.es)


Departamento de Dirección y Organización de Empresas
Facultad de Ciencias Sociales y Humanas
Universidad de Zaragoza

Ana Isabel Zardoya Alegría (azardoya@unizar.es)


Departamento de Contabilidad y Finanzas
Facultad de Economía y Empresa
Universidad de Zaragoza

RESUMEN
El crecimiento y la consolidación del voluntariado corporativo pasan, necesariamente, por
mejorar la calidad y la gestión del trabajo voluntario, según sus aspectos motivadores, ya que
representa un recurso humano con especiales características. En este trabajo pretendemos
discutir la cuestión de la relación de la motivación con la gestión del voluntariado corporativo,
teniendo en cuenta que genera impactos en la conducta de diferentes grupos de interés. En
concreto el trabajo tiene el objetivo de realizar una aproximación, desde una perspectiva teórico-
analítica, al ciclo del voluntario en la empresa y a la gestión de los recursos humanos,
analizando sus efectos y sinergias para el voluntariado corporativo.
PALABRAS CLAVE: Voluntariado Corporativo, Responsabilidad Social Corporativa, Competencias,
Ciclo del Voluntariado.

RESUMO
O crescimento e a consolidação do voluntariado corporativo passam, necessariamente, pela
melhoria da qualidade e da gestão do trabalho voluntário, conforme seus aspectos motivadores,
já que contempla um recurso humano com características especiais. Neste trabalho pretendemos
discutir a questão da relação da motivação com a gestão do voluntariado corporativo, tendo em
vista que gera impactos na conduta de diferentes grupos de interesse. Particularmente, o
trabalho tem o objetivo de realizar uma aproximação, sob uma perspectiva teórico-analítica, do
ciclo de voluntario na empresa com a gestão dos recursos humanos, analisando seus efeitos e
sinergias para o voluntariado corporativo, em termos de motivação e avaliação dos resultados.
PALAVRAS CHAVES: Voluntariado Corporativo, Responsabilidade Social Corporativa, Competências,
Ciclo do Voluntariado.

ABSTRACT
The growth and consolidation of corporate volunteering pass necessarily improve the quality
and management of volunteer work, according to their motivational aspects, as it represents a
human resource with special characteristics. In this paper, we discuss the question of the
relationship of motivation to the management of corporate volunteering, considering that generates
impacts on the behavior of different stakeholders. Specifically, the work aims to make an approach
from a theoretical and analytical perspective, to volunteer in the business cycle and the
management of human resources, analyzing their effects and synergies for corporate volunteering.
KEYWORDS: Corporate Volunteering, Corporate Social Responsibility, Competitions, Cycle of Volunteering.
JEL Classifications: M140, D640, L310.

1
1. INTRODUCCIÓN

Históricamente el trabajo de voluntariado estuvo siempre relacionado preponderantemente


con las acciones de caridad, la gran mayoría asociada a instituciones religiosas. Sin
embargo, en los últimos años, el voluntariado está asumiendo nuevos diseños en su forma
de trabajo, hecho que está exigiendo mayor atención e incentivo de los gobiernos, empresas,
de las propias Organizaciones no Lucrativas (en adelante ONL) y, también, de las personas
individualmente. Según Souza (2008), el trabajo voluntario que antes estaba ligado
mayoritariamente a la caridad cristiana, actualmente se presenta en gran parte laicizado
y vinculado a iniciativas empresariales y a la manifestación de la acción ciudadana.
En los años setenta en Estados Unidos surgió un tipo particular de trabajo voluntario
asociado a la Responsabilidad Social de la Empresa (en adelante RSE). En concreto, esa
modalidad de trabajo voluntario se constituyó en acciones sociales desarrolladas por
fuerza de una iniciativa empresarial bajo la cual, en general, se movilizaba el trabajo
voluntario de los empleados de dichas corporaciones o incluso de la comunidad en
general, con o sin aporte financiero directo de la empresa patrocinadora.
Desde entonces una de las grandes vertientes del trabajo voluntario ha sido
conducida por las empresas que motivadas por el reto de la Responsabilidad Social
Corporativa (en adelante RSC) y estimuladas no solamente por la legislación patria,
pero también por diversos movimientos globales, asumen la responsabilidad de
incrementar esfuerzos por un mundo mejor y de desarrollar en sus funcionarios la
satisfacción por participar de una organización que se les apoya y se les estimula en la
implantación de proyectos y programas de trabajo voluntario (LIMA y BARELI, 2011).
De ahí que las empresas invierten cada vez más en acciones sociales, no solo por esa
creciente concienciación o por fuerza de ley, sino también para ser diferenciadas y
competitivas en sus mercados, con el compromiso mayor de sus trabajadores.
En este contexto emerge el Voluntariado Corporativo (en adelante VC) como una
nueva tendencia en el marco de las políticas de RSC que implementan las empresas, en
particular las grandes empresas. Sin embargo, aunque de gran importancia y significado
para concretar la RSE, entre las particularidades que definen los programas de VC está
la de que generan impacto en diferentes grupos de interés, destacando la participación
de la empresa y de sus empleados. Por ello, requiere de un alto nivel de planificación y
coordinación entre todas las partes implicadas.

2. METODOLOGÍA

El objetivo de este trabajo es contribuir a la mejora del conocimiento y de la gestión


del VC incidiendo en los efectos positivos que para los recursos humanos de las
empresas puede tener la implementación de programas de VC, identificando las fases y
los factores a tener en cuenta para facilitar el proceso de control de gestión y garantizar
el impacto deseado en la conducta de los recursos humanos. En esta línea, el desarrollo
de este estudio se justifica por tres cuestiones fundamentales. Primero, por aportar
conocimiento respecto a un tema (el VC) que es cada vez más una parte de la RSE y que
implica necesariamente el establecimiento de mecanismos de control de gestión, en
especial relacionándolo con la política de recursos humanos. En segundo lugar, por
presentar una propuesta de colaboración estable entre la empresa y la entidad de
voluntariado. Y, en tercer lugar, por permitir fomentar iniciativas dirigidas a mejorar, en
general, la capacitación del personal directivo, gestor y profesional que actúan en el VC.
Además, 2015 es un año crucial, en todo el mundo, para el desarrollo de las
actividades de VC porque se pone en marcha el “Impact 2030”, que es una iniciativa,

2
liderada por el sector empresarial y el Pacto Global de las Naciones Unidas, para poner
en valor el VC. Según señalado en el Observatorio de Voluntariado Corporativo, se trata
de convertir el VC en la gran herramienta de servicio del sector privado a toda la
sociedad, para alcanzar los nuevos Objetivos de Desarrollo Sostenible (SDO),
presentados en La Organización de las Naciones Unidas (ONU) para sustituir a los
Objetivos de Desarrollo del Milenio (MDO).
Nuestra contribución con el presente estudio radica en realizar una aproximación del
VC con la gestión de los recursos humanos, analizando sus efectos y sinergias dentro de
la estrategia general de Responsabilidad Social (en adelante RS) de las empresas. En
esta línea, nuestro problema de investigación es discutido dentro del ámbito de la
Contabilidad de Gestión, según la perspectiva de la RSC. Para eso tomamos como
referencia el marco teórico sobre el VC intentando incorporarlo como un elemento clave
en la estrategia de responsabilidad corporativa de la empresa y también como una nueva
actividad en la gestión empresarial que genera valor para las organizaciones, para la
sociedad civil y para los recursos humanos.
En consecuencia, nuestro análisis está desarrollado siguiendo un diseño
metodológico propio de una investigación de característica exploratorio-descriptiva
(RICHARDSON, 1999), donde a partir del planteamiento de un ensayo conceptual
sobre el tema investigado, buscamos poner de manifiesto los puntos más relevantes
asociados a la aplicación en la práctica en la empresa del VC. A partir de nuestra
interpretación analítica del marco conceptual y la exposición descriptiva revisamos la
bibliografía teórica pertinente sobre el tema y aportamos nueva mirada al tema
analizado, emitiendo juicios sobre el carácter del VC y el papel de los recursos humanos
desde una perspectiva en línea con la estrategia corporativa y la RSC.

3. VOLUNTARIADO CORPORATIVO Y MOTIVACIÓN EN EL TRABAJO

Definido como el conjunto de actividades promovidas y apoyadas por una empresa


que tiene como finalidad la involucración y participación libre de sus empleados a
través de la dedicación de su tiempo, capacidades y talento a causas, proyectos y
organizaciones sin ánimo de lucro, las actividades del VC se desarrollan en el marco de
la empresa que no se limita simplemente a ser un actor que influye para que los
empleados realicen este tipo de actividades, sino que los apoya destinando recursos
económicos, en especie y tiempo (CES y ADECCO, 2011, p. 18).
Así, el VC consiste en el ejercicio y participación de una empresa en actividades de
voluntariado realizadas por sus empleados. Esas actividades surgen como una respuesta
a las demandas externas de colaboradores y de la sociedad civil (Houghton et al., 2009)
e internas en la motivación del capital humano (HARRIS, 2000) frente al compromiso
responsable de la empresa e implican para su gestión diversas áreas de la estructura
organizativa de la empresa.
Sim embargo, es complicado presentar un concepto concreto y único de VC
(GALLARDO y SANCHEZ, 2014, p. 7), por tratarse de un área de estudio aún carente
de sustentación teórica propia (tschirhart, 2005). Aunque pueda parecer que el VC tenga
efectos positivos en la organización, hay pocas evidencias empíricas que lo demuestren
(GALLARDO et al, 2010, p. 61). Así, destacamos la importancia del VC estar
articulado en la estrategia de la empresa, en particular a la RS, a la vez que subraya la
importancia del vínculo entre la empresa, los recursos humanos, los stakeholders y la
sociedad civil.
De ahí que, actualmente, el VC está siendo utilizado como un recurso estratégico de
las empresas buscando fortalecer la imagen empresarial en el ámbito de la RSC ya que

3
constituye una expresión importante de la puesta en práctica de acciones de RS. Sin
embargo, también se le puede usar como mecanismo conductor para capacitar
competencias en las personas, y motivarlas en su trabajo, planteamientos estos que
serán analizados en este trabajo.
Esto es lo que pretendemos con la elaboración de este estudio porque eso concepto
hace dos décadas ni se planteaba en el ámbito corporativo ya que a simple vista parece
una contradicción intentar encajar los términos “empresa” y “voluntariado”. Sin
embargo, dichos términos, lejos de ser antagónicos, son una combinación poderosa que
bien gestionada reporta un evidente beneficio social a la comunidad a la vez que
contribuye a que aquella consiga sus objetivos de negocio e manera más rentable (CES
y ADECCO, 2011, p. 8). En eso sentido, las actividades de VC están experimentando
una evolución estratégica motivando el desarrollo de nuevas iniciativas (por ejemplo,
proyectos de voluntariado profesional, vacaciones solidarias o excedencias laborales),
en las que la búsqueda de nuevas oportunidades para potenciar el desarrollo de
competencias y fomentar nuevas habilidades comienza a revelarse como elemento
clave.
Según Kotler y Lee (2005), el VC se caracteriza como la estrategia que permite a la
empresa motivar a sus empleados a donar talentos, ideas y esfuerzos físicos en favor de
las causas de la comunidad local. Aunque no van a recibir ningún tipo de recompensa
material o financiera como pago por las horas dedicadas al trabajo voluntario, sus
esfuerzos son un importante medio por el cual se les puede atribuir responsabilidades,
haciéndoles activamente conscientes de que ejercen un relevante papel en el proceso de
cambio de la realidad social (VERAS, 2012).
Desde el punto de vista de la conducta, el control de la evasión de los empleados es
la cuestión crítica para el éxito del VC (SILVA y FEITOSA, 2002; TEODÓSIO, 1999),
siendo la falta de claridad en cuanto a las motivaciones y expectativas que llevaron a la
persona a ingresar en el trabajo voluntario una de las posibles causas de dicho abandono
(COMUNIDADE SOLIDÁRIA, 1997). Existe una amplia literatura empírica, parte de
ella ya clásica (MASLOW, 1954; HERZBERG, 1966; SIMON, 1965; MCCLELLAND,
1965; ALDERFER, 1972; LOCCKE, 1968; y VROOM, 1964; de entre otros), que han
estudiado la cuestión de la motivación en las organizaciones. Sin embargo, para
Cardona, Lawrence y Espejo (2003), aunque varias líneas teóricas hayan intentado
investigar el efecto de diferentes incentivos sobre la motivación, pocas han demostrado
el real efecto de la motivación en el trabajo desde el prisma de los resultados de las
acciones individuales.
Según Lathan y Pinder (2005), la motivación para el trabajo es un conjunto de
fuerzas que impulsan un individuo a empezar un comportamiento asociado al trabajo y a
determinar su forma, dirección, intensidad y duración. Pero como la motivación es un
proceso psicológico complejo y resultante de una interacción entre el individuo y el
entorno que se le rodea (LATHAM y PINDER, 2005), son muchos los factores que
pueden tener influencia sobre las motivaciones (PITTMAN y HELLER, 1987).
Para Cardona, Lawrence y Espejo (2003), una gran parte de las teorías sobre la
motivación están centradas en analizar la motivación extrínseca y su influencia en el
comportamiento de las personas. Pero hay evidencias crecientes de que otros tipos de
incentivos que no son recompensas contingentes pueden también motivar a las personas
a trabajar, por ejemplo el aprender, el deseo de pertenecer, o la voluntad para contribuir
(BAUMEISTER y LEARY, 1995).
El VC es un conjunto de acciones que la empresa desarrolla para motivar y apoyar el
compromiso de sus trabajadores en actividades voluntarias en la comunidad (GOLDBERG,
2001). Sin embargo, no debemos olvidar que la gestión del trabajo voluntariado tiene

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como base el modelo de gestión empresarial (ALVES, 2010). Además, no se puede
también olvidar que los voluntarios precisan obtener más satisfacción en sus
realizaciones justamente porque no reciben ningún tipo de remuneración material o
financiera (CAMARGO et al, apud COSTA, 2004). Quizás es por eso que Garay y
Mazzilli (2003) identifican al VC como una forma de entrenamiento, capaz de ofrecer la
oportunidad para el ejercicio del liderazgo y de la responsabilidad, mientras aumenta el
nivel de satisfacción e identidad de los empleados con la empresa.
Para Amabile y Cramer (2012) la motivación es una combinación de la elección de
una persona para realizar una tarea, su deseo de dedicar su esfuerzo a realizarla y su
impulso para persistir en ese esfuerzo. Aunque las posibles fuentes de motivación en el
entorno laboral sean las más variadas, los mencionados autores señalan tres
motivaciones como las más importantes:
i) Extrínseca: hacer algo con el fin de lograr otra cosa;
ii) Intrínseca: surge del amor al propio trabajo y del querer hacerlo bien porque es
interesante, satisfactorio y fascinante o personalmente estimulante; y
iii) Relacional: también conocida como altruista, surge de la necesidad de conectar
con y ayudar a los demás.
Es decir, los autores añaden a los dos tipos de motivación ya clásicos (extrínseca e
intrínseca) una tercera, la relacional en donde tiene cabida el VC.
Al analizar los aspectos que son motivadores del desarrollo del trabajo voluntario,
Corullón (1997) señala haber descubierto, entre otros, dos componentes fundamentales:
(a) Personal: relacionado a la donación de tiempo y esfuerzo como respuesta a una
inquietud interior que es conducida a la práctica; y
(b) Social: asociado a la toma de conciencia de los problemas al enfrentarse con la
realidad, o que lleva a la lucha por un ideal o a comprometerse por una causa.
Teodósio (2001) señala que los voluntarios son motivados por un espacio de
convivencia social más saludable, huyendo de la competitividad y del estrés que
caracterizan el trabajo en el área privada.
Según Geber (1991), las personas participan del trabajo voluntario por tres razones
principales:
(i) Realización: personas a quién apetece dar algo a la sociedad;
(ii) Afiliación: voluntarios que tienen el deseo de conocer otras personas; y
(iii) Poder: utilizando el voluntariado como un camino más sencillo para alcanzar
posiciones de liderazgo más aún que esperar una promoción en el trabajo.
Además de esto, Azevedo (2007), detectó que motivaciones como altruismo y
solidaridad, ayudados por una dedicación espontanea del voluntariado, tienden a ser
mezclados cada vez más con intereses privados de perfeccionamiento de currículo y
vivencia profesional.
A este respecto, Azevedo (2007), contrastó el trabajo voluntario desde cinco
categorías de motivación:
(1) Asistencial: perspectiva de ayudar el otro que es carente de afecto, cosas materiales
y conocimiento;
(2) Humanitaria: contribuir con el otro, visto como semejante y próximo, pudiendo
incluirse el crecimiento espiritual;
(3) Política: búsqueda del ejercicio de la ciudadanía con acción emancipadora;
(4) Profesional: experimentar conocimientos adquiridos en la universidad, aplicarlos
para obtener empleo en ONG; y
(5) Personal: vinculada al tratamiento terapéutico y a la búsqueda de relacionamiento
interpersonal y de retorno emocional.

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Siguiendo esta línea, excluyéndose las cuestiones profesionales, de afiliación y
religiosas, se puede plantear una visión más endémica de las motivaciones del trabajo
voluntario donde se puede identificar las motivaciones para el trabajo voluntario
alrededor de las siguientes cuatro perspectivas:
1ª) Asistencial: pensar en el próximo y ayudarle sin esperar nada en cambio, en otras
palabras, se importar con la condición de vida de quien es menos favorecido y hacer un
poquito para él, donando su tiempo y conocimiento para contribuir con el bien estar de
las personas;
2ª) Humanitaria: colaborar y contribuir con el bien estar de las personas en general
prestando servicios, dedicando tiempo, talento y habilidad;
3ª) Ideológica: acción política o de ciudadanía buscando cambiar o construir un
mundo mejor o un país con menos desigualdades y más amor y justicia social; y
4ª) Realización: sentir placer y gratificado personalmente por hacer lo que haz, en
otras palabras, tener algo a ofrecer.

4. VOLUNTARIADO CORPORATIVO EN LA ESTRATEGIA COMPETITIVA

El VC surge en los años setenta en Estados Unidos. En Europa el reconocimiento


del año 2011 como Año Europeo de las Actividades de Voluntariado que Fomenten una
Ciudadanía Activa sirvió para impulsar el voluntariado, y concretamente para promover
iniciativas de creación de redes que estimulen las sinergias entre organizaciones de
voluntariado y otros sectores especialmente las empresas. En España, su desarrollo es
incipiente y está asociado principalmente a grandes empresas, que en algunos casos
empiezan con algunos sectores de sus recursos humanos; como los jubilados y prejubilados
y posteriormente van avanzando en otros sectores. También se extienden a otras
entidades que actúan en otros países y que necesitan voluntariado. En el caso brasileño,
el inicio del VC se enmarca en el año 1998 con la promulgación de la Ley nº 9.608, de
18 de febrero). Esa Ley del Voluntariado ganó destaque a partir del año 1998 con el
Programa de Voluntarios organizado por el Consejo de Comunidad Solidaria que buscaba
promover encuentros, fomentar iniciativas y propiciar más visibilidad a las prácticas de
voluntariado existentes en Brasil (ROSENFELD, MUTERLE y GASPAR, 2013).
El VC vincula temas de gran importancia, tanto en la empresa como en la ONL. Por
un lado, está vinculado, en la empresa, a las estrategias de RS y de recursos humanos y
a la inversión socialmente responsable y, por otro lado, contribuye al diálogo entre
sector empresarial y tercer sector. En el VC las empresas ofrecen a sus trabajadores la
opción de participar en una ONL como voluntariado, desarrollando tareas que ellos
pueden desempeñar. Así en el VC hay tres actores implicados: i) los empleados; ii) la
empresa; y iii) las ONL. Los empleados trabajan sintiéndose más motivados e
incentivados. La empresa gana puntos ante su entorno y todo ello redunda en un
aumento de su beneficio tanto por la mejora de sus recursos humanos como por su
imagen y reputación (GALLARDO et al, 2010). Las ONL se benefician directamente
por el aumento de su voluntariado, y también porque reciben voluntariado con
habilidades o destrezas, como el uso de las nuevas tecnologías, sistemas de
comunicación y sistemas de contabilidad (ALLEN, 2003).
En el contexto actual, las empresas deben crear valor no solo a nivel de obtención de
beneficios, sino también a nivel social. La RS es uno de los pilares sobre los que se
asienta el concepto de VC. Según la RS, además de los resultados económico-
financieros, la empresa debe trabajar para satisfacer un triple objetivo: social, económico
y medioambiental “triple bottom line” (MCDONOUGH y BRAUNGART, 2002).

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Otro de los pilares del VC es la teoría stakeholder, según la cual la realización de
cualquier actividad empresarial ha de ir encaminada a la satisfacción de los intereses de
las distintas partes implicadas. Hemos pasado de un entorno en el que apenas había otro
objetivo que la remuneración de los accionistas a través de los dividendos y ellos eran
prácticamente los únicos a los que iba dirigida la información financiera de la empresa,
a otro en el cual hay variados agentes implicados e interesados en su actividad.
Por otro lado, hay que señalar que en concreto, la motivación es uno de los temas de
mayor importancia en el ámbito empresarial debido, principalmente, al amplio margen
de maniobra que se proporciona a los gerentes en la toma de decisiones y en la selección
de técnicas, métodos y criterios que muchas veces pueden permitir a estos ejecutivos
satisfacer más a sus intereses propios que a los de la entidad que representan. Por esta
razón, el estudio de la compensación ejecutiva ha despertado el interés de una gran
cantidad de investigadores académicos, en particular de los teóricos del tema de la
agencia. Aunque dichos trabajos han intentado comprender la relación entre el
desempeño administrativo y el esquema de incentivos, Prendergast (1999) entiende que
han sido desarrollados pocos estudios empíricos tratando los efectos de los incentivos
para la compensación de los trabajadores.
Sin embargo, en la actualidad la teoría de los Stakeholders y la RSC son las dos
teorías que determinan el funcionamiento óptimo de las organizaciones (Gallardo et al,
2010). La primera persigue la satisfacción de las necesidades de todos los agentes o
grupos de interés involucrados en el desarrollo de la gestión empresarial. La segunda se
puede definir como “el reconocimiento e integración en sus operaciones por parte de las
empresas, de las preocupaciones sociales y medioambientales, dando lugar a prácticas
empresariales que satisfagan dichas preocupaciones y configuren sus relaciones con sus
interlocutores” (DE LA CUESTA y VALOR, 2003). Estas dos teorías están ligadas y
son la base del VC. El VC tiene que implantarse a nivel estratégico, porque hace que la
empresa sea socialmente responsable y también porque puede conseguir una verdadera
motivación en el área de recursos humanos, muy difícil de alcanzar en muchas
ocasiones por los métodos tradicionales de control de gestión.
Así, según el estudio del Club de Excelencia en Sostenibilidad con la Fundación Adecco
(2011) sobre el estado del VC en España, la gran mayoría de las ventajas y beneficios
que aporta el VC a las empresas están relacionadas con el área de los recursos humanos.
Entre las muchas ventajas que se citan destacamos, a modo de resumen, las siguientes:
 mejora la relación de la dirección con los empleados.
 Se crean nuevas relaciones entre los empleados de los diferentes departamentos.
 Ayuda a que los empleados desarrollen habilidades de liderazgo, trabajo en
equipo y creatividad.
 Genera un sentimiento de orgullo de pertenencia a la empresa.
 Genera una visión global de la empresa, que va más allá de las limitaciones de
un puesto o un departamento.
 Eleva la moral de los empleados, generándoles un sentimiento de satisfacción.

En esta misma línea Sanz et al (2012) explican que además de los beneficios que la
empresa obtiene con esta herramienta para la comunidad en general, las empresas han
reconocido también en el VC a una buena política de recursos humanos, con unas repercusiones
importantes en cuestiones como el fortalecimiento de valores éticos entre los empleados,
la promoción de valores como el trabajo en equipo, y la mejora del clima laboral, del
sentido de pertenencia a la empresa o incluso de su imagen, tanto interna como externa.
No queremos terminar este apartado sin resaltar de nuevo la vinculación que debe
tener el VC con el ámbito estratégico de la empresa, ya que éste puede utilizarse para

7
mejorar las competencias en desarrollo empresarial y fomentar la capacidad de innovar,
además de la mejora en la capacidad de liderazgo en el ámbito de los recursos humanos.
En el caso del VC para el desarrollo puede servir para dirigir o afianzar la estrategia de
la empresa hacia mercados emergentes, gracias a la inmersión en nuevas culturas y
contextos, los empleados pueden comprender mejor sus hábitos y sus comportamientos.
Esto puede apoyar la creación de estrategias de comercialización más pertinentes,
aunque con las limitaciones de la complicada adaptación de los sistemas de gestión a
estos mercados y del coste que supone.

5. APROXIMACIÓN A LA GESTIÓN DEL VOLUNTARIADO CORPORATIVO

El VC lleva aparejado cierta complejidad para la empresa, como señalan


(GALLARDO et al, 2010) en el VC se produce un intercambio en el que intervienen
tres actores diferentes (empresa, empleados y ONL), y cada uno con sus objetivos y
expectativas, por ello el VC ha de ser capaz de constituirse como un escenario en el que
todos ganen (PELOZA y HASSAY, 2006). De acuerdo con Allen (2012), el VC cuenta
con unas características específicas que tienen que observarse para desarrollar un
programa de VC. Siguiendo a Allen (2012), un programa de VC ha de estar alineado
con las competencias de la empresa; estar basado en habilidades profesionales y en la
experiencia laboral de los empleados de la empresa; centrarse en el problema a resolver
y en los beneficiarios; tratar de desarrollar el liderazgo y las habilidades de los
empleados que participan; seguir un proceso riguroso y serio en el desarrollo del
programa con elevados estándares.
En un programa de VC la empresa establece alianzas y trabaja en estrecha
colaboración con la ONL. Las empresas buscan de forma deliberada aprender sobre y de
la experiencia de sus empleados voluntarios. Por lo que un programa de VC se debe
estructurar de forma similar al proceso que sigue cualquier organización al establecer su
control de gestión según el ciclo básico de retroalimentación (Figura 1), en el que se
identifican las etapas de planificación, implementación, evaluación y actuación. En este
sentido, la Fundación CODESPA y la consultora internacional The Boston Consulting
Group han formalizado un proceso de implementación de programas de VC
(FUNDACIÓN CODESPA, 2012).

Figura 1. Ciclo básico de retroalimentación

Fuente: E. Deming (1997)

i. Etapa de planificación

En la etapa de planificación se va a estructurar el marco en el que se desarrollará


la acción del VC, una vez definido será necesario plasmar por escrito los objetivos: ¿por

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qué hacemos un programa de VC?; los resultados previstos: ¿qué esperamos obtener de
la participación o incorporación del VC en nuestra organización?; las actividades
previstas: ¿qué es lo que realizaremos para conseguirlo?; y los recursos necesarios ¿qué
recursos vamos a utilizar?. En esta etapa es aconsejable utilizar técnicas de
braimstorming y para guiarlo es conveniente plantear un análisis de riesgos y beneficios
de la colaboración con la empresa como plantean algunos autores (VALOR, 2010;
LEMONCHE, 2011, ALLEN, 2012). En esta etapa se procede a la estructuración del
marco en el que se desarrollará la acción del VC, tiene como punto de partida la
estrategia global de la empresa, la misión y la visión así como los valores organizativos
y ha de establecerse la forma de realizar la búsqueda de Organizaciones No Lucrativas
susceptibles de establecer una colaboración de VC (FUNDACIÓN LA CAIXA, 2009).
También es necesario explicitar los potenciales beneficios para la empresa a
nivel organizacional y de reputación corporativa. El VC contribuye a mejorar el clima
organizacional a través del aumento de la motivación, satisfacción y sentimiento de
pertenencia de los empleados (HARRIS, 2000). Asimismo, incide positivamente en la
imagen corporativa y en el posicionamiento en el ámbito de la RSC, además posibilita
la integración de los empleados en la acción social de la empresa (HOUGHTON et al.
2009; FUNDACIÓN CODESPA, 2012).
De acuerdo con Lemonche (2011) a pesar de que pueden existir múltiples
fórmulas a través de las cuales los empleados de una empresa pueden organizar su
participación en programas de VC se pueden plantear diferentes opciones atendiendo a
la capacitación necesaria del voluntariado, al destino donde se desarrolle la tarea de
voluntariado, a las causas que se persigan, a los campos de actuación, a las funciones a
realizar y al tiempo empleado en el voluntariado. Hay que tener en cuenta que una vez
comienza la incorporación del empleado al VC se inicia un proceso de intercambio en el
cual el voluntario entrega a la ONL su ilusión, motivación y compromiso. Y por su
parte, la ONL le proporciona al voluntario unos objetivos por los que trabajar, un
equipo en el que integrarse, unos instrumentos de trabajo y un reconocimiento que ha de
generarle satisfacción.

ii. La etapa de implementación

En esta etapa es importante considerar el modelo de VC que va a seguir la empresa


en línea con su estrategia de RSC. Ya que se ha de programar, gestionar y coordinar las
actividades previstas a desempeñar por los voluntarios estableciendo la cronología de
desarrollo y las normas de procedimiento necesarias. En este sentido, Lemonche (2011)
identifica múltiples modelos de VC que exigen distinto compromiso por parte de la empresa:

 Donaciones, es la forma más sencilla y directa de participación solidaria de los


empleados de una empresa en los programas de acción social de ésta mediante
aportaciones voluntarias de dinero;
 Matching individual, la empresa organiza unidades de trabajos específicos para
canalizar iniciativas de voluntariado de sus empleados;
 Microvoluntariado virtual, que consiste en que los empleados realicen pequeñas
tareas a distancia sin desplazarse del puesto de trabajo;
 Microdonaciones de empleados, los empleados contribuyen con aportaciones únicas
o periódicas de una cantidad de dinero muy pequeña;
 Campañas, se trata de un VC clásico en el entorno empresarial español, los empleados
participan en actos mediante donaciones en dinero o en especie, o colaborando
directamente en actividades que no requieren una especial cualificación técnica;

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 Bancos de tiempo, los empleados utilizan una cuota de tiempo que la empresa
concede para este fin y éstos aportan a su actividad voluntaria un tiempo equivalente
de sus horas libres como complemente a la cuota de tiempo aportada por la empresa;
 Outdoor solidario, para los empleados supone una importante experiencia vital y tiene
una gran capacidad de motivación y generación de espíritu de equipo entre los empleados;
 Voluntariado profesional, la persona voluntaria aplica sus conocimientos y
habilidades profesionales en servicio de la ONL, en este caso existe una gran
alineación en las competencias de la empresa y de la ONL;
 Cesión de capital humano, la empresa cede personal cualificado a la ONL durante
un periodo de tiempo determinado, se trata de que el empleado trabaje temporalmente
y de forma continua en la ONL, manteniendo la relación laboral con la empresa.

El desarrollo de la acción voluntaria supone gestionar adecuadamente la distribución


de tareas y responsabilidades, de forma que la participación del voluntariado sea real en
la ONL. Para ello, tanto la empresa como la ONL en la que se desarrolla el programa de
voluntariado deben colaborar en el seguimiento y acompañamiento de la acción voluntaria.

iii. Etapas de evaluación y actuación

La etapa de evaluación tiene como objetivo conocer la evolución del programa de


VC, en ella se realiza el seguimiento de la acción voluntaria y el análisis de la ejecución
del programa identificando las causas de posibles de desviaciones o deficiencias
detectadas (López Salas, 2009), y a partir de las mismas proponer medidas
reconductoras del programa. En este punto, resulta de gran importancia la labor del
responsable del VC y la realización de evaluaciones periódicas de la tarea llevada a
cabo por los voluntarios. La evaluación constituye una oportunidad de dar y recibir
retroalimentación y de analizar las metas logradas hasta el momento.
Por último, la etapa de actuación en busca de nuevas oportunidades consiste en, una
vez identificadas las causas de posibles desviaciones o deficiencias, elaborar y proponer
medidas reconductoras o alternativas que mejoren el VC. Se trata de volver a definir las
prioridades y objetivos de la relación de la empresa con la ONL para analizar la
coherencia del proyecto específico desarrollado con la línea de actuación de la RSC. Es
en este momento en el que hay que pararse a pensar en lo que se ha estado haciendo
hasta el momento y considerar si en realidad se ha aprovechado de forma correcta todo lo
que pueden ofrecer las iniciativas de VC que se han llevado a cabo.

6. LOS RECURSOS HUMANOS Y EL VOLUNTARIADO CORPORATIVO

Según Ces y Adecco (2011, p. 22), a la hora de implantar un programa de


voluntariado en una empresa, es importante seguir el mismo proceso que con cualquier
otra iniciativa corporativa que implique la movilización y gestión de recursos y de
capacidades dentro de la organización. Es decir, en primer lugar, cabe promover una
reflexión dentro de la empresa sobre el alcance pretendido con estas actividades y el
grado de alineamiento de éstas con los valores y la cultura de la organización.
En este apartado se explora y reflexiona sobre los recursos humanos, en base a las
políticas de VC como una línea fundamental dentro de las políticas de RSC de las
empresas. Cuando hablamos de VC, hablamos, también, de la organización y estructuración
de estas políticas y del desarrollo de las actividades que conlleva, ya que el VC tiene
una complejidad elevada, debido a los diversos factores que involucra (diferentes
objetivos de las empresas y las ONG, expectativas creadas en los empleados, diferente

10
visión de la rentabilidad de estas actividades, importancia de la calidad de la ayuda a los
beneficiarios, etc.).
Para el Valor (2010), el VC implica en la puesta de activos empresariales al servicio
de proyectos sociales. Esta inversión social puede describirse como un mix de recursos
de todo tipo, que puede contener:
1. Activos financieros: Donaciones en efectivo, programas de patrocinio asociados
a fines sociales, préstamos de capital.
2. Activos tangibles no financieros: Productos de catálogo, espacio en almacenes,
espacio en oficinas, maquinaria, medios de distribución, espacio en internet, excedentes
de producción.
3. Activos intangibles: Elementos de imagen y marca, copyright y patentes,
tecnología, I+D, beneficios asociados a contratos de suministro, organización de
eventos.
4. Capital humano: Tiempo y capacidades de los empleados para programas de
voluntariado corporativo.
Por sus características, complejidades y papel jugado, es el capital humano la
inversión más importante del compromiso solidario de una empresa hacia las
necesidades de la sociedad, ya que tiene que ver con la aportación del activo más
valioso de la empresa que es su capital humano.
Según el Valor (2010), el enorme potencial de talento, capacidades y entusiasmo de
una plantilla formada, organizada y con espíritu solidario encuentra una vía inmejorable
de aportación a la sociedad a través del VC. Todo ello hace necesario el desarrollo de
herramientas que sirvan a las corporaciones para tomar decisiones adecuadas en este
ámbito; ya que está en juego el prestigio de la empresa, la satisfacción de los empleados
y la ayuda eficaz a colectivos necesitados.
Las recientes investigaciones muestran que desde el año de 2011 ha crecido a nivel
mundial el número de empresas que incluyen el VC entre sus políticas de recursos
humanos y de responsabilidad social. Sin embargo, dicha evolución presenta un
panorama un tanto estancado en cuanto a la gestión del voluntariado (VALOR, 2010).
Para el Observatorio de Voluntariado Corporativo, esta situación puede ser síntoma
de la necesidad de dar un nuevo paso hacia un VC verdaderamente estratégico,
inseparable del propio negocio y de la cultura de la empresa. Según el OVC, este es un
gran reto para quienes son responsables de su gestión en las compañías y también en las
organizaciones del tercer sector. Entre las tareas pendientes para lograr la madurez del
VC son señaladas las siguientes:
1. Conocer mejor las motivaciones de los empleados para fortalecer su implicación;
2. Mejorar la eficacia y la eficiencia de las iniciativas, a través del uso de métricas
adecuadas que permitan conocer todas las dimensiones del impacto de un programa de
voluntariado;
3. Definir clara y explícitamente los objetivos de la estrategia y los diferentes planes
de VC;
4. Innovar la oferta de acciones posibles, explorando nuevas herramientas,
posibilidades de la cooperación sectorial y ampliando el espectro de grupos humanos
con necesidades específicas.
En definitiva, el objetivo es consolidar un estilo de gestión del voluntariado que
busque la excelencia a través de la gestión innovadora y eficiente de sus recursos
humanos, es decir, las personas que integran la organización.
Sin embargo, estudios sobre el VC, como la investigaciones desarrollada por
Voluntare (2013), señalan la importancia y necesidad de medir el impacto que se está
teniendo sobre los diferentes actores involucrados a través del desarrollo de la acción

11
voluntaria. La literatura indica que la medición del impacto del VC sigue siendo un
tema pendiente entre las empresas y, en general, tampoco se evalúa la actuación y el
resultado aportados por aquellos que colaboran en este marco de VC.
El hecho de no se medir el resultado del VC no permite mejorar su contribución, ni
gestionarlo, y ni siquiera argumentar beneficios tangibles para garantizar una sostenibilidad
en el compromiso de los recursos humanos y de la propia empresa. Para Voluntare (2013, p.
138), “las razones más comunes por la que la medición presenta un reto para empresas y
sus recursos humanos en el ámbito de VC son varias y se podrían definir en tres aspectos.
En primer lugar, la medición de los resultados e impactos de los programas de voluntariado
corporativo puede suponer un reto debido a la orientación de la mayoría de las empresas
hacía la acción. Es decir, el enfoque se centra en el desarrollo e implantación de actividades
de voluntariado dificultando el establecimiento de hitos de medición. En segundo lugar,
la medición de los impactos de este tipo de programas se encuentra con escepticismo
interno. Los ejercicio de medición requieren una asignación de recursos por parte de la
empresa - sea humanos o financieros. Debido a esta orientación a la acción, la
asignación de recursos para el desarrollo de la medición puede parecer, internamente,
como un aspecto eliminable ya que se considera preferible el desarrollo de actividades.
Y finalmente, existen casos donde la empresa o los responsables del programa pueden
tener su propio escepticismo o fobia a la medición del impacto de este tipo de
programas ya que destaca una intención de la empresa por la mejora del programa -
destacando puntos débiles - y una mayor integración estratégica en la gestión de la
empresa. Este tipo de ejercicios de medición, en definitiva, llevan a la mejor gestión y
comprensión del programa planteando diferentes opciones de avance que pueden ser
vistas positivamente o recibidas con el escepticismo interno comentado anteriormente.”
Más allá de una orientación hacía la acción y el escepticismo interno, el ejercicio de
medición de impacto, también está condicionado por los objetivos que persiguen los
colaboradores. Una empresa, por ejemplo, puede tener diferentes objetivos a la hora de
desarrollar acciones en el marco del VC. Desde los recursos humanos, el VC es un
instrumento con un alto nivel de coste-efectividad para el desarrollo de habilidades y
capacidades. Permite, entre otras cosas, aprender y practicar habilidades, desarrollar
capacidades de liderazgo, aprender a trabajar eficazmente en equipo, refinar las habilidades
existentes, trabajar en nuevos entornos y construir nuevos conocimientos de las realidades
sociales. Desde un punto de vista más corporativo, puede querer mejorar su reputación e
imagen entre sus grupos de interés locales o posicionarse como un colaborador activo y
fiable en el apoyo social de su comunidad (VOLUNTARE, 2013, p. 139).
Por lo tanto, la medición de impacto de programas de VC sigue siendo un reto para
empresas, entidades y otros colaboradores que puedan estar involucrados en el
desarrollo de acciones de voluntariado. Algunas empresas con prácticas más avanzadas
de voluntariado suelen incluir indicadores de medición tales como el nivel de
satisfacción de los empleados y el impacto social cuantitativo (número de beneficiarios,
horas dedicadas, etc.). Por esa razón, muchas empresas, ante el riesgo de que no haya
una gran participación de empleados, tienden a ofrecer acciones que consideran pueden
ser divertidas para la plantilla. Esto en muchos casos supone un coste de oportunidad
frente al potencial impacto social (VOLUNTARE, 2013, p. 15).
Actualmente, ya existe disponible para las empresas un gran número de
herramientas y metodologías de medición del impacto que se está teniendo sobre los
diferentes actores involucrados a través del desarrollo de la acción voluntaria. En el
ámbito de los recursos humanos, la medición de resultados de programas de VC debe
incorporar herramientas y metodologías que intentan brindar apoyo al ejercicio de
medición de los resultados de programas de voluntariado corporativo, de modo a

12
motivar la persuasión interna en la propia empresa. Eso porque las empresas no están
aprovechando bien sus programas de VC para medir y entender los beneficios asociados
con el desarrollo de capacidades y habilidades de sus recursos humanos.
Además de facilitar la labor de destacar la importancia de las acciones llevadas a
cabo por los empleados, el hecho de incorporar la medición del resultado de los recursos
humanos como parte integrante de la gestión de los programas de VC, al igual que se
hace en cualquier otro proyecto empresarial, tiene impacto positivo en la contribución
que tiene el VC para la empresa y para la sociedad. De ahí que una metodología desarrollada
para medir el impacto que se está teniendo sobre los diferentes actores involucrados a
través del desarrollo de la acción voluntaria debe:
1. Adoptar un enfoque estratégico, identificando a los objetivos clave que están
tratando de lograr.
2. Adoptar una aproximación estratégica de los recursos humanos.
3. Construir un marco referente a las actividades, recursos y actores del programa.
4. Identificar las métricas existentes, se posible aprovechando las medidas utilizadas
por la empresa.
5. Analizar a las diferencias métricas y modificar los gaps según sea necesario.
6. Dialogar con grupos de interés, involucrando al personal que tiene la responsabilidad
de gestión.
Lemonche (2011, p. 93) señala que la medición de resultados es una necesidad y un
reto aplicable a las actividades voluntarias, para que se pueda gestionar al VC. Por ser el
VC una herramienta de generación de valor, es necesario evaluar esta aportación de
valor para los agentes que participan en ella, estableciendo indicadores, criterios de
seguimiento y mecanismos de medición y valoración de resultados.

7. CONCLUSIONES

El VC es una realidad que está creciendo y que previsiblemente va a adquirir una


mayor presencia en el futuro. Hay que señalar que el VC como estrategia empresarial
sirve para afianzar las políticas de recursos humanos en la empresa y para redefinir RSC
contribuyendo a una mejora de su entorno social. La implementación del VC por parte
de la empresa debe permitir perseguir el equilibrio entre la responsabilidad interna y
externa procurando atender las necesidades y demandas de los diferentes grupos de
interés. Y es que el VC favorece la mejora del clima organizacional y la imagen
corporativa de la empresa.
El VC representa una oportunidad para motivar a los empleados a través de la
participación en el programa de VC, para lo cual se requiere profundizar en su gestión.
La gestión del programa de VC es compleja, por lo que requiere un responsable de VC,
ya que se ha de gestionar la participación de los empleados en el programa y la relación
con la ONL en la que se va a desarrollar el programa para que la colaboración sea
duradera, a largo plazo y se adapte a los intereses de la empresa.
En este trabajo hemos prestado atención a la gestión del VC desde una perspectiva
teórico-analítica con el objetivo de contribuir al debate sobre esta incipiente y creciente
práctica de voluntariado. Dada la importancia de profundizar en el proceso de
implementación de programas de VC, se ha puesto de relieve que éste se tiene que de
forma similar al proceso que sigue cualquier organización al establecer su control de
gestión según el ciclo básico de retroalimentación con sus diferentes etapas:
planificación, implementación, evaluación y actuación.
La etapa de planificación debe responder a preguntas como las siguientes: Qué es el
VC y cuál es la situación del VC. Qué pretendemos y qué esperamos obtener a partir de

13
la participación en el VC. También hay que determinar la coherencia del VC con la
estrategia de RSC de la empresa, su perfil y políticas. En ella se estructura la acción
quedando establecidos y definidos todos los elementos del programa de VC. La etapa de
implementación contempla el desarrollo de la acción voluntaria y el acompañamiento
del empleado en el programa de voluntariado en la ONL. La etapa de evaluación tiene
como finalidad el seguimiento y análisis de la acción voluntaria. Por último, la etapa de
actuación trata de volver a definir las prioridades y objetivos de la relación de la
empresa y la ONL para analizar la coherencia del proyecto específico desarrollado con
la línea de actuación de la RSC.
A modo de conclusión, señalamos que para medir un programa de VC de manera
plena, es importante tener en cuenta la gestión de los recursos humanos antes de
empezar el programa - durante su conceptualización - y utilizar el ejercicio de medición
de su resultado y desempeño como guía para mejorar la calidad del programa desde el
punto de vista de valor para el empleado.

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17
Administração Pública Brasileira: entre o ideal (euro-americano) e real
(tupiniquim)

Elinaldo Leal Santos1


Weslei Gusmão Piau Santana2
Fabrício Soares dos Santos Batista3
Ana Rocha Viana4

Resumo: Este ensaio apresenta uma reflexão sobre a seguinte questão: por que existem, ainda
hoje, resquícios de antigos comportamentos administrativos na estrutura da administração
pública brasileira? Nossa explicação para esse fenômeno está no fato de como a sociedade
lida com os conceitos de racionalidade, formalismo, modernidade e bem-estar. A análise é
baseada nos estudos de Riggs (1964), Ramos (1967; 1983; 1989), Weber (1999), Fraser
(2002), Paes de Paula (2005), e Zwick et al (2012). Busca-se formular uma síntese das
questões abordadas, sinalizando para o comportamento híbrido da administração pública
brasileira, sem a pretensão de ser um estudo completo e acabado, mas uma reflexão sobre
ação administrativa do Estado brasileiro.

Palavras-Chaves: Administração Brasileira. Modelos Gerenciais. Comportamento


Hibridizado.

Introdução

Diversas práticas políticas e administrativas, como corrupção, concessão cruzada de cargos,


favoritismo na esfera pública, facilitações em processo licitatório, direcionamento de emendas
parlamentares, entre outros, normalmente são vistas na mídia isoladamente, sem que se
conheça a causa, o sistema, o funcionamento e o alcance dessas práticas. A visão isolada
desse processo gera falhas nas análises conjunturais, erros de predição, propostas de
mudanças mal formuladas que podem desorientar a ação do Estado. A Administração, na
condição de campo disciplinar, tenta, de alguma forma, explicar esse fenômeno, sempre
amparada por modelos teóricos, que se incorporam à cultura política de cada época, como nas
ideias de Max Weber, com as formulações dos tipos ideais de dominação e formação do
poder, como no pensamento funcionalista de Talcott Parsons, responsável por uma parcela

                                                                                                                       
1
Doutor em Administração pela Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (EAUFBA), em
Cotutela com a Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD-Portugal); Professor do Departamento de
Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB); Coordenador do Grupo
Estudo e Pesquisa em Administração Política do Desenvolvimento (GPAP).E-mail: elinaldouesb@gmail.com
2
Doutor em Administração pela Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (EAUFBA);
Professor do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB); Coordenador do Grupo Estudo e Pesquisa em Administração Política do Desenvolvimento (GPAP). E-
mail: wesleipiau@gmail.com
3
Licenciado em História (UESB); Aluno do Curso de Especialização em Gestão Pública Municipal
(UESB/DCSA). E-mail: fssb30@hotmail.com
4
Bacharelanda em Administração (UESB); Bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado da Bahia (FAPESB). Integrante do Grupo de Pesquisa em Administração Política do Desenvolvimento
(GPAP). E-mail: anarochaviana@gmail.com

1  
 
significativa da configuração do Estado no Brasil e recentemente, no viés neoliberal que
norteou as últimas reformas estruturais, porém, nem sempre com grande êxito.

Alguns autores (PINHO e SACRAMENTO, 2001; COSTA, 2008; SECCHI, 2009) defendem
que a administração pública brasileira vivenciou, desde a sua formação, três grandes modelos
de gestão: o patrimonialista, o burocrático e o gerencialista. O patrimonialismo é uma marca
na formação do Brasil Colônia, transportado para o Brasil Império e que ainda sobrevive no
Estado Republicano. O burocrático é um ícone do Estado Novo que adentrou na Nova
República. O gerencialismo se apresenta como alternativa ao modelo burocrático e é
introduzido no Estado brasileiro no início dos anos 1990, por meio da política neoliberal
(ABRUCIO e LOUREIRO, 2002). Contudo, para além desses formatos institucionais, cabe
acrescentar o modelo de gestão societal que emergiu no contexto brasileiro, por força da
iniciativa popular, na década de 1980, no período da redemocratização do País e da
elaboração da Constituinte (PAES DE PAULA, 2005). No decorrer desse ciclo, constatou-
se que tais modelos não foram capazes de eliminar os resquícios do comportamento
patrimonialista das organizações brasileiras.

É perceptível que cada modelo torna-se predominante sem romper completamente as bases
existentes anteriormente, criando uma espécie de path dependece na construção do Estado.
No caso do Estado brasileiro, introduziu-se a burocracia sem vencer o patrimonialismo,
incorporou-se o gerencialismo sem ter implementado uma burocracia real, num Estado que
continuava convivendo com as práticas patrimonialistas e clientelistas. Diante disso, pretende-
se, nesse ensaio, refletir sobre a seguinte questão: por que existem, ainda hoje, resquícios de
antigos comportamentos administrativos na estrutura da administração pública brasileira?
Para refletir sobre essa questão, retomam-se os trabalhos de Riggs (1964), Ramos (1967;
1983; 1989), Weber (1999), Fraser (2002), Paes de Paula (2005), e Zwick et al (2012), com a
finalidade de detectar algumas pistas teóricas que nos ajudem a explicar tal fenômeno.

Após a delimitação do tema do ensaio, a primeira seção descreve o processo histórico da


formação e administração do Estado brasileiro. Faz-se uma reflexão sobre o modo como os
quatro modelos de gestão (patrimonialista, burocrático, gerencial e societal) foram
configurados e as implicações desses formatos institucionais no contexto socioeconômico. A
segunda seção faz uma análise do comportamento e da ação administrativa do Estado
brasileiro, de modo a entender o fenômeno da administração pública hibridizada, denominada
por Zwick et al de administração pública tupiniquim. A terceira seção argumenta que a
administração pública hibridizada é um fenômeno social, predominante nas sociedades em
desenvolvimento, resultante, praticamente, de quatro conceitos teóricos - racionalidade,
formalismo, modernidade, bem-estar – interpretados de forma equivocada pelo pensamento
hegemônico euro-americano de gestão. Por fim, busca-se formular uma síntese das questões
abordadas, sinalizando para algumas manifestações do hibridismo na administração pública,
sem a pretensão de ser um estudo completo e acabado, mas uma reflexão sobre ação do
Estado, sujeito a críticas, reformulações e complementações.

Origem e Evolução da Administração Pública Brasileira

Em Os Donos do Poder, editado originalmente em 1958, Faoro (2001) defende a tese de que
o Estado e a administração pública brasileira têm origens na ética do patrimonialismo. Nela, o
público e o privado se confundem, se misturam e se entrelaçam. O Estado brasileiro,
diferentemente dos demais latinos e norte-americanos não foi instituído por conquista
popular, ao contrário, sua instalação é resultado da transferência da corte portuguesa para a
2  
 
colônia brasileira, em 1808, e do decreto de criação do Reino Unido Portugal, Brasil e
Algarves, tornando-se irreversível a constituição de um novo Estado-nação (COSTA, 2008).

Do ponto de vista da análise histórica, Costa (2008) defende que, com o retorno de D. João VI
a Portugal para reassumir o controle político da metrópole, o Brasil herdou não apenas um
príncipe, mas também, todo um aparato administrativo instalado pelo rei. A elevação à
condição de corte de um império transcontinental fez da administração brasileira, agora
devidamente aparelhada, a expressão do poder de um Estado Nacional que jamais poderia
voltar a constituir-se em mera subsidiária de uma metrópole de além-mar. O resultado é que,
em sete de setembro de 1822, D. Pedro I, o príncipe herdeiro, declara a independência e
institui o governo do Brasil, valendo-se do aparato da regência do Reino Unido que se partia.
Desse modo, do ponto de vista jurídico-político, o Estado brasileiro nasce da Constituição de
1824. Porém, essa primeira Constituição mantém a monarquia e a dinastia da Casa de Orléans
e Bragança e D. Pedro I como imperador e defensor perpétuo do Brasil. Constituía-se um
Estado unitário e centralizador, cujo território era dividido em províncias, que substituíam as
antigas capitanias.

Embora proclamada a independência política da corte portuguesa, o Brasil ainda continua


fortemente influenciado pelo estilo de gestão lusitana. O patrimonialismo constitui o nosso
primeiro modelo de administração pública (COSTA, 2008). Do ponto de vista cronológico,
Faoro (2001) considera que o patrimonialismo acompanha a administração pública brasileira
desde o período do descobrimento do Brasil, em 1500, até a Revolução de 1930, com a
instauração do Estado Novo. As principais características desse modelo são:

§ Tratamento da coisa pública pela autoridade como uma coisa privada;


§ Predomínio da vontade unipessoal do dirigente;
§ Relações clientelísticas e prática de nepotismo;
§ Cargos públicos como instrumento de recompensa;
§ Fortes indícios de corrupção nos atos públicos.

O fenômeno do patrimonialismo não raro tem fomentado inúmeras discussões no cenário


teórico nacional, abrindo um novo e fecundo campo de investigação ao cientista que se
esmera pelo estudo do curioso nascimento de nossas instituições políticas, conforme pode ser
observado nos estudos de Bresser-Pereira (1996), Pinho (1998), Secchi (2009), entre outros.
Os estudos destes investigadores sinalizam para o fato de que embora seja um fenômeno que
iniciara no Brasil Colônia e Brasil Império, continua, ainda hoje, presente na administração
pública brasileira, mesmo que seja de forma camuflada nas práticas de clientelismo e/ou
fisiologismo partidário.

Até a Revolução de 1930, as mudanças no cenário político e social tinham sido poucas e
muito lentas. Mas, a partir de 1930, um forte desejo de mudança surgiu no País, motivado por
fatores externos e internos, como: a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Comunista, a
Crise Econômica de 1929, a Semana de Arte Moderna, de 1922, e pelos movimentos
operários, militares e civis. Entre as ações de desejo de mudança, estava a da implantação de
uma gestão pública, pautada nos princípios da racionalidade, legalidade, impessoalidade e da
meritocracia, ou seja, bem nos moldes weberianos.

A ideia de implantar uma administração pública mais técnica e meritocrática no Estado


brasileiro, ganha relevância no governo provisório de Getúlio Vargas, em 1933, quando
começa introduzir as técnicas administrativas mais modernas, sobretudo, a de planejamento
3  
 
orçamentário e a de concurso público. Mas, a concretização deste fato ocorre com a
implantação do Departamento de Administração do Serviço Público (DASP), em 1938, agora
já no denominado Estado Novo.

A criação do DASP tem sido apontada como a implantação de uma burocracia


do tipo weberiana no Brasil. Weber finalmente chegaria ao Brasil através do
DASP. A implantação de uma burocracia racional, moderna justifica-se dentro
do espírito revolucionário de conduzir o País a um nível de desenvolvimento
até então nunca empreendido (PINHO, 1998, p.60).

O novo modelo de gestão pública parte da crença de que as organizações são concebidas para
incrementar a racionalidade humana e estruturar o comportamento humano, de modo que esse
comportamento possa se aproximar de uma racionalidade perfeita. De forma sintética, as
principais características deste modelo são:

§ Separação entre público e privado;


§ Separação entre política e administração;
§ Tarefas orientadas por normas escritas;
§ Divisão do trabalho;
§ Cargos públicos estabelecidos de forma hierarquizante;
§ Regras e normas técnicas para desempenho de cada cargo;
§ Seleção de pessoal por meritocracia.

Com essa proposta modernizadora, o modelo burocrático weberiano, por muito tempo,
desfrutou de notável prestígio em todo mundo (SECCHI, 2009). Entretanto, após a II Guerra
Mundial, surgem as primeiras críticas ao modelo. A ilusão da racionalidade perfeita, as
disfunções burocráticas, a rigidez das normas são questões analisadas nos trabalhos de Simon
(1947), Waldo (1948) e Merton (1949) e consideradas como frágeis na gestão burocrática.
Mas, a maior crítica ao modelo de gestão burocrática surge na década de 1970, quando se
questionaram os resultados alcançados por esse modelo de gestão: instabilidade político-
econômica, baixa produtividade e endividamento do Estado. Nessa ocasião, por exemplo, a
América Latina estava imersa no autoritarismo político. Os Estados Unidos da América
(EUA) temiam os efeitos de um novo momento da guerra fria e a perda do seu poder
hegemônico, “ameaçado pela ascensão econômica da Alemanha e do Japão, bem como, pelo
avanço tecnológico-militar da União Soviética e pela derrocada americana na Guerra do
Vietnã” (FIORI, 2004, p. 80). Para esse autor, a crise é fruto de uma “compulsão expansiva e
da tendência destrutiva das potências hegemônicas na busca do poder global” (FIORI, 2004,
p. 81). Pari passo, a pobreza mundial, principalmente na África e Ásia, fez com que se
repensasse a gestão do sistema capitalista de produção e sua possível desordem, demandando,
com isso, mudanças nas perspectivas de financiamento e estruturação dos Estados Nacionais.

A falta de apoio político-financeiro para a manutenção do Estado do Bem-Estar Social,


contribuiu para o surgimento de outra filosofia gerencial, a neoliberali, cujo lema é, menos
Estado e mais mercado. Anderson (1995), ao analisar as implicações do pensamento
neoliberal na sociedade contemporânea, nos chama atenção para a importância de
indagarmos as causas do discurso liberalizante, bem como suas relações com o processo de
globalização da economia.

As reformas estruturais dos fins dos anos 1980 já marcam uma nova
configuração na ordem política mundial: a hegemonia da política neoliberal
assola de forma mais grave os países periféricos, dá ênfase no mercado como
4  
 
condutor das ações locais e internacionais e afeta diretamente a condução das
políticas públicas e a estrutura do aparelho de Estado (ANDERSON, 1995, p.
16).

De fato, é com a globalização e com as práticas administrativas neoliberais que o modelo de


gestão burocrático sofre a sua maior derrota em todo mundo. Isso contribuiu para o
fortalecimento do movimento gerencialista, bem como das suas ramificações gerenciais -
Administração Pública Gerencial (APG), Nova Administração Pública (NPA), Governo
Empreender (GE) e Governança Pública (GP). De certa forma, podemos dizer que a
finalidade maior do movimento gerencialista é combater o Estado de Bem-Estar Social e,
consequentemente, eliminar o seu modelo de gestão. Para isso, seus idealizadores propõem o
enxugamento do Estado, do ponto de vista de suas estruturas administrativas; disciplina
orçamentária e taxa natural de desemprego, suficiente para garantir o exército de reserva de
trabalhadores com baixos salários, além de uma reforma fiscal capaz de assegurar a retomada
das taxas de lucro, com vistas a garantir os investimentos.

No Brasil, o movimento gerencialista, na administração pública, tem início na década de


1980, quando vários planos anti-inflacionários foram implantados na tentativa de combater os
“males” gerados pelo o Estado de Bem-Estar Social. Todavia, é com o Plano Real, iniciado no
governo de Itamar Franco e consolidado no governo de Fernando Henrique Cardoso, que o
País consegue alcançar a estabilidade inflacionária. A partir daí, em 1994, inicia-se uma
reforma estrutural da administração pública do Estado brasileiro, por meio do Ministério de
Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), conduzida por Bresser Pereira, sob
uma clara orientação neoliberal.

Assim como os neoliberais, Bresser Pereira, também, entende que a causa básica da falência
da gestão burocrática encontra-se na crise do Estado. E esta assume três formas: crise fiscal,
crise estratégica e a crise administrativa. Portanto, em situações nas quais a administração
pública é ineficiente e o mercado não faz uma alocação de recursos satisfatória, a necessidade
de uma administração pública eficiente passa a ser uma ação estratégica. Quanto isso se
expressa a administração burocrática deve ser substituída por uma administração gerencial,
defende Bresser (1996). Esse é o argumento central para incorporação do gerencialismo no
Estado brasileiro e o modelo adotado para essa ação foi o da administração pública gerencial
(APG).

De modo geral, a administração pública gerencial (APG) consiste na aplicação de preceitos e


técnicas empresariais na gestão pública, mas sem perder sua característica específica, “a de
ser uma administração que não está orientada para o lucro, mas para o atendimento do
interesse público” (BRESSER-PEREIRA apud PINHO, 1998, p.71). O modelo é orientado
para o desenvolvimento de práticas gerenciais que valorizam a eficácia e o resultado, e não
somente, a eficiência e os procedimentos, como orienta o modelo burocrático. As principais
recomendações são:

§ Administração profissional;
§ Descentralização administrativa;
§ Maior competição entre as unidades administrativas;
§ Disciplina fiscal e controle no uso dos recursos;
§ Avaliação de desempenho;
§ Controle de resultado;
§ Transposição de práticas de gestão do setor privado, entre outras.
5  
 
Como se percebe, a administração pública gerencial caracteriza-se como um conjunto de
práticas empresariais que priorizam a eficiência, a eficácia e a competitividade administrativa.
Entretanto, é importante destacar que a implantação desse modelo de gestão, na administração
pública brasileira, não eliminou as anomalias do patrimonialismo e nem do burocratismo, uma
vez que anomalias como clientelismo, nepotismo, corrupção, ineficiência, desperdício, entre
outras, ainda estão presentes nas organizações administrativas brasileiras.

Concomitantemente ao surgimento do movimento gerecialista no Brasil, da década de 1980,


(re)emerge o movimento de participação social, pró reforma do Estado brasileiro,
interrompido pelo golpe militar de 1964. Após duas décadas de autoritarismo e centralização
do governo militar o ideário de um novo projeto de nação é retomado com a elaboração da
Constituinte, quando diferentes forças políticas (movimentos populares, sindicatos,
associações patronais, universidades, pastorais, entidades profissionais, partidos políticos,
organizações não governamentais, etc) submeteram suas propostas para uma equalização na
relação entre Estado e sociedade. A luta pela redemocratização, pela busca de um novo
modelo de desenvolvimento, por maior participação deliberativa, contra a forma
centralizadora e autoritária do exercício do poder, fizeram despontar um novo formato
institucional de organização social, a gestão societal, batizada por Paes de Paula (2005) de
administração pública societal.

O modelo de gestão societal constitui numa forma criativa para problemas que envolvem
escassez de recursos e que podem ser resolvidos com mais participação da sociedade no
processo de tomada de decisão. O modelo tem origem nos conceitos de esfera pública,
cidadania deliberativa, sociedade civil, republicanismo de Habermas (1984), da racionalidade
substantiva de Guerreiro Ramos (1989) e no conceito de economia substantiva de Polanyi
(2000). Zwick et al (2012), afirmam que: “as alternativas propostas pela abordagem da gestão
social podem ser empiricamente encontradas em nível local e orientam-se, basicamente, pela
racionalidade substantiva, ao primar pelo desenvolvimento social e não estritamente pelo
econômico” (ZWICK, et al, 2012, p.296). Especificamente no Brasil, esse formato
institucional vem ocupando posição nos governos das frentes populares, formados pelos
partidos de esquerda e pelo Partido dos Trabalhadores (PT) com as experiências de novas
práticas de gestão como: os fóruns temáticos, os conselhos gestores de políticas públicas, os
orçamentos participativos, as conferências territoriais, entre outras (PAES DE PAULA,
2005).

Como se verifica, a trajetória da administração pública brasileira, ao longo desses últimos 500
anos, desde a implantação da administração colonial ao atual período de redemocratização do
País, de lá pra cá, quatro modelos gerenciais (patrimonial, burocrático, gerencial e societal)
permeiam e entrelaçam a ação administrativa do Estado e da sociedade brasileira, alguns de
forma mais intensa (patrimonial e burocrático), um em evidência (gerencial) e outro no
campo ainda conceitual (societal), porém, todos presentes no mesmo espaço.

Ação Administrativa da Administração Pública Brasileira

Descrita a configuração da administração pública brasileira, procuraremos nesta seção


destacar algumas nuanças comportamentais do seu aparato administrativo. De modo geral,
percebe-se que a administração pública brasileira, na contemporaneidade, tem como
característica predominante o hibridismo, uma vez que é possível observar nas estruturas
sociopolíticas e na ação administrativa do Estado traços gerenciais do patrimonialismo, da
6  
 
burocracia, do gerencialismo e, até mesmo, do modelo societal. Essa configuração da
administração publica brasileira é apelidada por Zwick et al (2012, p.295) de administração
pública tupiniquim, em homenagem a nossa primeira matriz formadora (indígena), por
observar práticas e comportamentos gerenciais dos modelos implantados no decorrer da
história do Brasil.

No geral, as sociedades que se aproximam desta configuração administrativa, apresentam as


seguintes características nas estruturas políticas:

§ Predomínio do executivo sobre as instituições representativas;


§ Papel significativo de grupos burocráticos (políticos, servidores públicos,
associação de classe, militares, sindicatos);
§ Existências de partidos e movimentos populistas.

Esses aspectos surgem das relações entre elites centrais e massas periféricas. Em sociedades
nas quais se encontra essa estrutura política, verifica-se também a existência de um forte laço
de dependência e consentimento das classes periféricas em relação à elite central. Essa
relação, por sua vez, é sustentada por uma ação administrativa pautada no predomínio da
racionalidade substantiva e por uma formulação de política social de base paternalista e
distributiva. No caso brasileiro, as políticas públicas de distribuição de renda, hoje em
execução, exemplificam essa situação.

Ao analisar o fenômeno da racionalidade, Ramos (1983, p. 37) ressalta que “distinguir entre a
racionalidade funcional e a racionalidade substantiva constitui passo preliminar na pesquisa
de uma definição clara de ação administrativa”. A ação administrativa é, então, definida como
uma modalidade da ação social, dotada de racionalidade funcional, cujos agentes, enquanto a
exercem, supõem que estão sob a vigência predominante da ética de responsabilidade.
Entretanto, ele adverte para o fato de que a ação administrativa, embora esteja dotada da
racionalidade funcional, não significa dizer que a mesma não seja composta de elementos da
racionalidade substantiva. Em suas palavras,

A inteligência da ação administrativa, segundo a definição, requer,


portanto, as seguintes referências sistemáticas: racionalidade
funcional, racionalidade substantiva, irracionalidade funcional,
irracionalidade substantiva, autorracionalidade, ética da
responsabilidade, ética da convicção ou do valor absoluto, dualidade
de espaços existências (RAMOS, 1983, p. 49).

Essa afirmação possibilita entender que a ação administrativa da administração pública


brasileira não é composta apenas por elementos da racionalidade funcional e por uma ética de
responsabilidade absoluta, mas, também, pelo seu contrário. Diferentemente do modelo de
gestão racional-legal, que parte do pressuposto de que os agentes administrativos (indivíduos,
instituições e governos) irão se comportar conforme as normas prescritas e estabelecidas, a
administração pública brasileira é menos cética em relação a esta crença. Aguirre e Saddi
(1997) quando estudaram a ação administrativa do sistema político brasileiro, observaram os
seguintes comportamentos:

§ O centro monopoliza cada vez mais os recursos políticos;


§ Existe um grau relativamente pequeno da transformação estrutural da periferia
pelo centro;

7  
 
§ A cristalização do centro não gera alto grau de comprometimento com a ordem
social, nem novas motivações para despolitizar as estruturas do Estado;
§ O centro acaba controlando a maior parte dos recursos e dos mecanismos
necessários ao desenvolvimento econômico;
§ O centro tenta manipular outros setores e, nesse sentido, monopoliza a formulação
das políticas de bem-estar social e de distribuição;
§ As regras tendem a enfatizar a mediação do centro entre os diferentes grupos de
interesses;
§ O principal meio de luta política passa a ser a crescente cooptação ou alternação
das clientelas ou de arranjos corporativos (AGUIRRE e SADDI, 1997, p. 80).

O fato é que fenômenos como o corporativismo, o assistencialismo, o favoritismo, o


clientelismo a cooptação política e a lealdade ao mandatário, ainda estão presentes na relação
Estado e sociedade brasileira e, convivem, no mesmo espaço e no mesmo tempo, com os
aparatos da administração burocrático-gerencial (eficiência, eficácia, legalidade,
impessoalidade), bem como da administração societal (conselhos, fóruns, conferências,
ouvidorias), mesmo que seja apenas no campo do discurso. A figura 1, ajuda ilustrar o
comportamento da ação administrativa da administração pública brasileira.

Figura 1
Ação Administrativa da Administração Pública Brasileira

Administração
Patrimonialista

Administração  
Administração Administração
Burocratica Brasileira Gerencialista

Administração
Societal

Fonte: Elaboração própria

A administração pública brasileira devido a sua formação histórico-político-institucional,


assumiu um comportamento híbrido na ação administrativa do Estado, uma vez que a
sociedade relativizou a aplicação dos modelos aqui apresentados, criando com isso um
modelo à moda brasileira, ou como denominou Zwick (2012), uma administração pública
tupiniquim representada no espaço da intercessão da figura 1, que aqui cognominamos de
administração pública hibridizada.
8  
 
Uma das explicações para esse fenômeno consiste na ingenuidade do campo científico da
administração de reproduzir conceitual e empiricamente o pensamento e a ação administrativa
das sociedades euro-americanas, sem promover o esforço necessário da redução sociológica
proposto por Guerreiro Ramos:

A redução sociológica é um método destinado a habilitar o estudioso a


praticar a transposição de conhecimentos e de experiências de uma
perspectiva para outra. O que a inspira é a consciência sistemática de
que existe uma perspectiva brasileira. Toda cultura nacional é uma
perspectiva particular. Eis porque a redução sociológica é, apenas,
modalidade restrita de atitude geral que deve ser assumida por
qualquer cultura em processo de fundação (RAMOS, 1967, p. 42).

O processo de transferibilidade de teorias, modelos e práticas gerenciais requer um cuidado


profundo, pois, do contrário, corremos o risco de contribuir com a consolidação de uma
cultura subalterna, dado que com a derrubada do sistema socialista na Europa, representada
pela queda do Muro de Berlim no final da década de 1980, o capitalismo se tornou o modelo
econômico dominante e fez surgir uma tripla hegemonia: 1) hegemonia da esfera econômica;
2) hegemonia do modelo organizacional do estado-empresa; 3) hegemonia do pensamento
administrativo (CHANLAT, 2006), padronizando e universalizando, cada vez mais, a ação
administrativa das nações. Daí a necessidade de relativizar o pensamento hegemônico, pois,
nem sempre o que é pensado, elaborado, implementado nos países e nas organizações do
mundo euro-americano é apropriado para a realidade dos países e organizações do sul-global.
Bem como, de uma redução sociológica na ação administrativa do Estado brasileiro,
sobretudo, no que se refere ao processo de transferibilidade de teorias, modelos e práticas
gerenciais do mundo euro-americano (RAMOS, 1989, 2003; TENÓRIO, 1989). Quando isso,
de fato, acontecer, possivelmente, teremos modelos gerenciais mais próximos da realidade
brasileira.

Bases Explicativas do Hibridismo na Administração Pública Brasileiro

Descrito o funcionamento da ação administrativa da administração pública brasileira,


procuraremos nesta seção, compreender por que existem, ainda hoje, resquícios de antigos
comportamentos administrativos na estrutura da administração pública brasileira. Para alguns
especialistas, quando isso acontece, estamos diante de uma hibridização administrativa, uma
espécie de combinação dos chamados tipos-ideias, ou seja, construções teóricas que quando
transferidos para condições reais perdem as suas características nítidas e aparecem como
traços sobrepostos (MISOCZKY e MORAES, 2011). Diante disso, cabe refletir por que a
administração pública brasileira apresenta tal comportamento. Para tanto, revisitaremos quatro
conceitos teóricos - racionalidade, formalismo, modernidade e bem-estar – com a finalidade
de compreender as bases conceituais do hibridismo na administração pública brasileira.

A filosofia trabalha o conceito da racionalidade como uma característica da mente humana


que permite chegar a conclusões fundando-se em suposições e premissas. Ramos (1983, p.
49), estudando o fenômeno da racionalidade nas tomadas de decisões administrativas, chega à
conclusão de que “a ação administrativa deve ser pautada entre a racionalidade funcional e a
racionalidade substantiva”. A racionalidade funcional refere-se todas as decisões guiadas por

9  
 
princípios utilitaristas, base calculista e análise de custo-benefício. Por sua vez, a
racionalidade substantiva consiste nas decisões guiadas pelo prazer e pela satisfação humana,
bem com do equilíbrio dos interesses individuais e do coletivo (SERVA, 1997). Sua ação
decorre não da razão pura, mas, dos sentimentos humanos como instintos, paixões e
interesses. Ramos (1989) chama atenção para o fato de Weber não ter se posicionado
claramente em defesa da ação administrativa como uma dimensão que transita entre a
racionalidade funcional e substantiva, limitando-se apenas a explicar a importância da
racionalidade funcional no seu modelo de dominação burocrático-racional.

O modelo de gestão burocrático compreende uma série de normas explícitas do


comportamento, ou leis, que definem o que deve e o que não deve ser feito pelos agentes
públicos em todas as circunstâncias. Trata-se de um tipo ideal para sociedade em estágio mais
avançado e moderno do capitalismo, conforme o pensamento weberiano. Já, “em sociedades
cujo desenvolvimento não se deu em bases contratuais, onde não houve uma burguesia
ascendente com a mesma força ou importância como a burguesia da Europa ocidental, a
racionalidade substantiva prevalece sobre a racionalidade formal” (AGUIRRE e SADDI,
1997, p.81). Dessa forma, considera-se, em parte, que a racionalidade substantiva seja uma
característica predominante das sociedades tradicionais e se coloca como obstáculo para o
desenvolvimento de modelos de gestão fundamentados em bases da racionalidade funcional,
tal como se apresentam o modelo burocrático e os de inspiração neoliberal.

Sendo o hibridismo uma sobreposição de modelos gerenciais, que se manifesta em sociedades


em estágio intermediário ou em desenvolvimento do sistema capitalista, pode-se então
considerar que o Estado brasileiro não se apresenta apenas como um Estado burocrático-
gerencial, mas, também tende a adquirir a forma de dominação patrimonialista, dado que as
relações sociais, ainda hoje, são guiadas pela razão substantiva, ou seja, por instintos, paixões
e interesses. Em função disso, verifica-se que a administração pública brasileira, na sua ação
gerencial, se aproxima mais de uma realidade híbrida, do que de um idealismo teórico euro-
americano, uma vez que no seu cotidiano existem elementos dos modelos de gestão mais
avançados, como o burocrático e o gerencial, e elementos dos modelos mais primitivos, como
o patrimonial. Em outras palavras, a razão administrativa é um fenômeno social que transita
entre a racionalidade funcional e substantiva e não, simplesmente, apenas, no campo da razão
utilitarista, como imaginam os teóricos do pensamento euro-americano.

Já o formalismo constitui outro conceito que ajuda explicar a existência de práticas gerenciais
antigas em sociedades modernas. Trata-se de um conceito elaborado por Fred Riggs (1961)
para analisar a ecologia da administração pública em países em desenvolvimento. Riggs
(1961) considera que as sociedades em transição possuem características diferentes das
sociedades ditas desenvolvidas. Dentre as características descritas encontra-se o formalismo.

O formalismo corresponde ao grau de discrepância entre o prescrito e o


descrito, entre o poder formal e o poder efetivo, entre a impressão que nos é
dada pela constituição, pelas leis e regulamentos, organogramas e estatísticas e
os fatos e práticas reais do governo e da sociedade. Quando maior a
discrepância entre o formal e o efetivo mais formalístico o sistema (RIGGS,
1961, p.123).

Embora o formalismo seja uma característica dominante nas sociedades em transição, o


mesmo encontra-se presente, de forma residual, em sociedades mais avançadas e/ou atrasadas.

10  
 
Uma das causas para explicar a existência do formalismo na sociedade em transição é o fato
da adoção de modelos e conceitos tomados de uma ordem social mais avançada. A
transposição de modelos sociais complexos de sociedades ditas mais avançadas para
sociedades menos desenvolvidas pressupõem a existência de uma estrutura formal, sob
aspecto político, econômico e administrativo, nem sempre presentes nestas sociedades.

Ramos (1989, p.271), ao analisar o fenômeno do formalismo na sociedade brasileira, entende


que “o formalismo não é característica bizarra, traço de patologia social nas sociedades
prismáticas (transição), mas um fato normal e regular, que reflete a estratégia global dessas
sociedades no sentido de superar a fase em que se encontra”. O formalismo é para Guerreiro
Ramos uma espécie de estratégia de mudança social, imposta pelo caráter dual de sua
formação histórica e, de modo particular para se articula com o resto do mundo, sugerindo
quatro possibilidades estratégicas de formalismo: i) formalismo como estratégia para dirimir
conflitos sociais; ii) formalismo como estratégia a serviço da mobilidade social vertical
ascendente; iii) formalismo como estratégia a serviço da construção nacional; e iv)
formalismo como estratégia de articulação da sociedade periférica com o mundo exterior.

O uso do formalismo, na visão de Ramos, pode assumir função positiva e negativa na


sociedade. A função positiva se manifesta quando se trata de libertar o sistema administrativo
de forças exógenas internacionais, ou quando se refere à situação de caráter dual presente nas
relações colônia-metrópole, centro-periferia, desenvolvido-subdesenvolvido. A função
positiva do formalismo na cultura brasileira se caracteriza no polêmico jeitinho brasileiro,
uma espécie de estratégia de sobrevivência daqueles que não têm acesso ao poder. Em suma,
"saída para uma situação sem saída". Por sua vez, a função negativa do uso do formalismo na
administração pública brasileira, manifesta-se, também, nas relações sociais e se encontram:

§ No acesso aos cargos públicos através da livre-nomeação;


§ No favoritismo por parte da classe política aos seus correligionários;
§ Nas relações de parentesco na burocracia pública;
§ Na política de remuneração de algumas categorias dos servidores públicos;
§ Na manipulação das normas prescritas;

Verifica-se, assim, que a sociedade não assimila conjuntamente o processo de modernização


administrativa, pois tende a utilizar o formalismo como mecanismo de deslocamento de
objetivos. Outro aspecto é o fato de que toda elite, seja religiosa, intelectual, política ou
econômica, é cética quanto às regras e normas observadas. Se as regras e as normas lhes
convêm, estes darão consentimento, caso contrário, tentarão burlar as normas e regras com
vistas ao favorecimento de seus interesses, criando, com isso, uma moral ética relativizada.
Como é possível observar os modelos teóricos de administração pública, concebidos no
contexto euro-americano, desconsideram na ação administrativa o fenômeno do formalismo
social, pois, partem do pressuposto de que todos irão, fielmente, cumprir as normas
estabelecidas. Numa sociedade mais homogênea, isso, talvez seja possível, porém, numa
sociedade proveniente de um sistema colonial, de uma matriz multicultural, de base
escravocrata, com forte desigualdade socioeconômica, dificilmente isso se concretizará.

Por sua vez, o conceito de modernidade, aqui entendido como um conjunto de


transformações culturais, políticas e econômicas, de origem ocidental que se inicia no século
XV e se estende até o século XX. A modernidade, como produto do mundo ocidental, fruto da
revolução francesa e da revolução industrial é apresentada ao mundo como um processo

11  
 
evolutivo de organização social universal. Ou seja, uma sociedade moderna é aquela que
supera determinada etapa do desenvolvimento histórico-social da humanidade. Assim, é
possível classificar as sociedades por etapas, como selvageria, barbárie, civilização ou
escravismo, feudalismo, capitalismo, socialismo, comunismo, ou ainda, agrária, industrial,
pós-industrial etc. Ramos (1967), analisando o fenômeno da modernização, aponta para o fato
de que existe uma visão reducionista e de base ideológica na elaboração do conceito de
modernidade proposto pelos teóricos do pensamento hegemônico. O conjunto destas
formulações Ramos denomina de Teoria da Necessidade (N). Em suas palavras:

O pressuposto principal da Teoria N, no que tange à modernidade, é


que existe uma lei (visão reducionista) de necessidade histórica que
compele toda sociedade a procurar alcançar o estágio em que se
encontram as chamadas sociedades desenvolvidas ou modernizadas.
Essas sociedades representam, para as sociedades chamadas “em
desenvolvimento”, a imagem do futuro destas. Como consequência
desse modo de ver, os autores filiados à Teoria N apontam dicotomias
como nações desenvolvidas versus nações em desenvolvimento e
sociedades paradigmas versus seguidoras (RAMOS, 1967, p. 9).

Ramos (1967) nos chama a atenção para o fato de não existir um único caminho, nem um
único modelo para se chegar ao fenômeno da modernidade. Existe um campo de
possibilidades a ser explorado e colocado em prática. Esse pressuposto encontra-se presente
em diversos trabalhos teóricos da corrente alternativa ao pensamento hegemônico ocidental.
O conjunto destas análises Ramos denomina de Teoria da Possibilidade (P).

A Teoria P, por outro lado, apresenta duas características principais à


modernização: 1) pressupõe que a “modernidade” não está localizada
em qualquer lugar do mundo precisamente: que o processo de
modernização não deve orientar segundo qualquer arquétipo
platônico; e, 2) sustenta que toda nação, qualquer que seja sua
configuração presente, terá sempre possibilidades próprias de
modernização, cuja efetivação pode ser perturbada pela sobreposição
de um modelo normativo rígido, alheio àquelas possibilidades
(RAMOS, 1967, p. 9).

As considerações de Ramos sobre a modernidade nos levam para o entendimento de que a


implantação de uma gestão, dita moderna, em uma determinada sociedade pode não estar de
acordo com as condições sociais, econômicas e políticas de outra sociedade. Permitem
também compreender que a transferibilidade de modelos gerenciais pode gerar relação de
dependência e de dominação por parte daqueles que imitam e copiam e os que fundamentam e
concebem os modelos, respectivamente. Historicamente isso aparece no caso brasileiro
quando da criação do seu Estado, com a implantação do modelo patrimonialista sob a tutela
da coroa portuguesa, bem como na implantação do modelo burocrático-racional, sob forte
presença, por meio das assessorias e consultorias norte-americanas (IANNI, 1995), ou ainda,
quando da implantação do modelo gerencialista, sob os ditames dos organismos
internacionais (FIORI, 2004).

Por fim, não menos importante, o conceito de bem-estar, aqui pensado como sinônimo de
bem-estar da sociedade, visualizado não apenas no bem-estar econômico, mas, também, no
político e no bio-psico-social. A ideia de um sentido mais amplo de bem-estar tem inspiração

12  
 
no conceito de justiça social formulado por Nancy Fraser. Nas suas análises, Fraser (2002)
argumenta que estamos diante de um mundo marcado pela dissociação, tanto na esfera
política quanto na acadêmica, entre duas visões dicotômicas acerca do que seria necessário
para a realização da justiça. Enquanto alguns veriam na economia a causa última de todas as
injustiças e defenderiam a redistribuição de recursos como a única forma de saná-las, outros
teriam procurado entender o conjunto das injustiças existentes como consequências de
padrões hierárquicos de valoração cultural, onde para superá-los defendem a tese que todos
fossem igualmente reconhecidos, mesmo diante das diferenças. O resultado disso é uma visão
distorcida da justiça e do bem-estar social. Diante disso, recomenda:

O que é preciso é uma concepção ampla e abrangente, capaz de


abranger pelos menos dois conjunto de preocupações. Por um lado, ela
deve abarcar as preocupações tradicionais das teorias de justiça
distributiva, especialmente a pobreza, a exploração, a desigualdade e
os diferenciais de classe. Ao mesmo tempo, deve igualmente abarcar
as preocupações recentemente salientadas pelas filosofias do
reconhecimento, especialmente o desrespeito, o imperialismo cultural
e a hierarquia de estatuto (FRASER, 2002, p.11).

Essa visão mais dilatada de justiça e bem-estar social de Nancy Fraser nos possibilita
compreender o ordenamento social numa lógica bidimensional - distribuição dos recursos e
reconhecimento das diferenças culturais. Contudo, no caso especifico dos modelos gerenciais
de administração pública, cuja finalidade maior é promover o bem-estar da sociedade, isso,
ainda, não se verifica, visto que existe uma predominância dos valores economicistas
(dimensão distributiva de recursos) em detrimento da valores culturais (dimensão do
reconhecimento). A burocracia e o gerencialismo, por exemplo, partem do pressuposto de
que o bem-estar da sociedade depende da eficiência produtiva das organizações (privadas,
públicas e societais), do aumento do produto interno bruto (PIB), bem como da capacidade de
geração de emprego e renda. Nesses dois modelos gerenciais, o sistema meritocrático,
hipoteticamente, ocupa centralidade no processo de definição daqueles que deverão assumir a
tarefa de gerenciar as organizações. No entanto é cada vez mais frequente a percepção de
que os sistemas meritocráticos se mostram injustos, discriminatórios, segregacionistas e que
criam sérios problemas burocráticos, sociais e políticos nas sociedades em que são aplicados,
tanto que nenhuma sociedade atual possui um sistema totalmente meritocrático em aplicação,
apesar da meritocracia estar presente em maior ou menor grau em praticamente todas elas.
Por outro lado, é crescente a reivindicação da sociedade por reconhecimento e reparação
social, expressa nas políticas públicas de gênero, etnicidade, nacionalidade, cotas raciais,
sociais, etc, fortemente, presente na agenda do modelo de administração societal. Em síntese,
os modelos gerenciais euro-americanos não levam em consideração, nas suas estruturas
teóricas, o sentido do bem-estar das diferenças culturais, apenas incorporam o sentido do
bem-estar econômico, ou seja, o ter em detrimento do ser. Essa complexidade é melhor
explicada, quando utilizamos a abordagem do multiculturalismo, pois, nos permitem perceber
com mais clarividência as diferenças culturais, o que é, muito mais difícil, pela lógica
funcionalista ou, até mesmo, pela lógica do pensamento estruturalista, fortemente,
predominantes no pensamento euro-americano de gestão.

A figura 2, complementa a ilustração da figura1, na medida que inclui os elementos


explicativos do comportamento híbrido da administração pública brasileira, aqui analisados.

13  
 
Figura 2:
Administração Pública Brasileira
Racionalidade

§ Instrumental
§ Substantiva

Administração
Patrimonialista

Administração Administração Administração


Formalismo Modernidade
Burocratica Gerencialista
Brasileira
§ Negativo § Necessidade
§ Positivo § Possibilidade

Administração
Societal

Bem-Estar

§ Distribuição de recursos
§ Reconhecimento das diferenças

Fonte: Elaboração própria

Do que aqui se depreende, a administração pública brasileira, na sua essência, configura-se


como uma categoria social que mescla elementos e comportamentos de modelos gerenciais
mais elaborados com os mais simples, implicando, com isso, num modelo própria de gestão,
denominado de administração pública hibridizada ou como Zwick et al (2012), classificaram
de administração pública tupiniquim. Porém, para melhor compreendermos a estrutura, o
funcionamento e o sentido da sociedade brasileira, consequentemente da sua administração, é
preciso, conforme aponta o ilustre antropólogo Darcy Ribeiro (2006), fazer uma imersão na
gestação do povo brasileiro, ou seja, nas variantes da civilização europeia lusitana e nas
tradições das matrizes indígenas e africanas. Essa ação possibilitará, de forma mais precisa,
verificar como os conceitos aqui discutidos ajudam explicar o fenômeno da hibridização na
administração brasileira.

Considerações Finais

Este trabalho procurou refletir sobre a seguinte questão: por que existem, ainda hoje,
resquícios de antigos comportamentos administrativos na estrutura da administração pública
brasileira? Para responder a esse questionamento tomou-se como referência a experiência da
14  
 
administração pública brasileira, bem como a formulação dos tipos ideias de dominação e
formação de poder propostos por Weber. Mediante estas referências foi possível encontrar
algumas pistas para essa questão, pistas que demandam reflexões, aprofundamentos e críticas.

Do ponto de vista teórico, os modelos gerenciais apresentados são, numa perspectiva


weberiana, tipos ideais. Isso significa dizer que são categorias analíticas de ficção heurística,
que servem apenas como parâmetros de funcionamento da realidade e não como uma cópia
fiel desta. Nesse sentido, adotou-se como pressuposto de verificação o seguinte fato: ao se
transferir os modelos de gestão para situações reais, estes perdem parte do seu poder
explicativo, e se apresentam com traços sobrepostos. Em função disso, uma sociedade pode
ter, em um determinado momento, características de mais de um modelo de gestão. Quando
isso acontece, estamos diante de uma situação híbrida. No Brasil, esse fenômeno se manifesta
por meio de traços do modelo patrimonialista, como o corporativismo e o clientelismo, assim
como, por traços do modelo racional-legal, como a eficiência, a eficácia e a competitividade
presentes nos modelos burocrático e gerencial. Essa sobreposição é denomina hibridismo
administrativo.

A explicação para o hibridismo na administração pública, na perspectiva deste trabalho,


provém da análise de como os modelos, tipos ideias, lidam com elementos como:
racionalidade, formalismo, modernidade e bem-estar. Os modelos de base racional-legal
(burocrático e gerencial) são fundamentados apenas na racionalidade funcional/instrumental e
pouco ou quase nada na racionalidade substantiva. Porém, em situação real, a tomada de
decisão nem sempre ocorre apenas pela lógica da racionalidade funcional, mas, também, pela
lógica da racionalidade substantiva. Os modelos de base racional-legal consideram que os
agentes administrativos irão seguir fielmente as prescrições normativas, contudo, sempre
existem discrepâncias entre o prescrito e o descrito, principalmente em sociedades em estágio
de transição social. Quando isso ocorre gera-se uma situação de formalismo, não contemplado
pelos modelos. No que tange à modernidade, verificou-se que esta é fundamentada numa base
ideológica em que: só é moderno o que provém do mundo ocidental, os demais mundos não
superaram as etapas necessárias para promover a modernidade. Portanto, devem copiar ou
imitar o mundo moderno. Contudo, nem sempre é possível promover a transferibilidade da
racionalidade administrativa do mundo moderno para outras categorias de mundos, quando
isso acontece, é preciso considerar que o moderno e a arcaico, o novo e o velho, o
desenvolvido e subdesenvolvido irão coabitar no mesmo espaço e no mesmo tempo. Além, de
considerar, apenas, a dimensão economicista na finalidade suprema da administração pública
(bem-estar da sociedade). Esses elementos nos ajudam explicar, em parte, o caso da
administração pública brasileira no que diz respeito ao seu modelo de gestão hibridizado.

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16  
 
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i
O neoliberalismo constitui um pensamento filosófico formulado na Escola Austríaca e na Escola de Chicago,
com base na sociedade de Mont Pèlerin, capitaneada pelos intelectuais Friedrich Hayek e Milton Friedman.

17  
 
A Administração de Recursos Humanos Como Conhecimento que Constitui
uma Consciência de Classe para o Capital

Resumo
A tese discutida no texto ressalta o momento de especialização da força de trabalho como um
dos produtores de grandes obstáculos à constituição da consciência da classe trabalhadora em
si e para si, posto que, no processo educacional, o conteúdo sobre a materialidade do ser é a
universalização dos interesses de um grupo particular, mas não somente isso. Nesse momento,
ocorre, também, a produção da predominância da particularidade-individualidade sobre a
generidade, produzindo uma subjetividade individual para a classe trabalhadora que resiste à
necessária negação das contradições da relação capital-trabalho, consentido aos anseios da
valorização do valor como se houvesse uma captura dessa subjetividade pelos capitalistas,
porém o que temos é a produção dessa subjetividade sendo efetuada, em última instância, pelo
Estado Burguês, não negando, portanto, sua natureza. Para desenvolver essa tese, o texto
demonstrará que um determinado conhecimento científico 1) produz a universalização dos
interesses capitalistas particulares enquanto interesses da humanidade; 2) naturaliza a
(re)produção do ser social como um conjunto de relações de dependência entre sujeitos
mutuamente indiferentes; e, 3) ao ser majoritariamente produzido por meio de financiamentos
públicos, ratifica a natureza burguesa do Estado.

Palavras-Chave: Consciência de Classe, Educação, Ensino Universitário, Gestão de Pessoas

Introdução
A consciência de classe não pode ser compreendida sem a relação com a materialidade
do ser da classe. Considerando que, como Marx menciona em crítica à crítica que Proudhoun
faz a Bastiad, a "sociedade não consiste de indivíduos, mas expressa a soma de vínculos,
relações em que se encontram esses indivíduos uns com os outros" (MARX, 2011, p. 205),
acreditamos que as classes expressam as diferentes relações que os indivíduos estabelecem
uns com os outros a partir das diferentes condições concretas que se encontram no processo
de produção de valores. Relações que condicionam a constituição da consciência dessas
relações, pois "é claro que a efetiva riqueza espiritual do indivíduo depende inteiramente de
suas relações reais" (MARX, 2007, p. 41).
A existência material e a consciência dessa existência são membros de uma totalidade,
parafraseando Marx (2011, p. 53), "diferenças dentro de uma unidade" e que se efetuam em
duas instâncias reciprocamente determinadas: da particularidade-individualidade e da
generidade (LUKÁCS, 2010). Reside nessa complexidade relacional de não dualidades
excludentes a dificuldade de compreender a constituição da consciência de classe, sobretudo,
da classe trabalhadora, uma vez que essa, para ser uma consciência para si, necessita negar a
existência do ser que está sendo, rumo a produção do devir da emancipação da humanidade
(MESZÁROS, 2008).
Afirmar o desejo de um vir a ser é produzir no campo das ideias a materialidade futura
- produção que é condicionada pelas relações concretas de existência - negando o que se está
sendo; porém, outro ponto se apresenta à essa negação: a consciência do que se é, nos é
parcial. "A consciência é, naturalmente, antes de tudo a mera consciência do meio sensível
mais imediato e consciência do vínculo limitado com outras pessoas e coisas exteriores ao
indivíduo que se torna consciente [...]" (MARX e ENGELS, 2007, p. 35). De modo que, a
constituição da consciência da classe trabalhadora em si e para si necessita o rompimento do
cônscio parcial que temos sobre a concretude das relações sociais existentes. Tarefa que é
obstaculizada pela produção de um conhecimento que, usado ideologicamente, constitui a
consciência da classe trabalhadora como uma consciência para o capital, reproduzindo no
campo das ideias de cada indivíduo um devir respaldado no desejo de estabelecer ascensão
entre os estratos que compõem a classe trabalhadora (estrato decorrente das especialidades do
trabalho), mas ascensão que tem como limite concreto as relações que mantém os
trabalhadores como classe trabalhadora.
Lukács (2013) ao discutir a questão de ideologia ressalta que sua produção não tem
como pressuposto a produção de um conhecimento científico falso ou verdadeiro. A
falseabilidade do conhecimento científico está para uma discussão epistemológica, não menos
necessária do que a que faremos aqui, mas que será matéria de outras reflexões, pois envolve
a discussão tanto da forma como do conteúdo do saber científico, sobretudo nesse momento
em que há uma disputa pela legitimidade de ser ciência por duas grandes doutrinas: os
defensores da modernidade e os da pós-modernidade. O que importa, nesse texto, é atentar
para a legitimidade do conhecimento científico na sociedade em geral e na formação do
trabalhador em particular, sobretudo, na formação de terceiro grau, momento ímpar da
produção de uma força subjetiva do trabalho especializada, momento em que o processo
educacional (re)põe à subjetividade as possibilidades do vir a ser desejadas pelo capital,
momento em que se concretiza um dos momentos necessários a produção da mercadoria força
de trabalho que é, muitas vezes, desejada desde a infância em virtude dos anseios social.
Nossa tese central a ser discutida aqui ressalta esse momento de especialização da
força de trabalho como um dos produtores de grandes obstáculos à constituição da
consciência da classe trabalhadora em si e para si, posto que, no processo educacional, o
conteúdo sobre a materialidade do ser é a universalização dos interesses de um grupo
particular, mas não somente isso. Nesse momento, ocorre, também, a produção da
predominância da particularidade-individualidade sobre a generidade, produzindo uma
subjetividade individual para a classe trabalhadora que resiste à necessária negação das
contradições da relação capital-trabalho, consentido aos anseios da valorização do valor como
se houvesse uma captura dessa subjetividade pelos capitalistas, porém o que temos é a
produção dessa subjetividade sendo efetuada, em última instância, pelo Estado Burguês, não
negando, portanto, sua natureza. Para desenvolver essa tese, o texto demonstrará que um
determinado conhecimento científico 1) produz a universalização dos interesses capitalistas
particulares enquanto interesses da humanidade; 2) naturaliza a (re)produção do ser social
como um conjunto de relações de dependência entre sujeitos mutuamente indiferentes; e, 3)
ao ser majoritariamente produzido por meio de financiamentos públicos, ratifica a natureza
burguesa do Estado.
Para realizar as três demonstrações, elegemos a administração de recursos humanos
enquanto uma especialização do trabalho que demandou o desenvolvimento de uma área
especifica da ciência que pode ser denominada tanto como Administração de Recursos
Humanos, Gestão de Pessoas ou ainda Comportamento Organizacional. Muitas polêmicas há
entre as diferenças do que é produzido sob as distintas alcunhas, porém, o que nos interessa
aqui é que são profissionais da ciência que desenvolvem saber sobre as distintas formas de
controlar o fator subjetivo do trabalho no processo de trabalho, visando, sempre, em última
instância alavancar a valorização do valor. Tendo esse recorte, analisaremos como dois temas
debatidos na área são apresentados aos futuros trabalhadores durante o processo de formação,
são eles: avaliação de desempenho e gestão da diversidade e, por fim, levantaremos os
financiadores de tais estudos. Assim, esse textos está estruturado em quatro tópicos excluindo
esse. No próximo tópico, item 2, apresentaremos as análises sobre gestão da diversidade, no
tópico três, será abordada a questão da avaliação de desempenho. Na sequência, item 4,
abordaremos o tema do financiamento das pesquisas e a relação da produção e circulação do
saber financiado pelo Estado. Por fim, no item 5, apontaremos a possível relação da
Administração Política com um saber para além do capital, enquanto nossas considerações
finais.
2. O que os Manuais Ensinam aos Estudantes sobre Gestão da Diversidade?

O subtítulo traz uma pergunta, a primeira análise traz uma constatação irônica:
ensinam pouco. O tema da Gestão da Diversidade é quase inexistente nos manuais publicados
no Brasil. Irônico, pois o Brasil é apresentado mundialmente como o país da diversidade. Mas
um qualitativo de quantidade não nos diz sobre o que é ensinado. Para refletir um pouco sobre
o conteúdo, foi selecionado dois manuais de Administração produzido por editoras que
possuem amplo canal de distribuição - o que facilita a circulação das ideias por elas
publicadas - e que foram citados em uma survey que está sendo realizada junto à instituições
de ensino superior pelo Núcleo de Estudos Críticos sobre Gestão de Pessoas e Relações de
Trabalho da Universidade Federal de Minas Gerais. Um dos textos tem a autoria de Idalberto
Chiavenato. A escolha por esse autor se justifica por ser ele um dos mais utilizados na
formação de bacharéis e tecnólogos em Administração no país. Outro texto é de autoria de
dois estrangeiros, George Bohlander e Scott Snell. A escolha por autores de outra
nacionalidade, em especial, norte-americanos se deve à colonização do pensamento brasileiro,
que na área das ciências administrativa é hegemonicamente efetuada pelos anglo-saxões, fato
que é possível observar nos próprios textos de Chiavenato.
O primeiro ponto que salta aos olhos do analista é a escolha desses autores para a
relação estabelecida entre o tema Gestão da Diversidade e outros temas vinculados às ciências
administrativas. Para Chiavenato, Gestão da Diversidade tem relação com a Cultura
Organizacional, por sua vez, para Bohlander e Snell aquele tema se impõe devido à Lei de
Igualdade de Oportunidade de Emprego existente nos Estados Unidos da América e está
atrelado à administração de recursos humanos pelas atividades de Recrutamento, Seleção e
Progressão. A primeira abordagem demonstra a riqueza do diverso para o capital, a outra
destaca os aspectos legais que garantem a "igualdade de oportunidade" e as punições
decorrentes de seu não cumprimento, garantia necessária, diga-se de passagem, devido as
condições de desigualdades criadas ou recriadas pelo próprio movimento de instituição do
capital enquanto modo de controle metabólico da sociedade.
A constatação de que há conteúdos explícitos distintos demanda apresentar uma
análise separada de ambos, verificando o que dizem de diferente para demonstrarmos o que
essas diferenças escondem.

2.1 Gestão da Diversidade para o Desempenho Organizacional: a Versão Brasileira

Chiavenato é sucinto: a "Administração de Hoje" (nome dado ao subitem que trata de


vários temas, inclusive a Gestão da Diversidade) necessita "fazer as coisas politicamente
corretas para adequar a administração a uma força de trabalho multivariada e culturalmente
diversificada" (2010, p. 165), pois a "diversidade cultural pode melhorar o desempenho
organizacional" (2010, p. 166).
Ele explica que diversidade "significa o grau de diferenças humanas básicas em uma
determinada população. É a existência de uma variedade de pessoas de diferentes
características pessoais que constituem a força de trabalho" (2010, p. 164) e explica que essas
características podem ser de: raças, credos, religiões, classes sociais, idades, sexos,
capacidades físicas, costumes e culturas. Na sequência ele afirma que valorizar as
características pessoais no trabalho por meio de técnicas administrativas podem garantir:

1. Maior probabilidade de obter soluções originais, criativas e


inovadoras, tanto técnica como administrativamente. 2. Criação de
imagem de postura ética ao se declarar e lutar contra preconceitos e
discriminações internas e externas. 3. Maior probabilidade de obter
fidelidade e lealdade dos funcionários. 4. Maior probabilidade de os
funcionários estarem dispostos a se empenharem pela organização. 5.
Maior probabilidade de que os funcionários desenvolvam iniciativa,
autonomia e auto-responsabilidade. 6. Possibilidade de fomentar um
clima de trabalho capaz de estimular o crescimentos pessoal dos
funcionários (de forma que se sintam dignos e contribuintes da
sociedade). 7. Contribuição decisiva para que a organização atue
como um agente de transformação genuinamente social.

Para dar legitimidade aos seus argumentos Chiavenato apresenta os seis argumentos
elaborados por Cox em defesa de uma gestão da Diversidade, a saber: custo, aquisição de
recursos, marketing, criatividade, solução de problemas, flexibilidade de sistema. Reforçando,
junto aos estudantes, que o saber desenvolvido no Brasil guarda veracidade científica porque
confirma o que os americanos já mencionaram. Não consideramos que as especificidades dos
dois países resultariam em diferentes resultados, porque o que interessa aos autores em
questão não é a diversidade em si, mas os resultados que controlá-la traz ao capital, como esse
não possui nacionalidade e não é limitado por fronteiras geopolíticas, o resultado não poderia
ser muito distinto. O recurso discursivo utilizado por todo o livro de legitimar o argumento do
autor brasileiro com as ideias de estrangeiros saxões nos revela que seguimos ofertando aos
estudantes brasileiro uma objetividade que coloca o jeito americano de ser enquanto o
parâmetro correto de estar no mundo e, se assim se faz lá, assim é que deve ser feito. Não
surpreende, portanto, quando ouvimos os estudantes falando: "mas nos Estados Unidos..."
Após elencar os benefícios trazidos pela Gestão da Diversidade em qualquer país,
Chiavenato informa que a diversidade está para o realce das diferenças individuais assim
como o multiculturalismo está para a diferença entre culturas. E exemplifica com o caso da
Matsushita Electric Company que oferece alimentação chinesa, malásia e hindu em seu
refeitório na fábrica instalada na Malásia, respeitando os hábitos alimentares e religiosos dos
diferentes povos que coabitam a região.
Sobre o multiculturalismo, o autor afirma que ele está se tornando uma premissa
básica da moderna sociedade e que, quase sempre, o termo se refere a: fatores culturais como
"etnias, raça, sexo, faixa etária, credo religioso e hábitos diferentes". Em suma, para o autor, a
presença da multiculturalidade nas organizações é a característica do próximo milênio que foi
trazida para as organizações por uma força de trabalho cuja a natureza vem mudando em
grandes proporções. E por isso a diversidade cultural se torna um elemento a ser
administrado.
A diferença cultural se torna um elemento a ser administrado por que é trazida para as
organizações ou a expansão do capital e sua necessidade de aumentar as taxas de lucro
fizeram com que as relações de assalariamento e propriedade privada se alastrassem pelas
diferentes partes do globo incorporando em seu modo de controlar o processo de trabalho
diferentes aspectos culturais quando necessários (e aniquilando-os quando possível)?
É interessante como o multiculturalismo é tratado como um anseio dos "povos" em se
consolidar como força de trabalho assalariada sob o julgo do capital. Ou ainda, mesmo que na
aparência do fenômeno esse pode ser um anseio dos "povos", como relato o filme The
Corporation, é interessante como a situação concreta que faz com que o ser humano deseje
vender sua capacidade de trabalho é totalmente desconsiderado pelo autor. A situação de
pobreza em que vive grande parte da população dos países para onde o capital se expande não
é tratada sobre a perspectiva de que esses países estão em condições desiguais de produção de
riquezas, pois, e para elencar apenas um dos determinantes que os colocaram nessas
condições, suas fontes naturais e humanas foram consumidas em um processo perverso de
colonização justamente em nome do Desenvolvimento (vide o caso da própria Malásia,
colônia britânica).
Desconsiderar as condições concretas que produziram as desigualdades não é
privilégio da abordagem da multiculturalidade apresentada pelo autor, mas também para o da
diversidade. Assim, para Chiavenato, branco/negro; homem/mulher, etc. é a manifestação de
diferentes características pessoais. Nada nos diz Chiavenato sobre a questão de supremacia de
determinada característica sobre as outras. Nada diz aos estudantes sobre a opressão que um
grupo de pessoas vivencia cotidianamente em virtude de possuir determinadas características.
A diferença configura-se apenas como diferença, como não idêntico, jamais como
desigualdade.
O livro desse autor ensina aos futuros gestores que Gestão da Diversidade é conseguir
o máximo de comprometimento da força de trabalho ainda que os proprietários dessa
mercadoria não seja imediatamente idênticos. E sobre esse ponto cabe-nos duas ponderações:
1) a distinção entre pessoa e força de trabalho e 2) a diferença entre trabalho concreto e
trabalho abstrato. Vale lembrar que a substância do valor é o trabalho abstrato, por este ser a
expressão de equivalência entre os múltiplos trabalhos concretos, transmutando o último, sem
o suprimir, em um uso indiferenciado das capacidades humanas. Ao capital interessa o valor
de uso da força de trabalho e essa mercadoria deve possuir determinadas
características/qualidades que correspondam às necessidades do processo de valorização num
determinando período do desenvolvimento das forças produtivas. Logo, sob o ponto de vista
da valorização do valor o que importa são as características da força de trabalho não da pessoa
que a vende. Em resumo, não faz diferença alguma ao capital se a força de trabalho está sendo
vendida por homens, por mulheres, negros, brancos, homossexuais, heterossexuais, desde que
essas pessoas estejam colocando a venda um produto que tenha valor de uso para o
comprador, uma mercadoria que opere dentro das qualidades exigidas pelo trabalho abstrato
em seu correspondente momento do desenvolvimento das forças produtivas. 2) Porém, tais
diferenças, consideradas sobre o prisma da desigualdade, perspectiva não trabalhada por
Chiavenato, faz diferença ao processo de valorização do valor, pois, o trabalhador enquanto
proprietário de capacidades que correspondem ao trabalho abstrato demandado no processo de
valorização, mas também constituído por qualidades que o coloca em condição de subjulgo
social está propenso a aceitar condições de trabalho e até salários menores do que aquele
trabalhador que enquadra-se na dita "normalidade" (considerações sobre normalidade serão
realizadas a posteriori). Aceitação que pode ser ainda subjetivada pelo indivíduo enquanto
"oportunidade" que, "dada" uma vez, deve ter seu merecimento eternamente comprovado, por
meio da - e fazendo uso das palavras de Chiavenato - "fidelidade", da "lealdade", de maior
disposição a "se empenharem pela organização" etc. Portanto, a diversidade, mas agora não
mais entendida como "não identidade" mas sim como desigualdade resultante de condições
materiais históricas distintas, alavanca também o processo de rebaixamento do valor da força
de trabalho, seja por meio de uma competição estabelecidas sobre condições culturais
desiguais cujas raízes se encontram nas condições históricas de reprodução da vida já
desiguais - um exemplo que evidencia essa constatação é apontado por estudos que
demonstram que as mulheres, embora com maior formação educacional recebe menos do que
o homem e, que se essa mulher for negra, seu salário é inferior a da mulher branca -, seja por
aumentar a intensidade e a produtividade do trabalho.
Aumentar a intensidade e a produtividade do trabalho, ou em termos administrativos,
colaborar para efetivar o desenvolvimento organizacional - vulgo desempenho da organização
- é o objetivo da Gestão da Diversidade, quiçá seja por isso que Chiavenato menciona que ela
permite a "Criação de imagem de postura ética". Imagem porque não é objetivo da Gestão da
Diversidade problematizar a opressão existente na sociedade, mas fazer com que as diferentes
características que, na aparência do fenômeno, são justificações para tal opressão, sejam
toleradas em nome do uso da força de trabalho no processo de valorização.
Tolerância que é sustentada pela lógica da meritocracia. Quando ao oprimido é
oportunizada a condição concreta de concorrer com o opressor, o primeiro tem que atender de
forma mais "competente" as exigências do capital, pois somente assim, comprova ser
merecedor do seu "novo lugar" e obstaculiza o desenvolvimento de argumentos que
sustentariam a discriminação reversa, o grande risco da Gestão da Diversidade quando essa é
relacionada a Proteção.

2.2 A Gestão da Diversidade para a Proteção


Bohlander e Snell (2014, p. 119) apresentam a Gestão da Diversidade ou
"Administrando a Diversidade" como sinônimo de Ação Afirmativa. Em resumo, eles
colocam que:

A ação afirmativa vai além de proporcionar igualdade de


oportunidades de emprego para os funcionários. Ela requer que as
companhias se tornem proativas e corrijam áreas em que
anteriormente cometeram discriminação. Isso pode ser atendido
contratando membros de classes protegidas para funções nas quais sua
representação é mínima. O objetivo da companhia é ter uma força de
trabalho interna que seja equilibrada e representativa do mercado de
trabalho relevante para a companhia.

Para os autores, as companhias necessitam ser proativas porque a ação afirmativa é um


"assunto emocional e controverso" (2014, p. 117) que pode gerar "umas discriminação reversa
contra outros funcionários" que não pertencem aos "grupos protegidos". Para discutir o que
são os grupo protegidos, os autores respaldam-se na legislação referente à Equal Employment
Opoortunity (EEO) que tratam elementos como: raça, cor, religião, sexo, nacionalidade,
incapacidades físicas ou mentais, idades. A partir de um levantamento histórico das leis de
EEO e de algumas decisões judiciais de última instância acerca da discriminação no momento
da admissão (para o emprego ou para o ensino superior), os autores concluem realizando a
seguinte reflexão:

O futuro da ação afirmativa pode não estar nos programas voluntários


nem nas decisões judiciais, mas sim nas atitudes gerenciais que
valorizem a diversidade na força de trabalho. Os gerentes que aderem
ao quadro de pessoal diversificado reconhecem as diferenças e
contribuições que podem ser feitas por pessoas com habilidades
variadas. As organizações que consideram a diversidade a partir de
uma perspectiva prática e orientada à negócios (em vez de uma
exigência de ação afirmativa, ordenada por um tribunal) irão empregar
e promover membros das classes protegidas como um meio para
desenvolver vantagem competitiva. Considerando dessa maneira, uma
maior diversidade da força de trabalho aumentará significativamente o
desempenho da organização ao se conhecer vários mercados de
trabalho e soluções criativas para os problemas. (BOHLANDER e
SNELL, 2014, p. 118)

Interessante observar que no livro estrangeiro a gestão da Diversidade é uma das


respostas da Administração à imposição de uma Lei que pode trazer prejuízos ao processo de
valorização se não for conduzida corretamente, e para isso, os autores apresentam uma série
de técnicas que permite a empresa atender as exigências legais para não incorrendo no
recebimento de multas. Não nos interessa tais técnicas aqui, pois são apenas o desdobramento
necessário à efetivação da essência da Gestão da Diversidade, aproveitar a força de trabalho
para aumentar "significativamente o desempenho da organização", conforme já discutido.
Porém, diferente de Chiavenato, Bohlander e Snell entendem a diferença como desigualdade,
ainda que não destaquem essa discussão enquanto a necessária superação das opressões
sustentadas por elas. Pelo contrário, os autores não conseguem imaginar relações sociais
livres de opressão - o que colabora para a naturalização dessas relações -, pois destacam que
se não houver a comprovação de que os membros das "classes protegidas" mereceram a
oportunidade conquistada, a presença deles no mesmo ambiente de trabalho pode gerar a
discriminação reversa, quando então os indivíduos das "classes não protegidas" sentir-se-iam
discriminados, por serem preteridos. Com essas argumentações, além de naturalizarem a
opressão, os autores ainda transferem para os conflitos intrapessoais à impossibilidade do
capitalismo de ter condições de emprego para todos e todas. Como também obstaculizam a
constituição de uma identidade de classe, separando a classe trabalhadora em dois grandes
grupos que denominam classe: os protegidos e os não protegidos. Resta saber, protegidos de
quem ou de quê? Ou seriam protegidos para proteger a algo?
Percebemos que as argumentações dos autores não obstaculizam apenas a constituição
da identidade de classe, mas também a identidade de sujeitos históricos, tendo em vista que as
leis que definem os diferentes como pertencentes à grupos protegidos são resultados de lutas
sociais. São vitórias de trabalhadores negros e negras, das trabalhadoras, etc., que são
contadas aos futuros gestores apenas como medidas protecionistas, que ao impor o
preterimento de um grupo na competição por oportunidades pode ocasionar um clima
conflituoso de trabalho que prejudicaria o desenvolvimento organizacional. E, assim, cabe ao
gerente efetivar a gestão da diversidade em uma "perspectiva prática e orientada à negócios".
Em suma, gerir a diversidade é uma necessidade do capital vinculada ao processo de
intensificação da exploração do trabalhador, seja daquele dito diferente, seja daquele tomado
como padrão que estabelece a diferença. Necessidade que não envolve, por exemplo,
problematizar o padrão de normalidade, antes pelo contrário, importante mantê-lo pelo menos
enquanto os "não normais" seguirem acreditando no doce conto meritocrático.
Nesse debate, como vimos, diferente é todo aquele/a que não se enquadra no padrão
"homem-branco-hetero-cristão" e, por experimentar a vida de forma distinta, traz para o
ambiente do trabalho múltipas perspectivas de abordagem permitindo que "Programas bem-
sucedidos de diversidade" desenvolvam "a tecnologia humana para engajar de modo
construtivo maneiras radicalmente diferentes de pensar e agir. Esse processo resulta na
criação de um novo contexto que abraça as diferenças e supera o atual ciclo de 'conflito e
inclusão'" (OLIVEIRA e RODRIGUES, 2004, p. 3840). Abraçar a diferença em uma
sociedade que ela seja apenas a constatação da não identidade imediata das singularidades
individuais, seria o melhor dos mundos, porém como já discutido, a diferença sob o
sociometabolismo do capital (re)produz as desigualdades históricas assim abraçar a diferença
não significa desnaturalizar normalidade e não-normalidade de ser um ser em sociedade,
tampouco rechaça as discriminações decorrentes da diferença, quiçá significaria altera as
condições concretas que produzem os diferentes como sujeitos que não são igualmente
humanos. Pelo contrário, a palavra central na gestão da diversidade é "tolerância". Tolerar é
permitir que o outro divida o mesmo espaço, não necessariamente como os mesmos direitos e
as mesmas oportunidades, pois esses direitos e oportunidades pouco tem haver com as
qualidades da força de trabalho demandas no processo de valorização. Assim, tolerar é
suficiente para os interesses do capital, pois dividir os mesmos espaços permite efetivar a
cooperação no processo de trabalho. Cooperação que pode inclusive ser potencializada
quando a diferença, ao não ser refutada enquanto base para a desigualdade, faz com que
aquele tratado como diferente dedique-se cada vez mais as suas tarefas com o objetivo de
mostrar-se merecedor do lugar que ocupa um "sujeito normal" - modo de evitar a
discriminação reversa.
Enfim, a luta dos oprimidos, que historicamente conquistou políticas afirmativas,
passa agora a ser balizada pela ideologia meritocrática (ALVES e GALEÃO, 2004). E na
formação do jovem administrador de recursos humanos constitui-se uma subjetividade que
não concebe a diferença enquanto uma desigualdade decorrente de condições históricas e da
imposição de um modelo de normalidade que se gestou na luta pela manutenção do poder de
um determinado grupo social. A diferença, na constituição da subjetividade desses gestores, é
apresentada como uma característica que deve ser suprimida pelo esforço individual,
superação resultante da capacidade do "não-normal" de atingir os mesmos, quiçá melhores,
resultados que os "normais". Não havendo essa superação individual, perpetua-se a ideia de
que é normal a diferença ser anormalidade social. E, por essa razão, o processo de avaliação
de desempenho torna-se imprescindível à gestão capitalista. Para ratificar o cônscio sobre o
tema, as técnicas de avaliação de desempenho são ensinadas enquanto mecanismo que
garantem a isonomia interna, eliminando o conflito gerado pela sensação de injustiça nos
processos de "recompensa" pelo trabalho - como se fosse possível eliminar as injustiças sob o
capital.

3. Avaliação de Desempenho

A avaliação de desempenho é sagrada. Pelo menos é isso que deseja ensinar aos
futuros gestores Marras, Lima e Tosse (2012)i. Para falar sobre essa atividade de controle do
valor de uso da força de trabalho, os autores recorrem à citações bíblicas, tornando o ato algo
constitutivo da natureza humana por desejo do divino, do absoluto. Vê-se de pronto a
incompreensão do desenvolvimento histórico das categorias. Ou será que os autores entendem
que os capitalistas são deuses que sabem o que é melhor para cada um dos membros de seu
rebanho conforme o grau de obediência?
Não iremos discutir a pertinência do uso bíblico, até porque a própria veracidade das
interpretação dos textos considerados sagrados é alvo de disputas pelas inúmeras religiões.
Importa frisar apenas o processo de naturalização do ato de avaliar o quanto o trabalhador
entrega da mercadoria vendida, o quanto a potência torna-se ato. Ao que se não atingir as
metas impostas pelos "objetivos organizacionais" pode ser avaliado como um atentado contra
o "irmão" capitalista. Nessa perspectiva, em algo os autores estão sendo precisos, não ter um
alto desempenho no trabalho é atentar contra o processo de valorização, prática, portanto, que
o capitalista deseja eliminar.
Em um salto que tem como base impulsionadora os escritos dos primeiros anos da era
cristã (Evangelho de Mateus), respaldado pelo exemplo de Inácio de Loyola, chega-se a idade
moderna industrial do século XIX, quando então, o governo dos Estados Unidos da América,
em 1842, racionalizou a vontade divina implantando um sistema de relatórios anuais de
avaliação. Quase dois séculos depois temos, assim, várias "conceituações" sobre Avaliação de
Desempenho ou Gestão do Desempenho, das quais os autores escolheram duas, e que
tomaremos aqui como base de discussão, a saber:

Vários autores procuraram conceituar a avaliação de desempenho, e é


assim que Latam e Wexley (1994, apud Hipólito, 2002, p. 73)
conceituam esse processo como o "sistema que tem por objetivo a
melhoria global do desempenho e da produtividade das pessoas ao
longo do tempo". (Marras, Lima & Tose, 2012, p. 5)
Lopes (2009, p. 3) conceitua a Gestão de Desempenho como "um
processo contínuo de negociação, acompanhamento e renegociação de
metas individuais e grupais, com foco nos resultados organizacionais e
que gera subsídios para recompensar desempenhos superiores". Essa
conceituação é realmente muito interessante e desejável, mas caba por
ser abrangente demais, não correspondendo à gestão de desempenho
da maioria das organizações, cujo foco, por exemplo, pode ou não
estar associado ao sistema de remuneração. (Marras, Lima & Tose,
2012, p. 6)

Nos parece que, embora expresso de diferentes formas, existe um conceito do que é
avaliação de desempenho: um processo que qualifica, quantitativa e/ou qualitativamente, a
intensidade do uso das forças físicas e mentais do trabalhador, sua capacidade de trabalho.
Vale lembrar que o comprador da força de trabalho pagou pelo trabalho social objetivado em
troca de trabalho vivo a objetivar (MARX, 2001). Logo, para o comprador, a intensidade com
que a potencialidade do trabalho é objetivada é um elemento determinante no processo de
valorização, ainda que essa intensidade seja tratada nos livros de Recursos Humanos apenas
como a possibilidade do trabalhador realizar "o melhor de suas habilidades" (BOHLANDER
e SNELL, 2014, p. 298).
Realizar o melhor de suas habilidades não significa, para o trabalhador, alterações
salariais, como lembra Marras, Lima e Tose (2012). Ironicamente poderíamos sustentar que as
"organizações" não associam a avaliação do desempenho ao sistema de remuneração porque
não se recompensa por "não pecar". Entretanto, não é a linha argumentativa que usaremos.
Não há necessidade direta de relacionar a avaliação de desempenho com a remuneração
porque a primeira está para o valor de uso e a segunda para o valor de troca da força de
trabalho. A falácia do atrelamento reside na necessidade de "motivar para o trabalho" (afinal,
há trabalhadores do tipo X e do tipo Y, há trabalhadores que resistem, por meio de diferentes
mecanismos, a exploração), de fazer o trabalhador exaurir suas forças físicas e mentais em um
processo de trabalho no qual está alienado, ou seja, o tema da motivação apresentado pelos
autores dos livros de Recursos Humanos aos futuros gestores necessita ser discutido à luz da
categoria alienação e não da categoria valor de troca. Portanto, não é equívoco administrativo
a inexistência da relação entre avaliação de desempenho e remuneração. Seria ingenuidade
administrativa (dos teóricos da administração) objetivar esse atrelamento. Por outro lado, seria
equívoco não relacionar o desempenho com a progressão na carreira, pois essa está
diretamente relacionada ao nível de competição entre os trabalhadores, competição que tem
como parâmetro justamente a intensidade do uso da força de trabalho ou, como os teóricos
dos Recursos Humanos mencionam, da entrega que o trabalhador faz à empresa de sua
competência. Entrega que só pode ser feita de modo individual, afinal, cada trabalhador é
único e agrega "valor econômico à organização" a medida em que mobiliza, integra, transferi
conhecimentos, recursos, habilidades... É por isso que, embora as "competências" individuais
sejam determinadas pelas denominadas competências organizacionais, setoriais, grupais; o
ente que deve ser avaliado é o indivíduo trabalhador. (MARRAS, LIMA e TOSE, 2012). Em
face de uma possível dificuldade cognitiva do estudante e futuro gestor, os autores optam
apresentar o desenho desenvolvido por Marras (2011), no qual ele demonstra o lugar do
trabalhador num processo de avaliação, no caso, submetido à técnica conhecida como
"avaliação por múltiplas fontes", a saber:
Figura 1: O Indivíduo com Centro da Avaliação de Desempenho

Fonte: Marras, 2011, apud, Marras, Lima e Tose, 2012, p. 37

Diante desse complexo sistema de avaliação, desenhado por Marras (2011), onde
todas as setas apontam para você, inclusive a sua (auto-avaliação), como seria possível que as
relações concretas existentes no ambiente de trabalho não constituíssem uma subjetividade
propensa a declarar: "culpa, mea culpa, mea maxima culpa"?
A avaliação de desempenho é um processo que verifica o quanto a mercadoria força de
trabalho está sendo utilizada, trata-se de verificar para aprimorar o consumo do valor de uso.
Embora a literatura administrativa exalte o trabalho em equipe, a aprendizagem coletiva, etc.
a avaliação é, em última instância, individual. Reconhece-se que os trabalhos são
interdependentes, porém foca-se no fato de que o trabalho de cada um é indiferente às
relações estabelecidas no trabalho com outros sujeitos. Na prática, não há sujeitos no processo
de avaliação, tão somente força de trabalho sendo avaliada. No entanto, o que o jovem
administrador aprende é que a avaliação de desempenho promove o crescimento pessoal e
profissional (LIMONGI-FRANÇA, 2012) - pessoal? - desde que se alcance os "objetivos
organizacionais". Ainda que acreditando nessa assertiva, não deveria parecer suspeito o
desenvolvimento pessoal ser determinado por objetivos externo à pessoa? Para evitar a
desconfiança daquela desejada verdade, ensina-se que os objetivos são da coletividade,
alcançá-los é responsabilidade daquele que tem capacidades singulares para abraçar tamanha
tarefa. Afinal, como frisa Chiavenato (2010, p. 165) a organização é um agente de
"transformação genuinamente social". Assim, o conhecimento produzido por cientistas
administrativos e ensinados pelos docentes constituem o conteúdo de uma subjetividade
característica ao gestor de recursos humanos que percebe a si, aos outros e as relações sociais
estabelecidas no e pelo capital como a normalidade de ser do ser social. Uma normalidade que
não é experimentada como sendo comum, mas extraordinária, por ser resultado única e
exclusivamente do mérito de ter atendido aos interesses de uma classe particular que se
apresenta como universal, ainda que valendo-se da figura do divino. E quando tal
subjetividade é assim produzida, parece-nos evidente - portanto, dispensa estudos científicos -
o resultado de pesquisas que constataram "que as empresas com programas de diversidade
cultural tiveram melhor performance do que aquelas que não os possuíam, comprovando que
ao valorizar a Gestão da Diversidade as organizações conseguem utilizar melhor os recursos
internos de que dispõem, incentivando a inovação e melhorando a produtividade"
(OLIVEIRA e RODRIGUES, 2004, p. 3840); afinal, aumentar a exploração do trabalho (com
ou sem diversidade) é o que o trabalhador-gestor de recursos humanos acredita ser o seu
maior mérito.
Percebemos assim que as pesquisas desenvolvidas nas áreas de Recursos Humanos e
Comportamento Organizacional são as mediações necessárias ao capital para sustentar as
relações recíprocas entre a produção de uma determinada subjetividade e o uso da força
subjetiva do trabalho no processo de valorização, sobretudo porque, tal subjetividade, ao ser
requerida no processo de trabalho, irá ao/de encontro das contradições concretas e que lhes
foram sonegadas enquanto se especializavam. Ou, para usar termos comuns àqueles
pesquisadores, o ciclo (vicioso) entre capacitação técnica universitária e uso da força de
trabalho se retroalimentam para satisfazer os objetivos do capital. Satisfação garantida ainda
pela disponibilidade do fundo público.
A gestão do fundo público, como mencionado na introdução, reafirma a natureza do
estado capitalista. De modo algum queremos reduzir o entendimento do Estado a mero
instrumento de reprodução político-ideológica da classe burguesa. Essa acepção, pertencente
a uma clássica abordagem marxista, não compartilhamos. Entendemos que o processo de
valorização do valor necessitou, para instituir-se concretamente, gestar inúmeras mediações
das quais não pode prescindir, incluindo o Estado. As mediações assumem características
próprias as necessidades históricas do capital, inclusive, constituindo-se enquanto esfera
externa ao processo de (re)produção do valor e com lógica própria, mas não sem
condicionamentos - reciprocidades dialéticas - para sua operacionalização segundo
necessidades do capital. No debate aqui efetuado, cabe frisar os mecanismos internos de
financiamento daquele "ciclo vicioso": produção da subjetividade do trabalhador-gestor
adequado às necessidades do capital a fim de aperfeiçoar o uso da força de trabalho.

4. Fundo Público: Sucintas considerações sobre patrocínio de pesquisas e incentivos ao


setor livreiro

O Estado gerencia parte da distribuição do mais valor por intermédio do fundo


público, eis aí o Estado enquanto uma instância mediadora do processo de valorização. Por
isso, já defendemos em outros textos que a luta de classes passa também pela luta em torno do
fundo público (FERRAZ e MENNA-BARRETO, 2012; FERRAZ, 2015), seu tamanho, sua
utilização. Quando observamos esses quesitos percebemos que tanto a utilização como
também o montante podem - e são assim geridos - beneficiar os investidores privados. Quanto
ao tema aqui abordado, esses benefícios ocorrem seja por meio das isenções de impostos,
mecanismo que coloca um grupo de capitalista em condições de privilégio no processo de
apropriação do mais valor, seja por meio da aplicação do fundo no desenvolvimento de
pesquisas que atendam as necessidades do capital, tais como as apresentadas anteriormente.
O artigo 150, inciso VI, letra “d”, da Constituição Federal brasileira legisla sobre a
imunidade tributária especial destinada aos produtores de livros, jornais, revistas e periódicos,
como também para o papel adquirido para a impressão dessas mercadorias. Essas empresas
estão livres do pagamento de Impostos de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e
Imposto sobre Produtos Industrializado (IPI). Como explica Marx, o mais valor pode ser
dividido em vários cotas partes, conforme contexto histórico. Isentar um grupo econômico do
repasse de parte do mais valor aos cofres públicos está mais para assegurar o lucro para tal
grupo, do que para tornar a mercadoria vendida por esse grupo "mais acessível", como
mencionam os economistas e defensores da redução dos impostos no país. Não
desconsideramos que o elemento determinante para a imunidade é a forma livros, revistas,
etc., e não o conteúdo que a forma comporta. Assim, qualquer empresa produtora das
mercadorias listadas no artigo 150 estariam imunes a esses impostos, porém aos capitalistas
interessa circular suas ideias e não ideias que propunham a necessidade da superação das
classes, por exemplo. Assim, há também uma gerencia estatal sobre as ideias que serão
produzidas e que circularam livremente pelo mundo das mercadorias, pois falta aos
trabalhadores um elemento para que possam usufruir da imunidade garantida por lei e fazer
circular "livremente" suas ideias - justamente o elemento que os determinada como
trabalhadores: capital para investir na produção de seus próprios manuais. Apenas outra forma
de relatar que os proprietários dos meios de produção da existência material são também os
proprietários dos meios de produção da ideias (MARX e ENGELS, 2007).
As ideias que podem ser produzidas e a própria condição de sua produção também é
majoritariamente determinada pela distribuição do fundo público por meio de editais dos
órgãos nacionais e estaduais de fomento. Concretamente, temos que, por exemplo, mais de
80% das pesquisas desenvolvidas no Brasil sobre Diversidade no âmbito da Administração
são oriundas de trabalhos financiados por órgãos de fomento e, quase a totalidade delas tem
alguma ligação com financiamento estatal decorrente dos salários pagos aos autores que, via
de regra, são professores de universidade federais e estaduaisii. Considerando apenas esse
elemento, é possível afirmar que a força de trabalho da especialidade pesquisador está sendo
remunerada pelo trabalhador para desenvolver conhecimentos e técnicas para controlar e
aumentar a exploração da força subjetiva do trabalho no processo de trabalho.
Como mencionado anteriormente, o Estado possui sua lógica própria e para mediar os
interesses do capital, mantendo a aparência de universalidade, necessita, por vezes, garantir
também a expressão das ideias dos trabalhadores, sobretudo em uma época histórica em que a
democracia parece ser a panaceia para todos os males e, no movimento contraditório, também
no mundo das ideias, o próprio capital produz os meios para sua negação, ainda que de forma
fragmentada e marginal. Caso não fosse assim, esse próprio trabalho poderia não ser
elaborado, pois conta com o verbas do fundo público. Porém o irônico é que a crítica ao
capitalismo, se apropriada pelo capitalismo em sua parcialidade, pode potencializar o próprio
desenvolvimento das forças produtivas, mas desenvolver essa afirmação nos demandaria
entrar em outra seara.

5 Considerações Finais: Tarefas da Administração Política

Conforme mencionado na introdução do texto a tese que procuramos defender é que o


processo educacional do ensino superior é um momento ímpar da especialização da força de
trabalho, um momento em que se consolida a produção de uma subjetividade que corresponda
à necessidade histórica do processo de valorização no que tange a força subjetiva do trabalho.
E, nessa produção, os elementos que constituem o conjunto de ideais ensinadas constituem-se
como um obstáculo à constituição da consciência de classe em si e para si. O elemento que
sintetiza esse processo, como já mencionado por Tragtenberg (2005), porém, hodiernamente
de modo bem mais sofisticado, é o que podemos chamar de psicologização do social. Essa
psicologização não ocorre por acreditar que as ciências psicológicas explicam as relações
sociais de forma mais verossímil, mas porque essa é a mediação, com legitimidade científica,
necessária a produção da predominância da particularidade-individualidade sobre a
generalidade. Portanto, não se trata da mera psicologização dos problemas sociais, pois uma
forma de controle do metabolismo da sociedade que necessita da produção constante de
sujeitos reciprocamente dependentes e mutuamente indiferentes não poderia tratará os
problemas decorrentes dessas relações de outra forma, se não pela esfera da individualização
psíquica. Como demonstramos nas análises dos dois temas discutidos, esse modo de
individualização está no argumento central: a superação das diferenças é oportunizada por
uma gestão da diversidade que conduza o "diferente" a entregar os mesmos resultados que os
"não-diferentes", tornando-se assim uma força de trabalho indiferenciada, o que de fato já era
enquanto pressuposto para se fazer mercadoria, demonstrando, portanto, que a Gestão da
Diversidade não se preocupa nem com os padrões de normalidade nem com as condições
concretas que constituiriam as desigualdades, mas com a exploração dessa força de trabalho
indiferenciada, tanto que a mensuração do uso dessa força é colocada para todos,
independente de ser ou não "diferente". E, quando passamos para o tema de Avaliação de
Desempenho, não restam dúvidas que o indivíduo é o centro da discussão - importante
destacar que nesse tema não há uma ressalva se quer para como avaliar a força de trabalho
cujo portador possui características diferentes, posto que o cerne da questão é justamente ser
merecedor, a despeito das diferenças. Cabe aqui, uma primeira demanda para os estudiosos
comprometidos com o desenvolvimento de uma Administração Política: não parcializar a
realidade concreta, ou em outros termos, não desvincular as lutas sociais de (re)distribuição
das de reconhecimento, pois o sujeito trabalhador é concomitantemente explorado no
processo de valorização e oprimido no processo de produção, dois momentos de uma mesma
totalidade. A não cisão das lutas carrega em si a possibilidade de problematizar a opressão
enquanto mecanismo que potencializa a exploração e, assim, conduzir a constituição de um
saber sobre as condições concretas de reprodução da vida em que a luta pelo reconhecimento
sob o capital apareça em suas limitações para a luta pela emancipação humana.
A tese que defendemos tem que ser ainda considerada em sua potencialidade negativa,
posto que, a objetividade das relações de trabalho também produz a subjetividade do
trabalhador, e assim a subjetividade produzida no processo de formação dos futuros
administradores encontrarão, na prática, as contradições concretas entre capital e trabalho.
Embora o primeiro procure blindar a consciência do trabalhador por meio de um saber
ideológico, aqueles possuem a capacidade de apreender a realidade a partir de seu lugar no
processo produtivo, constituindo, assim, a primeira subjetividade enquanto um obstáculo a ser
rompido. A primeira manifestação desse processo de apreensão das contradições é parcial e
repetidamente mencionada como "na prática, a teoria é diferente". Porém, se a prática das
relações de trabalho fornecem os elementos concretos para o rompimento da subjetividade do
profissional produzida nos bancos escolares, compreender esse hiato entre a prática e a teoria
demanda de mediações nem sempre disponíveis, sobretudo em um momento histórico em que
vivenciamos um sindicalismo de cariz corporativista (e mesmo com esse cariz, rechaçado por
grande parte dos autores e pesquisadores envolvidos no processo de produção da força de
trabalho especializada). Reside nas considerações realizadas nesse parágrafo o que cremos ser
uma segunda tarefa da Administração Política: desenvolver uma "teoria" que não seja
diferente da prática. Ou como colocaria Marx, desenvolver um conhecimento que seja um
concreto pensado. Esse conhecimento constituindo portanto uma ciência verdadeira, pois a
ciência verdadeira é aquela que está comprometida como a emancipação da humanidade,
com a superação da exploração e opressão de um ser humano pelo outro.
Em suma, embora Estado e Capital objetivem produzir uma consciência de classe
burguesa na classe trabalhadora, ela não corresponde imediatamente ao ser da classe
trabalhadora e, portanto, somente se sustenta pela contínua ação educadora para o capital
enquanto mediações para a minimização das possibilidades do arrefecimento das lutas de
classes. Por isso, as considerações até aqui realizadas permitem a ousadia de reivindicarmos
que o conhecimento produzido na Administração Política necessita, para se constituir
enquanto um conhecimento que não oportunize a exploração e a opressão, questionar-se sobre
a produção do saber para além do capital, comprometendo-se com a emancipação da
humanidade.

Bibliografia
ALVES, M. A.; GALEÃO-SILVA, L. G. (2004) A Crítica da Gestão da Diversidade nas
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CHIAVENATO, I. Administração nos Novos Tempos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
FERRAZ, D. L. S. . Projetos de Geração de Trabalho e Renda e a Consciência de Classe dos
Desempregados. Revista Eletrônica Organizações e Sociedade, v. 22, p. 123-142, 2015.
FERRAZ, D. L. S.; MENNA-BARRETO, J. A Organização dos Trabalhadores
Desempregados como Mediação para a Consciência de Classe. Organizações & Sociedade
(Impresso), v. 19, p. 187-207, 2012.
LIMONGI-FRANÇA, A. C. (2012). Práticas de Recursos Humanos. São Paulo: Atlas.
LUKÁCS, G. (2010). Prolegômenos Para uma Ontologia do Ser Social. São Paulo:
Boitempo.
LUKÁCS, G. (2013). Para uma Ontologia do Ser Social II. São Paulo: Boitempo.
MARX, K. Grundrisse: Manuscritos econômicos 1857-1858: esboço da crítica da economia
política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Edu UFRJ, 2011.
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, I. (2008). Filosofia, Ideologia e Ciências Sociais. São Paulo: Boitempo.
OLIVEIRA, U. R.; RODRIGUEZ, M. V. R. (2004) Gestão da diversidade: além de
responsabilidade social, uma estratégia competitiva. XXIV Encontro Nac. de Eng. de
Produção - Florianópolis, SC.
SNELL, S.; BOHLANDER, G. A Administração de Recursos Humanos. São Paulo:
Cengage Learning, 2014.
TRAGTENBERG, M. Administração, Poder e Ideologia. São Paulo: Unesp, 2005

                                                                                                                       
i
  Escolhemos o livro desses autores por ser ele um trabalho que reúne as três principais referências brasileiras
sobre o tema. Uma das autoras, inclusive, recentemente foi condecorada pela academia como uma das autoras
mais citadas na área de Administração. Com isso, consideramos o livro um exemplar do que é a referência da
Gestão de Pessoas no Brasil. Ademais, diferente de Chiavenato, esses três autores possuem trânsito também na
esfera da pós-graduação.  
ii
  Vale destacar que encontramos esses resultado quantitativo num levantamento de dados realizados nos
Congressos mais importantes da área no período de 2004 a 2014, a saber, Encontro Nacional dos Programas de
Pós-Graduação em Administração, Encontro Nacional de Estudos Organizacionais e Encontro Nacional de
Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho, todos chancelados pela Anpad.  
Administração do Desenvolvimento: uma ferramenta para a
construção de um projeto de desenvolvimento socioeconômico sustentável.

Manuela Santos Moura (UFBA)

RESUMO
O objetivo deste artigo é questionar sobre a possibilidade de criação de uma politica
nacional balizada por um projeto de desenvolvimento socioeconômico de longo prazo que
sustente um projeto de nação amparado em uma cadeia produtiva integrada e fundamentado
em ações que valorizem políticas cientificas e tecnológicas para o aproveitamento do elevado
potencial natural da nação. Utiliza-se a pesquisa bibliográfica para preencher o referencial
teórico com foco histórico e atual das relações econômicas desenvolvidas no Brasil. Isto para
concluir que, embora o país tenha experimentado picos de desenvolvimento econômico, as
politicas executadas não foram capazes de promover um desenvolvimento socioeconômico
sustentável, mostrando-se a administração do desenvolvimento uma ferramenta para a
condução deste projeto.
Palavras- chave: crescimento; desenvolvimento socioeconômico; administração do
desenvolvimento;

INTRODUÇÃO

O principal argumento sobre a importância do comércio internacional para um país é


a sua implicação no crescimento econômico, visto que, essa inserção aumenta a utilização da
capacidade produtiva, potencializa investimentos e melhora a capacidade de gestão e
gerenciamento com ênfase na produção de novas tecnologias (Lima e Cândido, 2010).
Contudo, sem uma politica nacional balizada por um projeto de desenvolvimento
socioeconômico de longo prazo, os atuais movimentos de crescimento econômico, não
sustentam um projeto de nação amparado em uma cadeia produtiva integrada e fundamentado
em ações que valorizem políticas cientificas e tecnológicas para o aproveitamento do elevado
potencial natural da nação.
De acordo com Neto (2011), as perdas e ganhos advindas dos atuais padrões de
comércio internacional tem origem na clássica concepção de divisão internacional do trabalho
que tem orientado as relações internacionais modernas e contemporâneas, baseadas na
manutenção das assimetrias socioeconômicas regionais . A história da formação econômica
do Brasil, dos países latino-americanos e de tantas outras nações pobres, tem sido marcada,
portanto, por esses princípios excludentes e concentradores de riqueza e renda, fundamentado,
essencialmente, na produção de commodities.
Conforme, os estudos de Osório (2012), a integração da América Latina ao mercado
mundial ocorreu logo após os processos de independência política no século XIX. Enquanto
colônia, a região como produtora de metais preciosos, alimentos e matérias-primas, favorecia
o sistema manufatureiro europeu e os caminhos para a criação da grande indústria que emerge
entre os séculos XVIII e XIX. A partir daquele contexto surge e se consolida uma divisão
internacional do trabalho estruturada de modo a manter os países em seu papel histórico de
fornecedores de matérias primas e compradores de produtos manufaturados. Apenas com
recuperação do capitalismo no período Pós Segunda-Guerra Mundial inaugura-se um
movimento de modernização industrial nesses países periféricos, mas orientados nos velhos
princípios que preservam a dependência econômica e tecnológica dessas nações. Nesse
contexto emerge a teoria do subdesenvolvimento, liderados por acadêmicos latino-
americanos, motivados pela emergência de teorias criticas sobre os princípios que
sustentavam a ideologia da clássica divisão internacional do trabalho.
No Brasil, as políticas internas engendradas ao longo da história da formação
socioeconômica favoreceram as elites locais, a exploração do trabalhador e a manutenção da
dependência. Mas, apesar dessa tendência extrativista não se pode deixar de reconhecer o
êxito do projeto de modernização socioeconômica nacional desenvolvimentista, liderado por
Getúlio Vargas (1930-1954), avançado por Juscelino Kubitscheck ( 1956-1960) e consolidado
pelos militares (1965-1979). Nesse período, assiste-se, pois, uma ruptura com o movimento
histórico de produção primária exportadora. Entretanto, esse modelo foi erigido em bases não
sustentáveis de financiamento e tecnologia, o que comprometeu sua continuidade,
especialmente a partir da crise que se instala no capitalismo central e nacional a partir dos
anos 80 do século passado.
Com o novo ciclo de crise do modelo de gestão do capitalismo inaugurado nos anos
70 do século XX, assiste-se ao ressurgimento dos ideais liberais (conhecido como
neoliberalismo), liderado pelos países centrais baseado no tradicional padrão de divisão
internacional do trabalho e com forte estímulo à reprimarização do comércio internacional dos
países emergentes e periféricos. Nesse contexto, os países desenvolvidos vão investir em
novos experimentos nos países em desenvolvimento latino-americanos liderado pelo Chile
nos anos 80, México e Argentina nos anos 80 e Brasil nos anos 90. Essas nações assumem de
forma a-crítica a recomendação do pensamento hegemônico neoliberal tendo como base as
seguintes estratégias: abertura das nações à competitividade internacional, redução do papel e
função do Estado na economia e em políticas sociais e estímulo à políticas de produção e
exploração de produtos primários. (Pochmann, 2001).
Esse novo padrão exportadoir pauta a balança comercial brasileira na venda de
commodities, aproveitando sua vantagem natural. Atualmente o Brasil está entre os maiores
exportadores de petróleo do mundo com metas crescentes de venda de barris, principalmente,
para Chinaii. Entretanto, essa posição destacada em uma economia ainda dependente de
combustíveis fósseis é muito frágil, pois, o país continua a importar tecnologias e produtos de
alto valor agregado, enquanto países desenvolvidos investem em novas tecnologias e
desenvolvimento de novos produtos. Ademais, conforme ressalta Osório (2012), há uma
competição travada com os países que além de serem parceiros comerciais também disputam
mercado para exportarem os seus produtos primários com alta demanda no mercado externo,
a exemplo do petróleo. Para o mencionado autor, essa especialização produtiva opera com um
número reduzido de atividades que concentram o dinamismo da produção, não estabelecem
relações orgânicas com o restante da atividade produtiva local demandando, prioritariamente,
do exterior equipamentos, bens intermediários, tecnologia e design. Gudynas citado por
Chagas (2013) diz estar em curso um “novo extrativismo progressista” cuja principal
característica é a participação do Estado como ator principal.
Em meio a tal contexto, é reconhecido papel, pela literatura internacional e nacional,
das tecnologias no desenvolvimento dos países bem como a importância das exportações para
o desenvolvimento econômico. Contudo, o investimento em tecnologia no Brasil não se
mostra estratégico no longo prazo e o processo de desenvolvimento atrelado a uma economia
exportadora sem um projeto de desenvolvimento cientifico e tecnológico e cadeia produtiva
interno não tem se mostrado sustentável, impossibilitando a criação de bases para um
desenvolvimento socioeconômico competitivo. A riqueza gerada no período
desenvolvimentista, entre os anos 30 e 70 do século passado e o modelo de crescimento
experimentado na ultima década do século XXI não foram capazes de promover uma
estratégia que primasse pelo desenvolvimento autônomo do país.
A pergunta que baliza este estudo é a possibilidade de que a ampliação do comércio
internacional brasileiro, baseado nas vantagens competitivas da cadeia produtiva nacional,
pode estimular o desenvolvimento científico e tecnológico e contribuir para a concepção e
implantação de um projeto nacional de desenvolvimento autônomo inclusivo?
Na tentativa de responder esta questão, foi utilizada neste trabalho uma pesquisa
exploratória bibliográfica como instrumento de fundamentação teórica, dividido entre
introdução, formação socioeconômica do Brasil, bases conceituais das teorias da
administração do desenvolvimento, relações de cooperação brasileiras, desenvolvimento e
tecnologia e considerações finais. O objetivo geral é analisar as possibilidades e desafios do
Brasil para ampliar o comércio internacional, baseado hoje nas vantagens comparativas
naturais, para fortalecer as vantagens competitivas da cadeia produtiva nacional, estimular o
desenvolvimento científico e tecnológico e contribuir para a concepção e implantação de um
projeto nacional de desenvolvimento autônomo e inclusivo. Tendo como apoio os seguintes
objetivos específicos: Analisar os movimentos históricos dos padrões de desenvolvimento
brasileiro com base nas teorias econômicas, sociais e administrativas; Analisar os riscos do
atual movimento de especialização das exportações de produtos primários para o
desenvolvimento futuro do Brasil; Analisar a possibilidade de aproveitamento do potencial
natural brasileiro para o desenvolvimento científico e tecnológico de modo a dimensionar o
potencial e desafios para a concepção e implantação de um novo padrão de administração do
desenvolvimento nacional; Identificar as possibilidades de propor o desenvolvimento de uma
cadeia produtiva nacional, com base no alto potencial de recursos naturais.
1.1 FORMAÇÃO SOCIOECONÔMICA DO BRASIL.

Desde sua colonização o Brasil ocupa uma posição no mercado internacional de


fornecedor de matéria prima. Passou por vários ciclos o do ouro, do açúcar, do café até chegar
ao período de industrialização que, de acordo com Marini (2012), foi tardia.
As decisões políticas adotadas no país sempre favoreceram o mercado externo. Cada
ciclo de matéria prima brasileira correspondia a um período de acumulação de capital dos
países do centro até a industrialização brasileira no século XX ocorreu impulsionada por uma
crise econômica dos países desenvolvidos que precisavam de mercado para escoar suas
máquinas sucateadas que aqui serviram como suporte à produção de bens suntuários. (Osório,
2012). Esse processo provocou, conforme a teoria da Modernização, o subdesenvolvimento
consequência das trocas econômicas entre os países periféricos e os países desenvolvidos.
Kraychete (2012) diz que essa teoria tanto serviu para explicar a dinâmica socioeconômica
dos países subdesenvolvidos quanto para entender a relação entre o tradicional e o moderno
dentro dos espaços nacionais. Os marxistas também comungavam a Ideia de que as
desigualdades e precariedade do trabalho também está relacionada a inserção destes países no
comércio internacional. Oliveira (1981) diz que a coexistência entre os chamados setor
“moderno” e “atrasado” é encontrável em quase todos os sistemas em quase todos os períodos
e que diferentemente dos discursos que limitam-se apenas as economias industriais nos países
“o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que
o chamado “moderno” cresce e se alimenta da existência do “atrasado”, se se quer manter a
terminologia”.
Para Neto (2011), havia uma ideia de que a superação dos problemas nacionais seria
alcançada com o desenvolvimento, ou melhor, por meio de um processo de crescimento
econômico, transformações sociais e progresso conseguidos através da industrialização e
urbanização. Com isso o capitalismo brasileiro se aproximaria dos padrões capitalistas dos
países centrais melhorando as condições de vida da população brasileira. De acordo com o
autor essa ideia prevaleceu fortemente entre as décadas de 50 e 70 do século passado.
Contudo, ele faz ressalvas quanto a um desenvolvimento desestruturado sem levar em conta
as relações de produção que implicam em uma dependência dos países desenvolvidos.
A industrialização brasileira juntamente com a ausência de políticas de valorização
das formas de trabalho produtivas criaram um ambiente de exacerbado acúmulo de capital
apenas para uma pequena parcela da população. A década de 30, no Brasil, marcou o início
de um novo ciclo, sobrepondo o modelo urbano- industrial ao agrário- exportador e todas as
políticas, nesse período, foram voltadas para atender as demandas desse mercado. O Estado
construiu estradas, regulamentou o preço do trabalho, subsidiou importações de máquinas,
expandiu o crédito a juros baixos para a indústria e forneceu mão de obra barata através do
sucateamento do campo, as ações estatais não mais favoreciam as atividades agrárias. Com
essas medidas as indústrias capitalistas acumulavam mais capital enquanto a classe
trabalhadora dos centros era pauperizada e a mão de obra não absorvida era marginalizada.
Essa situação não mudou e agravou na década de 90 com o avanço da ideologia neoliberal e
com o progresso da globalização, houve um crescimento elevado da informalidade,
impulsionado pelas políticas implantadas no período, ocasionando a diminuição da
capacidade de geração de novos postos de trabalho e aumento do desemprego. Esse cenário
interno é o reflexo da posição externa brasileira devido ao intercâmbio desigual entre os
países.
Rever o histórico sobre as ideias que constituíram o debate acerca do
desenvolvimento brasileiro é importante para a construção de, nas palavras de Kraychete, “
um fio condutor”.

A trajetória das primeiras décadas do século XX, quando a questão


central girava em torno dos dilemas entre tradição e modernidade,
passa pelas principais teses do nacional- desenvolvimentismo,
características do debate entre os anos 50 e 70, e alcança as inflexões
do paradigma do desenvolvimento, a partir dos anos 1980, em
contexto de democratização e reajuste estrutural. Perpassa toda a
análise a presença do conflito, da integração social e das classes.
Kraychete, 2012. Pag 186.

Já Moreira e Magalhães 2014 afirmam que atualmente ocorre o processo inverso na


América Latina a reprimarização/desindustrialização da produção e especificamente no
Brasil o estudo do autor mostra que a financeirização das multinacionais teve grande
influência neste processo, mas que diferentemente dos outros países aqui não houve
decréscimo do emprego. A demanda internacional por produtos primários fez com que os
países com vantagens naturais ganhassem mais relevância no mercado e isso ocasionou a
formação de grupos e reestruturação de blocos econômicos mas, ao mesmo tempo aquilo que
por um lado é força torna-se fraqueza interna pois, é a união de países com o mesmo nível de
competitividade e com a mesma inserção na cadeia produtiva mundial.

1.2 BASES CONCEITUAIS DAS TEORIAS DA ADMINISTRAÇÃO DO


DESENVOLVIMENTO.

O conceito de desenvolvimento possui um caráter interdisciplinar e historicamente se


molda a interesses diversos. (Santos, 2014). De acordo com o autor, no campo da ciência
administrativa, a Administração do Desenvolvimento é a disciplina que observa, descreve,
analisa, explica e prescreve as relações sociais de produção, distribuição e consumo, quer seja
em países, regiões, lugares ou organizações, de modo a garantir o bem-estar da sociedade. A
administração do desenvolvimento perpassa pela dimensão pública e privada, assim como, o
conceito de desenvolvimento, na sociedade contemporânea, abarca as dimensões econômica,
politica, social e ambiental. A interdisciplinaridade que relaciona estes dois campos de estudo
consiste na necessidade de compreensão da relação existente entre as suas dimensões.
Dos diversos autores que abordam a administração do desenvolvimento destaca-se,
no contexto deste trabalho, Stiglitz (1998) por reconhecer que a gestão do desenvolvimento
deve contemplar as necessidades e o fortalecimento do setor privado, do Estado e da
sociedade. Orientado, porém, para o crescimento e acumulação de riqueza numa perspectiva
da economia política clássica dentro dos pressupostos da modernidade. A importância do seu
estudo se mostra, principalmente, no contexto internacional atual, de mudança ambiental,
reorganização das nações emergentes, ascensão da China e crise financeira, no qual o papel
do Estado e formulações de propostas de desenvolvimento são questionadas. A gestão, objeto
de estudo da administração, é o fio condutor, do fenômeno social do desenvolvimento,
portanto, a sua compreensão é necessária para a construção de um projeto de desenvolvimento
de nação.

1.3 RELAÇÕES DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAIS BRASILEIRAS.

No estudo de Kraychete (2012) é retomado o papel da cooperação internacional para


o desenvolvimento e as suas organizações intergovernamentais que após a segunda guerra
ditaram as normas do comércio entre as nações, diagnosticou e recomendou intervenções na
área da saúde, educação, alimentação e relação de trabalho nos países que desejavam mudar
os termos da sua inserção internacional bem como os programas de assistência técnica
dirigidos aos países pobres culminando com a reafirmação do livre-comércio como remédio
para o subdesenvolvimento. Mas, com a reconfiguração geopolítica e a emergência de
alguns países a forma de cooperar ganhou novos contornos e novos eixos, agora não é apenas
a cooperação Norte-Sul mas também a Sul- Sul. Da Silva (2007), afirma que alianças ou
parcerias estratégicas são novas formas de trabalho conjunto entre parceiros industriais rivais
ou não, derivadas dos princípios da globalização. O autor afirma que a cooperação é o único
meio para alcançar objetivos comuns no mundo globalizado, mas isto requer barganha e cada
participante tenta maximizar seus interesses.
O Brasil possui acordos de cooperação com países desenvolvidos e em
desenvolvimento, são as chamadas cooperações Norte- Sul e Sul- Sul. No primeiro caso o
país se beneficia com a troca de conhecimentos, pois aqueles países possuem um avançado
conhecimento tecnológico e cientifico. No entanto, esta relação nem sempre é equitativa, visto
que, os conhecimentos técnicos e científicos deles são mais avançados e a participação
brasileira nos projetos científicos termina apenas como membro participante a exemplo do
programa Estação Espacial Internacional no qual o Brasil participa como integrante e os
demais 15 países, desenvolvidos, como parceiros. (Da Silva, 2007). Ou o Programa Piloto
para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil no qual houve a demarcação de terras
indígenas, mas, as empresas estrangeiras de biotecnologia e farmacêutica obtiveram um
excelente material para desenvolver os seus produtos sem nenhuma participação brasileira. Já
no campo dos acordos comerciais as trocas são desiguais e não se mostram muito benéfica,
pois, conforme, Marini, Osório e Carcanholo, (2012), estas costumam se sustentar sobre a
precarização do trabalho, transferência de valores e dependência financeira, tecnológica e
comercial. Na relação Sul-Sul o problema reside na igualdade de problemas estruturais,
mesma posição internacional de exportadores de produtos primários e insuficiente
conhecimento tecnológico, bem como a vulnerabilidade das exportações brasileiras às
variações de renda e ciclo econômico desses parceiros principalmente porque coincidem com
as variações e ciclos do Brasiliii. A inserção da China na região como exportadora de
produtos de baixa, média e alta tecnologia também se mostra um risco para a atuação
comercial brasileira nestes países.

1.4 DESENVOLVIMENTO E TECNOLOGIA

Adam Smith foi o primeiro a reconhecer a relação entre tecnologia e crescimento


econômico. (Tigre, 2006). E Davi Ricardo em 1817 o primeiro a fazer uma abordagem
econômica ao relacionar a substituição do trabalho por capital na indústria e a perda do
emprego e redução do salário, mas assim como Smith para ele os ganhos de produtividade
compensariam as perdas com benefícios para a sociedade. Marx também se voltou para a
questão do trabalho e os impactos sociais mas, foi além ao falar sobre ao ganho de lucro
acima da média através da inovação durante o período de monopólio temporário. A leitura dos
teóricos clássicos da economia mostra o quanto é longa a discussão acerca dos benefícios e
mazelas advindas do progresso tecnológico.
De acordo com Tigre (2006), grandes mudanças tecnológicas implicam em
transformações econômicas, sociais e institucionais ou seja a difusão da tecnologia depende
de regimes jurídicos, motivação econômica e condições politico- institucionais para se
desenvolver. Esse é um processo continuo que apesar de hoje não ser mais um tema novo
continua como um ponto importante e fundamental de debate pois, são relevantes os seus
efeitos econômicos e sociais.
Atualmente o investimento massivo na indústria petroquímica ocasionou um
desinvestimento em outros setores apesar do potencial tecnológico que se apresenta. O
biocombustível apresenta-se como forte concorrente do petróleo e as grandes economias já
investem no seu desenvolvimento, há também a biotecnologia e a produção de fármacos além
das tradicionais indústrias que ao invés de produzirem produtos com valor agregado exportam
matéria prima, a exemplo do couro. O nióbio um produto utilizado em superligas para a
construção de motores a jato, gasodutos, soldas, estruturas e até mesmo joias é encontrado em
maior quantidade no Brasiliv.
Se por um lado o progresso tecnológico pode suprimir uma dependência técnica por
outro, Neto (2011) diz que pode haver consequências destrutivas para os países tecnicamente
atrasados, ou seja, o empobrecimento dos setores retardatários tecnicamente. Entretanto, não
precisa ser regra que o fortalecimento de um setor implique na destruição de outro. Politicas
de curto prazo podem coexistir com investimentos de longo prazo para uma mudança politica,
econômica e social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste momento faremos uma retomada da discussão para finalizarmos o trabalho,


que iniciou com um breve histórico acerca do desenvolvimento da América Latina e mais
especificamente o Brasil, a teoria do desenvolvimento, as relações de cooperação e a
importância da tecnologia.
Ao fazermos uma leitura destes tópicos percebemos a inexistência de uma conexão
entre o todo e suas partes, ou seja, uma desconexão entre os projetos políticos de
desenvolvimento e um projeto que prime pelo desenvolvimento autônomo do país. Desde o
projeto de modernização getulista (1930-1954), avançado por Juscelino Kubitscheck ( 1956-
1960) e consolidado pelos militares (1965-1979) até o apelidado novo desenvolvimentismo,
período encabeçado em grande parte por Luiz Inácio Da Silva ( 2003- 2011), houve
momentos de crescimento econômico, sem, contudo, terem como alicerce um projeto de
nação de desenvolvimento autônomo de longo prazo. Todos estes picos de crescimentos
foram reflexos de uma conjuntura externa que internamente serviram a interesses de classes.
Frente a um cenário de fortalecimento do comércio internacional brasileiro de
produtos primários, recente onda desenvolvimentista experimentada pelo Brasil, a questão
que norteou este trabalho foi a possibilidade de que a ampliação do comércio internacional
brasileiro, baseado nas vantagens competitivas da cadeia produtiva nacional, pudesse
estimular o desenvolvimento científico e tecnológico e contribuir para a concepção e
implantação de um projeto nacional de desenvolvimento autônomo inclusivo.
Questionamento que se mostrou pertinente devido ao grande potencial natural que pode ser
convertido em riqueza econômica desde que, haja um projeto de nação que prime pelo
desenvolvimento inclusivo. Para tanto a administração do desenvolvimento mostra-se como
um importante meio para alavancar a discussão e trazer a superfície temas que ficam
esquecidos em momentos de pujança.
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Vozes.1981.
Notas de Rodapé:
i
Expressão utilizada por Osório para designar o momento atual das exportações brasileiras
ii
Brasil 2014
iii
Cepal, 2009
iv
Estadão, 2014
Administração Política Brasileira: uma proposta transdisciplinar junto à
História e a Literatura.
Fabiane Louise Bitencourt Pinto1
2
Elizabeth Matos Ribeiro

RESUMO
Primando por inovar e ampliar o pensamento administrativo brasileiro, integrando a
perspectiva administrativa à formação social e econômica do Brasil, optamos por tomar como
base referencial teórica e metodológica central, a Administração Política, pois acreditamos
que este exercício nos possibilitaria integrar conjugações interpretativas interessantes e ricas,
a exemplo do que já vem sendo feito por diversos estudos que optaram por uma abordagem
inter ou transdisciplinar para reinterpretar os padrões que fundamentaram as relações sociais e
produtivas brasileiras, através da articulação da perspectiva Histórica, Literária e
Administrativa. Lançamo-nos, portanto num exercício interpretativo das obras selecionadas
de Jorge Amado, com o intuito de identificar diferentes maneiras de se compreender o
pensamento administrativo integrado, de forma articulada às obras de grandes literatos
brasileiros como fonte incontestável e inesgotável de conhecimento sociológico, econômico,
social, cultural, político e administrativo. A coerência interna dos textos literários fica
evidenciada a partir dos entrecruzamentos com os relatos historiográficos, de análise
econômica, de cunho sociológico, e demais que se façam necessários à construção de um
quadro de referencia que possa ampliar o pensamento administrativo sobre a região sul
baiana, o que compreende exatamente o nosso exercício neste ensaio.

1. Introdução
Nossas interpretações ora apresentadas são produtos das reflexões advindas da participação no
Grupo de Pesquisa em Administração Política do Núcleo de Pós-Graduação em
Administração da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. Primando por
inovar e ampliar o pensamento administrativo brasileiro, integrando a perspectiva
administrativa à formação social e econômica do Brasil, optamos por tomar como base
referencial teórica e metodológica central, a Administração Política, pois acreditamos que
este exercício nos possibilitaria integrar conjugações interpretativas interessantes e ricas, a
exemplo do que já vem sendo feito por diversos estudos que optaram por uma abordagem
inter ou transdisciplinar para reinterpretar os padrões que fundamentaram as relações sociais e
produtivas brasileiras, através da articulação da perspectiva Histórica, Literária e
Administrativa.
Buscando seguir essa trajetória crítica e já desbravada por outros autores, a exemplo de Paulo
Emilio Martinsi, que têm demonstrado a necessidade de maior aproximação das ciências
administrativas na reinterpretação das dinâmicas sócio-históricas, é que o artigo se
fundamenta. Bem como, seguimos com a mesma suposição que Vizeu (2010): que a
Administração e as organizações no Brasil somente serão satisfatoriamente compreendidas no

1
Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
2
Doutora em Ciências Políticas e da Administração pela Universidade de Santiago de Compostela. Professora
Adjunta na Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
1
momento em que se buscar um entendimento destas a partir de suas referências histórico-
culturais específicas.
Lançamo-nos, portanto num exercício interpretativo das obras selecionadas de Jorge Amado,
com o intuito de identificar diferentes maneiras de se compreender o pensamento
administrativo integrado, de forma articulada às obras de grandes literatos brasileiros como
fonte incontestável e inesgotável de conhecimento sociológico, econômico, social, cultural,
político e administrativo. Afinal, de acordo com Ricoeur apud Japiassu (2006), p. 231, “o que
é epistemologicamente discordante, pode ser existencialmente convergente”.

2. Elementos para um quadro de referencia


Em Pieranti (2005), que trata da metodologia historiográfica e sua aplicabilidade no campo da
Administração no Brasil contemporâneo, percebemos que
Mais que instrumento para a investigação, a História é disciplina e
entendimento dos quais derivam formas específicas de observação dos fatos.
Entender a História como linha mestra e explicativa dos acontecimentos não
significa sobrepô-la à Administração e seus tradicionais mecanismos de
coleta de dados e análise dos mesmos; significa, sim, compreender a
interpretação com base histórica como um dos caminhos possíveis à
investigação em Administração, notadamente no que se refere a problemas
de pesquisa no âmbito público. Significa, enfim, acreditar que políticas
públicas e relações de poder, por exemplo, têm fortes bases históricas e que,
portanto, podem ser explicadas por métodos de pesquisa ligados a essa
disciplina (PIERANTI, 2005, p. 08).
Conforme aponta Fischer (et. al, 2007), a literatura deve ser usada por pesquisadores de
administração como recurso de investigação. O fato de a Administração estar classificada
entre as ciências socialmente aplicáveis, somente nos lembra que ela deve ser referenciada à
prática; e é sobre essa prática que se constrói a teoria. Assim, as práticas de gestão e
conhecimento explícito sobre organizações, por exemplo, são estruturadas mediante a
compreensão da sua própria construção social.
Nesta mesma seara, ressaltando a importância da discussão crítica acerca da memória e seu
lugar nos estudos organizacionais, mais especificamente na história empresarial, Costa e
Saraiva (2011), afirmam que a temática memória embora seja amplamente difundida em
particular pela área de História, no campo dos estudos organizacionais apresenta-se como
temática imensamente desafiadora.
Ainda, como ressaltado por Matitz e Vizeu (2012) com a ampliação da comunidade
acadêmica brasileira da área de estudos organizacionais (EOR) quanto às questões
epistemológicas, há de se observar a forma heterogênea que se dá a articulação da área, com
diferentes disciplinas e perspectivas na compreensão plural da realidade organizacional. Para
tal campo, mesmo sendo considerado como salutares os benefícios da multi e
interdisciplinaridade, faz-se necessário o uso adequado, de teorias ou conceitos emprestados
de outras áreas. Neste sentido, acrescentamos que,

de acordo com esse entendimento, a investigação histórica do fenômeno


organizacional e da atividade gerencial deve “conectar-se com questões
atuais no sentido de que podem levar a uma perspectiva diferente [das que
vigoram] sobre tais questões” (JACQUES, 2006, p. 43, tradução nossa), ou
seja, devem ser capazes de questionar o entendimento vigente da realidade
2
organizacional contemporânea pela reconstrução dessa realidade feita com o
minucioso escrutínio de sua trajetória histórica (VIZEU, 2010).
Coadunando com Pieranti (2008), prosseguimos com a expectativa de que a História explica
acontecimentos e estruturas construídas por uma sociedade, e que portanto, a singularidade
dos fatos históricos se organizam de maneira tão especifica que não são passiveis de
generalizações; que a nossa interpretação via literatura amadiana é apenas uma interpretação
possível daquele espaço e tempo sul baiano, e que para tanto, nos lançaríamos ao exercício de
interligação entre diversas áreas do conhecimento. A escolha do viés da literatura nos
distingue inclusive, da farta produção brasileira contemporânea no campo da Administração,
que tem feito uso da historiografia, para recontar a trajetória de personagens e estruturas
(PIERANTI, 2008).
A busca pela transdiciplinariedade em nosso texto portanto, diz respeito à crença de uma
epistemologia com novas bases, não de ruptura, mas de restauração da função critica e
reflexiva no seio do próprio saber administrativo. Entre o dilema do conhecimento
especializado e do generalista, Japiassu (2006), afirma que se faz necessário a reglobalização
dos saberes fragmentados, “para se construir uma representação mais totalizante e adequada
de uma situação e que se torna mais receptiva às questões de ética, direito e política, e às
questões sociais postas pelas ciências humanas, instaurando um diálogo franco e fecundo
entre os pesquisadores das diferentes disciplinas” (Japiassu, p. 10, 2006).

3. Algumas notas sobre o percurso metodológico: a identificação do literato e os


critérios verdade das obras selecionadas
Consideramos que o literato Jorge Amado, foi capaz de retratar no conjunto inicial de suas
obras uma crítica contextualizada do cotidiano que marcou a vida socioeconômica, política e
cultural da região cacaueira da Bahia. Desse modo, fazer uma releitura das obras do autor, a
partir do olhar da Administração Política, implica, pois, ratificar uma percepção que
certamente já estava implícita nas leituras feitas por Amado referente às bases do que
denominamos de relações sociais de produção e distribuição que fundamentavam a sociedade
baiana da época. Esse retrato mostra não apenas como se davam as relações socioeconômicas,
mas também evidencia as lutas sociais reveladas nas relações administrativas estruturadas
para dar conta do novo padrão de administração política brasileira e baiana no período
ambientado; o que implica afirmar que Jorge, na sua sensibilidade crítica, conseguiu retratar o
papel implícito e explicito assumido pelo padrão de Administração Política que orientava as
relações complexas entre Estado e sociedade na região sul da Bahia.
Em Lukács (2010) encontramos que em se tratando de literatura revolucionária, Marx e
Engels exigiam dos autores que a esta categoria se lançavam, um realismo sem preconceitos e
uma autocrítica realista. Pois, “a literatura se manteve como um elemento essencial de sua
batalha ideológica contra as influencias burguesas sobre o proletariado, contra o oportunismo
e o sectarismo, e em favor do incremento da consciência revolucionária da classe operária”
(Lukács, p. 33, 2010).
Desse modo, o mergulho na literatura amadiana com seus relatos sobre os processos de
formação da sociedade sul baiana, ressaltando o caráter institucional e a natureza histórico-
cultural da obra, bem como o engajamento político ideológico do autor à época, busca
contribuir para uma melhor compreensão dos valores, que fundamenta os modos de produção
e distribuição, divisão nacional e internacional do trabalho e das riquezas, e das bases da
organização e relações sociais da região cacaueira no período de ambiência dos textos. O
realismo literário amadiano nesta perspectiva, evidenciado através dos detalhes da reprodução
3
dos personagens típicos em situações cotidianas, está “fundada histórica e dialeticamente,
constitui ao mesmo tempo uma adequada formulação de que a arte reflete a realidade objetiva
e, portanto, que ela pretende possuir valor de verdade objetiva” (Lukács, p. 44, 2010).
O nosso esforço de investigação se constrói, pois, na aproximação entre os campos da
Administração com a História e a Literatura, mais especificamente da Literatura, que tem
como objeto de estudo a história. Ora, tratamos a literatura amadiana não como uma fonte a
mais de documento que possa ilustrar uma interpretação baseada em fontes reconhecidamente
científicas e, por isso, mais confiáveis; ao contrário, assumimos, com a escolha desse objeto,
o desafio de nos lançar à leitura das experiências passadas na região cacaueira, tomando como
fonte privilegiada o discurso literário de Jorge Amado e as maneiras como o autor retrata os
modos/padrões de gestão das relações sociais de produção e distribuição num dado espaço e
tempo. Ainda de acordo com Lukács (2010), tal realismo literário somente é possível se
fundamentar, quando são refletidas nesta literatura, as forças motrizes do desenvolvimento
social humano historicamente construídos.
Daí que, História e a Literatura nos trazem leituras possíveis acerca do real, ambas remontam
a questões como a verdade do simbólico e da gerência do tempo. Todavia, a História constitui
um conhecimento científico e, para tanto, depende de arquivos, métodos de pesquisa e demais
critérios de cientificidade, já a literatura e o cinema não possuem esse rigor, enveredando por
caminhos mais abrangentes, poéticos. Justamente pela Nova História ter renunciado ao
domínio da verdade, enquanto representação, a História atualmente não se mede por critérios
de veracidade, o que configuraria um retrocesso; mas, sim, pela verossimilhança, que é o
ponto de convergência entre hipóteses possíveis de um passado efetuado, vivido; o que
origina a credibilidade do autor, desde que consiga explicar, de maneira plausível e com
respaldo de fontes confiáveis, o acontecimento em questão (Cardoso e Vainfas, 2011). Nesse
aspecto, as fontes são apenas indiciárias e não revelam a verdade propriamente dita como em
outrora. Portanto, admite-se a presença da ficcionalidade no domínio do discurso histórico, o
qual sofre o crivo da testagem, a comprovação (Bloch, 2001).
Desse modo, a Literatura tem sido cada vez mais frequentada pelos historiadores e mais
recentemente por administradores e economistasii, na tentativa de alargar e aprofundar as
formas como entramos em contacto com o passado e os novos olhares permitidos a partir
dessa nova perspectiva (re)interpretativa. Fundamentando a interação da história com a
literatura, Pesavento (2000)iii nos apresenta que é possível resgatar a maneira como os homens
representavam a si próprios e à realidade através do texto literário, o qual poderá dar indícios
dos sentimentos, das emoções, das maneiras de falar, dos códigos de conduta partilhados, da
gestualidade e das ações sociais de um outro tempo.
A obra amadiana, em sua micronarrativa, que prioriza a narração de uma história sobre as
pessoas comuns situadas no local em que estão instaladas, revela os padrões que
fundamentam as bases das novas relações sociais de produção e distribuição que emergem no
pós-30, demonstrando, assim, a permanência e o agravamento dos dramas sociais originários
da velha estrutura socioeconômica e política ainda dominante. Em síntese, a micronarrativa
apresentada por Amado, com a riqueza de detalhes e multiplicidades de atores sociais, oferece
farto e relevante subsídio para pesquisas e interpretações, como é o caso do olhar da
administração política, base teórico-metodológica que fundamentou esta análise.

4. O diálogo fértil da Administração com a História e a Literatura


O nosso esforço de investigação se constrói, pois, na aproximação entre os campos da
Administração com a História e a Literatura, mais especificamente da Literatura, que tem
4
como objeto de estudo a história. Nesse sentido, conforme ressaltado por Da Costa (2010, p.
289),
A aproximação entre administração e história não é recente, mas ainda não
avançou substancialmente de forma a viabilizar todo o seu potencial
ontológico, epistemológico e metodológico (BOOTH e ROWLINSON,
2006). (...) Identificar as visões provenientes do acirrado debate entre as
perspectivas da história tradicional e da história nova no campo da
Administração pode contribuir para: a) melhor compreensão dos fenômenos
administrativos; b) formação de pesquisadores mais conscientes de seus
caminhos de pesquisa e c) fortalecimento da interdisciplinaridade por meio
da criação de vínculos mais profundos entre as áreas.
Tomando como base as colocações acima, Jorge Amado, com suas interpretações da realidade
brasileira e baiana, em particular, denunciou as disparidades socioeconômicas, através da
abordagem de temas populares, de inspiração regional, combinando política, ideologia,
comportamento carnavalizados e forte religiosidade, e evidenciou, na maior parte dos textos,
o imobilismo das classes subalternas. Amado toma posição e constrói uma tese sobre a
formação sócio-organizacional das terras sul baianas, trata-se da “tendência social de
desenvolvimento, implícita no assunto tratado pela obra, em íntima conexão com a práxis
social, com a posição combativa do autor em face dessas grandes lutas histórico-sociais”
(Lukács, p. 47, 2010).
Há uma aproximação natural entre o fazer dos literatos engajados em obras literárias de cunho
social, político e cultural e aqueles que adotam a história como ofício ou matéria de estudo.
Nesse ponto, poderíamos indagar, então, qual seria a contribuição da Literatura à História e às
demais ciências sociais, além das ciências sociais aplicadas como Administração?
Nesse sentido, nos ensina Boaventura de Sousa Santos (2010), que a “crise do paradigma
dominante têm vindo a propiciar uma profunda reflexão epistemológica sobre o conhecimento
científico, uma reflexão de tal modo rica e diversificada que, melhor que qualquer outra
circunstancia, caracteriza exemplarmente a situação intelectual do tempo presente” (Sousa
Santos, p. 50, 2010), e que portanto, questões antes deixadas à cargo dos sociólogos, a
exemplo das condições sociais; dos contextos culturais; dos modelos organizacionais de
investigação científica; passaram a ocupar papel de destaque na problematização da prática
cientifica de todos os cientistas sociais.
Neste ensaio, portanto, tratamos a literatura amadiana não como uma fonte a mais de
documento que possa ilustrar uma interpretação baseada em fontes reconhecidamente
científicas e, por isso, mais confiáveis; ao contrário, assumimos, com a escolha desse objeto,
o desafio de nos lançar à leitura das experiências passadas na região cacaueira, tomando como
fonte privilegiada o discurso literário de Jorge Amado e as maneiras como o autor retrata os
modos/padrões de gestão das relações sociais de produção e distribuição num dado espaço e
tempo. Pois em nossa compreensão, os textos literários representam o real de um tempo
pretérito, como seus modos de ver e de sentir, os quais escapam, muitas vezes, a outros tipos
de fonte e de interpretação (GRUNER; DeNIPOTI, 2008).
Seguindo essa trajetória, nossa pesquisa tomou como referência central de análise a indicação
de Araújo (2003), quando nos ensina que a produção Amadiana se divide em pelo menos
quatro ângulos e espaços geográficos. Desse modo, nosso estudo vincula-se aos romances que
se encontram na primeira matriz citada por Araújo (2003): das obras que se ambientam na
região sul baiana, vinculadas sobremaneira ao ciclo do cacau.

5
5. Administração Política, vetor da compreensão crítica ampliada dos fenômenos
Consideramos que a Administração Política apresenta pressupostos teóricos e metodológicos
que contribuirão para uma compreensão crítica e contextualizada acerca dos fenômenos
socioeconômicos, institucionais e organizacionais. Com essa nova perspectiva interpretativa e
significativa, é possível ampliar, pois, as perspectivas analíticas da Administração, deixando
de se concentrar apenas em elementos instrumentais, técnicos e racionais, característicos do
que se denomina de Administração Científica (ou Administração Geral). A relevância da
perspectiva da Administração Política está, portanto, na possibilidade de interação do Estado
com a sociedade, do ente político com o econômico e social, dentre outros, para uma
reinterpretação das bases que fundamentaram o Projeto de nação, projeto de sociedade, baiana
e regional.
Os pressupostos metodológicos que orientaram o desenvolvimento do estudo assumem como
base fundamental a pesquisa qualitativa, feita a partir da leitura histórica e crítica, contida nas
obras selecionadas de Jorge Amado. O método de análise proposto buscou, pois, identificar e
compreender os aspectos essenciais que conformaram os padrões de Administração Política
da sociedade sul baiana, o que significou reconhecer, nas obras selecionadas, os fundamentos
que orientavam as típicas relações de um modelo de capitalismo retardatário e dependente.
Como aponta Gomes (2012, p. 13-14),
[...] o método de análise [proposto] já demonstra, claramente, uma forma
diferente de olhar o processo de desenvolvimento econômico brasileiro [e
baiano em particular], em que os limites entre a economia política crítica e a
administração política ainda não estão definidos. Ressalta o autor que,
embora esse seja um problema aceitável é importante [...] procurar
compreender como a produção capitalista no Brasil [e no sul da Bahia] se
organiza e passa por modificações, reformas ou mudanças [de modo que seja
possível compreender] o processo histórico de construção e reconstrução das
relações entre o Estado e a economia capitalista periférica e a gestão dessas
relações no contexto dos conflitos de classe (inter e intraclasse) [que
denominamos Administração Política].
Considerando essa perspectiva teórico-metodológica crítica da Administração Política,
consideramos que os romances de Jorge Amado assumem lugares fundadores dessa
reinterpretação, na medida em que assumem um papel privilegiado de memória viva da
dinâmica socioeconômica, cultural e política contemporânea. Conforme nos ensina Nora
(1988), os lugares das memórias que Amado nos legou são os locais privilegiados onde estão
os registros das concepções de um projeto de nação, do papel da família, do papel dos
trabalhadores e homens comuns, do papel das instituições, entre outras.
Reforçamos a escolha do autor como objeto de análise do presente estudo, sobretudo, pela
importância das contribuições das obras amadianas para uma (re)intepretação do pensamento
administrativo brasileiro, com especial ênfase para o campo da Administração Política,
considerando, pois, um campo próprio para recontar a dinâmica histórica da formação social,
política, econômica e cultural brasileira sob o olhar crítico e contextualizado da
administração; isto é, buscando ressignificar os mecanismos administrativos que fundaram as
bases de um modus operandi (o como fazer?) que permitiram e ainda permitem a preservação
de modelos tradicionais e excludentes de desenvolvimento econômico e social. Para dar
conta de uma interpretação tão ampla e complexa, considera-se que as obras selecionadas de
Jorge Amado resguardam, pelas formas e objetos, a universalidade do processo de
socialização que marcou a região sul da Bahia.

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As obras do autor baiano Jorge Amado ocupam lugar de destaque na produção de novos
temas, formas de expressão e apreensão do mundo, sentimentos e lugares, que traduzem a
“paisagem humana e social do Nordeste, particularmente da Bahia, seu Recôncavo, sul e
sertão”, conforme destaca Araújo (2003, p. 09). Em âmbito internacional, a literatura
amadiana notabilizou-se pela projeção da cultura brasileira e baiana, induzindo o leitor à
percepção de valores, condutas e relações dos universos relatados em sua vasta obra,
traduzida em mais de cinquenta países; parte delas foi inclusive adaptada para o rádio, o
cinema, a televisão e o teatro. As matrizes temáticas na literatura de Amado se dividem em
dois ciclos: campo e cidade, tendo início, em 1931, com o lançamento do primeiro livro, O
país do carnaval.

6. (Re)leitura de obras amadianas numa perspectiva Histórica, Literária e


Administrativa
Como já ressaltado anteriormente, a relação indiscutível entre História e Literatura, reservadas
a natureza, objetivos e códigos próprios, aproxima-se nas próprias diferenças, revelando que
História e Literatura se complementam. (Re)interpretar os padrões que fundamentaram as
relações sociais de produção e distribuição da região sul baiana, integra, desse modo, uma
nova dimensão interpretativa que toma como base central o pensamento administrativo, que
permitiu colocar em prática um Projeto de Nação, concebido e idealizado pelos diversos
grupos de interesses amplamente denunciados por Amado nas obras selecionadas.
A dimensão da Administração Política é facilmente reconhecida na própria composição da
comunidade grapiúnaiv que se construiu sobre o desenvolvimento da cultura do cacau. Nesse
sentido, observa-se que o presente estudo segue na trilha do chamado romance social, político
e cultural de Jorge Amado, expresso nas obras do autor relacionadas ao ciclo do cacau: Cacau
(1933), Terras do sem fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944), Gabriela, cravo e canela
(1958), Tocaia Grande: a face obscura (1984) e A descoberta da América pelos turcos
(1992), e como complemento, o livro de memórias O menino grapiúna (1982). Constatamos,
pois, a oportunidade de verificar a afeição universal e as relações socioeconômicas, políticas e
administrativas que Amado imprimiu em seus personagens e histórias relatadas. Como crítico
social, o autor revelou, através da engrenagem ficcional, as manifestações da cultura regional
e práticas socioeconômicas e administrativas efetivas de um dado tempo-espaço.
6.1 O Menino Grapiúna, escritas e motivações
Antes de nos inclinarmos às análises centrais de cada um dos títulos selecionados, faz-se
necessário introduzir alguns comentários mais gerais sobre a trajetória do autor, a fim de
compreendermos a dinâmica da sua escrita e motivações.
Jorge Amado nasceu em 1912, numa roça de cacau, no povoado de Ferradas, hoje município
de Itabuna. Naquele momento, o cacau já figurava como a lavoura de maior importância no
Estado da Bahia. Para o autor, foram as coisas que viu e viveu na infância naquela região que
configuraram a base de tudo que, posteriormente, criou e recriou. Declara que o que lhe
formou foi exatamente o que se encontra ligado ao tempo de vida na região cacaueira
(RAILLARD apud SOUSA, 2001). Aliás, dentre os homens que, por tradição, desbravaram e
conquistaram aquele espaço sul baiano, se encontra a própria família de Jorge Amado. Em seu
livro de memórias, O Menino Grapiúna, escrito em 1982, utilizado neste estudo como
subsídio para compreensão da crítica sociopolítica amadiana, encontramos o seguinte relato:
[...] desbravador de terras, meu pai erguera sua casa mais além de Ferradas,
povoado do jovem município de Itabuna, plantara cacau, a riqueza do
mundo: Na época das grandes lutas [...] segue contando que, ainda jovem,
7
seu pai, João Amado de Faria, “abandonara a cidade sergipana de Estância,
civilizada e decadente, para a aventura do desbravamento no sul da Bahia,
para implantar, com tantos outros participantes da saga desmedida, a
civilização do cacau, forjar a nação grapiúna [...] (AMADO, 2006, p. 05 e
07).
Portanto, o menino grapiúna fez parte do quadro social das terras sul baianas, permitindo,
pois, que, a partir dessa experiência pessoal, Amado fizesse significações do coletivo, das
relações pessoais, das tradições e costumes, da vida dos homens comuns, dos pescadores,
trabalhadores rurais, mulheres da vida e toda a trama social que caracterizava aquele espaço.
Com base nesses relatos, percebe-se que esse contato direto e cotidiano de Amado com a
realidade que o cercava foi decisivo para sua formação literária, em especial quando afirma
que,
[...] no meio do povo, homens e mulheres que possuíam cor e odor da terra,
o menino ia aprendendo sem se dar conta [...] em companhia de
trabalhadores e jagunços: ampliavam seu universo e impediam que medrasse
em seu espírito qualquer espécie de preconceito (AMADO, 2006, p. 53).
6.2 Cacau (1933)
O Romance narra a relação entre o coronel, o empresário, ou seja, os donos dos bens de
produção e o trabalhador rural, Amado mergulha no universo da luta de classes denunciando a
exploração e apropriação do trabalho, os conflitos advindos dessas relações sociais de
produção e distribuição, dando destaque, ainda, à greve e aos incipientes movimentos sociais,
além de explorar ideais socialistas.
Em Cacau, Jorge Amado agudiza o inconformismo e a indignação, mediante a exploração e a
miséria relativas às terras do cacau. Adere à proposta literária e aproximando-se da forma e
conteúdo dessa corrente ao falar diretamente da categoria social povo. Todavia, os críticos
apontam para a simplificação da realidade traduzida neste livro destacando a presença de
antinomias ou maniqueísmos, fato que pode ser justificado pela recente filiação de Amado ao
Partido Comunista, ou ainda, por estar iniciando suas primeiras escritas. Conforme destaca
Araújo (Op. cit., p. 35), “afinal a partidarização cumpriu um ciclo na obra de Jorge Amado e
ele foi sincero, explícito, objetivo e sem reservas, evidenciando com nitidez a face de sua
identidade ideológica”.
Cacau reflete, portanto, o final do século XIX; presenciou grandes mudanças no equilíbrio
demográfico e geoeconômico do país, indicando novos rumos para o desenvolvimento nas
regiões cafeicultoras do Centro-Sul (Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo), enquanto
seguia em decadência o Nordeste açucareiro. Para Prado Jr (1981), o empobrecimento do
Nordeste, povoado densamente, desde a implantação da colônia, resultou numa forte e
constante enxurrada demográfica em direção a regiões com melhores perspectivas de vida e
subsistência:
este movimento de populações tornar-se-á particularmente ativo depois da
grande seca de 1877-80, que despovoará o interior nordestino do Ceará até a
Bahia. As regiões beneficiadas por esta emigração serão o vale amazônico
(graças à extração da borracha); o sul da Bahia (produção de cacau em
progresso); finalmente e, sobretudo São Paulo, o grande polo de atração
(PRADO JR, 1981, p. 151).
O narrador de Cacau enfoca, inclusive, a extorsão que sofrem dos armazéns das fazendas,
onde os preços são exorbitantes e onde são obrigados a comprar gêneros alimentícios,
ferramentas para a lide, além de roupas e remédios. Com esse relato, Amado se aproxima do

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que aqui denominamos padrão administrativo que fundamentava, pois, os processos e as
relações de trabalho que garantiam a dinâmica do modelo socioeconômico predominante: a
produção latifundiária e extrativista do cacau.
6.3 Terras do Sem Fim (1943)
As obras Terras do Sem Fim (1943) e São Jorge dos Ilhéus (1944) narram o desbravamento
das matas sul baianas para o plantio do cacau. Ao ler o segundo romance, percebe-se
claramente a intenção de Amado de dar continuidade e ampliar as abordagens trazidas em
Terras do Sem Fim. Esta afirmação se fundamenta, pois, na preservação e, ou evocação de
alguns personagens e memórias na segunda obra.
A figura dos coronéis em Terras do Sem Fim são de homens poderosos, proprietários de
extensas roças de cacau, justamente quando a lavoura cacaueira já era reconhecida como
importante riqueza econômica regional e nacional. Tal lavoura atraía muitos interessados, a
exemplo dos trabalhadores vindos de regiões secas do Nordeste, de pequenos comerciantes,
aventureiros, gente de toda ordem tentando enriquecer frente às oportunidades daquela
próspera região.
A narrativa não se atém ao momento em que as primeiras mudas de cacau chegaram à região,
ao contrário, já aponta um período em que os grandes coronéis ali estabelecidos lutavam por
maiores faixas de terra e ampliação da riqueza e poderes. Evidencia, nessas duas obras, de
forma mais ampla e contundente, a exploração do homem pelo próprio homem, fazendo
emergir as vozes e as reflexões daqueles que se encontravam submetidos às práticas
dominantes do coronelato que se formou nas terras do sul da Bahia.
Os coronéis, na perspectiva amadiana, seguiam insaciáveis, conquistando terras e dominando
gente. Podemos balizar, conforme nos ensina Guerreiro de Freitas e Paraíso (2001), entre
1890 e 1920, o período de implantação da monocultura de cacau no sul da Bahia. “Aqueles
tempos foram atravessados por fenômenos de todos os tipos – demográficos, sociais, políticos
e culturais” (p. 99).
Esse retrato parcial da sociedade grapiúna apresenta um forte teor de crítica social e política
com problemáticas ligadas ao patriarcalismo latifundiário, à exploração do trabalhador, ao
imobilismo social que se estabelecera naquelas Terras do Sem Fim (Sousa, 2001).
As metanarrativas fazem emergir os sujeitos que habitavam aquele espaço – coronéis,
jagunços, capatazes, comerciantes, prostitutas, trabalhadores alugados -, além de revelar os
arranjos sociopolíticos, base para a consolidação de um padrão de Administração Política
tradicional e conservador, pautado em bases que garantissem que as classes menos
favorecidas estariam sempre a serviço dos “donos da terra”. Ao evidenciar as relações sociais
de produção do sul baiano, Amado utilizava diversas expressões pejorativas que
manifestavam o uso e abuso do poder dos coronéis como o caxixev, as manobras jurídicas, a
tocaiavi, enfim, todos os tipos de subterfúgios que permitiam a posse das terras alheias.
6.4 São Jorge dos Ilhéus (1944)
Como já ressaltado, a rigor, São Jorge dos Ilhéus é uma continuação do livro Terras do Sem
Fim, com a trama e grande parte dos personagens remanescentes do livro escrito em 1943.
Superado o momento da luta pela posse das terras, com o conflito direto entre os coronéis,
São Jorge dos Ilhéus retrata a luta posterior pela posse definitiva das terras do cacau. Quiçá
uma posse coletiva daquelas terras. Encontramos em Araújo (2003) que ambos os livros
formam um só núcleo ao afirmar que “[...] se desdobram dois períodos distintos: a conquista
da terra pelos coronéis feudais no princípio do século e a passagem da terra para as mãos
ávidas dos exportadores nos dias de ontem” (p. 63).
9
A exemplo de Cacau, a história se passa na década de 1920 e 30, pois, apesar de Jorge Amado
não explicitar o período, remete-nos a acontecimentos da política nacional, tais como: a
Coluna Prestes, o governo de Washington Luis e o Integralismo.
A trama dá passagem a personagens que revelam as novas relações sociais de produção, isto
é, o novo padrão de Administração Política que se desenvolveu nas terras do cacau. Entram
em cena em São Jorge dos Ilhéus, os vorazes exportadores de cacau, representantes do capital
internacional, que ambicionam tornarem-se proprietários das fazendas de cacau, controlando
o fluxo de produção e ditando seu preço no mercado internacional. A política local fica a
cargo dos filhos dos agora velhos coronéis de Terras do Sem Fim.
Ilhéus, a “Rainha do Sul”, com força comercial e riqueza crescente, possui o quinto maior
porto exportador do país, responsável, segundo Jorge Amado, por 98% de todo o cacau
produzido no Brasil. Em raras cidades no país, à época, havia um crescimento tão rápido, ruas
abertas, construções de todo tipo, com praças, jardins, iluminação pública, água e esgoto
canalizados. Nesse período, sua populaçãovii era estimada em 150 mil habitantes. A essa
altura, a cidade já dispõe de aeroporto, cinema, transporte público, cafeterias, teatro, sistema
de telefonia, além de um estádio de futebol. Porém, a despeito de toda a modernidade na
“Rainha do sul”, reinava o patriarcalismo nas relações sociais de produção, revelando, pois,
que, apesar dos avanços, foram preservados praticamente os mesmos interesses locais,
alterado apenas pela presença da hegemonia dos interesses do capital internacional.
Amado nos alerta que Karbanks, Zude e os outros exportadores estavam em toda parte,
ligados a uma infinidade de negócios, inclusive por trás da direção do Banco de Auxílio à
Lavoura. Nesse momento, Jorge Amado chama atenção que se aproximava o momento da luta
entre os coronéis desbravadores, plantadores de cacau, e os exportadores.
Nesta obra, em síntese, é ressaltada a transferência da apropriação das terras, como
consequência do colapso da economia cacaueira em virtude da perda das fazendas de
pequenos, médios e grandes fazendeiros, arruinados e vitimados pela ação coordenada dos
exportadores junto às oscilações do preço no mercado. A terra troca de mãos. Neste momento,
emerge, pois, um novo padrão de Administração Política, em que os interesses internacionais
irão subjugar o poder local a um processo de acumulação e apropriação de riqueza forâneo.
Aqui cabe um questionamento a partir das provocações de Jorge Amado referentes à
avaliação das consequências do choque de dois padrões de administração política que tinham
por objetivo apenas preservar os ganhos dos coronéis, de um lado, e os exportadores rentistas,
de outro. E como ficariam os trabalhadores nesse embate? Com a mesma falta de sorte de
antes, ou seja, entregues à própria sorte.
6.5 Gabriela, cravo e canela (1958)
Em Gabriela Cravo e Canela (1958), Amado não manifesta as questões sociais com o mesmo
destaque dos demais títulos. Na trama, o romance entre Nacib e Gabriela torna-se o centro do
enredo, e as questões sócio-político organizacionais já não se manifestam de forma tão
contundente como nas demais obras ligadas ao ciclo do cacau; a política local e nacional, os
desafios econômicos e a divisão internacional do trabalho aparecem apenas como pano de
fundo nesta obra, predominando portanto, os traços da vida cotidiana, da história social,
cultural e das mentalidades (Cardoso e Vainfas, 2011) da sociedade sul baiana.
A história começa em 1925, na cidade de Ilhéus, e centra-se em três personagens forâneos: 1)
Gabriela, sertaneja e retirante, em busca de trabalho e moradia é posta à venda no mercado de
escravos (local onde as pessoas colocavam à disposição dos coronéis e capatazes, sua força de
trabalho); 2) Mundinho Falcão, jovem carioca que emigrou para Ilhéus e lá enriqueceu como
exportador, e que planeja acelerar o desenvolvimento da cidade, melhorar os portos e derrubar
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Bastos, um coronel e inepto governante; 3) Nacib, um sírio que chega a Ilhéus com a crença
do eldorado sul baiano, seu estabelecimento comercial passa a ser palco das principais
discussões e articulações político-partidárias e de estruturação da cidade.
Compreendemos que Gabriela, cravo e canela “foi realizado num momento de
desencantamento total de Jorge Amado com o Partido Comunista, [...] construindo não mais
personagens das lutas políticas [...]”, conforme aponta Souza (2001, p. 27). Esse fato não
descaracteriza a validade da obra, pois o autor insere outros temas significativos em suas
discussões, como questões raciais e diferenças culturais, o sincretismo religioso e questões de
gênero.
6.6 Tocaia Grande: a face obscura (1984)
Em Tocaia Grande: a face obscura (1984), elementos primordiais do discurso de Amado
voltam a emergir: os coronéis, jagunços e prostitutas. O texto revisita temas, cotidiano e
conflitos expressos nas três primeiras obras do ciclo do cacau.
A disputa de terras e mando político por parte dos coronéis; a exploração e as condições
subumanas de vida do trabalhador das roças de cacau; a violência corriqueira entre os
seguidores dos grupos políticos; a omissão do poder público do ponto de vista jurídico e
organizacional; e a supremacia do capital internacional dos exportadores, são algumas das
temáticas que se estabelecem na obra, dentro do universo estruturado pelo autor para a cidade
de Tocaia Grande.
Neste período, predominava as atividades ligadas a agricultura e pecuária,
compreendendo uma população instável, denominada de rurbana por Faoro
(2000b), ou seja, corpo social que vive sobre a influencia do campo, é a
cidade servindo à zona rural (FAORO, 2000b).
Registre-se que a cidade fictícia é uma replica da Ilhéus de fins do século XX, quando da
povoação da região e início do ciclo do cacau. Todavia, o autor ressalta nesta obra, a presença
ativa e crescente de estrangeiros nas situações relatadas, a exemplo de árabes e russos.
6.7 A descoberta da América pelos turcos (1992)
Raduan Murad e Jamil Bichara descobriram a América juntos: vieram no mesmo barco de
imigrantes e desembarcaram na Bahia em 1903. No litoral sul do Estado, eram chamados de
turcos, forma brasileira de designar todos os árabes, tanto sírios, libaneses ou de fato, turcos.
Definido pelo autor como um “romancinho”, A descoberta da América pelos turcos é uma
narrativa breve e específica sobre a contribuição dos descendentes de árabes na civilização do
cacau, durante a época em que coronéis e jagunços disputavam as terras virgens da região de
Ilhéus. Em Gabriela, cravo e canela, e em Tocaia Grande, Amado já evidencia a participação
sociocultural desses imigrantes na região. Os personagens estrangeiros de origem árabe,
figuram com destaque no cenário político, e como vitais para o comércio e para a dinâmica da
economia local.

7. Considerações Finais
Cabe-nos ora reforçar, que partindo da interpretação da Administração Política sobre a
transição que se inaugurou no Brasil e que, de algum modo, contribuiu para promover
mudanças substanciais nas relações do poder local no sul da Bahia, de forma clara Jorge
Amado descreve, resguardados as implicações ideológicas dos seus pontos de vista, as
engrenagens construídas e articuladas pelo grupo de exportadoras em prol do esfacelamento

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da antiga ordem de coisas estabelecidas durante a formação sócio-histórica da região sob a
égide dos coronéis do cacau.
Juntas, as seis obras selecionadas fecham um ciclo socioeconômico e iniciam um outro, sem,
contudo, vislumbrar alternativas que possibilitem alterar minimamente a estrutura social,
cultural, econômica e política da região sul baiana, garantindo à população marginalizada (os
trabalhadores, as prostitutas e toda a massa social) vislumbrar um horizonte que lhes
permitisse de algum modo, melhores condições de vida e sobrevivência. Sem dúvida, ao
retratar e interpretar de forma crítica o processo que possibilitou a transferência da posse das
Terras do Sem Fim, Amado nos permite, observar que, em São Jorge dos Ilhéus, estaria sendo
concebido um Projeto de Nação que permitiria uma reconcentração da riqueza e da renda nas
mãos de uns poucos exportadores, representantes do capital (e interesses) internacional.
O contributo da literatura amadiana para nossa analise perpassa pela compreensão da
organização do sistema produtivo da sociedade sul baiana e de seus agentes econômicos, pelo
entendimento de como se distribuía a riqueza produzida e a proporção com que cada grupo
usufruía das riquezas geradas pelo conjunto da sociedade grapiúna, possibilitando alargar à
nossa percepção portanto, em nuances e matizes que os documentos oficiais não nos
informam ou revelam, a exemplo de, sobre quais bases se organizou a sociedade, a política e
economia da chamada civilização cacaueira.
Está presente na obra amadiana uma preocupação em compreender e problematizar um dado
padrão de Administração Política que se configurou naquele espaço-tempo sul baiano.
Justamente ao descrever como foram estruturadas tanto as condições objetivas de
materialidade daquele grupo social, como as condições subjetivas de vida: suas mentalidades,
crenças, religiosidades, visões de mundo. A transdiplinariedade ensaiada neste texto, portanto,
faz emergir as dimensões da vida política do país e da Bahia, tanto no que se refere aos
detalhes do cotidiano da vida social, quanto no que se refere ao caminho que o poder percorre
na organização da Administração Pública e da Sociedade.
A coerência interna dos textos literários fica evidenciada a partir dos entrecruzamentos com
os relatos historiográficos, de análise econômica, de cunho sociológico, e demais que se
façam necessários à construção de um quadro de referencia que possa ampliar o pensamento
administrativo sobre a região sul baiana, o que compreende exatamente o nosso exercício
neste ensaio.

8. Referências Bibliográficas

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ii
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iii
PESAVANTO, Sandra Jatahy (org.). Apresentação. In: Leituras cruzadas: diálogos da história com a literatura.
Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2000.
iv
O termo grapiúna compreende o gentílico de todos os nativos do sul da Bahia. Junção de vocábulos em tupi,
acredita-se que o seu significado seja “ave negra da beira do rio” (Barbosa, p. 93, 2013).
v
Termo que se refere à apropriação indevida das terras de terceiros, com o desrespeito à posse, e mesmo aqueles
que possuíam terras titularizadas viam suas fazendas subtraídas pela ação dos advogados dos coronéis. As
vítimas sofriam um golpe jurídico, com a produção de nova escritura da propriedade a favor de terceiros, sem
nenhum tipo de pagamento ou ressarcimento, havia expulsão de suas próprias terras quase sempre com violência.
Ver Guerreiro de Freitas e Paraíso (2001).
vi
Emboscada violenta ao inimigo ou opositor. As tocaias eram motivadas por quaisquer situações, desde o
tradicional antagonismo político, até questões conjugais.
vii
Guerreiro de Freitas e Paraíso (2001) nos mostram que a população de Ilhéus cresceu entre 1980 e 1920 com a
taxa média superior à 6% aa. Entre 1920 e 40, a taxa média se mantém em 3% ao ano.

15
Ensino da Administração Política e Consciência de Classe

Elcemir Paço Cunha (UFJF)

Resumo:
O objetivo do ensaio é mostrar que a formação de uma consciência de classe para a superação
de todas as classes é uma finalidade necessária do ensino da administração política quando
este está orientado para o desvelamento dos antagonismos estruturais. Discute-se as principais
posições ideológicas que se apresentam no debate da formação do administrador e as
aquisições do materialismo sobre a relação entre a consciência e sua realidade em que o
problema das classes sociais se coloca. Apresenta-se um debate com a “teoria dos gestores”
tendo por base esse materialismo, procurando estabelecer os administradores como fração da
classe do trabalho e não como classe em si, à parte do capital e do trabalho. O artigo discute o
problema da consciência de classe e o ensino da administração política a partir dessa
problemática, concluindo que uma tal pedagogia pressupõe uma crítica aguda das condições
de possibilidade da subjetividade contraditória aos interesses do ser da classe do trabalhador
coletivo, levando-se em conta a explicitação dos próprios administradores como trabalhadores
assalariados e as diferenças dentro dessa própria fração em razão da estrutura de comando do
capital.

“Onde a educação é crescentemente solicitada,


o espírito da revolução violenta perece”
Oliver Sheldon

“A doutrina materialista sobre a modificação das


circunstâncias e da educação esquece que as
circunstâncias são modificadas pelos homens e
que o próprio educador tem de ser educado.
Ela tem, por isso, de dividir a sociedade
em duas partes – a primeira das quais está colocada
acima da sociedade. A coincidência entre a alteração
das circunstâncias e a atividade ou automodificação
humanas só pode ser apreendida e racionalmente
entendida como prática revolucionária”.
Karl Marx

1. Introdução

No espírito da contraditoriedade entre as passagens acima, o objetivo do ensaio é


mostrar que a formação de uma consciência de classe para a superação de todas as classes é
uma finalidade necessária do ensino da administração política quando este está orientado,
como deveria ser, para o desvelamento dos antagonismos estruturais. Para tanto, tal formação
deve ser balizada na adequada apreensão do movimento da realidade. O problema requer uma
apreensão razoável dos tipos possíveis de consciência social na formação universitária. Nesse
sentido, não é possível escapar de uma discussão sobre o problema das classes sociais no
capitalismo, particularmente os seus vínculos com os chamados gestores e sua formação
universitária.
Uma das grandes dificuldades no estudo dos gestores e das classes sociais está no fato
da difusão da função de direção nos diferentes complexos parciais que compõe a totalidade
social, cujo princípio regulador segue sendo a lógica do capital. Nesse sentido, é preciso
considerar o complexo econômico não como a causação única da totalidade, mas como o
momento preponderante dessa articulação concreta em suas múltiplas determinações (cf. Paço
1
Cunha, 2015). Destaca-se no interior desse complexo a concreção da função de direção como
comando da força de trabalho e não como qualquer atividade de “gestão” que é identificável
na relação com capitais singulares (ou fora dela). Diferenciando, portanto, o comando de uma
“função burocrática” comum a muitos tipos de ramos industriais e de serviços, fica destacada
uma atividade particular componente do trabalhador coletivo diretamente referida na
imediata produção do valor. É desse ângulo objetivo que o problema das classes e da
consciência de classe se impõe para a presente discussão, abstraindo os problemas envolvidos
diretamente no debate sobre o estado.
Os debates que circulam na crítica da administração política tendem, noutra direção, a
uma problematização mais abrangente e que incorpora uma angulação política e profissional
(Santos, 2001). Na primeira se encontra a dimensão mais ampla da gestão, isto é, a
organização geral da produção e distribuição da riqueza, além de outros aspectos. Na segunda,
incluem-se as atividades mais atinentes ao plano produtivo imediato, das unidades produtivas
singulares. As potenciais diferenças ficam obnubiladas sob a categoria “gestão”. Outras
tendências têm sido também chamadas a dar sustentação aos debates da administração
política, como João Bernardo e Maurício Tragtenberg. Nessas tendências se desenvolve a
problemática dos gestores das burocracias estatais e privadas como uma classe social
particular, senão aquela que efetivamente dirige a sociedade; uma teoria dos gestores. Essas
duas tendências amplificadoras são contributivas para alargar a compreensão dos fenômenos,
mas também pagam tributo à homologia entre complexos sociais certamente em reciprocidade
que são, porém, distintos. Há uma tendência, particularmente com João Bernardo como
veremos adiante, em determinar toto coelo os administradores como uma classe distinta do
trabalho em que a última é também tendencialmente reduzida aos trabalhadores, por assim
dizer, “dos níveis mais baixos da hierarquia”, muitas vezes criando as condições para a
confusão comum entre exploração do trabalho na produção do valor e precarização do
trabalho (cf. Moreira, 2008, para uma exemplificação). Tanto a homologia quanto as marcas
do anarquismo e de um socialismo libertário criam uma série de obstáculos a uma análise de
realidade correspondente, a despeito das inúmeras potencialidades dessas tendências. Essa
demarcação dos gestores como classe transcende, e muito, os problemas do anarquismo e da
homologia, alcançando, como veremos, posições liberais. O propósito é recolocar essa
questão com o auxílio do materialismo mais aproximado de Marx.
Para os propósitos estabelecidos, primeiramente veremos as principais posições
ideológicas que se apresentam no debate da formação do administrador, debate hoje feito de
modo muito indireto. Trataremos em seguida das aquisições do materialismo sobre a relação
entre a consciência e sua realidade em que o problema das classes sociais se coloca. Essas
aquisições serão úteis para discutirmos parcialmente a “teoria dos gestores”, procurando
estabelecer os administradores como fração da classe do trabalho e não como classe em si.
Nesse patamar da análise é que colocaremos o problema da consciência de classe e o ensino
da administração para além do capital. Por fim, apresentamos as considerações finais do
artigo.

2. Ideologias, formação do administrador e contradições reais

Perseguimos no presente tópico o estabelecimento de uma relação entre a formação do


administrador e as ideologias que a permeiam explícita ou implicitamente. Tendo total
consciência de que ideologia ultrapassa a dimensão das teorias, tomamos aqui sua expressão
mais simplificada no conjunto de ideias que cumprem determinada função social, no caso,
sobre a formação do administrador.

2
Com o auxílio de Mészáros (1993), podemos determinar “três posições ideológicas
fundamentalmente distintas” que possuem, como argumentamos, implicações à maneira como
se aborda o problema da formação do administrador. Com efeito:

A primeira [...] apoia a ordem estabelecida com uma atitude acrítica, adotando e
louvando a contiguidade do sistema dominante – não importando se problemático ou
contraditório – como horizonte absoluto da própria vida social. A segunda,
exemplificada por pensadores radicais como Rousseau, revela, com êxito
significativo, as irracionalidades da forma específica de sociedade de classe, sem
dúvida anacrônica, rejeitada a partir de uma nova posição de observação, mas sua
crítica é viciada pelas contradições de sua própria posição social – igualmente
determinada pelas das classes sociais, mesmo se historicamente mais evoluídas. E a
terceira, em contraste com as duas anteriores, questiona radicalmente a persistência
histórica do próprio horizonte de classe, antevendo, como objetivo de sua
intervenção prática consciente, a supressão de todas as formas de antagonismo de
classes (Mészáros, 1993, p. 14-15).

Destaquemos a primeira posição ideológica como conservadora e a segunda como


veleitéria (seguindo a terminologia de Mészáros, 2004), sem, contudo, reduzir em absoluto as
características descritivas dadas e as particularidades que acentuaremos em seguida das
tendências e subtendências no debate da formação do administrador. A terceira posição, como
veremos adiante, é aquela que defendemos como a que melhor coloca os problemas a serem
enfrentados. Nesse sentido, é possível destacar duas tendências centrais e que refletem a
ideologia conservadora e a veleitéria.
A primeira, a mais óbvia e sem dúvidas dominante, prescreve a formação com base
nas chamadas competências requeridas pelo “mercado”, pela vida competitiva etc. e remonta
aos textos seminais de Fayol, Mayo, Sheldon, entre outros preocupados com o ensino do
management. Comporta, no entanto, as alterações epidérmicas requeridas ao longo do século
XX. É incontestavelmente acrítica e seu horizonte é condicionado pelo que é útil ou inútil à
“empresa”, tomada como entidade não contraditória. A formação de competências técnicas e
“humanas” passa a ser um ponto decisivo para a competição e, dessa forma, um imperativo
para os indivíduos nos bancos escolares. Jogos de empresa e estudo dos cases de sucesso ou
fracasso são frequentemente os meios pedagógicos privilegiados para a preparação do
individualismo competitivo, dos diferenciais competitivos de cada discente tomado
isoladamente como mônada. Sob o aparente traquejo de abertura para as possibilidades do
mundo, exaltando o avanço e a inovação e seguindo um léxico neutralizador (capital
intelectual, colaboradores etc.), persiste uma posição conservadora da ordem e avessa à crítica
social. Sua caracterização geral está marcada pelo ideário neoliberal, que pode ser
considerado “velho” pois “esse discurso ideológico não é um fenômeno novo, mas de novo o
mesmo fenômeno” (Gurgel, 2003, p. 41). Suas marcas no cotidiano universitário são bem
conhecidas e, por isso, dispensa maiores comentários. E mesmo as mais recentes investidas do
empreendedorismo, mesmo daquele que se quer “social”, não se coloca fora dessa primeira
tendência dado que paga tributo ao ideário gerencial proveniente também das corporações
(técnicas de mercado, competição, individualismo etc.), além – o que é mais importante – de
ser uma renovação do ideário do pequeno proprietário em tempos de crise da sociabilidade do
capital.
A segunda tendência, mais progressista e sob influências variadas da teoria social,
enfatiza as limitações de uma formação nesses moldes, parcialíssima e comprometida com os
interesses “dominantes”. As aspas aqui indicam a indeterminação recorrente nessa tendência,
comportando um relativo gradiente de subtendências em razão da diversidade das influências
e das características particulares. Para uma exemplificação, podemos destacar elementos
desse gradiente.
3
Uma primeira subtendência, e sob influência de Guerreiro Ramos como Martins et al
(1997), enfatiza a dimensão cultural da administração no Brasil e a importância de a formação
do administrador corresponder aos ditames locais. A formação passaria pelas dimensões
culturais, históricas e socioeconômicas. O destaque segue mais ao lado da maneira de
interpretação nacional de modo que os administradores estariam mais aptos a dar respostas
aos problemas brasileiros e às condições de atuação segundo a formação do quadro social
brasileiro. A deficiência identificada pelos autores é a existência de “formulações teóricas”
que “não levam em conta nossas características, tão peculiares de formação” histórica. Diante
disso, “questionar-se sobre o sentido mais profundo de nossa formação social torna-se,
portanto, um passo necessário quando pensamos a formação dos profissionais da
administração” (Martins et al., 1997, p. 10).
É sobremaneira importante a compreensão dos traços e problemas nacionais. Quanto a
isso não resta dúvidas e dificilmente uma posição ideológica conservadora faria grandes
objeções – a não ser a ignorância. Trata-se, porém, de um elemento ligado ao pensamento
social brasileiro que precisa ser retido por qualquer discussão razoável da formação
universitária dado que o analfabetismo artificialmente construído via currículos sobre as
questões dessa ordem é uma das marcas maiores da formação universitária em administração.
Não obstante, coexistem nessa tendência um tipo de diagnóstico e um tipo de
alternativa prática que revelam também seus limites. Por um lado, existe a constatação
segundo a qual “a organização do trabalho interna às empresas espelha e reforça as relações
mais amplas entre capital e trabalho na sociedade” (Martins et al., 1997, p. 8). A contradição
fundamental constatada, no entanto, produz uma alternativa no mínimo curiosa ao supor como
sempre existente a própria contradição a ser superada. Por exemplo, limitam essa contradição
a uma política distributivista, ao argumentar que “a tensão entre a necessidade de maior
flexibilidade na gestão, por parte do capital, e de avançar na conquista de direitos e maior
equidade na distribuição da riqueza, por parte dos trabalhadores, molda a própria feição do
que são as organizações contemporâneas no capitalismo e das formulações da administração
moderna” (Martins et al., 1997, p. 6). Ao fundo segue preservada uma formação que tem por
horizonte a amenização da contradição identificada. Nessa direção, é possível ainda encontrar
a afirmação de que “a necessária aproximação do nível gerencial aos trabalhadores não
qualificados para integrá-los ao processo de produção nos parece um desafio à parte no caso
brasileiro, pois subentende ultrapassar as barreiras da formação cultural que o escravismo nos
legou” (Martins et al., 1997, p. 9). Em outros termos, uma vez superada a barreira da cultura e
uma vez integrados à produção, os trabalhadores podem continuar sendo o que são, mas em
condições superficialmente alteradas. O ponto alto da argumentação nesse sentido é a
identificação do desafio:

O desafio a ser enfrentando pelos administradores brasileiros repousa exatamente


em desenvolver relações de trabalho mais iguais, onde o trabalhador possa ser
considerado um verdadeiro colaborador nos resultados e deles compartilhe em
igualdade de condições com seus superiores (Martins et al., 1997, p. 10)

A contradição identificada entre capital e trabalho é substituída inadvertidamente pela


impossível conciliação dos contrários. Alguns traços daquela primeira tendência são
plenamente identificados também aqui, a despeito da contradição identificada. Quer dizer, até
mesmo para uma posição conservadora empedernida como na primeira tendência é imperativa
a adequação das técnicas da administração aos seus contextos de aplicação, potencializando
os resultados visados segundo os interesses do capital. Essa adequação não ameaça seriamente
a tendência conservadora a ponto de, inclusive, encontrarmos publicações e louvores do
Conselho Federal de Administração das obras de Guerreiro Ramos, autor que inspira essa

4
primeira subtendência. Problemática, pois, em suas próprias bases e nesses termos, não é
capaz de levar a contradição identificada ao seu ponto mais agudo, o que tornaria as
alternativas práticas postas para a formação do administrador questionáveis a despeito da
relevância da compreensão da história nacional. Trata-se ainda de uma posição conciliadora,
sincrética, à qual voltaremos à frente.
Sob influências da teoria crítica da chamada Escola de Frankfurt num corte
psicanalítico, outra subtendência sinaliza as deficiências da formação do administrador,
particularmente aquela explicitada na tendência conservadora, pois obstrui uma subjetividade
mais plena, impede a formação de um “indivíduo” como “sujeito”, de “consciência autêntica”,
que recoloque o homem na “possibilidade de se tornar artífice de sua própria vida” (Paes de
Paula, 2012, p. 41).
O argumento central que podemos reter com relação à formação é que “na medida em
que a ‘educação desinteressada’ perde espaço para a profissionalização e a do adestramento
cultural, a formação (Bildung) se transforma em semiformação (Halbildung) e o indivíduo
não mais pode se converter em sujeito” (Paes de Paula, 2012, p. 61). A formação do
administrador, nesse sentido, é uma formação precária, uma semiformação, a despeito do fato
de que não fica esclarecida nessa subtendência o conteúdo e a possibilidade real de uma
“educação desinteressada”. Não obstante, a vantagem dessa exemplificação do gradiente em
relação à primeira é o destaque que apresenta ao caráter necessariamente crítico, para além
daquelas “necessidades da empresa” que identificamos na primeira tendência. Esse aspecto
precisa ser retido, pois “a crítica seria algo que ocorre quando atingimos o nível do saber, pois
é necessário que o conhecimento esteja decantado e que haja consciência do sujeito para
haver reflexão” (Paes de Paula, 2012, p. 50). A crítica mais aguda que se explicita nessa
exemplificação surge mais como resultado do que mediação, mais como consciência acabado
do que exercício. A despeito disso, é preciso compreender que essa crítica como resultado é
posta no contexto formativo que privilegia a “experiência” e não a semiformação:

Esta "outra experiência" que "passa de pessoa a pessoa" pode se transformar em


experiência formativa se realmente tocar a subjetividade de quem dela participa e
marcar seu inconsciente enquanto "memória involuntária". Este processo é uma via
para conduzir o indivíduo à condição de sujeito, uma vez que envolve o
reconhecimento pelo outro, além de possibilitar a crítica, pois abre o caminho para a
alteridade, ou seja, a singularização que pode levar o indivíduo a sair do estado de
menoridade usando de seu próprio entendimento. Ocorre aqui o que se
convencionalmente costuma ser nomeado de "aprendizado", mas que chamarei de
formação (Bildung) no sentido frankfurtiano (Paes de Paula, 2012, p. 44).

Ao lado de considerar a crítica mais como resultado do que como meio, existe uma
dificuldade já conhecida particularmente na crítica de Marx a Feuerbach, isto é, em
determinar quem educa os educadores, já convertidos em “sujeitos”, capazes de levar adiante
o projeto da “experiência” – sem mencionar o peso demasiado dado à educação, ou melhor,
“formação”, sem uma transformação social mais profunda. Em razão do corte psicanalítico, as
determinações mais concretas da realidade e as contradições socioeconômicas ficam
consideravelmente apagadas e a antagonização principal se desgarra do capital e do trabalho
para se fixar numa relação entre indivíduo e mundo-sistema em que o último dificulta a
formação do sujeito. Contra isso se apresentaria a “experiência”, com a dificuldade já
apontada. Mas é preciso reter o papel da crítica que, bem mais acentuada do que na primeira
subtendência, ajuda a instruir melhor as próprias contradições fundamentais antes
identificadas.
Uma última e rápida subtendência evidencia tanto a contradição quanto suas
interferências no plano universitário. Um aspecto decisivo é que fica claro “que as escolas de
5
administração não estão formando administradores-políticos, imbuídos de uma visão
transformadora da realidade social” (Motta, 1983, p. 55). Esse é ponto importante a ser retido
para qualquer formação dos administradores que seja sensível às contradições sociais. Ao
comentar sobre os achados da professora Covre (1981), Motta escreveu ainda que:

O processo a que são submetidos os estudantes de administração, o que se revela na


análise dos cursos, evidencia interessantes conexões entre o processo produtivo e o
processo pedagógico no campo específico, no caso brasileiro. Dito de outra forma,
processo nos permite apreender o modo pelo qual os interesses ligados ao grande
capital se fazem representar no campo universitário (Motta, 1983, p. 54).

É decisivo ter em mente essa ligação, considerando os traços específicos do Brasil,


entre o processo pedagógico na formação dos administradores e o processo produtivo
marcado pelos interesses do grande capital. É de se suspeitar que interesses de capitais
específicos (financeiro, comercial, produtivo) também marquem o processo pedagógico,
incluindo os do pequeno capital hoje posto sobre a rubrica do empreendedorismo. Essa
ligação precisa ser retida, pois mostra como a formação dos administradores não se dá fora
das contradições sociais e a despeito dos efeitos dos interesses do capital em suas diferentes
formas.
Motta ainda chama a atenção para as mudanças experimentadas no início da década de
1980 no Brasil, por decorrência da difusão das ciências humanas. Escreveu ele que:
Inicialmente, entretanto, as chamadas ciências humanas tinham mais a vocação
instrumental para o estudo das áreas funcionais do que a vocação crítica necessária à
compreensão e à avaliação da realidade. Uma mudança importantíssima ocorreu na
esteira da crise de 1968, quando a segunda visão passou a prevalecer, inspirando um
novo currículo para os cursos de graduação e novos critérios na formação de
docentes nessas áreas (Motta, 1983, p. 53).

Motta via na ascensão das ciências humanas de tipo particular uma mediação
importante para a formação dos “administradores-políticos”. Não é inteiramente sem
propósito considerar que todas essas subtendências aqui exemplificadas sejam efeito desse
avanço das ciências humanas a partir de 1968. Mas é possível chamar atenção para o estudo
da professora Covre (1981) que mostrou que o incremento de disciplinas da área de humanas
no curso de administração da Fundação Getúlio Vargas do final da década de 1970 era por
decorrência da necessidade de formar gestores aptos à tomada de decisão que envolve uma
compreensão mais ampla da realidade. Essa é uma questão recorrente, de que o aparecimento
das humanidades nos currículos de formação de gestores não é efeito de capricho ou modismo
nem da iluminação das ciências do homem para o homem, mas uma necessidade prática do
mundo dos negócios que se reflete nos currículos. Isso por si só compromete o entendimento
de ver na formação humanística uma contradição frente ao capital, como parece insinuar
particularmente Motta. Ela é tão necessária quanto o uso mais sórdido das técnicas que
enfatizam autoridade unilateral, do despotismo sans phrase. Esse “humanismo” possui a
possibilidade de expressar as contradições reais, mas dentro dos limites próprios da educação
à qual ele serve. As problemáticas que identificamos em Martins et al (1997) indicam isso.
Além do mais, o que é óbvio para a primeira tendência (a conservadora), esse “humanismo”
apregoa uma modificação da formação, de um “sujeito” em termos consideravelmente
abstratos e sem alteração das relações materiais, sem uma mudança das próprias contradições
sociais, o que torna seu projeto consideravelmente limitado como horizonte prático. Passados
tantos anos depois de 1968, vemos que as “ciências humanas” embora importantes para a
formação não são por si mesmas garantias da transformação da realidade.

6
Nesse sentido, esse “humanismo” não deixa de ser reflexo da necessidade prática do
próprio capital, pois põe no horizonte um sincretismo que simultaneamente precisa cumprir os
desígnios que brotam da lógica do valor e não pode ignorar certos anseios e necessidades dos
trabalhadores ou dos indivíduos. Motta aqui aparece como a mais radicalizada posição na
segunda tendência ao registrar a formação para a transformação da “realidade social”, pois
apenas assim os homens podem transformar a si mesmos em donos de seu futuro como
humanidade, quer dizer, para além da mera transformação individual. O “humanismo” aqui
explicitado, no entanto, tem fortes ligações com aquilo que Mészáros chamou de pensamento
veleitério. Não é uma ideologia conservadora, como a primeira tendência, pois pode
comportar um impulso transformador, crítico da realidade, mas se vê ainda preso a
determinados condicionantes e interesses materiais dominantes mesmo que se julgue para
além deles.
Que seja repetido, no entanto, as diferenças marcantes da transição de uma ideologia
conservadora para a veleitéria como um movimento nada desprezível. Cada qual com suas
especificidades, as subtendências insinuam corretamente a compreensão histórica dos
problemas nacionais, a importância da crítica na formação das consciências e o peso dos
interesses do capital em suas muitas formas sobre a formação dos administradores. Mas esses
avanços não foram suficientes para a superação de um sincretismo.
O “passo adiante”, se não for uma completa alteração desse “humanismo” de tipo
particular, depende de uma compreensão mais apurada da realidade concreta, das contradições
reais operantes, e situar a formação dos administradores nessas contradições para tomar a
possibilidade de uma educação interessada na transformação social. Por este motivo, e
retendo os aspectos da história nacional, da crítica social, da identificação por vezes mais
superficial das contradições centrais e o impulso da formação para a transformação da
realidade, é preciso inserir tal formação no debate das classes sociais e da consciência de
classe. Somente uma ideologia revolucionária por ir à raiz das coisas, a única ideologia
autenticamente transformadora, pode superar as limitações desse “humanismo” e
proporcionar um sentido correto da transformação. Um movimento central nessa direção é,
deixando de lado as problemáticas impostas pelas leituras mais afeitas ao estruturalismo,
situar a universidade no contexto social:

A escola, como instituição mediadora, formadora de individualidades sociais,


absorbe tais impactos [dos estranhamentos de uma sociedade regida pelo capital] em
uma esfera já bastante distanciada da base material da sociedade, dada a
complexificação do ser social. Portanto, reflete em seu interior a realidade social da
divisão do trabalho, das relações de classe e dos estranhamentos próprios dessa
forma do ser social (Albinati, 2012, p. 42-3).

Tomando essa compreensão e sem sucumbir às armadilhas do “messianismo


pedagógico” de que falava Tragtengberg (1982, p. 114), a educação formal guarda
potencialidades múltiplas embora sua marca maior seja “agir como um cão-de-guarda ex-
officio e autoritário para induzir um conformismo generalizado em determinados modos de
internalização, de forma a subordina-los às exigências da ordem estabelecida” (Mészáros,
2007, p. 212). Dados os limites sempre latentes da manipulação “vinda de cima”, como nos
instrui Mészáros, a educação formal pode abrir brechas para uma ruptura com a lógica do
capital na medida em que canalizar uma análise de realidade – e, portanto, algo distinto de
um proselitismo – que apresenta o tratamento dos problemas sociais reais (Mészáros, 2007, p.
298), a necessidade de uma transformação concreta com relação a tais problemas (Mészáros,
2007, p. 302), em suma, que viabilize uma compreensão da totalidade contraditória e ponha
alternativas práticas coerentes com essa compreensão dos antagonismos e dos nexos
fundamentais.
7
É nesse sentido que devemos lançar luz sobre a análise razoável da realidade, sobre as
classes sociais e a consciência de classe para enfrentarmos o problema da formação do
“administrador-político” como agente de transformação da realidade social cortada pelas
contradições reais, pelas classes e pela luta de classes, evitando as armadilhas do citado
messianismo. Problema nada desprezível na medida em que apostando demasiada energia
nessa formação há a suposição de que a transformação social pode vir a ser assunto exclusivo
de uma profissão ou de profissões combinadas. Nada seria mais equivocado, pois sabemos
que o impulso transformador vem das ruas, das classes sociais. Mas engano de igual calibre é
supor que a formação universitária não tenha qualquer ligação com isso.

3. Materialismo, classe e consciência de classe

O materialismo tem sido considerado como uma mera “visão de mundo” que exclui a
função da consciência ou a toma apenas como epifenômeno. É preciso corrigir isso, situando
corretamente o problema da consciência de classe e sua significação concreta na luta social. E
é nessa consciência de classe que a formação o administrador precisa atuar, tendo em mente
os limites da formação e da própria atuação na realidade.
Não é verdade que não existe espaço na discussão do materialismo sobre a
subjetividade. Retomando o próprio Marx, é possível identificar, inclusive a partir de O
capital (cf. Bicalho, 2014), inúmeras contribuições para o devido posicionamento da
subjetividade em relação à materialidade. Uma síntese bastante convincente para os termos
gerais da apreensão marxiana pode ser encontrada em Chasin (2009). Somos informados pelo
autor brasileiro que a subjetividade não é tomada em sua pureza, mas na relação com a
objetividade. A objetividade como anterioridade efetiva cria as condições de possibilidade
para a subjetividade que é, por sua vez, condição da atuação concreta dos homens. É a atuação
concreta que converte a subjetividade em objetividade e vice-versa, de modo que pensar e ser
são coisas diferentes, mas relacionadas numa unidade. Em síntese, ao mesmo tempo em que a
subjetividade se molda pela prática social sobre a realidade concreta, essa mesma realidade é
modificada pelo agir dos homens que, por fim, também se alteram no processo. Considerar,
portanto, o problema da consciência e da consciência de classe implica ter claro essas relações
concretas e o conteúdo específico das práticas sociais que medeiam tais relações. Em suma, a
consciência se molda pela ação em contextos históricos e sociais determinados.
A relação entre a consciência e sua realidade não é isenta de obstáculos. A reprodução
pela consciência das propriedades das coisas, sejam elas naturais ou sociais, é uma
possibilidade regida também pelas próprias condições materiais. Determinados contextos
sociais são mais ou menos restritivos ao alcance da consciência. Dado que não existe
consciência humana fora da vida social, é esta que cria as condições de possibilidade da
primeira. Dessa forma, “a compreensão do caráter social da consciência passa pelo
reconhecimento da impossibilidade de abstraí-la dos seus portadores reais, isto é, os sujeitos
reais e concretos, em sua atividade material, historicamente determinada” (Vaisman, 1999, p.
260). É na materialidade desses portadores que se localizam as condições de possibilidade.
Não é por outro motivo que as “representações são expressão consciente – real ou ilusória –
de suas verdadeiras relações e atividades, de sua produção, de seu intercâmbio, de sua
organização social e política” (Marx; Engels, 2007, p. 93). Há que ser dito que “a falsidade ou
correção das representações não são motivadas, assim, por mecanismos puramente ideais,
inerentes à própria constituição da esfera subjetiva, mas derivam da potência ou dos limites do
modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida, ou seja, os limites à devida
apreensão dos nexos constitutivos da realidade são postos socialmente” (Vaisman, 1999, p.
262).
8
Não basta que existam indivíduos ou grupos interessados na apreensão dos nexos
constitutivos da realidade, são necessários indivíduos ou grupos em condições de fazê-lo. Não
existiria, nesse sentido, qualquer obstáculo por princípio entre o interesse e a reta apreensão,
nem com relação a um interesse de tipo específico, qual seja, o da transformação da realidade
social. Não faz sentido, pois, uma “formação desinteressada”. A questão problemática que se
coloca é o que fazer mediante condições mais ou menos restritivas a essa apreensão,
considerando a formação universitária como uma importante mediação. Não há outra
alternativa senão apresentar o melhor da apreensão da realidade, o mais alto alcance científico
disponível. E onde estaria esse alcance senão no próprio materialismo?
Consideremos, portanto, que a consciência dos homens nos marcos da sociabilidade
do capital possa ser diferenciada fundamentalmente entre consciência individual e consciência
de classe, sem que haja necessária correspondência entre elas. Torna-se ainda decisiva,
seguindo Mészáros (1993, p. 87s), a distinção – também sem necessária correspondência –
entre a consciência de classe que brota das condições econômicas, sociais e políticas
imediatas da classe e a consciência de classe ligada às determinações mais profundas que faz
da classe, classe. A primeira, como consciência contingente, é resultado e produtora dessas
condições imediatas, isto é, das condições da classe. A segunda, mais ao fundo, é produtora e
resultado do próprio ser da classe, isto é, a classe como tal. Assim, podemos distinguir a
consciência necessária, mais profunda, a consciência contingente e a consciência individual.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que a consciência individual alcança seu alto
desenvolvimento quando apreende os nexos com a própria classe social. Assim é que a
tematização de Lukács (2003) sobre o assunto, descontado o autorreconhecido vestígio
hegeliano, ainda comporta plena validade ao diferenciar a classe em si (condições da classe e
consciência contingente) da classe para si (ser da classe e consciência necessária) por
mediação da apreensão da totalidade social.
No capitalismo as relações das classes fundamentais seguem sendo as marcadas pelo
capital e pelo trabalho. Essa relação ao fundo, de ordem primária, se reproduz (continuidade)
por meio das e por vezes contra as alterações (descontinuidades) econômicas, sociais e
políticas. É por isso que podem ocorrer modificações nas condições da classe e na consciência
contingente mesmo na continuidade do ser da classe. Na relação de antagonismo entre as
classes, o interesse da classe do trabalho é superar a própria relação de classe, enquanto a
classe proprietária tende a se interessar pela reprodução dessa relação. Do lado do trabalho,
portanto, “o interesse de classe do proletariado é definido em termos de mudança dessa
subordinação estrutural” (Mészáros, 1993, p. 92), enquanto, do lado dos proprietários, é
perpetuar essa subordinação, donde se extrai que a transformação da realidade não é um
interesse de todas as classes, mas daquelas que precisam destruir as relações de dominação e
que, portanto, não vivem delas. Esse interesse, entretanto, é o que brota do ser das classes e
não surge necessariamente manifesto nas condições da classe e, portanto, nem na consciência
contingente ou individual. É esse interesse de classe, a superação de todas as classes,
manifesto como consciência necessária e que ultrapassa as condições da classe, que a
consciência individual precisa refletir para que sua atividade no mundo possa ter como
horizonte prático a transformação da realidade social – não sem mediação das próprias classes
organizadas e interessadas nessa transformação. Apenas assim são possíveis
“administradores-políticos”, nos termos de Motta.
Se o ser da classe do trabalho não pode ser integrado ao capital, uma vez que é essa a
relação que garante a continuidade do capitalismo, o mesmo não pode ser dito em relação aos
indivíduos singulares que, mesmo pertencentes à classe do trabalho, podem se integrar em
termos de condições sociais e consciência individual, aos horizontes da reprodução das
relações sociais. A possibilidade dessa ocorrência se marca pela diversidade das condições de
vida que experimentam as diferentes frações da classe do trabalho, condições que também
9
variam ao longo de muitos períodos. As diferentes frações da força de trabalho se reproduzem
sob condições sociais, econômicas e políticas diferenciadas nos limites das contingências
históricas.
Essa problemática pode ser exemplificada pelo tratamento que Mauro Iasi forneceu.
Seguindo o autor, existem alguns elementos básicos para determinar as classes sociais, nos
termos dos seguintes elementos:

1. classe seria definida, num determinado sentido, pela posição diante da


propriedade, ou não propriedade, dos meios de produção; 2. pela posição no interior
de certas relações sociais de produção; 3. pela consciência que se associa ou
distancia de uma posição de classe; 4. pela ação dessa classe nas lutas concretas no
interior de uma formação social (Iasi, 2007, p. 107)

O autor demarca a discussão pelo caráter relacional das classes (Iasi, 2007, p. 108) e
igualmente circunstancial, dado que as contingências históricas também atuam junto à
determinadas legalidades. Nessa consideração, podemos ler, por exemplo, que:

Uma pessoa pode ser um assalariado por sua posição no interior das relações sociais,
portanto, um não proprietário de meios de produção, mas, devido exatamente ao
ponto que ocupa nessas relações, ou, por outros motivos, atua e pensa como um
burguês, se soma ao partido burguês nas lutas concretas da história e se dispõe a
representar essa classe se uma oportunidade lhe apresenta, seja produzindo teoria,
ocupando um cargo parlamentar ou participando da gestão de uma empresa. Esse
senhor é parte orgânica da burguesia, ou, melhor dizendo, compõe, nesse nível da
análise, o burguês coletivo (Iasi, 2007, p. 109).

Podemos reter, o que não é inteiramente claro ao autor, que a consciência que orienta
as escolhas tanto quanto as próprias escolhas (itens 3 e 4) podem ser contraditórias ao ser da
classe (itens 1 e 2), de modo que o indivíduo pode pensar e agir na direção da mera
reprodução das relações de classe. Para Iasi, o critério decisivo não é o ser da classe mas o
modo como, nos momentos decisivos da vida social, os indivíduos agem contraditória ou não
contraditoriamente aos interesses de sua própria classe. Tendo esse critério como absoluto, o
autor precisa considerar essa circunstância como “parte orgânica da burguesia” a despeito do
ser da classe, e teria que enfrentar a dificuldade de considerar virtualmente todas as classes
como “parte orgânica” das classes dominantes. No entanto, tem o mérito, a ser retido, de
explicitar a função da consciência individual quando se coloca desconectada da consciência
necessária, quando, muito mais dirigida pelas contingências de sua fração de classe, atua
contraditoriamente aos interesses de sua classe e a si mesmo. Não é por outro motivo que “o
fator ‘subjetivo’ adquire uma importância crucial como pré-condição necessária de sucesso
nesse estágio altamente avançado do desenvolvimento humano, quando a questão em pauta é
a extinção – a auto-extinção – das condições de desumanização” (Mészáros, 1993, p. 86).
É por via desse materialismo que se iluminam os problemas ligados à consciência de
classe. A formação universitária, portanto, desempenha algum papel na formação das
consciências individuais e que interferem de modos complexos na realidade em razão das
interações recíprocas entre as classes, as condições das classes e dos indivíduos e as formas de
consciência derivadas e interferentes. Esse entendimento é fundamental para um projeto de
formação de “administradores-políticos” orientados para a transformação da realidade social
em seu sentido mais autêntico, em oposição ao pensamento conservador e liberto dos entraves
daquele “humanismo sincrético”. Mas ainda seguimos carentes de uma explicitação das
conexões entre os gestores e as classes sociais, o que permite a apreensão de alguns limites
estruturais da atuação desses homens e mulheres como agentes da transformação social.
Passemos a eles, às conexões e aos limites.
10
4. Gestores, classe e consciência de classe

Existe, como chamamos atenção na introdução, uma predileção entre autores da


administração política em tomar os gestores como uma classe social em si mesma e, segundo
algumas vertentes, como a própria classe dominante.
Essa problemática retoma a inúmeros autores do século XX dos quais podemos
destacar duas tendências de gêneses diferentes, mas com elementos gerais aproximados e
outros muitíssimo divergentes. Não por acaso, tratam-se de tradições liberais e anarquistas,
essa última envolvendo outras tendências, como a conselhista e o socialismo libertário.
Devemos considera-las com brevidade, contudo.
Na tradição mais liberal, encontramos essa determinação de uma teoria dos gestores
de modo ainda germinal entre autores da economia política vulgar, como David Ure1 (1835),
e as vulgarizações exógenas, como Frederic W. Taylor de 1911, Oliver Sheldon de 1923
(2003), mas que ganha mais força e inteireza com Peter Drucker em 1946 (1983), o apologeta
empedernido do gerente. De modos que ainda precisam ser trazidos futuramente, essa
discussão tem seu ponto de arranque mais acabado pelas mãos de Alfred Marshall (1961
[1890]) com a inserção do quarto fator (ou agente) de produção, a organização (além do
capital, da terra e do trabalho), o que implicam os gerentes e a gestão do capital e da força de
trabalho. Ao longo do século XX, porém, alguns expoentes retomam indiretamente e de
modos variados essa teoria dos gestores para exaltar o papel da tecnocracia, como Galbraith
em 1967 (1985), ou da “mão visível”, como Chandler (1977). Uma influência decisiva nessa
direção e que recebeu grande audiência foi o livro originalmente publicado em 1932, por
Berle e Means (1948), The modern Corporation and private property, no qual aparece a
separação entre a gestão das grandes corporações capitalistas e a propriedade sob a forma de
ações. Essa separação eliminaria a posição do capitalista individual e ampliaria a presença e
influência dos gestores da corporação que teriam sob seu controle um grande poder
econômico somente comparado ao poder político do estado. A expectativa à época era a de
que a corporação se transformasse na “instituição dominante do mundo moderno” e essa
possibilidade é descrita de maneira ambígua – com recorrente desconexão liberal entre
economia e política. A conclusão dos autores comporta, inclusive, certo temor:

O surgimento da corporação moderna trouxe a concentração do poder econômico


que pode competir em condições iguais com o estado moderno – poder econômico
versus poder político, cada um é poderoso em seu próprio território. [...]. O futuro
pode assistir o organismo econômico, agora tipificado por corporação, não apenas
no mesmo plano que o estado, mas possivelmente mesmo supera-lo como a forma
dominante de organização social (Berle; Means, 1948, p. 357).

Esse elemento de separação e crescimento da concentração econômica foi crucial para


que autores pudessem fixar um traço do estágio da continuidade do capitalismo como uma
descontinuidade, elevando os gestores à posição de destaque. Esse mesmo material deixou
marcas no controverso James Burnham (1941) que esteve convencido de um movimento
histórico que colocaria, considerando as variações dos países, os gestores como a classe
dominante:

O que está ocorrendo nessa transição é uma orientação por domínio social, por poder
e privilégio, pela posição de classe dominante, por grupo social ou classe dos

1
Existe uma versão disponível da edição de 1835 em https://archive.org/details/philosophymanuf01uregoog
11
gestores [...]. Essa direção será prevalecente. Na conclusão do período de transição
os gestores terão, de fato, atingido o domínio social, serão a classe dominante na
sociedade (Burnham, 1941, p. 71-72).

Burnham é controverso em razão de se alinhar ao trotskismo e, depois, formar fileiras


às expressões mais burlescas da direita estadunidense. Ele serve aqui de ponto intermediário
entre os autores norte-americanos, influenciados pelo crescimento vertiginoso das
corporações na primeira metade do século XX, não por acaso o período das grandes guerras, e
os anarquistas e ainda os socialistas libertários, mais preocupados com o desenlace da
experiência russa. O próprio Burnham manteve-se atento à história da revolução naquele país.
Noutra linhagem, poderíamos encontrar já vestígios de uma teoria dos gestores em
Saint-Simon. Assim como no que se refere aos vestígios no liberalismo, essa questão de
gênese terá que ficar para outra oportunidade.
Não obstante, na tradição anarquista e algumas tendências conselhistas e libertárias,
por outro lado, a constatação não se marca pelo mero crescimento das corporações, mas pelo
domínio de um partido único com a burocracia estatal que, ao invés de promover uma
revolução dos trabalhadores, terminou por representar uma revolução sem os trabalhadores,
como dizia Tragtenberg (1986; 1988). Outros autores brasileiros podem ser destacados, como
Fernando Prestes Motta (Bresser-Pereira, 1981, é um caso à parte). Muitas considerações de
Motta estão sob influência de João Bernardo (1979, p. 7s) e seu recorrente destaque para a
terceira classe, ao lado do proletariado e dos burgueses: os gestores.
Motta (2001), por exemplo, seguindo de perto as posições do autor lusitano,
compreende que “tecnoburocratas, gestores, burgueses de Estado, ou simplesmente
burocratas, são alguns dos nomes que vêm sendo utilizados para designar a elite de altos
administradores, cada vez mais visível nas sociedades modernas”. Quase parafraseando João
Bernardo, escreveu que é seu “ponto de vista que a tecnoburocracia é uma classe social que
tem suas raízes nas condições gerais de produção e nos processos particulares de fabrico”. Ao
cabo, “como classe social, a tecnoburocracia procura legitimar seu poder pelo conhecimento
técnico e político instrumental, que é o conhecimento organizacional” (Motta, 2001, p. 112).
Motta atribui a má compreensão dos gestores como classe à alegada miopia do marxismo se
comparado ao socialismo libertário. Como ele mesmo explica:

A percepção de que essa autonomia relativa da burocracia pode estar inaugurando


um novo tipo de dominação é algo que aflige muito alguns setores da esquerda, que
não conseguem fazer uma leitura nativa e atual de Marx. Isso não quer dizer que
esteja surgindo necessariamente um novo modo de produção [em referência ao
argumento de Bresser-Pereira, 1981]. Ao socialismo libertário jamais repugnou
pensar na categoria capitalismo burocrático (Motta, 2001, p. 86).

As ressonâncias com João Bernardo são muitas e profundas na compreensão dessa


“terceira classe”. O autor portuense considerou que:

No capitalismo, para além de uma classe explorada, que surgir da dissolução do


regime senhorial, temos duas outras classes, também formadas em ruptura com a
economia senhorial, e que decorrem dos dois aspectos fundamentais do polo
explorador do capitalismo: a burguesia, representando a parcelização das empresas,
a privatização da propriedade do capital; e uma outra classe, que consubstancia a
integração tecnológica entre as unidades de produção, as condições gerais de
produção; em virtude das funções predominantemente organizacionais que esta
classe desempenha, na união entre os vários processos particulares de fabrico (e,
posteriormente, na própria organização interna de cada um desses processos) e,
portanto, na orquestração do capitalismo como um todo, posso chamar-lhe classe
dos gestores (1979, p. 36-37).

12
No contexto do capitalismo mais autêntico, explica Bernardo em outro lugar, “o
prosseguimento da ação dos gestores dentro do quadro das instituições burguesas e a forçada
marginalização política dos trabalhadores caracterizaram esta estratégia como uma
modalidade de manutenção da ordem. Num esquema: gestores + burguesia / proletariado”
(2015, p. 339-40). Diferentemente foi o caso da “experiência soviética”, pois lá “o capitalismo
acabou, sem dúvida, por ser salvo pelos gestores, mas enquanto capitalismo de Estado,
resultante da mobilização da classe trabalhadora, e no qual não havia já lugar para a
burguesia. Num esquema: gestores + proletariado / burguesia” (2015, p. 340). Situando Marx
nos termos dos acontecimentos da “experiência russa” (!), observou inadvertidamente que a
“a obra de Marx e dos seus seguidores constitui a expressão teórica da profunda ambiguidade
das lutas sociais, que funde numa dinâmica única uma vertente do movimento operário e uma
vertente dos anseios políticos e econômicos dos gestores” (idem).
Além da determinação da classe dos gestores, Motta e João Bernardo compartilham
alguma má compreensão com relação ao próprio Marx, convertido, no último caso, em um
autêntico saint-simoniano.
Não obstante, e apenas como ilustração dos problemas envolvidos, Martorano (2011),
numa direção diferente embora também ancorada na literatura conselhista, comenta que essa
apreensão dos gestores como classe encontra dificuldades em lidar com o caráter mais amplo
e variável dos componentes da burocracia estatal que não formaria, junto com seus gestores,
uma classe em particular, embora esteja estruturalmente à serviço da classe dominante. O
autor retoma os estudos particularmente de Trotsky e Poulantzas (com destaque para o
segundo) no intuito de explicitar a burocracia estatal como uma camada social mais ou menos
delimitada em complexas e problemáticas ligações com o partido dirigente e as classes sociais
(cf. Martorano, 2002). Essa última tendência insiste no caráter diverso da burocracia, formada
por pessoas de diferentes origens sociais e portadoras de distintas formas de consciência. Se a
burocracia de estado se apresenta com essa composição mais complexa, o que dizer das
manifestações no momento social da produção do capital? Os gestores formariam uma classe
em si, quiçá para si? Martorano apresenta pistas para uma resposta negativa a essa questão.
E a problemática se complica se retomarmos a discussão anterior sobre o ser da
classe, conforme nos instruiu Mészáros. Pois nos parece que a teoria dos gestores como
desenvolvida pelas tendências anarquistas e libertárias (e parcialmente pela conselhista),
possuem aproximações ainda inexploradas com o liberalismo, por sustentarem a mesma tese
e, por vezes, os mesmos argumentos, embora tenham posições sociais distintas. Longe de
identifica-las, não é tão fácil negar essas aproximações inesperadas.
Mais importante ainda, é a problemática de uma identidade entre classe e fração de
classe, uma vez que o desenvolvimento da teoria dos gestores pressupõe a existência de um
ser da classe inteiramente distinto da classe do capital e do trabalho. Como tal ser não existe
na materialidade do modo de produção capitalista a não ser na apologia liberal dos gestores e
na identidade entre classe e fração de classe, são levados a assumir que uma função
diferenciada na produção ou na administração do estado seria critério suficiente para
determinar uma terceira classe. É certo que se forma socialmente uma “estrutura de comando
do capital” (Mészáros, 1995, p. 536s), em que o ponto mais alto dessa estrutura dificilmente
poderia ser absolutamente designado por trabalho assalariado, mas a realidade mesma mostra
também a existência massiva de homens e mulheres que desempenham a função de gestão,
por assim dizer, e que formam o trabalhador coletivo (Marx, 1988, p. 443), isto é, caem na
categoria força de trabalho produtivo e improdutivo. O modo e as resultantes da
funcionalidade dessa força de trabalho variam consideravelmente em razão da fração de
classe em tela. Por esse motivo é preciso considerar os “gestores”, essa conceituação
amplíssima, com o ser das classes efetivamente existentes.
13
Essa nossa consideração não exime a posição de Iasi indicada antes, no tópico
anterior. É preciso perguntar: constituir parte orgânica da classe burguesa é ou não suficiente
para determinar um indivíduo que participa “da gestão de uma empresa” como de uma classe
e não de outra? Como, consideradas as contingências históricas e circunstanciais, não há uma
causação necessária entre posição de classe e expressão prático-subjetiva, é importante
alguma cautela para não converter tais contingências em legalidade universal, transformando
a avaliação de Lenin (1979), por exemplo, sobre os gestores fabris do período revolucionário
russo como “aristocracia operária”, numa determinação fixa e imutável. Em outras palavras, o
fato de os gestores atuarem tendencialmente ao lado das classes dominantes e portarem uma
consciência por vezes contraditória aos interesses da classe do trabalho não os constitui
objetivamente “fora” da classe do trabalho, da categoria força de trabalho. Isso é
particularmente correspondente na medida que reflete a grande massa dos mais de 700.000
formandos anualmente em administração no Brasil, sem falar de outras formações correlatas.
Estaria toda essa massa circunscrita a uma “elite” que gerencia as coisas do estado e do
capital? Em parte, sim; na maior parte, não.
A síntese explicativa dessa complexa contingência com legalidades particulares no
capitalismo só pode ser encontrada na contraditória existência objetiva de a administração ser
um trabalho explorado que funciona como trabalho de explorar donde derivam inúmeras
problemáticas subjetivas (Paço Cunha, 2014). Adicionalmente, é interessante notar que o
“crescimento das grandes empresas levou à expansão dos empregos para os “colarinhos
brancos”, que, embora supostamente tenham um prestígio mais elevado que os operários em
geral, do ponto de vista da propriedade são iguais aos operários e diferenciados da antiga
classe média” (Tragtenberg, 2009, p. 204-5). É possível mesmo dizer que, nessa última
direção, consideráveis efeitos da precarização do trabalho são sentidos em muitas frações do
trabalhador coletivo, o que mostra que, sob determinadas condições econômicas, o destino
dos administradores não está desconectado do destino dos trabalhadores menos qualificados,
como registrou Braverman (1977).
Essa apreensão da realidade, segundo a qual a grande massa dos administradores são
trabalho explorado que funciona como função do capital, como trabalho de explorar, explicita
a complexidade do trabalhador coletivo, seus segmentos produtivos e improdutivos (cf Paço
Cunha, 2014). Por esses termos, no conjunto, os administradores ou gestores não formam toto
coelo uma classe social particular, separada objetivamente com respeito ao trabalho ou ao
capital, embora tendam a uma configuração subjetiva personificadora dos interesses do
capital, tanto em razão da formação quanto da própria natureza da prática com a qual se
engajam na produção do valor ou a ela acoplada. É evidente que tratamos do problema em
suas linhas gerais, na medida em que administradores de escritório e administradores da
produção imediata do valor (e mesmo aqueles que operam na burocracia de estado) cumprem
funções relativamente distintas em razão do lugar de atuação no processo de produção e
reprodução global do capital. Nossa atenção é, como antecipado, essa produção imediata do
valor em que a função de direção da força de trabalho é repartida contraditoriamente entre as
partes componentes do trabalhador coletivo.
As condições sociais e políticas sob as quais essa fração gerencial de classe do
trabalho se reproduz contribui sobremaneira para esse reflexo subjetivo que os afasta de sua
classe, inclusive de modo prático ao atuar por vezes de maneira contraditória aos interesses da
força de trabalho como classe. Mas também é preciso incluir a atividade prática em seu
sentido imediato. É aqui que tem lugar a complexa relação entre objetividade e subjetividade
numa unidade mediada por uma prática social determinada. Isto é, em razão de objetivamente
operar como uma função do capital, mediando-o com o trabalho, cria as condições de
possibilidade para uma subjetividade no mínimo deslocada e, às vezes contrária, ao próprio
ser da classe. O fato de essa função possuir um caráter profundamente manipulativo que
14
converte a força de trabalho alheia (objetiva e subjetivamente considerada) em coisa, objeto
de manipulação, também ajuda a explicar o surgimento de estranhamentos específicos da
coisificação dos homens nesse território. É bom que se diga: o coisificador também é coisa
para o capital e cai nas mesmas teias manipulativas que os objetos de sua manipulação. Dado
que, como vimos a partir dos elementos do materialismo, é a atividade prática que molda
também os homens, as consequências para a vida estranhada são inúmeras e potencialmente
mais condicionadoras do que a formação crítica, para a transformação social. Em outros
termos, o engajamento em prática social que também participa da coisificação do homem
reflete ao próprio agente o estranhamento de sua prática e da relação com os demais membros
de sua espécie humana.
Não é possível desconsiderar, porém, que mudanças econômicas podem forçar uma
tomada de posição próxima às demais frações do trabalho, criando aquela tensão amarga de se
proteger como trabalhador e defender a todo custo o mistificado “interesse da empresa”, como
se aprende, em geral, nos bancos universitários. Conta-se o caso de uma profissional do setor
financeiro dos escalões gerenciais de uma grande mineradora no Brasil que teve participação
emblemática no processo de greve. A “empresa” alegava não ter condições financeiras de
cobrir a correção salarial demanda pelo movimento grevista, mas fora desmentida pela
financista que cedeu informações a respeito das reais capacidades financeiras as quais, com
sobra, permitiram a correção. O movimento grevista saiu temporariamente vitorioso, e a
financista terminou demitida. Poulantzas (1975), por exemplo, seria forçado a identificar aqui
uma aliança entre os trabalhadores e a “nova pequena burguesia” (gerentes). Essas
possibilidades singulares, no entanto, insinuam mais a acomodação das frações da própria
classe do trabalho.
Essas e outras possibilidades empíricas de eventos singulares mostram como a
contradição expressa no trabalho explorado como trabalho de explorar, sob condições sociais
específicas, cria todo tipo de dificuldade para uma “teoria dos gestores”, dos gestores como
uma “terceira classe”. Trata-se de frações do trabalho que operam regidas pela compulsão de
maior extração possível de mais-valor, como dizia Marx (2013, p. 406), mas não por isso
deixam de ser em grande medida fração do trabalhador coletivo. Seguindo Marx mesmo,
podemos ler que:

Com o desenvolvimento da subsunção real do trabalho sob o capital ou o modo de


produção especificamente capitalista não é o trabalhador individual, mas uma
capacidade de trabalho socialmente combinada que é mais e mais o executor real
[wirkliche Funktionär] do processo de trabalho em sua totalidade, e já que diferentes
capacidades de trabalho as quais cooperam conjuntamente para formar uma máquina
produtiva total contribui de diferentes meios para o processo direto pelo qual a
mercadoria, ou, mais apropriadamente aqui, o produto, é formado, com um
trabalhando mais com suas mãos, outro mais com seu cérebro, como gerente,
engenheiro ou técnico, etc., outro como supervisor, um terceiro diretamente como
um trabalhador manual, ou ainda como mero servente, mais e mais funções da
capacidade de trabalho são incluídas no imediato conceito de trabalho produtivo,
diretamente explorados pelo capital e subordinados em geral ao seu processo de
valorização e de produção (Marx, 1988, p. 443-444; 1969, p. 65-66, grifo do autor).

A questão decisiva é: se não formam uma classe em si, não constituem um ser da
classe ao lado do capital e do trabalho, isso não impede de reconhecer o problema da
consciência de classe, potencialmente deslocada em relação ao ser da classe e, por vezes,
condicionada pelas condições sociais e políticas mais favoráveis de reprodução em razão da
qualificação da força de trabalho dos administradores, engenheiros, economistas etc. e do
lugar que ocupam na “estrutura de comando do capital”. A consciência individual ou mesmo
de grupos e camadas inteiras podem ser integradas ao interesse do capital, mas não a posição
15
estrutural das classes que vez por outra se mostram determinantes em contextos históricos
específicos.
Assim, respeitando a trama das circunstâncias particulares, ocupa lugar relevante a
constituição da consciência da classe do trabalho no seio da formação dos administradores em
razão da luta ideológica em andamento no sentido de promover o interesse pela transformação
social para além das classes sociais. Se a funcionalidade dessa fração do trabalho como
mediação, como força prática do capital, serve, em termos estruturais, aos imperativos da
maior extração possível de mais-valor, é preciso explicitar essa funcionalidade, mostrar os
nexos reais que ajuda a mobilizar, explicitar como a elaboração de um ideário administrativo
que se reflete nas teorias e abordagens está ancorada nessa funcionalidade. Em parte, isso tem
sido feito por uma crítica marxista da administração. Mas isso não basta! É necessário
mostrar uma análise de realidade que dê conta de explicitar as contradições por meio das
quais se move a própria função, das condições de uma dada subjetividade na prática de seus
portadores nas possibilidades concretas. Fazer isso também é produzir uma crítica dessa
mesma subjetividade e de suas condições de possibilidade. Mas isso não pode ser feito por
ideologias conservadoras e apenas parcialmente aquele “humanismo sincrético” de um
pensamento veleitério poderia ser evocado. Somente um pensamento radical, que vai à raiz
dos problemas, pode ultrapassar de modo coerente as posições que, ainda que contrariamente
à vontade de seus defensores, se ancoram na reprodução dos antagonismos que produzem os
problemas por elas identificados.
É aqui que se mostra necessária a formação da consciência de classe e,
particularmente, o papel ainda que limitado do ensino universitário da administração. A
educação dos administradores para além do capital e, portanto, das classes sociais se marca
nos presentes termos: deve-se mostrar que o grande “desafio da gestão” em relação ao mundo
do trabalho não é ampliar mais e mais seu caráter de serviçal dos interesses do capital, não é
identificar-se como uma classe que disputa hegemonia, poder ou coisa que o valha, nem
integrar o trabalho ao processo de trabalho, supostamente como colaborador, mas é
reconhecer-se, de modo coerente com sua realidade e os nexos concretos, como fração da
classe do trabalho. Trabalho não como mero objeto de exercício da profissão, mas como
determinação da própria atividade de direção exercida por um tipo particular de trabalhador
assalariado e que a superação de sua condição e dos estranhamentos aos quais se submete
depende da superação da própria relação de classes. E nesse processo também se mostra os
próprios limites da formação, pois os administradores somente podem ser compreendidos
como agentes da transformação na medida em que se articularem como parte orgânica do
trabalho, pois o revolucionamento das relações de dominação não é um atributo de qualquer
profissão isolada, mas missão da classe do trabalho unida e organizada. Os termos e
condições dessa unidade organizada também precisam ser problematizadas.

5. Considerações finais

O ensino da administração política está, quer se queira ou não, inserido na luta


ideológica pela formação da consciência de classe. As posições conservadora e veleitéria
podem ser superadas pela posição autenticamente transformadora, pois de modos complexos
o “humanismo sincrético” paga tributo às mesmas condições de possibilidade da ideologia
neoliberal.
Com o materialismo se revelam as determinações das classes, mas também as
múltiplas interações entre o ser da classe, as condições da classe, as condições individuais e
os espelhamentos da consciência que opera de modo absolutamente diferente de um mero
epifenômeno. É a relação entre objetividade e subjetividade mediada pela prática concreta que
16
quebra as leituras mecanicistas que se afastam da realidade. Acaba revelado também o caráter
de fração de classe de uma massa de administradores, uma parte componente do trabalhador
coletivo, da força de trabalho explorada pelo capital, cuja posição concreta e prática material
(como trabalho explorado que funciona como trabalho de explorar) condicionam a
consciência individual e atuação política. Sob determinadas condições a tendência de se
identificar com os interesses do capital é sopesada frente aos efeitos do próprio princípio de
maior extração possível de mais-valor, isto é, tornando os problemas do estranhamento e da
precarização um fenômeno identificável amplamente nas frações do trabalho.
Nossa conclusão fundamental, portanto, é que uma educação para além do capital e
para além das classes sociais pressupõe uma crítica aguda das condições de possibilidade da
subjetividade contraditória aos interesses do ser da classe do trabalhador coletivo o qual
comporta inúmeras frações do trabalho, incluindo os administradores. Passa a ser decisiva a
explicitação dos próprios administradores como trabalhadores assalariados e as diferenças
dentro dessa própria fração em razão das condições sociais e da estrutura de comando do
capital, sem ignorar o fato de que uma outra educação possível somente virá como resultado
das transformações profundas da sociabilidade. Educar para transformar e transformar para
educar são complexas reciprocidades que não podem ser eliminadas de qualquer projeto que
ponha no horizonte a superação das classes e dos estranhamentos correspondentes, na medida
em que a educação autenticamente transformadora só se realiza efetivamente num processo
social transformador.
O certo é que a formação universitária na administração caminha tradicionalmente
noutra direção. Dados os vínculos tradicionais do curso com interesses econômicos
dominantes, não se explicita o caráter assalariado do trabalho do administrador, um trabalho
de exercício do comando durante o processo de trabalho em nome de forças estranhas. Dito de
outra maneira, não se revela que se trata de trabalho de explorar exercitado pela fração
dominante do trabalho explorado. Menos ainda tem sido capaz de mostrar o
empreendedorismo como falsa alternativa transformadora, pois não o revela como a
renovação do ideário do pequeno proprietário nas condições do atual estágio do
desenvolvimento do capitalismo, mas como nova fase (do conhecimento) de um capitalismo
supostamente superado. Somente um projeto coletivo e claramente posto de construção de
uma consciência de classe, ao dar os elementos necessários à compreensão do administrador
em grande parte como fração contraditoriamente posta no interior da classe do trabalho, pode
ser coerente com o ensino crítico da administração política que procura revelar os amplos
problemas da organização social.
Lamentavelmente deixamos de fora elementos da discussão da “teoria dos gestores”
ligada ao estado tendo em vista não apenas os limites formais, mas também a determinação da
produção do valor que nos serviu de ângulo mais apurado para decantar as inúmeras
determinações do problema. Deixamos igualmente de lado um debate com Poulantzas (1975)
e sua posição que sustenta também os administradores como fração da chamada “nova
pequena burguesia”. Longe, portanto, de esgotar o assunto, é necessário retomar todas as
considerações da “teoria dos gestores” e de outras posições para uma análise mais sistemática,
além de avaliar em casos concretos a reação desses chamados “gestores” em episódios
históricos específicos. Ficam assim registradas sugestões para futuras pesquisas.

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19
Administração Pública e Turismo LGBT: Reflexões e Desafios

Leandro Souza Moura (UERJ)


Juliana de Paula Gomes (UERJ)

Resumo
No cenário do desenvolvimento social, político e, especialmente, econômico, o
turismo tem sido apontado como saída para países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
A diversificação da oferta turística é uma realidade em muitos países e algo almejado por
outros. Nesse contexto, observa-se o crescimento do chamado Turismo LGBT (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). O grande desafio no
desenvolvimento do turismo voltado para esse público é o preconceito de setores
conservadores da sociedade bem como a associação que se faz desse segmento com o turismo
sexual. Tal associação se revela um tanto preconceituosa uma vez que associa
inapelavelmente o público LGBT com práticas promíscuas ou até criminosas, como a
pedofilia. O presente estudo é um ensaio teórico cujas considerações finais dão conta de que o
desafio da promoção do Turismo LGBT no Brasil deve ser enfrentado com muita
responsabilidade e com um planejamento muito bem elaborado, visando o atendimento, e, se
possível, a superação das expectativas desses turistas, com todo o cuidado para impedir que
eles sofram qualquer tipo de constrangimento.  

Introdução
No cenário do desenvolvimento social, político e, especialmente, econômico, o
turismo tem sido apontado como saída para países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
Barretto (2012) argumenta que dependendo da estrutura social do país em questão, o turismo
pode ser uma fonte geradora de riqueza, como aconteceu na Espanha, onde o turismo foi
capaz de reerguer o país após duas guerras consecutivas, mas também adverte para a
necessidade de solucionar problemas de base como a construção de uma infraestrutura
habitacional e sanitária para os cidadãos, propiciando melhores condições de saúde e de
alimentação, restaurando, desse modo, a paz social para melhor aproveitar o potencial
turístico em vez de esperar que a atividade turística dê conta de tais problemas (BARRETTO,
2012).
A diversificação da oferta turística é uma realidade em muitos países e algo almejado
por outros. Nesse contexto, observa-se o crescimento do chamado Turismo LGBT (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Esse segmento, relativamente
novo, do turismo, tem aspectos bastante positivos do ponto de vista econômico. O Brasil, por
meio do Instituto Brasileiro de Turismo (EMBRATUR), tem procurado desenvolver esse
segmento turístico, no entanto, também tem sido alvo de algumas críticas, quer seja pela
forma como tem sido proposta essa promoção, ou até mesmo pelo fato de incentivar uma
prática considerada moralmente condenável por setores conservadores da sociedade.
Entendendo o Brasil como um estado democrático de direito e, portanto, defensor das
liberdades e direitos individuais, o presente artigo trata-se de um ensaio teórico que visa
promover reflexões com relação à promoção do Turismo LGBT de modo seguro para os
turistas e vantajoso social e economicamente para o país. Considerando nosso contexto
histórico, social, político e econômico, considerando também aspectos culturais relacionados
às questões de orientação sexual, como enfrentar o desafio da promoção do turismo LGBT em
nosso país? Essa é a questão principal que orienta as reflexões do presente estudo.

1. O que é turismo LGBT?

A segmentação do mercado turístico é algo que vem se desenvolvendo mundo afora.


Com as tecnologias e os avanços da microeletrônica, as redes sociais e uma interação cada
vez maior entre as pessoas, vários grupos são formados, tendo em comum, interesses
específicos, e o mercado turístico acompanha essa tendência. Um bom exemplo disso,
apontado por Paulus (2009), é o chamado enoturismo, que atrais pessoas que têm em comum,
além do desejo de viajar, o apreço pelo vinho. Panosso Netto e Ansarah (2009) apontam
segmentos em fase de advento, como o turismo espacial e o turismo virtual, e segmentos que,
embora já constituídos, estão sendo reinventados, como o turismo paisagístico e o turismo
étnico. Apesar de o Brasil, conforme Pedroso (2011), ter um público homossexual que já
ultrapassa 16 milhões de pessoas, a exploração no Brasil desse segmento turístico é recente.
Um erro comum, conforme Trigo (2009) é a confusão que se faz entre o turismo
voltado para o público GLS (gays, lésbicas e simpatizantes, sigla anterior à denominação
LGBT) e o turismo sexual. Para tratar essa questão, inicialmente se faz necessário entender o
que é o turismo sexual, pois a própria definição de turismo sexual é controversa entre
estudiosos do tema. Rodrigues (2013, p.52) classifica turismo sexual como “aquele que visa a
satisfação sexual do turista no país de destino, estando intimamente ligado à prostituição”. Por
sua vez, Barretto (2005) argumenta que existe um tipo de turismo sexual, que pode ser
rastreado até pelo menos o século XVII, que não configura prostituição, pois não está
relacionado com retribuição pecuniária. Já Silva (2007) aponta a relação do chamado turismo
sexual com atividades criminosas, previstas na legislação brasileira, como o tráfico de
mulheres e a exploração sexual de crianças e adolescentes. Há ainda, conforme adverte Trigo
(2009), um risco em se generalizar exageradamente o conceito de turismo sexual, pois assim
poderíamos, por exemplo, incluir nesse conceito as viagens em lua de mel. Esse autor defende
que o sexo pode ser uma motivação importante no entretenimento e nas viagens, mas se não é
a única, não deve ser considerado turismo sexual. Entendendo que vivemos em um Estado
democrático, a atuação das esferas de governo deve se dar na proteção da lei e dos direitos
individuais, não cabe a um Estado democrático e laico tutelar o comportamento dos
indivíduos com base em princípios morais ou religiosos de alguns segmentos da sociedade
que ele representa. Desse modo, tendo em vista que a prostituição não é crime no país quando
praticada por maiores de 18 anos, não caberia ao Estado intervir na decisão de pessoas que já
alcançaram a maioridade de praticarem sexo por livre e espontânea vontade, e isso independe
da nacionalidade dos envolvidos e de algum dos envolvidos estar recebendo por isso. Assim,
quando se fala em combate ao turismo sexual, deve-se ter em conta práticas criminosas como
as que se refere Silva (2007).
Tendo observado algumas definições sobre turismo sexual, pode-se perceber que a
vinculação do segmento de turismo LGBT a essa pratica revela, qualquer que seja o
entendimento sobre turismo sexual, uma visão, ainda que inadvertidamente, um tanto
preconceituosa, colocando o público LGBT inapelavelmente na condição de promíscuo ou
pior ainda, associando a homossexualidade à pedofilia ou ao crime organizado.
Aparentemente tal associação não vislumbra, por exemplo, a possibilidade da formação de
uma família homoafetiva em que os cônjuges se interessem por conhecer lugares onde possam
ficar a vontade, em um contexto onde possam estar integrados sem atrair a atenção das outras
pessoas em virtude de sua orientação sexual. Trigo (2009) assevera que o turismo sexual
acontece de forma específica e independe da orientação sexual de seus participantes, visão
que é respaldada por Silva (2013) que afirma que mesmo com o estigma associado à
homossexualidade, a mídia em geral ainda não identifica recorrentemente os homens
homossexuais como turistas sexuais.
Com relação aos interesses do público LGBT, conforme Pedroso (2011) esse público
busca locais onde possam mostrar afetividade sem qualquer consequência ou represália. Esse
autor também destaca que os gays dão preferência a eventos mais urbanizados e à noites
badaladas, viajando geralmente com o parceiro ou em um grupo de amigos. Eles gastam
muito programando suas viagens com produtos e serviços de qualidade, e em sua maioria
pagam pra inserir atividades extras de lazer com a presença guia turístico e assistência
completa por todo o percurso (PEDROSO, 2011). Para Trigo (2009) as características do
público GLS são mais ligadas à cultura, artes, esportes e meio ambiente. No que concerne ao
potencial do turismo LGBT, Pedroso (2011) afirma que algumas cidades, percebendo a
rentabilidade desse segmento turístico, investiram nele e obtiveram resultados significativos,
mas, por outro lado, Trigo (2009) considera um mito a afirmação de que o segmento GLS
tenha maior poder aquisitivo, mas identifica como diferencial o fato de que, em geral, os
turistas gays não casam e não têm filhos, o que lhes garante um orçamento mais disponível
para atividades de lazer, e evidentemente, lembra Trigo (2009), os gays com maior poder
aquisitivo provocam um impacto significativo nos gastos com produtos e serviços sofisticados
ou supérfluos.
Apesar de todas as conquistas do movimento LGBT ao longo das últimas décadas,
ainda há muito que se fazer para superar a visão preconceituosa com relação ao turista LGBT
de maneira específica, e ao público LGBT de maneira geral. Silva (2013) identifica tal visão
mesmo entre os que promovem esse segmento do turismo, pois ela afirma que o turismo
homoafetivo tem sido incentivado “como alternativa “saudável” e menos “nociva” do que o
turismo sexual heteronormativo” (SILVA, 2013, p. 187). A superação dessa visão
preconceituosa, infelizmente ainda muito presente em setores mais conservadores de nossa
sociedade, se faz necessária para que possamos, não somente usufruir dos benefícios
econômicos gerados pelo turismo LGBT ou por qualquer outra atividade relacionada à esse
público, mas principalmente para que possamos viver plenamente nossa ainda jovem
democracia com toda a liberdade e o respeito às diferenças que ela exige.

2. Desenvolvimento do Turismo LGBT

O desafio do desenvolvimento do turismo LGBT surge como uma marca de um novo


tempo. Um tempo marcado por inúmeros problemas, mas também por maior abertura, por
mais democracia e liberdade, pelo respeito às diferenças e pela valorização da diversidade. É
bem verdade que tais conquistas ainda não estão solidificadas, e ainda são questionadas e
sofrem certa resistência de determinadas setores da sociedade, mas é fato que tal desafio surge
como algo impensável de ser discutido na época de nossos avós. Santos e Mariani (2009)
atestam que o turismo voltado para o público LGBT é uma atividade relativamente nova, e
que o principal fator que fez com que essa tal atividade começasse a ser explorada foi o
reconhecimento da comunidade LGBT como um grupo social. Segundo Pedroso (2011) a
primeira viagem de um navio cruzeiro voltado especificamente para o público LGBT ocorreu
em 1986, promovida pela empresa Olivia Cruses, que na ocasião fretou um navio somente
para as mulheres, numa programação de quatro noites pela Bahamas. Em 2011 essa empresa
contava em seu currículo com mais de cinquenta excursões desse tipo pelo mundo e já havia
atendido uma demanda de quase 30.000 clientes. Já a primeira agência voltada ao público
GLS, de acordo com Santos e Mariani (2009), foi a RSVP Travel Productions, fundada em
1992 em Minneapolis, nos Estados Unidos. Ainda de acordo com esses autores, no Brasil esta
iniciativa se iniciou em 1998, em São Paulo, com a agência Álibi Turismo que se tornou uma
referência no mercado brasileiro pelo sucesso com a comunidade de gays e lésbicas.
De acordo com a Organização Mundial do Turismo (OMT apud BRASIL, 2015)
enquanto o mercado mundial cresce a uma taxa anual de 3,8%, o segmento turismo LGBT
avança a 10,3%. O público LGBT representa 10% dos viajantes e movimenta 15% do
faturamento do setor (BRASIL, 2015). Nos Estados Unidos, segundo Pedroso (2011), esse
tipo de turismo movimenta cerca de 50 bilhões de dólares por ano. São Paulo e Rio de Janeiro
são consideradas as capitais gays da América do Sul porque oferecem várias opções de
entretenimento e lazer para esse público e têm um menor grau de preconceito contra essas
pessoas, mas Recife também vem se destacando como opção para o turismo LGBT no Brasil
(PEDROSO, 2011). Por seu turno Trigo (2009) destaca uma pesquisa publicada pelo canal de
televisão MTV sobre o comportamento dos jovens e adolescentes e que buscou identificar a
cidade mais liberal do Brasil, para efeito de segmentação comercial e de programação.
Contrariando o senso comum, que apontaria naturalmente para São Paulo ou Rio de Janeiro, a
cidade mais liberal apontada pela pesquisa foi Porto Alegre, que se mostrou liberal em todos
os sentidos, não apenas no sexual.
O termo “gay friendly”, que tem como tradução literal “amigável ao gay”, vem sendo
utilizado, segundo Santos e Mariani (2009), para classificar lugares onde há uma
concentração da comunidade LGBT, como em áreas residenciais e comerciais livres de
preconceitos, onde eles são bem vindos e se sentem à vontade. De acordo com Johnson (apud
SANTOS e MARIANI, 2009) o que define uma empresa como gay friendly são fatores como
as políticas adotadas, as propagandas por ela veiculadas com gays e lésbicas, e a venda de
produtos voltados para essa comunidade.
Com relação aos estabelecimentos voltados para o setor LGBT, Pedroso (2011)
destacava o único hotel recém-inaugurado no Brasil, o Absolut Resort, na praia de Lagoinha, a
50 minutos de Fortaleza, no Ceará com várias opções de entretenimento e lazer diretamente
voltado ao público LGBT. No exterior, esse tipo de resort é bem comum, em Fourt
Laurderdale, nos Estados Unidos, existe cerca de 30 hotéis direcionados ao mercado LGBT.
Há também, em outras cidades dos Estados Unidos estabelecimentos que se especializaram
em somente aceitar gays e lésbicas, como o Hotel Timberfell Lodge, no estado do Tennessee,
voltado somente para os homens, e o Hotel Queen of Hearts, em Palm Springs, Califórnia
voltado para as mulheres com programações específicas do gênero. Ao redor do mundo há
também localidades que conquistaram notoriedade entre os gays e as lésbicas. Nesta categoria
estão a ilha grega de Mykonos e a ilha de Ibiza, na Espanha. No México há um trecho de praia
considerado predominantemente gay em Acapulco e Puerto Vallarta. Em Sydney, na
Austrália, são promovidos dois eventos ao ano com milhares de visitantes e residentes que é o
Mardi Gras Gay e o Gay Games, que é uma espécie de olimpíadas para esse público
(PEDROSO, 2011).

3. Desafios da Promoção do Turismo LGBT

O desenvolvimento do segmento turístico LGBT e, consequentemente, de destinos


turísticos preparados para receber esse segmento se revela como necessidade pois, conforme
Pedroso (2011), o turista LGBT, para evitar qualquer tipo de constrangimento, deve pesquisar
sobre a localidade visitada e, se for o caso, se adaptar ao comportamento local visto que, por
exemplo, em países muçulmanos a homossexualidade é considerada crime, no Egito a troca
de carícias em público pode levar à prisão e em países asiáticos como a China é comum ver
dois homens andando de mãos dadas sem qualquer tipo de conotação sexual (PEDROSO,
2011). Além dos problemas que essas situações podem causar, há também os
constrangimentos cotidianos para os gays, especialmente para os travestis e transexuais que
viajam, como o relatado por Ramos (2013) quando viaja de avião e o funcionário que verifica
o nome dificilmente consegue disfarçar o desconforto com a situação, e enquanto alguns deles
ficam sem ação, outros são desrespeitosos.
Para lidar com os desafios, os preconceitos e para buscar os seus direitos, o publico
gay, e mais amplamente a comunidade LGBT como um todo, precisaram construir uma
identidade homossexual. De acordo com Louro (2001) na construção dessa identidade, a
comunidade funciona como uma espécie de lar, no sentido de ser o lugar da acolhida e do
suporte, mas para fazer parte da comunidade homossexual, seria indispensável que o
indivíduo tornasse pública a sua condição, assumindo sua orientação sexual. A construção
dessa identidade homossexual, e da comunidade LGBT fez com que esse segmento se
fortalecesse e fosse, cada vez mais, percebido inclusive pelo mercado. Assim, algumas
empresas, estabelecimentos comerciais e até mesmo alguns destinos turísticos se propuseram
a atender adequadamente, e às vezes especialmente ou até exclusivamente o público LGBT,
recebendo a denominação gay friendly, como vimos na seção anterior.
Se por um lado, os estabelecimentos denominados gay friendly proporcionam alguma
segurança e liberdade para visitantes homoafetivos, por outro podem servir para oficializar o
chamado “gueto”, delimitando o espaço ocupado por essas pessoas, segregando os
homossexuais em vez de promover a diversidade e democratizar o espaço público. Falando
sobre urbanismo, Barbosa e Pimentel (2011) afirmam que a tomada de posse do ambiente
natural e humano pelas forças técnicas da economia capitalista que, ao desenvolver sua lógica
de dominação, refaz a totalidade do espaço como seu próprio cenário, estratégias que podem
ser observados como técnica de separação. Assim, o próprio sistema adapta o ambiente para
seus interesses, mas não como técnica de integração e sim de segregação, o que é corroborado
por Costa (2011) ao advertir que mesmo em cidades onde há grandes áreas que se configuram
de forma evidente em circuitos homoeróticos, isso pode apontar para um jogo de preconceitos
e diferenciações complexos e não para a democratização do espaço público. Em um estudo
sobre travestis, Barbosa e Pimentel (2011) argumentam que dependendo do território onde se
encontra, seus corpos podem ser aceitos, tolerados ou rejeitados. A travesti pode estar no
centro das relações de poder, correspondendo ao padrão físico esperado, ou na periferia dessas
relações, sendo motivo de chacotas, gargalhadas, insultos e até atos violentos. De acordo com
Costa (2011) as interações sociais homoafetivas e/ou homoeróticas acabam ocorrendo ou em
espaços mais vazios durante a noite, como parques e praças ou em lugares de consumo
destinados exclusivamente a tais interações, em que se exerce, a exemplo do que ocorre em
“guetos”, a liberdade vigiada.
Apesar de as fronteiras entre os diversos grupos sociais se tornarem cada vez mais
porosas, adverte Trigo (2009), não significa dizer que a homofobia e os preconceitos se
extinguiram. Em qualquer sociedade democrática é necessário manter instrumentos de
cidadania para aumentar o grau de conscientização das pessoas e informar que a diversidade é
normal e pode ser salutar, desde que haja respeito entre os diversos grupos e indivíduos
(TRIGO, 2009). Ao que parece, a sociedade não tem tido o sucesso desejado na manutenção
de tais instrumentos, pois conforme alerta Costa (2011) as homoafetividades ainda são
repudiadas em espaço público do mesmo modo que são negados aos homossexuais alguns
mecanismos condizentes a cidadania e aos benefícios sociais. Barbosa e Pimentel (2011)
relatam que a urbe, apesar de ser historicamente considerada o lugar da diversidade, vem se
tornando menos tolerante, o que pode ser observado com um olhar atento no próprio
comportamento dos cidadãos que evidenciam a perda da capacidade de abrigar diferenças,
materializada na forma de organização dos espaços urbanos. A visibilidade conquistada pelo
público LGBT, alerta Louro (2001), torna mais explícita e acirrada a luta entre esse público e
os grupos conservadores e apresenta efeitos contraditórios uma vez que, por um lado, alguns
setores sociais passam a demonstrar uma crescente aceitação da pluralidade sexual, até
mesmo consumindo alguns de seus produtos culturais, no entanto, por outro lado setores
tradicionais endurecem seus ataques, realizando desde campanhas de retomada dos valores
tradicionais da família até manifestações de extrema agressão e violência física. Nesse
contexto, deve-se observar com muita preocupação o avanço dos discursos conservadores que
vêm ganhando cada vez mais espaço, inclusive nas redes sociais, entre os jovens e entre
alguns movimentos políticos, muitas vezes alimentados por boa parcela da mídia
sensacionalista e conquistando espaços cada vez mais numerosos no campo político em todas
as esferas de governo. Na medida em que a divisão do espaço público passa a ser considerada
inaceitável, a violência tende a se tornar um recurso justificável, pois como afirmam Barbosa
e Pimentel (2011), o poder do “grupo dominante” decide o que é justo ou não na sociedade e
nos outros grupos. Sob a justificativa de que se deve manter a ordem moral que harmoniza a
sociedade o uso da violência, tanto simbólica quanto física, passa a ser legitimado como
recurso de controle e até mesmo com a finalidade de garantir a “limpeza social”. O
surgimento de ódios e perseguições às pessoas por motivos étnicos, religiosos, culturais, de
origem ou de orientação sexual, segundo Trigo (2009), têm origem no medo perante o
desconhecido, aliado à cobiça e ao egoísmo. Esse medo do desconhecido, de acordo com o
referido autor, advém da ignorância sobre o mundo e sobre si mesmo, que gera desconfiança e
ressentimento. Quanto mais se conhece algo ou alguém, menos se tem medo ou preconceito, e
o turismo pode exercer um papel importante nesse sentido (TRIGO, 2009). Pode-se então
aferir que, se por um lado, o segmento LGBT tem muito a contribuir para o desenvolvimento
do turismo, por outro lado, o turismo pode contribuir para um maior conhecimento sobre o
segmento LGBT e, consequentemente, ajudar a promover a inclusão e a cidadania e a
derrubar preconceitos.

4. História da Promoção do Turismo no Brasil

A propaganda tem um elevado grau de importância para o turismo, pois segundo


Santos e Castro (2008) ela leva informações persuasivas sobre um destino turístico aos mais
diversos núcleos emissores de turistas, mas esses autores atentam para o fato de que
estratégias de comunicação fora de parâmetros éticos podem ter consequências indesejadas
seja por empresários, governos, comunidades receptoras e pelo próprio turista. Muito se
critica a propaganda turística brasileira encampada pela EMBRATUR até os anos 1990. Para
Oliveira e Salviato-Silva (2011) a EMBRATUR contribuiu de maneira contundente para a
fixação de uma imagem estereotipada do Brasil e sua gente, e a apresentação de mulheres em
trajes íntimos, demonstrando alegria e sensualidade, em um cenário paradisíaco foi uma das
bases do pressuposto existente em várias partes do planeta com relação à suposta libertinagem
existente no país e certamente contribuiu para o crescimento do turismo sexual. Anselmo Gois
(2012) destacou um vídeo exibido pela Riotur, voltado ao público LGBT, gerou comparações
com os antigos comerciais da EMBRATUR que buscavam atrair turistas exibindo bumbuns
de mulheres nas praias.
A partir dos anos 1990 começa a haver uma preocupação com a imagem do Brasil que
é propagada no exterior. Oliveira e Salviato-Silva (2011) destacam que a realização da ECO
92, conferência sobre meio ambiente realizada em 1992 no Rio de Janeiro, fez com que se
priorizasse a divulgação da região amazônica e do Pantanal, enfatizando os aspectos
ecológicos que passaram a ser considerados importantes atrativos. Também tem inicio a
preocupação com o turismo sexual e com a exploração sexual de crianças e adolescentes,
demonstrado, especialmente, pela criação, em 1997, do Programa de Combate à Exploração
do Turismo Sexual Infanto-Juvenil, com intensa divulgação internacional. Era o início da
rejeição ao rótulo da sensualidade e do sexo fácil, mas há que se considerar que os
estereótipos anteriormente alardeados ainda estão presentes no imaginário das pessoas e na
propaganda de vários estabelecimentos (OLIVEIRA e SALVIATO-SILVA, 2011). Vale
ressaltar que a divulgação do país como era realizada pela EMBRATUR, não apenas
incentivava o turismo sexual, como também subestimava enormemente todo o potencial
turístico do país e desvalorizava nossa gente, que, indiretamente, era exposta como inferior,
dependente e submissa aos cidadão do primeiro mundo, valorizando uma relação baseada no
estereótipo metrópole/colônia. Pode levar muito tempo para que essa imagem seja desfeita e a
exposição proporcionada pelos grandes eventos realizados no país pode auxiliar nesse
esforço, desde que se tome cuidado e que se tenha permanente vigilância com relação a essa
exposição.
Com relação ao público LGBT, de acordo com Trigo (2009), o setor de viagens e
turismo foi precedido pela expansão de entretenimento segmentado, com o surgimento, na
década de 1980, de bares, boates e espaços destinados ao público gay nos grandes centros do
país, pois até aquele momento este segmento vivia marginalizado na escuridão das praças e
banheiros públicos, cinemas e hotéis ordinários, mas foi conquistando o seu espeço na mídia,
tornou-se socialmente mais aceitável e conquistou poder econômico e político. Trigo (2009)
também destaca algumas lutas recentes pelas quais passou o movimento homossexual no
Brasil, como a descriminalização da prática homossexual, marcada pela retirada do Código
Penal de referências à sodomia, uranismo ou pederastia, termos ofensivos que estigmatizavam
as comunidades homossexuais. No contexto internacional, foi a retirada da homossexualidade
como doença da Associação Americana de Psiquiatria (1973) e do Código Internacional de
Doenças (CID). A Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde da ONU retirou, em
17 de maio de 1990, a homossexualidade de sua lista de doenças mentais declarando que ela
não constitui doença, distúrbio ou perversão. Desse modo, o segmento gay surge no contexto
maior dos avanços que caracterizam o final do século XX com relação à cidadania, liberdade
individual e pluralismo democrático. O setor de viagens e turismo é apenas uma das inúmeras
possibilidades em que a população LGBT pode exercer seu poder de escolha (TRIGO 2009).
Para Louro (2001) a denominação de “minorias” sexuais parece imprópria, como
aparentemente o termo pode ser impróprio para muitas situações, visto que, muitas vezes não
se trata de inferioridade numérica, mas de maiorias silenciosas, que quando se politizam,
transforma o gueto em território e o estigma em orgulho. A Ascensão desse segmento
certamente fez o mercado e alguns destinos turísticos perceberem uma grande oportunidade.

5. Promoção do Turismo LGBT na Atualidade

Na visão de Santos e Castro (2008), a propaganda tem um elevado grau de


importância para o turismo porque leva informações persuasivas sobre um destino turístico,
aos mais diversos núcleos emissores de turistas, entretanto, as estratégias de comunicação
presentes nas campanhas publicitárias, em especial fora de parâmetros éticos, podem ter
consequências indesejadas, seja pelos seus promotores, que podem ser empresários ou
governos, seja pela comunidade receptora de tal fluxo ou pelo próprio turista. Devido a isso,
deve-se ter muito cuidado ao promover determinado destino como gay friendly. Temos
cidades com o perfil gay friendly ou guetos em determinadas cidades? Esse questionamento
deve ser levado em consideração ao se promover um destino turístico para o segmento LGBT.
O turismo LGBT é, necessariamente, revolucionário e inovador porque rompe o paradigma do
esquema binário que orienta as mentes mais conservadoras e que, segundo Silva e Ornat
(2011) é anterior à própria categorização de gênero, como nas orientações metafísicas de céu
e inferno, ou ainda nas noções mais básicas de bem e mal, em cima e embaixo, superior e
inferior, ativo e passivo etc.
Embora segmentos diversos da sociedade atribuam sentidos distintos aos
homossexuais e às suas práticas, Louro (2001) argumenta que enquanto alguns desses
segmentos assinalam o caráter desviante, a anormalidade ou a inferioridade do homossexual,
existem outros segmentos que proclamam sua naturalidade e normalidade, entretanto todos
parecem estar de acordo de que se trata de um “tipo” humano distintivo (LOURO, 2001). Tal
argumento reforça a ideia da construção de uma identidade gay a qual nos referimos
anteriormente e que impulsionou a visibilidade e muitas conquistas da comunidade LGBT. A
consolidação, o crescimento e a visibilidade dessa comunidade tornaram viável e atraente o
investimento de vários setores da economia em produtos e serviços especialmente pensados
para esses consumidores. O turismo é apenas uma dessas possibilidades.
Atenta a essa oportunidade, a EMBRATUR tem buscado promover o Brasil como
destino LGBT. Brasília tem sua arquitetura, o turismo cívico e a parada de Orgulho LGBTs,
que é o maior ato de direitos humanos da região. Belo Horizonte, que é a terceira cidade
brasileira com mais estabelecimentos voltados ao segmento LGBT, tem sido mostrada como
cidade moderna, com várias opções para visitas, tais como o Circuito Cultural Praça da
Liberdade. O Rio de Janeiro, que aparece como um dos destinos mais desejados pelo
segmento, sendo, inclusive, vencedor de muitas pesquisas nesse segmento, é evidenciado
pelas belezas naturais, diversidade cultural e identificado como segundo maior roteiro LGBT
do País (BRASIL, 2015).
A EMBRATUR tem desenvolvido a promoção internacional do segmento LGBT
baseada em dois eixos: (1) participação em feiras e eventos internacionais, como a
Conferência Anual da International Gay and Lesbian Tourism Association (IGLTA); e (2) no
apoio à estruturação do trade que opera o receptivo no Brasil, uma parceria com a Associação
Brasileira de Turismo para Gays, Lésbicas e Simpatizantes (ABRAT-GLS), associação que
lidera o segmento no mercado turístico brasileiro (BRASIL, 2015).
No que se refere ao setor privado, Azevedo et al (2012) afirma que algumas empresas
buscam simplesmente mostrar que estão presentes nesse segmento, a Fnac, do ramo da
tecnologia, por exemplo, faz anúncios sobra a Parada LGBT em São Paulo, que é apontada
como a maior parada LGBT do mundo. Azevedo et al (2012) também relatam um treinamento
especifico, realizado em junho de 2007, pela São Paulo Convention &Visitors Bureau, para
recepcionistas e concierges da rede hoteleira da capital paulista, para qualificar o atendimento
ao público LGBT, o tema do treinamento foi “Sensibilizando para a Diversidade – Turismo
GLS” e foram dadas instruções práticas para evitar constrangimentos a esse perfil de cliente
(AZEVEDO et al, 2012).

6. Considerações Finais
 
O turismo LGBT se depara com muitos desafios, sendo a maioria deles originários de
preconceitos contra os homossexuais e suas práticas. No Brasil, apesar dos avanços
conquistados por esse segmento, a ascensão dos discursos e ideais conservadores tem tornado
esse embate mais tenso, especialmente à medida que tais discursos vão ganhando espaços
entre jovens e nas redes sociais. Enquanto público receptor, o brasileiro costuma ser lembrado
por sua alegria e hospitalidade no trato com o turista estrangeiro. Essa marca que muito ajuda
a fazer com que turistas retornem e, principalmente, indiquem o Brasil como destino para seus
parentes e amigos, também precisa estar presente no trato com o turista LGBT.
A promoção do Turismo LGBT pode representar, inegavelmente, excelente
oportunidade do ponto de vista econômico, mas saber conviver com as diferenças e, acima de
tudo, respeitá-las, pode representar um ganho inestimável do ponto de vista social e político, e
o turismo pode ser um bom caminho para estabelecer relações, aproximar pessoas e
desmistificar estereótipos, combatendo, na prática, muitos preconceitos.
O desenvolvimento de destinos turísticos e estabelecimentos denominados gay
friendly buscam proporcionar um atendimento especializado para esse segmento, fornecendo
espaços para que essas pessoas possam se sentir mais seguras e livres do julgamento, dos
olhares e comentários dos outros, todavia também pode acabar por oficializar “guetos” e,
assim, em vez de promover a inclusão, acentuar a segregação. Há também que se relativizar
determinadas afirmações quando se trata de destinos turísticos. Será que nas cidades que são
conhecidas como gay friendly os gays estão seguros circularem livremente ou apenas dentro
dos espaços desenvolvidos por essas cidades para essa finalidade, formando, desse modo,
guetos homossexuais? Se essa questão não estiver clara para o turista a segurança dele poderá
estar ameaçada e, por consequência, o próprio desenvolvimento do destino como receptor de
turistas LGBT.
O preconceito contra o turista LGBT se manifesta, ainda que involuntariamente, pela
associação que se faz entre o turismo voltado para o segmento LGBT e o turismo sexual. A
desinformação quanto a essa questão é particularmente desafiadora para quem busca
desenvolver esse segmento turístico. O turismo sexual pode ser praticado por qualquer pessoa
independente de sua orientação sexual. O sexo pode ser um atrativo em qualquer viagem, de
qualquer pessoa, mas não necessariamente é a única, nem a principal motivação. O turismo
LGBT é planejado para atender os interesses comuns desse público, que entre outras coisas
costuma valorizar cultura, artes e esportes, e também para proporcionar ambientes nos quais
eles não sofram constrangimentos ou retaliações por sua orientação sexual ou por estar na
companhia de seus parceiros ou cônjuges.
O desafio da promoção do Turismo LGBT no Brasil deve ser enfrentado com muita
responsabilidade e com um planejamento muito bem elaborado. Na promoção do destino para
esse público, o foco não deve estar em corpos seminus, pois já se cometeu esse erro na
promoção do país no exterior, construindo uma imagem negativa do país. Como se procurou
demonstrar ao longo de todo esse estudo, turismo LGBT não é turismo sexual, e se nem as
pessoas que promovem o turismo LGBT entenderem isso, o desafio de romper as barreiras do
preconceito, que já é grande, adquire proporções gigantescas. O foco deve estar nas atrações
oferecidas para esse público, bem como nos espaços preparados para recebê-los com a
atenção, a dedicação e o respeito que essas pessoas merecem.
No que concerne ao planejamento, ele deve ser minuciosamente elaborado de modo
buscar o atendimento, e, se possível, a superação das expectativas desses turistas, com todo o
cuidado para impedir que ele sofra qualquer tipo de constrangimento. Assim, deve ser dada
toda a atenção ao treinamento e a preparação de todas as pessoas que irão interagir
diretamente com esse público. A escolha das atrações e dos serviços a serem oferecidos deve
ser feita também com esse cuidado. Em um sentido mais amplo, a informação costuma ser um
bom remédio para combater o preconceito. Desse modo, campanhas públicas poderiam
favorecer o combate ao preconceito e às resistências ao desenvolvimento desse segmento
turístico.  
7. Referências

AZEVEDO, Maurício Sanitá; MARTINS, Cibele Barsalini; NÁDIA, Pizzinatto Kassouf;


FARAH, Osvaldo Elias. Segmentação no Setor Turístico: o turista LGBT de São Paulo. ReA
UFSM - Revista de Administração da UFSM. Santa Maria-RS: Universidade Federal de Santa
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BARBOSA, Ana Carolina Santos; PIMENTEL, Ivan Ignácio. Dos dias de Glória aos Dias da
Glória: a Questão da Prostituição de Travestis na Avenida Augusto Severo. IN: RIBEIRO,
Miguel Ângelo; OLIVEIRA, Rafael da Silva (orgs.). Território, sexo e prazer: olhares sobre o
fenômeno da prostituição na geografia brasileira. Rio de Janeiro: Gramma, 2011.

BARRETTO, Margarita. Prefácio IN. BEM, Arim Soares do. Dialética do Turismo Sexual.
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______. Manual de Iniciação ao estudo do Turismo. 20ed. Campinas/SP: Papirus, 2012


(Coleção Turismo)

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COSTA, Benhur Pinós da. Espaço Urbano, Cotidiano, Cultura e Espaços de Proximidade: o
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RIBEIRO, Miguel Ângelo; OLIVEIRA, Rafael da Silva (orgs.). Território, sexo e prazer:
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LOURO, Guaciara Lopes. Teoria Queer – Uma Política Pós-identitária para a Educação.
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Mercado Turístico: estudos, produtos e perspectivas. Barueri/SP: Manole, 2009.
1

Administração Política em Sala de Aula:


Estímulo, Experiência e Expectativas
Leonardo Braga1
Mansur Miranda2

Resumo
Este artigo relata a experiência em sala de aula do tratamento da disciplina de Ciência Política
em Curso de Administração a partir do conceito de Administração Política. Escrito em
coautoria, o texto conta com os testemunhos de professor e de aluno no que foi o processo de
ensino-aprendizagem a partir de suas motivações, experiência e expectativas. A percepção é
da dificuldade em relacionar administração e política numa plataforma acadêmica que
vislumbre atividade profissional crítica e humanista, seja por parte do professor seja, do
aluno. O relato conta com as etapas de investigação sobre o tema, da elaboração do conteúdo
programático e do plano de curso, da experiência das aulas e das avaliações e com suas
dificuldades e apostas a fim de promover a formação do senso crítico sobre o conceito e a
prática da Administração.

Este artigo é resultado da análise da aplicação de conteúdo programático inédito para a


disciplina de Ciência Política no Curso de Administração em Centro Universitário de
Niterói/RJ, no ano de 2015, cujo tema volta-se para a Administração Política. Assim, este
artigo retrata brevemente as motivações para elaboração do programa da disciplina e a
experiência em sala de aula e projeta expectativas para revisão mesma de sua nova aplicação.
Nessas condições, ainda, o artigo conta com duas vozes: professor e aluno, ambos como
desafiados e desafiadores na produção de conhecimento em sala de aula que os favoreçam a
problematizar administração e política como conteúdo de formação acadêmica substantiva e
de orientação para atuação profissional crítica. Ainda, os objetivos do artigo orientam-se por
suscitar debate epistemológico e metodológico acerca do ensino de Ciência Política em
Administração, problematizar a experiência de ensino-aprendizagem em sala de aula e
possibilitar correção de rumos para experiências vindouras.
Durante cinco semestres, o conteúdo da disciplina aplicado pelo professor aos alunos de 8º
período do Curso de Administração causava inquietude. O trabalho realizado em sala de aula
tinha por referência a perspectiva tradicional da disciplina de Ciência Política de modo
informalmente otimizado para os vários cursos e programas que conhecemos. Assim, seu
tema versava sobre o Estado, as formas de governo e estudo biográfico sobre os principais
pensadores do tema – Montesquieu, Hobbes, Rousseau entre outros. Tal incômodo talvez se
desse por conta da formação do professor: como mestre e bacharel em Relações

1
Mestre e Bacharel em Relações Internacionais. Professor do UniLaSalle/RJ nos Cursos de Relações Internacionais e de
Administração.
2
Bacharelando de 8º período no Curso de Administração do UniLaSalle/RJ.
2

Internacionais havia pouco conforto em lecionar sobre conteúdo com talvez “pouca
aderência” para o aluno de Administração. Isso, então, impactava em como o professor
considerava legítima sua presença em sala de aula.
A partir dos esforços de pesquisa por parte do professor para melhor adequar o conteúdo da
disciplina às razões de ser do Curso foi identificado o tema da Administração Política e a
contribuição de Ribeiro (2006) ainda no final da década de 1960 na Escola de Administração
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A pesquisa levou a contribuições mais recentes a
partir dos anos 2000, de modo mais contundente, e favoreceu a elaboração do material para a
disciplina. Em sala de aula, na instituição de ensino em que leciona, reflete-se na primeira
experiência de tratamento do tema, enquanto tal, com caráter, naturalmente, experimental.
Com apoio da Coordenação do Curso para adequar o conteúdo de Ciência Política à
Administração, a preparação da disciplina apoiou-se no conceito de Administração Política,
sua definição, suas questões metodológicas e suas implicações para a formação acadêmica e a
atividade profissional do Administrador.
Não é curioso que a investigação sobre o tema sugira a compreensão do significado de
“adequação” acerca da problemática ensino-aprendizagem em relação ao Curso de
Administração, dadas as características da Administração como conhecimento científico e
como prática profissional. Explica-se. Bresser-Pereira (2010), por exemplo, sugere que os
cursos de Administração, por vezes, rotulam-se como que de “Administração de Empresas” e
se esquecem que a atividade precípua da administração está no Estado. Isso procura corrigir
certo rumo tomado pelos Cursos de Administração que indicava o caminho dos negócios e
das empresas como ambiente nato do administrador. De qualquer forma, a consideração de
Bresser Pereira possui ainda recorte tradicional quando apoia na percepção do Estado como
organizador das atividades da sociedade (quase) toda sua carga. Ainda que de elaboração
recente, a perspectiva apresentada que faz diferenciar administração pública de administração
de empresas parece já inadequado aos propósitos da Administração Política.
Ao indicar, Bresser-Pereira, que: “(n) o caso dos administradores de empresas também existe
uma responsabilidade ética, mas ela é contraditória, porque seu critério principal de êxito não
é o bem público, mas a expansão e o lucro da empresa” (BRESSER-PEREIRA, 2010, p.4,
grifos nossos) e “mais do que um processo de tomada de decisões, a administração pública é
uma parte constitutiva do estado; a administração de empresas é apenas um processo. E,
enquanto processo, seus objetivos ou critérios de excelência são muito diferentes”
(BRESSER-PEREIRA, 2010, p.4, grifos nossos) demarca o autor linha divisória entre saberes
que, em verdade, convergem na discussão da Administração Política. Esta última, como
delimitação conceitual, ganha sentido ao promover entendimento abrangente e
transdisciplinar sobre administração de modo a favorecer a emergência de epistemologia
complexa, porque dialógica e hologramática (CARDODO & SERRALVO, 2009) e a tornar
“necessária uma outra forma de conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo que
não nos separa e antes que nos una pessoalmente ao que estudamos” (SANTOS apud
SANTOS et al, 2011, p.3). Ainda, ressalta-se a perspectiva de visão transdisciplinar para
“buscar novas posturas epistemológicas e metodológicas que não sejam apenas justaposição
de ideias e métodos, mas uma tentativa na busca de insights e abordagens múltiplas que
possam dar conta da essência dos fenômenos da área” (CARDOSO & SERRALVO, 2009,
p.1). O que se quer dizer é que a divisão da Administração como Pública e Privada (de
empresas) orienta a compreensão do conceito para considerações epistemológicas e
metodológicas divergentes. Assim, a administração pública cuida dos negócios do Estado e a
de empresas, dos lucros privados. Como pensar duas formações para uma atividade que
engloba a sociedade e seus indivíduos?
3

A sugestão é de que é preciso repensar Administração em duas direções. Em primeiro, e mais


avançada no tempo, considera-se que a contribuição da Administração Política não é decidir-
se entre o público e o privado, mas compreender-se como conhecimento que comunga o
espaço de interação política – não exclusivamente do Estado ou da administração pública –
com aquele da gestão de empresas – não exclusivamente voltado para seu interior excludente,
mas carregado do que de político há nas interações intra e interempresariais, especialmente a
partir daquilo que lhe é político e, porque político, humano. Em segundo, a consideração do
que há de político em nós, sujeitos de ação, e porque político, humano, direciona-nos a
conceber a Administração como conhecimento que relaciona partes no todo do corpo político-
social do Estado de modo que pensar Administração implica pensar gestão político-social e
econômica da sociedade em que vivemos. Assim,
(...) (n)ão podemos limitar os estudos da Administração Política aos pressupostos
dominantes do pensamento da Administração, propostos inicialmente por Taylor e
Fayol e prosseguidos por Peter Drucker, Henry Mintzberg, Michael Porter e outros.
A Administração Política, enquanto campo do conhecimento trata da gestão das
relações sociais de produção, distribuição e consumo de uma dada sociedade. Deve
incluir em suas análises as diversas ideias políticas. As ideias não são apenas um
reflexo passivo de interesses ou ambições pessoais, elas têm a capacidade de inspirar
e guiar a própria ação política e, assim, moldar a vida material (SANTOS;
SANTANA; PIAU, 2011, p.4).

Essa também parece ser a apreensão por parte dos alunos. Muitas vezes, é vendida para os
formandos e jovens que estão em dúvida sobre qual curso superior escolher uma ideia
distorcida do futuro profissional que tem o administrador desempenhado até hoje, quase que
absolutamente relacionada à prática empresarial, exclusivamente. Identificar e investigar o
objeto científico da Administração – a gestão – ajuda este profissional a não se fechar no
círculo rotineiro e desestimulador do objeto de estudo tradicionalmente concebido – a
organização empresarial. Isso favorece o exercício de autocrítica em relação à sua formação
acadêmica e profissional. A partir desta nova perspectiva, era preciso buscar referências que
relacionassem política e administração. A formação em Relações Internacionais pouco
favorecia o professor nesse casamento de modo que foi realizado esforço de pesquisa de
material de referência adequado. Logo, a referência de Santos (2004) foi apresentada, mas,
que até hoje, está esgotada na editora Hucitec. Outras fontes, então, foram procuradas para
investigar o tema e compor referência bibliográfica inicial sobre o assunto. Isso levou, após
pesquisa inicial, a dois grupos de literatura: um específico da administração política e outro
geral concernente aos temas de poder, relação empregado-empregador, capital simbólico entre
outros relacionados ao universo empresarial e da gestão. A etapa seguinte foi realizar leitura
exploratória das quinze referências encontradas e tentar elaborar um plano de curso coerente.
Até então, o que se tinha em mente eram esses dois eixos: o achado de João Ubaldo Ribeiro,
específico da Administração, e a discussão sobre poder, conceito nuclear em Ciência Política.
A leitura exploratória da bibliografia levantada, especialmente, a partir da referência de
Ribeiro (2006) sugeria o estudo da administração política a partir de três discussões: (1) a
suposta incompatibilidade entre ciência social e administração, que evidencia a tensão entre o
social como fruto da especulação (quase) filosófica e o técnico, na figura do administrador;
(2) o fenômeno político como expressão inevitável das relações interpessoais de comando, de
subordinação e de tomada de decisão; e, por fim, (3) a relação íntima, mas nem sempre
percebida entre o administrador e a política no sentido das noções micro e macro de atuação
profissional. Foi a leitura de Ribeiro (2006) que orientou o que viria a ser o programa da
disciplina assim como o plano de curso com as aulas identificadas. Mais especificamente, a
tônica da disciplina esteve, acima de tudo, em contrapor (e depois convergir) a perspectiva
racionalista e técnica da Administração a partir da orientação de Taylor (1911) com os seus
4

Princípios de Administração Científica àquela humanista que considere a condição política


dos homens e suas relações na condução da gestão do Estado e das organizações.
Nessa linha de raciocínio, o programa da disciplina aplicado em sala de aula foi dividido em
três partes: (1) introdução, que corresponde à sensibilização inicial para o debate acerca do
conceito de Administração Política e sua problematização; (2) Administração e a questão do
poder, cujo desenvolvimento considera o conceito de poder como núcleo-duro da Ciência
Política, especialmente, como elemento presente nas relações interpessoais dentro das
organizações em suas mais diversas manifestações; e (3) Administração Política como área do
saber, em que, após perspectiva mais testemunhal das relações de poder e da valorização do
humanismo como perspectiva epistemológica, foi recuperada a discussão sobre como a
Administração Política se compõe como um saber próprio sendo compreendida a partir das
contribuições da Filosofia Política, da Economia Política e da Ciência Política. Embora o
programa da disciplina tenha sido dividido em três partes, elas não são estanques, mas se
relacionam, naturalmente, à medida que os assuntos convergem para a investigação da
administração como conhecimento e como atividade profissional.
Ainda, o programa da disciplina buscou promover os objetivos de: (1) apresentar a discussão
metodológica entre ciências naturais e ciências sociais; (2) introduzir os conceitos de poder e
de política; (3) analisar o poder dentro das organizações; (4) relacionar Administração e
Política; (5) apresentar a evolução histórica do conceito de Administração Política; e (6)
fomentar o senso crítico sobre a atividade do administrador. Dessa forma, a contribuição da
disciplina de Ciência Política no Curso de Administração buscou revestir-se de características
próprias que aproximassem o aluno de seu conteúdo e operacionalizassem, neste último,
conceitos e análises considerados fundamentos na formação acadêmica e na atividade
profissional do Administrador. O plano de curso contou com o total de 23 encontros, dos
quais 21 foram destinados a aulas e 2, a avaliações.
Por parte dos alunos, no primeiro contato com a nomenclatura Administração Política na
disciplina de Ciência Política, provocou-se a dúvida sobre os tópicos que seriam tratados em
sala. De início, a maioria dos alunos acreditou que se trataria de administração pública ou
alguma técnica ou método relacionado à atividade política do Estado e suas manifestações e
organização. Não é de se estranhar que assim fosse, já que era o primeiro trimestre de 2015,
diante da pose da presidente Dilma Rousseff , eleita com pouco mais de 1% dos votos do
segundo candidato, evento que de certa forma dividiu a sociedade brasileira, tornando-se um
período em que a política nacional esteve muito presente na pauta de discussões da sociedade
brasileira.
À parte dessa suposição, a experiência docente foi orientada ao longo do semestre pela leitura
de Ribeiro (2006) com a qual se procurou fazer um corte transversal que conduzisse as
discussões a serem apresentadas. O texto de Ribeiro intitulado Política e Administração
(RIBEIRO, 2006) conta com 30 páginas e situa o debate do tema em três eixos, já citados
anteriormente: a relação entre ciência social e administração, o fenômeno político e a relação
entre o administrador e a política. Este foi o primeiro texto do curso e o pensamento que se
tinha por parte do professor era o de que compreendida esta leitura as que se seguissem teriam
sua dificuldade bastante diminuída. No entanto, dois foram os fatores que prejudicaram tal
expectativa: (1) a “cultura” de que não há aula no primeiro dia de aula, apenas apresentação
da disciplina, que testemunha quórum baixo dos alunos em sala de aula e (2) a dificuldade dos
alunos com a “densidade” do texto. Superado o obstáculo com o primeiro fator, uma vez que
o texto foi apresentado novamente e contou com esquema de apresentação de slides, o que
restou foi a “densidade” do texto. A percepção era a de que os alunos estavam pouco
5

confortáveis em dialogar com Ribeiro (2006) e isso os deixava apreensivos. Dada sequência
com as leituras pensadas a partir do plano de curso e do programa e ainda mais foi
testemunhado o embaraço dos alunos em se relacionar com os textos. Isso deixou claro que
havia pouca cultura de leituras vinculadas a temas da política e de cunho mais humanista e
que a condição da Administração como Ciência Social era frágil nessa experiência.
Por parte dos alunos, a apresentação inicial da disciplina tratou de esclarecer o termo
''política'', suas implicações políticas e filosóficas e, fundamentalmente, marca da condição
humana, as origens do movimento da Administração Política, iniciado na década de 90, na
Bahia, mais especificamente na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e, principalmente, a
leitura da obra Administração e Política (1969), de João Ubaldo Ribeiro sugeriu determinado
mapa cognitivo que os orientasse na projeção daquilo que seria o conjunto das aulas. Aqui,
parecia que Ribeiro mostrava todas as questões que seriam tratadas já no texto introdutório:
(...) caracterizar a Administração como ciência social aplicada, analisando as
implicações políticas de sua prática, com o objetivo de proporcionar ao aluno uma
visão esclarecedora da função social que virá a desempenhar como profissional.
Parece ao autor que a discussão extensiva desse assunto é extremamente importante
para a afirmação da profissão de administrador, para a ampla definição de seu papel
(RIBEIRO, 2006, p.166).

Dessa forma, a leitura introdutória com Ribeiro (2006) forneceu objetivo e clareza no
conteúdo de estudo, mas ao mesmo tempo fez com que perguntas nunca antes feitas pelos
próprios alunos agora fossem questionadas. A apreensão inicial que aos alunos era passada
era a de que estariam envoltos no exercício de refletir sobre se o administrador é um simples
executor de técnicas e métodos para chegar a uma meta ou objetivo empresarial/financeiro
pensado por outrem ou se é um cientista social aplicando as diversas ciências sociais nos
momentos e lugares adequados de modo a promover bem-estar e resultados nas sociedades e
organizações. Isso provocou nos alunos questionamentos acerca de sua formação e atividade
profissional. Qual real função do administrador dentro da sociedade? Como as suas escolhas
irão transformar a realidade do ambiente que está inserido?
Ainda, o conteúdo programático favoreceu reconsiderar o aluno enquanto pesquisador de si
mesmo e de sua atividade, no sentido de se projetar como sujeito ético e indivíduo reflexivo
de modo a repensar a si e a sua formação com espírito investigativo e a se conceber a partir de
perspectiva científica crítica como que numa atitude diante do espelho: avaliar-se e reavaliar-
se. A aposta volta-se para aluno consciente de si e do entorno político e social em que suas
atividades acadêmica e profissional se dão. Ser administrador não implica apenas organizar
burocracia e produção, mas compreender a realidade em que está inserido como agente social.
Nisso, a pesquisa e o processo de ensino-aprendizagem não podem ser neutros, como que
técnicos apenas, mas, devem ir além. Parece pouco importar o Estado como burocracia ou a
empresa como lucratividade. Considera-se, assim, que
(...) essas características de espelho e de processo de construção estão no cerne da
ideia de pesquisa reflexiva. Ao afastar-se da tradição de objetividade e neutralidade
— seja do pesquisador, seja do processo de pesquisa ou do conhecimento gerado —,
a pesquisa reflexiva valoriza a subjetividade e a interpretação como essenciais ao
processo de criação da realidade social (...) (CAMPOS & COSTA, 2007, p.40).

O segundo ponto do programa da disciplina contou com a discussão sobre o poder nas
organizações a fim de investigar esse que é conceito-chave na Ciência Política. Qual não foi a
dificuldade ao tratar do tema a partir das contribuições de Prado & Toneli (2013) sobre
política e sujeitos coletivos e a relação do político como essência e da política como
manifestação; Saraiva & Santos (2011) com a estratégia dos trabalhadores, que inverte a
6

consideração comum sobre poder nas mãos dos empregadores e o passa aos empregados;
Procópio & França Filho (2005) que contrapõem poder simbólico e a poder utilitário nas
organizações; Diniz & Limongi-França (2005) sobre poder e seus controles e influência
interpessoal; Santos Filho (2002) das fontes e dos instrumentos de poder nas organizações;
Migueles (1999) na relação administradores-empregados e sobre capital simbólico; Freddo
(1995) violência simbólica na burocracia; Fischer (1992) sobre poder local como poder nos
espaços de gestão. Essas discussões trouxeram às aulas considerações aplicadas pelos autores
aos seus estudos de pensadores como Foucault, Arendt, Habermas, Bourdieu e Rawls.
Como não se tratavam de textos introdutórios, mas de análise e debate, foi difícil seguir em
sala percebendo a talvez inevitável ausência de conhecimento prévio desses pensadores por
parte dos alunos. Situar os alunos na discussão própria da Ciência Política a partir do conceito
de poder, mesmo que em literatura aplicada à área não foi tarefa simples. Como de fato os
textos eram longos e densos sobrou pouco tempo em sala para utilizar outros recursos
didáticos que favorecessem o processo de ensino-aprendizado. As aulas eram
fundamentalmente expositivas. Em média, um texto de 25 a 30 páginas era dividido em dois
dias de aula, cada dia com 1h40 de aula (as disciplinas de quatro créditos são apresentadas em
dois dias por semana). Ao final de cada etapa, antes das duas avaliações, conseguiu-se
elaborar o que se chamou de “roteiro de leitura”. Tratou-se de uma tabela feita no WORD em
que relacionava numa coluna os autores e em outras os temas, os objetos, os objetivos e os
argumentos de modo a favorecer um estudo esquemático absolutamente reduzido em forma
de “lembrete” sobre o que fora cada um dos textos. Assim, a primeira etapa até a primeira
avaliação contou com nove textos. A proposta do roteiro de leitura era contar com a
participação dos alunos em sala a fim de o construírem junto com o professor. Mas, por
precaução e temendo a pouca participação em sala os campos foram previamente preenchidos
em casa. Na aula destinada a construir o roteiro de leitura com os alunos, e testemunhando sua
dificuldade para sugerir que informações inserir nos campos, o que já havia sido elaborado
pelo professor foi sendo apresentado. Assim, ao invés de construir com os alunos, foram
sendo apresentadas pelo professor sugestões que eram a partir de então colocadas em questão
junto com os alunos a fim de gerar consenso sobre sua validade.
O terceiro ponto do programa apresentou efetivamente a Administração Política como saber.
Aqui, as contribuições utilizadas foram divididas em dois grupos com três autores cada. O
primeiro destinou-se à discussão da Administração Política na perspectiva dos estudos
críticos a partir de Losso (2011) com a revisão epistemológica e praxiológica da
Administração; Campos (2007) e a atitude reflexiva na produção de conhecimento na
Administração; e Cardoso (2009) considerando a epistemologia transdisciplinar da
Administração. O segundo agraciou as contribuições diretas sobre o conceito de
Administração Política a partir de Santos (2001), Gomes (2011) e Santos; Santana & Piau
(2011).
Mais precisamente, os pontos de destaque na literatura envolveram as considerações acerca da
crítica sobre a Administração como atividade profissional e formação acadêmica. O primeiro
passo foi considerar a crítica ao naturalismo nas ciências sociais, de modo geral, e na ciência
política, em particular. A fonte do pós-behaviorismo na década de 1960 foi importante para
repensar como a própria ciência politica concebia seu método de ação no mundo (LOSSO,
2011). Importante era explorar a interpretação dos fenômenos e assim concebê-los a partir de
seu significado e não de outro significado externo. Tal crítica apoiou a compreensão da
Administração como atividade também de reflexão e não apenas de replicação de modos de
organizar e produzir acriticamente. Nessa perspectiva, soma-se a percepção acerca da atitude,
7

novamente, reflexiva do administrador, como aluno e como profissional, de modo a que ele se
projete considerando que:
(...) teorias devem ser avaliadas em termos dos desafios que são capazes de trazer ao
conhecimento estabelecido (taken for granted) e pela capacidade de abrir,
simultaneamente, novas possibilidades de ação nas organizações ou fora delas. Não
se trata de dispensar considerações técnicas, sempre relevantes, mas de incluir
considerações além do método: redirecionar questões de objetividade e rigor, bem
como considerar a dimensão ética (...) (CAMPOS & COSTA, 2007, p.41).

Ainda contou o primeiro passo com a busca por se redefinir o tratamento metodológico do
campo disciplinar da Administração antes voltado para, fundamentalmente, a racionalidade
instrumental para comprovação de resultados e agora orientado para transdisciplinaridade e
diálogo entre conhecimentos:
(...) constata-se que na produção acadêmica da área existe o domínio do método de
estudos de caso, com dados de evidência, nos quais se destacam as referências
documentais e descrições “neutras” dos dados obtidos e conteúdos de entrevistas
feitas com dirigentes das organizações estudadas, trazendo as obviedades do senso
comum (se funcionou no passado, funciona hoje e vai funcionar no futuro), em que
existe total ausência de análise e interpretação (...). [...] O grande desafio para a área
da administração é reconhecer que a maioria de seus objetos de estudos está
relacionada com outras áreas do conhecimento. Daí a necessidade de se produzir um
encontro, com profundidade e competência, com insights e abordagens pertencentes
a metodologias múltiplas e fundamentos teóricos multidisciplinares (CARDOSO,
2009, p.52, grifo nosso).

O segundo passo contou com a apresentação e defesa dos autores do conceito de


Administração Politica propriamente. No levantamento histórico, manteve-se a preocupação
de sustentar a posição dos estudos críticos vinculados à tradição da Escola de Frankfurt
aplicada agora à Administração (SANTOS; SANTANA; PIAU, 2011) de modo a dar ao
conceito conteúdo crítico e revisionista. A grande contribuição aqui foi a definição da
Administração não como organização, mas como gestão que deve afastar “seu forte
componente de racionalidade formal/instrumental, centrado nos interesses mercadológicos”
(GOMES, 2011, p.14) e deve levar em conta não apenas sua inclinação negocial ou
empresarial, mas fazê-lo olhando para o que está à sua volta – a sociedade como envolto
político de sua realidade.
Embora as organizações/instituições constituam o gênero que contém elementos
essenciais do objeto da disciplina administração, elas são espaços particulares onde
apenas habita o objeto. A essência perpassa o espectro das relações sociais internas
às organizações e se estabelece nos limites das relações sociais mais amplas,
portanto, no âmbito da sociedade. [...] cabe à administração estruturar um modelo de
gestão viabilizador do objetivo da organização. (SANTOS, 2001, p.62-63).

Ainda que contando com tamanha densidade e complexidade, o obstáculo experimentado na


primeira etapa diminuiu na segunda em função do número de textos e da convergência entre
eles. A primeira etapa contou com nove textos de amplo espectro teórico-conceitual. A
segunda etapa contou com seis textos divididos em dois grupos mais claramente identificados.
Ainda assim a densidade foi questão presente no esforço de participação dos alunos nas aulas.
Como eram textos longos e densos todo o tempo de aula era consumido pela sua
apresentação. Novamente, a elaboração do “roteiro de leitura” foi importante para tornar as
apresentações das aulas, ao fim, mais esquemáticas. Aqui vale enumerar as dificuldades com
as aulas. Como dito, em primeiro lugar, o embaraço dos alunos com leituras longas e densas.
Em segundo, vale somar a preparação do professor para as aulas. Como se tratou de primeira
8

experiência com esses textos, aquela leitura exploratória teve de se tornar material de aula. O
ainda pouco costume com recursos audiovisuais fez o professor se valer de seu caderno de
notas e de aulas explanatórias. Apenas para o texto de Ribeiro (2006) foi elaborada
apresentação em slides. Em terceiro lugar, os alunos do 8º período dividem atenção das aulas
com a elaborações de seus TCCs, o que dificulta, da metade para o fim do semestre, sua
dedicação às aulas.
Foi preciso ainda pensar as avaliações da disciplina. O desafio foi como organizar o
conhecimento passado de modo a melhor aproveitá-lo, em quantidade e densidade, numa
avaliação palatável, dado que já havia percebido as dificuldades acima apontadas. Aqui, os
roteiros de leitura foram importantes. Na primeira avaliação, o roteiro de leitura contava então
com nove autores – o texto introdutório de Ribeiro (2006) e fundamental para a compreensão
da disciplina e os demais. A avaliação contou com duas questões: uma em que era preciso
explicar o texto de Ribeiro a partir do roteiro (na parte que a ele cabia, naturalmente) e a outra
era preciso trabalhar com trios de autores já indicados e relacionar seus argumentos aos de
Ribeiro. Dessa forma, direcionavam-se as questões de modo mais orientado. Ainda, a prova,
para quem quisesse, poderia ser feita em dupla a fim de dar maior segurança e confiança aos
alunos.
Na consideração do aluno, o roteiro detalhado sobre cada texto com recorte, objeto, objetivos
e argumento desembaraçou a elaboração da resposta da primeira questão quando o aluno
deveria explicar o texto base de Ribeiro (2006). Por ter sido muito trabalhado durante as
aulas, os fundamentos de Ribeiro (2006) já estavam fortemente definidos – experiência que
tornou mais fácil fazer as construções com os outros textos, já que ao ler o roteiro, mesmo
sem se recordar completamente dos outros, era possível relacioná-los com Ribeiro (2006).
Sem dúvida, se fosse exigida a mesma tarefa sem o roteiro e até mesmo indicando menor
número de textos com os quais relacionar, as respostas seriam muito difusas e apresentariam
fraca ligação com os objetivos e objeto de cada texto. A segunda questão, mesmo tendo o
apoio do roteiro, era mais trabalhosa uma vez que relacionava autores em subgrupos definidos
e buscava entre eles e a partir deles uma relação com os argumentos de Ribeiro (2006). Além
disso, por muitas vezes, a dificuldade em exteriorizar os conhecimentos atrapalhava a
formulação da repostas, ainda mais por lidar o aluno com vocabulário mais específico e textos
mais complexos do que o habitual. Outro fato relevante nesta segunda questão, que não foi
percebido na primeira, foi a dificuldade e o demasiado tempo de diálogo com o outro
componente da dupla. Como se tratava de subgrupos de autores foi mais difícil chegar a
consenso sobre o que havia de comum entre eles e na sua relação com Ribeiro (2006).
A segunda avaliação contou não com o roteiro de leitura, mas com questões ainda bem
direcionadas a partir de esquema em que era preciso, a partir dos dois grupos de três autores
cada, elaborar um argumento comum a eles, de um lado a discussão sobre estudos críticos, de
outro, o conceito de Administração Política. Esta avaliação foi individual e sem consulta ao
roteiro de leitura. De modo geral, o resultado das avaliações foi bom ou, pelo menos,
satisfatório.
Também contou a segunda avaliação com período delicado para alunos do último período do
Curso, pois que estavam muito envolvidos e tensos com a entrega dos seus (Trabalhos de
Conclusão de Curso) TCCs. A exigência desta prova sem duvida foi muito maior que a
primeira, apesar do número menor de autores. As duas questões foram elaboradas de modo a
que os alunos provocassem o debate entre os autores e criassem argumentos sobre
Administração como Conhecimento e Administração Política, temas muito complexos,
densos e de conteúdos novos até o semestre dado. As questões versavam sobre a discussão
9

metodológica entre ciências naturais e ciências sociais, epistemologia, considerações acerca


do objeto de estudo da Administração e a Administração como ciência, entre outros pontos.
Assuntos estes que estão em polêmica até mesmo para intelectuais renomados no meio.
Mesmo quem deseja estudar estes tópicos encontrará dificuldade em adquirir bibliografia
inequívoca e respostas efetivamente definitivas. Pareceu, ao fim, ao aluno, que, em geral, não
houve respostas muito bem esclarecidas e objetivas, todavia o professor já devia esperar por
isso.
Parte certamente importante para análise dos resultados e para geração de expectativas é o
testemunho dos alunos sobre o trabalho realizado. Aqui, duas outras dificuldades pareceram
se atestar: a primeira, uma inicial incompreensão ou mesmo rejeição da disciplina de Ciência
Política no Curso de Administração como se não fizesse sentido ao administrador discutir
questões como política, poder e fenômenos sociais mais amplos. A segunda, ainda sobre uma
incompreensão: o possível significado do conceito de Administração Política. Não parece
compor este conceito a racionalidade própria do aluno-administrador e resta o desafio de fazê-
lo compreender essa mudança epistemológica.
O problema, parece, está nos dois lados: professor e aluno. De modo geral, os professores das
disciplinas de Filosofia, Sociologia e Ciência Política não são da área de Administração, não
tem formação própria na área. Isso leva a dois problemas em relação aos professores: falta de
linguagem comum em sala de aula e dotação de racionalidade diferente da Administração, por
um lado, e, em função disso, pouca disposição para investigar a disciplina a partir da
Administração. Isso resulta na aplicação de conteúdos programáticos tradicionais das ciências
sociais em sala de aula da Administração, seja por falta de motivação do professor seja por
não querer sair da sua zona de conforto em função do conhecimento próprio. Por parte do
aluno, parece, tal postura acaba por desmotivá-lo a se esforçar para compreender a discussão
da Administração a partir das ciências sociais seja porque tal conhecimento das ciências
sociais não tem aderência com a Administração como é tratado comumente pelo professorado,
seja porque parece não tocar em questões de ordem prática mais imediata da atuação
profissional do administrador. E aí permanece também o aluno em sua zona de conforto.
Do ponto de vista dos alunos, durante todo o curso de administração, devido ao teor tecnicista
que o estudante de administração recebe, poucos foram os artigos e textos que possuíram
densidade e complexidade que exigia o desenvolvimento de habilidades literárias mais
apuradas. Até mesmo a função social e o modelo conceitual com os quais a sociedade espera e
cobra dos profissionais/alunos de Administração são impactantes na sua formação e inserção
profissional. Como exemplo, vale apontar experiência pessoal e segue, então, o caso do aluno-
autor deste trabalho: quando fui cursar Administração e meu irmão, Medicina, naturalmente,
meus pais já se posicionaram de maneira diferente quanto à cobrança de cada filho, partindo
da premissa que o estudante de Medicina tem que estudar e se dedicar mais que o estudante de
Administração. Assim, fui ''convocado'' a trabalhar nos negócios da família enquanto lhe era
proporcionado todo tempo livre e estímulos a estudar. Este tipo de situação é recorrente com
alunos de Administração. Isso é resultado de como a formação acadêmica e profissional em
Administração sugere, de modo geral, na sociedade, perspectiva técnica, imediatista e prática
da atividade laboral.
Culpa ou não dos administradores a sociedade parece enxergar os administradores sem
grandes méritos de formação acadêmica e de projeção profissional. Talvez em função da
massificação e banalização da oferta de cursos e da abrangente inserção profissional que
vincula, por vezes, o acadêmico ao técnico de modo a confundir a atividade do administrador,
especialmente, atento à gestão das organizações e da sociedade, com a atividade técnica de
10

organização a oferta de determinado bem ou serviço. A preocupação é atrelar à atividade


profissional teor humanista com atividade acadêmica de pesquisa e investigação densa e
reflexiva. De outro modo, o administrador continuará a ocupar, em sua maioria, cargos
administrativos de natureza pragmática e desenvolver-se unicamente nas teorias
organizacionais deixando de dotar a formação e atividade profissional toda a gestão para
profissionais de outras áreas.
Por parte do aluno, apesar dos obstáculos com o tratamento do tema, o desafio da disciplina
foi muito engrandecedor. Aprender e debater sobre assuntos complexos e desconhecidos, mas
que são de enorme importância para o currículo e para a profissão que será levada daqui em
diante, possibilitou novos horizontes e caminhos a serem percorridos. Perceber-se um
administrador com maior autocrítica e perspicácia perante as adversidades presentes no dia-a-
dia. E isso veio após muito esforço e reflexão na compreensão dos textos que se portaram
como verdadeiros adversários. Uso o termo adversários, pois sem dúvida os alunos tiveram
de lutar para, de certa forma, vencê-los dentro das dificuldades e limitações cotidianas
próprias. Haver passado por esta matéria difícil, extensa e densa, ajudara a no futuro lidar com
outras de complexidade igual ou maior, com mais destrezas e menos antipatia ou receio.
Como aluno – e o que se segue agora é mesmo um testemunho pessoal – terminar o curso é
uma felicidade inenarrável, mas que vem acompanhada do choque, das dúvidas e angústias do
que acontecerá efetivamente após ter um diploma e poder ser chamado de Administrador. O
conhecimento adquirido com a Administração Política e suas implicações produziu
perspectiva extremamente positiva do curso de graduação realizado, pois, antes, percebia-me
um tanto descontente e desnorteado com o fato de ser um Administrador, talvez pela
amplitude da própria formação acadêmica. Usando da ironia, o único lado atormentador após
o conhecimento e estudo da Administração Política é reconhecer a suma importância da
multidisciplinaridade e saber que ainda tenho e sempre terei muitas ciências a conhecer,
estudar e me aperfeiçoar.
Em nova experiência, uma modificação e uma adaptação. O presente semestre guarda nova
experiência até o final do ano. Trabalhar o conceito de poder, porque conceito-chave em
Ciência Política, a partir de textos que não tratam especificamente do conceito de
administração política pode ter sido pouco produtivo para apresentar, ao fim, esse mesmo
conceito. Talvez seja preciso diminuir a bibliografia da primeira experiência por esse motivo.
E, disso, vem a adaptação, uma vez que se possibilita, assim, mais tempo para melhor
desenvolver a discussão dos textos mais diretamente relacionados à administração política e
se cria chance para desenvolver recursos didáticos outros a serem utilizados em sala de aula a
fim de melhor favorecer a compreensão do conteúdo como apresentações de esquemas, vídeos
e dinâmicas. Ainda é preciso continuar na investigação de textos específicos da
Administração Política para enriquecer a bibliografia da disciplina e lhe dar maior robustez.
Dado o trabalho realizado no corrente semestre e sua avaliação, guardam-se expectativas de
mais e melhor estimular o debate sobre Administração Política em sala de aula de modo a
favorecer o desenvolvimento do senso crítico sobre a atividade laboral do aluno-formando,
pronto administrador, que resulte na revisão do conteúdo da disciplina de Ciência Política nos
cursos de bacharelado em Administração. A troca de experiências e de relatos em
oportunidade de encontros e de congressos é absolutamente alimentadora dessa expectativa.
11

Bibliografia

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13

ANEXOS
14

CIÊNCIA POLÍTICA – ROTEIRO DE COMPREENSÃO DOS TEXTOS – 1ª ETAPA

REFERÊNCIA ABRANGÊNCIA RECORTE OBJETO OBJETIVOS ARGUMENTO

Relação entre Compreender o Administrador como


Política e
RIBEIRO Introdução Política e fenômeno político na praticante da Ciência
Administração
Administração Administração Social Aplicada
Relação entre Discutir o
O Fenômeno Política e Sujeitos político (como antagonismo como O político como
PRADO; TONELI
da Política Coletivos essência) e política definidor do conceito agonismo
(como manifestação) de político
Compreender
Identificação dos Poder como conceito
Poder nas Vertentes de Análise paradigmas de
SANTOS FILHO instrumentos e das complexo e
Organizações do Poder análise do poder nas
fontes de poder multifacetado
organizações
Estilo de poder como
DINIZ; Relação entre Investigar correlação
Poder nas Poder e influência aspecto diferenciador
LIMONGI- administrador e entre poder exercido
Organizações Interpessoal das relações de
FRANÇA funcionário e atitude resultante
influência
Identificar a
violência simbólica Quanto maior a
Exercício de poder na burocracia pela burocratização maior
Poder nas
FREDDO Poder e violência como ação ideia de espaço de a atração da
Organizações
estratégica aparência em que se violência para mantê-
manifesta o discurso la ou rebatê-la
como violência
Compreender a O poder local deve
dinâmica do poder ser compreendido a
O poder local como local a partir das partir dos espaços de
Poder nas outro nível de relações concretas, gestão como espaços
FISCHER Poder local
Organizações manifestação do socialmente políticos e
poder construídas e simbólicos de
territorialmente produção e de
localizadas consumo
O estado de
Compreender o motivação dos
“estilo trabalhadores para
administrativo” do produzir é
Capital simbólico do
executivo-chefe constituído no local
Poder nas Administradores e administrador e a
MIGUELES como reflexo na em que a atividade
Organizações empregados “realidade ao seu
cultura produtiva se
contrário”
organizacional que desenvolve com a
sugere melhor experiência concreta
produção de certo sistema de
poder
Analisar as
estratégias de poder Os trabalhadores se
Estratégias de poder
dos trabalhadores valem de estratégias
dos trabalhadores
SARAIVA; Poder nas Poder dos como atores sociais dinâmicas que
(experiência;
SANTOS Organizações trabalhadores tradicionalmente projetam exercício de
vínculos; obediência;
desprovidos de poder simbólico
popularidade)
recursos de poder nas deles na organização
organizações
Orientação para
perceber aquilo que
Refutar concepções conta de modo
Poder nas Poder e análise Poder utilitário X de poder que significativo como
PROCÓPIO
Organizações organizacional poder simbólico instrumentalizam as base para dar sentido
relações sociais às relações sociais
olhando para o
influenciado
15

CIÊNCIA POLÍTICA – ROTEIRO DE COMPREENSÃO DOS TEXTOS – 2ª ETAPA

REFERÊNCIA ABRANGÊNCIA RECORTE OBJETO OBJETIVOS ARGUMENTO

Revisão Fomentar perspectiva Perspectiva


Crítica ao epistemológica e contextualista na interpretativa da
LOSSO
naturalismo praxiológica da pesquisa e na ação realidade: fato e
ADM administrativa valores (morais)

Condição do Externar atitude


pesquisador e da reflexiva para Prática reflexiva que
Prática da
CAMPOS Estudos Críticos produção de renovação do rejeite neutralidade
reflexividade
conhecimento em pensamento em epistemológica
ADM administração

Administração como Buscar dentre outras ADM na


Pluralismo
CARDOSO epistemologia disciplinas um objeto complexidade e na
metodológico
transdisciplinar comum para ADM pluralidade

Revisão
metodológica e
ADM como objeto Gestão de relações
GOMES Percurso da AdmPol epistemológica da
de estudo sociais na produção
ADM a partir da
gestão

Considerar a gestão e AdmPol: bem-estar


Revisão
AdmPol: história e não a organização social na relação
SANTOS Conceito de AdmPol epistemológica da
compreensão como objeto de Estado-Sociedade-
ADM
estudo Capitalismo

Entender relação da
É preciso ver a
Reflexões da AdmPol com caráter AdmPol com outros
PIAU et al gestão como prática
AdmPol crítica saberes e revisar seu
política social
conceito
16

PRIMEIRA AVALIAÇÃO
CURSO: ADMINISTRAÇÃO DATA:
DISCIPLINA: Ciência Política PROFESSOR(A): Leo Braga
PERÍODO: 8º TURNO: Noite AVALIAÇÃO: AV1
ALUNO(A): ______________________________________________________________________
GRAU: VISTO DO PROFESSOR:

REFERÊNCIA ABRANGÊNCIA RECORTE OBJETO OBJETIVOS ARGUMENTO

Administrador como
Política e Relação entre Política e Compreender o fenômeno
RIBEIRO Introdução praticante da Ciência
Administração Administração político na Administração
Social Aplicada
Relação entre político Discutir o antagonismo
O Fenômeno Política e Sujeitos
PRADO; TONELI (como essência) e política como definidor do O político como agonismo
da Política Coletivos
(como manifestação) conceito de político
Identificação dos Compreender paradigmas
Poder nas Vertentes de Poder como conceito
SANTOS FILHO instrumentos e das fontes de análise do poder nas
Organizações Análise do Poder complexo e multifacetado
de poder organizações
Relação entre Investigar correlação entre Estilo de poder como
DINIZ; Poder nas Poder e influência
administrador e poder exercido e atitude aspecto diferenciador das
LIMONGI-FRANÇA Organizações Interpessoal
funcionário resultante relações de influência
Identificar a violência
simbólica na burocracia Quanto maior a
Poder nas Exercício de poder como pela ideia de espaço de burocratização maior a
FREDDO Poder e violência
Organizações ação estratégica aparência em que se atração da violência para
manifesta o discurso como mantê-la ou rebatê-la
violência
Compreender a dinâmica
do poder local a partir das O poder local: espaços de
O poder local como outro
Poder nas relações concretas, gestão como espaços
FISCHER Poder local nível de manifestação do
Organizações socialmente construídas e políticos e simbólicos de
poder
territorialmente produção e de consumo
localizadas
Compreender o “estilo
O estado de motivação dos
Capital simbólico do administrativo” do
trabalhadores é constituído
Poder nas Administradores e administrador e a executivo-chefe como
MIGUELES com a experiência
Organizações empregados “realidade ao seu reflexo na cultura
concreta de certo sistema
contrário” organizacional que sugere
de poder
melhor produção
Estratégias de poder dos Os trabalhadores se valem
Poder nas Poder dos trabalhadores (experiência; Analisar as estratégias de de estratégias dinâmicas
SARAIVA; SANTOS
Organizações trabalhadores vínculos; obediência; poder dos trabalhadores que projetam seu exercício
popularidade) de poder simbólico
“Aquilo que conta de
Refutar concepções de
modo significativo” para
Poder nas Poder e análise Poder utilitário X poder poder que
PROCÓPIO dar sentido às relações
Organizações organizacional simbólico instrumentalizam as
sociais olhando para o
relações sociais
influenciado

1ª Questão (4,0 pontos):


Explique o texto de João Ubaldo Ribeiro a partir do roteiro acima.

2ª Questão (6,0 pontos):


Escolha UM dos grupos de referências a seguir e relacione seus argumentos com aqueles de João Ubaldo Ribeiro:
a) Santos Filho; Migueles; Procópio
b) Freddo; Saraiva & Santos; Procópio
c) Prado & Tonelli; Diniz & Limongi-França; Fischer.
Cidadania: a perspectiva dos direitos da mulher no Brasil
Isabella Rafael Horta Londe (UFMG)
Diego Leonardo Davi Santos Silva (UFMG)

Resumo
Este artigo abordou alguns conceitos de cidadania de autores importantes como T. H.
Marshall, Bobbio, David Held, Anthony Giddens e Gurza Lavalle e enfatizou a importância
da participação política para a conquista plena da cidadania. O objetivo do estudo foi de
analisar a cidadania das mulheres no Brasil, principalmente após a promulgação da
Constituição Federal de 1988, tendo como foco a participação política e conquista dos direitos
da mulher. Não somente, foi discutido o papel da administração pública na promoção e
garantia dos direitos da mulher no país. As conclusões do estudo mostraram que um longo
caminho já foi percorrido pelas mulheres na conquista plena de cidadania, porém os baixos
índices de presença feminina na composição das Casas Legislativas e no Executivo
demonstram que ainda há muito a se caminhar quanto à participação política das mulheres no
Brasil e, portanto, para a conquista plena da cidadania feminina.
Palavras-chave: Cidadania, Direitos, Mulheres, Participação Política, Brasil.

Abstract
This paper covered some concepts of citizenship by leading writers from T. H. Marshall,
Bobbio, David Held, Anthony Giddens and Gurza Lavalle and emphasized the importance of
political participation for the full achievement of citizenship. The objective of the study was
to analyze women's citizenship in Brazil, especially after the promulgation of the 1988
Constitution, focusing on political participation and achievement of women's rights. Not only
it was discussed the role of government in promoting and ensuring women's rights in the
country. The results showed that a long road has been traveled by women in full conquest of
citizenship, but the low female presence index in the composition of the Legislative and the
Executive show that there is still much to walk on the women's political participation in Brazil
and thus for the full achievement of women's citizenship.
Keywords: Citizenship, Rights, Women, Political Participation, Brazil.

Introdução
Ao longo dos anos o tema cidadania vem sendo discutido sob várias perspectivas. A
proposta deste estudo é fazer uma análise da cidadania no Brasil desde a promulgação da
Constituição Federal de 1988, sob a perspectiva dos direitos da mulher e o papel da
administração pública na promoção e garantia dos direitos femininos no atual contexto da
sociedade brasileira.
O conceito de cidadania é amplamente discutido e é complexo. Segundo Pinsky
(2003), o conceito de cidadania, dado seu caráter histórico, sofre influências do tempo e no
espaço, o que o torna difícil de ser definido. A ideia de cidadania tal como existia na Grécia
não consegue abranger a cidadania tal como existe nos dias atuais. Não eram considerados
cidadãos escravos, mulheres, crianças, idosos, comerciantes, artesãos e estrangeiros.

1
 
Uma breve contextualização sobre a cidadania foi feita na seção “Construção do
conceito de cidadania”. Enquanto para Marshall, a cidadania foi definida a partir da conquista
dos direitos civis, políticos e sociais, para Giddens, a cidadania pressupõe pertencimento a um
território. Assim, ao longo da seção são discutidos alguns conceitos de cidadania importantes
e é enfatizada a importância da participação política na conquista plena da cidadania.
Tendo a participação política como parâmetro para a conquista plena da cidadania e
dos direitos individuais e coletivos, as conquistas das mulheres ao longo dos anos em prol de
sua cidadania foram destacadas nas seções “Participação política e a conquista da cidadania
pelas mulheres” e “Cidadania e participação política das mulheres no Brasil”. Foi destacada
também a importância do movimento feminista, principalmente nas conquistas nos anos 1970
no Brasil, bem como a construção do conceito de cidadania através do estudo do autor José
Murilo de Carvalho. Por fim, dados extraídos do site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
sobre a participação das mulheres nas eleições de 2014 foram apresentados para mostrar a
situação da participação feminina no país.
A administração pública no exercício de suas obrigações perante os cidadãos deve
garantir que sejam cumpridos seus direitos e deve também cobrar o exercício de seus deveres.
Os cidadãos, à luz do seu próprio reconhecimento como sujeito dotado de direitos e deveres,
devem exigir daqueles que o representam o reconhecimento de direitos necessários à sua
sobrevivência e em prol da sociedade.
O objetivo deste estudo é relacionar o conceito de cidadania com os direitos da
mulher, apontando algumas conquistas das lutas pelos direitos das mulheres no Brasil, após a
promulgação da Constituição Federal de 1988. Para tanto, foi importante a realização de
análise textual de estudos e leis relacionados ao tema, bem como a utilização do software
estatístico STATA e do Microsoft Excel para a elaboração dos gráficos que serão
apresentados ao decorrer do estudo.
O artigo foi dividido em seis seções, quais sejam: Construção do conceito de
cidadania, onde através da exposição das ideias de autores como Rousseau, T. H. Marshall,
Norberto Bobbio, David Held e Anthony Giddens será apresentada uma breve
contextualização sobre a construção do conceito de cidadania; Participação política e a
conquista da cidadania pelas mulheres, em que será apresentada algumas das conquistas das
mulheres no mundo no rol dos direitos humanos e também da abertura da esfera pública para
a participação das mulheres; Cidadania e participação política das mulheres no Brasil,
apontando a atual situação das mulheres brasileiras em relação aos direitos conquistados, à
importância da participação política das mulheres no Brasil, apresentando dados estatísticos
referentes à eleição de 2014 e, também, o papel da administração pública em realizar políticas
que favoreçam a participação da mulher e a garantia dos direitos às mulheres; Por fim, serão
apresentadas as considerações finais do presente estudo, bem como a perspectiva em relação à
participação política e a conquista da cidadania das mulheres no Brasil.

Construção do conceito de cidadania


Em “Cidadania, Classe Social e Status”, T. H. Marshall, define cidadania como
“um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade” (Marshall,
1967), na qual “todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e
obrigações pertinentes ao status” (Marshall, 1967: 76), não tendo nenhum princípio norteador
para a definição dos direitos e das obrigações referentes ao status, mas as sociedades nas
quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam uma imagem de cidadania
ideal em relação à qual a aspiração pode ser dirigida (Marshall apud Lavalle, 2003). Não
somente, a busca pela cidadania ideal dentro das sociedades leva à busca de maior igualdade.

2
 
Nesse aspecto, assumindo a cidadania como um princípio da igualdade, a classe então se torna
um princípio da desigualdade enraizado na propriedade, na educação, na estrutura econômico-
social da sociedade (Held, 1999), além de raça, etnia, gênero, entre outros.
A cidadania por Marshall é constituídas de três direitos: civis, políticos e sociais. O
primeiro deles se refere às liberdades individuais, sendo elas ir e vir, liberdade de expressão, a
propriedade, a imprensa, a justiça, cumprir contratos válidos. Já os direitos políticos se
referem a votar e ser votado, participação política, criar partidos. Por último, os direitos
sociais são aqueles que garantem ao indivíduo o mínimo para que tenha condição digna de
vida como educação, saúde ente outros serviços sociais. Quanto à participação política,
Marshall destaca o exercício da cidadania através da participação do povo no direito de
escolher os seus governantes, pressupondo a existência de processos eleitorais autênticos, cuja
supervisão cabe às instituições judiciárias capazes de garantir a fidedignidade dos resultados
das eleições.
Os direitos do homem resultam de lutas históricas pela libertação e emancipação do
homem, que desencadearam as declarações de direitos firmadas em diferentes épocas da
história da humanidade. Dessa forma, os direitos ditos humanos são o produto não da
natureza, mas da civilização humana; enquanto direitos históricos, eles são mutáveis, ou seja,
suscetíveis de transformação e de ampliação. A principal declaração de direitos que podemos
citar é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, onde os direitos se tornam universais
e positivos. O direito aqui garante proteção a todos, até mesmo contra o Estado que tentar
violá-los. Porém para existirem, os direitos precisam ser proclamados pelas instituições que
detém tal função. Para as mulheres, a Declaração Universal dos Direitos do Homem é um
marco ainda mais especial. Na Declaração foram incorporados, pela primeira vez, direitos
reivindicados pelas mulheres. Muitas reivindicavam o direito de acesso às profissões
intelectuais, outras ao voto. Para muitas, a valorização da educação, permitindo o acesso pelas
mulheres, eram a solução para que pudessem ganhar a vida fora da prostituição, pudessem
cuidar dos filhos e acabar com a exploração por parte de seus parceiros e/ou patrões.
As críticas que permeiam a concepção tradicional de cidadania de Marshall se
estendem sob o patamar da limitação do seu estudo. O estudo de Marshall foi concebido com
observações feitas pelo autor na sociedade britânica, não levando em consideração outras
realidades. Além disso, o conceito de cidadania construído por Marshall pressupõe uma
ordem para a conquista da cidadania a partir da conquista dos direitos civis primeiramente,
direitos políticos e, por fim, direitos sociais. Essa ordem não é aplicável, por exemplo, ao caso
brasileiro. José Murilo de Carvalho em “Cidadania no Brasil: uma longa história” mostra que
no Brasil os primeiros direitos conquistados foram os direitos sociais e a partir deles os outros
foram conquistados. Não somente, Carvalho (2003) ainda aponta a forma como o Estado-
Nação foi consolidado como fator que influencia na construção da cidadania nos países.
Assim como Marshall, Norberto Bobbio constrói o conceito de cidadania sob a
perspectiva dos direitos. Bobbio (1992) destacou a ideia de que o reconhecimento de direitos
fundamentais é que torna o indivíduo um cidadão. Tais direitos são naturais e universais,
nascem como direitos positivos individuais e partem para a perspectiva universal. Além disso,
destaca o reconhecimento dos direitos separando-os em quatro gerações. A primeira geração
de direitos corresponde aos direitos civis, que surgiram da luta contra soberanos absolutistas,
a segunda geração é a dos direitos políticos e sociais, que surgiram das lutas e do
fortalecimento da classe dos trabalhadores, camponeses, ou seja, daqueles que não possuíam

3
 
um meio próprio de se sustentar e necessitavam dos meios daqueles que os detinham. A
terceira geração dos direitos é aquela dos direitos coletivos e difusos, nascidos de direitos
internacionais, como meio ambiente, comunicação, paz, propriedade, entre outros e os direitos
de quarta geração são aqueles vinculados ao desenvolvimento da ciência e os direitos de
minoria. Bobbio chama a atenção para o avanço na configuração dos direitos humanos desde
uma concepção apoiada em figuras genéricas a uma concepção apoiada em figuras
particulares, em um movimento em que, ao mesmo tempo, direitos e garantias se
universalizam e se especificam (Pitanguy, 2011).
Anthony Giddens, um dos autores críticos da concepção de cidadania de Marshall,
defende que a construção da cidadania e da democracia moderna permeia o desenvolvimento
do Estado, principalmente na consolidação da força como um meio pelo qual o Estado pode
se valer. O autor utiliza ainda o termo “dialética do controle”, entendendo, dado que ao
Estado cabe o uso exclusivo da força , que cria-se uma base para que haja reciprocidade entre
governante e governado (Held, 1999). Sendo assim, a base criada permite que o governo
esteja mais próximo dos dominados, dando a eles maior possibilidade de se reconhecerem e
serem reconhecidos como sujeitos dotados de direitos e deveres, ou seja, como cidadãos.
A ideia de cidadania construída por Giddens está ligada à ideia de sujeito político, bem
como de pertencimento a uma comunidade. Nesse aspecto, o autor destaca duas grandes
mudanças institucionais que aconteceram a partir de conflitos importantes: o conflito de
classes da burguesia contra os privilégios feudais remanescentes e o conflito do proletariado
contra o monopólio dos postos de poder da burguesia. A primeira mudança foi o
estabelecimento dos direitos civis e políticos que consolidaram a separação do Estado e da
economia, a liberação da sociedade civil e interferência política direta do Estado (Held, 1999).
O sufrágio universal constituiu a segunda grande mudança. Conquistaram-se então os
direitos econômicos que são aqueles ligados às questões que envolvem a educação, saúde,
direitos dos trabalhadores, mulheres, com fins de amenizar as piores condições. Assim como
Marshall, Giddens não leva em consideração a complexidade da construção do conceito de
cidadania, sendo este um processo além de complexo, multidimensional e, ao mesmo tempo,
específico (direitos da mulher, criança e adolescente, idosos).
Segundo Jacqueline Pitanguy (2011), os conceitos de cidadania e direitos humanos
permeiam o campo das relações sociais e estruturas de poder e são refletidas nos planos
nacional e internacional. Dessa forma, o contexto histórico, político, econômico e social do
país e do mundo contribuirão para a elaboração e concretização dos direitos humanos, bem
como da garantia e concretização da cidadania.
Para o presente estudo é importante ressaltar que a participação política constitui
elemento essencial para a conquista da plena cidadania. Não só através do cumprimento dos
deveres se exerce a cidadania, mas através do exercício de direitos já conquistados através de
lutas pelo reconhecimento deles. Por se tratarem de direitos específicos, como direitos da
mulher, homossexuais, quilombolas, negros, entre outros o reconhecimento se dá, na maioria
das vezes, aos poucos e de forma árdua. Na próxima seção serão expostas algumas das lutas
das mulheres pelo reconhecimento dos seus direitos, principalmente no que se refere à
igualdade de direitos.

Participação política e a conquista da cidadania pelas mulheres

4
 
Se a conquista da cidadania plena se dá através das lutas pelos direitos, as várias
batalhas já enfrentadas pelas mulheres ainda não conseguiram dar a elas o reconhecimento
total da sua cidadania. Esta seção será dedicada à explanação de algumas lutas vividas pelas
mulheres, bem como a importância da participação política para a conquista dos direitos
femininos.
Na era Iluminista, começou a ser disseminada a ideia e a importância da igualdade
entre homens e mulheres. Porém, autores como Rousseau, duvidavam da capacidade feminina
de raciocinar, dado que, para ele, as mulheres eram movidas por paixão (Lopes, 2011). A
partir da Revolução Francesa, a luta das mulheres pela cidadania ganhou peso, dado que seus
direitos foram incorporados aos direitos universais. Alguns autores afirmam que para haver
cidadania, deve haver participação política (Lopes, 2011). Sendo assim, as lutas das mulheres
pelo seu reconhecimento como cidadã, se tornam também uma luta por participação política.
A partir do século XIX, a educação das mulheres começou a progredir. A luta por
educação e a diminuição, mesmo pequena, dos índices de analfabetismo deu às mulheres uma
nova voz e, também, ampliou as possibilidades de acesso a espaços que antes não eram
frequentados por elas como universidades, mercado de trabalho. Mesmo tendo sido um
importante passo, a educação era dada a mulheres e homens de forma diferenciada. Segundo
Pinsky & Pinsky (2003), o acesso das mulheres à educação se limitava a cursos que tornavam
as mulheres melhores em suas funções femininas.
O século XX foi marcado pela luta por igualdade em relação aos homens de direitos e
deveres civil e político. A principal bandeira das mulheres foi o direito ao voto, conquistado,
primeiramente, na Nova Zelândia, em 1893. No Reino Unido, o sufrágio feminino foi
conquistado através do movimento liderado por Millicent Fawcett, em que as mulheres saíram
às ruas, fizeram greve de fome no intuito de expor o sexismo institucional da sociedade
britânica. A aprovação do sufrágio feminino veio com a aprovação do Representation of the
People Act, em 1918. A aprovação da lei britânica incentivou mulheres de outros países a
lutarem pelo seu direito ao voto. Não somente, a aprovação em outros países de leis que
davam às mulheres o sufrágio, poderia dar a elas a capacidade de lutar pelo que acreditavam e
por direitos como o de trabalhar, direito à propriedade e, também, de serem elegíveis e
concorrem em condição de igualdade com os homens. Por isso, a participação política das
mulheres é importante para a conquista da plena cidadania das mulheres.
Nos Estados Unidos, o histórico de lutas teve um dos episódios mais trágicos e tristes,
lembrado até hoje. No dia 8 de março de 1857, 129 operárias da indústria têxtil Cotton
morreram queimadas pela força policial enquanto reivindicavam a redução da jornada de
trabalho e direito à licença maternidade. Dia 8 de março tornou-se a data em que se comemora
o Dia Internacional da Mulher como forma de homenagear aquelas que morreram lutando por
seus direitos. O voto feminino nos Estados Unidos foi aprovado somente 55 anos após o
incidente na fábrica têxtil através da XIX emenda à Constituição Estadunidense que
estabeleceu que todas as mulheres maiores de idade teriam direito ao voto. No Brasil, em
1932, o então presidente Getúlio Vargas, através do Decreto nº 21.076, determinou que o
cidadão maior de 21 anos teria direito a voto sem distinção de sexo.
As conferências, congressos e encontros internacionais, principalmente os organizados
por instituições de grande influência política, econômica e social como a Organização das
Nações Unidas (ONU) possuem um papel importante para a conquista, garantia, criação de
leis específicas dentro de cada país e, até mesmo, na exigência de direitos que possam
contribuir para a melhoria da realidade social e, por vezes intervir para que determinados
diretos sejam garantidos pelo Estado.
Em 1994, a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento que ocorreu
no Cairo, Egito, reuniu representantes de 179 países. Durante o evento foi elaborado o Plano

5
 
de Ação com diversos compromissos para a promoção de melhoria de vida para toda
população mundial através da promoção e garantia de direitos humanos e dignidade e também
cuidados com o meio ambiente. A importância dessa conferência diz respeito à discussão
sobre os direitos reprodutivos da mulher, a importância do planejamento familiar, promoção
da igualde de gênero e proteção da mulher como formas de promover o crescimento
econômico e de empoderamento das mulheres.
Amartya Sen, citado por Wanjman e Paiva (2005), destacou a importância do
empowerment³ feminino no que tange à liberdade reprodutiva, dado que, a saúde reprodutiva
da mulher entrou no debate sobre desenvolvimento. Defendeu também a importância da
mulher como agente da mudança social através do maior acesso à educação e ao mercado de
trabalho, raízes do seu empowerment. Além disso, o planejamento familiar não aparece como
componente em nenhum programa de ajuda ou em agenda de reformas e políticas (Paiva;
Wanjman, 2005).
Ainda sobre a importância de instituições que promovem conferência, encontros que
dizem respeito a um determinado problema na realidade social, podemos destacar ainda o
papel da ONU Mulheres. A ONU Mulheres, entidade das Nações Unidas, foi criada em 2010
com objetivo de acelerar a implementação das metas da Organização para a promoção da
igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres atuando em diversos países do mundo,
inclusive no Brasil.
Essa seção foi dedicada à realização de um pequeno resumo reunindo pequenos passos
das mulheres nos últimos anos em prol da sua cidadania. A conquista do direito ao voto foi
um importante passo para que as mulheres pudessem se inserir no espaço público e participar
ativamente da política abrangendo o espaço em que pudessem realizar reivindicações pelos
seus direitos e por maiores debates e representações que contribuíssem para o cumprimento e
garantia de direitos específicos à realidade social vivida por elas. A próxima seção é dedicada
à conquista da cidadania pelas mulheres brasileiras, tendo como foco a Constituição Federal
de 1988, a Constituição Cidadã.

Cidadania e participação política das mulheres no Brasil


Recomeçando o processo de construção da cidadania no Brasil o autor José Murilo de
Carvalho (2003) volta ao tempo da colonização, já que esta deixou marcas no processo da
construção da cidadania brasileira. Relembra a abolição da escravidão que incorporou os
escravos aos direitos civis tornando-se um marco na questão da cidadania. Também o fim da
Primeira República, em 1930, é um marco importante do ponto de vista político. Voltando ao
tempo da colonização é preciso ressaltar que esta não contribuiu para a construção de uma
tradição cívica no país. Ao contrário deixou uma população analfabeta, uma sociedade
escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária e um Estado absolutista, ou seja,
quando foi proclamada a independência não havia cidadãos brasileiros e nem pátria brasileira.
Durante o período em que a mineração se sobressaiu na economia houve uma maior
mobilidade social, mas também um maior controle por parte de Portugal. Mobilidade social e
maior controle contribuíram para a rebelião política. De todos os traços da colonização, a
escravidão é sem dúvidas o fator mais negativo para a cidadania, já que os escravos eram
destituídos dos direitos civis. Todavia, os senhores também não podiam ser considerados
cidadãos na medida em que lhes faltava a noção da igualdade de todos perante a lei.
A Constituição Federal de 1988 destaca quatro tipos de direitos seguindo duas linhas
filosóficas: a liberal-democrática e a de direitos humanos. Na perspectiva liberal-democrática
encontramos os direitos civis, políticos e sociais que são chamados de direitos do indivíduo –

6
 
direitos que enxergam os indivíduos como iguais, onde qualquer tipo de descriminação deve
ser reprimida e punida. Na visão dos direitos humanos, encontram-se os direitos sociais e
reconhece-se a diferença. Grupos específicos da sociedade se reconhecem como diferentes e
exigem que haja reconhecimento de suas especificidades pela sociedade e reivindicam diretos
identitários. Os direitos humanos são universais, no sentido que alcançam todos os homens,
sem distinção de cor, raça, etnia, credo, gênero, e positivos, porque “pretende firmar e
assegurar os direitos humanos mediante um corpus articulado e orgânico de leis, normas e
regulamentos” válidos nacionalmente e internacionalmente.
O Brasil, com a instauração da Constituição Federal de 1988, começou a fazer mudanças
no que se refere ao âmbito da administração pública. Embora setores público e privado sejam
diferentes na questão estrutural, desde a reforma Gerencial na década de 1990, o setor público
tem incorporado muitas características do setor privado, se tornando cada vez mais eficiente.
O papel do gestor público no processo decisório é de fundamental importância para gerar essa
eficiência maior e para garantir maior efetividade das políticas públicas, principalmente
quando está envolvido o reconhecimento do direito de grupos específicos.
A demanda por ações públicas específicas, principalmente, direcionadas a grupos de
vulnerabilidade social e a grupos específicos da sociedade vêm crescendo com o tempo. As
políticas públicas sociais – direcionadas a promover a igualdade no que se refere às
oportunidades e baseadas na visão liberal-democrática – contribuem para o desenvolvimento
da sociedade brasileira de modo a equalizar as oportunidades de acesso à educação, cultura,
seguridade social e de terem poder de compra.
Com o reconhecimento dos direitos humanos pela Constituição Federal de 1988, gerou
uma nova visão das especificidades na sociedade. Contrapondo à visão liberal-democrática, os
direitos humanos reconhecem a diferença dos indivíduos e através dessa diferença promovem
os direitos identitários. Os grupos beneficiados por esses direitos no Brasil são aqueles com os
quais, de certa forma, o país tem uma dívida – índios e afrodescendentes – e crianças e
adolescentes, idosos e a família. Outros grupos como mulheres, homossexuais estão tendo
seus direitos reconhecidos também. Por exemplo, a Lei Maria da Penha que protege a mulher
contra a violência, principalmente de seus parceiros e, atualmente, a lei que aprova o
casamento homossexual, baseado em uma nova interpretação da Constituição no que se refere
ao reconhecimento de o que é considerado família.
Para a garantia de todos esses direitos seria necessária também a criação de políticas
sociais capazes de garanti-los. O conceito de cidadania discutido pela autora Sonia Maria
Fleury Teixeira em seu artigo “Política social e democracia: reflexões sobre o legado da
seguridade social” explana que a cidadania corresponde à pauta de direitos e deveres dos
considerados cidadãos e do Estado ao qual pertencem. A resposta do Estado às demandas dos
seus cidadãos, principalmente no que tange a políticas sociais, seriam uma forma de
reconhecer e dar aos indivíduos a condição de cidadão. Portanto, todos esses direitos precisam
de políticas públicas efetivas e bem planejadas. Os gestores públicos precisam ser sensíveis às
demandas da sociedade e antecipá-las. O planejamento deve levar em conta a relação custo-
benefício (quanto custará para o governo e quão efetiva será a abrangência dessa política), a
real necessidade do cidadão e deve-se buscar a maior eficiência possível. Cabe ao gestor
público, também, estar atento às execuções das ações públicas para que realmente atendam às
necessidades demandadas. Assim, o indivíduo terá o reconhecimento de seus direitos e de sua
condição de cidadão perante o Estado ao qual pertence.

7
 
No Brasil, a participação e o reconhecimento pleno da cidadania feminina têm sido
conquistados a duras penas. O direito ao voto, por exemplo, foi conquistado na Era Vargas,
porém era facultativo. Tornou-se obrigatório apenas com a Constituição de 1934 (Lopes,
2011). Foi o primeiro passo das brasileiras em prol da participação política. Segundo Leila
Linhares Barsted (2001):

“O  movimento  feminista  brasileiro  foi  um  ator  fundamental  nesse  processo  de  
mudança  legislativa  e  social,  denunciando  desigualdades,  propondo  políticas  
públicas,  atuando  junto  ao  Poder  Legislativo  e,  também,  na  interpretação  da  lei.  
Desde  meados  da  década  de  70,  o  movimento  feminista  brasileiro  tem  lutado  
em  defesa  da  igualdade  de  direitos  entre  homens  e  mulheres,  dos  ideais  de  
Direitos  Humanos,  defendendo  a  eliminação  de  todas  as  formas  de  discriminação,  
tanto  nas  leis  como  nas  práticas  sociais.  De  fato,  a  ação  organizada  do  movimento  
de  mulheres,  no  processo  de  elaboração  da  Constituição  Federal  de  1988,  ensejou  
a   conquista   de   inúmeros   novos   direitos   e   obrigações   correlatas   do   Estado,   tais  
como   o   reconhecimento   da   igualdade   na   família,   o   repúdio   à   violência   doméstica,  
a  igualdade  entre  filhos,  o  reconhecimento  de  direitos  reprodutivos,  etc.”

A Constituição Federal de 1988 foi um grande marco para os direitos humanos no


Brasil. Conhecida como Constituição Cidadã, foi um marco político importante para os
direitos da mulher. O Artigo 5º determina que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”,
trazendo ainda o Inciso I, em que é exposta a igualdade entre homens e mulheres no que diz
respeito a direitos e obrigações. Outra conquista importante com a CF-1988 é a Licença-
maternidade de cento e vinte dias (A Lei 11.770, aprovada em 2008, permite a prorrogação da
licença por mais sessenta dias) constada no Artigo 7º.
Em 2003 foi criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva com objetivo de promover maior
igualdade entre homens e mulheres e valorizar a participação das mulheres no processo de
desenvolvimento do país. A Secretaria atua sob três primas principais: políticas do trabalho e
da autonomia econômica das mulheres, enfrentamento à violência contra as mulheres e
programas e ações nas áreas de saúde, educação, cultura, participação política, igualdade de
gênero e diversidade. Além de ações específicas dentro de cada um dos prismas como frentes
de atuação da Secretaria, há ainda a realização de campanhas de conscientização e pesquisas.
Em relação ao enfrentamento à violência contra a mulher, foi aprovada em 2006, a Lei
nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha. A Lei Maria da Penha prevê os “mecanismos
para prevê e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do
art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a
Lei de Execução Penal; e dá outras providências” (BRASIL, 2006).
A Lei 12.034 (2009) discorre sobre a composição das listas para candidaturas
eleitorais de cada partido. Todos os partidos devem cumprir obrigatoriamente o mínimo de
30% e máximo de 70% de cada sexo. Além disso, a lei define o repasse de 5% dos recursos
referente ao fundo partidário para incentivar as candidaturas femininas.
No site do Tribunal Superior Eleitoral estão disponíveis dados estatísticos eleitorais.
Para o presente estudo, foram utilizados os dados referentes às eleições de 2014 em relação à
distribuição do eleitorado por sexo e dos candidatos eleitos por sexo. Os dados foram

8
 
manuseados com auxílio do software estatístico STATA e os gráficos foram elaborados com
o auxílio do Microsoft Excel e serão apresentados a seguir.
Em relação à composição do eleitorado brasileiro, ou seja, aos brasileiros que de
acordo com o parágrafo primeiro do Art. 14 da Constituição Federal de 1988 cumprem os
requisitos legais para votar, quais sejam: maiores de 18 anos (voto obrigatório), brasileiros
com idade maior que 16 anos e menor que 18 anos e maior que 70 anos (voto facultativo),
analfabetos (voto facultativo), a maioria é de mulheres. O gráfico abaixo mostra a evolução
do eleitorado brasileiro em percentual nos anos de 2008 a 2014. Nesse período, pode-se
observar um leve aumento no percentual de mulheres. Em 2008, o número de mulheres foi de
67.484.608 para 74.248.667 em 2014. O número total de eleitores subiu de 130.472.076, em
2008, para 142.467.862, em 2014.  
Gráfico 1- Evolução do eleitorado brasileiro por sexo em anos eleitorais de 2008 a 2014

2014 52.1%
47.8%

2012 51.9%
48.0%
Feminino

2009 51.8% Masculino


48.1%

2008 51.7%
48.2%

0.0% 20.0% 40.0% 60.0% 80.0% 100.0%


Fonte: Gráfico elaborado pelos autores com dados extraídos do site do Tribunal Superior Eleitoral – TSE.

O gráfico a seguir mostra os candidatos à eleição para os cargos de Vice-governador,


Governador, Vice-presidente e Presidente distribuídos por sexo em percentual no ano de
2014. A distribuição mostra que ainda há um percentual muito maior de candidatos homens
aos cargos de maior representatividade no país. A primeira mulher eleita diretamente após
vencer as eleições majoritárias para governar um estado brasileiro foi Roseana Sarney, no
Maranhão. Apesar de ter sido a primeira mulher eleita, a primeira mulher a governar um
estado foi Iolanda Fleming, eleita vice-governadora do Acre. O então governador, Nabor
Junior, deixou o cargo para disputar as eleições para o Senado, tornando Iolanda governadora
do estado. Nas eleições de 2014, apenas o estado de Roraima elegeu uma mulher para o
governo do estado, a governadora Suely Campos. De certa forma, esse dado representa um
retrocesso em relação aos anos anteriores. Em 2002, 2006 e 2010 foram eleitas duas
governadoras em cada uma das eleições, o que configura um baixo índice de mulheres eleitas
para os governos estaduais.
A primeira mulher eleita Presidente da República foi Dilma Rousseff, em 2010,
tornando-se também a primeira mulher a ser reeleita presidente, em 2014. O ano de 2014 foi
marcante também por ter duas mulheres fortemente cotadas para a disputa do segundo turno
das eleições presidenciais: Dilma Rousseff e Marina Silva, que acabou sendo ultrapassada no
final pelo candidato Aécio Neves.

9
 
Gráfico 2 - Distribuição percentual de candidatos à eleição de 2014 por cargo e sexo

27.0%
Vice-governador
73.0%

11.7%
Governador
88.3%

Feminino
27.3%
Vice-presidente
72.7% Masculino

27.3%
Presidente
72.7%

0.0% 20.0% 40.0% 60.0% 80.0% 100.0%


Fonte: Gráfico elaborado pelos autores com dados extraídos do site do Tribunal Superior Eleitoral – TSE.

O gráfico 3 mostra a distribuição percentual dos candidatos aos cargos de Deputados


Distrital, Estadual e Federal e Senador. O percentual de homens que se candidataram chega a
ser mais que o dobro do percentual de mulheres. Desse total de candidatos à eleição, apenas
cinco mulheres (20,8%) foram eleitas Deputadas Distritais, 46 foram eleitas Deputadas
Federais, 108 (10,4%) foram eleitas Deputadas Estaduais e 5 (18,5%) foram eleitas
Senadoras.

Gráfico 3- Distribuição percentual de candidatos à eleição de 2014 por cargo e sexo

29.9%
Deputado Distrital
70.1%

29.0%
Deputado Estadual
71.0%
Feminino
29.3% Masculino
Deputado Federal
70.7%

20.6%
Senador
79.4%

0.0% 10.0%20.0%30.0%40.0%50.0%60.0%70.0%80.0%90.0%
Fonte: Gráfico elaborado pelos autores com dados extraídos do site do Tribunal Superior Eleitoral – TSE.

O número de mulheres brasileiras como representantes políticas da sociedade nos


poderes Legislativo e Executivo ainda é baixo. Dessa forma, os interesses femininos podem
não estar totalmente representados, o que acrescenta uma barreira à conquista plena da
cidadania feminina. Porém, há de ser dito que, mesmo ainda abaixo do ideal, a presença das
mulheres na política atualmente demonstra um quadro favorável à garantia e ao
reconhecimento dos direitos das mulheres. A eleição da presidenta Dilma Rousseff é um
marco histórico positivo à luta das mulheres e um passo para o rompimento de um processo
histórico-cultural que determina o papel das mulheres na sociedade limitado à esfera
particular e a determinadas tarefas.

10
 
Considerações Finais

Sob a perspectiva da luta por direito das mulheres, este estudo se propôs a introduzir a
discussão sobre os conceitos de cidadania e da cidadania no Brasil. As mulheres começaram a
conquista por seu espaço quando foram incorporados alguns direitos na Declaração dos
Direitos Humanos. Sendo assim, iniciou-se o processo feminino pelo reconhecimento da sua
cidadania, bem como da participação nas definições de políticas públicas, gerando assim a
reconstrução do papel social da mulher nas sociedades modernas. No Brasil, a Lei 12.034 de
2009 configura um importante passo da abertura à participação política mais efetiva das
mulheres, principalmente ao contribuir para o fortalecimento dos movimentos feministas e
incentivar candidaturas das mulheres.
O governo, no executar de suas funções, deve romper com a cultura e a lógica que tratam
as mulheres como seres inferiores e que as desqualificam para o exercício de determinadas
funções ou as qualificam para o exercício de funções específicas e tidas, historicamente, como
funções típicas da mulher. O reconhecimento da igualdade, a atuação ao lado dos movimentos
sociais, a elaboração e execução de políticas que visam a emancipação e empoderamento das
mulheres contribuem para o aprofundamento da democracia.
O Código Civil brasileiro traz importantes alterações em seu texto, principalmente no que
tange aos direitos da família. No sentido de contribuir para a igualdade de gênero, o texto
deixa de fazer referência ao “homem” e se refere à “pessoa”. Além disso, exclui a
possibilidade do pai deserdar a filha em caso de defloração da sua virgindade, determina a
igualdade entre esposos e esposas em relação às responsabilidades no casamento, redefine o
conceito de família, tornando-o mais amplo e reconhecendo as unidades familiares formadas
por casamento, união estável ou família monoparental, altera para a possibilidade do
responsável com melhores condições ficar com a guarda dos filhos e, não mais, a mãe apenas,
entre outras mudanças. Essas medidas representam alterações importantes rumo a políticas
mais igualitárias entre homens e mulheres, não esgotando ainda a necessidade de continuar
caminhando em busca de leis e políticas em prol da igualdade de gênero.
No que tange ao aspecto da participação política das mulheres, o Brasil avançou quando
aprovou a Lei nº 12.340/09 que determina parcela mínima de composição das listas
partidárias, porém retrocedeu quando a Câmara dos Deputados rejeitou a Reforma Política
feminina (PEC 182/07, do Senado) que garantiria cota para as mulheres de forma progressiva
(10%, 12% e 15%) nas próximas três legislaturas nas câmaras de vereadores, assembleias
legislativas estaduais, Câmara dos Deputados e na Câmara Legislativa do Distrito Federal.
Dessa forma, fica exposto que o baixo percentual de mulheres na política brasileira reflete a
estrutura ainda arraigada pela cultura patriarcal, machista e que torna ainda mais difícil a
participação das mulheres no poder público.
Há ainda um longo caminho a ser percorrido para que haja pleno reconhecimento dos
direitos da mulher, bem como do reconhecimento do seu papel como cidadã. Historicamente,
as mulheres foram julgadas como incapazes, principalmente no âmbito da participação
política. Porém, as mulheres fizeram parte efetivamente da construção da sociedade, sendo,
portanto, um direito fundamental seu reconhecimento e a abertura maior do espaço político
para sua representação, reconhecimento da sua cidadania e participação.

Notas
¹ Bacharela em Gestão Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais.
² Graduando em Administração Pública na Universidade Federal de Alagoas – Campus Arapiraca – AL.

11
 
³A expressão empowerment conota capacitação, fortalecimento do status das mulheres, assim como, maior participação no
poder, público e privado.

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12
 
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População, 22, 2: 3030-322. 2005.

13
 
Avaliação de Políticas Públicas: Instrumento imprescindível para
dimensionar a viabilidade de programas e projetos públicos.
Renata Dias Costa Sá (UFBA)
Elizabeth Matos Ribeiro (UFBA)

RESUMO
Embora se observe um crescente reconhecimento por parte do governo da importância da
prática de avaliação como um importante instrumento de gestão e gerência, pois favorece
conhecer, compreender, aperfeiçoar e (re)orientar ações que visam o aperfeiçoamento ou
realinhamento das ações do Governo, a administração pública brasileira ainda revela posturas
conservadoras em relação a tais práticas. Tal comportamento se torna mais evidente quando
se observa uma grande dificuldade em se utilizar a avaliação como instrumento (re)orientador
das ações administrativas, seja no âmbito do governo federal, estadual e principalmente na
esfera municipal. Essa constatação permite antecipar uma conclusão do estudo de que as
diversas instâncias governamentais brasileiras têm perdido a oportunidade de utilizar a
avaliação como um importante instrumento de aprendizagem de novas práticas
administrativas.

1. INTRODUÇÃO
Enquanto área do conhecimento, políticas públicas nasce nos EUA, como subárea da ciência
política com ênfase nos estudos sobre as ações dos governos nos anos 50 e chega à
comunidade acadêmica européia duas décadas depois (SOUZA, 2006).
As políticas públicas brasileiras que eram promovidas pelo Estado até o início da década de
80 do século passado caracterizavam-se pelo processo decisório e capacidade de
financiamento centralizado nas mãos do Estado, reflexo dos padrões de administração pública
concebido em Vargas e concluído pelos militares. Neste contexto, cabia aos Estados e
Municípios apenas a execução das políticas formuladas pelo governo central. A articulação
entre governos estaduais, municipais e governo federal se estabelecia com base na troca de
favores de cunho clientelista, fundamentado na chamada política dos governadores. O
atendimento das demandas e necessidades da sociedade era controlado pelo governo federal
deixando as esferas regionais e locais totalmente subordinadas às prioridades e decisões da
União.  
As políticas públicas neste período se caracterizavam pela fragmentação institucional e, esse
crescimento desordenado do aparato estatal acabou gerando uma sobreposição de agências
governamentais que passou a funcionar sem a devida coordenação e acabaram dificultando o
desenvolvimento de ações administrativas articuladas e integradas entre si. Tal deformação
acabou implicando, por um lado, limitações no alcance da eficácia das políticas, por outro,
provocou o afastamento da sociedade civil do processo de formulação e implementação de
políticas públicas. Desta forma, o processo decisório revelava o predomínio do clientelismo,
do corporativismo e do insulamento burocrático.
Mas cabe ressaltar que ao longo dos últimos vinte anos, após a promulgação da Constituição
Federal de 1988 e a consolidação do processo democrático, o Estado brasileiro vem passando
por transformações que tendem a redirecionar a forma de conceber e gerir políticas públicas.
Essas mudanças estão centradas no esforço governamental e também social de se implementar
um modelo de gestão pública pautado nos princípios constitucionais que fundamentam a
democracia, especialmente os que fomentam a criação e consolidação de instrumentos de co-
gestão ou co-produção das políticas públicas. Observam-se, portanto, evidências de esforços
empreendidos no sentido de avançar no aprimoramento da relação entre os atores sociais e
institucionais em âmbito nacional, regional e local. Ao lado desta preocupação em se
implantar processos de democratização e garantia da equidade social, foram incorporadas na
agenda pública, a partir da reforma gerencial do Estado (de 1995) preocupações com o
alcance de indicadores melhores de eficiência, eficácia e efetividade das políticas.

É neste contexto, portanto, que o debate acerca da avaliação de políticas públicas ganha
relevância e passa a assumir a avaliação como um instrumento imprescindível para
dimensionar a viabilidade de programas, projetos e ações, a partir da capacidade de não medir
desempenho, mas principalmente de possibilitar caminhos alternativos para a reformulação
e/ou redirecionamento dos objetivos das ações governamentais.

Para Dye (2005), avaliar políticas inclui: estudar os programas; relatar os ouputs dos
programas governamentais; avaliar os impactos dos programas sobre os grupos-alvo e sobre
os outros grupos, e propor mudanças e ajustes.

Essa prática apesar de ter assumido lugar de destaque nos discursos e planos de governos tem
se revelado, ainda, bastante incipiente, em especial quando focaliza a avaliação de
desempenho, resultados e impactos de políticas, programas, projetos e ações públicas.

Neste sentido, corrobora Fischer (2002, p. 158) ao afirmar que:

É difícil precisar a tradição da avaliação de projetos no Brasil,


mas suspeita-se haver uma fraca cultura de avaliação, onde:
(a) raramente os projetos sociais do setor público são
concebidos de forma a tornar a sua avaliação exequível; (b)
tais projetos tendem a ser avaliados em termos de indicadores
de processo que se referem à cobertura do projeto, como por
exemplo, número de escolas construídas etc. e não em termos
do seu impacto, como por exemplo o índice de erradicação da
alfabetização; ou de resultados de longo prazo como a
diminuição da pobreza, etc; e (c) há uma tradição das
organizações do setor público (e privado) brasileiros de não se
auto avaliarem, sendo a norma simplesmente sobrepor novos
projetos para tratar de problemas recorrentes. Talvez o
conceito que melhor expresse tal realidade seja o de
“esquecimento organizacional” em lugar de aprendizagem.
Especialmente o esquecimento por meio de desassociação ou
desorientação, ou seja a perda de continuidade com o passado
e com o futuro, onde as ações são desligadas de suas
consequências.

Nesta direção, Frey (1996, p. 219) acrescenta que “as disputas políticas e as relações das
forças de poder sempre deixarão suas marcas nos programas e projetos desenvolvidos e
implementados”.

Quando se observa um maior empenho por parte do governo em implantar


mecanismos/sistemas de avaliação, muitas vezes até bastante sofisticados, esse compromisso
tem se limitado apenas a cumprir exigências formais por parte das agências governamentais
ou multilaterais de investimento ou mesmo como forma de cumprir obrigações legais.
As necessidades de avaliação em políticas públicas estão, em geral, associadas a problemas
verificados no processo de implementação de seus programas, pois estas dificilmente
conseguem atingir os objetivos e metas propostas e raramente são implementados de acordo
com o desenho original traçados por seus formuladores, conforme defende Cavalvanti (2010).

Neste contexto, destacam-se dois fatores que têm exercido grande influência na
implementação dos programas públicos no Brasil: (a) as fortes assimetrias que tem marcado
historicamente o padrão do federalismo nacional; e (b) as limitações do recente processo de
consolidação da democracia (ARRETCHE, 2007).

Cabe acrescentar a esses dois fatores o fato de que as políticas públicas sofrem fortes, e
muitas vezes nefastas influências da fragilidade e incongruências do sistema político
(sistemas de partidos) vigente no país. Os fatores partidários tem exercido, nesses casos, um
papel negativo, pois exercem influência perversa nas relações entre os grupos de interesses
locais. Tal cenário tem comprometido negativamente os resultados e efeitos advindos das
políticas públicas implementadas em âmbito local e regional.

Diante o exposto, o grande desafio para a disseminação dos instrumentos de avaliação de


programas e projetos no setor público é justamente encontrar pressupostos teórico-
metodológicos que permitam mensurar, de forma confiável, o desempenho das políticas e
construir uma base de análise consistente que permita desencadear processos de
aprendizagens com vistas à promoção de mudanças efetivas nas práticas de gestão pública em
âmbito local e regional.

2. AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Sobre o conceito de avaliação em políticas públicas a literatura é bastante vasta e complexa.


Portanto, aqui não se pretende esgotar a discussão, mas focalizar os tipos de avaliações que
respondem melhor aos problemas de implementação de programas de políticas públicas.

Conforme destacado por Mattos e Baptista (Op. Cit., p. 181-182):

As raízes da avaliação remontam aos primórdios da história da humanidade


(avaliação informal), no entanto a avaliação formal teve como marco histórico
o período da Grande Depressão nos Estados Unidos até o período que sucedeu
a Segunda Grande Guerra Mundial pela necessidade de avaliação das políticas
públicas implementadas para equacionar os problemas sociais existentes
(Guba & Lincoln, 1989). A avaliação, desde então, vem passando por
constantes transformações e diferentes influências que se traduzem na
confluência de diferentes campos do saber, como as ciências sociais, a
economia, a pesquisa clinica e epidemiológica e o direito.
Com a expansão do campo da avaliação, surgiram diferentes vertentes e
tendências norteadoras de saberes e práticas, que Guba e Lincoln (1989), ou
mesmo Almeida (2006), vão localizá-las em quatro gerações: a primeira
(1910-1930) que tem como ênfase a construção e aplicação de instrumentos de
medidas para avaliar os beneficiários de uma intervenção; a segunda (1930-
1967), centrada na descrição da intervenção marca o surgimento da avaliação
de programas; a terceira (1967-1980) apoiada no julgamento de mérito e do
valor de uma intervenção para ajudar na tomada de decisões; e a quarta (1980-
atual) refere-se à negociação entre os atores interessados e envolvidos na
avaliação.
No Brasil, nas duas últimas décadas, observa-se um avanço nos processos de avaliação de
políticas públicas, em especial, devido ao processo de descentralização e municipalização da
gestão de políticas públicas que ocorreu no país a partir da Constituição de 1988.

Mattos e Baptista (Op. Cit.) destacam que, embora a avaliação seja apontada no ciclo da
política como uma fase específica, nos modelos que adotam esta perspectiva, ela é utilizada
como um instrumento de apoio a tomada de decisões nas diversas fases do ciclo. Ou seja, os
autores ressaltam que a mesma não se restringe à avaliação de resultados da política, nem
tampouco à etapa final do processo.

Há um relativo consenso de que o processo de avaliar implica a atribuição de valor. Essa


definição clássica foi endossada pelo britânico Michael Scriven (1967) apud Boullosa (2009),
que define a avaliação como uma atividade formal de atribuição de valor material, simbólico e
de mérito a uma entidade, que pode assumir diferentes complexidades, como planos,
programas, projetos e/ou ações.

Spink (2001, p. 07), por sua vez, discute a avaliação de programas, projetos e atividades, não
como prática científica ou técnica, mas enquanto prática social, afirmando que “(...) se
avaliação é a atribuição de valor: quem deve atribuir valor? Ou, visto na ótica das avaliações
que encontramos nas agências de desenvolvimento e nos financiadores de projetos: o valor
que está sendo atribuído é o valor de quem?”

Para o autor, todo projeto, programa ou atividade que visa contribuir, melhorar ou alterar uma
situação existente é, por definição, um conjunto de ações não estático que intervêm num
processo social contínuo e situado historicamente. Acrescenta que “a avaliação precisa ser
entendida não como auditoria ou cobrança, mas, antes de qualquer coisa, como uma parte
integral da construção cotidiana da democracia” (Ibidem, p. 13).

Para Dye (2005), avaliar políticas inclui: estudar os programas; relatar os ouputs dos
programas governamentais; avaliar os impactos dos programas sobre os grupos-alvo e sobre
os outros grupos, e propor mudanças e ajustes.

No final da década de 80 e durante a década de 90, a administração pública brasileira passou


por uma fase de reformas, a chamada reforma gerencialista, justificada pela crise de
governabilidade e credibilidade do Estado. Esta reforma pautou-se em princípios neoliberais e
definiu como um dos seus objetivos principais a avaliação, com vistas à melhoria funcional da
administração pública, a partir da filosofia empresarial. Nesse bojo, pode-se inferir que a
prática da avaliação das políticas públicas implementadas pelos governantes e dos resultados
alcançados em determinado período possui um viés do gerencialismo trazida pela reforma do
Estado, com foco nos resultados.

A busca pela modernização da gestão pública reforçou o valor da avaliação enquanto etapa
final do ciclo de projetos e programas. No entanto, embora a avaliação esteja atualmente
reconhecida pela administração pública brasileira, o seu uso, em virtude da visão
gerencialista, ainda é muito restrito, conforme destaca Boullosa (Op. Cit.).
A autora argumenta ainda que, embora o processo de avaliação tenha sido muito difundido no
Brasil, ainda não se observa uma cultura de avaliação consolidada e integrada. Avalia-se,
segundo Boullosa, porque se sabe que deve, mas na maioria das vezes não se sabe bem o
porquê, distanciando-a dos processos de aprendizagem que incluem intervenção social,
sobretudo, quando são promovidos pelo Estado. Neste sentido, corrobora Fischer (2002, p.
158) que:
É difícil precisar a tradição da avaliação de projetos no Brasil,
mas suspeita-se haver uma fraca cultura de avaliação, onde:
(a) raramente os projetos sociais do setor público são
concebidos de forma a tornar a sua avaliação exequível; (b)
tais projetos tendem a ser avaliados em termos de indicadores
de processo que se referem à cobertura do projeto, como por
exemplo, número de escolas construídas etc. e não em termos
do seu impacto, como por exemplo o índice de erradicação da
alfabetização; ou de resultados de longo prazo como a
diminuição da pobreza, etc; e (c) há uma tradição das
organizações do setor público (e privado) brasileiros de não se
auto avaliarem, sendo a norma simplesmente sobrepor novos
projetos para tratar de problemas recorrentes. Talvez o
conceito que melhor expresse tal realidade seja o de
“esquecimento organizacional” em lugar de aprendizagem.
Especialmente o esquecimento por meio de desassociação ou
desorientação, ou seja a perda de continuidade com o passado
e com o futuro, onde as ações são desligadas de suas
consequências.

Os conceitos formulados pelos autores Scriven (1967), Patton (1998), Weiss (1998) e
Boullosa (2007) consideram que em toda avaliação emite-se um juízo de valor. Neste sentido,
Boullosa (Op. Cit., p. 112) acrescenta que:

Avaliação é o conjunto de atividades, nem sempre


solidamente correlacionadas, voltado para a expressão de um
juízo ou síntese avaliatória, direcionado a um fim, nem sempre
claro e/ou explícito, empreendido por um conjunto de agentes,
nem sempre definidos ou etiquetados como avaliadores. Este
juízo deve ser o máximo possível argumentado através de
instrumentos e procedimentos de pesquisa avaliatória (não
somente pesquisa social aplicada), de modo a possibilitar a
sua reconstrução analítica e discussão dos resultados, juízo ou
síntese avaliatória, pelas coletividades interessadas em tal
avaliação, desencadeando um processo de aprendizagem
prático-institucional (relativo ao objeto de avaliação) e social
(relativa à dimensão dialógico-cívica da sociedade em geral).

Ainda neste sentido, Arretche (1998) contribui ao esclarecer que, devido ao fato de que todo
processo de avaliação envolve necessariamente um julgamento, uma atribuição de valor, uma
medida de aprovação ou desaprovação a uma política ou programa, bem como uma análise da
mesma com base numa certa concepção de justiça, não existe possibilidade de que uma
avaliação ou análise de políticas públicas seja apenas instrumental ou técnica, devido ao forte
envolvimento entre atores e interesses.

Entende-se, desta forma, que em termos de definição de avaliação não existe um consenso.
No entanto, observa-se que existe um consenso em relação ao julgamento na avaliação, ou
seja, a atribuição de valores deve ser pautada em critérios legítimos e válidos, assim como se
deve explicitar, de forma clara, os critérios e parâmetros utilizados na emissão de julgamento.
Além disso, não se pode desprezar o caráter político da avaliação, tornando-a muitas vezes
uma ferramenta gerencial. Neste contexto, Faria (2005, p. 98) corrobora quando observa que
“nos debates e nos estudos correlatos mais recentes a prevalência de um viés normativo e/ou
uma priorização dos aspectos mais técnicos da avaliação das políticas públicas, bem como
uma ênfase em seu papel de instrumento gerencial”.

3. O CARÁTER IMPRESCINDÍVEL DA AVALIAÇÃO PARA DIMENSIONAR A


VIABILIADE DE PROGRAMAS E PROJETOS PÚBLICOS

Avaliar é na verdade uma atividade intrínseca ao ser humano, portanto, a avaliação é uma
atividade carregada de subjetividade, relacionada tanto ao campo da decisão, quanto ao
campo da aprendizagem individual e social. O propósito da avaliação é guiar os tomadores de
decisão para a continuidade, necessidade de correções ou até mesmo suspensão de uma
determinada política ou programa.

As necessidades de avaliação em políticas públicas estão, em geral, associadas a problemas


verificados no processo de implementação de seus programas, pois estas dificilmente
conseguem atingir os objetivos e metas propostas e raramente são implementados de acordo
com o desenho original traçados por seus formuladores, conforme defende Cavalvanti (2010).

Neste contexto, destacam-se dois fatores que têm exercido grande influência na
implementação dos programas públicos no Brasil: (a) as fortes assimetrias que tem marcado
historicamente o padrão do federalismo nacional; e (b) as limitações do recente processo de
consolidação da democracia (ARRETCHE, 2007).

Cabe acrescentar a esses dois fatores o fato de que as políticas públicas sofrem fortes, e
muitas vezes nefastas influências da fragilidade e incongruências do sistema político
(sistemas de partidos) vigente no país. Os fatores partidários tem exercido, nesses casos, um
papel negativo, pois exercem influência perversa nas relações entre os grupos de interesses
locais. Tal cenário tem comprometido negativamente os resultados e efeitos advindos das
políticas públicas implementadas em âmbito local e regional.

Mattos e Baptista (Op. Cit.) consideram que a avaliação tanto pode ser resultado direto da
aplicação de critérios e normas bem definidos, como pode ser elaborada a partir de um
procedimento científico, neste caso, caracterizando-se como uma pesquisa. Desta forma,
entende-se a avaliação como uma ferramenta de pesquisa, que atende aos critérios de
sistematização e planejamento, com vistas a possibilitar dados e informações de forma
confiável. Avaliar projetos consiste, ainda, em verificar, de forma sistemática, se um
programa está operando em conformidade com o seu planejamento. Nesse sentido, afirma
Fischer (Op. Cit., p. 229) que:

Por avaliação entende-se o exercício, fixo ou não no tempo,


destinado a avaliar, sistemática e objetivamente, a relevância,
o desempenho e o sucesso de projetos e programas já
concluídos ou em andamento. Assim como no monitoramento,
as atividades de avaliação devem ser planejadas no nível do
país, do programa ou do projeto. Deve-se estabelecer um
diagnóstico da situação (base line data) e os indicadores de
desempenho adequados.
Dye (2005) considera que a avaliação de políticas públicas inclui: estudar os programas;
relatar os ouputs dos programas governamentais; avaliar os impactos dos programas sobre os
grupos-alvo e sobre os outros grupos e propor mudanças e ajustes.

Nos componentes contextuais de resultados de projeto de políticas públicas, destacam-se três


características básicas de uma avaliação, segundo Carvalho apud Araújo e Boullosa (Op. Cit.,
p. 115), a saber:

1) É um processo contínuo e permanente, que abarca o projeto desde


sua concepção, sua implementação e seus resultados;
2) É um processo participativo, que envolve tanto gestores, equipe
executora e beneficiários da ação quanto agentes externos, como
especialistas em avaliação, parceiros e financiadores;
3) É um processo de aprendizado social, ou seja, deve permitir aos
envolvidos no projeto a apropriação reflexiva da ação.

Uma das propostas apontadas pelo PPNADL/2006 refere-se justamente ao desenvolvimento


de metodologia de avaliação da produtividade sistêmica do território municipal, na linha das
novas metodologias de avaliação da riqueza, já discutidas no âmbito do governo.

De modo geral, distinguem-se quatro tipos de avaliação, conforme afirma Cavalcanti (2010):

Avaliação ex-ante; Avaliação ex-post ou somativa; Avaliação formativa ou de processo e


Monitoramento.

Ø Avaliação ex-ante

Esta avaliação é realizada antes do início do projeto e procura medir a viabilidade do


programa a ser implementado considerando a relação custo-benefício, podendo ainda medir a
viabilidade política e institucional, bem como as expectativas dos seus beneficiários. Segundo
Mattos e Baptista (Op. Cit., p. 154) este tipo de avaliação consiste:

(...) no levantamento das necessidades e estudos de factibilidade que


irão orientar a formulação e a tomada de decisões para uma política.
Denominadas por Draibe (2001) como “avaliações-diagnóstico”,
atendem a um ou dois dos seguintes objetivos: (a) produzir
orientações, parâmetros e indicadores que se incorporam ao projeto,
melhorando seu desenho e suas estratégias metodológicas e de
implementação; e (b) fixar um ponto de partida que permita
comparações futuras (linhas de base ou tempo zero).

Ø Avaliação ex-post ou somativa

Este tipo de avaliação investiga em que medida o programa atinge os resultados esperados
pelos formuladores no plano de implementação ou após a sua conclusão, e pode ser agrupada
nas modalidades de resultados esperados e resultados não esperados a partir da análise de
objetivos, impactos e resultados. Segundo Mattos e Baptista (Op. Cit., p. 157):

A avaliação somativa trabalha com dados relativos aos resultados.


Busca a análise e produção de informações que têm como interesse
subsidiar decisões relativas à continuidade do programa, seu
encerramento, sua ampliação e mesmo sua adoção por outros gestores
ou em outros momentos, fundamentando-se na especificação de até
que ponto os objetivos propostos foram atingidos.

Neste caso, Cavalcanti (Op. Cit.) destaca que quando independente de sua modalidade a
variável “resultados” ganha destaque no processo de avaliação, faz-se necessário responder a
algumas indagações. A Universidade de Campinas apud Cavalcanti (Op. Cit., p. 43) destaca
alguns exemplos:

a) que tipos de serviços ou benefícios os beneficiários do programa


estão recebendo? b) em que medida os serviços ou benefícios
realmente recebidos pelos beneficiários do programa estão de acordo
com as intenções originais dos formuladores? c) os beneficiários estão
satisfeitos com os resultados atingidos pelo programa? d) os resultados
atingidos são compatíveis com os resultados esperados? e) como e
porque os programas implementados geram resultados não esperados?

Na avaliação de resultados com foco nos impactos são abordados os efeitos de uma interven-
ção ou programa de mais longo prazo. Além disso, o impacto não pode ser atribuído, de forma
exclusiva, a uma única intervenção, mesmo que se busque na avaliação de impacto identificar
qual foi à proporção da intervenção ou programa avaliado para obter-se o impacto na popula-
ção geral. Nesse sentido, Mattos e Baptista (Op. Cit., p. 192-193) destacam que:

(...) a avaliação de impacto deve ter um desenho rigoroso e


abrangente, que inclua também os efeitos combinados de intervenções
convergentes. Por isso, avaliações de impacto são tecnicamente
complexas e de alto custo por buscar responder a perguntas do tipo:
Quanto do efeito se deve à intervenção? Quanto da variação do efeito
observado foi devido à intervenção? Essas não são perguntas fáceis de
responder e, em geral, requer, assim como nas avaliações de resultado
estudo com grupos de intervenção e controle e a introdução do contra
factual, ou seja, que ajuda a identificar o que aconteceria com o
desfecho esperado se a intervenção não acontecesse.

Vale destacar que as avaliações ex-post, conforme observam os já citados autores (Op. Cit., p.
154), “são aquelas que ocorrem concomitantemente ou após a implementação da política e se
distinguem, quanto à natureza, em avaliação de processo e avaliação de resultados”.

Ø Avaliação formativa ou de processo

Esta categoria se propõe a investigar como o programa funciona, quais as estratégias


utilizadas para o alcance dos resultados. Centraliza-se nos processos e não nos resultados e,
por isso, é mais utilizada na fase de implementação. Segundo Mattos e Baptista (Op. Cit., p.
154):

As “avaliações de processo” buscam, mormente, identificar os atores


estratégicos a serem mobilizados, a estratégia de implementação e os
subprocessos e estágios pelos quais se desenvolve a implementação.
De acordo com Draibe (2001, p. 30), buscam identificar os fatores
facilitadores e os obstáculos que operam ao longo da implementação e
que condicionam, positiva ou negativamente, o cumprimento das
metas e objetivos. Tais fatores podem ser entendidos como condições
institucionais e sociais dos resultados.
Este tipo de avaliação tem como objetivo fornecer informações para adequar e superar pro-
blemas durante a fase de implementação.

Ø Avaliação de Resultados

Neste caso, pretende-se identificar se os programas cumpriram seus objetivos, levando em


consideração o quanto foi cumprido e com que qualidade. Para Draibe (2001) é possível iden-
tificar alguns tipos de resultados que podem ser avaliados:

1) Desempenho ou resultados (em seu sentido restrito) – são os produtos do programa,


conforme estabelecidos nas metas e resultantes do processo de produção particular;
2) Impactos – referem-se às alterações ou mudanças realizadas efetivamente na realidade que
o programa busca intervir e que são provocadas por ele;
3) Efeitos – referem-se aos outros impactos do programa, ainda que não esperados, e que
afetam o meio social e institucional no qual se realizou.

As avaliações de resultado ou de efetividade/eficácia são mais complexas metodologicamente,


uma vez que abordam como e por que as atividades de uma respectiva intervenção alcança-
ram os resultados esperados numa população-alvo. Este tipo de avaliação pode explicar os
motivos pelos quais alguns resultados não foram alcançados, ou seja, descreve os efeitos da
intervenção e aponta o que poderia ocorrer na sua falta. Conforme ressaltam Mattos e Baptis-
ta, 2011, p. 192):
Assim, uma avaliação de resultado usualmente requer um
elemento comparativo em seu desenho: um grupo controle ou
um grupo de comparação que não recebeu a intervenção.
Além disso, enfatiza as relações causais entre intervenção e
efeito. Esse tipo de avaliação responde a questões do tipo: a
intervenção explica os efeitos esperados? a intervenção ou
programa foi a causa dos resultados observados? Para isso faz-
se necessário estudo com grupos de intervenção e controle
para isolar a influência do contexto externo no alcance de
resultados.

Ø Monitoramento

Trata-se de um processo sistemático e periódico de análise da gestão, funcionamento e


desempenho de programas e projetos e tem como objetivo identificar desvios na execução das
ações entre o planejado e o executado, por isso é desenvolvido na fase de execução do
projeto.

Quanto à metodologia de avaliação, tradicionalmente, o modelo segue a lógica da


racionalidade analítica, porém, nos últimos anos, vêm sendo adotadas abordagens
participativas, como é o caso da Avaliação e Monitoramento Participativos – A&MP, que
propõe que projetos de desenvolvimento local sejam implementados de forma participativa,
flexível e negociada, e, para isso, sugere-se o uso de métodos indutivo-interpretativos para
levantar e analisar as informações. Segundo Fischer (Op. Cit., p. 164):
Enquanto que na avaliação “convencional”, a objetividade
científica é um ideal a perseguir; na participativa busca-se a
emancipação dos indivíduos e comunidades. Neste sentido,
ambos podem ser entendidos como modelos ideais que, na
prática, apresentam uma série de limitações. (...) A aplicação
de projetos de avaliação participativa é mais recente e suas
limitações estão ainda para ser reveladas.

Na avaliação convencional persegue-se a objetividade científica; na participativa, busca-se a


emancipação dos indivíduos. É mais adequada, segundo Fischer (Op. Cit.), quando há a
necessidade de um julgamento externo independente; informação especializada e que por isso
só os peritos técnicos podem prover; as partes interessadas disporem de tempo para participar
ou quando a discordância entre as partes é grande inviabilizando a abordagem colaborativa.

Já a avaliação participativa é muito útil, em especial quando as questões tratam de


dificuldades de implementação; o efeito do projeto nos beneficiários, ou ainda quando a
informação que se deseja refere-se ao conhecimento dos participantes sobre as metas do
programa ou sobre suas visões a respeito do desenvolvimento do mesmo, conforme classifica
Fischer (Ibidem).

Destaca-se ainda, que a metodologia de avaliação participativa emerge de forma intensa a


partir do final dos anos 1960, quando alguns avaliadores questionaram as avaliações
realizadas de cima para baixo (top-dow) sem levar em consideração os atores do objeto da
avaliação.

Estrella e Gaventa (1998) apud Fischer (2002, p. 165) recomendam os seguintes passos para a
avaliação participativa “(i) planejamento, (ii) coleta de dados; (iii) análise de dados e (iv)
documentação, relato e compartilhamento da informação gerada pela avaliação”.

Castanhar e Costa (2007) acrescentam que embora a avaliação de desempenho esteja


normalmente associada à mensuração de eficiência na gestão de programas públicos, este não
é o único e nem o mais importante critério, e destacam outros, de acordo com o Manual da
UNICEF:

a) Eficiência: termo com origem nas Ciências Econômicas que significa a menor relação
custo/benefício possível para o alcance dos objetivos estabelecidos no programa;
b) Eficácia: medida do grau em que o programa cumpre os seus objetivos e metas;
c) Impacto (ou efetividade): indica se o programa tem efeitos (positivos) no ambiente externo
em que ele interveio, em termos técnicos, econômicos, socioculturais, institucionais e
ambientais;
d) Sustentabilidade: mede a capacidade de continuidade dos efeitos positivos desejados, após
o seu término;
e) Análise custo-efetividade: similar à ideia de custo de oportunidade e ao conceito de
pertinência, comparando formas alternativas para ser selecionada aquela atividade/projeto que
atenda àqueles objetivos ao menor custo;
f) Satisfação do beneficiário: avalia a atitude do beneficiário em questão à qualidade do
atendimento que está recebendo do programa;
g) Equidade: busca avaliar o grau em que os benefícios de um programa estão sendo dis-
tribuídos de maneira justa e compatível com as necessidades do usuário.

Spink (2001, p. 16) aborda a avaliação democrática, esboçada a partir da avaliação


participativa, como método de avaliação restrita, destacando que:

Avaliação participativa é uma técnica de avaliação; ninguém


duvida da presença necessária dos avaliadores e seus
conhecimentos; a questão é abrir um pouco o espaço para
outros. Seguindo esta linha, é comum comentar-se nas
agências internacionais que a avaliação participativa é também
uma boa maneira de “educar” comunidades sobre a
importância da avaliação e “ajudá-las” a aprender a fazer, um
sinal claro da postura tutelar em relação à competência e
opinião (...) O uso da expressão avaliação democrática busca
estabelecer uma contraposição que não esconde as diferenças
de poder e de influência e vai em busca de processos cada vez
mais abertos em relação aos atores envolvidos e suas formas
de interação; de aprofundar os mecanismos de governança a
partir dos quais valor é atribuído. Avaliação democrática
inicia-se com a compreensão que atividades, projetos e
programas são intervenções em processos contínuos e, ao
intervir, fazem parte do mesmo processo.

A avaliação democrática deve ser entendida, pois, como ação a favor de uma cidadania que
inclui todos, gestores de projetos e avaliadores. Sua prática foi influenciada pela pesquisa-
ação enquanto processo colaborativo de investigação e ação, pela mobilização social e
pesquisa participante, pela avaliação participativa, educação popular e pela teoria e ação
dialógica de Paulo Freire.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se observa as diferentes modalidades de avaliação, percebe-se que a avaliação de


políticas públicas não pode ser restrita à aferição das metas quantitativas, no entanto, deve se
reportar à qualidade do resultado alcançado. É neste sentido que os conceitos de eficiência,
eficácia e efetividade se revelam importantes no campo das políticas públicas.

A avaliação da eficácia de um projeto, sobretudo quando implementado pelo poder público


como se fosse política pública, permite a imersão de algumas questões que dificilmente
seriam observadas se fossem analisadas somente à luz do próprio projeto e dos seus
respectivos objetivos.

Entende-se que as considerações advindas deste trabalho podem ser vistas como o início de
um leque de possibilidades para outros estudos que envolvam o campo da avaliação de
políticas públicas, de forma a contribuir com a construção de metodologias que favoreçam a
análise da eficiência, eficácia ou efetividade de programas públicos.

REFERÊNCIAS
ARRETCHE, M. A agenda institucional. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 22, n.
64, jun. 2007, p. 147-151.

BOULLOSA, R. F. Avaliação e sistemas de apoio à decisão: reflexões de conteúdo.


Salvador, CIAGS/UFBA, 2007.

__________. Avaliação e Monitoramento de Projetos Sociais. Curitiba: IESDE, 2009.

CASTANHAR, J. C.; COSTA, F. L. da. Avaliação de programas públicos: desafios


conceituais e metodológicos.

CAVALCANTI, M. M. de A. Avaliação de políticas públicas e programas


governamentais: uma abordagem conceitual. 2010.

DYE, T. D. Mapeamento dos modelos de análise de políticas públicas. (Traduzido de:


DYE, Thomas R. Models of politics; some help in thinking about public policy. In:
Understanding public policy. 11a. ed. New Jersey: Prentice-Hall, 2005, p. 11-30.

FISCHER, T. (Org.) Gestão do Desenvolvimento e Poderes Locais: marcos teóricos e


avaliação. Salvador: Casa da Qualidade, 2002.

FREY, C. Crise do Estado: estilos de gestão municipal. Lua Nova, n. 37, p. 107-138, 1996.

MATTOS, R. A.; BAPTISTA, T. W. F. (Org.). Caminhos para análise das políticas de


saúde. Rio de Janeiro: IMS, 2011. Online: disponível em www.ims.uerj.br/ccaps.

PPNADL - Projeto de Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local/2006.

SOUZA, C. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, vol. 18, n. 16, jul.-dez.
2006.

SPINK, P. Parcerias e avanços com organizações não estatais. In: SPINK, P.; CACCIA
BAVA, S.; PAULICS, U. (Org.). Novos contornos da gestão local: conceitos em construção.
São Paulo: Polis/Fundação Getúlio Vargas, 2001, p. 141-175.
 

IV ENCONTRO DE ADMINISTRAÇÃO POLÍTICA

Contradições do Modelo de Gestão em Saúde Indígena

Maria Clara Vieira Weiss (ISC/UFMT)


Marcia Leopoldina Montanari Corrêa (ISC/UFMT)
Aparecida Fátima Camila Reis (FAEN/UFMT)

RESUMO
A partir da atividade como representante gestor da Universidade Federal de Mato
Grosso no Conselho Distrital de Saúde Indígena de Cuiabá - MT observamos que o
processo decisório se dá em meio a árdua disputa entre os direitos constitucionais, a
autonomia e a autodeterminação preconizada na Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas (UNESC0, 2007) no contexto neoliberal da gestão do
subsistema de saúde indígena no SUS (BRASIL, 1999; 2002; 2003; 2012). As medidas
contraditórias adotadas na gestão da saúde indígena limitam o acesso dos povos
indígenas aos serviços de saúde nas aldeias e municípios, a adequação das ações de
saúde às diferenças culturais e a participação indígena nas decisões que os afetam. Esses
limitantes são agravados pela falta de comprometimento das administrações públicas
estaduais e municipais com os princípios organizacionais do sistema universalista de
saúde vigente dificultando a sobrevivência nos territórios indígenas (WEISS e
BORDIN, 2013). As contradições no campo político e institucional da gestão do
subsistema de atenção à saúde indígena geram descontentamento e desconfiança entre
os usuários e profissionais de saúde, a adequação da organização dos distritos sanitários
implica no seu serviço à cidadania e emancipação dos povos indígenas.

Palavras – Chave: Saúde Indígena, Gestão Democrática, Participação Cidadã.

1  
 
 

1. INTRODUÇÃO

O período de revisão da Constituição Brasileira foi um marco na mudança


radical na configuração da identidade étnica no país, desde 1985 vários setores da
sociedade civil já debatiam a sua forma e conteúdo. A revisão da Convenção 107 sobre
populações indígenas e tribais, cujos conceitos inspiraram políticas integracionistas
(OIT, 1957), representou um avanço no reconhecimento desses povos como sujeitos
coletivos ao adotar o termo povos em vez de populações, além do reconhecimento de
sua identidade étnica específica e direitos históricos imprescritíveis nos direitos a
autonomia e a autodeterminação. A Convenção 169 “Sobre Povos Indígenas e Tribais”
da Organização Internacional do Trabalho, realizada em 1989, ressalta que:
“A consciência de sua identidade indígena deverá ser considerada como critério
fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da
presente Convenção” (OIT,1989).
A Constituição de 1988, como o mais alto documento legal de garantia de
direitos das populações indígenas, dentre eles, o amparo autônomo do Ministério
Público (RIBEIRO, 1995), no seu Artigo 231 refere que: “são reconhecidos aos índios
sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger
e fazer respeitar todos os seus bens”.
O Artigo 196 da Constituição Brasileira preconiza que “a Saúde é direito de
todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Para Oliveira (2009) os
princípios fundamentais constitucionais e do direito indígena à saúde estão arraigados
na concretização da dignidade da pessoa humana, da justiça social e do principio da não
discriminação.
Na década de 90, os movimentos indígenas ganharam forçai na eclosão dos
movimentos sociais, num contexto em que se consolidam as políticas neoliberais de
ajuste macroeconômico e de reforma estrutural na América Latina, incorporando novos
temas à agenda política, abrindo o campo de possibilidades sociais e a dialética da
emancipação entre as lógicas da identidade e redistribuição (BARRÉ, 1988;
DÁVALOS, 2005).

2  
 
 

No Brasil, apesar da conjuntura política ainda desfavorável, as organizações


indígenas buscam a legitimidade da diversidade nacional lutando contra a opressão
cultural e política. Para Dávalos (2012) a questão indígena na América Latina
permanece no centro da questão nacional, enquanto povos originários da civilização
pré-colombiana. O debate da interculturalidadeii deveria chamar a atenção de todos os
setores progressistas para elaboração de novas estratégias utilizando os instrumentos
tanto do marxismo como do indigenismo, dada a necessidade que o liberalismo tem de
integrá-los ao projeto capitalista, liberal e moderno. Para Ribeiro (1998), no que tenha
de apreensível na vida e na história, deve ser lida através da observação direta ou da
reconstituição histórica criteriosa de contextos sociais concretos.
Para Motta (2007) as novas inspirações ideológicas da Reforma Administrativa
delinearam a ideia de que os governos não conduziriam ao progresso sozinho,
consequentemente à descrença na administração pública. A redução do Estado e a
modernização da administração pública tornaram-se uma nova agenda política, com
transferência de funções estatais para a área privada e as demais, administradas com
formas próximas das praticadas nas empresas privadas, porém com a representação
democrática como premissa. Além da ênfase na eliminação, privatização e terceirização
de serviços, a ideologia liberal centrada no indivíduo propõe com maior vigor métodos
de avaliação de desempenho individual e organizacional.
Assim, o modelo de gestão adotado na atenção à saúde indígena no país
considerando a lógica de parceria público-privado do Governo Federal nas últimas
décadas apontam contradições na garantia dos direitos constitucionais destes povos no
Brasil.

O modelo de atenção à saúde indígena no contexto neoliberal brasileiro

A situação dos povos indígenas tem sido discutida em Conferências Nacionais de


Saúde (CNS) e de Saúde Indígena (CNSI) na perspectiva de garantir seus direitos
constitucionais à saúde e qualidade de vida (Quadro 1).

3  
 
 

CNS Ano Temas CNSI Ano Temas Principais


8ª 1986 Saúde como direito. Reformulação do 1ª 1986 Criação da secretaria executiva
sistema de saúde. Financiamento no Ministério da Saúde
9ª 1992 Municipalização é o caminho 2ª 1993 Diretrizes da PNSI
Cidadania. Gestão e Organização.
10ª 1996 Controle social. Financiamento. 3ª 2001 Obstáculos e avanços na
Recursos Humanos. Atenção Integral implantação dos DSEIs no SUS
11ª 2000 Efetivando o SUS
DSEI – Território de produção
12ª 2003 Saúde direito de todos e dever do 4ª 2006 de saúde, proteção da vida e
Estado valorização das tradições
13ª 2007 Saúde e qualidade de vida, políticas de
Estado e desenvolvimento Acesso, Diversidade e Atenção
14ª 2011 SUS na Seguridade Social, Política 5ª 2013 Diferenciada no Sistema Único
Pública e Patrimônio do Povo de Saúde
Brasileiro
Quadro 1: Conferências Nacionais de Saúde (CNS) e Conferências Nacionais de Saúde Indígena,
realizadas depois da Nova República.Fonte: BRASIL, 2009; 2012

Essas discussões têm defendido a proposta da implantação de modelos


diferenciados, com base nas diretrizes constitucionais do Sistema Único de Saúde
(SUS) e nas peculiaridades das diferentes etnias como: situação de contato, dinâmica do
perfil epidemiológico, mudanças das práticas do sistema médico tradicional e o
moderno; situação geográfica e sua implicação na continuidade das ações de saúde.
As conferências de saúde indígena têm sido marcadas por tensões e confrontos na
busca de garantia dos direitos constitucionais e adequação do modelo de saúde às
necessidades nos contextos locorregionais. A realização da 5ª CNSI em 2013 foi
fundamental diante das mudanças da gestão da Fundação Nacional de Saúde (Funasa)
para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), proposta da primeira conferencia
realizada em 1986, e das discussões sobre as responsabilidades políticas do Estado e
formação de políticas públicas no setor saúde nos últimos anos.
O Decreto nº 3.156, 27 de agosto de 1999, que dispôs sobre as condições para a
prestação de assistência à saúde dos povos indígenas, no âmbito do SUS, preconiza que
a organização das atividades de atenção à saúde deve se efetivar, progressivamente, por
intermédio de Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei), ficando assegurados os
serviços de atendimento básico no âmbito das terras indígenas e a participação de

4  
 
 

representantes dos usuários, das organizações prestadoras de serviços e dos


trabalhadores de saúde no Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) de cada um
dos 34 Dsei distribuídos em todo país.

Figura 1: Localização dos DSEIs no Brasil e no Estado de Mato Grosso


Fonte: Secretaria de Saúde Indígena – Ministério da Saúde (BRASIL,2012)

Contradições da gestão do subsistema de saúde indígena no Mato Grosso

A gestão do subsistema de saúde indígena, de responsabilidade do Ministério da


Saúde, se mostra orientada para o modelo gerencial, por meio da interveniência
terceirizada de ONG´s, OSCIPS e Fundações desde sua implantação. As perspectivas
apresentadas por este modelo orientaram a Reforma Administrativa do Estado
Brasileiro na década de 90 baseadas nas reformas da Inglaterra e Estados Unidos. No
ano de 1995, no decorrer do governo FHC, foi apresentado o Plano Diretor de Reforma
do Estado, proposto pelo então ministro Bresser-Pereira. Este Plano foi viabilizado pela
Emenda Constitucional 19 de 04 de junho de 1998.
O modelo Gerencial compreende três dimensões: a) institucional-legal, voltada
à descentralização da estrutura organizacional do aparelho do Estado através da criação
de novos formatos organizacionais, como as agências executivas, regulatórias, e as
organizações sociais; b) gestão, definida pela maior autonomia e a introdução de três
novas formas de responsabilização dos gestores – a administração por resultados, a
competição administrada por excelência, e o controle social – em substituição parcial

5  
 
 

dos regulamentos rígidos, da supervisão e da auditoria, que caracterizam a


administração burocrática; c) cultural, de mudança de mentalidade, visando passar da
desconfiança generalizada que caracteriza a administração burocrática para uma
confiança maior, ainda que limitada, própria da administração gerencial. (MATIAS-
PEREIRA, 2012) Para o autor, este novo modelo de gestão diferenciava-se do modelo
burocrático por seguir os princípios do gerencialismo, enfatizando a profissionalização e
uso de práticas de gestão do setor privado, e classificando as atividades do estado em
exclusivas e não-exclusivas.
As atividades não exclusivas do estado compreendem as atividades auxiliares ou
de apoio e os serviços de caráter competitivo. Como atividade auxiliar ou de apoio,
caracterizam-se limpeza, vigilância, transporte, entre outros, sendo submetidas à
licitação pública e contratadas com terceiros.
Os serviços de caráter competitivo, cuja gestão é considerada possível para os
setores não públicos, são representados pelas atividades científicas e pelos serviços
sociais, nos quais se integram a educação, a assistência social, o ambiente, a cultura e a
saúde. Segundo as características do modelo gerencial, estas podem ser prestadas tanto
pela iniciativa privada, quanto pelas organizações sociais que caracterizam o setor
público não-estatal.
Desde a criação do Subsistema de Saúde Indígena observa-se uma forte
tendência à terceirização, tanto das atividades – meio, quanto das atividades-fim, ou
seja, contratualização de empresas para a execução de serviços de apoio (limpeza,
vigilância, transporte), como a contratação de profissionais de saúde, pelas “parceiras”
(Fundações de Apoio, ONG´s, OSCIP e municípios) na assistência à saúde nas aldeias.
Apesar da criação da SESAI em 2010, compondo a estrutura organizacional do
Ministério da Saúde, vislumbrando aos DSEI a perspectiva de se tornar autônomo na
gestão orçamentária e financeira dos recursos da saúde indígena, os antigos modelos de
gestão executados à época da FUNAI e FUNASA permaneceram não proporcionando
avanços na gestão direta dessas unidades e a tão almejada autonomia não veio. Essa
dicotomia é percebida por Paula (2005, pag 45) na crítica ao modelo gerencial, que
“mesmo tendo um projeto bem definido, a reforma causou uma fragmentação do
aparelho do estado, pois os novos formatos organizacionais não substituíram os antigos,
havendo uma convivência de ambos.”
As mudanças interinstitucionais na gestão da saúde indígena, na esfera federal,
vêm se dando no contexto da reforma do Estado, desde 1991, quando atribuída ao

6  
 
 

Ministério da Saúde. A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas


aprovada pela Portaria do Ministério da Saúde nº 254, de 31 de janeiro de 2002
determina que: “os órgãos e entidades do Ministério da Saúde, cujas ações se
relacionem com a temática indígena promovam a elaboração ou a readequação de seus
planos, programas, projetos e atividades na conformidade das diretrizes e
responsabilidades nela estabelecidas”. Integrada à Política Nacional de Saúde,
compatibiliza as determinações das Leis Orgânicas da Saúde e da Constituição Federal,
reconhecendo aos povos indígenasiii suas especificidades étnicas e culturais, e seus
direitos sobre a terra (BRASIL, 2002).
No período de 1991 a 2010, a falta de aparelhamento da Funasa (1991-
2010), então órgão gestor federal, implicou na contratação de quadro para formação da
Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) para atenção à saúde nas aldeias e
na estruturação do modelo de atenção à saúde através da terceirização. Dessa forma, o
cumprimento dos deveres do Estado se deu por convênios com ONGs ou parcerias
como os municípios para contratação de profissionais de saúde. No Mato Grosso foram
realizados convênios com a ONG “Trópicos”, a Fundação de apoio UNISELVA da
UFMT, a ONG Operação Amazônia Nativa - OPAN, a Associação Indígena Halitinã,
municípios, dentre outros. Atualmente a Associação Paulista para o Desenvolvimento
da Medicina  (SPDM) sediada em São Paulo gerencia as ações de saúde na abrangência
do DSEI Cuiabá – MT, no que se refere à contratação dos profissionais de saúde.
Diante deste cenário, que se reproduz no país, recentemente a SESAI-MS
apresentou a proposta de criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena - INSI para a
execução orçamentária e financeira dos recursos destinados à saúde e saneamento
indígena para contratação de trabalhadores em regime celetista, sem concurso público,
além da aquisição de equipamentos e serviços com dispensa de Licitação,
desconsiderando que uma gestão pública democrática envolve o compasso entre as
dimensões econômico-financeiras; Institucional-administrativa e sociopolítica. No caso
das populações indígenas, a dimensão sociocultural é fundamental no atendimento ao
princípio da equidade do SUS e na garantia do direito à saúde.
A estratégia do Ministério da Saúde foi apresentar a proposta para implantação
imediata do INSI. No caso do DSEI Cuiabá, a proposta foi amplamente discutida e ao
final, rejeitada pela maioria dos conselheiros. No entanto, no cenário nacional, a
proposta foi aprovada pela maioria dos Conselhos Distritais - CONDISI no país. Ainda
não foi implantada devido à intervenção do Ministério Público Federal que solicitou

7  
 
 

maiores esclarecimentos sobre o modelo de gestão proposto. As contradições entre o


modelo de gestão gerencial praticado nas instituições foram evidenciadas no decorrer do
processo de apresentação da proposta do INSI diretamente aos Conselhos Distritais de
Saúde Indígena (CONDISI) em reuniões no ano de 2014, considerando-os como
instancia deliberativa de decisões que afetam diretamente a vida nas aldeias, não adotou
as recomendações da Convenção 168 sobre a consulta aos Povos Indígenas e Tribais
(OIT, 1989).
Por outro lado, no Estado de Mato Grosso e, em grande maioria nos demais
estados da federação, em nível local, se travam conflitos históricos na disputa de
territórios entre índios e proprietários de terra, frequentemente agravados pela
emancipação dos municípios e grandes empreendimentos, como o agronegócio,
mineração e construção de hidrelétricas decorrentes da política de desenvolvimento
econômico regional que dificultam a execução de políticas públicas direcionadas a estes
povos.
As terras indígenas e seu contingente populacional estão localizados
majoritariamente na fronteira com países da América do Sul: Uruguai, Argentina,
Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela e a Guiana, Suriname e Guiana Francesa.
Algumas etnias circulam entre os países fronteiriços, devendo ser considerado o
processo de ocupação das fronteiras e o contato interétnico destes povos na
determinação do perfil saúde-doença e no acesso aos serviços de saúde, que
frequentemente envolve relações interinstitucionais internacionais, como o caso da etnia
Chiquitano no Mato Grosso, fronteira com a Bolívia (Figura 1).
Para Barros (2012), a garantia dos direitos constitucionais é um grande desafio
diante do abismo existente entre o pensar biomédico e o pensar das populações
indígenas, que articulam o processo saúde-doença à cosmologia. A falta deste
reconhecimento influencia negativamente toda a articulação e acesso aos serviços de
saúde, os estudos sobre a avaliação da atenção à saúde de povos indígenas no Estado de
Mato Grossoiv têm demonstrado uma enorme distância entre o que é declarado e
formalizado nos planos elaborados de acordo com as normatizações e o que
efetivamente ocorre no cotidiano dos serviços e no fluxo dos usuários indígenas
(VARGAS e col., 2010; FAGUNDES e WEISS, 2011; CINTRA e col., 2012; WEISS e
BORDIN, 2013).
As dificuldades de acesso aos serviços de saúde, vinculado ao imperativo
geográfico das terras indígenas, e o deslocamento da aldeia ao sistema local de saúde

8  
 
 

referenciado, conflitam com os conceitos de integralidade e equidade do SUS. Na


discussão dos resultados nos Polos Base e conselho distrital (CONDISI), numa
perspectiva de avaliação participativa, foi recomendado aos gestores: estruturação de
organização da atenção à saúde indígena; adequação dos programas de saúde às
condições epidemiológicas e de risco, e ao sistema tradicional de saúde; pactuação com
os municípios de referência, ressaltando a valorização étnica e direitos constitucionais
dos povos indígenas; elaboração do Plano Distrital de Saúde Indígena (PDSI) com
maior participação dos profissionais envolvidos com a saúde indígena; e, maior
articulação entre a gestão da saúde indígena com os gestores municipais e estaduais de
saúde. Esses são apenas alguns fatores que dificultam o reconhecimento dos direitos dos
povos indígenas, a diferenciação étnico-cultural e sua participação nos planos e
programas que dizem respeito a sua sobrevivência (OPAN; 2010; WEISS e BORDIN,
2013). A discussão desses resultados visando o fortalecimento da participação social e
mudanças no processo de tomada de decisões, não tem se dado sem dilemas e
contradições devido aos contextos regionais nos quais se dão o confronto entre os
interesses econômicos do Estado e a garantia dos direitos sociais no Mato Grosso.
Numa reflexão para uma reforma democrática do Estado, Nogueira (1998) refere
que o Brasil como um país nitidamente marcado pela falta de sintonia entre os tempos
de economia, de política, da sociedade e da cultura, reitera a capitulação diante do
passado que se prolonga através de múltiplas sedimentações e cristalizações como
citado por Marx:
“atormentados pelos vivos e também pelos mortos”, oprimidos pelos “males
modernos” e pelos “males herdados, originários de modos de produção arcaicos,
caducos com seu séquito de relações políticas e sociais contrárias ao espírito do
tempo” (apud NOGUEIRA, 1998).
Os direitos territoriais indígenas se esboçam num cenário marcado por
transformações de uma geopolítica neoliberal, que vão além dos assuntos jurisdicionais
e administrativos, incorporando o debate das autonomias como forma de realização da
autodeterminação (LLANCAQUEO, 2005) frente as várias medidas provisórias e
portarias deliberadas por interesses econômicos do Estado “neoliberal” que vêm
ameaçando a integridade física e cultural dos povos indígenas no Brasil. Para Santos et
al (2009. p. 930) “a essência das organizações perpassa o espectro das relações sociais
internas e se estabelece nos limites das relações sociais mais amplas; portanto, no
âmbito da sociedade”.

9  
 
 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Santos et al (2009) as organizações enquanto objeto de pesquisa, além da


administração, também são objetos da antropologia, da sociologia, da economia, da
medicina. Nesse sentido, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) traz uma
reflexão essencial sobre a participação das organizações indígenas na formulação de
políticas públicas e da contribuição do antropólogo numa nova construção de nação e de
cidadania no Brasil Contemporâneo (LANGDON e GARNELO, 2004). Neste
movimento, os povos indígenas fazem uso do discurso etnográfico para sustentar seus
projetos de territorialização e autonomia (TURNER, 1991 apud ARAÙJO, 2012). No
campo científico as pesquisas antropológicas, numa perspectiva crítica, não buscam
apenas interpretar a realidade, mas colocar em discussão questões como as de poder,
provocando discussões/práticas para mudanças estruturais (MADISON, 2005).
Nesta perspectiva, o “indigenismo alternativo” no Brasil (OPAN, 2010; CIMI,
2015) apontam a ética indígena do Bem Viver como alternativa ao modo capitalista de
produção, distribuição e consumo, como parte do discurso das resistências e das
mobilizações na Bolívia e no Equador. A ideia de desenvolvimento e acumulação
capitalista não existe na cosmologia indígena, ao contrário, numa visão holística, o
esforço humano deve buscar e criar condições materiais e espirituais para a vida em
plenitudev. Para Clastres (2007) as sociedades indígenas são naturalmente contra o
Estado, pois dependem de uma forma de organização que passa por um desejo coletivo,
assegurados na constituição brasileira. Nesta organização social o chefe está a serviço
da sociedade e o seu reconhecimento é pela competência e superioridade técnica, jamais
transformada em autoridade política, nela quem exerce o poder é a sociedade.
Entretanto, as discussões sobre a implantação do INSI continuam e avançam,
mesmo com ampla mobilização de organizações indígenas e indigenistas, como
claramente evidenciado no documento do CIMI (2014), intitulado Dossiê Saúde
Indígena. Tal situação reforça a perversa lógica de um modelo mais preocupado em
atender os interesses da máquina pública do que com as reais necessidades da
população, as contradições no campo político e institucional da gestão do subsistema
de atenção à saúde indígena geram descontentamento e desconfiança entre os usuários e
profissionais de saúde. Para a garantia da gestão democrática conforme preconizado na

10  
 
 

Política Nacional de Atenção á Saúde Indígena (BRASIL, 2002), se faz necessário


avançar nas análises sobre a organização dos DSEIs a partir das contribuições teórico-
metodológicas como da Administração Política, ou seja, considerando a gestão como
um objeto da Administração para servir a cidadania e a emancipação dos sujeitos
(SANTOS et al, 2009).

11  
 
 

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Agradecimentos: Ao Prof. Dr. Paulo Emílio Matos Martins pela supervisão no pós-
doutoramento na ABRAS/EBAPE/FGV-RJ que originou este artigo

                                                                                                                       
i
Para Boaventura Santos (1997), as lutas mais importantes nos países centrais, ou mesmo periféricos e
semi-periféricos foram protagonizadas por grupos sociais congregados por identidades não diretamente
classistas (estudantes, mulheres, etnias, pacifistas, ecologistas, etc.) colocando em questionamento a
primazia explicativa das classes (pág. 39-42).
ii
Para Boaventura Santos (2009) nas condições para uma interculturalidade progressista compete à
hermenêutica diatópica transformar os Direitos Humanos numa política cosmopolita que ligue, em rede,
línguas diferentes de emancipação pessoal e social e as torne mutuamente inteligíveis e traduzíveis.
iii
Conforme resolução Nº. 304, de 09 de agosto de 2000 o Conselho Nacional de Saúde adota o termo
povos com organizações e identidades próprias, em virtude da consciência de sua continuidade histórica
como sociedades pré-colombianas, e conforme recomendação daConvenção 107 (OIT, 1989)
iv
Projeto de Pesquisa Avaliação das estratégicas loco-regionais de articulação entre os níveis de cuidado
à saúde: estudo de múltiplos casos nos estados do Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pernambuco
financiado pelo CNPq sob a coordenação da Profª. Drª. Maria Ceci Araujo Misoczky. No Mato Grosso o
estudo de casos foi realizado noPólo-Base Rondonópolis (VARGAS e col., 2010; FAGUNDES e WEISS,
2011) e no Polo Base Tangará da Serra (CINTRA e col., 2012). No período de 2008-2011 foi
desenvolvido o mesmo modelo de estudo financiado pelo CNPq nos Polos-Base Cuiabá, Brasnorte,
Sapezal e Chiquitano (WEISS e col., 2011)
v
Sumak Kawsay (Quéchua, no Equador) – “Bom Viver” ou Suma Qamaña (Aimara, na Bolívia) – “Viver
Bem” (Dávalos, 2005 e 2012;Misoczky, 2010)

15  
 
A Informalidade no Mercado de Trabalho Brasileiro: Uma análise da
realidade do trabalho no município de Campina Grande-PB

Lizandra Kelly de Araújo (UFPB)


Julio Vitor Menezes dos Santos (UFPB)
Ruan Michel da Silva (UFPB)

RESUMO

Desde o início da década de 1980 as mudanças no mundo do trabalho, decorrentes da


restruturação produtiva do capital, têm caracterizado o mercado de trabalho com uma elevada
fração de trabalhadores sem contrato formal. No Brasil, este problema pode ter sido
amenizado pelo fato de existir a obrigatoriedade de carteira assinada para todos os
trabalhadores assalariados. No entanto, com a crise econômica dos anos oitenta, há
significativo aumento da informalidade. São muitas as condicionantes que levam as pessoas à
informalidade. Uma das principais surge do descompasso existente entre as exigências do
mercado de trabalho formal e as condições de qualificação. Este trabalho tem como objetivo
analisar a realidade do trabalho informal no município de Campina Grande-PB. Esta pesquisa
caracteriza-se como documental. As informações foram obtidas através de pesquisa no site
eletrônico ‘’Atlas Brasil’’, desenvolvido pelo IPEA. Os resultados mostraram que embora o
grau percentual dos empregados “formais” seja superior ao grau dos “informais”, torna-se
relevante um estudo mais aprofundado quanto às causas que levam ao crescimento da
economia informal no município em estudo, tendo em vista a possibilidade de essas pessoas
ficarem expostas à precariedade das relações de trabalhos. Como conclusão, observa-se a
necessidade de existência de políticas públicas adequadas para a região, que objetivem
aumentar o emprego e auxiliem a proporcionar um mais elevado nível de bem-estar da
população como um todo, contribuindo assim para um desenvolvimento local.

1. Introdução

A participação da economia informal nos resultados econômicos tem apresentado


tendência plena ao crescimento no mundo nos últimos anos. Com a expansão do setor de
serviços, setor caracterizado pelo alto grau de informalidade apresentado, é possível observar
claramente a tendência à maior elevação do mesmo, seja em caráter formal ou informal.
Na visão de Smith (1994) para compreender a economia informal é importante trabalhar
como a “produção de bens e serviços baseados no mercado, legal e ilegal, que escapa da
detecção das estimativas oficiais do Produto Interno Bruto”. Neste trabalho serão
consideradas apenas as atividades informais legais, uma vez que como lembra Smith (1994),
as atividades ilegais não são reconhecidas como legítimas quando da contagem do Produto
Interno Bruto.
As atividades formais legais são as práticas econômicas “socialmente aceitas”, mas
omissas aos órgãos tributadores, visto que “não cumprem as obrigações impostas pelo Estado,
no que se refere aos tributos e à regulação” (DE SOTO, 1989). Isto significa que as
reformulações de trabalho advindas do processo de globalização, apresentam uma perspectiva
materialista exacerbada, o que resulta em uma compreensão equivocada do trabalho.
(MAGALHÃES, 2001).
É um erro não considerar a economia informal como grande contribuição para a
formação do PIB, em especial no Brasil. Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Ética
Concorrencial (2013), a economia informal movimentou R$ 782 bilhões em 2013, o que
corresponde a 16,2% de tudo o que o Brasil produziu formalmente no mesmo ano, mas tais
números não contam oficialmente na composição do PIB brasileiro.

Formada em sua maioria pelos pequenos negócios, como será visto nos itens a seguir,
os incluídos na economia informal possuem diversas razões para recorrer à informalidade.
Decorrente disto questiona-se: Em relação à informalidade qual é a realidade do trabalho no
município de Campina Grande-PB ? Este trabalho tem como objetivo analisar a realidade do
trabalho informal no município de Campina Grande-PB

O artigo está estruturado da seguinte forma: será feito a seguir um resgate histórico e
conceitual do tema em foco. Em seguida serão apresentados os procedimentos metodológicos.
Por fim, a análise e descrição dos resultados.

2. Fundamentação Teórica
2.1 Relações de Trabalho

A evolução das forças produtivas e a complexidade das condições de trabalho no modo


de produção capitalista trazem à tona uma maior agressividade do capital contra o trabalho, o
que se traduz numa divisão do trabalho mais perversa para a classe trabalhadora.

A divisão de trabalho traz consigo, uma separação entre trabalho intelectual e manual,
culminando, de acordo com Ferreira Junior (2008) na “elitização dos conhecimentos de
produção, que ficam restritos aos dirigentes das organizações”. A elitização e privatização do
conhecimento intelectual, bem como toda a produção, torna-se mais organizado com o
surgimento da propriedade privada e do Estado, criando uma sociedade estratificada, onde
uma classe detinha os meios de produção e a outra não detinha.

No contexto brasileiro, a abertura comercial promovida por Collor em 1990, deu início
a processos de reestruturação produtiva trazendo grandes mudanças estruturais.
Paralelamente, duas transformações ocorreram no que tange o funcionamento do mercado de
trabalho: a) os regimes de trabalho são flexibilizados; e b) o sistema de proteção ao trabalho é
desregulamentado, trazendo riscos à garantia de direitos dos trabalhadores. Em sintonia com
os objetivos do capitalismo contemporâneo, a flexibilização do trabalho está aliada a
precarização dos direitos sociais e trabalhistas.

Com o capitalismo, as relações entre homens e homens (relações sociais) tornam-se


relações entre homens e coisas. O que é definido por Lukács (1974) como o “processo de
reificação”, onde o ser humano é igualado à condição de ferramenta, desconsiderando-o como
um ser com anseios e necessidades. Isso se dá devido ao fato da força de trabalho ser cada vez
mais substituída pela máquina, e pelo de os indivíduos que terem apenas a força de trabalho a
oferecer (MAGALHÃES, 2001). Isto significa que as reformulações de trabalho advindas do
processo de globalização, apresentam uma perspectiva materialista exacerbada, o que resulta
em uma compreensão equivocada do trabalho.

A reestruturação no processo produtivo trouxe consigo fechamento de fábricas,


terceirização, subcontratação, reorganização dos processos produtivos com o intuito de
racionalizar os custos, principalmente os custos de produção. Essas agressivas reformas
culminaram em números alarmantes quanto ao crescimento do desemprego.

A permanência de qualquer assalariado no mercado de trabalho depende da sua


contribuição para a manutenção do sistema que está inserido, e para isso é de extrema
necessidade que se adeque às exigências de mercado. Os excluídos do processo produtivo
tinham que encontrar um novo meio de sobrevivência e veem alternativa no trabalho informal
como camelôs, fretistas, vendedores de porta em porta, entre outros, o que permite apenas
garantir a sobrevivência do indivíduo e de sua família, não dando oportunidade a se alcançar o
consumo do sonho capitalista (MAGALHÃES, 2001).

2.2 Precarização do Trabalho

O processo de precarização do trabalho diz respeito à constituição violenta de


degradantes condições de trabalho, que mesmo estando presente desde os empregados formais
e temporários, está sempre mais visível no âmbito informal.

Esse processo teve início com as mudanças estruturais inseridas no sistema capitalista,
antes centrado no capital industrial e agora focado em um sistema de produção de capital mais
flexível, como o mercado financeiro.

Segundo Araújo (2013):


No século XX, o capital organizado concentrou-se e expandiu-se com uma
supervalorização das instituições financeiras que tenderam a dispensar a
contribuição do capital produtivo industrial. O cenário de crise mundial da primeira
década deste século aponta o processo de acumulação em níveis altos e o
aperfeiçoamento da gestão da força de trabalho, para alcançar maior
competitividade, elevar a produtividade e garantir a lucratividade. [...]
Desestruturada, a relação de emprego padrão, onde prevalece o trabalhador
assalariado formal, o trabalho remunerado que garante reconhecimento social entrou
em convulsão com as renovadas crises da acumulação. (ARAÚJO, 2013)

No que diz respeito ao Brasil, as mudanças mais significativas ocorreram a partir dos
anos de 1990, em especial com a vigência dos governos de Fernando Collor de Melo e
Fernando Henrique Cardoso, período no qual a economia do país passou pela abertura
comercial - rompendo com a política de substituição de importações. Essa nova política, de
adaptação competitiva ao mercado global deu início a processos generalizados de
reestruturação produtiva dentro das empresas. O fechamento de fabricas, enxugamento de
plantas, redução de hierarquias, concentração de produção nas áreas ou produtos de maior
retorno, terceirização, entre outros, apareceram como estratégia para à sobrevivência das
organizações. Resultando em um fenômeno de demissão em massa nunca antes visto na
história da industrialização brasileira (COSTA, 2005).

À luz do fenômeno, a informalidade se apresenta como forma de inserção no mercado


consumidor, e mesmo como estratégia de sobrevivência àqueles isentos de participação no
processo industrial. Percebe-se então a formação de dois blocos: o primeiro, dos trabalhadores
com seus direitos assegurados pela lei, empregados formalmente; e o segundo, dos
“desempregados”, acolhidos pela flexibilidade do mercado informal, coagidos pela falta de
opção, de qualificação suficiente para ocupar postos de trabalho e pela indisponibilidade de
postos a serem ocupados por eles. Sendo ainda possível, a observância de um terceiro bloco,
este composto pelos trabalhadores em regimes de trabalho que os propiciam a ocupação em
ambas as vertentes do emprego (formal e informal) levados pela necessidade de geração de
renda para sua subsistência.

2.3 Economia Informal

O crescimento da informalidade nas últimas décadas tem sido um importante nos


últimos anos. Ribeiro e Bugarin, afirmam que a economia submersa ou economia informal
aparece em menor proporção em países desenvolvidos, caracterizados também por possuírem
uma renda mais alta.

Nos países subdesenvolvidos observa-se um alto nível de informalidade, justificado pela


alta carga tributária e discricionariedade regulatória, aliadas a grande incidência de práticas de
suborno e a uma autoridade de lei considerada fraca. Ribeiro adiciona ainda mais algumas
variáveis que influenciam o ingresso no mercado informal. São eles: redução forçada do
tempo de trabalho; aposentadoria precoce; desemprego; inflação; o declínio da percepção de
justiça e lealdade para com as instituições públicas; a redução do índice de moralidade;
redução do índice de percepção da corrupção, o que indica aumento desta; e, até mesmo a
liberdade, como fator de escolha dos indivíduos para trabalhar na informalidade.

Uma das principais razões para a informalidade surge com desacordo entre as
exigências do mercado de trabalho e as condições de qualificação, de disciplina e de hábitos
de parte substancial da mão de obra. Pode surgir também com a dificuldade do mercado de
mão de obra de encontrar um emprego formal, ou quando encontrado, gera-se insatisfação
quanto aos salários baixos e falta de planos de carreira. Mas, ainda que a entrada na
informalidade seja voluntária ou não, muitas vezes, as pessoas escolhem permanecer na
informalidade como forma de vida. Explicando esse fenômeno, Menezes & Dedecca (2012)
afirmam que

[...] A estrutura ocupacional da informalidade é complexa e heterogênea, mas, pelo


menos para muitas pessoas, ela oferece muitas possibilidades. É natural, portanto
que muitos indivíduos prefiram ficar na informalidade, exatamente porque aí
encontram suas melhores oportunidades de trabalho e renda; outros tantos, por não
disporem dos requisitos necessários ao mercado formal, acabam ficando na
informalidade por absoluta falta de alternativa; e, outros ainda entram e saem da
informalidade conforme as altas e baixas conjunturais do nível da atividade
econômica como um todo (MENEZES e DEDECCA, 2012).

A informalidade traz em seu escopo a ausência dos direitos trabalhistas, figurado


essencialmente pelo não registro nos órgãos competentes e pela não contribuição à
previdência social, como afirmam Menezes & Dedecca (2012):
A não contribuição à previdência é a síntese da perda de direitos, na medida
em que essas pessoas enfrentem cotidianamente uma difícil decisão pessoal: alocar
recursos para a contribuição da previdência social em detrimento da renda presente
ou dispor uma renda presente mais elevada, mas em detrimento de suas condições
futuras de existência. Dessa forma, essas pessoas ficam expostas a uma precariedade
da relação de trabalho, podendo a enfrentar graves problemas econômicos no final
de suas vidas profissionais, já que não serão cobertos pelo sistema de previdência
social. Nesse momento, essas pessoas acabam ficando a mercê de familiares ou de
benefícios do sistema de seguridade social (após certa idade e segundo determinadas
condições), onerando toda a sociedade. (MENEZES & DEDECCA, 2012)

Apesar de seus pontos fracos, a informalidade tem seus benefícios. Segundo Asea
(1996, apud RIBEIRO e BUGARIN), a economia informal pode levar o mercado a uma
maior competitividade, trazendo maior eficiência e delineando limite à ação do governo,
adicionando dinamismo e espirito empresarial à economia. Sendo acrescido do ponto de vista
de Schneider e Enste (2000, apud RIBEIRO e BUGARIN) que a partir de seus estudos
sugerem que cerca de 66% da renda gerada no setor informal do trabalho é empregada no
setor formal, beneficiando o crescimento econômico e a receita arrecadada com os impostos
indiretos.

Dessa forma, é notória a relação de dependência estabelecida entre os mercados formal


e informal, mesmo o segundo não sendo prioridade em detrimento do primeiro, por ostentar
um caráter “ilegal”. A despeito dessa diferenciação, a relação estabelecida acaba por trazer
vantagens para ambas às partes, interessadas em sonegar as tributações exacerbadas impostas
pelo sistema econômico nacional/governamental, podendo ser reduzida a um termo:
mutualismo.

A intervenção governamental diante da questão assume forte valor ao controle da


informalidade, que ao atingir níveis elevados, representa ameaça ao sistema econômico
nacional. Assim, a criação de políticas econômicas efetivas, que caminhem contra as variáveis
indutoras da informalidade, que trazem consigo, não somente as mazelas do fenômeno, deve
assumir prioridade no setor público, que tem como uma de suas principais atribuições, a
manutenção do bem estar social dos indivíduos.

3. Aspectos Metodológicos

O presente artigo foi construído como pesquisa documental, a partir de consulta de


fontes secundárias, especialmente aquelas obtidas através de pesquisa no sítio eletrônico do
Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. Foram consultados os indicadores
desenvolvidos por meio de pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), tendo como bases o Censo 2010. Tais indicadores deram subsídio a elaboração de um
comparativo entre a realidade nacional com a realidade apresentada para o município de
Campina Grande, estado da Paraíba.

Diante do exposto, o que se pretende com este artigo é utilizar os dados como
contraponto, tendo como base uma comparação em relação aos resultados nacionais com os
resultados apresentados no município de Campina Grande-PB, foco deste estudo. Assim, a
informalidade é discutida a partir de alguns indicadores objetivos. Longe de se pretender
esgotar o debate sobre o tema, antes se pretende aqui iniciar uma discussão à luz da
administração política.

A problemática em questão, busca respostas acerca das causas de elevado índice de


informalidade. O foco deste trabalho consiste em analisar e realizar comparativo entre a
média nacional com a realidade campinense, visando a geração de informações no que diz
respeito ao grau de informalidade, bem como dos condicionantes básicos para a composição
da mesma.

4. Resultados e Discussões
4.1. Caracterização e IDHM de Campina Grande-PB
Segundo o último Censo Demográfico, Campina Grande, situada no estado da Paraíba,
tinha em 2010, cerca de 385.213 habitantes, sendo: 182.205 homens (47,30%) e 203.008
mulheres (52,70%).

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM), que busca mensurar desenvolvimento


humano entre municípios escolhidos, de Campina Grande era 0,720, em 2010, o que pode ser
considerado como IDHM alto (IDHM entre 0,700 e 0,799), enquanto o IDHM da Paraíba era
0,658, sendo considerado como médio (IDHM entre 0,600 e 0,699). Dos componentes que
formam o IDHM, o que mais contribui é a Longevidade, com índice de 0,812, depois o de
Renda, com índice de 0,702, e por último de Educação, com índice de 0,654, como pode ser
observado nos dados abaixo:
Tabela  1:  IDHM  e  seus  componentes  

IDHM e seus componentes 2010


IDHM Educação 0,654
% de 18 anos ou mais com ensino fundamental completo 57,44
% de 5 a 6 anos frequentando a escola 96,77
% de 11 a 13 anos frequentando os anos finais do ensino fundamental 85,08
% de 15 a 17 anos com ensino fundamental completo 53,16
% de 18 a 20 anos com ensino médio completo 44,14
IDHM Longevidade 0,812
Esperança de vida ao nascer (em anos) 73,73
IDHM Renda 0,702
Renda per capita (em R$) 630,03
Fonte: PNUD; IPEA; Fundação José Pinheiro; Censo 2010.

Campina Grande ocupa a 1301ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros segundo o
IDHM. Nesse ranking, em nível Brasil, o maior IDHM é o de São Caetano do Sul, situado no
estado São Paulo, com índice de 0,862 e o menor é de Melgaço, situado no estado do Pará,
com índice de 0,418. Quanto em nível estadual, Campina Grande-PB ocupa a 3ª posição,
ficando atrás apenas de João Pessoa (0,763) e Cabedelo (0,727).

4.2. Trabalho

Gráfico 1: Trabalho – Ocupação/Desocupação

Fonte: PNUD; IPEA; Fundação José Pinheiro; Censo 2010.


Como pode ser observado no gráfico acima, em 2010, 174. 031 da população de 18
anos ou mais de idade era economicamente ativa em Campina Grande, 28.128 da população
no mesmo ano era economicamente ativa desocupada, enquanto 70.060 era considerada
economicamente Inativa. Ou seja, 63,80% da população de 18 ou anos ou mais estavam
trabalhando, seja remunerado, não remunerado, por conta própria ou como um empregador,
10,50% não possuíam emprego mas estavam aptas a trabalhar (estavam em busca de trabalho)
já 25,70% da população estavam à margem do mercado, aquelas que não possuem idade,
interesse ou condições de exercer algum ofício.
Quanto aos dados da posição dos ocupados, o gráfico 2 mostra que em 2010, apenas
41% dos ocupados no município de Campina Grande possuem carteira de trabalho assinada, e
20,6% dos trabalhadores estão ocupados sem carteira assinada, ou seja, estão em situação de
vulnerabilidade, pois não são asseguradas pelo sistema de previdência social . Em nível
estadual o gráfico mostra que apenas 28,3% dos ocupados possuem carteira assinada. Embora
o grau percentual dos empregados ‘’formais’’ seja superior ao grau dos ‘’informais’’, torna-se
relevante cada vez mais estudos, discussões que aprofundem mais quanto às causas que levam
ao crescimento da economia informal no município em estudo, tendo em vista a possibilidade
de essas pessoas ficarem expostas à precariedade das relações de trabalhos, podendo enfrentar
sérios problemas econômicos pelo fato de que não serão cobertos pelo sistema de previdência
social.

Gráfico 2: Trabalho - Posição na Ocupação

Fonte: PNUD; IPEA; Fundação José Pinheiro; Censo 2010

Buscando entender a realidade que atinge o município de Campina Grande quanto à


informalidade e tendo em vista que a escolaridade é um dos principais fatores de seleção e
exclusão ao mesmo tempo, sentiu-se a necessidade de analisar os dados disponibilizados pelo
Censo 2010 quanto à escolaridade dos ocupados campinenses em relação aos ocupados em
nível estadual e federal.
Gráfico 3: Trabalho - Escolaridade

Trabalho  -­‐  Escolaridade  


Campina  Grande  (PB)   Paraíba   Brasil  

%  dos  ocupados  com  superior  completo  -­‐  18   14,7%  


10,2%  
anos  ou  mais  (2010)   13,1%  

%  dos  ocupados  com  médio  completo  -­‐  18   48,9%  


36,2%  
anos  ou  mais  (2010)   44,9%  

%  dos  ocupados  com  fundamental  completo   64,6%  


49,69%  
-­‐  18  anos  ou  mais  (2010)   62,2%  

Fonte: PNUD; IPEA; Fundação José Pinheiro; Censo 2010.

Os dados do gráfico 3 revelam que o grau percentual de ocupados de 18 ou anos ou


mais com ensino médio é inferior ao grau percentual de ocupados da mesma faixa etária com
ensino fundamental completo e, por sua vez, este é três vezes superior ao grau percentual de
ocupados ensino superior completo. Ou seja, 64,6% dos ocupados com 18 anos ou mais
possui apenas o ensino fundamental completo, chegando a ultrapassar a média nacional que é
de 62,2%; quanto aos ocupados que possuem ensino médio completo os dados mostra um
percentual de 48,9%; por último, percebe-se que apenas 14,7% dos ocupados possui ensino
superior completo.

Portanto, ao analisar esses dados pode-se afirmar que no município de Campina Grande
há um excedente de mão-de-obra com baixo nível de qualificação, o que pode expor grande
parte desta população ativa a situações de trabalho precário, como dito anteriormente, quando
não o desemprego. O trabalhador que não tem sua carteira assinada fica privado de benefícios
como Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), seguro-desemprego, abono salarial,
auxílio-doença, auxílio-acidente de trabalho, salário maternidade e aposentadoria.

Em 2010, das pessoas ocupadas de 18 anos ou mais do de Campina Grande, 4,38%


trabalhavam no setor agropecuário, 0,39% na indústria extrativa, 12,38% na indústria de
transformação, 7,33% no setor de construção, 1,21% nos setores de utilidade pública, 21,11%
no comércio e 48,75% no setor de serviços, segundo o Censo 2010. O gráfico 4 deixa claro
quanto à disparidade em percentual de pessoas que estão em cada setor.
Gráfico 4: Trabalho – Setor

Fonte: PNUD; IPEA; Fundação José Pinheiro; Censo 2010.


 

É notório a diminuição dos trabalhadores no âmbito fabril e o crescimento dos


assalariados no setor de serviços no Brasil. Como pode ser observado no gráfico 4, 48,75% da
população ocupada, em 2010, compunham este setor. Segundo Almeida e Silva (1973, p. 149-
150) apud Melo et al (1996), a industrialização e urbanização provocaram um acréscimo da
força de trabalho nas atividades terciárias, principalmente nos ramos que exigem menor
qualificação. O importante crescimento desse setor é resultado do modo de organização que
tem como característica a flexibilização produtiva, no qual as empresas buscam enxugar ao
máximo seus custos, por meio da terceirização.

Buscando comprovar o crescimento do setor de Serviços em Campina Grande, vale


ressaltar que em 2012 foi instalada no município uma das empresas do setor de
telecomunicações, a call center do grupo Contact Center AeC, que gera mais de 2.000
empregos. De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores de Telecomunicações do Estado da
Paraíba, a grande insatisfação dos trabalhadores da call center tem gerado rotatividade. O
sindicato lista que os maiores problemas listados pelos trabalhadores: doenças do trabalho,
baixa remuneração, metas inalcançáveis, alimentação de má qualidade e descumprimento da
legislação trabalhista.

O último gráfico que compõe a dimensão Trabalho, mostra os dados da população de


faixa etária de 18 anos ou mais que estão em situação de vulnerabilidade e que afeta
diretamente a economia do município. Ele revela que 35,11% da população de 18 anos ou
mais de Campina Grande não possui ensino fundamental completo e que, em 2010, estava em
ocupação informal, ou seja, aproximadamente 47.260 pessoas em situação de vulnerabilidade
social. Mais da metade dos trabalhadores da Paraíba são informais, o estado é o quarto país
em taxa de informalidade no País, ficando atrás apenas do Maranhão, Piauí e Pará.

Gráfico 5: Trabalho - Vulnerabilidade


Fonte: PNUD; IPEA; Fundação José Pinheiro; Censo 2010.

Não se pode negar que a realidade dos trabalhadores campinenses, muitas vezes sem
qualificação e com a impossibilidade de encontrar empregos ou com a expectativa de salários
baixos no mercado formal contribua para a migração de muitos campinenses para a
informalidade.

Pode-se considerar complexa a estrutura ocupacional da informalidade, pois para alguns


trabalhadores, optar pelo trabalho informal significa oferecer melhores condições de trabalho,
uma vez que eles não estarão recebendo ordens de outras pessoas. Portanto, sente-se a
necessidade de outros estudos relacionados ao trabalho informal no município de Campina
Grande que possam responder a preferência de muitos campinenses pelo trabalho informal, se
eles preferem ficar na informalidade, porque encontram exatamente suas melhores
oportunidades de trabalho e renda ou por não disporem dos requisitos necessários ao mercado
formal campinense, ou seja, buscam a informalidade pela falta de alternativa.

4.3. Educação

A educação é um dos principais fatores que contribuem para a qualidade mercado de


trabalho. Tentando entender o porquê do aumento da economia informal no município, os
autores da presente estudo acharam pertinente mostrar os dados e como anda a educação
campinense. Como pode ser visto no gráfico abaixo, em 2010, em Campina Grande eram
12,39% analfabetos, o percentual da população de 18 anos ou mais com o ensino fundamental
completo era de 57,44% e 41,83% possuía ensino médico completo. No Brasil, esses
percentuais são, respectivamente, 10,19%, 54,92% e 37,89%.
Gráfico 6: Educação

Fonte: PNUD; IPEA; Fundação José Pinheiro; Censo 2010.

Para Coutinho (2007), no Brasil a concentração de renda atinge níveis elevadíssimos,


restringindo a uma minoria o acesso aos bens de consumo mais sofisticados e as condições
mais favoráveis de educação, enquanto que a grande maioria encontra-se sem as mesmas
condições de acessar estes fatores e concorrer às mesmas oportunidades no mercado de
trabalho.

A falta de qualificação da grande maioria dos ocupados no município de Campina


Grande contribui para a fragilidade do mercado de trabalho campinense. Com o grande índice
de mão de obra não qualificada, as empresas encontram no mercado de trabalho campinense
cada vez mais espaço para que as mesmas consigam sua ascensão.

4.4. Vulnerabilidade Social

Outro fator que pode contribuir para a ascensão da economia informal no município é o
de Vulnerabilidade Social.
Gráfico 7: Vulnerabilidade – Educação, Trabalho e Renda

Fonte: PNUD; IPEA; Fundação José Pinheiro; Censo 2010.


 
Os dados acima mostram que 22,86% de pessoas em domicílios não tem fundamental
completo, 15,26% pessoas em domicílios vulneráveis à pobreza em que ninguém tem
fundamental completo, 4,29% de pessoas que gastam mais de uma hora até o trabalho e por
fim e que chama atenção é o fato de 33,22% de pessoas com idade de 15 a 24 anos que não
estudam e não trabalham, ou seja, elaborando o cálculo, (razão entre a quantidade de pessoas
de 15 a 24 que não estudam, não trabalham e a população vulnerável nesta faixa etária, depois
multiplicando por 100), pode-se considerar que 29.888 pessoas estão em situação de
vulnerabilidade no município de Campina Grande, o que corresponde a aproximadamente
7,75% da população campinense.

5. Considerações Finais

Neste artigo buscou-se discutir sobre os possíveis motivos que contribuem para o alto
grau de informalidade na economia de Campina Grande. A vinculação com variáveis a
exemplo de escolaridade, nível de renda, é importante. Embora os dados demonstrem que o
município segue uma tendência nacional, a perspectiva de criação de uma estratégia própria
de desenvolvimento passa pelo enfrentamento deste problema.
Compreende-se também que a força de trabalho que caracteriza o mercado informal no
estado da Paraíba, em especial no município de Campina Grande, não consegue manter um
processo de qualificação exigida pela nova ordem técnica e organizacional.
Dessa forma, essas pessoas ficam expostas a uma precariedade da relação de trabalho,
podendo a enfrentar graves problemas econômicos no final de suas vidas profissionais, já que
não serão cobertos pelo sistema de previdência social. Com o aumento dos mecanismos de
acomodação de grande parte dos trabalhadores, facilitarão a instalação de empresas que estão
em busca de mão de obra não qualificada o que enfraquece ainda mais o mercado local.
 
A redução dos malefícios deve advir de políticas públicas adequadas, políticas que
objetivem melhorar a condição produtiva das pessoas e auxiliem a proporcionar um mais
elevado nível de bem-estar da população como um todo, contribuindo assim para um
desenvolvimento local mais eficiente.

Referências
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Brasil. Mestrado em Economia do Setor Público. Universidade de Brasília, 2000
A História Avança em Marcha Ré: empreendedorismo e suas consequências no Brasil

Agatha Justen Goçalves Ribeiro (FGV-RJ)

Resumo
Parte integrante da reestruturação produtiva e do projeto neoliberal, o empreendedorismo se
expandiu no Brasil, sob impulso das condições de emprego, dos PDVs e do próprio Estado. Os
sites privados e públicos o colocam como fator de desenvolvimento e o descrevem como
elemento estratégico da economia contemporânea. Exageros à parte, dados do IBGE informam
que seu crescimento entre nós, brasileiros, nos situa em primeiro lugar em lançamentos de
novos pequenos negócios, ainda que também estejamos entre os primeiros em mortalidade
desses empreendimentos. Em sua versão atual, um tanto diferente do conceito schumpeteriano,
o empreendedorismo, sua mensagem do “patrão de si mesmo” e suas expectativas de
rendimento, tem alcançado segmentos das camadas de renda média e baixa, dentre eles
trabalhadores, empregados assalariados ou não. O objetivo deste artigo é fazer uma análise
crítica deste fenômeno que cada vez mais se expande, se não concretamente, ao menos em
dimensão ideológica, alcançando o imaginário social tanto de setores precarizados,
trabalhadores informais e desempregados, como trabalhadores formais. Para alcançar este
objetivo, realizamos pesquisas bibliográfica e documental, melhor identificando a dimensão
ideológica e material do fenômeno nos dias atuais.

Introdução

Nos últimos anos, o conceito de empreendedorismo vem ganhando crescente destaque


tanto por parte de governos, quanto por organizações e entidades de classe. Nas áreas de
Economia e Administração, e no senso comum, este tema tem sido acriticamente reiterativo.
(LEITE e MELO, 2008). Tem sido também alvo de atenção do Estado. São diversas as
políticas governamentais destinadas a financiar e subsidiar o chamado “empreendedor
individual” e as pequenas empresas. Não é sem razão que o governo federal possui uma página
eletrônica intitulada “Portal do empreendedor” (www.portaldoempreendedor.gov.br), sítio que
disponibiliza todas as informações necessárias àqueles que pretendem se tornar
empreendedores formalizados.
Tal movimento, que é articulado por Bancos públicos, inclusive BNDES, e também por
Bancos privados, estende-se não apenas às funções comuns à pequena burguesia, como
pequenos fabricantes e comerciantes, mas às mais diversas funções antes praticadas por
trabalhadores assalariados, formais e informais – animador de festas, artesão de bijuterias,
balanceador de pneus, carregador de malas, churrasqueiro, cuidador de idosos e enfermos,
digitador, jardineiro, manicure, mecânico de veículos, sapateiro, técnico de manutenção de
eletrodomésticos – para citar alguns exemplos encontrados em uma longa lista.
(http://www.portaldoempreendedor.gov.br/modulos/entenda/quem.php).
A prática do empreendedorismo popularizou-se no Brasil a partir dos anos 1990, mas
foi o governo Lula que estabeleceu uma política sistemática, com a criação da Lei Geral da
Micro e Pequena Empresa, em 2006, e da Lei do Microempreendedor Individual, em 2008.
(www.brasil.gov.br). Podemos ler no portal do governo brasileiro que

Nove anos depois da criação da Lei Geral da Micro e Pequena Empresa, em


2006, o Brasil colhe os frutos das mudanças na legislação para pequenos
negócios, que tiveram início no governo Lula e são aprofundadas pela
presidenta Dilma Rousseff. O País segue, hoje, isolado na liderança em
empreendedorismo, com o aumento de 23% para 34,5% de empreendedores
em dez anos [...]. O número de brasileiros entre 18 e 64 anos que possuem
empresa ou que estão abrindo uma é muito superior, por exemplo, ao da nação
campeã da livre iniciativa. Os Estados Unidos têm 20% de empreendedores.
Outros países registram índices ainda menores, como Reino Unido (17%),
Japão (10,5%), Itália (8,6%) e França (8,1%) (BRASIL, 2015).

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) lançou um livro intitulado


Estatísticas de Empreendedorismo 2008 (2011), que oferece informações, ainda escassas,
sobre um fenômeno considerado “altamente relevante para o crescimento econômico, a
produtividade, a inovação e o emprego” (IBGE, 2011, p. 2). O argumento inicial do livro é que,
no contexto de crise mundial, “governos e entidades privadas têm considerado o
empreendedorismo, em conjunto com a inovação, como mecanismo para impulsionar o
crescimento e a estabilidade econômicos.” (idem).
O público-alvo destas políticas, segundo o governo federal, são os trabalhadores
informais. Entretanto, a abrangência do programa atinge também trabalhadores assalariados,
que almejam sair da condição de empregados. Há, portanto, uma rede de relações entre
trabalhadores, empregados assalariados ou não, e pequenos negócios, que, de algum modo, faz
hoje parte da formação da consciência social desses segmentos.
O conceito de empreendedor, no entanto, não ganha impulso apenas com tais políticas
públicas. Estas constituem uma base concreta de sustentação de uma ideologia que surge a
partir da reestruturação produtiva e se aprofunda com o avanço do neoliberalismo. A
flexibilização das relações de trabalho, a desregulamentação das leis trabalhistas e
previdenciárias e o aumento do desemprego foram medidas acompanhadas da valorização da
autonomia do indivíduo, característica da ideologia liberal, que joga para o trabalhador toda a
responsabilidade por sua formação e empregabilidade, criando assim uma ideia do “eu
empreendedor”, que nas palavras de Lemos e Rodriguez (2008), “é também um atributo
fundamental do indivíduo empregável, que precisa autogerir a carreira, deve ser empresário de
si próprio, e “ver a si mesmo como se fosse um negócio” (LEMOS E RODRIGUEZ, 2008, p.
2).
O sítio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE,
organização que mantém uma Agência de Apoio ao Empreendedor e Pequeno Empresário,
define empreendedores como “visionários, dotados de ideias realistas e inovadoras. Além
disso, desenvolvem um papel otimista dentro da organização, capaz de enfrentar obstáculos
internos e externos.” Em seguida, em artigo intitulado “Empreender faz parte da condição
humana”, afirma que

gradativamente se abandona uma visão reducionista do empreendedorismo


associado exclusivamente ao exercício de uma atividade econômica e se passa
a lhe associar a qualquer atividade humana [...]. Os empreendedores são
encontrados, agora, em casa, na comunidade, dentro de uma organização ou
no meio de uma assembleia sindical, ou seja, em qualquer lugar onde existam
pessoas.

Há, portanto, um esforço para construir a naturalização destas novas relações de


trabalho que pretendem atingir ideologicamente o conjunto da sociedade. Mas,
fundamentalmente, há uma base concreta que parece permitir que parcelas da população
experimentem, no seu dia-a-dia, a dinâmica pequeno-burguesa.
Quando analisamos o índice de informalidade no Brasil, conseguimos compreender
como essa lógica do empreendedorismo acaba por alcançar ideologicamente um número tão
grande de trabalhadores e a sociedade em geral. Segundo pesquisa do IPEA, em 1995, o
percentual de trabalhadores informais era 57,2%. A partir de 2003, esse percentual começa a
diminuir. No auge da prosperidade econômica, em 2009, a informalidade chega a 48,4%
(IPEA, 2009), e alcança seu menor patamar em 2012, com 34% (Idem, 2014). Significa dizer
que são pelo menos três décadas de índices de informalidade praticamente se equiparam ao
número de trabalhadores formais.
O percentual de empreendedores, por sua vez, em 2012 representava 30,2% da
população entre 18 e 64 anos e, em 2013, chegava a 32,3% (GEM, 2013), ou seja, quase o
mesmo patamar de informalidade.
Deparamo-nos, portanto, com uma situação preocupante, que merece atenção mais
cuidadosa do que vem sendo dada pela Administração até os dias atuais. Devemos nos
questionar sobre quais são as reais consequências desse fenômeno, não apenas pela ótica dos
ganhos financeiros das empresas, seja pelo aumento da produtividade, seja pela desmobilização
da luta coletiva dos trabalhadores. Devemos refletir, tal como reivindica a Administração
Política, sobre as consequências para as organizações, em sentido amplo, de uma prática e uma
ideologia que escondem o lado perverso das mudanças promovidas nos últimos anos e que
potencialmente afetam até valores e práticas democráticas, à medida que procura eliminar um
dos lados da balança, os trabalhadores auto identificados enquanto tal. Como argumentam
diversos autores, o empreendedorismo tem significado, na verdade, um retrocesso na história,
um retorno à ausência de direitos trabalhistas e sociais, à condições precárias de trabalho e a
desresponsabilização do Estado, porém sob um novo signo. De um lado, pelo esforço constante
dos meios de comunicação e de parte da intelectualidade na construção do imaginário social
favorável à lógica empreendedora em substituição à “era de direitos e de estabilidade”; por
outro lado, pela própria mão do Estado, através de políticas públicas.
Neste artigo, a partir de pesquisa bibliográfica e documental, queremos fazer esse
esforço de refletir porque o empreendedorismo permanece no cenário nacional como uma
política pública sistemática, tendo sido, inclusive, tema de campanha eleitoral de Dilma
Rousseff, e quais as consequências para as organizações, não apenas empresariais, mas
também da sociedade civil e para a sociedade como um todo.

Origens históricas e empreendedorismo como ideologia

O contexto em que se inicia o processo de construção do empreendedorismo é


localizado por diversos autores nas mudanças do paradigma do modelo de organização fabril.
A reestruturação produtiva, em substituição à organização fordista ou combinado a ela, altera
consideravelmente não só a estrutura de produção, mas também as relações de trabalho. Como
o modelo de organização fordista, em certos aspectos e determinada dimensão, porque já não
dava respostas satisfatórias à dinâmica capitalista, a solução encontrada foi horizontalizar o
processo produtivo e flexibilizar a organização. Como afirma Antunes (1995), “novos
processos de trabalho emergem, onde o cronômetro e a produção em série e de massa são
“substituídos” pela flexibilização da produção, pela “especialização flexível”, por novos
padrões de busca da produtividade, por novas formas de adequação da produção à lógica de
mercado” (ANTUNES, 1995, p. 16). Do ponto de vista do trabalho, a organização flexível,
inspirada no modelo toyotista,

introduziu a exigência de polivalência e flexibilidade aos trabalhadores,


adaptados agora a máquinas multifuncionais. Por outro lado, passa a
responsabilizar esses mesmos trabalhadores individualmente e a vincular seu
sucesso ou fracasso à colaboração com a empresa, ao enfatizar que eles
tenham autonomia nela (LEITE e MELO, 2008, p. 35).
Essa transformação, pela importância de seus impactos, foi amplamente estudada nas
Ciências Sociais, sob diversos focos. Richard Sennett, por exemplo, em A Corrosão do Caráter
(1999), enfatizou a mudança nas relações sociais – a partir daí mais instáveis, distanciadas e
marcadas por enorme insegurança – e na dimensão do tempo, à medida que este novo formato
flexível impõe o curto prazo em todas as esferas da vida. Para ele, “uma mudança na estrutura
institucional acompanhou o trabalho a curto prazo, por contrato ou episódico” (SENNETT,
1999, p. 23). As empresas, segundo ele, “buscaram eliminar camadas de burocracia, tornar-se
organizações mais planas e flexíveis” (idem). Flexíveis tanto nos padrões de produção, quanto
nos padrões de consumo, nos mercados e processos de trabalho. O enxugamento da força de
trabalho tornou-se uma necessidade deste novo sistema, mas além disso, era necessário
transformar a concepção sobre trabalho, na linha de Sennett, da estabilidade para instabilidade,
do longo para o curto prazo, da responsabilidade da empresa e do Estado para a
responsabilidade do trabalhador, dentre outros.
Para Ramalho (2010), “a redução do emprego industrial e os impactos econômicos e
sociais foram o centro da crítica ao padrão flexível. Isto exigiu “cada vez mais das empresas a
elaboração de argumentos e ações para justificar e legitimar essa nova faceta do processo
produtivo” (RAMALHO, 2010, p. 253). O conceito de “colaborador”, que substitui o
‘trabalhador’, carrega este objetivo. O trabalho, segundo esta lógica, é um investimento que
cada um faz na empresa para que ela prospere. Como a forma de remuneração se altera e o
trabalhador ganha de acordo com o que produz e com os resultados que oferece à organização,
a ‘colaboração’ significa melhores resultados tanto para a empresa quanto para o ‘colaborador’.
Por outro lado, o investimento que o “colaborador” faz não é apenas na empresa. É também em
si mesmo, uma vez que acumula uma rede de contatos e conhecimentos (LEITE e MELO,
2008, p. 36). São essas as concepções e discursos presentes nos manuais de Administração e
Economia.
Por exemplo, o livro intitulado Terceirização: parceria e qualidade, de Alvarez (1996)
desenvolve passagens que pretendem estimular a formação do empreendedor individual. O
autor enxerga um “fecundo cenário à proliferação da terceirização” (ALVAREZ, 1996, p. 3)
que, para ele, significa a “valorização do indivíduo” (ibid., p. 11) uma vez que a terceirização
“utiliza empregados potencialmente dispensáveis como pequenos fornecedores” (ibid., p. 17).
Continua afirmando que “o risco do desemprego transforma-se em uma oportunidade de
independência” (ibid), sendo “esse um dos motivos geradores de pequenas empresas” (ibid., p.
25). Para ele, as consequências sociais trazidas pelo desemprego seriam o ensejo para
“transformar funcionários em pequenos empreendedores” (ibid., p. 71), contribuindo para a
“inversão do gigantismo e para a difusão de milhares de novos negócios” (ibid., p. 94).
É o que defendem também Tachizawa e Scaico (1997), em Organização Flexível:
“a subcontratação organizada abre oportunidades para a formação de pequenos negócios e
permite que esquemas mais antigos de trabalho doméstico, artesanal e familiar revivam e
floresçam como peças centrais e não apenas como apêndices do sistema produtivo maior”
(TACHIZAWA e SCAICO, 1997, p. 40).
O mesmo pensamento é encontrado em Tsukamoto (1992) que acredita não ser possível
haver “um crescimento sustentável sem a presença dessa massa crítica empreendedora”
(TSUKAMOTO, 1992, p. 5).
Um dos mais influentes teóricos da Administração, Peter Drucker (1989), anos antes
dos autores supracitados, dizia algo que nos parece uma ironia ou anedota, mas na verdade
baseava-se nesses novos símbolos do capitalismo flexível: “os empregados estão se
transformando nos únicos capitalistas verdadeiros e nos únicos reais proprietários dos meios de
produção” (DRUCKER, 1989, p. 205).
Na atualidade, um dos principais nomes do empreendedorismo no Brasil, Fernando
Dolabela, com inúmeros livros publicados sobre empreendedorismo e festejado por grandes
think tanks liberais, como Instituto Millenium, em seu website, na mesma linha do SEBRAE,
afirma utilizar “o termo empreendedorismo em seu sentido amplo, considerando-o uma forma
de ser, e não de fazer. Assim, estão incluídos nesse conceito, por exemplo, o empregado-
empreendedor, (ou intra-empreendedor) o pesquisador-empreendedor, o empreendedor
comunitário, o funcionário público empreendedor, etc. O que importa é a maneira de se
abordar o mundo, qualquer que seja a atividade abraçada”. Dessa forma, o conceito naturaliza-
se e se expande, levando consigo a expansão de seu conteúdo, a flexibilização das relações
trabalhistas, mesmo entre aqueles que estão formalmente empregados.
Essas mudanças, não só da estrutura de produção, mas também do discurso, significam,
para Gurgel (2003) “um movimento global, material e subjetivo, que incorpora cada vez mais
milhares de agentes produtivos no processo de trabalho, mas também no processo de afirmação
de valores ideológicos reabilitados” (GURGEL, 2003. P. 147). Mais à frente, o autor
argumenta que “os que não acompanham com sucesso esse movimento global, que se
encontram fora da nova ordem mundial, são deficientes de empregabilidade, mais um conceito
do novo discurso ideológico, que tem a propriedade de atribuir às vítimas a culpa pelo que lhes
ocorre” (Ibid.).
Esta construção ideológica é estudada por Leite e Melo (2008), que, por entenderem “o
empreendedorismo como um fenômeno da ideologia do capitalismo atual”, vão analisar um
bloco de literatura e meios de informação não acadêmicos que fazem do empreendedorismo
“um conjunto de princípios ideais de bom comportamento e a partir dele fazem prescrições”
(LEITE e MELO, 2008, p. 40). As autoras afirmam que “a institucionalização do
empreendedorismo deu-se concomitantemente à formação de um mercado de pacotes
gerenciais, a partir de 1980, popularizando as teorias acadêmicas na mídia (livros, jornais,
revistas, vídeos, palestras, treinamentos presenciais ou virtuais, até reality shows e jogos de
computador)” (ibid.).
Emblematicamente, em 2001, a revista Veja lança uma reportagem de capa intitulada
“A Vida sem Patrão”, acompanhada por uma foto de um homem fazendo um gesto
comemorativo, montado em uma carteira com notas de cinquenta reais à vista (como se fosse
um cavalo), seguida pelos subtítulos: “o Brasil tem mais gente trabalhando sem carteira do que
empregada”, “as vantagens e as desvantagens de trabalhar por conta própria”; “as receitas de
quem acertou e os alertas de quem fracassou”; “Teste: você se daria bem sem patrão?” (Veja,
2001). Na reportagem interna, de oito páginas, há passagens em que se admite o verdadeiro
caráter do fenômeno do empreendedorismo: “a prática mostra que a maioria das pessoas passa
a ganhar menos e, além disso, começa a arcar com despesas que inexistiam na fase empregada,
como plano de saúde e previdência privada” (Veja, 2001, p. 111). Mais adiante, afirma que “o
maior motor do empreendimento pessoal não é um movimento de atração, mas de expulsão. A
maior parte das pessoas não foge do atual patrão. Apenas acaba sendo demitida por ele” (Ibid.).
A seguir, a reportagem mostra que, de um lado, o Brasil está em primeiro lugar no ranking
mundial dos povos mais empreendedores e, de outro, aqui se “registra um dos maiores índices
do mundo de mortalidade de empresas.” (Ibid., p. 112). No entanto, a culpa do fracasso é
atribuída ao indivíduo, bem como o sucesso, que se deve a “uma boa administração, a um bom
conhecimento do setor e à perseverança do dono” (Ibid., p. 113). O desfecho da reportagem é o
relato de vários casos de sucesso e conselhos do “guru da Administração Peter Drucker” (Ibid.,
p. 115).
Este é, como se vê, o movimento ideológico referido tanto por Leite e Melo, quanto por
Gurgel. Este último, contudo, vai mais a fundo ao analisar a adesão de estudantes de graduação
dos cursos de administração, economia e engenharia de produção ao que ele denomina de
“senso comum neoliberal”. Para isto, o autor fez um estudo comparativo com os estudantes
ingressantes e concluintes (primeiros e últimos períodos) desses cursos. No estudo, ele constata
que, ainda que a sociedade civil seja o grande espaço de formação de consciência e não as
“formas de Estado”, dentre as quais se inclui o aparelho escolar, o espaço educacional possui
importante influência na construção da consciência social. Das dezenove questões colocadas,
em questionário, todas expressando o senso comum dominante, dezesseis tiveram seus
percentuais de aceitação elevados quando respondidas pelos estudantes do último período.
Hermano de Soto, em seu livro O mistério do Capital (2001), defende uma tese
sofisticada que vai ao encontro dos anseios desse novo sistema de ideias e de vida. Buscando
explicar, como mostra no subtítulo do livro, “por que o capitalismo dá certo nos países
desenvolvidos e fracassa no resto do mundo”, o autor argumenta que a maneira de conquistar a
solidariedade dos trabalhadores em relação à nova forma de organização do trabalho e
produção – às necessidades do capitalismo globalizado e sobremaneira competitivo – é fazer
com que todos sejam detentores de propriedade privada. Isto porque, para Soto, a propriedade
privada possui uma função “cognitiva”. A propriedade formal, segundo ele,

é mais do que um sistema de emissão de títulos, de registro e de mapeamento


de ativos – é um instrumento de pensamento, representando ativos de tal
modo que as mentes das pessoas podem neles trabalhar para gerar mais-valia.
É para isso que a propriedade formal deve ser universalmente acessível: para
trazer todos a um único contrato social onde possam cooperar para aumentar a
produtividade da sociedade (SOTO, 2001, p. 254).

Em outras palavras, a solução mais eficaz para evitar a contestação ao sistema é


universalizar a propriedade privada ou alguma relação contratual com ela. Os trabalhadores e
indivíduos em geral precisam se aproximar concretamente da burguesia para que tenham
solidariedade de classe com ela. Soto argumenta que “nossos cinco sentidos não são suficientes
para que processemos a complexa realidade de um mercado ampliado, muito menos de um
globalizado. Precisamos ter os dados econômicos sobre nós mesmos e nossos recursos
reduzidos ao essencial para que nossas mentes consigam captar com facilidade” (Ibid.).
Na verdade, o que Soto faz é dar ouvidos com sentido inverso ao que Marx defendera,
há muito. A consciência de classe possui duas dimensões que se relacionam dialeticamente:
concreta e subjetiva. A consciência dos homens é construída a partir das condições materiais e
históricas que lhes são impostas. Marx é categórico ao dizer que “não é a consciência que
determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (MARX, 1982, p. 37). É por isso
que “o que os indivíduos são depende das condições materiais de sua produção” (Ibid., p. 28).
Para o marxismo, somente os proletários são a classe verdadeiramente revolucionária, porque
são os que sofrem concretamente, no seu dia-a-dia, as contradições do capitalismo, uma vez
que produzem suas riquezas sem delas se apropriar. Esta é uma condição objetiva. A condição
subjetiva, igualmente necessária, é a tomada de consciência do proletariado sobre a verdadeira
face do sistema e sobre o seu específico papel na história.
Ora, Soto nada mais faz do que perceber isto. A discussão dele não gira em torno do
debate sobre o fim – ou não – do trabalho assalariado. O que ele diz é que todos precisam viver
a realidade da burguesia, através de seu principal símbolo: a propriedade privada, para que
possam se associar a ela, ainda que dela não façam parte. O autor inclusive afirma que a ideia
de contradição de classes só é verdadeira nos países “subdesenvolvidos” e ex-comunistas, onde
o projeto da universalização de classe não se efetivou.
Sabemos que o contexto atual difere daquele caracterizado pela revista Veja, por
exemplo. Em 2001, o número de trabalhadores informais se sobrepunha ao conjunto de postos
de trabalho formal, com tendência crescente. O desemprego era o principal fator de estímulo ao
empreendedorismo. No entanto, a partir do governo Lula e durante o governo atual este quadro
sofreu mudanças. A boa conjuntura econômica, como vimos, aumentou a formalidade. Ao
mesmo tempo, como já comentamos, o governo Lula criou políticas de estímulo ao
empreendedorismo que têm continuidade com o governo Dilma. Ou seja, apesar de certa
mudança de conjuntura, o tema do empreendedorismo continua sendo considerado por diversos
segmentos, sobretudo pelo Estado, como algo importante. Daí porque é relevante estudar seus
impactos.

Empreendedorismo em dados

Pesquisa realizada pela Global Entrepeneurship Monitor (2013), sobre o empreendedorismo no


Brasil mostra o perfil dos empreendedores iniciais:

- A maior parte dos empreendedores iniciais brasileiros (50,9%) apresenta níveis de


escolaridade menor que segundo grau completo;
- A faixa de renda predominante é de menos de 3 salários mínimos (61,6%). Nas regiões Norte
e Nordeste, esse percentual alcança 73,4 e 66,0%, respectivamente.
- No Brasil e em todas as suas regiões, a faixa etária onde se observa a maior frequência desses
empreendedores é a de 25 a 34 anos (33,1%);
- As mulheres são a maioria (52,2%).
- A maior parte dos empreendimentos iniciais não possuem empregados (66,1%), 17,8% tem
um empregado e 8,9% dois empregados (p. 13).
- No geral, os empreendimentos iniciais no Brasil se concentram em atividades de baixo
conteúdo tecnológico, com pequenas barreiras de entrada, voltados para o mercado interno e
geridos pelo próprio proprietário. Entre os empreendedores estabelecidos, a situação não é
muito diferente. O percentual de empreendedores que afirmam a falta de novidade dos
produtos ou serviços criados está acima de 98% e 98,9% responderam que não possuem
consumidores no exterior (p. 14).

Esses dados mostram, mais uma vez, que o público-alvo do empreendedorismo são os
setores mais fragilizados da sociedade, com baixos níveis de escolaridade e baixos níveis de
rendimento. O fato de não terem empregados em sua maioria demonstra que esses supostos
empreendedores são, na verdade, trabalhadores por conta própria, autônomos, com todas as
dificuldades e instabilidades que isso gera: não possibilidade de férias, dado que o baixo
rendimento e a falta de empregados não lhes permite ficar um mês sem trabalhar; falta de
direitos trabalhistas e previdenciários, etc. Esse fenômeno também se confirma pelo fato de que
84,6% dos “empreendedores” não buscam auxílio de órgãos de apoio, como SENAC,
SEBRAE e SENAI (GEM, 2013). Lembremos que a maioria não tem ensino médio completo.
Essa mesma pesquisa traz um item intitulado “mentalidade empreendedora”, que nos
parece interessante porque nos ajuda a identificar o grau de aderência da ideologia do
empreendedorismo em nosso país. A tabela abaixo traz os resultados percentuais da percepção
da população brasileira de 18 a 64 anos, em 2013.

Tabela 1 – Mentalidade Empreendedora – 2013.


Fonte: GEM Brasil, 2013, p.16.

Esses resultados corroboram a constatação de que o sonho do próprio negócio está


presente no imaginário da população como uma melhor oportunidade em relação ao emprego
formal. Segundo o estudo, “Esses conceitos mostram o prestígio que o empreendedorismo vem
alcançando junto à população”. Na conclusão, essa consideração aparece mais uma vez:

o estudo revelou os baixos percentuais de novidade nos produtos e serviços,


além da baixa perspectiva de geração de empregos nos próximos cinco anos.
Apesar disso, o empreendedorismo desfruta de uma excelente imagem no
país, dado que a proporção de pessoas que consideram o empreendedorismo
como uma opção de carreira é superior a 80% (GEM, 2013, p. 19).

Chama atenção o último item – 83% da população entre 18 e 64 anos afirmam ver
“frequentemente na mídia histórias sobre novos negócios bem sucedidos”. O papel da mídia na
criação do imaginário do empresário é central. Aquilo de ilustramos acima com a revista Veja é
reproduzido por inúmeros meios de comunicação, principalmente da mídia televisiva e
impressa. Dias e Wetzel (2010) analisam as publicações relacionadas ao tema
“empreendedorismo” da Revista Exame entre os anos de 1990 e 1999. Elas concluem que

os jornalistas da Exame: 1) afirmam a existência de um ambiente econômico


naturalmente propício para os "empreendedores", deixando de problematizar
o próprio contexto que tomam como base; 2) apresentam continuamente a
abertura de uma firma como algo a ser perseguido pelos sujeitos, dando a esta
ação um status extremamente positivo e diferenciado em relação ao emprego
assalariado; 3) dão dicas de oportunidades e sugestões de como lidar com o
mundo dos negócios, difundindo, assim, práticas sociais, racionalidade de tipo
particular e nova ética do trabalho considerada indispensável ao novo
contexto econômico; 4) afirmam que a possibilidade de "se tornar patrão" é
viável a todos os indivíduos, tanto para os inventivos quanto àqueles que não
detém boas idéias, incluindo empregados e desempregados, jovens e
veteranos, pessoas com muito ou pouco capital, ampliando, assim, o campo de
alcance do "empreendedorismo" (DIAS e WETZEL, 2010, p. 114).
Conclusão
O projeto neoliberal foi sendo construído muito antes do período de sua emergência. Já
na década de 1940, quando aparentemente o mundo mantinha-se centrado na polarização da
guerra fria e, no lado ocidental, prevaleciam as diversas facetas do Estado de Bem-Estar,
Hayek lançava “O Caminho da Servidão”, mais precisamente em 1946. Este, como anunciava
o autor já na sua introdução, era um verdadeiro manifesto político de defesa de um Estado
liberal de novo tipo, reformado, sem os vícios daquele Estado liberal que entrara em colapso. O
centro de gravitação do mundo, naquele momento, realmente era outro. Demorou
aproximadamente três décadas para que Hayek viesse a receber o reconhecimento de sua obra,
quando em 1974 ganhou o prêmio Nobel de Economia. Era o sinal de que a maré estava
mudando, ainda que não tão facilmente, dado que a voz do pensamento neoliberal teve que
dividir o prêmio com Gunnar Myrdal, um economista historicamente heterodoxo e
progressista, profundamente ligado às tradições social-democratas.
Sem dúvida, a derrota do bloco socialista e a crise econômica, originada no modo de
produção que por tanto tempo foi compatível com o Estado “provedor”, foi o ‘canto da sereia’
de que precisava o projeto neoliberal para eliminar qualquer resistência que ainda pudesse
existir a sua efetivação.
Hoje, há quase quatro décadas de seu início, reconhecemos como esse sistema foi bem
sucedido em sua dimensão ideológica, muito mais do que em sua dimensão econômica, que
mostrou em diversas partes suas limitações e incapacidade de manter a estabilidade política,
econômica e social. Os prejuízos sociais causado pelas privatizações, demissões, flexibilização
do trabalho e da renda, as inúmeras perdas de direitos sociais, a mercantilização da vida, etc,
são inegáveis. As reações sociais a isso também o são. A América Latina é um grande exemplo
de rejeição à experiência neoliberal. A crise econômica mundial iniciada em 2008 também
seria a prova cabal de que o modelo neoliberal é insustentável. Era o que diziam inúmeros
analistas e os críticos otimistas.
No entanto, a despeito das inúmeras aparentes evidências de que o modelo neoliberal
chegou ao seu fim, mostrava ao mundo que sua inserção ideológica tinha sido efetivamente
vitoriosa. A ideologia neoliberal, ou pós-moderna, como alguns chamam, estava presente nas
relações sociais, nas relações trabalhistas, nos sindicatos, nas famílias, nas escolas. Passou a
predominar o mercado e o capital, mesmo nas dimensões mais subjetivas: “mercado político”,
“capital humano”, “capital social”, “capital intelectual”, “mercado educacional”. Os
instrumentos de resistência e de luta, que foram sobremaneira debilitados pelos avanços das
reformas neoliberais até o momento não conseguiram se reerguer. O caso mais ilustrativo são
os sindicatos, hoje quase inexistentes no setor privado, com cada vez mais dificuldades de
serem identificados pelos trabalhadores como uma entidade de defesa de seus interesses de
classe. Nesse bojo, os partidos políticos também foram alvo de enorme descrédito. O símbolo
de cidadão hoje não é mais aquela pessoa politicamente engajada, militante político e/ou
sindical. Agora cidadão é aquele apolítico, que “faz o bem sem olhar a quem”, sem discursos
radicais, de preferência ligado a projetos filantrópicos ou a ONGs.
É nesse cenário muito bem construído pelo neoliberalismo que o discurso ideológico do
empreendedorismo ganha diariamente mais e mais adeptos. Os meios de comunicação e órgãos
como SEBRAE, como vimos, têm sido, eles sim, verdadeiros militantes no objetivo de levar
aos diversos setores da sociedade o sonho de serem patrões de si mesmos. No entanto, apenas a
propaganda ideológica não é suficiente para conseguir tal grau de adesão. Como vimos, é
necessária a existência de materialidade. É necessário que a massa, de alguma maneira, tenha
contato com a experiência concreta da propriedade privada, com as preocupações comuns de
quem a tem. É aí que entra o Estado, por meio de políticas públicas. Essa mão do Estado, que
legitima e chama de “empresário”, “empreendedores” setores pauperizados da sociedade, como
o vendedor de pipoca ou o carregador de malas, tem um efeito de enraizamento da lógica
empreendedora que é fundamental para a concretização desse fenômeno. Quanto mais contato
com a realidade do empresário, ainda que indiretamente (por um familiar, por exemplo), mais o
trabalhador se distancia das preocupações comuns aos trabalhadores, menos se incomoda com
as horas extras não remuneradas ou com o não respeito aos horários de almoço, com a
desregulamentação, a perda de direitos trabalhistas e sociais, etc. Uma lógica de empresários;
talvez pior: uma lógica de pequeno empresário passa a se sobrepor a sua própria lógica de
classe.
Esse é um processo em franca ascensão, que chega inclusive nas escolas e nas
universidades e parece não ter fim próximo. Expor seus problemas, suas armadilhas e as suas
contradições é uma forma de resistência e de advertência.

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Mães Puérperas: o conflito entre a carreira profissional e a maternidade
Arianne Ribeiro de Oliveira (UFF)
Layana Nogueira Teixeira (UFF)
Rafaela Perlingueiro Nunes Neto (UFF)
Carlyle Falcão Oliveira (UFF)

Resumo
Este artigo tem como foco as mães com filhos até dois anos de idade, conhecidas como mães
puérperas, e os conflitos que emergem entre maternidade e trabalho. Este tema, pouco
abordado na literatura da Administração, pretende abrir uma agenda para reflexões práticas e
acadêmicas, afim de se discutir sobre propostas que conciliem carreira profissional e
maternidade integral. Por meio da pesquisa bibliográfica é apresentado um panorama sobre a
relevância da maternidade na sociedade e a evolução do papel das mulheres enquanto mães e
profissionais, além de sua luta para se inserirem no mercado de trabalho. A pesquisa empírica,
de base qualitativa e quantitativa, contou com o depoimento de 118 mães puérperas e buscou
identificar conflitos entre maternidade e trabalho, assim como os sentimentos da mãe em
relação aos dilemas familiares e profissionais. Os resultados são apresentados mesclando-se
dados quantitativos com trechos de narrativas que mostram esta realidade conflituosa pouco
conhecida para a maioria dos gestores e da sociedade brasileira.

Abstract:
This article focuses on mothers with children up to the age of two years old, known as
postnatal mothers, and the conflicts that emerge between motherhood and job. This topic is
not discussed in Management's literature and it plans to open an agenda for practical and
academic reflections, in order to discuss proposals to reconcile career and motherhood.
Through the literature is presented an overview of the importance of motherhood in society
and the changing role of women as mothers and professionals, and their struggle to be
inserted in the labor market. The empirical research, bases on qualitative and quantitative
method, relied on the testimony of 118 postnatal mothers which tried to identify conflicts
between motherhood and work, as well as the mother's feelings towards family and
professional dilemmas. The results are presented mingling quantitative data with narrative
passages which show that this conflicting reality is little known to most managers and
Brazilian society.

Introdução
A luta feminina pela igualdade de direitos entre gêneros não é recente. Desde o século
passado houve muitas conquistas, como por exemplo, a participação crescente das mulheres
no mercado de trabalho.
Uma pesquisa do IBGE realizada entre 2003 e 2008 aponta que o Brasil ainda está
longe de atingir a igualdade: dos gêneros, a desocupação é maior e os salários inferiores entre
as mulheres, mesmo apresentando maior grau de escolaridade que os homens. Nos maiores
níveis de escolaridade, essa diferença ainda é maior, pois os salários das mulheres, com nível
superior, são 40% menores.
Essa pesquisa, no entanto, não aborda um fator crucial na vida de muitas mulheres: a
maternidade. Quantas das mulheres no mercado de trabalho são mães? Quantas fora dele?
Qual é a visão e o posicionamento das organizações frente à maternidade? A falta de
informações, nesse sentido, demonstra ainda pouco interesse no assunto, que é essencial para
entender e melhorar as condições de trabalho para as mulheres.
Esse é um grande problema contemporâneo para as mulheres: como integrar a
maternidade em suas vidas, sem abdicar de suas outras atividades e/ou estreitar suas ambições
profissionais e, ainda por cima, lutar contra a desigualdade no trabalho?
O foco deste trabalho são essas mulheres, mães puérperas, que desejam realizar
mudanças profundas nas suas vidas e o objetivo é proporcionar uma agenda para reflexões
práticas e acadêmicas, afim de refletir sobre propostas que conciliem carreira profissional e
maternidade integral.

Maternidade e sociedade
Cuidar de crianças é fundamental para a continuidade das próprias sociedades, sendo
portanto um relevante trabalho social, além de gratificante, para o instinto humano, a função
de gerar filhos. Porém, a igualdade de direitos e deveres entre os gêneros, preconizado pelo
discurso da modernidade, não leva em conta as disparidades em relação aos papéis sociais de
homens e mulheres, haja vista as diferenças biológicas entre os sexos, como é o caso da
maternidade (COUTINHO, 2009).
Antes do final do século XVIII, mães e filhos não mantinham uma relação de carinhos,
cuidados e apegos. As amas eram as responsáveis pela atenção e educação às crianças. Mães e
crianças tinham um peso subalterno na sociedade e a maternidade era um fenômeno natural
inerente à mulher. A procriação tinha como a finalidade a continuidade da linhagem familiar e
os cuidados com a herança (EMIDIO e HASHIMOTO, 2008).
Não se pode negar a existência do amor entre mãe e filhos através dos tempos, mas a
partir da Revolução Industrial há uma valorização natural e social do amor materno. Os
Estados industriais passaram a se preocupar com a sobrevivência das crianças como mão de
obra para as fábricas que surgiam. Cria-se o discurso do encontro da felicidade com a
maternidade, com promessas de igualdade e cidadania para as mães que assumissem a
maternidade (EMIDIO e HASHIMOTO, 2008).
Esses discursos de exaltação à natureza materna da mulher, da dedicação aos filhos,
abdicando de si mesma, são corroborados por pesquisas realizadas por Patias e Buaes (2012,
p. 305), que afirmam se configurarem em um discurso socialmente dominante e de identidade
feminina:
A maternidade, no decorrer da história, foi construída através de diferentes discursos
que afirmavam ser essa uma tarefa primordial e essencial à “natureza” da mulher.
Ligada diretamente ao feminino, as representações culturais da maternidade foram
produzidas por práticas discursivas que prescrevem que toda mulher deveria cuidar,
amar, alimentar e dar educação aos filhos, abdicando de si mesma, para cuidar de
outro, totalmente dependente dela. Atualmente, embora a mulher possa ser
reconhecida por sua participação em outros cenários sociais, essas representações
atravessam os depoimentos das entrevistadas, configurando-se como um discurso
social dominante e constitutivo das identidades femininas.

Weber et al (2006) recordam que a maternidade e os cuidados infantis acompanham o


cotidiano das mulheres ao longo da história, como parte do seu papel social. Citam a
preocupação a importância presença materna nos primeiros anos da vida do bebê e as escolhas
difíceis da mãe por ter que se afastar do seu bebê e enfrentar a tarefa de conciliar maternidade
e vida profissional.
Os discursos implantados à sociedade da época, apregoando amor, cuidados e carinhos
aos bebês, como vital para sobrevivência desses, fez crescer o sentimento altruísta da mãe em
favor do filho, fazendo com que elas passassem a acatar cada vez mais uma atitude de
abnegação de sua vida pessoal em detrimento da maternidade (PATIAS e BUAES, 2012;
EMIDIO e HASHIMOTO, 2008).
Surge os conflitos de separação de espaço da mãe em relação à sua própria vida e a do
filho. A troca da liberdade da mãe pela sobrevivência, conforto e bem-estar do bebê passa a
ser louvável do ponto de vista social, valendo até sacrifícios dela para que ele cresça e se
emancipe saudavelmente. Desse modo, a função da maternidade foi ocupando um espaço às
mulheres como um papel desejável e honroso (PATIAS e BUAES, 2012; EMIDIO e
HASHIMOTO, 2008).
Com efeito, a exaltação da maternidade teve como consequência a queda da
mortalidade infantil e o aumento da natalidade, como esperado pelos Estados. Houve também
a valorização da função materna e, por conseguinte, das mulheres que passam a ter mais
importância e poderes na sociedade. Da mesma maneira, a dedicação aos descendentes e o
amor inquestionável entre mãe e filho passam a ser verdades absolutas e associados aos
sentimentos nobres da pessoa humana (EMIDIO e HASHIMOTO, 2008).
Patias e Buaes (2012), citando Colling (2004) 3 Scavone (2001), mostram que, assim,
a mulher foi impelida à função familiar, limitando-se ao papel social da maternidade. Tomar
conta dos filhos, do marido e da casa era uma missão nobre que beneficiava toda a sociedade.

A mudança dessa função social acontece por meio da ascensão da mulher como um ser
que tem desejos e necessidades diferentes ao do papel de mãe. As transformações ocorridas
em relação à sexualidade feminina, vieram a colocar a mulher em posição de reivindicar
outras posições sociais.

Contemporaneamente, segundo Patias e Buaes (2012), a maternidade adquire um


significado transitório e incerto devido às múltiplas identidades que assumem as mulheres na
sociedade. Os discursos que valorizam a profissão e o trabalho vêm substituindo o da mulher-
mãe.
Moura e Araújo (2004, p. 50) concordam em que o papel materno, ainda central, não
era mais o único disponível para as mulheres: “o papel feminino deveria conter a maternidade,
sem deixar-se englobar por ela.”

Maternidade e trabalho
Conforme Grant (2002), a mulher ascendeu no mercado de trabalho e em suas
atividades intelectuais, passando a ser a senhora da sua vida e se decidindo a casar ou viver
sozinha; a ter filhos ou não; a trabalhar ou a se dedicar à família. Essas mudanças e a
conquista de poder foram facilitadas pelo divórcio, pelos métodos anticoncepcionais, pelas
novas possibilidades de parcerias amorosas, que acabaram por impulsionar a mulher para o
mundo do trabalho.
Nesse novo contexto laboral, a mulher encontra as dificuldades de conciliação dos
papéis da mulher profissional com a mulher doméstica, pois “trabalhar, ser uma profissional
bem sucedida é somar responsabilidades, mais do que isto é, frequentemente, suportar uma
certa medida de conflitos e culpa (GRANT, 2002, p. 1).
O ambiente hostil e a falta de estrutura psicológica para lidar com os conflitos no
ambiente laboral dificultam o processo de retorno ao trabalho, já que, no puerpério, as
mulheres estão sob a intensa ação de hormônios característicos do período, segundo Gutman
(2013, p.53): “com o nascimento da criança, as mulheres se sentem transportadas a um
planeta estranho onde toda a libido foi desviada para os cuidados com o bebê, a lactância, a
disponibilidade física e afetiva e a preocupação cotidiana com o bem-estar do filho”.
A relação entre a separação do bebê e o aleitamento é abordada por Gutman (2013,
p.75): “o desmame é uma experiência relativa à lactância, ao vínculo amoroso, à história e à
experiência de cada mãe e cada bebê, e, portanto, seria ideal que acontecesse o mais
naturalmente possível”.
Oliveira et al (2011) realizaram uma pesquisa bibliográfica para determinar a relação
entre maternidade e trabalho, classificando seus resultados em duas categorias: 1) o impacto
da maternidade no trabalho; e 2) o impacto do trabalho na maternidade.
O impacto da maternidade no trabalho (1) foi subdivido em duas subcategorias: a)
fatores associados ao contexto pessoal e social da mãe; e, b) fatores associados ao próprio
trabalho/organização. No primeiro caso (a), foram identificados quatro variáveis impactantes:
i) idade dos filhos; ii) tempo de afastamento do mercado de trabalho; iii) expectativas e
satisfações da mãe quanto ao trabalho; iv) valores sociais. No segundo caso (b), identificaram-
se três variáveis causadoras de impactos da maternidade no trabalho: i) o regime de trabalho;
ii) o tipo de vínculo empregatício e os benefícios trabalhistas; e, iii) as percepções sobre status
parental e questões de gênero implicadas nas organizações.
Os resultados sobre impacto do trabalho na maternidade (2) também foram agrupados
nas mesmas subcategorias: a) fatores associados ao contexto pessoal e social da mãe; b)
fatores associados ao próprio trabalho/organização. No primeiro caso (a), identificaram-se as
seguintes variáveis impactantes da maternidade no trabalho: i) sentimentos e decisões
maternas; ii) rearranjos familiares. No segundo caso (b), foram identificados também duas
variáveis: i) regime de trabalho; e, ii) qualidade do ambiente de trabalho.
Os resultados encontrados por Oliveira et al (2011) foram sintetizados no Quadro 1.
Quadro1: Impactos maternidade x trabalho

Impacto da maternidade no trabalho Impacto do trabalho na maternidade


xto pessoal e social da mãe

i) idade dos filhos: de forma geral, quanto menor i) sentimentos e decisões maternas: a vivência
a idade do filho, maior a inconstância no que se da maternidade marcada por satisfações e
refere à vida profissional da mulher. dificuldades, estando repleta de recompensas
ii) tempo de afastamento do mercado de trabalho: oriundas dos momentos de envolvimento com
quanto mais tempo uma profissional se mantém os filhos, mas também envolvendo sacrifícios,
afastada do trabalho, menor é a probabilidade de principalmente quanto ao tempo de lazer e de
retomar sua vida profissional; maior também a convivência com a família; a autonomia
probabilidade de rebaixamento na estrutura decorrente da vida profissional foi associada à
hierárquica da organização, assim como reduções decisão de postergar a maternidade.
nas chances de promoção.
iii) expectativas e satisfações da mãe quanto ao ii) rearranjos familiares: muitos rearranjos eram
trabalho: muito importante para a individualidade necessários para dar conta das demandas de
das mães; necessidade de trabalho para cuidados infantis decorrentes do trabalho
populações de menor nível socioeconômico e materno; a satisfação materna acerca dos
obtenção de incentivos governamentais. cuidados infantis realizados pela família
iv) valores sociais: em geral, o ideal materno de proporciona mais tranquilidade às mães, que
dedicação e cuidados integrais, assim como a conseguiam concentrar-se melhor no trabalho, o
designação de que o homem deve ser responsável que por sua vez, aliviaria o estresse e a tensão
pelo sustento do lar, pode levar a mulher a decidir com a família; evidencias da presença de
sobre a interrupção de sua vida profissional em conflitos na família decorrentes do trabalho
prol dos cuidados dos filhos. materno.
Fatores associados ao próprio trabalho/organização

i) o regime de trabalho: o regime de trabalho em i) regime de trabalho: a jornada de trabalho


tempo integral tende a dificultar a conciliação da integral aparece como o principal fator
maternidade com a vida profissional; tendência de responsável pelo cuidado infantil ser realizado
mulheres trabalhadoras buscarem empregos em em creches ou escolas infantis; sentimento de
regime de trabalho parcial após a maternidade. que o trabalho deixa as mães mais ausentes de
ii) o tipo de vínculo empregatício e os benefícios casa e que o tempo com a família fica menos
trabalhistas: ter um trabalho antes da maternidade prazeroso.
é um forte preditor do retorno ao trabalho após o
nascimento do filho; a possibilidade de contar
com benefícios trabalhistas, como é o caso da
licença-maternidade, pode mediar a influência da
maternidade sobre o trabalho.
iii) as percepções sobre status parental e questões ii) qualidade do ambiente de trabalho: mães
de gênero implicadas nas organizações: indicação satisfeitas com seu ambiente de trabalho, em
de influência de gênero e status parental sobre as termos de flexibilidade e realização pessoal,
decisões de contratação profissional em favor dos apresentam melhores interações com seus
homens; constatação que ser mãe estava filhos; cansaço e o estresse associados à
associado sobrecarga de trabalho materno podem resultar
a salários menores, enquanto que, para os em menos interações positivas entre mãe e
homens, ser pai parece beneficiá-los no meio criança.
laboral.

Fonte: elaborado pelos autores com base em Oliveira et al (2011)

Segundo Scavone (2001b), no Brasil, houve um decréscimo da taxa de natalidade de


4,5 filhos por mulher em 1980 para 2,5 em 1996, mostrando um novo padrão para a família
brasileira, devido a uma política de controle demográfico utilizando-se do método de
esterilização feminino. Contudo, a redução da natalidade, apesar de diminuir o dilema das
mulheres que desejam seguir uma carreira profissional, não acabou com o conflito, já que são
elas as mais sobrecarregadas nas atividades familiares.
Uma pesquisa realizada por Troiano (2007) com 800 mulheres brasileiras é citada por
Oliveira et al (2011, p.272) para mostrar a ambiguidade de sentimentos percebidos pelas
mulheres na volta ao trabalho após a maternidade: “ansiedade (33%), alegria (30%),
insegurança (25%) e conflito (24%)”. Ficou registrado, nesse estudo, que 59% das mulheres
consideraram o período do nascimento até o primeiro ano de idade como o mais crítico para a
conciliação entre maternidade e trabalho; 18% delas consideram o mais difícil, do primeiro ao
segundo ano de vida. Ou seja, 77% das mães consideram o período puerperal (até 2 anos de
idade) como o mais severo de toda a maternidade.
Em países desenvolvidos, antigos padrões de maternidade convivem, lado a lado com
a igualdade entre os sexos e a necessidade de investimento da mulher em sua carreira
profissional. Assim, a maternidade conflita com o investimento em uma carreira profissional,
levando as mulheres tentarem a difícil conciliação entre a família e a carreira. (SCAVONE,
2001a)
Outra pesquisa realizada pela empresa de consultoria de recursos humanos Robert
Half (2013) realizada com 1.775 diretores de Recursos Humanos de 13 países, sendo 100
brasileiros, apontou um dado importante: em 85% das empresas analisadas, menos da metade
de suas funcionárias retornam ao trabalho após a licença maternidade. Em outros lugares do
mundo, o número de empresas nessa situação cai para 52%. A mesma pesquisa indicou um
número muito baixo de empresas disponibilizam jornadas de trabalho e horários mais
flexíveis para as mães no Brasil: 31% contra 68% no exterior. A legislação ainda é uma
grande barreira nesse sentido.
A licença maternidade, por exemplo, dura apenas quatro meses, enquanto a
recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) indica que o aleitamento materno
seja exclusivo até os seis meses e, a partir disso, seja feita a introdução de outros alimentos
mantendo o aleitamento complementar até os dois anos. Além disso, as empresas não
possuem uma estrutura compatível com a amamentação. As mães puérperas são afastadas de
seus bebês por horas e muitas vezes não tem liberdade para retirar o leite durante essa
ausência. Não há espaço para as crianças, sala de amamentação ou ordenha e intervalos para
alimentar os bebês. Esses problemas geram frustração nas mães, que ficam desmotivadas com
seus empregos. A desmotivação pode acarretar em queda de produtividade ou em mesmo
demissão.
Uma alternativa para as mães voltarem ao trabalho são as redes de cooperação que se
formam para a guarda dos bebês. Portugal (2004) estudou uma rede de cooperação em
Coimbra, entre 1991 e 1993. Ela concluiu que a rede familiar é crucial para o recebimento das
crianças. Em sua pesquisa, ela detectou que a guarda dos filhos é realizada principalmente,
pelos avós, mas que há apoio também de outros parentes como tias, irmãs, primas, cunhadas.

Metodologia
Esta pesquisa, de finalidade exploratória (GIL, 2002; VERGARA, 2006), buscou
aprofundar a discussão dos dilemas das mães puérperas com sua vida profissional. Utilizou-se
a pesquisa bibliográfica para sistematizar as referências teóricas, publicadas em revistas
acadêmicas e meio eletrônico, em que verificou-se a importância da maternidade do ponto de
vista social e o conflito das mães com o mundo do trabalho.
Foi realizada uma pesquisa de campo (GIL, 2002; VERGARA, 2006), com o objetivo
de caracterizar o perfil social, econômico e demográfico de um grupo de mães puérperas,
assim como captar o sentimento dessas mães em relação à profissão e à maternidade. Para
isso utilizaram-se questionários semiestruturados, com perguntas abertas e fechadas.
A pesquisa realizada durante o mês de julho de 2015, quando um grupo de 119 mães
responderam à respeito de sua relação com o retorno ao trabalho após a maternidade.
Investigou-se a relação entre o período de aleitamento exclusivo e o retorno ao trabalho,
buscando entender: as mudanças no foco da carreira e na relação com o trabalho após a
maternidade; os sentimentos surgidos em relação aos filhos no momento da separação do bebê
para o exercício das atividades profissionais; e os arranjos familiares para promover os
cuidados com as crianças que possibilitassem a ausência das mães no lar.
A coleta de dados aconteceu por meio de formulários online, divulgado pela internet
para um grupos de mães nas redes sociais e os resultados foram submetidos à análise de
conteúdo, que permite tanto abordagens quantitativas quanto qualitativas (BARDIN, 2011).
Nesse sentido, buscou-se identificar conflitos entre maternidade e trabalho, assim como os
sentimentos da mãe em relação aos dilemas familiares e profissionais.

Resultados
Sobre a idade do filho no momento do retorno ao trabalho, 28,7% é o percentual de
mães que voltaram a trabalhar antes de seu bebê completar 6 meses de vida.
Das pesquisadas, 91,1% afirmam ter amamentado, sendo que 31,7% relatou ter
iniciado a introdução alimentar antes dos 6 meses preconizado pela Organização Mundial de
Saúde. O retorno ao trabalho foi apontado como motivo para a interrupção ou não aleitamento
exclusivo por 12,9% das pesquisadas.
Relataram ter pedido demissão ou mudaram o foco da carreira, após o nascimento do
filho, 56,4% das participantes da pesquisa. Foram informados como motivo das demissões
voluntárias: diminuição da carga horária para dedicação maior a maternagem; investimento
em formação; busca por maiores salários e estabilidade; e mudança de área de atuação –
sendo expressivo o número de relatos de mães terem passado a se dedicar a negócios voltados
para o universo infantil e também de mães que se tornaram empreendedoras, objetivando estar
mais conectada com seus filhos.
A impossibilidade de conciliar os horários do trabalho com a rotina familiar foi uma
das principais dificuldades relatadas: “Meu trabalho exigia uma flexibilidade e
disponibilidade de tempo que eu não teria com um bebê e sem família por perto, pois nem
creche conseguiria suprir, adicional noturno, finais de semana” (RESPONDENTE 5, 2015).

A falta de empatia com as mulheres no período puerperal mostrou-se um obstáculo


para a carreira: “Desisti de ser executiva, pois fui mandada embora depois de 12 anos de
empresa por ter sido mãe” (RESPONDENTE 60, 2015); e para a dimensão emocional...
O retorno é complicado demais, pois além de ser precoce (minha primeira filha
retornou aos 4 meses) você continua sendo exigida da mesma forma que antes, se
cobra pra continuar atendendo a tudo e a todos e se frustra quando percebe que não
consegue. O corpo fica diferente. O cansaço é maior, a memória fica afetada, a
desejo de estar com seu filho misturado com a necessidade de trabalhar são as vezes
massacrantes (RESPONDENTE 45, 2015).

A saúde emocional afetada pelo estresse do momento maternal pode acarretar


dificuldade em seguir amamentando:
O emocional é um fator complicado pois a mente mesmo tentando focar ao trabalho
só consegue pensar no filho, principalmente porque o período de retorno ao trabalho
(120dias) é menor do que o período que o bebê necessita somente do leite materno.
Logo, a preocupação é constante em manter a produção de leite suficiente mesmo
estando longe de estímulo.(RESPONDENTE 26, 2015)
A frustração pelo insucesso na carreira pode refletir um sentimento de incapacidade
em conciliar as atividades maternas e profissionais:
Sou autônoma. Meu negócio não se sustentou com minha ausência. Tenho uma
sensação de impotência em relação a profissão, como se a profissão e a maternidade
não sejam realizações que eu possa ter ao mesmo tempo. Ou eu escolho ser mãe ou
profissional. (RESPONDENTE 70, 2015)

O conflito, a angústia e o sofrimento de deixar o filho para seguir com a rotina laboral
pode ser percebido em toda sua intensidade nestes três relatos:
Não consigo conceber ficar 9 horas por dia longe do meu filho, não participo das
atividades escolares dele e me sinto muito mal em relação a essas coisas.
(RESPONDENTE 63, 2015)

Foi uma tristeza profunda. Chorei quase todos os dias nos 3 primeiros meses. Pensei
muito em parar de trabalhar, não o fiz por ser servidora pública e responsável por
mais da metade da renda familiar. Nenhum prazer em trabalhar, uma violência
diária. (RESPONDENTE 30, 2015)

Não tive mais o mesmo pique, principalmente quando o filho fica doente e perco
noites de sono. Emocionais: É muito difícil cortar esse laço. Só de pensar em estar
no trabalho e não poder sair quando o filho precisa de mim, é Mt angustiante.
(RESPONDENTE 96, 2015)

Enquanto a maternidade propõe novos desafios à carreira das mulheres já inseridas no


mercado de trabalho, dentro da universidade também são encontrados barreiras para o
desempenho das mães pesquisadoras no desenvolvimento de sua trajetória acadêmica.
Nesse sentido, foram relatadas dificuldades com o corpo docente: “Após a
maternidade meu orientador do mestrado me descredenciou por não compreender que eu
precisava de um horário de escrita da dissertação mais flexível e que poderia fazê -la de casa.”
(RESPONDENTE 49, 2015); e com o estado emocional da púerpera: “A falta de tempo para
escrever, o esgotamento do tema no qual me dediquei no mestrado e não saber como retomar;
sentimento de mediocridade mental, falta de capacidade e criatividade para retomar a carreira
acadêmica”. (RESPONDENTE 62, 2015)
Por outro lado, pode-se observar mudanças positivas, apesar das dificuldades
encontradas: “Estar no trabalho ou fazendo mestrado me relaxava, tirava minha atenção só da
criança. Tinha uma babá excelente nos dois casos. E estudava ou trabalhava metade do dia, o
que ajuda muuuuito.” (RESPONDENTE 20, 2015)
As dificuldades enfrentadas durante a gestação, parto e puerpério surgiram também
como ponto de inflexão para uma mudança na carreira:
Eu trabalhava com algo bacana e que gostava de fazer, publicidade, mas após a
maternidade percebi que existe uma área pobre em profissionais capacitados para
lidar com o emocional das mulheres em trabalho de parto. Dai resolvi trabalhar com
algo que mexeu muito comigo, pois meu parto foi um trauma, e me tornei doula e
consultora de amamentação. (RESPONDENTE 43, 2015)

As profundas mudanças individuais vividas no período da maternidade mostraram-se


refletidas na escolha por novos rumos profissionais:
Meu problema maior era com o meu trabalho em si. Não saí por causa da
maternidade. A maternidade apenas me deu uma boa desculpa. Olhando de forma
mais profunda, passei a me atrair muito mais por trabalhos públicos, com intenções
de transformação do mundo. Não aceito mais gastar meu tempo sem prazer, só
dando dinheiro para patrão. A vaidade mudou também. Diminuiu a centralidade do
trabalho como espaço de segurança. (RESPONDENTE 20, 2015)

Para que as mulheres pudessem dedicar-se as suas atividades profissionais, 27,7%


deixaram seus filhos aos cuidados de uma creche, 14,9% com uma babá e 30,7% pôde contar
com os cuidados de algum familiar. Das respondentes, 10% relatou ser responsável pelos
cuidados com os filhos mesmo trabalhando, algumas como autônomas ou realizando home-
office, organizando sua rotina profissional em horários alternativos e outras puderam levar
seus bebês consigo ao local de trabalho.
Sentimentos conflituosos surgiram na chegada do momento de deixar o bebê aos
cuidados de terceiros. Preocupação, dúvida, medo, angústia, saudades, sensação de abandono,
culpa, consciência pesada e insegurança estiverem presentes em grande parte das respostas
das mães na volta ao trabalho:
“Medo, angústia, saudades... fiquei nessa situação por 4 meses após a volta.
Depois entrei em acordo para ser mandada embora.” (RESPONDENTE 95, 2015)

“Me sentia péssima mãe, psicológico derrotado por não conseguir dar o meu melhor,
e ainda por cima sendo massacrada pela família que falava que não deveria largar o
concurso por que iria me arrepender futuramente, mas ninguém podia me ajudar!”
(RESPONDENTE 54, 2015)

Em contrapartida, uma parte das mulheres relatou sentimentos de responsabilidade,


dever cumprido, trabalho bem feito, vivacidade, tranquilidade e mais paciência com os filhos:
“Eu coloquei meu filho numa creche com uma pedagogia que considero adequada. Sinto
saudades dele, mas como ele entrou com 1 ano e 6 meses, me sinto sortuda por ter ficado bem
mais tempo que outras mães!” (RESPONDENTE 43, 2015)

Discussão
Em comum, os sentimentos negativos que rondam o período puerperal, tão delicado na
vida das mães, seriam: medo de deixar o filho pequeno aos cuidados de terceiros; culpa por
precisar se ausentar; angústia pela separação; preocupação com o bem-estar do neném; revolta
e solidão por não poder contar com outras pessoas para auxiliar; tensão por passar boa parte
do dia distante do pequeno e dependente ser; saudades de casa e dos filhos; cansaço e
sobrecarga pela jornada dupla – fora e dentro de casa; e inadequação, por não obter satisfação
profissional com o trabalho desempenhado.
O retorno ao trabalho após a maternidade ocasionou conflitos desagradáveis:
discriminação por parte dos colegas de trabalho devido à jornada de trabalho reduzida para
possibilitar a amamentação; falta de empatia de pares e superiores, dificultando um ajuste de
horários que permitisse àquela mãe continuar exercendo suas atividades profissionais sem
prejudicar os cuidados com seu filho; frustração por não sentir que está realizando uma
atividade de relevância social e dificuldades em terceirizar os cuidados.
O resultado dessas experiências mostra o desligamento do emprego para dedicar-se
exclusivamente aos cuidados com os filhos por um tempo maior, seguido da busca por uma
recolocação no mercado, num formato que permitisse a dedicação à maternagem,
comprometendo, por vezes, a renda familiar.
A falta de estrutura nas organizações para acolher as mães puérperas no retorno ao
trabalho, como, por exemplo, espaço de creche dentro das empresas - possibilitando a
proximidade e a continuação da amamentação - e salas de ordenha com refrigeradores
exclusivos para a guarda do leite materno, dificulta o esvaziamento das mamas e a
conservação do alimento de forma adequada.
No caso da mãe fazer um desmame precoce, seja por desinformação ou por
incompatibilidade com o esquema de trabalho, ela pode experimentar sentimentos de
frustração, incapacidade e abandono, ocasionando a depressão.
As mulheres lotadas em cargos públicos são beneficiadas pelo amparo da estabilidade,
pela previsão de licença aleitamento – ampliando o prazo da licença maternidade para mais
dois meses – e pela possibilidade de flexibilização de horários, minimizando o impacto
negativo da separação de seu bebê. No entanto, apesar dos benefícios, as mães relataram não
sentir satisfação com o desempenho de tarefas burocráticas e enfadonhas, o que caracteriza a
sensibilidade aflorada pelos hormônio puerperais.
As mães autônomas nem sempre são beneficiadas pela licença maternidade,
necessitando retornar às atividades profissionais rapidamente. A dificuldade em conciliar a
rotina do lar, dos cuidados com as crianças e os assuntos de trabalho é um desafio para estas
mães. No entanto, a possibilidade de trabalhar a partir de casa, fazer seu próprio horário e
estar perto dos filhos surge como um ponto positivo, mesmo que muitas vezes dediquem as
madrugadas à realização de atividades laborais.
As mães puérperas que necessitam conciliar maternidade com a formação acadêmica
buscam apoio por meio de novos arranjos familiares, ou pela contratação de cuidadores
externos. Só assim elas podem investir em formação, tanto para seu desenvolvimento
intelectual quanto para complementação curricular, visando uma melhor colocação no
mercado de trabalho.
A escolha de novos cuidadores para a criança, cuja mãe retorna ao trabalho, é diversa e
depende do arranjo familiar, das possibilidades financeiras e do alinhamento ideológico entre
a mãe e quem quer que seja eleito para desempenhar esta função. A criação de vínculo e
desenvolvimento de confiança neste novo cuidador é fundamental para transpor esta fase de
transição. Cada binômio mãe-bebê é único e cada relação tem seu tempo de dependência e
desapego.
Apesar de todos os desafios do período de transição entre a dedicação exclusiva à
criação dos filhos e o retorno ao desempenho das atividades profissionais, ainda existe nas
mulheres o desejo de retornar ao trabalho. Após um longo período imersa no universo infantil,
tendo como principais preocupações o cuidado com o bem-estar das crianças e a organização
doméstica, há um tempo em que surge a necessidade de ter outros assuntos, outras tarefas que
não a de mãe dona de casa. As mulheres demonstram desejar dedicar-se à maternidade e
também ao desenvolvimento de suas carreiras. Sentem-se úteis para a sociedade ao
desempenharem seus papéis de mãe e de profissional, sem ter que necessariamente optar por
esta ou aquela persona.
Atribui-se este desejo à ressignificação do papel da mulher na sociedade. Em
tempos passados, as mulheres eram vistas e tratadas como objetos, propriedade dos maridos.
Elas tiveram uma inserção no mercado de trabalho no período pós-guerra, com a massiva
baixa do contingente masculino, abatido em combate. Findos os conflitos, ao retornarem a
seus lares, encontraram o ambiente modificado. Atividades até então exclusivamente
masculinas passaram a ser desempenhadas pelas esposas, viúvas, mães e filhas dos
combatentes. Para que as mulheres retornassem ao ambiente doméstico e os homens
pudessem retomar seu papel social de provedor, houve a massiva valorização do papel
materno e cuidadora do ambiente do lar.
Por meio das lutas por igualdade de direitos, aos poucos, as mulheres vêm
conquistando seu espaço nos ambientes externos, no mercado de trabalho, nas universidades e
até em expedições fora da órbita terrestre. Embora as diferenças fisiológicas impeçam a
equidade plena, a busca por relações mais equilibradas entre homens e mulheres continua. A
chegada de um novo membro no seio da família amplia a discussão dentro dos lares.
A ausência do homem do ambiente doméstico durante o puerpério é outro fator
crítico, reflexo da desvalorização da tarefa de nutrir, cuidar e manter seguro um bebê - além
de todo o cuidado da casa. No Brasil, a licença paternidade dura apenas cinco dias, com a
finalidade de efetuar o registro civil do filho recém-chegado. A falta de uma legislação que
encare o papel do pai como um dos cuidadores fundamentais do bebê prejudica a criação de
vínculo e sobrecarrega a mulher com as funções maternas e domésticas. É evidente a
necessidade de uma legislação que garanta, além do direito à amamentação exclusiva, a maior
participação dos homens nos cuidados com os filhos, ampliando-se a licença-paternidade e
estudando-se esquemas de licença parental que possa ser compartilhada entre ambos os
genitores.
Outra questão importante é o lado subjetivo materno. A maternidade é um portal de
transformações na vida das mulheres. As mudanças vão além do corpo físico: as emoções
afloram e as percepções se alteram. Muda o foco da vida. Aquele ser que acaba de chegar
demanda atenção em tempo integral e é natural desejar estar por perto para suprir suas
necessidades e participar do seu crescimento. Criar filhos é uma missão tão importante que
todas as outras parecem ficar em segundo plano. Um profundo mergulho na alma leva a uma
jornada de autoconhecimento. Sonhos adormecidos eclodem e a força da criação se faz
presente. O desejo de dedicar-se a uma maternagem ativa é profundo, mas isso não é possível
sem reduzir o período de trabalho.
O papel social na criação dos filhos também é muito importante. Cuidar, brincar,
educar: formar seres humanos é um trabalho de extrema importância para todos. Há muitas
mulheres que preferem cuidar de seus filhos e encontrar maneiras criativas de gerar renda em
vez de terceirizar a criação de seus filhos para vender sua mão de obra a outras pessoas e
empresas.

Considerações finais
O papel desempenhado pela mulher na sociedade evolui com o tempo. Novos anseios,
conquistas e oportunidades surgiram para as mulheres na contemporaneidade, mas alguns
resquícios do passado feminino ainda permanecem enraizados na sociedade. A discriminação
no mercado do trabalho é um deles. E quando a mulher está no período de maternagem, os
problemas se potencializam. Pelo lado materno, há um novo estado hormonal e emocional,
inerentes às mães, que se apresentam em suas vidas. Pelo lado social e das organizações,
pouca compreensão ao fato dessas mulheres estarem vivenciando um momento único em suas
existências.
A incompreensão é traduzida pelas leis inadequadas para a maternidade; ambientes
organizacionais inapropriados para receberem mães puérperas e muitas vezes hostis; conflitos
surgidos no trabalho e na família. Já as mães apresentam um estado emocional fragilizado
pela vulnerabilidade do momento em que todas atenções são devotas ao novo ser que vem ao
mundo, obrigando-as a sacrifícios para se manterem no mercado de trabalho, ou
alternativamente, abandonarem a profissão, mesmo que temporariamente.
Toda mudança de paradigma é necessária para que as mulheres possam alcançar a tão
sonhada equidade dentro da sociedade. Precisa-se da construção social de uma cultura que
valorize esse estágio da mulher, o puerpério, assim como o estabelecimento de vínculos mais
fortes entre os membros dos núcleos familiares neste período tão fundamental para a
formação do ser humano, que são os primeiros meses de vida de um ser.
Os espaços de trabalho são apenas parte do problema. As profundas mudanças
precisam ocorrer também dentro de casa, nas relações conjugais, nas divisões de tarefas
domésticas e cuidados com as crianças, para que mulheres e homens possam desfrutar de um
mundo mais justo e igualitário.
Desse modo, a pesquisa realizada aponta para alguns temas que devem ser
aprofundados nas discussões acadêmicas e sociais para que este segmento, o de mães
puérperas, possa ser melhor compreendido e aceito no âmbito social e organizacional.
Assim, uma agenda para debates práticos e acadêmicos sobre mães puérperas e o
mercado de trabalho deveria conter:

• o aumento da licença maternidade de quatro meses para seis meses, conforme


preconiza a Organização Mundial da Saúde;
• uma licença paternidade condizente ao período de amamentação para que o pai
possa se engajar melhor nos cuidados dos filhos e apoio às mães;
• uma legislação trabalhista para que as organizações provenham espaços físicos
e equipamentos adequados para aleitamento e ordenhamento.
• campanhas de conscientização para gestores de recursos humanos e familiares
sobre o período puerperal e suas implicações;
• suporte psicológico às puérperas no local de trabalho (fornecido pela
organização) e no Sistema Único de Saúde – SUS;
• inclusão do tema de forma transversal nas disciplinas dos cursos de
Administração e outros cursos que estejam diretamente ou indiretamente
ligados à gestão de recursos humanos;
• divulgação e fomento de atividades empreendedoras, que proporcionem
realização pessoal e geração de renda às puérperas.
Este trabalho não se esgota nesta proposição temática para debates. As pesquisas
precisam ser ampliadas e aprofundadas, mas pretende-se oferecer uma pauta inicial para
discussão, no âmbito da administração política, dos conflitos entre mães puérperas e a carreira
profissional.

Referências:
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contemporaneidade. Terezinha Féres-Carneiro (Org.). Rio de Janeiro. Editora PUC, 2009.
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Investigando o interesse público subjacente à terceirização no âmbito


da Administração Pública

Vania Mendes Ramos da Silva1

RESUMO

Atender ao interesse público é o princípio que deve nortear a implementação de


qualquer política pública. O presente estudo tem por fim investigar a tensão entre os
interesses público e o privado presente na implementação da terceirização no âmbito da
Administração Pública Federal, levada a efeito na década de 1990. Foram utilizadas a
revisão bibliográfica e a análise documental. O falacioso argumento de modernização da
máquina administrativa, por meio de um discurso que dizia priorizar a eficiência e a
economicidade, é desmitificado pela demonstração de ampliação dos custos
operacionais e financeiros, embora não computados na conta da terceirização. Além
disso, o interesse público não se limita à propalada e não cumprida redução de gastos e
nem ao alcance da eficiência. Nesse processo os trabalhadores não foram apenas
desconsiderados, mas reduzidos a insumos de uma relação moldada apenas entre o
capital e Estado. A pesquisa permitiu concluir que o interesse público foi suplantado
pelo interesse de um único grupo e que a terceirização tem se mantido às custas da
violação dos direitos sociais constitucionalmente assegurados aos trabalhadores.

Palavras-chave: Terceirização; Tensão; Interesse Público x Interesse Privado.

I - Introdução

Todas as políticas públicas devem visar ao atendimento do interesse público


produzindo resultados que interessam a toda a sociedade.
A política de terceirização de determinadas atividades realizadas dentro do
aparelho do Estado teve como finalidade, ao menos no âmbito do discurso, a
modernização da máquina administrativa, com o fim produzir um serviço público mais
eficiente, célere e econômico para os cidadãos e para o Estado.
Nada obstante, o passar dos anos tem evidenciado os efeitos nefastos da
terceirização sobre os trabalhadores, provocando graves violações aos direitos sociais,
constitucionalmente garantidos.
Emerge, destarte, a indagação sobre a real presença do interesse público em
relação à política pública de terceirização ou se subjaz a essa prática a preponderância
do interesse privado de um grupo que controla o Estado, pairando também dúvidas em
relação aos propalados discursos de economicidade e eficiência.
Para responder a essas perguntas, o presente estudo se fundamenta na pesquisa
bibliográfica e na análise documental.

                                                                                                                       
1
  Procuradora Federal da Advocacia-Geral da União. Mestranda em Gestão Pública e Sociedade pela
Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG. Especialista em Direito Público com ênfase em Direito
Administrativo pela Universidade de Brasília - UNB. Especialista em Direito Constitucional pela
Faculdade Anhanguera-Uniderp. Especialista em Direito Público pela Faculdade Newton Paiva.
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail:
vania.mrs@hotmail.com  
1  
 
 

O contexto de implementação da terceirização no âmbito da Administração


Pública Federal é informado pelo então Ministro de Administração e Reforma do
Aparelho do Estado, Bresser-Pereira.
As categorias de análises serão extraídas dos modelos criados por Thomas Dye,
mais especificamente da teoria dos grupos de interesses, que visualiza a política como o
equilíbrio entre os grupos formados por indivíduos que, com interesses comuns, unem-
se para apresentar suas demandas ao governo.
“A grande transformação” de Polany complementará a compreensão das
escolhas das políticas públicas como resultado do movimento pendular histórico entre o
“movimento liberal” e o “contramovimento social”.
Na medida em que sociedade e Estado não representam uma dualidade, mas
duas faces de uma mesma moeda, Santos e Habermas permitirão estabelecer a
metodologia para a compreensão dessa dicotomia entre o interesse público e o interesse
privado.
Das teorias Dworkin e Tenório será derivado o que, no plano ideal, poderia
representar o tão almejado interesse público coletivo, informando se a terceirização está
ou não inserida no espectro desse conceito.

II – Investigando o interesse público subjacente à terceirização no âmbito da


Administração Pública

Passando do Taylorismo ao Fordismo e deste ao Toyotismo, a organização do


trabalho sofre profundas mudanças para se adaptar ao grande rearranjo estrutural
provocado pelas alterações na economia mundial decorrentes das crises capitalistas,
especialmente após a crise do petróleo de 1973.
Após o fim da guerra fria e a derrocada do socialismo, o capitalismo decide
livrar-se dos óbices criados pelo “Estado do Bem-Estar Social”, voltando sua atenção
somente para o mercado (CARELLI, 2014, P. 20).
POLANY (1983) em “A Grande Transformação” permite a compreensão desse
fenômeno, na medida em que, para ele, as escolhas das políticas públicas são o
resultado do movimento pendular histórico entre o “movimento liberal” e o
“contramovimento social”.
O movimento liberal transformou em mercadoria o trabalho, a terra e o dinheiro.
O mercado de trabalho competitivo atingiu o homem, o comércio livre internacional
ameaçava a maior indústria dependente da natureza, a agricultura, e o padrão ouro
ameaçou as organizações produtivas que dependiam do movimento dos preços para o
seu funcionamento. Os três pilares do mercado foram atingidos por ele mesmo,
tornando-se uma ameaça latente para a sociedade, fazendo com que grupos ou classes
pressionassem por proteção (POLANY, 1983).
As reações do homem, da natureza e da organização produtiva foram, assim, um
movimento de autopreservação do qual emergiu um tipo de sociedade mais intimamente
entrelaçada e que, no entanto, estava ameaçada de total rompimento (POLANY, 1983).
O contramovimento social visava a defender e resgatar algum interesse público contra
os perigos originados das modernas e terríveis condições industriais (POLANY, 1983).
O Estado do bem-estar social consistiu nessa defesa, sendo este o momento em que em
trabalhadores nos vários países do mundo, inclusive no Brasil, conquistaram o
reconhecimento dos direitos sociais.

2  
 
 

Uma vez inexistente a ameaça socialista, o capitalismo liberal reage fortemente


por meio do neoliberalismo, forçando um novo movimento no sentido de aniquilar as
amarras que o impedem de expandir-se ferozmente, direcionando-se agora contra os
direitos trabalhistas, sendo a terceirização um dos mecanismos utilizados.
A terceirização surge, portanto, como resultado do movimento neoliberal, uma
das ditas novas formas de organização do trabalho decorrentes do processo de
globalização, bem como das práticas impostas pelo “Consenso de Washington” aos
países periféricos visando à entrada do Estado na globalização econômica. Impõe-se aos
países subdesenvolvidos um rearranjo estrutural que abrange medidas como a
desregulamentação estatal, privatizações, controle da inflação, primazia das
exportações, cortes nas despesas sociais e redução do déficit público (CARELLI apud
SANTOS, 2014, p. 21).
Na máquina estatal brasileira o neoliberalismo se inseriu por meio do modelo
gerencial do Estado, que veio juntamente com a redemocratização do país. Bresser-
Pereira, no comando do Ministério da Reforma do Aparelho do Estado, cuida dessa
passagem da administração pública burocrática à gerencial, por meio da reforma
promovida na década de 1990 (BRESSER PEREIRA, 2005).
Os agentes da reforma negam, no entanto, a premissa neoliberal em que se
fundamenta, creditando a necessidade de mudanças à crise do Estado na década dos
anos 80 e a esse processo de globalização da economia, que estariam a demandar
também alterações no próprio Estado (BRESSER PEREIRA, 2005). A reforma é
apresentada como uma proposta social democrática, porquanto não visaria à retirada do
Estado da economia, mas sim aumentar a governança do Estado, sob o argumento de
que, após a globalização, o Estado precisa passar de protetor da economia ao papel de
facilitador, para que a economia nacional se tornasse internacionalmente competitiva
(BRESSER PEREIRA, 2005).
Como se vê, o discurso pretende afastar, de antemão, uma possível acusação da
predominância de uma visão unilateral e particular, do grande capital, em detrimento de
um interesse coletivo, pretendendo ocultar, pelo menos dos mais desavisados, a
existência de um conflito de interesses travado entre os interesses público e privado.
Com esse objetivo, a reforma se apresenta como sendo decorrência de um movimento
social legítimo, em prol do interesse de todos, fazendo com que os mais incautos
negligenciassem a tensão subjacente entre os interesses do capital e dos trabalhadores.
Quanto à existência dessa tensão, cabe trazer à tona os ensinamentos de
SANTOS (2011, p. 118), os quais ressaltam que a distinção entre Estado e sociedade,
aquele enquanto espaço político e esta enquanto espaço econômico, não deve ser
realizada para a compreensão das sociedades periféricas, justificando que essa distinção
serviu como suporte ideológico para permitir “a naturalização da exploração econômica
capitalista, e, por outro, a neutralização do potencial revolucionário da política liberal,
dois processos que convergiram para a consolidação do modelo capitalista das relações
sociais.”
Necessário esclarecer, diante da eminência de quem parte o importante alerta,
que a dualidade que aqui se vislumbra não contempla propriamente Estado e sociedade,
ou o político e o econômico, mas sim uma tensão entre o interesse social coletivo e os
interesses de um grupo que se apropria do Estado para fazer prevalecer seus interesses
particulares. E essa apropriação ocorre na exata medida em que o capitalismo liberal,
contraditoriamente, necessita do Estado para manter sua hegemonia, apesar de sempre
contradizer essa premissa, quando diz defender irrestritamente a aplicação do princípio
do Laissez Faire e a autoregulação dos mercados (SANTOS, 2011). Os escritos dos
3  
 
 

próprios defensores do Laissez Faire permitem concluir, no entanto, que a


autoregulação comporta exceções no exato momento em serve aos interesses do capital:
“Qualquer desvio do laissez faire, a menos que ditado por um grande bem é um mal
indubitável”. (SANTOS apud MILL, 2011)
Assim, a esfera pública torna-se parte do setor privado a partir do
intervencionismo estatal, que tende a atender aos interesses ligados à sociedade
burguesa, provocando um movimento de socialização do Estado e de estatização da
sociedade, limitada esta, no entanto, à sociedade burguesa (HABERMAS, 1994, p 169).
É cíclica a utilização do Estado para a superação das crises capitalistas. Já no
crepúsculo do Século XIX o Estado promove intervenções para superar a grande
depressão que começa em 1873, sacrificando em favor de um novo protecionismo os
princípios do livre comércio, tão apregoados pelo liberalismo econômico
(HABERMAS, 1994, p. 171). A superação da Grande Depressão de 1929 também
dependeu de aportes e rearranjo dos governos. Não foi diferente em 1973 com a crise
mundial do Petróleo, cujos reflexos no Brasil foram propositalmente confundidos com
uma crise do próprio Estado.
Segundo apregoado pelo então Ministério de Administração e Reforma do
Aparelho do Estado - MARE, a Constituição de 1988 foi incapaz de enfrentar a crise,
que se acirrou cada vez mais até chegar na insustentável situação vivenciada na década
de 1990, com hiperinflação, desemprego e uma imensa descrença popular no governo
para fazer face aos problemas que assolavam o país. A partir dessa afirmação, de que a
crise capitalista foi provocada pelo Estado do Bem-Estar Social, o então governo
justifica a necessidade de uma reforma da máquina administrativa e da implementação
de um modelo gerencial de administrar, postos como condição de sua superação
(BRESSER PEREIRA, 2008). A reforma é apresentada assim como a precursora da
eficiência e da economicidade da máquina administrativa. Uma maneira de resgatar a
legitimidade da burocracia, tão desgastada, perante as demandas da cidadania.
De fato, a administração burocrática se mostrava lenta, cara e auto-referida,
pouco ou nada orientada para o atendimento das demandas dos cidadãos, que estavam
imensamente insatisfeitos (BRESSER PEREIRA, 2008). Não há como discordar dessa
visão. Porém, esses argumentos sedutores ocultam uma realidade em que o interesse
público, que deve nortear as políticas públicas, está sendo substituído pelo interesse de
um único grupo, em detrimento dos direitos sociais constitucionalmente assegurados
aos trabalhadores, o que se confirmará nos anos posteriores.
Os cidadãos estavam mesmo suscetíveis a concordar com as reformas que
pretendiam salvar o Estado, transformando-o em uma máquina eficiente e voltada aos
interesses da sociedade como um todo. Assim, vencidas as resistências iniciais, o
modelo gerencial ganha a simpatia dos administrados, porquanto inspirado nos avanços
realizados pela administração de empresas e nas eficientes práticas de gerência da
iniciativa privada, abrindo caminho para uma nova e moderna burocracia de Estado.
A proposta gerencial incluía o fortalecimento das carreiras que compõem o
“núcleo estratégico do Estado”, bem como a descentralização da administração dos
serviços não exclusivos do Estado através da implantação das agências autônomas e de
organizações sociais, controladas por contratos de gestão. A privatização é a proposta
para as empresas estatais que produzem bens e serviços para o mercado e a terceirização
vem como forma de reduzir a máquina estatal, entregando à iniciativa privada as
atividades secundárias, complementares e acessórias às atividades definidas como sendo
fins ao Estado (BRESSER PEREIRA, 2008).

4  
 
 

Mister ressaltar, no entanto, que o discurso da reforma não escapa de denunciar


seus propósitos implícitos, na medida em que - para justificar as alterações que se
realizariam por meio das Emendas Constitucionais n.º 19 e 20/1998 - desmoraliza o
texto original da Constituição de 1988, acusada de recrudescer o Estado, engessando-o
ainda mais BRESSER PEREIRA (2008):

(...) Por isso a Constituição sacramentaria os princípios de uma administração pública


arcaica, burocrática ao extremo. Uma administração pública altamente centralizada,
hierárquica e rígida, em que toda prioridade seria dada à administração direta, e não à
indireta. A Constituição de 1988 ignorou completamente as novas orientações da
administração pública. Os constituintes e, mais amplamente, a sociedade brasileira
revelaram nesse momento uma incrível falta de capacidade de ver o novo. (...)
A partir dessa perspectiva, decidiram, através da instauração de um “regime jurídico único”
para todos os servidores públicos civis da administração pública direta e das autarquias e
fundações, tratar de igual forma faxineiros e professores, agentes de limpeza e médicos,
agentes de portaria e administradores da cultura, policiais e assistentes sociais; através de
uma estabilidade rígida, ignorar que esse instituto fora criado para defender o Estado, não
seus funcionários; através de um sistema de concursos públicos ainda mais rígido,
inviabilizar que uma parte das novas vagas fossem abertas a funcionários já existentes;
através da extensão a toda a administração pública das novas regras, eliminar toda
autonomia das autarquias e fundações públicas.

A Constituição de 1988 é ainda criticada de ter sido usada como veículo de


privilégios, verdadeiro instrumento que visava assegurar interesses particulares, a partir
da garantia de aposentadorias integrais e sem contribuição dos funcionários públicos,
assim como da transformação de 400 mil funcionários celetistas em estatutários
detentores de estabilidade e aposentadorias integrais, num verdadeiro retrocesso
patrimonialista (BRESSER PEREIRA, 2008).
Não que alguns aspectos não merecessem reforma, porém é muito importante
identificar no trecho acima transcrito a maneira como algumas atividades – faxineiros,
agentes de limpeza, agentes de portaria e, por incrível que pareça, os assistentes sociais,
cuja formação superior é exigida - são desvalorizadas para justificar um futuro
tratamento diferenciado. Um tratamento, porque não dizer, bastante inferior em relação
às carreiras que deveriam receber o reconhecimento de “núcleo estratégico” e, portanto,
dignas de um tratamento mais qualificado.
Assim é que o discurso da reforma gerencial, apesar de se apresentar como
social democrático, desqualifica os trabalhadores cuja atividade requer menor grau de
escolaridade, literalmente rebaixando-os a um patamar inferior, para assim legitimar a
entrega dessas atividades à iniciativa privada, por meio da terceirização. O Estado se
desvencilha de um ônus que alega ser pesado demais, e, ao mesmo tempo, justifica a
desnecessidade de garantir a esses trabalhadores a mesma dignidade concedida aos que
continuaram usufruindo do status de servidores públicos.
Esse o contexto em que foi editada a Lei 8.666/93, que, regulamentando o Art.
37, inciso XXI da CRFB/88, dispõe sobre o procedimento licitatório como condição
para a contratação pelo Poder Público. Em 1997 é editado o Decreto nº 2.271/97 que
dispõe sobre a contratação de serviços pela Administração direta, autárquica e
fundacional, e em 1998 a legislação se completa com a Lei nº 9.632, que propõe a
extinção de 79.000 cargos, sugerindo a contratação desses profissionais junto à
iniciativa privada, por meio da celebração de contratos.
..........

5  
 
 

Bem, a essa altura, cabe retornar ao início desse texto, para contextualizar o
surgimento da terceirização no âmbito da Ciência da Administração e da Ciência
Jurídica, bem como para conceitua-la, com o fim de compreender porque sua
implementação foi tão maléfica aos trabalhadores a ela submetidos.
No âmbito da Ciência da Administração, a terceirização é um processo de
transferência de serviços ou atividades periféricas e acessórias à atividade central de
uma empresa principal (ou tomadora de serviços) para uma empresa com melhores
condições técnicas de realiza-las (empresa terceirizante). Surge idealizada pelo
Toyotismo, sob o argumento de modernização, para atender às exigências da
competição globalizada. A empresa, agora mais enxuta, pode lançar mão de mão de
obra e serviços nos momentos de aumento da produção, desonerando-se dela em
períodos de crise.
Nada obstante, o discurso precisa ocultar a pecha de mão de obra descartável,
bem como deixar claro que a entrega de atividades para outras empresas não visa burlar
a legislação trabalhista, a duras penas conquistada. Assim, a Ciência da Administração
desenvolve um conceito bem mais palatável, para a qual terceirizar consiste em delegar
a um terceiro uma atividade acessória para que a empresa possa se concentrar e
especializar em sua atividade principal. Diz-se tratar, portanto, de técnica de
administração e não de gestão de pessoas, de modo que essa transferência não significa
repasse de trabalhadores ou de responsabilidade sobre estes (CARELLI, 2014).
Importante ressaltar que se destinando ou não a ocultar o seu real intento, o
conceito técnico de terceirização precisa ser observado à risca, porque não é mesmo
permitido, sob o ponto de vista jurídico, transferir a gestão de trabalhadores para uma
outra empresa. Assim, as consequências jurídicas que ensejam a nova prática
determinam um alerta vermelho para o Direito, para quem a terceirização passa a ser
conceituada como o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da
relação de direito trabalhista correspondente (DELGADO, 2014).
Impõe esclarecer que até o surgimento da terceirização, a clássica relação de
emprego é vivenciada entre trabalhador e empregador, compreendendo, portanto, uma
relação meramente bilateral que engloba os aspectos econômico (de prestação do
trabalho) e de direito trabalhista. A terceirização é um novo modelo que faz inserir um
terceiro nessa relação, a empresa terceirizante. Nesse modelo emergente a relação
econômica de prestação do trabalho se mantém entre o trabalhador e o tomador de
serviços, enquanto a relação de direito trabalhista se desloca para ser firmada entre o
trabalhador e uma empresa terceira à essa relação (DELGADO, 2014).
Cabe resgatar, para reforçar a ideia, que o reconhecimento dos direitos sociais no
Brasil é consequência de uma importante conquista do contramovimento social, na
expressão cunhada por POLANY (1983), decorrente de décadas de lutas, travadas não
apenas em terras tupiniquins, mas no mundo inteiro. O Direito do Trabalho, cujo papel é
garantir a efetivação prática desses direitos sociais, foi edificado sobre o modelo
bilateral clássico de relação de trabalho, estruturando um conjunto de princípios
protetivos, que garantem ao trabalhador um patamar civilizatório mínimo de direitos
visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático
do contrato de trabalho (DELGADO, 2014).
O Direito do Trabalho não garante, porém, uma emancipação do trabalhador
frente à exploração capitalista, mas ameniza e evita a super-exploração, permitindo um
mínimo de dignidade a essas pessoas. HABERMAS (1994, p 183) descreve o papel
público que a empresa passa a ter em relação ao trabalhador, assumindo uma função
social para com este. Essa relação, ao mesmo tempo em que estabelece um tipo
6  
 
 

dominante de organização do trabalho social frente à separação entre a esfera privada e


esfera pública, impõe um vínculo de responsabilidade da empresa para com seus
funcionários:

As empresas industriais constroem moradias ou até ajudam ao empregado para que consiga
uma casa, formam parques públicos, constroem escolas, igrejas e bibliotecas, organizam
concertos e sessões de teatro, mantém cursos de aperfeiçoamento, provêem em prol de
anciãos, viúvas e órfãos. Em outras palavras: uma série de outras funções que,
originalmente, eram preenchidas por instituições públicas não só no sentido jurídico, mas
também no sentido sociológico, passam a ser assumidas por organizações cuja atividade
não é pública...

O Direito do Trabalho se forma a partir do reconhecimento estatal desse


importante vínculo entre o trabalhador e a empresa que o contrata, ampliando algumas
obrigações para todos os empregadores e não apenas àqueles que voluntariamente
passaram a desempenhar esse papel social perante seus funcionários.
A terceirização não implica no afastamento dessa lógica de dominação
organizacional, mas provoca imediatamente a perda da identidade entre a empresa onde
os serviços são prestados (a tomadora de serviços) e os trabalhadores, que estão a lhe
servir com sua força de trabalho.
Além disso, no plano jurídico laboral, a trilaterização da relação de trabalho e o
consequente deslocamento da relação jurídica, para que seja formada entre a empresa
terceirizante e o trabalhador, traz consigo a impossibilidade (ou a atenuação
considerável) de se exigir do tomador de serviços o cumprimento das regras protetivas
estabelecidas pelo Direito do Trabalho. A responsabilidade social da empresa para com
o empregado deixa de existir. O trabalhador passa a ficar menos amparado, porque
agora está vinculado, via de regra, a uma empresa com capacidade econômica muito
menor e que, muito corriqueiramente, é incapaz de cumprir com suas obrigações
trabalhistas, apesar de estar fisicamente inserido no ambiente de uma empresa muito
mais poderosa.
Não bastasse, a terceirização passou a ser descaradamente utilizada para fraudar
direitos trabalhistas, ou seja, não para permitir que a empresa tomadora se concentre e
se especialize em sua atividade, mas exclusivamente para reduzir direitos sociais
conquistados pelas categorias sindicais à que as empresas tomadoras estavam
vinculadas.
Agora os trabalhadores terceirizados não são apenas separados do
enquadramento sindical dos trabalhadores diretamente contratados pela tomadora de
serviços, como também são esfacelados em inúmeros sindicatos menores e mais fracos.
Os terceirizados não mais pertencem aos sindicatos dos bancários, industriais ou
metalúrgicos (apesar de continuarem trabalhando dentro dos bancos, das indústrias e das
siderúrgicas), mas aos fracos e fragmentados sindicatos dos recepcionistas, dos
profissionais de asseio e conservação, dos vigilantes, etc., muito menos capazes de lutar
por condições de trabalho e salários melhores.
Ao mesmo tempo, a terceirização é o meio pelo qual os encargos sociais das
empresas tomadoras são transferidos para as prestadoras de serviços, sendo que estas,
por serem menores, detém maiores privilégios e isenções fiscais concedidos pelo
governo, além de sofrerem um controle muito menos rigoroso no que diz respeito à
observância às normas de saúde do trabalhador e de prevenção aos acidentes do
trabalho.

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O terceirizado deixa de pertencer a um quadro funcional próprio da empresa em


que presta seus serviços, a grande maioria com plano de carreira estruturado, perdendo
possibilidades de ascensão e de melhorias salariais, para tornar-se um trabalhador sem
mais perspectivas dentro do local em que trabalha.
A ausência de normas que pudessem conceder ao trabalhador terceirizado as
mesmas garantias asseguradas ao trabalhador não terceirizado implica em uma realidade
injusta e em grande precarização das condições daquele trabalhador, tanto no âmbito da
iniciativa privada, quanto no âmbito da Administração Pública. No âmbito desta última
essa precarização se torna ainda mais gritante diante da estabilidade conferida ao
servidor público e da instabilidade extrema a que se sujeita o trabalhador terceirizado.
Alie-se a isto a total impossibilidade de efetivação ou de equiparação do terceirizados
com os servidores, ante a barreira intransponível do concurso público como única forma
de ingresso nos quadros funcionais do Estado.
A omissão legislativa e o crescente avanço da terceirização na iniciativa privada
e no setor público, aliados ao considerável incremento no desrespeito aos direitos
sociais por parte das empresas e do próprio Estado, levaram à necessidade de um
controle civilizatório do fenômeno, que acabou sendo realizado pela Justiça do
Trabalho. Primeiro por meio da Súmula TST n.º 256, de 1986, que vedava
expressamente a terceirização e, posteriormente, por meio da Súmula 331 do TST, de
1993, que acabou por se render ao avanço dos fatos sociais e alargou o espectro de
possibilidades de sua utilização. A Súmula 331 do TST tornou-se a verdadeira “lei” que,
até hoje, delimita a terceirização lícita e a ilícita, bem como define as consequências
jurídicas para as empresas envolvidas e para os empregados.
A Justiça do Trabalho se esforçou em harmonizar a terceirização com os fins e
valores essenciais do Direito do Trabalho. Esse processo de adequação tem trilhado
duas linhas principais: a isonomia remuneratória entre os trabalhadores terceirizados e
os empregados vinculados à empresa tomadora e a responsabilização desta pelos
“valores trabalhistas oriundos da prática terceirizante” (GODINHO, 2014, p. 472).
No que diz respeito à Administração Pública, entretanto, os agentes da reforma
administrativa não negligenciaram em blindar o Estado, por meio de uma previsão legal
expressa, no sentido de isenta-lo de quaisquer obrigações trabalhistas não cumpridas
pelas empresas contratadas. O §1º do Artigo 71 da Lei 8.666/93 representa uma
verdadeira rota de fuga aos questionamentos trabalhistas no âmbito judicial, senão
vejamos:

Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e


comerciais resultantes da execução do contrato.
§ 1o A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e
comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento,
nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e
edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de
1995)

A leitura desse dispositivo permite novamente observar o descaso e desrespeito


para com os trabalhadores, que, definitivamente, foram jogados à própria sorte, não
tendo sido considerados enquanto sujeitos no processo de transformação do Estado, mas
enquanto meros insumos de uma relação moldada entre Estado e iniciativa privada.
Para muito além do desrespeito aos direitos sociais é interessante notar como a
terceirização implicou numa considerável redução dos salários e direitos dos
trabalhadores. A tabela abaixo realiza um comparativo entre a remuneração dos
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servidores das Instituições Federais de Ensino com os valores pagos aos trabalhadores
terceirizados:

Tabela 1. Comparativo das Remunerações


Cargo Vencimento do Salário do Perdas
Servidor Efetivo* Terceirizado** Salariais

Auxiliar de Laboratório R$ 2.412,89 R$966,78 59,93%

Auxiliar Administrativo R$2.013,34 R$1.342,88 33,30%

Motorista*** R$2.013,34 R$1.240,36 38,39%

Notas:
*Remuneração dos Servidores Efetivos a partir de março de 2014, de acordo com a Lei nº 11.091 de 2005 no início
de carreira e considerando um adicional de R$ 373,00 referente ao auxílio-alimentação.
** Salários de acordo com as últimas convenções de 2014/2015, mais o auxílio alimentação (Motoristas R$10,00 e
Auxiliar Administrativo R$20,00) e considerando 20% de insalubridade no caso do Auxiliar de Laboratório (Art. 192
da CLT e NR n.º 15 do MTE – Anexo 14)
***Diária de viagem R$32,98 (deve ser excluído o auxílio alimentação)
Diária do servidor público – R$177,00 limitada a 10 diárias/mês
Fonte: Lei nº 11.091, CCT de cada categoria e site do MTE

É necessário reconhecer que não existe milagre que torne mais barata a
contratação de trabalhadores por meio da terceirização, visto que a remuneração paga às
empresas contratadas precisa cobrir, além dos salários, os lucros e os seus custos
operacionais (CARELLI, 2014). A tabela acima demonstra, portanto, que os lucros e
custos das empresas contratadas estão sendo pagos às expensas da redução dos salários
e da perda de toda a evolução salarial decorrente da estruturação do cargo em plano de
carreira, inexistente para o terceirizado, cujos aumentos salariais advém exclusivamente
das negociações coletivas pelos sindicatos, cada vez mais enfraquecidos pela
terceirização.
Mas e quanto à eficiência e economicidade apregoadas pela reforma gerencial?
Será que o sacrifício dos trabalhadores ao menos serviu para que tais objetivos fossem
alcançados?
Por certo que sem receber seus salários e demais verbas trabalhistas e às voltas
com as sucessivas quebras de empresas prestadoras de serviços para o Estado, os
trabalhadores terceirizados recorreram e continuam a se socorrer da Justiça do Trabalho,
na tentativa de ver reparadas as injustiças a que tem sido submetidos.
A Justiça do Trabalho, prosseguindo no controle civilizatório da terceirização,
afastou a aplicação do Art. 71, §1º da Lei 8666/93. No ano 2000 a Súmula 331 do TST
foi alterada para determinar a responsabilidade objetiva da Administração Pública, em
caso de inadimplemento das verbas trabalhistas pelas empresas contratadas (inciso IV).
A Administração, em nome da supremacia do interesse público sobre o interesse
por ela afirmado como particular, defendeu em todas as instâncias do Poder Judiciário, a
constitucionalidade do Art. 71, §1º, da Lei 8.666/93. A total despreocupação da reforma
administrativa em assegurar direitos e garantias sociais é, portanto, reforçada por essa
incondicional defesa da tese da irresponsabilidade, levada a cabo tanto nas defesas em
ações individuais movidas pelos trabalhadores lesados, quanto por meio de ações
constitucionais ajuizadas diretamente no Supremo Tribunal Federal com essa específica
finalidade. Os esforços culminaram com a Ação Direta de Constitucionalidade n.º

9  
 
 

16/2007-DF, na qual a Corte Suprema concluiu pela validade do Art. 71, §1º da Lei
8666/93 e favoravelmente à sua manutenção na ordem jurídica.
O Supremo, nada obstante, atenuou os efeitos de seu posicionamento ao deixar
assentado nos debates do julgamento que o ente público ainda poderá sofrer condenação
subsidiária, desde que comprovada, de forma patente, sua culpa in vigilando ou, em
termos menos jurídicos, sua negligência na fiscalização do contrato administrativo.
O problema é que os atos fiscalizatórios previstos pela Lei n.º 8.666/93, editada
para operacionalizar a reforma administrativa, não se destinavam a verificar o efetivo
pagamento das verbas devidas aos trabalhadores, mas apenas a aferir se o serviço foi ou
não prestado a contento, com consequências como a aplicação de multa administrativa à
empresa e rescisão contratual. Por esse motivo, as condenações pela Justiça do Trabalho
prosseguiram implacáveis, agora ao argumento de fiscalização ineficiente, pois
firmaram entendimento de que a fiscalização deveria voltar-se especificamente à
verificação do pagamento de verbas trabalhistas pela empresa, obrigando o Estado a
adotar providências nesse sentido.
Visando atender às novas exigências impostas pela Justiça do Trabalho, no
âmbito da Administração Pública Federal foi editada a Instrução Normativa nº 02/2008,
da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão – SLTI/MPOG (com diversas alterações posteriores). A IN 02/98
estabelece, dentre outras orientações importantes, uma rotina fiscalizatória em relação
às verbas trabalhistas, tais como a retenção de faturas das empresas e o pagamento
direto dos trabalhadores. Determina, outrossim, a abertura de uma conta bancária
vinculada ao contrato, onde devem ser realizados depósitos de verbas rescisórias dos
trabalhadores, destacados, mês a mês, do pagamento destinado às empresas.
O Acórdão do Tribunal de Contas da União n.º 1.214/2013 - Plenário, cuja
elaboração contou com a participação de representantes de inúmeros órgãos e
instituições jurídicas e de controle interno e externo dos âmbitos federal e estadual,
demonstra o tamanho do esforço que a Administração tem despendido em relação a
esses contratos e as grandes dificuldades enfrentadas na implementação das atividades
ditas fiscalizatórias.
Novas rotinas foram incorporadas às práticas administrativas para propiciar a
fiscalização quanto às obrigações das empresas, ampliando, cada vez mais, os custos
operacionais e financeiros com a gestão dos contratos de terceirização, que visam suprir
a necessidade de mão de obra indispensável à manutenção da estrutura do Estado.
Em que pese esse esforço ainda incipiente pela Administração, deve-se
destacar que objetiva a contornar as condenações judiciais e apenas em segundo plano
minimizam os problemas enfrentados pelos os trabalhadores. O pagamento das verbas
trabalhistas de forma direta pelo Estado, via de regra, é apenas parcial e realizado
sempre com atraso.
Além disso, os salários foram reduzidos a um patamar mínimo e a sucessão
contínua de empresas, decorrente de quebras repentinas, inexplicadas e incontroláveis
por parte do Estado, aliada à recontratação sistemática dos trabalhadores (já treinados
para as tarefas), implica na perda do direito às férias em afronta às normas de saúde do
trabalho. Receber indenização por férias não usufruídas não produz os mesmos efeitos
que o descanso iria ocasionar à saúde do trabalhador, sem mencionar os perdidos
momentos de lazer e convivência familiar.
Não bastassem tamanhas perdas, existe ainda a grande vulnerabilidade dos
terceirizados: a instabilidade no emprego decorrente da limitada duração dos contratos

10  
 
 

administrativos e a rotineira quebra das empresas contratadas. Por força do Art. 57,
inciso II da Lei 8.666/93, o contrato administrativo tem duração a adstrita à vigência
dos respectivos créditos orçamentários. Trata-se de limitação que visa ao controle do
orçamento público, impedindo a assunção irresponsável de compromissos sem a
correspondente autorização do Congresso Nacional, que a cada ano aprova a lei
orçamentária.
O inciso II do Art. 57, no entanto, excepciona os contratos de prestação de
serviços de natureza continuada, que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e
sucessivos períodos com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a
Administração, limitada a 60 meses. Por esse motivo, a vigência dos contratos em regra
se limita a 12 meses, nos termos da Orientação Normativa 38 da Advocacia-Geral da
União, sendo que a contratação por período superior deve ser excepcional e justificada,
não sendo possível que os contratos superem o prazo total de 60 meses, a partir de
quando deve ser realizada uma nova licitação. Trata-se de regra da qual não pode se
afastar o gestor público e que tem como objetivos o controle dos gastos, a busca
periódica pelo contrato mais vantajoso, além de oportunizar a rotatividade entre aqueles
que desejam contratar com o Poder Público.
Se, por um lado, essa limitação temporal tem pretensões de garantir
impessoalidade e economia para os cofres públicos, o que, apesar de todos os esforços,
nem sempre tem sido alcançado pelas mais diversas razões, por outro demonstra como a
norma sequer cogitou sobre os impactos nos direitos dos trabalhadores. Além das
gritantes diferenças entre os regimes celetista dos terceirizados e estatutário dos
servidores, a potencialização da vulnerabilidade no emprego dos terceirizados é outra
agravante capaz de informar quão elevado é o grau de precarização desse trabalho.
O custo social da manutenção desse sistema é elevadíssimo e impagável. O
Instituto de Negócios Públicos (2013) informa que 77% dos pregões levam mais de 30
dias para serem operacionalizados e concluídos, donde se pode concluir que entre o
encerramento súbito do contrato e a realização de uma nova licitação, os trabalhadores
precisam aguardar, sem contrato de emprego válido, o término de uma nova licitação
para serem novamente recontratados pela empresa vencedora. Nesse período, o cidadão
trabalha para o Estado muitas vezes sem receber salário, em outros casos o pagamento
do salário é feito diretamente pela Administração, mas os reflexos em 13º salário, férias,
FGTS, dentre outros, não são pagos ao trabalhador, que suporta os prejuízos como
forma de se manter no posto de trabalho.
Outros aspectos práticos da terceirização igualmente denunciam como esse
instituto tem sido desvirtuado de sua concepção original para que possa continuar sendo
utilizado. A terceirização, tal como delineada pela ciência da Administração, pressupõe
sempre a autonomia da empresa terceirizante na direção de seu negócio, claro que a
partir da demanda e de diretrizes fixadas pelo tomador de serviços em instrumento
contratual, mas com total liberdade da primeira para dar ordens, escolher e gerir os
respectivos empregados. Também pressupõe o prévio desenvolvimento da iniciativa
privada que deve estar suficientemente desenvolvida e capacitada para desempenhar tais
encargos de execução, nos termos do que enuncia o §7º do Art. 10 do Decreto-Lei n.º
200/67.
Em que pese tais orientações, a necessidade cada vez maior de intervenção da
Administração na condução da empresa é uma realidade crescente e obrigatória para a
que a terceirização sobreviva. A retenção dos haveres da empresa e o depósito em conta
bancária vinculada, que não pode ser movimentada pela contratada, demonstra como o
Estado tem despendido tempo, recursos humanos e financeiros para, na prática, assumir,
a gestão dos recursos das empresas prestadoras dos serviços, suprindo deficiências em
11  
 
 

relação à gestão dos trabalhadores, o que afasta os discursos de redução das atividades
estatais, bem como da eficiência e da economicidade propiciadas pela terceirização.
Deve-se reconhecer que a questão da economia ou dos prejuízos gerados com a
terceirização é bastante difícil de ser mensurada, carecendo de agenda própria e estudos
específicos dos orçamentos públicos. No entanto, é de fácil percepção o incremento das
despesas relativamente aos custos operacionais e financeiros com os contratos
administrativos de terceirização. Isso decorre da necessidade de aumento de pessoal e
de despesas relativas a treinamento voltados à fiscalização desses contratos, bem como
do pagamento em duplicidade de despesas, ao remunerar a empresa pelo serviço
prestado e ao responder judicialmente pelas verbas não adimplidas aos trabalhadores.
Sem falar nos enormes custos decorrentes de contratações emergenciais,
imprescindíveis para a não interrupção do serviço público sempre que se antecipa o fim
de um contrato em virtude da quebra repentina de uma empresa, bem como nos
incalculáveis custos despendidos com a movimentação do Poder Judiciário e da
Advocacia Pública nas milhares de reclamatórias trabalhistas contra a União todos os
anos.
Estudo divulgado pelo Instituto de Negócios Públicos (2013) demonstra que, em
2013, uma licitação na modalidade pregão eletrônico, utilizada para a contratações de
serviços comuns, conceito em que se enquadra a grande maioria dos contratos de
terceirização, tinha um custo médio de R$12.849,00. Esse custo é reiterado a cada
contratação e se antecipa sempre que quebra uma empresa, demandando a realização de
uma nova licitação e celebração de novo contrato.
Apenas entre os anos de 2010 e 2015 a União responde a 71.282 processos
versando sobre responsabilidade subsidiária:

Tabela 2. Ações Judiciais contra a União período 2010/2015


ANO NÚMERO DE PROCESSOS
2010 12.705
2011 13.762
2012 13.464
2013 14.940
2014 12.933
2015* 3.478
TOTAL 71.282
* Até Maio/2015
Fonte: Advocacia-Geral da União – Pedido de Acesso à Informação n.º 00700000121201559

PINHO (2008) informa que em 2008 uma ação trabalhista em curso na Justiça
do Trabalho, segundo avaliação da administração federal de custos públicos, custava em
média para o Estado R$ 300,00/mês, isto englobando todos os itens materiais, deixando
de fora o custo de pessoal (servidores e magistrados).
Na primeira instância, a tramitação do processo trabalhista pode ser veloz,
durando de um a três meses, dependendo da Vara do Trabalho e da complexidade da
controvérsia. Em Minas Gerais, os recursos ordinários têm demandado em média de um
a dois meses para publicação do acórdão. Todavia, o Superior Tribunal do Trabalho
divulgou que o recurso de revista tem consumido uma média de 520 dias de tramitação
(SUPERIOR TRIBUNAL DO TRABALHO, 2015). Considerando que a Administração
Pública recorre sempre até as últimas instâncias para fazer prevalecer o Art. 71, §1º da
Lei 8666/93 o trabalhador precisa aguardar cerca de dois anos para receber seu salário,
(isso se houver a condenação do Estado) e o Estado precisa custear cerca R$7.200,00

12  
 
 

por processo judicial (valores de 2008 sem considerar a remuneração dos servidores
envolvidos).
Todos esses custos não são computados pelo Estado e apresentados como sendo
consequências da terceirização. Ainda estão invisíveis a esse processo, mas é necessário
que sejam mencionados, medidos e computados.

.....

Bem, apresentado esse cenário, necessário ir adiante, passando-se à análise do


interesse público subjacente à terceirização, consoante prometido.
Os problemas ligados ao desrespeito dos direitos sociais e ao grau de
precarização a que os trabalhadores seriam submetidos teriam sido simplesmente um
erro de cálculo? Um equívoco de impossível previsão quando da implementação da
reforma? Nem toda a boa vontade possível permitiria uma conclusão nesse sentido, vez
que o discurso da reforma gerencial já desqualificava as tarefas exercidas pelos
trabalhadores que seriam terceirizados, como forma de justificar, ainda que
implicitamente, um futuro tratamento inferior.
Ademais, como visto, a previsão constante do §1º do Art. 71, da Lei 8666/93,
impedindo a transferência de encargos trabalhistas à Administração, demonstra como
tais problemas já haviam sido antevistos, buscando-se, no entanto, uma solução que não
conferiu nenhum respeito e consideração aos trabalhadores, que seriam privados de seu
sustento, na medida em que deveriam suportar sozinhos os eventuais prejuízos
decorrentes do não pagamento pela empresa contratada, mesmo tendo dedicado parte de
sua vida para desempenhar seu trabalho junto ao Estado.
Após mais de vinte anos da reforma administrativa e da constatação inequívoca
de tamanhos problemas, as soluções construídas pelo Estado não visam ao equilíbrio
entre os interesses das empresas e dos trabalhadores, mas caminham para demonstrar,
de forma cada vez mais evidente, que as prestadoras de serviços nada mais são que
intermediadoras de mão de obra para o Estado e cujo papel real tem sido absorver parte
do orçamento público, antes destinado ao melhor pagamento dos então servidores.
Dentre os modelos de análises de políticas públicas, DYE (2009) elenca a teoria
dos grupos, em que a política surgiria como o resultado do equilíbrio entre grupos de
indivíduos, que, com interesses comuns, unem-se para apresentar suas demandas ao
governo. O grupo torna-se ponte essencial entre o indivíduo e o governo.
A política então seria, para esse modelo, o resultado da luta entre os grupos para
influenciar as políticas públicas. Ao sistema político caberia administrar o conflito entre
os grupos mediante: o estabelecimento das regras do jogo para a luta entre os grupos; a
negociação de acordos e o equilíbrio de interesses; a oficialização dos acordos na forma
de políticas públicas; o cumprimento efetivo desses acordos (DYE, 2009).
Conforme se pode observar da terceirização praticada no âmbito da
Administração Pública, longe de equilibrar interesses entre os grupos em tensão,
representados de um lado pelas empresas e de outro pelos trabalhadores (integrantes da
esmagadora maioria da sociedade), sua adoção representou a hegemonia dos interesses
do capital sobre os interesses do trabalho.
Mas será que esse interesse vencedor não poderia representar, de alguma
maneira o interesse público? E afinal de contas o que é o interesse público?

13  
 
 

Deduzindo o interesse público sob a perspectiva colocada por DYE (2009),


pode-se dizer que ele estaria no ponto de equilíbrio entre os interesses dos empresários e
dos trabalhadores. Mas esse ponto de equilíbrio não foi encontrado, na verdade não foi
sequer buscado.
Não é, de fato, crível que a simplesmente ignorar os direitos dos trabalhadores
seja resultado de uma mediação realizada pelo Estado, porque esta certamente não é a
única alternativa possível para a reforma do aparelho do Estado. Muito ao contrário do
que dizem as vozes defensoras da terceirização, não será a redução de direitos sociais ou
a queda do nível dos salários que fará com que o Estado (ou as empresas) contrate mais
pessoas do que o estritamente necessário para a consecução de seus objetivos
(CARELLI apud BEYNON, 2014, p. 47). Logo, o aumento de postos de trabalho não é
um argumento suficiente para justificar um possível interesse público. Cabe lembrar que
esses postos de trabalho não foram criados no âmbito da iniciativa privada, eles foram
apenas transferidos da gestão do Estado para serem geridos pela iniciativa privada, diga-
se, sob a supervisão cada vez mais intervencionista do Estado.
E o cenário tende a piorar com a recente aprovação pela Câmara Federal do
texto base do Projeto de Lei 4330/04, que autoriza a terceirização de forma ampla e
irrestrita, abrangendo até mesmo as atividades-fim dos setores público e privado,
aniquilando as limitações impostas pela Súmula 331 do TST e qualquer chance de se
conferir alguma proteção ao trabalhador.
Ao mesmo tempo, a turbulência e os dispêndios provocados pela terceirização
no Estado desmentem os discursos de economicidade e, especialmente, o da eficiência
tão propalados pela reforma gerencial, o que afasta novamente a possibilidade de algum
interesse público na implementação dessa política.
Para buscar a essência do interesse público é preciso lembrar que as políticas
públicas precisam ser instrumento de redução das desigualdades sociais e de
fortalecimento da democracia. O interesse público certamente caminha nesse sentido,
que nos remete ao conceito de liberdade Dworkiano (2002) consistente na necessidade
do Estado em tratar a todos os cidadãos com “igual respeito e consideração”, o que se
constitui em condição sine qua non para a legitimidade substantiva de um governo
democrático.
Os governantes possuem grande liberdade para formular as leis e as políticas que
acharem melhor para a sociedade, desde que não desrespeitem os princípios formulados
pela moral social, em especial o do igual respeito e consideração por todos os cidadãos
(DWORKIN, 2002). Esse é o cerne do ideal democrático, o cerne do interesse público a
ser constantemente perseguido, por força do que determina a Constituição de 1988, que
define os ideais do Estado e da sociedade brasileira e que precisam ser construídos pelos
governos ocasionalmente no poder.
Nesse sentido, a gestão pública deve ser pautada essencialmente nos princípios
democráticos que defendem a vontade da maioria e ao mesmo tempo deve respeitar os
direitos dos indivíduos, enquanto membros de uma sociedade, condensados em uma
visão maior que gera a ideia do todo (OLIVEIRA e PEREIRA, 2013).
TENÓRIO (1988), a partir do conceito de ação comunicativa de Habermas,
propõe que as soluções para a Administração Pública ocorram sob uma perspectiva mais
participativa e voltada ao entendimento, no qual os processos decisórios incluam os
diferentes sujeitos sociais (TENÓRIO, 1998). Essas ideias nos remetem novamente à
ideia do interesse público como equilíbrio, inequivocamente ausente na implementação
da terceirização pela reforma gerencial.

14  
 
 

Nas sociedades contemporâneas os grupos econômicos são defensores de seus


interesses e utilizam o Estado como instrumento de ação para fazer prevalece-los.
(OLIVEIRA e PEREIRA apud RIBEIRO, 2013). É assim que a implementação dessa
política na década de 90 não visou ao entendimento e muito menos contou com a
participação dos trabalhadores. O objetivo foi a sobrevivência e à expansão feroz do
sistema capitalista às custas do esmagamento dos direitos sociais, mesmo que
formalmente previstos na Lei Maior.
A superação à crise de 2008, com efeitos ainda nos dias atuais, tem sido a
premissa para a aprovação do Projeto de Lei 4330/04, que expande a terceirização. Mais
do mesmo sob roupagem ainda mais perversa, novamente sob a alcunha de “medidas
modernizadoras”. É o pêndulo de POLANY atingindo o ápice do lado neoliberal. A
super-exploração caminha para atingir seu grau máximo, como se estivéssemos
retornando à aurora da revolução industrial.

III - Considerações Finais

Este artigo pretendeu demonstrar que a terceirização surge da tensão existente


entre o público e o privado, que longe de representar uma dualidade entre sociedade
civil e Estado, rechaçada por SANTOS (2011) e HABERMAS (1994), resulta da
manipulação do Estado por um grupo predominante, cujos interesses se vinculam ao
capital.
Esses interesses, portanto, não representam o interesse público, que deveria
resultar de um papel de mediador a ser desempenhado pelo Estado, com vistas à
consecução de um equilíbrio de interesses e do bem comum e mediante a participação
de todos os envolvidos.
A apropriação do Estado por um grupo hegemônico tem impedido que esse
equilíbrio seja alcançado, de modo que a vitória da terceirização informa que o
movimento pendular histórico descrito por POLANY (1983) está pendendo para o lado
neoliberal.
Resta saber se o contramovimento social conseguirá superar as barreiras sócio
culturais existentes no Brasil - especialmente a da ausência de uma boa educação formal
pela grande maioria da população e a da informação distorcida retransmitida pela
grande mídia -, para alcançar as vitórias tão necessárias ao fortalecimento da
democracia e à redução das desigualdades sociais.

IV – Bibliografia

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


<www.planalto.gov.br> Acesso em 22/11/2014.
BRASIL. Lei n.º 8.666 de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da
Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração
Pública e dá outras providências. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em:
01/11/2014

15  
 
 

BRASIL. Lei 10.520, de 17 de julho de 2002. Institui, no âmbito da União, Estados,


Distrito Federal e Municípios, nos termos do art. 37, inciso XXI, da Constituição
Federal, modalidade de licitação denominada pregão, para aquisição de bens e serviços
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17  
 
O IMPACTO DA PRODUÇÃO CÍENTIFICA DAS CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS
NO DESENVOLVIMENTO LOCAL
 
Raphaela Reis Silva (UFSC)
Luis Moretto Neto (UFSC)
Giovanna Fonseca Demonti (UFSC)
Angela Serafim Godinho Espíndula (UFSC)

Resumo

Este artigo pretende investigar o alinhamento entre a produção científica das ciências
administrativas com o desenvolvimento local. Usou-se o método qualitativo pelo meio da
análise das respostas dos questionários enviados, por correio eletrônico, aos líderes de grupos
de pesquisas cadastrados e certificados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPQ). O objetivo deste trabalho é identificar a convergência entre
a pauta de investigações científicas dos professores credenciados no programa de pós-
graduação em Administração (PPGA) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
com o desenvolvimento local. Contudo, seu desfecho traz uma série de questões que
necessitam de reflexões mais profícuas e norteadoras.

Palavras–chave: produção científica, desenvolvimento local, ciências administrativas.

1 Introdução

Quando refletimos sobre o modelo centro-periferia no que se refere à disposição


global, vemos que o Brasil encontra-se na posição de periferia, ou seja, um país dependente
dos países centrais. Assim, questionamos: como mudar essa posição? Adentramos a questão
abandonando essa dicotomia e passamos a nos questionar sobre como nos tornaremos um país
autônomo, que busca atender às necessidades particulares de sua população.
Na nossa concepção, isso é possível por meio da educação, pela aquisição de
conhecimento. Defendemos que o papel da educação vai além de preparar o trabalhador para
suas atividades profissionais, ele visa a emancipação dos indivíduos. Dando a ele condições
de refletir sobre sua existência e sua vida.
A importância das ações que venham a ser feitas em ciência e tecnologia para o
desenvolvimento brasileiro é hoje evidente. Contudo, o conhecimento como posto atualmente
também não é capaz de nos possibilitar tal mudança. O conhecimento é gerador de ciência, e
esta materializa-se através de tecnologias que almejam o desenvolvimento humano. Esse
cenário seria o ideal. Percebemos que na atualidade, as tecnologias privilegiam o
desenvolvimento das forças produtivas que reificam o sistema capitalismo, reproduzindo a
dominação e exploração (GOULART; CARVALHO, 2008). Ademais, nossas pesquisas estão
conectadas com os sistemas científicos da grandes potências, resultando na ausência de
criação de know-how, apenas o importando.
As raízes da disfunção das universidades advém, dentre outras, de nossa condição
periférica; devido à nossa pauta de consumo imitativa e à industrialização via substituição de
importações num contexto onde os países centrais já haviam se industrializado. Dagnino e
Filho (2011) ressaltam que a maioria dos trabalhos que tratam da temática universidade-
sociedade, na realidade se debruçam sobre a relação da universidade com as empresas
privadas intermediada pelo propósito de transferência de conhecimento. Assim,
“naturalizando” a ideia de que o foco das universidades públicas deve estar sob a empresa.
Como se não existissem no cenário econômico-produtivo outros agentes além da empresa
privada. “A imensa maioria dos professores e pesquisadores segue o seu rumo “cientificista”,
enquanto que alguns poucos procuram encarar uma “nova” forma de fazer ciência, ensino e
extensão, cada um dos três se retroalimentando”. (DAGNINO; FILHO, p.39).
Entretanto, no âmbito das universidades e da produção de conhecimento, existem
grupos e pesquisadores, comprometidos com a transformação dos contextos sociais de
referência, que tem procurado avançar no sentido da aproximação às demandas populares.
Isso posto, o nosso foco de análise será as universidades, sendo estas o lócus de produção
científica e tecnológica. Na tentativa de investigar como se apropriar do potencial desse lugar
numa outra direção.
Nesse sentido, o objetivo desse trabalho é identificar a convergência entre a pauta de
investigações científicas dos professores credenciados no programa de pós-graduação em
Administração (PPGA) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com o
desenvolvimento local.
O artigo está, então, organizado em três partes, além da presente introdução: na
próxima seção será apresentado os fundamentos teóricos composto pelas reflexões a cerca do
ensino da Administração, da produção científica e algumas teorias sobre desenvolvimento. E
por fim, este é concluído com algumas questões para futuras pesquisas, que decorreram das
colocações das seções que a precederam.

2 Referencial teórico

2.1 O ensino em Administração no Brasil

O crescimento dos Estados Unidos no século XX, consolidando-se como


superpotência, influenciou fortemente o desenvolvimento da área de administração. De
acordo com Alcadipani e Bertero (2014), é possível elencar três instituições que tiveram um
papel de destaque na exportação desse produto, chamado management, para o Brasil nas
décadas de 50 e 60. A primeira instituição é a missão diplomática dos Estados Unidos no
Brasil, na qual envia ajuda financeira para a Escola de Administração de Empresas de São
Paulo (EASP), para Universidade Federal do Rio do Sul (UFRGS) e para Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
O Institute of Inter-American Affairs e a Michigan State College of Agriculture and
Applied Sciences (MSU) executam também um papel fundamental, com um contrato entre as
duas instituições para que haja um apoio à Fundação Getúlio Vargas na condução de uma
escola de negócios no Brasil. O objetivo do Institute of Inter-American Affairs é melhorar a
imagem dos Estados Unidos na América Latina em um contexto de pré II Guerra Mundial e a
MSU tinha o ideal norte-americano de levar o “progresso” ao mundo, através da implantação
de uma escola de negócios no Brasil que deveria servir de centro difusor no país
(ALCADIPANI; BERTERO, 2014). A imagem do profissional administrador de empresas
estava associada à imagem de modernidade, da mudança e do alinhamento do país com as
nações que se modernizavam (BERTERO, 2006).
E por último a Fundação Ford criada por Henry Ford I, para fugir do pagamento de
taxa sobre sua herança, financiou junto com o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientifico e Tecnológico (CNPQ) atividades relacionadas com a expansão do management no
Brasil.
O ensino de administração apresenta muitas peculiaridades, dado a receptividade
histórica de sua inserção como ciência (SILVA, 2014). E sua evolução no Brasil se deu
marcadamente em termos de história e regulamentação da profissão, segundo Lemos e Bazzo
(2011), por quatro principais momentos. O primeiro, após a década de 1940, marca o
surgimento e reconhecimento da profissão de administrador, assim, o ensino de administração
segue o processo de desenvolvimento do país, expandindo-se a partir das demandas de
profissionalização dos quadros de pessoal das grandes unidades produtivas.
Consequentemente tal expansão favoreceu a regulamentação da profissão. Posteriormente, a
criação da Resolução número 2 de 4 de outubro de 1993 do Conselho Federal de Educação
que fixa os mínimos de conteúdos e duração do curso de graduação em administração, foram
estabelecidas a carga horária e as matérias de formação básica e instrumental, formação
profissional, disciplinas eletivas e complementares e ainda o estágio supervisionado. O
terceiro momento é circunscrito pela criação de um conjunto de ações e experiências em
avaliação do ensino, com o objetivo de melhorar a qualidade da educação, com início a partir
da metade da década de 90. E por fim, a institucionalização das Diretrizes Curriculares
Nacionais do curso de Graduação em Administração em 2004, onde tais diretrizes permitem a
flexibilidade, a contextualização e a interdisciplinaridade dos conteúdos ministrados, ao invés
da aplicação de currículos.
Das transformações que marcaram nosso país durante o século passado, merecem
destaque a urbanização e o crescimento da classe média urbana. Essa mudança no quadro
populacional brasileiro gerou uma demanda pelo serviço de educação, que foi atendido
precariamente, especialmente a de terceiro grau, motivo pelo qual o ensino privado dominou
o país, sendo um privilégio de poucos terem acesso.
Coadunando com as ideias de Bertero (2006), Lemos e Bazzo (2011) afirmam que a
graduação em administração sofreu uma intensa massificação, dados disponibilizados pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), por meio do
Censo da Educação Superior de 2009 dão conta de que o curso de administração é o curso
com maior número de matrículas (1.102.579) no ensino superior no Brasil, considerando as
modalidades: presencial (874.076) e à distância (228.503), o que corresponde a 18,5% do
total de matrículas. De acordo com o Conselho Federal de Administração, os cursos de
administração, pedagogia, direito e engenharia são responsáveis por quase metade das
matrículas do ensino superior do país, mostram os dados do Censo da Educação Superior de
2009, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC).
A atratividade pelo curso se deu maioria pela classe média e média/baixa e, a
graduação deste curso no Brasil é bem diferente daquela observada em outros países e o que
se entende por “carreira de administrador” também, transformando-se num curso de
“graduação geral”. Para Bertero (2006), em geral, as graduações de administração estão
formando executores ao invés de executivos, e maioria dos formados não executarão
atividades de administradores, como decidir estratégias e controlar o processo produtivo.
Lemos e Bazzo (2011) defendem a necessidade de renovação na estrutura curricular
dos conteúdos, de forma a colocar a ciência e a tecnologia em novas concepções vinculadas
ao contexto social. Objetivando, não somente a promoção do progresso técnico, mas
particularmente o desenvolvimento humano, identificando em que medida o ensino da
administração pode estar coerente com tal visão, de maneira a formar profissionais
conscientes de seu papel na sociedade.

2.2 Produção Científica

Essa seção tem por objetivo esclarecer o que entendemos por produção científica e sua
finalidade. Além disso, pretende-se verificar como se caracteriza a produção científica das
ciências administrativas no Brasil.
A ciência, presente entre os gregos desde a Idade Antiga, busca formas racionais de
conhecer a natureza. A universidade foi criada na Idade Média com o objetivo de formar
pensadores e administradores da Igreja. De acordo com Goulart (2005), a conexão entre
ciência e universidade se deu nos últimos dois séculos, sendo um dos frutos do Iluminismo.
Tal aproximação, que se deu gradualmente, levou a consagração da universidade como espaço
por excelência para ciência e, posteriormente, com a tecnologia.
No início, as preocupações científicas estavam centradas na contemplação, sem
preocupação de intervenção, norteada predominantemente pela lógica, como ilustra a Física,
de Aristóteles. A passagem da ciência antiga para a ciência moderna impactaram o modo de
entender o trabalho cientifico, e aí se destacam as argumentações dos filósofos Francis Bacon
(1979) com noções do empirismo, René Descartes (1979) do racionalismo e Immanuel Kant
contribui com o criticismo (KEINERT, 2011). Assim, as bases fornecidas pela ciência
moderna contribuíram no desenvolvimento histórico do método científico.
A Europa, berço da ciência moderna, já contava com universidades desde o século X,
vinculadas a interesses e orientações religiosas. Goulart (2010) cita a Escola de Medicina de
Salerno, na Itália, como o princípio da universidade, seguida da de Bolonha, em 1088,
especializada em Direito, e posteriormente a Universidade de Paris, criada na segunda metade
do século XII .
Goulart (2005) salienta que a pesquisa científica, no século XVII, se encontrava em
segundo plano e era desenvolvida por intermédio do trabalho individual de pesquisadores que
criavam as Sociedades ou Academias de Ciências como ponto de encontro e debates. Até
final do século XVIII, as chamadas universidades tradicionais funcionavam como centros
transmissores de um conhecimento estabelecido. Somente a partir do século XIX, a ciência,
como atividade geradora de conhecimento passa a se desenvolver no âmbito das
universidades europeias. O marco da universidade moderna foi a criação da Universidade de
Berlim em 1810, cujas bases se assentam na busca da verdade, na formação profissional e na
cultura geral, constituindo-se como centro de investigação e pesquisa, e não somente como
centro de reprodução de conhecimento.
Essa incorporação da ciência pelas universidades tradicionais, portadora de princípios
da pesquisa e do trabalho científico desinteressado, consolidou-se com uma instituição
acadêmica. Esse modelo fora adotados por diversos países como Inglaterra, Holanda e
Estados Unidos (GOULART, 2010). Nos demais países do mundo, inclusive no Brasil, o
início da produção científica não se vincula às universidades. A ciência por aqui é inaugurada
como prática de escolas isoladas, como na Escola de Minas de Ouro Preto em 1876; de alguns
pesquisadores e institutos isolados, como Adolfo Lutz, em São Paulo, desde 1883; e o
Instituto Manguinhos, no Rio de Janeiro, em 1901 (GOULART, 2005).
Embora houvessem discussões e propostas de mudanças sobre a ciência e a educação
brasileiras desde 1920, somente em 1931 é formulada a primeira legislação federal delineando
as características específicas de uma organização universitária. Resultado de amplo debate
entre as diversas correntes de pensamento, duas em especial merecem destaque: uma delas é o
grupo identificado como “pioneiros da educação nova”, da qual participavam Anísio Teixeira
e Fernando de Azevedo, entre outros educadores. A segunda corrente, formada por um grupo
de intelectuais católicos, liderados por Alceu Amoroso Lima.
Goulart (2005) salienta que o arcabouço legal criado concedia ao Ministério da
Educação e Saúde Pública e ao Conselho Nacional de Educação prerrogativas de
interferências como a aprovação dos regulamentos internos, taxas acadêmicas, etc. Quanto à
pesquisa, alegava que o povo brasileiro não possuía a maturidade cultural e a necessidade de
resultados imediatos. Assim, o foco estava na formação de professores e para formação
profissional.
Foi somente em 1934, com a criação da Universidade de São Paulo (USP), que o
Brasil possuía uma universidade efetivamente multifuncional. Iniciou-se pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, constituída por professores estrangeiros e equipes dedicadas à
pesquisa. Assim, a criação da USP foi considerada um marco da inserção da pesquisa como
uma das principais atribuições das universidades do Brasil. Esse modelo se disseminou,
gradualmente, para os demais Estados brasileiros e foi impulsionado após a Segunda Guerra
Mundial, com o ideário de construir o desenvolvimento econômico e social, no qual a ciência
é um elemento estratégico (GOULART, 2005).
No Brasil, essa condição se traduz na criação de algumas instituições como Centro
Tecnológico da Aeronáutica (CTA), Instituto Militar de Engenharia (IME) e do Instituto
Tecnológico da Aeronáutica (ITA). Ademais, em 1951 foi criado o Conselho Nacional de
Pesquisas, atual CNPq e da Campanha Nacional de Aperfeiçoamento do Ensino Superior,
hojeCAPES (GOULART, 2005).
Os anos de 1950 revelam-se ricos em possibilidades investigativas, posto que oferece
um repertório considerável de ideias, propostas e instituições que tomaram o tema educação
como crucial ao futuro do país. Os intelectuais da educação - como Anísio Teixeira, Fernando
de Azevedo, Florestan Fernandes, Antonio Candido - naquela época operavam em duas
frentes do saber: na primeira, retomavam estudos que privilegiavam as dimensões singulares
da cultura brasileira e, com isso, delineavam um novo perfil para as ciências sociais; e na
segunda, empenhavam-se na articulação de projetos junto com o Estado (FREITAS, 2002).
Havia ainda outras tradições sociológicas que também reivindicavam novas interpretações
para a ideia de conhecimento local como as ideias advindas de Guerreiro Ramos.
Em decorrência da realidade específica do país, havia uma perspectiva que defendia
que a pesquisa científica poderia colaborar na qualificação do debate sobre o desenvolvimento
do país. Conforme Freitas (2002), esse movimento se iniciou nos anos 20 até o final dos anos
50. Ressalta ainda que a partir dos anos de 1960, o papel da pesquisa tornou-se um objeto de
diferenciação entre os intelectuais que buscavam a edificação de uma ciência social para o
país.
A produção científica busca por soluções de problemas humanos universais, levando-
se em consideração que o conhecimento produzido é fruto de experiências criativas de
pertinência sócio-cultural (GOULART; CARVALHO, 2008). A construção da ciência
decorre de dois fatores essenciais: o contexto histórico de sua elaboração, que incluem
aspectos sociais, econômicos e políticos; e os atores, que constroem, criticam e ainda se
beneficiam do saber (LEMOS e BAZZO, 2011). Nesse sentido, a natureza do conhecimento
se caracteriza como produto sempre inacabado, construído, recriado por atores cujas relações
ocorrem no mundo das ideias.
Ademais, as discussões sobre os problemas locais já vinha de antes, desde o século
XIX e do período que precedeu e acompanhou a Revolução de 1930 (FREITAS, 2002). De
fato, nos anos de 1950, a busca pelo caráter regional ou local de determinados problemas
ganhou novo sentido e amplitude. Isso se deve a força dos intelectuais daquele momento que
além de reabrir alguns debates, inaugurava novas perspectivas.
A discussão acerca da afirmação da brasilidade e se esta dar-se-ia incorporando ou
rejeitando a cultura estrangeira, iniciou-se nos anos 10 e só foi interrompida nos anos 60 com
o golpe de Estado. Freitas (2002) salienta que esse debate, para além desse marco
cronológico, é uma das “questões do século”. Esses debates instigaram além dos sociológicos,
o movimento artístico, a história, a ciência política (FREITAS, 2002). Deve-se acrescentar
ainda o impacto da nova ciência econômica advinda da CEPAL (Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe) a partir de 1948, com as contribuições de Raul Prebisch e Celso
Furtado, entre outros.
No Brasil, a produção científica concentra-se nas universidades públicas, o que as
coloca no centro de políticas nacionais de ciência e tecnologia. Assim, o papel que as
instituições de ensino superior (IES) exercem no campo científico é de suma importância,
pois além de definir sua estrutura de funcionamento, mapear hierarquias, delinear poderes e
influenciar a adoção de estratégias de ação e estas promovem a legitimação e divulgação dos
saberes (LEMOS e BAZZO, 2011). Vinculada primordialmente à pós-graduação, a produção
de conhecimento científico e sua publicização representam quesito determinante na avaliação
de cursos e de pesquisadores. A internacionalização dessa produção é determinada como um
dos itens mais valorizados em várias áreas do conhecimento por meio da publicação de
artigos em periódicos internacionais, celebração de convênios com instituições de ensino
estrangeiras e a publicação de periódicos nacionais em língua inglesa.
Contudo, a ciência está alienada devido a determinação social dos objetivos de sua
própria atividade pois se submete aos ditames materiais e objetivos de produção do órgão
reificado de controle, ou seja, do capital. Os ditames são oriundos daqueles que acumularam
capitais por séculos, esclarecidos no modelo (na relação) centro-periferia do sistema-mundo.
Países desenvolvidos têm-se preocupado em alcançar e deter a liderança e a hegemonia do
conhecimento científico em diferentes áreas. Portanto, há uma dominação dos países centrais
no campo científico e por consequência, a legitimidade ali construída corresponde a seus
interesses, seus valores, sua visão de mundo e do mundos dos outros.
Nesse sentido, Ramos (1996) e Furtado (1980) propuseram a necessidade imperiosa de
apropriarmos criativamente teorias e conceitos universais a partir de uma reflexão serena e
corajosa sobre a cultura brasileira. Segundo Freitas (2002), a redução sociológica de Ramos
trazia para o âmbito das ciências sociais a argumentação cepalina sobre a “substituição de
importações” como etapa necessária ao desenvolvimento do país. Há uma recomendação da
UNESCO de que a solução dos problemas educacionais brasileiros passaria necessariamente
pela análise científica das reais condições sociais e culturais do país (FREITAS, 2002).
Nas ciências administrativas, a expansão global da academia e do conhecimento
intensificou a hegemonia anglo-americana, ao fortalecer uma tendência de integração e
pretensa universalização, inibidora de uma produção local que a desafie. É preciso redefinir o
valor do conhecimento científico como bem comum. De escrever para temáticas que
interessam ao centro e nos distanciamos da nossa realidade e perdemos a pertinência sócio-
cultural. O campo científico dispõe de autonomia, que interfere diretamente no estado da
relação de forças nas lutas entre os detentores de poder (BOURDIEU, 1986).
Portanto, o que pretendemos é identificar a existência de possíveis pesquisas
científicas que não visem ampliar ou fortalecer os conhecimentos inscritos em uma lógica
instrumental de cálculo dos meios com relação aos fins ou que melhorem o desempenho
econômico das organizações. Mas, que almejem tentativas de emancipar as pessoas dos
mecanismos de opressão tendo, de fato, o humano como ponto fundamental.

2.3 Desenvolvimento local

Esse terceiro tópico do referencial teórico se propõe a delimitar o conceito de


desenvolvimento local e sua principais correntes, além de buscar ferramentas de mensurá-lo
tendo em vista as necessidades da realidade brasileira.
Nesse sentido, verifica-se que a partir do ano de 1940, o debate teórico sobre o
conceito de desenvolvimento, toma notoriedade devido aos impactos devastadores do grande
conflito da Segunda Guerra Mundial e a necessidade dos países centrais de garantirem o
próprio crescimento enfrentando o desafio de dirimir as contradições em termos de
concentração de riqueza e paralela exclusão social. De acordo com Sachs (2000) na
Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em Estolcomo, uma das pautas
foi o aproveitamento racional da natureza em favor das populações locais, ou seja, um
ecodesenvolvimento.
O tema “desenvolvimento” dos países atrasados ou distribuição desigual da riqueza
entre as nações volta a ser central nas discussões político-econômica mundial. Fiori (1999)
destaca que o retorno dessas discussões se deve ao reconhecimento da gravidade da crise que
se alastrou a partir do Leste Asiático e da impotência das políticas de lidarem com efeitos de
tal crise em 1999.
A discussão que se põe é a questão da distribuição desigual da riqueza entre as nações
e possíveis caminhos de desenvolvimento das nações. Desde o início do século XIX, a
concentração de poder político e de riqueza capitalista está nas mãos de um reduzido número
de Estado. As nações periféricas enfrentam o poderio das grandes potencias econômicas e se
sujeitam a essa tirania econômica. Para que se atinja o desenvolvimento, a nação precisa ter
objetivo e interesse estratégicos de longo prazo.
Poucos países superaram o atraso em relação a Inglaterra, como a Alemanha, os
Estados Unidos e o Japão e algumas colônias do Canadá e da Austrália. O restante do mundo
permanece dominado sob a especialização e exportações de produtos primários. Chang (2002)
na obra “Chutando a Escada: A Estratégia do Desenvolvimento em Perspectiva Histórica”
defende a tese que as políticas e instituições tão recomendadas aos países em crescimento não
foram adotadas pelos desenvolvidos quando se achavam nesse processo. Se tivessem adotadas
as políticas que agora recomendam as nações em desenvolvimento não seriam o que são hoje.
As recomendações hodiernas são: políticas macroeconômicas restritivas; liberalização do
comércio internacional; livre circulação dos investimentos; processo de privatização e;
desregulamentação econômica.
Ao contrário disso, os países desenvolvidos – Grã-Bretanha, Estados Unidos,
Alemanha, França e Japão - usaram ativamente políticas industrial, comercial e tecnológica
com características intervencionistas para promover a indústria nascente durante o período de
catch-up1. Essas políticas previam, a saber, proteção tarifária por meio dos impostos de
importação; financiamento de investimento para a tecnologia e para a educação; programas de
investimento público voltados para a infra-estrutura; formação de parcerias público-privada e;
impedimento de transferência de tecnologia por meio das patentes.
Por meio de uma análise comparativa dos casos específicos da Dinamarca e países
asiáticos e da América Latina, Carneiro (2006) destaca que as políticas econômicas de
inspiração liberal adotadas por estes não contribuíram no sentido de estabelecer um novo
padrão de desenvolvimento. Ao contrário do que aconteceu com a Dinamarca e países
asiáticos que adotaram políticas intervencionistas, tiveram maior êxito em termos de
desenvolvimento. O desenvolvimento nos países da América Latina necessitam, antes de
tudo, de uma modificação nas relações Estado-mercado, com a ampliação da ação do primeiro
para enfrentar as fragilidades dessas economias tais como inconversibilidade monetária,
atraso tecnológico e heterogeneidade social (CARNEIRO, 2006).
Nessa direção, Furtado (1992) aponta que mesmo que a industrialização tenha
contribuído para o aumento da produtividade nos países subdesenvolvidos, não é condição
suficiente para o desenvolvimento social. Atualmente, economistas discutem sobre as teorias
de desenvolvimento coerentes com mundo atual e com o processo histórico que o capitalismo
já percorreu. As visões mais restritas sobre a temática identificam-no como o crescimento do
Produto Nacional Bruto (PNB), aumento das rendas pessoais, industrialização, avanço
tecnológico ou modernização social. Além disso, pode ser visto também como um processo
de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam.
A concepção do desenvolvimento, típica do século passado, um processo exógeno,
importado de fora para dentro por meio de poderosas injeções de capital, tecnologia, know
                                                                                                               
1Ipiranga et al. (2012) esclarece que a atuação organizacional pode ser determinada por meio

de dois tipos de estratégias de inovação: liderança na fronteira tecnológica (overtaking) e/ou


seguimento tecnológico (catching-up). Sendo que este se movimenta no sentido de alcançar a
fronteira da produção e/ou de inovação existente; e aquele busca ultrapassar tal fronteira.
 
how e infraestruturas operadas pelo poder central, traz sinais de inadequação. Indicando a
necessidade de abordagens orientadas pela busca da indução de processos endógenos que
valorizem e aproveitem as características do território.
Para Sen (2000), adicionada a essa visão mais restrita, o desenvolvimento depende
também de outros determinantes como as disposições sociais e econômicas e os direitos civis.
O economista indiano destaca o papel dos mercados no processo de desenvolvimento, por sua
vez, importante componente das liberdade básicas relacionadas aos mecanismos de troca e
transação. “A liberdade de participar do intercâmbio econômico tem um papel básico na vida
social” (SEN, 2000, p. 22). O autor justifica-se por fazer tal consideração, no intuito de
examinar as privações que algumas comunidades permanecem excluídas dos benefícios da
sociedade orientada para o mercado, e também de criticar o mecanismo de mercado.
A privação de liberdade econômica, na forma de pobreza extrema, pode tornar a
pessoa uma presa indefesa na violação de outros tipos de liberdade. (...) A privação de
liberdade econômica pode gerar a privação de liberdade social, assim como a
privação de liberdade social ou política pode, da mesma forma, gerar a privação de
liberdade econômica (SEN, 2000, p. 23).
A tese defendida por Sen (2000) é de um processo de desenvolvimento integrando
considerações econômicas, sociais e políticas. Uma abordagem que permite a apreciação
simultânea no processo de desenvolvimento de papéis vitais como de muitas instituições
diferentes incluindo mercados e organizacionais relacionadas ao mercado, governos e
autoridades locais, partidos políticos e outras instituições cívicas, sistema educacional e
oportunidades de diálogo e debate abertos. Essa abordagem permite ainda reconhecer o papel
dos valores sociais e costumes que podem influenciar as liberdades que as pessoas desfrutam.
Portanto, o foco não teve estar somente ao valor dos mercados, mas também apreciar o papel
de outras liberdades para além das econômicas, como as sociais e políticas que melhoram a
vida que as pessoas podem levar.

3 Metodologia

Este trabalho foi desenvolvido sob a forma de uma pesquisa qualitativa, que envolve a
aplicação de questionários semi-estruturados com nove (9) líderes dos grupos de pesquisas
vinculados a Universidade Federal de Santa Catarina e ao coordenador do Programa de Pós-
graduação em Administração. Os questionários foram adaptados do material de coleta de
dados da tese de doutorado de Goulart (2005). Além dos questionários, os pesquisadores
acessaram informações sobre os grupos de pesquisas disponíveis.
Inicialmente, acessou-se o sitio eletrônico do Programa de Pós-graduação em
Administração da Universidade Federal de Santa Catarina e no link “Núcleos de Pesquisas”,
coletamos os grupos de pesquisas e seus respectivos endereços eletrônico – totalizando 14
grupos, a saber:
- Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (CEPED);
- Centro de Estudos em Microfinanças (GVcemf);
- Instituto de Pesquisas e Estudos em Administração Universitária (INPEAU);
- Laboratório de Estudos da Multifuncionalidade Agrícola e do Território (LEMATE);
- Núcleo de Estudos de Economia Catarinense (NECAT);
- Núcleo de Estudos em Estratégia, Gestão e Sustentabilidade (NEEGES);
- Núcleo de Estudos Organizacionais Críticos e Transdisciplinares (NEOCT);
- Núcleo de Inteligência Competitiva Organizacional em Marketing e Logística (NICO);
- Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Planejamento e Gestão Estratégicos (NIEPGE);
- Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Gestão de Produção e Custos (NIEPC);
- Núcleo de Estudos sobre Organizações e Delimitação (NUSOL);
- Observatório da Realidade Organizacional;
- Observatório da Sustentabilidade e Governança; e
- Organizações, Racionalidade e Desenvolvimento (ORD)
A seguir, acessamos o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil para buscar
informações de cada um dos grupos de pesquisa certificados levantados na etapa anterior.
Assim, dos 14 grupos informados no sítio da Instituição apenas 10 (dez) estão cadastrados e
certificados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ),
agência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Contudo, um deles é
coordenado por professores de uma instituição superior de ensino (IES) fora do Estado de
Santa Catarina, portanto fora excluído dessa pesquisa.
Os questionários foram enviados repetidas vezes por correio eletrônico para os 9 (nove)
líderes de pesquisas da referida Instituição, porém tivemos apenas 2 (dois) questionários
devolvidos: do coordenador do Programa de Pós-graduação em Administração e de um líder
de um dos grupos de pesquisa. Moura-Paula e Ferraz (2015) afirmam que o silêncio
organizacional revela que a ausência do relato está sendo usado como instrumento de luta.
Para analisar os materiais coletados, optou-se pela adoção da abordagem de Análise de
Conteúdo, desenvolvida por Bardin (1986), que prevê três etapas de execução: a) análise
prévia, que consiste na organização do material, operacionalização e sistematização, escolha
dos documentos, formulação de hipóteses, objetivos e elaboração de indicadores e leitura; b)
análise exploratória, que consiste em codificações e classificações, caracterizando-se por ser
uma fase longa e exigindo o trabalho de uma equipe, na qual seus membros atuam como
juízes do trabalho de codificação e classificação temática; c) tratamento de resultados obtidos
e interpretação, que consiste na tabulação e aplicação de técnicas descritivas de análises.

4 Análise de dados

Sistematizamos as informações obtidas no sítio eletrônico e perguntas via correio


eletrônico que fizemos ao coordenador do Programa de Pós-graduação em Administração e
aos líderes dos núcleos de pesquisa. Infelizmente, com apenas dois questionários respondidos
nossa análise não será capaz de mapear a convergência entre a pauta de investigações
científicas dos professores credenciados no programa de pós-graduação em Administração
(PPGA) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com o desenvolvimento local.
Por outro lado, nos instigou ainda mais em compreender esse espaço – as universidades –
responsável pela produção de conhecimentos. No contexto brasileiro, a produção que se
concentra nas universidades públicas, o que as coloca no centro de políticas nacionais de
ciência e tecnologia.
Os respondentes apresentaram que os programas de pós-graduação ou as instituições
de formação e pesquisa que constituem-se em referência de qualidade acadêmico-científica,
na área de Administração, no Brasil, são apontados por terem uma estrutura de apoio
adequada como biblioteca, laboratórios e recursos financeiros. Sendo este, um dos principais
obstáculos enfrentados pelo Programa em estudo: falta de estrutura de apoio da Universidade
Federal de Santa Catarina.
Ademais, indicaram também a Fundação Getúlio Vargas (EAESP e EBAPE) como
referência de tradição em pesquisa. Instituição pioneira nos estudos sobre as ciências
administrativas, que visitaram diversos cursos de Administração Pública localizadas em
universidades norte-americanas, para assim elaborar os programas de ensino de
Administração no Brasil. A ciência da administração que temos na atualidade decorre de dois
fatores essenciais: o contexto histórico de sua elaboração, que incluem aspectos sociais,
econômicos e políticos; e os atores, que constroem, criticam e ainda se beneficiam do saber
(LEMOS e BAZZO, 2011). Nesse sentido, esse processo se deu com o apoio de duas
instituições: o Institute of Inter-American Affairs e a Michigan State College of Agriculture
and Applied Sciences (MSU). Como apontando anteriormente, o objetivo do Institute of Inter-
American Affairs é melhorar a imagem dos Estados Unidos na América Latina em um
contexto de pré II Guerra Mundial e a MSU tinha o ideal norte-americano de levar o
“progresso” ao mundo, através da implantação de uma escola de negócios no Brasil que
deveria servir de centro difusor no país (ALCADIPANI; BERTERO, 2014).
Sobre as finalidades das pesquisas realizadas, a primeira delas é atender as demandas
da sociedade civil e das organizações públicas e em seguida auxiliar a formulação de políticas
públicas no setor. Coadunando, com o objetivo apresentado no sítio do núcleo de pesquisa
“empreender estudos interdisciplinares sobre a relação entre os processos organizacionais e o
desenvolvimento territorial sustentável, na perspectiva da ecossocioeconomia e abrangendo a
ação coletiva empreendida pelas organizações da sociedade civil, organizações públicas e
privadas”.
Contudo, não indicaram quais são as formas de relacionamento que o grupo estabelece
com a sociedade. Mesmo sendo essas as prioridades do grupo, eles alegaram não estabelecer
“estratégias” para identificar parceiros. As pesquisas realizadas são decorrentes da
participação de chamadas de editais ou de convites decorrentes da expertise do grupo em
alguns campos de atividades e de conhecimento. Sobre as principais ações que o grupo de
pesquisa desenvolve para elevar sua qualidade acadêmico-científica, não se considera o
atendimento as necessidades da sociedade civil, mas sim a perpetuação do grupo na
comunidade científica, e os recursos financeiros são fundamentais nesse processo.
O líder do grupo apontou a elaboração de dois projetos voltados para a elaboração de
metodologias de avaliação para um órgão do governo e também para uma entidade não-
governamental. Entretanto, não indicou os mecanismos de avaliação de resultados e os
principais resultados alcançados nessas parceiras e muito menos a criação de conselhos,
comitês ou outras formas organizacionais para implementação das ações em parcerias. Assim,
não foi possível identificar a posição ou papel do grupo nestas composições e seus impactos
na sociedade civil.
O coordenador do Programa apontou expectativas em modificar e melhorar a
sociedade, ao destacar que docentes do Centro Sócio-Econômico assumem cargos no governo
e em organizações sem fins lucrativos em posições estratégicas. Além desse fator, destacou a
existência de projetos de extensão voltados às mais diversas demandas da comunidade. É essa
ação nos chama atenção, pois pode estar ai uma novidade capaz de traçar nossas perspectivas
para as universidades brasileiras. Novaes (2012), na obra Reatando um Fio Interrompido,
investiga a atuação dos professores-extensionistas como uma forma para se pensar a
“universidade necessária”. Ao observar o estabelecimento de laços simbólicos e práticos de
pesquisa e extensão com os trabalhadores precarizados, informais, que veem no
cooperativismo e associativismo uma resposta para seus problemas. Esse movimento, destaca
Novaes (2012) representa uma pequena ruptura na ideia “naturalizada”de que o o foco das
universidades públicas deve estar sob a empresa. Como se não existessem no cenário
econômico-produtivo outros agentes além da empresa privada.

5 Desfecho e indagações

Diante desse cenário, muitas limitações e reflexões surgem. A primeira limitação é a


impossibilidade de identificar a convergência entre a pauta de investigações científicas dos
professores credenciados no programa de pós-graduação em Administração (PPGA) da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com o desenvolvimento local. Assim, o
objetivo desse trabalho, consideramos que não fora alcançado. Por outro lado, gerou questões
que pretendemos aprofundar em novas pesquisas: Por que pesquisadores tem dificuldade em
participar de pesquisas? Por que optaram pelo silêncio? Quais os motivos que os levaram a
permanecerem no silêncio? Autopreservação? Carga de trabalho? Quais são as consequências
desse silêncio para eles e para as pesquisas? A carga de trabalho dos professores-
pesquisadores é excessiva ou alienante?
Outras questões visam ampliar a temática central desse trabalho também surgiram: por
que uma parcela muito seleta da universidade pública brasileira tem se interessado pela
reflexão e realização de pesquisas junto a sociedade? Será que há grupos que estão
conseguindo estabelecer laços mais estreitos com a sociedade? Qual é o sentido desses laços?
O que estão trazendo de novidade para o debate do ensino, da pesquisa e da extensão? O que
estão trazendo para o debate sobre a relação da universidade pública com a sociedade,
especialmente no campo da Administração?
Ademais, e os professores-extensionistas? No âmbito das universidades e da produção
de conhecimento, existem grupos e pesquisadores, comprometidos com a transformação dos
contextos sociais de referência, que tem procurado avançar no sentido da aproximação às
demandas populares por meio de iniciativas de extensão. As atividades de extensão são um
conjunto de ações dirigidas à sociedade, vinculadas aos aprendizados adquiridos ao decorrer
do curso. Em outros termos, atividades que possam ser voltadas à uma modificação da
sociedade, juntamente com uma possibilidade, por parte do aluno, de externalizar de maneira
prática os conhecimentos adquiridos em sala de aula, fora da mesma. Ao mesmo tempo
podem, ou não, acabarem por adquirir conhecimentos novos, através de estudos mais
aprofundados em assuntos pontuais e eventuais conversas com professores mais dotados de
conhecimento nas mesmas. Objetivando, não somente a promoção do progresso técnico, mas
particularmente o desenvolvimento humano.Talvez seja essa a saída para os professores que
querem ir além, que querem se desvencilhar das teias compostas de normas e regras
institucionalizadas, que os impedem de irem além do produtivismo.
Essas respostas demandam a realização de reflexões e de pesquisas que estão além do
que se propõe neste trabalho e que serão perseguidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ensino de Management no Brasil nas décadas de 1950 e 1960. Trabalho apresentado ao IV
Colóquio Internacional de Epistemologia e Sociologia da Ciência da Administração,
Florianópolis.

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graduação em Administração oferecido por um consórcio. Trabalho apresentado no XI
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SEN, A. (2000). Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, Companhia das Letras.
ANEXO I

Tabela 1. Universidades Federais Brasileiras de Ensino Superior


com Cursos de Pós-Graduação Stricto Sensu Recomendados Pela Capes:
Informação sobre o Plano Anual de Capacitação (PAC)
Possui PAC?
Universidade Página E-mail
Ano da última
Federal Eletrônica Institucional
edição
UNB http://www.dgp.unb.br/images/stories/media/cursos_procap/catalogo_2014. secom@unb.br Sim/2014
pdf
UFG https://www.ufg.br/p/7554-relatorio-de-gestao-2014-2017 rodirh@ufg.br Não (Plano de
Gestão/2014-2017)
UFMS http://progep.sites.ufms.br/coordenadorias/desenvolvimento-e- cdr@ufms.br Sim/2015
recrutamento/educacao-continuada/qualificacao-tecnico-administrativo/
UFGD http://200.129.209.183/arquivos/arquivos/78/PROGESP/PROGRAMA%20 progesp.codas@ufgd.edu.br Não
DE%20CAPACITA%C3%87%C3%83O-Aprov.%20COUNI%20- (Programa de
%20res%20083-2013.pdf x Capacitação e
Qualificação dos
Cargos Técnico-
Administrativos)
UFMT http://www.ufmt.br/sgp/arquivos/1ca46e4a1fd2edd0672a23706bd79c60.pdf crh@ufmt.br Sim/ 2014
UFAL http://www.ufal.edu.br/servidor/desenvolvimento/capacitacao/acoes/plano- atendimento@nti.ufal.br Sim/ 2015
anual-de-capacitacao-pac-2015
UFBA http://www.capacitar.ufba.br/sites/capacitar.ufba.br/files/plano_de_capacitac prodep@ufba.br Sim/ 2015
ao_2015.pdf
UFRB http://www.ufrb.edu.br/progep/images/documentos/PACAP_2014.pdf progep@ufrb.edu.br Sim/ 2014
UFC http://www.ufc.br/servidores/cursos-de-capacitacao-e-aperfeicoamento codec.progep@ufc.br Não
UFMA http://portais.ufma.br/PortalProReitoria/prh/paginas/pagina_estatica.jsf?id=7 dicap@ufma.br Não
5
UFPB/J.P. http://www.ufpb.br/sods/consuni/resolu/2014/Runi27_2014.pdf progep@progep.ufpb.br Sim/ 2015
UFCG http://www.srh.ufcg.edu.br/index.php?option=com_content&view=article&i cgdp.srh@ufcg.edu.br Não
d=28&Itemid=23
UFPE https://www.ufpe.br/progepe/index.php?option=com_content&view=article smal@ufpe.br Não
&id=66&Itemid=130 (Programa de
Capacitação e
Qualificação 2006)
Possui PAC?
Universidade Página E-mail
Ano da última
Federal Eletrônica Institucional
edição
UNIVASF http://blogdoservidor.univasf.edu.br/images/artigos/PAC2015.pdf ascom@univasf.edu.br Sim/2015
UFRPE http://www.sugep.ufrpe.br/sites/ww2.sugep.ufrpe.br/files//servicos/documen http://www.sugep.ufrpe.br/conta Sim/2014
tos/programa_qualificar_edital.pdf ct
UFPI http://www.ufpi.br/arquivos/File/2012/Resolucao_%20N015- comunicacao@ufpi.edu.br Sim/ 2013
2012_CD_PACAQ.pdf
UFRN http://www.sistemas.ufrn.br/shared/verArquivo?idArquivo=1019036&key= progesp@reitoria.ufrn.br Sim/ 2012
721e70077df825ddcef0786d817b6ea7
UFERSA http://www2.ufersa.edu.br/portal/view/uploads/setores/132/PLANO%20AN abigail.araújo@ufersa.edu.br Sim/2014
UAL%20DE%20CAPACITA%C3%87%C3%83O%20DOS%20SERVIDO
RES%20T%C3%89CNICO%202014.2_4.pdf
UFS http://www.ucufs.ufs.br/mod/page/view.php?id=11867 grh@ufs.br Sim/ 2015
http://grh.ufs.br/pagina/programa-anual-capacita-1514.html
UFAC http://www.ufac.br/portal/informativos-oficiais/plano-de-capacitacao-do- ddd@ufac.br Sim/2015
quadro-de-pessoal-tecnico-administrativo/PlanoCapacitacao2015.pdf
UFAM http://200.129.163.13/portais/anexos/anexos_procomun/wp- ascom@ufam.edu.br Sim/ 2015
content/uploads/2015/03/PAC-2015.pdf
UNIFAP x
UFOPA x
UFPA x
UFRA https://portal.ufra.edu.br/images/PAC_APROVADO_CONSAD_FINAL.pdf dcad@ufra.edu.br Sim/2015
UNIR x
UFRR x
UFT http://download.uft.edu.br/?d=7f5334a4-ecd7-4193-b860- ddh@uft.edu.br Não
d12ae811c94e;1.0:programa_desenvolvendo_os_talentos_humanos_da_uft_ (Plano de
3705.pdf Desenvolvimento
dos Integrantes do
Plano de Carreira
dos Cargos
Técnico-Adminis-
trativos 2006)
UFES http://progep.ufes.br/sites/default/files/anexo1_02-14.pdf progep@ufes.br Sim/ 2014

UNIFAL http://www.unifal- rh@unifal-mg.edu.br Sim/2014


mg.edu.br/progepe/files/Plano%20Anual%20de%20Capacita%C3%A7%C3
%A3o%202014(1).pdf
Possui PAC?
Universidade Página E-mail
Ano da última
Federal Eletrônica Institucional
edição
UNIFEI http://www.unifei.edu.br/files/arquivos/capacitacao/Plano-de-Capacitacao- brauliobueno@unifei.edu.br Sim/ 2012
2012-Itajuba-e-Itabira.pdf
UFJF http://www.ufjf.br/prorh/files/2011/02/Edital-PROQUALI-02-2015- secretaria.prorh@ufjf.edu.br Sim/2015
Publicado.pdf
UFLA http://www.prgdp.ufla.br/site/wp-content/uploads/2015/03/Plano- prgdp@prgdp.ufla.br Sim/2015
Capacitacao-2015-web.pdf
UFMG https://www.ufmg.br/ead/site/images/editais/2015/Edital016-2015.pdf ead@ufmg.br Sim/2015
UFOP http://www.proad.ufop.br/cgp/adp/capacitacao/apresentacao.html adp@proad.ufop.br Não
UFSJ http://www.ufsj.edu.br/portal2- reitoria@ufsj.edu.br Sim/ 2015
repositorio/File/progp/capacitacao/PAC%202015.pdf
UFU x
UFV x
UFTM http://www.uftm.edu.br/capacitacao/images/Cursos2015/Folder%2023-04- capacitacao@prorh.uftm.edu.br Sim/2015
15.pdf
UFVJM http://www.ufvjm.edu.br/rh/index.php?option=com_docman&Itemid=38 drh@ufvjm.edu.br Sim/ 2015
UNIRIO http://www.unirio.br/progepe/informacoes-gerais-1 progepe@unirio.br Não
UFRJ http://www.sintufrj.org.br/CS/CAR/documentocarreira.pdf sfp@pr4.ufrj.br Sim/2006
UFF http://www.noticias.uff.br/noticias/2015/03/PAC%202015%20- dcqcpta@vm.uff.br Sim/2015
%20vers%C3%A3o%20final%20.pdf
UFRRJ http://www.ufrrj.br/codep/avisos/PAC%202015%20Final.pdf codep@ufrrj.br Sim/ 2015
UFABC x
UFSCAR http://pacc.sead.ufscar.br/ codap@sead.ufscar.br Sim/2015
UNIFESP https://www.unifesp.br/reitoria/propessoas/images/Capacitacao/Regulament capacita.ddgp@unifesp.br Sim/2015
o_Progr_Capacita%C3%A7%C3%A3o_2015_aprovado_CONPESSOAS_-
_Procuradoria.pdf
UNILA http://www.unila.edu.br/sites/default/files/files/23422_006262_2015-15- Sim/ 2015
Proposta%20de%20resolu%C3%A7%C3%A3o%20rerente%20ao%20plano unila@unila.edu.br
%20anual%20de%20capacita%C3%A7%C3%A3o%202015-PAC2015.pdf
UFPR http://www.progepe.ufpr.br/progepe/documentos/cdp/Edital%20piq%20201 progepe@ufpr.br Sim/ 2015
5.pdf
UFCSPA x
UNIPAMPA x
UFPEL x
UFSM x
Possui PAC?
Universidade Página E-mail
Ano da última
Federal Eletrônica Institucional
edição
FURG http://www.progep.furg.br/arquivos/capacitacao_qualificacao/capacitacao_2 progesp.secretaria@furg.br Sim/2015
015.pdf
http://www.progep.furg.br/bin/capacitacao_qualificacao/index.php
UFRGS x
UFFS x
UFSC http://capacitacao.ufsc.br/Pac2015.html ccp.ddp@contato.ufsc.br Sim/2015
Fonte: A autora
Avaliação da Política de Gestão de Pessoal da Administração Pública: O
Plano Anual de Capacitação das Instituições Federais de Ensino Superior
(IFES)

Resumo:
Este trabalho pretende investigar se a política de Desenvolvimento de Pessoal da
Administração Pública Federal sofre algum tipo de avaliação, especificamente em relação ao
Plano Anual de Capacitação (PAC) dos servidores das Instituições Federais de Ensino
Superior (IFES), passados oito anos da promulgação do Decreto que o instituiu (5.707/2006).
O problema é o indício da pouca ou praticamente nenhuma reflexão sobre os planos anuais de
capacitação. Utilizar-se-á de pesquisa documental e bibliográfica. Após verificar o PAC de 43
IFES, conclui-se que o mesmo está voltado especificamente para os técnicos-administrativos
e visando a progressão na Carreira.

Palavras-chaves: Avaliação; Capacitação; Gestão de Pessoas; Gestão Pública; Política.

Introdução
O Decreto 5.707, de 23 de fevereiro de 2006, instituiu “a política e as diretrizes para o
desenvolvimento de pessoal da administração pública federal direta, autárquica e
fundacional”, tendo como finalidades (Art. 1o):
I- melhoria da eficiência, eficácia e qualidade dos serviços públicos prestados ao
cidadão;
II- desenvolvimento permanente do servidor público;
III- adequação das competências requeridas dos servidores aos objetivos das
instituições, tendo como referência o plano plurianual;
IV- divulgação e gerenciamento das ações de capacitação; e
V- racionalização e efetividade dos gastos com capacitação.
O Artigo 3º determina treze diretrizes para a Política Nacional de Desenvolvimento de
Pessoal (PNDP), e dentre elas, o inciso XI que refere-se à elaboração do “plano anual de
capacitação da instituição, compreendendo as definições dos termos e as metodologias de
capacitação a serem implementadas”.
Esse plano anual é de tal importância que a Portaria 208, de 25 de julho de 2006, do
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MP), regulamentadora do citado decreto,
elegeu-o também como instrumento dessa política:
Art. 1º São instrumentos da Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoal:
I- Plano Anual de Capacitação;
II- Relatório de Execução do Plano Anual de Capacitação; e
III- Sistema de Gestão por Competência.
O Artigo 2º define termos, dos quais destaquem-se “plano anual de capacitação” e
“relatório de execução do plano anual de capacitação”:
I- Plano Anual de Capacitação: documento elaborado pelos órgãos e entidades
para orientação interna, que compreenderá as definições dos temas, as
metodologias de capacitação a serem implementadas, bem como as ações de
capacitação voltadas à habilitação de seus servidores;
II- Relatório de Execução do Plano Anual de Capacitação: documento elaborado
pelos órgãos e entidades contendo as informações sobre as ações de capacitação
realizadas no ano anterior e análise dos resultados alcançados.
Ainda o Artigo 6º da referida Portaria MP 208/2006 elenca as competências do Comitê
Gestor da Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoal (PNDP), e então aparece o termo
“avaliar”:
I - Avaliar e apreciar os relatórios anuais dos órgãos e entidades, com vistas a
averiguar o cumprimento das diretrizes da Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoal.
Examinando o relatório de execução do Plano Anual de Capacitação (PAC),
disponibilizado no Portal do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal (SIPEC) do
MP, verifica-se que ele é essencialmente quantitativo e aplicável indistintamente a todos os
órgãos da administração pública direta, autárquica e fundacional.
No caso das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), não há espaço, por
exemplo, para uma avaliação do impacto do PAC nas atividades de ensino (graduação e pós-
graduação), pesquisa ou extensão, que são os pilares desse tipo de instituição (cf. Art. 207 da
Constituição do Brasil de 1988, sobre o princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa
e extensão). Denota-se o que um relatório que não abre espaço para uma avaliação qualitativa
perde em termos de reflexão e aplicabilidade dos dados estatísticos à realidade específica de
cada instituição da administração pública.

O problema
Este trabalho intenta investigar se existe uma avaliação da política de gestão pública
de pessoal, passados oito anos da promulgação do Decreto 5.707/2006, especificamente do
Plano Anual de Capacitação (PAC) das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), que
englobe os servidores das carreiras docente e técnica-administrativa.
Também averigua, caso a resposta seja positiva, que tipo de avaliação é realizada. A
que prioriza os parâmetros numéricos, como o Relatório de Execução do PAC do Portal
SIPEC ou a reflexiva, como a associada à educação brasileira, objeto de discussão de autores
como Marilena Chauí, Gaudêncio Frigotto e Moacir Gadotti.
Segundo Chauí, “quanto aos pesquisadores com carreira universitária, é preciso criar
novos procedimentos de avaliação que não sejam regidos pelas noções de produtividade e de
eficácia e sim pelas de qualidade e de relevância social e cultural” (CHAUÍ, 2003, p. 14).
Gadotti, ao discutir o Sistema Nacional de Educação, amplia o tema da avaliação ao
afirmar que “não se relacionam meios e fins. Inovamos nas metodologias, fazemos ótimos
testes e estamos aperfeiçoando processos de avaliação, sem nos perguntar sobre o sentido do
que estamos avaliando” (GADOTTI, 2014, p. 10).
Frigotto cita textualmente Saviani, trazendo a discussão da avaliação associada à
economia de mercado:
Assim, o governo se equipa com instrumentos de avaliação dos produtos forçando,
com isso, que o processo se ajuste a essa demanda. É, pois, uma lógica do mercado
que se guia, nas atuais circunstâncias, pelos mecanismos das chamadas “pedagogia
das competências e da qualidade total” (SAVIANI, 2007, p.3 apud FRIGOTTO,
2011, p. 243).
Outra questão que naturalmente emerge, é a relacionada ao significado de “política",
neste texto entendida, segundo Chauí: “...como uma atividade que exige formas organizadas
de gestão institucional” (CHAUÍ, 2000, p. 475).
Portanto, ao responder tais questionamentos, objetiva-se contribuir efetivamente para a
construção de um arcabouço científico sobre a avalição da política de desenvolvimento de
pessoal da Administração Pública.

Metodologia
Segundo Fonseca (2002, p. 32), qualquer estudo científico inicia-se com uma
pesquisa bibliográfica. As pesquisas denominadas bibliográficas se baseiam em referenciais
teóricos já publicados com o objetivo de recolher informações ou conhecimentos prévios
sobre o problema a respeito do qual se procura a resposta. A pesquisa bibliográfica deste
trabalho foi realizada a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas e
publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros (Convite à Filosofia), artigos,
páginas de web sites. O pesquisador deverá ainda realizar uma pesquisa documental como
auxílio, selecionando e analisando documentos com o intuito de não comprometer a qualidade
da pesquisa (FONSECA, 2002, p. 31).
Segundo Fonseca (2002, p. 32), a pesquisa documental recorre a determinadas fontes
sem tratamento analítico, e elenca algumas que serão utilizadas neste trabalho, tais como:
tabelas, relatórios e documentos oficiais das IES. Conforme Gerhardt e Silveira (2009, p. 69),
a pesquisa documental tem sido utilizada nas ciências sociais.
A pesquisa documental tem como característica fundamental o fato de suas
informações não terem passado por outras análises nem se tornado públicas, senão as análises
que eventualmente fazem parte do próprio documento, como a publicidade que a lei obriga,
por exemplo, no caso do Plano Anual de Capacitação. As análises podem então ser recorridas
pelo pesquisador, no âmbito da pesquisa documental.

Referencial teórico
Avaliação
O que significa a palavra “avaliação”? Qual sua utilidade?
Souza et.al. (2005, p. 17) respondem nos seguintes termos:
A avaliação objetiva identificar em que medida os resultados alcançados até então
estão próximos ou distantes dos objetivos propostos e, se possível, descobrir as
razões desta proximidade ou distanciamento, para permitir que o novo planejamento
a ser realizado possa resolver os problemas com mais precisão. Isto serve tanto para
a avaliação institucional quanto para a avaliação da aprendizagem.
Também afirmam que essa avaliação, nos moldes apresentados, tanto pode servir para
a administração de uma instituição quanto para o ensino, no que se refere à aprendizagem
(SOUZA ET.AL., 2005, p. 17-22).
Gurgel (2014) afirma que a avaliação é item vital de um planejamento estratégico, pois
é ela que explica as causas dos bons e dos maus resultados do plano de trabalho: “São essas
avaliações que vão permitir dizer que possibilidades existem de recuperar os resultados e
assim continuar a perseguir os alvos definidos. Ou não” (GURGEL, 2014, p. 101).
Ainda nessa mesma linha de pensamento, Pacheco et al. (2009) afirmam que a
avaliação de resultado visa o diagnóstico dos programas, projetos, sistemas e processos
adotados por uma organização: “Tem como premissa o levantamento de informações,
problemas e considerações, com vistas à melhoria da qualidade, à superação das lacunas na
corporação e, principalmente, ao fornecimento de diretrizes para as próximas ações”
(PACHECO ET AL., 2009, p. 67).
Ora, a verificação do cumprimento das diretrizes da política de desenvolvimento de
pessoas da administração pública, consubstanciadas no PAC se dará mediante uma avaliação
que aponte o atingimento ou não das metas propostas, causas do sucesso e também sinalize
possíveis soluções para os eventuais fracassos.
A questão da avaliação das políticas públicas é tomada por Costa e Castanhar (2003, p.
969) como algo necessário e de vital importância. E ao analisarem o processo histórico
brasileiro, assim se expressam:
Historicamente, na administração pública brasileira não há a preocupação de avaliar
programas públicos, em geral [...]. Durante anos, a produção de conhecimento
técnico na busca da melhoria dos padrões de gerenciamento do setor público sempre
esteve muito mais voltada para os processos de formulação de programas do que
para os relacionados a sua implementação e avaliação (COSTA E CASTANHAR,
2003, p. 970-971).
Já Trevisan e Bellen (2008, p. 535-536), ao referirem-se à avaliação de políticas
públicas, constatam não haver consenso em relação a uma única definição sobre a matéria,
porém, fazem coro a Thoenig (2000) quando “declara que o uso da avaliação é orientado para
ação”, pois seu fim primordial é “fornecer informação”. Também afirmam que:
Não obstante a grande utilidade das informações provindas da avaliação, esta é
muito pouco utilizada. No caso das reformas do setor público, Thoenig (2000:55)
observa que nenhuma iniciativa foi lançada para avaliar as reformas; pelo contrário,
“pode-se encontrar um relativo ceticismo para com a avaliação, particularmente,
entre praticantes bem informados e experientes em reforma da gestão pública,
alguns até mesmo expressam uma resistência à avaliação que parece predominar no
seu próprio governo” (TREVISAN e BELLEN, 2008, p. 536).
Portanto, o pensamento dos autores citados, corrobora a presente tese, no sentido da
importância de se discutir o problema da avaliação como elemento chave de política pública.

Gestão de Pessoas na Administração Pública


Ao referirem-se ao processo de desenvolvimento de pessoas, Pacheco et al. (2009) são
categóricos em afirmar que este é intrínseco a cada indivíduo, pois compreende o
autoconhecimento, além de contemplar a pessoa como um todo. Indicam que as organizações:
[...] devem procurar atrelar o desenvolvimento pessoal ao organizacional. Afinal,
não somente as pessoas se desenvolvem, mas também as organizações por meio
delas. Seus valores e conceitos são absorvidos ao longo da existência, pela
renovação e quebra de modelos. (PACHECO ET AL., 2009, p. 33).
Reportando-se ao Decreto 5.707/2006, o seu Art. 2º, define os termos “capacitação”,
“gestão por competência” e “eventos de capacitação” como sendo:
I - capacitação: processo permanente e deliberado de aprendizagem, com o
propósito de contribuir para o desenvolvimento de competências institucionais por
meio do desenvolvimento de competências individuais;
II - gestão por competência: gestão da capacitação orientada para o
desenvolvimento do conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias
ao desempenho das funções dos servidores, visando ao alcance dos objetivos da
instituição; e
III - eventos de capacitação: cursos presenciais e à distância, aprendizagem em
serviço, grupos formais de estudos, intercâmbios, estágios, seminários e congressos,
que contribuam para o desenvolvimento do servidor e que atendam aos interesses
da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Ao analisar a gestão de pessoas no serviço público federal, Schikmann (2010, p. 17)
constata a inexistência de um conjunto de regras que efetivamente possa ser denominado
“política de gestão de pessoas”, apesar de considerar um avanço a promulgação do
supracitado Decreto. Por isso o interesse das autoras em voltar seus olhares para esse tema,
tão pertinente e atual para a área afim. Pois a Gestão de Pessoas na Administração Pública é
responsável pela capacitação dos servidores.

Capacitação
Exige-se das pessoas que sejam trabalhadores qualificados. Segundo Arruda (2000,
p.26), esse posicionamento, reprodução da teoria do capital humano, tem levado alguns países
a investirem na qualificação da sua força de trabalho, e a traçarem planos e políticas
educacionais que visem a capacitar os indivíduos para o mercado de trabalho ou para o
desenvolvimento de qualquer outra atividade que lhes possibilite subsistência.
Qualificações funcionais foram formalizadas relacionando sistema educativo e
produtivo. Há, portanto, uma correspondência entre o nível de formação do sujeito e sua
qualificação no trabalho (VINHAS, 2013, p. 339).
As políticas de capacitação deveriam influenciar tanto na formação profissional dos
docentes quanto tenta interferir na carreira dos técnicos-administrativos.

Plano Anual de Capacitação


Definido no Art. 2º, inc. I do Decreto 5.707/2006, o PAC é um “documento elaborado
pelos órgãos e entidades para orientação interna, que compreenderá as definições dos temas,
as metodologias de capacitação a serem implementadas, bem como as ações de capacitação
voltadas à habilitação de seus servidores”.
Entretanto, no âmbito das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), a realidade
é que a elaboração do PAC restringe-se exclusivamente aos técnicos-administrativos, não
levando em consideração que o professor é igualmente servidor, regido pela mesma Lei
8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos
civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.
A tabela 1 ilustra tal constatação, pois das 43 IFES averiguadas, não foi detectada,
entre aquelas que possuem PAC, alusão aos servidores da carreira docente, mas apenas da dos
técnicos-administrativos.

Políticas Públicas
Segundo Bobbio (1998), o termo “política” é derivado do adjetivo pólis (politikós),
que significa tudo o que se refere à cidade, o que é urbano, civil, público, e até mesmo
sociável e social. As políticas podem atender a interesses particulares e restritos (FREY, 2000,
p. 224).
Rua (2009, p. 20) afirma que “embora uma política pública implique decisão política,
nem toda decisão política chega a constituir uma política pública”. A política pública é um
subcampo significativo dentro da Ciência Política e vem a ser um conjunto de decisões, – e
não uma decisão isolada –, planos, metas e ações governamentais (LIMA, 2012, p.50). Uma
política pública recebe ainda este adjetivo, quando tem a intenção de responder a um
problema de interesse público (IBID., p. 52).
Conforme Frey (2000, p. 217), a política ganha uma dimensão de policy e “refere-se
portanto aos processos de conflito e de consenso dentro das diversas áreas de política” (IBID.,
p. 223). O termo política pode assumir o sentido expresso pelo termo policy tornando-se mais
concreto e passando a ter relação com orientações para a decisão e ação, sendo que o termo
política pública (public policy) está a ela vinculado (LIMA, 2012, p.50).
Segundo Frey (2000, p. 224), a esfera policy pode atingir um nível de política
regulatória, ou seja, uma política que trabalha com ordens, decretos e portarias. Nessa esfera,
tem-se o decreto 5.707, de 23 de fevereiro de 2006, que institui a política pública de
desenvolvimento de pessoal na administração pública federal.

A Pesquisa
Em um primeiro momento, a investigação busca verificar e analisar a produção
acadêmica (dissertações e teses) dos programas de pós-graduação em Educação das
universidades Federal Fluminense (UFF), Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ), entre 2006 – ano de promulgação do Decreto 5.707 – e 2015. Os
dados levantados ainda são parciais, devido a problemas de manutenção da Biblioteca Digital
Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD).
As palavras-chaves utilizadas na pesquisa são: avaliação; política; capacitação; gestão
pública e gestão de pessoas, sendo a avaliação o foco principal.
Os quadros-resumo, a seguir, contemplam os Programas de Pós-Graduação em
Educação da UFF, UFRJ e UERJ:
Q.1 Uff – Programa de Pós-Graduação em Educação – dissertações e teses – 2006-2015
Palavra-Chave / Total Dissertações Teses Total
AVALIAÇÃO 1 - 1
POLÍTICA 3 1 4
CAPACITAÇÃO - - -
GESTÃO PÚBLICA - - -
GESTÃO DE PESSOAS - - -
Total 4 1 5
Fonte: www.ppg-educacao.uff.br/novo

Q.2 Ufrj – Programa de Pós-Graduação em Educação – dissertações e teses – 2006-2015


Palavra-Chave / Total Dissertações Teses Total
AVALIAÇÃO 8 6 14
POLÍTICA 29 9 38
CAPACITAÇÃO - - -
GESTÃO PÚBLICA - - -
GESTÃO DE PESSOAS - - -
Total 37 15 52
Fonte: www.educacao.ufrj.br/ppge

Q.3 Uerj – Programa de Pós-Graduação em Educação – dissertações e teses – 2006-2015


Palavra-Chave / Total Dissertações Teses Total
AVALIAÇÃO 3 1 4
POLÍTICA 5 9 14
CAPACITAÇÃO 1 - 1
GESTÃO PÚBLICA - - -
GESTÃO DE PESSOAS - - -
Total 9 10 19
Fonte: www.bdtd.uerj.br

Denota-se que em nove anos de política de desenvolvimento de pessoal, pouca é a


reflexão sobre o tema da avaliação na esfera da Educação, e inexistindo quando voltada para a
gestão pública. Isto, indubitavelmente, é um enorme problema.
Corrobora com esta averiguação o resultado apresentado na tabela 1, anexo 1, onde, de
maneira mais abrangente, incluindo outras quarenta universidades além das três citadas acima,
pretendeu-se verificar quais dela possuíam PAC. Das 34 universidades que possuem o PAC,
12 estão desatualizados (de 2014 para trás), sendo dois deles do ano de 2006. Não obstante,
verificou-se que o mesmo está voltado especificamente para os técnicos-administrativos,
excluindo os docentes, e visando a progressão na Carreira ao invés da internalização de
conhecimento e ensino.

Conclusão em construção
A tabela 1, anexo 1, nos leva a concluir que das 43 IFES averiguadas, não foi
detectada, entre aquelas que possui PAC, alusão aos servidores da carreira docente, mas
apenas da dos técnicos-administrativos.
A análise qualitativa do relatório de execução do PAC que certamente influenciaria
futuros ajustes no PNDP, aparentemente não é objeto de preocupação ou reflexão por parte
dos elaboradores das políticas de desenvolvimento de pessoal.
No contexto das IFES, a constatação é que os professores não se consideram
servidores públicos federais, sujeitos à Lei 8.112/90 e demais dispositivos legais. Além do
que os próprios gestores de pessoas não levam em conta os docentes ao elaborarem o PAC.
A tarefa acadêmico-científica a que se propôs o presente trabalho é instigante, e tendo
em vista os dados e argumentos apresentados, de relevância para os estudos organizacionais.
Aqui não se esgota, tendo um longo caminho a ser percorrido.
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Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek: análise de dois projetos
desenvolvimentistas e as limitações do Estado brasileiro.

Adriano Neves dos Santos Filho (UFF)

RESUMO

Este trabalho pretende expor os dilemas de dois projetos desenvolvimentistas, seus desafios
particulares e suas heranças de fases anteriores,   oferecendo uma referência do passado para
melhor entender as limitações presentes do Estado brasileiro. Mais precisamente, os projetos
representados por seus grandes idealizadores: Getúlio Vargas e Juscelino Kibitschek. Não se
pretende, no entanto, discorrer sobre os dois chefes de governo no nível pessoal mas,
sobretudo, no que tange suas realizações em função de suas respectivas capacidades político-
administrativas, aliadas aos momentos históricos em que ascenderam estas duas importantes
figuras. Importa, principalmente, o tratamento dado por cada um à questão da infraestrutura
como eixo fundamental do desenvolvimento baseado na industrialização.

Palavras-chave: desenvolvimentismo, limitações do Estado, dilemas, infraestrutura,


nacionalismo, financiamento.

1- O DESENVOLVIMENTISMO NO BRASIL

O desenvolvimentismo brasileiro foi construído sobre bases bem peculiares. Muito se


discute sobre as razões do subdesenvolvimento persistente do país, a despeito de todo o
esforço empenhado em grandes projetos de desenvolvimento, observados principalmente no
século XX.
Assim, Lustosa da Costa se refere ao Brasil no século XX:

Durante o século XX, foi o país que mais cresceu em todo o globo. Passou de uma
economia primário-exportadora a um grande parque industrial; de uma sociedade
rural a um conglomerado de metrópoles densamente povoadas; do particularismo
local à cultura de massas. O país incorporou a suas instituições e práticas sociais,
sobretudo nas esferas do Estado e do mercado, elementos da racionalidade
prevalente nas economias centrais. O Brasil modernizou-se. (LUSTOSA DA
COSTA, 2009, p.162)

A dicotomia existente entre a grandeza econômica do país e a sua realidade social


parece ter raízes nos primórdios do século em questão. O estilo desenvolvimentista brasileiro
teria lançado mão, segundo Fiori (1994), de um pacto sócio-político que teve por objetivo a
manutenção das relações de poder que existiam antes da experiência da industrialização.
Apesar das grandes mudanças políticas e econômicas verificadas no período
desenvolvimentista, Fiori (1994, p.127) chama a atenção para fenômenos recorrentes como a
questão da estrutura fundiária, crises fiscais e cambiais, as dificuldades financeiras,
autoritarismo nas relações sociais de produção, a tensão entre poderes locais e a centralização
autoritária, além da tensão entre o populismo civil e o intervencionismo militar.
A constituição da classe dominante brasileira parece convalidar o grande controle que
esta teve sobre as pretensões desenvolvimentistas, mais precisamente sobre o
desenvolvimento industrial. Celso Furtado lança luz sobre os motivos de o Brasil ingressar no
século XX como um país subdesenvolvido, direção oposta à dos EUA, então uma consolidada
potência industrial comparável aos níveis europeus. A diferenciação entre as classes
dominantes dos dois países à referida época constitui-se em um interessante indício:

(...) enquanto no Brasil a classe dominante era o grupo dos grandes agricultores
escravistas, nos EUA uma classe de pequenos agricultores e um grupo de grandes
comerciantes urbanos dominava o país. Nada é mais ilustrativo dessa diferença do
que a disparidade que existe entre os dois principais intérpretes dos ideais das
classes dominantes nos dois países: Alexander Hamilton e o visconde de Cairu. (...)
enquanto Hamilton se transforma em paladino da industrialização, (...) advoga e
promove uma decidida ação estatal de caráter positivo - estímulo direto às
indústrias, e não apenas medidas de caráter protecionista - Cairu crê
supersticiosamente na mão invisível e repete: "Deixai fazer, deixai passar, deixai
vender". (FURTADO: 2007, p.152)

Darcy Ribeiro também recorreria a esta comparação entre as elites do Brasil e dos
Estados Unidos para tentar explicar os diferentes caminhos e resultados alcançados, em
termos econômico-sociais, dos dois países (RIBEIRO, 1995). Ainda que o conceito de elite
extrapole os limites de classe, na sociedade brasileira classes dominantes, como diz Furtado, e
elites, como diz Ribeiro, têm muito em comum.
O poder concentrado na classe dominante brasileira de então, uma vez que esta se
compunha de um grande e poderoso bloco, gerou um precedente que viria influenciar até
mesmo as posteriores transformações econômicas e sociais que o Brasil experimentaria, nas
quais esta classe viria se acomodar. Pode-se afirmar, portanto, que o liberalismo econômico
no Brasil, representado aqui pelo Visconde de Cairu, serve desde o início aos interesses das
oligarquias rurais, interesses que serão devidamente representados a posteriori. É possível
afirmar também que a ideologia da classe dominante brasileira nos primórdios do século XX
assumia um caráter mais dogmático do liberalismo, baseado nas crenças, atitude esperada de
uma classe que necessita somente manter suas bases.
De forma diversa, a classe dominante dos EUA era composta de mais de um setor, o
que acabava por tornar mais difusos os seus interesses. A ideia é reforçada por Furtado
quando afirma que a industrialização era "mal compreendida pela classe de pequenos
agricultores norte-americanos", o que não impediu que as ações de Hamilton em prol do
desenvolvimento industrial fossem colocadas em prática. Esta dualidade peculiar da classe
dominante norte-americana, portanto, permitiu que ideias de visionários como Hamilton, um
também discípulo de Adam Smith, tivessem êxito no ambiente econômico e abrissem um
precedente positivo para o desenvolvimento dos EUA e seu ingresso no século XX. Pode-se
afirmar, portanto, que nos EUA o liberalismo manteve-se mais no campo das ações,
submetendo-se ao pragmatismo que viria a ser uma marca da sociedade dos EUA.
As ressalvas estão no fato de não se ter apresentado no Brasil uma vertente urbana da
classe dominante, de forma a influenciar no fortalecimento de uma atividade econômica
tipicamente urbana como a indústria. Entretanto, não se invalida a ideia de que a polarização
ocorrida em um único grupo, os grandes agricultores escravistas, foi nociva e colaborou para
o subdesenvolvimento brasileiro.
Não era, portanto, de se esperar iniciativas de investimento em indústrias, dadas as
características da classe que detinha o poder, sendo este um grande obstáculo que se impunha
ao Brasil recém-ingresso no século XX. Caberia ao Estado prover os investimentos
necessários à atividade industrial. Para o Estado, no entanto, as possibilidades eram limitadas:

(...) a fragilidade e dispersão do capital nacional, junto com a proteção dada a um


sistema bancário privado atrofiado, foram os responsáveis pela transferência para o
crédito público da responsabilidade pelo financiamento dos grandes projetos de
investimento indispensáveis à industrialização. Mas ao mesmo tempo, a postura
antiestatal e a heterogeneidade dos interesses empresariais impediram sempre todas
as tentativas de realizar uma centralização financeira mais ativa por parte do setor
público. (...) o congelamento político desse protecionismo (...) foi responsável pela
ausência de uma estratégia empresarial mais agressiva de desenvolvimento
tecnológico, visando a aumentar a produtividade e a competitividade dos capitais
nacionais, o que, evidentemente acabou tendo efeitos nocivos globais sobre a
produtividade e a competitividade da economia brasileira. (FIORI, 1994, p.128-129)

Estes obstáculos não permitiram que o Brasil vivenciasse fases indispensáveis ao


fortalecimento do setor privado, como a centralização do capital, o que normalmente ocorre
em qualquer economia de capitalismo tardio. Dessa forma, segundo Fiori (1994, p.129), "no
Brasil, se o Estado não foi capaz de fazer uso de seu poder para articular de forma orgânica o
processo de industrialização, tampouco ocorreu a articulação privada de qualquer tipo de
‘capital financeiro’".
Outro entrave foi a limitação do poder de arbitragem do Estado por membros poderosos
do pacto inicial. Vários grupos regionais ou setoriais detentores de poder financeiro e político
apropriaram-se dos centros de decisão estatal, protegendo seus mercados cativos e acabando
por enfraquecer as burocracias econômicas, extremamente necessárias no processo de
industrialização observado em outros países. Se a consequência foi a pouca autonomia do
Estado frente aos capitais nacionais, muito menos autonomia teria frente aos capitais
estrangeiros, que adquiriram notada independência financeira e comercial. Restou ao Estado,
portanto, anexar aos seus projetos os interesses desses capitais, o que não necessariamente se
reverteu em sinergia na sua execução.

Essa instabilidade e essa tensão permanentes não apenas diminuíram os graus de


liberdade e de iniciativa estratégica autônoma por parte do Estado, como o
impediram permanentemente de recuar, desfazendo proteções ou estabilizando a
moeda. Pelo contrário, em todas as crises cíclicas que acompanharam a expansão
industrial brasileira, as políticas ortodoxas de estabilização foram terminantemente
vetadas pelos sócios do grande pacto originário, e só coube ao estado a saída de
"fugir para a frente" (FIORI, 1984 e 1988), buscando novas formas de
endividamento capazes de reanimar o crescimento econômico no curto prazo, à
custa de sua própria e crescente fragilização fiscal. (FIORI, 1994, p.130)

O ímpeto pelo controle da capacidade de arbítrio do Estado se acirrava a cada nova crise
que se apresentava, lançando o país num cenário constante de instabilidade financeira e
política. Octavio Ianni (1975) alega que a inflação, característica persistente da economia
brasileira, servia ao Estado desenvolvimentista para captar poupança forçada, promovendo
aporte de recursos. A inflação, segundo Fiori, também possuía uma dimensão política. A
manutenção de um ambiente inflacionário ajudava a compatibilizar os vários interesses
confederados, interesses estes responsáveis pela fragilidade das políticas desenvolvimentistas.
Desta forma, o financiamento da industrialização acabou sendo feito ora através do
recurso à inflação, ora através do recurso ao endividamento público interno e
externo, formas igualmente precárias de sustentação de um processo de crescimento
que alguns chegaram a pensar que deveria ser auto-sustentado. De tal maneira que
no Brasil o Estado jamais pôde articular financeiramente, como na França, Japão ou
Coréia, por exemplo, estratégia de industrialização. (FIORI, 1994, p.128)

A estabilização da economia, portanto, não consistia em opção, uma vez que faria entrar
em choque todos os interesses contidos no pacto, comprometidos com a estratégia de
industrialização. Consequentemente, nas palavras de Fiori:

(...)ainda aqui, fugir para a frente, transferindo custos e responsabilidades, foi a


solução que acabou por ser adotada, até o momento em que, na crise dos anos 80,
tornou-se inviável essa estratégia e simultaneamente vetado o recurso à
estabilização. (FIORI, 1994, p.130)

2- A ERA VARGAS

2.1- A mudança dos rumos econômicos

De todas as ideologias de intervenção estatal para o desenvolvimento que


emergiram no período de crise dos anos 1930, nenhuma foi tão flexível e elaborada como o
Nacional-desenvolvimentismo promovido por Getúlio Vargas, que tinha por diretriz
reduzir a histórica dependência brasileira do comércio exterior por intermédio do
desenvolvimento de novas atividades produtivas, mais precisamente das industriais,
rompendo com a condição agrário-exportadora tão costumeira da economia brasileira. Os
planos de ação não vieram prontos quando da tomada do poder, em 1930. Muito pelo
contrário, delinearam-se de forma empírica no decorrer do exercício do mandato,
ganhando novas configurações, alternando estratégias nas esferas de atuação entre Estado e
mercado, e sempre permeando as decisões governamentais com um discurso nacionalista.
Convicto de que somente a intervenção estatal seria o caminho para sair da crise,
Vargas propôs um plano de grande envergadura em um cenário mundialmente
desfavorável, subvertendo a lógica do momento. A obstinação de Vargas por seus ideais
intervencionistas motivou a tomada de medidas como a criação do Conselho Nacional do
Café, retirando dos estados o controle dos rumos econômicos do produto, de modo a
reverter a queda do seu preço. Tomou, inclusive, medidas controversas como a compra da
colheita de café e sua destruição. Com a medida, de acordo com Celso Furtado (2007), o
país manteve a renda do setor exportador, além do nível de emprego, permitindo que o
Brasil saísse da crise dos anos 1930 antes dos países desenvolvidos. Na esfera social, a
Consolidação das Leis do Trabalho permitiu o direito a férias, descansos semanais,
licenças para gestantes, proteção ao trabalho de menores de idade, entre outros, que
garantiam tanto a renda como o bem-estar do trabalhador.

2.2- O nacionalismo em Vargas

A crise mundial que se instalara promoveu concomitantemente a crise do liberalismo


econômico que vigorava desde o século XIX. Caíra por terra a crença da autorregulação do
mercado e a lógica de laissez-faire da Teoria Clássica. Verificou-se o acirramento das relações
entre os grandes centros financeiros e as periferias endividadas, provocando moratórias e
renegociações de dívidas externas, como foi o caso da América Latina em 1931, da Europa
central e meridional em 1932, e da Alemanha em 1933.
No entanto, países centrais, assim como periféricos, convergiam em uma questão: era
necessário o redirecionamento de políticas para defender suas economias da instabilidade
mundial e apoiar projetos de recuperação nacional. De fato, o processo de recuperação da
crise global observado nos anos 1930 baseou-se na orientação para mercados internos, além
de acordos entre os governos para regular as transações internacionais.

Se a crise econômica mundial não foi o produto de uma “mentalidade” anti-


exportadores ou anti-credores, ela certamente teve por efeito solapar as bases
materiais de modelos de inserção internacional baseados na ênfase em exportações e
na liberdade financeira internacional. Simultaneamente a instabilidade política
global e a alteração das coalizões políticas na primeira metade da década de 1930
provavelmente foram as maiores desde o ciclo de revoluções burguesas de 1848.
(BASTOS, 2006, p.247)

O nacionalismo que emergia advinha de reações contrárias ao caráter cosmopolita da


economia mundial e à instabilidade de mercados internacionais quando submetidos a uma
situação de crise. O período foi caracterizado pelo aparelhamento do Estado na direção da
intervenção econômica, verificado tanto em países centrais como periféricos, na proporção de
suas capacidades. Nos países periféricos, mais precisamente, a tendência ao nacionalismo na
área econômica gerou conflitos com interesses locais e estrangeiros. Ali, o discurso
nacionalista tornou-se fundamental, colaborando para a legitimação da ação estatal e servindo
como barreira aos interesses contrários a ela. Ainda segundo Bastos (2006), países periféricos
como o Brasil:
• possuíam parcela significativa da infraestrutura básica sob domínio estrangeiro;
• eram endividados junto ao sistema financeiro internacional em crise;
• dependiam de reservas cambiais escassas para importação de insumos essenciais;
• experimentavam quedas acentuadas das receitas de exportação, o que suscitou, para sua
recuperação econômica, a defesa de interesses nacionais contra corporações e credores
estrangeiros.

2.3- Os dilemas da questão do financiamento

Ao assumir o poder, Vargas procurou inicialmente minimizar conflitos com


investidores estrangeiros, o que possibilitou a renegociação da dívida pública externa,
exercendo menos pressão sobre as escassas reservas cambiais brasileiras, podendo agora
ser priorizadas para o pagamento de parte da dívida. Procurou-se recuperar a confiança de
credores para a retomada de empréstimos, o que de fato aconteceu em 1931.
Posteriormente, em 1934, outro empréstimo seria negociado pelo recém nomeado
embaixador nos EUA, Oswaldo Aranha. No entanto, só foi possível reduzir os dispêndios
para níveis inferiores à capacidade de pagamento brasileira com uma nova moratória,
ocorrida em 1937. Dessa forma, reservas cambiais puderam ser liberadas para financiar
importações destinadas a obras públicas e ao reaparelhamento militar.
Vargas não foi, portanto, avesso ao capital externo na forma de empréstimos, sendo
estes direcionados ao desenvolvimento da atividade industrial, objetivo maior de seu
ideário. No entanto, no que tange às atividades que dariam suporte infraestrutural à
indústria, além dos seus insumos básicos, siderurgia, energia elétrica e petróleo, como
também serviços públicos, Vargas foi enfático ao admitir a necessidade de se manter tais
atividades sob propriedade e domínio nacionais, invocando questões de soberania. O que
de fato ocorreu foi a regulação das operações de empresas estrangeiras no país, de modo a
cercear as liberdades das quais gozavam anteriormente à revolução de 1930, barateando os
serviços, além de controlar as remessas de lucro e proteger assim as reservas cambiais.
Diferentemente, o tratamento dado aos bancos de depósito e às companhias de
seguro esteve em maior conformidade com a cartilha nacionalista. A Constituição de 1937
previa a nacionalização de licenças novas para bancos e companhias de seguro. Além de
economizar reservas cambiais, a medida tinha por objetivo adaptar o sistema financeiro às
novas necessidades de desenvolvimento do mercado interno.
Dilemas à parte, a implantação do Estado novo em 1937, acompanhado da
decretação da moratória, limitou as possibilidades de novos empréstimos estrangeiros a
curto prazo para financiar projetos desenvolvimentistas. A solução seria a mobilização de
capitais locais e fundos estatais para a realização de investimentos diretos de risco em
indústrias de base. A atratividade para investidores locais seria a perspectiva de uma
remuneração justa regulada pelo Estado. O governo, por sua vez, criou um fundo
constituído com base em um imposto de 3% sobre algumas operações cambiais, o qual foi
majorado a 6% em 1938 e reduzido a 5% no ano seguinte. Em 1939, o fundo passou a
constituir a maior fonte de recursos do Plano Especial de Obras Públicas e de
Aparelhamento da Defesa Nacional (PEOPADN). O governo de Getúlio Vargas também se
tornou emblemático ao lançar mão de formas indiretas de captação de recursos, mais
precisamente da inflação.

No Brasil, pois, o getulismo, em sentido lato, fornece as bases políticas e


ideológicas para a realização dos índices de poupança adequados à manutenção
dos níveis de investimentos exigidos para acelerar a industrialização. Em
particular, a inflação - como técnica de poupança monetária forçada e disfarçada
- beneficiou-se amplamente da forma pela qual se formalizaram as relações de
produção, no ambiente urbano-industrial. (IANNI, 1975, p.63)

2.4- As indústrias de base e a infraestrutura

Em 1937 instituía-se a ditadura Vargas, com o Estado Novo. Revestia-se, assim,


Getúlio, da possibilidade de o poder público de atuar em todas as instâncias econômicas,
agora nitidamente expressa na carta magna:

A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as


deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatôres da produção, de
maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jôgo das
competições individuais o pensamento dos interêsses da Nação, representados
pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata e
imediata, revestindo a forma do contrôle, do estímulo ou da gestão direta
(Constituição de 1937, art.135)

A proclamação do Estado Novo veio acompanhada do discurso nacionalista e


esperava-se, na ocasião, que houvesse uma proporcional mobilização de recursos locais,
em contraposição às filiais estrangeiras, nos ramos básicos do projeto nacional-
desenvolvimentista. Entretanto Getúlio Vargas, constatando a insuficiência de recursos
públicos e privados para bancar a empreitada, nitidamente observado no setor siderúrgico,
conclamou reiteradamente a colaboração dos investidores estrangeiros. Militares, técnicos,
e políticos nacionalistas locais, vinculados à Comissão Nacional de Siderurgia desde 1931,
eram terminantemente contrários à ideia, mas Vargas mostrou-se realista e flexível para
considerar diversas possibilidades de atração de filiais estrangeiras.
As barganhas brasileiras visavam, antes de 1937, atrair a norte-americana DuPont.
Depois de proclamado o Estado Novo foi a vez das alemãs Demag, Krupp e Stahlunion.
Mais adiante, intensas negociações com a US.Steel fracassaram pela falta de interesse da
empresa, a despeito do desejo tanto do governo brasileiro quanto do Departamento de
Estado norte-americano. Em nova tentativa fracassada de negociação com empresas
alemãs em 1940, acompanhada de discursos pró-germânicos, Vargas acaba induzindo
Roosevelt a propor uma barganha entre seus governos, o que proporcionou os recursos
para a criação da CSN. No segundo governo de Vargas, a instalação da Mannesmann em
Minas Gerais reafirmou a sua boa vontade com os investimentos estrangeiros no setor,
desde que contribuíssem para a consecução dos projetos de desenvolvimento nacional.
O caso do petróleo era mais antigo, datando da república velha. No entanto, a
restrição à atuação do capital estrangeiro no setor viria se afirmar somente com a criação
do Conselho Nacional do Petróleo. Em 1939, técnicos do CNP encontraram petróleo em
Lobato, na Bahia. De 1940 a 1942, três propostas da Standard Oil para a criação de
companhias mistas visando pesquisa e extração foram rejeitadas pela oposição da cúpula
militar, apesar da maioria favorável do gabinete de ministros de Vargas. No entanto, em
1944, Vargas promulgaria um decreto permitindo a criação de joint ventures, nas quais o
capital estrangeiro responderia por metade das ações, sem entretanto ter tido tempo de
observar seus efeitos ainda no Estado Novo, e muito menos no Governo Dutra.
Em 1951, a assessoria econômica de Vargas enviou ao legislativo a proposta de
constituição da Petrobras, na qual era prevista uma companhia mista. Mais uma vez a
preferência de Vargas por esta característica seria frustrada, depois das emendas
legislativas e à luz da campanha nacionalista. Mas é possível inferir que o projeto original
da Petrobras pode ser considerado dentro dos parâmetros observados no seu segundo
governo, ou seja, contemplar recursos externos sem, no entanto, perder de vista o controle
sobre a destinação dos recursos nos projetos de desenvolvimento. De fato, o projeto inicial
resguardava o monopólio das jazidas e concentrava o poder decisório nas mãos do Estado.
Os representantes do truste internacional do petróleo, por sua vez, criticavam o projeto
varguista, argumentando que seria tão somente uma transferência de tecnologia e de
fundos para empreendimentos que, no fim, seriam controlados por uma holding estatal.
No setor de energia elétrica, as primeiras experiências de produção datam do
império. Na primeira república, estados e municípios detinham o poder de realizar
concessões e negociações diretamente com as empresas, sem nenhuma regulamentação
nacional. São Paulo e Rio de Janeiro eram áreas de operação do conglomerado Brazilian
Traction, Light and Power Co. (Light) criado em 1912, união de três empresas que já
atuavam no setor e que posteriormente incorporou pequenas empresas do Vale do Paraíba.
A American & Foreign Power Co. (AMFORP) vinculada a acionistas da General Eletric,
constituiu uma holding para coordenar operações no Brasil, denominada Empresas
Elétricas Brasileiras. A AMFORP adquiriu posteriormente empresas do interior de São
Paulo e do Rio de Janeiro, além das capitais de Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia e
outros cinco estados. Os contratos da Light e da AMFORP continham cláusula que corrigia
as tarifas pela variação cambial mensal, denominada cláusula-ouro, embora já houvesse lei
federal de 1904 que estipulava a revisão das tarifas a cada cinco anos.
Vargas buscou, no decorrer da década de 1930, regular serviços e tarifas das
concessionárias de energia, retirando a autoridade de estados e municípios. A regulação de
tarifas tornara-se necessária já na crise cambial do final dos anos 1920, uma vez que a
cláusula-ouro reajustava as tarifas segundo moeda internacional forte, que protegia a
rentabilidade das subsidiárias, mas inflacionava os serviços, prejudicando usuários e
inviabilizando a aplicação da energia elétrica na atividade industrial. A reação por parte do
governo foi no sentido de proteger a renda de usuários e defender reservas cambiais
escassas. Em 1931 o governo impediu o processo de concentração do setor, paralisando
transferências de cursos de quedas d’água, alegando estar em preparação um Código de
Águas. Antes de promulgado o código, o governo interveio sobre a liberdade contratual
das concessionárias, eliminando a cláusula-ouro e determinando a revisão tarifária a cada
três anos.
O Código das Águas, promulgado uma semana antes da constituição de 1934,
transferia o direito de acessão, que garantia a propriedade dos cursos e quedas d’água ao
proprietário do solo, para a união, também detentora, agora, do poder de concessão do seu
uso. Impôs, ainda, revisões contratuais segundo o princípio de “custo pelo serviço” na
determinação de tarifas, o que implicava em cálculo com base no patrimônio das
concessionárias, de modo a se encontrar uma taxa de lucro anual “justa”. Após batalha
legal, o código foi suspenso até 1938. Embora os princípios nacionalistas de Getúlio
Vargas permitissem à legislação definir que novas concessões só poderiam ser feitas a
brasileiros ou empresas constituídas por acionistas brasileiros, a medida não teve efeito
prático, uma vez que os empresários locais não se interessavam pelo setor e nem
dispunham de recursos para a ampliação da oferta de energia elétrica na proporção do
crescimento que se verificava. O Governo retrocedeu, permitindo a participação acionária
a empresas estrangeiras em 1938 e novas concessões a partir de 1942.
Enquanto Vargas culpava as filiais pelo aumento abusivo das tarifas que prejudicava
usuários e pressionava as reservas cambiais, os representantes das empresas culpavam o
Código das Águas pelos racionamentos de energia do início da década de 1950, dizendo-se
impedidos de cobrar tarifas satisfatórias o suficiente para ampliar a oferta. Segundo Bastos:

(...) o Código nunca chegou a ser implementado a ponto de tolher a rentabilidade


das empresas. Dentre as decisões implementadas, mais efetiva que o Código para
limitar a rentabilidade das empresas estrangeiras foi a proibição da cláusula-ouro
em 1933, imitando a reforma (com o New Deal) de Franklin Roosevelt nos
E.U.A. (...) Talvez seja mais pertinente procurar as raízes da crise da oferta de
energia do setor privado (...) na dificuldade de preservar remuneração elevada
em dólares, sem elevar as tarifas a ponto de tornar o custo da energia
incompatível com a expansão acelerada das indústrias e cidades que agora
usavam, intensivamente, eletricidade. (BASTOS, 2006, p.260)

De fato, as tarifas ficaram praticamente congeladas até o fim do Estado Novo, graças
à regra de variação cambial vigente até o final de 1933..
Concomitantemente, os defensores da intervenção estatal alegavam que as empresas
eram incapazes de ampliar satisfatoriamente a geração de energia, melhorar o serviço de
distribuição e cobrar tarifas baratas, uma vez que queriam rentabilidade em dólar. No
entanto, o Estado não dispunha de recursos próprios e a possibilidade de contar com
recursos do Banco Mundial predispunha o país à dependência de uma entidade interessada
em limitar a intervenção estatal, além de estimular a presença do capital estrangeiro. De
fato, a solução encontrada pelo Banco Mundial para garantir que a destinação de seus
empréstimos ao governo brasileiro não concorresse com os interesses das filiais
estrangeiras foi o empréstimo direto a essas filiais, contando com o aval de Vargas. Mais
um dilema se configurou: ou Vargas abria mão de suas ideias nacionalizantes para o setor
elétrico ou comprometeria todo o esquema de financiamento de infraestrutura básica.
Vargas teve que ceder.
A chegada do Presidente Eisenhower ao governo norte-americano marcou a ruptura
da cooperação bilateral, interrompendo os financiamentos já aprovados e em estudo,
levando Vargas a retomar projetos de mobilização interna de recursos. Novamente lançaria
mão do discurso nacionalista inflamado, afirmando que os planos da Eletrobrás vinham
sendo sabotados por filiais estrangeiras e que seria necessário criar fundos para implantar a
indústria elétrica nacional ou, até mesmo, nacionalizar as empresas privadas. Em 1954 foi
aprovado o Fundo Federal de Eletrificação, composto de dotações orçamentárias, além de
20% da arrecadação de taxas de despachos aduaneiros e, principalmente, do Imposto Único
sobre a Energia Elétrica, visando à constituição do capital das empresas públicas
destinadas a investir no setor. A aprovação da criação do fundo pode ter sido resultado do
dilema derradeiro de Getúlio Vargas:

Não é improvável que o próprio suicídio do presidente tenha ajudado a superar


as resistências políticas contrárias a mais um fundo financeiro destinado a um
programa nacionalizante, tendo em vista a comoção trazida pelas denúncias da
Carta Testamento. (BASTOS, 2006, p.270)

3- JUSCELINO KUBITSCHEK
3.1- O Plano de Metas

O cenário político que se instalara após o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, era de
intensa crise. Antes mesmo de Juscelino Kubitschek tomar posse em 1956, um Golpe de
Estado liderado pelo General Henrique Teixeira Lott (preventivo nas concepções do então
poder constituído) garantiria que as forças derrotadas nas eleições não impedissem a posse do
presidente eleito. O conhecido "Golpe de 11 de novembro" talvez tenha sido o único golpe de
Estado a favor, visto que se destinou, com sucesso, a defender a ordem instituída, supondo-se
estar em movimento um golpe militar para impedir a posse do candidato eleito no pleito de
1955.
Uma vez empossado, Juscelino Kubitschek iniciou uma era importantíssima da história
econômica brasileira, na qual se verificaria um aprofundamento das relações entre Estado e
economia. A industrialização continuaria a ser a locomotiva do desenvolvimento, agora não
mais impulsionada pelo estrangulamento do setor externo, mas por todos os artifícios e
recursos à disposição do governo. As diretrizes, no entanto, já vinham sendo desenhadas nos
anos anteriores, quando a associação entre planejamento e desenvolvimento econômico já era
consenso tanto para o governo como para o mercado e a opinião pública. O enfrentamento da
crise dos anos 1930, assim como as discussões sobre desenvolvimento promovidas pela
CEPAL desde 1948, serviriam de base para as novas ações que se propunham. Tendo
acumulado experiências, bem sucedidas ou não, o poder público agora possuía o
conhecimento de como se aplicar as técnicas de planejamento à economia brasileira. Sob este
signo nascia o Programa de Metas. Sobre o assunto diz Octavio Ianni que:

(...)na época do Govêrno Kubitschek houve efetivamente uma reelaboração das


relações entre o Estado e a Economia. E pode-se mesmo dizer que essa reelaboração
foi profunda. Devido às concepções em jôgo na época, aos alvos propostos e às
técnicas de política econômica utilizadas pelo govêrno, é inegável que o Programa
de Metas assinalou uma reformulação substancial nas relações entre o poder público
e o sistema econômico. (IANNI, 1971, p.149)

Em uma conjunção favorável de forças, o governo dos EUA, assim como as empresas
norte-americanas, lançavam um novo olhar sobre as pretensões dos países dependentes na
adoção de um planejamento econômico. Não mais viam o comprometimento de seus
interesses, mas o abrandamento das reações provenientes do esforço pela industrialização
observados anteriormente naqueles países.

Os governantes norte-americanos logo compreenderam que a participação ativa do


Estado nas decisões e realizações concernentes à economia era um mal menor, se
comparado com o risco de agravamento das tensões sociais e políticas características
das economias dependentes em luta pela industrialização. Além disso, as direções
das empresas multinacionais e o próprio govêrno dos Estados Unidos já haviam
compreendido que a participação governamental nas decisões e realizações ligadas a
políticas de desenvolvimento era uma garantia política e econômica para as
emprêsas estrangeiras. (IANNI, 1971, p.149)

As metas do programa contemplavam quatro setores: energia, transportes, alimentação,


e indústria de base. Ainda de acordo com Otavio Ianni (1971, p.153), o plano tinha por
objetivos gerais “abolir os pontos de estrangulamento da economia, por meio de
investimentos infraestruturais, a cargo do Estado, pois que esses investimentos não atrairiam o
setor privado” e “expandir a indústria de base, como a automobilística, indústria pesada e de
material elétrico pesado, estimulando investimentos privados nacionais e estrangeiros”.
Dentre as 31 metas contidas no plano figurava a construção de uma nova capital, o que por si
só acabou acrescentando mais demandas infraestruturais às já existentes.
É possível afirmar que duas motivações serviram de base para o investimento em
infraestrutura no governo Juscelino Kubitschek. A primeira diria respeito ao suporte à
indústria, como a ampliação da infraestrutura para os transportes terrestres, que da mesma
forma que melhoravam a eficiência logística no deslocamento de cargas, garantiam as
condições de uso dos produtos da incipiente indústria automobilística nacional.

Entre os setores industriais, o automobilístico foi o que mais recebeu incentivos,


especialmente por meio da Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do
Crédito (antecessora do Banco Central), que proporcionou facilidades para a entrada
de equipamentos importados sem cobertura cambial. (ALMEIDA, 2006, p.10)

A segunda seria a construção de Brasília que, inclusive, definiu um novo plano


rodoviário no intuito de ligar a nova capital a todas as regiões do país. Aliás, no quesito
rodovias, condições anteriores ao governo Kubitschek já sinalizavam que nas décadas de 1940
e 1950 o transporte rodoviário tomaria grande impulso, culminando com as realizações do
Plano de Metas. Em 1946 foi criado o Fundo Rodoviário Nacional, destinado à construção de
estradas, que estabelecia imposto sobre combustíveis líquidos. Posteriormente, em 1954, a
criação da Petrobrás estimularia a produção de asfalto.
Ao setor de transportes de uma forma geral estavam destinados 29,6% do investimento
do Plano de Metas, sendo que a pavimentação de rodovias atingiu 100% do previsto e a
abertura de novas rodovias ultrapassou a meta, 130%. Destaca-se a construção da rodovia
Belém-Brasília, decisiva para o povoamento do Centro-Oeste e da Amazônia, além da
importantíssima rodovia Régis Bittencourt, ligando o sudeste ao sul do Brasil. As ferrovias,
por sua vez foram menos contempladas, tendo conquistado 76% de êxito em seu
reaparelhamento e módicos 20% na construção de novas ferrovias, o que demonstra
nitidamente o desinvestimento neste modal de transporte em benefício do primeiro. O
investimento portuário atingiu 57% da previsão.
O setor de energia foi responsável pela maior destinação de recursos do plano, 43,4%,
sendo que 55% diriam respeito à energia elétrica. Foi construída a usina de Furnas, elevando a
potência instalada no país a 4777 MW em 1960, cumprindo 82% da meta. No mesmo ano foi
criado o Ministério das Minas e Energia. Na área petrolífera, a meta de produção atingiu 76%,
enquanto a meta de refino atingiu 26%. Na indústria carvoeira, em crise pela maior utilização
do diesel na rede ferroviária, 23% da meta foram alcançados.

3.2- O discurso nacionalista de Juscelino

O nacionalismo contido em Juscelino Kubitschek invocava constantemente a questão da


soberania, ao mesmo tempo em que manifestava sua preferência por um desenvolvimento do
tipo capital associado. È esta combinação contraditória que leva Ianni a dizer, em flagrante
generosidade, que JK é autor de “uma conciliação engenhosa” (IANNI, 1975, p.168). Nos
discursos de Juscelino, a soberania aparece como o alvo a ser alcançado em função da
prosperidade e da democracia. A inserção da soberania nos discursos, entretanto, possui
intenções estratégicas. A respeito da soberania, do ponto de vista de Juscelino, dispõe Míriam
Limoeiro-Cardoso:

A presença da soberania no discurso, portanto, aparece como um marco distintivo de


uma das muitas possíveis posições nacionalistas. Atinge aos nacionalistas em geral,
desde as esquerdas – para as quais ela permite trazer o debate para o terreno que
mais lhes agrada, o político, no seu nível não meramente factual, mas
especificamente ideológico – até as Forças Armadas, muito ciosas da sua missão de
defesa nacional. (LIMOEIRO-CARDOSO, 1978, p.106)
Para Juscelino, o que faltava ao Brasil para o atingimento da soberania era a
prosperidade, visto que, em sua concepção, a democracia (o outro componente) já havia sido
consolidada e cabia tão somente ao país defendê-la. A ameaça à democracia poderia advir
externamente de ideologias alternativas e, no plano interno, da miséria. Portanto, de acordo
com Juscelino, a existência da miséria constituía uma porta aberta à penetração de ideologias
ditas “subversivas”. Em tempos de Guerra fria, mais precisamente, o comunismo despontava
como uma ameaça iminente, o que servia de fundamento para o projeto de desenvolvimento
do governo Juscelino, de forma que o sistema desse uma resposta contundente às populações
marginalizadas de que valeria o esforço, e que estas populações seriam inseridas no novo
caminho do desenvolvimento que se construía. Desta forma, com um discurso nacionalista
forte, uma máquina de propaganda eficiente e, obviamente, algum mecanismo repressivo, foi
possível a Juscelino a garantia da ordem. Ademais, a manutenção da ordem e o controle social
eram fundamentais para que se criasse no país uma atmosfera propícia à atração de capital
privado, fosse ele interno ou externo.
De forma curiosa, a ideologia desenvolvimentista de Juscelino se retroalimentava, e os
efeitos colaterais da implementação de seu Plano de Metas produziam, na sua concepção, uma
necessidade maior de endividamento. No caso da inflação e do custo de vida, o rompimento
com o FMI se deveu às pressões deste órgão para que o governo tomasse medidas mais
ortodoxas na estabilização da economia. A busca pela estabilização econômica, no entanto,
seria compreendida por Juscelino como a necessidade de mais capital, o que corrobora com a
estratégia anteriormente descrita por Fiori de “fugir para a frente”.

Por nada estaria disposto a diminuir a intensidade em que o desenvolvimento se


vinha processando e o importante no momento, mais do que nunca, era a afirmação
da possibilidade de crescimento, da apresentação da instabilidade como passageira, e
mais, como “crise de crescimento”, que só mais crescimento resolveria. Tanto para o
objetivo de acalmar as classes mais sacrificadas com a ascensão da espiral
inflacionária, como para conseguir atrair o capital externo, não inflacionário, para
ser aplicado aqui de acordo com o plano em vigor, era necessário imprimir a
convicção de que dias melhores estavam por vir, que os resultados dos esforços para
o investimento infra-estrutural logo se mostrariam. (LIMOEIRO-CARDOSO, 1978,
p.119)

3.3- Financiamento menos seletivo

Enquanto Getúlio Vargas tinha no capital nacional a sua preferência, Juscelino mostrou-
se menos seletivo quanto à questão do financiamento de seu projeto desenvolvimentista pelo
capital externo, descrito em seus discursos como bem vindo e necessário, vislumbrando o
tempo em que não mais necessitaria destes. Sobre o estilo desenvolvimentista característico
de Juscelino, comenta Limoeiro-Cardoso:
Se a industrialização é o meio através do qual o subdesenvolvimento pode ser
superado, o aumento da exportação – no seu quantum e na sua rentabilidade -, aliado
à obtenção de recursos externos, constitui a forma de possibilitar a atualização
daquele meio. Exportar e contrair dívidas no exterior para poder industrializar-se.
Para que a economia possa ver seu setor secundário ampliado, ela necessita de
capital e técnica. Suprindo-nos, se estará permitindo a industrialização e com ela o
desenvolvimento autônomo. (LIMOEIRO-CARDOSO, 1978, p.171)

De forma talvez dogmática, o comprometimento financeiro de então era justificado por


um suposto futuro de soberania, palavra muito presente nos discursos de Juscelino, quando,
uma vez obtida a “velocidade de arranque” (em suas próprias palavras), o país poderia seguir
soberano rumo ao desenvolvimento. Mas não necessariamente autônomo. Octávio Ianni
(1971, p.183) atenta que “o conceito de industrialização, para Juscelino Kubitschek de
Oliveira, não continha a idéia de autonomia.(...)Talvez se possa dizer que para Kubitschek
industrialização e independência econômica nacional seriam duas entidades distintas”.
No entanto, o capital externo à disposição de Juscelino à época de sua posse limitava-se
ao privado. Os anos anteriores haviam comprometido sobremaneira a capacidade de aquisição
de empréstimos junto a governos e entidades de crédito.

Já depois de encerrado o seu período presidencial, voltando-se, portanto, para o


passado, Juscelino recorda que “em 1956, as entidades internacionais tinham suas
portas praticamente fechadas ao Brasil. Não possuíamos crédito sequer para
cobertura de deficits cambiais, pois a quase totalidade de nosso ouro já se achava
empenhada no exterior. Não houve como obter o financiamento das iniciativas de
desenvolvimento econômico. A alternativa foi apelar para o crédito e o interesse dos
empresários privados” (LIMOEIRO-CARDOSO, 1978, p.181)

Limoeiro-Cardoso também enfatiza que iniciativas desenvolvimentistas são


naturalmente mais propensas à mobilização de capitais junto ao setor privado do que junto a
entidades governamentais ou internacionais. Ao capital privado “basta que aquelas iniciativas
forneçam, ainda que apenas razoavelmente, uma programação fundada na realidade e que
aponte boas potencialidades de realização” (Idem). A partir de então, a decisão de
investimento passaria a depender basicamente de comparações com outras alternativas que se
apresentassem no momento. É preciso considerar, Inclusive, que pode ter parecido muito mais
atraente ao capital privado externo a proposta de financiamento do projeto desenvolvimentista
de Juscelino, uma vez que a situação de privação de outras fontes era notória e conferia menos
autonomia e margens de negociação ao proponente.
No que tange aos investimentos estatais diretos, há de se ressaltar que estes foram
decisivos nos setores que não possuíam a atratividade para o ente privado, mais precisamente
infraestrutura e indústria de base, mas vieram desprovidos de uma reforma fiscal condizente
com os gastos previstos pelo Plano de Metas. O governo teve que se valer da emissão de
moeda, gerando um período de escalada inflacionária. De acordo com Ianni (1971, p.170), a
inflação “funcionou como uma técnica de poupança monetária forçada; ou melhor, como uma
técnica de confisco salarial”. Segundo Almeida (2006, p.10-11), “Brasília(...)parece ter
consumido cerca de 2 a 3% do PIB durante todo o processo de sua construção, o que não
estaria alheio à aceleração do processo inflacionário que foi registrado desde então”.
Portanto, na forma dos investimentos diretos, infere-se que o Estado prestou ao seu
papel de criador das condições ideais para a acumulação de capital, condições estas em
proveito das grandes empresas que viriam a se instalar no país. Foi, portanto, nessa época, e
por intermédio do investimento de recursos próprios, o grande promotor da entrada de capital
externo no país. Ou seja, o capital nacional aplicado à infraestrutura, a um custo social
considerável, garantia a segurança necessária ao investimento privado externo.
Dentro do esforço do governo Kubistschek para a obtenção de mais financiamento para
seus projetos, e de modo a estabelecer um fluxo constante de capital externo, valia a
exposição de um inimigo comum, o comunismo. Assim, fundamentava-se a Operação pan-
americana, proposta por Juscelino junto ao governo dos Estados Unidos para que se criasse
um bloco de cooperação entre as Américas, inclusive militar, capaz de frustrar quaisquer
tentativas de infiltração daquela ideologia. Segundo Limoeiro-Cardoso (1978, p.136), “a
proposta enfatizava muito mais os aspectos econômicos, especialmente os relativos à
obtenção de capital, embora seu fundamento fosse político-ideológico”. Mesmo que as
intenções dos idealizadores da Operação pan-americana não tenham se realizado a contento,
apesar de toda a retórica envolvida, a iniciativa gerou frutos no campo do financiamento:
Se nem sempre a resposta foi acatada como satisfatória [cooperação norte-
americana], nem por isso deixa o governo de solicitar sua adequação aos seus
propósitos. Entre as repercussões imediatas que a Operação Pan-Americana
pretende, ressaltam as que se vinculam à complementação da capitalização nesta
parte do continente. (...) Mesmo não tendo chegado a ser implementada conforme
seus defensores, “um dos resultados concretos que vai produzindo a OPA, é o
primeiro organismo internacional de crédito especificamente aos países latino-
americanos” (LIMOEIRO-CARDOSO, 1978, p. 174)

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Da empreitada Varguista na implantação e incremento dos ramos considerados básicos


para os projetos de desenvolvimento nacional, incluindo-se aí os que se vinculam diretamente
à infraestrutura, percebe-se mais uma vez a preferência pelo controle estatal destas atividades
e, por conseguinte, a mesma dificuldade na mobilização de capitais nacionais para o
financiamento dos projetos. Observou-se, no entanto, a flexibilidade de um governo dito
nacionalista para considerar a presença de capitais estrangeiros, manifesta na utilização
estratégica do discurso nacionalista. Este discurso seria mais exacerbado ou mais brando,
invocando questões de soberania quando na ameaça a seu projeto nacional-
desenvolvimentista, ou sendo benevolente quando na perspectiva destes capitais darem
prosseguimento ao projeto.
É possível concluir que em um setor crucial da infraestrutura no qual o capital
estrangeiro já possui total domínio, como no caso do setor elétrico à época de Vargas, exige-se
da parte do governo um esforço muito maior para garantir modicidade das tarifas cobradas e
qualidade dos serviços. O setor elétrico da época também expõe a questão da regulação como
um grande motivo de protesto para o ente particular (estrangeiro ou não) que explora setores
importantes ao desenvolvimento nacional. Conclui-se, ainda, que dentro dos ramos básicos ao
desenvolvimento e a despeito do pouco interesse de investidores internos e externos
manifestado ao setor siderúrgico, o setor energético brasileiro, principalmente o petrolífero,
apresenta-se atualmente como o foi no passado: estratégico para o país e instigante para as
nações desenvolvidas.
No caso de Juscelino, a associação com o capital externo configurava-se como premissa
básica a seu projeto. Seus dogmas tinham no endividamento externo uma condição necessária,
mas temporária, na certeza da efetividade dos esforços de seu governo na direção do
desenvolvimento. Também foi necessário que Juscelino fizesse uso do discurso nacionalista,
garantindo a adesão das massas no plano interno e buscando associação no plano externo para
obtenção de financiamento, objetivo maior de sua retórica. Herdeiro do conhecimento estatal
em planejamento, acumulado durante décadas, e beneficiário de uma conjuntura externa
politicamente favorável, permitiu-se não só desenvolver um plano que contemplasse
investimentos necessários às demandas de infraestrutura já existentes, mas criar demandas
novas com a construção de uma nova capital. O plano de metas acabou por consolidar a
matriz de transportes que já se havia desenhado, tendo por base o modal rodoviário que, diga-
se, serviu de alavanca às indústrias petrolífera e automobilística.
Dentre os pontos críticos dos dois projetos, o custo social sobressai como uma
característica que talvez se replique nos futuros planos de desenvolvimento, dadas as
condições que fundamentaram o capitalismo brasileiro. Não há, no entanto, garantias futuras
da eficácia do discurso na adesão social, dado o esgotamento da estratégia de “fugir para a
frente” associada à retórica nacionalista.
Considerando-se as peculiaridades dos dois estilos aqui representados, bem como os
dilemas que se apresentaram em cada um desses períodos, é possível afirmar que tanto em
Getúlio como em Juscelino a opção de não realizar era inexistente. Cientes ou não das
consequências de ousados plano de desenvolvimento em suas épocas, bem como de suas
decisões e opções, fundamentavam suas ações no vislumbre de um futuro melhor, no qual o
Brasil figurasse como protagonista, e não como mero coadjuvante. Para eles, urgiam medidas
extremas, segundo as condicionantes da economia brasileira, ambiciosas o suficiente para
intencionar a quebra de paradigmas e estamentos da formação econômica do país, caminhos
estreitos que se impuseram por forças contrárias aos anseios da sociedade.
É possível observar na trajetória do desenvolvimento brasileiro a reincidência de
dilemas que demandam do Estado soluções análogas às adotadas em fases anteriores, de
alguma forma repaginadas dadas as peculiaridades do momento em que ocorrem. Considera-
se, portanto, que algumas questões sobre desenvolvimento impostas ao Estado brasileiro na
atualidade ensejam uma revisita aos arquivos. Notadamente, no tempo atual, alguns dilemas
saem de cena, substituídos por outros tantos que se apresentam como novos e que demandam,
mais do que tudo, inovação. No entanto, o que se vislumbra como horizonte de
desenvolvimento para o Brasil deve ter suas bases no que se fez, no como, e no porquê
contidos nos projetos do passado, bem sucedidos ou não.

5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Paulo Roberto de. A experiência brasileira em planejamento econômico: uma


síntese histórica. In GIACOMONI, James; PAGNUSSAT, José Luis (orgs). Planejamento e
orçamento governamental. Brasília: ENAP, 2006, P.p 193-218.
BASTOS, Pedro Paulo Zahluth. “A Construção do Nacional-Desenvolvimentismo de Getúlio
Vargas e a Dinâmica de Interação entre Estado e Mercado nos Setores de Base”. In
Economia, Selecta. Brasília(DF): Vol.7, 2006.
FIORI, José Luis. “O Nó Cego do Desenvolvimentismo Brasileiro”. In. Novos Estudos
Cebrap, nº 40, 1994, pp.125 – 144.
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 34ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1971.
IANNI, Octávio. O Colapso do Populismo no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975.
LIMOEIRO-CARDOSO, Miriam. Ideologia do Desenvolvimento - Brasil: JK – JQ. 2ª Ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
LUSTOSA DA COSTA, Frederico. Relações Estado-Sociedade no Brasil: Representações
para Uso de Reformadores. In Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro: Vol. 52, Nº 1,
2009, pp. 161-199.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Cia. das
Letras, 1995.
Potencialidades e Limitações da Gestão de Programas Sociais no Brasil: Uma análise do
Programa Bolsa Família sob a ótica da Administração Política
Resumo
O presente estudo visa analisar os fatores que limitam e potencializam a gestão de
programas sociais no Brasil, tomando como estudo de caso o Programa Bolsa Família (PBF),
considerado o maior programa de transferência de renda da América Latina. A abordagem
teórica do artigo perpassa na análise do Modelo de Gestão do Programa Bolsa Família e nas
temáticas da Gestão e Avaliação enfocando na perspectiva da Administração Política. A
opção metodológica para a realização da pesquisa foi o estudo de caso, tendo a coleta e
análise de dados primários como base na aplicação de questionários semiestruturados junto a
gestores estaduais e municipais do Programa no período de outubro de 2014 a janeiro de
2015. Como tratamento desses dados utilizou-se a análise de estatística descritiva e a análise
de conteúdo. Na primeira parte da apresentação dos resultados, é descrito o perfil pessoal e
profissional dos gestores respondentes que contemplam aspectos de: gênero, idade, grau de
instrução formal, tempo de experiência profissional, tempo de experiência com o PBF, bem
como carga horária de trabalho, tipo de vínculo empregatício e remuneração. Na segunda
parte, buscou-se descrever os principais achados da pesquisa que permitem inferir que os
fatores limitadores e potencializadores da gestão de programas sociais no Brasil estão
relacionados aos seguintes aspectos: profissionalização da gestão, contingente de servidores
nas funções técnicas, especialmente para atender as demandas da gestão compartilhada entre
estados e municípios; baixo nível de comunicação intergovernamental; política continuada de
capacitação e formação da equipe de trabalho; experiência com a utilização de banco de dados
e análise de indicadores de gestão e avaliação; infraestrutura administrativa das secretarias
estaduais e municipais; número de servidores públicos; e articulação, integração e
coordenação entre as esferas de governo na gestão do programa.

Potencialidades e Limitações da Gestão de Programas Sociais no Brasil: Uma análise do


Programa Bolsa Família sob a ótica Administração Políticai
1. Introdução
Este estudo visou analisar os fatores que limitam e potencializam a gestão de
programas sociais no Brasil tomando como estudo de caso o Programa Bolsa Família (PBF),
considerado o maior programa de transferência de renda da América Latina.
As políticas sociaisii tem assumido um lugar de destaque na agenda pública
contemporânea brasileira, movimento que ganha maior legitimidade com a promulgação da
Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã. A partir dos anos 90, as políticas
sociais ganham notoriedade, principalmente, com a consagração da Seguridade Social como
sistema articulador das políticas de Previdência, Saúde e Assistência Social. Para dar conta
dessa nova institucionalidade, os governos subnacionais, especialmente os municípios, foram
desafiados a construir novas estruturas administrativas e organizacionais que garantissem um
novo ciclo de políticas públicas que deveria integrar as etapas de concepção, implantação,
monitoramento e avaliação dessas ações públicas.
Esse movimento de mudança ganha uma nova institucionalidade, a partir de 2003,
com a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, responsável por
articular e integrar as diversas ações sociais sob a responsabilidade do governo federal. A
concepção desse novo modelo de gestão pública, baseada na promoção do desenvolvimento
através da inclusão social foi a base fundamental do governo de Luiz Inácio Lula da Silva,
denominado de “Plano de Governo Brasil para Todos” (2003-2007). Com essa plataforma e
compromisso políticos, pode-se afirmar que havia uma clara percepção por parte do governo
de que a retomada do crescimento sustentável (com inclusão social) do País passava pela
integração e articulação de um conjunto de políticas sociais que tinham como objetivo central
garantir o acesso à renda de milhões de brasileiros que se encontravam fora do mercado.
Nesse contexto, as políticas sociais lideradas pelo MDS ganham centralidade e passam
a assumir um papel de indutoras de novos processos de desenvolvimento socioterritoriais, o
que significa reconhecer a necessidade de se promover/estimular novos processos de
aprendizagem em gestão de políticas públicas, especialmente como medidas de apoio as ações
do poder local. Pode-se afirmar que o MDS ganha status de órgão competente e responsável
pela promoção da transversalidade das políticas públicas no Brasil, a partir daquele momento,
exigindo, assim, uma capacidade progressiva de indução e estímulo de processos de
aprendizagens, especialmente junto aos municípios, entes responsáveis pela implantação e
acompanhamento das políticas sociais. Esse novo processo de institucionalização representou
um aumento significativo dos investimentos do governo federal em políticas de proteção,
assistência e desenvolvimento social, traduzidas na implantação de diversos programas e
ações de transferência de renda, segurança alimentar e nutricional, assistência social e
inclusão produtiva, criados a partir daquele momento (SOUSA, 2006).
Os Programas sociais definidos pelo governo federal são motivados pela missão
central do MDS que consiste em promover a inclusão social e a emancipação das famílias
brasileiras, com vistas à erradicação da fome e da miséria por meio de políticas públicas de
proteção e promoção social (MDS, 2007). De acordo com o Ministério (2013), cerca de 60
milhões de pessoas são beneficiadas por seus programas, demonstrando, desse modo, a grande
cobertura de serviços e a dimensão da atual rede de proteção social nacional, especialmente da
região nordeste e norte.
Para dar conta desse desafio institucional, o MDS foi estruturado em diversas
secretarias que exercem o papel de execução, avaliação e articulação institucional
respectivamente, responsáveis pela gestão dos programas sociais assumidos pelo governo
federal. O desenho organizacional do MDS contempla a seguinte estrutura: a Secretaria
Nacional de Renda de Cidadania (SENARC), a Secretaria Nacional de Assistência Social
(SNAS) e a Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SESAN), formando,
assim, um conjunto de órgãos responsáveis pela execução das macro políticas e programas
sociais do país. O Ministério conta, ainda, com outras duas Secretarias: a Secretaria de
Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) e a Secretaria Extraordinária para a superação da
Extrema Pobreza (SESEP).
Dentro da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC) nasce, em 2003, o
Programa Bolsa Família (PBF), representando, assim, um dos maiores desafios do governo
federal orientado em alcançar os objetivos estratégicos de combater a pobreza, potencializar a
inclusão social e promover/estimular o desenvolvimento socioeconômico/socioterritorial. O
PBF assume, portanto, grande destaque por ser considerado um programa de transferência
direta de renda com condicionalidades cujo objetivo fundamental era beneficiar famílias em
situação de extrema pobreza. Por essas razões, é considerado por muitos autores como o
principal programa de transferência de renda do Brasil chegando a beneficiar, até fevereiro de
2015, cerca de 14 milhões de famílias com um investimento realizado de, aproximadamente,
R$ 2 bilhões ao ano (MDS, 2015).
A partir do governo Dilma, 2011, esta política passou a integrar o “Plano Brasil Sem
Miséria (BSM)” que tem como meta incluir 16 milhões de famílias brasileiras com renda
familiar per capita inferior a R$ 70 mensais. As novas metas do PBF estão fundamentadas
nos seguintes objetivos estratégicos: garantia de renda, inclusão produtiva e o acesso aos
serviços públicos (BRASIL, 2013). Para alcançar esse objetivo, o governo definiu como
diretrizes fundamentais a articulação de três dimensões essenciais à superação da pobreza: (a)
a promoção do alívio imediato da pobreza, por meio da transferência direta de renda à família;
2
(b) o reforço ao exercício de direitos sociais básicos nas áreas de Saúde e Educação, por meio
dos cumprimentos das condicionalidades; e (c) a coordenação de programas complementares
oferecidos pelos municípios tais como: programas de geração de trabalho e renda,
alfabetização de adultos e jovens, incentivo ao microcrédito produtivo, fornecimento de
registro civil e demais documentos.
O PBF atende famílias em todo território nacional, de acordo com o perfil e tipos de
benefícios: básico, variável, variável vinculado ao adolescente (BVJ), variável gestante
(BVG) e variável nutriz (BVN) e o Benefício para Superação da Extrema Pobreza (BSP). Os
valores dos benefícios pagos pelo PBF variam de acordo com as características de cada
família, considerando a renda mensal familiar por pessoa, o número de crianças e
adolescentes de até 17 anos, de gestantes, nutrizes e de componentes da família (BRASIL,
2013).
É importante destacar que o Programa em análise emerge em um contexto
socioeconômico mais amplo, marcado pela miséria, pobreza e desigualdade social. Fenômeno
que se manifesta tanto nos países capitalistas desenvolvidos, como também assume efeitos
ainda mais perversos nas nações consideradas em desenvolvimento que, além de refletir as
consequências negativas advindas de um ambiente econômico permeado por um alto nível de
desemprego e baixo rendimento proveniente do trabalho, tem que enfrentar os problemas
advindos do crescimento da violência e da criminalidade.
Desta maneira, os padrões de gestão que tem orientado tal política no Brasil têm como
base a descentralização financeira, administrativa e técnica, compartilhada pela União,
Estados, Distrito Federal e Municípios. Segundo os padrões federativos que orientam o
ordenamento jurídico brasileiro, os três entes federados deverão trabalhar em conjunto, de
forma integrada, para aperfeiçoar, ampliar e fiscalizar a execução do PBF. Apesar da União e
Estados terem papel relevante nesse arranjo institucional, a Constituição Federal preservou
um espaço de maior destaque para os municípios, por ser o ente mais próximo dos cidadãos.
Aos municípios cabe, portanto, a responsabilidade direta pela gestão e gerência do Programa,
tendo nos instrumentos de acompanhamento e avaliação das famílias e atendimento das
condicionalidades fundamentais (políticas de saúde e educação) a base fundamental de gestão
da política e as bases do investimento em capital humano.
Sendo assim, os principais deveres dos entes federativos para a execução do PBF estão
dispostos no quadro 1.
Federal § Alocar recursos;
§ Regular a política;
§ Avaliar os programas sociais.
Estadual § Articulação de programas complementares;
§ Monitorar e orientar os municípios para melhorar a gestão do Programa Bolsa
Família.

Municipal § Assumir a interlocução política entre a prefeitura, o MDS e o Estado para a


implementação do PBF e do Cad Único;
§ Articulação e coordenação entre as áreas envolvidas do Programa
(Assistência Social, Educação e Saúde) para o acompanhamento dos
beneficiários;
§ Coordenar a execução dos recursos transferidos pelo governo federal nos
municípios;
§ Implementação de programas complementares ao programa nas áreas de: a)
alfabetização e educação de jovens e adultos; b) capacitação profissional; c)
geração de trabalho e renda; d) acesso ao microcrédito produtivo orientado; e
e) desenvolvimento comunitário e territorial, entre outros.

Quadro 1 – Síntese dos deveres dos entes federativos na execução do PBF


Fonte: Elaboração própria.
3
Dessa maneira, a concepção e implantação da Política Nacional de Transferência de
Renda, é de compartilhamento de responsabilidades da União, Estados e Municípios,
caracterizando-a como uma política multifederativa. A União assume o papel de definir a
alocação de recursos e definir ações de acompanhamento e avaliação, devendo contribuir para
que os estados e, principalmente, os municípios alcancem as metas e os resultados esperados.
Com base neste contexto histórico-analítico, este estudo define como objetivo
analisar os fatores que limitam e potencializam a gestão de programas sociais no Brasil,
tomando como objeto de estudo o Programa Bolsa Família (PBF). Para tanto, serão
tomadas como unidades de análises, municípios brasileiros de quatro importantes estados,
baseando-se na percepção dos gestores responsáveis pelo programa nas esferas subnacionais.

2. Abordagem Teórica
Para fundamentar e contextualizar o estudo foi definido como base teórica discutir
alguns aspectos sobre Avaliação de Políticas Públicas e o Modelo/Padrão de Gestão do
Programa Bolsa Família à Luz da Teoria da Administração Política.

2.1 Uma Aproximação ao Conceito de Administração Política para uma Análise Crítica
e Contextualizada da Gestão do PBF nos Municípios
Para Santos, Ribeiro e Chagas (2009), o ato de administrar se manifesta em duas
dimensões articuladas e integradas: uma seria a dimensão da gestão, definida como a
concepção das formas de condução das relações sociais de produção e distribuição e a outra
seria a dimensão da gerência, definida como a ação, o ato de fazer, a materialização daquilo
que fora concebido no plano da gestão. Os autores fazem distinção entre o significado e
função do ato de pensar e agir administrativos, ressaltando que enquanto a gestão reflete a
capacidade de conceber, de conduzir um dado padrão, conteúdo e sentido ao ato
administrativo, a gerência reflete a execução das práticas administrativas nas organizações.
Com base nessa definição, pode-se inferir que do ponto de vista da concepção da
gestão, o Programa Bolsa Família é um programa de transferência de renda com
condicionalidades que prevê combater o ciclo intergeracional da pobreza, via transferência de
recursos financeiros diretamente aos municípios e beneficiários, bem como objetiva atuar
diretamente na promoção do acesso aos serviços básicos de educação e saúde para as famílias
beneficiadas. Com base nessa definição pode-se concluir que a concepção do programa está
centralizada na esfera federal e sua gerência fica a cargo das municipalidades, contando com o
suporte dos governos estaduais, especialmente no que diz respeito à formação e avaliação. Em
tese esse seria uma concepção interessante na medida em que reflete o que a administração
pública classifica como processo de descentralização da gestão. Entretanto, estudos sobre a
eficácia e efetividade do programa, têm revelado muitas dificuldades na condução (gestão) e
execução (gerência) dessa política, especialmente no que se refere ao papel das
municipalidades. Conforme ressalta Filgueiras (2006), a responsabilidade pela gestão do
Programa no âmbito local é muito diversificada, recaindo sobre organismos diversos, segundo
a estrutura de cada município. O que implica observar que o coordenador do Programa pode
estar situado em uma Secretaria de Assistência Social, em uma cidade, ou no Gabinete do
Prefeito, em outra, ou até mesmo na Secretaria de Educação em outros casos. Além disto, há
ocorrências de problemas graves de coordenação dentro do próprio governo municipal, o que
tem repercussões negativas para a qualidade e efetividade da gestão local do PBF.
2.2 Avaliação de Políticas Públicas
A literatura sobre avaliação revela um caráter aplicado e prático, na medida em que o
objeto de estudo são os programas e as políticas públicas. De acordo com Ballart (1996),
diferentemente do setor privado que tem variáveis e indicadores mais objetivos para valorar
4
suas ações baseadas em critérios objetivos de avaliação do custo-benefício para valorar as
atividades desempenhadas pelo setor publico torna-se mais difícil e complexo devido a
inexistência de critérios claros e amplamente aceitos sobre como fundamentar a avaliação as
ações do Estado considerando um número grande de variáveis e indicadores subjetivos.
Adiciona-se a isso, o fato de que as instituições públicas possuem e se relacionam com
diversos atores, os chamados Stakeholders, definidos como os membros de um grupo que é
afetado, de forma clara pela política e que, portanto, pode ser mobilizado pelas conclusões de
uma avaliação (WEISS, 1983).
Mas apesar desses desafios, a consolidação da democracia no país tem exigido o
investimento continuado em políticas públicas dirigidas para o fortalecimento da “função
avaliação”. Esse esforço tem sido justificado pela necessidade de investir na “modernização”
da gestão governamental, especialmente em um contexto onde se busca uma maior
dinamização (racionalização) e legitimação da concepção da Reforma do Estado (FARIA,
2005).
Mas é importante ressaltar que, desde a década de 1960, observa-se a utilização de
instrumentos de avaliação na gestão governamental, especialmente nos países desenvolvidos
(SCRIVEN, 1972; WEISS, 1983 e SCHNEIDER, 1986). Entretanto, o fortalecimento desse
campo ganhou maior expressividade a partir das décadas de 1970 e 1980 e, principalmente, de
1990. Momentos onde a avaliação de políticas e programas governamentais passou a
desempenhar papel importante no planejamento e gestão de políticas públicas. Conforme
destaca Calmon (1999), alguns fatores contribuíram para aumentar a demanda por ações
avaliativas e dentre eles destaca os seguintes: crescimento vertiginoso das agências
multilaterais em programas governamentais, dirigidos para apoiar os países em
desenvolvimento a superar a crise socioeconômica e política e a preocupação com os
resultados dos gastos públicos.
Nesse sentido, a liberação dos recursos passa a estar diretamente condicionada ao
controle das metas e resultados dos investimentos feitos. E para alcançar esses objetivos as
referidas agências foram definindo, progressivamente, algumas condicionalidades para a
liberação dos recursos, demandando, pois, o cumprimento de metas, indicadores e índices
específicos de eficácia, eficiência e, mais recentemente, de efetividade dos programas
contratados (CALMON, 1999; THOENIG, 2000 e FARIA, 2005).
Outro fator relevante apontado na literatura sobre o tema foi à necessidade de avaliar
programas públicos diante do aprofundamento da crise fiscal, da escassez de recursos do setor
público e da imprescindível intervenção governamental para atender à população mais
necessitada, base fundamental da chamada Reforma do Estado, especialmente em contextos
sociais de consolidação da democracia, como é o caso de muitos países latino-americanos.
(COTTA, 1998; COSTA e CASTANHAR, 2003; CANO, 2004).
Esta reforma, chamada também de reforma gerencial do Estado, visava aumentar a
eficiência e melhorar os resultados da administração pública, melhorar a qualidade das
decisões estratégicas do governo e assegurar o caráter democrático da administração pública.
Conforme destacado por Bresser-Pereira e Spink (1998), os princípios norteadores desse
movimento reformista foram os seguintes: desburocratização, descentralização, transparência,
accountability, ética, profissionalismo, competitividade e enfoque no cidadão. Mas com base
no texto Administração Política brasileira de Santos e Ribeiro (2011) observa-se que emerge
nesse contexto mudanças radicais no que se refere à concepção (gestão) do Projeto de Nação,
tendo em vista que a predominância da reforma ficou mais concentrada nos aspectos
gerenciais (vinculados é execução da administração) do que nos interesses vinculados às
funções e alcance da finalidade do Estado.

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Dentre os movimentos de descentralização ou desconcentração ocorridos a partir desse
momento, constata-se um esforço no processo de institucionalização da participação social na
gestão pública, através da formalização de diversos Conselhos de Políticas Públicas,
Audiências Públicas e outras formas de estímulo a integração da sociedade civil nas políticas
públicas, especialmente no planejamento e gestão local.
O aumento da participação social exigiu, progressivamente, a integração de
indicadores de resultados, transparência, racionalidade decisória e eficiência alocativa, o que
demandou esforços por parte do governo e da sociedade para avaliar os investimentos
realizados (COTTA, 1998; CALMON, 1999 e CANO, 2004).
A literatura corrente evidencia que existem diversas e variadas definições sobre o
conceito de Avaliação de Políticas Públicas correspondentes, naturalmente, as concepções de
políticas públicas. Essa amplitude revela, pois, a grande complexidade desse campo de
análise e explica o esforço de diversas correntes da Ciência Política com ênfase nos estudos
da Administração Pública e também dos estudos críticos da Administração, especialmente da
teoria da Administração Política, revelando, assim, interações e percepções ideológicas
distintas sobre os fenômenos que envolvem o planejamento e a gestão publica.
Baseado na leitura de alguns estudos sobre o tema pode-se observar, pois, que não há
consenso quanto à definição de avaliação. O que implica afirmar que esse conceito admite
múltiplas definições.
Schneider (1986) introduz uma perspectiva nessa discussão ao justificar que a
avaliação de políticas públicas tem origem em várias disciplinas o que implica a integração de
ponto de vistas diferentes sobre o tema. Para a autora, essa evolução sobre o conceito e
práticas de avaliação produziu, portanto, uma massa confusa de “tipos” de avaliação ao invés
de um quadro referencial coerente.
No mesmo sentido, Ballart (1996) defende que a base teórica desenvolvida para
Avaliação de Políticas Públicas é decorrente de outras disciplinas e da acumulação de
experiências em áreas setoriais específicas. Ou seja, afirmar que o campo possui tradições
científicas diversas e seu desenvolvimento procede de experiências em administrações
governamentais, departamentos universitários, institutos, dentre outros. Para o autor, seria um
erro subestimar a importância da teoria de avaliação de programas e as lições das
experiências.
Com base nos conceitos acima destacados e na análise da Administração Política
Brasileira desenvolvida por Santos e Ribeiro (2011), pode-se observar que existem alguns
elementos comuns nas definições identificadas que ajudam na reflexão das práticas avaliativas
que têm sido utilizadas pela gestão governamental brasileira na contemporaneidade. Com
base nessa síntese, definiu-se como conceito balizador desta pesquisa o seguinte conceito: a
avaliação como um processo que busca a produção e análise de informações no intuito de
guiar os tomadores de decisão quanto a gestão e ao desempenho da política pública,
verificando, pois, a necessidade de correções ou mesmo suspensão de uma determinada
política ou programa, visando contribuir para a gestão e uma alocação de recursos mais
eficiente e eficaz, baseado na aplicação de métodos de pesquisa para verificar o alcance dos
resultados.
Nesse sentido, analisar os fatores que limitam e potencializam a gestão de programas
sociais no Brasil tomando como estudo, o Programa Bolsa Família, presente em todos estados
e municípios brasileiros, permite avaliar e refletir sobre a realidade das práticas gestão de
programas sociais no Brasil.

6
3. Procedimentos Metodológicos
Esta seção se divide em 3 partes articuladas, sendo elas: a definição da estratégia
metodológica do estudo, a apresentação dos instrumentos de coleta de dados e o desenho dos
métodos de pesquisa e tratamento dos dados.

3.1 Estratégia Metodológica


A estratégia metodológica adotada para esta pesquisa foi o Estudo de Caso de
natureza, predominantemente, qualitativa, no intuito de interpretar o fenômeno investigado.
Assim, o objeto que esta pesquisa se propõe a investigar é o Programa Bolsa Família com
ênfase na identificação dos fatores limitantes e potencializadores da sua gestão em municípios
brasileiros selecionados. Para Eisenhardt (1989), o estudo de caso como estratégia de pesquisa
enfoca a compreensão da dinâmica dentro de uma configuração, envolvendo numerosos
níveis de análise.
Estudar um programa de grande relevância social como o PBF, considerado o maior
programa de transferência de renda da América Latina como estudo de caso ganha relevância
não apenas para dimensionar o perfil/nível de comprometimento do governo para a melhoria
da gestão governamental, mas, principalmente, para dimensionar como estas ações têm, de
fato, repercutido positivamente junto as subunidades nacionais, de modo a contribuir para
promover transformações substanciais nas práticas das políticas públicas locais. Em síntese,
acredita-se que esta metodologia permitirá uma melhor compreensão da capacidade de gestão
do PBF como instrumento de aprendizagem de práticas inovadoras de gestão pública.

3.2 Instrumentos de coleta de dados e área de estudo


Para a coleta de dados foi utilizada a aplicação de questionários semiestruturados por
ser considerado um instrumento por excelência de investigação social, base metodológica
desta pesquisa. O questionário semiestruturado é um instrumento de coleta de dados em que
as questões (conjunto de perguntas ou medidas) são previamente definidas. Utilizado em uma
variedade de tradições epistemológicas, esse instrumento possui potencial de gerar dados
quantitativos e qualitativos. Justifica-se para a análise das dimensões e critérios estabelecidos,
a priori e a posteriori, para a verificação do objeto em estudo. Desta maneira, foram
utilizados dados secundários para compor a investigação proposta.
Os questionários foram destinados aos gestores municipais de subunidades nacionais,
responsáveis pela gestão e/ou gerência do PBF e foram enviados por meio eletrônico
utilizando o sistema Google Forms no período de outubro de 2014 a janeiro de 2015. Assim,
para os gestores municipais foram elencados quatros estados, sendo que três deles estão entre
o cinco que possuem o maior número de beneficiários do PBF e os que absorvem a maior
quantidade de recursos destinados ao programa. A escolha destes Estados deu-se então em
função da representatividade que o PBF possui, bem como na acessibilidade das informações.
Foi acordado com os sujeitos da pesquisa que não seriam divulgados os nomes, o que
implica que não será possível indicar também o nome dos estados e municípios participante
da pesquisa, já que os participantes poderiam ser facilmente identificados. Portanto, utilizou-
se a seguinte nomenclatura para referenciar os gestores municipais foi utilizada a sigla (GM) e
seus respectivos estados (A, B, C e D).
Para cada um dos estados selecionados, houve uma receptividade diferenciada dos
gestores municipais, mensurada pela taxa de resposta (Tabela 1). Cabe ressaltar que, embora
tenha havido estados com baixa adesão por parte dos gestores municipais do estado D (GM-
D), considera-se relevante sua inserção nos resultados da pesquisa, visto que no quantitativo
de respostas (N), superou outros dois estados avaliados. Ressalta-se que a importante

7
participação deste estado se deve ao fato do grande escopo territorial e do alto número de
municípios que possui.

Tabela 1 – Taxa de respostas dos gestores estaduais e municipais, sujeitos da pesquisa


Gestor Municipal Tx resposta (%)
GM - A 17,0
GM - B 12,0
GM - C 8,2
GM - D 4,8
Fonte: Elaboração própria.

3.3 Métodos de pesquisa e tratamento dos dados


Por se tratar de uma pesquisa quanti-qualitativa, os métodos de pesquisa
compreendidos foram: a Análise Exploratória de Dados (AED) e a Análise de Conteúdo.

3.3.1 Análise Exploratória de Dados (AED)


Inicialmente, foi realizada a Análise Exploratória de Dados (AED) que visa
compreender, descrever e resumir o comportamento do conjunto de dados com o objetivo de
conhecer suas características importantes. A AED permite ao pesquisador a identificar
quaisquer características notáveis, especialmente àquelas que possam afetar fortemente os
resultados e conclusões (HAIR et. al 2005; TRIOLA, 2005). A importância da AED está
associada à necessidade de se conhecer o comportamento do conjunto de dados. Por isso, é
composta, em geral, pela análise de frequência e medidas de tendência central, posição e
dispersão e variabilidade como média, desvio-padrão, coeficiente de variação, amplitude e
assimetria, que visam verificar como os dados estão distribuídos e concentrados. Através da
análise, é possível obter relevantes informações para o estudo em questão que serão
explicitadas no capítulo dedicado a apresentação dos resultados e discussão do estudo.

3.3.2 Análise de Conteúdo


A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando
obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,
indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às
condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (BARDIN, 1977).
Segundo esta autora, a análise de conteúdo possui três momentos: A pré-análise, a
exploração dos materiais e posteriormente o tratamento dos dados.
Na Pré-análise, determina-se os documentos que constituirão o "corpus" a ser
analisado. No presente estudo foram as questões de livre resposta do questionário
semiestruturado elaborado. No segundo momento houve a exploração do material, onde
procedeu-se a codificação e à categorização utilizando critério semântico, construindo, desta
forma, categorias temáticas adequadas à investigação proposta. E posteriormente, ocorreu o
tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Esta é a fase da reflexão, da intuição,
com embasamento nos materiais empíricos. Confronto entre o conhecimento acumulado e o
adquirido.
A análise de conteúdo realizada nesse estudo foi por categorias temáticas e não pelo
método de dedução frequencial. Portanto, houve a codificação das informações, que
“corresponde a uma transformação dos dados originais do texto em categorias de análise,

8
permitindo atingir uma representação do conteúdo, ou da expressão, suscetível de esclarecer o
analista acerca das características do texto” (BARDIN, 1977).
Franco (2008) aponta que a definição das categorias, na maioria dos casos, implica
constantes idas e vindas entre a teoria e material de análise e pressupõe a elaboração de várias
versões do sistema categórico. O que ocorreu na presente pesquisa. Desta maneira, buscou
analisar os fatores limitantes e potencializadores no âmbito das práticas de gestão do
programa, por meio das questões de livre repostas dadas pelos gestores, e a partir daí, foram
criadas as categorias de análise conjuntamente com algumas outras categorias criadas com o
apoio da literatura. Nesse caso, as categorias foram definidas de forma mista, ou seja, havia
algumas categorias elencadas, porém no decorrer da coleta e análise dos dados, estas sofreram
algumas alterações, assim como houve inserção de outras.
Sendo assim, o objetivo da análise de conteúdo foi “compreender criticamente o
sentido das comunicações, seu conteúdo, as significações explícitas ou ocultas” (MOZZATO
e GRZYBOVSKI, 2011), emitidas pelos gestores do programa em estudo.

4. Resultados e discussão
Participaram da pesquisa gestores municipais de quatro importantes Estados
brasileiros e que trazem à tona questões relevantes sobre a gestão local do PBF. Para todos os
Estados, na primeira parte da apresentação e discussão dos dados, será apresentado o perfil
pessoal e profissional dos gestores municipais respondentes que contemplam os mesmos
aspectos analisados junto aos gestores estaduais referente ao gênero, idade, grau de instrução
formal, tempo de experiência profissional, tempo de experiência com o PBF, bem como carga
horária de trabalho, tipo de vínculo empregatício e remuneração. A segunda parte focará nos
principais achados da pesquisa que permitem inferir os fatores limitadores e potencializadores
da gestão de programas sociais no Brasil, tomando como objeto o PBF.

4.1 Perfil pessoal e profissional dos Gestores Municipais


Um dado relevante observado dos perfis de gestores municipais é o predomínio de
gestoras mulheres que representaram em torno de 53,9% em relação ao numero total de
sujeitos pesquisados. Deste indicador, essa predominância é ainda maior nos estados e
municípios de B (GM-B) e D (GM-D).

Tabela 2 – Gênero
Sexo (%) GM – A GM – B GM - C GM - D
Feminino 49,3 60,0 33,3 73,2
Masculino 50,7 40,0 66,7 26,8
Fonte: Elaboração própria com base nos resultados da pesquisa.

No que se refere ao perfil do grau de instrução formal do conjunto de atores


pesquisados, os achados revelam que os dados indicam que muitos têm nível superior
completo, alguns inclusive com nível de pós-graduação. No caso dos gestores municipais dos
estados B e D também apresentam altas porcentagens de profissionais com nível de graduação
e especialização. Enquanto os gestores municipais dos estados GM-D, GM-A e GM-C
apresentaram níveis baixos de instrução formal, revelando alta porcentagem que tem apenas o
segundo grau (Tabela 3).

Tabela 3 – Grau de instrução formal


Instrução (%) GM – A GM – B GM – C GM - D

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Segundo grau 31,0 10,0 20,0 24,4
Ensino técnico 4,2 6,7 2,4
Cursando tecnologia 10,0 4,9
Superior incompleto 9,9
Cursando graduação 9,9 10,0 13,3
Graduação 33,8 40,0 40,0 56,1
Especialização 11,3 30,0 20,0 12,2
Fonte: Elaboração própria com base nos resultados da pesquisa.

Em relação ao tipo de vínculo empregatício (Tabela 4), a maioria dos gestores


municipais, a exceção de GM-A, se encontram na situação de cargos de provimento em
comissão, sendo os gestores municipais do estado B os que apresentam o maior indicador
neste quesito.

Tabela 4 – Tipo de vínculo empregatício


Vínculo empregatício (%) GM - A GM - B GM - C GM - D
Cargos de provimento em comissão 35,2 60,0 40,0 43,9
Efetivo por concurso 36,6 30,0 33,3 34,1
Contrato temporário 21,1 10,0 13,3 19,5
Efetivo sem concurso 1,4 6,7 2,4
Efetivo concursado deslocado para cargo comissionado 1,4 6,7
Outros (3 nomeações) 4,2
Fonte Elaboração própria com base nos resultados da pesquisa

Em relação à carga horária de trabalho semanal é predominante a faixa de 20 a 40 h., o


que pode ser explicado, conforme depoimentos de muitos gestores, pelos baixos salários e a
possibilidade de que os gestores estejam acumulando outras funções concomitantes às
atribuições do PBF, o que de algum modo prejudica o processo de gestão e limita o processo
necessário. Alguns gestores declararam trabalhar mais de 40h, apontando para uma possível
sobrecarga de afazeres com a gestão do programa, fato pode ser avaliado como um aspecto
negativo, visto que essa situação pode levar a uma condição de exaustão dos profissionais e
afetar o desempenho nas atividades do PBF (Tabela 5).

Tabela 5 – Carga horária de trabalho semanal


Carga horária (%) GM - A GM - B GM - C GM - D
Menos de 20h. 1,4
De 20 a 40h. 74,6 70,0 86,7 73,2
Mais de 40h. 23,9 30,0 13,3 26,8
Fonte: Resultados da pesquisa.

No que se refere à idade média dos gestores municipais selecionados, observa-se a


seguinte variação: a maior média foi encontrada nos gestores do GM-D (38,4 anos) e a menor
nos gestores do GM-C (33,5). Ao analisar esses dados foi possível identificar que a maior
média de idade pode estar relacionada à alta taxa de experiência profissional. GM-A e GM-D
possuem as maiores médias em tempo de experiência profissional. Assim como foi possível
identificar que (GM-D) que indica gestores com baixa experiência profissional na gestão do
PBF denotando, desse modo, afirmações que confirmam essa análise nas questões de livre

10
resposta, que apontam para a rotatividade de pessoal no cargo de gestor/coordenador do
programa (Tabela 6).

Tabela 6 – Variáveis descritivas que compõem o estudo comparativo


Variáveis (Média) GM – A GM - B GM - C GM - D
Idade 34,7 35,5 33,5 38,4
Tempo de experiência profissional (em anos) 8,5 5,9 7,5 7,7
Tempo de trabalho com o Programa Bolsa Família (em anos) 5,1 4,4 5,1 3,4
Remuneração média (R$) 1.654,93 2.154,00 1.563,47 2.102,26
Número de pessoas que compõem a equipe do PBF em seu 6,3 9,2 9,0 4,3
município/Estado
População 29.380 116.408 27.426 33.743
Fonte: Resultados da pesquisa.

Outra observação importante com base em uma análise comparativa dos dados é a
disparidade de pessoal nas equipes locais do PBF, onde é possível intensificar que enquanto
alguns tem equipe pequenas (com média de 4 até 9 pessoas), outros registram um numero
maior de quadros. Essa disparidade é ainda mais relevante na comparação entre o número de
equipe dos municípios e dos estados (média de 7,2), indicador que pode ser justificado tanto
pelo número maior de deveres e atribuições constitucionais assumidas pelos municípios em
relação aos estados na execução do programa, como também pode ser explicado pelo fato de
que compõem a amostragem da pesquisa municípios com alta população e maior número de
beneficiários atendidos.
Comparando a média salarial, os dados revelam que os gestores municipais dos
estados GM-C e GM-A possuem os menores salários entre os estados pesquisados. Pode ser
ressaltada, ainda, sobre esse tema, a considerável disparidade salarial entre os gestores
municipais. Podem estar relacionados a dimensão territorial de atuação, assim como
municípios que podem estar atribuindo maior expressão política e administrativa a estes
cargos. A média de população dos municípios possui pouca variação, a exceção de GM-B
que possui alta média entre os municípios (116.408).

4.2 Fatores limitadores e potencializadores da gestão do Programa Bolsa Família


Os principais resultados apontam que os fatores limitadores estão relacionados a
aspectos desde o planejamento e execução do programa, aos recursos humanos, as condições
de trabalho e infraestrutura, assim como integração e coordenação com outras áreas
relacionadas à política/programa.
Nesse sentido, a partir da análise de conteúdo realizada foi possível categorizar a partir
da livre resposta dos gestores que os principais fatores limitadores e potencializadores da
gestão do PBF estão relacionados aos seguintes aspectos:

Profissionalização da gestão
Foi declarado por grande parte dos gestores, a falta de profissionalização e o alto
contingente de servidores nas funções técnicas, especialmente para atender as demandas da
gestão compartilhada entre Estados e Municípios. Isso pôde ser observado em alguns trechos
declarados pelos gestores:
“Há falta de valorização profissional das pessoas que estão na rede e nos
profissionais do CadÚnico e o Bolsa Família, onde não existe concurso e salários baixos”
(GM-C);

11
“as questões de governantes e troca de titulares na prefeitura e Secretaria de
Assistência social” dificultam a gestão do programa e “devido à falta de equipe ficamos
impossibilitados de promover ações para um bom funcionamento do programa” (GM-B);
O gestor “correr o risco de quando houver mudança na gestão [...] vir a ser posto
para fora (demitido) sem motivo aparente, pelo simples fato de não estabilidade profissional”
(GM-A);
“Há necessidade de [...] se possível, poder efetivar funcionários locais pelo MDS
para não virar essa bagunça em troca de gestores do Poder Executivo” (GM-A);
“alta rotatividade da equipe que se solucionaria através de concurso público” (GM-
D).
Além do mais, os dados sobre vínculo empregatício e nível de instrução indicaram
esses aspectos pelo alto número de gestores em cargos de provimento em comissão, assim
como nos baixos níveis de instrução visualizados.
Um aspecto destacado pelos gestores foi o número de servidores públicos destinado
à gestão do programa, conforme mencionado por alguns gestores: “trabalho cansativo e
diversas responsabilidades em relação à função que desempenha” (GM-A) e a “dificuldade
em implementar ações que não sejam o acompanhamento e convocação das famílias
cadastradas para atualizações cadastrais” (GM-D) em função do número de funcionários.

Política continuada de capacitação e formação da equipe de trabalho


Outro fator está relacionado à capacitação e formação da equipe de trabalho. Há uma
sinalização do incentivo federal nesse aspecto, porém observam-se limitações técnicas e
financeiras no nível local para a continuidade de ações de capacitação e formação, como
observadas nas considerações abaixo:
“há incentivo a capacitação dos profissionais que realizam o CadÚnico e PBF,
visando qualificação da informação, participação em seminários relacionados à gestão do
programa” (GM-D);
“o próprio MDS nos disponibiliza aprendizado com cursos: presencial, online e
informes sempre” (GM-C);
“poucas capacitações são oferecidas para aprimorar os conhecimentos dos gestores e
técnicos do programa no município” (GM-B);
“Capacitar a equipe, considerando a demanda local que temos na realização das
atividades de gestão do PBF e CadÚnico, tem sido desafiante. Outra questão é o estímulo ao
estudo individualizado de cada membro da equipe, para complementar a capacitação de
rotina no setor” (GM-A).
No âmbito das capacitações e formação, há queixas em relação à capacitação para o
uso dos sistemas de informação do MDS, conforme destacadas abaixo.

Sistemas de Informação e Gestão do programa


Quando mencionadas em relação aos Sistemas de Informação e Gestão do programa,
foi possível perceber limitações no acesso e utilização destes, bem como na relação entre os
responsáveis para a operacionalização dos sistemas. Abaixo a descrição das considerações de
alguns gestores municipais:
“Nossa dificuldade é a falta de capacitação presencial dos sistemas: Bolsa Família na
saúde: SISVAN (dificuldade até de comunicação para eliminação de dúvidas e orientação);
SIGPBF; SAGI; acredito que antes de lançar um sistema ou de reformulá-lo deveria haver a
iniciativa de antecipar a capacitação” (GM-A);
“Há falta de computadores com internet compatível para realizar a
operacionalização dos sistemas” (GM-A);
12
“inconsistências do Sistema de Benefícios ao Cidadão (SIBEC), o que ocasiona
problemas e interrupção do benefício das famílias” (GM-A);
“problemas existentes no sistema de cadastramento e de benefícios” (GM-D).
“O MDS deveria organizar, conectar e unificar sistemas para quem trabalha na ponta
diretamente com o usuário” (GM-A);

Cabe mencionar algumas referências em relação ao sistema da Caixa Econômica


Federal (CEF), responsável pela gestão dos benefícios em território nacional, como descrito
abaixo:
“o relacionamento da gestão municipal com a agente operadora financeira do
programa, caixa econômica, que em muitos casos realiza através de sistemas,
cancelamentos indevidos nos benefícios de algumas famílias e demoram muito pra
resolver o problema deveria dar uma assistência maior aos gestores principalmente
pela parte da caixa” (GM-C).

Outro gestor aponta, “há dificuldade em gerir o sistema e as informações da Caixa,


assim como em estabelecer contato com a CEF ” (GM-A).
“o contato com a CEF, esse órgão apesar de ser um dos principais articuladores, tem
se mostrado incapaz e muito frágil no apoio às gestões municipais” (GM-B).

Experiência com a utilização de banco de dados e análise de indicadores de gestão e


avaliação
Um fator destacado e que está estritamente relacionado aos Sistemas de Informação e
Gestão, é a utilização de banco de dados e análise de indicadores de gestão e avaliação. Os
sistemas de Avaliação e Gestão da Informação do MDS são considerados por muitos autores
como instrumentos inovadores na gestão governamental brasileira. Assim, foi possível
observar limitações na utilização destes em âmbito local. Contudo, as considerações apontam
para uma boa utilização destes, cabendo apresentar algumas considerações dos gestores:
“[...] o acompanhamento dos dados disponibilizados pelo MDS através do SAGI e de
outros portais são utilizados para discutirmos ações concretas no município que possam
alcançar o público e assim efetivar as políticas publicas de renda, cidadania, emprego, saúde
e educação” (GM-D);
“a partir das avaliações é proporcionado melhor desempenho para a estratégica de
trabalho, em que podem ser identificados os pontos fortes e fracos do programa em seu
município” (GM-B);
“os dados obtidos são utilizados para o gerenciamento das ações do CadÚnico/Bolsa
Família principalmente para a realização da busca ativa de família em vulnerabilidade
socioeconômica e acompanhamento das condicionalidades” (GM-C);
“através dos dados do cadastramento único para programas sociais foi possível
identificar e mapear as principais vulnerabilidades sociais e econômicas e possíveis riscos
sociais por bairro, localidade rural, distrito (...) e, a partir (re)pensar e (re)construir
políticas sociais de intervenção no município” (GM-A);
Um gestor afirmou que possibilita a “verificação de falhas, onde elas estão se dando e
o repasse ao setor competente para que sejam corrigidas as distorções”; levantamento e
execução de demandas; (GM-C).
Há municípios que utilizam para implementar ações locais, conforme apresentado pelo
gestor: “utilizamos as informações para elaboração de projetos e ações que possam resolver
ou melhorar a situação indicada, visita familiar, busca ativa, grupos do CRAS, mercado de
trabalho, educação, saúde e etc” (GM-D).
Outro reforça o caráter publico das informações:
13
“Publicizar a lista de beneficiários deu maior credibilidade ao Programa, o filtro
permitiu um planejamento mais exato e abrangente, tanto ao público, quanto ao
território. Quantitativo de tópicos permitindo maior debate e possibilitam
estratégias específicas particularizadas. Chamou a responsabilidade para os entes
responsáveis para a gestão do PBF: Saúde, Educação e Desenvolvimento Social,
fazendo com que a Gestão Municipal tenha maior interesse no investimento em
ações, programas e projetos municipais” (GM-D).

Articulação, integração e coordenação entre as esferas de governo na gestão do programa.


O PBF demanda uma ação conjunta de várias áreas que envolvem políticas sociais,
nesse sentido essa questão foi muito citada devida sua importância. Observou limitações por
parte de algumas municipalidades nesse bojo, contudo foi possível perceber bom
entrosamento e ações das diversas áreas vinculadas ao programa, como apresentado por
alguns gestores abaixo:

“nós trabalhamos com vários projetos: atualização cadastral constante; capacitação


de profissionais que realizam o CadÚnico visando qualificação da informação; -
acompanhamento Familiar das famílias em descumprimento de condicionalidades
em conjunto com CRAS e CREAS; projeto de qualificação profissional para
beneficiários do PBF...” (GM-D);

Outro profissional declara “há interlocução com as outras secretarias: Educação e


Saúde fazendo reuniões e discussões, ao qual analisa os resultados e propõem estratégias que
melhorem o programa no município” (GM-D);
Um gestor do GM-C afirma que “trabalho é realizado de forma intersetorial, com a
participação das áreas de assistência social, de saúde e de educação, sobretudo para a
gestão das condicionalidades e o acompanhamento familiar, também realizamos diagnóstico,
com a participação das áreas envolvidas na gestão” (GM-B);
Há destaque para integração das áreas relacionadas ao programa como aponta um
gestor: “a maior interação entre Coordenação do Programa e o Centro de Referências de
Assistência Social (CRAS)iii e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social
(CREAS)iv, tem tido grande resultado de pesquisa de campo e acompanhamentos das famílias
cadastradas no programa” (GM-B);
“através de reuniões com a Gestão do Bolsa Família da Educação e da Saúde,
traçam metas visando alcançar os objetivos de atendimento às condicionalidades, previstos
pelo MDS” (GM-B);
Alguns gestores apontaram para a necessidade de “uma melhor aproximação dos
principais atores que compõe as aéreas do Programa Bolsa Família” (GM-A), e
“intersetorialidade com as Secretarias de Saúde e Educação para o melhoramento das
atividades” (GM-C). Também apontaram que “os conhecimentos relacionados ao Programa
Bolsa Família ainda estão muito voltados para a assistência social, enquanto que a educação
e saúde ficam em segundo plano” (GM-C).

Infraestrutura administrativa das secretarias municipais


Nesse quesito, há uma série de considerações que vão desde condições de trabalho,
questões políticas gerando rotatividade e mudanças dos gestores do programa, assim como
autonomia do gestor local, infraestrutura local e a capacidade de comunicação
intergovernamental.
Há citações das dificuldades com “o deslocamento para atender as famílias, pois são
locais muitos distantes” (GM-C), principalmente de municípios com zona rural e área
geográfica extensa.
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Há declarações de “falta de autonomia do gestor para com a coordenação do
programa, limitada, cada vez mais, pelas esferas maiores do programa” (GM-A). Assim
como “alta rotatividade da equipe que se solucionaria através de concurso público” (GM-
D);
Sobre infraestrutura local e de gestão, há dificuldades como as sintetizadas nessa
colocação de um gestor:

“Falta de computadores com internet compatível para realizar a operacionalização


dos sistemas, como também a necessidade de transportes para as visitas, dificuldade
no recebimento de diárias para as viagens realizadas em atividades em outros
municípios e capacitações solicitadas pelo Estado entre outras demais atividades
realizadas dentro e fora do município...” (GM-A);

Também há menção sbre as condições municipais de financiamento das capacitações:


“as maiores dificuldades em que passamos é que muita vezes não conseguimos ir às
capacitações devido às diárias e passagens que não são liberadas pela gestão do município”
(GM-A).
Estes quesitos foram apontados como os fatores limitadores e potencializados da
gestão do PBF nos municípios Brasileiros.

5. Considerações finais
Compreendendo melhor o universo pesquisado junto aos gestores municipais do
Programa Bolsa Família nos estados selecionados, pode-se observar grande diversidade na
percepção destes sobre o tema objeto da pesquisa, assim como na manifestação de interesse
em participar da pesquisa, fatos que acabou tendo um reflexo na qualidade das respostas aos
questionamentos. Esse perfil possibilitou perceber que existem muitos profissionais que
coordenam o PBF junto aos municípios que tem baixo nível de instrução formal, revelando,
pois, níveis educacionais baixos (fundamental e médio/incompletos). Esta realidade é
comprovada também pela baixa qualidade de algumas respostas, revelando, não apenas
desinteresse no tema como muitos erros gramaticais, sintaxe e concordância, expressos em
frases incompletas e algumas sem qualquer sentido.
Mas dentro desse universo, existem muitos gestores que revelam ter um bom nível de
compreensão, entendimento e interesse sobre os temas tratados, expresso em respostas
qualificadas, demonstrando, assim, que são gestores com melhor qualificação (nível
superior/incompleto). Esse grupo de respondentes revelou predisposição para compreender as
complexidades que envolvem o processo de gestão do PBF.
Os principais resultados apontam que os fatores limitadores estão relacionados a
aspectos desde o planejamento e execução do programa, recursos humanos, condições de
trabalho e infraestrutura, como integração e coordenação com outras áreas relacionadas à
política/programa.
Assim, os principais achados da pesquisa que permitem inferir que os fatores
limitadores e potencializadores da gestão de programas sociais no Brasil estão relacionados
aos seguintes aspectos: profissionalização da gestão; contingente de servidores nas funções
técnicas, especialmente para atender as demandas da gestão compartilhada entre estados e
municípios; baixo nível de comunicação intergovernamental; política continuada de
capacitação e formação da equipe de trabalho; experiência com a utilização de banco de dados
e análise de indicadores de gestão e avaliação; infraestrutura administrativa das secretarias
estaduais e municipais; número de servidores públicos; e articulação, integração e
coordenação entre as esferas de governo na gestão do programa.

15
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1983, p. 213-245.
i
Os autores agradecem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro.
ii
Entende-se como Política Social um conjunto de programas e ações do Estado com o objetivo de atender às
necessidades e aos direitos sociais que afetam vários dos elementos componentes das condições básicas de vida
da população, até mesmo daqueles que dizem respeito à pobreza e à desigualdade (CASTRO et. al, 2008).
iii
O CRAS atua como a principal porta de entrada do Sistema Único de Assistência Social (Suas), dada sua
capilaridade nos territórios e é responsável pela organização e oferta de serviços da Proteção Social Básica nas
áreas de vulnerabilidade e risco social. Além de ofertar serviços e ações de proteção básica, o Cras possui a
função de gestão territorial da rede de assistência social básica, promovendo a organização e a articulação das
unidades a ele referenciadas e o gerenciamento dos processos nele envolvidos. O principal serviço ofertado pelo
CRAS é o Serviço de Proteção e atendimento Integral à Família (PAIF), cuja execução é obrigatória e exclusiva.
Este consiste em um trabalho de caráter continuado que visa fortalecer a função protetiva das famílias,
prevenindo a ruptura de vínculos, promovendo o acesso e usufruto de direitos e contribuindo para a melhoria da
qualidade de vida (MDS, 2014).
iv
O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) configura-se como uma unidade pública
e estatal, que oferta serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou
violação de direitos (violência física, psicológica, sexual, tráfico de pessoas, cumprimento de medidas
socioeducativas em meio aberto, etc.).

17
QUOVADIS REGULADOR? UMA ANÁLISE DAS TRAJETÓRIAS
PROFISSIONAIS E POLÍTICAS DOS REGULADORES ESTADUAIS
NO BRASIL

Aline de Menezes Santos (EBAPE-FGV)


Yara Silva Duque (EBAPE-FGV)

As agências reguladoras independentes (ARIs) foram instituídas para regular serviços


públicos e setores econômicos e sociais, nas três esferas de governo. Providas de autonomia
decisória, administrativa e financeira, com mandatos fixos para seus dirigentes e não
coincidentes com os do Executivo, possuem uma “identidade” própria a fim de garantir a
independência inerente à atividade da regulação. Partindo da premissa que a qualidade de
regulações depende da qualidade dos reguladores, nesta pesquisa buscaram-se revelar
algumas dimensões importantes relacionadas à autonomia dos reguladores que compõem os
colegiados das ARIs, particularmente seus níveis de expertise e a dinâmica de captura dos
mesmos. Um banco de dados com informações relativas aos reguladores estaduais foi
construído e sua análise, de natureza descritiva, indica que a expertise difere de acordo com a
região do país e o tipo de agência reguladora, sendo menor na região norte e maior na região
sudeste, onde também predominam agências mais especializadas unissetorial ou bissetorial,
ao invés de multisetorial. Quando os dados são olhados a partir das teorias de captura,
verifica-se que as reconduções acontecem independente de corrente partidária, indicando a
solidez do modelo regulatório brasileiro.
Palavras-Chave: regulação, agência reguladora, expertise, autonomia.
1. Introdução
A consolidação do papel regulador do Estado foi acompanhada pela criação de agências
especializadas que desempenham um papel regulador sobre empresas privadas em setores
variados incluindo energia, água, telecomunicações, indústria farmacêutica, entre outros, em
vários países do mundo (JORDANA & LEVI-FAUR, 2005). O modelo de agência reguladora
independente (ARI) é resgatado neste novo contexto do papel regulador do Estado, baseado
na credibilidade e garantia de contratos de longo prazo, em um contexto pós-privatização.
Inspirado pela experiência internacional, agências reguladoras federais foram criados
como entidades públicas dotadas de autonomia em relação ao Poder Executivo, a fim de
regular os serviços públicos e os sectores económicos considerados estratégicos para o Brasil.
Em 1997, a primeira agência foi criada - Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) - de
acordo com o formato internacional estabelecido, provida de autonomia operacional e
financeira, com mandatos fixos e não coincidentes com o Executivo para seus dirigentes, com
uma "identidade" própria a fim de garantir a independência inerente à atividade da regulação.
Desde então, várias agências foram criadas nas três esferas de governo, a fim de regular
diversos setores económicos e sociais (PACHECO, 2003; PECI & CAVALCANTI, 2000).
A maioria das teorias que busca compreender a atuação das ARIs foca, principalmente,
nas razões que influenciaram sua criação, privilegiando seu surgimento como consequência
quase natural do processo de privatização de serviços públicos ou enxergando fortes pressões
miméticas por parte de organismos nacionais e internacionais na adoção desse novo formato
institucional (BEBLAVY, 2002; CHRISTENSEN & LAEGREID, 2005; JORDANA, LEVI-
FAUR & MIRAN, 2011). Teorias de delegação focam principalmente em razões para criar
ARIs, assim como na relação entre a agência (para a qual se delega poder) e seus principais
1  
políticos na fase pós-delegação (GILARDI, 2002, 2007; SHAPIRO, 2002).
Entretanto, boa parte das teorias acima citadas não ajuda a compreender o que, de fato
acontece nas ARIs, uma vez que o processo de delegação tenha ocorrido (SCHREFLER,
2010). Esta pesquisa pretende se afastar de uma orientação normativa acerca das
características desejáveis de um órgão regulador de forma a alcançar uma desejável
autonomia de atuação e busca compreender se, passados mais de 15 anos desde sua criação, a
dinâmica real dos reguladores brasileiros se aproxima desta retórica de independência.
Em outras palavras, nesta pesquisa buscamos compreender algumas dimensões
relacionadas a “real” autonomia dos reguladores brasileiros, partindo da premissa que a
qualidade da regulação depende da qualidade dos reguladores, os principais tomadores de
decisão dentro das agências reguladoras. O ponto de partida é a ideia de que a independência
dos reguladores é baseada em dois aspectos: a expertise/experiência dos reguladores
(tomadores de decisão regulatória), assim como seu “insulamento” das potenciais influencia
de atores políticos como indústria regulada, políticos, ou a própria burocracia regulatória.
Compartilhando a crença de que a expertise e o conhecimento técnico dos reguladores são
fundamentais para assegurar a autonomia e natureza técnica e apolítica do próprio órgão
regulador, as perguntas que orientaram esta pesquisa foram: qual é o perfil da diretoria
nomeada para dirigir as ARIs? De que setor eles são provenientes? Eles comprovam a
relevância dos requisitos de expertise e de conhecimento especializado no momento de sua
indicação? Qual foi o destino do regulador pós-agência? Quais são os indicativos de captura
desse profissional pela indústria regulada ou por outros atores políticos? Quais são os
principais partidos que indicam reguladores e quando acontecem reconduções partidárias ou
interpartidárias? Afinal, quando são analisadas estas dimensões, quando essas dimensões são
analisadas, há condições de observarmos, embora parcialmente, a veracidade da expertise a da
autonomia dos reguladores.
As escassas pesquisas empíricas que compartilham esta orientação empírica foram
realizadas no contexto norte-americano (ECKERT, 1981; SPILLER, 1988) e indicam que
reguladores são premiados com empregos bem-remunerados na própria indústria regulada ou
em seus parceiros e fornecedores, corroborando as teorias de captura regulatória. Em outras
palavras, as ARIs são vistas como entes capturáveis por diversos grupos de interesse, fazendo
valer a perspectiva dominante das teorias de captura.
Este trabalho projeta o avanço na compreensão da “real” autonomia dos reguladores
brasileiros. Para atingir esse objetivo, o artigo procede em sete etapas: primeiramente, são
abordadas as questões de pesquisa e descobertas relacionadas com a expertise e autonomia dos
órgãos reguladores. A segunda parte analisa os conhecimentos teóricos extraídos da literatura
existente sobre os reguladores em ARIs. A terceira seção identifica e descreve indicadores
relacionados com a experiência e conhecimento especializado dos reguladores. Além disso, a
quarta seção descreve a natureza de atuação das ARIs. Os dados sobre a autonomia e
competência dos reguladores são discutidos nas seções a seguir e a seção final conclui
discutindo como a nossa abordagem poderá ser utilizada em futuras pesquisas empíricas.
2. O modelo da Agência Reguladora Independente e suas fontes de legitimidade
2.1 Conhecimento Técnico e Expertise dos Reguladores como fontes legitimadoras das ARIs
Embora a delegação de papel regulador e normativo para agências reguladoras de
natureza independente (ARIs) tenha sido amplamente adotada ao longo dos últimos anos em
vários contextos, nacional e internacional, o debate sobre a legitimidade dessa delegação
permanece válido (JORDANA & LEVI-FAUR, 2005). Teoricamente espera-se que as ARIs
2  
sejam autônomas, ou seja, menos sujeitas a influências de políticos (democraticamente
eleitos) e seus respectivos ministérios (PECI, 2013). Na prática, o conhecimento e a
competência técnica dos reguladores e seus órgãos de atuação são evocados como as
principais fontes de legitimidade que justificam a própria existência desses órgãos
"independentes", menos sujeitos a controles políticos, burocráticos e administrativos. Em
outras palavras, a própria legitimidade das ARIs reside na utilização de competências e
conhecimentos técnicos, como base para a tomada de decisão no campo da regulação
(MAJONE, 1996; SCHREFLER, 2010).
A força dos conhecimentos técnicos e experiência como base do processo de tomada de
decisão regulatória — uma expertise técnica que nem legisladores nem generalistas
burocráticos provavelmente possuem — sempre foi uma fonte importante de legitimidade
para os reguladores (SCHREFLER, 2010; MAJONE, 1999). Para alguns autores, como
Majone (1996), não é a entrega de resultados para a sociedade, mas especificamente o
conhecimento especializado, que justifica as decisões regulatórias, a principal fonte de
legitimidade das agências. Em outras palavras, a legitimidade da regulação não está tão ligada
à eficiência regulatória e sim aos procedimentos e à justificação das escolhas regulatórias,
duas áreas em que o conhecimento tem papel crucial (WEISS, 1979; MAJONE, 1996;
SCHREFLER, 2010). A expertise e o emprego de conhecimentos técnicos têm papel
relevante no desenvolvimento das complexas questões atinentes à regulação. Entretanto, não
há matérias inteiramente distintas da política em seus aspectos técnicos, nem tampouco
escolhas políticas que prescindam de alguma consideração técnica (BINENBOJM &
CYRINO, 2009).
Entretanto, será que estes critérios de conhecimento técnico e expertise – fundamentos
legitimadores da própria “razão de ser” das agências – são observados na prática? Esta será
uma das dimensões que buscará se observar no decorrer da pesquisa empírica realizada neste
trabalho.
2.2 A autonomia dos reguladores questionada na prática: a influência das teorias de captura
Boa parte do debate sobre a autonomia das ARIs permanece teórica. Entre os poucos
trabalhos empíricos que verificaram a trajetória profissional dos dirigentes das ARIs sob a
ótica da captura, buscando compreender se a desejável “autonomia” de manteve na prática,
destacam-se os trabalhos de Eckert (1981) e Spiller (1988). Ambos desenvolveram uma
metodologia para analisar a trajetória de carreira dos reguladores norte-americanos que serviu
de ponto de partida a presente pesquisa.
O inovador estudo de Eckert (1981) demonstra que a trajetória de carreira típica dos
reguladores consiste em uma forte atuação no setor público no período que antecede a direção
da ARI com uma grande probabilidade de alocação posterior, direta ou indiretamente, na
indústria regulada que estava sob sua jurisdição. Durante a pesquisa, o autor observou que o
ex-dirigente tende a ser capturado pelas empresas que regulou. O autor sinaliza as
recompensas que os reguladores poderiam obter na diretoria das ARIs, já que os dirigentes
não recebiam altos salários (a remuneração era fixada por estatuto): havia a expectativa de
empregos bem remunerados no setor privado regulado que superava a perspectiva incerta de
recondução do cargo na diretoria da ARI.
Spiller (1988), a partir de dados coletados anteriormente por Eckert (1981), analisou os
reguladores de três agências reguladoras norte-americanas (ICC – Interstate Commerce
Commission, CAB – Civil Aeronautics Board e FCC – Federal Communications Commission)
a partir de diversas variáveis (idade, duração do mandato, experiência pré e pós-agência,
orçamento discricionário da agência, entre outros) para criar um modelo com capacidade de

3  
estimar a probabilidade de que um regulador atuará na indústria regulada na sequência de seu
mandato na agência, bem como as principais determinantes para este tipo de escolha.
Em alguns casos, os reguladores foram indicados para cargos melhores ou até mesmo
para posições no ministério. Segundo Spiller, essa é uma das formas que os políticos
encontram para recompensar os reguladores que lhes foram fiéis. Ele distinguiu também
arelação direta de trabalho, isto é, um empregado de umaempresa regulada, da relação indireta
que significa a prestação de serviço para a organização regulada, como trabalharparaum
escritório de advocaciaque assessora a indústria em suas demandas jurídicas, por exemplo.
TABELA 1: EMPREGO PRÉ E PÓS ARI:

Fonte: Spiller (1988)

Há conclusões interessantes relativas à análise das 129 trajetórias profissionais


investigadas que foram concatenadas na tabela. Apenas 22 reguladores com origem no setor
público, por exemplo, voltaram a trabalhar em instituições do governo ao final de seus
mandatos. Somente 20 profissionais tinham atuação prévia no setor privado (indústria
regulada), entretanto após o mandato na diretoria da agência, 58 profissionais tiveram as
indústrias reguladas, seus parceiros e fornecedores como novo destino profissional.A
competição entre políticos e grupos de interesse pela influência nas decisões dos burocratas é
narrada como um dos principais problemas da agência no seminal estudo de Spiller. A
hipótese é que grande parte dessas compensações toma a forma de bem-remunerados
empregos pós-agência, direta ou indiretamente relacionados aos setores econômicos
regulados. Em sua análise, trabalhar para empresas reguladas, seus parceiros ou fornecedores
após o final do mandato numa agência reguladora pode ser um indicador de que o regulador é
recompensado por decisões que tomou em benefício do setor regulado.
Os trabalhos empíricos acima mencionados sustentam as perspectivas originadas das
teorias de captura. A teoria da regulação econômica, de Stigler (1971), já ressaltava o
importante aspecto da captura dos reguladores pela indústria regulada. Em sua visão, os
benefícios obtidos por grupos de interesse são provenientes do emprego da máquina política
para o atendimento de suas finalidades. Avaliando os grupos de interesse ligados à indústria
dos Estados Unidos, Stigler (1971:3) afirma que “regulation is acquired by industry and is
designed and operated primarily for its benefit.” (STIGLER, 1971:3).
Para vários autores, as ARIs não se podem idealizar como organizações impermeáveis à
influência de grupos de interesse, já que o processo de seleção e nomeação dos quadros das
agências reflete algum tipo de identidade política com o titular da competência para a
nomeação (JUSTEN FILHO, 2006; MEIRELLES & OLIVA, 2006; NUNES, 2007; WU,
2008). Nunes (2007: 14) observa que “as personalidades que integram as autoridades
reguladoras independentes são escolhidas pelos méritos que lhes são reconhecidos pelos
políticos que as escolhem (o que não é garantia de que tais “méritos” sejam reais)”. Para estes
autores as agências reguladoras não devem ser vistas como organismos técnicos,
4  
politicamente neutros, que exercem funções iminentemente técnicas, pois de fato, elas
exercem funções políticas e tomam decisões políticas visto que resultam em repercussões
sociais e políticas.

3. Metodologia
Nesta pesquisa analisamos duas dimensões importantes relativas à autonomia observada
na prática dos reguladores estaduais brasileiro: a) o conhecimento técnico e expertise dos altos
dirigentes das agências reguladoras; b) suas trajetórias profissionais pré e pós atuação na
agência.
Para alcançar este fim, construímos um banco de dados com dados bibliográficos sobre
todos os reguladores estaduais brasileiros. A coleta de dados foi realizada por meio de
múltiplas fontes disponíveis em duas fases. A primeira fase buscou explorar materiais
publicados em livros, artigos acadêmicos e demais publicações pertinentes ao tema. Em
seguida, na análise documental, encaminhou-se uma carta de apoio à pesquisa para a
Associação Brasileira de Agências de Regulação (ABAR) e para cada uma ARIs estaduais.
Destaca-se também o estudo desenvolvido a partir de sítios oficiais, bancos de dados e por
meio de órgãos de informação das agências reguladoras estaduais, além da investigação de
atas de reuniões das diretorias colegiadas, publicações nos Diários Oficiais do Estado, press
releases com os currículos dos indicados e meios diversos, como jornais, revistas e blogs de
jornalistas regionais.
Para compreender as características organizacionais de cada ARI, efetuou-se uma revisão
da legislação institucional de cada agência, o que permitiu observar (i) os objetivos da ARI
constituídos na lei estadual de criação, (ii) competências inerentes à regulação do setor a que
se destina, (iii) natureza da agência reguladora, (iv) estrutura básica da ARI, (v) composição
da diretoria colegiada, (vi) duração do mandato de cada diretor, (vii) responsável pela
indicação da diretoria colegiada; (viii) condições que devem ser satisfeitas para nomeação e
posse do indicado, como por exemplo: ser brasileiro, ser maior de idade, ter habilitação
profissional de nível superior, ter reputação ilibada e idoneidade moral, possuir mais de cinco
anos no exercício de função ou atividade profissional que seja tecnicamente compatível com a
atividade reguladora; (ix) possibilidade de recondução do mandato; (x) vedações para o
regulador no período pós-mandato, como o impedimento para o exercício de atividades no
setor regulado pela ARI por determinado tempo, contado da exoneração ou término do seu
mandato; (xi) previsão de ouvidoria pública para atendimento aos usuários; (xii) fontes de
financiamento da ARI e (xiii) quadro de pessoal da ARI.
Dado que hoje são 27 ARIs estaduais em vigor associadas à ABAR, sendo a Agência
Estadual de Regulação de Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (AGERGS), a
primeira agência criada no âmbito estadual, instituída pela Lei nº 10.931, de 9 de janeiro de
1997, esse foi o número base para a coleta de informações.
Com o fim de realizar a ordenação e classificação dos dados da pesquisa, após a coleta
das informações supracitadas, foi criado um banco de dados organizado em dois grupos de
classificação: “Agências Reguladoras Estaduais” com as características institucionais das
ARIs estudadas e “Reguladores” com o detalhamento dos profissionais analisados. As
categorias utilizadas no banco de dados foram elencadas no quadro a seguir:

5  
Quadro 1: Categorias do Banco de Dados

Para a análise das trajetórias de carreira dos reguladores, utilizou-se parte da metodologia
apresentada por Eckert (1981) e Spiller (1988), isto é, para cada regulador, foi investigado o
tempo de mandato na agência, suas experiências profissionais pré e pós-agência, formação
universitária e o responsável pela indicação.
O objetivo foi comparar possíveis migrações entre a origem e o destino desses
profissionais, a partir das categorias setor privado e setor público. Na hipótese de um
regulador possuir atividade pré-agência em mais de um setor, a categoria mais antiga foi
descartada, priorizando sua atividade mais próxima ao momento de sua indicação. A
identificação dos setores de origem e de destino dos profissionais analisados obedeceu as
seguintes prerrogativas:

• Categoria 1: “setor privado”, relaciona a atuação do profissional no setor privado,


porém não relacionado ao setor regulado pela ARI, no período que antecedeu sua
nomeação para exercício na diretoria colegiada ou após sua exoneração do cargo
na ARI.

• Categoria 2: “setor regulado”, relaciona a atuação do profissional na indústria


regulada no período que antecedeu sua nomeação para exercício na diretoria
colegiada ou após sua exoneração do cargo na ARI.

• Categoria 3: “setor público (servidor)”, destinada ao profissional investido em


cargo público mediante concurso público, conforme redação dada pelo Art. 10º da
Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990: “A nomeação para cargo de carreira ou
cargo isolado de provimento efetivo depende de prévia habilitação em concurso
público de provas ou de provas e títulos, obedecidos a ordem de classificação e o
prazo de sua validade”. A categoria abrange todos aqueles investidos em cargo ou
emprego público, segundo preconiza o artigo 37, da Constituição Federal de 1988,
excetuando-se os professores universitários que foram enquadrados na categoria
nº 6 – “setor acadêmico”.

6  
• Categoria 4: “setor público (DAS)” denomina os profissionais ocupantes de
cargos de direção e assessoramento (DAS) declarados em lei de livre nomeação e
exoneração.

• Categoria 5: “setor político” designa os profissionais que desempenharam cargos


políticos, isto é, foram eleitos como presidente, governador, senador, deputado
federal, deputado estadual, prefeito ou vereador.

• Categoria 6: “setor acadêmico” designa profissionais relacionados ao meio


acadêmico, público e privado, representado pelos professores universitários e
pesquisadores.

• Categoria 7: “setor consultoria” representa os profissionais que atuaram em


empresas de consultoria ligados ao tema de regulação.
Cumpre destacar que o objeto desta pesquisa foi o exame das estruturas colegiadas de
decisão das ARIs estaduais, dado que tomam decisões importantes relacionadas ao
funcionamento da própria agência, tais como a proposta orçamentária, atribuições dos
departamentos e arbitrar conflitos de interesse nos serviços públicos delegados. Assim, não
cabe aqui a análise das estruturas colegiadas de consulta, já que essas não tem poder de
decisão nem direito à remuneração.
Apesar dos esforços realizados, não foi possível obter todos os currículos formais. No
entanto, os principais dados desejados foram alcançados, o que permitiu a criação de um
banco de dados robusto. A investigação efetuada no total 233 currículos, entre estes, 94
permanecem em uma diretoria colegiada, com o montante líquido de 139 ex-dirigentes.
4. Contexto da pesquisa

No Brasil, as agências reguladoras estão sendo criadas nos três níveis de governo para
regular serviços públicos e setores considerados estratégicos. Enquanto, no âmbito federal,
predominou-se a criação de agências unissetoriais que tem a finalidade de regular áreas
como telecomunicações, energia, petróleo e gás, aviação civil, vigilância sanitária e saúde
complementar, optou-se pelo modelo multissetorial na maioria das agências reguladoras
estaduais. Pacheco (2003) corrobora que a especialização das agências está entre uma das
principais diferenças das ARIs federais e estaduais: enquanto na esfera federal, figuram
agências setoriais e especializadas, na maioria dos estados, optou-se pelo modelo de agência
multissetorial.

Para vários autores, a natureza multisetoriais das ARIs estaduais pode ser justificada
por fatores que variam desde as competências constitucionais que especificam a
responsabilidade de cada esfera federativa, até os ganhos de escala advindos da concentração
das funções regulatórias em agências multissetoriais (COUTINHO E SOUTO, 2009; PECI
& CAVALCANTI, 2000). Entre as 24 ARIs estaduais pesquisadas, 14 ARIs foram
classificadas como multisetoriais, enquanto 3 são ARIs bissetoriais e 7 agências são
especiadas em um único setor, como mostra o quadro a seguir.

Analisando os dados acima, os setores predominantes na estrutura mais especializada


(unissetorial e bissetorial) são infraestrutura de transporte e saneamento básico. Considere-se
também que 70% deles estão localizados na região Sudeste. Segundo Brasileiro e Henry
7  
(1999), esta é a região que detem cerca de 60% da frota total do autocarro país. De acordo
com o IBGE, o Sudeste continua com a maior fatia do PIB brasileiro entre as regiões
(55,2%) no ano de 2014 e também é responsável por mais de 70% da transformação
industrial do país, sendo a região mais industrializada.

Algumas das agências bissetoriais ou unissetoriais foram criadas após o


desmembramento de agências estaduais que, inicialmente, foram criadas a partir do formato
multissetorial. A criação da AGETRANSP, com a Lei nº 4.555, de 25 de junho de 2005,
substituiu a Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos do Estado do Rio de
Janeiro – ASEP RJ, instituída pela Lei Estadual 2686/1997. Por exemplo, há no estado do
Rio de Janeiro, duas ARIs: AGETRANSP e AGENERSA, a primeira responsável pela
regulação do setor de transportes, os setores de energia, enquanto a segunda regula o esgoto
sanitário e água.

Após a análise das leis estaduais que criaram as agências reguladoras, verificamos a
duração do mandato da diretoria colegiada, como mostra o quadro a seguir:
QUADRO 2: TEMPO DE MANDATO NAS ARIs ESTADUAIS

Elaboração Própria.

Portanto, observa-se que 71% das ARIs analisadas instituem o período de mandato de
quatro anos, admitindo uma recondução de igual período. É interessante notar que as
agências reguladoras da Bahia: Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de
Energia, Transporte e Comunicações da Bahia (AGERBA) e a Agência Reguladora de
Saneamento Básico do Estado da Bahia (AGERSA) não definem em lei o tempo de mandato
de cada dirigente. Entretanto, ambas estabelecem pré-requisitos para a nomeação dos
diretores.

Na análise das estruturas das agências, um outro fator importante influencia a autonomia
do órgão regulador: a escolha dos dirigentes da agência (conselheiros, diretores, comissários,
etc). Na maioria das agências reguladoras independentes estudadas destaca-se o poder que o
governador do estado detém no processo de indicação e escolha dos dirigentes da agência
(PECI & CAVALCANTI, 2000: 109). Excetuando-se a AGERGS, que tem modo de
indicação distinto, todas as outras 26 agências reguladoras estaduais têm os diretores
indicados pelo Governador do Estado, e por este nomeados uma vez aprovados, após
audiência pública, pela Assembleia Legislativa.

8  
5. Análise dos dados
5.1 Expertise dos reguladores
Ao resgatar a ideia de que regulação depende da expertise dos profissionais, conforme
defendido por Majone (1999) e por Schrefler (2010), nesta pesquisa buscou-se verificar se, os
reguladores estaduais, apresentaram indícios fortes de expertise e conhecimento em regulação
e áreas reguladas, no momento de sua indicação. A expertise buscou-se analisar a partir de
três dimensões: i) formação universitária; ii) cursos de especialização; e iii) experiência prévia
no setor regulado.
Formação universitária
O banco de dados montado após a coleta dos curricula vitae permitiu catalogar os
reguladores por formação universitária nos cursos de graduação. As categorias foram
elencadas de acordo com a incidência do curso, incluindo reguladores que possuem mais de
uma graduação. O gráfico a seguir demonstra a distribuição dos cursos de graduação cursados
pelos dirigentes das agências reguladoras estaduais analisadas.
QUADRO 3: FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA DA DIRETORIA COLEGIADA

Elaboração Própria.

Ao examinar os currículos dos membros das diretorias, percebe-se a predominância do


curso de Engenharia, perfazendo um total de 33% dos currículos apreciados, inclusive nas
presidências das diretorias colegiadas. O curso de Economia também tem expressão
fundamental nos cargos de presidente, 11% dos currículos examinados são de economistas
que exerceram função na diretoria colegiada da ARI. Em outras palavras, 44% dos
reguladores estaduais corroboram a percepção de Majone (1999) na defesa que o exercício da
regulação está atrelado ao conhecimento científico de engenharia e de economia. O curso de
Direito tem uma representação considerável (26%) por dois motivos: há cargos específicos
para advogados na estrutura de algumas diretorias colegiadas, na figura de Diretor Jurídico.
Ademais, esse curso foi escolhido como segunda formação para 23 dirigentes, indicando
fortemente a “tradição” jurídica no processo regulatório brasileiro. Destaca-se ainda o curso
de Administração, que representa 12% dos reguladores frente às diretorias colegiadas. De
todo modo, a presença de advogados e administradores nas diretorias pode demonstrar o
caráter legalista e generalista das ARI estaduais. Entretanto, outras categorias profissionais
ainda ocupam espaço considerável (13%) no curricula dos reguladores, e outros, onde
figuram as mais variadas graduações: Arquitetura, Comunicação Social, Matemática,
Química, Policial Militar, Comunicação Social, Biologia, Odontologia, Medicina, Estatística
e Teologia, indicando ainda um número razoável de reguladores que não comprovam a
expertise na área via formação.

9  
Cursos de especialização
É interessante observar que quando se analisam os cursos de especialização, percebe-se a
tendência que os reguladores brasileiros se afastam ainda mais da “expertise” na área
regulada, privilegiando, basicamente, áreas relacionadas à administração. Isto pode indicar
uma percepção dos altos dirigentes de agências reguladoras, que o trabalho que eles
desempenham na prática está mais relacionado com a administração de que com expertise e
conhecimento específico de regulação. De fato, dentre os engenheiros e economistas que
assumiram presidência nas diretorias colegiadas, foi possível comprovar a capacitação na área
de gestão durante a trajetória de carreira, considerando a realização de cursos de pós-
graduação latu sensu em Gestão de Pessoas, Gestão Empresarial, Finanças Empresariais e
Gestão de Negócios. Verificou-se que ARIs com naturezas mais especializadas alocaram
profissionais com maior expertise na área regulada. Fica claro quando se examina a região
Sudeste, que abriga quatro ARIs unissetoriais e três ARIs bissetoriais, em que engenheiros e
economistas permaneceram em suas áreas na academia, ainda que tenham realizado cursos
ligados à área de administração.
Experiência prévia no setor regulado
A terceira dimensão relacionada à expertise do regulador antes de assumir o cargo de
dirigente na agência reguladora está relacionada com a ocupação anterior a sua atuação na
agência. A tabela 2 apresenta a análise dos reguladores com experiência prévia nos setores
regulados antes de assumirem o cargo na ARI, por região do país.
TABELA 2: EXPERIÊNCIA PRÉVIA NO SETOR REGULADO

Elaboração Própria.

Verifica-se que as regiões Sudeste e Sul demandaram profissionais detentores de


experiência prévia nos setores regulados. Logo, ao analisar e cruzar os perfis dos profissionais
com as ARIs a que pertencem, nota-se que a maior expertise da ARI reflete em uma maior
expertise dos reguladores, isto é dizer que agências unissetoriais e bissetoriais exigem um
conhecimento técnico mais elevado para a legitimidade das atividades o que remonta à crença
de Majone (1999) e Schrefler (2010). Na região Norte, destaca-se a experiência prévia de
reguladores que atuaram em outra ARI estadual da região Sul, secretarias de cidades e
desenvolvimento urbano e secretaria de transportes, por exemplo. Vale dizer que dois
policiais militares foram nomeados diretores das ARIs multissetoriais da região, tal incidência
pode revelar a baixa expertise em regulação demandada nessas ARIs. Na região Nordeste, os
reguladores que possuem experiência prévia já atuaram nas próprias ARIs antes de assumir a
diretoria, nas indústrias reguladas, secretarias de obras, infraestrutura e urbanização, em
consultoria da área regulada, no Ministério de Minas e Energia; nas secretarias de transportes,
entre outros. Em síntese, quando se analisa a região, destaca-se, por exemplo, um engenheiro
agrônomo, que também é bacharel em Direito, ganhador do PRÊMIO ABAR 2009, honraria
conferida a personalidades da Regulação. Em contrapartida, foi observada a baixa expertise
na área regulatória referente a cinco reguladores provenientes do setor privado: a nomeação
de três bacharéis de Direito recém-formados, um administrador que desenvolvia atividades
profissionais nas áreas de marketing político e pesquisa de opinião e um profissional sem
curso universitário que, segundo um blog de um jornalista regional, ficou famoso na ARI pelo
10  
apelido de “maluquinho”, sendo exonerado em menos de um ano na diretoria, com direito ao
bloqueio de todos seus bens devido a uma ação do Ministério Público Estadual. Já a região
Centro-Oeste chama a atenção pela expertise dos reguladores comprovada em seus currículos
com a trajetória que acompanhou a regulação brasileira desde o princípio, além da
colaboração efetiva para o crescimento do campo no Brasil, como é o caso de um engenheiro
que integrou uma equipe que montou as primeiras agências reguladoras e integrou a
presidência na ABAR. Há reguladores com notória especialização: é o caso de um geólogo,
mestre em Administração e Política de Recursos Minerais, com reconhecida capacidade de
gestão dos recursos hídricos, considerado um dos dez mais destacados técnicos na área de
recursos hídricos do Brasil. Analogamente, na região Sudeste, comprovou-se o alto grau de
especialização dos gestores através do histórico profissional com a participação em processos
de desestatização, além de cursos realizados de pós-graduação strictu e latu sensu, inclusive
nas áreas de gestão pública. Não é raro verificar que muitos deles atuam, em concomitância,
na academia, inclusive em universidades no exterior. É o caso de um economista, por
exemplo, que ministra classes na UNB, USP e na Universidade do Chile. Na região Sul, foi
possível comprovar o conhecimento tácito nas trajetórias dos profissionais, como um
engenheiro que atua há quarenta e cinco anos nas áreas de gás, petróleo, carvão, mapa eólico e
sistema hidrelétrico, com experiência junto ao BIRD a partir da indústria regulada, além de
ser professor e palestrante sobre a temática.
Dado que as agências situadas na região Sudeste fogem à natureza multissetorial, essas
revelaram a tendência de especialização dos profissionais escolhidos para compor a diretoria
colegiada ao passo que possuem um background extenso na matéria regulada no setor privado
durante sua carreira. Destacam-se a atuação dos profissionais em processos de desestatização
como coordenadores, experiência prévia em ARIs, consultoria de energia elétrica, na indústria
regulada, secretarias de estado e planejamento, secretarias de transportes, Grupo de Apoio à
Reforma do Estado, Ministério de Transportes e até mesmo na academia, ministrando classes
sobre a área regulada.
Pese o fato ainda que, até os anos 1990, o Estado era provedor direto dos setores de
infraestrutura. Assim, é natural que boa parte dos reguladores atuais tenham surgido de
empresas estatais e outros órgãos públicos com responsabilidade sobre esses setores que hoje
estão sob o domínio de empresas privadas. São estas três dimensões (formação,
especialização e experiência prévia) que indicam se eles tiveram condições necessárias,
embora não suficientes, para exercer a atividade da regulação com base no conhecimento
técnico e na expertise.
5.2 Autonomia de atuação dos reguladores
Grande parte das teorias de regulação parte da premissa de captura dos reguladores por
grupos de interesse (enfatizando, principalmente, representantes de setores regulados) ou
políticos. Nesta parte da pesquisa busca-se replicar o trabalho de Eckert (1981) e Spiller
(1988), com o objetivo de observar dinâmicas de captura dos reguladores brasileiros.
A tabela 3 apresenta a matriz de ocupação dos reguladores, por região do país, antes de
ingressar na ARI. Optou-se por distribuir os reguladores por região do Brasil para facilitar a
análise, considerando algumas características comuns. Dessa maneira, a coluna representa as
categorias de atuação pré agência reguladora enquanto a linha distingue regiões Norte,
Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul. O campo “não observado” traduz a impossibilidade de
identificar a origem do regulador. O total está apontado nas últimas linhas e na última coluna.

11  
TABELA 3: ATIVIDADES PRÉ ARI

OCUPAÇÃO   NORTE   NORDESTE   CENTRO-­‐OESTE   SUDESTE   SUL   TOTAL   PORCENTAGEM(%)  


SETOR  PRIVADO   0   5   0   2   1   8   3  
INDÚSTRIA  REGULADA   1   7   2   14   9   33   14  
SERVIDOR  PÚBLICO   8   4   3   10   7   32   14  
PÚBLICO  -­‐  DAS   8   35   27   35   8   113   48  
SETOR  POLÍTICO   1   3   3   5   12   24   10  
SETOR  ACADÊMICO   0   8   1   3   2   14   6  
CONSULTORIA   1   1   0   2   0   4   2  
NÃO  OBSERVADO   0   2   2   1   0   5   2  
TOTAL   19   65   38   72   39   233   100  
Elaboração Própria.

No que tange à origem dos reguladores, verifica-se que dos 233 profissionais analisados,
113 eram ocupantes de cargos de direção e assessoramento nos três níveis de governo,
representando 48,5% do total. Os cargos ocupados, como explicitado na experiência prévia no
setor regulado, figuram, em sua maioria, entre secretarias de transportes, infraestrutura,
desenvolvimento urbano, obras públicas, empresas estatais, entre outros. Com
representatividade substancial, 33 profissionais estavam atuando no setor regulado antes da
nomeação para a diretoria da ARI. Já 32 servidores públicos foram cedidos para assumir os
cargos nas diretorias colegiadas. A categoria de setor político teve 24 profissionais, um
número expressivo, graças à região Sul, que tem na AGERGS uma forma diferenciada de
indicação dos membros da diretoria.
A tabela 4 apresenta a matriz de ocupação dos reguladores, por região do país, pós-
mandato na ARI. Optou-se por distribuir os reguladores por região do Brasil para facilitar a
análise, considerando algumas características comuns. Dessa maneira, a coluna representa as
categorias de atuação pós agência reguladora enquanto a linha distingue regiões Norte,
Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul. O campo “não observado” traduz a impossibilidade de
identificar o destino do regulador. O total está apontado nas últimas linhas e na última coluna.

TABELA 4: ATIVIDADE PÓS ARI

OCUPAÇÃO   NORTE   NORDESTE   CENTRO-­‐OESTE   SUDESTE   SUL   TOTAL   PORCENTAGEM(%)  


SETOR  PRIVADO   1   0   2   0   2   5   3  
INDÚSTRIA  REGULADA   1   6   3   6   5   21   14  
SERVIDOR  PÚBLICO   3   3   1   4   3   14   14  
PÚBLICO  -­‐  DAS   10   15   20   22   8   75   48  
SETOR  POLÍTICO   0   0   1   1   4   6   10  
SETOR  ACADÊMICO   0   2   1   6   0   9   6  
CONSULTORIA   1   7   1   5   1   15   2  
NÃO  OBSERVADO   1   3   2   6   0   12   2  
TOTAL   17   36   31   50   23   157   100  
Elaboração Própria.

Como dito anteriormente, a pesquisa empreendeu 233 currículos, dentre esses, 94


profissionais estavam em uma diretoria colegiada à época da análise, tendo como valor
líquido de ex-dirigentes 139. Contudo, coube examinar o destino de 18 profissionais que
12  
permaneceram na ARI ou migraram para outra agência. Assim, no que tange ao destino dos
reguladores, 157 profissionais foram analisados. Ocorreu a captura de 21 profissionais pelo
setor regulado. Destaca-se ainda o número relevante de consultores na área de regulação após
o exercício na diretoria da ARI: são 14 profissionais que fundaram ou são sócios de empresas
de consultoria na área da regulação.
Como resultado expressivo, obteve-se que 98 profissionais permaneceram no setor
público, divididos em 14 servidores, 75 ocupantes de cargos DAS e 9 profissionais atuantes
na academia, como professores em universidades públicas. A tabela 5 detalha os reguladores
que se mantiveram no setor público:
TABELA 5: DESTINO DOS REGULADORES NO SETOR PÚBLICO

 
Elaboração Própria.

A primeira categoria referencia os 6 profissionais ocupantes de cargo DAS que migraram


de uma ARI para outra imediatamente após o mandato na ARI estadual. Quanto às
reconduções na diretoria colegiada ocorreram para 12 profissionais: 2 servidores e 10
ocupantes de cargo DAS. A categoria “Outros” engloba 21 servidores públicos (9 professores
universitários, além de desembargadores, procuradores e analistas) e 59 ocupantes de cargo
DAS em secretarias, assessorias, gabinetes, autarquias, totalizando 75 agentes que não estão
em ARIs no momento da pesquisa.
Uma tendência interessante foi observada: parece haver uma carreira na área da
regulação surgindo nas diretorias colegiadas, visto que esse movimento foi notado na
trajetória de 17 reguladores: todos perpassaram em mais de uma agência reguladora, nos três
níveis de governo, podendo indicar o surgimento de uma espécie de plano de carreira.
Ao analisar os partidos políticos dos Governadores do Estado responsáveis pela
indicação dos membros da diretoria colegiada, observa-se uma predominância nas indicações
dos partidos PSDB e PMDB com 31% e 27%, respectivamente.  
QUADRO 4: PARTIDOS POLÍTICOS

Elaboração Própria.

13  
É importante notar a quantidade de reconduções por partido para verificar a permanência
do dirigente na ARI. A alternância de poder no governo do estado é outro fator preponderante,
já que é natural que o governante deseje nomear profissionais de sua confiança e acabe, dessa
forma, alterando a composição da diretoria colegiada, ameaçando o princípio de autonomia
gerencial do órgão. O número de reconduções foi maior nas primeiras ARIs estabelecidas, tais
quais AGERGS, ARCE, ARSAL e ARTESP, mais especificamente, no período inicial de
funcionamento da agência reguladora estadual, indicando maior estabilidade no período do
estabelecimento do modelo de ARI no Brasil.
Quanto às reconduções de mandato, os partidos políticos PSDB, PT, PSB, PDT, PMDB e
DEM/PFL optaram por reconduzir 74 profissionais que já estavam nas diretorias colegiadas
das ARI. No quadro 5, explicita-se a quantidade de reconduções por partido:
QUADRO 5: RECONDUÇÕES POR PARTIDOS POLÍTICOS

Elaboração Própria.

É possível afirmar que a maior parte das reconduções ocorre quando o regulador tem
altos critérios de expertise. Há que se pese o fato que, especialmente, na região Sul, as
reconduções ocorreram com reguladores provenientes do setor político, porém com
experiência prévia no setor regulado, seja em cargos públicos, na indústria regulada ou no
meio acadêmico. Portanto, a hipótese de Spiller (1988) de que grande parte das compensações
da atuação regulatória toma a forma de bem-remunerados empregos pós-agência não se
confirma caso brasileiro quando se aborda o nível estadual das ARIs. Pela análise da
autonomia dos reguladores estaduais, comprova-se que a maioria permanece no setor público,
em órgãos de assessoramento, secretarias afins à área de regulação ou até mesmo com
mandatos reconduzidos nas diretorias colegiadas das ARIs.
Considerações Finais
O presente trabalho teve como objetivo compreender como a autonomia decisória se
traduz na prática profissional dos reguladores estaduais no Brasil, focando em duas dimensões
importantes: nos níveis de expertise e de conhecimento especializado dos reguladores
brasileiros estaduais e em alguns indicadores da dinâmica de captura por diversos grupos de
interesse dos mesmos. Fruto de um contexto histórico e ideológico caracterizado por crescente
complexidade da ação do Estado e pela crença em “novas” tecnologias administrativas, que
resgatam o modelo de um órgão administrativo independente, a consagração de ARIs como
uma nova institucionalidade no contexto político-administrativo brasileiro, está relacionada
com a qualidade das decisões regulatórias tomadas por seu mais alto corpo dirigente.
De fato, uma das principais fontes de legitimidade das ARIs reside no seu conhecimento
14  
e especialização técnica que, espera-se refletir na composição dos altos dirigentes das
agências. Obviamente que a regulação, ainda que envolva escolhas de natureza técnico-
científica, compreende decisões políticas relacionadas à conveniência e oportunidade. Isso
porque toda decisão estatal, mesmo quando realizada a propósito de questões técnico-
científicas, envolve uma margem de autonomia. Dito de outro modo, não se trata apenas de
uma atuação vinculada estritamente à Lei ou ao conhecimento técnico-científico, embora
margens excessivas de afastamento deste ideal podem ser problemáticas para a regulação.
A partir das três dimensões da expertise (formação, especialização e experiência prévia),
verificou-se que há nuances de especialização que dependem da natureza da ARI, da região
do país e da forma de indicação da diretoria colegiada. A pesquisa revelou que ARIs com
natureza mais especializada demandam profissionais com maior experiência na área regulada.
Engenheiros e economistas representam 44 % do total reguladores, indicando o conhecimento
técnico exigido no campo da regulação. No entanto, a forte presença de advogados e
administradores nas diretorias pode demonstrar que ainda há um caráter legalista e geral nas
ARIs estaduais. Esse fato torna-se ainda mais evidente na escolha de cursos de especialização:
há uma tendência de que o regulador brasileiro se afaste da expertise na área regulamentada.
Isso pode indicar uma percepção de que o trabalho feito pelos reguladores, na prática, está
mais relacionada à administração do que com a experiência e conhecimento de regulação.
No que tange à forma de indicação da diretoria colegiada, na AGERGS existe uma
tentativa pioneira de se estabelecer uma representatividade mais democrática no ato de
nomeação da diretoria colegiada e viabilizar o aumento do espaço de discussão e participação
social nas tomadas de decisões. A indicação de um representante do quadro funcional da ARI
a partir de uma lista tríplice elaborada por meio de eleição secreta realizada entre os
servidores efetivos da agência pode indicar a expertise do regulador e colaborar com a tomada
de decisão da ARI, embora também possa ser vista a partir da lógica de captura por grupos de
interesse relacionados com uma incipiente, embora crescente, regulocracia.
Espera-se que uma maior expertise influencie positivamente a autonomia decisória do
regulador, mas não é apenas essa dimensão que importa. Dados acerca da ocupação pré e pós
agência do regulador traduzem a ótica da captura, assim como conduções e reconduções
políticas revelam a consistência do modelo brasileiro de ARI.
Sob a ótica de captura, diferentemente dos reguladores norte-americanos, observou-se
que a maioria dos reguladores estaduais permaneceu no setor público após a atuação na
diretoria colegiada. Nas ARIs mais especializadas, ocorre a captura da própria burocracia
reguladora, formando uma rede de regulocratas, haja vista a migração de diretores entre as
ARIs. As conduções e reconduções partidárias indicam predominância de partidos como
PSDB e PMDB. Grande parte das reconduções entre partidos ocorrem com a presença do
PMDB, contudo percebe-se que as reconduções acontecem independente de corrente
partidária, indicando a solidez do modelo brasileiro de ARIs no cenário político nacional.
Este trabalho representou uma primeira tentativa de análise das trajetórias de carreira
dos profissionais que assumiram o cargo de direção em uma agência reguladora. Pesquisas
futuras podem explorar esse objeto nos níveis federal e municipal. Além disso, não fez parte
do escopo deste estudo apontar determinantes e probabilidade de cooptação dos reguladores,
conforme a metodologia completa proposta por Spiller (1988). Certamente uma análise mais
profunda também encontrará diversas outras variáveis contextuais importantes como os
fatores determinantes e a probabilidade de cooptação dos reguladores.

15  
Referências
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in Central and Eastern Europe’, OECD Journal on Budgeting v.2, 121–39, 2002.
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competências entre o governo e a Anatel na Lei Geral de Telecomunicações. Revista Eletrônica de Direito
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WEISS, Carol H. The many meanings of research utilization. Public Administration Review 39: 426-431,
1979.

16  
A atuação da Administração Pública nos negócios financeiros do Brasil hoje.

Laura Leboso Alemparte Abrantes dos Santos (UFF)

"O que é um torpedo, em


comparação com uma ação ao
portador?
O que é assaltar um banco, em
comparação com fundar um
banco?"
Bertold Brecht

1 – Introdução:

Sabemos que uma das maiores contradições teóricas do liberalismo precisou


ser enfrentada pelo próprio sistema diversas vezes ao longo da história. A concepção
dos pensadores pioneiros de que o Estado deve se limitar a garantir a manutenção da
ordem pública e da propriedade privada foi escondida embaixo do tapete sempre que
necessário. Ou mesmo ignorada, quando as classes dominantes precisam da regulação
do estado, o estado é acionado e no mundo globalizado, interligado e conectado 24
horas, isso acontece com frequência.
Um exemplo é o New Deal, plano do governo Roosevelt para recuperar os
Estados Unidos da crise da década de 1930, onde a ordem era “emprego zero”,
incentivando o setor privado a produzir a partir da demanda estatal. Os anos que se
seguiram até meados de 1960, continuaram marcados por uma crescente atuação do
Estado na economia em diferentes países. (GURGEL, 2013, p. 3)
Também podemos pensar na crise do sistema fordista de produção, com seus
produtos padronizados, produzidos em larga escala e sob o primado da
durabilidadesem encontrar mercado consumidor. As empresas privadas precisaram
alterar sua forma de organização e produção, e o toyotismo foi a saída encontrada.
Como afirma Antunes, “novos processos de trabalho emergem, onde o cronômetro e a
produção em série e de massa são “substituídos” pela flexibilização da produção, pela
“especialização flexível”, por novos padrões de busca da produtividade, por novas
formas de adequação da produção à lógica de mercado” (ANTUNES, 1995, p. 16).
Conectada a esse primeiro fenômeno, a dita crise do Estado de Bem-Estar
Social nas décadas de 1960 e 70, sobre a qual o pensamento hegemônico identificou
como sendo uma crise de Estado, propondo como solução, além do programa de
diminuição do Estado por meio das privatizações, concessões e delegações de
serviços públicos, a introdução de técnicas de gestão privada no setor público,
técnicas estas características do sistema de produção flexível, aos moldes do
toyotismo. Pouco depois do que se deu nos Estados Unidos e Europa, a partir dos
anos de 1990, o Brasil adotou os mesmos preceitos como política orientada em sua
administração pública.
Aí entra o momento histórico de nossos objetos de estudo. Nos propomos
neste trabalho a identificar as principais políticas de atuação da Administração
Pública sobre o sistema financeiro brasileiro, recuperando o histórico dos últimos
quinze anos dos balanços dos cinco maiores bancos, Bradesco, Itaú, Banco do Brasil,
Caixa Econômica e Santander. Temos também como objetivo analisar se a
Administração Pública,se atém a regular o sistema, no sentido de normatizar e
fiscalizar, ou se atua mais incisivamente, incentivando e promovendo o mercado
financeiro. Nosso problema principal consiste em verificar se há intervenção do
Estado no Mercado que favoreça ou facilite os resultados recordes de grandes lucros
dos bancos no Brasil.
Nossas indagações surgem a partir da análise prévia de dados como os abaixo
indicados. O que nos interessa pesquisar nesse artigo é como justificar um aumento
dessas proporções nos lucros das instituições financeiras num país que apresentou no
mesmo período variação negativa do PIB, segundo o IBGE.

Lucro Líquido Lucro Líquido


1o. Trimestre/2014 1o. Trimestre/2015 Crescimento Percentual
(bilhões de reais) (bilhões de reais)
Banco do Brasil 2,70 5,81 117,3%
Bradesco 3,44 4,24 23,3%
Itaú 4,25 5, 73 24,8%
Santander 0,518Líquido
Lucro 1,633Líquido
Lucro 32,2% Percentual
Crescimento

Caixa Econômica 2 1,52 2 .1,5 2,5%


o o
. Trimestre/2014 Trimestre/2015
(bilhões de reais) (bilhões de reais)

Banco do Brasil 2,829 (até o envio deste artigo, o


resultado ainda não havia
sido divulgado)

Bradesco 3,788 4,473 18,4%


Itaú 4,899 5, 984 22,11%
Santander 1,441 1,675 16,6
Caixa Econômica (até o envio deste artigo, o
resultado ainda não havia
sido divulgado)
Os bancos anunciaram de maneira geral aumento do spread bancário, que
indica a diferença para o banco aoremunerar os clientes para captar dinheiro e o
quanto cobrou a outros para emprestar, afirmando que a inadimplência está sobre
controle e que repassaram aos consumidores o custo do aumento dos juros.
Já o DIEESE afirma que os lucros são decorrentes dos constantes aumentos da
taxa Selic, o quejá garante grande resultado financiando a rolagem da dívida pública.
Além disso, em seu Boletim de Conjuntura apontam também como explicação para o
aumento dos lucros, o aumento de tarifas aos consumidores e queda na quantidade de
empregados. Faz-se necessário, portanto, comparar as informações a fim de averiguar
as explicações dadas e presumidas. Afinal, sabe-se que os lucros dos bancos atingem
sucessivos recordes, ano após ano, no que se diferencia de todos os setores
produtivos, sendo também uma das maiores médias de spread bancário do mundo nos
anos 2000.
Quanto à metodologia, faremos pesquisa bibliográfica para identificar no que a
literatura avançou em relação ao tema e quais são os pontos que merecem mais
atenção para a compreensão do fenômeno. Faremos também pesquisa documental,
especialmente nos dados publicados por entidades como DIEESE, IBGE (sistema de
contas nacionais e outros), FGV, IPEA e universidades, para comparação entre
diferentes períodos de tempo.

2 – Histórico dos bancos no Brasil recente

Sobre os resultados do primeiro semestre, podemos apontar que eles não se


apresentam como uma exceção à regra. Na verdade, de acordo com o Banco Central
do Brasil, as taxas de crescimento de lucratividade são crescentes há pelo menos uma
década. O que causa estranheza é a relação deste resultado positivo dos bancos com o
resultado do PIB Brasil. Embora, até o fechamento deste artigo, o valor do PIB no
segundo trimestre de 2015 não houvesse sido divulgado pelo IBGE, no primeiro foi
de -0,2% e os economistas não acreditam em PIB positivo para o primeiro semestre
do ano. Mesmo o PIB de 2014 foi apontado como o pior em 5 (cinco) anos, fechando
0,1%, segundo IBGE.
O gráfico a seguir nos desenha um resumo dos resultados dos maiores bancos
do país, segundo registros disponíveis no site do Banco Central. A exceção dos anos
de 1998 e 2001, os resultados somados caminham para uma curva crescente, sendo
que em 2014 o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
Socioeconômicos) publicou um trabalho intitulado “Desempenho dos bancos em
2014”, onde afirma que não existe tempo ruim na economia para o desempenho dos
bancos, de acordo com os resultados dos cinco maiores bancos. No ano em questão,
mesmo diante do PIB a 0,1%, a soma dos lucros líquidos desses cinco bancos chegou
ao número de R$ 60,3 bilhões, tendo crescido cerca de 18% em relação a 2013.
A instituição de pesquisa se fez a mesma pergunta que fizemos neste artigo:
ora, em momentos de crise econômica é possível para qualquer empresa crescer em
seus resultados de lucro? O professor Claudio Gurgel em seu texto “Crises
Econômicas: o público e o privado em aliança conservadora”, aponta que a crise afeta
em graduações distintas os diferentes ramos da economia. Assim, há ramos que
podem crescer e outros que podem recuar. Ele lembra o caso do incentivo fiscal à
construção civil e a desoneração parcial do IPI para venda de automóveis e a chamada
“linha branca” de eletrodomésticos desde o início da crise em 2008.

O estudo coloca que todos os bancos tiveram lucros elevados, mesmo


reduzindo o ritmo de expansão das operações de crédito e que um dos fatores
responsáveis por esse resultado foi a elevação das receitas com Títulos e Valores
Mobiliários, decorrente das sucessivas elevações da Selic no ano passado.
Ainda de acordo com o documento, a taxa Selic é direta responsável na
transformação de dinheiro da sociedade para dinheiro financeiro. E que o aumento
consecutivo dela a partir de abril de 2013, afetou diretamente o balanço das
instituições financeiras porque elas possuem cerca de 30% dos títulos da dívida
pública federal.
O DIEESE afirma que as receitas com títulos e valores mobiliários
representam a segunda maior fonte de ganhos dos bancos, depois das receitas com as
operações de crédito, intermediação financeira propriamente dita, sendo que as
receitas com os títulos e valores mobiliários dos cinco bancos subiram, em média,
45,9%, em 2014.
Outra fonte de receita dos bancos afetada pela variação na taxa Selic são os
depósitos compulsórios, recolhimentos obrigatórios junto ao Banco Central que têm
como finalidade controlar a liquidez da economia e proporcionar estabilidade ao
sistema financeiro. Estes recursos não podem ser usados pelas instituições em
operações ativas, mas são remunerados. Parte dos depósitos compulsórios é
remunerada pela Selic e, devido ao crescimento da taxa básica de juros da economia,
as receitas das instituições financeiras com essas aplicações cresceram, em média,
32,6% entre dezembro de 2013 e dezembro de 2014, ainda segundo o estudo do
DIEESE.
Achamos que cabe aqui ponderar com outros elementos se a administração
pública exerce ou não influência ou se sua atuação favorece e tem favorecido os
resultados dos bancos atuando no Brasil. De acordo com Gurgel, parte da estratégia
que se usa para enfrentar a crise é aguardar que a crise “vá ao fundo do poço”, pois
ela irá desencadear um processo de luta de classes, que interessa à classe dominante,
pois o extrapolamento dos problemas permitirá que o Estado seja chamado a intervir.
(2009, p.13)
A professora Maria Lucia Fatorelli afirma que “Não existe justificativa
técnica, econômica, política ou moral para a cobrança de taxas tão elevadas, que
prejudicam toda a sociedade e o próprio país. Os juros extorsivos esterilizam grande
quantidade de recursos que deveriam estar circulando na economia produtiva,
pagando melhores salários e viabilizando serviços sociais que garantiriam vida digna
para as pessoas.”.
Com base nos dados apresentados, pequena parte do que há disponível para
outras pesquisas, considerando importantes estudiosos do assunto, somos levamos a
concluir que a ação do Estado é mesmo aquela de administrar os negócios das classes
dominantes e garantir condições políticas, legais e de mercado que prolonguem os
espantosos resultados do setor banqueiro.

3 – O caso do ajuste fiscal

Muito se falou da Grécia, onde o primeiro ministro Tsipras convocou a


população para um plebiscito, depois de fracassadas as tentativas de renegociação das
dívidas do país. Foi perguntado aos gregos na cédula: "Devemos aceitar o projeto de
acordo apresentado pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo
Monetário Internacional (TROIKA) no Eurogrupo de 25.06.2015 e que é composto
por duas partes que compõem a proposta unificada? O primeiro documento intitula-se
"Reformas para a conclusão do atual programa e além" e o segundo "Análise
preliminar da sustentabilidade da dívida". Os textos referidos foram divulgados
anteriormente a fim de que pudessem ser lidos e analisados pela sociedade com
antecedência.
Um pouco diferente da situação brasileira, que ainda possui reservas em dólar
na casa dos 370 bilhões, a Grécia vinha recebendo desde 2010 regastes financeiros da
Troika em troca da adoção de medidas de austeridade. Ocorre que a combinação de
pagamentos de juros e implementação de políticas de austeridade contribuiu para a
redução do PIB grego em 25% nos últimos 5 anos, chegando a situação atual, com
cerca de ¼ da população desempregada.
Aparentemente, o governo precisava do elemento pressão popular para tentar
mudar a correlação de forças nas negociações. Afinal, para receber nova parcela de
resgate, o governo grego já havia oferecido conceder a quase todas as imposições,
sendo rechaçado pela Troika, que exigiu ainda mais cortes nas pensões, além da
anulação dos impostos a produtos de luxo, o que impediu novo acordo de socorro em
junho.
A campanha para a consulta popular despertou a atenção de muitos países e
acirrou-se ainda mais nas ruas. A imprensa e o empresariado passaram a defender o
“sim”, com divulgação de pesquisas onde a maioria do eleitorado seria favorável ao
pacote de medidas e também com fechamento de agências bancárias e restrição de
saques em dinheiro nos bancos.
A despeito dessas pesquisas difundidas até a véspera, no dia 05/07, mais de
60% dos votos foram “não”, passando a mensagem que os gregos eram contra os
ajustes propostos com redução de despesas públicas às custas de direitos sociais e
trabalhistas, para garantir o pagamento de juros aos bancos.
Falar da crise grega e como ela a enfrentou, pode nos ajudar a compreender a
própria situação financeira brasileira, diferente da grega em alguns poucos itens,
sendo um deles justamente o de ainda termos reservas financeiras, como dissemos.
No entanto, a política é mais ou menos a mesma: juros altos, privilégios para o setor
financeiro, privatizações e o ajuste fiscal, com corte de gastos sociais (saúde,
educação e aposentadorias).
Para garantir esse pagamento, estamos acompanhando ao longo do ano uma
série de providências decididas pelos governo federal, todas elas impactando
diretamente na vida do cidadão comum. Desde o início do ano, já foram anunciados
cortes em quase 80 bilhões de reais, sendo 12 bilhões somente na área da educação
federal.
Para falarmos somente das universidades, lembramos o fato de algumas terem
paralisado seu funcionamento, como foi o caso do fechamento do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, no início de janeiro por falta de verbas, das
greves de trabalhadores terceirizados por não recebimento de salário em
universidades como a Federal do Goiás, da Paraíba, do Rio de Janeiro (UFRJ) e
Federal Fluminense (UFF), além do adiamento do calendário acadêmico em várias
Ifes. A Universidade Federal da Bahia, a Federal de Santa Catarina e UFF anunciaram
em julho que poderiam sofrer corte no fornecimento de energia em vários
departamentos, por não haver dinheiro para o pagamento das contas. O presidente do
sindicato nacional dos docentes federais Paulo Rizzo afirmou que o ano já havia sido
aberto no vermelho em janeiro em várias instituições, pois parte do orçamento de
2015 fora utilizado para cobrir compromissos de 2014 não honrados por falta de
verbas.
O ajuste fiscal não conta somente com a tática tradicional e ligeira do corte de
verbas. Também tem atuado sobre a legislação, com a edição de uma série de medidas
provisórias (MP), como a 680, chamada de “Programa de Proteção ao Emprego –
PPE”, que permite às empresas reduzirem salários, com redução de jornadas, sem
garantir a estabilidade no emprego. Além disso, o governo colocou à disposição das
empresas recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, para ajuda-las a pagar as
“despesas excedentes” com folha de pagamento. Ou seja, é o governo deixando
legalizado e livre o caminho para demissões e redução de salário e ainda dispondo de
recursos dos trabalhadores para financiar as empresas.

“Os especialistas exercitam a


criatividade e montam arquiteturas
novas para as relações e contratos de
trabalho, frequentemente classificadas
como flexíveis. Banco de horas,
contratos provisórios, terceirizações,
trabalho temporário etc: uma gama de
precariedades e negociações leoninas
vão se verificando na relação capital-
trabalho, em época de crise. As
sugestões e iniciativas ganham
aceitação diante do mal maior: o
desemprego e a recessão.” (GURGEL,
2009, p. 20)

Não podemos ignorar outro aspecto do pacote de ajuste fiscal no Brasil que é a
continuidade do pacote de privatizações, com a Petrobrás Distribuidora, Caixa
Econômica Federal, portos, aeroportos e estradas federais. A saída pelo esvaziamento
do aparato público serve à lógica do aumento contínuo de recursos destinados ao
pagamento da dívida pública. De acordo com o Movimento Auditoria Cidadã da
Dívida, do orçamento federal proposto para 2015, R$ 1,356 trilhão estão reservados
para os gastos com a dívida, o que corresponde a 47% de tudo que o país vai
arrecadar com tributos, privatizações e emissão de novos títulos, entre outras rendas.
Este valor representa, por exemplo, 13 vezes os recursos para a saúde, 13 vezes os
recursos previstos para educação ou 54 vezes os recursos para transporte, segundo a
mesma fonte.
Parecem histórias distantes, a grega e a brasileira, separadas pela conjuntura
específica de cada país, mas subordinadas ao mesmo jogo do capital internacional,
podemos olhar para a Grécia e pensarno que podemos esperar de um Brasil que segue
cumprindo rigorosamente a cartilha do capital. Se autonomia e crescimento, ou
subordinação econômica, política e científica.

4 – Considerações Finais:
Este artigo destina-se a contribuir para os debates a se realizarem no VI
Encontro de Administração Política, cujo objetivo explicitado em sua página
eletrônica é construir teórica e empiricamente um novo paradigma para a
administração, para que esta não seja uma simples reprodução do pensamento único,
consolidado e hegemônico, mas que esteja a serviço da transformação social,
econômica e política de nossa realidade.
A proposta de debate desse texto traz informações dos resultados do setor
financeiro, em especial dos 5 maiores bancos que atuam no Brasil, sendo em resumo
um crescimento contínuo das taxas de lucratividade. Ocorre que mostramos que esses
lucros não advém unicamente da atividade fim dos bancos, a intermediação
financeira, ou seja, pegar dinheiro de investidores e emprestar a tomadores, pagando-
se remuneração àqueles e tomando juros desses últimos.
A segunda maior fonte de renda, segundo estudo realizado pelo DIEESE, é a
remuneração de títulos remunerados de acordo com a orientação do governo, como
são os papéis cotados pela taxa Selic. Nessa fonte de lucros, incluímos também a
remuneração advinda da dívida pública, que consume atualmente quase metade do
orçamento público federal.
Outras fontes de lucro surgem na composição dos lucros dos bancos, como
redução de encargos com despesa pessoal e aumento da cobrança de tarifas. Porém,
em participação percentual, essas fontes tornam-se secundárias, sendo a transferência
de recursos públicos fundamental para justificar os resultados obtidos, mesmo em
uma conjuntura de crescimento pequeno ou até negativo no PIB brasileiro.
Procurando estar atentos aos objetivos do encontro, vemos como
imprescindível fazer essa discussão olhando para a conjuntura atual do ajuste fiscal
que não nos parece tratar-se hoje de um pacote de medidas isolados na lógica
internacional da economia, tendo pontos em comum ao processo histórico que
ocorreu na Grécia.
As mudanças no orçamento público, ocorridas em mais de uma ocasião ao
longo de 2015, somadas às alterações na legislação não nos demonstra que a
administração pública esteja somente nas mãos do poder executivo, como alguns
afirmam, propondo que a mera substituição de seu chefe seria o bastante para superar
a crise. A crise econômica, sabemos, não é de hoje, a crise política, provavelmente
encontrará uma a saída da qual não participará a maioria da sociedade, aquela que
vive de seu trabalho, como diz Ricardo Antunes.
Os dados históricos nos apontam um prognóstico que as saídas não irão mexer
com os balanços dos grandes bancos, porém nos direitos sociais já confiscados, esses
sim, poderão estar perdidos.

Referências Bibliográficas:

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho?Ensaio sobre as metamorfoses e a


centralidade do mundo do trabalho. São Paulo e Campinas: Cortez e Editora
da Unicamp, 1995.

AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA. Disponível em:


http://www.auditoriacidada.org.br/, consultado em: 29/06/2015

DIEESE.Boletim de Conjuntura. Disponível em:


http://www.dieese.org.br/boletimdeconjuntura/2015/boletimConjuntura002.pdf
Acessado em: 20/05/2015

_______. Desempenho dos bancos em 2014. Disponível em:


http://www.dieese.org.br/desempenhodosbancos/2015/desempenhoBancos2014.
pdf Acessado em 10/07/2015

FATTORELLI, Maria Lúcia. Por que os juros são tão elevados no Brasil. Disponível
em: http://www.auditoriacidada.org.br/por-que-os-juros-sao-tao-elevados-no-
brasil/. Acessado em 02/08/2015

GURGEL, Claudio. Reforma do Estado: crítica à razão liberal.Trabalho apresentado


ao XVIII Congreso Internacional del Centro Latinoamericano de
Administración para el Desarrollo (CLAD) sobre la Reforma del Estado y de la
Administración Pública. Montevideo, Uruguay. 2013.

_____________. Crises Econômicas: o público e o privado em aliança


conservadora. In: Revista Passagens Internacional, Niterói, 2009. Disponível
em: http://www.historia.uff.br/revistapassagens/artigos/v1n2a62009.pdf
Acessado em 20/07/2015

IBGE. PIB recua 0,2% e chega a R$ 1,408 trilhão no 1o. Trimestre de


2015.Disponível em:
http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnot
icia=2897 Acessado em: 16/05/2015.

SCIARRETTA, Toni. Bancos privados aumentam lucro com juros maiores e calote
estável. Folha de São Paulo. São Paulo, 06 de maio de 2015. Caderno
Mercado. Disponível
em:http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/05/1625227-bancos-privados-
aumentam-lucro-com-juros-maiores-e-calote-estavel.shtml . Acessado em:
15/05/2015
REUTERS. Lucro do Banco do Brasil cresce 117,3% no trimestre, para 581 bilhões.
Folha de São Paulo. São Paulo, 14 de maio de 2015. Caderno Mercado.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/05/1628889-lucro-
do-banco-do-brasil-cresce-1173-no-trimestre-para-r-581-bilhoes.shtml .
Acessado em: 15/05/2015

BANCO CENTRAL DO BRASIL.50 maiores bancos e o consolidado do Sistema


Financeiro Nacional. Disponível em:
http://www4.bcb.gov.br/top50/port/top50.aspAcessado em: 10/07/2015
 
 
 
 

O Iberismo como Impeditivo na Tentativa de Despolitização da


Administração Pública Brasileira: Contribuições da Análise de Visconde de
Uruguai no Processo de Construção do Estado Brasileiro

Fabiana Saboia Navarro (UFRRJ)


Maria Gracinda Carvalho Teixeira (UFRRJ)

Resumo
Este ensaio teórico intenta apresentar uma discussão sobre as permanências de algumas das
contribuições de Visconde de Uruguai no que diz respeito à dificuldade do Brasil em
estruturar um tipo de administração pública que imprima modernidade ao modelo de
centralização, e também à dificuldade em buscar na nossa própria trajetória histórica
inspiração para a estruturação de modelos de órgãos de gestão administrativa. A permanência
de traços formativos de influência ibérica é, nesta abordagem, o grande impeditivo para a real
incorporação de modelos de administração pública que contemplem, como fim último, uma
redefinição da relação Estado/sociedade, e consequente, o redimensionamento da cidadania
no Brasil.

Introdução

Análises a respeito da importância da interdisciplinaridade são, hoje, bastante


significativas no campo das Ciências Humanas e Sociais.
A partir disso, aproximar estudos do campo da História com o intuito de
complexificar a literatura da Administração Pública foi o objetivo majoritário deste estudo.
Cotejamos, com isso, as ideias de Visconde de Uruguai, surgidas no período
correspondente á metade do século XIX, no que pulsa à construção do Estado e consequente
estruturação da administração pública brasileira, a partir de três vetores principais:

1. A trajetória brasileira, refém do olhar e de escolhas de sua matriz formadora,


Portugal;
2. A construção de propostas para a construção do Estado, Visconde de Uruguai e o
Estado no Brasil.
3. E por último, a necessidade de uma contemplação mais acurada da nossa
trajetória e produção de ideias por estas figuras, no caso aqui, Visconde de
Uruguai, e parte da sua “linhagem intelectual”, que ao mesmo tempo pensavam e
ajudavam a construir o país, para possibilitar assim o alinhavar mais bem
sucedido de estudos acadêmicos.

Trabalhamos aqui, com o reforço na hipótese do iberismo como característica


histórico- formativa, e ainda presente na estruturação da administração pública brasileira.
A busca de Visconde de Uruguai, e de seus pares, mesmo em uma atuação
multigeracional, deve ser a mesma que a nossa, em nossos trabalhos: a singularidade
brasileira levada em consideração, como ponto de partida: “modelos” não vingarão, se o
iberismo não for considerado nosso traço formativo predominante; em alguns aspectos, de
urgente superação; e em outros, de delicada preservação.

Recuperação histórica- a construção da Nação no Brasil e o iberismo.

 
 

Entendemos que o mundo ibérico legara aos seus colonizados não somente uma
reafirmação da tradição aristotélica, mas também uma visão de mundo muito particular
presente na construção destas novas nações, construção esta pontuada de ações arbitrárias que
vinculam o seu passado aos produtos ideológicos do mundo moderno e contemporâneo, numa
permanente insubmissão aos códigos forjados pelo mundo anglo-saxão (BARBOSA FILHO,
2000).
O processo de independência de suas novas colônias trouxera ares esperançosos de
tempos novos, onde, na concepção dos letrados liberais, a liberdade, a justiça, o progresso e a
riqueza deveriam florescer na América. Cabia então, conforme relata PEIXOTO (2008), à
geração que sucederia a dos libertadores políticos a conclusão deste processo, isto é, a
elaboração de um conjunto de medidas que visasse a transformação do homem ibero-
americano em cidadão. Conclui Peixoto que a herança ibérica impregnou os modos de vida e
de pensar da América Hispânica, e a compreensão do significado pleno desta herança é
indispensável para detectar as desventuras e os obstáculos com que a modernidade se
deparou.
Neste momento, as atenções se voltaram para a organização liberal de seu sistema
político e para a valorização dos supostos que presidem a teoria do liberalismo, implicando
isto um forte movimento de recusa à herança ibérica. Era necessário, na visão de Prado,
“construir novos Estados, com instituições que garantissem a ordem e o controle sociais, mas
que também conferissem legitimidade aos que governavam” (PRADO, 1999, p.73).
Porém, a despeito de todos os esforços empreendidos, o passado do homem ibero-
americano insistia em não se converter em autêntico passado (ZEA, 1976); ele seguia sendo
um presente que não se decidia a ser história. O liberalismo político e o sistema de
representação se mostraram inviáveis em cenários onde não havia indivíduos, dotados dos
mais abrangentes direitos. Muito embora existam diferenças nos processos de independência e
constituição dos Estados nacionais, brasileiro e hispânico, um de caráter consensual e outro de
caráter conflitivo, o dilema quanto ao passado é comum a ambos.
A América Ibérica necessitava ainda conquistar uma autonomia do intelecto, uma
emancipação mental, como afirma Leopoldo Zea (ZEA,1976). Correntes do pensamento
político aportaram por aqui com a função de identificar as falhas produzidas pelo liberalismo,
sem, contudo, anular as mudanças estruturais obtidas com a sua implantação; concentramos
nossas atenções no positivismo, que baseado na ideia de progresso, se ocupava das questões
não equacionadas pelo liberalismo, tais como integração nacional (no Brasil, com a Escola de
Engenharia), cidadania, educação e a questão indígena. Seu arsenal teórico era bastante
atraente: o destaque dado à educação; a condenação da Monarquia em nome do progresso,
onde a república apareceria como a encarnação da última fase da lei dos três estados; a
separação entre Igreja e Estado; e a ideia de ditadura republicana, apelando a um Executivo
forte e intervencionista conforme nos ensina Carvalho (1990). O positivismo foi um
instrumento de severa crítica ao individualismo das sociedades anglo-saxônicas, da sua visão
de liberdade e práticas democráticas. Por conta disto, propôs um enfoque holista e de uma
sociedade orgânica cuja estratificação era baseada no saber.
Mas os efeitos esperados não vieram com a intensidade desejada. Como explica
Carvalho (1990, p. 31), “o apelo à integração e aos valores comunitários, feito nas
circunstâncias de desigualdade social extrema, de luta intensa pelo poder e certo desarranjo
financeiro, caía no vazio. Nada havia transformado a velha e discutida herança ibérica.” O
positivismo, a chamada filosofia do progresso, como lembra Zea (1976), se mostraria em fins
do século XIX, “aos olhos de uma nova geração, a geração com a qual se inicia a história
contemporânea do pensamento da América Latina, como a filosofia do retrocesso”. Não

 
 

havíamos conseguido ainda lidar com o nosso passado de modo que ele não fosse um
obstáculo à modernidade.
Em 1883, o regime imperial dava sinais de declínio; era mister tornar o Brasil um país
onde os códigos de civilização engendrados na Europa e nos Estados Unidos imperassem. E
de certa forma, a república simbolizava a possibilidade de concretização destes ideais de
progresso. Mas ainda em tempos imperiais, o país já tinha tomado contato com algumas
práticas liberais conectadas com o que entendiam ser manifestações da modernidade, como a
confecção da Lei de Terras de 1850, a Reforma Eleitoral de 1881, a Lei de Sociedades
Anônimas de 1882, e posteriormente, a abolição da escravidão, que liberaria o trabalho
(CARVALHO, 1987) E quais foram estes esforços empreendidos no sentido de ordenar a vida
no país a fim de desfrutar o que a civilização tinha a nos oferecer, mas que em pouco ou nada
abrandaram a influência desta pesada influência ibérica? O incremento da vida econômica, e
tudo que dela decorria, como investimento inglês, navegação, serviços urbanos, comércio; a
paulatina extinção do trabalho escravo, completa em 1888, e um consequente aumento do
incentivo à imigração (CARVALHO, 1988) a ampliação um pouco desordenada dos espaços
urbanos, e aqui me refiro mais especificamente à capital.
Sem mais apoio que o sustentasse, o império cedera lugar à república, e vinha a
certeza de que só com ela nos encontrávamos de fato aptos a lidar com os preceitos da
civilização e do progresso.
É um período onde, - embora com a presença de esforços no sentido de modificar o
estado de atraso do país e colocá-lo em contato com a chamada modernidade, nas suas mais
diferentes expressões, - “a tradição foi suficientemente forte para manter os valores de uma
sociedade rural, patriarcal, hierárquica” (CARVALHO, 1988, p.107).
A ideia de formarmos uma república nos presenteara com a sensação de inserção na
modernidade; mas o peso da nossa tradição formativa ainda nos acompanhava.
Da sua condição de colônia, o Brasil se torna refém da concepção portuguesa de
mundo, expressa na permanência de suas tradições. Portugal é reconhecido como uma nação
pouco dotada de “europeísmo” (HOLANDA, 1995) que se traduz num questionamento das
tradições europeias, fixando um conceito que se tornará emblemático na afirmação da Europa:
Civilização. Portugal não estava entre as nações europeias que cumpriam esta “receita
civilizatória”, por preservar tradições que esta ordem reformista insistia em questionar.
Era uma sociedade pouco definida no que diz respeito à divisão de classes, o que
provocava um reconhecimento muito mais pessoal do que de classe, e no todo, nacional.
Portugal, que havia conquistado a unidade política em torno do rei, permitindo-lhe aventurar-
se na conquista de novos mercados, não participou da confecção do que seria a “bandeira”
europeia na afirmação de sua hegemonia e de seu próprio reconhecimento, como missionária:
a ideia de civilização. Por civilização, através da elaboração francesa, podemos interpretar,
num primeiro momento, como a ampliação dos hábitos de Corte para o restante de sociedade;
O conceito de civilização, posteriormente, confunde-se com a ideia de unidade nacional, a
partir da existência de classes sociais definidas, que se encontram no espaço de ações
políticas, e no universo de hábitos e costumes, postas do mesmo lado ou em combate. E é este
conceito que vai permear as relações entre as nações europeias e destas com outras ainda em
processo de estruturação.
A proposta de civilização é um constante aprimoramento das instituições, dentro de
uma ordem reformista, preservando a “unidade dos costumes tradicionais” (ELIAS, 1994, p.
51-52), distanciando a nação cada vez mais da barbárie. Porém, a pertinência a uma
determinada classe social é bastante definida, pois é esta separação que permite uma unidade
de costumes: estes não se atêm à apenas uma classe, eles partem de uma e se tornam
nacionais, e mais ainda, no caso da França, universais. O indivíduo se reconhece e se
comporta como parte de uma classe, e posteriormente, como parte de uma nação. Entende-se,

 
 

portanto, “europeísmo”, como civilização, expresso em diferentes graus, a partir de diferentes


formas de apreensão.
Como nos explica Louis Dumont, o indivíduo, na modernidade, se encontra, por
completo, “dentro do mundo”, (DUMONT, 1999) fruto de acontecimentos que o tiram da
condição de subordinado em relação ao mundo: o Renascimento, a Reforma Protestante, e
coroando, a Revolução Industrial. Eles libertam o homem da tutela religiosa e da rede holista,
que se vê entregue agora a questionamentos derivados da sua nova condição de definidor da
própria trajetória.
Buscou-se então estabelecer a sociedade ou o Estado possível a partir do isolamento
do indivíduo “natural”, onde o instrumental teórico passou a ser a ideia de contrato, ou em
outras palavras, o estabelecimento de regras de convivência. Louis Dumont marca a
existência de dois tipos de contrato: o de associação, estruturado a partir da proteção à
liberdade, e o de sujeição, cujos tipos, em maior ou em menor grau, representarão tentativas
de resolver as questões surgidas com o individualismo: o direito à igualdade e o direito de
proteção à propriedade (DUMONT, 1999).
As propostas que surgiram, cujo objetivo sempre foi o de organizar o mundo, eram
dirigidas ao indivíduo, na sua qualidade mais primária: o ser, agente, motor de mudanças,
cujo caminho era marcado pela presença da razão, seja o cálculo utilitário, ou na a razão
derivada da ética. O indivíduo liberta-se da comunidade e lança-se à multidão; a cidade é o
espaço privilegiado deste indivíduo, não importando qual é a avaliação feita a seu respeito:
cidade como virtude, como vício e para além do bem e do mal, pois em todas estas, a cidade é
produtora de conhecimento, pois permite a manifestação de novos atores sociais e o
estabelecimento de suas relações uns com os outros.
O papel do intelectual na modernidade se conecta primordialmente à questão da
formação do espaço público; ao atuar neste espaço, ele se liberta e amplia seu público e suas
trocas. A figura do intelectual é dotada de autonomia e razão crítica em relação aos poderes
constituídos: Igreja, nobreza e Estados absolutistas. (BASTOS; REGO,1999)
Somado a isso estão a constituição de espaços acadêmicos enquanto espaços de
liberdade do espírito, e espaços de vivência urbana, as cidades, abertas a uma inteligência
boêmia e produtiva (JACOBY,1990).
Todo este processo de constituição do tipo intelectual encontra na cidade o seu lócus
privilegiado; a cidade como o espaço de exercício da liberdade de formação de cidadãos.
Seja qual for a interpretação do espaço urbano, a definição do modelo de cidade para
este mundo conquistado pelo indivíduo passava pela ideia de autonomia urbana, de autonomia
do homem na/da cidade (ROUANET, 1997, p.9).
Ainda sob o argumento de Sérgio Rouanet, o homem experimentava a possibilidade
de concretização de uma “cidade iluminista”, onde ela seria socialmente aberta, porosa ao
exterior, hospitaleira ao Outro, capaz de absorver a diferença; mas que insistiria numa
fronteira – a que existe entre a vida urbana e a natureza (ROUANET, 1997).
No Brasil não fora bem assim; se não apenas uma extensão do mundo rural, com
suas hierarquias e suas casas grande e senzalas, a formação das cidades, de fato, não pode se
encaixar no que acima nos referimos:
Os intelectuais, no Brasil, contrariando esta formação “clássica” de classe e atuação,
combinaram ideias e ações.
O intelectual brasileiro de fins do século XIX e começo do XX, “desencantado com a
ordem liberal instituída” (PEIXOTO, 2001), ainda que o cenário das cidades tivesse se
dinamizado sensivelmente, guardava uma singularidade: havia uma nação a ser construída, e
não pelo mercado, como expressão prática do indivíduo, e sim pelo Estado, ator protagonista.
O pensar dividia espaço com o executar.

 
 

A tradição intelectual no Brasil: Visconde de Uruguai e a Administração Pública


brasileira.

Os intelectuais tomam a responsabilidade de pensar a conjuntura brasileira, e


elaborar uma série de projetos e cursos que serão de grande valia para o país; no âmbito da
administração pública, levam em consideração ainda os mesmos parâmetros apontados por
Visconde de Uruguai, e que encontrou eco ao longo do tempo: centralização política,
primazia, na prática, do Executivo; primazia essa expressa no caráter organizador e
propositivo das ações do Estado.
Sérgio Miceli, cujas obras se apresentam como fundamentais na discussão acerca da
formação e atuação dos intelectuais no Brasil, aponta a atividade intelectual como disputa.
Aqui, suas ideias necessariamente devem ser compreendidas não como propositivas, e sim
normativas, ou como parte das “estratégias que lançaram mão para se alçarem às posições
criadas nos setores público e privado (MICELI, 1979).
Aqui, neste contexto, eles devem ser vistos como atores imersos em um debate entre
agentes e instituições para controle do campo intelectual. E os seus projetos para o Brasil
como a materialização de táticas de disputa de um determinado olhar a respeito do país a ser
reorganizado.
Dentro do que se entende ser a topologia da estrutura interna do campo, eles devem
aparecer imersos em um contexto de instituições e hierarquias, que também devem ser
apreciados (MICELI, 1979).
Acompanhado por uma preocupação quanto ao que nos impede em que nos
constituíssemos uma nação, o intelectual, de relação estreita com o serviço público, combinou
um poder político, conferido pelos seus cargos, com um poder ideológico, expresso pela
produção e transmissão de ideias, de símbolos e de visões de mundo. Os intelectuais desciam
do céu de ideias rumo à terra dos fatos e das ações.
Entendemos que Visconde de Uruguai faz parte de uma linhagem de pensadores que
leva em consideração a tradição ibérica para forjar novas premissas norteadoras,   compondo o
grupo de intelectuais que viam em um Estado centralizado a possibilidade de inserção no
mundo moderno, de, portanto, constituição da nação.
Recuperamos aqui alguns dos pontos da obra de Visconde de Uruguai, o que ressalta
a intenção de aproximar os campos de conhecimento da história e da administração pública;
no que condiz à análise histórica, a permanente presença do que entendemos ser o iberismo,
através da análise de alguns dos trabalhos mais relevantes produzidos por alguns dos
intelectuais brasileiros; e no enquadramento da administração pública, o apoio dos estudos a
respeito da adoção de modelos e suas respectivas reformas e desmontes.
Visconde de Uruguai parecia ter o “Estado como vocação”, característica que nos
parece comum aos intelectuais brasileiros. Conta Mattos (1999) que Visconde, pertencente a
uma geração que, como sua antecessora, reproduzia uma mesma formação intelectual,
expressa em um quase concluído curso de Direito na Universidade de Coimbra, uma carreira
de magistrado, com cargos de juiz-de-fora de São Paulo, juiz do crime e cível da segunda vara
da Corte, e finalmente com um salto para a política, então como deputado geral, senador,
ministro da justiça e de negócios estrangeiros, além, é claro, de fazer parte do Conselho de
Estado e do Conselho do Imperador.
Visconde de Uruguai adquiria tal formação, partilhada por outros políticos, que
“possibilitava uma coesão de ideias e de propostas”, no exercício de suas atividades
desempenhadas na condição de membro da elite imperial; Visconde de Uruguai fez ao longo
da sua trajetória política, da preservação da ordem nacional a direcionadora de suas propostas,
preservação esta coordenada pela ação do poder executivo.

 
 

Em Ensaio sobre o Direito Administrativo, Visconde de Uruguai procurou


“estabelecer um corpo de ideias que justificassem o centralismo político decorrente do
movimento do regresso”; não apenas justificando-o, mas apontando a escolha por esta forma
de Estado como único viável; nas suas palavras: “a centralização política é essencial”
(VISCONDE DE URUGUAI, 1862, p. 348). Para Visconde de Uruguai, nenhuma nação
pode existir sem ela.
Nos governos representativos obtém-se a unidade na legislação e na direção dos
negócios políticos pelo acordo nas Câmaras e do Poder Executivo. Por meio do mecanismo
constitucional convergem os Poderes para se centralizarem em uma só vontade, em um só
pensamento. Feito: a centralização política é premissa para a organização do país; entretanto,
Visconde de Uruguai vai além, e trata desta mesma organização como dependente do
estabelecimento de uma distinção entre os dois possíveis tipos de centralização: a política e a
administrativa (MATTOS, 1999, p. 210); uma centralização política que permita a formação
de agentes administrativos, representantes diretos do poder central, encarregados dos
chamados pequenos negócios, dos assuntos locais. Segundo Visconde de Uruguai, “pelo que a
autoridade é, especialmente nos países centralizados, o atributo essencial, o instrumento
principal do Poder Executivo governamental. É por meio do complexo dos agentes que
formam a administração que se põe ele em contato com os particulares, que lhes transmite as
suas ordens, que estuda as suas necessidades e recebe as suas reclamações” (VISCONDE DE
URUGUAI, 1862, p. 26).
Em 1862, Visconde de Uruguai publica a obra Ensaio sobre o Direito
Administrativo, dando pistas a respeito da dicotomia que nos acompanha ainda nos dias de
hoje: o Brasil real e o Brasil legal; em outras palavras, a engenharia política estruturada não
dera conta dos resquícios da nossa formação ibérica, o que Visconde de Uruguai define como
“vícios”; ainda que o perfil do Estado imperial, contivesse muito do convencional pós-
patrimonialista.
Operando uma minuciosa análise a respeito do Direito Administrativo – sua origem,
apresentação, possibilidades, e relação com os outros campos do Direito-, Visconde de
Uruguai estuda as mais diferentes apresentações da administração pública na Europa, e
conclui que a “versão” portuguesa guarda condições muito peculiares, se comparada às
demais: “Uma tendência ao aparato... uma administração que peca pela falta de meios e de
ação, uma cabeça enorme em um corpo entanguido...” (VISCONDE DE URUGUAI, 1862?
p.184)
“O mal não vem da Constituição” (VISCONDE DE URUGUAI, 1862, p. 190). Se
não há nada de errado com as leis, como aponta sua meticulosa apresentação, que neste trecho
toma forma de um estudo comparativo das experiências da administração pública- Brasil,
Inglaterra, França, Portugal, e Espanha, e atenção especial à constituição dos Conselhos de
Estado, qual seria o entrave?
Justamente neste trecho, de traço comparativo, é que Visconde de Uruguai elucida:
devemos nos espelhar na experiência inglesa, onde a atenção à tradição deve se sobrepor à
teoria: “As reformas existem no espirito público antes de serem convertidas em lei”.
(VISCONDE DE URUGUAI, 1862 p.265).
O ponto nevrálgico de sua análise reside na centralização como característica
principal da administração pública brasileira “sem centralização não haveria Império”
(VISCONDE DE URUGUAI, 1862, p.178).
Em outras palavras, o perfil do Estado brasileiro permitiu o delineamento deste nosso
vasto território; além de um incipiente, mas existente contato entre as regiões. Um modelo
centralizador permitiu, segundo Uruguai, uma “uniformização” de impostos, mas,
principalmente, de condutas no trato da coisa pública.

 
 

Ainda que não descarte práticas descentralizadoras, em trechos que versam, entre
outras coisas, na ainda difusa relação entre Centro e províncias (outro expressão da atualidade
de seu diagnóstico), Uruguai crê, e credita à concentração de decisões nas mãos do Executivo
(e se tratando de Império, o Poder Moderador) a construção da nação brasileira.
A proposta era então, de formação de um Poder Central presente em todos os níveis
da vida do país, através de uma administração eficiente e apartidária; nas palavras de Ilmar
Mattos, o que importava, segundo as proposições de Visconde de Uruguai, acerca da
centralização política era “colocar em permanente relação, por meio de um exercício de
direção, o governo do Estado e o governo da Casa, romper seu isolamento, para poder vigiá-lo
e dirigi-lo” (MATTOS, 1999, p.216). Portanto, o projeto de Visconde de Uruguai, de reunião
dos governos do “Estado e da Casa”: O projeto da técnica, manipulada por uma elite ilustrada,
que daria conta das questões do país, partindo de premissas, tais como: neutralidade e
imparcialidade.
O modelo de administração descentralizado, norte-americano não se instauraria aqui
de forma bem sucedida, por se tratar de outra formação histórico-cultural, em nada congruente
com o modelo de autogoverno.
O país segue sua trajetória, adotando práticas onde o Estado oscila entre ação
principal e a coadjuvante, mas as lacunas abertas com a estruturação do Estado, ainda em
tempos imperiais, continuam, e muito, abertas.
A literatura sobre administração pública caminhou, no Brasil, até meados do século
próximo passado, ainda com este norte direcionador: a centralização da administração pública
somada à neutralidade científica.
A atuação do Estado, sob o controle de Vargas, privilegia práticas centralizadoras, no
intuito de reunir, sob o controle do Estado, o funcionamento do corpo social, “com ênfase na
reforma dos meios (atividades de administração geral) mais do que na dos próprios fins
(atividades substantivas)” (WARLICH, 1974, p.28) .
Falamos de linhagem de pensamento; no contexto dos anos 30, tão marcante para a
administração pública, a modernização administrativa proposta pelo governo de Vargas levou
em consideração esta marcante característica cultural formativa; a pouca familiaridade do
indivíduo com a coisa pública dava ao Estado e seus notáveis plenos poderes de mudança:
Oliveira Vianna, ideólogo do Estado Novo, é pertencente desta linhagem, e herda muitos dos
pontos levantados por Visconde de Uruguai.
Oliveira Vianna reconhece que na tarefa de modernizar o país, dois caminhos se
apresentam como possíveis: o constituído de técnicas liberais, “quando o Estado deixa ao
povo a liberdade de executar ele mesmo, espontaneamente, a inovação pretendida pela
política que, ele, Estado, adotou ou planejou” (VIANNA, 1987, p. 210); e o constituído de
técnicas autoritárias, quando o “Estado obriga o povo a praticar a inovação, usando da força
coercitiva (VIANNA, 1987, p. 210). “Naturalmente”, Oliveira Vianna descarta a primeira
possibilidade, já que o conjunto de indivíduos assim aqui formado jamais teria condições de,
por ele mesmo, executar qualquer reforma. A segunda possibilidade dá ao Estado plenos
poderes de ação reformadora. Ela se mostrará eficiente, se levar em conta o que Oliveira
Vianna chama de “nossa estrutura tradicional” (VIANNA, 1987), ou em última análise, a
nossa trajetória histórica, a nossa “condição de brasileiros”:
Compondo o grupo de pensadores que viam em um Estado centralizado a
possibilidade de inserção no mundo moderno, de, portanto, constituição da nação, Oliveira
Vianna, porém, inova no que diz respeito à natureza deste Estado: ele deve estar de acordo
com doutrinas corporativas, parecendo uma criação decorrente da nossa trajetória. Embora
suas críticas recaiam sobre o comportamento das elites, comportamento esse expresso num
descompromisso com o todo, Oliveira Vianna não ignora a sua importância como agentes
sociais.

 
 

Sua capacidade de mobilizar e de reunir os outros componentes em torno de seus


interesses, que ultrapassou as fronteiras municipais, será a base da relação travada entre o
Estado e o povo. Para este Estado legitimar-se, ela carece amalgamar essa necessidade em
tornar-se uma Nação, partilhando um ideal civilizatório, com ideais de quem cunhou o traço
mais característico de nossa sociedade: as diferentes elites. Tornar o Brasil uma Nação
moderna é o objetivo, e a participação das elites na estruturação do Estado é o único caminho
viável, nada subversivo, ao não romper com as hierarquias.
O Estado, dotado de um Poder Executivo forte, se apresenta como um mediador dos
interesses desses vários grupos associativos, as elites.
Nesta linhagem, um ponto a ser notado é a percepção das qualidades do
individualismo utilitarista norte-americano, atreladas à impossibilidade de tornar-se padrão
para os demais países. Não serve para o resto do mundo, não serve também para o Brasil.
O Brasil, já no contexto dos anos 50, experimenta sensações de progresso via
técnica: o processo de industrialização, ainda que retardatário se comparado aos processos dos
países desenvolvidos, encontrou neste período, condições ideais para germinar.
A presença do Estado no direcionamento das políticas públicas e incremento da
economia e infraestrutura, aliada ao capital privado interno e à chegada de capitais externos,
possibilitou experenciar momentos de desenvolvimento em vários campos.
Situando aqui como corte temporal o desfecho trágico do governo Vargas, em 1954,
e em seguida, em 1955 o início do governo Kubitschek, o país nos apresenta um fôlego novo,
capaz de transpor os grilhões remanescentes do atraso econômico e social, do qual ainda
éramos reféns.
Mas com a sequente supressão de direitos decorrente da instauração de governos
ditatoriais ao longo de sofríveis anos, o distanciamento entre o indivíduo e a atuação do
Estado ficou ainda mais evidente, deixando a íntegra experiência cidadã em planos
secundários.
O repertório da agenda do Estado a partir dos anos 80 do século XX vai de encontro
aos anseios de reformadores fiscais, que preocupados com o desempenho do Estado, focam a
elaboração na reforma gerencialista, negligenciando aspectos que proporcionariam robustez à
sociedade enquanto ator social principal (LUSTOSA DA COSTA, 2010).
O que Visconde de Uruguai, ainda no século XIX, e outros intelectuais que
partilhavam de suas colocações preconizavam, é a elaboração de um conjunto de práticas
administrativas que levassem em conta nossa trajetória, sem importação de modelos, bem
sucedidos em outros contextos, é bem verdade, mas dissonante com a realidade brasileira.
Para que as reformas sejam práticas, antes de serem leis (VISCONDE DE
URUGUAI, 1862), o conjunto de indivíduos deve estar instrumentalizado no sentido do
conhecimento e exercício de seus direitos, nas suas mais diferentes esferas, civil, política, e
social (MARSHALL, 1967).
O Brasil recebeu como maior legado de sua metrópole o estreitamento da tradição
de uma “cultura do personalismo” (HOLANDA, 1995), presente em todos os aspectos
formativos desta nova república. E não levarmos isso em consideração tornará qualquer
aporte intelectual estéril na tentativa de contribuição para o incremento da nação e
consequente redimensionamento da cidadania.

Discussão final
Reféns que somos de nossa formação, e principalmente das nossas escolhas, temos
no conjunto de trabalhos produzidos, seja no campo da História, seja no campo da
Administração Pública, uma gama sortida de vozes, entoando variações de um mesmo tom: o
Brasil ainda busca seu caminho.

 
 

Contribuir para a discussão destas permanentes assertivas no perfil do Estado


brasileiro foi a intenção final deste artigo: ideias, intelectuais e administração pública
brasileira.
“Recuperamos” na história, parte que inicia este texto, através da escolha de
bibliografia que traz o iberismo como característica mais marcante da nossa formação,
aproximarmo-nos, de Portugal, de forma imbricante (não poderia deixar de ser, já que
Portugal é nossa matriz formadora), através do confronto entre “europeísmo” e “iberismo”.
O contato com a literatura do campo da administração pública brasileira nos aponta
que a adoção de modelos para a administração pouco valoriza este traço, ou acredita que o
perfil do Estado brasileiro se resume a ações administrativas... o Estado brasileiro, ao
contrário, é produto de práticas que nasceram da “ escolha ibérica” lá de trás, e se calçou na
nossa dificuldade em tratar da nossa pertinência imposta pela metrópole, em sua singular
relação com sua mais importante colônia, e fundou suas mais profundas características,
presentes, na composição e nas relações entre os mais diferentes atores.
O estudo acerca das análises produzidas por intelectuais brasileiros, aqui a escolha
recaiu sobre o Visconde de Uruguai, mas que poderia ser qualquer outro da sua envergadura,
porque sim, temos trabalhos riquíssimos, que podem constituir matrizes de pensamento,
intelectuais, que elaboravam diagnósticos, e por sua condição de homens públicos, tinham a
chance de ajudar a executar suas próprias proposições, é fundamental na montagem deste
quebra-cabeça nacional, que é o nosso país, que somos nós.

Referências Bibliográficas

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MATTOS, I. R. O lavrador e o construtor – O Visconde do Uruguai e a construção do Estado
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MICELI, S. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel, 1979.
PEIXOTO, A. C. P. Liberais ou Conservadores? In: PASCHOAL, Lucia Maria Guimarães;
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PEIXOTO, A. C. Estado e legitimidade na América Latina no século XIX. O projeto


conservador. Disponível em: http://www.4shared.com, 2008.
PRADO, M. L. C. América Latina no século XIX: Tramas, Telas e Textos São Paulo/
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VIANNA, O. F. J. Instituições Políticas Brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
VISCONDE DE URUGUAI. Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
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WARLICH, B. Reforma Administrativa Federal Brasileira: passado e presente. Revista de
Administração Pública. Rio de Janeiro. (8):27-75, abr./jun.;1974.
ZEA, L. Z. El pensamiento Latinoamericano. Barcelona: Editorial Ariel, 1976.

 
As políticas de gestão de pessoas no setor público: uma análise das
carreiras dos técnicos administrativos e os programas de
desenvolvimento pessoal na Universidade Federal Fluminense.
Raphael de Mendonça (UFF)

Resumo
Este artigo tem o propósito de explicar a dinâmica em que os técnicos administrativos da
Universidade Federal Fluminense (UFF) se encontram em suas atividades. Ainda, analisar como as políticas
de gestão de pessoas atuam no desenvolvimento de suas carreiras. Abordaremos a influência da estrutura
organizacional burocrática, faremos uma análise dos conteúdos do Plano de Desenvolvimento de Carreiras
da UFF, descreveremos como dispositivos das leis são usados para atributo de força e poder pelos superiores
e, por fim, passaremos pelo processo de desmotivação com que os servidores se defrontam. Como
metodologia de pesquisa fora utilizada a análise de referenciais teóricos sobre universidades e descritas duas
entrevistas feitas com funcionários envolvidos em situações conflitantes com a Administração. Os
resultados demonstram como a influência e o poder são fatores determinantes que direcionam as carreiras
dos técnicos administrativos e como as normas que norteiam suas carreiras são incapazes de corrigir
possíveis desvios de gestão. Além disso, constata-se a visão produtivista do servidor público pelas políticas
de gestão de pessoas e a manutenção destas práticas em forma de programas de desenvolvimento de
carreiras.

Introdução
Este artigo tem por fundamento analisar a dinâmica das políticas públicas de
gestão de pessoas aplicadas na Universidade Federal Fluminense (UFF), no período de
2012 a 2015, através da experiência profissional deste autor na observação direta sobre as
carreiras dos técnicos administrativos. Trata-se de um estudo de caso que tem por
finalidade analisar as condições organizacionais que as carreiras destes servidores estão
inseridas. A estrutura organizacional, a política de gestão de pessoas e a gestão da alta
administração serão objetos de estudo através da análise de referenciais teóricos e outros
trabalhos que tem aplicação semelhante. Além disto, será trazida a luz do estudo, uma
análise de duas entrevistas feitas com servidores desta instituição.
Cabe salientar, que são poucas, a não dizer raras, as contribuições da literatura
acerca desta categoria de servidor (VIEIRA 2004). Os trabalhos elaborados que analisam
as Instituições de Ensino Superior (IES) são focados no eixo aluno-professor, como
observa Vieira (2004) citando Fonseca (1996) “(...) as obriga a se concentrarem nas
atividades-fim, configuradas por atividades desempenhadas basicamente por professores e
alunos, ocultando, muitas vezes, ‘um novo ator na cena universitária’ a saber: os
funcionários técnico-administrativos.” (FONSECA, 1996).
O conteúdo deste artigo foi estruturado nas seguintes partes: na introdução,
abordamos o objeto de estudo, a temática e a metodologia de pesquisa aplicada. No
desenvolvimento serão abordadas as características peculiares da universidade, com base
na sua estrutura organizacional, na política de gestão de pessoas e nas conjecturas que
tornam o servidor acomodado em seu cargo. Termina-se o desenvolvimento com a análise
de duas entrevistas feitas a servidores que abrangem todo o objeto pesquisado. Na
conclusão apresentamos o resultado dessa análise e as possíveis soluções para a
problemática.
Como metodologia fora aplicada: a) análise de documentos (leis e normas) que
regem a política de recursos humanos; b) duas entrevistas semi-estruturadas com
funcionários envolvidos em processo de remoção. A análise e a coleta de dados teve o
intuito de trabalhar a hipótese de que o servidor técnico administrativo não possui
respaldo da Administração para manter suas motivações elevadas.
A Universidade Federal Fluminense
Criada em 1960, a UFF atualmente conta com aproximadamente 11 unidades de
ensino espalhadas pelas diversas regiões do Estado do Rio de Janeiro e, em sua maioria,
na cidade de Niterói. Composta por 7868 funcionários em atividade, a universidade possui
em seu quadro 3391 docentes e 4477 técnicos administrativos, sendo estes últimos o
objeto de análise deste artigo. Neste universo, há uma diversidade de áreas e modalidades
de ensino disponíveis para alocação destes servidores. Com o objetivo de tentar explicar a
dinâmica das relações de trabalho na UFF, vamos analisar primeiro sua estrutura
organizacional.
Paula (2000) nos mostra que a partir dos anos 70, a universidade ampliou seus
quadros funcionais, seus níveis hierárquicos e cargos a serem preenchidos. Nesse sentido,
a racionalidade burocrática (agir segundo etapas calculadas) surgia como alternativa de
gestão. Conforme cita a autora: “a busca de uma ‘racionalização’ crescente para as
instituições universitárias foram responsáveis pelo surgimento de uma racionalidade
técnica na qual os fins se ajustam aos meios.”
Salm (2006) nos traz uma importante definição de Weber (1978) ao dizer que a
universidade se caracteriza, principalmente, por uma pirâmide hierárquica elaborada,
divisão de trabalho parcelada, regulamentação escrita onipresente, grande importância
conferida aos especialistas e técnicos, controles sofisticados, comunicação difícil entre os
escalões da empresa, centralização do poder, autonomia relativamente escassa para os
patamares inferiores e um direito de expressão muito limitado. (WEBER 1978)
Conforme cita Ramos (1983), a estrutura organizacional é uma ferramenta
gerencial que define o sistema administrativo: “a estrutura organizacional, (...) que
determina as linhas de autoridade, as competências, as hierarquias funcionais, e os grupos
que, no interior da unidade administrativa, procuram ajustar a estrutura formal às
motivações”. Segundo o autor, a estrutura se torna um elemento configurador, e no
presente estudo de caso, possui importante influência para análise.
Tomasi (2012) citando Hardy e Fachin (2000) nos traz a concretização da
característica burocrática que predomina nas estruturas hierárquicas de uma universidade.
Além disso, os autores salientam a importância com que uma estrutura organizacional
influencia a gestão, corroborando com a ideia defendida por Guerreiro Ramos. Tomasi
demonstra que o modelo de decisão baseado no sistema burocrático apresenta as seguintes
características:
   
Figura  1.  Fonte:  Tomasi(2012  p.93)  
Nesse sentido, devemos relacionar os processos de tomada de decisões da alta
gestão com o modelo burocrático de Weber (1978): formalidade, impessoalidade e
profissionalismo.
Na tabela a seguir, é possível verificar a quantidade de órgãos na estrutura
organizacional da UFF segundo a natureza destes:

  Órgãos por Tipo

Acadêmico 408

Administrativo 1502

Outros 55

Total 1965

Tabela 1. Fonte: SIORG / Julho - 2015 Dísponivel em


https://sistemas.uff.br/transparencia/organograma. Acesso em 21/07/2015.
Como podemos observar, há uma predominância de órgãos administrativos sobre
os demais, o que nos evidencia a necessidade quantitativa dos técnicos no quadro da UFF
e reforça a ideia de que são muitos os trabalhadores sob a responsabilidade do setor de
Gestão de Pessoas (SGP).
Antes de avançarmos, temos que considerar alguns aspectos inerentes às
universidades que as distinguem de outras organizações. Segundo Tomasi (2012) citando
(FREITAS;SILVEIRA1997), as características peculiares são: “(...) decisões tomadas
pelos órgãos colegiados; estrutura descentralizada e fragmentada (...) irradiação da
autoridade por meio de zonas de poder e de influência”
Pela análise observada anteriormente, podemos elucidar que as decisões
descentralizadas ocorrem nos órgãos acadêmicos, enquanto que nos órgãos
administrativos a centralização é forte, obedecendo a uma estrutura vertical rígida de
autoridade e responsabilidades.
Assim, podemos diferenciar dois tipos de estruturas presentes. Mintzberg (2008)
define a burocracia profissional como uma estrutura altamente especializada e flexível em
seu nível operacional. Nesse caso, podemos afirmar que os docentes são a classe
operacional dotadas de grande especialização e autonomia para tomar suas decisões, como
por exemplo, as de colegiado. Por outro lado, os técnicos administrativos estariam
vinculados à estrutura mecanizada de burocracia (MINTZBERG 2008), na qual linhas
hierárquicas são traçadas para definirem o sistema de decisão e comunicação, estando o
técnico no nível operacional após diversas fragmentações da estrutura. Deste modo, é
notável perceber as diferenças entre as estruturas dos técnicos com as dos docentes.
Com isso, podemos avançar analisando o fato da exclusão destes servidores na
dinâmica universitária. Vieira (2004) citando (CUNHA, 2000; RISTOFF, 1999;
SOBRINHO & RISTOFF, 2000) nos traz uma importante informação da atuação dos
técnicos administrativos no cenário acadêmico. Estes autores definem a universidade
como um eixo aluno-professor, estando assim fora desse eixo os trabalhadores de nossa
análise.
Por isso, é de suma importância que a gestão tome suas decisões conforme as
peculiaridades dos cargos existentes, pois esta tem o papel fundamental de conciliar os
interesses e corrigir as disfunções existentes.
Segundo Gaulejac (1946, p.35), gestão pode ser definida como “discursos sobre os
modos de organizar a produção, de conduzir os homens que a isso contribuem [...]”, ou
seja, é um sistema de organização do poder que possui fundamentos e características que
evoluíram com o tempo. Ainda, de acordo com o autor (p.38): “Ele encerra os indivíduos
em um sistema paradoxal que os leva a uma submissão livremente consentida”. É nesse
consentimento que os males considerados são desenvolvidos e provocam alguns
problemas que serão propostas de análise deste estudo.
Com a alta verticalização da estrutura hierárquica, surgem zonas de burocracias
entre os setores administrativos que contribuem para o afastamento do técnico
administrativo no cerne dos processos decisórios da instituição. O técnico passa a ser visto
como uma função de apoio corroborando com a visão ‘fora do eixo de aluno-professor’
como mencionado anteriormente. Essa categorização o torna mais sucinto a deficiências
em sua carreira.
A manutenção dessa situação profissional dos servidores é o que consideramos por
si só a degradação de suas carreiras, tendo em vista o processo que transforma a
motivação em desmotivação pelo decorrer do tempo. Nesse sentido, analisaremos as ações
de Gestão de Pessoas sob o enfoque político das leis e normas que regem o sistema
administrativo da UFF.

As Políticas de Gestão de Pessoas (PGPs)


As PGPs são exercidas através de uma pró-reitoria que tem a incumbência de
aplicar as ações governamentais através de programas de desenvolvimento. Para isto
deve-se ater estritamente às normas e leis, daí cabe à necessidade de analisar tais
instrumentos. A seguir, mencionamos as principais normas que instruem o
desenvolvimento de carreiras dos técnicos administrativos:
a) Lei 11.091/2005 e suas alterações - Dispõe sobre a estruturação do Plano de
Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos em Educação, no âmbito das Instituições
Federais de Ensino vinculadas ao Ministério da Educação, e dá outras providências;
b) Decreto no 5.707/2006 – Institui a política e as diretrizes para o
desenvolvimento de pessoal da Administração Pública Federal direta, autárquica,
fundacional e outros;
c) Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI - UFF 2013-2017).
A aplicação das PGPs da UFF será executada pelo Plano Anual de Capacitação –
Edição 2015 (PAC UFF 2015) e o órgão responsável pela aplicação dessas diretrizes será
a Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (Progepe).
Segundo o sítio da UFF a Progepe tem por finalidade:
“(...)o desenvolvimento de atividades de Coordenação de
Pessoal Técnico Administrativo e Docente; capacitação e
qualificação profissional, lotação e movimentação de Pessoal; (...)
coordenação de Atenção Integral a Saúde e Qualidade de Vida do
Servidor; segurança no Trabalho e Saúde Ocupacional,
Procedimentos Administrativos Disciplinares(...)”
Como descrito acima, analisaremos o conceito de capacitação conforme
entendimento da universidade sobre as leis e regulamentos que a norteiam:
“Entende-se por capacitação, de acordo com o exposto no
Decreto nº 5.707/2006, o “processo permanente e deliberado de
aprendizagem, com o propósito de contribuir para o
desenvolvimento de competências institucionais por meio do
desenvolvimento de competências individuais”.
“A Capacitação tem o objetivo de auxiliar os servidores
técnico-administrativos da UFF em seu processo de adquirir novos
conhecimentos, habilidades e atitudes necessários ao seu
desenvolvimento profissional e ao processo de melhoria contínua
dos serviços prestados à sociedade pela Instituição.” (PAC UFF
2015 p.04). Grifos do autor.
Conforme podemos verificar, existe uma série de conceitos (capacitação,
desenvolvimento, conhecimento, atitudes, habilidades) definida pela lei que serão
aplicadas em ações que caracterizam as PGPs.
De acordo com o PAC-UFF 2015, entende-se por capacitação o processo de
aquisição de novos conhecimentos, habilidades e atitudes. Conforme cita em seu bojo
(p.4) este documento visa o “desenvolvimento contínuo do servidor para atender às
necessidades institucionais e à melhoria dos serviços prestados à sociedade”.
Em outro momento, o plano define: “as ações voltadas à capacitação enfatizarão a
prática dos conteúdos trabalhados e as relações entre novas aprendizagens e o cotidiano
dos servidores-alunos” (PAC-UFF 2015).
Podemos perceber que os programas oferecidos se voltam para o treinamento nos
cargos reforçando a ideia de que o servidor participa mais nas operações-meio e não nas
operações-fim. São atividades voltadas para o domínio de técnicas mais elaboradas que
irão reproduzir processos burocráticos e rotineiros. Vieira (2004) analisa os cursos de
capacitação como atividades de curto prazo e não ensinam os funcionários a participarem
da transformação de suas próprias realidades. Nesse caso, as PGPs estão reforçando uma
prática de reprodução utilitarista para a carreira destes servidores.
Esse produtivismo se perpetuará em atividades pertencentes a uma estrutura
burocrática mecanizada (MINTZBERG 2008), ao passo que é na outra estrutura
burocrática, a profissional, que é dado ênfase às atenções da comunidade acadêmica.
Dessa forma, podemos demonstrar que as PGPs contribuem para um produtivismo
que aliena o servidor de sua contribuição para a universidade. Atendo-se aos
desenvolvimentos de técnicas e ferramentas burocráticas, o servidor reforça-se como
sujeito de apoio administrativo e não o sujeito participante das decisões acadêmicas.
As manifestações políticas em forma de “remoção”: análise de duas entrevistas.
Para adentrarmos nos interesses da alta gestão em relação as suas decisões tomadas
para a universidade, vamos analisar duas situações que envolvem decisões a serem
tomadas em relação aos técnicos administrativos. Mais precisamente, na resolução de
incongruências que envolvem esse sujeito da pesquisa. Trata-se de um instituto da lei
8112/90 que versa sobre a movimentação nos próprios quadros da organização com o
intuito de adequar as necessidades de vagas e servidores.
Antes de analisarmos as entrevistas feitas, vamos aos conceitos jurídicos sobre a
remoção. Segundo a lei 8112/90:
Art. 36. “ Remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de
ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede.”
Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, entende-se por
modalidades de remoção: (Redação dada pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)
I - de ofício, no interesse da Administração; (Incluído pela Lei nº
9.527, de 10.12.97)
II - a pedido, a critério da Administração; (Incluído pela Lei nº
9.527, de 10.12.97)
III - a pedido, para outra localidade, independentemente do
interesse da Administração: (Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)
Cabe identificar para o nosso estudo, que o instituto da remoção pode ser
executado por duas motivações – basicamente por vontade do servidor que passará pela
análise da administração e no outro caso pela vontade da administração sem a anuência do
servidor. Desconsideraremos o inciso III, por se tratar de acompanhamento de cônjuge
que se desloca para outra localidade.
Nesse momento, vamos analisar uma entrevista feita com o Servidor R, um
Técnico Administrativo em Educação com sete anos de exercício na UFF.
Este servidor relatou que fora removido de sua lotação após entrar em conflito com
a chefia imediata. Seu processo de remoção se deu de ofício, no interesse da
Administração. Nesse caso, o “interesse da administração” se objetivou em atender os
anseios da chefia que, segundo o entrevistado:
“após discutir com minha chefe, ela enviou uma carta
aberta à Progepe explicando, em suma, que não havia condições de
eu permanecer no setor, por quebra de confiança. Porém não foram
estabelecidos critérios que explicassem que confiança seria essa,
pois ao meu ver, as minhas atribuições eram efetuadas com muito
profissionalismo e reconhecimento, tanto pelos alunos, quanto pelo
meus pares(...)”
Ainda, conforme citou o entrevistado:
“a remoção foi solicitada pelo Diretor da Faculdade, pessoa
de relacionamento direto com a minha chefia, demonstrando um
exercício de força e poder ao propor para o setor de GP a executar
uma remoção, por não me quererem mais lá...”
Casos como este demonstram ainda certa zona de poder e influência nos diversos
setores da universidade. O instituto da remoção é um ato de relevância para administração,
pois sana um problema quando se necessita adequar a mão de obra aos cargos existentes,
mas nesse caso fora utilizado como instrumento de força e poder.
No caso em concreto, não houve uma abordagem do setor de GP com o
funcionário, no sentido de questionar suas objeções e se havia vontade sua de mudar ou
não. Simplesmente transferiram-no para outro setor sem a sua concepção, como
consequência de um conflito entre as duas partes.
Se a interpretação do dispositivo “a interesse da administração” for balizado pelas
vontades políticas, isto fere o serviço público, pois tanto a chefia quanto os seus
subordinados, gozam dos mesmos direitos de opinião. Conforme comenta Carvalho Filho
(2010) sobre o princípio da impessoalidade nos atos públicos:
“O princípio objetiva a igualdade de tratamento que a
Administração deve dispensar aos administrados que se encontrem
em idêntica situação jurídica. Nesse ponto, representa uma faceta do
princípio da isonomia. Por outro lado, para que haja verdadeira
impessoalidade, deve a Administração voltar-se exclusivamente para
o interesse público, e não para o privado, vedando-se, em
consequência, sejam favorecidos alguns indivíduos em detrimento
de outros e prejudicados alguns para favorecimento de outros.”
(CARVALHO FILHO 2010 p.22).
Assim, caso houvesse uma necessidade de punição, este fundamento estaria
previsto na lei 8112/90, como advertências, multas, suspensão e demissão (lista taxativa).
Nesse caso a remoção fora utilizada como um processo de punição, mais precisamente de
forma política. Isto demonstra que faltam políticas de GP que atuem no sentido de
desenvolverem os servidores. Nesse caso em concreto houve uma manifestação unilateral
de vontade para se corrigir um problema de relacionamento que favoreceu as decisões da
chefia.
A seguir, vamos analisar a outra entrevista, feita com o Servidor C que exerce uma
função de nível superior e que solicitou um processo de remoção com o intuito de adequar
sua função ao cargo. A entrevista teve como fundamento questionar se a função para qual
fora admitido no serviço público estava sendo aplicada e se o plano de desenvolvimento
de carreiras estava sendo executado conforme suas aspirações.
Conforme relatou o entrevistado, sua função para qual fora admitido no serviço
público não era condizente com a qual ele exercia. Tratava-se de uma função desviada de
seu propósito, conforme disse o entrevistado: “Isto me trouxe certa insatisfação, tendo em
vista que não exerço as atribuições do cargo a qual fui admitido.” Com o propósito de não
deixar-se acomodar em atividades rotineiras e distantes de sua função, o entrevistado
requisitou a remoção para transferir-se ao cargo adequado:
“Solicitei a remoção, para que o setor responsável pelas
diretrizes de nossas carreiras, o setor de GP, resolvesse a minha
situação. Porém, todo o trâmite deverá ter a anuência de minha
chefia imediata, mesmo eu estando lotado de maneira equivocada.
Trata-se de uma decisão discricionária da minha chefia e dependo da
disponibilidade do setor de GP em resolver o meu problema.”
Nessa análise, podemos perceber que a situação independe da vontade da
administração. Trata-se de uma correção necessária que tem por fundamento atender o que
a lei exige. Nesse caso, o setor de GP deve promover a solução sem que haja impedimento
de manifestações das chefias. Constata-se que um servidor de nível superior está
exercendo atividades de nível médio, com isso o setor responsável pela lotação dos
servidores, deverá solucionar esse problema. Porém, o meio utilizado teve que ser através
do instituto da remoção, como fora utilizado no mesmo caso do primeiro entrevistado.
Ao que se verifica, a única forma das pessoas adequarem suas aspirações aos
cargos existentes é trocando de localidade. Para se movimentar, o servidor necessita
documentar um pedido formal de remoção de lotação que deverá ser analisado pela
Administração. Na prática, esses servidores só se mudam com a anuência da chefia
imediata. Em muitos casos, as chefias alegam a insuficiência de funcionários que
impedem a cessão deste servidor ou, qualquer que seja sua recusa, terá a
discricionariedade defendida por lei.
É neste momento que uma política de GP integrada com os objetivos
organizacionais deveria atuar favorecendo a movimentação dos servidores de acordo com
suas aspirações e motivações. Porém, este processo perpassa por um domínio das chefias e
autoridades dos respectivos setores que usam sua influência para decidir a lotação do
servidor.
Em um dos casos analisados, a vontade política usou desta ferramenta para se
desfazer de um problema de relacionamento tendo o respaldo do setor de GP e
transferindo um servidor para outra lotação independente de sua motivação. No outro, esta
ferramenta também fora utilizada como correção de uma disfunção, mesmo estando claro
o equívoco da Administração. Na primeira situação o servidor fora removido pela própria
vontade da Administração. No segundo, o servidor será removido por sua própria vontade.
Ambos os casos tratam de vontades e problemas nas motivações dos servidores que o
setor de GP deveria observar, mas analisando as entrevistas é possível perceber que as
vontades das chefias prevalecem a da Gestão de Pessoas na universidade.
É nesse sentido que a gestão da alta administração deveria atuar criando políticas
que permitissem mais mudanças de lotação entre os setores da universidade sem a
interferência política. Porém, o que se vê é a falta de atuação dessa gestão que subordina
ao setor de GP a responsabilidade de lidar com esses problemas.

As características que transformam a motivação em desmotivação.


Motta (2001 p.148) compara as mudanças ocorridas na sociedade como
propulsoras das mudanças ocorridas nas empresas. Assim, as gerências devem observar o
movimento que o autor enumera como: a) democratização das relações sociais; b)
desenvolvimento da consciência de classe e agrupamentos profissionais; c) aumento do
nível educacional; d) velocidade das mudanças e) intensidade da comunicação. Conforme
elucida o autor, o aumento do nível educacional e cultural reforça a independência e a
capacidade de criticar as condições existentes, gerando novos desejos e potencial de
frustração.
Não existem muitos estudos que correlacionem o aumento do nível educacional no
Brasil com as admissões nos concursos públicos, mas é possível perceber que os avanços
educacionais na sociedade se refletem nas organizações, principalmente no serviço
público. Assim, o ingresso de novos servidores públicos nos quadros da universidade está
elevando o grau educacional e o de percepção do seu “papel de participante” nas decisões
acadêmicas. A capacidade de criticar, conforme cita Motta, aumenta conforme aumentam
as admissões, porém os novos servidores encontram muitas resistências dos antigos
servidores, em relação a mudanças de um modo geral.
De acordo com a observação deste autor, as estruturas formais de relacionamentos
e de fluxos processuais, que são reforçadas pelo tempo, são um dos diversos entraves
encontrados pelos novos ingressantes e reforçados pelos antigos. Aos poucos os novos
servidores vão se desmotivando em relação a inovações e vão surgindo frustrações com as
perspectivas de suas carreiras. É o que acontece quando os técnicos administrativos se
deparam com os esses entraves já estabelecidos sem o respaldo de um setor de Gestão de
Pessoas para mediar essas incongruências. Na maioria dos casos, as estruturas formais de
relacionamentos constroem zonas de burocracia em que as influências e os poderes estão
sendo difundidos. Como já observamos anteriormente, o setor de GP se encontra “refém”
desta dinâmica estrutural.
Ainda, conforme elucida Motta(2001), é importante a aplicação de tarefas
complexas que são destinadas aos funcionários com o intuito de evitar a frustração. No
caso prático da universidade, as tarefas são rotineiras e seu nível de complexidade é
rapidamente esgotado contribuindo para a rápida frustração do servidor. Esse processo
inicia no servidor um distanciamento de seus objetivos e aspirações profissionais. Ao
direcionar suas atenções para o cargo ocupado os servidores procuram alternativas que
solucionem suas frustrações. Uma das alternativas são os programas de desenvolvimento
de carreiras oferecidos pela Universidade. Conforme discutido, essa proposta reforça a
ideia de produtividade no cargo contribuindo assim, para um desenvolvimento de técnicas
que não promovam inovações. É o que consideramos a perpetuação dos processos
burocráticos.
Com a falta de novos desafios e o distanciamento dos seus objetivos profissionais,
a desmotivação começa a se manifestar e torna-se mais presente na carreira destes.
Desmotivado, o servidor se acomoda em seu cargo, e apresenta como principal
característica, a falta de interesse pelo serviço prestado, resistência a mudanças e a falta de
inovação nos processos de trabalho. Ao passar do tempo, os servidores deixam de ser
“ingressantes” e se tornam os servidores “antigos” a qual nos referimos anteriormente.
Essa dinâmica é o que consideramos o processo de acomodação do servidor público, onde
os processos permanecem imutáveis e ineficientes perante os novos paradigmas do setor
público e a percepção do cliente externo é notória quanto à falta de estrutura para com a
qualidade do serviço prestado.
Conforme cita Vasconcellos (1995, p.225) “em relação ao Brasil(...)foram criadas
estruturas históricas(...)organizações estatais possam vencer um quadro de baixa
produtividade e pouca qualidade na prestação de serviços.” o autor se refere aos
obstáculos que impedem certos avanços, como verifica-se nessa instituição. São processos
antiquados e práticas obsoletas que ao longo do tempo viram os obstáculos à
modernização e ao desenvolvimento da carreira dos técnicos administrativos.
A partir dessas observações, podemos questionar a atuação da alta gestão em
relação aos problemas apresentados. Porém, não se vê ações significativas voltadas para o
combate deste processo de degradação do técnico administrativo. O que se vê são cursos,
treinamentos e programas de desenvolvimentos de cunho utilitarista (VIEIRA 2004), que
propagam essa alienação ao servidor. A inércia da alta administração e a falta de atitude
para ações de ruptura são atos que podemos caracterizar como um dos fatores que
reproduzem a degradação da carreira dos técnicos administrativos.
Nesse sentido, estimular a movimentação dos servidores entre as diversas unidades
administrativas, incentivar a educação continuada (SALM 2009) com base no objetivo
universitário, ampliar maior diálogo entre alunos, professores e técnicos são alternativas
de melhorias. Adequar suas formações profissionais aos locais disponíveis que a UFF
oferece, também seria uma forma de convergir interesses.

Considerações Finais
Este trabalho teve como propósito buscar os fundamentos que configuram o
processo de isolamento dos servidores públicos no cenário acadêmico, através de políticas
utilitaristas de gestão de pessoas. Trata-se de um estudo de caso que teve por objetivo
analisar e demonstrar os aspectos de gestão que geram problemas para o desenvolvimento
das carreiras dos técnicos administrativos.
Pela percepção deste autor no convívio profissional, pode-se verificar a existência
de casos envolvendo desvios de função, subutilização ou sobrecarga de atividades, casos
de inflexibilidade política nas relações de trabalho, e tantos outros problemas relativos à
estruturação de carreira destes servidores.
Como resultado extraído das entrevistas, podemos notar que a discricionariedade
que a lei concede à Administração (no caso do instituto da remoção) é fonte de poder para
as chefias e superiores. São essas pessoas que ficam responsáveis pelos destinos das
carreiras daqueles trabalhadores.
Observa-se que o setor de GP, responsável por gerenciar as demandas de “pessoal”
para a universidade, torna-se condescendente às decisões das chefias dos servidores.
Nesse sentido, as PGPs que são aplicadas através de programas de desenvolvimento estão
limitando os técnicos em suas carreiras com atividades rotineiras e burocráticas. Esses
programas reproduzem uma visão produtivista do servidor e isso o mantém isolado do
cenário acadêmico. Aproveitando os ensinamentos de Omar Aktouf (1995 p.250), os
programas de desenvolvimento de carreiras promovem a ideia de mudarem as atitudes,
habilidades e os comportamentos dos servidores sem mudar em nada a ordem
estabelecida, as relações de poder e o modo de participações nos diálogos acadêmicos.
Etzioni(1976 p.9) elucida que, quanto menor a alienação de seu pessoal, mais
eficiente será a organização, por isso consideramos a importância de desenvolver uma
gestão que valorize a participação do técnico no eixo aluno-professor. Consideramos que
tais programas junto com a gestão voltada para um setor acadêmico são os fatores que
contribuem para alienação do técnico administrativo em relação ao seu papel na
universidade.
Conforme cita Cury(2000), os servidores de uma universidade são compostos por
técnicos e docentes, que reúnem seus esforços para alcançarem os objetivos
regulamentados pela lei e políticas governamentais. Analisando as características acima,
podemos dizer que as relações sociais na comunidade acadêmica são voltadas ao eixo
aluno-professor e isolam os servidores técnicos administrativos. Dessa forma, podemos
analisar essa frase à luz de todo o estudo elaborado nesse trabalho, quando propomos a
inclusão do técnico no alcance dos objetivos organizacionais.
Dessa forma, de acordo com Motta(2001) espera-se que o setor de GP possa
gerenciar não só os aspectos políticos e formais, mas também os aspectos
comportamentais de seus funcionários. Considerar as aspirações profissionais, suas ideias
e suas motivações, seria uma solução prática e viável que facilitaria o desenvolvimento
dos servidores. Ainda, conforme (VIEIRA 2004), os desafios de tornar a universidade apta
a formar pessoas capazes de transformar a sociedade perpassam primeiro em transformar
a si mesma.

Referências
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(Ou os Estragos do Dilema do Rei Lear Nas Organizações). In: Recursos humanos e subjetividade.
Petrópolis: Vozes, 1996.

CURY, Antonio. Organização e métodos: uma visão holística. 7a. ed. São Paulo: Atlas, 2000

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DAVEL, Eduardo Paes; VASCONCELLOS, João Gualberto M. de (orgs.). Recursos


humanos e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 1996.

ETZIONI, Amitai. Organizações Modernas; trad. Miriam L. 5 ed. São Paulo, Pioneira, 1976.

GAULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social.
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MINTZBERG, H. Criando organizações eficazes: estruturas em cinco configurações. 2. ed. São Paulo:
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MOTTA, Paulo Roberto. Gestão contemporânea: a ciência e a arte de ser dirigente. 12 ed. Rio de Janeiro:
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PAULA, Maria de Fátima de. O processo de modernização da universidade - casos USP e UFRJ. Tempo
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RAMOS, Alberto Guerreiro. Administração e Contexto Brasileiro. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1983.

SALM, J. F.; MENEGASSO, M. E. Modelos de Administração Pública como Estratégias complementares


para a Coprodução do Bem Público. Revista de Ciências da Administração, Florianópolis, UFSC/CAD, v.
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______. Área física da UFF. Disponível em:


<https://sites.google.com/site/pgiproplanuff/numeros/sintese>. Acesso em 2013.

_______. PLANO ANUAL DE CAPACITAÇÃO DOS SERVIDORES TÉCNICO-ADMINISTRATIVOS


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VASCONCELLOS, João Gualberto M. O coronelismo nas organizações e a gênese das gerências


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WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília, DF: Editora
Universidade de Brasília, 1991.
 
 

Avaliação da Capacidade de Gestão Pública à Luz da Teoria da Administração Política:


uma análise das políticas de saúde e educação do município de Itabuna-BA

1. Reginaldo Souza Santos (UFBA)


2. Elizabeth Matos Ribeiro (UFBA)
3. Monica Matos Ribeiro (UFBA)

Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar os principais dados resultantes da pesquisa intitulada
“Novos ParâmetrosTeórico-Metodológicos para Avaliação da Capacidade de Administração
Política: uma análise das políticas públicas do município de Itabuna-BA”, realizada no
período de 2011 a 2013. O objetivo geral da pesquisa foi aplicar uma nova metodologia de
pesquisa para avaliar a capacidade de gestão de políticas públicas à luz da Administração
Política. Essa metodologia se fundamentouem elementos teórico-epistemológicos,
conceituais, factuais,próprios das ciências administrativas, assim como parâmetros técnicos
que contribuam para que o Estado brasileiro possa melhorar a concepção e execução de
políticas públicas, de modo a promover, adequadamente, a oferta de bens e serviços públicos.
Através do levantamento censitário,feito junto a representantes dos principais atores sociais
das políticas de saúde eeducação do município de Itabuna,foi possível avaliar as condições
(reais e potenciais) de atendimento da oferta e demanda das políticas selecionadas o que
permitiu concluir que as políticas públicas itabunensesestão mais comprometidas em
problematizar a vida dos que mais necessitam de uma ação pública de qualidade (os mais
pobres), do que em atender e suprir, efetivamente, suas necessidades.

Palavras-chave: Avaliação de Políticas Públicas; Administração Política; Política de Saúde;


Política de Educação.

1 INTRODUÇÃO
O Brasil está passando por um momento muito delicado: não tanto pela gravidade dos
problemas e mais pela pouca convicção dos diagnósticosfeitos pelas pessoas que ocupam
posições de autoridade neste País. Essas incertezas em relação aos problemas e os
encaminhamentos mais adequados estão diretamente relacionados com o nosso baixo
conhecimento da realidade das relações sociais – e isso tem a ver com o método e a finalidade
da pesquisa em nosso campo.
Enquanto as ciências duras trabalham diretamente com o fenômeno pesquisado,
manipulando e experimentando a realidade em laboratório ou fora dele; as ciências sociais
trabalham com dados secundários, com uma defasagem média quase nunca inferior a cinco
anos; os pesquisadores, muitas vezes, têm pouca ou nenhuma relação com o objeto de
pesquisa; às vezes, quando se utilizam de dados com a defasagem de tempo menor, o
instrumento de coleta não é dos melhores – a exemplo do método de pesquisa Survey.

1  
 
 
 

Em Administração, os trabalhos voltados para um conhecimento mais profundo da


realidade são casuísticos (as razões que justificam a escolha do objeto estudado são pouco
convincentes), formalísticos (a base legal termina sendo a principal fonte de inspiração para
se avaliar os progressos e regressos) e positivistas (sempre encontram alguma racionalidade
que orienta o caminho do ótimo). (SANTOS e GOMES, 2013)
De tudo isso, o mais grave é que questões centrais ficam de fora dos estudos. Um
primeiro absurdo é que nos estudos das políticas públicas nunca se toma como objeto da
análise a finalidade da política, mas sempre o alcance das metas. Não distinguir o conteúdo e
importância de um em relação ao outro revela a nossa baixa cognição acerca do que estamos
investigando e a pouca serventia dos resultados das pesquisas que estamos fazendo. Também
parece não fazer parte do conjunto de preocupações de nossos investigadores em questionar o
senso comum que sempre conclui que a falta de recursos financeiros explica o fracasso da
política pública.
Não obstante os problemas da pesquisa no campo da Administração, pensamos que
este artigo, que é resultado do relatório da pesquisa “Novos Parâmetros Teórico-
Metodológicos para Avaliação da Capacidade de Administração Política: uma análise das
políticas públicas do município de Itabuna-BA”1 que foi realizada no período de 2011 a 2013,
pode indicar um reforço às poucas exceções que procuram trajetórias metodológicas mais
explicativas, visto que a pesquisa teve como objetivo central construir uma nova metodologia
que fosse mais compreensiva da nossa realidade e pudesse oferecer elementos conceituais,
factuais e parâmetros técnicos para que o Estado brasileiro possa melhorar a concepção e
execução de políticas públicas, de modo a promover, adequadamente, a oferta de bens e
serviços públicos para eliminar, assim, a insatisfação social.
Foram definidos como objetivos específicos do estudo: (a) apresentar os resultados da
avaliação da capacidade de demanda efetiva, oferta potencial e oferta efetiva dos bens e
serviços de saúde e educação do município selecionado; (b) avaliar o nível de
comprometimento e cumprimento da jornada de trabalho dos servidores/trabalhadores das
áreas de saúde e educação do município de Itabuna; e (c) discutir se os indicadores e índices
alcançados na pesquisa revelam capacidade da municipalidade selecionada atender as
demandas da população.
Como pressupostos básicos para o desenvolvimento da pesquisa que fundamentou esse
texto, foram definidos: (a) O problema de demanda reprimida por bens e serviços no Brasil
[com ênfase na realidade do município de Itabuna-BA] não decorre somente de a capacidade

2  
 
 
 

instalada [de políticas públicas] ser insuficiente, mas sim do funcionamento inadequado das
instalações existentes e/ou da falta de manutenção dos equipamentos já instalados; e (b) O
servidor público brasileiro [itabunense], em sua grande maioria, não cumpre o expediente (a
jornada de trabalho), de acordo com o contrato estabelecido entre as partes, o que reduz,
dramaticamente, a oferta e, principalmente, a qualidade da produção estatal de bens e
serviços.
Comprovar esses pressupostos é um desafio que exige do Estado, da academia e da
sociedade, em primeiro lugar, uma compreensão ampla e profunda das causalidades que têm
contribuído para a perpetuação e aprofundamento da incapacidade de se definir uma
concepção/padrão de Administração Política capaz de alterar o curso que tem determinado a
nossa história recente e a pensar medidas urgentes para garantir o futuro da nação e da
sociedade; e, em segundo lugar, a assunção de compromissos por parte do setor público, da
Universidade e da sociedade para o desenvolvimento de novos parâmetros administrativos
(gestão e gerência) comprometidos com o atendimento mínimo da qualidade de vida da
sociedade.
Aceitando como válidos os pressupostos indicados acima, pode-se considerar que o
artigo ganha relevância, pois se constitui em um texto importante, pois privilegia aspectos
teórico-metodológicos inovadores para avaliar a capacidade de Administração Política do
Estado brasileiro, partindo de uma base essencialmente empírica, construída a partir da
realização de um censo no município de Itabuna-BA.
Como será apresentado no corpo do texto, os dados alcançados validam os
pressupostos teórico-metodológicos baseado no método censitário, visto que auxiliaram a
compreender melhor os fenômenos administrativos (em suas dimensões gestorial e gerencial).
Essa afirmação se fundamenta no fato de que a pesquisa amostral, tão comum na atualidade
para proceder a processos avaliativos, não ser suficiente para avaliar o grau elevado de
subjetividade que o ato de pensar e agir administrativo (Administração Política) exige. Nesse
sentido, os dados irão demonstrar que a avaliação fica mais aprimorada quando vista pelos
resultados da efetividade do que ‘mensurada’ apenas pelos indicadores de produtividade dos
processos de trabalho (denominado aqui de produção pública).
Cabe ressaltar que a escolha do município de Itabuna-BA para a aplicação da pesquisa
piloto, com base na metodologia aqui proposta, se deu pela representatividade que esta
municipalidade tem na demanda e oferta de serviços e bens públicos na região sudeste da

3  
 
 
 

Bahia, sendo considerado o principal polo de negócios e serviços da Costa do Cacau, além de
concentrar a movimentação financeira de toda a região.
Ao assumir a teoria da Administração Política como referência teórica e metodológica
central para o desenvolvimento da pesquisa que fundamentou este artigo, será apresentado a
seguir uma breve revisão do debate recente sobre esse conceito com ênfase na discussão dessa
teoria com o conceito de avaliação de políticas públicas.

2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E HISTÓRICOS

2.1 Uma aproximação ao Conceito de Administração Política e Avaliação de Políticas


Públicas

A análise dos atos e fatos administrativos (SOARES, 2004) e/ou das práticas e saberes
administrativos (CORREA e JURADO, 2003)é, sem dúvida, um aspecto de alta relevância
acadêmica e profissional para o campo epistemológico e técnico da administração, pois
permite compreender, analisar e avaliar, de forma crítica e contextualizada, a natureza,
afinalidade, os conteúdos (concepção), as dimensões (política e técnica, isto é, a gestão e
gerência, respectivamente) e a dinâmica que integram o campo da ciência administrativa.
Além das competências citadas, cabe ressaltar, ainda, o seu papel comocampo propositor de
mudanças (de direção, rumo, liderança, dinâmica, processo etc.). Assim, pode-se inferir que a
administração é uma ciência social que integra ao mesmo tempo, e de forma indissociável, as
dimensões do pensar e do agir (SANTOS, RIBEIRO e SANTOS, 2009), representando o
conceito de Práxis,consagrado por Aristóteles.
Nesse sentido, os estudiosos da teoria da Administração Política acreditam que a
edificação de pressupostos teórico-epistemológicos e metodológicos que contribuam para
consolidar a administração como campo científico próprio (ainda que multidisciplinar) é uma
inovação. Sobre esse aspecto cabe ressaltar os esforços que têm sido empreendidos por
diversos pensadores, que tem avançado em reflexões e discussões críticas, afirmando ser a
administração uma ciência social, embora destacando um importante diferencial que é o fato
de ser uma ciência social aplicada, conforme destacaram Ribeiro (2006), Ramos (1981; 1983),
Azevedo e Grave (2014), entre outros.
Após essa breve introdução sobre o contexto e origem da ciência administrativa, cabe
apresentar uma síntese do conceito da Administração Política, com base em Santos (2004) e
Santos, Ribeiro e Santos (2009). Conforme já destacado acima, a ciência administrativa ou
administração política é defendida pelos autores citados como o campo próprio de

4  
 
 
 

conhecimento da administração. Em outras palavras, afirmam que a administração se


caracteriza por integrar, de forma indissociável, os atos de pensar (referente à capacidade de
concepção) e o de agir (referente à capacidade de execução). Ao aceitar esse pressuposto
como passível de comprovação científica, os autores avançam em direção à definição do
objeto científico que poderá dar a esse novo campo ostatus de ciência social. Nesse sentido,
afirmam ser a gestãoe não a organização o objeto cientifico da ciência administrativa.
Para confirmar essa suposição, os autores vão aprofundar a interpretação e discussão
sobre os significados (etimológicos) do que se denominam de administração, gestão e
gerência. Saindo do campo das ciências sociais e buscando explicação na linguística
encontram significados diferentes, ainda que complementares, e, a partir desses achados,
avançam no desenho do diagrama da estrutura etimológica e conceitual da administração
política. Com esse objetivo, partem da seguinte pergunta: O que é administração?2As
respostas encontradas pelos citados autores os levaram a concluir que
Segundo [o dicionário] Aurélio, o vocábulo administração tem origem no
latim administratione e significa governo, regência, que se manifesta
mediante um conjunto de princípios, normas e funções que têm por fim
ordenar a estrutura e funcionamento de uma organização (órgão público,
empresa etc.). Pode-se incluir, também, nessa compreensão de organização,
as amplas relações sociais de produção e distribuição. Para uma melhor
compreensão do significado da palavra administração é necessário separar
(...) o prefixo “ad” quer dizer para (próximo de, aproximar, abeirar, achegar)
do núcleo (verbo) “ministrar” que quer dizer conduzir, dar, fornecer. (...)
dando unidade de significado aos termos ad + ministrar quer dizer
transformar, conduzir para..., direção para.(SANTOS, RIBEIRO e SANTOS,
2009, p. 11)

Avançando nessa argumentação os autores afirmam que

[...] a expressão administração ou a disciplina administração para assumir o


status de campo de conhecimento deve ter uma compreensão mais ampliada
[dos atos e fatos administrativos], tomando como base duas dimensões de
análises e de ação: (a) a dimensão abstrata (responsável pela concepção) e a
dimensão aplicada (responsável pela execução). (...) os significados e
funções de gestar, gestor e gestão representam atos ou efeitos de “conceber”,
de “gerar”, de “desenvolver-se”, de “conduzir” as relações sociais de
produção, realização e distribuição, em qualquer contexto e momento
histórico (...) representa a base política da administração (teórica/abstrata).
[Já o significado e funções de] gerenciar, gerente e gerência tratam do lugar
e dos processos para o exercício e execução das funções
técnicas/instrumentais (processos de trabalho, a engenharia, enfim) das
relações sociais de produção e distribuição(...). Com base nessa definição
impõe-se (...) uma distinção entre gestão (concepção), base política da
administração e gerência (execução), base profissional da administração.
(SANTOS, RIBEIRO e SANTOS, 2009, p. 28)

5  
 
 
 

Em síntese,os autores defendem que a administração política se assume como um


campo de conhecimento, pois é produzida historicamente e dotada de finalidade e
objetividade própria, elementos que permitem, pois, a universalização e transmissão dos seus
princípios, leis gerais e métodos. Ao defender que a ciência administrativa permite
compreender, interpretar, criticar e orientar/conduzir as atividades humanas (sejam estas
individuais, organizacionais e/ou sociais), considera-se que a teoria e metodologia da
administração política tem uma grande contribuição para analisar e avaliar políticas públicas,
assumindo, assim, como base uma perspectiva crítica e contextualizada.
Assim, ao tomar como base os pressupostos teórico-epistemológicos e metodológicos
da Administração Política para o desenvolvimento da pesquisa que fundamentou este artigo,
assume-se que elaborar e desenhar instrumentos para avaliar a capacidade de gestão e de
gerência de políticas públicas implica, pois, identificar tanto a concepção e dinâmicas que dão
conteúdo e sentido às práticas da administração pública (gestão) como o desempenho dos
processos de trabalho que garantem (uma ‘boa’) execução (gerência), que devem refletir,
juntas, os objetivos e diretrizes definidos para o alcance do projeto de nação.
Não se deve considerar uma ‘heresia’, portanto, afirmar que a maioria dos referenciais
teórico-metodológicos hoje disponíveis e a empiria praticada, em especial pelo poder público,
não dão conta dos desafios propostos pela Administração Política, que orienta a gestão das
relações sociais de produção, circulação e distribuição3. Poucos estudos no campo da ciência
administrativa têm se debruçado no sentido de superar esse desafio4. No geral, as análises e
estudos desenvolvidos no campo da administração (seja no setor público, privado ou social)
tem priorizado análises mais quantitativas e estudos de casos, focados quase que
exclusivamentena observação dos aspectos mais superficiais (espaço próprio da gerência, da
mera execução). O que permite afirmar que no plano da concepção (abstração) os atos e fatos
administrativos (campo próprio da Gestão) não têm sido priorizados, pelo menos pela maioria
dos estudos difundidos e validados como relevantes – orientadores, pois, das ações dos
governos.
Com base na teoria da administração política, Santoset al (2007) integram ao debate
sobre o conceito, análise e avaliação de políticas públicas a dimensão do conteúdo, da
dinâmica dos processos e da finalidade social das ações públicas. O que implica dar mais
subsídios às pesquisas convencionais que têm sido desenvolvidas pela academia e pelo
governo, orientadas, fundamentalmente, em medir/mensurar indicadores e índices que
comprovem o alcance da eficiência e eficácia do trabalho, de modo a garantir os resultados

6  
 
 
 

pré-determinados (muitas vezes concebidos por atores externos à realidade que está sendo
avaliada).
Desse modo, para avaliar a capacidade de administração política (capacidade de
gestão) das políticas de saúde eeducação de Itabuna (ou de qualquer outro município
brasileiro), os autores vão buscar apoio teórico-metodológico na economia política, tomando
de empréstimos os conceitos clássicos de demanda social e oferta(real e potencial)
disponibilizada pelo setor público à sociedade. Ao integrar os conceitos e métodos da
economia (assim como também da filosofia política, da sociologia política e da ciência
política) para a análise crítica dos fenômenos administrativos, os autores citados assumem
como pressuposto que os atos e fatos e/ou os saberes e práticas administrativas tem
subjetividade, revelando, desse modo, que tem seus fundamentos nas ciências sociais,
conforme já destacado.
Ao definir novos parâmetros teórico-epistemológicospara a avaliação da capacidade
de Administração Política brasileira com ênfase no município de Itabuna-BA, a pesquisa que
fundamentou esse artigo avança no desenho de uma proposta metodológica para avaliar
políticas públicas, tomando como base um método e instrumentos de avaliação mais
sofisticados, definindo indicadores que possibilitem avaliar a capacidade dademanda social e
oferta (real e potencial) disponibilizada pelo setor público.

2.2 Administração Política Brasileira

Tomando como base a atual perspectiva do capitalismo mundial, muitos estudos5 tem
ressaltado que o Brasil se mostrava refratárioem aceitar os novos (velhos) fundamentos
liberais, até a primeira metade dos anos 90 do século passado– parecia insistir em conduzir os
destinos do capitalismo nacional com base na concepção de uma Administração Política
centralizada– um capitalismo administrado pelo Estado. Essa resistência vai sendo
quebrada,progressivamente, à medida que a instabilidade macroeconômica aumentava e,
sobretudo, à medida que os formuladores da política econômica, com formação em escolas
brasileiras, iam sendo substituídos por profissionais com formação em escolas norte-
americanas com forte viés neoliberal (SANTOS e RIBEIRO, 1993; 2004).
Segundo destacam Santos e Ribeiro (1993;2004), a lógica do argumento para mudar o
curso do projeto ‘nacional-desenvolvimentista’era, pois, produzir um discurso ideológico
(embora travestido de um conteúdo técnico) em favor da descentralização que tinha dois
direcionamentos: (a) um no plano das relações do Estado-Sociedade; e (b) outro no plano das

7  
 
 
 

relações intergovernamentais (conteúdo de maior ênfase deste artigo). A partir desse


momento, assiste-se ao processo de mudançaradical da natureza e objetivos/finalidade da
Administração Política brasileira.
No plano das relações do Estado-Sociedade, a força do discurso estava em afirmar que
os transtornos econômicos e sociais decorriam de uma excessiva centralização no âmbito do
Estado, pois partiam do pressuposto de que tal modelo produzia ineficiências refletidas na
baixa produtividade do trabalho social e na taxa de retorno do sistema econômico. Era
necessário, portanto, transferir para o agente privado o ativo produtivo em mãos do Estado; ou
seja, era necessário e imperativo retornar ao mercado (orientado pelo sistema de preços) o
poder de decisão para a alocação de recursos (produção) e também o poder de distribuição dos
rendimentos (resultados do trabalho social), fato este ainda mais grave.
No plano das relações intergovernamentais, o discurso da descentralização guardava
coerência com a noção de devolver à sociedade (ao mercado) a capacidade de produção que
estava em mãos do Estado. Esta era a maneira de fazer esse processo da forma menos
transparente, visto que a instância mais significativa do Estado brasileiro (a União), em nome
de um melhor atendimento às demandas do cidadão pelo chamado poder local, podia se
desobrigar de toda e qualquer responsabilidade com os gastos sociais e outros investimentos
relevantes para a promoção de um novo padrão de desenvolvimento regional. Essa decisão
permite que a União passe a liberar parcelas, cada vez mais expressivas, do seu orçamento
para a ancoragem da vulnerabilidade externa do Balanço de Pagamentos, conforme apontam
Cano (2007), Gomes (2009; 2014), Santos e Ribeiro (2004), entre outros.
Não obstante as medidas, tomadas nos anos 80 do século passado, que apontavam para
uma Administração Política descentralizada, são nas décadasseguintes (anos 90 e anos zero)
que os “reformadores” definem mais claramente o Projeto de Reestruturação Produtiva do
Estado Brasileiro(SANTOS e RIBEIRO, 2004).Como ressaltam Cano (2007), Gomes (2009;
2014), Santos e Ribeiro (2004), entre outrosautores, a situação externa do Brasil ia ficando
cada dia mais vulnerávelà medida que a balança comercial entrava num período longo de
déficits (1995-2000). Os investimentos diretos, oriundos das privatizações, passam a ser
declinantes, sobretudo, porque os investimentos com a compra de empresas estatais e privadas
passam, a partir da segunda metade dos anos 90, a ser remetidos para o exterior em forma de
lucro (juros e royalties), agravando, sobremodo, o balanço de transações correntes.
Com a reversão dos fatores positivos que atraíram abundante volume de recursos
externos, o único instrumento que restou ao governo para administrar a vulnerabilidade da

8  
 
 
 

economia foi manter elevadas taxas de juros financiadas pelo orçamento público, situação que
se mantém até os dias atuais. Atribuiu-se maior importância a esse aspecto pelo simples fato
de que se acredita que qualquer padrão de política econômica nacional só alcançará sucesso
caso o orçamento público deixe de ser a âncora do Balanço de Pagamentos (orçamento
público). Corrobora com essa análise o fato de que os sucessivos governos, a partir de 1995,
têm conseguido manter elevados saldos na balança comercial, elevadas taxas reais de juros
(Selic) e apego ao superávitprimário,demonstrando, pois, que a política de subordinar o
Orçamento Geral do Estado como âncora sustentadora do equilíbrio das contas externas não
parece ter grandes chances de ser rompida.
Com base nesse cenário adverso, considera-se que a academia esta desafiada a cumprir
sua missão inovando em pressupostos teórico-metodológicos que possibilitem desenvolver
estudos mais profundos e críticos acerca dos impactos da trajetória assumida pelos governos
mais recentes, especialmente junto aos municípios.

3 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

3.1 Breve Caracterização do Município de Itabuna

Itabuna é um município localizado na Microrregião Ilhéus-Itabuna e faz parte da


Macrorregião Sul (Zona Cacaueira) do estado da Bahia efica a 433 Km da capital, Salvador.
Tem 213.656 habitantes (IBGE, 2011), distribuídos em uma área majoritariamente urbana que
representa 97% do território que tem 443 Km2. Encontra-se na sétimaposição entre os dez
municípios mais populosos da Bahia.
Considerado o principal polo de negócios da Costa do Cacau, o município de Itabuna
concentra a movimentação financeira de toda a região, com mais de 8,2 mil estabelecimentos
de comércio, serviços e indústrias, gerando aproximadamente 36,6 mil postos de trabalho, o
que representa 42,2% dos empregos da região. Com o IDH (Índice de Desenvolvimento
Humano) de 0,748, o município é o 3° no ranking do Estado da Bahia e 17° no ranking do
Nordeste. Possui um PIB (per capita) de R$ 7.700, superior à média do estado da Bahia.
A estrutura empresarial do município é composta de oito indústrias extrativas, 466
indústrias de transformação, três produtoras e distribuidoras de eletricidade, gás e água e 169
empresas do ramo da construção. A sua importância econômica cresceu durante a época áurea
do cultivo de cacau que, por ser compatível com o solo da região, levou-a ao 2° lugar em
produção no país, exportando, principalmente, para os EUA e Europa. Porém, devido à grave
crise na produção cacaueira, ocorrida a partir de 1989, causada pelo surgimento da doença

9  
 
 
 

conhecida como vassoura-de-bruxa e pela queda dos preços no mercado internacional, o


municípiobuscou alternativas econômicas de modo a sair da dependência do setor primário
(agropecuária) para investir no setor secundário (atividades industriais) e no setor terciário
(comércio e prestação de serviços). É importante ressaltar que não obstantea crise do cacau,
ainda hoje, é o principal produto agrícola e econômico do município.
Itabuna tem, atualmente, como principal setor de atividades o de serviços que tem
forte relação com as atividades agropecuárias e industriais. Por essa razão, o setor de serviços
é o que tem maior representatividade no PIB municipal na atualidade. Entretanto, o que
fortalece a cidade como um grande polo regional é, sem dúvida, a localização geográfica
estratégica que a municipalidade ocupa, visto que estálocalizadana confluência de duas
rodovias federais importantes: a BR-101, integrando o Sul e o Norte do país – que liga 12
estados brasileiros – e a BR-415 – que corta a região no sentido Leste-Oeste. Além disso, o
município fica a 28 km de distância do porto internacional do Malhado e do aeroporto Jorge
Amado, ambos em Ilhéus.
Com esse perfil, Itabuna apresenta uma grande demanda interna por oferta de bens e
serviços públicos de qualidade, além de receber ampla e intensiva demanda dos municípios
circunvizinhos. Esse conjunto de fatores impõe, portanto, ao poder público municipal, mas
também estadual e federal, maior investimento e comprometimento para dar conta dessas
demandas crescentes. Nesse sentido, os resultados desse estudo, pioneiro na introdução do
conceito de avaliar capacidade de gestão, através do método censitário de pesquisa, podem ser
considerados muito relevantes para ajudar o poder público e a sociedade a
dimensionar/avaliara capacidade da demanda (real e potencial) e a capacidade de oferta (real e
potencial), contribuindo, pois, para (re)orientar o planejamento do poder público local, bem
como dos governos estadual e nacional.

3.2 Estrutura, Características e Funcionamento do Sistema de Saúde do Município


de Itabuna

O sistema de saúde do município de Itabuna é composto de 35 unidades, sendo 03


filantrópicas (integradas à Santa Casa de Misericórdia, o Hospital Santa Cruz Calixto Midlej,
o Hospital São Lucas e o Hospital Pediátrico Manoel Novaes) e 32 públicas. Dessas 30 estão
localizadas na zona urbana e duas na zona rural.
À primeira vista, pode-se achar estranha a distribuição espacial das unidades de saúde
em Itabuna, particularmente entre a zona urbana e rural. Porém, quando considerada a
pequena dimensão territorial do município (que revela a reduzida dimensão da zona rural,
10  
 
 
 

formada apenas pelo distrito de Ferradas), pode-se constatar que o desequilíbrio entre a área
urbana e rural ocorre mais por conta da qualidade do serviço que se presta na zona rural do
que pela quantidade de unidades instaladas.
Além disso, verificou-se que, da rede pública, 17 são caracterizadas como Unidade de
Saúde da Família (USF), 14 como Unidade Básica de Saúde (UBS) e uma como Unidade de
Base (UB) – Hospital de Base Luís Eduardo Magalhães. Este hospital é considerado como a
única unidade de saúde de alta complexidade do município e região; 29 outras são tidas como
de baixa complexidade, dedicadas,fundamentalmente, à prestação de serviços de consultas
médicas. Cabe ressaltar que são consideradas unidades referenciadas o posto Dr. José Edites,
localizado no bairro de São Caetano, e o posto Dr. José Maria de Magalhães Neto, localizado
no Centro da cidade.
Por certo que uma estrutura complexa e multifuncional para desempenhar bem a
missão que lhe é atribuída depende de múltiplos fatores que a circunstanciam, entre eles a
qualificação do pessoal envolvido e sua motivação – a começar pela direção. No caso
específico do sistema público de saúde de Itabuna, não se quer afirmar que o administrador
geral tenha que ser um bacharel em Administração ou que deva ser um profissional habilitado
na área de saúde (medicina, odontologia, enfermagem, etc.), até porque pessoas com boa
formação cognitiva podem se tornar bons dirigentes públicos ou privados, independente de ter
formação em Administração ou na área específica da saúde. Entretanto, olhando a formação
daqueles que estão dirigindo a saúde do município não se percebe um critério objetivo que
esteja relacionado com a qualificação para os cargos mais elevados. Isso fica evidente quando
os dados da pesquisa permitem identificar que dos 32 dirigentes do setor, 15 responsáveis por
unidades de saúde da família ou unidades básicas de saúde têm formação máxima de segundo
grau, sendo que dois deles só têm o primeiro grau. Os 17 restantes estão incluídos desde
aqueles que têm nível superior incompleto (2) passando por profissionais com formação
distante da requerida pela área – teólogo, pedagogo, entre outras profissões (2), até os que têm
nível superior, sendo que destes (8) são administradores, (2) são educadores físicos e (3) são
formados em serviço social.
Considerando que esses gestores são cargos comissionados, preenchidos por dirigentes
que normalmente não são do quadro efetivo, revelando, pois, uma alta rotatividade, pode-se
concluir que os graus de compromisso e de motivação para prestar um bom serviço de saúde à
comunidade são visivelmente muito baixos. Os resultados alcançados atestam esta
conclusão.Incluindo os 32 dirigentes citados, a estrutura da política de saúde do município de

11  
 
 
 

Itabuna é operada por 1.410 funcionários, sendo 192 médicos, 19 odontólogos, 146 como
enfermeiros, 15 entre nutricionistas, psicólogos, psiquiatras e fisioterapeutas e 1.038
categorizados como técnicos (incluindo técnicos em radiologia, auxiliares de enfermagem,
nutricionistas, motoristas, etc).
Do total de técnicos (1.038), aproximadamente 30% têm curso superior – revelando
um índice bastante elevado, principalmente se for considerado que no quadro técnico
integram cargos que não exigem nível superior como: serviços de limpeza, cozinheiro,
motorista, auxiliar de enfermagem, eletricista, etc. Somados aos médicos e enfermeiros a
pesquisa revela que, aproximadamente, 50% dos funcionários da saúde pública de Itabuna
têm curso superior, dos quais 30% (203 funcionários) têm formação pós-graduada.
A jornada de trabalho é um quesito fundamental para a avaliação da produção e
produtividade no setor de saúde. Os parâmetros dados pelos órgãos de saúde (conforme
normas nacionais6 e internacionais7) definem para os médicos e dentistas 20 horas semanais,
para enfermeiros e auxiliares 36 horas semanaise 40 horas semanais para os demais
trabalhadores. Entretanto, os dados mostram que a quase totalidade dos dentistas e,
aproximadamente, 03 médicos estão em regime de 30 horas ou mais horas semanais. Dos 211
profissionais de diversas especialidades apenas 27 (13%) estão em regime de 20 horas. Fora
de padrão também está o horário de trabalho dos profissionais de enfermagem (enfermeiros e
auxiliares). Os dados revelam que estes profissionais estão em 30 ou 40 horas semanais. Não
há registro na pesquisa de qualquer profissional dessa área em regime de 36 horas semanais,
conforme o recomendado pelos organismos reguladores nacionais e internacionais.
A discussão sobre esses dados é muito importante, dado o fato de que é a partir da
capacidade de oferta do sistema de saúde que se pode medir a produtividade e discrepâncias
entre a capacidade de oferta, a oferta efetiva e a demanda social, conforme metodologia que
fundamentou a pesquisa que deu origem a este artigo.
Foi constatado que o sistema de saúde pública de Itabuna ofertou uma média de 2.671
consultas/dia, durante o período da pesquisa. Considerando que o sistema de saúde como um
todo tem 364 profissionaiscom capacidade de atendimento e avaliandoque o maior
contingente desse corpo técnico é formado por médicos e enfermeiros e, mais ainda, que só 33
estão em regime de 20 horas semanais, conclui-se que a capacidade técnica de operação do
sistema é bem maior do que aquela que vem sendo registrada como sendo a demanda social
efetiva, conforme mostram dados da Tabela I.

12  
 
 
 

TABELA I – Oferta Efetiva de Consultas /Dia deItabuna em 2011


CATEGORIA JORNADA ATENDIMENTO CAPACIDADE DE
PROFISSIONAL (Horas) POR HORA ATENDIMENTO/
20 30 40 DIA
Médico 26 70 18 4,0 Pacientes 2.300
Enfermeiro 01 18 59 3,0 Pacientes 1.698
Dentista 03 15 01 3,0 Pacientes 330
Psicólogo - 01 - 3,0 Pacientes 18
Nutricionista 03 08 02 3,0 Pacientes 234
Psiquiatra - 01 - 3,0 Pacientes 18
Fisioterapeuta - 01 - 4,4 Pacientes 26
33 115 80 4.624
FONTE: Censo realizado pela equipe responsável pelo estudo.

Tomando como referência os parâmetros estabelecidos na Portaria nº 1.101/GM, de 12


de junho de 2002, o sistema público de saúde de Itabuna – excetuando o Hospital de Base,
restringindo-se ao tratamento de baixa e média complexidade,constata-se que Itabuna tem
uma capacidade de atendimento superior ao que está sendo requerido pela população. Essa
constatação se fundamenta na seguinte equação: a soma da capacidade teórica de atendimento
por especialidade, confrontada ao resultado encontrado da demanda diária de toda a rede
municipal, permite perceber que a estrutura de saúde pública do município tem uma
capacidade de atendimento instalada maior do que a demanda da população (o que a
princípios deveria ser avaliado como um excelente indicador). Mas aqui cabe provocar o
leitor para o seguinte questionamento: em havendo uma capacidade ociosa (que significa uma
capacidade superior de oferta de serviços de saúde), por que, então, o serviço de saúde
prestado à população é tão ruim, isto é, tem tão baixa qualidade?
Independente de quaisquer outras razões, o ponto crucial desse problema parece ser o
caráter desidioso do profissional/servidorno cumprimento da jornada de trabalho
(cumprimento que aqui se denomina deexpediente8). O que implica afirmar que, dado que a
jornada de trabalho não é cumprida com a regularidade devida, de modo a garantir o alcance
pleno da produção pública exigida na jornada diária de trabalho contratada, a conclusão óbvia
que se pode chegar é que na semana ou no mês o servidor/trabalhador reduz o tempo de
atendimento por paciente. Com base nessa simples equação, o diagnóstico fica comprometido
e a ‘profilaxia’ demorada – muito estendida no tempo – e sem solução de tratamento. Diante
13  
 
 
 

desse quadro, o paciente (cidadão, especialmente os mais pobres) começa a desacreditar no


sistema e a consequência é que não retorna para uma nova consulta, o que implica no
agravamento da doença. Oresultado é simples: o problema que deveria ter sido resolvido num
posto de saúde (unidade que trata dos casos de baixa complexidade) e na primeira consulta
será, agora, encaminhado a uma unidade hospitalar que não está dimensionada e/ou preparada
para o atendimento de demandas oriundas de situações esdrúxulas e que ganham gravidade
devido ao não cumprimento das responsabilidades dos gestores/trabalhadores públicos.
Desse modo, um problema dessa natureza (isto é, o não cumprimento do expediente),
que produz consequências negativas para a oferta dos serviços de saúde, encarece os custos de
produção do serviço, infelicita, pelo constrangimento, o usuário e sua família (negando os
princípios que fundamentam o Programa de Humanização do SUS, em execução pelo governo
federal, desde 2003) e, enfim, transforma o sistema de saúde do município, da Bahia e do
Brasil,em algo oneroso e desacreditado pela sociedade.
Ao analisar o indicador de número de leitos hospitalar por habitante, conforme
parâmetro internacional (OMS), que recomenda dois leitos para cada mil habitantes, e
nacional(IBGE), que recomenda de dois e meio a três leitos por mil habitantes, constata-se
que o município de Itabuna não atende aos requisitos recomendados.
Considerando uma população estimada de 212 mil habitantes, o município de Itabuna
deveria ter em torno de 420 leitos e 640 leitos, segundo padrões da OMS e do IBGE,
respectivamente. Porém, os dados da pesquisa indicam outra realidade, revelando que o
município apresenta índices de cobertura abaixo dos recomendados pela regulação
internacional e nacional alcançando apenas 1,8 leitos por mil habitantes.
O fato mais grave que resultada da análise desse indicador não é ter um índice abaixo
do recomendado pelos organismos reguladores de políticas de saúde, mas é muito mais sério
constatar as reais condições de uso e funcionamento desses leitos. A pesquisa censitária, que
exigiu a presença da equipe de pesquisa em todas as unidades avaliadas, identificou que
grande parte dos leitos existentes (ainda que insuficiente)revelavatotal falta de manutenção o
que resultou na identificação de mecanismos emperrados, que não permitia mudar o paciente
de posição, invariavelmente eram leitos tomados pela ferrugem, lençóis rasgados, etc. Em
muitos casos, principalmente nos postos de saúde, as macas são contabilizadas,
indevidamente, como leitos distorcendo a realidade da qualidade de atendimento do sistema e
desumanizando o paciente que se sente humilhado por não ter acesso as condições de
qualidade que lhes são garantidas pela Constituição. Cabe registrar, por fim, que em quatro

14  
 
 
 

unidades visitadas foi constatada a inexistência de leitos – ou mesmo assemelhados, como as


macas.
Tudo isso só faz agravar, ainda mais, as condições de atendimento do sistema de
saúde, exigindo do poder público investimento em novas metodologias de diagnóstico que
consigam fazer uma avaliação mais consistente das condições (reais e potenciais) de oferta
dos serviços de saúde dando maior atenção aos aspectos mais qualitativos que permitam
avaliar a capacidade de gestão – envolvendo não apenas os aspectos técnicos (a exemplo da
garantia de infraestrutura básica), como também aqueles elementos mais subjetivos
vinculados ao cumprimento do expediente, para assegurar o pleno funcionamento das
unidades de atendimento disponibilizadas e dar ao cidadão um tratamento digno.

3.3 Estrutura, Características, Localização e Funcionamento do Sistema Público de


Educação de Itabuna

O sistema público de educação do município de Itabuna é composto de 132 unidades


escolares, sendo 111 municipais e 21 estaduais. Considerando a pequena área rural do
município, das unidades escolares vinculadas ao governo estadual todas estão localizadas na
zona urbana.
Como demonstram os dados da pesquisa, do total das escolas municipais 33 (29,7%)
estão na área rural e 78 (70,3%) na zona urbana; as 21 escolas estaduais estão todas na zona
urbana. Em termos do alunado matriculado nas unidades municipais e estaduais constata-se
que 38.397 alunos, 97,6% do total, estão na área urbana; a área rural tem apenas 970 alunos
matriculados, representado 2,4% do total. Esses indicadores refletem, portanto, a pequena
dimensão do território rural itabunense.
Vale registrar nessa análise preliminar que é incompreensível que um dos municípios
mais importantes do interior da Bahia e do Brasil não tenha a participação da União na
colaboração formativa dos jovens de Itabuna. Somente em 2012 foi inaugurada uma unidade
IFBA/Instituto Federal de Ensino, Ciência e Tecnologia, Campus Ilhéus, às margens da BR
415, estrada que liga as duas maiores cidades da Região Sul da Bahia, visando atender a
demandas dos dois municípios citados e das cidades circunvizinhas.
Com base na estrutura escolar mapeada pode-se afirmar que o sistema avaliado atende
as seguintes modalidades de ensino: ensino infantil, fundamental (de responsabilidade
constitucional municipal) e ensino médio e profissionalizante (de responsabilidade estadual),
conforme demonstra a Tabela II.

15  
 
 
 

TABELA II – Educação Pública de Itabuna por Natureza de Ensino e Unidade Escolar-


2011
TIPO DE ENSINO QUANTIDADEDE ESCOLAS %
INFANTIL 19 14,4
FUNDAMENTAL 20 15,1
MÉDIO 01 0,7
PROFISSIONALIZANTE 01 0,7
EJA – ENSINO DE JOVENS E
01 0,7
ADULTOS
INFANTIL E FUNDAMENTAL 55 41,7
FUNDAMENTAL E MÉDIO 13 9,8
FUNDAMENTAL E EJA 14 10,7
MÉDIO E EJA 08 6,1
TOTAL 132 100
Fonte: Censo realizado pela equipe responsável pela pesquisa.

É possível observar com os dados apresentados acima que a execução do tipo (ou da
natureza) de ensino não obedece à lógica das competências, o que implica afirmar que o grau
de especialização das escolas por tipo de ensino é baixo. Das 132 unidades escolares, apenas
41 (31%) são especializadas em um determinado nível de ensino: 19 em ensino infantil, 20
em ensino fundamental, 01no ensino médio e 01 no ensino profissionalizante. As demais
unidades, 91, representando, aproximadamente 69% do total, abrigam mais de uma
modalidade de ensino.
Essa realidade permite inferir que, em tese, já haveria uma condenação à
transformação para a situação multifuncional das unidades escolares citadas – que abrigam,
por exemplo, ensino fundamental eensino médio. Essa conclusão se fundamenta, pois, no fato
de que cada modalidade deveria funcionar em turno específico em razão da necessidade de
racionalizar o uso de equipamentos e métodos diferenciados de aprendizagem.
Porém, mais condenável do que essa situação, é a constatação de que no mesmo turno
e o pior na mesma sala observou-se a presença de alunos de séries diferentes – o que o
governo chama tecnicamente de sala ou ensino multisseriado.Essa situação se agrava, de
forma dramática, na zona rural do município avaliado onde se constatou que a escola só tem
uma sala de aula, funciona em um único turno e o professor mora na sede do município.
Em síntese, a pesquisa permitiu constar a existência de uma estrutura de ensino que
contempla um processo pedagógico de aprendizagem tão deficiente que, no caso desse serviço

16  
 
 
 

tão especializado, pode-se afirmar que os resultados alcançados (negativos normalmente)


comprometem para sempre a capacidade cognitiva da criança e jovem educando. O que
implica afirmar que com essa lógica (que reflete uma racionalidade incompatível com o perfil
e função social da educação) o poder público está transformando esse futuro cidadão em um
adulto caracterizado como ‘analfabeto funcional’ – terminologia já aceita como natural nos
meios políticos, técnicos, acadêmicos e social, como se investir o dinheiro público em uma
formação que terá como entrega ‘analfabetos funcionais’ fosse algo a comemorar!
Outro dado importante da pesquisa foi constar a má utilização da estrutura disponível
do ensino público de Itabuna, evidenciada nos dados da Tabela III.

TABELA III - Educação Pública em Itabuna: quantidade de Escolas por turno - 2011
TURNO QUANTIDADE %
MATUTINO 11 8,3
VESPERTINO 2 1,5
NOTURNO 2 1,5
MATUTINO E
71 53,8
VESPERTINO
MATUTINO E NOTURNO 46 34,8
TOTAL 132 100,00
Fonte: Censo realizado pela equipe responsável pela pesquisa

Ao confrontar os turnos de funcionamento, verificou-se que das 132 escolas, em 117


delas há pelo menos um turno ocioso – normalmente vespertino ou noturno; nas outras 15
restantes, há pelo menos dois turnos ociosos - matutino, vespertino ou noturno. Esses dados
revelam, pois, que há uma enorme capacidade ociosa do sistema público de ensino de Itabuna
que se manifesta de duas formas: (a) uma dada pelo não funcionamento da unidade escolar em
pelo menos um dos três turnos possíveis; e (b) a outra dada pelo número de matrícula ser
menor do que aquele que o sistema é capaz de absorver se tomadas as condições atuais (reais)
de oferta.
Ao confrontar os dados reais, mediante pesquisa censitária que deu uma dimensão
plena para esse diagnóstico, fica evidenciado que o discurso dos administradores públicos e
das representações políticas focado na interpretação equivocada que afirma que o problema da
educação fundamental e média no Brasil é decorrente da necessidade de se ampliar a rede,
defendendo, portanto, a obrigação de se construir mais escolas. Com base nesse diagnóstico
simplista a consequência dessa falta de conhecimento pleno acerca da realidade estrutural do
sistema público de ensino implica comprometer mais recursos financeiros e também humanos

17  
 
 
 

e técnicos, na medida em que a tendência natural tem sido ampliar o equipamento. Na Tabela
IV, pode-se verificar o nível de capacidade ociosa do sistema educacional de Itabuna.

TABELA IV – Educação Pública de Itabuna: Níveis da Capacidade de Oferta, Demanda


e Capacidade Ociosa -2011
OFERTA DEMANDA CAPACIDAD OFERTA CAPACIDADE
TIPO DE
EFETIVA EFETIVA E OCIOSA PRIVADA OCIOSA TOTAL
ENSINO
(A) (B) (C=A-B) (D) (E=C+D)
INFANTIL 5.772 4.640 1.132 1.112 2.244
FUNDAMENTAL 27.046 23.479 3.567 21.174 24.741
EJA 5.857 3.740 2.117 5.481 7.598
MÉDIO 11.707 7.519 4.188 33.780 37.968
Fonte: Censo realizado pela equipe responsável pela pesquisa

Ao tomar os dados da estrutura real da educação de Itabuna, se constata que o sistema


tem uma capacidade de oferta em torno de 50mil vagas aluno/ano, mas a demanda efetiva
chegou a pouco mais de 39mil matrículasvagas aluno/ano. O que permite concluirque existe
uma capacidade ociosa da ordem de 11 mil vagas/aluno ano.A capacidade ociosa identificada
não apenas confirma os pressupostos da pesquisa como os deixam mais fortalecidos.
Em síntese, cotejando os parâmetros técnicos oficiais com os índices de oferta efetiva
e demanda efetiva de vagas no sistema educacional de Itabuna vê-se que o resultado apresenta
um índice de ociosidade alarmante. Se a essa ociosidade for acrescentada a parte da demanda
social que é, de fato, atendida (coberta) pelo sistema privado, chegar-se-ia a um patamar de
ociosidade vagas aluno/ano mais alarmante, ainda.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em primeiro lugar, cabe reconhecer que a metodologia censitária testada na pesquisa


que originou esse artigo permite afirmar que tudo que se acreditava saber, a priori, como
acadêmicos, tomando como base os métodos tradicionais de pesquisa avaliativa (normalmente
com base em amostragem e dados secundários), representamapenas um conhecimento parcial
e bastante limitado da realidade, portanto, ilusório e insuficiente para ajudar os gestores
públicos, políticos e a sociedade, em geral, a ter uma dimensão mais aproximada dos fatos e
ações administrativas de modo a subsidiar suas ações políticas. Essa constatação legitima a
afirmação de que a grande maioria dos administradores públicos e estudiosos sobre temas
vinculados às políticas públicas (incluindo os autores desse artigo) estão distantes de conhecer
a realidade na sua concretude e totalidade, se contentando, na maioria das vezes, com análises
superficiais ou estudos de casos.
18  
 
 
 

Em segundo lugar, chegou-se à conclusão, depois de sistematizar todas as observações


acerca do funcionamento dos sistemas públicos de saúde e educação de Itabuna, de que é
inconcebível que a atuação do Estado ainda esteja em uma situação de deficiência e
desarticulação como a que se comprovou no estudo. E o mais grave é constatar que os
conceitos, princípios e, especialmente, os métodos que fundamentam as análises avaliativas
correntes (que resultam, em sua maioria, em diagnósticos e prognósticos equivocados)
continuam vigentes e validadas (algumas até premiadas). Os achados da pesquisa permitem,
pois, inferir que as políticas públicas itabunenses parecem, na atualidade, mais
comprometidas em problematizara vida dos que mais necessitam de uma ação pública de
qualidade (os mais pobres), do que em atender e suprir, efetivamente, suas necessidades,
especialmente as mais cotidianas como as políticas aqui analisadas.
Assim, implantar uma política social de alcance universal, conforme preconizado pela
Constituição de 1988tem revelado ser uma tarefa difícil, visto que, conforme confirmado
pelos resultados do estudo, as dificuldades para seu alcance só tendem a aumentar,
especialmente nos municípios. Mas, na contramão de qualquer racionalidade,observa-se que
as dificuldades e os problemas sociais ao invés de serem, progressivamente, superados,à
medida que as experiências fossem sendo adquiridas e acumuladas – expondo, assim, um
processo importante de aprendizagem e inovação das práticas de gestão pública – tem
revelado justamente o contrário. Os dados da pesquisa sobre a realidade do município de
Itabuna confirmam essa afirmação e a distorção existente entre a gestão (concepção) e a
gerencia (execução) das políticas públicas. Os achados demonstram, pois, que há sempre
espaço para o agravamento da qualidade das políticas públicas nos municípios brasileiros.
Essa constatação, além de revelar a ausência de uma Administração Política (de um projeto de
nação e/ou de um projeto de sociedade) voltada para alcançar o bem estar da população,
especialmente dos mais necessitados, demonstra justamente o avesso dessa expectativa, visto
que o propósito do Estado e de parte expressiva da sociedade brasileira tem sido orientado
pelo fundamentalismo ‘marginal’ do chamado‘ideário liberal’, construído pelos renascentistas
e iluministas nos séculos XVI e XVII, e que recebeu sua forma definitiva nos escritos de
Adam Smith, já no século XVIII.A partir da segunda metade do século XX, essa ideologia
torna-se, ainda, mais perversa, pois, parece romper com alguns dos princípios básicos que
orientaram e permitiram a consolidação da teoria clássica liberal, na medida em que, hoje, as
nações (desenvolvidas e em desenvolvimento, como é o caso do Brasil) parecem caminhar em
direção a lugar algum. O que significa concluir que parece que estamos sem rumo!

19  
 
 
 

Conclui-se, pois, ser um equívoco imperdoável separar os atos de Pensar (conceber,


planejar, conduzir, decidir etc.) e Agir (executar o concebido, executar o planejado) que
conformam o que denominam de Administração Política; assim como é um equívoco ainda
maior a ação do Estado não ser guiada, orientada sempre pela Finalidade do Bem Estar da
sociedade! Visto que este deveria ser, pois, o parâmetro de referência para a ação pública!

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20  
 
 
 

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SOARES, Fabrício Vasconcellos. Prefácio. In: SANTOS, Reginaldo Souza (Org.) at all. A
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1
Esta pesquisa foi financiada pelo CNPQ.
2
Ao (re)elaborar esta questão aproximam-se da problematização feita também por Ribeiro (2006) e Azevedo e
Grave (2014).
3
Aqui não se está querendo destacar aspectos que estão relacionados ao campo da economia política, que, apesar
de ser complementar, tem seu próprio objeto científico que é garantir a materialidade da
humanidade/indivíduos/sociedade – definir o que, por que e para que produzir?
4
Aqui cabe destacar a relevante contribuição que os estudos do campo da ciência política e também das demais
ciências sociais e humanas, especialmente no que se refere à análise da administração e políticas públicas.
Entretanto, a crítica que se deseja demarcar é que faltam investimentos ao campo que é próprio da administração
que é o campo da gestão e da gerencia, responsáveis, por tanto, por compreender, interpretar, analisar, criticar e
propor ações que tenham reflexos diretos no que se denomina de atos e fatos administrativos ou práticas e
saberes administrativos, conforme já destacado no corpo desse texto.
5
Ver Santos e Ribeiro (1993;2004), Cano (2007), Gomes (2009; 2014), Pedrão (1995), entre outros.
6
Ministério do Trabalho e Ministério da Saúde.
7
Organização Pan-Americana da Saúde/OPAS e Organização Internacional do Trabalho/OIT.
8
Sobre esse ponto ver SANTOS at all (2009).  

21  
 
Crise Econômica ou Crise Política: os Desafios do Segundo Mandato do Governo
Dilma Rousseff

Resumo

O segundo mandato da presidente Dilma Rousseff depois de uma vitória apertada diante
de seu adversário o psdebista, Aécio Neves. A petista enfrentou racha em sua base
aliada, principalmente do seu maior aliado o PMDB, crises políticas em seu primeiro
mandato que custaram as demissões de Ministros, assim como o julgamento do
mensalão e a CPI da Petrobrás que trouxeram a questão da corrupção para o debate das
eleições presidenciais em 2014. São muitos os desafios de Dilma Rousseff, rearticular a
base de apoio político, social, jurídico e industrial, recuperar sua governabilidade
(NASSIF, 2015). Ressalta – se que a presidente, desde 2011, assumiu um país com
acordos já definidos e uma crise econômica ainda em curso em parte da Europa e nos
EUA. Em seu segundo mandato, em face de um novo contexto econômico ela está
tendo que tomar medidas de ajuste fiscal que não estão sendo bem vistas pelos seus
eleitores e tem servido de discurso para a oposição. Dessa forma, a presidente precisa de
um centro de governo forte que trabalhe no sentido de recuperar a estabilidade
econômica e política.
Palavras-chave: crise, política, economia, governabilidade, centro de governo.

Introdução

Política e economia nunca foram temas tão populares como atualmente, nas redes
sociais e em toda a mídia o que mais se vê são “notícias” sobre a crise política e
econômica que o Brasil esta passando. São números intimidantes sobre a economia, e, a
cada dia, mais escândalos sobre a corrupção que parece como “nunca antes” assolar o
país. Seriam mesmo a corrupção e um possível mau desempenho do governo os
responsáveis por tamanha confusão? Qual o real tamanho do problema? Quais as
verdadeiras razões da crise que fogem ao discurso comum? Quais os possíveis
caminhos e soluções?

O objetivo deste artigo é analisar a crise econômica e os impactos no Brasil, a reeleição


e o cenário político atual, frente ao comportamento da economia. Entender em que
medida, a corrosão da imagem do governo se dá pela crise econômica, e, em que
medida pela crise política. Neste sentido, o artigo conclui que a instabilidade política,
com as especulações, escândalos e polêmicas estão aumentando as dimensões da crise
econômica.

O segundo mandato da presidente Dilma Rousseff iniciou-se em 01 de janeiro de 2015


depois de uma vitória apertada diante de seu adversário o psdebista, Aécio Neves. A
petista enfrentou racha em sua base aliada, principalmente do seu maior aliado o
PMDB, crises políticas em seu primeiro mandato que custaram as demissões de
Ministros, assim como o julgamento do mensalão e a CPI da Petrobrás que trouxeram a
questão da corrupção para o debate das eleições presidenciais em 2014.
São muitos os desafios de Dilma Rousseff, rearticular a base de apoio político, social,
jurídico e industrial, recuperar sua governabilidade (NASSIF, 2015). Ressalta – se que a
presidente, desde 2011, assumiu um país com acordos já definidos e uma crise
econômica ainda em curso em parte da Europa e nos EUA. A agenda do governo era de
investimento, havia grandes aportes financeiros para as construções de estádios para a
Copa do Mundo, melhorias nos aeroportos, melhorias nas rodovias, nos transportes
públicos, enfim, eram bons ventos.
Em seu segundo mandato, Rousseff, em face de um novo contexto econômico está
tendo que tomar medidas de ajuste fiscal e estas medidas, não estão sendo bem vistas
pelos seus eleitores e tem servido de discurso para a oposição. Dessa forma, a presidente
precisa de um centro de governo que trabalhe no sentido de recuperar a estabilidade
econômica e política. O debate ideológico, neste momento, só desmobiliza ainda mais o
governo que já está enfraquecido. É necessário garantir a governabilidade para seguir
em frente.
A consolidação de um centro de governo forte é trivial para retomada do projeto de
desenvolvimento nacional. O Centro de Governo (ou Center of Government), são
órgãos ou grupo de órgãos que prestam apoio direto ao Chefe do Governo e aos seus
ministros. Estas instituições que compõe o Centro de Governo têm como atribuição,
garantir a consonância entre as políticas públicas e a visão estratégica do governo. Os
ministérios trabalham em seus próprios domínios, porém a maior parte das políticas
publicas envolvem mais de um ministério, além da cooperação do legislativo e
judiciário, por isso, a necessidade de coordenação e articulação do Centro (DOS
SANTOS, 2013).
Em relação à metodologia utilizada, consistiu em pesquisa exploratória conforme
elucidado por Antonio Carlos "As pesquisas exploratórias com a principal finalidade
desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e idéias, cós vistas na formulação de
problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores." (GIL,
1994, p44).

A crise Econômica

As redes sociais têm trazido com frequência discussões políticas para o cotidiano. É
questionável, no entanto, a qualidade e integridade das informações nelas veiculadas.
Somada a enxurrada de conteúdo disponível de origem pouco verificável, está a mídia
com seus interesses políticos-coorporativos. Ela vem colaborando para expandir a
sensação de mal estar econômico-político por intermédio da massificação sistemática de
notícias alarmistas. A expectativa pública é um importante agente na economia, pois ela
influencia o comportamento do mercado. Um mercado atemorizado tende a resguardar-
se reduzindo investimentos, o que desacelera a economia, por fim, a crise, em parte,
ganha força pelo espetáculo midiático.

O cenário econômico externo no governo Dilma é bastante diferente em comparação a


gestão anterior, a crise internacional chegou ao Brasil. Já no primeiro mandato, os
preços das commodities que haviam beneficiado o governo LULA caíram e o
crescimento mundial desacelerou. A financeirização dos EUA anteriormente ajudou a
impulsionar os preços das commodities ao passo que criava mais instabilidade
econômica. Os países emergentes produtores de commodities foram muito beneficiados,
em particular, o Brasil. Até mesmo as exportações para a Ásia, em alta no governo
LULA, em particular para a China, maior importador de commodities do mundo,
sofreram um revés. À medida que a economia chinesa começou a diminuir, os
investidores perderam o interesse no mercado de commodities, isso levou a diminuição
dos preços. E, a tendência, é que este quadro permaneça. O “The Guardian” publicou no
início do mês de Junho (2015) que o Banco Mundial reduziu as previsões de
crescimento para as economias emergentes, em razão dos baixos preços do petróleo e a
ascensão da taxa de juros.

O alto preço das commodities serviu de incentivo para as economias emergentes


lançarem projetos de desenvolvimento caros, em parte, este dinheiro veio de
empréstimos o que elevou a dívida pública. No primeiro mandato de Rousseff, o
governo aumentou o gasto e o endividamento público a fim de estimular a economia por
meio do consumo das famílias, com redução de impostos, renúncia fiscal para boa parte
do setor produtivo, e incentivo por meio de financiamentos liberados pelos principais
bancos públicos, Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES, para obras de
infraestrutura e modernização. O crédito, farto e barato, proporcionou acesso a bens e
serviços antes não acessíveis a camadas mais pobres da população. Programas foram
ampliados como Pro-Uni, Minha Casa, Minha Vida, expansão do FIES, além do Plano
Brasil Sem Miséria como carro-chefe do governo no combate à extrema pobreza...
Apesar do avanço social louvável, as medidas anticíclicas funcionaram até certo ponto,
contudo, o desequilíbrio nas contas públicas, em algum momento, traria medidas não
populares a serem tomadas. De acordo com Gurgel (2009), calcula-se que a renúncia
fiscal do governo pode ter chegado em 2009, algo em torno de R$ 12 bilhões; já os
dados do Portal Brasil, de 23 de setembro de 2014, mostram que a renúncia fiscal
chegou à R$ 67,1 bilhões, 36,9% maior que em 2013, com a justificativa de impulsionar
o crescimento (PORTAL BRASIL, 2014).
O efeito virtual criado pelos gastos do governo exauriu-se, “Inflação em alta, déficit das
contas públicas, baixo crescimento econômico, desequilíbrio das balanças de
pagamentos, elevação da dívida pública etc.” (ZAIDAN, 2015). A crise econômica era
anunciada desde o primeiro mandato, porém, por questões eleitorais, os ajustes
necessários foram adiados para o pós-eleições. Já no início do segundo mandato a
agenda do governo iniciou a onda de ajustes fiscais, “aumento de impostos, retirada de
direitos, aumento da taxa de juros, restrição do crédito etc.” (ZAIDAN, 2015). Esta
reviravolta foi mais um motivo de reclamações para os já insatisfeitos, a oposição, a
mídia e até os próprios eleitores do governo. O governo estava cumprindo a agenda que
acusou que a oposição faria, adotando medidas de austeridade, tipicamente favorecidas
pelo FMI, incluindo cortes nos subsídios a energia. Estas medidas intensificaram a crise
política e reduziu, ainda mais, a aprovação popular.

Muitos podem se orgulhar em dizer que o sistema bancário brasileiro é um dos mais
seguros do mundo. Ocorre que o capital financeiro tem sobrepujado, em muito, a
produção, é a busca dos altos rendimentos, por intermédio das altas taxas de juros, a
valorização do capital virtual, a chamada política da austeridade, à parte, ficam os
investimentos na produção, na indústria, na economia real. A prioridade é remunerar o
capital fictício sob a forma de dívida pública, implicando redução de gastos em áreas
prioritárias, como saúde, segurança, educação, infraestrutura, saneamento básico. De
acordo com a análise da Carta Maior, em 24 de Agosto de 2014, este movimento
econômico vem se intensificando no Brasil desde 1990, e, é a tendência do capitalismo
contemporâneo (CARTA MAIOR, 2014).

“Os Estados Nacionais vêm transferindo massivamente a renda nacional


apropriada pelos mesmos, produto do trabalho de coletividades gigantescas
submetidas a condições de trabalho e de remuneração decrescentes devido às
políticas chamadas de ‘austeridade’, que orientam o excedente econômico
produzido pelos gastos sociais para a ‘necessária’ e ‘indispensável’
remuneração dos donos do capital financeiro - simples ‘especuladores’
transformados magicamente em ‘investidores’”. (SANTOS,T, 2014).

Este fato pode explicar o porquê de apesar de o país estar em crise, os três principais
bancos privados aumentaram em 27% os seus lucros líquidos, na comparação entre o
1ºsemestre de 2014 com o 1º semestre de 2015 (SCIARRETTA, 2015).

Outro fator impactante na crise, como já mencionado, é o preço do petróleo. O aumento


da produção, principalmente nas áreas de xisto dos EUA e a demanda reduzida na Ásia
e Europa, rebaixaram o preço do barril. Apesar do excesso de oferta, os países da
Organização de Países Exportadores de Petróleo (Opep) recusaram-se a reduzir os seus
tetos de produção, independentemente do preço no mercado internacional (G1, 2015).
A participação do setor de petróleo e gás chega a 13% do PIB brasileiro (PETROBRÁS,
2015), e, com o Brasil adota o modelo monopolista, a Petrobrás corresponde a 99% do
setor. A rentabilidade da exploração no pré-sal caiu e consequentemente os
investimentos também. A Petrobrás precisa de financiamento, se por um lado o
financiamento é pouco provável no setor privado, em razão dos escândalos de corrupção
(e a operação Lava-Jato), por outro, o governo também não pode vir a seu socorro em
momento de ajuste fiscal. Hoje 27 empreiteiras, das maiores do Brasil, foram proibidas
de participar de novas licitações com a Petrobrás. Estas empresas também enfrentam
dificuldades para obter financiamento, possivelmente impactando os seus fornecedores
e credores.

A crise hídrica, em especial, em São Paulo, é mais um combustível para a crise


econômica. Ela representou até 10% da inflação na capital paulista no primeiro semestre
do ano (G1, 2015). A falta de água impacta a produção de energia, a indústria e a
agricultura. Com a diminuição da oferta de alimentos, em função da escassez de água, a
inflação dos alimentos sobe, e, em contra partida, o Banco Central aumenta os juros,
desaquecendo ainda mais a economia. Além disso, a produção industrial e o consumidor
tem que arcar com os custos elevados da conta de água e energia o que, muitas vezes,
traduz-se em uma maior inadimplência e furto, afetando também as distribuidoras.
A subida do Dollar, mais um ingrediente para engrossar o caldo da crise. Dentre os
motivos estão à desaceleração econômica no Brasil, a redução das exportações, a crise
política que afasta investidores, agravada pela Lava-Jato, e, por fim, a expectativa de
alta de juros nos Estados Unidos. Estes são fatores que diminuem a entrada do Dollar no
Brasil. Desde a crise de 2008, o FED (Federal Reserve), tinha fixado juros à quase zero,
com a recuperação da economia norte americana, o FED anuncia que irá subir a taxa de
juros ainda este ano. A principal consequência da alta dos juros nos EUA para países
emergentes, como o Brasil, é a perda de atratividade para mercados financeiros, ou seja,
os investidores que antes foram atraídos por juros mais atrativos, retornarão aos EUA,
porque além dos juros, tratasse de um mercado de menor risco (O GLOBO, 2015).

Crise Política: os desafios de uma reeleição

O Brasil escolheu seu sistema político, o presidencialismo, e com ele todo o conjunto de
norma, formas, articulações e regras para se manter um governo e sua governabilidade.
O sistema brasileiro conhecido como presidencialismo de coalisão ganhou esse
adjetivo, segundo Limongi (2006), por se tratar de um regime com características
peculiares. Já Fabiano Santos (2006), resgata que o termo surgiu em 1988 com artigo
de Sérgio Abranches que descreve um modelo institucional em que o presidente
constrói sua base de sustentação concedendo postos ministeriais a membros de partidos
que possuem representação no Congresso e, estes, em troca, forneceriam votos para
aprovações de agendas de governo e outras matérias.
Ao longo de três décadas, as composições partidárias nas coligações para eleições
presidenciais formataram o cenário das relações das forças políticas tanto no Congresso
(Câmara e Senado) quanto nos governos dos estados. Numa análise dessas
composições, é possível perceber a flutuação de partidos ditos de “centro” que ora são
base aliada de governos neoliberais ora são base de governos de esquerda e centro
esquerda, além dos chamados “partidos nanicos” que em média elegem um ou dois
deputados ou senador, mas que barganham seus poucos votos nessa grande coalizão que
se caracteriza o presidencialismo no país. As correlações de força no parlamento são
importantes para que haja a governabilidade de um presidente, pois as agendas de
governo, as mensagens do executivo, as aprovações de orçamento necessariamente
passam pelas duas casas legislativas. Mas, por que compreender o presidencialismo de
coalisão? Quais são seus impactos na governabilidade de um presidente?

Os 12 anos de governo Petista e suas implicações


Desde a redemocratização, o país não tem um único partido tanto tempo à frente do
governo como o que possui hoje. São 12 anos de governo petista, duas reeleições, dois
governos seguidos de um mesmo partido, duas maneiras de governar, características e
cenários políticos e econômicos diferentes, contudo, governos de “continuidade”. O PT
vence a eleição em 2002 sem a hegemonia política, com grande desconfiança no cenário
econômico e forte campanha de oposição nas grandes mídias.
Emir Sader (2011) define os governos de Lula e Dilma como pós-neoliberais, cujas
agendas romperam com elementos centrais do modelo neoliberal de Collor, Itamar e
FHC. O autor recorda em seu texto, A construção da hegemonia pós-neoliberal, que o
então presidente Lula sofreu dois momentos de intensa crise política quando também se
cogitou a possibilidade de impeachement do presidente. Diferentemente do primeiro
mandato de Dilma, o governo Lula não tinha maioria no congresso, na época o PMDB
não compunha a base e, a ampliação dessa base de apoio explicaria, em parte, a crise de
2005 vide todo o processo do Mensalão. Ainda de acordo com Sader, a hegemonia
política construída por Lula em seus governos teria sido produto de intuição e
pragmatismo do presidente.
Dilma Rousseff foi eleita a primeira vez em 2010, numa composição com o PMDB,
partido liderado por Michel Temer, seu vice, cuja coligação era denominada “Para o
Brasil seguir mudando”. O PT elegeu uma bancada de 88 deputados federais, na época,
e seu maior aliado elegeu 79; além disso, dos 81 senadores, 54 faziam parte da
coligação da presidente. Outro ponto importante foram as eleições dos governadores,
pois dos 27, 16 eram ligados à coligação. O governo tinha a maioria no congresso, tinha
estabilidade econômica, tinha popularidade, tinha as condições ideais para seguir sua
agenda de continuidade. Mas não só de flores viveu o primeiro mandato da presidente.
Nos primeiros meses de seu governo, Dilma enfrentou sua primeira crise; firme em seu
discurso de enfrentamento à corrupção, a presidente demitiu e recebeu pedidos de
demissão de alguns ministros que tiveram envolvimento com escândalos de corrupção,
dentre eles, Antônio Palocci (Casa Civil), Carlos Lupi (Trabalho e Renda), Alfredo
Nascimento (Transportes), Wagner Rossi (Agricultura), Orlando Silva (Esporte), Pedro
Novais (Turismo) e Mario Nigromonte (Cidades). Em 2013, enfrentou as manifestações
populares por todo o país. O Planalto ficou muito tempo em silêncio e permitiu que a
imagem da presidente ficasse cada vez mais desgastada. Em 2014, a crise da Petrobrás,
com a Operação Lava-Jato e o julgamento do Mensalão tornaram a reeleição um grande
desafio.

A reeleição e os desafios do segundo mandato


As eleições de 2014 foram as prévias do que estava por vir. A vitória apertada diante de
Aécio Neves (PSDB) não deu à Dilma a força diante do Congresso. O PMDB
demonstrou que seu apoio à reeleição não era total, quando parte do partido,
especialmente no Rio de Janeiro, apoiou o candidato tucano indo de encontro à chapa
nacional (PT-PMDB). Apesar do PT e do PMDB elegerem as duas maiores bancadas da
câmara e os partidos da coligação vitoriosa, ao todo, elegerem 340 deputados, a vida
não está sendo fácil para o governo. Comparado ao resultado de 2010, o PT diminui em
19 o número de deputados federais, enquanto seu maior opositor, o PSDB, aumentou
sua bancada em 10 deputados em comparação à eleição anterior.
A crise política que o governo enfrenta atualmente não inicia em janeiro de 2015, ao
contrário, suas raízes estão desde 2013, mas ela toma força pós eleição e, algumas
questões são importantes para essa análise: o discurso da oposição em afirmar que seria
“Incansável” e as sucessivas derrotas do governo dentro da CPI da Petrobrás e em
outras matérias como às relacionadas às metas do superávit primário, por exemplo.
Outro fator relevante foi como a presidente Dilma montou seus ministérios. Além de
não diminuir a quantidade de pastas, as escolhas feitas pela presidente geraram
insatisfação nos parlamentares do Congresso Nacional que, em boa medida, não se
sentiram contemplados e/ou representados pelos nomes definidos, ainda que fossem de
suas siglas partidárias. A crise aumenta sua força com a eleição das duas casas
Legislativas, onde Eduardo Cunha foi eleito presidente da Câmara dos Deputados e
Renan Calheiros reeleito presidente do Senado. A pouca interlocução do Planalto com o
Congresso, a insatisfação dos deputados e senadores em relação ao governo, as matérias
polêmicas como a do seguro desemprego e o ajuste fiscal, tudo isso aliado à oposição
aberta do presidente da Câmara e às denúncias de corrupção anunciadas pela operação
Lava-jato aumentaram o discurso pelo Impeachment da presidente e vem gerando uma
crescente onda de instabilidade política no país.
Aos poucos a base do governo foi sendo deteriorada, como afirmou Cunha (2015) em
entrevista sobre a Emenda Constitucional aprovada recentemente na câmara dos
deputados, a qual ele chamou de primeiro item de uma “pauta-bomba”. Eduardo Cunha
tornou-se o principal opositor ao governo Dilma e tem demonstrado em diversas
votações que sua vontade é soberana, inclusive diante dos votos de seus colegas de casa.
O deputado do Rio de Janeiro, do PMDB, atua, segundo Editorial do jornal O Globo de
07 de agosto de 2015, como manipulador do Congresso afim de que escape das
denúncias relativas a ele elucidadas pela operação Lava-Jato. Apesar disso, Cunha
continua ganhando força em suas atuações porque tem eco no Senado e espaço nas
grandes mídias, que vêm atuando de forma incisiva no que se refere às denúncias contra
o governo e contra o PT. A mídia como uma espécie de “quarto poder” tem exercido
papel importante na propagação das crises política e econômica, permitindo que a
especulação e a instabilidade tomem proporções ainda maiores.
Diante dos insucessos das tentativas de diálogo, o governo optou por acionar o vice-
presidente Michel Temer para ser o principal interlocutor político entre o Planalto e o
Congresso, mas isso não impediu as sucessivas derrotas nas duas casas. O fato é que a
crise política alimenta a crise econômica e vice-versa, como analisa o editorial do jornal
O Globo:

“Os sinais de esfarelamento da base parlamentar do governo foram


reforçados pelo anúncio de PDT e PTB de que não votarão mais com o
Planalto. A crise avança para reduzir ainda mais a estreita margem que o
governo tem no Congresso para combater os desajustes da economia.
Justificou-se, assim, a iniciativa do vice-presidente, Michel Temer (PMDB),
principal articulador político do Planalto, de fazer tensa declaração de
reconhecimento da gravidade da situação e apelar para que haja um
entendimento amplo a fim de conter a bola de neve de duas crises que se
alimentam, a política e a econômica. Somou-se à atitude de Temer a ida do
ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, à Câmara para, entre
elogios ao PSDB e reconhecimento de erros cometidos pelo PT, propor um
“acordo suprapartidário” diante da situação difícil na política e na economia ”.
(O Globo, 07/08/15, Editorial).

E, também acirra a opinião pública. O governo de Dilma tem uma rejeição alta, 71%
segundo o Datafolha, contudo ela segue firme em seus discursos, afirmando que não
teme pressão.

O pano de fundo da crise é ideológica e não é por acaso que aparelhos ideológicos do
Estado estão a serviço de um processo em curso para a renúncia da presidente ou a
justificativa de seu impeachment. O fato é que a crise política, a manipulação no
Congresso, impulsiona a crise econômica, pode paralisar as ações do Executivo e causar
ainda mais estragos na economia do país. Qual é o preço da pressão política que impede
a governabilidade de um presidente? Até que ponto o presidencialismo de coalisão é tão
importante para garantir a governabilidade e o manejo político?
Em um governo em que sua figura principal está na linha de ataque, nesse caso a
própria presidente, torna-se evidente a necessidade e relevância de um ponto focal, da
figura do articulador, uma pessoa que represente o governo e que seja capaz de
apaziguar as pressões e demandas do Congresso e construir de forma “diplomática” a
governabilidade por meio de autoridade política e confiança.

O Centro de Governo: um caminho para a retomada do diálogo

A consolidação de um centro de governo forte é trivial para retomada do projeto de


desenvolvimento nacional. O Centro de Governo (ou Center of Government - CoG) são
órgãos ou grupo de órgãos que prestam apoio direto ao Chefe do Governo e aos seus
ministros. Estas instituições que compõe o Centro de Governo têm como atribuição,
garantir a consonância entre as políticas públicas e a visão estratégica do governo. Os
ministérios trabalham em seus próprios domínios, porém a maior parte das políticas
publicas envolvem mais de um ministério, além da cooperação do legislativo e
judiciário, por isso, a necessidade de coordenação e articulação do Centro (DOS
SANTOS, 2013). São algumas das atribuições do CoG: planejamento estratégico,
acompanhamento de resultados, comunicação de decisões e conquistas, articulação
política e coordenação de políticas Publicas (ALESSANDRO; LAFUENTE; SANTISO;
2013). O CoG não estão diretamente envolvidos na prestação de serviços e nem
concentrado em determinada área política, mas esta diretamente relacionado ao controle
de qualidade e ao impacto de todas as políticas-chave (ALESSANDRO; LAFUENTE;
SANTISO; 2013).

A necessidade de um centro de governo forte tem crescido em face da crise política e


econômica no Brasil. Os problemas que o governo vem enfrentando são transversais, ou
seja, envolvem vários setores, por isso, a coordenação central mais forte é necessária
para dar coesão as ações. O executivo precisa ter maior articulação com a base e dar
respostas coerentes as demandas sociais e efetuar todos o ajustes fiscais necessários,
frente à crise econômica. É importante, como já ocorre em outros países, que o CoG
tenha mais espaço de atuação. Ele precisa contemplar mais grupos de interesses e
garantir esforços alinhados as políticas do governo. Em outros países, os CoGs
promovem inovações que melhoram o desempenho do governo e apoiam instituições e
agências públicas. Ao longo do tempo, o poder do executivo tendeu a descentralizar-se,
o CoG deverá esforçar-se em manter a consonância das diretrizes centrais nos diversos
níveis. Deste modo, as principais funções do CoG envolvem os três poderes, garantindo
a liderança política e funcionamento do governo, através da articulação, coordenação e
do monitoramento.
É importante que os envolvidos no CoG possuam habilidades técnicas e experiência
política, uma vez que nem sempre é possível distinguir uma habilidade da outra em
atividades que requerem conhecimento político e de gestão. Neste segundo mandato,
Rousseff manteve Aloízio Mercadante como ministro da Casa Civil, ministério
tradicionalmente reservado a articulação política, porém a postura de Mercadante não
aliviou as tensões em torno da base do governo. Com o intuito de suplantar a
fragmentação da base do governo, Mercadante tentou se amparar na barganha. Ele
inclusive explicitou a estratégia do governo para garantir os votos necessários ao
prosseguimento do ajuste fiscal, “é evidente que quem ajuda o governo, quem vota com
o governo, quem sustenta o governo, governa com o governo e tem prioridade nas
indicações do segundo escalão [...] Aqueles que querem colaborar serão privilegiado.”
(MONTEIRO, 2015). A postura do ministro feriu ainda mais a governabilidade de
Rousseff, já que gerou reações adversas dentro do bloco aliado. Este foi um dos vários
episódios de má articulação por parte de Mercadante.
Hoje, Aloízio Mercadante continua a frente da Casa Civil, porém longe da articulação
política do governo. A presidenta ampliou o núcleo da articulação política, incluiu o
ministro da Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo (PCdoB), Joaquim Levy (Ministro da
Fazenda) e o peemedebista Michel Temer (vice-presidente), atualmente o principal
articulista do governo em decorrência da recusa de Padilha (ministro da Aviação Civil)
em assumir a Secretaria de Relações Institucionais.
São muitos os desafios de Dilma Rousseff, rearticular a base de apoio político, social,
jurídico e industrial, recuperar sua governabilidade (NASSIF, 2015). Neste sentido, as
medidas iniciais de seu governo não têm sido bem vistas pelos seus eleitores e tem
servido de discurso para a oposição. Dessa forma, a presidente precisa de um centro de
governo que trabalhe no sentido de recuperar a estabilidade econômica e política. O
debate ideológico, neste momento, só desmobiliza ainda mais o governo que já está
enfraquecido. É necessário garantir a governabilidade para seguir em frente.

Considerações Finais
Em um presidencialismo de coalizão como o nosso, as articulações e dependências de
um governo são muitas e das mais diferentes formas. A crise especulativa, irresponsável
e voraz em que o país se encontra não apenas prejudica a governabilidade da presidente,
como paralisa as ações e estratégias do executivo e interfere dia após dia na economia,
gerando a sensação na população de que ao invés de governo, o que se tem é um
desgoverno. E isso se agrava quando a imagem da presidente começa a ficar
comprometida.
Mas, o cenário atual não é típico deste tempo, o país já viveu momentos de instabilidade
política que proporcionaram golpes e impeachment e, as consequências foram
problemáticas e levaram-se anos para o reequilíbrio. O povo brasileiro conquistou a
democracia em 1988 e isso precisa ser respeitado e mantido, inclusive é nisso que a
presidente tem se agarrado na tentativa de retomar as rédeas de seu governo e
governabilidade. Dilma foi eleita pelo voto, isso é fato e como disse há poucos dias: “
Eu não tenho medo. Eu aguento pressão. ” (Exame, 04/08/2015).
Como dito nesse artigo, a crise tem fundo ideológico e em tempos de democracia
brasileira nenhum outro partido ficou tanto tempo no poder como o PT; parafraseando o
ex-presidente Lula, nunca antes na história desse país um partido comandou por tanto
tempo o Brasil. E isso não é uma questão menor e deve ser levada em consideração nas
análises da crise política, principalmente. Outro fator importante na análise da crise diz
respeito ao Centro de Governo, que deveria ter apenas uma figura política para falar em
nome do Planalto, contudo, não há centralidade numa única pessoa, ao contrário, na
tentativa de diminuir os problemas causados pela base aliada, a presidente elege
diferentes personagens para tentar solucionar a questão, pois, o atual ministro da Casa
Civil, Aloisio Mercadante não tem demonstrado força política suficiente para reagrupar
a base e retomar o diálogo “fraterno” com os pares do governo.
Os indícios de que em algum momento a conta dos investimentos e gastos públicos
chegaria e teria que ser paga era uma questão de tempo. O problema foi que o governo
deixou o processo eleitoral passar para que as medidas de ajuste fossem tomadas. É
importante que as contas públicas sejam reequilibradas, contudo, os meios para isso não
são totalmente populares. Além disso, a corrupção é um fantasma bem vivo e causa
grandes estragos na imagem do governo.
Dilma tem em mãos desafios enormes: reequilíbrio das contas públicas, retomada do
crescimento, retomada do diálogo e, principalmente, da credibilidade em relação à
sociedade e os setores produtivos. Mas, o maior deles, é o desafio de diminuir os
embates e perdas no Congresso. Seu governo enfrenta duas crises ao mesmo tempo, mas
uma delas, a política, parece estar, ainda, escorrendo entre seus dedos.

Referências

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25/07/2015.
Cultura e Desenvolvimento no Brasil: uma relação tão delicada.

Janaina Santos Dias1


Frederico Lustosa da Costa2

Resumo
A partir do exame de alguns conceitos básicos em perspectiva histórica, o artigo discuti as
relações entre cultura e desenvolvimento no contexto sócio-econômico, as tendências mais
recentes na abordagem do papel da cultura no desenvolvimento e seus significados assumidos.
Palavras Chave: Cultura, Desenvolvimento, Políticas Públicas

                                                                                                                       
1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Administração (PPGAd) da Universidade Federal Fluminense
(UFF). janainadias@id.uff.br
2
Professor do Programa de Pós-graduação em Administração (PPGAd) da Universidade Federal Fluminense
(UFF). fredericolustosa@id.uff.br
1  
 

Introdução
 

A cultura como expressão da identidade de regiões, povos ou nações, e por isso,


substrato do desenvolvimento, não se caracteriza como uma noção atemporal, eterna, natural,
e sim, como uma construção histórica, discursiva em um contexto socioeconômico
determinado. Os conceitos de cultura vêm se transformando a partir de novos processos e
conjunturas. O desenvolvimento das políticas culturais vem problematizando o papel da
cultura como um elemento essencial para o desenvolvimento (BARBOSA, 2014).
O objetivo desse trabalho é discutir as relações entre cultura e desenvolvimento a
partir de diferentes conceitos, buscando identificar no debate contemporâneo, a natureza
dessas relações e os desafios que suscitam. A partir de revisão bibliográfica sobre a cultura e
sua relação com os contextos político-econômicos, pretende-se mapear as novas maneiras de
articular-se e definir-se teórica e politicamente.
A relação entre cultura e desenvolvimento tem sido assumida em políticas, planos,
programas e projetos governamentais em todos os níveis desde o local até o global. No
entanto, sua aplicação prática, como parte de estratégias bem definidas, ainda é uma questão
muito complexa, que envolve uma multiplicidade de aspectos.
O entendimento do contexto teórico, político e institucional no qual as categorias
cultura e desenvolvimento vêm se consolidando é necessário para se compreender a
especificidade desse processo. Assim, este trabalho se desenvolve a partir dos seguintes
questionamentos: Qual o entendimento da relação entre cultura e desenvolvimento hoje? Qual
a direção do debate teórico que tem embasado projetos e políticas públicas no Brasil? Qual o
desafio de se pensar a relação entre cultura e desenvolvimento hoje no Brasil? Ou seja, o que
está em questão hoje quando se fala em desenvolvimento cultural?

II - O contexto teórico-politico da relação entre cultura e desenvolvimento

Conforme Alves (2014), no período de apogeu das teorias, propostas e modelos de


desenvolvimento, entre os anos de 1950 e 1970, as categorias cultura e desenvolvimento
nutriam uma antinomia frontal. Conforme entende Lustosa da Costa (2006) durante o século
XIX e grande parte do século XX, as teorias do desenvolvimento abordavam a cultura como
um obstáculo ao crescimento econômico. Expressões culturais eram caracterizadas como
símbolo de atraso, sendo a diversidade das crenças religiosas, costumes e tradições das
populações rurais e/ou semiurbanas, vistos como um severo obstáculo. Os padrões culturais
eram tratados como atavismos arraigados, reminiscências coloniais e paroquiais que
comprometiam a efetivação de padrões e hábitos urbano-industriais e a estruturação da ordem
social competitiva, condição imprescindível para o desenvolvimento (LEITÃO, 2009).
O autor observa que mais recentemente, os teóricos da modernização explicam post
hoc que os países, onde tinha ocorrido crescimento econômico, a cultura era considerada o
fator determinante. Se não acontecia, ou continuavam pobres, o problema estava na cultura. O
fracasso e tentativa de desenhar e implementar modelos de desenvolvimento e de instituições
em países periféricos tem levado teóricos, governos e policy makers a considerarem o
contexto sócio-cultural em que projetos e políticas são implementados. E ainda consideram
que as instituições funcionam de forma diversa em diferentes ambientes culturais. A cultura
importa. A dimensão cultural passou a ser compreendida e valorizada. A cultura como
diversidade e pluralidade, produto da expressão humana, passou a ser tratada como motor,
fator e recurso para o desenvolvimento, como dimensão do desenvolvimento e como o
próprio desenvolvimento (LUSTOSA DA COSTA, 2011).
2  
 

Entre as décadas de 1960 e 1970, os termos progresso e modernização eram muito


utilizados; como um legado conceitual e valorativo do processo de industrialização e
mimetizando estilos de vida dos países europeus e da América do Norte (NETO, 2014, P.9,
IPEA). Na América latina, o conceito de desenvolvimento construído e implementado
enfatizava as noções de crescimento econômico, elevação de níveis de renda, aumento do
nível da taxa de emprego, proteção do mercado nacional, crescimento da renda per capita,
substituição de importação e industrialização (HERMET, 2002). As teorias de modernização
tratavam o desenvolvimento como crescimento econômico e prescreviam etapas a serem
cumpridas para a superação do subdesenvolvimento; o aumento da riqueza era o objetivo
social mais relevante e a prosperidade material de uma nação proporcionava automaticamente
o bem estar de todos os indivíduos e o desenvolvimento.
No Brasil, como observa Leal (2014), foi o Estado quem coordenou o processo de
desenvolvimento. O intenso processo de urbanização e industrialização do país refletia o
imperativo do desenvolvimento latinoamericano. Conforme Hermet (2002), a noção de
desenvolvimento, sobretudo no Brasil, nesse período, incorporava um aspecto imprescindível
ao processo: a exclusão e a redução da participação política de segmentos importantes
daquelas sociedades em profunda transformação e esse modelo vigorou na América Latina
seguindo uma racionalidade técnico-científica implementada pelo Estado desenvolvimentista
e conduzido pela importante participação de Instituições de Pesquisa e Planejamento
Econômico como a Comissão Econômica para a America latina (CEPAL).
Ao longo do século XX a referência do conceito de desenvolvimento era um conjunto
de escolhas nacionais, politicamente organizadas e as questões culturais e sociais relacionadas
ao desenvolvimento, estavam circunscritas ao bem estar econômico e a proteção social. As
realidades históricas e a reprodução da vida material revelaram a grande complexidade do
modelo de regulação da economia capitalista nos países periféricos e influenciaram
transformações nas teorias de desenvolvimento e permitiram que ocorresse uma dilatação
teórico-conceitual de desenvolvimento. Diferentes autores contribuíram para a ampliação do
debate como: Edgar Morin (2013), Amartya Sen (1999), entre outros.
De acordo com Lustosa da Costa (2015), as transformações no conceito de
desenvolvimento implicaram também, uma mudança no papel atribuído a sua relação com a
cultura para além de uma interpretação dicotômica, na qual era vista como mero suporte a
uma assimilação mais ou menos permeável de crenças e valores modernizadores. A cultura
passa então a ser compreendida como dimensão subjacente a todo o processo de construção
do desenvolvimento humano sustentável e orientador das escolhas sobre os meios e os fins
almejados para o desenvolvimento.
Conforme observa Brizuela (2013), a discussão sobre cultura e desenvolvimento se
aprofundou mundialmente, existindo hoje uma bibliografia relativamente importante sobre a
relação entre cultura e desenvolvimento, que tem sido pauta de vários organismos
internacionais.1 Estes organismos parecem ter chegado a um consenso das positividades da
relação entre cultura e desenvolvimento
Diferentes países da America latina vêm repensando os modelos de desenvolvimento e
salienta que o caminho tomado até hoje por governos latinoamericano possibilitou uma
cobertura massiva das necessidades básicas2, mas os custos políticos e históricos têm sido
altos.3. O conceito de desenvolvimento no continente vem desde a década de 1960
amadurecendo e evoluindo na direção de uma compreensão do desenvolvimento como um
processo mais abrangente do que crescimento econômico, compreensão que engloba uma
perspectiva culturalmente condicionada sobre o progresso humano social e econômico. O
debate sobre desenvolvimento vem desde então associado a uma busca por diversidade
cultural, sustentabilidade ambiental, garantia dos direitos individuais e universais e formas de
produção econômica que não apenas as industriais (NETO, 2014, IPEA, PG 9).
3  
 

Os governos latinoamericanos e seus executores vêm discutindo a necessidade de


redirecionar e repensar “o dever ser” das políticas públicas inserida numa nova proposta de
desenvolvimento. O Equador, país sede da Unasur4, vem propondo a possibilidade de um
desenvolvimento diferente dentro do capitalismo, uma alternativa social. O Plan Nacional del
Buen Viver (2013-2017) é o programa de governo do Equador, que conduz as políticas
públicas do país e que tem como princípio o desenvolvimento humano social baseado na
diversidade cultural, na igualdade dos povos, equidade, solidariedade, inclusão,
interculturalidade, garantia dos direitos humanos, da natureza e promoção da sustentabilidade
territorial e recuperar a vivência dos povos ancestrais5. È um modelo de desenvolvimento que
traz uma idéia mobilizadora mais ampla do progresso como uma nova forma de convivência,
na diversidade e na harmonia com a natureza para alcançar a plenitude e não apenas o
desenvolvimento econômico e social e uma inversão política prioritária, o social em primeiro
lugar, consubstanciada na constituição do país MonteCrist, desde 2008 (PLANO NACIONAL
Del BUEN VIVER, 2013-2017).
A crítica ao reducutio de desenvolvimento, ao seu aspecto econômico, reenfatiza as
dimensões mais profundas e filosóficas de um projeto global de sociedade que implica em
crenças mais amplas, conceitual e filosoficamente, sobre o desenvolvimento humano,
econômico e social que vem permeando o debate e a construção de projetos de
desenvolvimento em diferentes países. Nessa concepção, como observa Barbosa da Silva
(2012), o conceito de desenvolvimento envolve o contexto cultural e este condiciona o
primeiro, ou seja, não há relação de causalidade entre cultura e desenvolvimento, a cultura
não causa o desenvolvimento nem é conseqüência dele, como diferentes correntes de
pensamento, sobretudo a economicista, apontam. O Autor destaca que cultura e
desenvolvimento se referem a processos sociais e não a variáveis, razão pela qual não há
sentido dizer que um gera ou obstaculiza o outro. Ambas as dimensões estão envolvidas e se
referem a uma realidade e a um porvir de realizações construídas socialmente a que se deve
almejar e alcançar E como observa Ortiz (2007), não há sociedade sem cultura, ou seja, ela é
constitutiva da sociedade e das relações sociais.
Barbosa da Silva (2010) define desenvolvimento cultural como referente à
possibilidade de se encontrar recursos que permitam o enriquecimento das experiências, a
proteção e promoção das formas de expressão da interculturalidade e um conjunto de
transformações que permitam as próximas gerações condições para que supram sua
necessidade de sentido e pertencimento e desenvolvimento integral é o conjunto de
transformações socioeconômicas, políticas e culturais que possibilitem o bem estar social, a
sua expressão em diferentes modos de vida e formas participativas de organizações.
(BARBOSA DA SILVA, 2010, IPEA)
Deborah Eade (2002) observa que: “todos os modelos de desenvolvimento são
essencialmente culturais, dado que refletem percepções e respostas aos problemas que as
sociedades humanas enfrentam”. Dessa forma, ao invés de abordaremos a cultura apenas
como uma dimensão importante do desenvolvimento devemos ver o próprio desenvolvimento
como uma expressão cultural e a cultura como a base sobre a qual as sociedades podem se
desenvolver através de auto renovação e crescimento.
Denise Fonseca (2005) destaca uma relação de congruência e de unidade semântica
entre cultura e desenvolvimento, segundo a qual, “cultura pode ser entendida como o próprio
desenvolvimento social de uma comunidade – e vice-versa – independentemente da sua escala
ou dos seus conteúdos”. De acordo com a autora há entre esses dois termos uma identidade
natural. E como observa Ortiz (2007), não há sociedade sem cultura, ou seja, ela é constitutiva
da sociedade e das relações sociais.
O desenvolvimento cultural é um desafio engenhoso. A complexidade do tema tem
problematizando o viés da dimensão cultural e do papel da cultura no processo de
4  
 

desenvolvimento. Diferentes correntes de pensamento, assim como também sociólogos,


antropólogos levantam também questões do tipo? Até que ponto os fatores culturais
determinam o desenvolvimento econômico e político? Se o fazem, como remover ou mudar
os obstáculos ao desenvolvimento e favorecer o progresso? E como as políticas culturais vêm
interferindo nesse contexto? (LUSTOSA DA COSTA, 2011:149-165).
O debate teórico sobre a relação entre cultura e desenvolvimento tem oferecido
recursos conceituais para superar obstáculos epsitmológicos e institucionais possibilitando o
repensar de um projeto político de desenvolvimento integral sendo necessário um esforço
coletivo no debate sobre o desenvolvimento brasileiro. (IPEA, 2014).

III - Cultura e Desenvolvimento no Brasil

No Brasil, a preocupação com o desenho e implantação de um modelo de


desenvolvimento cultural se deu a partir da gestão do Ministro Gilberto Gil (2005-2008), no
Ministério da Cultura (MinC) 6 Desde então a cultura vem sendo investida de um papel
estratégico para o desenvolvimento e na construção de um país socialmente justo a partir de
bases conceituais como: diversidade cultural, identidade cultural, como capital social,
diversidade e pluralidade, produto da expressão humana e fator para o desenvolvimento. A
cultura é abordada em todas as suas dimensões desde a simbólica, a cidadã e a econômica.
Dessa forma a cultura tem um papel estratégico num projeto político de país, num
projeto de desenvolvimento sustentado e integral, inseridos num processo de transformações
socioeconômicas, políticas sociais que possibilitem o bem estar social e a sua expressão em
diferentes modos de vida e cultura
O reordenamento do papel do Estado no campo da cultura e a construção de marcos
ético-políticos têm avançado desde 2003 até hoje. Nesse sentido as políticas culturais têm
contribuído e pautado o debate sobre o desenvolvimento democrático brasileiro, sobretudo no
processo reivindicatório de efetivação dos direitos culturais e de participação nos espaços
públicos. A participação no âmbito das políticas públicas culturais tem contribuído para o
debate sobre desenvolvimento democrático e criando oportunidades de diálogo para se pensar
conjuntamente o projeto de país.
As políticas culturais no atual contexto brasileiro têm seu caráter político,
reivindicatório e potencial poder transformador, principalmente no que se refere a transformar
todas as positividades que a cultura como essência da identidade de regiões, povos ou nações
possui para o processo de desenvolvimento. As políticas culturais têm aberto e criado
oportunidades para a sociedade brasileira com a promoção dos direitos culturais e de intensas
relações e entrecruzamentos de cidadãos, culturas, instituições e mercado e sociedade civil.
A cultura incide no processo de desenvolvimento econômico e político. A cultura
importa, ela vem impactando tanto o crescimento material de emprego e da renda, como a
qualidade de vida e os principais indicadores de bem estar real dos cidadãos. Ela é fator de
desenvolvimento econômico7. A cultura é capaz de mudar obstáculos ao progresso e ao
desenvolvimento. A cultura local e o respeito aos diferentes modos de vida e de cultura pode
sim ser uma alavanca para processos mais inclusivos e democráticos. Dessa forma, é
importante considerar a importância central da cultura e das políticas culturais no contexto
brasileiro atual e da força de seus projetos reivindicatórios de direitos, na conquista dos
espaços públicos na visibilidade política e na formulação participativa de políticas culturais
que vem interferindo no desenho das políticas públicas e nas agendas sociais e econômicas no
Brasil. (DIAS E ALVES, 2015). A participação popular na formulação que é um o
pressupostos das políticas culturais hoje no Brasil, possibilita uma aprendizagem social para
lidar com as questões políticas em um ambiente de contradições e conflitos o que legitima
processos democráticos.
5  
 

A construção de um modelo cultural de desenvolvimento abrange um projeto político


social amplo e coletivo que seja integrador, com um alto grau de sociabilidade entre os
diferentes indivíduos e grupos que promova maiores e melhores condições de aprendizagem e
participação política e exercício fecundo da cidadania que torne a sociedade mais plural,
inclusiva e democrática. Um modelo que englobe os aspectos administrativo, econômico,
social, político ambiental e cultural. que envolva todos os setores e atividades da vida social
que tenha como finalidade primeira e última o bem estar de toda sociedade brasileira. Um
projeto político social sistêmico, estruturador e integrador das diferentes políticas: política
agrária, política industrial, urbana, ambiental, política de educação, saúde, transporte, política
de segurança pública de ciência tecnologia, e política cultural.
De acordo com Cláudia Leitão (2013) refletir sobre a relação entre cultura e
desenvolvimento é compreender todo o papel desempenhado pela cultura no plano da vida
política e social de um país ou de uma comunidade para elaborar as políticas para o
desenvolvimento que assegurem e promovam o reconhecimento e a visibilidade das diversas
práticas sociais, culturais e econômicas e que as focalizem como relevante no
desenvolvimento e capazes de dialogar com outros universos simbólicos. È compreender
como os conceitos cultura, direitos sociais, democracia, política social e políticas públicas e o
protagonismo social, participação popular e como esses conceitos são importantes num
período de grandes transformações e desafios na vida social, política e econômica brasileira,
Para Brizuela (2010), articular cultura e desenvolvimento é o desafio político de cada
país e /ou comunidade e tem a ver com o tipo de desenvolvimento que se quer buscar de como
estão sendo construídos, e por quais atores, os paradigmas para desenvolvimento e, sobretudo,
sobre qual a finalidade das políticas públicas, são questões importantes na construção do
modelo de desenvolvimento pretendido.
Os meios, os objetivos e os processos direcionados para o desenvolvimento podem ser
não apenas configurados, mas pensados de diferentes maneiras. Existem muitas possibilidades
de desenvolvimento e não apenas uma. De acordo Carlos Viteri Gualinga, citado por Parra
(2012), não há uma concepção de um estado de subdesenvolvimento para ser superado ou
tampouco um estado de desenvolvimento a ser alcançado, o desafio consiste em pensar o
“dever ser” do projeto político para o desenvolvimento. (PARRA, 2012).
Em cada contexto o papel do Estado é importante no processo, ou seja, as
possibilidades transformadoras têm uma relação direta com a gestão dos macros processos
sociais No contexto brasileiro, o projeto de desenvolvimento cultural, que tem a cultura como
pilar estratégico para o desenvolvimento, percebe-se um esforço em avançar na compreensão
e na abordagem da cultura como acessório prescindível ou marginal, ao processo de
desenvolvimento e em concebê-la para além de um substrato de outros setores ou esferas e,
sim na sua própria especificidade para um plano de governo e um projeto de nação.
Nesse sentido, a relação entre cultura e desenvolvimento requer a necessidade de se
vincular as políticas públicas melhores adaptadas a realidade de cada ambiente social e
cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relação entre cultura e desenvolvimento está inserida num processo/político de


desenvolvimento integral. O desafio consiste nas possibilidades transformadoras que
decorrem da administração dos processos, do governo e da administração pública assumirem
as responsabilidades na construção do projeto de desenvolvimento e na gestão dos macros
processos sociais.
A cultura tem sido abordada como norteadora do desenvolvimento brasileiro e propõe
que o que este seja a partir e pela cultura brasileira, sendo a sua gente a força viva e o
6  
 

patrimônio do progresso o ponto de partida e de chegada do crescimento econômico um de


políticas sociais e econômicas transformador.

“Se o crescimento econômico expressa o bem estar material de uma


nação, é o desenvolvimento cultural que define sua qualidade”
(MINC, 2006)

O desafio, portanto, é político. È a administração do projeto de desenvolvimento


brasileiro, o que requer um compromisso na direção de nosso destino e futuro. A gestão do
desenvolvimento deve assumir a responsabilidade na construção de um projeto de
desenvolvimento integral cultural. E essas são tarefas eminentemente políticas.
A questão desafiadora não é a produção da riqueza material social brasileira e sim sua
distribuição, ou seja, é necessário mudar o sentido metodológico do processo histórico de
desenvolvimento. “““ “““ O desenvolvimento cultural deve qualificar nosso crescimento
econômico e o progresso do país, que o bem estar coletivo seja o” dever ser”, a finalidade
primeira e ultima das políticas públicas brasileiras.
O desafio de se pensar o papel da cultura e da relação desta com o desenvolvimento é
no âmbito da administração, da gestão política das políticas públicas e do projeto de
desenvolvimento de país. È pensar um projeto de desenvolvimento integral que seja
integrador das dimensões econômica, política e cultural e de todos os setores da vida social e
que a finalidade primeira e última seja o bem estar de todos os cidadãos.
Assim como salienta Santos (2014), a gestão das políticas de desenvolvimento, do
projeto de desenvolvimento devem promover uma reconsideração das relações sociais de
produção e de distribuição, mas com justiça social, garantia de direitos e que o crescimento do
PIB não degrade o desenvolvimento humano e o meio ambiente.
Este artigo defende a premissa de que a cultura é fator primordial no processo//.
projeto de desenvolvimento. A cultura é aqui compreendida, portanto:

Em sentindo amplo, como o substrato de todas as ações e escolhas em


torno de um modo de vida e suas transformações (desenvolvimento),
combinando múltiplas dimensões (LUSTOSA DA COSTA, 2011).

                                                                                                                       
1
A Organização das Nações Unidas (ONU) para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), tendo
forte influência do pensamento latinoamericano e participação do peruano Javier Perez de Cuellar, a
Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI),
programas da ONU, a Organização de Estados Americanos (OEA), a Organização Mundial da
Propriedade Intelectual (OMPI) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
entre outros – como também diferentes organismos de crédito internacional como o Banco Mundial
(BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Interamericano para o Desenvolvimento (BID)
e Fórum Econômico Mundial.
2
.Países da América latina nos últimos 60 anos tem alcançado melhorias significativas nas condições
De vida, crescimento e diversificação econômica (PNUD, 2013).
3
Em várias regiões do mundo, sobretudo nos países andinos como Equador e Bolívia se fortalece o
debate que questiona o modelo de desenvolvimento imperante. Nas Cartas Magnas do Equador e da
Bolívia, “pela primeira vez se inclui um conceito das tradições indígenas como base para o
ordenamento e a legitimação da vida política” (PARRA, 2012). No contexto brasileiro, diferentemente
de outros países latinoamericanos como Bolívia, Uruguai, Colômbia, Equador e México, onde o
processo de democratização acompanhou o aprofundamento do debate teórico sobre o papel e a
importância da cultura e do protagonismo político e da participação popular, a discussão sobre cultura
7  
 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
e desenvolvimento esteve secundarizada, a cultura esteve distante do debate político sobre o
desenvolvimento democrático no país. No entanto, a partir da década de 1990, os processos sociais
e culturais passaram a ter importância central no processo democrático no Brasil. (PARRA, 2012).
4
Organismo internacional composto pro 12 países da Região Sul Americana: Argentina, Bolívia,
Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai, Venezuela. Disponível
no site: www, org./es/quine-somos.
5
Elsumak kawsay o Buen Vivir es una propuesta que surge desde la visión de los marginados de los
últimos 500 años. Se plantea como una oportunidad para construir otra sociedad, a partir del
reconocimiento de los diversos povos e valores culturaleas existentes en el mundo y del respeto a la
Naturaleza. Esta concepción desnuda los errores y las limitaciones de las diversas teorías del
llamado desarrollo. Desde diversos ángulos, no sólo desde el mundo andino, aparecen respuestas a
las demandas no satisfechas por las visiones tradicionales del desarrollo.(PROGRAMA NACIONAL
Del BUEN VIVER (2013-2017).
6
Programa Cultural para o Desenvolvimento do Brasil. Brasília: Ministério da Cultura, 2006.
7
 MNISTÉRIO DA CULTURA (MINC). Segundo a ONU esta é uma economia que já responde por mais de 7%
do PIB mundial, com atividades onde cada milhão investido gera 160 novos empregos. Segundo pesquisa
realizada pelo IBGE, já há dez anos, 7% do orçamento das famílias brasileiras, em média, são destinados ao
consumo de bens e produtos culturais. A mesma pesquisa estima em 3,1 milhões o número de profissionais
trabalhando nas chamadas indústrias criativas. Ainda segundo o IBGE, o segmento criativo cresceu a uma média
anual de 6,13%. Por sua vez, segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento -
UNCTAD este segmento contribuiu com 2,84% na composição do PIB nacional. Tal dimensão e papel
estratégico já estão começando a atrair a atenção de nossos planejadores. Sobres este tema, ler artigo publicado
na pagina do Ministério da Cultura MINC A economia da cultura e o desenvolvimento do Brasil.. Disponível
em: http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/ acesso em 17/07/2015.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
8  
 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
 
 
 
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9  
 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

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10  
 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
Cooperação Federativa: possibilidades para a evolução da Gestão Pública e
promoção do Desenvolvimento Regional – o caso dos Consórcios Públicos
Baianos na perspectiva da Administração Política.

Simone Maria Lima de Carvalho1


Camila Lacerda Souza 2
Fabiane Louise Bitencourt Pinto3

RESUMO

Este artigo tem como objetivo suscitar reflexões acerca dos problemas que atingem a gestão
pública e a importância da cooperação entre os entes federativos para a minimização desses
problemas, particularmente, através dos consórcios públicos, dando, assim, impulso ao
desenvolvimento regional. Os consórcios públicos são pessoas jurídicas de direito público ou
de direito privado que viabilizam a gestão associada de serviços públicos como também o
repasse em sua totalidade ou parcialidade com a finalidade de estabelecer relações de
cooperação federativa na realização de objetivos de interesse comum no exercício das
atividades governamentais. Considerando o conceito de Administração Política desenvolvido
por Santos e Ribeiro (1993), a qual é compreendida como a concepção e a organização do
“como fazer, do como conduzir, do como organizar as relações sociais de produção e
distribuição”, os consórcios públicos se inserem nessa perspectiva como um instrumento
relevante para viabilizar o objetivo de promover um determinado nível de bem-estar social. A
experiência do Estado da Bahia, na implementação de consórcios públicos incrementam a
experiência ora relatada.

1. Introdução

Quando se analisam os atributos oriundos e caracterizadores da descentralização, percebe-se


que a capacidade dos entes federados, principalmente dos municípios, em suas respectivas
gestões, incumbidas de atender às necessidades populacionais, é mitigada. Percebe-se que, no
momento em que foi estabelecida e positivada pela Constituição de 1988 a tão almejada
descentralização, foram distribuídas as responsabilidades para os entes federativos, contudo
ainda desprovidos de recursos para alcançar os objetivos que a distribuição de competências
se prestou.
Diante da necessidade de consecução do interesse público, torna-se imperioso que os entes
federados se aliem com intuito de promover o desenvolvimento regional, isto é, social,

1
Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Gestora
Governamental da Secretaria de Administração do Estado da Bahia (SAEB).
2
Graduada em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL)
3
Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Gestora Governamental da Secretaria
de Administração do Estado da Bahia (SAEB).
econômico, cultural, entre outros. O marco desse processo encontra-se exatamente com a
promulgação da Carta Magna de 1988, que promoveu inovação quando trouxe em seu escopo
as ferramentas precípuas para a distribuição e consequente efetivação da descentralização
administrativa, visando o deslocamento das atribuições para as esferas subnacionais, de modo
a eximir a União de certas responsabilidades sobre a execução de serviços e demais demandas
concernentes a tais competências.
Esse artigo tem como objetivo suscitar a reflexão acerca dos problemas que atingem a gestão
pública e a importância da cooperaçao entre os entes federativos para a minimização desses
problemas, particularmente, através dos consórcios públicos, dando, assim, impulso ao
desenvolvimento regional.
De acordo com o Decreto nº 6.017, de 17 de janeiro de 2007, os consórcios públicos são
pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado que viabilizam a gestão associada de
serviços públicos com a finalidade de estabelecer relações de cooperação federativa assim
como a realização de objetivos de interesse comum no exercício das atividades
governamentais.
O principal argumento desenvolvido neste trabalho é o de que, face aos limites do processo de
descentralização no cumprimento dos objetivos de promover o atendimento às demandas da
sociedade e conter as disparidades inter-regionais, emergiram outros arranjos interfederativos,
fortalecendo o federalismo cooperativo.
Primeiramente, o trabalho apresenta uma breve discussão sobre o processo de
descentralização associado aos conceitos de democracia e participação social, seguindo-se
com a ascensão do federalismo cooperativo, finalizando com a apresentação da experiência
baiana de consórcios públicos à luz da Administração Política.
Na tentativa de resposta às questões propostas recorremos ao arcabouço constitucional e a
legislação brasileira sobre consórcios públicos, além de consultas bibliográficas. Para a
análise da situação dos consórcios existentes atualmente na Bahia foram realizadas consultas
em fontes oficiais.

2. A Constituição de 1988 e a descentralização das políticas públicas

Com o processo de redemocratização que se intensificou no país na década de oitenta, o país


passa a uma nova etapa do seu pacto federativo, na qual a descentralização passou a ser
defendida pelos diferentes atores, de orientações políticas distintas, sendo considerado o
caminho para a solução dos mais diversos problemas enfrentados pela sociedade, resultantes
da presença de um Estado autoritário e centralizador, como destaca Nogueira (2007):

(...) a descentralização, como valor e como proposição operacional, acabou


sendo historicamente determinada pela luta em favor da democratização,
tendendo a ser vista como instrumento dela, já que direcionada para reduzir uma
intervenção estatal arbitrariamente centralizadora, fragmentada, iníqua e
excludente (NOGUEIRA,2007, p. 8).

Assim, a descentralização é concebida como um valor que se associa ao conceito de


democracia, integrando a agenda de reformas delineadas nesse período, que incluiu a
participação social e o resgate dos direitos sociais, elementos norteadores da Constituição de
1988.

2
Estabeleceu-se a mobilização de diversos segmentos sociais organizados, buscando o
aperfeiçoamento de mecanismos legais e jurídicos necessários à obtenção de uma
administração descentralizada, promovendo a transferência da gestão de serviços sociais
como habitação, saúde, saneamento básico, educação fundamental, entre outros, do Governo
Federal para estados e municípios.
Esse novo marco de redirecionamento das políticas públicas confere autonomia político
administrativa aos municípios. Conforme Art.18, da Constituição, os Estados, Distrito Federal
e os Municípios recebem poderes administrativos, financeiros e políticos para exercerem
governo e administração autônoma, sendo essa autonomia uma prerrogativa concedida pela
supracitada Constituição e limitada pela mesma.
Esse marco - a Carta Magna - foi cenário de uma nova construção do modelo de atuação
efetiva da população, promovendo uma descentralização participativa. É o que se vê do Art.
204, II/CRFB 88, “literis”:
A participação da população por meio de organizações representativas, na
formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis
(BRASIL, 1988).
Como reflexo dessa iniciativa, nasce a interação do cidadão com o governo, convergindo na
formulação e implementação das políticas públicas que passam a ganhar espaço na medida em
que novos paradigmas vão sendo construidos, sustentados na gestão democrática, orientada
por colunas fundamentais, quais sejam: “ a maior responsabilidade dos governos em relação
às políticas sociais e às demandas dos seus cidadãos; o reconhecimento dos direitos sociais; e
a abertura de espaços publicos para a ampla participação cívica da sociedade” (SANTOS
JUNIOR, 2001, p.208).
De forma prática essa autonomia atribuída aos Municípios, somada a construção da
democracia participativa reflete positivamente à medida que constrói pontes de acesso para o
cidadão usuário de serviços públicos ao seu respectivo município através de ouvidorias,
consultas populares, orçamento participativo, mecanismos que precedem deliberação
legislativa com pauta de orçamento anual, conselhos gestores e de fiscalização de políticas,
etc.
Entretanto, em que pesem as virtudes associadas à descentralização, a simples distribuição de
poder político e financeiro para as esferas subnacionais não se revela suficiente para o
atendimento das demandas dos cidadãos. É preciso conceber que as heterogeneidades
regionais resultam em que a descentralização produz diferentes resultados, visto que há níveis
desiguais de capacidade financeira e administrativa entre os municípios das diferentes regiões,
conforme destaca Souza (2001)

O principal constrangimento relacionado com a descentralização e com a


prestação de serviços sociais está nas disparidades inter e intraregionais, o
que desmonta a hipótese implícita na literatura de que um círculo virtuoso
seria estabelecido por políticas descentralizadoras e que as virtudes da
descentralização se distribuiriam eqüitativamente. (...) a maioria dos
municípios não tem capacidade para expandir a arrecadação de impostos
nem é capaz de financiar nenhuma atividade além do pagamento dos
servidores públicos, muitos com salários abaixo do mínimo, e de
desempenhar, com recursos transferidos para tal fim, algumas atividades
relacionadas à prestação de serviços de saúde e educação. (SOUZA, 2001,
p.437).

3
No que tange ao poder estendido à sociedade, através da adoção de políticas participativas,
notadamente no âmbito local, a visão da participação assume contornos diferenciados, sendo
tema presente nos diversos discursos ideológicos. A previsão constitucional da existência de
conselhos, principalmente no âmbito das políticas sociais, quase sempre assume um caráter
consultivo, portanto conduz-se a participação de forma a não influir no processo decisório,
representando apenas uma formalidade, o que ressalta a importância do aspecto qualitativo do
processo. Outras experiências como o orçamento participativo tem apresentado,
pontualmente, com alguma margem de êxito, mas ainda longe de ser uma prática consolidada
na gestão pública brasileira.
(...) A obrigatoriedade de constituição desses conselhos pode significar, em
muitas localidades, a mera reprodução formal das regras dos programas,
ameaçando os fundamentos principais da participação, quais sejam,
credibilidade, confiança, transparência, accountability, etc (SOUZA, 2001,
p.439).
Apesar das mudanças geradas nos mecanismos de distribuição do poder e alguns ganhos
ocorridos com o processo de descentralização, há uma distanciamento entre os seus
pressupostos e os resultados, sendo apontado por Nogueira (2007) como decorrência de uma
combinação de uma conjunção de fatores relacionados às crises que se apresentaram no final
do século passado: do Estado, da administração, da federação e da representação política.

Embora prevista em lei e aceita como meta meritória por todos, a


descentralização produz poucos resultados. Permanece no papel, a espelhar uma
grave desarticulação política e societal. A espelhar, antes de tudo, uma espécie
de “omissão” do centro, isto é, uma ausência de comando unificado, legitimado
e em condições de coordenar, planejar e viabilizar a descentralização
(NOGUEIRA,2007, p. 12)

Ademais, segundo o autor, contribui para as dificuldades nos avanços da descentralização


participativa o tratamento igualitário estendido aos municípios diante de um quadro de
desigualdades inter e intra-regionais, que implica na diferenciação quanto à capacidade dos
governos de prover satisfatoriamente os serviços públicos bem como a adoção de uma gestão
participativa.

3. Da descentralização para a cooperação

Em virtude de sua estrutura político-organizacional administrativa, qual seja, o federalismo, o


Brasil formalmente busca distribuir e efetivar o exercício do poder político na sociedade,
visando a consecução do interesse coletivo, vez que, por meio deste sistema garante-se a
autonomia política dos seus entes.
Por sua vez, a Carta Magna traz em seu bojo as competências de cada um dos entes federados,
resguardando os interesses do cidadão, criando, assim, o desafio de organizar e articular ações
conjuntas para que, efetivamente, se cumpra esse mister.
A introdução da descentralização e municipalização das políticas sociais trouxe consigo
atribuições municipais desproporcionais aos recursos que as Prefeituras recebem, dadas as
disparidades na capacidade financeira e administrativa dos municípios, conforme Souza
(2001). É o mesmo que dizer que os serviços foram transferidos para os municípios, contudo
4
o orçamento não é suficiente para atender a tais demandas. As exigências legais oriundas
desse modelo descentralizado oneram os municípios e trazem complicações para suas
respectivas gestões municipais.
(...) a maioria dos municípios não tem capacidade para expandir a arrecadação
de impostos nem é capaz de financiar nenhuma atividade além do pagamento
dos servidores públicos, muitos com salários abaixo do mínimo, e de
desempenhar, com recursos transferidos para tal fim, algumas atividades
relacionadas à prestação de serviços de saúde e educação. Esses municípios não
possuem atividade econômica significativa e são caracterizados pela extrema
pobreza de suas populações. Dessa forma, as desigualdades inter e intra-
regionais anulam o objetivo último da descentralização, que é o de permitir
maior liberdade alocativa aos governos e às sociedades locais (SOUZA, 2002,
p.437)
Assim, embora possua o município legitimidade para atender as demandas de seu perímetro, a
realidade demonstra que somente a sua consagração como autônomo e responsável pela
gestão de seus munícipes não lhe confere o resultado pretendido, conquanto seus recursos são
escassos. Nessa senda, a simples descentralização se tornaria apenas instrumento de
desresponsabilização do Estado, na medida em que as responsabilidades, e somente elas,
seriam repassadas para os municípios, desprovidos de preparo técnico e recursos financeiros
para executar suas respectivas políticas públicas gerando uma preocupante sobrecarga do
Poder Público local.
Cumpre salientar que o fato de não conseguir de forma eficaz a garantia dos interesses da
população, surgem os entes de cooperação ou paraestatais, que auxiliam a administração
direta na gestão pública desses interesses.
Nesse momento institui-se expressamente o federalismo cooperativo dispondo matérias de
competência comum entre todos os entes federados. Isto se justifica “pelo fato de que num
Estado intervencionista e voltado à implementação de políticas públicas, as esferas
subnacionais não têm mais como analisar e decidir, originariamente, sobre inúmeros setores
da atuação estatal, que necessitam de tratamento uniforme em escala nacional”: em assuntos
da ordem econômica e social há necessidade de unidade no planejamento e direção das
tarefas. (BERCOVICI, 2004, p. 57-58).
Desse modo, uma das alternativas de solução resulta da coordenação e realização de acordos
intergovernamentais para a aplicação e execução de programas e financiamentos coordenados,
que se configura no federalismo cooperativo. Nesse modelo há uma mudança no parâmetro de
decisões, isto é, delegações de competências em prol de um mecanismo menos rígido de
negociação e acordo intergovernamental.
Com o estabelecimento desses arranjos, torna-se evidente o desafio do reconhecimento de
uma relação de complementaridade entre os entes federados e a necessidade das coordenações
dessas atividades governamentais. Por conseguinte, essa interdependência é construída e
efetivada na interação e cooperação entre aqueles entes, deixando de lado a estrutura
hierárquica rígida.
O federalismo cooperativo não exclui os conflitos de competência tampouco a concorrência
de atividades entre os entes da federação, buscando tão somente a redução de alcance desses
impedimentos por meio de acordos políticos negociados e formalizados, em razão da
centralização e descentralização do poder.
Todavia, válido ressaltar que não se confunde a unidade do Estado com a centralização de
competências. O Estado, como forma de organização política capaz de assegurar a unidade,
5
existe em virtude de um mínimo de centralização, ou seja, “centralização e descentralização
não são duas alternativas contrapostas, mas, sim, duas realidades presentes sempre (como
complementares), no âmbito da organização.” (GONZÁLES ENCINAR, José Juan. Obra
citada. p. 109).
Com isso, a atuação conjunta dos entes federados na efetividade e otimização das políticas
publicas deve preservar a autonomia de cada um desses entes e, proporcionando ao mesmo
tempo a utilização e compartilhamento de políticas e ações coordenadas. O federalismo de
cooperação, proposto pelo texto constitucional de 1988, proporciona a solução dos desníveis
econômicos e sociais entre os entes federados dirigindo a economia nacional, por um lado, e,
por outro, reforça o papel da União Federal em relação aos demais, transformando a relação
em cooperativa, alterando, inclusive, a estrutura das relações intergovernamentais.
É notória a vulnerabilidade dos governos locais no Brasil em sua tarefa de executor do
sistema descentralizado e participativo aventado, conforme destacado por Souza (2002), dada
a heterogeneidade inter e intra-regionais as quais revelam deficiências organizacionais,
instrumentos gerenciais escassos e carência de recursos humanos aptos e qualificados para
atender as demandas sociais aliados às limitações financeiras.
Nesse contexto, os consórcios públicos despontam como uma alternativa para a resolução de
problemas comuns entre os municípios, o fortalecimento das relações interfederativas, além
de proporcionar a retomada da perspectiva do desenvolvimento regional.

4. Consórcio público: instrumento de cooperação federativa e desenvolvimento regional

Conforme explicitado anteriormente, de acordo com Souza (2002) a descentralização político-


administrativa e financeira, embora apropriada como um instrumento para melhoria do
desempenho do serviço público e democratização do Estado, na prática, apresentou resultados
diferenciados no país, situação que dificulta a promoção das condições básicas de cidadania
quando se trata de contextos marcados por alto nível de desigualdades.
Vale lembrar que o processo de redemocratização, durante o qual se ampliaram as conquistas
dos direitos sociais e se fomentou a participação social na definição das políticas públicas, foi
sucedido pelo aprofundamento do processo de globalização e implementação do projeto de
Estado Mínimo de inspiração neoliberal, que prevê a redução do papel do estado e,
consequentemente, o encolhimento das suas funções na provisão de bens e serviços, conforme
argumenta
A erosão do padrão desenvolvimentista de intervenção estatal na economia e na
sociedade, em curso desde os anos oitenta e intensificada com as orientações
liberalizantes para a política econômica, abalou a estrutura corporativa de poder
e a tradicional atuação do Estado na economia e no financiamento do setor
público, desestruturando relações políticas e financeiras entre governo federal,
governos estaduais, agentes econômicos e sociais. Assim, os governantes eleitos
se viram diante das tarefas de responder pelas novas obrigações constitucionais;
renovar as relações federativas; redefinir as relações entre Estado, economia e
sociedade e ajustar as finanças públicas (RIBEIRO, 2009, p.821)

Nesse contexto, as dificuldades do município em executar as políticas públicas, especialmente


as de cunho social e de prestação de serviços, pelas quais tem primazia, foram agravadas,
6
abrindo o caminho para a busca de novos arranjos, embora prevalecesse a disputa por
transferências de recursos financeiros federais.
Dentre os arranjos utilizados pelos municípios estão os consórcios intermunicipaisi que
ganharam impulso com o avanço do processo de descentralização e a disseminação da visão
da racionalização da gestão presente nos anos noventa.
Conforme Dallabrida e Zimermann (2009), as experiências de consórcios intermunicipais no
Brasil são anteriores à Constituição de 1988, entretanto a prática se intensificou com a
promulgação da mesma. Em termos regionais, embora o Nordeste seja a região que apresenta
o maior número de consórcios, o sul e sudeste são as regiões cujas experiências ganharam
mais destaque.
De acordo com a Constituição de 1988, a cooperação federativa é um dever, previsto no artigo
23, Parágrafo Único:

Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os


Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do
desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

A cooperação federativa enfatiza o relacionamento entre os entes autônomos tendo em vista o


atendimento as demandas da sociedade, as quais se apresentam cada vez mais em níveis
elevados de complexidade, o que implica a implementação de políticas públicas que requerem
uma estrutura administrativa e financeira condizentes com tais características.
O consórcio público, um dos instrumentos de cooperação entre os entes federados, foi
recepcionado pela Emenda Constitucional nº. 19, de 1998, a qual conferiu nova redação ao
art. 241 da Constituição Federal:

A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por


meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os
entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem
como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens
essenciais à continuidade dos serviços transferidos.

Os consórcios públicos se distinguem dos convênios de cooperação por terem aqueles


personalidade jurídica, o que os tornam uma ferramenta de maior amplitude, desfrutando de
maior capacidade para execução de ações de interesse comum Sob forma de autarquia, ou
pessoa jurídica de direito privado, o consórcio público faz parte da Administração Indireta de
todos os entes federativos que o formam. Assim ensina o Decreto nº 6.017 de 17 de Janeiro de
2007, em seu art. 7º, “in verbis”:

Art 7º O consórcio público adquirirá personalidade jurídica:


I - de direito público, mediante vigência do protocolo de intenções; e
II – de direito privado, mediante o atendimento do previsto no inciso I e,
ainda, dos requisitos previstos na legislação civil.
1º Os consórcios públicos, ainda que revestidos de personalidade jurídica de
direito privado, observarão as normas de direito público no que concerne à
realização de licitação, celebração de contratos, admissão de pessoal e à
prestação de contas.
7
Prevista na emenda constitucional mencionada, a lei disciplinadora dos consórcios públicos,
somente foi publicada no ano de 2005(Lei nº. 11.107/ 2005) e regulamentada em
2007(Decreto 6.017/07), constituindo-se num marco da institucionalização das relações
federativas de cooperação, atendendo a reivindicações dos municípios, diante do avanço na
formação de consórcios administrativos pelo país, juridicamente precários.
Diversas iniciativas de formação de consórcios anteriores à lei – os consórcios administrativos
- ocorreram no país apresentando com certo nível de êxito, entretanto a fragilidade jurídico-
institucional não permitiu que os ganhos da cooperação se expandissem e consolidassem.
Com o advento da lei dos consórcios públicos, vem crescendo por todo o país a utilização do
instrumento de gestão associada. Nos termos do Decreto 6017/207, o consórcio público é
definido como:

(...) pessoa jurídica formada exclusivamente por entes da Federação, na


forma da Lei no 11.107, de 2005, para estabelecer relações de cooperação
federativa, inclusive a realização de objetivos de interesse comum,
constituída como associação pública, com personalidade jurídica de direito
público e natureza autárquica, ou como pessoa jurídica de direito privado
sem fins econômicos (BRASIL,2007, art.2º);

Conforme o artigo 6º da Lei de Consórcios Públicos, só é permitido que a União se consorcie


com município se houver também o consorciamento do Estado. Reconhece-se, assim, com
base no princípio da subsidiariedade, que compete, em primeiro lugar, aos outros municípios
o dever de cooperar e, insuficiente a cooperação intermunicipal, é que se legitima a
cooperação do estado. Somente quando insuficiente a cooperação do próprio estado é que se
admite a cooperação da União.
Observa-se que a cooperação federativa poderá ser estabelecida de forma vertical ou
horizontal, o que possibilita o suprimento das deficiências municipais pelas instâncias maiores
nas questões que são da sua competência, de modo a fortalecer as instâncias locais na
promoção do desenvolvimento regional. Embora permitida a cooperação vertical, com fulcro
na Lei 11.107/2005, para que a União se consorcie com município, é necessário que, para
isso, haja consorcamento do Estado, em decorrência do princípio da subsidiariedade.
Contudo, prevalece no Brasil experiências de cooperação horizontal, qual sejam, os
consórcios intermunicipais, atuando como instrumento de descentralização administrativa.
A lei de consórcios trouxe diversas inovações e incentivos, dentre os mais importantes as
vantagens licitatóriasii e a possibilidade de atuação multifinalitáriaiii, o que permite a este
órgão da administração indireta dos entes consorciados a atuação em diversas áreas, a
assunção de atividades de elevado nível de capacitação técnica, além de proporcionar a
otimização dos recursos.
Excetuando a proibição quanto à contratação de operações de crédito, não existem limites no
que toca ao conteúdo a ser abordado por um consórcio, atendendo aos fins que se dedica a
gestão, o desenvolvimento e melhoria da qualidade dos serviços públicos prestados à
sociedade.
Os consórcios públicos se apresentam como um instrumento de grande potencial para uma
maior eficiência da gestão pública, entretanto, para que se consolidem há desafios a serem
superados, principalmente relacionados à cultura política, sendo, por isso, a sua
8
implementação dependente da visão pessoal do gestor, conforme destaca Dallabrida e
Zimermann (2009):

O processo de cooperação interfederativa pressupõe o desprendimento do


agente político. Há a necessidade de liberar uma carga de poder concentrado
nas mãos do governante em favor do novo sujeito que surge: por exemplo, o
consórcio. E isso, muitas vezes, pode ser um processo pessoal, do gestor,
bastante complexo, dado a cultura individualista e personalista fortemente
enraizada na nossa sociedade (DALLABRIDA E ZIMERMANN,2009,
p.16).

Além de se constituírem mecanismos de modernização da gestão, os consórcios públicos


devem ser pensados como espaços de planejamento do território, evoluindo para uma nova
instância política de reivindicação e afirmação de identidades regionais. Para tanto, faz-se
necessário que os gestores públicos abdiquem de parte do poder político e financeiro em favor
de uma gestão compartilhada e a sociedade se aproprie de um novo conceito de
desenvolvimento.

4.1 A experiência de consórcios públicos na Bahia: uma análise empírica na perspectiva


da Administração Política

De acordo com Matos (2006), na Bahia, uma das primeiras iniciativas de consorciamento é a
do Consórcio Intermunicipal do Vale do Jiquiriçá, criado em 1993 por prefeitos dos
municípios da Bacia do Rio Jiquiriçá. Anterior à lei de Consórcios Públicos, trata-se de uma
associação civil, sem fins lucrativos, o qual, segundo a literatura, enquadrava-se como
consórcio administrativo.
De acordo com a Secretaria do Planejamento do Estado da Bahia (Seplan), a partir de 2007, já
sob a vigência da lei, iniciaram-se as discussões sobre consórcios no âmbito do governo
estadual, motivadas pelas demandas de soluções na área de saneamento e resíduos sólidos. À
medida que o debate evoluiu e inseriu novos atores e áreas, chegou-se ao entendimento de que
diversos serviços poderiam ser viabilizados de maneira mais eficiente por meio da gestão
associada, o que resultou na definição de um modelo de consórcio multifinalitário, ampliando
a sua atuação nas diversas áreas.
O governo do Estado passou a apoiar a formação de consórcios públicos multifinalitários, sob
a coordenação da Seplan, a partir de uma perspectiva de desenvolvimento regional. Nesse
sentido, busca-se promover a cooperação intermunicipal através das identidades regionais.
De acordo com informações da Seplan, divulgadas em 2015, por meio de sites oficiais, a
Bahia possui atualmente mais de 30 consórcios intermunicipais multifinalitários formalizados,
incorporando quase a totalidade do território baiano, predominando a configuração territorial
adotada no planejamento do estado, qual seja, os territórios de identidade. Esses consórcios
encontram-se em estágios de funcionamento variados, encontrando-se algumas dessas
entidades com um nível de atuação em diversos projetos, a exemplo do Consórcio de
Desenvolvimento Sustentável do Território do Sisal, que vem atuando, dentre outras, na área
de resíduos sólidos, na gestão ambiental, na construção de cisternas e outros equipamentos
voltados à solução de problemas hídricos, enquanto outros consórcios apenas atingiram o
estágio da formalização, com a inscrição no CNPJ.
9
Nesse sentido, nos aproximamos das questões epistemológicas colocadas pelos autores
Reginaldo Santos e Elizabeth Ribeiro pesquisadores da Universidade Federal da Bahia, que
em síntese, compreendem por Administração Política a concepção e estruturação do como
fazer, do como conduzir, do como organizar as relações sociais de produção e distribuição
para o alcance de um determinado padrão de bem-estar social (SANTOS; RIBEIRO, 1993),
cabendo ao consórcios públicos essa tarefa neste caso.

Ao sustentar que a Organização estaria muito mais vocacionada para assumir o papel de
objeto especial de estudo ou de pesquisa da administração e não como campo científico,
Santos e Ribeiro (2009) demonstram que a organização não se qualificava para objeto
científico pelo simples fato de que esta era considerada como campo de estudo para diversas
outras ciências, e a administração portanto, deveria identificar um objeto próprio que
garantisse uma ação autônoma de interpretação e ação sobre a realidade social (ainda que
compartilhado com diversos outros saberes, já que se trata de um campo interdisciplinar por
natureza), identificado, pois, como sendo a Gestão o objeto de estudo da Administração.

Isso implica afirmar que a Administração Política, para interpretar, ressignificar e transformar
a realidade, necessita assumir um papel político mais ativo, rompendo, assim, com uma
perspectiva meramente instrumental. Naturalmente a ciência administrativa, aqui denominada
de Administração Política, assume um relevante papel de ciência normativa e prescritiva,
tendo em vista ser responsável por definir modos de comportamento, formas de
relacionamento, padrões de gestão, modos de relações sociais de produção e de distribuição,
dentre outras modalidades de comportamento individual, organizacional e social que refletem,
pois, o como organizar-se, o como preservar interesses e também o como construir bases
para a transformação.

Em síntese, ao integrar definitivamente a dimensão política para compreender não apenas a


dimensão micro-organizacional, mas principalmente para dimensionar a dimensão
macrossocial, a Administração Política coloca a ciência administrativa em um patamar de
poder estabelecer um diálogo à altura com as perspectivas de desenvolvimento local,
especialmente na compreensão dos fenômenos socioeconômicos, culturais e políticos
contemporâneos e brasileiros, em particular.

Nosso texto ressalta portanto, a existência de Consórcios públicos na Bahia numa perspectiva
da Administração Política, onde há uma participação direta e efetiva do Estado na formação
dos consórcios públicos intermunicipais, contribuindo com apoio técnico para a realização
dos procedimentos para a formalização, capacitação dos gestores envolvidos e
disponibilização de recursos financeiros, a exemplo de convênios firmados entre a Secretaria
do Meio Ambiente e os Consórcios para a implementação da Gestão Ambiental
Compartilhada. A Seplan, conjuntamente com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano do
Estado da Bahia (Sedur), instituiu um grupo de trabalho, através da Portaria Conjunta Seplan /
Sedur nº 003 de 13 de setembro de 2010, para, entre outras atribuições, “prestar assessoria
técnica aos municípios interessados em constituírem consórcios públicos.”

A União tem uma participação relevante no processo ao estabelecer nas suas Leis de
Diretrizes Orçamentárias - LDO tratamento privilegiado aos consórcios públicos, no caso das
transferências voluntárias, conforme art.39, da LDO de 2011:

§ 1º A contrapartida, exclusivamente financeira, será estabelecida em termos

10
percentuais do valor previsto no instrumento de transferência voluntária,
considerando-se a capacidade financeira da respectiva unidade beneficiada e
seu Índice de Desenvolvimento Humano, tendo como limite mínimo e
máximo:
I - no caso dos Municípios:
a) 2% (dois por cento) e 4% (quatro por cento) para Municípios com até
50.000 (cinquenta mil) habitantes;
b) 4% (quatro por cento) e 8% (oito por cento) para Municípios acima de
50.000 (cinquenta mil) habitantes localizados nas áreas prioritárias definidas
no âmbito da Política Nacional de Desenvolvimento Regional – PNDR (...);
II - no caso dos Estados e do Distrito Federal:
a) 10% (dez por cento) e 20% (vinte por cento) se localizados nas áreas
prioritárias definidas no âmbito da Política Nacional de Desenvolvimento
Regional - PNDR, nas áreas da SUDENE, SUDAM e SUDECO; e (...)
III - no caso de consórcios públicos constituídos por Estados, Distrito
Federal e
Municípios: 2% (dois por cento) e 4% (quatro por cento) (BRASIL, LDO
2011).

Ademais, o governo federal vem definindo áreas prioritárias para implementação de diversas
políticas, executadas pelos consórcios públicos, por meio de editais e convênios, a exemplo de
resíduos sólidos, saneamento, etc. Conforme informações da Secretaria de Comunicação
Social do Governo do Estado da Bahia – SECOM (2015), os consórcios da Bahia lideram a
captação de recursos federais, por meio de convênios, atingindo quase 80% dos recursos
captados no Brasil em 2013 (R$115,9 milhões) e mais de 60% (R$88,7 milhões) em 2014.
Em relação ao envolvimento da sociedade civil, esta é representada pelos Colegiados
Territoriais (Codeter)iv, identificando-se a sua participação em diversas situações: na
mobilização dos gestores municipais para formação dos consórcios, em debates sobre o tema
e contribuições na indicação de projetos através dos Planos Territoriais de Desenvolvimento
Sustentável.
De acordo com informações de diversos atores - gestores municipais, representantes da
Seplan, entre outros - há algumas situações de divergências entre os Colegiados territoriais e
os Consórcios públicos, numa perspectiva de disputa de espaços de poder, prevalecendo a
visão de competição e não de complementaridade. Enquanto os colegiados territoriais são
instâncias de representação da sociedade civil nas discussões das políticas públicas, os
consórcios são instituições públicas, executoras de políticas públicas, mas a abrangência
territorial os tornam interventores do mesmo espaço.
Quanto à participação das associações municipais, em alguns casos, essas organizações
lideraram as discussões e condução do processo de formação do consórcio, inclusive dando
suporte material e de recursos humanos para as atividades iniciais até que a nova instituição se
estruture.
Percebeu-se, nos últimos três anos, um movimento crescente de adesão à cooperação, atribui-
se, dentre outros aspectos, ao esgotamento das soluções individuais para questões de interesse
comum, tais como os resíduos sólidos, gestão ambiental, estradas vicinais, entre outros,
reforçadas por pressões do Ministério Público, queda das receitas e exigências do governo
federal de soluções regionalizadas para repasse de recursos em determinadas áreas, dada a
importância da escala.

11
No que se refere ao aspecto político, considerando a diversidade dos partidos aos quais os
gestores estão associados, observa-se pouca influência na articulação para a constituição do
consórcio, encontrando-se maior dificuldade no processo legislativo, o que tem ocasionado,
em muitos casos, a formação inicial com uma adesão mínima, avançando com o passar do
tempo. Para que os consórcios usufruam dos benefícios previstos na lei, é necessário que o
arranjo cooperativo conte com, no mínimo, 03 municípios, conforme o artigo 17 da Lei
11.107, de 6 de abril de 2005.
Os resultados preliminares da implementação desse novo arranjo acenam para grandes
possibilidades de o consórcio se estabelecer como um instrumento de melhoria da gestão
municipal, traduzindo em melhor oferta dos serviços à população, qualitativa e
quantitativamente. Para tanto, faz-se necessária a conjugação de uma série de medidas, que
requer dos atores envolvidos nas mudanças que começam com a concepção de um modelo de
desenvolvimento que se pretende seguir.
Para Fonseca (2008), a Administração Política nos auxilia a compreender melhor as relações
produtivas que fundamentam o sistema e a sociedade capitalistas modernos e
contemporâneos, dando destaque para os modos como se estabeleceram os padrões de
acumulação e distribuição da riqueza, dando destaque para o papel do Estado nesse processo
ao assumir a liderança pela concepção e coordenação de um padrão de Administração Política
centrado em bases conservadoras de socialização.

5. Considerações finais

A proposta desse artigo consistiu em situar os consórcios intermunicipais na trajetória das


reformas esboçadas no processo de redemocratização do país, a partir dos anos oitenta, tendo
como mote principal a descentralização política.
A distribuição de poder político e financeiro para as esferas subnacionais presumia ser o
caminho para a superação dos problemas deixados pelos governos autoritários, especialmente
o acesso aos direitos sociais, entretanto não resultou nos avanços na magnitude esperada
quanto ao atendimento das necessidades dos cidadãos tanto qualitativa como
quantitativamente.
Considerando as disparidades inter e intra-regionais, a transferência das obrigações às esferas
subnacionais não teve o devido respaldo financeiro. O aumento dos recursos subnacionais não
fizeram frente às distorções socioeconômicas presentes nos municípios, demandando e
dependendo cada vez mais de transferências federais, passíveis de interferências políticas.
No bojo das mudanças, o federalismo cooperativo mostra-se um caminho para a minimização
dos desníveis econômicos e sociais transformando a estrutura das relações
intergovernamentais, promovendo a atuação conjunta dos entes federados para a otimização
das políticas públicas. Entretanto, ainda não há uma estratégia consolidada para
fortalecimento do instrumento, ficando dependente de decisões isoladas dos gestores, em
todas as esferas.
O instrumento do consórcio público instituído pela Lei 11.107/2005 constitui-se um avanço
nas relações interfederativas, que cada vez mais se reveste de importância diante de um
cenário de elevadas disparidades regionais e sociais, ao incorporar a dimensão regional do
desenvolvimento. O compartilhamento de problemas e soluções conduz o debate a uma visão

12
de coletividade, aliada a uma perspectiva de gestão mais eficiente, dadas as peculiaridades
desse instrumento.
Os consórcios públicos intermunicipais da Bahia se inserem na estratégia de desenvolvimento
territorial do Estado, contando para isso com o apoio do governo na sua formação,
estruturação e implementação de políticas públicas. Embora a implementação desse
instrumento seja recente no Estado, é possível verificar alguns resultados no tocante a
execução de ações de alcance regional, com a participação dos entes federados, exercitando
assim o federalismo cooperativo.
Entretanto, alguns entraves precisam ser superados para que esses arranjos não reproduzam os
vícios das respectivas administrações centrais, uma vez que, enquanto personalidade jurídica
de direito público compõe a administração indireta de todos os entes consorciados. A
utilização do consórcio como instrumento político de ampliação de poder dos dirigentes
poderá desvirtuar o seu propósito.
Outra questão a qual é determinante para a sustentabilidade do arranjo se refere ao
planejamento do consórcio. Enquanto órgão de natureza executora de políticas da
competência dos entes consorciados, requer que estes definam conjuntamente aquilo que será
transferido para a atuação do consórcio. Caso contrário, ficará este um órgão meramente
captador de recursos disponíveis sem uma correlação direta com as reais necessidades dos
municípios.
Nesse sentido, a Administração Política promove reflexões acerca do papel assumido pelos
consórcios públicos no desenvolvimento sócio econômico dos territórios baianos, afinal o
estudo da Administração Política não se limita apenas à esfera da gestão estatal, mas, também
inclui a gestão dos negócios privados e sociais; considera que existem correlações de forças
ideológicas, teóricas e de prática da gestão dentro do campo da administração; bem como
admite que existem outras formas de gestão das relações sociais de produção que requerem da
administração uma análise mais sistemática e aprofundada, não respondida pelos atuais
paradigmas.

6. Referências

BAHIA, Secretaria de Comunicação Social. Bahia lidera captação de recursos por meio de
convênios com consórcios públicos. Planejamento. Postado em: 03/02/2015 11:33, disponível
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13
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SOUZA, Celina. Governos e sociedades locais em contextos de desigualdades e de


descentralização. Ciência & Saúde Coletiva, 7(3):431-442, 2002.
i
De acordo com a Lei 11107 de 6 de abril de 2005, artigo 3º, parágrafo 1º, inciso I, os consórcios públicos
poderão ser constituídos apenas por municípios, formando portanto consórcios intermunicipais.
ii
Conforme Art. 16 da Lei 11107 de 6 de abril de 2005, os consórcios públicos obterão vantagens licitatórias,
através de aumento de limites nas modalidades, nos casos de dispensa, entre outras.
iii
De acordo com o artigo 3º “os objetivos dos consórcios públicos serão determinados pelos entes que se
consorciarem, admitindo-se, entre outros, os seguintes: I- a gestão associada de serviços públicos; II - a prestação
de serviços, inclusive de assistência técnica, a execução de obras e o fornecimento de bens à administração direta
ou indireta dos entes consorciados(...)”
iv
Conforme o artigo 6 º do Capítulo III da Lei nº 13.214 de 29 de dezembro de 2014, os Colegiados Territoriais
de Desenvolvimento Sustentável CODETERs constituem-se “espaços de referência para discussão e
acompanhamento da Política de Desenvolvimento Territorial do Estado da Bahia, sem prejuízo das contribuições
oriundas de outros espaços de oitiva social.”

14
Jogada ensaiada: uma reflexão sobre a acessibilidade do Maracanã diante
dos investimentos para a copa do mundo e para os jogos olímpicos.
Analice Valdman de Miranda (UFF)
Fernando Bichara Pinto (UFF)

1. Introdução

O Brasil iniciou o século XXI sediando alguns dos mais importantes eventos
esportivos: os jogos Pan-americanos e Parapan-americanos, em 2007, a Copa do
Mundo, em 2014, além dos jogos olímpicos e paraolímpicos de 2016. Dentre os
aspectos positivos e negativos da organização e realização dos eventos citados,
Figuerôa, Mezzadri e Silva (2013) destacam que o legado mais proveitoso diz respeito a
uma maior valorização da prática esportiva, através de iniciativas que buscam
impulsionar a formação de atletas e em recursos físicos, como instalações e
equipamentos.
Por outro lado, Soares (2013) apresenta que a realização dos jogos pressupôs
uma série de investimentos em estruturas, resultando em obras de alto valor, e que
evidenciaram os problemas administrativos brasileiros. Inaugurado em 1950, o
Maracanã é a ilustração da ressalva apresentada por Soares. Apenas para a Copa do
mundo de 2014, a reforma do estádio compreendeu um gasto superior a 1,2 bilhões de
reais, valor que representa quase o dobro da quantia inicialmente prevista (TCU, 2013).
Cabe ressaltar, que há menos de 10 anos, o Maracanã também entrou em obras (no valor
de 304 milhões de reais) para atender às exigências do Pan-americano de 2007 (JB,
2013).
Apesar do grande investimento na reestruturação do estádio, o Instituto
Brasileiro dos Direitos das Pessoas com Deficiência – IBDD afirma que recebeu, desde
a reinauguração em 2013, diversas denúncias de torcedores que apontam a
acessibilidade como insatisfatória (IBDD, 2013). O cenário é bastante problemático,
dado que em 2016 o Rio de Janeiro sediará os jogos olímpicos e paraolímpicos.
Diante do exposto, questiona-se a atuação da administração pública brasileira em
garantir como legado dos jogos esportivos uma maior inclusão para as pessoas com
deficiências. É importante destacar a significativa representatividade do grupo no país,
visto que, de acordo com o IBGE (2010), cerca de 24% da população brasileira
apresenta ao menos um tipo de deficiência.
Ressalta-se que o conceito de inclusão parte do princípio de que não existem
pessoas deficientes, e sim uma falta de preparo da sociedade para lidar com as
características das diferenças, deixando de garantir direitos básicos aos seus cidadãos
(SASSAKI, 2003). Para a inclusão acontecer, é necessário o envolvimento de toda a
sociedade, figurando como principais atores do processo as próprias pessoas com
deficiências, as famílias, os governos, as empresas, as instituições de ensino, e entre
outros grupos e associações (IBDD, 2008; BELTRÃO & BRUNSTTEIN, 2012). Trata-
se, portanto, da adoção de uma concepção baseada no respeito às diferenças, que vá em
busca da formação de uma sociedade que perceba a pessoa com deficiência não pelas
suas limitações, mas por ser um indivíduo provido de diferentes potencialidades
(TETTE, CARVALHO-FREITAS E OLIVEIRA, 2013).
O objetivo deste estudo consistiu em discutir a acessibilidade e políticas
públicas, mais especificamente, no caso de projetos governamentais de obras e
edificações que deveriam observar os direitos constitucionais das pessoas com
deficiência. A metodologia utilizada para a reflexão neste artigo será estudo de campo
(VERGARA, 2013), tendo como foco as obras de reforma do estádio do Maracanã,
utilizando a NBR9050/04 como guia no percurso metodológico.

2. Referencial teórico

Pessoas com deficiências: uma revisão histórica sobre o espaço do grupo na


sociedade

Os dados apresentados pelo IBGE em 2010 trazem à tona a discussão sobre o


espaço que as pessoas com deficiência encontram na sociedade e como a mesma se
comporta para lidar com a diversidade.
A interpretação sobre a deficiência mudou consideravelmente ao longo dos
séculos. Segundo Amaral (2002), na Idade Média a pessoa com deficiência era vista
como sagrada, pois o que o diferenciava das demais pessoas não era necessariamente
visto como algo ruim e indesejável, e sim um sinal divino. Um exemplo era a
compreensão acerca da deficiência visual. O fato de uma pessoa não possuir este sentido
era encarado como algo especial, pois significava que este indivíduo não precisava ver
com os mesmos olhos que os demais seres humanos. O autor ainda ressalta o impacto
que esta visão não estigmatizada teve na sociedade, tanto que dois dos fundadores da
nossa cultura ocidental (a que cultura está se referido?) eram deficientes: Homero e
Jacó.
O termo estigma faz referência a um atributo depreciativo, de acordo com a
percepção das relações estabelecidas socialmente e não em função do próprio atributo
em si. A sociedade sempre procurou estabelecer meios de categorizar pessoas,
determinando aquilo que é – ou não é – comum. São expectativas normativas, baseadas
em critérios rigorosos, que esbarram em atributos estigmatizados e o depreciam
(GOFFMAN, 2004, p. 5 e 6). Logo, aqueles que não pertencem ao estereótipo pré-
determinado é marginalizado socialmente.
Goffman (2004) – se for citação direta, colocar aspas (até 3 linhas) ou parágrafo
especial (mais de 3 linhas)explica que existem três tipos de estigmas, dentre os quais se
encontram as deformidades físicas e, consequentemente, as deficiências. A relação entre
aqueles que são estigmatizados e os que são considerados normais parte da interpretação
de que o estigmatizado não é completamente humano e, por isso, está naturalmente
suscetível ao preconceito, que se concretiza através da marginalização e desvalorização
dos que não se encaixam nos padrões previamente estabelecidos (IGLESIAS,
CARVALHO-FREITAS & SUZANO, 2013, p. 3). A interiorização do estigma por
parte do estigmatizado resulta na invisibilidade dos mesmos, posto que os grupos de
minorias se escondem para manter seus empregos (SARAVIA & IRIGARAY, 2009).
O processo de estigmatização das pessoas com deficiências pode ser facilmente
percebido através da nomenclatura utilizada para referenciá-las, como aponta os estudos
de Sassaki (2003). O primeiro registro encontrado pelo autor foi o termo inválidos,
utilizado como sinônimo de pessoas que não tinham valor e, consequentemente, espaço.
O segundo registro explorado foi a partir da década de 1920, quando houve a
substituição para o termo incapacitados, a fim de representar o que a sociedade
considerava como indivíduos sem valor. É interessante ressaltar, que apesar de bastante
sutil, existiu algum avanço no tratamento dado, pois se deixou de considerar que as PcD
eram inúteis para vê-las como pessoas com um potencial produtivo reduzido.
A proposta de diferenciar deficiências físicas e intelectuais surgiu no final dos
anos 1960, quando passaram a chamar de defeituosos/deficientes quem apresentasse um
problema físico; e excepcionais para pessoas com deficiência intelectual.Em 1981, a
ONU passou a usar a expressão pessoas deficientes, a fim de tornar mais humano o
tratamento deste grupo que, até então, era designado como indivíduo. A alteração se deu
por reivindicações dos órgãos e institutos que defendiam os direitos das PcD.
No entanto, em função de novas críticas, o final dos anos 1980 foi marcado pela
alteração do termo para Pessoas Portadoras de Deficiência (PPD), que foi utilizado
apenas por países de língua portuguesa. Foi neste período que a variável Portadora de
Necessidades Especiais (PNE) também surgiu, por alguns considerarem que o termo
deficiente apresenta uma conotação negativa. A substituição, porém, foi bastante
questionada, uma vez que diversas pessoas podem ter necessidades especiais sem,
necessariamente, possuírem uma deficiência.
Por fim, a partir da década de 1990, o autor justifica uma nova alteração da
nomenclatura, posto que o signo portador não era adequado, pois tanto o verbo portar,
quanto o adjetivo portadora, não se aplicam à uma condição inata ou adquirida que faz
parte da pessoa. Sendo assim, o termo que é aceito tanto no Brasil, quanto no restante
do mundo, é Pessoas com Deficiência, doravante PcD, adotado pela ONU em 2006, no
texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e ratificado através
de leis nacionais em todos os países-membros.
Entende-se por deficiência, o indivíduo que possui uma alteração parcial ou
completa de um ou mais segmentos do corpo humano que podem levar ao
comprometimento das funções física, visual ou auditiva. Complementa, afirmando que
tal comprometimento, somado a alguns fatores históricos, sociais e espaciais podem
causar a perda da autonomia para a pessoa, além de problemas com discriminação social
(CARVALHO-FREITAS, 2009).
Do ponto de vista legal, a definição de deficiência é redigida pelo Decreto de Lei
nº 3.298/99, que estabelece a distinção entre as categorias de deficiente, deficiente
permanente e incapacidade. Entende-se por deficiência “toda perda ou anormalidade de
uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade
para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser
humano”. A deficiência permanente se caracteriza por uma deficiência sem
possibilidades de alteração. Já por incapacidade se compreende como uma redução
efetiva na capacidade de integração social, na qual a PcD depende de recursos especiais
para desempenhar qualquer função.

Políticas públicas e acessibilidade


Políticas públicas são um conjunto de açoes, programas e atividades
governamentais formuladas para atender diferentes atores da sociedade civil. Para
Deubel, trata-se de conjunto de sucessivas iniciativas, decisões e ações do regime
político frente a situações socialmente problemáticas e que buscam a resolução das
mesmas, ou pelo menos trazê-las a níveis manejáveis”. Vargas Velazques traz uma
definição complementar e adequada a realidade brasileira. Ele define políticas públicas
como um conjunto de ações desencadeadas pelo Estado - no caso brasileiro, nas escalas
federal, estadual e municipal -, com vistas ao atendimento a determinados setores da
sociedade civil.
Ao tratarmos sobre políticas públicas e pessoas com deficiência (PCDs) estamos
abordando um tema recente, já que somente a partir dos anos 1980, no Brasil, os PCDs
passaram a desempenhar uma posição de protagonista na formulação e
acompanhamento de políticas públicas. Passou-se de uma visão caritativa e
assistencialista do Estado para a discussão sobre políticas públicas inclusivas.
Uma resolução da ONU em 1981 instituiu o Ano Internacional das Pessoas
Deficientes. A partir deste evento, a acessibilidade passou a se popularizar no país,
fazendo aparecer, as primeiras leis, decretos e documentos técnicos que tratam dos
direitos das pessoas com deficiência.
No que diz respeito a obras públicas e edificações, podemos colocar 1985 como
marco em termos de regulação e normatização da acessibilidade no Brasil. Neste ano foi
elaborada a primeira norma técnica brasileira, a NBR 9050:1985. A norma versa sobre a
adequação “das edificações e do mobiliário urbano à pessoa deficiente”. Aqui há que se
abrir um parêntese obrigatório para discutir a terminologia utilizada já no título da
norma – pessoa deficiente. A terminologia utilizada ainda carregava a denominação da
época para a pessoa com deficiência. Esse discurso se coadunava com o momento
político da redemocratização brasileira, em que o aparelho jurídico e normativo, numa
perspectiva althusseriana, estava impregnado da ideologia totalitária da constituição de
1969.
Voltando nosso foco à NBR 9050, esta norma, que fora elaborada pela comissão
de estudos do Comitê Brasileiro da Construção Civil, - CB 02, da ABNT, precedeu a
“Constituição Cidadã”, de 1988. Na nova Carta Magna, fica estabelecido no §2º, do
artigo 227, que o Estado dispusesse de uma
“lei sobre normas de construção dos logradouros e dos
edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte
coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de
deficiência, além da garantia de adaptação dos logradouros, dos
edifícios de uso públicos e dos veículos de transporte coletivo
existentes, exigido no artigo 244”.
Em 1989, foi criado, através da lei federal nº. 7.853/89, a CORDE, para defender
os direitos das pessoas com deficiência. Em 1991, a NBR 9050:1985 é revisada pela
primeira vez. A esta norma são acrescidas outras referentes à acessibilidade, seja para
transportes públicos seja para adaptação de logradouros públicos, como banheiros,
repartições e hospitais. Por conta do volume de normas desenvolvidas e outras em
discussão sobre acessibilidade, no ano 2000 é criado o Comitê Brasileiro de
Acessibilidade – CB 40 na ABNT com a Comissão de Estudos Acessibilidade a
Edificação e Meio – CE 01. Em seguida, são formadas as Comissões de Estudos de
Transporte com Acessibilidade (CE - 02) e Acessibilidade em Comunicação (CE - 03) e
posteriormente Acessibilidade e Inclusão Digital (CE - 04) como resultado do volume
de normas solicitadas em função das leis publicadas.
Em 2004, inicia-se com estudos para uma nova revisão da NBR 9050, com texto
concluído e publicado, sendo nesta nova versão incorporadas novas tecnologias,
produtos e indicadores técnicos, não mais focada na pessoa com deficiência e
abrangendo uma acessibilidade para todos, reforçando o conceito de Desenho Universal
– DU (referencia).
Apesar de todo o avanço, de hoje existir uma Secretaria Nacional para as
Pessoas com Deficiência e o termo acessibilidade ter se popularizado cada vez mais,
não há um esforço regulamentar das políticas públicas para que elas se enquadrem neste
caráter universal que hoje é preconizado.
O não cumprimento das normas de acessibilidade urbana acarreta no que a
CORDE (1997) compreende como desvantagem, ou seja, a impossibilidade de
desempenhar um papel em função de um obstáculo e não em função da deficiência.
Sendo assim, para evitar situações de desvantagem, o ideal é a busca pela rota acessível.
O conceito em questão trabalha a continuidade de medidas de acessibilidade a serem
adotadas num percurso completo, não restringindo, portanto, a ambientes isolados
(DUARTE e COHEN, 2004).
Na construção civil, mais especificamente em obras públicas, falta relacionar as
normas de acessibilidade com a lei 8.666, que versa sobre as licitações, o que faria que
acessibilidade fosse um quesito a ser observado desde o projeto básico até a fiscalização
da obra e que ele tivesse tanto peso como os princípios constitucionais de legalidade,
legitimidade e economicidade, prerrogativas da 8.666/1993 e pela Constituição Federal
em seu artigo 37.
3. Metodologia

De acordo com as taxionomias de pesquisa definidas por Vergara (2013), a


pesquisa pode ser considerada descritiva. Para atingir o objetivo da pesquisa, foi
realizado um estudo de caso no estádio do Maracanã, visto que o estádio sediou alguns
jogos da copa do mundo de 2014 e vai sediar diversos eventos das olimpíadas e
paralimpíadas de 2016.
O estudo de caso foi realizado em outubro de 2014, através de uma visita técnica
ao local. Em função da dificuldade imposta pela administração do estádio, os
pesquisadores optaram por fazer tal pesquisa através do tour disponibilizado para os
turistas. A avaliação da acessibilidade do estádio tomou por base o questionário de
verificação do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia – CREA, elaborado a
partir da NBR9050 da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.
Cabe acrescentar que o CREA apresenta 14 questionários de verificação de
acessibilidade para deficiência física, 8 para deficiência visual e 1 para deficiência
auditiva. Em virtude da impossibilidade de todos os pontos serem avaliados, foram
levados em consideração os dois questionários gerais para as deficiências física e visual,
além do único questionário de verificação de acessibilidade para deficientes auditivos.
Foi permitida a verificação na entrada do estádio, no museu, num setor da arquibancada,
nos espaços comuns (lanchonetes e banheiros) e em um vestiário dos atletas.
Como o presente trabalho não foi elaborado através de hipóteses, foi utilizado
um tratamento qualitativo dos dados, codificando-os e, posteriormente analisando-os. O
material obtido com base na observação feita e na entrevista realizada será emparelhado
(Gil, 2002) com o material bibliográfico sobre a temática, resultando na apresentação de
uma análise sobre a diferenciação entre os processos de inclusão e integração das
pessoas com deficiências no mercado de trabalho, bem como a eficácia dos modelos.
O método do estudo de caso apresenta como ressalva a subjetividade da
observação ocasionada pela mesma ter sido feita por uma única pesquisadora. Além
disso, entende-se que a principal limitação da técnica é o fato da mesma não permitir
que se faça generalizações com base em seus resultados (YIN, 2001).

4. Coleta e análise dos dados


O estudo de caso investigou o estádio Mario Filho, popularmente conhecido
como Maracanã. A escolha do loca levou em consideração a importância do mesmo,
visto que já foi palco de grandes eventos, tais como: Copa do Mundo de 1950, Jogos
Pan-Americanos de 2007, Copa do Mundo de 2014, Olimpíadas. Sediará a abertura das
Olimpíadas 2016 e também será palco dos jogos das Olimpíadas e Paralimpíadas.
O estádio também foi escolhido por ter sofrido duas grandes reformas nos
últimos 10 anos. Para receber os jogos do Pan-Americano de 2007, Magalhães e Rangel
(2006) explicam que foram gastos aproximadamente R$250 milhões na época, cerca de
quatro vezes o valor estimado pelo governo no início da obra. Para a Copa do Mundo de
2014, o gasto também foi bastante elevado, chegando a R$1,4 bilhão (CASTRO, 2014).
Diante de tais gastos, foram investigadas as condições de acessibilidade do local,
retratadas através de fotografias1. Foram selecionados 5 espaços para verificação:
entrada (acesso externo), áreas de circulação e acesso interno, banheiros, arquibancada e
vestiário.

4.1.) Acesso externo (entrada)

O acesso ao estádio é facilitado por possuir uma estação de metrô bastante


próxima, além de várias linhas de ônibus circularem pelo local.
No entanto, conforme é possível perceber na figura 1, a inclinação da rampa que
liga a estação de metrô ao estádio não está em conformidade com a orientação do ítem
6.5 da NBR9050/04. Também é possível perceber, nas figuras 1 e 2, a ausência de pisos
táteis que facilitem a locomoção das pessoas com deficiência visual. Por fim, é ainda
possível destacar na figura 2, que a ausência do piso tátil pode oferecer um risco à
pessoa com deficiência que, ao atravessar a ciclovia, pode ser atropelado. Além disso,
as grelhas do chão possuem largura superior aos 1,5 cm indicados (itens 6.1.5 e 6.1.6 da
NBR9050/04).

Figura 1: Rampa de acesso ao estádio Maracanã

                                                                                                                       
1
 Todas  as  fotografias  foram  retiradas  pelos  pesquisadores  durante  a  realização  do  estudo.    
Figura 2: Entrada do estádio

4.2. Áreas de circulação e acessos internos

A circulação interna atende de forma bastante satisfatória a circulação de


pessoas com deficiências físicas. É composta por amplos espaços, rampas e elevadores
(com altura adequada de botões), conforme é possível perceber nas figuras 3, 4 e 5.

Figura 3: Acesso interno


Figura 4: Rampas de acesso às cadeiras

Figura 5: Elevadores

As limitações do ítem 4.2 ficam por conta da falta de sinalização em Braile para
pessoas com deficiência visual (exemplificado pela figura 6). A única sinalização em
braile encontrada no estádio era em adesivo e já estava bastante deteriorada (figura 7).
Além disso foram também encontrados obstáculos móveis (figura 8) que, apesar de
facilitarem a organização do local, acabam por impedir a livre circulação de pessoas
com mobilidade reduzida.
Figura 6: Placas
Figura 7: sinalização em braile

Figura 8: obstáculos móveis

4.3. Banheiros

Os banheiros do estádio atendem as determinações da NBR9050/04 (figura 9).


No entanto, questiona-se a manutenção do local. Quando os pesquisadores solicitaram a
chave deste banheiro, os funcionários não sabiam onde a mesma se encontrava.

Figura 9: Banheiro
4.4. Arquibancada

O setor da arquibancada tem como principal ponto positivo a inclusão de acentos


reservados para usuários de cadeiras de rodas com acompanhante e com uma proteção
em vidro, que permite uma perfeita visão do jogo (figura 10). Também destaca-se a
inclusão de cadeiras para obesos que, apesar de não serem considerados como pessoas
com deficiência, também encontram uma grande dificuldade no que diz respeito a
acessibilidade.

Figura 10: Arquibancada

4.5. Vestiário

O Vestiário pode ser considerado um dos locais mais questionados do estádio.


Um dos principais esportes paraolímpicos é o futebol de cegos. Apesar disso, o local de
concentração de preparação dos jogadores não apresenta uma estrutura adequada para
receber seus atletas. Além da falta de sinalização de placas, destaca-se o perigo iminente
de acidente no banheiro dos atletas, onde não há indicativo de que há uma banheira
(figuras 11 e 12).

Figura 11: Banheiro dos atletas


Figura 12: Banheira sem sinalização

5. Conclusão
A questão da inclusão da pessoa com deficiência, apesar de ser recorrente na
pesquisa em gestão de pessoas e relações de trabalho no Brasil ainda se configura como
um desafio, visto que, ao analisarmos o conceito de inclusão, observamos que o mesmo
considera o desenvolvimento do indivíduo através da criação de condições que
garantam uma efetiva participação da pessoa na sociedade, através de suportes físicos,
psicológicos, sociais e instrumentais. No entanto, a falta de sinergia entre organizações,
governo e sociedade acarreta numa não criação desse cenário, resultando na
permanência da problemática.

A despeito da legislação de amparo à pessoa com deficiência, a pesquisa


realizada pelo Senado Federal evidencia as dificuldades enfrentadas pelo grupo no dia-
a-dia, dado que aproximadamente 80% dos entrevistados acreditam que seus direitos
não são respeitados no Brasil.
O estudo de caso realizado no estádio Mário Filho ilustra o descaso sentido pelas
pessoas com deficiência. Apesar do enorme montante investido em obras de melhorias
para o Maracanã, as normas de acessibilidade não permearam a construção do projeto.
Ao contrário, acompanhou a tendência da cidade do Rio de Janeiro que, apesar de ter se
transformado em um verdadeiro canteiro de obras, continua apresentando as mesmas
falhas arquitetônicas, não promovendo a acessibilidade necessária para receber os
atletas e turistas do evento. Os projetos de adequação para os jogos olímpicos e
paraolímpicos não contemplam discussões sobre acessibilidade urbana (AMARAL,
2009).
Percebeu-se, portanto, a falta de conformidade entre as obras realizadas no
estádio, as indicações da NBR9050/04 e a Lei 10.098/0, visto que as obras não
contemplaram as indicações de acessibilidade, não garantindo o livre acesso da pessoa
com deficiência em tal construção. Os autores apresentam como solução para a
problemática levantada uma maior relação entre as normas expostas e a lei que versa
sobre as licitações (8.666/93), para que, dessa forma, o conceito de desenho universal
fosse adotado desde o projeto básico.

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A RELEVÂNCIA DO PLANEJAMENTO ORÇAMENTÁRIO APLICADO ÀS
DESPESAS DA UNIÃO
Ariel Levy
Dominique Oliveira Cunha
INTRODUÇÃO
As principais contribuições deste estudo residem: na avaliação da importância
atribuída ao planejamento na Administração Pública Federal, frente sua correspondente
execução orçamentária e financeira; na possibilidade de fornecer subsídios para discussão,
aperfeiçoamento e análise do planejamento, do orçamento e de seus efeitos enquanto
instrumentos de gestão pública. Além desta principal contribuição, este estudo apresenta uma
avaliação quantitativa dos propósitos estipulados na Lei Orçamentária Anual; proporciona
mecanismos de análise quanto à execução das despesas no âmbito da União face ao
planejamento aprovado em lei específica; e procura desmistificar a ideia de que o orçamento
público é matéria exclusivamente técnica e de difícil compreensão. Embora o sistema
orçamentário e financeiro estabelecido na Constituição Federal determine que a execução
deveria obedecer majoritariamente ao que fora planejado, na prática isso não ocorre em
nenhuma das esferas de governo. No âmbito federal, é o Ministério de Planejamento,
Orçamento e Gestão – MPOG o órgão central da Administração Pública ao qual estão
delegadas as atividades de planejamento e orçamento. Neste sentido trabalha para viabilizar as
ações e a tomada de decisões referentes a elaboração, aprovação, acompanhamento,
gerenciamento e avaliação dos planos programas e orçamentos, além da realização de estudos
e pesquisas socioeconômicas (Leis nos 10.180/2001 e 10.683/2003). Destarte, considera-se a
execução orçamentária e financeira compromissada com os objetivos e estratégias
previamente estabelecidas num planejamento de Governo essenciais para garantir o
cumprimento das leis, garantir a eficiência dos gastos públicos e atender as demandas sociais.
Assim, o desenvolvimento da gestão pública passa pela qualidade do processo de
planejamento e consequente orçamento.
Apesar do planejamento ser considerado instrumento fundamental para a execução,
monitoramento e controle dos gastos públicos, alguns gestores ainda não lhes confere a
devida importância. “Há quem considere coisas distintas e separadas o orçamento e o
planejamento. Erro de observação. planejamento e orçamento, como processos, são
incoercivelmente complementares” (BENEDICTO SILVA, in CORE, 2001, p. 4). Diante
desta condição, introduz-se o problema de pesquisa: comparar o planejamento e a execução
das ações elencadas e aprovadas na Lei Orçamentária Anual de 2012 do Governo Federal, ou
seja, verificar se esta realização é compatível com os valores previamente levantados e
aprovados pela referida Lei, de modo a compreender a importância atribuída pelo Governo ao
planejamento na sua forma constitucional.
A escolha do ano de 2012 justifica-se por ser um ano de execução já de acordo com o
PPA, Plano Plurianual, do novo Governo e, portanto, de planejamento puro, sem as pressões
de uma transição ou eleição para o Executivo Federal. Compreende, portanto, o planejamento
orçamentário e financeiro deste ano e consequentemente sua execução. Ao empregar a
metodologia descritiva procura-se identificar, analisar e interpretar os fenômenos ligados ao
processo público orçamentário federal e sua execução orçamentária e financeira. O
delineamento em estudo de caso, único, apoiado em documentos oficiais divulgados pelo site
Siga Brasil através dos sistemas SIAFI, SIOP e SELOR buscou-se identificar e analisar o
cumprimento dos desígnios estabelecidos na Lei Orçamentária para as despesas públicas.
Apesar do Orçamento Anual ser produto de planejamento que incorpora as demandas da
coletividade e do partido do Governo, é possível que durante a execução tornem-se
necessárias alterações. Estando estas previstas nas retificações através dos créditos adicionais,
devendo estes também serem aprovados pelo Legislativo. Entretanto, neste trabalho somente
foram contemplados os créditos suplementares por serem estes os mais frequentes, montando
em 12,26% do montante fixado na LOA, para o ano em análise. Este percentual também
contemplava os acréscimos orçamentários efetivados por superávits financeiros apurados em
balanço patrimonial e por excessos de arrecadação (4,94%). A análise transcorre nos
indicadores de “função orçamentária e “subfunção orçamentária” que embora de formulação
menos técnica permitem maior transparência, a visualização de em quais áreas do Governo
estão sendo alocados e efetivamente gastos os recursos públicos. Diante das análises
efetuadas, e especificamente em relação aos créditos suplementares, pode-se concluir que o
planejamento federal efetuado obteve êxito se tomado como critério a necessidade de ajustes
menores que dez por cento. Entretanto, No tocante a execução quer orçamentária quer
financeira o resultado apresenta quatorze funções com percentuais de execução abaixo de
70%, corroborando com a ideia de que o Governo não segue o planejamento e conduz a
execução por decisões de caráter político e não técnico.
PLANEJAMENTO E O ORÇAMENTO
A palavra planejar advém de plano, cuja origem parte do latim planus, representando
algo nivelado. Planejar corresponde ao ato de elaborar um roteiro de ações estruturado e
organizado com um ou mais objetivos à atingir. Destarte, ao processo racional pelo quais os
planos são elaborados denomina-se de planejamento (HAUSEN, 2002, p.231). O
planejamento é considerado ferramenta principal do gestor na consecução de suas funções
administrativas por   requerer   em   sua   etapa   inicial,   um   estudo   detalhado   dos   objetivos   a  
serem   alcançados   em   determinado   período   de   tempo.   Durante   este   processo,   serão  
elencadas   diversas   alternativas   e   analisadas   quanto   as   possibilidades   de   obtenção   dos  
objetivos   traçados.   É   nesta   etapa   em   que   definem-­‐se   as   prioridades,   os   recursos  
necessários   para   as   ações,   o   tempo   de   conclusão   das   tarefas,   as   metas   e   resultados.  
Decidindo-­‐se  pelo  conjunto  de  ações  que  promovam  o  maior  benefício  com  menor  custo.
    Como  propósito  comum  todos  os  planos  apresentam:  previsão,  a  programação,  e  
coordenação   da   sequência   lógica   de   eventos,   os   quais   deverão   conduzir   aos   objetivos.  
Complementando   o   entendimento   sobre   o   planejamento,   Sérgio   Jund   (2008,   pág.   115)  
pressupõe   o   atendimento   de   algumas   características,   tais   como:   o   diagnóstico   da  
situação   existente;   identificação   das   necessidades   de   bens   e   serviços;   a   definição   clara  
dos   objetivos   para   ação;   a   discriminação   e   quantificação   de   metas   e   seus   custos;   ea  
avaliação   dos   resultados   obtidos   e   trabalho   integrado.   Planejar é além de analisar as
possibilidades de alcançar os objetivos a partir da situação inicial, verificar quais os recursos
necessários, inclusive abordando as contingências e atribuir as responsabilidades. Assim,
representa   equilíbrio   quando   bem   executado,   pois   ele   antecipa   possíveis   riscos,   desvios,  
ameaças,  não  deixando  os  gestores  a  mercê  de  contratempos,  crises  e  fatalidades. Tudo  
deve  caminhar  dentro  de  determinados  padrões  passível  de  variações  aceitáveis,  ou  seja,  
não   devem   configurar   descontroles.   Caso   as   ações   se   distanciem   dos   moldes  
anteriormente   definidos,   estas   serão   redirecionadas   a   fim   de   voltarem   ao   curso  
desejado.  É  impossível  direcionar  algo  a  algum  lugar  sem  ter  definido  ponto  de  chegada;  
é   impossível   controlar   e   gerenciar   situações   sem   conhecê-­‐las;   e   é   impossível   tomar  
posições  e  decisões  sem  ter  parâmetros,  referências.
Outra   característica   bastante   relevante   do   planejamento   é   o   estabelecimento   de  
responsabilidades   aos   envolvidos   no   processo.   Este   permite   identificar   as   áreas   de  
atuação   de   cada   responsável,   verificando   assim   se   estão   trabalhando   de   maneira  
satisfatória   em   relação   aos   planos.   Também   permite   analisar   se   todos   os   recursos  
disponíveis  estão  sendo  bem  empregados.  Por  conseguinte,  permite  alocar,  nas  funções  
mais  apropriadas,  os  participantes  do  processo.  Não  sendo  diferente  quando  aplicado  a  
área  da  administração  pública.    O  orçamento,  por  sua  vez,  tem  origem  na  palavra  italiana  
orzare   cujo   significado   é   orçar,   avaliar,   estimar   e   por   extensão   planejar.   Assim,   o  
orçamento  traduz  em  valores  um  planejamento  das  ações  que  pretendemos  realizar  com  
base   em   um   determinado   montante   de   recursos   disponíveis,   ou   seja,   orçamento   é   um  
plano  que  envolve  dinheiro,  receita  e/ou  despesa,  a  ser  utilizado  dentro  de  um  período  
de   tempo   (PIRES,   2001,   p.04)   O   orçamento   público   é   o   instrumento   pelo   qual   o   chefe   do  
Poder   Executivo   administra   as   finanças   do   Estado   e   por   meio   dele   conduz   a  
implementação   das   políticas   públicas   e   seus   objetivos   no   intuito   do   bem   estar   social.  
Segundo  Mota  (2002,  pág.  23):    
A importância do orçamento perante ao planejamento e à execução das ações
governamentais é espelhada na Constituição Federal, ao tratar deste em seus artigos 165 a
169. O orçamento é um ato pelo qual o Poder Legislativo autoriza o Poder Executivo, por
certo período e pormenor, a realização das despesas, estas fixadas, destinadas ao
funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política econômica e geral do
país. Enquanto que as receitas a autorização de arrecadação, dos tributos criados em lei, são
previsões que se realizam em recursos financeiros à medida que os contribuintes e demais
devedores do tesouro público extinguem suas dívidas no tocante a tributos e outras rendas.
O orçamento possui também características fundamentais, que especificam sua função
gerencial da ação governamental. A primeira delas trata de sua natureza jurídica, pois é
considerado uma lei formal, conforme previsto no art. 165 da Constituição Federal de 1988,
CF/88, e conforme diversas vezes reiteradas pelo Superior Tribunal Federal – STF.
Sua natureza social é representada pela preocupação com as demandas e necessidades
da população, que conforme proposições do Executivo pretende-se sanadas através de
investimentos, produtos e serviços públicos, por vezes complementadas por emendas
legislativas ou   por   créditos suplementares e especiais.   A natureza econômica apresenta-se
pela necessidade de equilíbrio entre a arrecadação das receitas e a realização de despesas
públicas. O orçamento também apresenta natureza financeira, cujo controle registra as
entradas e saídas de recursos financeiros no caixa governamental. Estes adentram os cofres
em forma de pecúnia quando receitas são arrecadadas, e são subtraídos quando despesas são
pagas. É fundamental lembrar à natureza política, pois o orçamento contempla programas
governamentais que vão de encontro à concepção e ideologia do partido político detentor do
poder. Apresenta por sua característica à natureza técnica, pelo fato de o orçamento demandar
dos gestores conhecimento técnico de registros de fatos e atos da administração. Não constitui
matéria que possa ser trabalhada em subjetividade, deve ser clara, objetiva, e direta. O
orçamento deve ser consistente com os demais instrumentos legais previstos na CF/88: o
Plano Plurianual – PPA, e com a Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO. Deve contudo
observar as diretrizes estabelecidas na Lei Complementar 101/2000 – Lei de
Responsabilidade Fiscal, LRF. Deve também cumprir o disposto nas legislações específicas
em sua elaboração, como a Portaria 42 – 04/99 do até então Ministério do Orçamento e
Gestão, hoje MPOG, que padroniza as informações, e determina que as despesas sejam
identificadas quanto à função, subfunção, programa, atividade, projeto ou operação especial.
Como o foco deste estudo estará no enquadramento funcional das despesas da União,
não serão  tratados  os  conceitos  de  programa,  atividade,  projeto  e  operação  especial.    Por  
meio   da   classificação   funcional   pode-­‐se   entender   em   que   área   a   ação   de   governo   será  
realizada.  As  funções  representam  o  maior  nível  de  agregação  das  despesas  das  diversas  
áreas  do  setor  público.  Enquanto  que  as  sub-­‐funções  representam  partições  da  função.  
Possibilitando   agregações   diferentes   da   função   a   que   estão   relacionadas.   De   acordo   com  
a   Portaria   supra   mencionada   são   29   as   funções   e   109   as   sub-­‐funções.   A   classificação  
funcional  considera  a  destinação  dos  recursos  de  cada  ação  com  a  subfunção  e  função.  
As   ações   contempladas   no   orçamento   devem   estar   estritamente   ligadas   às   subfunções  
que  tratam  da  mesma  matéria.  
Por   ser   de   aplicação   comum   e   obrigatória   no   âmbito   da   União   e   do   Distrito  
Federal,   dos   Estados   e   dos   Municípios,   a   classificação   funcional   da   despesa   permite   a  
consolidação  nacional  dos  gastos  do  setor  público.  A  classificação  é  codificada  FF.SSSS,  
onde   FF   representa   a   função   e   SSSS   a   subfunção.   A   metodologia   agrega   os   gastos  
públicos  por  área  de  ação  governamental,  nas  três  esferas  de  governo,  sendo  composta  
por  uma  lista  de  funções  e  subfunções  estabelecidas  na  referida  portaria.  O  orçamento  
brasileiro  inova  ao  criar  a  função  “Encargos  Especiais”  para  agrupar  despesas  que  não  se  
associam  diretamente  a  um  bem  ou  serviço  a  ser  gerado,  como  exemplo,  destacado  no  
livro   Divida   Publica   Experiência   Brasileira   disponibilizado   gratuitamente   pelo   Tesouro  
Nacional,   constam   dívidas   e   ressarcimentos.   A   seguir   será   abordado   o   conceito   da  
execução   orçamentária   e   financeira   que   refletem   como   a   autorização   dada   pelo  
legislativo  se  efetivou.  
 
EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA E FINANCEIRA  
A   fim   de   que   o   orçamento   seja   executado,   este   precisa   obrigatoriamente   dispor  
de  dotação  suficiente  para  a  efetivação  da  despesa.  Mesmo  aprovada,  a  lei  do  orçamento  
não  cria  direitos  e  obrigações,  uma  vez  que  esta  representa  apenas  um  ato  formal  cujo  
caráter  é  autorizativo.  A  despesa  tem  sua  trajetória  iniciada  em  seu  primeiro  estágio,  a  
fixação   decorrente   da   Lei   Orçamentária   ou   de   créditos   suplementares,   mas   é   com   a  
elaboração  do  empenho,  cujo  ato  representa  o  compromisso  da  administração  em  quitar  
despesas  adquiridas  que  efetivamente  inicia-­‐se  sua  execução.  Os  conceitos  de  execução  
orçamentária   e   financeira   normalmente   se   confundem.   Apesar   de   ocorrerem  
paralelamente   e   se   integrarem,   tais   conceitos   são   divergentes.   Analogicamente   a  
execução  orçamentária  será  representada  por  um  cheque,  onde  o  credor  possui  em  seu  
poder   um   documento   que   o   valida   a   receber   determinada   quantia   em   dinheiro.   Já   a  
execução  financeira,  representaria  a  compensação  deste  cheque  com  a  liberação  efetiva  
do  montante  acordado  na  conta  corrente  do  credor.  
Por  este  trabalho  tratar  especificamente  do  cumprimento  do  orçamento  da  União,  
nos   atentaremos   a   conceitos   relacionados   à   despesa   pública   e   sua   correspondente  
execução  orçamentária.  A  execução  orçamentária  da  despesa  é  normalizada  pela  Lei  nº  
4.320/64,   tendo   também   o   auxílio   da   Lei   Complementar   nº   101/00,   conhecida   como   Lei  
de   Responsabilidade   Fiscal   –   LRF   que   estabelece   normas   até   então   não   tratadas  
anteriormente.     Lei   nº   4.320/64,   no   seu   artigo   58,   dispõe   que   o   empenho   da   despesa   é   o  
ato   emanado   de   autoridade   competente,   que   cria   para   o   Estado   a   obrigação   de  
pagamento,  pendente  ou  não  do  implemento  de  condição.  É  muito  provável  que  durante  
a   execução   orçamentária   ocorram   situações,   fatos   novos   ou   mesmo   problemas   não  
previstos   na   fase   de   elaboração   que   demandem   acertos.   De   acordo   com   a   Lei   nº  
4.320/64,  em  seu  artigo  40,  o  mecanismo  para  corrigir  falhas  de  previsão,  planejamento  
e   retificar   o   orçamento   anteriormente   aprovado   pelo   Legislativo   são   denominados  
créditos   adicionais.   Esta   legislação   permite   que   sejam   abertas   novas   dotações   para  
ajustar   o   orçamento   e   incluir   autorização   para   despesas   não   computadas   ou  
insuficientemente  dotadas  na  Lei  Orçamentária  Anual.    
Neste   trabalho   só   foram   considerados   os   créditos   suplementares,   visto   que   tais  
mecanismos   são   os   mais   frequentemente   utilizados   para   retificar   valores   fixados   na  
peça   orçamentária.   De   acordo   com   a   referida   lei,   em   seu   artigo   41,   os   créditos  
suplementares   atendem   casos   em   que   a   dotação   já   existe   na   Lei   de   Orçamento,  
entretanto,  necessitam  de  reforço  para  atender  despesas  exigidas  quanto  ao  interesse  da  
Administração.A  abertura  de  créditos  suplementares  apresenta  consequências  em  duas  
programações:   orçamentária   e   financeira.No   que   se   refere   à   primeira,   a   influência   dos  
créditos  se  faz  sentir  quando  interfere  na  concretização  dos  objetivos  e  metas  a  serem  
alcançados  pela  Administração,  e  que  são  dispostas  na  forma  dos  diferentes  programas,  
subprogramas,  projetos  e  atividades.  Quanto  à  programação  financeira,  o  efeito  se  fará  
sentir   na   medida   em   que   a   alteração   efetuada   interfira   no   esquema   de   desembolso   do  
exercício.
Conforme   a   Lei   nº   12.595/2012,   Seção   III,   o   Governo   Federal,   possui   diversas  
alíquotas   para   limitar   a   abertura   de   créditos   suplementares.   Existem   casos   onde   o  
percentual   é   de   10%,   outros   de   30%   e   de   até   50%   do   orçamento.   As   exceções   são  
diversificadas  e  abrangem  várias  subfunções,  instituições,  ações  e  naturezas  de  despesa  
previstas  na  LOA.  Embora  seja  notória  a  necessidade  de  alguma  flexibilidade  no  tocante  
aos  recursos  previstos  na  Lei  Orçamentária,  visto  que,  erros  e  omissões  são  verificados  
no  decorrer  do  exercício  financeiro,  e  consequentemente,  não  foram  estimados  na  peça  
orçamentária.   Neste   caso   é   razoável   que   se   dê   uma   margem   para   que   o   próprio  
Executivo,   sem   consulta   ao   parlamento,   possa   suplementar   dotações   já   aprovadas.  
Entretanto,   tal   abertura   não   deve   servir   para   desconfigurar   o   projeto   inicial   aprovado  
pelo   Poder   Legislativo.   Esta   lacuna   deve   apenas   ajustar   falhas.   Os   créditos  
suplementares,   por   serem   destinados   ao   atendimento   de   insuficiências   orçamentárias,  
acompanham   a   vigência   do   Orçamento,   ou   seja,   extinguem-­‐se   no   final   do   exercício  
financeiro.   A   observância   dos   requisitos   legais   para   a   execução   da   despesa   pública  
muitas   vezes   exige   o   cumprimento   de   cronogramas   que   consomem   vários   meses,  
podendo   se   estender   para   exercícios   vindouros.   Assim,   ao   final   de   um   exercício,   se   a  
despesa   empenhada   ainda   não   houver   sido   paga,   seu   valor   será   reconhecido   como  
despesa   orçamentária,   lançando-­‐se   adicionalmente   o   direito   do   credor   em   conta   de  
obrigação  do  governo,  a  conta  de  “restos  a  pagar”.  Em  suma,  restos  a  pagar  são  despesas  
empenhadas,  mas  não  pagas  dentro  do  mesmo  exercício  financeiro.  A  Lei  nº  4.320/1964,  
em   seu   artigo   36,   distingue   os   restos   a   pagar   em   duas   categorias.   Se   os   bens   ou   serviços  
já   se   encontrarem   devidamente   entregues   e   aceitos,   portanto   já   liquidados   pela  
contabilidade   no   exercício   anterior,   restando   apenas   serem   pagos,   a   obrigação   será  
denominada  “restos  a  pagar  processados”.  Contudo  a  execução  da  despesa  se  encontre  
em   qualquer   outra   fase,   anterior   à   liquidação,   ou   seja,   ainda   não   apurada   e   reconhecida,  
tal  obrigação  recebe  a  denominação  “restos  a  pagar  não  processados”  e  são  conforme  o  
caso   passíveis   de   cancelamento,   resguardadas   as   situações   previstas   em   lei.   Após   esta  
breve   explicação   sobre   o   planejamento,   o   orçamento   e   sua   caracterização   nos  
instrumentos   legais,   a   próxima   seção   instrumentaliza   o   problema   da   pesquisa   ao  
analisar  a  LOA  de  2012  através  do  perfil  da  despesa  pública.  
GOVERNO  FEDERAL  –  PLANEJAMENTO  X  EXECUÇÃO  
Esta   seção   tem   o   objetivo   de   analisar   o   perfil   da   despesa   pública   executada   no  
âmbito   do   Governo   Federal   comparada   ao   planejamento   oficializado   através   da   Lei  
Orçamentária  Anual  para  o  exercício  de  2012.  Utilizaram-­‐se  os  indicadores  de  todas  as  
“função   orçamentária”   e   “subfunção   orçamentária”   para   esta   análise   e   comparação,   uma  
vez   que   tais   classificações   indicam   de   maneira   menos   técnica   e   mais   transparente,   em  
quais  áreas  do  Governo  estão  sendo  alocados  e  efetivamente  gastos  os  recursos  públicos.  
A   Lei   nº   12.595,   de   19   de   janeiro   de   2012   –   LOA   2012   apresenta   o   montante   total   de   R$  
2.257.289.322.537,00   (dois   trilhões,   duzentos   e   cinquenta   e   sete   bilhões,   duzentos   e  
oitenta  e  nove  milhões,  trezentos  e  vinte  e  dois  mil,  quinhentos  e  trinta  e  sete  reais)  para  
cobrir   despesas   no   referido   exercício   financeiro.   Tal   montante   está   dividido   em   três  
grupos,  são  eles:  Orçamento  Fiscal  –  R$  1.552.268.301.575,00,  Orçamento  da  Seguridade  
Social  –  R$  598.190.565.932,00  e  Orçamento  de  Investimento  –  R$  106.830.455.030,00.  
Em   termos   percentuais,   o   Orçamento   Fiscal   representa   68,77%   de   todo   o   Orçamento  
para  2012;  já  o  Orçamento  da  Seguridade  Social  representa  26,50%;  e  o  Orçamento  de  
Investimento  representa  4,73%,  ver  Figura  1.  
 
Figura  1-­‐  1  Despesa  Fixada  por  Orçamento  –  Distribuição  Percentual  do  Orçamento.
O valor de R$ 896.782.345.904,00 (oitocentos e noventa e seis bilhões, setecentos e
oitenta e dois milhões, trezentos e quarenta e cinco mil e novecentos e quatro reais) ou
39,73% da despesa total fixada, corresponde manutenção dos Poderes da União, seus fundos,
órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e
mantidas pelo Poder Público, e estatais dependentes. Outra parte substancial do Orçamento
Fiscal é especificamente voltado para o refinanciamento da dívida. Este prevê o montante de
R$ 655.485.955.671,00 (seiscentos e cinquenta e cinco bilhões, quatrocentos e oitenta e cinco
milhões, novecentos e cinquenta e cinco mil, seiscentos e setenta e um reais), o que representa
29,04% do Orçamento total. Assim, uma melhor compreensão desta distribuição pode ser
obtida pela Figura 2. Ao analisar o orçamento fixado por funções conforme a portaria 42/99
disponibilizado pelo SIOP Gerencial/Secretaria de Orçamento Federal, Anexo I, cinco
funções se destacam representando 87,42%, figura 3, ou seja, R$ 1.879.909.156.572,00 (um
trilhão, oitocentos e setenta e nove bilhões, novecentos e nove milhões, cento e cinquenta e
seis mil e quinhentos e setenta e dois reais). Uma análise do Orçamento por subfunção fixado
na LOA de 2012, Anexo II, e também disponibilizado pelo SIOP, destacam-se dez subfunções
que mais demandaram recursos no Orçamento. Estas somam o montante de R$
1.823.779.881.176,00 (um trilhão, oitocentos e vinte e três bilhões, setecentos e setenta e nove
milhões, oitocentos e oitenta e um mil e cento e setenta e seis reais) e representam 84,81% do
valor total do Orçamento. Cujo gráfico da distribuição é apresentado na figura 4, pela ordem:
841 – Refinanciamento da Dívida Interna, 271 – Previdência Básica, 843 – Serviço da Dívida
Interna, 845 – Outras Transferências, 846 – Outros Encargos Especiais, 122 – Administração
Geral, 272 – Previdência do Regime Estatutário, 847 – Transferências para a Educação
Básica, 302 – Assistência Hospitalar e Ambulatorial, 331 – Proteção e Benefícios ao
Trabalhador.
Fica evidenciada a partir destas análises a necessidade de um estudo complexo a
respeito das demandas sociais e no tocante à manutenção da máquina pública federal. Por este
motivo, o planejamento é tão importante. Este é oficializado na Lei Orçamentária, e
paralelamente e posteriormente, comparado à execução orçamentária e financeira do exercício
em questão.
É através da análise planejamento versus execução, que se pode concluir ou não pelo
sucesso estimativo das despesas fixadas no Orçamento Anual, as quais atenderão
integralmente ou parcialmente os objetivos do Governo. Com efeito, verifica-se, a partir da
execução orçamentária que incluí os créditos suplementares disposta no Anexo III, que alguns
valores fixados no orçamento não atendem integralmente as demandas de suas funções. Razão
pela qual são realizadas as alterações orçamentárias.
 
Figura  2  -­‐  Distribuição  da  Despesa  Fixada  –  Destinação  
 

Figura 3- – Distribuição da Despesa Fixada por Função


Ainda nesta análise verifica-se que a maioria das funções tiveram alterações menores
que 10%, percentual considerado aceitável e bem sucedido em relação a previsão realizada no
planejamento. A figura 5 dá destaque as seis funções cuja abertura de crédito não superou 2%.
Em oposição aos valores de previsão bem sucedidas apresentam-se, na figura 6 as
cinco funções cujas suplementações em termos percentuais superaram 10% do valor
planejado. A função 99 - Reserva de Contingência foi excluída da análise acima, uma vez
que, os recursos previstos nesta função não possuem destinação específica e, tão pouco,
vinculação a qualquer órgão, uma vez que sua finalidade principal é servir de fonte de
cancelamento para a abertura de créditos adicionais, ao longo do exercício. Especificamente,
seus recursos servem para cobrir passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais
imprevistos. Estes remanejamento de dotações podem ser justificados pela possibilidade de
existirem novas demandas não previstas à época da elaboração do Orçamento, o que seria
algo aceitável. De forma geral o Orçamento demonstra uma boa assertividade quando
verificado pela execução, afinal 23 de 28 funções, a 99 foi excluída, apresentaram variações
menores que 10%. Contudo duas funções, saneamento e habitação, apresentaram desvios
consideráveis, próximos a 30% que ensejam maiores cuidados no planejamento, bem como na
explicação do porquê de tamanhas variações. Além disso apenas a função 16-Habitação, além
da 99-Reserva de Contingência, apresentou cancelamento de dotação superior ao valor
suplementado. Assim, a análise da execução do orçamento sinaliza uma possível mudança de
planos no tocante à questão habitacional brasileira ou um sacrifício orçamentário na referida
função, a fim de servir de fonte de recursos para atender demais funções que apresentaram
maiores demandas, não previstas na LOA.
Figura 4 - Distribuição Percentual da Despesa Fixada por Subfunção
O Orçamento necessitou de alterações em percentual de 7,32%, alíquota abaixo de
10%, indica portanto um bom planejamento, pois grande parte dos recursos, 92,68%, se
manteve intacto. Em relação à execução orçamentária da despesa, mais precisamente a
respeito do empenhamento da despesa, verifica-se no Anexo IV que nove funções
contemplaram eficientemente seus recursos na LOA em comparação à sua execução
orçamentária. Tais funções respeitaram limite de 10%, que arbitrou-se para caracterizar um
bom planejamento. Com destaque pela ordem para as cinco melhores: 02 – Judiciária, 03 –
Essencial à Justiça, 13 – Cultura, 23 – Comércio e Serviços e 10 – Saúde. Contudo apenas a
função 02 – Judiciária liquidou e pagou despesas em percentual maior que 90% do Orçamento
fixado. Mantendo o foco na liquidação os piores desempenhos neste quesito foram
apresentados pelas funções 13 – Cultura e 23 – Comércio e Serviços com respectivos
percentuais de 44,23% e 32,32%. Enquanto em relação ao pagamento estas mesmas funções
apresentaram 42,78% e 32,29% do Orçamento fixado na Lei Orçamentária.

Figura 5 - Cinco Melhores Previsões – Por Créditos Suplementares


O total de recursos suplementados no Orçamento que totaliza o montante de R$
263.656.514.658,00 (duzentos e sessenta e três bilhões, seiscentos e cinquenta e seis milhões,
quinhentos e quatorze mil e seiscentos e cinquenta e oito reais), ou 12,26% do montante
fixado para a despesa na Lei Orçamentária Anual. Este percentual também contempla
acréscimos orçamentários efetivados por superávits financeiros apurados em balanço
patrimonial e por excessos de arrecadação (4,94%). Tais mecanismos representam a entrada
de novos recursos na LOA, uma vez que, estes não foram previstos à época da elaboração do
Orçamento. Por outro lado, o total de recursos cancelados no Orçamento somam o valor de
R$ 157.398.144.434,00 (cento e cinquenta e sete bilhões, trezentos e noventa e oito milhões,
cento e quarenta e quatro mil e quatrocentos e trinta e quatro reais), o que representa 7,32%
do montante fixado para as despesas.
Figura 6 - Cinco Piores Previsões – Por Créditos Suplementares
Ainda em relação ao empenhamento da despesa, 13 funções não deram sequência ao
planejado, visto que apresentaram alíquotas com variação superior aos 10 pontos percentuais.
Em decorrência disto, as etapas da liquidação e pagamento da despesa também foram
comprometidas. Muitas destas funções apresentaram percentuais de execução orçamentária e
principalmente financeira, muito abaixo da taxa de 60%. Apenas quatro funções executaram
orçamentariamente e financeiramente seus recursos em proporção acima dos 90%, pela
ordem: 08 – Assistência Social, 09 – Previdência Social, 11 – Trabalho e 02 – Judiciária. Nas
funções em que estes índices são menores que 90%, possivelmente houve falha no
planejamento executado ou abandono por parte do Governo Federal de alguns programas,
projetos e atividades, ou também o aparecimento de situações imprevistas à época da
elaboração da referida lei.
Desconsiderando o surgimento de novos e imprevistos casos, parece razoável afirmar
que o planejamento executado pelo Poder Executivo não tem sido efetivado. Inúmeras
funções tiveram suas ações precariamente executadas no exercício de 2012, o que demonstra
que a execução orçamentária e financeira se faz predominantemente por tomada de decisões
pautadas por motivações políticas, e não por motivos técnicos, uma vez que, se assim fosse,
estariam de acordo e próximo ao planejamento definido através da Lei Orçamentária Anual.
Estende-se a análise aos restos a não processados, Anexo V, 17 funções apresentam taxas
superiores a 10% em relação ao Orçamento fixado. Destaque para os maiores montantes: 23 –
Comércio e Serviços, 16 – Habitação, 17 – Saneamento, 15 – Urbanismo e 21 – Organização
Agrária. Ainda em relação aos restos não processados, 11 funções apresentam taxas inferiores
a 10%. Estes percentuais baixos indicam a não concretização das ações demandadas na peça
orçamentária, o que representa danos ao planejamento governamental. Em relação aos restos a
pagar processados, somente as funções 14 – Direitos da Cidadania e 27 – Desporto e Lazer
liquidaram empenhos, na ordem de 18,72% e 10,73% respectivamente, comparativamente ao
montante fixado na LOA. De modo geral, restos a pagar não representam situações positivas à
Administração Pública, uma vez que, despesas não inscritas comprometerão o Orçamento
vindouro, visto que são mecanismos de rolagem de dívidas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo apresentado neste trabalho procurou relatar as inúmeras vantagens do
planejamento frente à execução orçamentária e financeira das despesas públicas federais,
proporcionar à sociedade mecanismos de análise desses gastos, desmistificando assim, a ideia
de matéria complexa e inteligível, além de demonstrar numericamente quanto ao atingimento
ou não dos propósitos estabelecidos na LOA. Diante das análises efetuadas, e especificamente
em relação aos créditos suplementares, pode-se concluir que o planejamento federal efetuado
foi bem sucedido, pois que poucas funções demandaram ajustes acima do percentual
estabelecido como “bom”, ou seja, até 10%. Entretanto, no tocante à execução propriamente
dita, seja orçamentária, seja financeira, o resultado não foi satisfatório. Muitas funções, ou
seja, 14 funções apresentaram percentuais abaixo de 70%, o que demonstra razoável grau de
acerto previsivo do planejamento. Mesmo com profissionais altamente técnicos e gabaritados,
o Governo Federal não tem realizado uma eficiente gestão de seus recursos. Considerando
positivamente o quadro dos créditos suplementares, e negativamente o quadro da execução
orçamentária e financeira, concluímos que o cumprimento dos planos pré-estabelecidos se
deve majoritariamente por decisão política, e não por caráter técnico. Caso fossem
efetivamente executados tecnicamente, tais planos estariam de acordo com o planejamento
realizado na LOA, e não ultrapassariam o percentual “aceitável” de 10%, salvo casos não
previstos à época da elaboração do Orçamento. Outro ponto a ser destacado é que, as despesas
que apresentaram melhor planejamento são despesas continuadas e obrigatórias, não sendo
objeto de “manobras orçamentárias” por parte do Governo. Em decorrência de tais
observações, se faz necessário refletir a respeito do Orçamento impositivo, no todo ou em
parte, uma vez que este obrigaria os gestores públicos, principalmente os tomadores de
decisões a obedecerem ao que fora planejado e aprovado na Lei Orçamentária Anual. A
sociedade não ficaria a mercê das barganhas e devaneios políticos existentes nos diversos
órgãos da Administração Pública brasileira. Além disso, o Orçamento deixaria de ser mera
intenção e sim um dever do Estado para com a sociedade, podendo ser exigido pela
população, inclusive via judicial, ressalvadas as necessidades de contingenciamento quando a
receita não se efetivar ou por situações emergenciais. Embora o Orçamento não deva ser
plenamente engessado, todavia, não deve ser também altamente elástico e flexível. É
importante estabelecer um limite, um ponto de equilíbrio para demandas não previstas e
urgentes. O planejamento realizado e oficializado através da LOA necessita ser obedecido e
executado, uma vez que representa responsabilidade e compromisso dos gestores públicos
para com a administração de tais recursos. Longe de ter esgotado o assunto com este estudo,
sugere-se outros estudos em continuidade a esta pesquisa que analisem os gastos do Governo
Federal em anos posteriores a 2012, bem como, a utilização do Orçamento impositivo como
ferramenta de controle social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Atualizada   por   Dejalma   Campos.   Rio   de   Janeiro:   Forense,   2001.BRASIL, Constituição da
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BRASIL, Decreto nº 7.654, Altera o Decreto nº 93.872, de 23 de dezembro de 1986, que
dispõe sobre a unificação dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, atualiza e consolida a
legislação pertinente, e dá outras providências. 2011.
BRASIL, Decreto n° 8.189, Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos
Cargos em Comissão e das Funções Gratificadas do Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão e remaneja cargos em comissão e funções comissionadas técnicas. 2014.
BRASIL, Decreto nº 93.872, Dispõe sobre a unificação dos recursos de caixa do Tesouro
Nacional, atualiza e consolida a legislação pertinente e dá outras providências. 1986.
BRASIL, Portaria MOG nº 42, Atualiza a discriminação da despesa por funções de que
tratam o inciso I do § 1º do art. 2º e § 2º do art. 8º, ambos da Lei nº 4.320, de 17 de março de
1964, estabelece os conceitos de função, subfunção, programa, projeto, atividade, operações
especiais, e dá outras providências. 1999.
BRASIL, Portaria SOF nº 37, Altera o Anexo da Portaria MOG nº 42, de 14 de abril de
1999, e dá outras providências.
BRASIL, Portaria SOF nº 41, Altera a denominação das sub-funções 753 e 754 constantes
do Anexo da Portaria MOG nº 42, de 14 de abril de 1999. 2008.
BRASIL, Portaria SOF nº 54, Altera o Anexo da Portaria MOG nº 42, de 14 de abril de
1999, que atualiza a discriminação da despesa por funções, de que trata o Anexo 5 da Lei nº
4.320, de 17 de março de 1964. 2011.
BRASIL, Portaria SOF nº 67, Altera o Anexo da Portaria MOG nº 42, de 14 de abril de
1999, que atualiza a discriminação da despesa por funções, de que trata o Anexo 5 da Lei nº
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SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL. Manual SIAFI. 1ª Edição. Brasília, 1996.
Anexo II - Orçamento Fixado na LOA 2012
Anexo I - Orçamento Fixado na por Subfunção
LOA 2012 por Função Valor Fixado
Despesa - por Subfunção
Despesa por (LOA 2012) %
Valor Fixado (Portaria nº 42/99)
Função R$
(LOA2012) %
(Portaria nº 031 - Ação Legislativa 903.301.900 0,04
R$
42/99)
01 - Legislativa 6.504.014.786 0,30 032 - Controle Externo 188.569.513 0,01
02 - Judiciária 24.387.083.195 1,13 061 - Ação Judiciária 2.965.413.211 0,14
03 - Essencial à
4.067.262.650 0,19 062 - Defesa do Interesse
Justiça
04 - Público no Processo 593.540.423 0,03
23.703.843.640 1,10 Judiciário
Administração
05 - Defesa 091 - Defesa da Ordem
34.155.281.098 1,59 4.700.000 0,00
Nacional Jurídica
06 - Segurança 092 - Representação
9.244.529.962 0,43 77.602.064 0,00
Pública Judicial e Extrajudicial
07 - Relações 121 - Planejamento e
1.818.260.931 0,08 903.145.725 0,04
Exteriores Orçamento
08 - Assistência 122 - Administração Geral 104.590.187.319 4,86
54.761.062.266 2,55
Social
123 - Administração
09 - Previdência 239.816.231 0,01
391.762.225.809 18,2 Financeira
Social
10 – Saúde 85.429.797.081 3,97 124 - Controle Interno 41.270.145 0,00
11 – Trabalho 42.428.936.607 1,97 125 - Normatização e
864.890.821 0,04
12 – Educação 68.571.914.013 3,19 Fiscalização
13 – Cultura 1.979.585.616 0,09 126 - Tecnologia da
3.715.391.400 0,17
14 - Direitos da Informação
1.596.590.170 0,07
Cidadania 127 - Ordenamento
927.236.468 0,04
15 – Urbanismo 7.064.124.808 0,33 Territorial
16 – Habitação 954.456.087 0,04 128 - Formação de
1.479.620.294 0,07
17 - Saneamento 3.072.181.417 0,14 Recursos Humanos
18 - Gestão 129 - Administração de
6.348.753.837 0,30 181.510.048 0,01
Ambiental Receitas
19 - Ciência e 130 - Administração de
9.452.191.753 0,44 23.607.554 0,00
Tecnologia Concessões
20 – Agricultura 19.371.743.137 0,90
131 - Comunicação Social 897.249.167 0,04
21 - Organização
5.371.516.151 0,25
Agrária 151 - Defesa Aérea 4.831.164.667 0,22
22 – Indústria 2.395.248.992 0,11
23 - Comércio e 152 - Defesa Naval 3.650.836.829 0,17
4.124.219.357 0,19
Serviços 153 - Defesa Terrestre 1.846.169.872 0,09
24 -
1.342.506.521 0,06 181 - Policiamento 2.104.626.029 0,10
Comunicações
25 – Energia 1.092.121.676 0,05
182 - Defesa Civil 441.728.053 0,02
26 – Transporte 25.924.695.463 1,21
27 - Desporto e 183 - Informação e
2.571.718.378 0,12 1.175.000.467 0,05
Lazer Inteligência
28 - Encargos 211 - Relações
1.279.384.157.403 59,5 714.079.120 0,03
Especiais Diplomáticas
99 - Reserva de 212 - Cooperação
31.578.844.703 1,47 907.374.655 0,04
Contingência Internacional
TOTAL 2.150.458.867.507 100 241 - Assistência ao Idoso 13.366.682.336 0,62
Fonte: SIOP Gerencial/Secretaria de
242 - Assistência ao
Orçamento Federal 16.256.492.397 0,76
Portador de Deficiência
O item "Total" representa a soma do
243 - Assistência à Criança
Orçamento Fiscal, Orçamento de Seguridade 468.155.560 0,02
e ao Adolescente
Social e Refinanciamento da Dívida.
244 - Assistência
24.098.737.169 1,12
Comunitária
Anexo II - Orçamento Fixado na LOA 2012 Anexo II - Orçamento Fixado na LOA 2012
por Subfunção por Subfunção
Valor Fixado Valor Fixado
Despesa - por Subfunção Despesa - por Subfunção
(LOA 2012) % (LOA 2012) %
(Portaria nº 42/99) (Portaria nº 42/99)
R$ R$
271 - Previdência Básica 308.680.587.695 14,35 481 - Habitação Rural 0,00 0,00
272 - Previdência do 482 - Habitação Urbana 598.543.167 0,03
74.879.101.260 3,48
Regime Estatutário
273 - Previdência 511 - Saneamento Básico
840.000 0,00 1.018.038.000 0,05
Complementar Rural
512 - Saneamento Básico
274 - Previdência Especial 2.332.162.258 0,11 4.541.506.606 0,21
Urbano
301 - Atenção Básica 18.691.200.218 0,87 541 - Preservação e
947.477.142 0,04
Conservação Ambiental
302 - Assistência Hospitalar
46.555.662.933 2,16 542 - Controle Ambiental 246.661.437 0,01
e Ambulatorial
303 - Suporte Profilático e 543 - Recuperação de Áreas
8.464.359.847 0,39 28.313.467 0,00
Terapêutico Degradadas
304 - Vigilância Sanitária 345.412.000 0,02 544 - Recursos Hídricos 3.880.770.498 0,18
305 - Vigilância 545 - Meteorologia 28.838.082 0,00
3.985.785.000 0,19
Epidemiológica
571 - Desenvolvimento
306 - Alimentação e 2.212.267.333 0,10
8.435.595.968 0,39 Científico
Nutrição
331 - Proteção e Benefícios 572 – Desenv. Tec. e Eng. 5.949.075.345 0,28
40.334.147.991 1,88
ao Trabalhador 573 - Difusão do
332 - Relações de Trabalho 29.260.716 0,00 Conhecimento Científico e 579.955.771 0,03
Tecnológico
333 - Empregabilidade 596.948.849 0,03 601 - Promoção da
5.994.554.779 0,28
334 - Fomento ao Trabalho 15.722.207.175 0,73 Produção Vegetal
602 - Promoção da
361 - Ensino Fundamental 4.113.198 0,00   Produção Animal
189.139.046 0,01

362 - Ensino Médio 5.118.876 0,00   603 - Defesa Sanitária


73.475.812 0,00
Vegetal
363 - Ensino Profissional 7.727.720.538 0,36 604 - Defesa Sanitária
155.551.124 0,01
Animal
364 - Ensino Superior 21.618.402.435 1,01
605 - Abastecimento 7.764.577.192 0,36
365 - Educação Infantil 2.386.667.959 0,11
606 - Extensão Rural 721.161.122 0,03
366 - Educação de Jovens e
1.403.108.543 0,07
Adultos 607 - Irrigação 639.277.378 0,03
367 - Educação Especial 1.000.000 0,00 608 - Promoção da
0,00 0,00
Produção Agropecuária
368 - Educação Básica 7.198.343.459 0,33
609 - Defesa Agropecuária 0,00 0,00
391 - Patrimônio Histórico,
327.451.269 0,02
Artístico e Arqueológico 631 - Reforma Agrária 2.534.617.856 0,12
392 - Difusão Cultural 660.282.554 0,03 632 - Colonização 0,00 0,00
421 - Custódia e
351.375.299 0,02 661 - Promoção Industrial 4.382.537.770 0,20
Reintegração Social
422 - Direitos Individuais, 662 - Produção Industrial 3.357.120.519 0,16
971.274.467 0,05
Coletivos e Difusos
423 - Assistência aos Povos 663 - Mineração 174.803.969 0,01
679.231.922 0,03
Indígenas 664 - Propriedade Industrial 33.332.973 0,00
451 - Infraestrutura Urbana 4.689.420.020 0,22 665 - Normalização e
671.343.147 0,03
452 - Serviços Urbanos 29.048.705 0,00 Qualidade

453 - Transportes Coletivos 691 - Promoção Comercial 677.551.465 0,03


1.433.431.580 0,07
Urbanos 692 - Comercialização 0,00 0,00
Anexo II - Orçamento Fixado na LOA 2012
por Subfunção
Valor Fixado
Despesa - por Subfunção
(LOA 2012) %
(Portaria nº 42/99)
R$
693 - Comércio Exterior 1.385.137.124 0,06
694 - Serviços Financeiros 2.312.980.285 0,11
695 - Turismo 2.479.586.833 0,12
721 - Comunicações Postais 0,00 0,00
722 - Telecomunicações 353.581.052 0,02
751 - Conservação de
0,00 0,00
Energia
752 - Energia Elétrica 428.520.439 0,02
753 - Combustíveis
356.498.972 0,02
Minerais
754 - Biocombustíveis 14.747.640 0,00
781 - Transporte Aéreo 401.627.900 0,02
782 - Transporte Rodoviário 13.880.508.786 0,65
783 - Transporte Ferroviário 2.897.741.410 0,13
784 - Transporte
1.661.813.626 0,08
Hidroviário
785 - Transportes Especiais 0,00 0,00
811 - Desporto de
1.034.193.297 0,05
Rendimento
812 - Desporto Comunitário 1.246.390.279 0,06
813 - Lazer 300.500.000 0,01
841 - Refinanciamento da
639.490.064.816 29,74
Dívida Interna
842 - Refinanciamento da
12.747.988.408 0,59
Dívida Externa
843 - Serviço da Dívida
244.409.631.623 11,37
Interna
844 - Serviço da Dívida
14.240.159.604 0,66
Externa
845 - Outras Transferências 168.201.631.515 7,82
846 - Outros Encargos
143.205.026.580 6,66
Especiais
847 - Transferências para a
53.433.839.444 2,48
Educação Básica
999 - Reserva de
31.578.844.703 1,47
Contingência
TOTAL 2.150.458.867.507 100
Fonte: SIOP Gerencial/Secretaria de Orçamento Federal
O item "Total" representa a soma do Orçamento Fiscal,
Orçamento de Seguridade Social e Refinanciamento da
Dívida.
Anexo III
Alterações Orçamentárias por Função

Anexo IV
Execução por função

Fonte: SIAFI/SIOP/SELOR - Relatório Web Intelligence do Sistema Siga Brasil


Anexo V
Restos a Pagar por Função
 
Guerreiro Ramos e a Administração Política: um problema de método?

Henrique Almeida de Queirozi (UFJF)

Este artigo busca discutir o autor nacional mais referenciado pela discussão sobre o problema
do “método” na Administração Política. Visa demonstrar que a operação epistemológica está
fundada sobre o pensamento de Alberto Guerreiro Ramos por meio dos “deslocamentos de
conceitos”. O texto buscará também dar um panorama sobre os problemas discutidos por
Guerreiro Ramos e demonstrar que a metodologia desenvolvida até o momento pela
Administração Política sofre do que o próprio autor referenciou como “colocação
inapropriada” da gestão estatal como elemento de execução do estado de bem-estar social no
capitalismo.
Palavras-chave: Guerreiro Ramos, Metodologia, Administração Política.

Existem interessantes discussões sobre o “método” ou episteme no campo da


Administração que vêm se desenvolvendo e suscitando vários problemas ao longo das últimas
décadas no Brasil. Sublinhando a ideia de que existe um campo teórico inexplorado sobre a
ciência administrativa, a chamada Administração Política vem clamando por uma alteração na
agenda de pesquisa, com a defesa da transposição do objeto de estudo de Guerreiro Ramos.
De “organização” passa para a “gestão” como uma significativa mudança teórica, ou alteração
paradigmática, para a compreensão dos dilemas nacionais nos estudos sobre o Estado, as
organizações e o capitalismo (Santos, 2001).
Santos e outros pesquisadores que deram início ao desenvolvimento deste problema
não diferenciam a chamada administração de empresas e a administração pública, colocando a
gestão como algo sem especificidades, que se aproximam ou seriam análogas à função da
administração, com o uso do termo da esfera privada que é, por si, bastante ambíguo. Tentam
explicar diferentes estatutos de ordenamento e finalidades do trabalho administrativo com o
deslocamento inapropriado de um objeto para a criação de um conceito ou uma área
específica de estudos. Isso se mostra de tal forma porque os autores da Administração
Política, em especial Santos, utilizam de problemas elencados por Guerreiro Ramos e
inadvertidamente colocam sob o mesmo estatuto a administração privada e administração
pública, entendida como a gestão estatal.
Santos defende que desde seu primeiro estudo (SANTOS E RIBEIRO, 1993), a
discussão permearia o papel do Estado na consecução do bem-estar social “Considerando que
o objeto de estudo da administração é a gestão, a preocupação fundamental naquele artigo era
saber qual foi o modelo de gestão que o país adotou no sentido de retomar o crescimento
econômico [...]” (SANTOS, 2011, p. 52), e assim “representam o conteúdo próprio da
administração política, que nada mais é senão o gerenciamento feito pelo Estado, nas suas
relações com a sociedade, para edificar uma certa materialidade visando alcançar as
finalidades expressas no bem-estar de uma sociedade ou da humanidade” (SANTOS, 2011,
p. 58, ênfases nossas). Portanto, a ideia que Santos defende é a de que Ramos não rompe com
o paradigma do objeto de estudo, sendo seu objeto as “organizações” e não o conteúdo da
“gestão” que, segundo Santos, ainda era insuficiente para caracterizar a Administração
Política enquanto um ramo específico da ciência administrativa. Isto dentro da Administração
Pública, como é necessário enfatizar.
No mesmo diapasão, existem algumas indicações sobre o problema da “colocação
inapropriada” aqui elencado quando Santos defende que:
[...] o Estado passa a ser o principal empreendedor individual, o que, nos marcos
capitalistas, significa dizer que o Estado passa a ser o principal capitalista a
comandar capital. Então, a ação de gerir as relações sociais no processo de execução
do projeto de nação (sob o comando do Estado com o poder político e econômico)
constitui a essência da administração política. (SANTOS, 2001, p. 67)

A dívida com Guerreiro Ramos fica clara quando vemos a semelhança de objetivos
que se centram do Estado como condição necessária ao desenvolvimento nacional e o tema da
industrialização atrasada, que era concernente ao problema histórico da modernização
brasileira – conservadora, tardia ou até mesmo hipertadia, dependendo da corrente do
pensamento social que se adota –, ao qual Ramos se centrava em sua época de estudos
(BARIANI, 2015). O que Santos faz é reatualizar uma importante mediação da relação entre a
industrialização e o desenvolvimento do capitalismo nacional e alçá-lo à perspectiva central
da atuação da Administração Política, com o planejamento e o uso das políticas públicas para
um objetivo completamente alheio à materialidade efetiva de que temos notícia até o
momento: o “controle” do capital via Estado.
Parece indicativo que este problema esteja alicerçado em concepções “moralistas” da
noção keynesiana de bem-estar, que inclui como um dos principais objetivos o “controle” da
sanha de exploração da força de trabalho pelo capital e seus interesses privativos
característicos ao seu modo de funcionamento em busca de sua valorização, principalmente
em seus momentos de crise econômica. O que é a “finalidade social” para Santos se constitui
no bem-estar social da teoria keynesiana e, por isso, o capital não cumpre a sua função pela
qual o autor parece, em nossas impressões sobre o problema, imputar de forma errônea, pois o
objetivo do capital é sua autovalorização e acumulação privadas através da exploração da
força de trabalho, potencializada pela combinação de trabalhos permitida pelo nascimento da
produção em escala industrial (MARX, 2013). Assim, o papel do Estado se constitui agora no
fato de que, ao invés de ser dominado pelos interesses de diferentes frações do capital, que foi
acentuado pelo desmonte neoliberal da década de 90 (SANTOS E RIBEIRO, 1993), o seu
papel se constitui em dominá-los: “Em vez de ser instrumentalizado no sentido de viabilizar a
finalidade de um sujeito particular – o capital –, agora tem o papel de gestor e executor do
projeto da nação, cuja finalidade é o bem-estar social” (SANTOS, 2001, p. 66). O uso do
Estado e de sua burocracia profissional são os elementos que compõe esta regulação do
mercado em busca do bem-estar social (SANTOS; RIBEIRO; SANTOS, 2009).
O artigo se divide então em três partes, além desta pequena problematização já
desenvolvida. A primeira tem como objetivo salientar rapidamente as concepções
metodológicas desenvolvidas por Guerreiro Ramos e como a Administração Política acaba
por adotar problemas semelhantes a serem enfrentados em Guerreiro Ramos, que não
serviram como preocupação detida pela área e pelos pesquisadores. A segunda defende que a
“mudança paradigmática” do problema da gestão estatal, que é o mote do desenvolvimento
metodológico da área, não significa uma alteração radical de análise e nem o desenvolvimento
de uma especificidade de agenda de pesquisa. Trataremos também do desenvolvimento da
epistemologia e teoria da Administração Política para salientar que a delimitação do papel
estatal no capitalismo é problemática, ainda mais quando busca desenvolver um Estado de
bem-estar social ao qual faz parte do passado dos países centrais e que não foram alcançados
(e dificilmente o serão) pelos países periféricos, se constituindo num anacronismo decorrente
das deficiências metodológicas que a orienta e que não obedece aos pressupostos originários.
Assim, a última e terceira parte busca fazer um apanhado das ideias aqui desenvolvidas e
apontar as contribuições às quais o texto pode levantar.
1. Guerreiro Ramos e os alicerces metodológicos da Administração Política.

Alberto Guerreiro Ramos é um dos mais importantes autores para os estudos


organizacionais no Brasil. Junto com Maurício Tragtenberg, Guerreiro Ramos se constitui em
um dos autores mais referenciados e utilizados dentro da área dos estudos organizacionais
críticos (EOC) pertencentes aos problemas teóricos da Administração e, juntos, ambos
constituem a principal fonte de originalidade e a autonomia “limitada” do pensamento social
brasileiro. Portanto, “Comprovar que no Brasil há uma tradição de EOC autônoma é
importante porque contraria o consenso formado na academia brasileira de que as
epistemologias que inspiram nossa produção científica em estudos organizacionais são
predominantemente importadas” (PAULA et al., 2010, p. 11). Portanto, a originalidade do
pensamento da Administração Política no âmbito brasileiro também é devedora desta tradição
autônoma do campo de estudos da administração.
Por sua vez, os estudos sobre as organizações no Brasil são decorrentes das
preocupações anteriores sobre o desenvolvimento de teorias pós-colonialistas nacionais que
fazia parte do rol de problemas enfrentados por Guerreiro Ramos. Segundo Lynch (2015),
estes se sistematizariam em três aspectos centrais de seu pensamento que perfilam o conjunto
de seus textos. O dilema do homem reativo/operacional e o homem parentético surgem do seu
conjunto de reflexões e que pode ser encontrado no decorrer de seus escritos em vários
momentos.
O primeiro deles se constituiu na atualização da Sociologia brasileira em relação ao
pensamento contemporâneo nos países centrais do capitalismo. Nisto, Guerreiro Ramos
enfrentaria as escolas positivistas que estavam em voga à época nas áreas de pesquisas
sociais, aplicadas ou não. Assim, sua saída foi encontrar em Weber e Mannheim e a
sociologia do conhecimento as respostas necessárias à confiança demasiada apenas em dados
concretos, que orientavam as pesquisas de então.
É desta reflexão aglutinativa que surgirá, mais tarde, a base para a dicotomia entre
necessidade e possibilidade das teorias sociológicas, em que o autor vai problematizar as
relações entre a necessidade estrutural e as possibilidades de ação social dentro desta. Os
dilemas entre a racionalidade instrumental e a racionalidade substantiva ganhavam cada vez
mais estofo teórico (ZWICK et. al., 2012). Desta forma, a originalidade de Guerreiro Ramos
para o pensamento social brasileiro também se constitui no “reconhecimento do caráter
culturalista, relativista e historicista da ciência social impunha ao cientista social a obrigação
de pensá-la à luz das necessidades e particularidades do contexto latino-americano, onde
grassava o semicolonialismo e a dependência cultural” (LYNCH, 2015, p. 28), ideia que não
era estranha a outros pensadores nacionais como Álvaro Vieira Pinto.
O segundo ponto desenvolvido por Ramos foi o estudo e análise do pensamento
autóctone de autores da escola da Cepal, como argentino Prebisch e o brasileiro Celso Furtado
(LYNCH, 2015). Dentro desta corrente do pensamento, o etapismo do desenvolvimento
econômico e social do capitalismo servia como base de análise entre o moderno e o arcaico da
realidade brasileira, numa época de transição da base da economia nacional de exploração
comercial agrária para um país de caracteres urbano-industrial, ainda que incompleto,
caracterizando-nos como um capitalismo atrofiado (CHASIN, 1978).
Guerreiro Ramos buscava então “apropriar-se criticamente das interpretações do
Brasil, a partir da moldura fornecida pela sociologia do conhecimento [...] a fim de separar a
parte útil do nosso pensamento sociológico, comprometida com a autonomia nacional”
(LYNCH, 2015, p. 29). Esta época marca o surgimento das principais convulsões sociais que
iriam definir a história do Brasil e da América Latina, firmando estruturalmente a
dependência econômica e cultural dos países periféricos através de golpes de Estado por via
militar dentro do contexto do combate ao comunismo que caracterizou a Guerra Fria. Este
comunismo que não era e nem foi objetivo do governo Goulart no Brasil, mas sim a
continuação do trabalhismo e do progressismo na defesa da justiça social e autonomia
nacional com seu projeto de nação que o próprio Guerreiro Ramos também problematizava.
O plano trienal de Furtado e o programa de reforma agrária (ou de base) capitaneado pelas
Ligas Camponesas foram o estopim da convulsão que resultou na manutenção de antigos
interesses da burguesia nacional com os países de capitalismo central (RAGO FILHO, 2004).
É exatamente nesta época que a Administração privada ganha corpo no Brasil (COVRE,
1981), através da clara e definitiva associação entre as multinacionais do capital estrangeiro e
a burguesia brasileira, que deixa até hoje marcas na estrutura de classes do país.
O terceiro e último ponto decorre dos limites encontrados nos estudos nacionais
segundo as intenções de Guerreiro Ramos. Para o autor, grande parte dos estudos
desenvolvidos no Brasil não dava conta do problema da atualização necessária aos estudos
sociais de origem dos países centrais e “alienada, se deixara contaminar pela consciência
ingênua, naturalizando a condição semicolonial do país” (LYNCH, 2015, p. 29). O etapismo
social do desenvolvimento nacional marcavam estas teorias, por isso, a necessidade deste
terceiro conjunto de tarefas que se caracteriza em

apreender a dinâmica da sociedade brasileira e o modo como seus intelectuais a


haviam compreendido desde o século dezenove; para tanto, impunha-se um estudo
sobre a circulação ou substituição de elites, capaz de identificar as classes sociais
decadentes e ascendentes no curso da “revolução brasileira”, bem como suas
respectivas ideologias: a conservadora, justificadora do passado de dependência
semicolonial, e a progressista, comprometida com o futuro de autodeterminação
nacional. (LYNCH, 2015, p. 29).

Assim, no contexto em que Guerreiro Ramos se insere historicamente no pensamento


social brasileiro, sua produção acadêmica é eivada e transpassada por estes problemas à
medida que este avança e desenvolve seus próprios postulados e conclusões. A principal
caracterização problemática em seu pensamento sociológico e político constituíram, mais
exatamente, em buscar nas elites nacionais as respostas para a direção do desenvolvimento
econômico brasileiro, como condição para adentrar no contexto universal e autóctone da
produção científica, material e social em patamares semelhante às dos países centrais. Foram
estas mesmas elites ascendentes que apoiaram o golpe de Estado.
Dentre seus estudos mais significativos sobre a questão do método a obra “A redução
sociológica” de 1958 (1996) se destaca até mesmo como um marco do existencialismo
brasileiro (FILGUEIRAS, 2012). Nela, o autor discute principalmente através da
fenomenologia de Husserl a possibilidade e condições de apropriação das teorias e conceitos
elaborados nos países de capitalismo central.
A grande conclusão a que Ramos chega é a de que a experiência histórica e social do
Brasil se torna apagada quando os autores nacionais valem-se das teorias “universais” da
ciência para adaptá-las ao nosso contexto semicolonial. Nesse sentido, a proposta do autor não
é o simplismo de uma decantação ou expurgação dos problemas etnocentristas e seu falso
universalismo teórico, mas principalmente a utilização destes problemas existenciais e
fenomenológicos da condição periférica em busca de autonomização do pensamento social e
político nacional, sendo então menos dirigida e orientada pelos trâmites do pensamento
científico da Europa e dos Estados Unidos e o pensamento imitativo daí decorrente, criando
suas próprias bases metodológicas livres do pensamento ingênuo característico das sociedades
semicoloniais.
Esta utilização da fenomenologia apresenta uma característica peculiar, que iria
culminar no que Lukács chamou como decadência filosófica do irracionalismo moderno, pois
apesar de sua aparência crítica e metódica quanto ao positivismo, eram revestidas pela
consciência burguesa e seu atomismo individualista:

Das robinsonadas clássicas até aquelas que, criticando o existencialismo, chamei de


robinsonadas da decadência, essa concepção dominou até hoje uma parte substancial
da ideologia burguesa; inclusive, apoiada pelas tradições cristãs modernizadas por
Kierkegaard e pela pretensa exatidão da fenomenologia de Husserl, adquiriu também
uma fundamentação pseudo-ontológica: ou seja, o indivíduo isolado seria, no mundo
humano, o fato ontologicamente primário, a base de todo o resto. Com a ajuda de
uma “intuição das essências”, é evidentemente possível pensar todas as relações do
homem, todos os seus vínculos sociais como derivados desse originário, como
criados pelo indivíduo e, portanto, como revogáveis por ele. (LUKÁCS, 1979,
p.143)

Esta crítica serve como ponto de alicerce para demonstrar que a “pretensa exatidão”
que Lukács se refere irá marcar a experiência da redução sociológica de Guerreiro Ramos e,
ao mesmo tempo, indica as conclusões do homem parentético: aquele que consegue,
supostamente, suspender a realidade e criar a sua própria, pois suas relações sociais podem ser
negadas enquanto indivíduo isolado que as criou para si. Isso configura para Lukács uma
arbitrariedade metodológica, pois enquanto a essência do objeto está definitivamente ligada
aos complexos da realidade, ela não pode ser colocada em suspensão. Nesse sentido, as
possíveis diferenciações entre essência, fenômeno e aparência das relações sociais e dos
objetos de estudo sempre constituirão um esforço improfícuo quando se exclui ou suspende a
realidade (LUKÁCS, 1979).
Portanto, vemos o quão problemática é a ideia de Guerreiro Ramos quando defende
que “De fato, a suspensão equivale aqui a pôr as circunstâncias ‘entre parênteses’. O homem
parentético consegue abstrair-se do fluir da vida diária, para examiná-lo e avaliá-lo como um
espectador” (1984, p. 8). Espectador este que não consegue escapar da realidade material que
o cerca, por mais que decida pela reflexão expectadora e especulativa desta realidade. O
caráter burguês de seus fundamentos metodológicos passa por detrás de suas contribuições
originais e isto causa um enorme desserviço quando o autor passa a contribuir decisivamente
para o pensamento administrativo nacional em busca de sua autonomia científica. A confusão
entre emancipação social e suspensão da realidade individual atinge e influencia boa parte do
pensamento organizacional (cf. MOZZATO; GRZYBOVSKI, 2013) e que, até o momento,
não parece ter a fundamentação teórica necessária para se livrar das rédeas da epistemologia
pequeno-burguesa de responsabilização para o indivíduo atomizado que agora consegue
sozinho “autoemancipar” de uma sociedade “alienada” ou estranhada de suas relações sociais,
algo alheio aos próprios escritos de Guerreiro Ramos quando este diz, por exemplo, que: “A
pesquisa de Blauner estriba-se numa colocação errada da teoria de Marx sobre alienação, e
representa, na realidade, a colocação inapropriada de um conceito, isto é, primeiro despoja a
questão da alienação de seu caráter meta-histórico; segundo, admite que ela possa ser
resolvida por meios microrganizacionais” (1989, p. 70).
A conclusão a que se chega pelos estudos que se baseiam em Guerreiro Ramos para a
Administração contradiz a própria lógica dos fatos: ou a sociedade se emancipa do seu
relacionamento social estranhado e, assim, os indivíduos que a compõe e estruturam, ou
passamos a imaginar pretensamente que o “eu” individual está emancipado de sua sociedade,
quando na verdade a sociedade estranhada de seus relacionamentos sociais continua intocada
de seus fundamentos mais básicos de exploração de classe. A sociedade emancipada não
possui classes sociais antagônicas. O problema do “epistemologismo” se faz presente na
ideação/idealização da realidade, como se fosse possível suspender o funcionamento
estruturante da sociedade capitalista e se acomodar, com sua pretensão autoindulgente de
superioridade individual autoemancipada no âmbito micro.
Semelhante problema decorre também da racionalidade instrumental e substantiva
weberiana, que se faz conter como um marco do individualismo exacerbado nas análises
sociológicas e epistemológicas de Guerreiro Ramos e o uso das tipologias ideais para a
construção das suas análises. Assim, nessa situação, a redução sociológica se concentra no
fato de que existe uma atitude metódica ao contrário da atitude natural que não põe em
questão os aspectos diretos dos dados que lhe são oferecidos. Não admite a existência na
realidade social de objetos sem pressupostos sociais de significação valorativa. Postula a
noção de mundo onde a consciência e os objetos estão reciprocamente relacionados com seus
valores referenciados socialmente, e, portanto, depende de sua perspectiva quanto ao objeto.
A redução sociológica não é, portanto, em sentido genérico, primariamente um ato de lucidez
individual e, portanto, é fundamentada numa espécie de lógica material, imanente à sociedade
(o que contradiz suas críticas ao marxismo) numa assimilação crítica da experiência
estrangeira com alta complexidade e diversidade de conhecimentos (GUERREIRO RAMOS,
1996). Assim, a crítica da falta de rigor no uso de metodologias díspares se faz presente em
suas obras usando marxistas para criticar Marx e adotar a postura relativista da realidade
social.
Nas conhecidas polemizações de suas posições com Florestan Fernandes nos mostra
que:

Se, por um lado, Florestan Fernandes procura, nos fundamentos empíricos, por meio
das teorias clássicas, a percepção de elementos para serem logicamente encadeados
numa explicação da sociedade brasileira, joeirando os pequenos dados para formar
um grande painel, por seu turno, Guerreiro Ramos, de certo modo, faz o caminho
inverso: procura, na autenticidade de uma existência particular culturalmente
detectável, uma totalidade a ser formatada com os instrumentos da sociologia
clássica, mas sem o molde de uma teoria construída a partir de uma outra realidade
social, isto é, tenta intuir uma totalidade primeira que será buscada nos elementos
empíricos para recompor uma totalidade já pensada, refletiva, construída com base
numa explicação particular de uma sociedade original. (BARIANI, 2015, p. 22)

Assim, Guerreiro Ramos acaba por individualizar a particularidade da sociedade


capitalista brasileira, possibilitando interpretar os dilemas nacionais desconectados ou
relativamente independentes dos problemas internacionais que se imbricam durante o
processo histórico da constituição do “capitalismo tupiniquim” e que não podem ser isolados
atomisticamente, apesar da “aparência” de correção decorrente destas metodologias de
particularização tipológica de uma sociedade.
O embate indireto com Marx e os marxismos deixa a entender a negação da posição
ontológica e a predileção clara da individualização epistemológica weberiana: “As correntes
de pensamento que hoje prevalecem em matéria de ciência social formal [...] apóiam-se numa
visão sociomórfica do homem, visão que reduz o ser humano a nada mais que um ser social”
(1989, p. 32) ou ainda no elogio à crítica de Habermas e Horkheimer que “esforçam por
demonstrar o erro básico do ponto de vista de Marx sobre a razão como um atributo do
processo histórico. Ambos questionariam o pressuposto de que o desdobramento das forças
produtoras, por si só, conduziria ao advento de uma sociedade racional” (1989, p. 19).
Para fazer uma afirmação deste calibre é necessário relevar toda a crítica histórica e
social de Marx e não entender que o avanço das forças produtivas significa a racionalidade
sobre o domínio das forças naturais pelo homem e não leva à dissolução dos relacionamentos
sociais estranhados e alienados pelas relações econômicas de dominação classista. Marx é,
para Guerreiro Ramos, um economicista e serialista (etapista) decorrente do pensamento
iluminista. O que se apresenta como falso, como aparece em Marx a desconexão entre o
desenvolvimento material e social de uma época: “Na arte, é sabido que determinadas épocas
de florescimento não guardam nenhuma relação com o desenvolvimento geral da sociedade,
nem, portanto, com o da base material, que é, por assim dizer, a ossatura de sua organização”
(MARX, 2011, p. 62).

2. A Administração Política: epistemologia e deslocamento de conceitos-objetos.

Há até aqui a indicação dos limites aos quais os elementos constitutivos do método se
problematizam com o objeto. A noção de parênteses da realidade material do pesquisador o
possibilita olhar distanciado (ou cientificamente resignado) que caracterizaria a possibilidade
de suspensão dos interesses pessoais do pesquisador ao analisar os fatos. Entretanto, este
problema não aparece claramente nos estudos da Administração Política, apesar de adotá-los
sem ter plena consciência de tal fato.
Essa defesa decorre, ao nosso entender, de um problema metodológico da própria
incompreensão da episteme adotada, que incorrerá na defesa da Administração Política como
um campo próprio pertencente à ciência administrativa. Ao construir conceitos através
questionamentos que não faziam parte das preocupações do autor abordado para erigir seu
método, Santos (2001) desloca o processo de construção do método do autor e força a
abertura de um campo de estudos pela mudança concernente à especificação do objeto de
estudo e não pela forma de método sistemático pelo qual Guerreiro Ramos define como a
redução sociológica. Para Guerreiro Ramos (1996, p. 42) “A redução sociológica é um
método destinado a habilitar o estudioso a praticar a transposição de conhecimentos e de
experiências de uma perspectiva para outra. O que a inspira é a consciência sistemática de que
existe uma perspectiva brasileira”. A noção de perspectivas, ou diferenças de ponto de vista,
será essencial para Santos, para a Administração Política e a criação da agenda de estudos
teóricos, metodológicos e casuísticos da área.
De tal modo, a Administração Política altera o objeto de estudo, mas comete o erro do
método ao qual se baseia, sem se alentar para tal ocorrência. Isso acontece porque seus
autores desenvolvem suas teorias sem se preocupar detidamente com a adequação do método
desenvolvido por Guerreiro Ramos, que se orienta para a utilização de conceitos externos para
adequá-los à realidade brasileira e não somente uma alteração da perspectiva dos objetos em
estudo. Necessário lembrar aqui que para Guerreiro Ramos não existe probabilidade de
repetições dentro da realidade social. O sentido de um objeto jamais se dá desligado de um
contexto determinado (1996).
Essa forma inapropriada da construção de suas bases epistemológicas acaba também
por se estruturar dentro do problema colocado e assim não definir acertadamente o objeto ao
qual se dispõe a investigar. Assim como colocou Guerreiro Ramos (1989, p. 71):

A colocação inapropriada de conceitos contamina, presentemente, o campo da teoria


organizacional, e ocorre quando a extensão de um modelo de teoria ou conceito do
fenômeno a ao fenômeno b não se justifica, após minuciosa análise, porque o
fenômeno b pertence a um contexto peculiar, cujas características específicas só
limitadamente correspondem ao contexto do fenômeno a.

Portanto, qual ou quais são as colocações inapropriadas do conceito de Administração


Política? O primeiro grande problema é esperar respostas dos autores pelas quais as perguntas
dirigidas não foram objeto de preocupação, direta ou indireta, do autor e, portanto, sobrariam
somente “pistas” do que é a política para a Administração, ou seja, qual a intenção que orienta
os estudos da ciência administrativa. Sinal de tal fato aparece quando Santos afirma que
“Embora não seja explícito, parece óbvio que Taylor, diferentemente de muitos outros
teóricos, considera a gestão o verdadeiro objeto da administração” (2001, p. 54, ênfases
nossas). Se esta não era a intenção do autor (detenção e organização do trabalho operário
dentro do processo produtivo feito também por outros trabalhadores especializados), não há a
possibilidade da clareza de resposta para uma pergunta que não era a centralidade dos
questionamentos de Taylor.
O segundo grande problema em sua conceituação se situa no fato de que nem mesmo a
atitude parentética de Guerreiro Ramos seja observada na análise dos relacionamentos sociais
em uma economia capitalista. Como afirma Santos na passagem do capitalismo industrial para
o capitalismo monopólico: “Então surge a economia pura baseada no método dedutivo e no
positivismo científico, abandonando, assim, toda e qualquer subjetividade na análise dos
aspectos econômicos, ou seja, qualquer juízo de valor ou conotação ética” (2001, p. 53).
Sejam elas éticas ou não, o fato é que não há moralidade intrínseca nos relacionamentos
econômicos das trocas realizadas pelo mercado, pois suas relações são aparentemente
econômicas, apesar de estarem atreladas a todo um fundo de relacionamento entre classes
sociais antagônicas que definem a posição social (não sua consciência) no contexto da luta de
classes. Se é neste contexto que surgem os principais estudos que possibilitariam o
surgimento da Administração, não há que se esperar que os relacionamentos baseados na
troca entre a força de trabalho pelo salário sejam baseados na ética ou na moral humanista,
mas sim na racionalidade econômica instrumental que é o interesse velado de uma classe
social. A racionalidade substantiva da condolência ética e moral não obtém espaço no
ambiente industrial de negação da qualidade autenticamente humana do trabalho como forma
sustentação social em que a classe do trabalho perde o controle dos seus meios de produção e
até mesmo da sua forma de execução, transposta aos cuidados dos especialistas da
organização racional do trabalho e dos estudos da fadiga humana para a partir de então não
mais se alterar em seus fundamentos teóricos e práticos.
Da entrada do capital monopolista, passando por teorias econômicas positivistas,
Santos chega à conclusão que os primeiros sinais mais claros do que seria a Administração
Política começam a tomar forma nas ciências sociais. Outro anacronismo interessante se
apresenta: ao defender que o objetivo da Administração Política é o bem-estar social, Santos
aparentemente não pondera que a publicação de Herbert Simon em 1947 já se dava no
contexto de aplicação da política econômica reformista de Keynes, com o pós-guerra
sustentando as taxas de lucros dos capitais monopolistas enquanto relegavam algumas
concessões à classe do trabalho como estabilidade no emprego, salários melhores e
diminuição (provisória) das desigualdades de renda e isso através do controle econômico dos
países dependentes da economia periférica tanto em seu mercado interno quanto externo no
processo de trocas no mercado mundial.
Entretanto, Santos cai no terceiro problema referente ao contexto das ideias defendidas
pelos sociólogos e filósofos prediletos de Guerreiro Ramos e a crença de que a racionalidade
instrumental é, por si, neutra. Herbert Simon exemplifica esta neutralidade axiológica ao
apresentar a ideia de que “[...] a administração é uma ciência que visa à conquista de
objetivos. Nesse caso, o ‘bom’ e o ‘mau’ não significam ‘bom’ para humanidade e ‘mau’ para
a humanidade; significam que uma ação é boa quando consegue atingir os objetivos
predeterminados com eficiência e é ruim quando não o faz” (2001, p. 57). O próprio Santos
não percebe que essa eficiência serve exatamente ao dono do capital e o aumento de sua
produção e, portanto, adota o interesse da classe dominante apesar de toda a aparente
neutralidade dos objetivos “comuns” dos que participam de tal organização.
Assim, chegamos ao ponto central da questão movente do texto:

[...] não há dúvida que Alberto Guerreiro Ramos é o autor clássico que mais se
inquieta com o estágio atual da administração em relação às questões substantivas da
realidade social do mundo capitalista. É isto que vai motivá-lo a escrever A nova
ciência das organizações (Ramos, 1989). No livro A redução sociológica (Ramos,
1965) já são visíveis os sinais de preocupação, quando Guerreiro Ramos discute os
critérios de avaliação do desenvolvimento. Admite Guerreiro Ramos que a
preocupação em se organizar e determinar as relações sociais no âmbito
sociedade/Estado não é encontrada em modelos de gestão baseados na administração
e na economia política, e sim nas ciências sociais que são chamadas para explicar
em que consiste o desenvolvimento, assim como os meios para alcançá-lo. Embora
próximo, Guerreiro Ramos foi incapaz de perceber que “os meios para alcançar o
desenvolvimento” representam o conteúdo próprio da administração política, que
nada mais é senão o gerenciamento feito pelo Estado, nas suas relações com a
sociedade, para edificar uma certa materialidade visando alcançar as finalidades
expressas no bem-estar de uma sociedade ou da humanidade. (SANTOS, 2001, p.
59)

Aqui a confusão se torna patente. De preocupações com a sociologia política e o


desenvolvimento autônomo nacional (que não é devidamente esclarecido em seu contexto de
elaboração) diante dos movimentos de associação dos capitais monopolistas no Brasil durante
a época do imperialismo norte-americano, Guerreiro Ramos passa inadvertidamente sobre o
problema da Administração Política exatamente porque esta não era a intenção do autor.
Guerreiro Ramos não conseguiria elaborar a questão primordial da perspectiva de um novo
objeto de pesquisa, pois “Embora jamais queira negar a economia de mercado, acha, porém,
que a nova ciência das organizações deve ter por base a racionalidade substantiva,
incorporando valores e fundando-se na livre experiência das realidades e de sua precisa
articulação.” (SANTOS, 2001, p. 60). A contradição de Guerreiro Ramos em colocar rédeas
no comportamento predatório das relações de mercado com a entrada da racionalidade
substantiva estará, a partir de então, presente ao decorrer de todo o texto de Santos, mas agora
transpassada para o Estado e para a Administração Política e não mais para as organizações.
A intenção precípua de Guerreiro Ramos era questionar e dar respostas para o
problema do subdesenvolvimento nacional e da enorme disparidade da distribuição da riqueza
no Brasil, junto com os problemas sociais característicos da história social do país. A busca
era pela autonomia econômica e social que viriam do desenvolvimento industrial do
capitalismo brasileiro, alçando o país aos mesmos patamares de acumulação impresso pelas
economias centrais no mundo. A racionalidade substantiva entra em contexto exatamente
porque, na situação de um país periférico e de economia dependente, a forma pela qual a
reprodução sociometabólica do capitalismo brasileiro adota é a superexploração da força de
trabalho (MARINI, 1971, 2008) como mecanismo de compensação das perdas entre as trocas
no mercado mundial tanto pelas commodities quanto dos produtos industrialmente nacionais
inferiores. Disto também decorreu a agudização da luta de classes do período de 50-64 no
Brasil, marcado por enormes desigualdades econômicas e sociais enquanto as elites burguesas
nacionais se associavam aos interesses comerciais do imperialismo. Guerreiro Ramos busca
as respostas tentando desvendar como as relações sociais de classe antagônicas da produção
material se comportam em países dependentes. Essa questão também está totalmente ausente
nos estudos de Santos. Sem a categoria da superexploração da força de trabalho como
característica estruturante das sociedades periféricas fica extremamente difícil compreender
como a questão não passa, pura e simplesmente, por uma substantivação das relações sociais
em economias de mercado através da regulação estatal das relações sociais. Ela passa pelas
próprias condições materiais de sustentação da lógica de reprodução do capital no Brasil
(AMARAL; CARCANHOLO, 2012) e, portanto, são as estruturas econômicas e de classe
sociais do país que estão em disputa e não somente uma moralização ética de seus postulados.
Reformar o capitalismo é o alvo e, como a própria condição histórica apresentou com o
desmonte do Estado a partir do neoliberalismo da década de 90, é cometer o mesmo erro. O
problema epistemológico levantado surge então com total força: apesar de Guerreiro Ramos
buscar uma interpretação da sociedade brasileira através das tipologias ideais (de onde surge a
discussão do jeitinho brasileiro diante dos formalismos, que aqui não são funcionais), isto
atinge de forma clara a perspectivação epistemológica de Santos.
Ora, quando Guerreiro Ramos formulou esse pensamento em direção à fundação de
uma nova ciência das organizações, imaginava-se que fosse romper em definitivo
com o velho paradigma e efetivamente fazer da administração um novo campo
disciplinar, que até aquele momento ela não fora pelo simples fato de não ter um
objeto de estudo e um método próprios. Esse rompimento não ocorre pelo simples
fato de o autor ainda considerar que o objeto da administração é a organização.
Como, no nosso modo de ver, o objeto se cristaliza no conteúdo da gestão, então
Guerreiro Ramos não constrói uma nova ciência da administração, mas
simplesmente continua falando da mesma coisa utilizando-se de novas categorias
analíticas. De igual modo, quando ele fala que essa nova ciência “envolve o
planejamento e implementação de um novo tipo de estado” era de se esperar que
estivesse se aproximando do conceito de administração política — gestão das
relações sociais — e do conceito de administração profissional — mediante a gestão
das organizações. (SANTOS, 2001, p. 60-1)

Neste caso, a crítica se volta ao crítico. Quando Santos defende que o objeto da
administração não é a organização (aqui entendido como a empresa capitalista) e sim o
conteúdo da “gestão”, o autor acaba fazendo a mesma operação que Guerreiro Ramos. Muda
a perspectiva do objeto, mas ao invés de alterar toda a conceituação teórica que fundamenta
suas afirmações, Santos defende indiretamente que a gestão das organizações privadas não
envolve ou não é preocupada, em certo sentido, com a gestão das relações sociais dentro do
ambiente organizacional. Ela é consequência destas mesmas relações sociais amplas do
capitalismo e que também perpassam a esfera estatal. São determinações recíprocas.
A real alteração que aqui acontece é sair da perspectiva microrganizacional para a
macrorganizacional no ambiente estatal e societal. Esta é a real mudança paradigmática,
apesar de Santos defender a mesma coisa com a diferença em que uma é medida pela
racionalidade instrumental enquanto a outra deveria ser balizada pela racionalidade
substantiva em busca do propalado bem-estar social. Entretanto, em suas relações materiais
efetivas não há nenhuma diferenciação feita pelo autor entre a gestão da coisa pública para a
gestão privada do nível microeconômico. Tautologia, pois burocratas também são
administradores profissionais, mas investidos em cargos públicos, apesar de não buscarem a
autovalorização do capital pela venda de mercadorias. Os burocratas e outros profissionais
estatais são movidos, em geral, pelos mesmos interesses de fundo da relação entre Estado,
mercado e organizações: são interesses individuais e privatistas. A diferença é que eles
gestam a máquina estatal, não o Estado. Defender tal ideia esquece que a definição da política
macroeconômica obedece critérios políticos na luta entre interesses públicos e privados e não
critérios substantivos em busca da sublimação. Sublimação essa que faz parte da ideologia
pequeno-burguesa e weberiana. A contradição chega a tal ponto que todas as profissões que
entram no processo de construção do bem-estar social passam a ser “administradores
políticos”. A diferença essencial (que nem é diferença estritamente falando para o autor) se
constitui apenas no fato de que: “no limite, pode-se dizer que o bacharel em administração
está mais capacitado do que os demais profissionais para coordenar certas atividades durante a
execução da base técnica do projeto da nação; talvez nada mais do que isso!” (SANTOS,
2001, p. 67). Então a ciência administrativa se reduz à aplicação de conceitos de áreas
correlatas e não uma ciência autônoma, disciplinada.
Como é perceptível em seu texto, o próprio autor chega a arranhar o problema desta
diferenciação entre público e privado, para depois abandonar de vez e não voltar a ele:
“Embora as organizações/instituições constituam o gênero que contém elementos essenciais
do objeto da disciplina administração, elas são espaços particulares onde apenas habita o
objeto. A essência perpassa o espectro das relações sociais internas às organizações e se
estabelece nos limites das relações sociais mais amplas, portanto, no âmbito da sociedade.”
(SANTOS, 2001, p. 62).
Assim, o que dá status à administração enquanto ciência é “Pura e simplesmente, a
gestão. Assim, cabe à administração estruturar um modelo de gestão viabilizador do objetivo
da organização.” (SANTOS, 2001, p. 63). Então aqui temos duas formas de gestão (não
idênticas e de funcionamento essencialmente diferentes) que irão pautar sua igualdade sempre
nos objetivos “maiores” da organização. Na empresa capitalista sabemos que o que move a
produção é a autovalorização expansiva do capital privado. E na esfera estatal e pública, o
autor faz um ajustamento arbitrário:

Como as relações sociais devem convergir para a finalidade, que é a sublimação do


corpo/alma e da mente/espírito, e isso é perseguido através da orientação e
cooperação de (entre) diferentes campos da ciência, podemos encontrar nesse espaço
o objeto que é próprio da disciplina administração e, assim, apreender a essência de
seu papel cooperativo para o alcance do desiderato do conhecimento e do
desenvolvimento econômico, que é o bem-estar pleno da humanidade [...] Desse
modo, se a economia política, no plano da materialidade humana, responde pelo
“que” e “por que” fazer, ou seja, pelas possibilidades da produção, da circulação e
da distribuição de bens materiais, a administração política tende a responder pelo
“como” fazer, ou seja, pela concepção do modelo de gestão para se chegar à
finalidade. Conceber a gestão da materialidade das relações sociais constitui o
objeto, portanto a essência, da administração. Aqui temos o campo próprio da
ciência da administração: a administração política. (SANTOS, 2001, p. 63-4).

Dentro das mesmas verdades invariáveis da econômica política clássica e seus fatores
produtivos, temos agora a responsabilidade do “como” fazer a gestão macroeconômica
funcionar de modo ético e responsável, apesar da imperfeição das relações “puras” de
mercado continuarem a existir na materialidade. Não aparece em momento algum como
acabar com a exploração de uma classe pela outra, mas “como” controlar a selvageria do
mercado imperfeito e sua necessidade de exploração econômica no qual as perguntas que
ficam à cargo da economia de livre mercado já definiu o “que” e “por que” produzir:
mercadorias que geram mais-valor para o empresário reaplicar em seu negócio. É a
cristalização efetiva das afirmações contidas em Marx (2013) sobre a tendência à acumulação
e concentração de capitais diante da disputa da valorização através da exploração da força de
trabalho. Ou então seria interessante lembrar que “o modo determinado de participação na
produção determina as formas particulares da distribuição, a forma de participação na
distribuição” e que, portanto, “A articulação da distribuição está totalmente determinada pela
articulação da produção [...], já que somente os resultados da produção podem ser
distribuídos” (MARX, 2011, p. 47).
A questão passa pela regulação do sistema capitalista, ou seja, o “como” da
Administração Política significa que é possível produzir sem exploração da força de trabalho?
Como isso seria possível, já que os detentores dos meios de produção podem escolher o “que”
e “por que” produzir? O “como” se torna mais o detalhe do que a essência da organização do
processo produtivo, já que técnicas de gestão “humanizadas” ganham força na década de 30
durante a crise mundial do capital, exemplificado pelas experiências de Hawthorne
publicizadas e analisadas por Mayo. Este “como” produzir já e feito pela Administração
privada e estatal e não tem a capacidade de alterar as relações sociais de fundo, apesar de
assim Santos creditar ao Estado. De forma arbitrária, pois ele detém o monopólio da força,
mas não o monopólio da produção material que definirá a parte de sua distribuição, troca e
consumo posteriores. Na verdade, o Estado vive da colaboração financeira entre explorador e
explorado para garantir seu funcionamento parasitário e improdutivo para, dali, tirar sua
política econômica onde, até o momento, não houve grandes alterações na política classista do
Estado. Ele defende o capital ou o trabalho, através de seus representantes políticos.
Entretanto, dado a posse dos meios de produção da riqueza material, usa seu poder econômico
para agir em defesa dos seus próprios interesses privados e tem a capacidade de pautar o
debate político, econômico e social do país. Assim como Marx (2013, p. 808) defende:

Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capital e no outro
como pessoas que não têm nada para vender, a não ser sua força de trabalho.
Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção
capitalista, desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e
hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e
evidentes por si mesmas. A organização do processo capitalista de produção
desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação
relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário, nos
trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda
exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o
trabalhador. A violência extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada,
mas apenas excepcionalmente. Para o curso usual das coisas, é possível confiar o
trabalhador às “leis naturais da produção”, isto é, à dependência em que ele mesmo
se encontra em relação ao capital, dependência que tem origem nas próprias
condições de produção e que por elas é garantida e perpetuada.

Portanto, é interessante que Santos utilize em suas análises três variáveis que afetam
seu modelo: a sociedade sem classes que busca não o rompimento com o capital, mas o bem-
estar como finalidade (nada mais que a lei naturalizada da produção capitalista), pois não fala
em antagonismo entre capital e trabalho como o fundamento social das desigualdades que
quer reformar, mas numa sociedade em nível altamente abstrato e que só por que o autor
assim afirma, busca o bem-estar como finalidade. O Estado que é a mediação pela qual a
finalidade do bem-estar é politicizada, sem luta de classes, sem disputas de interesses
mesquinhos e sem disputa econômica e, por último, é a dimensão do próprio capitalismo em
que, segundo as palavras do autor “no contexto atual, é o modo de produção responsável pela
concepção e operacionalização da base técnica e operacional para se alcançar o bem-estar”
(2001, p. 65). Operacionalizar o bem-estar com o capitalismo é algo ainda a se ver, pois
apesar de produzir cada vez mais em menos tempo, a classe do trabalho continua trabalhando
cada vez mais e de forma mais intensa. O bem-estar fica do lado de fora da organização em
suas horas de descanso. No mais, a exploração de classe continua em seus profundos alicerces
históricos, sociais e econômicos.
É aqui que as contradições se manifestam com total clareza: “a oportunidade para
construção de um projeto de nação em busca da finalidade ocorre porque a dimensão do
capitalismo responsável pela base técnica e organizativa para se alcançar a finalidade social
não cumpre seu papel, pois sua finalidade é distinta, porque particularizada”   (2001, p. 65).
Assim, Santos defende que cabe à economia política o redirecionamento do modo de
produção capitalista em busca do bem comum e não do interesse privado. Interessante
afirmação, dado que o controle do capital não se dá pelo Estado, mas pelas próprias relações
privadas pela qual o Estado e o Direito cumprem seu papel de assegurar. O que Santos faz é
uma transfiguração da função e do papel do Estado: “Em vez de ser instrumentalizado no
sentido de viabilizar a finalidade de um sujeito particular — o capital —, agora tem o papel de
gestor e executor do projeto da nação, cuja finalidade é o bem-estar social” (2001, p. 65).
Seria interessante propor a revolução que possibilitasse a socialização dos meios de produção
de uma vez e o controle destes por meio de associações comunitárias autossuficientes. O
objetivo da reforma é totalmente ilusório porque não possui caráter definitivo e sim
transitório, podendo ser aceito ou não, como aconteceu com a própria noção de bem-estar
social que, hoje, começa a ser defendida por economistas redistributivistas como Thomas
Piketty. Reforma sem revolta. Mantendo a mesma estrutura social de dominação e exploração
do homem sobre o homem, das classes capitalistas sobre as classes trabalhadoras. Mais uma
tentativa de criar uma mola na contenda histórica insuperável em seus próprios termos.
O que se configura, então, na colocação inapropriada do conceito da gestão da
Administração Política? O conceito de gestão que não responde aos conteúdos específicos e
diferenciados entre as esferas privadas e públicas (que não necessariamente tem o interesse no
público, apesar de assim serem entendidos pelo autor) e que coloca ao Estado uma tarefa que
compete aos movimentos históricos da luta de classes. Assim, ao invés de denunciar a
continuidade da exploração do trabalho pelo capital, ele se estende sobre a continuidade no
poder estatal, reflexo dos interesses econômicos de classe e, assim, “para que exista
continuidade é preciso pressupor um Estado ditatorial, no qual haja efetiva hegemonia de um
único partido que garanta a continuidade de um único governo. Porém, esta não é tese
defendida pelas democracias formais e hegemônicas” (2001, p. 68). Basta lembrar que, no
Brasil, a continuidade da elite burguesa se sustenta aos moldes alternados entre democracia e
autoritarismo pelo próprio Estado, sem mudar os fundamentos que erigiram e possibilitaram
tal situação. Apesar de alternâncias desde a redemocratização, as classes sociais dominantes
se mantém intocadas em seus privilégios históricos, econômicos e sociais (MEDEIROS;
SOUZA; CASTRO, 2014). Portanto, o fenômeno do Estado como controlador do capital é, na
verdade um “fenômeno b pertence a um contexto peculiar, cujas características específicas só
limitadamente correspondem ao contexto do fenômeno a” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.
71). A cada crise que o capital sofrer, o desmonte do estado de bem-estar social virá através
da luta de classes e assim, a esfera dos fenômenos do Estado e da esfera pública atendem
apenas limitadamente à tentadora proposta reformadora da Administração Política sob égide
do capital.

3. Conclusões e apontamentos críticos.

O texto apresentado propôs enfrentar um problema candente no método da


Administração Política. A questão do método. A intenção foi demonstrar que o
epistemologismo que Santos defende para a construção de um campo autêntico e disciplinar
da ciência administrativa precisa de análises mais aprofundadas sobre os problemas que estão
dentro da própria metodologia de Guerreiro Ramos.
Na verdade, a segunda parte do estudo tentou demonstrar que, apesar de ser um autor
altamente cotado na área da Administração, isso não significa que seus pressupostos
metodológicos e teóricos sejam críticos ao capital, conquanto se fundam apenas na crítica
social pequeno-burguesa de romantização das relações sociais. A fenomenologia
existencialista de Guerreiro Ramos não atende corretamente às necessidades de entendimento
da realidade, criando modelos pré-concebidos que irão paulatinamente se ajustar aos casos
encontrados e pesquisados. O seu processo “tenta intuir uma totalidade primeira que será
buscada nos elementos empíricos para recompor uma totalidade já pensada, refletiva,
construída com base numa explicação particular de uma sociedade original” (BARIANI,
2015, p. 22), ou seja, os modelos e teorias do homem organizacional (1984) chegam pré-
concebidos pelo próprio autor antes das análises das condições materiais que suportem tais
afirmações.
Resquícios de tal composição metodológica estão compostas em grande parte do texto
de Santos, onde estabelece os princípios metodológicos (espistemológicos) de forma que lhe
mais aprouver, utilizando questões fora da própria temporalidade a qual acusa Guerreiro
Ramos de não se atentar. Assim, fazendo perguntas que nunca serão respondidas, vai
buscando em cada um dos autores as ideias que melhor se encaixam no processo já pré-
concebido e arbitrário de definição do bem-estar social como finalidade última da sociedade,
que busca na sublimação a felicidade de poder continuar em seu mundo pequeno-burguês,
enquanto a realidade insiste em teimar contra suas proposições e sua consciência limpa e
resignada de sua emancipação individual de um mundo instrumental racional. Cabe então o
esclarecimento da sociedade de que seus propósitos estão errados, como os pensadores
revolucionários, os movimentos sociais e sindicais já vêm denunciando a mais de século: a
exploração do trabalho e o estranhamento das relações sociais e sociedades de classes
antagônicas e com interesses fundamentalmente diferentes. Assim, a proposta de Santos não
vai muito além de um anacronismo de propor um modelo estatal que não mais corresponde
aos ensejos do capital globalizado, onde os Estados são reféns de especuladores financeiros
que decidem onde investir o seu dinheiro no capital produtivo. A ideia de um estado de bem-
estar social foi ensaiada com o chamado novodesenvolvimentismo nas últimas gestões
governamentais que agora sofre pelo mesmo erro da esquerda nacional de 64: acreditar que é
capaz de controlar as frações e interesses do capital privado em busca da justiça e do bem-
estar social. A história se repete, e dessa vez como farsa e não mais a tragédia do Golpe
Militar.
É necessário, portanto, repensar a gama de autores selecionados e buscar de forma
efetiva a compreensão entre um relacionamento complexo, contraditório e que não pode ser
colocado em esquemas interpretativos fixos característicos dos tipos ideais, pois a realidade
material está em constante mutação e é a ela a quem a ciência deve responder.

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i
Professor do Departamento de Administração da Universidade Federal de Juiz de Fora – campus Governador
Valadares. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
1  
 

Teoria Organizacional numa perspectiva crítica na formação de Sanitaristas para a


Gestão em Saúde Coletiva

Maria Clara Vieira Weiss1


Ruth Terezinha Kehrig2

Resumo
O artigo tem por objetivo apresentar uma experiência teórico-prática no ensino das teorias
organizacionais na formação de bacharéis em Saúde Coletiva. A resposta à questão – de que
introdução às teorias das organizações o Sanitarista precisa em sua formação –, no contexto
de um sistema universal de saúde e de proteção dos direitos sociais, implica uma aproximação
ao pensamento crítico na grade curricular da disciplina, para pautar o aprendizado de uma
administração política  voltada para as transformações sociais e mudanças organizacionais dos
serviços de saúde. O conteúdo programático da disciplina propicia discussões temáticas
utilizando conceitos como liderança; autogestão, etnografia crítica, práticas organizacionais
verticais e horizontais, modelos de gestão gerencial e societal, e a perspectiva histórica e
multidimensional nas análises das organizações. Essas reflexões contribuem no
fortalecimento dos processos de democratização da gestão das políticas públicas, na
organização dos serviços públicos e na reconstrução das expressões da área de Política,
Planejamento e Gestão em Saúde no campo de conhecimentos e práticas da Saúde Coletiva.
Inclusive, por coerência com o referencial epistemológico do próprio campo da Saúde
Coletiva.

Palavras chaves: Organização e Administração, Administração em Saúde, Gestão em Saúde

                                                                                                                       
1
 Weiss,  M.C.V.  Nutricionista,  Doutora  em  Ciências    pela  ENSP/FIOCRUZ.  Pós-­‐Doutorado  no  PPGA/UFRGS  e  na  
EBAPE/FGV.  Professora  Titular  da  Universidade  Federal  de  Mato  Grosso,  Instituto  de  Saúde  Coletiva.  
2
 Kehrig,  R.T.  Administradora,  Doutora  em  Saúde  Pública  pela  USP.  Professora  Adjunta  da  Universidade  Federal  
de  Mato  Grosso,  Instituto  de  Saúde  Coletiva.  Coordenadora  do  Programa  de  Pós-­‐Graduação  em  Saúde  Coletiva.  
 
 
2  
 

Introdução
O texto trata de uma experiência de ensino das teorias organizacionais na graduação
em Saúde Coletiva que incorpora o pensamento crítico em seu referencial. A opção por uma
teoria organizacional numa abordagem crítica enquanto fundamento para a gestão em Saúde
Coletiva vem contribuir com a formação de Sanitaristas para a análise e transformação das
organizações e dos serviços de saúde, aproximando-se de uma epistemologia da
administração pública, de forma coerente com a epistemologia da constituição do campo de
conhecimentos e práticas da Saúde Coletiva.
A formação de Sanitaristas enquanto bacharéis em Saúde Coletiva é uma realidade que
vem acontecendo no Brasil nos últimos anos. Em 2014 havia dezessete cursos em
funcionamento em todas as regiões do país, dos quais dezesseis em universidades públicas,
sendo dez federais e seis em universidades estaduais, e um curso em universidade privada
(FGSC/Abrasco, 2014).
Os Cursos de Graduação em Saúde Coletiva (CGSC) visam formar profissionais
focados nas principais necessidades em saúde da população brasileira e no Sistema Único de
Saúde. Os Sanitaristas se auto-definem como uma nova força mobilizadora do processo de
Reforma Sanitária Brasileira, comprometidos com os princípios e valores éticos e políticos
que inspiram tal Reforma (CASTELLANOS et al., 2013).
A denominação dos cursos de graduação em Saúde Coletiva no Brasil foi tributária da
constituição do campo científico e de práticas da Saúde Coletiva vinculado ao processo da
Reforma Sanitária Brasileira. O campo de conhecimento da Saúde Coletiva foi constituído a
partir do movimento internacional da Medicina Social na Europa de 1848. Os estudos
brasileiros de Donnangelo e Pereira (1976) e de Arouca (2003) foram precursores no pensar
sobre um novo campo paradigmático para a Saúde Pública. O objeto da Saúde Coletiva “[...]
compreende a investigação dos determinantes da produção social das doenças e da
organização dos serviços de saúde, e o estudo da historicidade do saber e das práticas sobre os
mesmos” (PAIM, 1982, apud PAIM; ALMEIDA Fº, 2000, p.61).
O arcabouço teórico-conceitual e epistemológico da Saúde Coletiva e os desafios da
Reforma Sanitária e do Sistema Único de Saúde (SUS) compõem a base argumentativa da
formação do bacharel em Saúde Coletiva (BOSI; PAIM, 2010). O profissional Sanitarista tem
sua formação no Brasil ancorada nas três áreas que compõe o campo científico e âmbito das
práticas da Saúde Coletiva: Ciências Sociais e Humanas em Saúde; Epidemiologia; e,
Política, Planejamento e Gestão de Saúde. Assim, também nessa última área do campo, onde
se inserem as teorias organizacionais, a aplicabilidade do conhecimento administrativo na
formação do sanitarista considerou o campo de práticas e de conhecimento da Saúde Coletiva,
que é delimitado como campo de conhecimento a partir da matriz teórico-conceitual do
Movimento Sanitário (NUNES, 2014), na perspectiva de formação de intelectuais orgânicos
(GRAMSCI, 1982) e produção de conhecimentos inerentes à Reforma Sanitária e à
implantação do SUS, promulgado na Constituição Brasileira (BRASIL, 1988).
Os pressupostos doutrinários do direito democrático de cidadania à saúde, com
garantia do acesso universal e igualitário, e a integralidade da atenção prestada conforme
necessidades da população, implicaram uma política de Estado para a saúde e um conjunto de
iniciativas no âmbito das instituições, serviços de saúde e grupos sociais.
A fundamentação dos processos de municipalização e descentralização, voltados para
a adoção de modelos assistenciais, de planejamento e gestão alternativos no referencial
teórico da filosofia da práxis – dialógica, plural e comunicativa –, baseada em Gramsci e
Habermas, evitaria apenas a conexão política e que o “otimismo da prática” não caísse no
idealismo ou no voluntarismo (FLEURY, 1997).
 
 
3  
 

Entretanto, a descentralização foi uma das únicas propostas da Reforma Sanitária


Brasileira que não encontrou resistência no contexto das políticas neoliberais das décadas de
1980 e 1990, uma vez que a descentralização vinha ao encontro da redução do aparelho de
Estado. Tanto foi assim que a descentralização fez parte do acordo da frente municipalista da
saúde com o centrão – força política de direita majoritária na Assembleia Constituinte de
1986 a 1988 – (KEHRIG et al., 2014).
A configuração do campo de atenção à saúde a partir da produção social dos conceitos
de direito e descentralização (MISOCZKY, 2002) nos apontou a necessidade de maior
aprofundamento e possibilidades epistemológicas nas abordagens da área de políticas,
planejamento e gestão em saúde para a formação do Sanitarista nos cursos de graduação, a
partir de intercâmbios da pós-graduação em Saúde Coletiva, em particular, pesquisas numa
perspectiva de avaliação construtivista interpretativista, particularmente na temática da gestão
em saúde indígena (MISOCZKY, 2005; WEISS; BORDIN, 2013).
O trabalho tem por objetivo apresentar uma experiência teórico-prática no ensino das
teorias organizacionais para a formação de Sanitaristas, ao pretender propiciar nesse perfil
profissional a análise crítica e transformação das práticas gestoras em Saúde Coletiva.

Cenário Inicial
O Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (ISC/UFMT)
iniciou seu curso de graduação em Saúde Coletiva no ano de 2010. Em sua grade curricular
consta a disciplina “Introdução às Teorias Organizacionais”, ofertada no segundo semestre.
O projeto pedagógico do curso de graduação em Saúde Coletiva da UFMT desenhou a
ementa da disciplina que trabalha com uma introdução às teorias das organizações no Curso,
contemplando: para além dos principais componentes internos de uma organização –
objetivos, tecnologia, divisão do trabalho, estrutura, poder, informação, cultura, etc. – e das
conceituações e inserções na sociedade das teorias das organizações, também as mudanças
organizacionais – determinantes, consequências, estratégias de reação, manutenção e
mudanças, e o papel do gestor –; cultura administrativa no Brasil, especificidades do setor
público e privado das organizações; e, a complexidade das organizações de saúde
(ISC/UFMT, 2010).
A questão colocada foi: de que introdução às teorias das organizações precisa em sua
formação o Sanitarista? Essa disciplina no seu início programada com 108 horas-aulas (sendo
dois terços de aulas teóricas e um terço de práticas), responde pela fundamentação teórica
para as disciplinas mais gerenciais dos próximos semestres: organização do sistema de saúde,
planejamento de saúde, gestão de sistemas e serviços de saúde, gestão de processos e gestão
do trabalho.
Ressaltamos o compromisso com a cidadania na formação do Sanitarista, um
profissional com perfil de ser capaz de conhecer e intervir sobre os problemas/situações de
saúde-doença mais prevalentes, com ênfase na sua região de atuação, identificando as
dimensões políticas, sociais, culturais e históricas de seus determinantes, como também ser
promotor da saúde integral do ser humano (ISC/UFMT, 2010).
Considerando que a realização de ações de saúde, enquanto respostas sociais à
população, dá-se no espaço organizacional onde operam os sujeitos da ação, Kehrig (2001)
aproxima-se de alguns autores que contribuem na abordagem desse espaço: o modelo
burocrático de Weber (1978), a sua crítica por Shon (1971) que com Pinchot e Pinchot (1995)
se atrevem a falar do fim da burocracia; as organizações profissionais de Pettigrew (1992); as
estratégias organizacionais de Mintzberg et al. (2000; 2006); a teoria antropológica das
organizações de Chanlat (1996); e as organizações que aprendem de Senge (2000). Ainda
destacamos alguns pensadores organizacionais que seguimos dentro do próprio campo da

 
 
4  
 

Saúde Coletiva (MENDES-GONÇALVES, 1992; TESTA, 1994; MATUS, 1993; URIBE,


2006; PAIM, 2008).
Teixeira et al. (2014) em uma revisão de literatura sobre as produções da área de
Políticas, Planejamento e Gestão de Saúde identificam um conjunto heterogêneo de matrizes
teóricas, predominando uma conexão com os problemas e desafios nos âmbitos político e
institucional do SUS e Reforma Sanitária.
O ensino das teorias das organizações faz parte dos cursos de graduação em Saúde
Coletiva criados na última década no país, até então somente abordado nos cursos de pós-
graduação lato e stricto sensu. Inserida na área de Políticas e Gestão em Saúde essa disciplina
no ISC/UFMT ancorou-se na interlocução com as Ciências Sociais e Humanas, o que na
presente elaboração teórico-empírica foi favorecida pela experiência de docentes do campo da
Administração Pública, mais especificamente da Gestão de Políticas Públicas, com formação
tanto nas Ciências Sociais quanto em Administração.
A configuração docente construída para tratar dos fundamentos das organizações no
processo de formação do bacharel em Saúde Coletiva conjugou uma trajetória de ensino e
práticas da Administração Pública no contexto da Saúde Coletiva e reelaborou contribuições
resultantes de intercambio interinstitucional com dois programas de pós-graduação em
Administração, reconhecidos nacional e internacionalmente (via pós-doutoramentos e do
Programa de Apoio Acadêmico – PROCAD/CAPES).
Desde a concepção da disciplina de Introdução às Teorias das Organizações na
UFMT, por aproximações sucessivas, foram introduzidos no seu conteúdo programático
conceitos e temáticas do pensamento crítico das organizações. No âmbito dessa disciplina,
tem-se por objetivo propiciar uma formação do profissional Sanitarista para análise e atuação
na organização dos serviços de saúde considerando as reflexões sobre uma sociologia crítica
para a administração pública, e ao mesmo tempo buscando superar a limitação das abordagens
clássicas, comportamentais, neoclássicas e sistêmico-contingenciais próprias da
Administração. Tal opção é uma questão de coerência com o próprio campo da Saúde
Coletiva.

Sobre os conteúdos trabalhados na Introdução às Teorias das Organizações


Na perspectiva de uma práxis das teorias organizacionais enquanto fundamento para
refletir sobre as práticas gestoras nas organizações de saúde, a disciplina foi estruturada em
temas: 1) os primórdios, o contexto socioeconômico na “modernidade” e o surgimento da
administração; 2) o movimento da “administração científica” e escolas clássicas; 3)
abordagens humanistas da administração; 4) abordagens estruturalistas das organizações; 5)
abordagens sistêmico-contingenciais e neoclássicas; 6) abordagens pós-contingenciais e a
gestão pública; 7) atividade prática e produção criativa.
A partir de uma imersão no túnel do tempo das teorias organizacionais, destaca-se no
contexto socioeconômico na “modernidade” (MOTTA; VASCONCELOS, 2010) os
movimentos sociais do século 19 informados por socialistas utópicos (Saint-Simon, Blanc e
Proudhon) e pelo materialismo histórico (Marx).
Com esses antecedentes abre-se o contexto de surgimento das teorias organizacionais
que se constituem epistemologicamente articuladas a diferentes correntes sociológicas.

 
 
5  
 

Ilustração 1 – Correntes sociológicas de referência para as teorias organizacionais.

FONTE: CISOLOG – Ciência Sociológica, 2012. Disponível em:


<http://cisolog.com/sociologia/esquema-grafico-de-las-diferentes-corrientes-en-teoria-sociologica/>. Acesso em 27 set. 2015.

As influências das correntes de pensamento informam a construção das teorias


organizacionais. As teorias clássicas, comportamentais, estruturalistas e neoclássicas se
inserem na corrente positivista e estruturalista. As teorias sistêmicas e contingenciais
transitam entre a fenomenologia e a complexidade. Dentre as abordagens pós-contigenciais, o
poder nas organizações direciona um movimento de reencontro com a teoria crítica na
perspectiva de emancipação dos sujeitos.

Ilustração 2 – Inserção das teorias das organizações nas principais correntes de pensamento

Em sua preocupação dialética com a construção social da experiência a teoria crítica


(KINCHELOE, J.L.; MCLAREN, P., 2007, p.283)
[...] preocupa-se particularmente com as questões relacionadas ao poder e a
justiça e com os modos pelos quais a economia, [...] a raça, a classe e o
gênero, as ideologias, os discursos, a educação, a religião e outras instituições
sociais e dinâmicas culturais interagem para construir um sistema social.

 
 
6  
 

No desenvolvimento da disciplina adotou-se o percurso cronológico das teorias


organizacionais durante o século 20. Em cada contexto histórico, diferentes teorias
organizacionais foram elaboradas, ancoradas em diferentes concepções de homem – homo
economicus, homo social, homem organizacional, homem funcional e homem complexo –,
essa última concepção se aperfeiçoa no sentido da construção social da realidade (MOTTA;
VASCONCELOS, 2010); concepções de organização como máquina, produtiva, espaço
político e cultural, organização ativa, que constrói seu ambiente (MORGAN, 1996) e
concepção de sociedade implicada.
O processo gerencial nas organizações se constitui nas ações de planejar o futuro
desejado, compor os arranjos necessários de estrutura e recursos, dirigir/liderar as pessoas e
controlar/avaliar as ações realizadas. Na área das ciências sociais aplicadas esta concepção
gestora está fundamentada na definição de administração formulada em 1916 por Henri Fayol,
engenheiro francês contemporâneo dos americanos Taylor e Ford, que compuseram a escola
clássica da administração.
A opressão do trabalhador no taylorismo e fordismo do capitalismo industrial, bem
ilustrada no clássico filme Tempos Modernos de Charles Chaplini impôs reflexões conceituais
sobre a emancipação do homem no trabalho, autonomia e burguesia, fundamentadas no
drama burguêsii.
A primeira mulher a se expressar naquele contexto das abordagens clássicas dos
engenheiros precursores da administração da teoria da administração, em uma publicação de
1920 Mary Parker Follett categoriza as relações entre patrões e empregados em três formas –
a coação, coopção ou negociação, defendendo essa última como gerencialmente mais eficaz.
Ao reconhecer as diferenças Follett buscava descobrir soluções negociadas e cooperativas
trazendo para a administração a noção de “poder-com” ao invés de “poder-sobre”. Defendia
uma administração democrática ainda nos anos 20 (GRAHAM, 1997).
A participação no interior das organizações ocorre em diferentes graus e níveis, em
âmbito mais técnico ou administrativo, de forma direta ou indireta, incluindo ou não decisões
econômicas e políticas. Surge nas organizações como meio de trato com o conflito
capital/trabalho. Na mesma década (1920) em que se evidenciavam os movimentos políticos
que formaram a social democracia européia, o discurso do sindicalismo alemão debatia
inclusive o que produzir e de que modo, e foram criadas as comissões de empresas com
representação dos operários, surgindo a co-gestão empresarial e em alguns casos mais raros
chegando a experiências de autogestão. Os esforços autogestionários são tensionados por
consciência política e competência técnica e organizacional (MOTTA, 1984).
Na perspectiva de uma outra Economia, para Albuquerque (2003) a autogestão em
sentido lato é um conjunto de práticas sociais que se caracteriza pela natureza democrática da
decisão, propiciando a autonomia de um coletivo: qualifica as relações sociais de cooperação
entre pessoas e/ou grupos, independente do tipo das estruturas organizativas ou das
atividades, expressando relações sociais mais horizontais.
Ainda, na primeira metade do século passado pode-se apreender um movimento
humanista na constituição das teorias organizacionais, que se colocou como contraponto ao
mecanicismo dos processos produtivos industriais típicos da visão das escolas clássicas da
administração. Os precursores das relações humanas nas organizações foram seguidos por
psicólogos de formação behaviorista, que desenvolveram as teorias de motivação e liderança
formando a abordagem comportamental da administração. Com essas contribuições,
ressalvadas as críticas de manipulação e exploração “mais gentil” dos trabalhadores, a
concepção gestora substitui a idéia de comando por liderança na direção das pessoas dentro
das organizações.
Na abordagem comportamental, a discussão sobre a diferença entre adaptação no
behaviorismo e o empoderamento dos sujeitos, segundo Paulo Freire, trouxe uma importante
 
 
7  
 

contribuição epistemológica a disciplina dada as aproximações de Freire com a concepção


pedagógica de Vygotsky, adotada no Curso de Graduação em Saúde Coletiva. Ambos foram
engajados com o seu mundo, o seu tempo e a sua realidade, preocupavam-se com os
problemas que afetavam a população: a fome, a miséria, as injustiças, a opressão. A
argumentação que Freire e Vygotsky utilizam para explicar a intervenção do homem sobre a
natureza e consequentemente a sua transformação, fundamenta-se na categoria do trabalho
utilizada por Marx, através da transformação dos diferentes níveis de consciência política ou
pelo desenvolvimento cultural da inteligência, respectivamente (MOURA, 2015)
Essas reflexões foram importantes na fundamentação da liderança como essencial na
transformação das organizações. Entendida por Sievers (1997) como administração do sentido
ou da significação, trata da maturidade da pessoa em sua capacidade de relacionar seu mundo
interior e o mundo externo e a realidade dos outros, com o objetivo de realizar uma tarefa
comum (passado/presente/futuro). Atribui significado sobre por que realizar as ações
humanas, rompendo com a cultura da dependência nas organizações. Assim, a habitual forma
de controle não é mais concebível. Para Bergamini (1994), a liderança reside em perceber
como se configura o mundo à volta de cada um, o que permite construir um sentimento de
identidade, satisfação e competência, o que potencializa as condições pessoais para lidar com
o conflito.
Das críticas ao modelo burocrático de dominação, autoridade e controle, explicitado
por Weber (1978) como compreensão da lógica das organizações, teóricos organizacionais
passam a constituir a maturidade científica do pensamento administrativo e organizacional,
reconhecendo os conflitos como expressão do conflito social entre capital e trabalho,
desenhando lógicas pós-burocráticas para pensar processos organizacionais, alguns atrevendo-
se a falar no fim da burocracia (SHON, 1971). Nessa perspectiva o controle cede lugar à
avaliação.
Peter Blau (apud MOTTA; VASCONCELOS, 2010) também identificou diversas
disfunções burocráticas. Esse autor destaca-se por considerar os conflitos centrais no
desenvolvimento das organizações entendidas como um processo fundamentalmente dialético.
Assim Blau passa a ser o primeiro teórico da administração que assume como referencial o
estruturalismo dialético, mas dialogando com Weber. Nesse sentido entende o conflito
organizacional como uma expressão fenomenológica de um conflito maior existente na
sociedade – o conflito capital/trabalho.
Na primeira metade do século 20 as teorias foram privilegiando uma ou outra variável
passando das tarefas à estrutura e dessas às pessoas. A continuidade de estudos estruturais foi
incorporando as demais variáveis organizacionais, rompendo o pensamento administrativo
com as visões parciais e segmentadas. A abrangência do estudo das organizações tem sido
gradativamente crescente, avançando seu conteúdo dos métodos e processo de trabalho de
cada operário/servidor inicialmente até chegar ao seu todo e inclusive ao contexto ambiental
em que se insere a organização.
Da teoria geral dos sistemas formulada pelo biólogo alemão Bertalanffy em 1951, o
modelo de sistema aberto passa a ser aplicado na teoria organizacional a partir de sua leitura
pelo funcionalismo de Parsons (apud MOTTA; VASCONCELOS, 2010). Por ideias centrais
da abordagem sistêmica das organizações: o homem funcional, conflitos, apenas de papéis e
os incentivos mistos. A adaptação constante da organização ao meio ambiente é um
pressuposto sistêmico. Por extensão, segundo a abordagem contingencial, a organização é
dependente do meio ambiente e se modifica segundo as condições cambiantes do seu
ambiente externo, que colocam limitações e circunstâncias momentâneas ou duradouras. Esta
abordagem introduz uma nova mentalidade aberta e participativa na teoria da administração.
A complexidade, mudanças e incertezas contidas na sociedade implicam o aumento de
demandas da administração enquanto atividade humana. A tarefa básica da administração é
 
 
8  
 

fazer as coisas através das pessoas. Portanto, basicamente gerir pessoas em cooperação,
visando alcançar objetivos com eficiência dos recursos. Para tanto, são desenvolvidos
modelos de gestão e estratégias adequadas à solução dos problemas encontrados no mundo
organizacional.
Em uma visão neoclássica do pensamento administrativo, com vistas à sua
aplicabilidade nas organizações, as ideias básicas dos seus pioneiros são resgatadas na
assunção de que a administração seja, em última instância, um processo gestor de
planejamento, organização, direção e controle. As expressões do processo administrativo
enquanto combinação do planejamento, estruturação organizacional, modos de direção e
avaliação constituem modos de gestão. A forma como essas funções gestoras se expressam e
seu movimento linear, cíclico ou interativo informam o modelo de gestão vigente em cada
organização. A análise de uma organização no seu funcionamento ou a leitura de um texto
sobre gestão permite desvelar a fundamentação teórica que lhe sustenta. A interação dinâmica
entre as funções gestoras é defendida pela escola neoclássica. Ou, uma gestão autoritária e de
controle rígido nos informa um modelo burocrático de organização.
Numa revisão das abordagens contemporâneas das organizações Misoczky e Moraes
(2011, p.50) demonstram a atualidade e vigência das formulações weberianas no pensamento
estrutural funcionalista identificado em estudos organizacionais. As mesmas autoras lembram
que o próprio Weber admitiu a possibilidade de uma administração democrática, com as
decisões importantes sendo tomadas em assembleias por todos os membros da organização.
Com essas bases as autoras apresentam as práticas organizacionais horizontais, que no senso
comum vem sendo traduzidas para o conceito de autogestão. As categorias propostas por
Misoczky e Moraes (2011, p.86) para um tipo ideal de práticas organizacionais horizontais
consistem em: mandar obedecendo, participação direta, decisões coletivas, delegação
autorizada e corresponsabilidade.
Um movimento de diferenciação entre a administração pública e empresarial que
possa ter existido em alguns momentos, há dado espaço para o reconhecimento das posições
originais da teoria da administração, a exemplo de Fayol e Weber que claramente indicavam a
aplicação da teoria das organizações para qualquer esfera. Desde as abordagens acima citadas,
pesquisas realizadas por diversos autores da teoria organizacional, com destaque para os de
formação mais estruturalista, e após estes os de abordagens contingenciais, como também
outros autores posteriormente (PETTIGREW, 1992), todos têm reafirmado que a teoria da
administração é genérica. Ou seja, aplicável aos mais diversos setores de produção de bens e
serviços para a sociedade. As peculiaridades do processo produtivo nos diferentes setores e
áreas de produção são equacionadas na aplicação pelo próprio setor, referenciados nas
produções pertinentes. Todavia, há que se reconhecer o maior grau de politização e
compromisso social pressuposto no setor público como diferencial.
Para a discussão das especificidades do setor público e privado das organizações,
destacamos a contribuição de Paula (2005, p.36) ao analisar, em uma perspectiva comparada,
a administração pública gerencial e a administração pública societal. Ao examinar os
antecedentes e as características desses modelos de gestão pública, a autora compara “os
modelos a partir de seis variáveis de observação: a origem, o projeto político, as dimensões
estruturais enfatizadas na gestão, a organização administrativa do aparelho do Estado, a
abertura das instituições à participação social e a abordagem de gestão”.
Finalmente, abordamos alguns dos enfoques teóricos pós-contingencias apresentados
por Motta e Vasconcelos (2010): a cultura organizacional e o poder nas organizações.
Na cultura organizacional, além do aspecto interno e relacional das organizações,
metodologicamente reportamo-nos ao âmbito de uma etnografia crítica (MADISON, 2005)
que consequentemente implica em análises mais amplas, alguns de seus pressupostos são:
enfrentamento da tensão entre familiaridades e estranhamentos, vivendo com e não como os
 
 
9  
 

“nativos” tendo outras referências socioculturais; trabalho de campo como encontro


etnográfico e prática dialógica; exploração da dimensão política e situação de cooperação e
conflito; condição ética da etnografia; possibilidade de inversão de poder entre observado e
observador; debate teórico situando o propósito da etnografia; situar o lócus etnografado no
sistema econômico e político mundial, mantendo relação dialética com o contexto sócio
histórico local, regional, nacional e global; reconstrução histórica do presente etnográfico;
passagem do campo ao texto considerando a relação pesquisador-sujeitos-leitores, inclusive
com negociação das interpretações construídas com os sujeitos; reconhecer que a
interpretação etnográfica consiste num complexo jogo político.
Na perspectiva do Poder nas Organizações , para Foucault (1989), o que faz com que
o poder se mantenha e seja aceito nas instituições é simplesmente que ele não pesa só como
uma força que diz não, mas que de fato permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber e
produz discurso (EIZIRIK, 2002). Foucault (op cit.) ainda aponta como sistemas de exclusão
o trabalho, a família, o discurso, e a posição social possibilitando uma aproximação dos
sujeitos sociais.
As práticas desenvolvidas com os graduandos em Saúde Coletiva no âmbito das
disciplinas de introdução às teorias organizacionais e de gestão de sistemas e serviços de
saúde têm utilizado as teorias organizacionais numa perspectiva mais crítica nas análises de
instituições públicas e privadas, propiciando a apreensão e discussão das expressões dos
enfoques teóricos nas práticas organizacionais em sistemas e serviços de saúde.
As limitações das abordagens próprias de uma teoria geral da Administração, embora
tratadas com rigor científico e explicativo por autores como Motta e Vasconcellos (2010), são
insuficientes e não adequadas a formação do profissional Sanitarista. O papel do gestor de um
sistema universal de saúde e de proteção dos direitos sociais, que política e paradoxalmente
atua no contexto neoliberal do desenvolvimento brasileiro desde a década de 1980 (DRAIBE,
2011; COHN, 2006), implica uma importante aproximação ao pensamento crítico na grade
curricular das teorias organizacionais para pautar o aprendizado de uma administração voltada
para as transformações sociais e mudanças organizacionais no seu campo de práticas. Para
Santos et al. (2009) a gestão como objeto da administração tem o propósito de organizar as
relações sociais de produção e distribuição, implicando em esforços intelectuais no campo da
administração política, como por exemplo na análise das categorias temporalidade e
continuidade administrativa que muito bem se aplica às transformações dos serviços de
saúde.

Discussão
A partir das reflexões sobre uma sociologia para a administração de Guerreiro Ramos
( 1983, 1989) e do desenvolvimento de uma produção de conhecimentos sobre a realidade da
administração brasileira nos últimos anos, adotou-se a inclusão da abordagem crítica
perpassando os conteúdos das teorias das organizações explicitando as limitações das
abordagens clássicas, neoclássicas e contingenciais, por coerência inclusive com o próprio
campo da Saúde Coletiva que se materializa na produção e transformação social.
Para Souza et al. (2004) a maior parte do arcabouço intelectual da Teoria Crítica na
Administração é inspirada na Escola de Frankfurt. A aplicação dos seus conceitos elementares
nos pareceu imprescindível em contextos locais onde se reproduzem as práticas de saúde e no
fortalecimento da gestão democrática das políticas de saúde. Assim, buscamos em tais
referências embasar os conteúdos programáticos das teorias organizacionais para a abordagem
das discussões sobre: liderança (BERGAMINI, 1994 e SIEVERS, 1997); autogestão
(ALBUQUERQUE, 2003), etnografia crítica (MADISON, 2005), práticas organizacionais
verticais e horizontais (MISOCZKY e MORAES, 2011), modelos de gestão gerencial e

 
 
10  
 

societal (PAULA, 2013) e a perspectiva histórica e multidimensional nas análises das


organizações (MARTINS, 2012).
Na formação acadêmica do profissional Sanitarista buscamos evitar os percursos
teóricos que caminharam das estruturas sociais do pensamento crítico às interações da pós-
modernidade nas últimas décadas, considerando as entidades mais amplas e os pressupostos
de Nunes (2014) de que a construção teórica é convergente e se realiza a partir de encontros
interdisciplinares. Neste sentido, para Santos et al. (2009) as organizações podem ser objetos
de pesquisa da antropologia, da sociologia, da economia, da medicina, o que, a nosso ver, é
indispensável na Saúde Coletiva.
Considerar as organizações como expressão do querer, do saber e do fazer, implica
buscar participação, responsabilização e autonomia das diferentes categorias de trabalhadores.
Em uma concepção praxeológia as organizações buscam, através da atividade humana,
reorientar e organizar as próprias organizações e a sociedade pela ação autônoma dos seres
humanos.
Nestes pressupostos, a agonística foucaultiana entre o saber, o poder e o sujeito
(FOUCAULT, 1989; EIZIRIK, 2002), já utilizada como referência no campo das políticas
públicas no estado (WEISS, 1992), foi reconhecida na fundamentação das teorias
organizacionais. Esse olhar pautou outras disciplinas da área de Políticas e Gestão em Saúde
quando da criação do Curso de Mestrado em Saúde Coletiva da UFMT em 2003, propiciando
a reflexão sobre a dominação que determinados grupos exercem sobre os outros, dentro e fora
das organizações, o que se revela importante na conscientização e autorreflexão para a
emancipação dos oprimidos como citado por Souza et al. (2004).
Assim, reconhecemos o poder como uma categoria explicativa da realidade. As
relações de poder podem ser afetadas pelo pensamento estratégico em saúde segundo Testa
(1981, apud GIOVANELLA, 1990, p.142), que, de forma abstrata define poder como a “[...]
capacidade possuída por alguém, pessoa, ou grupo [...] de lograr que outro faça algo que este
não faria, se aquele não tivesse poder. [...] Poder é a capacidade de uma classe social realizar
seus objetivos históricos”.
Numa perspectiva histórica e multidimensional das análises das organizações, Martins
(2012) contribui com sua noção do espaço dinâmico-organizacional, que incorpora a
dimensão temporal. A dinâmica desse espaço organizacional opera a partir do planejamento,
da organização e da execução de uma ação cooperativa, cujo objetivo é a razão de existência
da própria organização. “[...] lidas historicamente as organizações adquirem memória e
assumem diferentes configurações em diferentes momentos de sua existência, configurações
estas que se (re)constroem também historicamente” (p.5).
Existe a possibilidade de um salto das organizações para a gestão democrática e
participação cidadã. Entre possíveis cenários pós-neoliberais, outros autores como Gallegos
(2009) traz a proposta de governança participativa como um modo de efetivar-se a
participação cidadã nos processos políticos assegurando o protagonismo de setores excluídos
na perspectiva de uma radical transformação social.
As teorias das organizações surgem como uma resposta aos problemas da sociedade
mais relevantes de sua época, implicando diferentes abordagens do seu objeto de estudo – a
ação organizacional. Reconhecidas as organizações/instituições como detentoras em seu
espaço particular dos elementos essenciais que constituem o objeto da disciplina
administração, a essência desse objeto para a administração política “perpassa o espectro das
relações sociais internas das organizações e se estabelece nos limites das relações sociais mais
amplas; portanto no âmbito da sociedade” (SANTOS, RIBEIRO, SANTOS, 2009, p.930).

Considerações Finais

 
 
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Fundamentado em conceitos como dialética, materialismo histórico, sistemas


cooperativos e capitalistas, modo de produção, estrutura social, formas de governo, classes
sociais e práxis, o conteúdo programático da disciplina produz um avanço nas limitações das
abordagens usuais da administração inserindo outros significados como liderança;
autogestão, etnografia crítica, práticas organizacionais verticais e horizontais, modelos de
gestão gerencial e societal, e a perspectiva histórica e multidimensional nas análises das
organizações.
Para além da necessidade de aprofundamento dos estudos, as perspectivas de uma
governança participativa (GALLEGOS, 2009) e do modelo de administração pública
societal e a abordagem de gestão social (PAULA, 2005) permitem vislumbrar uma nova
forma de governança e administração política no campo da Saúde Coletiva.
As experiências de ensino das teorias das organizações no curso de graduação no
ISC/UFMT têm permitido o aprofundamento das reflexões sobre a importância do
pensamento crítico no fortalecimento dos processos de democratização da gestão das políticas
públicas e nas mudanças organizacionais dos serviços de saúde e da própria organização dos
serviços públicos.
A utilização de fundamentos do pensamento crítico para as organizações propiciou
relevantes experiências de aprendizado e discussões teórico-empíricas com os discentes sobre
o campo de conhecimentos e práticas da Saúde Coletiva, em suas expressões na área de
Política, Planejamento e Gestão em Saúde.
Em todos os níveis da administração e organização de serviços de saúde pode-se
fomentar decisões considerando um maior número de critérios e recursos intelectuais para
questionamento de tendências totalitárias (SOUZA et al, 2004), impeditivas das mudanças
necessárias ao processo de Reforma Sanitária Brasileira, assim como ao comprometimento
com os seus princípios e valores éticos e políticos.
Concluímos esse texto reafirmando a importância da abordagem crítica na formação
de Sanitaristas, por coerência com o campo de conhecimentos e práticas da Saúde Coletiva
(re)construído epistemologicamente no contexto da Reforma Sanitária Brasileira.

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Agradecimentos: Aos professores substitutos Fabiano Tonaco Borges, Sergio Camargo e
Aisllan Palomar que contribuíram com as discussões no decorrer da disciplina em diferentes
períodos.

                                                                                                                       
i
 Charles  Chaplin:  Os  tempos  modernos.  EUA:  Filme  de  1936.    
ii
 O  drama  burguês  –  Gerd  Bornheim  e  Marilena  Chauí.  
Disponível  em:  <http://acasadevidro.com/2014/12/08/marilena-­‐chaui-­‐gerd-­‐bornheim-­‐o-­‐drama-­‐burgues-­‐46-­‐
min-­‐tv-­‐cultura/>.  Acesso  em:  27  set.  2015.  

 
 
1  
 

O Esquecido Artigo 174: repensando o planejamento indicativo no Brasil


Alfredo Maciel da Silveira (UNESA)

RESUMO
Este trabalho expõe a proposta da retomada do planejamento indicativo no Brasil. Em
retrospectiva, analisa o que se pensou no Brasil anteriormente, tomando como marco inicial o
conceito de planejamento elevado à norma constitucional desde 1988 e as circunstâncias em
âmbito nacional e internacional que relegaram aquela norma ao esquecimento. Identifica os
contextos socioeconômico, político-institucional e internacional que conferem relevância
atual à correspondente problemática. A análise do planejamento se abre em duas dimensões
conjugadas: técnica e político-institucional, inseparáveis em seu objeto concreto. É revisto
resumidamente o trabalho de pesquisa metodológica nas economias de mercado que embasa a
renovação do planejamento indicativo tendo em conta aquela dupla dimensão. Destacam-se
como referencial teórico (JOHANSEN, 1977, 1978), (KERSTENETZKY, 1986),
(POULANTZAS, 2000), (SILVEIRA, 1993). São expostos ilustrativamente os delineamentos
de um plano indicativo de médio prazo no Brasil, como fio condutor da metodologia e das
interfaces com o sistema político e o conjunto da sociedade.
Palavras-chave: Planejamento Indicativo, Política Econômica, Administração Pública,
Administração Política, Teoria do Estado, Estratégia.

A memória constitucional: o que se pensava em 1988 sobre o planejamento? O que


restou?

O planejamento abrangente e integrado das atividades econômicas dos setores público e


privado no Brasil foi alçado a princípio constitucional desde 1988, primeira vez na história em
que foi mencionado nas constituições brasileiras. Através do artigo 174 e seu parágrafo 1º,
está organicamente inserido no "Capítulo I, Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica",
que por sua vez abre o "Título VII, Da Ordem Econômica e Financeira".
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na
forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante
para o setor público e indicativo para o setor privado.
§1º a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional
equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de
desenvolvimento. (BRASIL, 1988).
Tal dispositivo ainda permanece na Constituição sem jamais ter sido regulamentado.
Não é sequer referido na página de internet do Ministério do Planejamento, onde se faz
referência apenas ao artigo 165, alusivo aos orçamentos, âmbito muito mais restrito portanto,
integrante de outro Título, de número VI, "Da Tributação e do Orçamento", em seu "Capítulo
II, Das Finanças Públicas". O pouco que se "faz" no Brasil sob a denominação de "Plano" está
regido por este artigo 165, que conceitual e metodologicamente nada tem a ver com o
desenvolvimento institucional da concertação entre governo e setor privado, com a interação
estratégica entre players relevantes, ou ainda com a produção de informações
socioeconômicas consistentes entre si como base da negociação política, elementos essenciais
de um planejamento indicativo contemporâneo.
Diante dessa flagrante inoperância é de se perguntar como aquele conceito maior do artigo
174 chegou à nossa Constituição e sob quais expectativas, então havidas, quanto ao futuro. Se
chegou a ser debatido na Assembleia Constituinte ou simplesmente "deixado passar" pela sua
aparente ou suposta irrelevância política e ideológica, qual fosse um "jabuti" lá pendurado ao
improviso1. A indagação seguinte seria do por quê desde então, passados quase 30 anos,
permaneceu esquecido, mesmo na alternância do poder entre partidos com supostas distinções
2  
 

programáticas. Finalmente, poder-se-ia arguir da eventual oportunidade de sua retomada, a


partir da conjuntura de crises socioeconômica e política entrelaçadas que o país ora atravessa.
Ou se, diante das profundas mutações da economia mundial nestes mesmos 30 anos,
envolvendo reestruturação produtiva, revolução informacional, financeirização e
desregulamentação, com profundo realinhamento nacional e internacional dos interesses dos
agentes econômicos e das forças sociais que lhes são subjacentes2, o conceito do artigo 174
estaria então definitivamente condenado à obsolescência e esquecimento.
Mas o artigo 174 e seu parágrafo 1º não entraram na Constituição por acaso. À época ainda
havia a expectativa de retomada do planejamento sob relações Estado - Sociedade de
inspiração socialdemocrata. Uma primeira redação desse dispositivo já constava do
anteprojeto constitucional da "Comissão Afonso Arinos", com idêntico conteúdo, em seu Art.
9º do Título IV, "Da Ordem Econômica"(ANTEPROJETO...,1987). Já então se fazia também
a conexão com as atribuições do Poder Legislativo, quanto a dispor, "com a sanção do
Presidente da República", sobre "planos e programas nacionais e regionais de
desenvolvimento" (ibid.). É flagrante que a Comissão de Sistematização da Assembleia
Constituinte considerou e aprimorou aquela proposta inicial.
Ora, sabe-se o que veio depois, com a radical liquidação do Estado desenvolvimentista e a
mudança de rumos das relações Estado - Sociedade e Estado-Mercado desde o governo
Collor, relações que não seguem à letra o contemplado originalmente na Constituição de
1988, já de resto sucessivamente emendada. Mas a julgar pelos impasses atuais do
desenvolvimento institucional pós 1988, eis que as elites brasileiras, em seu "furor
modernizante", alinhadas ao "pensamento único"3, bem podem ter "jogado fora o bebê junto
com a água suja".

Estados nacionais, grandes corporações e renovação metodológica.

No resto do mundo, por razões bem conhecidas, as modalidades de planejamento


socioeconômico na abrangência dos espaços nacionais, e as respectivas metodologias gestadas
e amadurecidas no pós-guerra, foram desconstruídas há umas quatro décadas, na esteira da
mudança de formato de toda a política econômica. Mas nem por isso países como Índia,
Japão, Coreia, Alemanha, os escandinavos - mas especialmente os países continentais, países
"baleia" - têm brincado de "cabra cega" na economia globalizada4. Países de grande extensão
territorial, ricos em recursos naturais, peso demográfico e grande mercado interno, como o
Brasil, têm potencialmente elevado grau de autonomia decisória em suas economias. Nestes
casos portanto, não sendo "jabuti", vai longe de ser mais uma "jabuticaba". Há campo aberto
para a renovação conceitual e metodológica do planejamento que dê conta dos novos desafios.
Paradoxalmente, o grande capital nunca planejou tanto desde então. As grandes corporações
multinacionais - coordenadas com os seus Estados nacionais - foram as que mais
experimentaram e desenvolveram o tratamento das incertezas e a interação estratégica entre
atores relevantes, elementos contemporâneos do que se difundiu como "planejamento
estratégico", empresarial.
Em nível acadêmico, a renovação metodológica do planejamento em economias de mercado
já avançara em meados dos anos 70 (JOHANSEN, 1977, 1978), pela incorporação da
incerteza e da interação estratégica no planejamento macroeconômico desdobrado em estágios
setoriais e espaciais. Tratava-se da representação das relações entre autoridade central
(governo) e agentes (players, atores, sujeitos) relevantes não centrais. As Figuras 1 e 2
oferecem em sequência uma visão esquemática de conjunto das categorias representativas da
economia para o planejamento conforme a nova conceituação5.
Ou seja, quanto ao suporte instrumental e técnico do planejamento, segregou-se mais
restritamente a modelagem quantitativa de uma estrutura (conjunto de relações tecnológicas,
3  
 

comportamentais e institucionais relativamente estáveis, funcionando independentemente das


consciências e vontades), deixando de fora uma outra representação, aquela das
subjetividades, dos atores, dotados de autonomia decisória e grande impacto econômico, fora
do controle governamental (imagine-se a Volkswagen na Alemanha decidindo se faz uma
fábrica de caminhões em Resende ou em Córdoba, ou na China...). Por isso mesmo foram
trazidas as metodologias de cenários para o campo da política econômica e do planejamento.
No pós guerra representava-se aquela estrutura muito mais abrangentemente. Todos os
agentes privados, eram nela incluídos. Até as decisões de investimento privadas eram tratadas
como relações de tipo comportamental (a exemplo dos modelos franceses do INSEE, "de
1500 equações"). A estrutura ligava-se a uma "unidade de controle" (o governo que, uma vez
eleito, supunha-se administrador "neutro", dos conflitos de interesses mormente os de
classes). Isso estava implícito na própria teoria macroeconômica, e foi intensamente debatido
e revisto desde as crises dos anos 70 e década seguinte. Uma crítica da conexão entre a visão
de capitalismo cooperativo mediado por Estado neutro (keynesianismo do pós guerra), e a
estrutura conceitual da política econômica inspirada em Tinbergen (relação objetivos-
instrumentos, "trade offs" entre objetivos) é tratada por Bhaduri (1986).
Claro que usava-se e abusava-se de variáveis estocásticas para dar conta das incertezas. Mas
as economias capitalistas centrais (pós guerra) experimentaram um "boom" de 20 anos. Então
ficava fácil nos anos 50 e 60 extrapolar tendências que no essencial se confirmavam.
Pois bem. Na nova representação do sistema, passa-se a destacar a interação estratégica entre
autoridade central e agentes relevantes não centrais - a referida representação das
subjetividades ou sujeitos - bem como o reconhecimento das incertezas agora assumidas,
explicitadas e tratadas como tais, como variáveis de cenário. Ora, quase tudo isto vem da
própria experiência das grandes corporações multinacionais (o já mencionado "planejamento
estratégico", empresarial). Mas vai muito além, quando se trata de coordenar decisões entre
agentes sociais ou econômicos, negociar conflitos em escala social, enfim, quando se trata da
coisa pública e relações Estado - Sociedade e Estado-Mercado.
Aqui ganha enorme importância a produção e circulação da informação. E não apenas a do
status quo, a informação do existente. Mas principalmente a informação prospectiva, de
"futuros construídos", objeto de negociação política e participação cidadã. Vem bem a este
propósito a caracterização do planejamento por J. Kornai (1970 apud JOHANSEN, 1977,
p.44):
Planning: a process of cognition and compromise. Planning is an instrument of cognition. The
main purposes of planning are the collection and careful evaluation of information about the
future. It helps in understanding our own desires, wishes, goals; and helps to confront them
with the realities. It is a framework for the exchange of information and the co-ordination of
otherwise independent activities. Since the activities of all participants of the economic system
are mutually interdependent planning is a device to understand the interdependencies and
reconcile the conflicting interests.

A questão democrática no planejamento

A difusão de informação, a transparência e horizontalização dos processos decisórios, pode


ter consequências sociais e políticas altamente positivas no sentido dos avanços de uma
institucionalidade democrática. Todavia, com base na experiência histórica, pode-se arguir
sobre a eventual captura do planejamento por um saber tecnocrático e um estatismo
autoritário. (POULANTZAS, 2000). Há de fato uma inegável ambivalência e um inerente
risco daquela captura. Em contrapartida, num artigo seminal de 1976, esta problemática é
diretamente enfrentada por Ruffolo (1991), sob enfoque de análise de sistemas, ao situar a
centralidade do planejamento no trânsito a uma "sociedade fundada nos valores da
igualdade, liberdade e autogoverno" (ibid., passim.). Verdade é que o planejamento tem a
4  
 

vocação de criar representações das demandas, explicitar intenções, revelar conflitos entre
elas e os custos envolvidos, lidando assim com a diversidade social. É fato que na sua versão
tecnocrática ele faz o oposto disto, alijando temas, encobrindo conflitos e dando suporte a
"não decisões".
Ainda sobre o estatismo autoritário, cabe assinalar tratar-se de uma conceituação específica
própria em Poulantzas (op. cit. pp. 208 e 230), em sua análise do declínio da democracia
especialmente nos "países dominantes, chamados mais nobremente desenvolvidos" (ibid.),
como os da Europa e Estados Unidos. Citando:
Uma nova forma de Estado está em vias de se impor [...] que chamaria, na falta de outro termo
melhor, de estatismo autoritário. Termo que pode indicar a tendência geral desta
transformação: a monopolização acentuada, pelo Estado, do conjunto de domínios da vida
econômico-social articulado ao declínio decisivo das instituições da democracia política e à
draconiana restrição, e multiforme, dessas liberdades ditas "formais", de que se percebe, agora,
que elas vão por água abaixo, na realidade.
[...] o estatismo autoritário caracteriza-se por uma dominação das cúpulas do executivo sobre
a alta administração e pelo crescente controle político desta por aquela. A autonomização da
burocracia de Estado em relação aos parlamentares não fez mais que reforçar a subordinação
de suas cúpulas ao executivo presidencial e governamental. Esta evolução segue, conforme o
país, vias diferentes, e bem mais que uma questão de pessoas, remete a uma série de mutações
institucionais.
Mas a informação gerada no processo de planejamento pode ser saudavelmente "perigosa", no
sentido de detonar mudanças. Uma institucionalidade democrática que dê transparência a este
processo receberá de volta, através da informação que ele produz, um impulso maior para o
aprofundamento da democratização.

Primeiros passos, negociação e concertação

A produção de consistência das informações socioeconômicas é insumo básico, que está no


início do aprimoramento contínuo institucional. E a revolução informacional em curso, que
impacta a cultura e a vida quotidiana, facilita em muito a participação da cidadania. Trata-se
de toda uma ambientação organizacional a ser desenvolvida pari passu ao suporte
instrumental e técnico dessa abordagem da política econômica e social.
O caput e o parágrafo 1° do Artigo 174 da Constituição, delineiam de forma irretocável os
princípios estruturantes de uma modelagem das políticas econômica e social em direção ao
desenvolvimento institucional.
O primeiro passo é a simples produção de informações socioeconômicas articuladas e
internamente consistentes (para o que o país dispõe do IBGE, IPEA e de toda uma extensa
rede de pesquisa abrangendo a sociedade civil) propiciando a explicitação de custos, trade
offs e benefícios das estratégias, o que por si só elevaria a qualidade da negociação política.
Informação é a matéria prima da negociação e do planejamento em economias de
mercado.(KERSTENETZKY, 1986)6. Note-se que esse decisivo passo inicial é do inteiro
controle do poder executivo e em nada conflita - muito ao contrário - com a condução
quotidiana do conjunto das políticas econômica e social.
Mas este suporte informativo deve contudo manter-se em conexão ao processo decisório em
escala social e inserir-se no ambiente organizacional próprio deste processo. As dimensões,
técnica, e político-institucional do planejamento então conjugam-se, exigindo um mútuo
desenvolvimento, em aprimoramento contínuo.
Na sua falta, o debate das políticas e reformas não sai da perspectiva setorialista e parcial. A
título de exemplo: não se aborda a consistência entre as propostas de reforma fiscal e
previdenciária, e destas com o conjunto das políticas sociais; nem se explicita que o equilíbrio
financeiro suposto na viabilidade das propostas passa por determinações macroeconômicas,
5  
 

de modo que sua avaliação deveria estar referida a premissas de cenário. Está claro que tal
déficit de informação rebaixa a qualidade das negociações.
Por sua vez a criação de um "clima", de um ambiente institucional e macroeconômico
adequado à confiança do setor privado, mormente para a indústria, é absolutamente crucial
também no contexto do planejamento. Para o setor privado o planejamento não é impositivo
obviamente, mas convida à concertação e ao alinhamento de expectativas. Nisso reside sua
força. Aquela concertação é o "coração" da sua metodologia. Abrange um todo, setores
público e privado. Não é só investimento, não é uma lista de obras. Não é nenhum "PAC"...
E conforme se viu, a metodologia do planejamento é irredutível a tratamentos teóricos - como
no passado - baseados num único tomador de decisões, dotado de bem definidas intenções e
preferências.
Nas décadas recentes, a ideia do planejamento então ficou sendo identificada, em muitos
casos com fundadas razões, ao despotismo, ao estatismo, ou a um saber tecnocrático. O atraso
metodológico e a exaustão de processos tradicionais que já não respondiam às condições do
mundo atual puseram aquela ideia na defensiva. No Brasil, além disso, há que se somar a
desarticulação das equipes técnicas, a dispersão dos quadros especializados e o predomínio de
uma cultura imediatista na administração pública, como fatores de absoluto vazio de qualquer
debate específico sobre o tema. Perdeu-se totalmente a cultura do planejamento, prevalecendo
o imediatismo e a improvisação. E nas orientações governamentais - do "apagão" de energia
ao "trem bala" - a superposição de neoliberalismo, voluntarismo e dirigismo sem plano.
É certo que os brasileiros até sabem fazer o mapeamento das grandes questões nacionais. Mas
na hora de se apontarem as vias de solução, as ideias de "Plano" e "Estratégia", quando
aparecem, o fazem de forma muito embrionária ou como panaceia, quando não associadas às
condições prévias de um grande "consenso social" e de "reforma do Estado". Sucede que a
metodologia deve tratar, antes de tudo, de um ambiente cuja regra é a da competição e do
conflito, e sob a ótica de um ator especial, o governo, a quem cabe a iniciativa do
desenvolvimento institucional no seu campo de atuação. O planejamento então não pode ser
posto na culminação de uma "reforma" e do "consenso", mas sim nas suas origens.
Em suma, o poder executivo é o protagonista. Bastaria que sua liderança tivesse a
compreensão do arcabouço conceitual do planejamento e do alcance estratégico dos passos
iniciais.

Um sumário do quadro conceitual e princípios metodológicos

1 - REFERENCIAL TEÓRICO - PLANEJAMENTO (MAIS QUE)7 INDICATIVO

Meade (1971)
– Planejamento Indicativo como “redutor de incerteza”
– Incerteza de mercado x incerteza ambiental
– Compilação, processamento e distribuição de informação e de propostas que
não implicam o comprometimento de nenhum agente econômico. Forma
“pura” de planejamento indicativo.
Kornai (1970, apud JOHANSEN, 1977, p.44):
– Processo de cognição e compromisso
– Coleta e avaliação de informação sobre o futuro
– Dispositivo para compreender interdependências e reconciliar interesses
conflitantes
Johansen (1977)
– Contexto: Planejamento econômico centralizado com poder de decisão
descentralizado
6  
 


Reconhecimento de tomadores de decisão relevantes não centrais

Função de Coordenação de decisões

Estrutura de jogo, interação estratégica

Jogo cooperativo

Dupla atuação governamental:
• uso de instrumentos controlados diretamente pelo governo
• atividades visando promover a coordenação de decisões e de ações a
serem tomadas por outros agentes na economia.
Kerstenetzky (1986)
– Planejamento Econômico e Social em Economias de Mercado: Informações e
Compromissos.

2 - PRINCÍPIOS TRADICIONAIS E NOVOS.

2.1- Tradicionais
Consistência: balizamento macroeconômico, estágios (setores, regiões, projetos)
Viabilidade: restrições macroeconômicas, demográficas, de recursos naturais, de tecnologia
Encadeamento temporal: sequências, passos, trajetórias.
Integração entre desenho e operadores de políticas
Informações e compromissos: explicitação de trade-off’s, custos de oportunidade - bases
de negociação.

2.2 - Novos8
Estado como um ator (player) ao lado dos demais. Diferentemente de árbitro, “neutro”
Jogo Cooperativo: adesão ou não adesão ao Plano
Interação estratégica: variáveis e atores não controláveis.
Tratamento de Incertezas. “Minimax”, controle adaptativo.

3 - NOVAS POSSIBILIDADES
Tecnologias de Informação
Redes. Interatividade, Governo Eletrônico, Teleconferência.

4 - PASSOS
- Elaboração de Cenários.
- Novo Processo Decisório – Institucionalização.
- Aprimoramento contínuo.

Na exposição a seguir são vistos e comentados os delineamentos ilustrativos de um plano de


médio prazo, fio condutor da exposição da metodologia e de suas interfaces com o sistema
político e o conjunto da sociedade.

Delineamentos de um Plano Indicativo de Médio Prazo

Uma primeira característica do planejamento de médio prazo a ser lembrada é a de que as


condições estruturais e de funcionamento da economia estão praticamente dadas (horizonte de
quatro a sete anos). Aqui se quer chamar a atenção para o fato de que, no processo inicial da
geração de trajetórias alternativas, o grau de liberdade que se tem para simular mudanças
estruturais é significativamente menor que o existente para o longo prazo (dez a vinte anos).
O mesmo se aplica no que diz respeito à mobilização da constelação de recursos potenciais do
país (recursos naturais, capacidade produtiva, PEA, condições demográficas). Isto não quer
7  
 

dizer que tais fatores sejam fixos, mas sim que constituirão importantes restrições. Da mesma
forma, certas relações de comportamento, com por exemplo as relações entre renda disponível
e consumo pessoal, num contexto de acentuada desigualdade da distribuição da renda, fazem
pensar que o perfil estratificado do consumo pode não sofrer grandes alterações no médio
prazo. A propósito, a Figura 2, destaca o fluxo de transferências no circuito de apropriação da
renda, por onde passam muitas das políticas redistributivas, conectando as condições
fiscais (bloco APU) e o consumo pessoal.
As alterações na matriz energética do país por exemplo, que seriam objeto do plano,
provavelmente só estariam amadurecidas para alem do horizonte do plano, dados os prazos de
maturação alongados, típicos da área energética. Consequentemente será muito importante a
análise das condições terminais do plano de médio prazo, que lance uma vista para as
consequências pós-horizonte do plano.
Agora brevemente alguns aspectos da dimensão institucional e organizacional. Os passos a
seguir são ilustrados pela Figura 3.
Apoiada nas projeções e simulações preliminares do Escritório de Planejamento e do Órgão
de Estatística, a autoridade central define "Grandes Opções" e "Objetivos" que são
submetidos ao Parlamento para aprovação. De volta à área do poder executivo, estes objetivos
e opções serão convertidos no plano propriamente dito. Nesta fase é muito importante a
definição da relação objetivos - instrumentos. Aqui, o Escritório de Planejamento se apoia
parcialmente em modelos de simulação, cuja estrutura modelística enfatiza as limitações
impostas pelo conjunto de instrumentos de fato disponíveis, bem como pelo comportamento
de agentes fora do controle governamental, e pelas instituições em geral. O modelo gera
resultados formais, que deverão ser criticados e complementados com base no
conhecimento intuitivo, experiência e juízos práticos. Isto significa que nem todas as
possibilidades e restrições deverão estar representadas no modelo. Neste sentido, o modelo
deverá ser complexo até o ponto em que produza resultados corretos e confiáveis. O modelo
deverá ser conectado à base de dados do Órgão Estatístico. Este órgão também operará
modelos mais próximos a uma extensa base de dados, com menor ênfase nas restrições
impostas pelo elenco de instrumentos, e com maior flexibilidade para explorar resultados
fisicamente possíveis, num horizonte de longo prazo, que inclui a consideração de um
módulo demográfico contemplando, alem das variáveis demográficas, a interação destas com
o sistema educacional, as condições de oferta e demanda do mercado de trabalho, e a
evolução das condições de vida de grupos sociais. A Figura 4 ilustra a estrutura modelística
integrada dos órgãos de planejamento e estatística para os estudos de simulação do padrão de
desenvolvimento9.
Uma vez elaborado o Plano, ele deverá ser debatido e aprovado pelo Parlamento. Aqui se
culmina um processo que se desenvolve em paralelo à elaboração do Plano, a saber, o
processo de negociação política dentro da sociedade, entre os diversos grupos sociais e
agentes econômicos. Mormente numa situação em que os perfis da renda e da riqueza são
concentrados, a informação explicitada no Plano, tornando transparentes os trade-offs,
particularmente aqueles alusivos a perdas e ganhos dos diversos grupos, vem a ser uma peça
fundamental na formação e estabelecimento de compromissos em torno da trajetória ou
padrão de desenvolvimento a ser perseguido. Como já se viu, o papel da informação no
aperfeiçoamento democrático é portanto essencial.
Durante o processo até aqui descrito, o Conselho de Planejamento, formado por
representantes de instituições sociais, especialistas e personalidades de notório saber e
independência, assessora a autoridade central e o Parlamento em caráter consultivo.
Durante a implementação, o Escritório de Planejamento ajustará as relações objetivos-
instrumentos por meios formalizados e não formalizados, conforme mencionado acima, com
base na informação nova que for adquirida durante a implementação.
8  
 

Estágios

A estruturação do Plano em estágios visa estudar o comportamento de um relativamente


pequeno número de variáveis agregadas, através de um modelo agregado cujas relações
independem da estrutura interna mais complexa e desagregada, contida naquelas variáveis.
Pode-se fazer a determinação de variáveis macroeconômicas e de sua composição setorial ou
regional, mas em suporte à troca de informação com operadores mais próximos da
implementação.
Visa-se combinar a simplicidade de tarefas analíticas do planejamento, por exemplo, gerar
vários cálculos tentativos a nível macro, com questões concernentes à operacionalização, que
requer detalhamento, desagregação. Portanto, os estágios relacionam-se à integração entre
desenho e operadores de políticas. Por exemplo, certas mudanças estruturais na indústria
visando à sua competitividade podem evidenciar restrições no Balanço de Pagamentos ou
grande esforço de mobilização da poupança interna, o que deve ser analisado em nível macro,
antecedendo à desagregação setorial.
A necessidade de transparência na comunicação com pessoas de responsabilidade política
nos níveis setorial, estadual, municipal, e mesmo a comunicação entre técnicos recomenda
que se disponha a informação numa lógica sequencial, em que os diversos resultados
emergem de modelos encadeados em estágios, ao invés de um único modelo complexo.
Nos modelos mais agregados, as relações entre as variáveis dependem de parâmetros médios,
cuja estabilidade poderá depender crucialmente da composição dos agregados. Por exemplo, a
relação entre a massa de salários e o valor agregado da economia como um todo, tratável por
um coeficiente médio, será sensível a mudanças na composição setorial da produção,
supondo-se relações entre, a massa de salários e valor agregado, mais estáveis a nível setorial.
No contexto de uma desigualdade na distribuição da renda que se manifeste através da
distribuição funcional por setores, pode haver aqui uma dificuldade quanto ao uso do modelo
macro, agregado, num primeiro estágio. Exemplo análogo seria o da adoção de uma relação
capital-produto média, para a economia como um todo.
Todavia já foi assinalado que no horizonte de médio prazo os impactos sobre a distribuição de
renda podem não ser muito significativos. Mas isto evidentemente também dependerá dos
objetivos e da trajetória prevista. O plano de médio prazo encadeia-se com o curto e o longo
prazos.
Após encontrada a solução para o estágio superior (modelo mais agregado) usa-se a
informação já contida nesta solução para se obter a composição das variáveis de forma
desagregada. Por exemplo, a repartição do consumo dos trabalhadores segundo diversos
produtos, em função da massa de salários, dadas as propensões médias a consumir
discriminadas segundo produtos.
Obtidos valores desagregados pode-se calcular ex post os parâmetros médios implícitos nesses
resultados e assim confrontá-los com parâmetros médios adotados no estágio mais agregado.
Desvios muito acentuados serão corrigidos por processo iterativo, onde os dois estágios serão
repetidos.

Estágios e Estrutura Organizacional

A concepção em estágios não implica, em si mesma, em qualquer forma de ambientação


organizacional do planejamento. Todavia pode-se pensar num paralelismo organizacional,
fazendo corresponder cada estágio a uma instância organizacional em cadeia hierárquica. Mas
em princípio todos os estágios poderiam ser elaborados dentro de uma mesma organização ou
9  
 

instituição. Deve-se chamar atenção aqui para o trabalho de Grupos Setoriais (Figura 3) -
por sinal bem conhecidos na experiência brasileira - na fase de elaboração setorial do Plano,
quando há um intercâmbio de informações entre o Escritório de Planejamento e os Grupos em
torno de informações agregadas e setoriais.

Incerteza de mercado e coordenação do processo de formação de capital

A "incerteza de mercado", concerne a "[...]things which some people know for certain and
others do not know at all" - distintamente da "incerteza ambiental", "about things which
nobody knows",(MEADE, 1971, p. 150)10. Reiterando e relativizando a definição, como faz o
próprio Meade, as incertezas de mercado então dizem respeito também a fatos sobre os quais
alguns podem pelo menos formar opinião de forma abalizada, ou ainda fatos "about which
some agents can form a much better opinion than others"(ibid, loc.cit.). Um caso típico dessas
incertezas surge da interdependência entre projetos de distintas atividades. Então os diversos
investimentos deverão ser coordenados de modo a reduzir ou eliminar tais incertezas. A
interdependência pode ser:
(a) Em quantidades: linkages de oferta e demanda identificáveis a partir do conhecimento
detalhado das relações insumo-produto. São relevantes especialmente quando as
possibilidades de substituição são limitadas; tem implicações nas decisões sobre a escala dos
projetos. Pense-se por exemplo na construção de plantas industriais ou empreendimentos
agropecuários liderados pela iniciativa privada, e a construção de ferrovias e usinas
hidrelétricas cuja decisão depende do Estado.
(b) Em preços: problema de economias de escala. A coordenação implícita nas sinalizações de
preços não é suficiente nestes casos. Necessidade de coordenar a programação:
1. do escalonamento no tempo e da sincronização, timing, dos investimentos;
2. da localização de projetos;
3. das suas escalas;
4. da escolha de processos, tecnologia.
Pense-se por exemplo no problema de escolher entre pequenas destilarias de álcool,
espalhadas no território nacional, ou grandes destilarias concentradas em alguns pontos do
território.
Em se tratando de promover mudanças estruturais não há antevisão de preços futuros de
mercado, o que só pode ser considerado mediante a coordenação de investimentos
interdependentes. Pense-se por exemplo na substituição de óleo combustível por gás natural
ou eletricidade na indústria. Os preços são críticos para as decisões da indústria e para os
setores do gás ou elétrico.
Num processo iterativo, a esfera do planejamento global e multisetorial informa a instância
específica, setorial, quanto aos "preços-sombra" de recursos (fundos de investimento, divisas,
mão de obra, insumos principais, exógenos ao setor) e quanto a projeções agregadas por setor
(produção, consumo, investimento, dotações orçamentárias). Mudanças estruturais podem
propiciar novas vantagens comparativas dinâmicas dificilmente avaliáveis com base nos
preços atuais de mercado.
Por sua vez, a instância setorial fornecerá à instância central elementos para a atualização de
coeficientes tecnológicos e para novas agregações, com base nos estudos setoriais. Com isso
poderá ser testada a sensibilidade do plano global e multisetorial face às escolhas de processos
dentro do setor.
Há também uma interatividade entre os níveis setorial e de projetos. Numa primeira iteração,
o planejamento setorial tenta isolar combinações de projetos que aparentam ser mais atrativos,
de modo que os estudos de engenharia se concentrem nesses projetos (engineering). A
avaliação desses projetos em nível microanalítico, feita por engenheiros e especialistas do
10  
 

setor, pode contudo revelar certos fatores que foram omitidos no planejamento setorial, cuja
inclusão alteraria o "programa ótimo" inicialmente gerado em nível setorial. Em regra os
planejadores não se dão conta de algum fator relevante até que sejam confrontados com as
implicações de sua omissão. A Figura 4 também evidencia a produção da consistência do
padrão de investimento, a interatividade dos níveis de planejamento global, multisetorial e
de programas e projetos, e a troca de informação desses processos com o sistema de modelos.
Por analogia pode-se pensar nos gastos em infraestrutura social, balizados em nível macro
mas definidos na base por municípios e comunidades. A interatividade então se dá segundo
uma desagregação espacial dos estágios. Com base em modelos sobre escolas, creches,
equipamento urbano, pode-se orçar o gasto em nível macro. Mas as soluções por suposto vem
da base. E um prefeito simularia em seu note book o impacto orçamentário do cenário macro.

Questão final: o planejamento face às relações Estado - sociedade no Brasil de hoje

O Brasil se depara esquematicamente com duas tendências alternativas quanto às relações


Estado - sociedade.
1. Ou se consolida como nação, e para isso tem que "trocar o pneu com o carro em
movimento" (democracia, crescimento econômico, inclusão social) onde o permanente
é a mudança, guardando autonomia sobre o seu próprio destino;
2. Ou vira "Mercadolândia" (a nação virando apenas um território de mercado), o "salve-
se quem puder", uma "Grécia continental", abrindo mão da autonomia.
No primeiro caso, a grande tentação tem sido as soluções autoritárias de todo tipo,
escalonando-se as tarefas históricas ao invés de enfrentá-las simultaneamente: ditadura para
"salvar" a democracia; "primeiro crescer o bolo para depois distribuir"; instrumentalizar a
democracia para "conduzir" o povo (populismos); cercar o Estado capitalista por um poder
paralelo, popular, construído "desde as bases", um caminho para a sociedade "justa",
"igualitária", "anticapitalista", em aversão e desconfiança face às instituições democráticas
historicamente construídas (várias concepções de Estado e de revolução socialista fundadas
numa transição com "dualidade de poderes")11.
No segundo caso há uma crença de que o mercado livre garante tudo o mais, a começar pelas
liberdades democráticas: democracia e livre mercado vistos como uma unidade: aversão e
desconfiança quanto à atuação do Estado.
O século XX demonstrou que a economia brasileira, sob o protagonismo do Estado nacional,
fez valer as oportunidades abertas pelos constrangimentos externos. Das crises do mercado do
café aos choques dos anos 70, passando pela crise de 29 e duas guerras mundiais, o Brasil
saiu de uma economia primário-exportadora para ter nos anos 80 um parque industrial
completo.
Mas restou uma enorme agenda socioeconômica e político-institucional em atraso.
Soluções autoritárias de passado recente não teriam sido originalidade nossa e são vistas por
vários autores como sendo características dos países que foram retardatários no sistema
capitalista (Alemanha, Japão, Rússia, exemplarmente).
Ademais o desencadeamento explosivo de novas e sucessivas demandas sociais, suscitadas
pelo próprio desenvolvimento socioeconômico, e pela abertura dos novos canais de
participação popular, de vocalização das demandas, de emergência da cidadania, tudo isso
trazido por instituições democráticas em construção, de certo modo trazem o risco dessas
instituições se tornarem vítimas de seu próprio sucesso.
Mas se há alguma chance de se enfrentar com êxito a simultaneidade dos atrasos daquela
agenda, certamente a chance não está na entrega da autonomia do país, mas justamente no
aproveitamento consciente das novas oportunidades abertas pelas rápidas transformações do
mundo contemporâneo, da economia internacionalizada à geopolítica, o que reporia o Estado
11  
 

nacional como grande protagonista. A não ser que se considere normal, de senso comum, uma
"abertura ao mundo" em que a política econômica é pautada pelas agências de rating12...
Por fim a indagação. Como enfrentar a agenda sem o planejamento?
REFERÊNCIAS

ANTEPROJETO da Comissão de Estudos Constitucionais. Manchete documento, Rio de


Janeiro, 1987. Suplemento especial integrante de Manchete nº 1795, incluindo artigos de
especialistas sobre matéria constitucional e o Preâmbulo do anteprojeto, redigido pelo jurista
Afonso Arinos de Mello Franco, presidente da Comissão.

BNDES. International Conference on Industrial Policies in the 21st Century -


Celebrating BNDES 60th Anniversary. 2012, Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/Publicacoes/Paginas/s_i
nternacional_60anosBNDES.html>. Acesso em: 11/07/2015.

BHADURI, Amit. Economic Policy and the Theory of the State. In:____. Macroeconomics:
The Dynamics of Commodity Production. London: Macmillan, 1986. cap.8.

BRASIL. Constituição (1988).

JOHANSEN, Leif. Lectures on Macroeconomic Planning. Amsterdam: North-Holland P.


Company, 1977-1978. 2v.

KERSTENETZKY, Isaac. O Planejamento Econômico e Social em Economias de Mercado:


Informações e Compromissos. Debate Econômico, Belo Horizonte: Ed. Fundação João
Pinheiro, p. 17-25, dezembro 1986.

MEADE J. E. The Controlled Economy. Principles of Political Economy. London: George


Allen & Unwin Ltd, 1971.

POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.
A publicação original em francês é de 1978.

RUFFOLO, Giorgio. Igualdade e democracia no projeto socialista. In: BOBBIO, Norberto. et


al. O Marxismo e o Estado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1991. A publicação original em
italiano é de 1976.

SILVEIRA, A. M. Política Econômica e Planejamento sob o Enfoque de Estratégia em


Situação de Incerteza. In: II Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, 1995, São Paulo. II
Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, NAIPPE/USP, 1995.

SILVEIRA, A. M. As Administrações Públicas no Planejamento Moderno:


Modelização da Estrutura, Conflitos e Estratégias.1993. 205p. Tese (Doutorado em
Economia). IE-UFRJ, Rio de Janeiro, 1993.
12  
 

                                                                                                                       
NOTAS
1
Longe de ser um "jabuti", a organicidade da proposta fica evidenciada pelas conexões
estabelecidas com as atribuições do Congresso Nacional e do trabalho de suas comissões
(respectivamente os artigos 48 e 58 da Constituição), onde se destaca a participação do Poder
Legislativo no processo decisório do planejamento.
2
Diante da desindustrialização recente da economia brasileira, e de sua primarização sob forte
presença do capital estrangeiro, pode-se questionar sobre o peso que teria a parcela de um
setor privado alinhado a um plano nacional de desenvolvimento combinado ao setor público.
Qual seria então o poder indutor, de "arrasto", do Plano ("effet d'entraînement" na linguagem
técnica da experiência francesa) sobre o conjunto da economia em direção aos objetivos
colimados.
3
Há algum tempo, por ocasião das comemorações dos 20 anos do Plano Real, o ex-presidente
FH Cardoso declarou em entrevista que a estratégia de sua gestão fora o que denominou
"Integração Competitiva", na onda da globalização. Não há muito o que discutir quanto à
filiação daquela estratégia ao "pensamento único" dos anos 90. Nem quanto à evidência da
reestruturação global das cadeias produtivas que impacta objetivamente as economias
nacionais. A verdadeira discussão passa pelo como o país se inserir em tal processo. Há
também a problemática relação entre os Estados nacionais e o capital financeiro internacional
o que desde então parece dividir tendências políticas no Brasil. Feitas as ressalvas e, data
venia para este autor poder assumir sua parcialidade na assertiva, a tal "integração
competitiva" em bom português traduz-se: neoliberalismo tardio, imitativo, dependente, do
"pensamento único", do "consenso de Washington".
4
Ver a propósito documentação da Conferência Internacional sobre política industrial,
comemorativa dos 60 anos do BNDES (2012), inclusive o caso dos EUA.
5
As Figuras 1 e 2 são tomadas de Silveira (1993), (id. 1995), adaptadas ao presente artigo.
6
Não deve ser casual que este artigo do professor Isaac Kerstenetzky, "O Planejamento
Econômico social em Economias de Mercado: Informações Compromissos", tenha como
pano de fundo o contexto brasileiro durante a Assembleia Nacional Constituinte. Note-se
também as afinidades com a caracterização do planejamento de Kornai, acima apresentada.
7
O "Mais Que" serve apenas para contrastar o significado usual do planejamento indicativo
com a sua forma "pura", acepção teórica de Meade (op. cit.). Usualmente qualquer governo,
ao operar os instrumentos sob seu controle, pode induzir deliberadamente a adesão de agentes
privados ou estabelecer com outros deles uma interação estratégica, em situação de jogo. A
propósito, Johansen (op.cit., pp. 65-103) apresenta as configurações opostas "Team" e
"Game" da política econômica e planejamento, além da intermediária, de "jogo cooperativo".
8
As relações entre plano e interação estratégica, avaliação de trajetórias sob incerteza
("minimax"), controle adaptativo, são desenvolvidas na pesquisa metodológica de
Silveira(1993), (id. 1995), sob o contexto brasileiro.
9
Esta concepção de modelagem de simulação do padrão de desenvolvimento, Figura 4, em
parte apoia-se na contribuição originária de Kerstenetzky (1986).
10
O professor James Meade (Cambridge, UK) dividiu o Prêmio Nobel de economia de 1977.      
11
Para a crítica teórica da "dualidade de poderes", veja-se a abordagem marxista de
Poulantzas (2000, pp. 254-271).
12
Agências totalmente desmoralizadas na crise de 2008, deflagrada nos mercados financeiros.

ANEXO: Figuras 1 a 4, arquivo em "Power Point".


13  
 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
O Homem Parentético diante dos Desafios Contemporâneos do Mundo do
Trabalho: Um percurso pela sua origem, pelas manifestações na sociedade e
novas proposições teóricas que influencia

Luana Maria de Aguiar Silva Roboredo (Mestranda em Administração PPGAd/UFF)


João Rafael Oliveira Silva (Mestrando em Administração PPGAd/UFF)

Resumo

O conceito de Homem Parentético apresentado por Guerreiro Ramos se encontra em


diferentes trabalhos, dentre o mais difundido no Brasil está o artigo Modelos de Homem e
Teoria Administrativa (1984). O artigo foi publicado originalmente nos Estados Unidos em
1972 e publicado no Brasil em 1984.
Ramos (1984) apresenta a trajetória dos modelos de homem com os quais as
organizações têm priorizado desde o momento de sistematização das ciências sociais. Como
também, relata um novo modelo de homem que desafiaria os padrões ajustados de outrora.
Desenvolve, a partir da noção herdada de “em suspenso” e “parênteses” de Edmund Husserl:
o conceito de Homem Parentético. Conforme esta percepção de homem, o individuo não é
visto como mero instrumento de instituições, mas detentor de condições de se “pôr entre
parênteses”: separar-se do seu ambiente interno e externo a ponto de examiná-los com uma
visão crítica e se posicionar conforme uma racionalidade substantiva.
O objetivo deste texto, longe da pretensão de esgotar o assunto, é refletir sobre
posição do homem parentético, diante de dificuldades contemporâneas existentes no mundo
do trabalho e do serviço público, tendo em vista que a organização é um lócus de diferentes
dimensões, não restrito apenas ao seu aparato técnico-produtivo.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O ano de 2015 marca o centenário de nascimento do cientista social e teórico da


Administração Alberto Guerreiro Ramos (1915 – 1982). Dentre as diversas contribuições que
empreendeu ao meio acadêmico, uma tem atenção especial para os autores deste trabalho: a
constituição do Homem Parentético.
O conceito de Homem Parentético apresentado por Guerreiro Ramos se encontra em
diferentes trabalhos, dentre o mais difundido no Brasil está o artigo Modelos de Homem e
Teoria Administrativa (1984). Neste artigo, publicado originalmente nos Estados Unidos em
1972 e traduzido para o português em 1983, Ramos apresenta a trajetória dos modelos de
homem com que os estudos da organização e do trabalho têm se focado.
O primeiro modelo de homem que Ramos faz menção é o homem operacional.
Segundo esta percepção, o ser humano é tido como mais um recurso para a organização. Sua
habilidade criativa é posta em segundo plano. O trabalho se limita a realizar tarefas, e não
como lócus de um possível meio de realização.
Alternativas são apresentadas a este modelo, especialmente com o desenvolvimento
da Escola das Relações Humanas. Os autores humanistas enxergavam o trabalhador como um
ser não apenas individual, mas inclusive social. O indivíduo sofreria influências do ambiente,
com motivações e necessidades de satisfações não apenas materiais, mas também afetivas e
sociais. A este segundo modelo de homem, Ramos chama de Homem Reativo.
Todavia, embora as ideias humanistas se preocupassem mais com o trabalhador, as
práticas organizacionais continuavam com a tendência de “ajustar” o trabalhador à
organização. O indivíduo continuava a ser visto como uma mera peça da empresa que
precisaria estar constantemente encaixada.
Ramos (1984) apresenta o desafio do sujeito de desenvolver, a partir da noção de
“em suspenso” e “parênteses” de Edmund Husserl: o conceito de Homem Parentético.
Conforme este modelo, o homem teria condições de se “pôr entre parênteses”, separar-se do
seu ambiente interno e externo a ponto de examiná-los com uma visão crítica.
Segundo Paulo Emílio Martins (2012), o administrador se depara com um espaço
multidimensional, constituído por diferentes dimensões: material, humana, tecnológica,
política e simbólica (cultural), que embora pareçam diferentes, fazem parte da mesma
dinâmica, compondo sinergias. A organização é, portanto, um objeto complexo formado por
uma gama de dimensões e dinâmicas; ao que o autor chama de espaço-dinâmico
organizacional.
Embora essa consciência multidimensional venha ganhando espaço no meio
acadêmico, ainda é muito forte um legado estrutural-funcionalista que busca o trabalhador
inserido na organização de uma forma não crítica.
Destarte, o cenário contemporâneo se destaque como mais humano, mais
colaborativo, podemos encontrar diversas situações, conforme apresentadas por Richard
Sennett (1999), que mostram que embora as relações de trabalho tenham tido muitas
conquistas como legislações trabalhistas; muitas formas de desvalorização e alienação do
trabalho continuam se “ressignificando”.
Conforme (AZEVEDO & ALBERNAZ, 2006, p. 10), para Ramos, as teorias da
organização deveriam estar subordinadas à “teoria do desenvolvimento humano”, e não o
contrário.
O modelo de homem parentético nos parece útil, portanto, pois parte da possibilidade
de o indivíduo conseguir se separar das visões tradicionais que lhe são impostas e refletir
sobre elas. Apreende o indivíduo não apenas como uma ferramenta da organização, mas como
capaz de compreender a dinamicidade da organização, e seu papel sobre ela.
O objetivo deste texto, longe da pretensão de esgotar o assunto, é refletir sobre
posição do homem parentético, diante de dificuldades contemporâneas existentes no mundo
do trabalho e ao serviço público, tendo em vista que a organização é um lócus diferentes
dimensões, não restrito apenas ao seu aparato técnico-produtivo.
Para isso, é produzido um retorno à trajetória do modelo de homem parentético
apresentado por Guerreiro Ramos na primeira parte deste artigo.
Na segunda parte, discussões apresentadas são retomadas para questões presentes em
obras e temáticas contidas em publicações mais recentes. Primeiramenteé realizado um
diálogo entre os desafios atuais do trabalho apresentados por Richard Sennett na obra A
corrosão do caráter (2012). Na segunda e última parte do capítulo é realizada uma reflexão
sobre as possibilidades de contribuição de Guerreiro Ramos ao modelo de Novo Serviço
público desenvolvido por Robert B. Denhardt (2013).

2 A ORIGEM DO HOMEM PARENTÉTICO – A BUSCA PELO


ARCABOUÇO TEÓRICO PARA UMA CONCEITUAÇÃO DE HOMEM
MULTIDIMENSIONAL

Azevêdo e Albernaz (2006) no artigo rotulado: “A ‘”Antropologia” do Guerreiro: a


história do conceito de homem parentético” buscam revelar o arcabouço teórico que deu
suporte a proposição de Ramos e o inspirou. A partir da visão destes autores, do próprio
Ramos e outros, caminha-se na presente obra para mostrar a configuração desse suporte e suas
ambições.
Ramos durante sua trajetória de vida teve contato com as obras dos intelectuais
cristãos Maritain e Berdyaev, o denominado Humanismo Antropocêntrico. Onde o foco da
observação concentra-se no ser humano e sua condição. Segundo estes autores, o homem
moderno nasceria desespiritualizado à sua própria sorte e subjugado às instituições.
Tornando-se, assim, despersonalizado. Ou seja, alienado pelos processos de socialização
(AZEVÊDO; ALBERNAZ, 2006, pg.2).
O sociólogo baiano também apreendera da leitura de Polanyi que esse processo de
despersonalização havia se iniciado na economia de mercado; que desenvolveu a
autorregulação, a individualização e o estado liberal. Diante disso, a modernidade e o modelo
capitalista teriam instalado um conflito entre individualidade e personalidade. Para Ramos a
personalidade é o que vai culminar na liberdade criativa, que seria a semelhança com o
criador, o poder de criar e transformar. Nisso, entende-se o processo de personalização como
um mecanismo constante de mutação, afirmação e realização (AZEVÊDO; ALBERNAZ,
2006, pg.3).
A ideia do antropocentrismo na obra de Ramos surge para combater o saber
alienado, aquele sem consciência crítica, em defesa do saber engajado, onde o homem se
torna senhor de sua história. Busca combater o etnocentrismo e outros preconceitos embutidos
nas ciências sociais. Logo, colocar o homem no centro da observação é desvelar o senso
comum e seus dogmas em prol de percepções mais justas da sociedade (AZEVÊDO;
ALBERNAZ, 2006, pg.3).
A fenomenologia exerceu grande influência na obra de Guerreiro Ramos, dentre os
autores dessa corrente, podemos destacar o filósofo alemão Edmund Husserl. A partir deste
autor, Ramos trabalha a ideia de estar entre parênteses, ou seja, a capacidade psicológica do
indivíduo de desvincular-se do ambiente interno e externo, com a propriedade de desenvolver
um pensamento crítico e interferir no ambiente; o conceito de transcender, a capacidade de ir
além através de suas atitudes (AZEVÊDO; ALBERNAZ, 2006).
Destaca-se dentro da obra de Ramos a influência de mais dois autores da
fenomenologia: Ortega y Gasset e Heidegger. O primeiro, traz o seu conceito de um ser em
circunstância. O segundo, com a ideia de um ser no mundo. A obra desses pensadores
embasa Guerreiro a construir o homem parentético como um ser com: consciência crítica de si
e das circunstâncias, assim torna-se capaz de exercer o “poder sobre si mesmo e sobre as
circunstâncias”; autoconsciente e autodeterminado, o que o levaria para outro patamar da
existência humana.
A estratégia de Ramos ao desenvolver essa abordagem era poder avaliar o design –
que é outro conceito advindo da fenomenologia - das organizações e sistemas sociais. Que
pudessem emergir e, até possivelmente, serem desenvolvidas dentro de uma concepção do
indivíduo um agente atuante e criativo no ambiente. Guerreiro Ramos (1983) conseguia ver o
comportamento de homem parentético em determinadas personalidades importantes no
desenrolar da história, como Maquiavel. Antevia como a tecnologia, o conhecimento e o
desenvolvimento dariam suporte ao desenvolvimento das habilidades e comportamentos
dignos desse modelo.
Ramos critica a abordagem dada aos fundamentos psicológicos da ciência social
institucionalizada. Essa crítica advém em parte da influência que ele teve do Humanismo
Organizacional. Era avesso a ideia de homem conformado (normal) e subjugado aos quadros
psicológicos normativos dos sistemas sociais prevalecentes. E que definiam que os que por
ventura estivessem afastados desse padrão eram anormais (patologia). Quando o olhar era
encaminhado pela perspectiva da sociologia - principalmente aquela desenvolvida no seio do
capitalismo central – Ramos percebia a profusão das ideias de Durkheim. Que na sua visão,
era nada mais, nada menos que uma concepção de individuo ajustado às normas das
instituições.
Ramos concebia uma dificuldade, ou até mesmo a impossibilidade de o homem se
tornar uma criatura totalmente socializada. E que um ser com autenticidade não se curvaria
cegamente a termos e instituições. Questionava o pensamento de Durkheim, quanto ao
“caráter coercitivo da sociedade” ser eticamente justificável e o conceito de moralidade
derivar dos sistemas sociais e não estar relacionada com a auto realização do indivíduo.
Guerreiro argumentava que Durkheim e seus seguidores haviam negligenciado o fato de que o
meio social pudesse ser avaliado quanto as necessidades dos indivíduos em realizar suas
potencialidades. Ou seja, não especulavam a ideia de um meio social não saudável, o qual
seria um obstáculo ao desenvolvimento pessoal.
Guerreiro, pela sua discordância de Durkheim, caminhou para uma sociologia que
concebia o potencial ativo do homem- pautada em autores como Weber, Simmel e Mead.
Esse potencial ativo é reconhecido na busca de suas satisfações e no sentido de suas ações.
Mas, só isso não colocava em foco a questão da patologia da conformidade social. Guerreiro
achava que a sociologia expandia seus horizontes ao adotar conceitos como: resistência,
conflito e legitimidade, do que apoiar-se sobre a noção de equilíbrio social.
A influência do humanismo organizacional junta-se a essa construção de Guerreiro
Ramos, principalmente na crítica a organização formal. Os pensamentos desses autores
coadunavam com o de Guerreiro. Compreendiam assim, toda correlação entre:
comportamento, o desenvolvimento organizacional e o design das instituições. As quais, na
visão dele, eram verdadeiras prisões ou requintes da relação senhor-escravo. Entendia que as
ciências sociais e, principalmente, a teoria das organizações deveriam se subordinar a teoria
do desenvolvimento humano. Estabelece por fim os postulados de sua abordagem
antropológica:
(1) que um entendimento sistemático da natureza humana ou das necessidades
básicas do homem é uma condição sine qua non para uma crítica significativa dos
sistemas sociais em níveis macro e micro; (2) que o desenho dos sistemas sociais em
níveis macro e micro deve ter como fim último a realização das potencialidades
humanas; (3) que o desenvolvimento do homem nunca tem fim; (4) que, do ponto de
vista do desenvolvimento humano, a legitimidade de qualquer sistema social é
sempre precária; (5) que qualquer sistema social é inviável, caso a sua
funcionalidade requeira o sacrifício da criatividade humana; e (6) que se uma ciência
do homem é possível, essa ciência, necessariamente, terá que transcender aos
critérios normativos imanentes a qualquer sistema social existente. (GUERREIRO
RAMOS, 1971a, p.9-10).

Agora, após o entendimento que levou Ramos a partir no sentido de construir um


novo modelo homem, o trabalho segue para revelar a crítica aos outros modelos existentes e
como isso refutado mais à frente na concepção de Homem Parentético.

3 UM POUCO DAS OBRAS DEDICADAS AO HOMEM PARENTÉTICO E OS


MODELOS DE HOMEM QUESTIONADOS POR RAMOS

A obra de Alberto Guerreiro Ramos sobre a concepção de homem parentético é muito


instigante. Não apenas pelo conceito em si. Mas por sua construção teórica estar presente em
diversos artigos e trabalhos ao longo de sua trajetória.
Diferente da contribuição do conceito de Redução Sociológica, na qual Guerreiro
Ramos dedicou um livro, com duas edições (a primeira em 1958 e a segunda em 1965); o
homem parentético não está presente em uma obra unificada, embora conforme Azevêdo
(2006, p. 7), Guerreiro Ramos pretendesse publicar um livro em 1973, fato que, por motivos
desconhecidos, não se concretizou.
A concepção de homem parentético, conforme aponta Ariston Azevêdo (2006), teria
começado a ser desenvolvido antes mesmo que o sociólogo baiano se utilizasse dessa
expressão. A redução sociológica já trazia em si uma atitude parentética.
No próprio livro de poemas da fase mais jovem de Guerreiro Ramos, “O drama de ser
dois”, pode-se encontrar elementos de conflito, de reflexão da própria atuação do indivíduo
diante da realidade.
As obras que trabalham explicitamente com o conceito de homem parentético são
descritas, conforme Azevêdo (2006, p. 7): Capítulo “Homem-organização e homem
parentético” do livro Mito e Verdade da Revolução Brasileira (1963) e artigos: A
parenthetical trip (I) (1969), A parenthetical trip (II) (1970a), A parenthetical trip (III)
(1970b), The parenthetical man (na anthropological approach to organization design)
(1971a), Beyond alienation (work and the psuchoristory of the future) (1971b), The
parenthetical man (1971c), Models of man and administrative theory (1972a) e The
parenthetical diagraph (1972b).
Com exceção do livro Mito e Verdade na Revolução Brasileira, as demais obras foram
publicadas em inglês, nos Estados Unidos. A permanência do estudioso no Brasil em meados
da década de 1960 se mostrava delicada, diante de atos hostis do governo, por conta de sua
militância política e acadêmica. Tendo, inclusive, seu mandato de deputado federal cassado,
após o golpe militar de 1964.
Apenas um dos artigos citados, cujo título em português é Modelos de Homem e
Teoria Administrativa foi publicado no Brasil, na Revista de Administração Pública (RAP)
em 1984 por meio da tradução de Tânia Fischer e Mafalda Elisabeth Schmidt. Tornando-se
uma das obras mais famosas e difundidas de Guerreiro Ramos no país.
O estudioso brasileiro desenvolve o conceito de homem parentético com a pertinente
crítica ao modelo de normalidade social desenvolvido a partir de Durkheim. Para o autor
brasileiro, a ideia de uma normalidade social, harmoniosa, seria uma patologia, um ambiente
em que os indivíduos se auto anulariam diante da força das organizações.
O livro Mito e Verdade na Revolução Brasileira (1963) é escrito com propósito de
ressaltar o quanto as organizações formais ganhavam cada vez mais importância na vida dos
indivíduos, chegando ao ponto de influir na própria construção de sua identidade e limitação
de suas liberdades, até mesmo cognitivas. “[A organização] uniformiza condutas,
subordinando-as mecânica e dogmaticamente, reduz e até anula a liberdade (1963, p. 147)”.
Um dos destaques no capítulo “Homem-Organização e homem-parentético” é
referência a peça Rinoceronte de Eugène Ionesco: Uma cidade ficara assustada com a
presença crescente de rinocerontes e outros bichos estranhos. Paralelamente ao fato, inúmeras
pessoas passam a desaparecer. Constata-se que há uma doença na cidade que transforma os
cidadãos em rinocerontes. Inicialmente horrorizados, os habitantes vão aos poucos se
acostumando com a doença, até mesmo desejando-a, e entregando-se a moléstia. A população
deixa-se iludir pelas aparentes vantagens de conviver no bando, pois tal atitude parece melhor
do que resistir ao poder da maioria.
Ao final da obra, apenas um casal se mantém ainda humano: o desajustado Berenger e
Deise. Berenger se esforça para manter sua namorada firme na convicção de que é Mais
prudente manter sua humanidade. Todavia, a jovem se deixa seduzir pela manada de
rinocerontes, ela encara que é mais fácil se juntar ao grupo animalesco do que encontrar
forças para manutenção de sua essência humana.
Bérenger ao deparar-se solitário, sofre e até hesita entrar para a manada. Todavia no
final, não desiste da sua integridade como homem.
Para Guerreiro Ramos, a atitude de Berenger, de não abandonar seus valores como ser
humano e resistir à perda da essência de sua humanidade, é indiscutivelmente parentética:

A atitude parentética transcende à organização, é uma característica destreza


da vida oculta, de existência superior, ciosa de liberdade, que defende o ser
humano contra o embrutecimento, a rotinização mental, a alienação. O
homem que, como Bérenger, não se habitua com os rinocerontes é um
homem parentético (1963, p.149).

Embora ciente dos riscos que a organização pode gerar aos indivíduos, Guerreiro
Ramos não prega uma sociedade sem organizações:

A organização tem inevitavelmente duas faces. Uma boa, outra má. Sem ela,
a vida é impossível, com ela a vida se desnatura. [...] Mas a inorganicidade
nunca é saída para as crises no plano social. Só a organização corrige os
malefícios de uma organização ilegítima ou caduca (1963, p; 156-157).

Para o autor, o problema não estaria na existência das organizações. Mas ao fato delas
não atentarem às necessidades e complexidades sociais, que estão em constante mudança ao
longo do tempo. Ao invés da organização existir para a sociedade e o individuo, o indivíduo e
a sociedade existem para a organização.
O livro em questão, Mito e Verdade da Revolução Brasileira tinha justamente como
pano de fundo, a questão do domínio que os partidos políticos (que são também organizações
formais) sobre a vida dos indivíduos. Havia uma clara crítica especialmente ao Partido
Comunista Brasileiro (PCB) que, em sua opinião, buscava suprimir de modo forte outras
formas de pensar dos seus membros; assim como o próprio partido não se mostrava disposto a
analisar a contemporaneidade brasileira; prendendo-se a dogmas e crenças externas e
cristalizadas.
O Artigo já citado Modelos de Homem e Teoria Administrava foi publicado em inglês
em 1972, e no Brasil em 1984. Torna-se, portanto o principal símbolo da tese de homem
parentético no nosso país.
O texto, publicado na década seguinte ao livro de 1963 traz um novo cenário e uma
crítica importante à racionalidade puramente funcional da organização.
O que leva as organizações atuais às crises é o fato de que, por sua estrutura
organizacional e forma de operação, admitem que antigas carências
[escassez de bens materiais e serviços elementares] continuam a ser básicas,
enquanto na realidade, o homem contemporâneo está consciente de que as
carências críticas pertencem a outro grupo, isto é relacionam-se a
necessidades além do nível de simples sobrevivência (1984, p. 3).
Guerreiro Ramos, que escreve o artigo nos Estados Unidos da América, parecia
intrigado pelo fato de que mesmo num país com índices de escolaridade, econômicos,
industriais e de qualificação mãos-de-obra melhores, questões que se encontrariam superadas
ou amenizadas ainda se mostravam centrais para as organizações.
Segundo a ótica do pensador brasileiro, questões como a possibilidade de encarar os
problemas atuais da sociedade e buscar formas de soluciona-los; assim como a criação de um
ambiente mais confortável para a realização pessoal e profissional dos sujeitos não pareciam
temas pertinentes nas empresas e em outras entidades sociais.
O trabalhador/indivíduo continuava a ser visualizado como uma peça, uma
engrenagem a ser encaixada nos moldes dos quadros organizacionais.
O primeiro modelo de homem na teoria administrativa que Guerreiro Ramos faz
menção é homem operacional. Segundo esta percepção, o ser humano é tido como mais um
recurso para a organização. Sua habilidade criativa é posta em segundo plano. O trabalho se
limita a realizar tarefas, e não é visto como um possível meio de realização. A hierarquia e o
controle organizacionais são rígidos.
O homem operacional seria equivalente ao homo economicus, homo sociologicus e o
homo politicus. Um indivíduo neutro, enxergado sempre a partir de sua exterioridade e de sua
função no sistema social industrial.
Alternativas foram apresentadas a este modelo, especialmente com o desenvolvimento
da Escola das Relações Humanas, no início do século XX. Os autores humanistas enxergavam
o trabalhador como um ser não só individual, mas inclusive social, que sofreria influencias do
ambiente, com motivações e necessidades de satisfações não apenas materiais, mas também
afetivas e sociais. A este segundo modelo de homem, Ramos chama de Homem Reativo.
Todavia, embora as ideias humanistas se preocupassem mais com o trabalhador, as
práticas organizacionais continuavam com a tendência de “ajustar” o trabalhador à
organização. O indivíduo continuava a ser visto como uma mera peça da empresa que
precisaria estar constantemente encaixada.

4 HOMEM PARENTÉTICO

No artigo em questão, Guerreiro Ramos (1984) prossegue com uma reflexão sobre a
racionalidade. Ele destaca dois tipos.
a) a racionalidade pragmática, instrumental, ou funcional, que coordena meios e
fins, ligada a eficiência e às orientações da organização. Conforme os autores
deste artigo, relaciona-se ao senso comum;
b) a racionalidade substantiva ou noética – sistematizada, segundo Guerreiro (
(1984, p. 7) por Kar Mannheim e Eric Voegelin. Esta racionalidade parte da
noção de um sujeito que não obedece cegamente a ordens e a um modelo de
eficiência vazio, mas reflete e toma consciência sobre suas atitudes, decisões e
regras que recebe. Representa numa analogia simples, ao bom senso.
O autor apresenta, portanto; como alternativa ao modelo de racionalidade pragmática,;
o desafio do sujeito que se desenvolve além das pressões organizacionais.
A partir da noção de “em suspenso” e “parênteses” da fenomenologia de Edmund
Husserl, conforme já descrito, o sociólogo baiano desenvolve o conceito de Homem
Parentético. Conforme este modelo, o sujeito abandonaria uma atitude de conformismo e de
aceitação das coisas como são, tendo condições de se “pôr entre parênteses”, separar-se do
seu ambiente interno e externo a ponto de examiná-los com uma visão crítica, e a partir daí,
teria uma análise mais global da realidade dada. Desta forma questiona-se a si mesmo e sua
posição. Abrindo espaços para mudanças de decisões e condutas caso necessárias, conforme
uma racionalidade substantiva ou noética.
Edmund Hurssel trabalha, conforme aponta Guerreiro Ramos, com as concepções de
atitude natural: percepção do mundo de forma imediata, sem problematizá-lo. E também a
atitude crítica: “suspende ou coloca entre parênteses a crença no mundo comum, permitindo
ao indivíduo alcançar um nível de pensamento conceitual e, portanto, de liberdade” (1984,
p.8).
O homem parentético é aquele indivíduo, portanto, que não aceitaria o mundo como
pronto, sendo capaz de colocar o se mundo interno e externo entre parênteses a fim de melhor
refletir sobre a realidade e sobre sua posição diante da sociedade em que vive.
O homem parentético [...] não iria esforçar-se demasiadamente para ter
sucesso, segundo os padrões convencionais, como faz aquele que quer subir.
Daria grande importância ao eu, e teria urgência em encontrar um
significado para a vida. Não aceitaria acriticamente padrões de desempenho,
embora pudesse ser um grande empreendedor quando lhe atribuíssem tarefas
criativas. Não trabalharia apenas para fugir à apatia ou indiferença, porque o
comportamento passivo iria ferir seu senso de autoestima e autonomia. Iria
esforçar-se para influenciar o ambiente, para retirar dele tanta satisfação
quando pudesse (GUERREIRO RAMOS, 1984, p. 9).
O conceito aqui tratado não seria uma conceituação simplesmente psicológica ou
isolada de indivíduo. Teria em seu cerne um comprometimento com a ação, tanto individual
quanto coletiva.
No final do artigo, o brasileiro mostra entusiasmo com os jovens estudantes, que
demonstram ideias e força de vontade. Ele também via com otimismo as possibilidades de
novas configurações empresariais, a criação de órgãos para defesa de direitos e o avanço das
áreas de comunicação. Dessa forma, o ambiente descrito por Ramos (1984) parecia bom para
a difusão do homem parentético.
Outro ponto que Azevêdo (2006, p. 16) destaca é uma discussão sobre o fracasso,
presente no artigo The parentheticam man (1971c). Guerreiro Ramos atentara para o fato de
que em sociedades em que o sucesso é altamente valorizado (e geralmente o é no seu aspecto
econômico), a ideia de fracasso criaria um efeito degradante ao psicológico do indivíduo. A
capacidade parentética, portanto, faria com o que o indivíduo pudesse desenvolver a sua
própria concepção de sucesso e fracasso, não se subordinando acriticamente aos padrões de
sucesso e fracasso institucionalizados.
O modelo de homem desenvolvido por Guerreiro Ramos, difere das duas anteriores,
pois parte de que o trabalhador, independentemente do nível hierárquico em que ele esteja,
teria condições de ser racional (pragmático e no sentido substantivo), capaz de pensar e
refletir sobre o melhor e o pior, de aprender, de contribuir. E não apenas mais uma peça
dentro das roldanas organizacionais.
Dos anos 70 em diante, a revolução tecnológica, científica e informacional,
juntamente com avanço da globalização criam novos ritmos aos indivíduos. Fatos globais
como a tomada de consciência ambiental, legislações regulatórias, pressões de movimentos
sociais fazem parte de um cenário hoje, pressionam governos e corporações. Novas práticas e
discursos precisam ser feitos.

5 AS CONSEQUÊNCIAS E O FUTURO DO MODELO DE HOMEM


PARENTÉTICO

5.1 O HOMEM PARENTÉTICO E OS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS DO MUNDO


DO TRABALHO – A LEITURA DA OBRA DE SENNET

A era econômica atual desponta o que muitos chamam de “capitalismo flexível”,


“capitalismo criativo”1, “capitalismo global com uma face humana”2. Neste contexto,
encontramos exemplos de práticas empresariais que reconhecem problemas e se dispõem a
buscar formulações para tal, sejam nas áreas sociais e ambientais.
Práticas ditas mais flexíveis de produção, usos de tecnologias, incentivo ao
desenvolvimento de pessoas e métodos modernos de gestão empresarial se espalham em
diferentes países. Tudo isso com um discurso de provedor de um meio de trabalho mais livre,
mais dinâmico, arena para o exercício de mais criatividade.
Enfatiza-se a flexibilidade. Atacam-se as formas rígidas de burocracia, e
também os males da rotina cega. Pede-se aos trabalhadores que sejam ágeis,
estejam abertos a mudanças a curto prazo, assumam riscos continuamente,
dependam cada vez menos de leis e procedimentos formais (SENNETT,
2012, p. 9).
Tendo em vista essa mudança de cenário, mostra-se interessante repensar se as
concepções de homem nas organizações continuam pautadas nos modelos tradicionais,
ajustadas à funcionalidade da organização; ou se as melhorias anunciadas nos discursos atuais
de um capitalismo mais dinâmico e flexível têm dado uma atenção ao trabalhador como ente
atuante na sociedade e na empresa.
O livro A corrosão do caráter é publicado pelo norte-americano Richard Sennett, em
1999, trazendo apontamentos e reflexões de práticas que observamos no nosso cotidiano, em
vários locais, mesmo fora do país em que o autor desenvolveu a obra, Estados Unidos. O
autor desenvolve o livro sobre episódios contemporâneos de indivíduos e suas relações no
trabalho.
Embora escrito e editado décadas após o artigo Modelos de Homem e Teoria
Administrativa, é possível desenvolver um diálogo sobre os debates apresentados em Ramos e
os aspectos do trabalho contemporâneo presentes em Sennett.
Pode-se apreender da imagem do homem operacional um modelo tradicional ou até
mesmo arcaico de trabalhador. Chegando mesmo ao ponto de inferi-lo como ultrapassado,
visto às modernas teorias e filosofias gerenciais e sociais das últimas décadas. Todavia
encontra-se exemplos de organizações e grupos que ainda trabalham com essa concepção,
mesmo que de forma bem mais sutil.
Como é o caso de situações presentes quando Sennett (2012), no livro citado. O autor
apresenta um indivíduo interessante logo no início da obra. Rico, um jovem consultor
executivo, pai de família, filho de um imigrante italiano nos Estados Unidos. O rapaz é o
clássico exemplo de pessoa que emerge das classes consideradas mais baixas e consegue
sucesso.
A imagem de sucesso problematizada em Sennett (2012), ainda é muito ligada a
questão do homem operacional, apontada por Guerreiro Ramos (1984): o indivíduo enxergado
a partir de seu retorno financeiro. Subir no escalão financeiro seria a marca para o sucesso.
Mas Rico, todavia, parecia não se sentir tão bem-sucedido, como aparentemente poderia
parecer. O filho de imigrantes enfrentava dilemas e situações que fugiam do seu controle, lhe
provocando sentimentos de incerteza, preocupações com o futuro, seu e de sua família e
insatisfação. Para ele, havia, por exemplo, uma contradição em que parecia não encontrar
resposta: como estar mais presente na vida dos filhos e manter uma boa condição
profissional?
A rotina de trabalho nas empresas levava Rico mudar de cidades e Estados
frequentemente. Em um período de 12 anos a família de Rico se mudara quatro vezes,
dificultando laços de amizade e sentimentos de segurança e estabilidade. Sua vida e sua
família eram constantemente levados a começar tudo de novo, por conta das orientações de
trabalho enfrentadas por Rico e sua esposa.
A trajetória de vida de Rico era guiada pela empresa para qual trabalhava, sendo
considerado na maioria das vezes um mero recurso para a organização. Podendo, portanto, ser
realocado conforme às exigências do mercado, e não ao melhor para sua própria vida.
Interessado a ter um controle melhor de sua vida, o consultor havia deixado
recentemente de ser um empregado e abrira seu próprio negócio de consultoria. Abrir o
próprio negócio parecia atraente, afinal trazia consigo a ideia de mais liberdade, domínio de si
mesmo. Todavia a rotina maçante que Rico tivera como empregado se manteve ou até mesmo
piorara. Ele agora estava “preso” aos horários e exigências dos clientes, e necessitava “dar
conta” de tarefas que extrapolavam a sua função original. A busca por ser um profissional
autônomo, parecia ter se transformado em um trabalhador que assumia mais
responsabilidades, funções e riscos por sua própria conta.
Um outro exemplo elucidativo de homem operacional pode ser destacado no quarto
capítulo. Sennett (2012) se refere a uma padaria que passara por um processo de
modernização.
Décadas passadas, a padaria típica de bairro contava com uma série de problemas,
mas tinha uma rede de funcionários gregos imigrantes que mantinham um senso de
comunidade e identidade, rede essa que o autor não conseguiu mais enxergar na sua visita
mais recente.
As modernas tecnologias implantadas recentemente na padaria trouxeram mais
conforto e higiene, em contrapartida, os funcionários não se sentiam mais parte do processo
produtivo. O trabalho se restringia a apertar botões. Seus trabalhadores não conheciam e não
eram incentivados a dominar as técnicas de produzir pão. As potencialidades existentes nos
indivíduos não encontravam espaço para se desenvolver. Falas como “Faço pão, mas não sou
padeiro”, “posso fazer qualquer trabalho, pois é só apertar os botões” e similares, são
constantes aos funcionários desmotivados. Que não dominavam a técnica de fazer pão. E
ficavam paralisados diante da quebra da aparelhagem e dos imensos desperdícios.
Tanto no trabalho de Rico quanto nos funcionários da padaria, encontramos
insatisfação e falta autonomia do indivíduo frente à sua própria narrativa de vida e às
atividades que executam e ao que se pode construir nas organizações.
Questões inerentes ao modelo de homem reativo também podem ser identificadas no
livro de Sennett. Uma das personalidades apresentadas é Rose, uma mulher de meia idade
dona de um bar em Nova Iorque. Rose era constantemente procurada por empresas de
publicidade para se tornar uma consultora; embora não fosse formada na área; por sua
experiência profissional no comércio de bebidas.
Interessada em fazer algo mais na vida, Rose aceitara o desafio. Todavia, a jovem
senhora voltara, frustrada, tempo depois, ao cargo de dona do bar. Ela se espantara com o fato
do objetivo de sua contratação, a experiência, significar quase nada junto aos seus colegas e às
tomadas de decisões. Assim como sofreu com a constante pressão de se tornar mais uma
típica funcionária da empresa: jovem, atraente, compartilhando os mesmos comportamentos e
gostos dos seus colegas.
Outra ilustração presente em Sennett é a difusão do discurso de trabalho em equipe,
presente em muitas organizações.
A moderna ética do trabalho concentra-se no trabalho de equipe. Celebra a
sensibilidade aos outros, exige “aptidões delicadas”, como ser bom ouvinte e
cooperativo; acima de tudo, o trabalho em equipe enfatiza a adaptabilidade
às circunstâncias. O trabalho em equipe é a ética do trabalho que serve a uma
economia política flexível. Apesar de todo o arquejar psicológico da
administração moderna sobre o trabalho de equipe no escritório e na fábrica,
é o etos de trabalho que permanece na superfície da experiência. O trabalho
de equipe é a prática de grupo da superficialidade degradante (2012, p. 112)
Para Sennett, muitas das organizações, em que chega até citar algumas, apostavam em
trabalhos em equipe, com lemas do tipo “fim de hierarquia”, “cooperação entre os colegas de
trabalho”, “autonomia das equipes”. Contudo, tais práticas diversas vezes escondiam práticas
como num jogo de poder sem autoridade explicita. As responsabilidades caiam sobre todos os
membros grupos, mesmo em questões que fugiriam ao seu alcance.
Do mesmo modo, o discurso de trabalho em equipe gerava constantemente ambientes
que inibiam a formação de discussões e conflitos no que tangiam questões sobre direitos e
necessidades de mudanças.
Além disso, poder sem autoridade permite aos líderes de uma equipe
dominar os empregados negando legitimidade às suas necessidades e
desejos. Na fábrica de Subaru-Isuzu, onde os administradores usavam a
metáfora dos esportes chamando-se treinadores, Laurie Graham constatou
que era difícil, senão fatal, um trabalhador falar diretamente de problemas a
um chefe-treinador em outros termos que não de cooperação de equipe; a
conversa direta envolvendo reivindicações de maior salário ou menos
pressão para aumentar a produtividade era vista como falta de
cooperatividade do empregado. O bom jogador de equipe não se queixa. As
ficções de trabalho em equipe, pela própria superficialidade de seu conteúdo
e seu foco no momento imediato, sua fuga à resistência e ao confronto, são
assim, úteis no exercício da dominação (SENNETT, 2012, p. 131).
Sennett portanto mostra que mesmo nos discursos de um trabalho mais cooperativo e
mais atento ao trabalhador, há sérias possibilidades de mesmo assim, existir uma verdadeira
pressão sobre os funcionários. Embora se reconheça oficialmente as potencialidades e
competências dos membros das equipes; estratégias e ficções organizacionais pertencentes à
cultura organizacional, buscariam formas de manter o funcionário dentro do padrão ainda
esperado da empresa.
Dessa forma, o autor aponta a necessidade de se ir além do aparente quando
analisamos as relações de trabalho no capitalismo contemporâneo.
Diz-se que, atacando a burocracia rígida e enfatizando o risco, a flexibilidade
dá as pessoas mais liberdade para moldar suas vidas. Na verdade, a nova
ordem impõe novos controles, em vez de simplesmente abolir as regras do
passado – mas também esses novos controles são difíceis de entender. O
novo capitalismo é um sistema de poder muitas vezes ilegível (SENNETT,
2012, p. 10)
Do livro Sennett muita coisa pode ser explorada. Inclusive elementos de uma atitude
parentética. Como seria o caso do supervisor da padaria de Boston, já citada.
O jamaicano negro Rodney Everts entrara ainda jovem na padaria, ainda na época dos
gregos. E diferente dos atuais colegas de trabalho que se mostravam conformados com a
rotina do trabalho, Everts se mostrara “furioso” (Sennett, 2012, p. 77) com a forma com a
qual os padeiros e demais funcionários obedeciam a ordens prontamente, sem se questionar
(embora ciente, de que a organização do trabalho não é culpa dos trabalhadores). Mostrava
também uma inquietação com a ficção de que o trabalho flexível fosse vantagem para o
funcionário e não para a empresa. O sentimento de incomodo também se repetia com a
preferência da empresa por funcionários não sindicalizados e com os inquestionáveis
desperdícios do processo produtivo.
Everts se esforça para estimular os funcionários a aprender técnicas reais para serem
realmente padeiros, dominando a técnica e o processo produtivo, e se questiona sobre a
posição da organização e a sua própria diante do quadro vivido.
Uma outra aproximação com uma atitude parentética pode ser notada no capítulo 7
“Fracasso”. Sennett conta sobre os sequentes bate-papos de programadores desempregados da
IBM na década de 1990. Desnorteados, tais funcionários culparam primeiramente seus
superiores (que também entraram na lista de demissões), posteriormente os programadores
indianos que custavam bem menos para a empresa. E, por último, o fato de não terem
atentado para as mudanças da informática e buscarem outras direções.
As discussões contribuíram para que os sujeitos tivessem uma visão mais ampla do
que seria fracasso ou crise em suas trajetórias profissionais e pessoais. E o fizeram repensar se
seus papéis eram de apenas vítimas ou se também como agentes diante dos momentos de
escolhas.
Todavia, a aproximação com uma atitude parentética parece não se deu de uma forma
linear. Os programadores se afastaram de seus papeis na comunidade, e as narrativas que se
geraram a partir de seus encontros pareciam não visar o futuro.
Assim como Ramos (1984) apontava diversos exemplos de atitudes parentéticas no
seu artigo; os autores deste trabalho compartilham a percepção de que há diversas atitudes
parentéticas no cotidiano, todavia os demais modelos continuam a ser fortes nas instituições,
mesmo que ilegíveis ou aparentemente ocultadas frente a discursos mais modernos.

5.2 O HOMEM PARENTÉTICO E AS NOVAS PROPOSIÇÕES TEÓRIAS – O


NOVO SERVIÇO PÚBLICO
A proposição de Homem Parentético permeia as obras de Guerreiro Ramos. Ele é o
homem por trás da Redução Sociológica, da Nova Ciência das Organizações, da
Administração e o Contexto Brasileiro. Mas, será tratado neste momento, a influência desse
modelo nas conceituações de Guerreiro sobre a Nova Administração Pública (NAP), também
chamada de New Public Administration (NPA), ideia da qual foi um dos teóricos da época.
Contudo, esse movimento foi enfraquecido com a Ascensão da Nova Gestão Pública (NGP)
ou New Public Managment (NPM). Todavia, Denhardt e Denhardt (2007) têm resignificado e
atualizado as ideias da NPA. E propõe o que chamam de Novo Serviço Público (NSP) ou
New Public Service (NPS).
Para começar a falar de NPA, sobre a ótica de Guerreiro Ramos (1983), voltamos ao
tema da racionalidade. Na verdade, haveria um aspecto presente na racionalidade: a
ignorância. Essa ignorância se refere ao modo pelo qual o indivíduo que desconhece um
determinado fenômeno reage a ele, e ao conhecimento gerado a partir deste contato. No caso,
é posto foco no agente público e as novas demandas sociais, de natureza complexa, que
surgem no mundo.
Guerreiro (1983) estabelece na sua conceituação dois tipos: a ignorância insuspeitada
e a ignorância consciente. A primeira é delimitada pelo desconhecimento e a falta de suspeita
na falência das formas e estruturas intelectuais. Ou seja, alienado ao processo de
transformação em uma perspectiva geral. Não consegue captar as mudanças ocorridas nas
conjunturas. Prende-se as estruturas que conhece e fica insensível as singularidades das
situações que não tenham um precedente conhecido. Esta seria a ignorância da racionalidade
instrumental.
A ignorância consciente é tida por Guerreiro (1983) como a ignorância que devemos
confessar. Uma vez, que ela nos mostra o que nos falta conhecer, possibilitando a ampliação
do conhecimento e dos horizontes. Ela nos leva a desconstruir métodos e desenvolver, por
meio da ação, novas alternativas, tal qual prega a fenomenologia por meio da pesquisa ação.
Pois a Nova Administração Pública surge dessa atitude intencional - plenamente parentética -
da ignorância consciente. Da diferença entre o que sabemos e o que precisamos desenvolver
para realizar os deveres específicos da função pública. É a ignorância da racionalidade noética
– também chamada de racionalidade substantiva. Que é a racionalidade desenvolvida pelo
homem parentético.
Outro conceito que Guerreiro Ramos (1983) usa na sua teoria sobre NPA é o de
engajamento. O qual define como uma das premissas valorativas de nosso comportamento
profissional. É a consciência do seu lugar no mundo, do contexto histórico que está inserido e
o posicionamento político e ativo com relação ao ambiente para sua transformação. Guerreiro
Ramos (1983) destaca 3 engajamentos: com o mundo, com o crescimento humano e com a
legitimidade. Ou seja, pensa o agente público como um ser capaz de transformar a realidade.
Sendo crítico, político e ativo.
Assim, podemos compreender que a ignorância consciente e os engajamentos são
elementos intrínsecos ao Homem Parentético. Que na verdade, partem dele para as
determinações teóricas que buscam as soluções das demandas e o desenvolvimento do
conhecimento dentro da proposição da Nova Administração Pública.
Outra dimensão importante quando falamos de nova administração pública é
entender que ela essencialmente não é prescritiva (DENHARDT, 2013). Ela busca a
revivescência da práxis. A práxis é uma unidade indissolúvel entre teoria e prática. Uma
relação dialética entre o empírico e o especulativo. Por seu teor prático-crítico não quer se
enquadrar em ser prescritivo, uma vez que por meio da pesquisa-ação busca a solução mais
apropriada que a realidade pode oferecer. Ou seja, quer a união de ignorância consciente e
engajamento.
Denhardt (2013) destaca, ao trabalhar sobre NPA, o papel das teorias do humanismo
organizacional, que já citamos como uma das bases do homem parentético. Enfatiza o caráter
da NPA de ser uma alternativa aos padrões existentes de pesquisa e ensino em administração
pública, com a premissa declarada, fortemente engajada, de desafiar o campo. Coloca o
mérito da NPA de revelar anomalias no arcabouço das teorias organizacionais.
Contudo, Denhardt (2013) vê limitações nos trabalhos desenvolvidos pela NPA.
Alega a falta de foco alternativo específico com uma das causas. Salienta que na NPA um dos
pilares é a ideia de que os administradores deveriam fazer política e não viver a dicotomia
entre política e administração. Tal medida faz com que a administração pública se foque em
interesses mais amplos e passe a olhar a relação com o público de outra forma.
Após o alastramento do pensamento gerencialista, que emergiu com a ascensão de
governos conservadores na Inglaterra e nos EUA, com toda sua modelagem de formatar a
gestão pública aos moldes da privada, o que levou ao processo de clientelização do cidadão;
hoje o debate se centra sobre formas alternativas de se estruturar a administração pública. Por
conta do entendimento que os interesses, as atribuições e os objetos do setor público e do
privado são diferentes, assim como a sua lógica de agir e o processo de geração de valor. Para
propor uma alternativa, os estudiosos voltam às ideias da NAP, com a missão de resgatar o
sentido e os valores de alguns conceitos.
Três pontos evidenciam o quanto a administração pública e a epistemologia
positivista entram em conflito (DENHARDT, 2013, pg. 217): O questionamento a visão
restrita da razão humana, entendimento incompleto sobre a aquisição do conhecimento e o
mal desenvolvimento da relação entre teoria e prática. Tal como foi visto na NAP, Denhardt
(2013) mostra que o modelo se limita ao pragmatismo funcional, e acaba por deixar de lado os
aspectos importantes do seu objeto de estudo.
Denhardt (2013) usa a crítica do próprio Guerreiro à visão restritiva da razão
humana. O qual liga a racionalidade instrumental ao crescimento de uma economia de
mercado. E que isso teria impacto na vida dos indivíduos e da sociedade, uma vez que as
pessoas são reduzidas a meros detentores de empregos dentro de uma estrutura em um dado
período. E argumenta que esse processo leva a: insegurança psicológica, degradação da
qualidade de vida, poluição e desperdício dos recursos limitados do planeta.
Em diversos casos, a racionalidade instrumental nos leva a buscar objetivos que estão
em desacordo com os nossos valores e da sociedade. Coisa que o homem parentético não se
permitiria, uma vez que é dotado de racionalidade noética, que certamente é o tipo de
racionalidade que Denhardt (2013) quer usar em suas proposições. E categoriza que a
distinção feita no modelo racional entre meios e fins tem conexão direta com a dicotomia
entre política e administração.
Denhardt (2013) aproveita esse gancho para abordar o papel da administração
pública em uma democracia e, de certa forma, traz à tona o senso de engajamento – com a
possibilidade de responsabilização e decisão - e dos valores que Ramos pregou em sua obra.
Guerreiro Ramos, explorou amplamente essa questão de desenvolvimento do conhecimento
no seu homem parentético. Uma vez que é um dos pilares da sua conceituação. Que bem ou
mal por conta do seu modus operandi coincide na busca pela práxis – que é uma das
centralidades do modelo de homem multidimensional.
Tal como a NPA, Denhardt (2013) propõe pensar as organizações públicas por meio
de uma base epistemológica diferente, a qual possibilite entender: I) o respeito necessário a
subjetividade - assim como as questões raciais e de gênero – na busca pela ampliação dos
direitos civis; II) o paradigma ativo-social - no qual se compreende que as pessoas são mais
ativas que passivas e vivem da interação entre elas; III) a reformulação da responsabilidade
administrativa - uma nova compreensão de direitos e deveres, que permeie tanto nas
dimensões individuais e coletivas; IV) o questionamento a redução da esfera pública e suas
implicações - A esfera pública teria o compromisso de levar muito mais direitos e serviços ao
cidadão, não podendo se subjugar a uma determinada racionalidade intencional que só
observa o mundo pela via unidimensional da economia; V) uma comunicação sem distorções
- Buscar eliminar as assimetrias na comunicação que servem como forma de dominação,
estabelecendo um processo para o debate público que permita autorreflexão generalizada e
crítica, aquela que leva ao desprendimento que o homem parentético desenvolve; VI) repensar
criticamente as instituições públicas e a democracia representativa - Devemos pensar o design
dessas instituições em meio a uma democracia representativa que anda em crise de
legitimidade.
Logo, esses elementos significam entender o fenômeno das relações sociais
contemporâneas por meio da sua complexidade de situações, objetivos e atores. Denhardt vai
à fenomenologia, à teoria crítica e ao pós-modernismo - tal qual os autores da NPA haviam
feito - para encontrar novos caminhos para realidade que nos cerca. Tentar entender o mundo
lidando com ele. Afinal o mundo é feito das interações sociais. Onde temos direitos, mas
deveres também. Sejam essas responsabilidades pessoais ou coletivos.
Nesse cenário, surge a seguinte proposição de Denhardt (2013): o servidor público
como a conexão entre a esperança e a realidade política. O que é isso senão a ideia de
engajamento. A ideia parentética do ser humano crítico e atuante, que chega a sacrificar o seu
interesse individual pelo interesse coletivo. Tal como o caso citado por Ramos (1983) do
jovem recém-formado em Yale, que não ambicionava se tornar gerente em uma indústria que
produzia papelão, em um contexto de uma sociedade que já produz em excesso e renega a
dimensão ambiental. Priorizando o bem coletivo ao seu possível crescimento individual em
termos de carreira. Nesse cenário o coletivo ganha evidência, sobrepõe interesses individuais
ou de seletos grupos.
Em decorrência disso, a cidadania e comunidade ganham o foco. O interesse e o
valor público se tornam os objetivos. Os direito e responsabilidade viram o compromisso em
termos de engajamento. O cidadão deixa de ser visto como cliente e volta a ser visto como ser
político, ativo e responsável por sua realidade. E nesse ambiente tem que aprender a dialogar,
decidir e aprender a ceder pelo bem comum. A prestação de contas (accountability) e a
governança em rede ganham importância como instrumentos de compromisso e decisão pelas
ações públicas.
Para tais ambições, o autor elenca seus 7 princípios-chave: 1) servir cidadãos, não
consumidores; 2) perseguir o interesse público; 3) dar mais valor à cidadania e ao serviço
público do que ao empreendedorismo (combater a ideia que os gestores públicos têm pleno
poder discricionário com o dinheiro público); 4) pensar estrategicamente, agir
democraticamente; 5) reconhecer que a accountability não é simples; 6) servir em vez de
dirigir; 7) dar valor às pessoas, não apenas à produtividade. (DENHARDT, 2013).
Tais princípios buscam levar o serviço público a outro patamar. Combater as
dicotomias entre: política e administração; as compreensões de mundo imprecisas e
negligenciadoras com a nossa realidade; entre vontades individuais e coletivas ou entre
grupos seletos e a maioria da população. Estas proposições buscam desenvolver no cidadão e
no servidor público - que não deixa de ser um cidadão nessa ótica - o próprio homem
parentético. A capacidade de transcender pelo bem comum. De saber a circunstância e seu
dever com o mundo, com a capacidade de criar e transformar.

6 CONCLUSÕES

No presente texto, foi percorrido um caminho da origem do homem parentético até


prováveis representações em discussões atuais, as quais foram mostradas aqui com o intuito
de atualizar o entendimento sobre o tema e de descobrir novas ressignificações. Assim como
tornar evidente o caráter visionário da obra de Alberto Guerreiro Ramos.
As habilidades e atitudes descritas do Homem Parentético se revelam para nosso
contexto como mais do que necessárias aos indivíduos. Conforme exposto nesse trabalho,
esse pensamento foi sendo concebido por ideias que se aglutinaram por gerações - passando
por pensadores como Hurssel, Maritain, Berdyaev, Ortega y Gasset, Heidegger e os autores
do humanismo organizacional - até serem construídas e organizadas, tal como tijolo sobre
tijolo, pelas mãos de Guerreiro Ramos. E hoje, por conta das características observadas no
capitalismo contemporâneo, elas se tornam ainda mais urgentes, como podemos ver nas
leituras de Sennet e de Denhardt.
Richard Sennet com o seu olhar sociológico capta reflexos – observados nos
conflitos e dilemas da existência humana no mundo contemporâneo - do que a sociedade de
mercado provoca ao afetar a subjetividade e as relações sociais. O que possibilita
problematizar o processo de coerção social estabelecido nas organizações, embora com
discursos mais modernos e arrojados a fim de satisfazer os interesses efêmeros do capital.
Logo, desenvolver a psicologia do Homem Parentético seria emancipar os indivíduos e
reordenar a relação de prioridades na sociedade. Fazer com que seja desenvolvido a
propensão a não se abater pelos supostos fracassos no mercado, por ter um conceito maior do
que é o sucesso (RAMOS, 1984), ou fazer como Bérenger e não se deixar levar pela manada.
Na leitura de Robert B. Denhardt, focada na administração pública, vemos os
desafios que o Estado enfrenta em relação as variadas demandas que emanam da sociedade e
dos seus vários atores sociais. Tal como Guerreiro já havia proferido nas suas formulações
sobre a NPA (New Public Administration). Denhardt, revisita as ideias da NPA, desenvolve
novo sentido para elas e as incrementa com mais aspectos técnicos, teóricos e metodológicos,
para criar o conceito de Novo Serviço Público. O qual exige a psicologia do Homem
Parentético – dentro da concepção dos 7 princípios-chaves e da ótica do servidor público
como conexão entre a esperança e a realidade - para que as relações políticas de negociação
entre os atores sociais se sustentem, e assim tornar plausível as estruturas de governança em
rede e o accountability, e isso, seriam pré-requisitos não somente para o servidor público -
teria sua concepção e relação com o trabalho completamente reformuladas - mas também,
para o cidadão. Uma vez que nesse contexto ganha papel político ativo nas deliberações do
estado, tal como Guerreiro Ramos (1984) afirmara que seria uma característica de seu homem
multidisciplinar.
Logo, o Homem Parentético não seri mais só um modelo de homem observado
escassamente em alguns países de destaque do capitalismo central ou traço observado em
notáveis figuras históricas. Ele é uma necessidade do mundo globalizado para sobreviver a
sua própria sina. É o modelo de homem capaz de ajustar as arestas da sociedade
contemporânea e capaz de desenvolver nela uma capacidade política colaborativa dentro das
comunidades. Assim, na dimensão individual, educar indivíduos que coloquem os valores e a
ética no cerne das suas atitudes e que atuem em prol do coletivo.
Visto isso, a sociedade, assim como a administração, deve repensar seus modelos de
educação, para conseguir conceber meios pedagógicos e de formação acadêmico- profissional
que estimulem a atitude parentética. Assim, os indivíduos teriam mais arcabouços que lhe
permitiriam condições de lidar com os desafios contemporâneos do mundo do trabalho e, não
mais reduzido às suas relações econômicas, recuperando assim a importância das relações
sociais e da subjetividade.
BIBLIOGRAFIA
AZEVEDO, Ariston e ALBERNAZ, Renata. Possibilidade e Multiplicidade do Social em
Alberto Guerreiro Ramos. XXVII Encontro da ANPOCS;
AZEVEDO, A., & ALBERNAZ, R. (2006). A "antropologia" do Guerreiro: a história do
conceito de história do conceito de homem parentético. Cadernos EBAPE.BR, 1-19.
DENHARDT, R.B. Teorias da Administração Pública. São Paulo. Cengage Learning, 2013.
FRIED, I. (24 de Janeiro de 2008). Gates seeks 'creative capitalism'. Acesso em 13 de Julho
de 2015, disponível em http://www.cnet.com/news/gates-seeks-creative-capitalism/
MARTINS, P. E. (2012). O Espaço-Dinâmica Organizacional em Perspectiva Histórica. Em
H. C. VIEIRA, N. N. GALVÃO, & L. D. SILVA, Brasil Holandês - História, Memória e
Patrimônio Compartilhado (pp. 327-341). São Paulo: Alameda Casa Editorial.
MARTINS, Paulo Emílio Matos. El Hombre, el ‘Espacio-Dinamica Organizacional’ y la
Sociedad Informada: Um diálogo entre Guerreiro Ramos y Bolivar Echeverria. 2015.
RAMOS, A. G. (1984). Modelos de Homem e Teoria Administrativa. Revista de
Administração Pública, 3-12.
RAMOS, A. G. A nova ignorância e o futuro da administração pública na América Latina.
Latina. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 32-65, 1981.
RAMOS, A. G. Mito e Verdade da Revolução Brasileira. Rio de Janeiro: ZAHAR Editores,
1963.
SALGADO, Francisco e ABAD, Andres. Utopía como imaginación organizacional en el
pensamiento crítico de Guerreiro-Ramos. Rio de Janeiro: Cadernos EBAPE, 2015.
SENNETT, R. (1999). A Corrosão do Caráter. Rio de Janeiro: Record.
SENNETT, R. (2012). A Corrosão do Carater - O Desaparecimento das Virtudes com o
Novo Capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Best Bolso.

1
Termo citado pelo empresário Bill Gates em um discurso em Davos em 2008 (Fried, 2008)
2
Expressão utilizada por Zizek para tratar da estratégia recente do capitalismo de apresentar soluções para
problemas que ele mesmo provocaria ou potencializaria. Conforme trecho de vídeo sobre sua palestra (2009),
aos 7min42s, disponível pelo link www.youtube.com/watch?v=hpAMbpQ8J7g , acessado em 5 de jul. 2015.
   

O Brasil nos Contextos Internacional e Doméstico: crises e resiliência do


neoliberalismo (2003-2015)

Carlos Pinho - FGV/DAPP-IESP/UERJ-INCT/PPED-NEIC/IESP-UERJ 1

Rafael Moura2 - IESP/UERJ-INCT/PPED-NEIC/IESP-UERJ

1. Introdução

No cenário contemporâneo, esta pesquisa tem por objetivo analisar, por um lado,
os constrangimentos sistêmicos internacionais e, por outro lado, os entraves domésticos
para a formulação de uma estratégia nacional de desenvolvimento assentada no
crescimento econômico com distribuição de renda e incorporação social substantiva no
Brasil.
A economia brasileira alcançou altas taxas de crescimento durante a
industrialização substitutiva de importações (ISI) do Nacional-Desenvolvimentismo
(1930-1980). Isto ocorreu não obstante a alarmante exclusão social, o aumento da
desigualdade e o insulamento burocrático do aparelho de Estado, que marginalizava a
instância parlamentar-partidária e as camadas trabalhadoras do processo decisório
referente às políticas públicas. Numa perspectiva de longo prazo, a economia brasileira
está semiestagnada. Desde 1980, o crescimento per capita é inferior a 1%, contra 4,1%,
entre 1950 e 1979 (BRESSER-PEREIRA, 01/04/2015). No âmbito internacional, em
comparação com a China e a Índia, o Brasil também acumula baixos índices de
crescimento. Tal quadro adverso oblitera tanto a inserção competitiva quanto a própria
integração do país na economia mundial. A erosão do crescimento - que alcançou o seu
auge em 2010 mediante uma taxa de 7.5% e por meio de uma estratégia nacional
centrada no fortalecimento do mercado doméstico via agressiva política salarial e de
crédito - deveu-se, em grande parte, ao fim do ciclo de bonança das commodities no
exterior, ciclo este para o qual teve essencial contribuição a ascensão chinesa e seu
perfil de demanda.
                                                                                                                       
1
É Pesquisador da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/DAPP).
Ministrou a disciplina “Formação do Estado Brasileiro” para o Cursos de Graduação em Administração
Pública, Ciência Política e Direito, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), entre
2013/2 e 2014/1, no âmbito do estágio-docência. Foi professor assistente/substituto do Departamento de
Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(DCP/IFCS/UFRJ), durante o ano de 2012. Setor: Políticas Públicas. Mestre e Doutorando em Ciência
Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(IESP/UERJ), antigo IUPERJ. Pesquisador Assistente do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em
Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT/PPED) e do Núcleo de Estudos do
Empresariado, Instituições e Capitalismo (NEIC-IESP/UERJ), ambos sob coordenação do Professor e
Orientador Renato Raul Boschi. E-mail: carlos.pinho@fgv.br
2
Mestrando em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), antigo IUPERJ. Bacharel em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Pesquisador Assistente do
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento
(INCT/PPED) e do Núcleo de Estudos do Empresariado, Instituições e Capitalismo (NEIC-IESP/UERJ),
ambos sob coordenação do Professor e Orientador Renato Raul Boschi. E-mail:
rafaelmoura5028@gmail.com

1  
 
   

A resposta do Brasil à crise financeira sistêmica do capitalismo global (PINHO,


2012), que eclodiu em 2008, possibilitou a emergência de um embrionário experimento
socialdemocrata ancorado na desmercantilização da força de trabalho dos cidadãos mais
pobres, na formação de capital humano e na erradicação da pobreza extrema. Tal
quadro, somado a baixos índices de desemprego em um país históricamente pautado
pela exclusão social, foi um dos principais fatores que possibilitou a reeleição de Dilma
Rousseff em 2014. Entretanto, as adversidades da atual conjuntura não mais aparentam
garantir o triunfo deste experimento outrora exitoso, fornecendo, muito pelo contrário,
indicativos de um possível esgotamento de tal modelo de desenvolvimento inclusivo.
São inúmeros os exemplos: queda das exportações de commodities em virtude da
desaceleração do crescimento da China, lenta recuperação do mercado internacional,
retração do crédito, aumento sucessivo da taxa de juros para combater a inflação,
crescente endividamento das famílias, elevação do desemprego e redução do consumo
doméstico. Esses fatores dão indícios de exaustão do modelo de desenvolvimento
ancorado exclusivamente no mercado interno, marca imprimida pela gestão Lula da
Silva. A resposta brasileira pela via das políticas de distribuição ou transferência de
renda proporcionou um enfrentamento e melhorias substantivas de curto e médio prazo.
Porém, os impactos de longo prazo se fazem sentir, sobretudo dentro de um quadro de
políticas macroeconômicas de cunho neoliberal.
A crise pela qual passa o Estado brasileiro tem componentes diversos e
heterogêneos, contudo, complementares. Primeiramente, o crescimento econômico em
notória desaceleração minou gradualmente a arrecadação do Estado brasileiro e
deteriorou sua capacidade fiscal. Os gastos financeiros dispararam com a alta dos juros
promovida pelo Banco Central para conter a inflação. De 251,1 bilhões em 2014, o
pagamento dos juros da dívida saltaram para 334,6 bilhões em 2015 (FOLHA DE SÃO
PAULO, 03/05/2015). As receitas do Estado disponíveis para o prosseguimento das
políticas expansionistas tornaram-se escassas. Como as principais despesas federais
(salários, aposentadorias, benefícios assistenciais e transferências a estados e
municípios) são obrigatórias, o ajuste fiscal em curso se concentra em investimentos. A
redução da desoneração da folha de pagamentos e o aumento dos juros do BNDES para
o empresariado industrial vêm provocando a reação da FIESP e da CNI, que defendem
o arrocho no âmbito do controle do gasto público e não no aumento da tributação e no
corte do investimento (G1, 27/02/2015).
Segundo, a irrupção do maior escândalo de corrupção envolvendo atores
públicos (partido políticos da base aliada governativa e burocratas estatais) e privados
(grandes conglomerados e empreiteiras de obras públicas) no bojo da principal empresa
do país, a Petrobras, vem afetando as capacidades estatais de intervencionismo para a
promoção de políticas públicas e ameaçando a centralidade da política social. Tal
escândalo de corrupção vem se desdobrando na Operação Lava Jato3, protagonizada
por instituições como a Polícia Federal, o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal de
Contas da União e o Ministério Público, com graves repercussões econômicas e
políticas.
Terceiro, a paralização das grandes obras de infraestrutura vem gerando vasto
desemprego, sobretudo na construção civil, que emprega a população mais pobre e de
baixa escolaridade. Cabe destacar o atraso nas “concessões” de rodovias, ferrovias,
portos e aeroportos, que são indispensáveis para suprimir os “gargalos” que
obstaculizam o desenvolvimento, aumentar a competitividade e a produtividade da
economia. Isso é necessário a fim de modificar as condições estruturais para o
                                                                                                                       
3
Se por um lado tal escândalo é negativo para a retomada da economia, por outro lado, aponta para o
aprimoramento das instituições de controle externo da democracia representativa do país.

2  
 
   

desenvolvimento sustentado, bem como para promover a transição de um modelo de


governança assentado em uma coalizão favorável à redistribuição para um que tem no
investimento o seu ponto fulcral (PINHO, 2015).
Finalmente, a delegação da gestão macroeconômica e de vastos poderes
presidenciais4 a um Ministro da Fazenda vinculado à vinculado à corrente mainstream
em economia. Este, por sua vez, está comprometido com a execução de um ajuste fiscal
recessivo para retomar o crescimento da economia e restabelecer a credibilidade do país
junto às elites domésticas e ao sistema financeiro internacional. A consequência da
austeridade é a paralização dos investimentos produtivos em prol da obtenção de um
superávit primário para o pagamento dos juros da dívida pública e alimentar alimentar
as práticas rentistas do setor financeiro. Este cenário marca o revigoramento do velho
tripé macroeconômico dos anos 1990 - responsabilidade fiscal, regime de metas de
inflação e câmbio flutuante. Esgota-se, portanto, a possibilidade de formulação de uma
alternativa socialdemocrata diante da ruptura da coalizão política desenvolvimentista,
que tinha as políticas sociais no cerne do modelo de desenvolvimento.
A literatura clássica sobre as Variedades de Capitalismo (VoC), que tem em
HALL e SOSKICE (2001) os seus autores basilares, ressalta a complementaridade
institucional e as vantagens institucionais comparativas somente ao nível das firmas,
negligenciando o papel do Estado bem como a fluidez e volatilidade do capitalismo
financeiro, que constrange mormente as ações daquele. Tal constructo analítico, ao
estabelecer tipologias rígidas (Liberal Market Economy X Coordinated Market
Economy) aplicadas exclusivamente à caracterização dos países da Europa e da
América do Norte, inviabiliza pensar a complexidade da variedade de capitalismo de
Estado no Brasil. Trata-se de uma abordagem sumamente economicista e determinista, a
despeito dos inovadores aportes conceituais que ela traz. Não obstante, a pesquisa aqui
proposta busca ir além, uma vez que ressalta as metamorfoses pelas quais o capitalismo
brasileiro vem passando no cenário contemporâneo, considerando a centralidade
institucional do Estado e suas articulações com o empresariado industrial, a burocracia
governamental, os sindicatos/trabalhadores e o sistema financeiro especulativo nacional
e global.
Um aspecto crucial do argumento aqui desenvolvido diz respeito ao fato de que
a sustentação de uma estratégia socialdemocrata de distribuição de renda e
investimentos públicos estratégicos fica circunscrita ao beneplácito da ortodoxia fiscal e
ao imperativo da estabilidade macroeconômica. Isso torna, numa perspectiva de longo
prazo, o horizonte temporal do planejamento governamental para o desenvolvimento
capitalista nacional, limitado e incerto. A margem de manobra para a implementação de
um arcabouço institucional consistente e duradouro de políticas sociais torna-se muito
reduzida.
Esta pesquisa tentará responder as seguintes questões: (1) O Brasil vem
adotando alguma estratégia de desenvolvimento, após o esgotamento do ciclo
internacional de bonança das commodities, que predominou na primeira década do
século XXI? (2) Diante do exaustão de um modelo de crescimento assentado no
mercado interno, da emergência de um escândalo de corrupção na maior empresa estatal
brasileira (Petrobras) e de uma guinada ortodoxa de 180º graus na política
macroeconômica, é possível afirmar que a variedade de capitalismo de Estado no Brasil
está em declínio? (3) No ordenamento corporativo brasileiro contemporâneo, como a
crise desta variedade de capitalismo de Estado vem impactando nas relações
                                                                                                                       
4
Diante da inépcia do Poder Executivo, o Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, tem visitado com
frequência o Congresso Nacional e, portanto, negociado sistematicamente com o Poder Legislativo a
implementação do ajuste fiscal ortodoxo e recessivo.

3  
 
   

capital/trabalho, público/privado e no âmbito da política social? (4) A crise da variedade


de capitalismo no Brasil vem dissolvendo as capacidades do Estado para a
implementação de políticas públicas no longo prazo? (5) As políticas sociais, a
preservação do emprego e dos ganhos de renda dos mais pobres vêm perdendo
centralidade diante da consecução de um ajuste fiscal ortodoxo e da supremacia do
rentismo financeiro?
A hipótese deste trabalho é que o Brasil adotou uma estratégia
neodesenvolvimentista e socialdemocrata que lhe proporcionou dar respostas políticas
assertivas à maior crise financeira sistêmica do capitalismo global (PINHO, 2012a),
que eclodiu em 2008. Todavia, entre o final de 2014 e o início de 2015, o país ingressou
numa crise endógena de diferentes dimensões e não consegue formular uma alternativa
a ela em virtude da resiliência do neoliberalismo e da hegemonia do capitalismo
financeiro não-produtivo. Tal crise vem minando as capacidades do Estado de
intervencionismo para dar sustentação e robustez ao Estado do Bem-Estar Social
enquanto a maior construção política do século XX no país.
Metodologicamente, o trabalho realiza uma interlocução com a literatura
nacional e internacional atualizada sobre as Variedades de Capitalismo (VoC), a Teoria
e Prática da Social Democracia, o Welfare State, a Sociologia Econômica, a Sociologia
Política, a Economia e a Economia Política do Desenvolvimento. Os dados empíricos
arrolados nesta pesquisa serão ilustrados por meio de gráficos, tabelas, consulta a sites
de instituições governamentais domésticas e internacionais, livros, artigos, periódicos,
teses de doutorado, dissertações de mestrado, jornais e revistas de grande circulação
nacional.
A estrutura do paper segue a seguinte ordem. Primeiramente, far-se-á uma
apresentação em perspectiva comparativa dos BRICS, da América Latina e dos países
do Norte desenvolvidos, sobretudo no que diz respeito às tendências macroeconômicas
gerais, em um contexto de deterioração dos termos de troca e de barateamento dos
preços das commodities. Este último fator deu fim a um ciclo expansivo vigoroso que
notabilizou toda a década anterior, favorecendo o boom exportador por parte de alguns
países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Trata-se de capturar, pelo menos
sob a ótica dos maiores agregados, os direcionamentos da economia global. Também
serão abordados os indicadores sociais do Brasil de forma comparada com os demais
BRICS, de maneira a mostrar como o país obteve notoriedade internacional pelas
políticas de proteção social, minimização da pobreza extrema e redução das
desigualdades sociais estruturais.
Segundo, refletir-se-á sobre o esgotamento da estratégia socialdemocrata e
neodesenvolvimentista de proteção social. Isso vem ocorrendo em razão da irrupção da
crise fiscal do Estado advinda do baixo crescimento econômico, do escândalo de
corrupção envolvendo grandes conglomerados econômicos (empreiteiras), partidos
políticos da coalizão de governo e a Petrobras. Tais fatores vêm minando as capacidades
estatais de arrecadação para a intervenção social. Soma-se a isso o ativismo de um
Parlamento conservador e a tibieza do Estado brasileiro em promover reformas no
sentido da tributação progressiva, que desonere os mais pobres e taxe o patrimônio, a
renda e a herança. Ademais, destacar-se-á a renúncia fiscal da sonegação, a necessidade
de regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas, do capitalismo financeiro
especulativo/apátrida e de realização de uma auditoria da dívida pública. Certamente, a
adoção desta agenda de viés desenvolvimentista vetaria a alternativa ortodoxa, que
socializa os prejuízos, sacraliza os ricos e sacrifica os mais pobres.
Finalmente, ressaltar-se-á as medidas de ataque deliberado ao Estado do Bem-
Estar Social e aos direitos sociais para viabilizar o ajuste fiscal, o pagamento de juros

4  
 
   

ao setor financeiro parasitário e restabelecer a credibilidade do Estado brasileiro junto


ao mercado financeiro doméstico e internacional. O objetivo é enfatizar a direção
equivocada que o Estado vem seguindo, a partir de sua rendição incondicional ao
“austericídio” fiscal num quadro de resiliência do neoliberalismo e de financeirização
da economia. Isso se consubstancia em cortes de programas sociais estratégicos,
recessão econômica, agravamento do desemprego, deterioração da renda e falta de
recursos nas universidades públicas. Convém elucidar a paralização de investimentos do
PAC e a retração do papel do BNDES, da Caixa Econômica Federal e do Banco do
Brasil, que são indispensáveis à materialização de uma estratégia endógena de
desenvolvimento.

2. Brasil e Países Emergentes nos Contextos Internacional e Doméstico no Novo


Milênio: estratégia neodesenvolvimentista-socialdemocrata de crescimento
econômico com incorporação social

Os anos 2000 foram marcados pelo aumento exponencial do boom das


commodities no cenário internacional e pela elevação das taxas de crescimento do
Brasil e da América Latina, exportadores de produtos primários. Isso resultou na
redução significativa das taxas de pobreza extrema e da desigualdade nos países
governados por coalizões de centro-esquerda5 – Argentina, Bolívia, Brasil, Chile,
Equador e Venezuela - e que adotaram políticas desenvolvimentistas após a hegemonia
do neoliberalismo nos anos 1990. As reformas orientadas para o mercado tanto no
Brasil como na América Latina não trouxeram o tão galvanizado crescimento
econômico e aprofundaram o processo de exclusão social. Assim, a singularidade desses
governos reside na relevância conferida à temática social como cerne das políticas de
desenvolvimento.
O aumento dos preços das commodities e o crédito farto e barato nos mercados
internacionais foram especialmente úteis para os países em desenvolvimento de 2003 a
2010. Muitas dessas economias aproveitaram as condições externas favoráveis para
aumentar o crescimento por meio de seus mercados internos. Houve também um grande
aumento do comércio Sul-Sul e uma melhoria substancial na gestão dos fluxos de
capital por um grande número destes países a partir de regimes de taxas de câmbio
flutuantes fortemente gerenciadas e uma acumulação maciça de reservas cambiais. O
comércio mundial em geral cresceu rapidamente até 2008 (SERRANO e SUMMA,
2015).
Diante disso, a primeira década do Novo Milênio também notabilizou os BRICs
(Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) no âmbito mundial pelo crescimento
econômico e diversificação da estrutura produtiva. Nos anos 1990, contudo, percebem-
se caminhos relativamente diversos e mudanças de rota das economias dos BRICS,
principalmente da Rússia, após o processo de abertura à globalização (VASILEVA,
2014). Na década de 2000, não obstante, todas essas economias de forma geral entraram
em trajetória de aceleração, que é interrompida pela crise financeira sistêmica global de
2008 (PINHO, 2012a). Após uma desaceleração em 2009, que ocorreu abruptamente na
Rússia, os BRICs tiveram uma recuperação em 2010. Entretanto, a partir de 2011 todos,
                                                                                                                       
5
O trabalho de WEYLAND, MADRID e HUNTER (2010) caracteriza as esquerdas latino-americanas
irrompidas no início do século XXI como “radicais” (Bolívia, Equador e Venezuela) e “moderadas”
(Argentina, Brasil e Chile). Uma análise atualizada acerca da relação entre estabilidade política e
redistribuição de renda nesses países (incluindo o Uruguai, mas sem a Argentina) é fornecida por
SANTOS e ALMEIDA (2015).

5  
 
   

com exceção da Índia, entram em rota de desaceleração e arrefecimento do crescimento,


com a China apresentando percurso mais sustentado e equilibrado, com taxas ainda
altas. Cabe apontar que, diferentemente do Brasil, a China vem passando pela transição
de um modelo pautado no investimento e nas exportações para outro mais endógeno e,
portanto, orientado para o consumo doméstico.

Gráfico 1 – Trajetória de Crescimento Econômico dos BRICS (% PIB), 1990-2014


20

15

10

5 Brasil
China
0
Índia
-5
Rússia
-10 África do Sul

-15

-20
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996

1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006

2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
1997

2007

 
Fonte: Elaboração própria a partir de Giambiagi et al. (2011); World Bank. World Development
Indicators – GDP growth (annual %), Disponível em:
http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG

Tabela 1 – Crescimento do PIB e da Produtividade de trabalho (%), 1950-2011

País PIB Produtividade do Trabalho

1950-1980 1980-2011 1950-1980 1980-2011

China 4.9 9.7 1.2 7.2

Índia 3.6 6.3 1.5 4

África do Sul 4.5 3.2 1.9 2.4

Mundo 4.4 3.7 2.4 2.1

6  
 
   

EUA 3.6 2.7 1.6 1.6

União 4.1 2.3 3.6 1.5


Europeia

América 5.5 2.6 2.8 0.3


Latina

Brasil 6.8 2.6 3.6 0.3

Fonte: Palma, 2011.

Gráfico 2 – Participação dos BRICS no Produto Interno Bruto Mundial (%), 1988-
2013
18

16

14

12 Brasil
10 China
Índia
8
Rússia
6
África do Sul
4

0
1988 2003 2008 2013
 
Fonte: International Monetary Fund (IMF). Disponível em:
https://www.quandl.com/collections/economics/gdp-as-share-of-world-gdp-at-ppp-by-country

O ponto mais claro apreendido pelos gráficos 1 e 2 diz respeito ao aumento da


participação de China e da Índia (o primeiro país, de forma surpreendente) no PIB
mundial e no market share do globo. Para o caso chinês, este incremento corrobora o
sucesso das reformas, liberalizações e inserção mediante exportações de manufaturados
principalmente por suas zonas de processamento e vinculação aos circuitos de comércio
regionais e globais (NAUGHTON, 2007). Com relação ao Brasil, Rússia e África do

7  
 
   

Sul nesse quesito, clara estagnação é percebida, muito embora por diferentes motivos
que merecem escrutínio maior em futuros trabalhos.

Tabela 2 – Especializações e Exportações dos BRICS (%), 2010

País Petróleo, Bens Bens Maquinário Veículos Aço, Têxteis Serviços (%


Gás, elétricos, agrícolas Ferro, das
Minerais Eletrônicos Alumínio exportações
totais)

Brasil 8,9% 2.3% 14,4% 5,3% 8% 2,5% 0,1% 13,9%

China - 24.5% 1,2% 20,2% 2,3% 2,8% 8,4% 9,8%

Índia 13,5% 5.4% 13% 4,1% 5,9% 2,5% 3,5% 36,1%

Rússia 63% 0.9% 1% 1,9% 0,5% 6,8% - 2,8%

África 22,2% 2.3% 3% 7,5% 9,3% 12,6% - 15,2%


do Sul

Fonte: Becker, 2014: p.7.

A análise da tabela sugere a altíssima dependência da Rússia da exportação


petrolífera e de gás, tornando-a fortemente volátil e vulnerável ao cenário externo no
que se refere a preços e demanda por commodities minerais. Brasil e Índia destacam-se
como potências agrícolas, sobretudo face ao fortalecimento do setor primário e do
agronegócio. Isso reforça a dependência desses países do cenário externo no que tange
às commodities agrícolas (mais intensamente no caso brasileiro). Vale lembrar ainda
que a Índia tem uma divisão da propriedade fundiária mais equitativa vis-à-vis o caso
brasileiro, marcado historicamente pelo latifúndio monocultor, escravista e
autossuficiente. No que tange à China, cabe apontar o seu poderio quanto à
especialização em eletroeletrônicos e maquinários, na medida em que suas vendas para
a economia mundial são dotadas de maior valor agregado. Isso reflete uma economia
industrial e manufatureira mais desenvolvida e inserida nas cadeias produtivas globais
(AMSDEN, 20016; NAUGHTON, 2007).

                                                                                                                       
6
  Em sua obra clássica, AMSDEN (2001) retrata, no limiar do século XXI, a ascensão de países
emergentes como Brasil, China, Índia, Coréia do Sul, que desenvolveram experiências manufatureiras
desde o século XIX até a II Guerra Mundial.  

8  
 
   

Gráfico 3 – Trajetória das Desigualdades de Renda: Índice de GINI7

0.8

0.7

0.6

0.5

0.4 GINI Médio Década 1990

0.3 GINI Médio Década 2000

0.2

0.1

0
Brasil China Índia Rússia África do
Sul
 

Fonte: Elaboração própria a partir de Becker (2014); World Bank. World Development Indicators – GINI
Index. Disponível em:
http://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GINI?page=4
 
Com relação à trajetória de retração das desigualdades de renda entre os BRICs,
o ponto relevante a ser salientado é que, tomando em totalidade as décadas de 1990 e
2000, apenas o Brasil foi capaz de reduzir a desigualdade em níveis notáveis, enquanto
os outros países não lograram, apesar do crescimento econômico maior. Configurou-se,
de fato, uma estratégia de caráter social-desenvolvimentista ou socialdemocrata, que
conciliou crescimento do PIB com redução das assimetrias sociais via intervencionismo
estatal, tão execrado pela retórica dos manuais ortodoxos.
Nesta linha argumentativa, a recente obra organizada pela cientista política
Marta Arretche analisa numa perspectiva multidimensional a trajetória das
desigualdades no Brasil de 1960 a 2010, a partir de dados empíricos de seis edições do
Censos Demográficos produzidos pelo IBGE neste mesmo período. Os dados mostram
que nos últimos anos o país reduziu substancialmente a desigualdade social8. Enquanto
                                                                                                                       
7
Não é possível auferir a média do Coeficiente de Gini para a Rússia durante a década de 1990 devido à
ausência de dados completos disponíveis para todos os anos.
8
A pesquisa analisa as mudanças ocorridas ao longo de um período da história brasileira que
compreendeu contextos econômicos e políticos muito diversos: transição rural-urbana, industrialização,
crescimento econômico acelerado e retração econômica, inflação e estabilidade monetária, autoritarismo e
democracia (ARRETCHE, 2015).

9  
 
   

as democracias do mundo desenvolvido (EUA e Europa) testemunharam substancial e


inesperada escalada da desigualdade, o Brasil caminhou na direção inversa. A
desigualdade de renda caiu sistematicamente. O pico da desigualdade de renda ocorreu
em 1989, final do governo Sarney, quando o piso da renda dos 5% mais ricos
correspondia a 79 vezes o teto da renda dos 5% mais pobres. Desde então, essa razão
vem apresentando queda sistemática. Em 2012, ano em que a série atingiu seu patamar
mais baixo, essa razão ainda era de 36. A queda acelerada nos níveis de pobreza, da
desigualdade de rendas no mercado de trabalho e das desigualdades no acesso a
serviços, entre indivíduos e entre regiões, emergiu apenas sob o regime democrático. A
despeito dessa trajetória, não resta dúvida de que o patamar ainda é muito alto. A
América Latina apresenta os mais elevados índices de desigualdade do mundo, e o
Brasil ainda está entre os países mais desiguais da região (ARRETCHE, 2015).
A trajetória de longo prazo das desigualdades no Brasil revela que
deslocamentos nos padrões de desigualdade requerem políticas implementadas por um
longo período de tempo. As desigualdades que apresentaram declínio foram objeto de
políticas cujo desenho visou deliberadamente produzir esse resultado e que ganharam
grande centralidade na agenda do governo federal. Por outro lado, a redução nos
patamares de desigualdade foi muito mais lenta naquelas áreas caracterizadas pela
descontinuidade entre mandatos presidenciais, ou mesmo pela paralisia decisória. No
Brasil, sob a democracia, diminuiu sensivelmente a desigualdade de renda entre os mais
ricos e os extremamente pobres, muito embora seu grau ainda seja muito elevado.
Portanto, os ganhos de renda nos governos petistas foram muito mais expressivos do
que nos períodos anteriores (ARRETCHE, 2015). Tal afirmação converge com o
argumento de que democracias duradouras com coalizão de centro-esquerda
duradoura produzem welfare states mais redistributivos (KERSTENETZKY, 2012, p.
137).
Não obstante, durante a década de 2000, constrangimentos externos ameaçaram
a trajetória de redução da desigualdade no Brasil. Nesse sentido, quanto às respostas
políticas do país à mais grave crise financeira (exógena) e especulativa de 2008,
diversas medidas anticíclicas foram postas pelo Executivo. O objetivo consistia em
contrabalançar os seus efeitos deletérios sobre as conquistas já obtidas em termos de
formalização do emprego, distribuição social da renda e redução das desigualdades. A
intervenção do Estado foi crucial para enfrentar as externalidades negativas do “moinho
satânico que tritura os homens transformando-os em massa” (POLANYI, 2000, p. 51-
59). Criou-se um verdadeiro “contra movimento” de políticas públicas à ação
degradante do mercado e à tentativa de se instaurar uma sociedade regida e orquestrada
pelas leis iníquas do mercado auto regulável9. Dentre as principais iniciativas para o
fortalecimento do mercado interno destacam-se a manutenção e ampliação do escopo
dos programas sociais focalizados (sobretudo o Bolsa Família), a redução de impostos
sobre os produtos industrializados (IPI), os grandes projetos infraestruturais de
intervenção como o PAC (I e II) e os programas habitacionais voltados à população de
menor renda como o Minha Casa, Minha Vida e o Minha Casa Melhor, o acesso ao
crédito visando estimular o consumo doméstico bem como a continuação da política de
valorização do salário mínimo e do aumento do poder de compra das classes
trabalhadoras. No âmbito da política industrial, criou-se o Plano Brasil Maior que, no
                                                                                                                       
9
À luz de uma interlocução com o arcabouço teórico e conceitual de Karl Polanyi, pode-se interpretar
que a crise financeira especulativa de 2008 ensejou, no caso brasileiro, uma antinomia entre o princípio
do liberalismo econômico -, que visava estabelecer um mercado auto regulável, por meio laissez-faire
como método - e o princípio da proteção social, orientado para a preservação da sociedade da
instabilidade do mercado. Neste caso, o segundo princípio sobrepujou o primeiro.  

10  
 
   

entanto, não foi capaz de superar a perda sucessiva de dinamismo e competitividade da


indústria nacional. Bem assim, este contexto é marcado pela criação e ampliação da
nova classe média ou nova classe de trabalhadores brasileiros10, que tiveram acesso aos
bens duráveis de consumo via aumento do emprego e da renda. Na “Era Lula”, o país
saiu relativamente bem da crise, com um crescimento de 7,5% do PIB, em 2010, graças,
sobretudo, ao boom internacional das commodities e a aceleração do crescimento da
China (BOSCHI e PINHO, 2015, 2014; GAITÁN e PINHO, 2014; PINHO, 2014ab,
2013abcd, 2012abc, 2011; PINHO e GRANJA, 2011).
Convém destacar que a crise exógena de 2008 é especulativa, teve a sua gênese
nos EUA e espalhou-se pela Europa, quando do estouro da bolha imobiliária dos
subprimes em 2008. Outrossim, a crise nasceu da desregulamentação do sistema
financeiro dos países ricos, e não na periferia do sistema capitalista internacional.
Assim, a diferença entre essa crise e a profusão de outras que a precederam era que tal
crise tinha o rótulo “Made in USA”. E, enquanto que as crises anteriores ficaram
confinadas, essa crise, “Made in USA”, se expandiu rapidamente pelo mundo inteiro.
Com o estouro da bolha, os preços das casas caíram dos níveis exorbitantes em que
estavam e os proprietários deviam mais em hipotecas do que o valor das suas casas. Ao
perderem as casas e o valor líquido delas, muitos perderam também as poupanças de
toda a vida e os sonhos para o futuro como formação universitária para os filhos e
aposentadoria em boa situação financeira. Comunidades inteiras foram devastadas; os
contribuintes tiveram de arcar com a conta das perdas dos bancos; trabalhadores
perderam seus empregos11. Os custos foram enfrentados, não só nos EUA, mas em todo
o mundo, por bilhões de pessoas que não receberam nenhum centavo de recompensa
pelo comportamento temerário dos bancos. A última vez que os EUA exportaram uma
crise de grandes proporções foi na Grande Depressão dos anos 1930. O governo, por
sua vez, se concentrou em jogar dinheiro nos bancos por meio da criação de uma vasta
rede de proteção das corporações (STIGLITZ, 2010, p. 35-83).

Gráfico 4 – Taxa de Desemprego nos BRICS (%)12, 1988-2013

                                                                                                                       
10
  Cabe apontar que a recente literatura brasileira acerca da Classe C ou Nova Classe Média é bastante
controversa, abarcando pesquisas de cientistas políticos, economistas e sociólogos. Para uma análise
sociológica acerca dos horizontes intelectuais em que os autores estão inseridos e que os condicionam,
bem como as disputas ideológicas subjacentes ao debate em torno da Classe C, ver o artigo de LEAL
(2014), fruto de sua dissertação de mestrado.
11
Concomitantemente, há uma tendência de agravamento da desigualdade econômica nos EUA ao longo
das últimas décadas. Os 0.1% mais ricos têm mais do que triplicado a sua renda que, de 3.2% no final de
1950, passou para 10.9% em 2005. Outrossim, a parte da população 1% mais rica mais do que dobrou ao
longo do mesmo período, de 10.2% para 21.8%. A extraordinária concentração de riqueza nas mãos de
pessoas aquinhoadas tem aumentado significativamente a sua influência na arena política, à medida que a
estagnação das rendas da classe média e dos setores mais pobres têm reduzido substancialmente a sua
influência nos processos decisórios em matéria de políticas públicas (BARTELS, 2008).
12
Não constam indicadores, pela base de dados do FMI, para a taxa de desemprego na Índia.  

11  
 
   

30

25

20
Brasil

15 China
Rússia
10 África do Sul

0
1988 2003 2008 2013
 
Fonte: International Monetary Fund (IMF). Disponível em:
https://www.quandl.com/collections/economics/unemployment-rate-by-country
Os dados empíricos arrolados no gráfico 4 permitem mostrar a diminuição do
desemprego no Brasil a partir de 2003; e na Rússia em 2008. Em comparação com esses
países, a taxa de desemprego na China é baixíssima, ao passo que a África do Sul
apresenta índices bastante elevados. No caso do Brasil, a situação de praticamente
pleno emprego até o final de 2014 deve-se à opção política da coalizão governativa de
centro-esquerda de priorizar a centralidade da dimensão social do desenvolvimento.
Para tanto, foi instituída uma política de valorização do salário mínimo, possibilitando
incrementos reais na renda dos mais pobres e ampliação do mercado doméstico de
consumo de massas.
É certo que a globalização, a internacionalização e, portanto, as crises
econômicas, aumentam a exposição dos Estados nacionais ao risco externo e a
insegurança em razão da volatilidade dos salários, do emprego e dos investimentos
(BOIX, 2003, 1998; CAMERON, 1984; ESPING-ANDERSEN, 2002, 1996, 1991,
1985; GARRET, 1998; GOUREVITCH, 1989, 1986; HARVEY, 1993; HELD e
McGREW, 2001; HUBER e STEPHENS, 2012, 2003; IVERSEN, 2005; KEOHANE e
MILNER, 1996; KITSCHELT, 1994; NETO e SANTOS, 2013; RODRIK, 1997, 2011;
SANTISO, 2003; TARZI, 2010; WEISS, 2003), o que contribui para potencializar a
mercantilização das classes trabalhadoras. Porém, para além de constranger, a
globalização e a internacionalização da economia permitiram ao governo brasileiro
perseguir seus objetivos políticos e recuperar suas capacidades estatais, tendo em conta
as prioridades elencadas em termos de políticas públicas, como o combate às
desigualdades sociais. Os governos Lula e Dilma lograram combater a pobreza com
medidas focalizadas, em políticas que, ao mesmo tempo que subvertem o
neoliberalismo, a ele se aliam ao recusar a definição de uma cidadania social universal
(DOMINGUES, 2013).

Gráfico 5 – Trajetória dos Índices de Preços das Commodities


12  
 
   

 
Fonte: Index Mundi. Disponível em:http://www.indexmundi.com/commodities/

O gráfico 5, mapeando as tendências mundiais dos preços das diferentes


commodities, mostra como o governo Lula da Silva13 (2003-2010) conseguiu se
beneficiar de um contexto de forte crescimento, em virtude da produtividade agrícola e
mineral. A Rússia também teve sucesso em função desse aumento exponencial por
motivos similares. No entanto, a partir de 2011 já são perceptíveis a estagnação e a
consequente desaceleração dos preços das commodities, que se intensifica em 2014 e
coloca um cenário constrangedor para o governo Dilma Rousseff.
Uma interpretação sociológica do gráfico acima sugere que a estratégia lulista de
desenvolvimento e de aliança de classes de tipo pluriclassista é caracterizada pela
condição dependente de inserção no sistema produtivo internacional, bem como pela
sua sujeição à dinâmica do mercado e do centro do sistema capitalista (CARDOSO e
FALETTO, 1970; DOMINGUES, 2013; GRASSI, 2014; SINGER, 2012). Diante de
uma reversão deste cenário externo favorável, que é o que se vem mostrando, esboça-se
a incapacidade de manutenção dessa aliança de classes. A inviabilidade de dar
prosseguimento a tal aliança, no quadro de uma condição dependente da estratégia de
desenvolvimento14 é potencializada por três fatores: (1) a redução do crescimento
econômico, (2) a dificuldade em efetuar a transição do modelo de consumo de massas
para um paradigma norteado pelo investimento produtivo em infraestrutura e, por fim,

                                                                                                                       
13
O pressuposto básico do neo-desenvolvimentismo levado a cabo pelo governo Lula consiste na
capacidade de convergir o aprendizado derivado da longa trajetória desenvolvimentista com os
fundamentos da estabilidade e integração do Brasil aos circuitos financeiros e comerciais globalizados do
capitalismo, em crescente interconexão. Ademais, a especificidade deste modelo de desenvolvimento é a
centralidade por ele conferida à dimensão social, em contraposição à primazia das reformas orientadas
para o mercado dos anos 1990, que subordinaram a política social à esfera da estabilização
macroeconômica (BOSCHI, 2013, 2011; BOSCHI e GAITÁN, 2008, 2012; BOSCHI e LIMA, 2002).
14
A rearticulação de um projeto nacional de viés neodesenvolvimentista operada pelo lulismo implica,
por isso, um ressurgimento no plano político da contradição entre os anseios de autonomização e os laços
de dependência que constrangem historicamente o desenvolvimento brasileiro - bem como seus vizinhos
latino-americanos (GRASSI, 2014).

13  
 
   

(3) a redução da capacidade fiscal do Estado brasileiro para dar continuidade às


políticas sociais, assim como expandir a rede de proteção social.

Gráfico 6 – Estrutura das Exportações (%): Brasil, 2000-201015


50

45
Produtos Primários
40

35 Manufaturas baseadas
em recursos naturais
30
Manufaturas - Baixa
25 Tecnologia
Manufaturas - Média
20
Tecnologia
15 Manufaturas - Alta
Tecnologia
10
Outros
5

0
2000 2010
 
Fonte: Elaborado a partir de Palma, 2011.
 

Em termos relativos, o gráfico 6 mostra, desde os anos 2000, como a


reprimarização vem caracterizando da pauta exportadora brasileira, com o setor agrário

                                                                                                                       
15
Ao se observar no gráfico as trajetórias de desempenho das diferentes pautas exportadoras brasileiras,
nota-se que tanto as Manufaturas - Baixa Tecnologia (linha verde claro) quanto as Manufaturas - Alta
Tecnologia (linha vermelha) possuem a mesma trajetória (nas duas ocorre um deslocamento de 12% para
um patamar de 7%), de modo que ambas as linhas se encontram sobrepostas, com a vermelha
prevalecendo sobre a verde clara.

14  
 
   

mais forte vis-à-vis o industrial manufatureiro. Isso representa um entrave na medida


em que o país não consegue agregar valor aos seus produtos, lidando ainda com
problemas de falta de competitividade interna, aumento de custos, redução da
produtividade da economia e necessidade de incrementar (urgentemente) os
investimentos em infraestrutura para iniciar um novo ciclo de desenvolvimento.

3. O Esgotamento da Estratégia Neodesenvolvimentista-Socialdemocrata: baixo


crescimento, crises e erosão das capacidades estatais

Após a crise financeira exógena de 2008, o Brasil passa por uma crise endógena
ocasionada por fatores diversos, simultâneos e de graves proporções políticas,
econômicas e sociais. Tal conjuntura aponta para o esfacelamento da estratégia
neodesenvolvimentista-socialdemocrata de desenvolvimento levada a cabo desde o
segundo mandato do governo Lula até o final do primeiro mandato de Dilma Rousseff,
em dezembro de 2014.
O primeiro fator diz respeito à crise fiscal do Estado brasileiro advinda do
irrisório crescimento econômico acumulado nos últimos anos. Nesse contexto, a
contração das taxas de crescimento do PIB brasileiro desde 2011 foi súbita e
considerável. Após crescer 7,5% em 2010, a economia brasileira cresceu 3,9% em 2011
e apenas 1,8% em 2012. O crescimento aumentou modestamente para 2,7% em 2013,
mas a economia entrou em recessão técnica (dois trimestres consecutivos de
crescimento negativo) em 2014 e cresceu apenas 0,1% neste ano. Além disso, a
indústria de transformação exibiu o mesmo padrão: as taxas médias de crescimento de
3,6% em 2004-2010 e -0,9% em 2011-2014. Finalmente, a criação de emprego formal
foi em média de 1,46 milhões de empregos por ano em 2004-2010, que foi reduzida
para 829.000 em 2011-2014 e apenas 152 mil em 2014. Assim, a mudança das
condições externas, combinada com uma alteração menor, mas muito importante, na
orientação da política macroeconômica doméstica afetaram o crescimento da economia
brasileira. O crescimento médio do PIB no período 2004-2010 foi de 4,4%, ligeiramente
mais do que o dobro do observado no período 1995-2003. No entanto, a taxa de
crescimento média do período 2011-2014 caiu consideravelmente para 2,1% e, em
2014, a economia cresceu perto de zero (0,1%); (SERRANO e SUMMA, 2015).

Gráfico 7 – Tendências dos Indicadores Macroeconômicos Brasileiros 2004-2014


(governos Lula da Silva e Dilma Rousseff): Médias de crescimento

15  
 
   

16
14
12
10
8
6
4
2 2004-2010 (Gov. Lula)
0
2011-2014 (Gov. Dilma)
-2

Fonte: Elaboração própria a partir de Serrano e Summa, 2015. Tradução própria.

A crítica dos liberais ao baixo crescimento vem embalada pelo saudosismo de


uma época supostamente áurea na qual prevalecia o “tripé macroeconômico” (metas de
inflação, câmbio flutuante e metas de superávit primário). O problema é que durante o
período de vigência do tripé (1999-2006) a economia apresentou um crescimento
medíocre (2,81% a.a), uma inflação apenas ligeiramente mais baixa do que a que
estamos vivenciando em 2015 (7,6% a.a) e uma expansão anêmica da formação bruta de
capital fixo (incremento de 1,24% a.a em termos reais). Embora a Nova Matriz
Macroeconômica16 tenha fracassado do ponto de vista do crescimento econômico, o
tripé macroeconômico não fica muito atrás em termos de desempenho ruim. O Brasil
precisa de um novo regime de política macroeconômica que permita articular um ciclo
sustentado de crescimento do PIB com estabilidade de preços e equidade social
(OREIRO e ANDRADE, 2015).
O impacto negativo das condições internacionais sobre o crescimento econômico
brasileiro parece, assim, ser restrita ao impacto direto sobre a demanda agregada de
menor crescimento das exportações. O crescimento médio das exportações brasileiras
de bens e serviços em 2011-2014 (1,6%) foi realmente muito menor do que os
anteriores (5,2% em 2004-2010), como resultado de uma desaceleração de 11,6% em
2010 para 5,1% e 0,1% em 2011 e 2012, respectivamente, seguido por uma modesta
recuperação de 2,2% em 2013 e uma queda de 1% em 2014. Muitos economistas
brasileiros e, especialmente, aqueles que se chamam “economistas novo-
desenvolvimentistas” (BRESSER-PEREIRA, OREIRO e MARCONI, 2014;
BRESSER-PEREIRA, 2009, 2010, 2012, 2014, 2015) argumentam que a estagnação

                                                                                                                       
16
A Nova Matriz Econômica - pautada no controle da taxa de câmbio, no crédito abundante a juros
subsidiados e na expansão de estímulos fiscais - contribuiu significativamente para a manutenção da
trajetória anticíclica de combate à crise financeira sistêmica de 2008 (PINHO, 2012a). Esse contexto
macroeconômico foi marcado pela manutenção dos mais baixos níveis de desemprego da história atrelada
à redução da pobreza extrema e aos ganhos reais de renda dos mais pobres. Embora o governo tenha
tornando lei a desoneração da folha de pagamentos no sentido de beneficiar o empresariado industrial e
evitar demissões, não conseguiu reverter o processo continuado de perda de competitividade/dinamismo
da indústria nacional, de encolhimento do PIB e aumento da inflação.

16  
 
   

das exportações brasileiras de bens manufaturados (em oposição às commodities) são


resultado da sobrevalorização da taxa de câmbio real. Em patamar diametralmente
oposto, há uma outra vertente de autores que sustenta que o menor crescimento das
exportações parece ter sido quase inteiramente determinado pela desaceleração do
crescimento da demanda e do comércio na economia mundial (SERRANO e SUMMA,
2015).
O segundo fator responsável pela emergência da crise endógena refere-se ao
maior escândalo de corrupção envolvendo a principal empresa brasileira – Petrobras -,
grandes conglomerados econômicos (ou grandes empreiteiras como OAS, Andrade
Gutierrez, UTC, Camargo Corrêa, Mendes Júnior, Queiroz Galvão, Engevix, Iesa,
Galvão Engenharia e Odebrecht) e agremiações políticas da base aliada governamental.
Tal crise abarca as complexas relações entre grandes empreiteiras - cujos processos de
constituição, consolidação e internacionalização remontam ao período autoritário17
(1964-1985) - e o Estado brasileiro por meio de vultosos contratos com a Petrobras.
Tendo em vista os seus desdobramentos econômicos e políticos danosos, o escândalo de
corrupção da Petrobrás vem abalando a capacidade de intervenção do Estado na
promoção de políticas públicas. A paralização das obras efetuadas por esses grandes
conglomerados econômicos vem impactando fortemente a economia nacional e os
investimentos em infraestrutura, que são vitais para o aumento da competitividade e
produtividade da economia de maneira a instaurar um novo ciclo de desenvolvimento.
Tais investimentos são elementares para a transição de um modelo ancorado no
consumo para outro que tenha no investimento o seu ponto fulcral. A crise econômica e
institucional se agrava cada vez mais tendo em vista as fraturas na coalizão governativa
suscitadas pelas suspeitas de participação dos Presidentes da Câmara dos Deputados
(Eduardo Cunha – PMDB/RJ) e do Senado Federal (Renan Calheiros – PMDB/AL) no
escândalo da Petrobras. Recentemente, no âmbito da Operação Lava Jato, o Presidente
da Câmara dos Deputados - que vem conduzindo ativa agenda conservadora e impondo
sucessivas derrotas ao Executivo - rompeu formalmente com o governo Dilma
Rousseff, após denúncia de recebimento de US$ 5 milhões em propina. Essa crise
política de proporções monumentais envolve os Três Poderes da República: Executivo,
Legislativo e Judiciário. Soma-se a este cenário político-institucional adverso a
fraqueza, o baixíssimo índice de popularidade da chefe do Executivo bem como as
articulações da oposição com setores rebelados da coalizão de governo para levar a
efeito o impeachment da presidenta reeleita democraticamente. Em suma, a crise
política assinala óbito, expõe as vísceras e acentua o estado de degradação e
esgotamento do “presidencialismo de coalizão” (ABRANCHES, 1988) enquanto um
dilema institucional brasileiro.

                                                                                                                       
17
Foi durante o Nacional-Desenvolvimentismo Autoritário (1964-1985), sobretudo no “milagre
econômico” (1967-1973), que as empreiteiras foram beneficiadas pelas políticas de proteção e incentivo
estatal, tornando-se conglomerados monopolistas de projeção nacional e internacional. A Petrobras
tornara-se a principal contratadora das obras do governo federal. A elaboração dos editais reforçava o
processo de concentração do mercado de construção pesada em poucas empresas, que constituíam cartéis.
Cabe ressaltar a tendência à conglomeração e ramificação, ou seja, a atuação das empreiteiras em ramos
paralelos à construção para fugir dos fornecedores mediante a produção de materiais usados nas obras ou
comercialização dos mesmos. São exemplos a perfuração de poços, produção e montagem de sondas,
produção de plataformas e navios. As empreiteiras também diversificaram suas atividades a partir da
construção de edifícios urbanos (comerciais e residenciais) nos maiores centros, exploração do mercado
imobiliário via Banco Nacional de Habitação (BNH), comércio de terras, agropecuária, produção e
exportação de minerais (ouro e metais preciosos). Ao final da ditadura militar, salienta-se o grande porte
alcançado pelas empreiteiras diante das demais empresas nacionais (CAMPOS, 2014).  

17  
 
   

O terceiro fator refere-se à tibieza do Estado brasileiro em promover reformas no


sentido da tributação progressiva, que desonere os mais pobres e taxe o patrimônio, a
renda e a herança. A regressividade do sistema tributário brasileiro, ao incidir forte e
predominantemente sobre o consumo, penaliza as classes trabalhadoras e as camadas
médias. Ademais, ele concentra a renda na aplicação dos recursos federais. Segundo
Heráclio Camargo, Procurador da Fazenda Nacional, em 2015, o Bolsa Família vai
alocar R$ 25 bilhões. No mesmo ano, o governo gastará em amortização de juros da
dívida pública interna mais de R$ 1 trilhão. Para ambos o dinheiro vem de arrecadação
de impostos. Só que o Bolsa Família beneficia 40 milhões de pessoas. Do outro lado,
um número seleto de brasileiros, umas 200 mil famílias, cerca de 1 milhão de pessoas
e mais um punhado de especuladores internacionais que detêm os títulos da dívida
pública vão ficar com o R$ 1 trilhão. Cabe reiterar: para 40 milhões de pessoas, R$ 25
bilhões; para 1 milhão de pessoas, 40 vezes mais, R$ 1 trilhão. E assim voltamos ao
Brasil Colônia e à tradição oligárquica de nosso sistema tributário, que continua a
beneficiar os poucos de sempre e drena os recursos que deveriam ser alocados em
saúde, educação e proteção social (ESTADÃO, 11/04/2015). Outra medida que se faz
urgente e que poderia se contrapor à alternativa ortodoxa e recessiva em curso é a
regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas, que possibilitaria mexer
estruturalmente no país e chamar atenção para a alta concentração de renda,
incrementada pela política econômica. Este tributo, já incorporado em muitos países, foi
contemplado na Constituição de 1988, mas até hoje não se tornou lei. Além das grandes
fortunas há que se tributar mais fortemente o capital especulativo e os lucros dos
bancos.
O quarto fator que retrata a decrepitude do neodesenvolvimentismo
socialdemocrata no Brasil é a completa perda de autonomia do Estado nacional sobre a
formulação da política econômica em consonância com as necessidades sociais e de
forma compatível com uma estratégia de desenvolvimento soberana. O Brasil está
integralmente subordinado à dinâmica do capitalismo bancário-financeiro apátrida,
volátil e não-produtivo. Não há uma auditoria sobre a dívida pública e os exorbitantes
gastos financeiros do Estado brasileiro são provocados pelo que Maria Lúcia Fattorelli18
chama por “sistema da dívida pública”. Um mecanismo institucionalizado de drenagem
de recursos públicos, extraídos em sua maior parte das classes médias e de baixa renda,
e canalizados para o setor bancário-financeiro por meio do endividamento do Estado
(CARTA CAPITAL, 09/06/2015).
Esta sucessão de crises é potencializada pela inoperância da coalizão reeleita,
que se dedica ao cumprimento fidedigno do programa econômico da coalizão liberal-
rentista a que fizera oposição durante toda a campanha presidencial. O governo Dilma
Rousseff prometeu aprofundar o ímpeto desenvolvimentista do Estado brasileiro
verificado nos últimos anos, responsável pelas menores taxas de desemprego da
história, pela política de valorização do salário mínimo e pelas medidas de erradicação
                                                                                                                       
18
É Auditora Fiscal da Receita Federal desde 1982 e coordenadora do movimento pela Auditoria Cidadã
da Dívida Pública Brasileira. Foi recentemente convidada pelo Syriza para compor o Comitê pela
Auditoria da Dívida Grega. Participou de processo análogo no Equador, cujo governo conseguiu, após a
auditoria de sua dívida, depurar várias ilegalidades e distorções em seu cálculo. Como consequência, esse
país reduziu os gastos financeiros do Estado, o que permitiu elevar os gastos sociais e o investimento
público, imprescindíveis ao seu desenvolvimento. Segundo ela, para o ano de 2012, com base em dados
do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI) e da Auditoria Cidadã da
Dívida, enquanto os gastos com o serviço da dívida pública consumiram praticamente 44% do Orçamento
Geral da União, a Previdência Social representou 22,47%; a saúde ficou com somente 4,17%; transportes
(0,70%); saneamento (0,04%); gestão ambiental (0,16%) e a indústria com apenas 0,16%
(FATTORELLI, 2013).

18  
 
   

da pobreza extrema. Todavia, vem executando precisamente o oposto do que fora


prometido, o que configura um grave estelionato eleitoral e desrespeito para com a
população, sobretudo os mais pobres, penalizados pela dinâmica financeira de ajuste.
Conforme ressaltado, a crise pela qual o Brasil vem passando tem componentes
diversos, o que vem afetando mormente as suas capacidades estatais de implementação
de políticas públicas estratégicas. Segundo WEAVER e ROCKMAN (1993) entre as
capacidades estatais se incluiriam: (1) definir prioridades entre as diferentes demandas
feitas ao poder público; (2) canalizar os recursos onde sejam mais efetivos; (3) inovar
quando for necessário, ou seja, sempre que velhas políticas demonstrem sinal de
esgotamento; (4) coordenar objetivos em atrito; (5) poder impor perdas a grupos
poderosos; (6) garantir a efetiva implementação das políticas logo após terem sido
definidas; (7) representar os interesses difusos e menos organizados, além dos
poderosos e mais organizados; (8) garantir a estabilidade política para que as políticas
públicas possam ter tempo de maturação na sua implementação; (9) gerenciar divisões
políticas de modo a garantir que não haja atritos internos.
Ao interpretarmos a recente conjuntura nacional à luz das capacidades estatais
conceituadas pela literatura acima, sobretudo a partir dos números 4, 5, 6, 7, 8 e 9,
respectivamente, podemos identificar que, primeiramente, o atual governo é marcado
pela falta de coordenação de objetivos em atrito, ou seja, não se comunica entre si e
tampouco com a sociedade que o reelegeu e que é objeto de políticas públicas. Vem
perdendo a sua base social e tampouco se aproxima dela. Em segundo lugar, o governo
mudou o rumo da política econômica em 2012 e baixou as taxas de juros dos bancos
privados a fim de estimular o investimento produtivo e reforçar os bancos públicos. Por
parte da coalizão outrora desenvolvimentista, isso configurou uma verdadeira inflexão
ao tentar domesticar o capitalismo financeiro. Não obstante essas iniciativas relevantes,
o governo vem sendo incapaz de impor perdas a grupos poderosos e a ortodoxia fiscal,
coadunada à financeirização, vêm gozando de hegemonia no Brasil, em detrimento da
sociedade. Terceiro, o governo reeleito vem representando os interesses poderosos e
mais organizados do capitalismo rentista vinculado às finanças internacionais e
integralmente dissociado dos interesses nacionais. Por outro lado, os interesses difusos e
menos organizados provenientes da sociedade são relegados a um patamar secundário.
Quarto, a estabilidade política, essencial para que as políticas públicas possam ter tempo
de maturação na sua implementação, constitui a exceção num contexto de escândalos de
corrupção envolvendo a classe política, burocratas do Estado e grandes conglomerados
econômicos. Corre-se o risco de grave paralisia decisória e ameaça à governabilidade
democrática, com reverberações sociais negativas, uma vez que a pauta das políticas
públicas acaba perdendo centralidade na arena decisória das elites do Estado.
Finalmente, o governo vem sendo incapaz de gerenciar divisões políticas de modo a
garantir que não haja atritos internos. Um exemplo é o conflito entre o Ministro da
Fazenda, Joaquim Levy19; por um lado, e a ala política do governo e do Ministério do
Planejamento - encabeçado por Nelson Barbosa - acerca do tamanho do aperto nas
contas públicas para garantir o cumprimento da meta de superávit primário em 2015, de
1,1% do PIB. Enquanto o primeiro afirma que reduzir a meta fiscal é uma “ilusão” e
poderá até levar a um aprofundamento do arrocho, a ala política do governo e o

                                                                                                                       
19
Em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, o Ministro da Fazenda disse o seguinte sobre o
ajuste fiscal: “Não estamos fazendo um ajuste colossal. A fraqueza da economia vem de incertezas,
indefinições, de o ajuste não estar completo. As empresas estão reticentes. Se a pessoa não sabe quanto
tempo vai demorar o ajuste, ela não tem condições de tomar decisões. Não tomando decisões, diminui o
investimento, diminuindo a capacidade da economia” (FOLHA DE SÃO PAULO, 19/07/2015).

19  
 
   

Ministro do Planejamento defendem uma redução imediata da meta fiscal para 0,6% em
virtude do agravamento da recessão (FOLHA DE SÃO PAULO, 19/07/2015).
De fato, tanto do ponto de vista político como econômico, a erosão e o desmonte
das capacidades estatais20 estão em curso no Brasil. E tais capacidades são cruciais para
a implementação de políticas públicas. Conjugado a isso está a realização de um ajuste
fiscal recessivo que é demasiadamente funesto ao tecido social da democracia.

4. Resiliência do Neoliberalismo Financeiro-Parasitário: declínio do pleno emprego


e ameaça ao Estado do Bem-Estar Social no Brasil

Tendo em vista o giro de 180º graus levado a efeito na política macroeconômica,


o ajuste fiscal em curso não incide sobre o setor financeiro parasitário, mas sobre os
trabalhadores e a nova classe C emergente, que corre risco de grave retrocesso social.
Em sintonia com a ortodoxia neoclássica e praticando um verdadeiro estelionato
eleitoral, o governo Dilma Rousseff iniciou o segundo mandato editando duas Medidas
Provisórias: as MPs 664 e 665, que dificultam a obtenção do auxílio-doença e de pensão
por morte, além do direito ao seguro-desemprego e de diminuir o abono salarial e o
seguro-defeso (pescadores). Tais medidas impopulares foram editadas sem um diálogo
prévio com as centrais sindicais e os trabalhadores, configurando um verdadeiro
insulamento burocrático (NUNES, 2003), uma vez que o governo tomou essa decisão
de forma centralizada e à revelia do escrutínio público. Deliberadamente, o Executivo
decidiu sobre o futuro dos trabalhadores por métodos obscuros e sem quaisquer
mecanismos de transparência e accountability. Paradoxalmente, o governo que se
intitula de centro-esquerda marginalizou a sua principal base social (os trabalhadores)
do processo decisório acerca das políticas públicas que lhe afeta diretamente.
Para além do Poder Executivo, o Legislativo também capitaneou medidas
aviltantes contra os direitos laborais. A eleição do Congresso mais conservador dos
últimos tempos, composto majoritariamente por empresários, ruralistas e militares vem
contribuindo para a implantação de uma legislação frouxa em matéria de proteção ao
trabalho. Um exemplo é o PL 4330/2004, que libera as empresas e estatais para
terceirizar toda a cadeia produtiva, como aquelas relacionadas às atividades fim e meio.
Por exemplo, a atividade fim de uma indústria automobilística é fabricar carros, ao
passo que a atividade meio diz respeito à manutenção, segurança, faxina, serviço de
refeitório etc. Trata-se de um tema polêmico que mais uma vez opõe o governo a parte
de sua base aliada. A terceirização é uma das principais bandeiras do empresariado, que
argumenta que a medida dará segurança jurídica, liberdade operacional, redução de
custos e competitividade às empresas, com efeitos na economia. Por outro lado, a
terceirização é condenada pelos sindicalistas com o argumento de que fragilizará a
organização dos trabalhadores e, consequentemente, sua força de negociação e poder de
                                                                                                                       
20
Não obstante, embora diferentes administrações e regimes políticos usassem múltiplos mecanismos
para recrutar a burocracia, o Executivo federal tem sido sempre capaz de construir capacidade burocrática
para lidar com suas prioridades. Ainda que repleto de paradoxos, o sistema burocrático tem sido um dos
elementos chave que contribuem para a modernização do Estado brasileiro. Desde os anos 2000, contudo,
o Estado brasileiro tem priorizado a profissionalização e qualificação de uma burocracia recrutada por
meio de seleção competitiva. Em 2003, com a mudança nos partidos políticos ocupando o Executivo
Federal, a proposta para fortalecer as carreiras estratégicas centrais foi substituída por uma agressiva
política de recrutamento de funcionários públicos, especialmente daqueles dotados de formação
universitária. De 2003 a 2010, 206.284 novos servidores foram admitidos por meio de concurso público.
Houve um aumento não somente da força de trabalho no governo federal, mas também dos servidores
públicos com grau universitário de 183.303 em 1997 para 223.404 em 2009, representando 45% dos
empregados federais em 2009 (SOUZA, 2013).

20  
 
   

barganha com as empresas. O PL 4330/2004 foi aprovado na Câmara dos Deputados e


será enviado para votação no Senado Federal (CÂMARA DOS DEPUTADOS,
22/04/2015), mas não conta com o apoio do presidente do Senado, Renan Calheiros.
Veta-se, portanto, a possibilidade de um consenso desenvolvimentista.
No esforço do ajuste fiscal ortodoxo21 para garantir o cumprimento da meta de
superávit primário - a economia para o pagamento de juros da dívida pública – o
governo realizou o maior corte dos últimos anos, equivalente a R$ 69,9 bilhões nas
despesas do Orçamento de 2015. O superávit primário do setor público ficou em 1,1%
do PIB, ou R$ 66,3 bilhões. Do total do contingenciamento de R$ 69,9 bilhões, R$
48,06 bilhões são de ações previstas na proposta original do Orçamento, sendo R$ 25,7
bilhões do PAC e R$ 22,9 bilhões de outras despesas, e ainda R$ 21,4 bilhões de
emendas parlamentares.Com um orçamento de R$ 13 bilhões (36% a menos do que o
inicialmente previsto), o Minha Casa, Minha Vida terá o ritmo das obras reduzido. Por
ministério, os maiores cortes ocorreram nas seguintes pastas: Cidades (R$ 17,2 bilhões),
Saúde (R$ 11,8 bilhões) e Educação (R$ 9,4 bilhões) (MPOG, 2015).
Os impactos do ajuste recessivo22 e da desaceleração econômica já se fazem
sentir no mercado de trabalho e na renda das famílias, o que provavelmente dificultará a
saída da recessão. Segundo dados do CAGED/MTE (16/07/2015), o mercado de
trabalho formal fechou 111 mil vagas em junho de 2015, constituindo o pior resultado
para o mês desde o início da série histórica, em 1992. A situação deve piorar e o País
pode registrar perda de 1 milhão de empregos em 2015. No semestre, o País fechou 345
mil vagas, o pior resultado desde 2002. A última vez que o mês de junho apresentou
saldo negativo foi também em 1992, há 23 anos, quando foram fechados 3,7 mil postos.
Os dados mostram que, pela primeira vez desde 2003, quando se iniciou o governo do
PT, os salários médios dos trabalhadores no momento da admissão apresentaram queda
real no primeiro semestre. A média para os primeiros seis meses do ano caiu de R$
1.271,10 por trabalhador em 2014 para R$ 1.250,39 neste ano (ESTADÃO,
17/07/2015).

Gráfico 8 - Saldo entre contratações e demissões em meses de junho


(Acumulado no 1 semestre)
                                                                                                                       
21
O governo afirma que o ajuste não somente afeta o “andar de baixo”, mas também o “andar de cima”.
Para tanto, a alíquota da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) paga pelos bancos foi
elevada de 15% para 20%, o que vai gerar uma receita de R$ 3,8 bilhões por ano. Para 2015, a Receita
Federal estima um ganho de R$ 747 milhões (FOLHA DE SÃO PAULO, 22/05/2015).
22
Além do contingenciamento de R$ 69,9 bilhões, houve um corte adicional de R$ 8,47 bilhões nas
despesas do governo federal que atingiu também a Educação, a Saúde e outras áreas sociais. A Saúde
perderá mais R$ 1,7 bilhão e a Educação, R$ 1,165 bilhão. A área mais atingida, em termos percentuais,
foi o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que teve suas dotações cortadas em mais 15,1%, em
relação ao limite anterior fixado em maio. As dotações da Secretaria de Direitos Humanos receberam um
corte adicional de 14,4%, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de 14,2%, o
Ministério do Esporte de 13,9% e o Ministério da Pesca e da Aquicultura de 12,7%. O Ministério da
Cultura terá que cortar mais R$ 89 milhões, ou 11,7% do limite fixado em maio. O Ministério da Justiça
perdeu mais 11,4% de suas dotações. A Advocacia Geral da União (AGU) e a Controladoria Geral da
União (CGU), no entanto, não sofreram corte adicional, além daquele realizado em maio. As dotações do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome tiveram corte adicional de R$ 305 milhões, o
que equivale a 1% do limite fixado em maio. O corte adicional de R$ 8,47 bilhões foi anunciado pela
equipe econômica como medida necessária para permitir que o superávit do governo federal (que
compreende o Tesouro, a Previdência, o Banco Central e as estatais federais) fique em R$ 5,8 bilhões ou
0,1% do Produto Interno Bruto (PIB). A meta para todo o setor público neste ano foi reduzida de 1,13%
do PIB para 0,15% do PIB. Com o novo corte, o contingenciamento total chega, portanto, a R$ 79,35
bilhões e é o maior já realizado pelo governo federal na história (VALOR ECONÔMICO, 30/07/2015).

21  
 
   

 
  Fonte: MTE; ESTADÃO (17/07/2015)

Gráfico 9 - Saldo entre contratações e demissões em meses de junho (mês)

  Fonte: MTE; ESTADÃO (17/07/2015)

Segundo dados da pesquisa IBGE/PNAD23 (09/07/2015), a taxa média de


desemprego no país aumentou para 8,1% no trimestre encerrado em maio. A taxa de
desemprego era de 7% no mesmo período do ano passado e de 7,4% no intervalo
imediatamente anterior (dezembro a fevereiro). O desemprego aumentou porque 1,566
milhão de pessoas entraram no mercado de trabalho, mas apenas 297 mil encontraram
emprego. O número de pessoas desempregadas no país aumentou assim em 1,269
milhão na comparação ao mesmo período do ano passado. A população desempregada
no trimestre encerrado em maio cresceu 18,4% frente ao mesmo período do ano
passado. São 8,157 milhões de desempregados. Uma das razões para o aumento da
procura por emprego no país é a queda da renda. Mais e mais pessoas voltam ao
mercado de trabalho buscando recompor a renda da família. Para tentar conter o

                                                                                                                       
23
A Pnad Contínua é a mais abrangente pesquisa de emprego do IBGE e coleta dados em todo o país, ao
passo que a PME (Pequisa Mensal de Emprego) investiga as seis principais regiões metropolitanas -
Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.

22  
 
   

aumento do desemprego, o governo encaminhou ao Congresso, no dia 06/07/2015, uma


medida provisória que permite a redução da jornada de trabalho em até 30%, com
redução do salário. Chamada de Programa de Proteção ao Emprego (PPE), a proposta
prevê que, no caso da redução de 30% do salário, o trabalhador receberá na prática 15%
a menos, já que outros 15% serão complementados pelo governo com recursos do FAT
(FOLHA DE SÃO PAULO, 09/07/2015; VALOR ECONÔMICO, 10/07/2015).

Gráfico 10 - Indicadores da Pnad contínua (Variação sobre o mesmo trimestre do


ano anterior)

Fonte: IBGE, VALOR ECONÔMICO.

A desaceleração e a deterioração adicional do mercado de trabalho também se


evidenciam no setor de serviços que, segundo a Pnad Contínua, responde por 48% da
ocupação total. Entre os setores, o pior desempenho foi o da construção civil, que
reduziu o total de funcionários em 8% sobre o trimestre móvel encerrado em maio de
2014, o que sugere que parte desses desempregados possa estar migrando para o serviço
doméstico ou fazendo “bicos”. Um elemento a ser salientado é o aumento do trabalho
por conta própria, que cresceu 0,5% no grupo dos trabalhadores domésticos, expondo a
precarização em curso no mercado de trabalho. Há perdas na renda variável, algo
comum em cenários de recessão como o atual, como por exemplo o trabalhador que
costumava fazer horas extras e não faz mais, e de um garçom que tinha parte da renda
mensal atrelada às gorjetas e que, agora, tem visto esse rendimento cair. O crescimento
dos ocupados nos serviços domésticos ocorre simultaneamente à queda de ritmo do
comércio e do segmento de serviços (IBGE/PNAD, 09/07/2015; VALOR
ECONÔMICO, 10/07/2015).
Diante da desaceleração de investimentos nas empresas, as vagas começaram a
cair. A demanda para retirar trabalhadores de um segmento menos qualificado para um
mais qualificado ficou estagnada. Isto significa dizer que é possível que uma pessoa que

23  
 
   

perde o emprego no comércio vá trabalhar no serviço doméstico. Em um mercado de


trabalho volátil, rotativo e precarizado como o brasileiro, as pessoas procuram retorno
mesmo que seja no emprego doméstico. O sindicato dos empregados domésticos da
região metropolitana de São Paulo nota desde agosto de 2014 uma procura até 30%
maior por emprego em virtude das demissões nos setores de comércio e serviços. Nos
últimos 12 meses, de cada 100 brasileiros que entraram no mercado de trabalho, 19
encontraram emprego e os outros 81 ficaram desempregados. E o emprego encontrado
não foi com carteira de trabalho assinada, nem sem carteira, mas por conta própria,
doméstico ou empregador. Os dados do primeiro trimestre mostram que os novos
desempregados são mais escolarizados que o estoque de pessoas que já procurava
emprego. No início de 2014, entre o total de desempregados, 51% estavam no grupo
com maior escolaridade, com pelo menos 11 anos de estudo: 37% tinham ensino médio
completo, 5,6% possuíam superior incompleto e 8,6% já haviam completado o ensino
superior. Entre os novos desempregados, aqueles com maior escolaridade representam
67% do total: entre o primeiro trimestre de 2014 e igual período de 2015, 40% tinham
ensino médio completo, 12,6% tinham ensino superior incompleto e 14,5% já estavam
graduados (VALOR ECONÔMICO, 10/07/2015).
A recessão vem afetando a sustentabilidade do mercado doméstico de consumo
de massas enquanto uma dimensão estratégica do Novo-Desenvolvimentismo
Democrático (2003-2015). Assim, a capacidade das famílias brasileiras de consumir
bens e serviços ao longo de um mês encolheu em R$ 16 bilhões neste ano. Com a
inflação em alta, o desemprego crescente e o crédito restrito, o poder de compra das
famílias, propulsor da economia nos últimos anos, está em queda pela primeira vez
desde 2003 e deve se manter em baixa nos próximos meses. O poder de compra das
famílias foi de R$ 240 bilhões na média mensal de janeiro a maio - 6,2% menor do que
em igual período de 2014 (R$ 256 bilhões) (FOLHA DE SÃO PAULO, 26/07/2015).
O quadro de ajuste ortodoxo também se verifica nas universidades federais com
a proliferação de greves e corte de gastos. Em entrevista, Roberto Leher, reitor e
professor titular da Faculdade de Educação da UFRJ, ressalta a redução de
investimentos no ensino superior público em favor de programas como ProUni e Fies,
que financiam matrículas e bolsas em instituições privadas. Segundo ele, a Universidade
chegou no meio do ano de 2015 com um déficit aproximado de R$ 110, 115 milhões e
terá um corte nos recursos do investimento de 50%, constituindo uma contradição com
o lema (“Pátria Educadora”) da coalizão dominante no poder, e inviabilizando a
conclusão das obras inacabadas. As dívidas acumuladas contribuirão para os atrasos em
fornecimentos básicos como limpeza, segurança e portaria, que constituem os
terceirizados. Embora as matrículas da Universidade tenham crescido 66%, não
consegue dar conta do passivo. Ainda de acordo com o reitor, o Ministro da Educação,
Renato Janine Ribeiro, ainda que tenha uma sensibilidade para o problema da
universidade pública, não usufrui de força política para um projeto mais autônomo. O
constrangimento da área econômica, do planejamento é muito forte. Isso significa dizer
que, para a universidade, quem tem a solução é o Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e
não o Ministro da Educação (O GLOBO, 06/07/2015).
Retomando a interlocução com Karl Polanyi, a análise do Brasil contemporâneo
aponta para a supremacia do princípio do liberalismo econômico -, que visa estabelecer
um mercado auto regulável por meio do laissez-faire como método - sobre o princípio
da proteção social (POLANYI, 2000). A decrepitude dos indicadores sociais, o declínio
da renda dos mais pobres e a possibilidade de reversão do legado de inclusão dos
últimos anos sugerem que o que está em voga é uma grave crise do Estado do Bem-
Estar Social e a decomposição da variedade de capitalismo de Estado no Brasil. A crise

24  
 
   

- e a apatia decisória governamental que a sucede - é potencializada pelo


recrudescimento das políticas recessivas de saneamento fiscal e financeiro instauradas
nos anos 1990, quando da hegemonia do receituário neoclássico do Consenso de
Washington24.
Nesse sentido, o atual modelo econômico brasileiro e seu regime de acumulação
de capital e de baixo crescimento emergiram das transformações estruturais dos anos
1990, promovidas pelas medidas liberalizantes e pelos interesses da alta finança, que já
operava em mercados globais essencialmente rentistas e curto prazistas. Tecnicamente,
o modelo instituído não o foi para o desenvolvimento do país, mas cumpria
prioritariamente exigências internas - as pressões dos grandes bancos que haviam
perdido os ganhos inflacionários com o Plano Real e para os quais, quando a inflação
caiu, uma das medidas do Estado brasileiro foi a troca imediata da “hiperinflação” pelo
“hiperjuro”, além dos programas governamentais PROER e PROES25. No plano
externo, os organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, que são
as instituições encarregadas de formatar as economias em desenvolvimento de acordo
com os interesses das grandes potências e do capital financeiro internacional,
pressionavam o governo para a implementação do novo consenso de política econômica
(o famoso “tripé” ortodoxo: regime de metas de inflação + superávits fiscais primários
permanentes + câmbio flutuante com viés de apreciação real (BRUNO, 2015).
Atrelada aos programas de privatizações, nos quadros de um padrão de inserção
internacional subordinado às finanças globais, a abertura financeira e comercial do
Brasil revelou-se amplamente favorável ao setor bancário e seus sócios nacionais e
estrangeiros na acumulação rentista-patrimonial. Os governos petistas herdaram do
PSDB esse modelo neoliberal-dependente-financeirizado26 e, optando por um projeto de
poder e governabilidade a qualquer preço, jamais o questionaram ao assumirem o
Executivo federal, mas lhe acoplaram novas políticas sociais distributivas e ampliaram
as já existentes. De um ponto de vista analítico, o Estado e o governo apresentam-se
completamente subordinados aos interesses dos grandes bancos e da alta finança
liberalizada, tornando o Brasil ainda mais dependente no cenário internacional e mais
um estudo de caso entre os muitos já disponíveis sobre os processos de financeirização
das economias atuais. Por isso as economias financeirizadas mantêm-se em trajetórias
                                                                                                                       
24
  De forma contrastante, algo muito diferente se deu na Ásia, onde as reformas econômicas trouxeram
em seu bojo a visão (certa ou errada) de um mecanismo pragmático direcionado à eliminação de
constrangimentos financeiros e produtivos específicos. Em síntese, os países asiáticos de forma geral, ao
invés de implementarem reformas como mecanismos para reverterem estratégias industrializantes
existentes, colocaram-nas em prática visando a continuidade e o fortalecimento de processos ambiciosos
dentro de suas estratégias de desenvolvimento. Os exemplos de êxito são os Estados desenvolvimentistas
do Leste Asiático como Coréia do Sul, Taiwan e Singapura bem como a República Popular da China; na
Ásia Central, que contaram com a centralidade institucional do Estado e elites nacionais poderosas,
dotadas de maior autonomia política face ao mercado e capazes de criar burocracias weberianas
eficientes. Outrossim, tanto a estrutura como a capacidade dos Estados desenvolvimentistas dependeram
não apenas da natureza e extensão da ameaça externa (vulnerabilidade sistêmica, que é estrutural), mas
também da capacidade de formar uma “coalizão minimamente vencedora” (CHANG, 2004, 2003;
CHANG e EVANS, 2000; DINIZ, 2013; EVANS, 2005, 1999, 1993; KOHLI, 2009, 2004; LEFTWICH,
2010; PALMA, 2011; REINERT, 2007; SKOCPOL, 1985; WADE, 1990), o que carece no Brasil de
hoje.  
25
PROER significa Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro
Nacional e foi implementado no governo Fernando Henrique Cardoso. Já PROES é a sigla do Programa
de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária.
26
Os trabalhos sobre os processos de financeirização das economias atuais são unânimes em destacar que
nesses regimes de crescimento econômico, não apenas os bancos centrais permanecem subordinados aos
interesses da alta finança liberalizada, mas, a política fiscal perde autonomia e não pode ser mobilizada
para promover o desenvolvimento industrial, como fazem os países asiáticos (BRUNO, 2015).

25  
 
   

de baixo e instável crescimento. Trata-se de um fenômeno mundial, mas que guarda


suas especificidades nacionais (BRUNO, 2015).
A subordinação do Estado é patente com a consequente perda de autonomia para
formatarem e gerirem a política econômica em conformidade com as necessidades
sociais e de forma compatível com uma estratégia consistente de desenvolvimento. O
investimento produtivo de longo prazo permanece irrealizável sem os financiamentos
providos pela tríade de bancos públicos BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica
Federal. Os mercados financeiros monitoram tudo, todos os passos do governo, como se
a economia tivesse de se estruturar apenas ou prioritariamente para eles e não para as
necessidades da indústria, dos trabalhadores e dos demais setores produtivos. Na
economia brasileira atual, o padrão de inserção internacional, o regime monetário-
financeiro e a concorrência oligopolista são as componentes-chave, pois
hierarquicamente superiores, na arquitetura institucional em que se baseia o regime de
crescimento. Hierarquicamente superiores significa que câmbio flutuante com viés de
apreciação real, sistema de metas de inflação sob as mais altas taxas reais de juros do
planeta e busca permanente de superávits fiscais primários que limitam as políticas pró-
crescimento do Estado são peças necessárias, pois compatíveis com essa arquitetura
formatada pelos e para os interesses dos setores beneficiários diretos do modelo
econômico vigente (BRUNO, 2015).
Diferentemente dos países asiáticos, também inseridos na economia global, o
padrão de inserção internacional do Brasil prioriza a acumulação financeira em
detrimento do investimento produtivo e do potencial exportador do país. O Estado
torna-se o fiador dos compromissos institucionalizados entre as finanças domésticas e
os mercados globais, de maneira a garantir a continuidade da acumulação financeira
com proeminência da renda de juros que ele mesmo é forçado a pagar. Apesar da
zeragem da dívida pública externa, o endividamento público interno permanece em
níveis muito elevados. Como principal eixo de um processo de financeirização muito
diferente do observado em países com taxas de juros baixas, a dívida interna do Estado
brasileiro torna-se um entrave para a expansão do investimento público e para a
ampliação das políticas sociais que o governo ainda pode exibir como trunfo. O
famigerado tripé ortodoxo pressupõe, para sua funcionalidade, a formatação neoliberal
da economia brasileira (BRUNO, 2015). Portanto, eis o neoliberalismo resiliente, que,
diante da tibieza da coalizão governativa dominante, degenera progressivamente o
tecido social da democracia brasileira.
 

5. Considerações finais

À luz de contundentes dados empíricos mobilizados e de uma interlocução com


a bibliografia nacional e internacional atualizada, esta pesquisa procurou responder a
algumas questões concernentes à crise do Estado do Bem-Estar Social e ao declínio da
variedade de capitalismo de Estado de viés neodesenvolvimentista-socialdemocrata no
Brasil contemporâneo. Em primeiro lugar, os dados mostram que o Brasil não vem
adotando uma estratégia de desenvolvimento após o esgotamento do ciclo das
commodities que vigorou na primeira década do Novo Milênio. Há que se instituir
urgentemente um novo ciclo de desenvolvimento, pois não há mais espaço para a
dependência de produtos primários em um mercado internacional cada vez mais
protecionista e instável. Segundo, a variedade de capitalismo de Estado no Brasil está
em declínio em razão do baixo crescimento, da crise fiscal e do ajuste ortodoxo-
recessivo que não garante o reequilíbrio macroeconômico, a retomada da confiança dos
atores econômicos e o restabelecimento do crescimento. Ademais, a crise político-

26  
 
   

econômica vem deteriorando o tecido social e decretando a falência múltipla do


“presidencialismo de coalizão” e do consenso de classes que vigorou durante o lulismo
e esfacelou-se no governo Dilma Rousseff. Terceiro, no ordenamento corporativo de
representação de interesses que regula as relações capital/trabalho no Brasil desde a Era
Vargas, a crise da variedade de capitalismo neodesenvolvimentista-socialdemocrata se
consubstancia a partir de uma tendência contraproducente com relação aos direitos
trabalhistas. Tal tendência está assentada na flexibilização e precarização das relações
laborais, iniciativas estas encabeçadas pelo Congresso Nacional, cujo bancada
empresarial é muito significativa. No tocante à relação Estado/empresariado industrial,
há uma cisão entre esses dois atores estratégicos, em virtude da insatisfação do segundo
com o aumento de impostos levado a cabo pelo primeiro para a consecução do ajuste
fiscal. Bem assim, para desacelerar a inflação, o aumento sucessivo da taxa de juros
pelo Comitê de Política Monetária (Copom), - que chegou a 7,25% em outubro de 2012
(BANCO CENTRAL, 10/10/2012), o patamar mais baixo da história; atualmente, está
em 14,25% (O GLOBO, 29/07/2015) - somente oblitera os investimentos produtivos,
encarece o capital de giro das empresas, inibe o consumo das famílias e agrava a
tendência recessiva da economia. Aguça-se, portanto, a transferência de renda da
sociedade para a fração-bancário financeira parasitária, aumentando exponencialmente
o lucro dos bancos e reduzindo a massa salarial dos trabalhadores. Não há Estado do
Bem-Estar Social que resista à tamanha predação orquestrada pelo sistema financeiro.
Nesse sentido, os economistas porta-vozes das agências de classificação de risco
defendem o argumento de que as despesas públicas não cabem no tamanho do Brasil.
Isso evidencia a letalidade dessa dinâmica financeira apátrida, que é insustentável para a
sociedade brasileira, uma vez que arca com o ônus do ajuste ortodoxo. O perigo é que o
Brasil se assemelhe à situação da Grécia a médio prazo; nação integralmente subjugada
à volição especulativa e estelionatária dos mercados financeiros e das agências de
classificação de risco. Esta pesquisa considera que o rentismo financeiro viola os
princípios da Constituição de 1988, dedicada à construção de um Estado Social, cujas
premissas são a ampliação da rede de proteção social e a promoção da cidadania. Tais
medidas, portanto, demandam a expansão do gasto social público, o que é incompatível
com a retórica ortodoxa assentada em ganhos de curto prazo.
Além de analisar a conjuntura brasileira contemporânea e a degeneração de um
ciclo de desenvolvimento vinculado ao renascimento da ortodoxia, esta pesquisa tem o
objetivo de ser crítica e propositiva, no sentido de apontar possíveis soluções para a
crise endógena. Para tanto, apresentamos alguns argumentos derradeiros a seguir. Em
face a um Parlamento de cunho conservador legislando para e pelo poder econômico,
em detrimento da população, verifica-se uma atuação em causa própria e avessa ao
interesse nacional brasileiro, na medida em que não prioriza de forma democrática e
republicana as grandes questões públicas. Soma-se a isso a inércia e subalternidade do
Poder Executivo diante da hegemonia do capitalismo financeiro e da impossibilidade de
formular uma estratégia consistente de desenvolvimento tendo em vista exclusivamente
a Nação. Tanto o Legislativo como o Executivo e as agremiações partidárias são
destituídas da confiança da soberania popular por conta dos sucessivos escândalos de
corrupção. Há inúmeros “pontos de veto” na democracia brasileira, que inviabilizam o
robustecimento do Estado Social e a redução sistemática das históricas desigualdades
sociais. Eles são representados por instituições e atores como o Congresso Nacional
(Senado Federal + Câmara dos Deputados), o empresariado - destituído de “espírito
animal” e refratário à promoção do investimento produtivo em momentos de crise - e a
fração do capital bancário-financeiro especulativo doméstico e global. Inviabiliza-se,

27  
 
   

por conseguinte, a instauração de um Projeto Nacional de longo prazo, inclusivo e


sustentável.
Sem tergiversações, há que se realizar uma outra Revolução Modernizante no
Brasil, - evidentemente que atualizada ao cenário caracterizado pela supremacia das
forças centrípetas da globalização econômica - como a instaurada em 1930, e que fora
capitaneada pelo chefe político e estadista Getúlio Vargas. Esta, por sua vez,
transformou o indivíduo subjugado ao laissez-faire em portador de cidadania e de
direitos sociais, regulamentou as relações capital/trabalho, edificou os alicerces
burocrático-institucionais e a ossatura do moderno Estado brasileiro, viabilizou o
crescimento via estratégia endógena e mobilizou recursos necessários para penetrar
uniformemente o território e implementar logisticamente as decisões políticas. A Nação
precisa de um governo nacional poderoso, vigoroso e capaz de domesticar o capitalismo
financeiro e garantir a coesão do tecido social, em vez de sua degenerescência passiva
suscitada pela ortodoxia convencional.
Na atual conjuntura, é imperiosa a emersão de uma coalizão política com
capacidade de liderança, penetração na sociedade e que estabeleça um governo forte e
estruturador de um Projeto Nacional Desenvolvimentista de cunho eminentemente
Soberano, Popular e Trabalhista. Tal coalizão deve ser capaz de impor (rigorosamente)
um posicionamento descolado de grupos rentistas e especulativos refratários às políticas
de promoção da cidadania e da autonomia nacional. Deve ser um governo republicano e
sacralizar a dimensão pública em detrimento dos interesses privados deletérios e
contraproducentes ao desenvolvimento da sociedade brasileira contemporânea. A
conjuntura recente assinala o esgotamento de um ciclo, o que impõe repensar o papel do
Estado, das instituições políticas, das políticas públicas e dos empreendedores
econômicos devotados ao investimento produtivo. O Brasil necessita de um governo
forte, robusto e republicano a fim de instaurar um novo ciclo de desenvolvimento e
bem-estar, diante da hegemonia do anti-republicanismo, na esfera política, e do
recrudescimento do neoliberalismo, no âmbito econômico. A tarefa nesse cenário
adverso é construir este novo Governo e um novo Estado.

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Para Que Vêm Servindo Mesmo os Royalties? Um Debate sobre a Aplicação
da Compensação Financeira Decorrente da Exploração de Petróleo e Gás
no Município de Macaé
Temístocles Murilo de Oliveira Junior

O objetivo deste trabalho é examinar se o tipo de aplicação que vem sendo dada pela
Prefeitura de Macaé aos royalties que aquele município recebe pela exploração e produção de
petróleo e gás natural (E&P) da área de pós-sal seria coerente com a finalidade social daquela
compensação financeira. Tendo que a finalidade deste instituto seria propiciar um
desenvolvimento sustentável das áreas onde ocorra a exploração e a produção de petróleo e
gás natural, mesmo após o esgotamento das bacias, pergunta-se: mas para que vêm servindo
mesmo os royalties? Responde-se a esta pergunta a partir de pesquisa ao conjunto de registros
relativos à aplicação dada pela Prefeitura de Macaé aos recursos oriundos dos royalties do
pós-sal, relacionados à rubrica “royalties 5% da lei 7990”, disponíveis por meio do portal da
transparência (PTM) daquele município Os resultados obtidos indicam que aquela prefeitura,
entre 2012 e 2014, aplicou quase três quartos dos recursos dos royalties do pós-sal de forma, a
princípio, imprópria frente a sua finalidade social. Como se tratam de recursos voltados para o
financiamento do desenvolvimento sustentável, defende-se a promoção de debate sobre a
melhoria das instituições relacionadas aos royalties, que visem estabelecer programas de sua
aplicação, e não simples previsões de vinculações, como já existe para saúde e educação.

Introdução

O objetivo deste trabalho é examinar se o tipo de aplicação que vem sendo dada pela
Prefeitura de Macaé aos royalties que aquele município recebe pela exploração e produção de
petróleo e gás natural (E&P) da área de pós-sal seria coerente com a finalidade social daquela
compensação financeira. Considerando que as instituições sobre tais recursos não trazem
parâmetros que estabeleçam um caráter mais programático a sua aplicação, a hipótese é de
que há uma maior possibilidade de que seu uso se realize, pelo menos em parte, por meio de
despesas que não se relacionem a sua finalidade.
E para que servem os royalties? Sua razão se relaciona à ideia de desenvolvimento
sustentável, já que sua legitimidade reside na necessidade de que haja investimentos que
garantam o bem-estar e o sustento das gerações futuras que venham a habitar nos locais onde
ocorra ou tenha ocorrido a E&P de petróleo e gás natural, mesmo que nelas tais recursos já
tenham se exaurido (BISPO, 2011; ALVES, 2011). Neste sentido, a aplicação dos recursos
oriundos desse instituto de natureza compensatória deve ser orientada para despesas que
visem resguardar a sustentabilidade (futura) das áreas afetadas por tais atividades, tendo em
vista o caráter efêmero das bacias de petróleo e os impactos ambientais, sociais e econômicos
de sua exploração e produção (SEABRA, FREITAS, et al., 2011).
Os royalties do pós-sal vêm representando uma parcela significativa do orçamento dos
munícipios recebedores. Para realização deste trabalho selecionou-se Macaé, por conta das
transformações lá iniciadas, a partir da sanção da lei nº 9.471, de 1997, em decorrência do
aumento do repasse dos royalties do pós-sal e por ser ela conhecida como a “capital do
petróleo” (RITTO, 2012). A realização neste momento advém de dois fatos: a diminuição de
tais repasses, dada a redução do preço do barril no mercado internacional e o exaurimento dos
campos de extração mais antigos (MACEDO, 2015); e a janela de oportunidade que se abriu
para que se promovesse o debate sobre a aplicação dos recursos do pós-sal, mas que não foi
aproveitada, por conta das discussões sobre a regulamentação da E&P para a área de pré-sal,
que originaram as leis nº 12.351 e 12.734, em 2010 e 2012.
Assim, tendo que a finalidade deste instituto seria propiciar um desenvolvimento
sustentável das áreas onde ocorra a E&P de petróleo e gás natural, mesmo após o esgotamento
das bacias, pergunta-se: mas para que vêm servindo mesmo os royalties?
Pretende-se dar resposta a esta pergunta a partir de pesquisa ao conjunto de registros
relativos à aplicação dada pela Prefeitura de Macaé aos recursos oriundos dos royalties do
pós-sal, relacionados à rubrica “royalties 5% da lei 7990”, disponíveis por meio do portal da
transparência (PTM) daquele município (MACAÉ, 2015).
Partindo-se dos referenciais de Herculano (2010), Seabra et al. (2011), entre outros,
busca-se classificar os registros de tais aplicações em duas principais categorias, relacionadas
àquelas que seriam próprias à sua finalidade social e aquelas que seriam impróprias. Esta
classificação visa à construção de um panorama básico sobre as diferentes destinações e sobre
seus montantes. Constituído em pesquisa documental, este trabalho divide-se em três seções,
além desta introdução e de sua conclusão. Na primeira, levantam-se os referencias necessários
à realização proposta. Na segunda, trazem-se os resultados da coleta e da classificação dos
registros encontrados no PTM. Na terceira, apresenta-se a análise das classificações e seus
pontos críticos, bem como indicações sobre possibilidades de enfrentamento destes pontos.

Os royalties e sua finalidade

Nesta seção, estudam-se as ideias sobre o conceito de royalties a partir da legislação


brasileira e da literatura sobre o tema, com o intuito definir os principais referenciais sobre
sua finalidade, de forma a permitir a análise crítica de sua aplicação pela Prefeitura de Macaé.
Examinam-se ainda os regulamentos sobre a contabilidade pública no Brasil, tendo em vista
que o tipo de aplicação dada aos royalties classifica-se conforme aquelas normas, em suas
diferentes categorias econômicas, naturezas e elementos de despesa, conforme se verificou a
partir de uma primeira exploração preliminar dos registros do PTM.
No ordenamento jurídico brasileiro, o instituto dos royalties sobre a E&P do petróleo
surge entre as disposições da lei n° 2.004/53, por meio da qual se originou a Petróleo
Brasileiro SA (Petrobrás). Inexistente no projeto de lei (PL) 1516/51, enviado pelo Presidente
Getúlio Vargas ao Congresso Nacional, sua inclusão naquele diploma legal se deu por meio
de emenda apresentada na Câmara dos Deputados, cuja definição consta do parecer da
Comissão de Constituição e Justiça daquela Casa Legislativa, conforme trecho transcrito
abaixo:
Convém, no entanto, sobretudo para quem pretenda levar mais adiante os
fundamentos de ordem jurídica e histórica em que se sustenta a conclusão a
que chegâmos, ponderar que as características próprias da renda minerária,
rent ou royalty dos ingleses e dos institutos idênticos ou semelhantes da
legislação estrangeira, ou dos nossos dízimos coloniais - constituem precioso
subsidio ao esclarecimento da matéria. [...] A minerária é juridicamente, sem
dúvida, uma renda típica, nascendo do jus soli ou da instituição da
propriedade mineral, conforme a concepção que prevaleça sôbre o seu
domínio, mas, definitivamente, ligada à idéia do direito do proprietário e não
dos poderes tributários do titular do domínio eminente ou da soberania
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1952, p. 134).
Apesar de, assim como a citação acima, existirem entre os documentos que debateram
o PL 1516/51 discussões sobre os royalties, delas não constam justificativas sociais para sua
institucionalização. Sua caracterização como “renda mineral” própria das pessoas jurídicas
(de direito público interno) proprietárias das áreas de onde se extrai o petróleo indica-lhe uma
justificativa meramente liberal para o recebimento destes recursos pelo Estado, sem indicar
quaisquer razões que sustentem que sua aplicação se dê em objetos específicos. Observados
ainda os debates relacionados à sanção das leis nº 7.990/891 e 9.471/97, que alteraram as
regras relacionadas aos royalties do pós-sal, e aqueles das leis nº 12.351/10 e 12.734/12,
relativas ao pré-sal, a situação de falta de razões sociais para a cobrança de compensações
pela E&P do pós-sal se repete.
Buscando-se os referenciais sobre a finalidade social deste instituto na literatura sobre
o tema, verificou-se que, apesar de, como visto, eles estarem formalizados no Brasil desde
meados do século passado, somente a partir do anúncio da descoberta da área de pré-sal, em
2007 (SEABRA, FREITAS, et al., 2011), que tal assunto passou a ser debatido com mais
vigor. Mesmo observado tal aumento, analisando-se o debate promovido pela grande mídia e
as discussões no campo da política, acerca da institucionalização da E&P das áreas de pré-sal,
vê-se que estes se concentraram de forma mais marcante na questão da repartição dos
royalties entre os entes subnacionais produtores e não produtores.
Para Alves (2011), a finalidade (social) dos royalties se relaciona à ideia de
desenvolvimento sustentável, que hoje faz parte da agenda internacional no campo político,
econômico e acadêmico. Não se restringindo às preocupações focadas nos objetivos de curto e
médio prazo, este assunto vem sendo considerado o fator-chave para a definição das políticas
públicas nos mais diversos países do globo.
Indo além da discussão exclusiva sobre a base da expansão da riqueza material, o
debate sobre o desenvolvimento vem englobando questões sociais e ambientais cruciais no
que tange à ideia de economia sustentável. As metas de desenvolvimento são preocupações de
grande importância nas sociedades atuais, e estes não se restringem ao crescimento
econômico, que é usado para a definição de diretrizes e criação de políticas públicas. Também
não são avaliadas somente pela expansão da riqueza material, e sim englobam critérios
sociais, ambientais e qualitativos para identificar os avanços em direção a uma economia
sustentável e ambientalmente amigável.
Portanto, o desenvolvimento sustentável significa compatibilizar o crescimento
econômico com essas metas. Numa perspectiva que considera a herança a ser legada às
gerações futuras, ou seja, um foco de pensamento no longo prazo, a disponibilidade de
recursos de petróleo e gás natural e a aplicação dos royalties oriundos destas atividades
produtivas são assuntos que devem ser levados em consideração. O desenvolvimento
sustentável significa mais do que o mero crescimento econômico de curto prazo para melhorar
as condições de vida da geração atual, mas também, a análise estratégica de longo prazo que
analise as repercussões das decisões de hoje que afetarão as gerações futuras
(BAUMGÄRTNER e QUAAS, 2009).
Ao analisar a literatura que relaciona a aplicação dos royalties ao desenvolvimento
sustentável, Reis e Santana (2014) indicam que a razão do primeiro residiria justamente em
garantir o segundo, o que requereria que os recursos advindos dos royalties fossem utilizados
em investimentos públicos orientados para a constituição de ativos fixos e para a formação de
pessoas. O problema que se verifica acerca das instituições sobre o uso dado a estes recursos é
que “[...] a sua aplicação, embora tenha alguns dispositivos legais para nortear as ações de
gastos, não está bem definida. Isso faz com que os gestores tenham maior grau de liberdade
quanto à sua aplicação” (REIS e SANTANA, 2014, p. 2).
Desta maneira, o debate voltado para a construção da finalidade social dos royalties se
daria então a partir de um quadro teórico que abarcasse os conceitos de renda mineral,

1  A  lei  nº  7.990/89,  em  seu  artigo  8º,  dá  nova  regulamentação  ao  uso  dos  recursos,  ao  dizer  que:  “O  pagamento  das  compensações  
financeiras  previstas  nesta  lei,  inclusive  o  da  indenização  pela  exploração  do  petróleo,  do  xisto  betuminoso  e  do  gás  natural  [...],  
vedada  a  aplicação  dos  recursos  em  pagamentos  de  dívidas  e  no  quadro  permanente  de  pessoal”.  A  possibilidade  de  utilização  dos  
recursos  provenientes  dos  royalties  é  ampliada  em  2001,  quando  o  art.  8º,  §§  1º  e  2º,  da  lei  nº  10.195  altera  o  art.  8º  da  lei  nº  
7.990/89,  permitindo  que  os  recursos  oriundos  dos  royalties  do  petróleo  e  gás  natural  fossem  aplicados  no  pagamento  de  dívidas  
com  a  União  e  suas  entidades,  como  também  para  capitalização  de  fundos  de  previdências.  
mencionado na análise do PL 1516/51, de custo de uso, de sustentabilidade econômica
intergeracional (regra de Hartwick) e da doença holandesa (REIS e SANTANA, 2014).
Utilizam-se ainda para composição deste quadro os conceitos de increasing returns e path
dependence.
A ideia sobre renda mineral estaria ligada, conforme aponta a literatura econômica, à
própria construção da noção de renda, lato sensu. Nos primeiros sistemas econômicos, sendo
a terra e os recursos dela proveniente, como os minerais, a forma de capital (e de sua
acumulação) básica, a renda sobre a terra se relacionava ao próprio aproveitamento
econômico sobre seu uso. Possuindo características próximas aos demais recursos
provenientes da terra, os recursos minerais apresentam, no entanto, uma particularidade, eles
são por si exauríveis e não renováveis, o que limita de forma cabal sua oferta.
A finitude intransponível de sua oferta, caso este seja extraído, impõe à ideia do uso
dos recursos minerais a noção de que há um custo intertemporal nele. Inexoravelmente, o uso
de hoje representará o exaurimento amanhã. O pensamento sobre o custo de uso adequa-se à
questão do petróleo e do gás natural, visto que a formação de novas bacias de hidrocarbonetos
demanda milhões anos, período de tempo que define economicamente tais recursos como não
renováveis.
O custo de uso, ligado à dimensão intertemporal, justificaria a compensação
(renda mineral) recebida pelo proprietário de reservas de hidrocarbonetos
pela impossibilidade de extrair futuramente o recurso que está sendo retirado
atualmente. [...]
Postali acrescenta ao debate uma importante reflexão acerca da renda de
Hotelling. Já que a extração do minério no presente impossibilita sua
extração no futuro, inviabilizando que as gerações futuras usufruam desse
recurso, “(...) o que deve ser feito com a renda de Hotelling obtida pelo
proprietário do recurso, para não prejudicar os futuros consumidores?”
(Postali, 2002:21). (REIS e SANTANA, 2014, p. 3-4).
Destacando o trabalho de Hartwick sobre a finalidade da renda mineral à luz da
questão de seu custo de uso intertemporal, que a partir de um modelo de funcionamento de
uma economia que funcionaria com somente um recurso não renovável, dependendo
inteiramente da renda obtida a partir dele para investimento, aquele autor teria indicado que
nela, caso houvesse um adequado uso de tal renda para formação de “bens de capital e de
capital, poderia obter(-se) um nível de consumo per capita constante ao longo do tempo”
(REIS e SANTANA, 2014, p. 5)
Pela regra de Hartwick, acima, os recursos de uma renda mineral devem ser utilizados
em investimentos que permitam a diversificação da economia, em áreas que possam propiciar
a elevação da produtividade e o acúmulo médio de capital com visas ao crescimento
econômico presente e, principalmente, futuro.
Por essa ideia, a legitimidade da cobrança dos royalties, frente aos agentes econômicos
exploradores e produtores de petróleo e gás natural, residiria no fato de que com eles os entes
públicos podem realizar investimentos que garantam a sustentabilidade econômica
intergeracional das áreas onde ocorrem tais atividades, de forma a evitar a ocorrência do
fenômeno conhecido na literatura econômica como “doença holandesa” ou a “maldição dos
recursos naturais”.
A doença holandesa provocada pela E&P de petróleo e gás natural, por sua vez, estaria
associada às ideias do campo econômico e político de increasing returns e de path
dependence, estudadas por Arthur (1990) e Pierson (2000), que tais atividades trazem para as
economias onde elas ocorrem.
Considerando que atividades econômicas “vantajosas”, como a E&P de petróleo,
reproduzem increasing returns nas economias beneficiadas com seus resultados. Como estas
atividades exigem investimentos específicos (formação de pessoas numa área específica de
conhecimento, criação de infraestrutura para aquela atividade, etc.), pelo capital empreendido
e pelo retorno positivo em sua acumulação, tal sucesso orienta as decisões dos agentes
econômicos e políticos para que nelas haja reinvestimentos, sejam privados ou públicos.
Este ciclo de investimento e reinvestimento “vantajoso” engendra um path dependence
quanto à atividade de E&P de petróleo e gás natural nas localidades onde ela ocorra. Uma
dependência de trajetória pela continuidade da reprodução de uma determinada atividade
econômica, criada por conta da concentração da mobilização na formação das pessoas e da
criação de bens de capital voltada ao alcance da máxima eficiência daquela determinada
atividade. Esta mobilização de uma economia para que se reproduzam os maiores retornos
possíveis de uma atividade específica, por sua vez, incapacita aquela economia para outras
atividades.
Então, em economias onde haja increasing returns e path dependence de atividades
econômicas cujo produto seja exaurível, como a E&P do petróleo e do gás natural, nelas, a
economia se tornaria insustentável após cessação dos resultados dessas mesmas atividades.
Mas a doença holandesa ligada à ideia de recursos naturais e à renda mineral não
ocorreria somente no momento de sua exaustão, podendo se caracterizar mesmo em
economias deles dependentes, enquanto as atividades econômicas que a gerariam ainda
operam.
As explicações para o péssimo desempenho das economias dependentes de
recursos naturais [...] podem estar relacionadas com a má gestão do recurso,
ao fato de que a aplicação das rendas obtidas não é direcionada para
investimentos em bens de capital e capital humano. Pode também ser
justificada pela fragilidade das instituições e pela perda de competitividade,
em função do relativo conforto que a renda proporciona. (REIS e
SANTANA, 2014, p. 6)
Observando a partir deste prisma teórico, tem-se que a aplicação dos recursos oriundos
desse instituto de natureza compensatória, para com vistas a sua finalidade social, deve ser
orientada para despesas que visem resguardar a sustentabilidade (futura) das áreas afetadas
por tais atividades, tendo em vista o caráter efêmero das bacias de petróleo e os impactos
ambientais, sociais e econômicos de sua exploração e produção (SEABRA, FREITAS, et al.,
2011). Assim, sua legitimidade residiria na necessidade de que haja investimentos que
garantam o bem-estar e o sustento das gerações futuras que venham a habitar nos locais onde
ocorra ou tenha ocorrido a E&P de petróleo e gás natural, mesmo que nelas tais recursos já
tenham se exaurido. Desta forma, como abordado por Rios e Santana (2014, p. 2), “[...] é
importante analisar a forma de aplicação dos recursos provenientes de royalties pelos entes
públicos, sobretudo no que diz respeito à alocação em despesas de capital”.
Entre as instituições relacionadas à administração financeira e orçamentária no Brasil,
aquelas que estabelecem regras para a contabilidade pública são a Secretaria do Tesouro
Nacional (STN) e a Secretaria de Orçamento Federal (SOF). A norma editada por aquelas
Secretarias, que, desde 2001, regulamenta a classificação das despesas de caráter público é a
portaria interministerial (PI) nº 163. Por aquela norma, a despesa deve ser classificada por sua
categoria econômica (c), natureza (g), modalidade de aplicação (mm) e elemento (ee), sendo
que sua codificação se dá pela junção ordenada dos códigos destes itens, originando o formato
“c.g.mm.ee” (BRASIL, 2001).
A partir da exploração preliminar realizada nos registros do PTM quanto às despesas
pagas com recursos da fonte “royalties 5% da lei 7990”, selecionaram-se os seguintes
conceitos e especificações das classificações das despesas, cujas definições das categorias
econômicas, naturezas, modalidades e elementos servem de referência para este trabalho:
A - CATEGORIAS ECONÔMICAS
3 - Despesas Correntes
Classificam-se nessa categoria todas as despesas que não contribuem,
diretamente, para a formação ou aquisição de um bem de capital.
4 - Despesas de Capital
Classificam-se nessa categoria aquelas despesas que contribuem,
diretamente, para a formação ou aquisição de um bem de capital.
B - GRUPOS DE NATUREZA DE DESPESA
1 - Pessoal e Encargos Sociais - Despesas orçamentárias com pessoal ativo,
inativo e pensionistas, [...], tais como vencimentos e vantagens, fixas e
variáveis, subsídios, proventos [...] bem como encargos sociais e
contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência [...]
[...]
3 - Outras Despesas Correntes - Despesas orçamentárias com aquisição de
material de consumo, pagamento de diárias, contribuições, subvenções,
auxílio-alimentação, auxílio-transporte, além de outras despesas da categoria
econômica "Despesas Correntes" não classificáveis nos demais grupos de
natureza de despesa.
4 - Investimentos
Despesas orçamentárias com softwares e com o planejamento e a execução
de obras, inclusive com a aquisição de imóveis considerados necessários à
realização destas últimas, e com a aquisição de instalações, equipamentos e
material permanente.
[...]
C - MODALIDADES DE APLICAÇÃO
[...]
90 - Aplicações Diretas - Aplicação direta, pela unidade orçamentária, dos
créditos a ela alocados ou oriundos de descentralização de outras entidades
integrantes ou não dos Orçamentos Fiscal ou da Seguridade Social, no
âmbito da mesma esfera de governo.
[...]
D - ELEMENTOS DE DESPESA
[...]
39 - Outros Serviços de Terceiros - Pessoa Jurídica Despesas orçamentárias
decorrentes da prestação de serviços por pessoas jurídicas para órgãos
públicos, tais como: assinaturas de jornais e periódicos; tarifas de energia
elétrica, gás, água e esgoto; serviços de comunicação (telefone, telex,
correios, etc.); fretes e carretos; locação de imóveis (inclusive despesas de
condomínio e tributos à conta do locatário, quando previstos no contrato de
locação); locação de equipamentos e materiais permanentes; software;
conservação e adaptação de bens imóveis; seguros em geral (exceto os
decorrentes de obrigação patronal); serviços de asseio e higiene; serviços de
divulgação, impressão, encadernação e emolduramento; serviços funerários;
despesas com congressos, simpósios, conferências ou exposições; vale-
refeição; auxílio-creche (exclusive a indenização a servidor); habilitação de
telefonia fixa e móvel celular; e outros congêneres, bem como os encargos
resultantes do pagamento com atraso de obrigações não tributárias. [...]
(BRASIL, 2001).

Aplicação dos recursos dos royalties do pós-sal pela Prefeitura de Macaé

Nesta seção, apresentam-se os resultados do levantamento definitivo dos registros do


PTM que indiquem a aplicação dada pela Prefeitura de Macaé aos recursos identificados pela
rubrica “royalties 5% da lei 7990”, referente aos repasses recebidos em razão dos royalties
pela E&P de petróleo e gás natural. Este levantamento foi realizado tendo em vista a
verificação sobre se as despesas realizadas a partir de tal rubrica estariam se dando em
despesas que refletiriam a finalidade social dos royalties, abordada na seção anterior, bem
como levando-se em consideração os referenciais regulamentares sobre a classificação das
despesas, nela também apresentada. Destaca-se que, à época do acesso ao PTM para
realização deste trabalho, em junho/2015, este dispunha de dados anuais somente sobre as
despesas relativas aos anos de 2012 a 2014, estando os dados de 2015, por óbvio, não
fechados.
Primeiramente, buscou-se verificar a importância e a evolução da participação daquela
rubrica nos recursos utilizados pela Prefeitura de Macaé no período.

Tabela 1:
Fontes e montantes dos recursos geridos pela Prefeitura de Macaé entre 2012 e 2014
DESCRIÇÃO 2012 2013 2014 TOTAL
Recursos Ordinários 787.891.137,61 822.281.866,87 908.514.080,89 2.518.687.085,37
Royalties 5% - lei 7990/89 333.824.005,29 267.406.456,07 314.008.775,47 915.239.236,83
Royalties - lei 9478/97 62.173.373,15 153.596.453,17 97.553.357,89 313.323.184,21
Transferências do Fundeb 79.102.204,85 94.118.170,31 104.881.220,95 278.101.596,11
Royalties - participação
- - 50.327.621,75 50.327.621,75
especial
Salário educação 10.700.000,00 10.089.542,82 3.472.297,03 24.261.839,85
Royalties - transferência
- - 21.379.720,51 21.379.720,51
Estado
Convênios 4.125.542,45 7.336.181,02 5.292.489,70 16.754.213,17
Contribuição para o custeio
dos serviços de iluminação - 2.453.874,97 - 2.453.874,97
pública - Cosip
Operações de crédito
- - 1.593.462,51 1.593.462,51
internas
Transferências de recursos
- - 887.997,41 887.997,41
do FNDE
Royalties - Fundo Especial
- - 42.239,60 42.239,60
do Petróleo
TOTAL 1.277.816.263,35 1.357.282.545,23 1.507.953.263,71 4.143.052.072,29
Participação dos "Royalties
26,12% 19,70% 20,82% 22,09%
5% - lei 7990/89" no total
Participação das rubricas
acumuladas relativas aos 30,99% 31,02% 32,05% 31,39%
royalties
Nota. Fonte: Portal da Transparência (MACAÉ, 2015).

A partir da Tabela 1, pode-se indicar que a participação dos recursos advindos dos
royalties do pós-sal no período foi significativa, representando a rubrica em estudo, valores
correspondentes a 26,12%, 19,70% e 20,82% do total. Somando-se os recursos desta rubrica
aos das demais rubricas correspondentes ao recebimento de royalties (incluídas,
possivelmente, aqueles do pré-sal), a participação destes recursos teve leve elevação entre os
anos estudados e representa quase um terço do total das disponibilidades financeiras que
aquela Prefeitura aplicou no período.
Com o intuito de verificar qual parcela das aplicações realizadas a partir daquela
rubrica se deram em despesas que seriam “próprias” à finalidade social dos royalties, que
seriam aquelas de capital, como afirmam Reis e Santana (2014), construiu-se a Tabela 2.
Tabela 2:
Aplicação dos recursos da fonte “Royalties 5% - lei 7990/89” entre 2012 e 2014.
DESCRIÇÃO 2012 2013 2014 TOTAL %
3.1.90.08 - Outros
2.588,27 - - 2.588,27 0,00028%
Benefícios Assistenciais
3.1.90.09 - Salário-
132,00 - - 132,00 0,00001%
Família
3.1.90.11 - Outras
despesas fixas - pessoal 10.625,17 - - 10.625,17 0,00116%
civil
3.1.90.96 -
Ressarcimento Despesas 77.361,26 - - 77.361,26 0,00845%
de Pessoal Requisitado
3.3.30.39 - Outros
Serviços de Terceiros - - 422.655,54 - 422.655,54 0,04618%
P.Jurídica
3.3.90.08 - Outros
27.614,17 99.322,86 - 126.937,03 0,01387%
Benefícios Assistenciais
3.3.90.14 - Diárias - Civil 363.773,28 1.408.002,00 817.367,80 2.589.143,08 0,28289%
3.3.90.18 - Auxílio
- 249.801,36 438.983,38 688.784,74 0,07526%
Financeiro a Estudantes
3.3.90.30 - Outros
materiais de consumo 7.186.652,77 3.927.843,43 4.777.804,91 15.892.301,11 1,73641%
diversos
3.3.90.32 - Material de
439.405,00 117.184,44 292.957,79 849.547,23 0,09282%
Distribuição Gratuita
3.3.90.33 - Passagens e
Despesas com - - 3.033,28 3.033,28 0,00033%
Locomoção
3.3.90.36 - Outros serv.
2.762.819,44 3.671.316,65 5.769.171,24 12.203.307,33 1,33335%
Terc. P.fisica – diversos
3.3.90.39 - Fretes e
6.633.455,65 - - 6.633.455,65 0,72478%
transportes
3.3.90.39 - Outros serv.
Terc. P.jurídica – 84.569.252,79 37,81341%
128.357.073,61 133.156.853,74 346.083.180,14
diversos
3.3.90.39 - Serviços de
3.278.169,75 - - 3.278.169,75 0,35818%
publicidade legal
3.3.90.46 - Auxílio-
- 27.287.170,08 22.995.669,95 50.282.840,03 5,49396%
Alimentação
3.3.90.47 - Obrigações
Tributárias e 2.643.745,26 12.158.854,33 1.021.586,06 15.824.185,65 1,72897%
Contributivas
3.3.90.48 - Outros
Auxílios Financeiros a 703.882,50 3.631.641,25 2.539.559,15 6.875.082,90 0,75118%
P.Físicas
3.3.90.91 - Sentenças
17.478.096,55 11.557.365,63 4.195.034,61 33.230.496,79 3,63080%
Judiciais
3.3.90.92 - Despesas de
54.736.942,54 35.318.384,47 161.615,28 90.216.942,29 9,85720%
Exercícios Anteriores
3.3.90.93 - Indenizações
12.544.939,26 35.460.894,78 48.605.965,16 96.611.799,20 10,55591%
e Restituições
4.4.90.51 - Obras e
73.389.046,78 28.087.299,26 86.657.751,18 20,55573%
Instalações 188.134.097,22
4.4.90.52 - Equipamentos
6.563.420,91 340.521,00 2.575.421,94 9.479.363,85 1,03573%
e Material Permanente
4.4.90.92 - Despesas de
- 7.467.067,26 - 7.467.067,26 0,81586%
Exercícios Anteriores
4.5.90.61 - Aquisição de
14.563.327,18 - - 14.563.327,18 1,59120%
Imóveis
4.6.90.71 - Principal da
Dívida Contratual 2.060.933,94 11.631.878,94 - 13.692.812,88 1,49609%
Resgatado
Total 333.824.005,29 267.406.456,07 314.008.775,47 915.239.236,83 -
Soma das despesas de
96.576.728,81 47.526.766,46 89.233.173,12 233.336.668,39 25,49%
capital (4)
Soma das despesas
237.247.276,48 219.879.689,61 224.775.602,35 681.902.568,44 74,51%
correntes (3)
Participação das despesas
correntes sobre o total
71,06% 82,26% 71,58% 74,51% -
aplicado dos royalties do
pós-sal
Soma das despesas
correntes de código 138.268.699,01 84.569.252,79 133.156.853,74 355.994.805,54 -
3.3.90.39
Participação das despesas
de código 3.3.90.39 sobre 41,42% 31,63% 42,41% 38,90% -
o total
Nota. Fonte: Portal da Transparência (MACAÉ, 2015).

Pelo que se vê da Tabela 2, pouco mais de um quarto (25,49%) das aplicações


realizadas com recursos dos royalties do pós-sal pela Prefeitura de Macaé, entre 2012 e 2014
podem ser, à primeira vista, consideradas “próprias” à finalidade daquele instituto. A partir da
observação da variação da porcentagem das aplicações “impróprias”, relacionadas às despesas
correntes frente ao montante que foi aplicado de tais recursos (71,06%, 82,26% e 71,58%),
dada limitação da série histórica, não se aponta tendência.
A participação de um tipo específico de despesa corrente, relacionado a “outros
serviços de terceiros – pessoa jurídica”, de código 3.3.90.39, chama atenção. O que sua leitura
informa é que os pagamentos de pessoas jurídicas que prestaram serviços diversos “para
órgãos públicos” e que “não contribuíram, diretamente, para a formação ou aquisição de um
bem de capital” foi significativa frente ao total de aplicações dos royalties do pós-sal no
período, em porcentagens de 41,42%, 31,63%, 42,41% naqueles anos, perfazendo uma média
de 38,90%. No intuito de identificar estes “outros serviços”, selecionaram-se as empresas às
quais foram destinados os maiores gastos anuais com eles, que, juntos, formaram 90%
(noventa por cento) do montante relacionado às despesas de código 3.3.90.39. A Tabela 3 traz
tais registros.

Tabela 3:
Destinatários de mais de 90% da aplicação dos royalties do pós-sal entre 2012 e 2014 em despesas de código 3.3.90.39
CNPJ 2012 2013 2014 TOTAL %
35.780.956/0001-38 35.940.673,84 28.607.960,64 39.951.839,41 104.500.473,89 31,92%
30.183.941/0001-79 40.557.298,46 - 56.096.986,28 96.654.284,74 29,52%
08.295.999/0001-55 7.987.731,50 6.889.722,25 6.284.164,00 21.161.617,75 6,46%
03.632.896/0001-10 3.981.375,00 477.000,00 1.716.527,06 6.174.902,06 1,89%
36.290.401/0001-70 5.397.737,64 522.519,80 47.600,00 5.967.857,44 1,82%
33.000.118/0001-79 2.991.202,48 1.713.892,65 894.879,57 5.599.974,70 1,71%
11.491.763/0001-07 4.063.930,12 1.057.543,89 - 5.121.474,01 1,56%
03.922.966/0002-55 4.742.605,77 - - 4.742.605,77 1,45%
05.951.758/0001-29 - - 4.640.485,22 4.640.485,22 1,42%
08.540.992/0001-51 - 2.257.106,84 2.375.571,47 4.632.678,31 1,42%
05.133.091/0001-57 1.700.586,53 2.325.831,14 - 4.026.417,67 1,23%
05.852.825/0001-58 2.072.470,00 700.824,00 318.744,00 3.092.038,00 0,94%
00.862.596/0001-39 - 2.705.000,00 - 2.705.000,00 0,83%
09.298.880/0001-07 1.954.265,50 - 665.490,24 2.619.755,74 0,80%
39.709.720/0001-66 - - 2.538.979,50 2.538.979,50 0,78%
36.293.652/0001-09 - 1.258.635,19 978.768,50 2.237.403,69 0,68%
09.630.681/0001-46 2.100.794,64 - - 2.100.794,64 0,64%
50.185.198/0001-01 2.053.879,75 - - 2.053.879,75 0,63%
02.966.986/0001-84 1.881.786,16 - - 1.881.786,16 0,57%
03.995.068/0001-46 1.495.296,50 78.639,05 7.726,00 1.581.661,55 0,48%
01.579.387/0007-30 1.509.339,04 - - 1.509.339,04 0,46%
00.943.094/0001-32 860.572,05 227.567,10 316.631,25 1.404.770,40 0,43%
07.358.788/0001-51 1.360.989,88 - - 1.360.989,88 0,42%
04.642.554/0001-43 660.000,00 - 694.062,68 1.354.062,68 0,41%
09.305.646/0001-51 1.152.133,36 192.260,20 - 1.344.393,56 0,41%
29.699.626/0001-10 1.323.904,25 - - 1.323.904,25 0,40%
39.709.324/0001-39 - - 1.285.368,87 1.285.368,87 0,39%
30.069.314/0001-01 695.987,28 380.423,31 128.441,00 1.204.851,59 0,37%
05.057.027/0001-34 - - 1.088.373,70 1.088.373,70 0,33%
01.211.210/0001-91 409.989,32 374.338,00 273.170,00 1.057.497,32 0,32%
Total aplicado com
maiores 126.894.549,07 49.769.264,06 120.303.808,75 296.967.621,88 90,71%
destinatário
Total aplicado com
11.174.149,94 6.377.581,08 12.853.044,99 30.404.776,01 9,29%
demais destinatários
Total 138.068.699,01* 56.146.845,14* 133.156.853,74 327.372.397,89 -
Nota. Fonte: Portal da Transparência (MACAÉ, 2015).
* Ao se consultar no PTM os gastos consolidados dos recursos da rubrica “royalties 5% da lei 7990” nos
anos de 2012 e 2013, são informados os valores de R$ 138.268.699,01 e R$ 84.569.252,79, conforme
Tabela 3. Ao se consultar a relação de tais gastos por empresas destinatárias e ao se somar seus valores,
obtém-se os montantes de R$ 138.068.699,01 e R$ 56.146.845,14. Foram realizados cinco
levantamentos de valores e conferiu-se pelo menos número de vezes as somatórias realizadas, não se
chegando a conclusões sobre os motivos das diferenças de R$ 200.000,00 e R$ 28.622.407,65,
respectivamente.

Buscando identificar quais áreas de governo, por Secretaria Municipal, foram aquelas
que utilizaram o montante de mais de 90% dos recursos dos royalties do pós-sal em outras
despesas correntes de pessoas jurídicas (código 3.3.90.39), elaborou-se a Tabela 4.

Tabela 4:
Secretarias que realizaram os gastos que representaram mais de 90% da aplicação dos royalties do pós-sal entre 2012 e 2014
Secretaria Municipal 2012 2013 2014 TOTAL %
Limpeza Pública 37.435.970,34 28.686.599,69 41.244.934,28 107.367.504,31 36,15%
Manutenção de Vias,
Parques, Jardins e 40.557.298,46 2.257.106,84 58.472.557,75 101.286.963,05 34,11%
Cemitérios
Gabinete do Prefeito 14.746.459,02 6.889.722,25 6.284.164,00 27.920.345,27 9,40%
Administração 13.894.029,50 7.665.676,27 2.750.878,90 24.310.584,67 8,19%
Educação 4.063.930,12 1.057.543,89 4.640.485,22 9.761.959,23 3,29%
Comunicação 6.796.485,52 2.897.260,20 - 9.693.745,72 3,26%
Agroeconomia - 1.258.635,19 3.517.748,00 4.776.383,19 1,61%
Fazenda 2.760.794,64 - 694.062,68 3.454.857,32 1,16%
Obras e Urbanismo 1.881.786,16 - 1.088.373,70 2.970.159,86 1,00%
Desenvolvimento
Econômico e 2.661.472,40 - - 2.661.472,40 0,90%
Tecnológico
Desenvolvimento
- - 1.716.527,06 1.716.527,06 0,58%
Social
Meio Ambiente - 522.519,80 - 522.519,80 0,18%
Mobilidade Urbana - 477.000,00 - 477.000,00 0,16%
Trabalho e Renda - - 47.600,00 47.600,00 0,02%
TOTAL 124.798.226,16 51.712.064,13 20.457.331,59 296.967.621,88 -
Nota. Fonte: Portal da Transparência (MACAÉ, 2015).

Buscando então identificar em que serviços prestados utilizaram mais de 90% do


montante dos recursos dos royalties do pós-sal relacionados a outras despesas correntes de
pessoas jurídicas (código 3.3.90.39), elaborou-se a Tabela 5.

Tabela 5:
Tipos de serviços cujos gastos que representaram mais de 90% da aplicação dos royalties do pós-sal entre 2012 e 2014
Tipo de Serviço 2012 2013 2014 TOTAL %
Serviços de manutenção, limpeza
urbana e especial, varreção e
limpeza urbana, aterros, 35.940.673,84 28.607.960,64 39.951.839,41 104.500.473,89 35,19%
reciclagem, aeração, locação de
veículos
Manutenção e conservação de
aterros, prédios públicos, parques,
40.557.298,46 2.257.106,84 58.472.557,75 101.286.963,05 34,11%
estradas vicinais e redes de
drenagem
Publicidade do governo 14.784.217,02 9.594.722,25 6.284.164,00 30.663.103,27 10,33%
Transporte universitário 8.020.393,65 1.683.152,41 1.036.986,25 10.740.532,31 3,62%
Alimentação escolar 4.063.930,12 1.057.543,89 4.640.485,22 9.761.959,23 3,29%
Telefonia para administração e
894.879,57 2.991.202,48 1.713.892,65 5.599.974,70 1,89%
serviço de 0800
Manutenção de prédios públicos
5.397.737,64 - - 5.397.737,64 1,82%
para eventos
Preparação de eventos - 1.258.635,19 3.517.748,00 4.776.383,19 1,61%
Terceirização de mão de obra
1.700.586,53 2.325.831,14 47.600,00 4.074.017,67 1,37%
para administração
Publicação de atos oficiais 3.278.169,75 665.490,24 - 3.943.659,99 1,33%
Transporte para órgãos da
- 477.000,00 1.716.527,06 2.193.527,06 0,74%
administração
Recadastramento das áreas
2.100.794,64 - - 2.100.794,64 0,71%
urbanas
Gerenciamento do sistema de
1.881.786,16 - - 1.881.786,16 0,63%
iluminação pública
Limpeza pública 1.495.296,50 78.639,05 7.726,00 1.581.661,55 0,53%
Locação de computadores para
1.509.339,04 - - 1.509.339,04 0,51%
escolas
Passagens aéreas, transfer e 1.360.989,88 - - 1.360.989,88 0,46%
hospedagens para a administração
Desenvolvimento de sistema de
660.000,00 - 694.062,68 1.354.062,68 0,46%
gestão tributária
Locação e manutenção de
- - 1.285.368,87 1.285.368,87 0,43%
caminhões-tanque
Macaé Digital 1.152.133,36 - - 1.152.133,36 0,39%
Manutenção de canais - - 1.088.373,70 1.088.373,70 0,37%
Terceirização de mão de obra
- 522.519,80 - 522.519,80 0,18%
para serviços de meio ambiente
Aquisição de computadores par a
- 192.260,20 - 192.260,20 0,06%
administração
TOTAL 124.798.226,16 51.712.064,13 120.457.331,59 296.967.621,88 -­‐  
Nota. Fonte: Portal da Transparência (MACAÉ, 2015).

Por fim, ressalta-se que os tipos de serviços na Tabele 5 foram construídos a partir da
leitura do conteúdo de um campo do tipo “texto”, não parametrizado, que trazia a descrição
dos produtos ou serviços relacionados a tais despesas no PTM.

Análise da aplicação dos recursos dos royalties do pós-sal

Nesta seção, apresenta-se a análise dos resultados da aplicação dada pela Prefeitura de
Macaé aos recursos identificados pela rubrica “royalties 5% da lei 7990”, entre 2012 e 2014,
com ênfase às despesas correntes para o pagamento de outros serviços de pessoa jurídica,
visto que esta indicaria, a priori, um uso pouco aderente a uma aplicação mais programática,
voltada às finalidades sociais dos royalties do pós-sal.
Os resultados obtidos a partir dos levantamentos por meio dos quais foram elaboradas
as tabelas apresentadas na seção anterior, principalmente a Tabela 2, indicam que a Prefeitura
de Macaé, entre 2012 e 2014, aplicou quase três quartos dos recursos dos royalties do pós-sal
de forma, a princípio, imprópria frente à finalidade social daquele recurso.
Estas aplicações impróprias se deram em sua maior parte (quase 40%) em despesas
correntes de caráter genérico, relacionadas à classificação denominada “outros serviços de
terceiros - pessoa jurídica”, código 3.3.90.39, que, na contabilidade pública brasileira, é
utilizada para designar despesas “decorrentes da prestação de serviços por pessoas jurídicas
para órgãos públicos” (BRASIL, 2001). Esta aplicação indica usos de caráter corrente não
relacionados à aquisição ou mesmo à manutenção de bens de capital, bem como também não
ligados à formação de pessoas.
Com intuito de detalhar que “outros serviços” teriam sido aqueles aos quais se
destinou a maior parte da aplicação dos royalties do pós-sal, a partir do código 3.3.90.39,
verificou-se o seguinte:
a) conforme Tabela 4, Secretarias Municipais de área meio, como a de
Administração, Fazenda e o Gabinete do Prefeito movimentaram parcelas
consideráveis de tais recursos;
b) conforme Tabela 5, dois desses serviços representaram 70% de tais gastos, e se
referem a serviços de objeto muito genérico, ligados à manutenção, limpeza e
conservação de locais públicos, sendo que as descrições encontradas não
permitem, por este trabalho, que se possa apontar tais tenham contribuído, ou não,
por exemplo, com manutenção de bens que serão importantes para a
sustentabilidade econômica de Macaé;
c) vários gastos se referem a mera manutenção de serviços burocráticos, como
telefonia, transporte, terceirização de mão-de-obra, passagens aéreas, aquisição de
microcomputadores e publicação de atos oficias;
d) serviços de publicidade do governo e eventos, que dificilmente se adeririam às
finalidades dos royalties, são indicados por Trevisan et al. (2004) como sensíveis a
desvios por prefeituras.
Mesmo com as indicações sobre os resultados da análise dos dados do PTM à luz do
referencial teórico sobre a finalidade social dos royalties, há algumas questões importantes
sobre os dados utilizados e este trabalho a serem destacadas.
A primeira é de que, aqui, utilizaram-se dados sobre a aplicação dada aos royalties do
pós-sal decorrentes de uma classificação de contas que pode ser suscetível a ambiguidades.
Desta maneira, deve se levar em consideração a possibilidade de que a classificação dada a
uma ou mais despesas não se encaixe exatamente na previsão, por exemplo, do código
3.3.90.39.
A seguinte é que as descrições dos produtos e serviços das despesas relacionadas “a
outros serviços”, utilizadas na elaboração da Tabela 5, como mencionado, estavam
apresentadas num campo “texto” não parametrizado, o que dificulta o entendimento da
destinação dada a elas.
A terceira se refere ao fato de que foram utilizadas somente as informações
disponibilizadas por meio do PTM, sendo que, como se apresenta nas notas da Tabela 3, estas
apresentavam incongruências entre os montantes quando as despesas eram apresentadas de
forma consolidada para quando eram apresentadas de forma detalhada.
Relacionada à terceira, a quarta questão remete ao fato de que a única fonte de dados
utilizada foram os registros do PTM. Como não se realizou quaisquer resultados de pesquisas
aplicadas, não foram verificados os resultados materiais das despesas aqui analisadas e nem
tampouco foram entrevistados agentes que participaram da gestão de tais recursos, que
implementaram ações a partir deles ou que colhem (ou deveriam colher) os benefícios de tal
implementação.
Indica-se ainda que esta análise não corrobora ou refuta a hipótese que a motivou, de
que haveria uma maior possibilidade de que o uso dos royalties do pós-sal, dada a falta de
parâmetro que dessem a sua aplicação caráter mais programático, se realizasse, pelo menos
em parte, por meio de despesas que não se relacionassem a sua finalidade. Utilizada aqui
como “mote”, esta hipótese que serve de motivação para a investigação realizada, pode servir
também de ponte para outras que venham a lhe dar continuidade.
Mesmo que se leve em consideração as questões apresentadas acima, afirma-se que
este estudo de caso de Macaé traz indicativos sobre a necessidade de que se promova um
amplo debate sobre a necessidade de se dar à aplicação dos royalties um caráter programático,
que conduza seu uso às finalidades sociais daquele instituto.

Considerações finais

À guisa das considerações finais, ressalta-se que as reservas do pós-sal no Brasil têm
aproximadamente mais 17 anos de exploração e produção. O pré-sal, apesar de, a princípio,
duplicar as reservas de petróleo e ampliar o tempo de aproveitamento destes recursos, não
representa que estes se tornaram infindáveis.
As receitas de royalties oriundas da exploração de petróleo e gás natural são voláteis,
oscilando às condições do mercado mundial e da política internacional. A exploração e a
produção relacionadas a estes recursos demandam grandes investimentos servíveis somente às
operações a ela relacionadas, além de poderem gerar déficit ambientais de grande monta.
Esgotadas as reservas, o futuro das localidades onde ocorrem tais operações pode se tornar
econômica e socialmente inviável. A finalidade social dos royalties, por esta perspectiva, seria
então de viabilizar um desenvolvimento sustentável, ou seja, de garantir a devida qualidade de
vida às gerações futuras.
A proposta que se apresenta relaciona-se então à construção de instituições acerca de
tais recursos, que estabeleçam que sua aplicação se dê com foco em sua finalidade social. Mas
esta aplicação, destaca-se, não deve se restringir simplesmente à indicação de um uso mínimo
de tais recursos, como já prevê a lei brasileira para algumas receitas de Estados e Municípios
quanto a educação e saúde
Como se tratam de recursos cujo uso deveria se dar em investimentos voltados para o
desenvolvimento sustentável, de caráter intergeracional, ao invés da simples vinculação,
defende-se que um debate sobre a melhoria das instituições relacionadas aos royalties deve
ser orientado para a ampliação da participação da sociedade com o fito da construção de um
programa de aplicação que suporte as diferentes áreas e considere as possíveis contingências.

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A Administração Política da Memória da
Ditadura Militar-empresarial brasileira

Resumo
Este trabalho pretende explorar o tema da memória e do esquecimento coletivo
enquanto objeto de pesquisa do campo das ciências da administração, em especial da
administração política. Para tanto, será realizada uma discussão teórica articulando as
possibilidades e limites de manipulação do arcabouço memorial, focando no papel de
gestor da memória coletiva nacional exercido pelo Estado. Serão estudadas políticas de
memória e de esquecimento enquanto instrumentos utilizados no desenvolvimento desse
processo de gestão da memória nacional oficial. No entanto, este debate não pretende se
realizar de maneira abstrata e geral, mas sim a partir do movimento concreto do
desenvolvimento histórico das políticas públicas de memória referentes à ditadura
militar-empresarial brasileira. Mais de meio século depois do golpe de 1964, as políticas
de memória aqui analisadas demonstram que a posição o Estado segue reforçando as
narrativas públicas dos vencedores. Através de estratégias que passam pelo
esquecimento-manipulação, pelo esquecimento-direcionamento e pelo esquecimento-
destruição, conforme definição de Johann Michel (2010), a administração política da
memória segue mantendo as memórias de resistência e de luta nos subterrâneos das
narrativas oficiais sobre a ditadura militar-empresarial.

Introdução
Desde a década de 1980 está em curso no Brasil um processo de disputas
em relação à memória política da ditadura militar-empresarial brasileirai, período que
foi de 1964 a 1985. Em um lado deste cenário estão as tentativas de construção de uma
memória nacional oficial, conforme definição de Michel Pollak (1989). Tais iniciativas
se desenvolvem a partir de ações promovidas pelo Estado e perpassam diferentes
governos desde o reestabelecimento da democracia.
Em contraponto à memória oficial estão as diversas iniciativas que mantém
vivas memórias relacionadas especialmente a grupos e classes sociais que sofreram com
o golpe de Estado e com o regime que o seguiu. Conforme define Joana D’Arc
Fernandes Ferraz (2007), estas são as memórias de resistência e de luta. De forma geral,
as ações desses grupos visam uma melhor compreensão sobre os acontecimentos
daquele período, o que inclui a devida publicidade das atrocidades cometidas pelo
Estado e pelos grupos que apoiaram e se beneficiaram do regime. Nesse sentido, já
foram lançados e ainda estão por vir diversos trabalhos acadêmicos, filmes, peças de
teatro e documentários, sem contar as ações de movimentos populares que estão
espalhados por todo o país.
A importância de se aprofundar as análises com relação a este tema tem a
ver, em primeiro lugar, com a relevância social da memória em si mesma. Para Myrian
Sepúlveda dos Santos (2012), a memória é de fato um objeto amplo e que afeta as mais
diversas partes da vida social e individual. Cada passo que damos, cada ideia e cada
ação realizada estão impregnados de memória. Para a autora, é ainda mais do que isso.
“Nós somos tudo aquilo que lembramos. A memória não é só pensamento, imaginação e
construção social; ela é também uma determinada experiência de vida capaz de
transformar outras experiências, a partir de resíduos deixados anteriormente”
(SANTOS, 2012, p. 30).
Além da importância imanente da memória, a memória política relativa à
ditadura militar-empresarial tem um aspecto ainda mais profundo. Trata-se de um tema
ainda muito caro para toda a sociedade brasileira, pois a forma como nos relacionamos
com este passado é um ponto de fundamental interferência no desenvolvimento social
do presente e do futuro. Conforme afirma Jeanne Marie Gagnebin (2010), os silêncios e
esquecimentos relacionados às conexões entre o passado ditatorial e o presente
democrático não apenas parecem tornar vivo o passado, como se demonstram
necessários para a manutenção da ordem social do presente.
Levando em consideração a importância de se estudar a memória, em
especial a memória da ditadura militar-empresarial brasileira, o presente trabalho
buscará trazer a temática da memória para as discussões no campo da administração. O
ponto aqui será a investigação sobre as possibilidades de manipulação e gestão da
memória e do esquecimento coletivos, em especial do papel do Estado em tal processo.
Assim, a proposta do trabalho é explorar o que chamamos de administração política da
memória, enquanto uma das tarefas desempenhadas pelo Estado – criadas por governos,
materializada em políticas públicas e executadas por aparelhos estatais e instrumentos
da administração pública.
Para efeitos metodológicos, o trabalho iniciará com um debate teórico, para
somente no fim apresentar sua aplicação concreta no âmbito das políticas públicas de
memória relacionadas à ditadura militar-empresarial brasileira.
Inicialmente, serão revisadas partes das teorias clássicas e contemporâneas
sobre memória e o esquecimento. A segunda parte deste artigo analisará as bases
teóricas que compõem o campo da administração política. Pretende-se, dessa forma,
apresentar como as discussões sobre a memória coletiva se encaixam na administração
política. Mais especificamente, a partir das revisões realizadas sobre as referidas teorias,
almeja-se demonstrar que a memória política é passível de ser politicamente
administrada, focando no papel do Estado. Na terceira parte, o artigo pretende
apresentar os principais instrumentos por meio dos quais o Estado operacionaliza este
trabalho de administração de memórias e esquecimentos coletivos. Serão discutidos os
conceitos de política de memória e política de esquecimento, apresentando suas
especificidades, funções e complementaridades. Na parte final do artigo, será construído
um desenrolar histórico sobre as políticas de memória e esquecimento que vêm sendo
desenvolvidas pelo Estado desde o fim da ditadura militar-empresarial. A intenção neste
momento será expor concretamente como funciona a gestão de memórias e
esquecimentos públicos. Além disso, pretende-se apresentar a forma que o Estado
brasileiro tem administrado a memória desse período, isto é, entender um pouco mais
sobre quais narrativas vêm sendo privilegiadas e quais esquecimento têm sido
instituídos.
Considerando o exposto, o presente trabalho pretende revisitar a tradição
teórica relacionada à memória coletiva e demonstrar como tal temática se encaixa na
discussão da administração política e, portanto, nas discussões realizadas no âmbito das
ciências da administração como um todo. É nesse sentido que será analisado o campo de
disputas pela memória política referente ao período da ditadura militar-empresarial
brasileira, levantando principalmente o papel do Estado neste cenário. Almeja-se
demonstrar que esse papel se materializa em leis e políticas públicas que estabelecem
determinadas narrativas, podendo ser extraído daí as posições do Estado com relação ao
passado ditatorial brasileiro. Pode-se citar como exemplo a Lei de Anistia promulgada
pela ditadura em 1979 e que se mantém intocada até os dias de hoje, os arquivos
militares que permanecem fechados e as indenizações meramente financeiras que têm
sido apresentadas como reparações aos atingidos por aquele regime de terror.

Memória e Esquecimento
O objetivo aqui é revisitar parte da teoria da memória e do esquecimento,
ressaltando seus campos sociológicos, a fim de adentrar na dialética da memória e
explorar certas dimensões da memória e do esquecimento coletivo. Tendo em conta que
não se pretende esgotar o tema, serão debatidas teorias que apresentam possibilidades e
limites para a manipulação de memórias e esquecimentos. E é nesse sentido que serão
trazidas à tona algumas polêmicas históricas que perpassam este campo de estudo. Tais
polêmicas marcam discussões fundadas em certos tipos de pensamento binário que
colocam em confronto memória coletiva e memória individual, memória como coesão e
memória como conflito ou ainda memória contra esquecimento.
Nas primeiras décadas do século XX, o sociólogo Maurice Halbwachs foi
pioneiro no estudo da memória a partir de uma dimensão coletiva. Admirador e
discípulo de Émile Durkheim, Halbwachs (2004) é o primeiro autor a entender a
memória como um objeto fundamentalmente social. Isso significa dizer que a memória
está profundamente enraizada nas relações sociais, sendo construída coletivamente.
Seguindo o legado teórico de seu mestre, Halbwachs (2004) desenvolveu
uma teoria que entende a memória a partir de determinações prévias do coletivo sobre o
individual. Fundamentalmente, parte da ideia de que as esferas da vida social devem ser
entendidas a partir de fatos sociais que se desenvolvem sobre vínculos construídos na
sociedade. A materialidade da memória está nos fatos sociais (Halbwachs, 2004).
É nesse sentido que o autor privilegiou as estruturas coletivas de lembrança,
marcando claramente a distinção entre indivíduo e sociedade. Halbwachs (2004) vai
além de demonstrar que a memória tem uma dimensão social. O autor não entende que
as recordações estejam materializadas no nível do consciente e do indivíduo, o que
demonstra a base de suas polêmicas com Freud e com Henri Bergson. Na verdade,
Halbwachs (2004) entende que a memória se constrói somente na sociedade. Portanto,
para o autor, toda memória é exclusivamente coletiva.
Para a memória coletiva, as lembranças de um indivíduo somente podem se
desenvolver e se revestir de sentido quando estão sustentadas de alguma maneira por
outros indivíduos. Em outras palavras, os indivíduos não recordam sozinhos, pois
necessitam que suas lembranças sejam confirmadas pelo grupo. Os sujeitos se
organizam em grupos sociais e recordam de acordo com as interações e convenções
estabelecidas coletivamente com vistas ao bem estar, à solidariedade e à coesão dos
grupos. Assim, Halbwachs (2004) destaca os aspectos positivos da memória e ressalta
sua função de produção e reprodução da coesão social, fundamentando e reforçando
sentimentos de pertencimento, assim como as fronteiras socioculturais.
Halbwachs (2004) buscou compreender ainda como se operacionaliza a
memória. A partir de observações das práticas sociais, o autor afirmou que a construção
da memória ocorre através de quadros sociais. Segundo ele, a memória se constitui
sobre estruturas sociais – quadros sociais – que antecedem os indivíduos. O indivíduo se
depara com distintos quadros sociais ao longo de sua vida e a memória coletiva se
assentará sobre as combinações entre tais quadros, relativos à família, à escola e a todos
os grupos aos quais pertencemos.
Ainda sobre o funcionamento da memória, Halbwachs (2004) percebe que
as combinações entre quadros sociais não são definitivas e nem realizadas no passado.
Na verdade, tais construções se dão no presente e estão sempre sujeitas a novas
combinações. Ou seja, o passado é constantemente (re)construído no presente.
No entanto, tais processos de entrelaçamentos são profundamente
complexos. É por isso que Halbwachs (2004) vai argumentar que as combinações entre
os quadros sociais não dependem da vontade dos indivíduos. Para ele, a constante
reconstrução desses quadros não depende de intenções deliberadas e nem de uma
escolha individual. São construídas a partir das questões propostas pelo presente.
Resume Halbwachs (2004, p. 75-76):
Temos repetido: a lembrança é em larga medida uma reconstrução do
passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso,
preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a
imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. (…) Mas, mesmo se é
possível evocar de modo tão direto algumas lembranças, não o é em
distinguir os casos em que procedemos assim, e aqueles onde imaginamos o
que tenha acontecido. Podemos, então chamar de lembranças muitas
representações que repousam, pelo menos em parte, em depoimentos e
racionalização.
Halbwachs (2004, p. 89), argumenta que uma lembrança coletiva estará
sempre ali, enquanto estiver conservada em algum corpo social. “A memória de uma
sociedade estende-se até onde pode, quer dizer, até onde atinge a memória dos grupos
dos quais ela é composta”.
Em suma, para Halbwachs (2004), a memória deve ser entendida como o
resultado de representações coletivas construídas no presente para manter a sociedade
coerente e unida.
As ideias trazidas por Maurice Halbwachs revolucionaram a forma de se
pensar a memória e suas funções. O sociólogo contribuiu definitivamente para que a
memória passasse a ser entendida para além de uma dimensão individualizada e
independente das relações sociais. Pensando na perspectiva do tempo histórico, que para
o autor é um tempo social, Halbwachs (2004) argumenta que a lembrança de um
período não é o somatório de lembranças de dias, de reflexões pessoais, ou familiares,
mas em termos de lembranças de acontecimentos pensados em conjunto, reconstruídos
na sociedade. Lembranças ou acontecimentos individuais são amparados nas
lembranças dos outros, que antes poderiam até mesmo ter uma significação obscura, a
memória se enriquece de bens alheios, que desde que tenham enraizado e encontrado
seu lugar, não se distingue mais das outras lembranças.
Sua compreensão sobre a memória, apesar reduzi-la apenas aos níveis do
coletivo e da coesão social, abriu passagem para uma gama de estudos que ampliaram
as discussões sobre o tema. Seu maior legado talvez tenha sido o de demonstrar que a
memória é também uma construção social.
Para Myrian Sepúlveda dos Santos (2012), as polêmicas históricas que
circundam este campo de estudo não devem ser reforçadas a ponto de funcionarem
como prisões teóricas. Ao contrário, dicotomias como indivíduo-sociedade, coesão-
conflito e memória-esquecimento devem ser utilizadas como ponto de partida para o
alargamento do pensamento científico. Em seu livro Memória Coletiva e Teoria Social
(2012), a autora propõe que o pesquisador que trabalhe com o tema da memória deve
ser capaz de enxergar para além dessas dicotomias. As distintas abordagens sociológicas
sobre a memória coletiva devem ser encaradas como complementares e não como
antagônicas (Santos, 2012).
É nesse sentido que os trabalhos de Michael Pollak devem ser encarados,
como contribuições para a ampliação da teoria da memória coletiva. O autor parte de
Halbwachs para perceber que nem toda memória é necessariamente positiva em um
sentido de construção da coesão social. Pollak (1989) concorda com Halbwachs quanto
à possibilidade da memória coletiva manter, reforçar e construir bases referencias
capazes de contribuir para a coesão interna de um grupo social. Em outras palavras, ele
também entende que a memória coletiva pode se constituir como memória nacional, isto
é, contribuindo para a defesa das fronteiras daquilo que um grupo tem em comum,
definindo o lugar desse grupo, e deixando claro suas complementariedades e suas
oposições.
No entanto, diferente de Halbwachs, Pollak (1989) não considera que tal
processo de construção de uma memória coletiva nacional tenha um aspecto apenas
conciliatório e positivo. Ao considerar o processo de negociação inerente à memória
nacional, isto é, a determinação do que deverá ser lembrado e do que deverá ser
esquecido, percebe-se um processo que necessariamente hierarquiza histórias e
desvaloriza memórias de grupos vencidos, de excluídos, de minorias, dentre outros.
Pollak (1989) destaca, portanto, que a memória deve ser compreendida
enquanto um campo de disputas, onde determinadas memórias se sobrepõe a outras por
meio não apenas da conciliação, mas também do conflito. Qualquer construção de
memória é, em alguma medida, um processo de violência contra as memórias que não
foram eleitas para compor o arcabouço geral de preservação do passado. Tal aspecto de
violência está implícito em qualquer construção coletiva da memória. É levando este
processo de conflito em consideração que o autor cunha o conceito de memórias
subterrâneas.
As memórias subterrâneas são aquelas vinculadas às ideias e às histórias
marginalizadas dentro de um determinado contexto social. Tais memórias prosseguem
em um trabalho e fluxo de subversão contra os aspectos opressivos e uniformizadores
da memória coletiva nacional. Esse trabalho se mantém no nível do “não-dito” – nível
do silêncio –, de maneira quase imperceptível, despertando para a massa social
principalmente em momentos de crise, quase sempre de forma brusca e sobressaltada.
Em seu artigo Memória, Esquecimento e Silêncio (1989), Pollak apresenta
três exemplos que deixam claro o que pretende dizer com o conceito de memória
subterrânea. O primeiro exemplo se refere ao fenômeno de “destalinização”
desenvolvido na antiga União Soviética após a divulgação do relatório de Nikita
Kruchev, no XX Congresso do Partido Comunista Soviético (PCUS). Este processo,
levado a cabo pelo Estado, tinha como objetivo a destruição de signos e símbolos que
remetiam a Stalin. Era um processo político que visava desvincular a União Soviética
dos crimes citados no relatório Kruchev, como ficou conhecido. O segundo exemplo se
refere ao silêncio dos deportados após a Segunda Grande Guerra. Tais grupos, por
estarem fora de suas redes de sociabilidade, demonstraram dificuldades de integrar suas
lembranças na memória coletiva das nações que passaram a viver. Já o último exemplo
se refere à formulação da memória nacional francesa que, após a Segunda Guerra,
procurou eliminar o estigma da vergonha do chamado colaboracionismo com os
nazistas.
Pollak (1989) determina a partir destes exemplos concretos três aspectos
fundamentais das disputas no campo memorialístico: (a) os movimentos políticos de
transformações necessitam também de mudanças no campo da memória, ou seja, as
leituras e narrativas sobre passado afetam o cenário político do presente e do futuro; (b)
a memória oficial não é capaz de controlar plenamente as construções e mudanças no
campo da memória nacional, pois sempre haverá memórias subterrâneas, por mais que
estejam excluídas do espaço público; (c) as memórias subterrâneas, traumatizantes e
dissidentes da memória oficial, são capazes de sobreviver no nível do ”não-dito”
durante muito tempo, o que se trata de uma forma de resistência da sociedade a um
excesso de discursos oficiais (Pollak, 1989).
Partindo das conclusões de Pollak, pode-se notar a dimensão política e de
seletividade da memória. Toda memória é seletiva e responde, pelo menos em parte, a
estímulos políticos do presente. Percebe-se ainda que o Estado pode assumir a tarefa de
seleção e manipulação da memória coletiva nacional. Na medida em que busca a coesão
social de determinados grupos de indivíduos, em determinado território e sob
determinada hegemonia política, econômica e ideológica, o Estado assume também a
tarefa de administrar a memória daquele todo social. É o Estado administrando
narrativas e lembranças do passado a partir de condições, necessidades e interesses do
presente. Em última análise, pode-se dizer que a gestão do passado e das memórias está
no rol de atribuições operacionalizadas pela administração pública. Portanto, o Estado
administra politicamente o que pode ser chamado de memória ou discurso oficial.
Os debates realizados até o momento trataram, sobretudo, da dimensão
coletiva da memória e de sua dialética coesão-conflito. Além disso, trouxeram à tona as
possibilidades de manipulação da memória, sobretudo da tarefa de administração
política da memória nacional assumida pelo Estado. No entanto, falta ainda discutir algo
sobre a relação memória-esquecimento.
Andreas Huyssen (2014), após revisar obras clássicas do campo da memória
e do esquecimento, como as de Theodor Adorno e de Walter Benjamin, afirmou que a
exigência moral do ato de lembrar foi articulada em diversos contextos ao longo da
história – religiosos, culturais e políticos. O mesmo não se pode dizer do ato de
esquecer. O esquecimento, segundo Huyssen (2014), hora é visto como disfunção
(doença), hora é visto apenas como a oposição à memória.
Partindo do estudo de situações concretas onde o tema da memória estava
no centro de debates nacionais, como as memórias da ditadura argentina e dos
bombardeios na Segunda Guerra Mundial, o autor aprofundou os estudos sobre como se
dão os modos de esquecimento nas esferas pública e política. Huyssen (2014) percebeu
que, em alguns casos, “o esquecimento público revelou-se constitutivo de um discurso
politicamente desejável da memória” (HUYSSEN, 2014, p. 160). Em outras palavras, o
esquecimento foi mais do que a não-memória, foi parte integrante de construções
memorialísticas.
Huyssen (2014) parte da tentativa de Paul Ricoeur em estabelecer uma
fenomenologia do esquecimento para fazer uma defesa histórica do esquecimento
público e político. Para tanto, resgata algumas definições basilares sugeridas por
Ricouer para se categorizar distintas formas de esquecimento. A primeira forma trata o
esquecimento como memória impedida. Nesse caso, entende-se o ato de esquecer como
uma experiência humana natural, uma espécie de “patologia” fundamental à vida. A
segunda forma, denominada de memória manipulada, entende o esquecimento a partir
do conceito de instrumentalização da memória. Refere-se à produção de esquecimento
inerente ao processo de manipulação da memória coletiva, que ao mesmo tempo em que
privilegia determinadas lembranças, desfavorece outras. A última forma básica seria o
esquecimento comandado, isto é, uma espécie de esquecimento declarado publicamente
e estabelecido por vias institucionais. Um exemplo são as clássicas leis e imposições de
esquecimento coletivo, como podem ser enquadradas as leis de anistia referentes às
ditaduras do Cone Sul.
Santos (2012) lembra que o “homem pode ser feliz sem a lembrança, mas a
vida é absolutamente impossível sem o esquecimento” (SANTOS, 2012, p. 31). Ao
retornar ao pensamento de Nietzsche sobre o esquecimento, a autora percebe o
consentimento geral com o fato de que o homem esquece que esquece. “É importante
aqui prestarmos atenção não para a perda da memória, considerada irremediável, mas
para o argumento de que o esquecimento é essencial e sem ele a vida não é possível.
(SANTOS, 2012, p. 31).
O que se pretende destacar aqui é que o esquecimento não deve ser
entendido como mero recalcamento ou negação. Mais do que isso, o esquecimento não
é simplesmente o outro lado da memória. Esquecimento e memória fazem parte de uma
mesma totalidade e um não existe sem o outro, isto é, são membros que se constituem
entre si. Esquecimento e memória não se anulam, se complementam. A ação de
memória depende da capacidade de esquecer. O que ocorre é que ambos se manifestam
tanto de forma natural, como no caso da memória impedida, como de forma
administrada, como no caso da memória manipulada e do esquecimento comandado.
Assim, compreendendo tanto a dialética memória-esquecimento, quanto os
processos de coesão e conflito intrínsecos às relações entre memórias subterrâneas e
memória oficial administrada pela Estado, percebe-se que a memória coletiva pode
assumir duas dimensões políticas distintas. Por um lado, a partir de suas possibilidades
de afirmação e resistência, a memória possuí um caráter libertário e de emancipação.
Por outro lado, a memória também pode ser uniformizadora e manipuladora,
assumindo, neste caso, seu viés de controle e coerção.

A Administração Política da Memória


Assim, o estudo da memória possui diversos matizes. É a partir desta
percepção de relevância social da memória que se fazem necessárias ainda mais
reflexões sobre as disputas pela memória da ditadura militar-empresarial e sobre o rumo
que as mesmas têm seguido nos últimos anos. Para tanto, é importante perceber que a
memória social é um campo de conhecimento essencialmente multidisciplinar. Em
outras palavras, a memória pode se configurar como objeto de pesquisa de diversas
áreas científicas, como a administração pública, a sociologia, a história, a psicologia, a
ciência política, as ciências sociais aplicadas, a biologia, dentre outras.
É nesse sentido que a proposta central do trabalho é demonstrar como a
administração da memória coletiva oficial pode ser entendida a partir da teoria da
administração política. A administração política da memória oficial se caracteriza,
portanto, como uma das tarefas desempenhadas pelo Estado, materializando-se em
políticas criadas por governos e executadas por aparelhos estatais e instrumentos da
administração pública. Constatado que toda memória é seletiva e fundamentalmente
construída a partir de decisões políticas, entende-se que o Estado atua como um
verdadeiro gestor do passado e construtor de narrativas para o presente e para o futuro,
isto é, desempenha o papel de administrador de memórias e de esquecimentos.
Para se estabelecer esta relação entre teoria da memória e teoria da
administração política, parte-se da concepção de que a administração política é a
disciplina que estuda as formas que o Estado organiza e estrutura os instrumentos
capazes de gerir a dinâmica das relações sociais de produção (Santos e Ribeiro, 1993).
O papel decisivo do Estado como interventor econômico e gestor do processo produtivo
demonstra a relevância desta forma de se encarar a administração.
Autores que se dedicam ao tema da administração política, como Santos e
Ribeiro (1993) e Fábio Gomes (2012), se utilizam da história e do desenvolvimento das
forças produtivas no Brasil para enquadrar epistemologicamente a disciplina. Assim, a
administração política resgata a importância da crítica a partir do ponto de vista
administrativo sobre a gestão das relações produtivas e sociais e em uma sociedade
capitalista periférica. Com base nas transformações que atingiram e seguem atingindo o
Estado, as relações de produção e o processo de acumulação brasileiro, a administração
política se afirma como disciplina fundamental para compreensão das complexidades e
efeitos produzidos no decorrer da consolidação das relações capitalistas de produção no
Brasil.
Nota-se que a importância central colocada como objeto pela administração
política é
[...] procurar compreender como a produção capitalista no Brasil se organiza
e passa por modificações, reformas ou mudanças, seja lá qual for a categoria
que compreenda o processo histórico de construção e reconstrução das
relações entre o Estado e a economia capitalista periférica, e a gestão dessas
relações no contexto dos conflitos de classe (inter e intraclasse). (GOMES,
2012, p. 13-14)
Nota-se, ainda, o importante deslocamento do objeto da ciência da
administração proposto pela administração política, saindo das organizações e indo para
a gestão.   Ao analisar as clássicas obras de Taylor, Waldo, Dimock, Simon e Guerreiro
Ramos, Reginaldo de Souza Santos (2001) percebe que a administração não possui um
objeto e um método claramente definidos. Na verdade, ambos se modificam em cada
um dos autores analisados. É a partir desta constatação que Santos (2001) identifica na
administração política uma possibilidade de aproximar o campo administrativo de uma
definição mais clara de seu objeto científico. Observa, portanto, que o objeto da
administração não está centrado na organização, mas sim na gestão. A partir desta
conceituação, o autor estabeleceu a categoria gestão como ponto central no
desenvolvimento administrativo.
Complementando as análises de Santos, Gomes (2012) procurou definir
porque o objeto de estudo da administração não deve estar centrado na organização.
Para o autor, a organização é um objeto interdisciplinar, capaz de envolver diversos
interesses, oriundos de diferentes campos científicos. "Dado o grau de complexidade
que envolve as relações sociais internas à organização e os vários problemas que
emergem de seu interior, elas podem ser objetos de estudos de várias áreas do
conhecimento" (GOMES, 2012, p. 15). E é nesse contexto interdisciplinar que recai
sobre a administração seu objeto específico em meio aos outros tantos que compõem o
universo organizacional: "estruturar um modelo de gestão viabilizador do objetivo da
organização" (SANTOS, 2001, p.63).
Partindo da gestão como objeto de estudo da administração, Santos (2001)
indica que a gestão pode estar em dois campos de análise: o político e o profissional.
Enquanto o primeiro se refere a um campo macro e aplicável necessariamente a
qualquer modo de produção e formas de organização, o segundo se refere a uma
dimensão micro, ocupando-se com unidades econômicas, sociais e políticas específicas.
No que diz respeito à gestão no campo político, Santos (2001) busca
compreender como se desenvolve a dinâmica da gestão das relações sociais. Neste
ambiente, destaca-se a análise do Estado enquanto entidade essencial no processo de
administração das relações sociais de produção em um determinado país e com notado
poder de influência extranacional. Com isso, a análise da administração política não fica
restrita a uma lógica tipicamente capitalista, ao contrário, foca em um ambiente amplo
que não ignora o movimento histórico e dialético que emerge das bases das relações
sociais, políticas e produtivas.
A linha histórica da administração política do capitalismo se distancia da
responsabilidade de garantia de bem-estar social assinalada por Santos (2004) na
medida em que um dos imperativos últimos do sistema é incorporar um valor de troca a
tudo, sem necessariamente representar uma utilidade para a sociedade.
No capitalismo, a administração se dedica a gerir as relações sociais e
produtivas seguindo os imperativos de competição e acumulação emanados pelo
mercado, conforme afirma Ellen Wood (2012), isto é, focando seus esforços no
processo de geração e apropriação crescente e ininterrupta de mais-valor. Nesse
contexto, conforme observam Santos (2004) e Gomes (2012), a administração política
deixa as necessidades sociais de lado, ou no máximo em segundo plano, e se volta
primordialmente para atender os interesses do capital.
Para Gomes (2012), a gestão é imprescindível enquanto instrumento de
auxílio na pactuação de interesses divergentes emanados pelas relações sociais de
produção. Nesse sentido, o Estado se torna força fundamental para garantir as mínimas
condições materiais e sociais. Partindo dessa constatação, percebemos a importância
que cabe à administração política para o desenvolvimento das relações de produção e,
portanto, para as relações sociais como um todo. No entanto, cabe destacar que, quando
o autor fala do papel do Estado na manutenção das condições materiais e sociais, está se
referindo à sobrevivência do próprio sistema do capital, logo, à administração política
de uma conjuntura social, política e econômica específica. Esta percepção nos
demonstra que a administração política extrapola as delimitações fechadas com que a
administração vem majoritariamente trabalhando ao longo de mais de um século.
É neste espaço onde se insere a administração política da memória;
enquanto instrumento desenvolvido e executado pelo Estado para gerir a memória
coletiva nacional em função das condições objetivas do desenvolvimento produtivo. Em
outras palavras, a gestão política da memória é uma ferramenta da “gestão estatal e da
gestão das relações entre o ente público e a sociedade” (GOMES, 2012, p. 11).

Políticas de Memória e de Esquecimento


Tendo em vista que este trabalho se propõe a estudar a administração
política da memória e do esquecimento enquanto tarefa do Estado, algumas perguntas
ainda ficam em aberto: como funciona esta administração? Quais são os instrumentos
utilizados para este fim?
Dito de outra maneira, a administração política da memória se materializa
na forma de políticas públicas, que visam privilegiar determinadas narrativas em
detrimento de outras, produzindo silêncios e esquecimentos selecionados politicamente.
Para tanto, o Estado desenvolve e gera dois tipos específicos de políticas públicas: as
políticas de memória e as políticas de esquecimento. Mas o que são, de fato, estas
políticas?
As políticas de memória se inserem no rol do que o cientista político Johann
Michel (2010) chamou de políticas simbólicas. Uma das funções essenciais de uma
política simbólica está no campo ideológico. Essa dimensão tem por finalidade construir
bases de sustentação subjetiva para a classe ou grupo de classes que detém o poder em
determinado tempo histórico. Nas palavras de Johann Michel (2010), os objetivos da
função ideológica das políticas simbólicas são “forjar imagens, símbolos e narrativas
que permitem aos indivíduos se reconhecer em um espelho idealizante, ao mesmo
tempo como membros de um determinado grupo e diferente de outros” (MICHEL,
2010, p.14).
Tal como afirma Marx, uma das necessidades básicas da classe dominante é
apresentar seus interesses como universais para toda a sociedade.
De fato, cada nova classe que passa a ocupar o lugar da que a precedeu no
poder se vê obrigada, para realizar os fins que persegue, a apresentar o seu
próprio interesse como o interesse de todos os membros da sociedade, ou
seja, expressando-o em termos ideais, a apresentar suas ideias como
universais e as únicas racionais e absolutamente válidas. (MARX, 2010, p.
49)
É nesse sentido que as políticas simbólicas devem ser compreendidas,
enquanto conjunto de dispositivos e práticas desenvolvidas e administradas pelo Estado
para construir uma projeção idealizada – ideológica – e consensual de uma determinada
ordem nacional, produzindo, ao mesmo tempo, uma autolegitimação do poder em vigor
(Michel, 2010).
Em meio às políticas simbólicas, a memória e a história assumem um lugar
privilegiado. Este privilégio tem origem na própria essencialidade do passado coletivo
para a construção de identidades. História e memórias individuais ou coletivas possuem
nexo direto com a construção de identidades, também individuais ou coletivas (Pollak,
1992).
As políticas de memória são, portanto, aquelas políticas públicas que têm
como objetivo universalizar determinadas narrativas como material de recordação de
toda uma sociedade. Dessa forma, tais políticas podem se apresentar sob diversos
formatos, tais como: na definição de currículos escolares e políticas de educação; nas
políticas de preservação de patrimônio (físicos ou culturais); nas construções de
monumentos e homenagens em espaços públicos (nomes de ruas, de praças, de pontes,
etc.); na construção e valorização de mitos e heróis nacionais; e etc. Todas essas
políticas de memória desenvolvidas pelo Estado estão necessariamente, de forma
implícita ou explicita, valorizando certas interpretações históricas e construindo
determinadas narrativas, ao passo que desvalorizam outras.
Michel (2010) define política de memória da seguinte forma:
Pode-se chamar de políticas da memória o conjunto de intervenções de atores
públicos que objetivam produzir e impor lembranças comuns a uma dada
sociedade, em favor do monopólio de instrumentos de ações públicas
(comemorações oficiais, programas escolares de história, leis memoriais,
panteões, etc.). A construção de uma narrativa coletiva feita pelos poderes
públicos é parte integrante desse modo de ação pública. Essas narrativas se
orientam a supostamente unir membros de uma sociedade ao redor de uma
história comum, mesmo se essas configurações narrativas dizem mais sobre a
maneira pela qual o poder se coloca em cena e seus valores do que
propriamente sobre a memória coletiva sobre a qual supostamente se
apoiaria. (MICHEL, 2010, p. 15).
Já a política de esquecimento seria o instrumento de ação memorial
utilizado também pelo Estado no sentido de criação de uma política de antimemória
(Michel, 2010). No entanto, falar em política de antimemória administrada pelo Estado
não é uma tarefa tão fácil, visto a dificuldade de se evidenciar que uma política pública
tenha como objetivo deliberado a criação de determinados esquecimentos. Assim,
Michel (2010) sugere uma tipificação para o esquecer coletivo: esquecimento-omissão,
esquecimento-negação, esquecimento-manipulação, esquecimento-direcionamento e
esquecimento-destruição.
Os dois primeiros tipos, esquecimento omissão e negação, podem ser
relacionados à categoria da memória impedida, conforme resgatado por Huyssen
(2014). De acordo com Michel (2010), ambos são oriundos de uma forma involuntária
de esquecimento. O ponto central está no aspecto naturalmente seletivo da memória,
pois, de fato, é ontologicamente impossível se lembrar de tudo.
No campo da construção de uma memória coletiva oficial, tais tipos se
referem à produção de esquecimento vinculado às políticas públicas que, mesmo sem
ter como objetivo deliberado a construção ou o reforço de determinadas narrativas
coletivas acabam contribuindo naturalmente para esquecimentos específicos. “Tudo se
passa, portanto, como se houvesse efeitos de políticas memoriais cujas intenções e
motivações estivessem em parte não acessíveis aos sujeitos” (MICHEL, 2010, p. 17)
Nesse sentido, são os esquecimentos manipulação, direcionamento e
destruição que mais interessam ao presente trabalho.
Entre os cinco tipos-ideais de esquecimento (esquecimento-omissão,
esquecimento-negação, esquecimento-manipulação, esquecimento-comando,
esquecimento-destruição) que desenvolvemos aqui, apenas os três últimos
vinculam-se rigorosamente a uma política pública de esquecimento uma vez
que fatos do passado ou personagens históricos são intencionalmente
evacuados senão da memória coletiva, pelo menos da memória oficial.
(MICHEL, 2010, p. 24)
O esquecimento-manipulação corresponde a uma estratégia ativa e deliberada de se
produzir determinados vazios de memória. São estratégias voluntárias e levadas à cabo por
entidades e atores públicos no sentido de construir e transmitir determinada memória pública
oficial, a partir de esquecimentos específicos (Michel, 2010).
Este tipo se materializa em instrumentos próprios de políticas de antimemória.
Ações ou acontecimentos do passado podem ser propositalmente dissimulados, quando for
julgado que afetam negativamente os interesses políticos do presente. Trazendo a discussão para
um campo concreto, podem-se relacionar as políticas de esquecimento-manipulação diretamente
com a memória da ditadura militar-empresarial brasileira. Este tipo de política está presente, por
exemplo, na ausência de determinadas memórias dos currículos escolares.
A luta e as memórias dos trabalhadores e de outros grupos de resistência ao regime
não estão contempladas nos programas oficiais de ensino. Na realidade, o próprio tema da
ditadura militar-empresarial é abordado de forma muito discreta e abstrata nas escolas. Os
exemplos que contrariam esta política têm relação, em geral, com iniciativas independentes de
professores ou grupos que se opõem deliberadamente aos programas escolares oficiais.
Existem, porém, estratégias de esquecimento que se posicionam para além dos
vazios narrativos das memórias oficiais. O poder público também desenvolve e administra
instrumentos de esquecimento que não pretendem dissimular o esquecer. Ao contrário disto, o
Estado assume explicitamente a necessidade do esquecimento. Trata-se do que Michel (2010)
chamou de esquecimento-direcionamento. Nas palavras do autor,
[...] aqui não se trata como no caso precedente – esquecimento-manipulado –
, de fazer como se os acontecimentos, um determinado período ou os abusos
não tivessem existido, mas sim usar os instrumentos públicos para comandar
o esquecimento, para retomar a expressão de Paul Ricoeur. É certo que no
comando do esquecimento, paradoxalmente, ocorre o reconhecimento de que
algo ocorreu. Mas em razão de supostas ameaças de que esse passado possa
interferir no processo de coesão nacional do presente, as autoridades públicas
reivindicam solenemente que esse passado não seja recordado. Comandar,
manobrar, agir formalmente em prol do esquecimento vincula-se a uma
prerrogativa dos poderes públicos que em geral se servem de instrumentos
legislativos ou regulamentários para esse fim. (MICHEL, 2010, p. 20-21)
Partindo desta definição, verifica-se que este tipo de estratégia de produção
de esquecimento possui ligação com a forma básica de esquecimento comandado,
conforme trazido por Huyssen (2010). As leis de anistia aplicadas no fim ou após as
ditaduras na América Latina se enquadram perfeitamente neste tipo de política de
esquecimento.
Em princípio a anistia age apenas sobre a anulação de penas e perseguições
criminais, trata-se portanto de esquecer o caráter passível de punição de um
ato. De fato, o uso político da anistia em decorrência de graves perturbações
que afetam a nação se aproxima frequentemente do sentido de amnésia
coletiva. Dito de outra forma, em decretando o esquecimento das penas e atos
criminais, as autoridades políticas levam por vezes ao esquecimento dos fatos
em si mesmos. (MICHEL, 2010, p. 21)
É nesse sentido que as leis de anistia funcionam, colocando uma espécie de
ponto final em processos jurídicos e suspendendo penalidades. Como lembra Michel
(2010) tal esquecimento é, até certo ponto, limitado, visto que se aplica na esfera
jurídica, contudo, possui vasto efeito na medida em que, suspender determinadas
penalidades pode equivaler ao apagamento do próprio passado. No caso da Lei de
Anistia brasileira, promulgada em 1979, ainda pela ditadura brasileira e mantida até os
dias de hoje, foi garantida anistia não apenas para os perseguidos políticos pelo regime,
mas também para os próprios agentes do Estado responsáveis pelas milhares de prisões,
perseguições, torturas e assassinatos. Trinta anos após o fim da ditadura, a interpretação
de que os crimes conduzidos pelo Estado tinham conexão com os movimentos de luta
dos militantes perseguidos segue como dominante perante o judiciário brasileiro.
Por último, observa-se o esquecimento-destruição, uma estratégia que se
vincula à categoria mais violenta de esquecimento. Trata-se, de fato, da política de
esquecimento mais radical, aquela que não se propõe a produzir consensos específicos
por meio de esquecimentos, mas da eliminação de outras memórias em si.
Essa forma instituída de esquecimento é utilizada no sentido de construir uma
memória oficial hegemônica em detrimento de memórias coletivas
concorrentes que são o objeto de uma ação sistemática de aniquilação
(destruição de documentos públicos, autos de fé, etc.). Através dessas ações
objetiva-se fragmentar ou até mesmo eliminar a identidade coletiva (em sua
reprodução física, social e simbólica). [...]Assim como a instrumentalização
do esquecimento-manipulação se encontra, em diferentes graus, em todas as
sociedades, também a pratica do esquecimento-destruição traça em princípio
uma linha de demarcação entre as sociedades abertas e democráticas de um
lado, e as sociedades fechadas ou Estados de tendência totalitária, de outro.
Nesse último caso, as instituições políticas se esforçam por controlar o
conjunto de expressões públicas da memória, buscando impor uma só
verdade oficial da História e da memória coletiva e reprimindo as expressões
públicas de memórias rivais. (MICHEL, 2010, p. 23)
O regime militar-empresarial brasileiro, iniciado em 1964, buscou excluir da
sociedade seus adversários políticos que ameaçavam a ordem instituída, isto é, os
comunistas, os socialistas, os reformistas, os trabalhadores organizados, dentre outros.
Seguindo esta lógica, eram “desaparecidos” tanto aqueles que sobreviviam às
perseguições e às sessões de tortura – através do cárcere ou dos exílios –, quanto
aqueles que eram assassinados – por meio do desaparecimento de seus corpos. Tal
política desenvolvida pelo Estado ditatorial pode ser enquadrada como uma política de
esquecimento-destruição, na medida em que buscava eliminar definitivamente
memórias que se opunham ao regime ou a seus objetivos.
Cabe ressaltar que os tipos de esquecimento resgatados do pensamento de
Johann Michel são apenas tipos ideais, na linha proposta por Max Weber. Isso significa
dizer que estes tipos não se apresentam isolados e independentes na realidade concreta,
mas sim combinados uns com os outros. Assim, os programas curriculares oficiais, a
Lei de Anistia e as estratégias de desaparecimento dos adversários políticos do regime
não são exemplos puros das respectivas estratégias. Em todos estes casos concretos de
políticas de esquecimento, pode-se notar em alguma medida, tanto o esquecimento-
manipulação, quanto os esquecimentos direcionamento e destruição.
Percebe-se, portanto, que toda memória é seletiva e que, através de políticas
de memória e de esquecimento, o Estado se lança à administração política da memória
coletiva nacional. Nesse sentido, com relação à memória da ditadura militar-empresarial
brasileira, as perguntas que ficam são: que seleção está sendo feita com relação a esse
passado? Qual ou quais narrativas estão sendo privilegiadas? E qual o impacto de tais
escolhas para o presente e o futuro?

Políticas de Memória e Esquecimento sobre a Ditadura Militar-


empresarial Brasileira
Neste momento do trabalho, pretende-se trazer um breve histórico de
políticas de memória e de esquecimento que têm sido desenvolvidas pelo Estado
brasileiro, desde o fim da ditadura militar-empresarial. O objetivo é demonstrar de
forma concreta, isto é, através do resgaste e da contextualização histórica destas
políticas públicas, como o Estado brasileiro tem se posicionado com relação a este tema.
As políticas de memória implementadas pelo Estado brasileiro, através dos
governos civis que se sucedem desde 1985, devem ser entendidas, em primeiro lugar,
como consequências de pactos e conciliações estabelecidos entre estes governos e
forças político-econômicas ainda oriundas da ditadura militar-empresarial (Coimbra,
2013). Ressaltar este ponto significa perceber justamente as dimensões seletiva e
política da administração da memória.
Os referidos acordos se estabelecem a partir de necessidades políticas do
presente. Muitos deles seguem valendo até os dias de hoje, auxiliando na
governabilidade das coligações que assumem o poder do Estado e, ao mesmo tempo,
fortalecendo e valorizando a história narrada pelos vencedores, a história oficial. Tal
situação é decisiva para a sufocação de memórias subterrâneas, isto é, memórias de
resistência e de luta relativas àquele período de terror.
Um dos principais exemplos de política de memória é o não questionamento
da Lei 6.683 de agosto de 1979, a qual ficou conhecida como Lei de Anistia. Na
realidade, tratou-se de uma autêntica política de esquecimento. No plano institucional, a
anistia tradicionalmente indica o perdão concedido pelo Estado a quem tenha cometido
crimes, e, em especial, crimes políticos. No Brasil, apesar de ter sido o primeiro passo
para uma redemocratização, com o retorno de perseguidos políticos que viviam no
exílio, ela significou um grande caminho para o esquecimento. Esta lei, que segue em
vigência nos dias de hoje, foi instituída pelo próprio regime ditatorial e serviu para
anistiar também aqueles que perseguiram, torturaram e assassinaram presos políticos.
A lei anistiou todos os que, de setembro de 1961 a agosto de 1979 –
posteriormente ampliado de 1946 até 1988 –, cometeram crimes de motivação política e
crimes eleitorais, valendo também para aqueles que tiveram seus direitos políticos
suspensos, servidores públicos, militares e dirigentes e representantes sindicais punidos
com fundamento nos atos institucionais e complementares do regime militar. No
entanto, a lei parte da premissa de que o terrorismo de Estado deve ser tratado como
crime conexo aos crimes políticos que serviram de base para as perseguições, torturas e
assassinatos. Em outras palavras, foram anistiados tanto torturados, quanto torturadores.
A consequência é simple: nenhum agente do Estado pode sequer ser processado, muito
menos ser considerado culpado por tais crimes. Além disso, não foram contemplados
com a anistia os condenados por crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado
pessoal.
A questão aqui levantada é que entram e saem governos desde a eleição
presidencial de 1989 e a interpretação hegemônica da Lei de Anistia segue sendo a
mesma da ditadura. Em 2010, a Ordem de Advogados do Brasil (OAB), junto com
outras entidades da sociedade civil e juristas, entrou com solicitação pela revisão da lei
no Supremo Tribunal Federal (STF). Contudo, o STF decidiu pela não revisão. Manteve
a interpretação de que os crimes cometidos por agentes públicos durante a ditadura
podem ser considerados crimes conexos às infrações políticas.
No entanto, não é isso o que pensam diversos juristas reconhecidos nacional
e internacionalmente. Para Hélio Bicudo (2005), por exemplo, os crimes conexos “[…]
contemplam ações de uma ou mais pessoas objetivando o mesmo resultado” (Bicudo,
2005, p.12). Dessa forma, os atos de terror do Estado não poderiam ser tratados como
crimes conexos, uma vez que esses pressupõem ligação entre si. E não há nexo entre os
dois crimes, pois “só pode haver conexidade se os vários autores buscam a mesma
finalidade na prática o ato delituoso” (Bicudo, 2005, p.12). O que não é o caso.
Quando se pensa em uma Lei de Anistia efetiva, quando os movimentos
sociais pedem – desde a década de 1970 – uma anistia ampla, geral e irrestrita, pensa-se
em uma lei que promova uma reparação histórica. Isto é, uma lei que descriminalize
todos os opositores do regime que foram considerados como criminosos à época. Uma
lei que permita a sanção e punição dos verdadeiros criminosos, aqueles que atentaram
contra a dignidade humana. Ao contrário desta concepção, a Lei de Anistia que ainda
está em vigor no Brasil mantém a impossibilidade de processar os sujeitos, agentes
públicos ou não, que participaram do terrorismo de Estado. Esta lei, portanto, segue
reforçando o discurso oficial e conciliatório de que os dois lados estavam errados e
desqualificando todos as formas de luta de resistência. Segue produzindo a ideia de que
as ações do Estado ditatorial eram respostas equivalentes aos “crimes” cometidos por
opositores do regime. Segue contando a história segundo os interesses dos vencedores.
Outro exemplo de política de memória é a Lei 9.140 de 1995. Esta lei criou
uma Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, concedeu atestados de
óbito para os desaparecidos e instituiu uma reparação financeira para os familiares
(Coimbra, 2013). No que se refere à reparação, esta lei somente se preocupou com a
parte econômica. Não se investigou e publicizou os atos de terror, nem significou um
reconhecimento por parte do Estado de seus crimes. Assim, de acordo com Coimbra
(2013), a reparação econômica, que deveria ser apenas o fim de um longo e intenso
processo de reparações, significou um autêntico “cala boca”. Tornou-se um mecanismo
de esquecimento e silêncio.
Além disso, a Lei 9.140 somente declarou os desaparecidos como mortos.
Na realidade, declarou “morte presumida”, “sem, no entanto, esclarecer onde, quando e
como ocorreram tais crimes e quem os cometeu” (COIMBRA, 2013, p. 37). Outra
perversidade recai sobre o ônus da prova e da não abertura dos arquivos da ditadura. A
lei prevê que cabe aos interessados apresentarem as provas de que houve prisão, tortura
e/ou morte. No entanto, os arquivos seguem fechados para a sociedade.
As provas de que esses mortos e desaparecidos estiveram sob a guarda do
Estado e/ou foram assassinados por agentes daquele mesmo Estado deveriam ser
demonstradas por seus próprios familiares. “Com isto, de modo perverso, colocou-se o
ônus da prova nas mãos dos familiares: os arquivos da ditadura continuaram trancados a
sete chaves” (COIMBRA, 2013, p. 37).
A problemática que envolve a abertura dos arquivos possui ainda outras
implicações com a memória do período. Conforme observa Ferraz (2007), um dos
últimos atos do governo Fernando Henrique Cardoso estabeleceu novas classificações
para os arquivos da ditadura militar-empresarial, através do Decreto 4.553, de 27 de
dezembro de 2002. Os documentos reservados, que tinham prazo de cinco anos para se
tornarem públicos, passaram para dez anos; os confidenciais subiram de dez para vinte
anos; os secretos, de vinte para trinta anos; e os ultra-secretos podem permanecer
sigilosos para sempre.
Para que não se pense que se trata de medidas pontuais e de governos
específicos, vale destacar que este decreto somente passou a vigorar 45 dias após sua
publicação, ou seja, já no governo Lula. Hoje, mais de uma década depois e passados
três presidentes diferentes, todos atingidos e perseguidos pela ditadura – Fernando
Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff –, esta classificação
segue inalterada.
Em 2015, mais de meio século após o golpe de Estado, os principais
arquivos da ditadura militar-empresarial permanecem fechados. Dentre eles, estão os
arquivos do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e da Polícia Investigativa (P2). Tais
arquivos estão disponíveis apenas para o atingido ou o familiar devidamente autorizado.
E mesmo assim, somente são liberadas as partes que se referem especificamente ao
atingido. Deito de outra maneira, os arquivos não estão abertos em sua totalidade nem
para o grupo de atingidos diretamente pelo terror de Estado. Em suma, a sociedade
segue sem acesso aos arquivos da ditadura.
Esta pequena amostra de políticas de memória e de esquecimento fornece
uma noção sobre os posicionamentos que o Estado brasileiro vem adotando nas últimas
três décadas.
Conclusões
Este artigo tem como escopo contribuir para as reflexões concernentes às
novas perspectivas e às novas abordagens das bases epistemológicas do campo da
administração política, por meio da análise da teoria da memória e do seu contraponto, o
esquecimento-manipulação, esquecimento-direcionamento e esquecimento-destruição, a
partir dos enfoques dos autores clássicos e contemporâneos da teoria da memória.
Se, como definem Santos, Ribeiro e Santos (2009, p. 930), “cabe à
administração estruturar formas de gestão que viabilizem os objetivos da organização”,
sendo o Estado uma organização, a definição do que deve ou pode ser lembrado ou
esquecido, em termos de gestão política da memória nacional, também pode ser pensada
enquanto um campo específico do saber na área. Esta concepção contribui sobremaneira
para o conhecimento de aspectos relativos ao processo cultural e civilizatório da
sociedade, com vistas no pleno desenvolvimento da humanidade.
Partiu-se do pressuposto de que a memória é continuamente reconstruída
pelos grupos sociais e pelo Estado. No âmbito do Estado, foco central deste artigo,
verificou-se que, ao fazer a gestão das memórias, ou seja, ao evidenciar o que deve ser
lembrado, o Estado também deixa um rastro, uma zona cinzenta, composta de fatos e
acontecimentos que não são rememorados, que são esquecidos.
Desta forma, a condução política da memória da ditadura militar-
empresarial brasileira (1964-1985) pode ser pensada no campo da administração
política, na perspectiva da gestão da memória política do Estado e de suas
consequências para a sociedade, para o próprio Estado e para os grupos sociais
atingidos.
O estudo aplicado destas formas de esquecimento foi realizado por meio da
análise dos dados relativos à Lei de Anistia, à política de indenizações financeiras aos
atingidos pelo terror de Estado e à política de arquivamento dos arquivos da ditadura.
O contexto em que fora formulada e instituída a Lei de Anistia, no processo
de “redemocratização”, “transição” e “abertura”, demonstra que houve uma tentativa de
silenciamento por parte do Estado sobre todos os crimes cometidos pelo regime. A
manutenção desta lei tal como fora concebida em 1979, posição reforçada pela recente
decisão do STF de negar sua revisão, sustenta a interpretação de que os crimes
cometidos por agentes públicos durante o regime devem ser considerados como crimes
conexos às infrações políticas. Evidencia-se, dessa forma, o não interesse do Estado em
alterar sua posição com relação a este tema. Segue-se reforçando a narrativa do
consenso a partir da produção de certos esquecimentos. Sobressai neste caso a dimensão
do esquecimento-direcionamento.
A política de indenizações, por sua vez, pode ser relacionada, sobretudo, ao
esquecimento-manipulação. Uma política de indenizações deve se constituir como parte
de um processo maior de reparações, o que inclui diversas esferas para além da
financeira, como a jurídica, a moral e a psicológica. Além disso, este processo deve
estar imerso em uma intensa contextualização e investigação sobre o passado opressor.
É nesse sentido que uma pretensa reparação exclusivamente financeira tem a capacidade
de se tornar um “cala-boca”, isto é, mais um mecanismo de esquecimento. Ao invés de
trazer o passado dos atingidos à superfície do conjunto de narrativas nacionais, não os
faz protagonistas em uma nova construção memorial coletiva e acaba por minimizar
suas reivindicações à esfera meramente econômicas.
O mesmo se pode dizer sobre a política de arquivamento dos arquivos da
ditadura. Conforme foi demonstrado, a maior e principal parte arquivos relacionados à
ditadura militar-empresarial segue fechada para a sociedade (arquivos do Exército,
Marinha, Aeronáutica e Polícia Investigativa). Acrescente-se que o Decreto 4.553 de
2002 piorou as possibilidades de mudança de posição do Estado com relação a este
tema, visto que dificultaram ainda mais o acesso a tais arquivos. Impedir o acesso aos
arquivos significa omitir deliberadamente certo passado, o que pode ser relacionado
principalmente à estratégia de esquecimento-manipulação.
É preciso lembrar, contudo, que estas relações entre as políticas de memória
e a tipologia sugerida por Michel (2010) necessitam ser pensadas sob a ótica de tipos
ideias. Na realidade concreta estas estratégias não aparecem em seu formato puro.
Todas as políticas de memória e esquecimento aqui analisadas produzem um pouco de
cada uma das três formas de esquecimento deliberado – esquecimento-manipulação,
esquecimento-direcionamento e esquecimento-destruição.
O impacto dessas políticas de esquecimento é muito prejudicial não só para
os atingidos diretamente pelo terror de Estado, mas para toda a sociedade. O silêncio e o
esquecimento intensificam as parcialidades da história e das sequelas da ditadura
militar-empresarial. Ocorre que estes diferentes tipos de esquecimentos ultrapassam a
fronteira das análises meramente aplicadas da administração política, a partir do
pressuposto de que toda a sociedade é afetada, direta ou indiretamente, seja em relação à
ação direta dos seus efeitos sobre os atingidos, seja em relação aos efeitos nocivos
transgeracionais que determinados tipos de esquecimento são produzidos.
Pensar, portanto, no esquecimento enquanto produção de uma política
pública, inserido no campo da administração política e entendido enquanto uma ação
direcionada para um determinado fim, pode nos oferecer recursos para pensar não
somente na perspectiva da falta, mas da gestão da administração política da memória
nacional a partir das relações sociais, políticas e de produção.

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i
Este trabalho denominará a ditadura militar brasileira como ditadura militar-empresarial brasileira.
Trata-se de uma escolha política que tem como objetivo ressaltar a importância das ligações associativas
entre a classe burguesa, o golpe de 1964 e as ações do Estado ditatorial brasileiro. Ver mais em “1964 - A
Conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe”, de René Dreifuss (1987), ou em “A natureza
de classe do Estado brasileiro”, de João Quartim de Moraes (2014).
Transparência nos sites dos municípios do Estado do Rio de Janeiro

Vanuza da Silva Figueiredo

RESUMO

Este artigo visa contribuir para a reflexão sobre transparência nos sites dos 92 municípios do
Estado do Rio de Janeiro. Trata-se de uma pesquisa exploratória e qualitativa. O estudo tem
como objetivo analisar a transparência na divulgação das informações relativas a gestão
desses municípios, verificando se estão atendendo aos dispositivos da Lei de Acesso à
Informação. A população pesquisada abrange exclusivamente os sites oficiais dos municípios
do Rio de Janeiro. A análise nos sites foi realizada nos meses de março e abril de 2015.
Concluiu-se que as prefeituras estão criando novas opções para ampliar o nível de
transparência. Entretanto, há necessidade de um avanço maior nesse aspecto com a finalidade
de atender os interesses da coletividade, garantindo o acesso a informações atualizadas e
relevantes. A liberação em tempo real de informações pormenorizadas sobre a execução
orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público, ainda não faz parte da
realidade da administração pública.

PALAVRAS-CHAVE: transparência, Lei de Acesso a Informação, accountability.


1- Introdução
As constantes denúncias de corrupção e mau uso da máquina pública tornaram-se
comuns na administração pública brasileira. Essa situação deixa o cidadão perplexo diante do
descaso, falta de respostas e punição dos envolvidos. Por isso, iniciou-se a busca e demanda
por mais transparência dos atos de seus representantes. Assim, o acesso da sociedade a
informações referentes à administração dos recursos públicos permite a verificação dos gastos
e se estão sendo utilizados adequadamente, atendendo aos interesses coletivos. Além disso, a
cobrança da sociedade por visibilidade está vinculada à necessidade de ter acesso ao conteúdo
informacional dos atos e gastos efetivados pelo governo, afinal, o conhecimento pleno
daqueles atos, por si só, não atende às expectativas do cidadão, que, também, exige qualidade
informacional, em espaço temporal.
A confiabilidade da informação tornou-se uma das reivindicações da sociedade, pois
há necessidade de identificar os requisitos, critérios e avaliação das informações divulgadas.
O Comitê de Transparência é responsável pela elaboração dos critérios e parâmetros técnicos
do Índice de Transparência, cujo objetivo é criar um ranking, que elenca portais com maior ou
menor grau de transparência. Esse Comitê é formado por especialistas em finanças e contas
públicas. O Índice de Transparência foi criado para informar ao cidadão o nível de
transparência das contas públicas apresentadas na internet e tem como objetivo apresentar um
ranking dos sites mais transparentes.
O Brasil atualmente possui diversas Leis sobre a transparência e publicidade de sua
gestão como: Lei n° 12.527, Decreto n° 7.185 que dispõe sobre o padrão mínimo de qualidade
do sistema integrado de administração financeira e controle, no âmbito de cada ente da
1  

 
Federação, Lei Complementar n° 101 de 2000 e 131 de 2009, a Constituição Federal e
Decretos Municipais, Estaduais e Federais regulamentando a Lei de Acesso à Informação. No
entanto, o Brasil pelo ranking de Transparency International alcançou a posição 69 no ano de
2014. A Transparency International está presente em mais de 100 países, despertando a
consciência coletiva dos povos em busca de mudança. Essa organização internacional, com
base na opinião de especialistas de todo o mundo, elabora a Corruption Perceptions Index que
mede os níveis percebidos de corrupção no setor público em vários países.
O Índice de Transparência utiliza como base a Lei Complementar 131, decreto 7.185 e
a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O Ministério Público Federal (MPF) em São João de
Meriti (RJ) criou o seu ranking, com base nas Leis utilizadas pelo Comitê e na Lei de Acesso
à Informação (Lei 12.527/11). A pesquisa realizada apontou que nenhuma das oito cidades
avaliadas estavam cumprindo integralmente a Lei 12.527/11.
A Lei de Acesso à Informação determina que a União, Estados, Distrito Federal e
Municípios utilizem todos os meios e instrumentos legítimos de que dispuserem, sendo
obrigatória a divulgação em sítios oficiais da rede mundial de computadores (internet). A
internet tornou-se um instrumento eficaz para o acompanhamento das ações dos gestores
públicos. Como afirma Vicente e Scheffer (2014) a internet é uma ferramenta indispensável
no processo de democratização da informação, essencial para o controle democrático, para a
participação popular e para efetividade da governança no setor público.
A pesquisa sobre a transparência na gestão pública se destaca devido à necessidade de
verificar se os municípios do Estado do Rio de Janeiro estão atendendo a legislação, assim
como analisar as informações divulgadas. A transparência nos sites permite que o cidadão
acompanhe a gestão pública, analise os procedimentos de seus representantes e favoreça o
crescimento da cidadania, trazendo às claras informações anteriormente veladas nos prédios
públicos. Um Estado transparente possibilita a redução dos desvios de verbas e o
cumprimento das políticas públicas, proporcionando benefícios para toda a sociedade.
Uma administração transparente permite a participação do cidadão na gestão e no
controle da administração pública e, para que essa expectativa se torne realidade, é essencial
que ele tenha capacidade de conhecer e compreender as informações divulgadas. É necessário
analisar se os municípios estão cumprindo as determinações legais a respeito de transparência.
O estudo busca verificar nos sites oficiais o nível de transparência apresentado pelos 92
(noventa e dois) municípios do Estado do Rio de Janeiro.
Assim este estudo se justifica em razão de apresentar um assunto relacionado a
transparências das informações públicas, dentre elas as informações financeiras. Os gestores
são eleitos e remunerados para administrar os recursos públicos. A prestação de contas da
gestão realizada pelos representantes da população é essencial. A cobrança da sociedade por
visibilidade está vinculada à necessidade de abrir acesso ao conteúdo informacional dos atos e
gastos efetivados pelo governo. O conhecimento daqueles atos, por si só, não atende às
expectativas do cidadão, que, também, exige qualidade informacional, em espaço temporal.
Na pesquisa realizada nos sites dos municípios gaúchos, identificou-se no site que as
informações não estavam de forma clara e não possuíam uma abordagem vinculada à
cidadania, respeitando as especificidades dos usuários portadores de deficiência, para os quais
já existem softwares à disposição. (MARENGO e DIEHL 2011). Uma sociedade participativa

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e consciente da atuação dos seus representados, desempenha de forma mais satisfatória o
exercício da democracia quando tem o livre arbítrio de opinar e fiscalizar os gastos públicos.
Diante do exposto, pretende-se investigar o seguinte problema de pesquisa: Qual o
nível de transparência dos sites das prefeituras do Estado do Rio de Janeiro?
Para solução do problema levantado pela pesquisa, este estudo desenvolverá as seguintes
hipóteses:
§ Os sites das prefeituras do Estado do Rio de Janeiro apresentam transparência plena
dos dados de sua gestão;
§ Os sites das prefeituras do Estado do Rio de Janeiro são parcialmente transparentes;
§ Os sites das prefeituras do Estado do Rio de Janeiro apresentam baixo nível de
transparência.
Para alcançar a solução do problema apontado, esta pesquisa tem como objetivo geral
analisar a transparência na gestão dos municípios do Estado do Rio de Janeiro por meio dos
seus sites oficiais.
Como objetivos específicos, a pesquisa deverá:
§ Descrever a legislação sobre transparência e publicidade na gestão pública;
§ Analisar e fornecer um parecer baseado no cumprimento de cada quesito nos sites
oficiais dos municípios do Estado do Rio de Janeiro a transparência das informações
referentes às exigências da Lei de Transparência.
A organização deste estudo está compreendida em três seções além da Introdução que
apresenta a justificativa, o problema de pesquisa, hipóteses de solução e os objetivos geral e
específico. A primeira seção aborda o referencial teórico, com a conceituação do tema e
descrição da legislação brasileira sobre transparência na gestão pública. A segunda seção
apresenta a metodologia aplicada. A terceira refere-se à análise das características dos sites
oficiais dos 92 (noventa e dois) municípios do Estado do Rio de Janeiro e a quarta apresenta
as considerações finais.
2- Referencial Teórico
2.1. Lei de Responsabilidade Fiscal
A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88) já determinava a
obrigatoriedade da publicidade dos dados públicos e essa divulgação de dados favorece o
acompanhamento da gestão pública. A CRFB/88 auxiliou a transparência e a divulgação dos
dados públicos. O seu Art. 37 afirma que “A administração pública direta e indireta de
qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá
aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Através
da publicidade a coletividade poderá ter acesso às informações referentes aos atos executados
por seus representantes.
A Lei Complementar 101/2000 foi sancionada para normatizar as finanças públicas
voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Antes da Lei de Responsabilidade Fiscal o
3  

 
país apresentava um alto grau de endividamento, constantemente identificavam titulares
finalizando seu mandato com várias irregularidades na sua gestão. Esta Lei destaca também a
necessidade de transparência na administração pública, aos quais será dada ampla divulgação,
inclusive em meio eletrônico de acesso público.
Em 2009 a Lei Complementar 131 veio alterar a Lei de Responsabilidade Fiscal e
destacar novas abordagens da transparência como a liberação ao pleno conhecimento e
acompanhamento da sociedade, em tempo real. Uma informação desatualizada e incompleta
não atende as exigências sociais, tal como as convicções que norteiam o efetivo controle
social.
Para Sacramento e Pinho (2008) a LRF integra o rol das medidas que contribuem para
o avanço formal da transparência na administração pública e a sua efetivação depende
diretamente do exercício da fiscalização de seu cumprimento pelos órgãos de controle
(Legislativo, Tribunais de Contas e Ministério Público) aliados a uma ampla participação
popular, que como se sabe, ainda carece de arenas apropriadas para tal exercício.
As informações referentes a receita e despesa pública deverão ser disponibilizadas a
qualquer pessoa física ou jurídica. A Lei apresenta o cidadão, partido político, associação e
sindicato como partes legitimas para denunciar ao respectivo Tribunal de Contas e ao órgão
competente do Ministério Público sobre o descumprimento das determinações da Lei de
Responsabilidade Fiscal. Contudo, observamos que poucos brasileiros têm consciência de
seus direitos.

2.2 . Lei de Acesso à informação


A Lei de Acesso à informação N° 12.527/11 (LAI) foi um dos esforços da legislação
brasileira para regrar a transparência no Brasil. Essa Lei entrou em vigor e várias entidades
não estavam preparadas para a nova realidade. Seu propósito é regulamentar o acesso a
informações previstas no inciso XXXIII no artigo 5, no inciso II do § 3 do art.37 e no § 2 do
art.216 da Constituição Federal de 1988 que fala sobre os direitos constitucionais sobre o
tema transparência.
Todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse
particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da Lei, sob pena de
responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade
e do Estado. Cabem à administração pública, na forma da Lei, a gestão da documentação
governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.
A União, Estados, Distrito Federal e Municípios e as entidades privadas sem fins
lucrativos que recebam para realizações de ações de interesse públicos, recursos públicos
diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de
parceria, convênios, acordos, ajustes estão subordinados ao regime da LAI. A pesquisa
realizada por Bernardes, Santos e Rover (2015) identificou que dos 40 sítios de prefeituras da
região Sul do Brasil que foram avaliados, nenhum atendia à Lei 12.527/11 como um todo e a
disponibilização das informações dentro dos sítios não seguia nenhuma estrutura lógica ou
padrão preestabelecido.

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Uma gestão transparente proporciona um amplo acesso das suas informações, a
divulgação torna-se uma regra. E as tomadas de decisões dos gestores são constantemente
acompanhadas por meio da publicidade. As entidades ao cumprir a LAI estão comprometidas
a garantir a disponibilidade, autenticidade e integridade das informações. Como afirma
Fumega (2014) a chave para a implementação efetiva das leis de acesso à informação consiste
na adaptação do modelo à realidade do cidadão usuário da informação.
As informações apresentadas podem assumir características de transparência ativa ou
transparência passiva. Transparência ativa consiste no esforço das entidades em publicar o
máximo de informações de interesse gerais nos seus sites, atendendo com isso grande parte da
comunidade assistida. Na transparência passiva as entidades disponibilizam servidores para
atender as demandas e pedidos dos indivíduos que solicitaram por detalhamento da
informação apresentada ou por novas informações. Como a Controladoria Geral da União
CGU expõe os órgãos e entidades devem optar pela transparência ativa quando se tratar de
informações de interesse geral. Nos países que possuem Lei de acesso à informação há mais
tempo, observa-se que quanto mais informações nos sites, menos pedidos chegam aos órgãos
públicos.

Os cidadãos ao encontrar nos sites as principais informações não terão necessidade de


realizar pedidos específicos junto a entidade. Hoch, Rigui e Silva (2013) afirmam que a
democracia possui relação com a interface digital do Estado, pois a utilização da internet,
sobretudo, de sites e portais oficiais, representa hoje o principal canal de informação da esfera
pública e civil.
A LAI tem como propósito assegurar o direito fundamental de acesso à informação e
devem ser executados conforme os princípios da administração pública que são legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, tal como as diretrizes de observar a
publicidade como receito geral e o sigilo como exceção, divulgação de informações de
interesse público, independentemente de solicitações, uso dos meios de comunicação,
incentivo ao fomento e desenvolvimento da cultura da transparência e do controle social na
administração pública.

2.3. Transparência e accountability


O accountability abrange um conjunto de medidas presentes na administração pública
com o intuito de otimizar suas atividades. A ausência de um dos procedimentos compromete a
sua total aplicação. Segundo Matias-Pereira (2012) o termo reúne mecanismos e
procedimentos que conduzem os dirigentes governamentais a prestar contas dos resultados de
suas ações à sociedade, garantindo-se a divulgação das políticas públicas e o aumento do nível
de transparência.
Há três formas de accountability: horizontal, vertical e diagonal, aplicáveis ao setor público:
§ Accountability horizontal acontece quando funcionários públicos se posicionam na
supervisão das ações de outros órgãos do governo (tribunais, comissões de
investigação e controladorias) (ACKERMAN, 2004)
§ Accountability vertical ocorre quando o eleitorado controla os políticos por meio do
voto, de plebiscito ou referendo. Os cidadãos podem punir ou premiar um mandatário
5  

 
votando a seu favor ou contra ele ou os candidatos que apoiem na eleição seguinte (O
'DONNELL, 1998); e
§ Accountability diagonal ocorre quando as autoridades de supervisão não exercem
nenhuma relação hierárquica direta com organizações públicas e não têm poder para
impor sanções (BOVENS, 2006).
Não há um consenso nos trabalhos publicados no Brasil sobre a tradução do termo
accountability. O estudo de Medeiros, Crantschaninov e Silva (2013) sobre accountability nos
periódicos brasileiros das áreas de administração, administração pública, ciência política e
ciências sociais apontou que os três principais elementos presentes nos conceitos de
accountability foram os termos “responsabilização”, “prestação de contas” e “transparência”.
A construção de portais eletrônicos e o conteúdo que eles apresentam também depende
da vontade dos gestores que representam as entidades, que ainda não cultivam o espírito da
accountability (RAUPP, 2014). Uma sociedade motivada para exercer o controle social
associada a iniciativa de boa governança fortalece o accountability. Como afirma Zheng
(2014) a vontade política é importante no desenvolvimento de oportunidades e de
participação.
A transparência proporciona um ambiente de análise e reflexão, mas para isso é
necessário que os gestores públicos evidenciem suas tomadas de decisões e divulguem-nas
nos meios de comunicação acessíveis à população, de forma clara e compreensível não
permitindo que suas informações fiquem restritas a alguns servidores e ocupantes de cargos
comissionados. Wehner (2013) aponta que fatores políticos internos desempenham um papel
primordial na determinação do nível de transparência.

3- Metodologia
Neste estudo, com relação aos seus objetivos, trata-se de uma pesquisa exploratória,
pois busca nos sites oficiais das prefeituras a divulgação de determinados dados. Por abordar
característica de uma população é classificada como descritiva, tendo o objetivo de identificar
e obter informações sobre as características de um determinado problema ou questão. Quanto
à abordagem, a pesquisa se classifica como qualitativa, mas subjetiva. Envolve examinar e
refletir as percepções para obter um entendimento de atividades sociais e humanas (COLLIS
E HUSSEY, 2005).
A pesquisa exploratória será realizada em artigos científicos, livros, dissertações e
sites. Foi utilizado o site do governo do Estado do Rio de Janeiro, para localizar os portais dos
92 (noventa e dois) municípios. A população pesquisada abrange exclusivamente os
municípios do Rio de Janeiro. A análise nos sites foi realizada nos meses de março e abril de
2015.
A pesquisa pretende analisar a transparência na divulgação das informações relativas a
gestão dos municípios do Estado do Rio de Janeiro, verificando se estão divulgando e
atendendo os dispositivos legais, como a utilização obrigatória de site oficiais da rede mundial
de computadores (internet) para divulgar informações de interesse coletivo ou geral por eles
produzidas ou custodiadas.

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O nível de transparência dos sites das prefeituras do Estado do Rio de Janeiro será
medido por meio de analise das finanças públicas e adaptação do modelo utilizado pelo
critério de transparência adotado pelo Ministério Público Federal em São João de Meriti (RJ)
para criar o seu ranking nos municípios da Baixada Fluminense. A pesquisa desenvolvida
buscou localizar nos sites respostas para 20 quesitos apontados pela Lei de Acesso à
informação atribuindo notas de 0 a 5. A pesquisa teve algumas limitações como sites em
manutenção. Não fez parte do escopo da pesquisa os sites das Câmaras Municipais e da
administração indireta. Assim como não foi feito um estudo sobre a regulamentação da Lei de
Acesso à Informação Pública nos respectivos municípios.
4 Análise dos dados
O Estado do Rio de Janeiro faz parte da região sudeste do Brasil com uma população
aproximada de 16.461.173 habitantes. O Rio de Janeiro representa uma das maiores
economias do Brasil. Os municípios mais populosos são: Rio de Janeiro, São Gonçalo, Duque
de Caxias, Nova Iguaçu, Belford Roxo, Niterói, São João de Meriti, Campos dos Goytacazes,
Petrópolis, Volta Redonda, Magé, Itaboraí, Macaé, Mesquita, Cabo Frio, Nova Friburgo,
Angra dos Reis e Barra Mansa.
O Rio de Janeiro é dividido em 92 municípios. Grande parte da economia do Estado se
baseia na prestação de serviços e turismo. A pesquisa foi realizada nos sites oficiais das
prefeituras de cada município (rj.gov.br). Os municípios voltados para o turismo estão em sua
maioria nas regiões da Baixada Litorânea e Costa Verde.
As prefeituras adotam links denominados: transparência, portal da transparência,
acesso à informação e serviço de informação ao cidadão. Essas opções estão inseridas nos
sites para atender as disposições da Lei Complementar n° 131, de 27 de maio de 2009, que
alterou a Lei Complementar n° 101, de 4 de maio de 2000, o Decreto n° 7.185 de 27 de maio
de 2010, bem como a Lei de Acesso à Informação Pública (Lei n° 12.527, de 18 de novembro
de 2011). Esses links apresentam-se como ferramenta de controle social que possibilita ao
cidadão acompanhar informações sobre a administração pública municipal.
Ao pesquisar nos sites oficiais das 92 prefeituras do Estado do Rio de Janeiro buscou-
se localizar a presença dos 20 quesitos abordados na Lei de Acesso a Informação. Para cada
quesito foi atribuída uma pontuação de zero a cinco:
1. Como as entidades do poder público viabilizam alternativas de encaminhamento de pedidos
de acesso por meio de seus sites oficiais na internet. Alguns municípios apresentam essa
possibilidade por meio do link da ouvidoria. O individuo que desconheça a competência da
Ouvidoria poderá ter dificuldade para fazer contato com a prefeitura.
2. A entidade utiliza a divulgação nos seus sites oficiais na rede mundial de computadores
(internet). O ente possui o link ativo do Portal da Transparência? Todos os municípios
apresentaram esse Link, exceto São Francisco do Itabapoana. O site da prefeitura de
Saquarema e Aperibé ao selecionar o link portal da transparência dá a mensagem: Esta página
da web não está disponível. Nos sites das prefeituras de Rio das Flores, Rio Claro e Nova
Friburgo há necessidade de baixar programas, para assim poder acessar os dados no Portal da
Transparência. No caso de Belford Roxo, Mendes, Seropédica e Duas Barras o link
transparência encaminha a pesquisa para o site da Controladoria Geral da União apresentando
dados sobre o município.
7  

 
3. Foi analisado se há informação da despesa com a indicação do processo licitatório? Apenas
21% das prefeituras associam as despesas com seus respectivos processos licitatórios.
4. A respeito da indagação sobre a disponibilização no site do registro das competências e
estrutura organizacional do ente foi verificado que a grande maioria dos municípios não
atribuem as competências de suas secretarias nos seus sites como determina no Inciso I, §1º,
art.8º, Lei 12.527/11 da LAI. Apenas 29% atende plenamente esse quesito.
5. Já o item que trata sobre a disponibilização de endereços e telefones das respectivas
unidades e horários de atendimento ao público, identificou-se que apenas 12% apresentam o
horário de atendimento.
6. No Inciso I, §1º, art.8º, Lei 12.527/11 dispõe sobre a necessidade da entidade apresentar as
respostas a perguntas mais frequentes da sociedade, porém apenas Maricá, Piraí, Macaé,
Mesquita e Santo Antônio de Pádua atenderam este dispositivo legal.
7. Sobre o site conter ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita o acesso à informação
de forma objetiva, transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão não foi
contemplado por nenhum município de forma ampla. Descumprindo o Inciso I, § 3º, Art.8º,
Lei 12.527/11.
8. A respeito do site possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos,
inclusive abertos e não proprietários, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise
das informações foi atendido no município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro e parcialmente
pelas prefeituras de Quatis e Santa Maria Madalena. A grande maioria permite gerar a
gravação em um único formato (PDF).
A respeito de licitação, três questionamentos foram feitos. 9. Se existem informações
concernentes a procedimentos licitatórios, inclusive os respectivos editais e resultados? 10.
Constam informações de licitações abertas, em andamento e a realizar? 11. Há informação
nos casos de dispensas e inexigibilidades de licitações? O município que disponibiliza o
maior número de informação sobre esse tema é Mangaratiba, Niterói, Resende e Nilópolis.
12. A respeito de informações sobre Contratos e Convênios Celebrados exigido pelo Inciso
IV, §1º, art.8º, Lei 12.527/11. Os municípios que apresentam dados sobre isso de forma ampla
foram: São Pedro de Aldeia, Paraty, Niterói, Nova Iguaçu, Resende e Mangaratiba.
13. A divulgação do Quadro Funcional, indicando nome, cargo, local de lotação e forma de
investidura (efetivo ou comissionado) ainda não está disponibilizada por todas as prefeituras,
exceto Angra dos Reis, Campos dos Goytacazes, Cantagalo, Miguel Pereira, Itaguaí, Paty do
Alferes, Resende, Rio das Ostras, São João do Meriti, Tanguá e Três Rios.
14. Os dados que contemplam informações sobre servidores cedidos por outros órgãos foram
divulgados pelo município de São João de Meriti.
15. A apresentação de dados sobre despesas com passagens aéreas e diárias concedidas,
indicando nome e cargo do beneficiário, destino da viagem, período e motivo da viagem, bem
como o número de diárias está presente no site das prefeituras de Carapebus, Comendador
Levy Gasparian e Conceição de Macabu.

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16. As leis municipais: Os instrumentos constitucionais de planejamento presentes no artigo
165 CF/88 estão presentes em toda administração pública; a Lei Orçamentária Anual (LOA)
deve estar compatível com o Plano Plurianual (PPA) e sua elaboração será orientada pela Lei
de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A LOA realiza a previsão da receita e a fixação da
despesa. Por meio dessa Lei, a sociedade visualiza o quanto se espera arrecadar. Entretanto
verifica-se que muitos municípios não dão a devida transparência para sua legislação. Os
municípios que se destacam na divulgação desses dados são: Angra dos Reis, Areal, Bom
Jesus do Itabapoana, Itatiaia, Mesquita, Niterói, Queimados, Silva Jardim, Teresópolis e Volta
Redonda. No município de Miguel Pereira, por exemplo, o link sobre legislação está dentro da
página da Secretaria de Fazenda. Há necessidade da informação ser de fácil acesso.
Identificou-se que 35% das prefeituras não apresentam a legislação atualizada em seus sites.
17. As etapas da execução orçamentária no tocante a dotação inicial, empenhado, liquidado,
pago e restos a pagar estão sendo divulgadas de forma plena por 24% dos municípios,
parcialmente por 24% e 52% dos municípios não disponibilizam dados sobre a execução
orçamentária.
18. Quanto a classificação orçamentária: institucional (órgão e unidade orçamentária),
funcional programática (função, subfunção, programa, ação, subtítulo), natureza da despesa
(categoria econômica, grupo de natureza de despesa, modalidade da aplicação e elemento de
despesa). Estão sendo divulgadas totalmente por 13% dos municípios, parcialmente por 24%
e 63% dos municípios não disponibilizam dados sobre a classificação orçamentária.
19. A transparência dos atos relacionados a Convênios celebrados pela prefeitura com seus
respectivos números, concedente, responsável concedente, data da celebração, data da
publicação, vigência, objeto, justificativa e situação do convênio não são divulgados, com
exceção dos municípios de Belford Roxo, Niterói, Resende, São João de Meriti e São Pedro
da Aldeia que dão algumas informações sobre o assunto.
20. Patrimônio: quantitativo, alocação e valores. A prefeitura de Duque de Caxias e Nova
Iguaçu apresentam dados sobre patrimônio. No Portal da Transparência de algumas
prefeituras existiam link sobre patrimônio, mas ao ativa-lo verificava-se que não havia
nenhuma informação cadastrada, como por exemplo no município de Casemiro de Abreu.
Algumas prefeituras estão divulgando o cronograma de ações para implementação da
Contabilidade Aplicada ao Setor Público como: Vassouras, Trajano de Moraes e Santa Maria
Madalena. Art. 6º - Parágrafo Único da Portaria STN nº 828 de 14.12.2011 alterada pela
Portaria nº 231/2012). Essa portaria tem o objetivo de possibilitar o controle social das ações
dos governos relacionadas ao aperfeiçoamento das informações contábeis, determina a
publicação do cronograma de ações na internet, com visibilidade para a sociedade.
No período da pesquisa (março e abril de 2015) o site dos municípios: Barra Mansa,
Engenheiro Paulo de Frontin e Iguaba Grande estavam em manutenção.
O Ministério Público Federal (MPF) criou um ranking, com base na Lei de Acesso à
Informação (Lei 12.527/11), na Lei da Transparência (Lei Complementar nº 131/2009) e no
Decreto 7.185/10, para averiguar o nível de transparência dos municípios da Baixada
Fluminense. Nenhuma das oito cidades avaliadas (Mesquita, Nova Iguaçu, Duque de Caxias,
Nilópolis, Queimados, São João do Meriti, Japeri e Belford Roxo) estavam cumprindo
integralmente a legislação. Belford Roxo ocupou a ultima posição desse ranking. Diante dessa
9  

 
situação, o procurador da República moveu oito ações civis públicas e uma ação de
improbidade administrativa, além de expedir recomendações em fevereiro de 2014.
O quadro 1 apresenta a classificação dos municípios com a maior transparência,
entretanto, cabe destacar que a pontuação dos primeiros colocados está muito baixa. A maior
nota obtida foi 70 e nenhum município alcançou a nota máxima. O desempenho dos primeiros
colocados está aquém do padrão ideal de transparência.
Quadro 1- Municípios com maior transparência
Município Pontuação Classificação
Resende 70 1°
Mangaratiba 59 2°
Niterói 56 3°
Macaé 54 4°
Itatiaia e Duque de Caxias 51 5°
Rio de Janeiro 46 6°
Bom Jesus do Itabapoana 45 7°
Rio das Ostras, Três Rios e Paraty 44 8°
Fonte: A autora, 2015

O município que alcançou a pontuação mais elevada foi Resende, embora seja a maior
nota dentre os 92 municípios, alguns quesitos não foram atendidos como por exemplo a
apresentação dos dados sobre despesas com passagens aéreas e diárias concedidas, indicando
nome e cargo do beneficiário, destino da viagem, período e motivo da viagem, bem como o
número de diárias. Não apresenta as perguntas e respostas mais frequentes da sociedade.
Mangaratiba apresentou uma diferença de 11 pontos em relação ao primeiro colocado
e apenas 3 pontos em relação ao terceiro.
Quadro 2- Municípios com menor transparência
Município Pontuação Classificação
Aperibé 6 44°
Seropédica 9 43°
Belford Roxo, Rio das Flores, São Francisco de Itabapoana e São Fidelis 10 42°
São Sebastião do Alto 11 41°
Itaperuna e Magé 12 40°
Queimados, Macuco 13 39°
Arraial do Cabo, Saquarema e Trajano de Morais 14 38°
Carmo 15 37°
Fonte: A autora, 2015

O município que apresentou o menor índice de transparência no período da pesquisa foi


Aperibé, seguido por Seropédica. A diferença entre a pontuação do primeiro e segundo
colocado ultrapassa o obtido pelo 44°, 43° e 42°.
Quadro 3 - Municípios situação intermediária
Cardoso Moreira, Mendes e Nova Friburgo 16 36°
São José de Ubá e Cambuci 17 35°

10  

 
Paracambi 18 34°
Porciúncula 18,5 33°
Bom Jardim, Cachoeiras de Macacu, Natividade, São Gonçalo e Varre Sai 19 32°
Armação de Búzios 21 31°
Itaboraí, Japeri, Petrópolis, Rio Bonito e Vassouras 22 30°
Porto Real 23 29°
São José do Vale do Rio Preto 23,5 28°
Paraíba do Sul, São João da Barra, Araruama, Duas Barras e Laje do Muriaé 24 27°
Rio Claro, Tanguá 25 26°
Quissamã, Sumidouro 26 25°
Guapimirim, Piraí, Santo Antônio de Pádua 27 24°
Cabo Frio 28 23°
Sapucaia 28,5 22°
Quatis, Angra dos Reis, Miguel Pereira 29 21°
Itaocara, Maricá 30 20°
Barra do Pirai, Carapebus 31 19°
Campos dos Goytacazes, Comendador Levy Gasparian, Cordeiro, Santa Maria 32 18°
Madalena
Conceição de Macabu, Italva, 33 17°
Paty do Alferes, São João do Meriti, Silva Jardim 34 16°
Valença, Teresópolis, Areal, Nova Iguaçu 35 15°
Casimiro de Abreu 37,5 14°
Pinheiral, Volta Redonda 38 13°
São Pedro da Aldeia 39 12
Cantagalo, Miracema 40 11°
Itaguaí, Nilópolis 41 10°
Mesquita, 43 9°
Site Manutenção
Barra Mansa, Iguaba Grande e Engenheiro Paulo de Frontin - -
Fonte: A autora, 2015

A grande maioria dos municípios apresentou pontuação entre 16 e 43 pontos um número muito baixo. O
gráfico a seguir apresenta os resultados.

Gráfico 1 – Nível de transparência

Fonte: A autora, 2015

A maioria dos municípios do Estado do Rio de Janeiro apresenta baixo nível de


transparência, 59,55% obtiveram pontuação inferior a 30 pontos, 33,71% alcançaram

11  

 
pontuação inferior a 50 e superior a 30 pontos. Os sites com maior nível de transparência
correspondem a 6,74% dos municípios pesquisados. Como haviam 20 quesitos valendo 5
pontos cada, a nota máxima possível seria 100 pontos.
5. Conclusão
A administração pública convive atualmente com legislação sobre os procedimentos a
serem desenvolvidos em prol do aumento no nível de transparência das informações, inclusive
nos sites das entidades pública. A legislação existente sobre o tema transparência ainda não é
uma garantia para a adoção plena dos dispositivos legais. O estudo apresentou um baixo nível
de transparência nos sites das prefeituras do Estado do Rio de Janeiro.
A análise no site possibilitou identificar que os dados sobre as despesas apresentam
uma linguagem complexa e de difícil entendimento pelo cidadão. Alguns municípios
disponibilizam a pesquisa dos empenhos emitidos com a seleção de uma data ao invés de
permitir a pesquisa em intervalos de meses, dias ou semestres. Em outros casos há
necessidade de conhecimento de codificação de orçamento para entender os dados publicados.
A liberação em tempo real de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e
financeira, em meios eletrônicos de acesso público, ainda não faz parte da realidade da
administração pública. Observa-se que 66% dos municípios do Estado não disponibilizam
dados sobre a execução orçamentária. Alguns municípios apresentaram opções de pesquisa
que necessitava de avançado conhecimento de codificação de orçamento para realizá-la. A
linguagem utilizada nos sites ainda não é de fácil compreensão por todos.
O estudo identificou dados desatualizados nos sites, como no caso de licitação com a
última atualização em 2013 (Maricá), a legislação mais atual era de 2009 no município de
Magé. A LAI determina que as entidades precisam manter atualizadas as informações
disponíveis para acesso. A ausência da publicidade dos principais mecanismos de
planejamento (Lei Orçamentária -LOA, Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO, Plano
Plurianual - PPA) dificulta o controle social. O cidadão sem acesso as leis em vigor não
consegue acompanhar a execução orçamentária. Há necessidade das entidades divulgarem as
receitas previstas, despesas fixadas e o planejamento para os anos seguintes. Bem como
apresentar as alterações orçamentárias oriundas dos créditos adicionais. No conjunto, o Estado
tem pelo menos um município divulgando informações sobre cada quesito utilizado na
pesquisa. Individualmente poucos municípios atendem a maioria dos 20 itens pesquisados. O
município de Resende está acima da média e se destaca entre as 92 prefeituras.
Os dados apurados na pesquisa vão ao encontro da pesquisa de Souza, Barros e Araujo
(2013) e Staroscky et al (2014) no qual identificou que os municípios pesquisados ainda
precisam melhorar o nível de transparência de suas informações, para que os cidadãos possam
ter um melhor contato com o que é disponibilizado em seus sites e para que a população possa
exercer o controle social mais eficaz perante os atos da gestão pública.
O estudo de Vicente (2014) demonstrou que os municípios ainda apresentam limitação
na divulgação dos dados, restringindo a participação da população na gestão pública, no
acesso eficiente aos serviços públicos, especialmente sobre o processo de planejamento.
Os primeiros passos para tornar a administração pública mais transparente estão sendo
implantados. Algumas prefeituras estão criando novas opções para ampliar o nível de
transparência. Agora, há a necessidade de um avanço maior nesse aspecto com a finalidade de
12  

 
atender os interesses da coletividade. As entidades devem garantir a autenticidade e a
integridade das informações disponíveis para acesso nos seus sites.

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14  

 
Análise do Conselho Municipal de Política Urbana de Niterói (COMPUR) a
partir da Teoria da Democracia Deliberativa Habermasiana

Angeline Coimbra Tostes de Martino Alves


Cláudio Roberto Marques Gurgel

Introdução

A proposta deste trabalho é fazer uma análise do Conselho Municipal de Política


Urbana de Niterói (COMPUR), como instituição participativa, para o controle social e o
accountability, tendo por base teórica a democracia deliberativa habermasiana.
Optou-se por essa teoria como referencial teórico à análise do estudo empírico por se
tratar de uma teoria que está em consonância com a expectativa de que a comunicação entre
os homens, em busca de condições éticas de vida, possa resultar em ações e deliberações
justas. Parece adequado trabalhar com este referencial, quando se trata de estudos acerca de
participação social, cidadania, controle social, cujo a priori é a possibilidade de diálogo entre
partes distintas e interesses diferenciados.
A metodologia utilizada é a revisão bibliográfica e o estudo de caso, cujo objeto
empírico foi supracitado. Utilizou-se da observação não-participante das reuniões do conselho
e de entrevistas semiestruturadas com 2 conselheiros, a técnica para tratamento dos dados das
entrevistas foi a análise de discurso (VERGARA, 2008).
Serão apresentadas duas seções, além da introdução e das considerações finais. Uma
seção que apresenta as principais características da teoria habermasiana da democracia
deliberativa; e a segunda seção dedica-se a apresentar os resultados da pesquisa empírica.

2 A Democracia Deliberativa Habermasiana

Segundo Leonardo Avritzer (2000), nos dois últimos séculos, a teoria democrática
girou em torno do conceito de deliberação utilizado de formas distintas: autores como
Habermas e Cohen, utilizam deliberação como “ponderar, refletir”; enquanto outros autores,
como Rousseau, Schumpeter e Rawls, utilizam o termo como “decidir, resolver”. Aqueles
abordam o processo e estes o momento de decisão.
O elemento argumentativo no interior do processo deliberativo, como tendência
contemporânea, segundo o autor, surgiu na teoria democrática a partir dos anos 1970.
Para a teoria democrática deliberativa, o processo de decisão governamental necessita
de sustentação por meio da deliberação dos indivíduos racionais em fóruns amplos de debate
e negociação. No entanto, a deliberação não é resultado de uma agregação de preferências
fixas individuais. A deliberação resulta de um processo de comunicação, em espaços públicos,
que antecede e auxilia a própria formação da vontade dos cidadãos (FARIA, 2000).
Nesse sentido, segundo Habermas (1995), quando as formas de comunicação estão
suficientemente institucionalizadas, a política dialógica e a política instrumental entrelaçam-
se no campo das deliberações. Tudo gira em torno das condições de comunicação e dos
procedimentos que outorgam, à formação institucionalizada da opinião e da vontade políticas,
sua força legitimadora.
A preocupação de Habermas ao elaborar o conceito de democracia deliberativa era o
modo como os cidadãos fundamentam racionalmente as regras do jogo. Enquanto para a
democracia liberal a fundamentação de um governo democrático está no voto; a teoria do
discurso habermasiana propõe um “procedimento ideal para a deliberação e a tomada de
2  

decisão”, que avançaria na fundamentação e legitimação das regras democráticas (FARIA,


2000, p. 48). A teoria do discurso habermasiana considera a cidadania como um ator coletivo,
que reflete o todo e age por ele.
Um dos principais conceitos dessa teoria é o de espaço público ou esfera pública, que
o autor entende como um fenômeno social elementar e que
 
pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos,
tomadas de posição e opiniões. [...] A esfera pública constitui principalmente uma
estrutura comunicacional do agir orientado para o entendimento, a qual tem a ver
com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os
conteúdos da comunicação cotidiana. [...] O espaço de uma situação de fala,
compartilhado intersubjetivamente, abre-se através das relações interpessoais que
nascem no momento em que os participantes tomam posição perante os atos de fala
dos outros, assumindo obrigações ilocucionárias. Qualquer encontro que não se
limita a contatos de observação mútua, mas que se alimenta da liberdade
comunicativa que uns concedem aos outros, movimenta-se num espaço público,
constituído através da linguagem. Em princípio, ele está aberto para parceiros
potenciais do diálogo, que se encontram presentes ou que poderiam vir a se juntar.
[...] os processos de formação de opinião, uma vez que se trata de questões práticas,
sempre acompanham a mudança de preferências e de enfoques dos participantes –
mas podem ser dissociados da tradução dessas disposições em ações. Nesta medida,
as estruturas comunicacionais da esfera pública aliviam o público da tarefa de tomar
decisões; as decisões proteladas continuam reservadas a instituições que tomam
resoluções. Na esfera pública, as manifestações são escolhidas de acordo com temas
e tomadas de posição pró ou contra; as informações e argumentos são elaborados na
forma de opiniões focalizadas. Tais opiniões enfeixadas são transformadas em
opinião pública através do modo como surgem e através do amplo assentimento de
que “gozam”. [...] Na esfera pública luta-se por influência, pois ela se forma nessa
esfera. Nessa luta não se aplica somente a influência política já adquirida (de
funcionários comprovados, de partidos estabelecidos ou de grupos conhecidos, tais
como o Greenpeace, a Anistia Internacional, etc.), mas também o prestígio de
grupos de pessoas e de especialistas que conquistaram sua influência através de
esferas públicas especiais [...] a influência política que os atores obtêm sobre a
comunicação pública, tem que apoiar-se, em última instância, na ressonância ou,
mais precisamente, no assentimento de um público de leigos que possui os mesmos
direitos. [...] temos que fazer uma distinção entre atores que surgem do público e
participaram na reprodução da esfera pública e atores que ocupam uma esfera
pública já constituída, a fim de aproveitar-se dela. Tal é o caso, por exemplo, de
grandes grupos de interesses, bem organizados e ancorados em sistemas de funções,
que exercem influência no sistema político através da esfera pública. Para preencher
sua função, que consiste em captar e tematizar os problemas de sociedade como um
todo, a esfera pública política tem que se formar a partir dos contextos
comunicacionais das pessoas virtualmente atingidas (HABERMAS, 1997, p. 92-94).

Desde sua origem, este conceito tem algumas características ligadas ao debate
democrático contemporâneo:

[...] a ideia de um espaço para a interação face-a-face diferenciado do Estado, onde


os indivíduos interagem uns com os outros, debatem as decisões tomadas pela
autoridade política, debatem o conteúdo moral das diferentes relações existentes ao
nível da sociedade e apresentam demandas em relação ao Estado. Os indivíduos no
interior de uma esfera pública democrática discutem e deliberam sobre questões
políticas, adotam estratégias para tornar a autoridade política sensível às suas
deliberações. Nesse sentido, o conceito de publicidade estabelece uma dinâmica no
interior da política que não é movida nem por interesses particularistas nem pela
tentativa de concentrar poder com o objetivo de dominar outros indivíduos. Pelo

   
3  

contrário, a ideia aqui presente é de que o uso público da razão estabelece uma
relação entre participação e argumentação pública (AVRITZER, 2000, p. 36).

O autor alemão rompe com a formulação rousseuniana de deliberação, conforme


Avritzer (2000), ao destacar a existência de uma dimensão argumentativa na relação Estado-
sociedade, que vai além da formação da vontade geral.
Nesse sentido, ressalta Vitale (2006, p. 551) que “Habermas identifica sérios limites
no conceito de razão adotado nos últimos séculos, que teriam obstruído a implementação do
projeto emancipador anunciado pelo Iluminismo”.
Ele tenta inserir a ideia de um consenso discursivo em uma teoria reflexiva da ação
social. Segundo Avritzer (2000), essa construção teórica é feita na obra, Teoria do Agir
Comunicativo, a partir de duas dimensões centrais:

i) a construção de um conceito de mundo social, reflexivamente adquirido; e

ii) a ideia de uma forma de ação que seja intersubjetiva e voltada para o consenso
comunicativo.

O mundo da vida, segundo Habermas (2012), é um conceito complementar ao do agir


comunicativo. Ele se relaciona com os três mundos que os sujeitos tomam por base para
definir situações comuns, quando agem orientados pelo entendimento: subjetivo, objetivo e
social.
O filósofo propõe que a sociedade seja simultaneamente concebida como mundo da
vida e sistema. Este representado pelo mundo socioeconômico, no qual os sujeitos estão
inseridos.

A definição de uma situação estabelece uma ordem social. Através dela participantes
em um processo de comunicação atribuem os vários elementos de uma situação de
ação a cada um dos três mundos - o objetivo, o social e o subjetivo, e, desse modo,
incorporam a situação de ação atual no seu mundo da vida pré-interpretado. A
definição da situação por uma outra parte que diverge da definição de um de nós,
coloca um problema de tipo peculiar, pois, em um processo cooperativo de
interpretação ninguém possui o monopólio da interpretação correta (HABERMAS,
1984, I, p.100 apud AVRITZER, 2000, p. 38).

Para o autor, a afirmação de Habermas representa uma tentativa sociológica de


reincorporar a argumentação do mundo social. A dinâmica dessa tentativa é supor a presença
de um mundo com pré-interpretações distintas e propor uma solução para o problema
sociológico da produção da ordem que envolva o consenso argumentativo das partes sobre as
características da ordem social em disputa. A isso Habermas denomina de ação/agir
comunicativo, nas suas próprias palavras:

O agir comunicativo depende de um processo de interpretação cooperativo em que


os participantes se referem simultaneamente a algo no mundo subjetivo, no mundo
social e no mundo objetivo; mesmo que no ato de sua manifestação ele consiga
enfatizar respectivamente apenas um dos três componentes. Os falantes e ouvintes
utilizam o sistema de referência dos três mundos como uma moldura no interior da
qual tecem e interpretam definições comuns relativas à situação de sua ação. Nesse
sistema de referência, eles não se referem diretamente a algo no mundo, mas
relativizam suas próprias exteriorizações tendo em vista a possibilidade de que o
outro ator venha a contestar a validade delas (HABERMAS, 2012, p. 221).

O agir comunicativo, conforme Avritzer (2000), teria as seguintes características:

   
4  

a) o seu meio é a utilização pragmática da linguagem;


b) envolveria orientações em relação ao mundo;
c) seria teleológica1; e
d) implicaria assumir características reflexivas em relação ao mundo.

Habermas supõe, segundo o autor, que as formas de argumentação são próprias do


mundo social e por isso continuam tendo presença plena nas sociedades contemporâneas.
Também admite as interpretações diferentes em situações diversas, no que diverge de
Rousseau, que acreditava que os que divergiam da vontade da maioria estavam errados.
Também diverge de Rawls, que pressupunha que bastaria supor uma posição de limitação de
informação para que os indivíduos cheguem a determinados consensos. Ao contrário, “o
problema habermasiano será o de que as diferenças de perspectiva e orientação são suficientes
para gerar polêmicas em relação às normas” (Ibid.). Foi tentando transferir a ideia de
argumentação própria da Sociologia interpretativa para o campo da política, que Habermas se
aproximou da discussão acerca da democracia deliberativa.
Habermas começa um processo de aplicação da sua concepção de teoria do discurso à
política contemporânea com a publicação da obra Teoria do Agir Comunicativo. Essa
aplicação foi operacionalizada com a percepção de que:

o problema da legitimidade na política não está ligado apenas, tal como supôs
Rousseau, ao problema da expressão da vontade da maioria no processo de
formação da vontade geral, mas também estaria ligada a um processo de deliberação
coletiva que contasse com a participação racional de todos os indivíduos
possivelmente interessados ou afetados por decisões políticas (Ibid., p. 39).

Essa formulação, segundo Avritzer (2000), leva Habermas à elaboração do chamado


princípio D: que diz que apenas as normas-ações, com as quais todas as pessoas que possam
ser afetadas podem concordar como participantes de um discurso racional, são válidas.
O autor ressalta as duas características do princípio D:

I) não é a contagem de votos o que muda a relação entre maioria e minoria, é


preciso chegar a uma posição racional no debate político que a satisfaça;

II) existe uma mudança no conceito de preferência.

Avritzer (2000) explica, em relação ao último item, que para o filósofo alemão a
política deliberativa deve ser concebida como uma conjuntura que depende de uma série de
processos de negociação regulados de forma justa e pela argumentação, em suas mais
variadas formas.
Em relação à intersubjetividade, Habermas (2012, p.230-231) afirma que “o conceito
de ‘mundo da vida’ não permite subordinações análogas; ao utilizá-lo, os falantes e ouvintes
não podem se referir a ele como ‘algo intersubjetivo’. Isso ocorre porque quem age
argumentativamente segue na direção do seu mundo da vida, do seu horizonte. São as

                                                                                                                       
1
Teleologia, conforme o dicionário de Português Michaelis, online, significa, na Filosofia: “Filos Teoria das causas finais;
conjunto de especulações que têm em vista o conhecimento da finalidade, encarada de modo abstrato, pela consideração dos
seres, quanto ao fim a que se destinam”. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=teleologia>. Acesso em:
07-maio-2015.
   
5  

estruturas do mundo da vida que determinam quais as formas de intersubjetividades possíveis


para o entendimento.
O mundo da vida, diz o autor, é o lugar transcendental em que os atores se encontram.
É a partir dele, de um mundo da vida comum, que os falantes e ouvintes se compreendem no
mundo subjetivo, objetivo e social.
O problema da intersubjetividade tem a ver com a possibilidade de sujeitos variados
compartilharem o mesmo mundo da vida.
O mundo moderno, destaca Vitale (2006), trouxe consigo um dilema complexo. O
processo de fragmentação da sociedade, representado também pelo individualismo liberal,
gerou um desequilíbrio nas esferas de valor. As instituições surgidas com o Estado moderno e
o sistema capitalista prevalecem sobre as outras esferas de valor. O individualismo prevalece
sobre a solidariedade, por exemplo, tão importante para o bom desenvolvimento democrático,
inclusive na versão deliberativa habermasiana.
A questão não é a existência ou o avanço do sistema. Segundo a autora, a questão é a
lógica e a estrutura do sistema que se super desenvolvem, com o encolhimento do mundo da
vida. O que significa dizer que a racionalidade instrumental parece ser a única razão possível
e limita a emancipação da razão colocando em xeque a modernidade.
Confome Vitale (2006), Habermas denomina esse processo de colonização do mundo
da vida por imperativos sistêmicos, o que constituiria numa sociopatologia.
A colonização do mundo da vida é como o que ocorre na atualidade, a economia e a
administração pública, seus valores se sobrepondo aos valores culturais, sociais e éticos dos
sujeitos e da coletividade. Na teoria democrática deliberativa habermasiana, a racionalidade
instrumental e a racionalidade argumentativa devem conviver, com a segunda legitimando a
primeira. Não o contrário, como ocorre no processo de colonização do mundo da vida.
Habermas demonstra que é necessário ir além de uma razão subjetiva, propõe uma
mudança de paradigma, a intersubjetividade, o processo de decisão dialógico (Vitale, 2006).
A sociedade contemporânea, para avançar na emancipação da razão moderna, precisa superar
o individualismo e avançar na intersubjetividade, na solidariedade. Fortalecer a razão
dialógica, argumentativa, comunicativa, é avançar na democracia.
A democracia deliberativa, segundo Habermas (1995), assume um papel intermediário
entre a democracia liberal e a democracia participativa. Essa concepção mediadora, recebe
críticas de liberais e de republicanos.

3 O Conselho Municipal de Política Urbana de Niterói (COMPUR)

O Conselho Municipal de Política Urbana de Niterói-RJ foi criado pela lei municipal
nº 2.123/2004, que alterou a lei municipal nº 1.157/1992, que instituiu o Plano Diretor de
Niterói. Atua no controle social dos instrumentos de implementação do Plano Diretor, que
gerem dispêndio de recursos públicos, que devem passar por sua apreciação. Integra o
Sistema Municipal de Planejamento Urbano (SMPU), coordenado pela Secretaria Municipal
de Urbanismo e Mobilidade Urbana (SMU), que é o órgão central do sistema, responsável por
sua coordenação.
Trata-se,

[de] um órgão colegiado que reúne representantes do poder público e da sociedade


civil, permanente e deliberativo conforme suas atribuições, integrante da
administração pública municipal, tendo por finalidade assessorar, estudar e propor
diretrizes para o desenvolvimento urbano com participação social e integração das
políticas fundiária e de habitação, de saneamento ambiental e de trânsito, transporte
e mobilidade urbana (art. 104, Lei Municipal no. 2123/2004, grifos nossos).

   
6  

Além de integrar o SMPU, o COMPUR é parte integrante do Sistema Nacional do


Conselhos de Cidades e é vinculado funcionalmente ao Órgão Gestor da Política Urbana
Municipal (SMU).
É composto de 18 (dezoito) membros titulares e de 18 (dezoito) membros suplentes,
respeitando a seguinte proporcionalidade entre os segmentos, estabelecida pela Conferência
Nacional das Cidades para o Conselho Nacional das Cidades: 5 (cinco) representantes
indicados pelo Poder Executivo, 2 (cinco) representantes indicados pelo Poder Legislativo, 5
(cinco) representantes indicados pelos Movimentos sociais e populares, 2 (dois)
representantes indicados pelo Segmento empresarial, 2 (dois) representantes indicados pelos
Trabalhadores, 1 (um) representante indicado pelas Entidades profissionais e acadêmicas e 1
(um) representante indicado pelas Organizações não governamentais (ONG) (Lei municipal
nº 2123/2004, art. 104, §2º.).1
A presidência do conselho é indicada pelo Poder Executivo, em geral assumida pelo
responsável pela Secretaria de Urbanismo e Mobilidade Urbana.
Além do COMPUR e do Conselho Municipal de Meio Ambiente e Recursos Hídricos,
deverão ser utilizados, para garantir a gestão democrática da cidade, os seguintes instrumentos
(art. 104, § 5º):

III - debates, audiências e consultas públicas;


IV - conferências sobre assuntos de interesse urbano e ambiental;
V - iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de
desenvolvimento urbano;
VI - acesso às informações disponíveis;
VII- encontros locais e de Câmaras Temáticas, a serem promovidos periodicamente
pelos órgãos municipais responsáveis;
VIII- integração dos conselhos de políticas setoriais no Conselho Municipal de
Política Urbana.

Eleitos na 5ª Conferência Municipal da Cidade de Niterói-RJ, ocorrida em maio de


2013, os conselheiros que compõem o COMPUR, para o período de 2013-2016, estão
distribuídos por segmento:

Poder Executivo: 5 conselheiros titulares, todos representantes de pastas do poder Executivo,


exceto um conselheiro suplente, que integra uma empresa pública municipal, a Empresa
Municipal de Moradia Urbanização e Saneamento (EMUSA);

Poder Legislativo: 2 vereadores, atualmente, da base governista;

Movimentos Sociais e Populares: 5 conselheiros titulares, todos integrantes da Federação das


Associações de Moradores de Niterói (FAMNIT);

Empresarial: 2 conselheiros, sendo um da Concessionária de Águas Niterói e outro da


Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Niterói (ADEMI);

Trabalhadores: 2 conselheiros, sendo um da Associação dos Funcionários da Companhia de


Limpeza de Niterói (ASCLIN) e outro do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do
Estado do Rio de Janeiro (SEPE). Observa-se nesse segmento que os suplentes representam
respectivamente outras entidades: o Sindicato dos Bancários de Niterói e a ABIO (Associação
de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro);

   
7  

Profissionais e Acadêmicos:1 conselheiro do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), com 1


suplente da Universidade Federal Fluminense (UFF);

Organizações Não Governamentais (ONGs): 1 conselheiro da Associação Cultural de


Apoio à Cidadania e Capacitação Profissional (ACACICAPP), que é uma associação privada.
O que se observa é que a representação da sociedade civil, sobretudo no que diz
respeito a movimentos sociais e populares está concentrada na FAMNIT. Talvez por ser a
federação que representa todas as associações comunitárias do município, como disse um de
seus representantes e conselheiro numa das reuniões.
No entanto, uma vez que essa federação seja cooptada, põe por terra toda a
possibilidade de representação do segmento, que é fundamental à representação de interesses
das classes menos favorecidas e que mais necessitam de políticas públicas para melhorar a sua
qualidade de vida. Soma-se a isso, o fato de representarem 5 votos no conselho, num universo
de 18 votos, ou seja, 27,8% dos votos, o que representa quase um terço da capacidade de
decisão no conselho e quase metade do poder de decisão da sociedade civil.
Para agravar a situação, de fato há problemas de legitimidade. Segundo um dos
conselheiros entrevistados, a 5ª Conferência das Cidades “foi menos participativa que as
anteriores, [...], um setor que defendia algumas pautas parou de defender essas pautas. [...]
FAMNIT mudou posicionamentos históricos nessa última conferência” (Informação Verbal2).
Como observa o sociólogo Renato Figueiredo, o movimento de bairros em Niterói
está “condenado à morte”, desde àquela época pelo menos. Isso ocorre em virtude das
dificuldades de sobrevivência apresentadas pela FAMNIT3 e pela
Federação das Associações de Moradores de Áreas Carentes de Niterói (FAMACNIT), que à
época disputavam o movimento de bairro na cidade (A Tribuna, 04-jul-2009).
A mesma matéria mostra que o enfraquecimento dessas entidades se deve à
“partidarização e cooptação de lideranças por governos municipais e estaduais, com o
objetivo claro de frear suas lutas” (Ibid.), um problema que atinge toda a região
metropolitana.
Esse relato corrobora com as impressões da autora ao acompanhar as reuniões do
COMPUR durante todo o ano de 2014.
Durante o ano ocorreram 8 reuniões ordinárias e 3 reuniões extraordinárias,sendo que
4 reuniões não ocorreram por falta de quórum.
O que se vê nos dados coletados é que há uma ausência grande dos conselheiros da
sociedade civil nas reuniões do conselho. Os que mais participam são os representantes do
Executivo e os representantes dos empresários.
Das 11 reuniões realizadas (ordinárias e extraordinárias), a frequência foi analisada
apenas nas 8 reuniões ordinárias que efetivamente foram realizadas e nas 4 reuniões que não

                                                                                                                       
2
Entrevista do dia 25-jun-2015, com conselheiro do COMPUR.
3
“[...] Fundada em agosto de 1983 por pessoas ligadas ao PDT, a FAMNIT agora é um reduto de petistas. Em 2008, na
disputa interna do PT entre o deputado estadual Rodrigo Neves e André Diniz (ex-secretário de Cultura), sete dos 21
diretores da entidade, inclusive o presidente, o vice-presidente, assinaram documento apoiando a pré-candidatura do vereador
à sucessão do então prefeito de Niterói, Godofredo Pinto. Diretor da FAMNIT e filiado ao PT, Paulo Lourenço, o Paulo
Viradouro, é contra partido ditando a política do “Movimento de Bairros”. ‘Estou há 15 anos no movimento de bairros e acho
que, agora, os interesses dos partidos e pessoas são colocados acima das necessidades das comunidades’, afirmou (A Tribuna,
04-jul-2009). Paulo Viradouro é atual conselheiro do COMPUR.  
   
8  

ocorreram por falta de quórum4, haja vista a ausência das atas das reuniões extraordinárias no
sítio da secretaria na data em que os dados foram coletados.5
Gráfico 1: Média Aritmética da Frequência dos Conselheiros do COMPUR por Segmento – 2014

Fonte:Elaboração própria a partir das atas das reuniões – 2014.


*Não foram computadas as atas das reuniões extraordinárias e da ata da reunião ordinária de setembro de 2014,
pois não constavam no site da Secretaria de Urbanismo e Mobilidade Urbana de Niterói, no dia 28-jul-2015.

Como se verifica do Gráfico 1, observa-se os que tiveram frequência positiva, destaca-


se o segmento Empresarial, com a maior média de presença às reuniões, seguido pelo Poder
Executivo, depois pelas Entidades Profissionais e Acadêmicas, pelos Trabalhadores e pelo
Poder Legislativo.
As menores frequências ocorreram no segmento Movimentos Sociais e Populares e no
segmento Organização Não Governamental.
A respeito da frequência, um dos conselheiros afirma que “[...] A questão dos
interesses está por trás da lógica que a prefeitura usa, ela tenta trabalhar o tempo todo com a
ideia de um consenso...[falso]”.2 Essa informação corrobora com a impressão da autora, de
que a resposta a essa questão está na relação de interesses, que por trás da ideia de um
consenso, de um falso consenso, faz com que somente os conselheiros cujos interesses
convergem para ele tenham o interesse em se fazerem presentes às reuniões.
Nesse sentido, dizem Avritzer e Pereira (2005), por um lado, os atores políticos,
eleitos atuam sob restrição temporal (intervalos eleitorais); por outro, os cidadãos têm tempo
limitado para o desempenho de ações voluntárias; e as lideranças comunitárias têm múltiplos
canais para demandarem mudanças políticas. Portanto, os atores têm motivos para
continuarem participando em instituições participativas se perceberem sua eficácia como
veículos efetivos de mudanças, o que parece não ser o caso.

                                                                                                                       
4
Consta das atas das 4 reuniões que não ocorreram por falta de quórum a presença dos conselheiros.
5
O Secretário Executivo forneceu à autora as atas das reuniões ordinárias até agosto de 2014. As demais foram coletadas no
sítio – www.urbanismo.niteroi.rj.gov.br – no dia 28-jul-2015. Notou-se a ausência da ata da reunião ordinária do mês de
outubro.

   
9  

Pela composição do conselho observa-se uma distribuição de 7 conselheiros que


representam os interesses do Governo e 11 conselheiros que representam os interesses da
sociedade civil, inclusos nesse número, os segmentos de trabalhadores, movimento social,
profissionais técnicos da área e ONGs.
No entanto, o que se verifica na dinâmica do conselho é que esses interesses não são
distribuídos de forma tão simples. Desde a primeira reunião, em janeiro de 2014, onde a pauta
versava sobre a aprovação de uma minuta de lei que aumentaria o gabarito em alguns locais
da cidade, lei esta conhecida como “lei dos hotéis”, ficou evidente o que a literatura tem por
consenso quando trata de conselhos de políticas públicas.
Primeiro, observou-se que havia cooptação de conselheiros por parte do governo. Por
outro lado, os discursos de alguns representantes do governo se dirigiam no sentido de
favorecer a ampliação do gabarito das construções da cidade e atender ao interesse das
empresas hoteleiras. Se nem todos discursaram, a votação deixou isso claro.
Um dos secretários de governo, que é conselheiro, chegou a dizer que recebeu vários
empresários do setor e que a cidade não pode perder a oportunidade desse investimento. No
entanto, essa “oportunidade” é vista sem crítica. Ou seja, que venham os investimentos, custe
o que custar. O que sinaliza uma possibilidade de “troca de favores”, clientelismo e
patrimonialismo.
Ocorre que essa minuta foi aprovada. Com poucos votos contrários, apenas 2
conselheiros votaram contra, um deles representante dos profissionais técnicos, que parecia
um lutador solitário. Houve contraditório de um dos conselheiros do segmento governo, mas
foi uma posição que pareceu, ao longo da pesquisa, inédita.
Nesse trabalho, parte-se do entendimento de que esses vícios e atitudes espúrias já
registrados na literatura sobre o tema, são conhecidos. No entanto, é importante destacar, que
nesse conselho é como se esse tipo de comportamento fosse algo banal, natural do jogo
político. Ficou muito claro que todos estão cientes e a situação não oferece solução.
Portanto, o que se observa é que de 11 conselheiros que representam a sociedade civil,
o conselho tem cerca de 2 votos que refletem uma discussão, que expressa a preocupação com
o bem comum, com a ação coletiva. Assim mesmo, apesar da visão crítica, um dos votos, o
dos técnicos, que representa um contraponto diante do posicionamento privatista dos demais.
As proposições apresentadas nas reuniões sempre são oriundas do governo, a partir da
Secretaria de Urbanismo e Mobilidade Social, cuja secretária é a presidente do conselho.
As principais proposições do ano de 2014 giraram em torno das seguintes pautas: “lei
de hotéis”6, tema cuja discussão se iniciou em 2013; plano ambiental; revisão do Plano
Diretor de Niterói (1992); e Plano Urbanístico de Pendotiba (PUR de Pendotiba).
Muitas questões que parecem ser acertadas, ou terem alcançado um consenso, são
mascaradas e, finalmente, o protagonismo dos atores estatais e seus interesses se sobrepõem,
sem a menor justificativa. Um dos entrevistados cunhou a forma com que os atores estatais se
comportam de “tergiversação com desfaçatez”.
Quando se trata dos interesses do governo é preciso observar que o COMPUR trata de
questões urbanas e a cidade de Niterói sofre há alguns anos com uma elevada especulação
                                                                                                                       
6
O projeto de lei 10/2014, oriundo da mensagem-executiva, cria a Lei de Estímulo ao Desenvolvimento da Infraestrutura de
Turismo. “Conhecida como Lei de Hotéis, a mensagem, segundo a Prefeitura, visa adequar a agenda de desenvolvimento
econômico do município e do estado ao potencial turístico e aos megaeventos como os jogos olímpicos e paraolímpicos de
2016. A mensagem contou com 15 votos favoráveis e três contrários e precisará retornar à pauta para uma nova votação. Os
vereadores ainda podem apresentar emendas ao projeto que serão analisadas e votadas durante a segunda votação”.
Disponível em: http://camaraniteroi.rj.gov.br/2014/04/22/camara-aprova-em-primeira-discussao-lei-dos-hoteis/. Acesso em:
30-jan-2015.

   
10  

imobiliária, que tem impactado na vida das pessoas diretamente, com muitas externalidades
negativas: problemas de mobilidade urbana, problemas de poluição, elevação da população,
inflação no preço dos imóveis, problemas relativos à saturação das redes de esgoto, água e
saneamento básico em geral, etc. Tudo isso ocorre com a conivência do Legislativo e do
Executivo.7
O grupo político no governo teve mais de 50% da receita de campanha bancada por
empresas do setor imobiliário (Norberto Odebretch, OAS, Andrade Gutierrez, etc.), que
atuam nos três níveis da federação. Esse fato, associado ao exposto a seguir, bem como ao que
essas empresas têm feito no cenário fluminense e nacional, levanta a questão da necessidade
da reforma política, no sentido de por fim ao financiamento empresarial de campanha eleitoral
para evitar a influência, com amparo legal, de empresas privadas, na agenda pública.
Nesse sentido, Scheffer e Bahia (2015) apontam que “[a]s eleições de 2014 acentuam
tendências que ainda não eram nítidas nos pleitos anteriores. O primeiro destaque é o aumento
exponencial do volume de doações – se comparado às eleições de 2002, 2006 e 2010”.
Segundo um dos conselheiros entrevistados, a maior dificuldade que encontram para
representar seus interesses está no:

projeto político de cidade, essa é a dificuldade. A prefeitura tem um projeto político


de cidade que é o oposto do que eu defendo. Enquanto eu acredito num projeto
político de inclusão social, que combata as desigualdades, a prefeitura tem uma ideia
de cidade que é uma cidade pensada a partir dos interesses do mercado imobiliário,
sendo ele de pequena escala ou de grande escala (Informação Verbal).

A atual gestão divulgou fartamente, nos jornais, com panfletos, na internet, nos
outdoors espalhados pela cidade, inclusive painéis eletrônicos, nos ônibus e nas contas de
água, a construção do Planejamento Estratégico para Niterói, cujo projeto recebeu o nome de
“Niterói Que Queremos”8.
Esse projeto tem por horizonte 20 anos e conforme divulgado na imprensa local, a
secretária de Planejamento, Modernização da Gestão e Controle afirma que é “um plano
totalmente elaborado através da iniciativa privada de Niterói” (O Fluminense, 19-set-2014).
Ela disse ainda que: “a partir do plano, Niterói terá uma gestão com metas e resultados”
(Idem).
Esse planejamento foi elaborado com o apoio técnico e metodológico da empresa
Macroplan Prospectivas, Estratégias & Gestão9, que já fez trabalhos dessa natureza em outras
cidades. Além disso, segundo palavras do próprio prefeito “[a]pós a divulgação será
necessário a captação de novos recursos para dar continuidade à estruturação dos projetos e
consequentemente a execução e obtenção dos resultados almejados” (Ibid.). Observa-se que
esse Planejamento Estratégico foi bancado por empresários.
O que se observa é que o município está sob uma gestão do tipo gerencial, com metas
e resultados, alinhado com o Movimento Brasil Competitivo, obtendo portanto um olhar
empresarial sobre a cidade. Apesar de ter se elegido pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o
que se verifica é que essa gestão está longe de ser uma gestão social, o que marcou os
primeiros governos municipais petistas, eleitos a partir da década de 1990.
                                                                                                                       
7
É sabido que questões demandadas pela sociedade civil no Judiciário, no intuito de frear o boom imobiliário, tiveram
decisão contrária à sociedade, sobretudo sob a alegação de que isso iria interferir na arrecadação do município. No entanto,
como o COMPUR não tem integrantes do Judiciário, preferiu-se por manter a afirmativa com foco apenas no Poder
Executivo e no Poder Legislativo, ali representados diretamente.
8
Disponível no sítio: http://www.niteroiquequeremos.com.br
9
Esta empresa se apresenta na internet - http://www.macroplan.com.br/ - como “[u]ma das mais experientes consultorias
brasileiras em cenários prospectivos, administração estratégica e gestão orientada para resultados”. Disponível em:
http://www.macroplan.com.br/Quemsomos.aspx. Acesso em: 20-jan-2015.
   
11  

Isso implica concessão aos interesses do mercado, na maioria das vezes em prejuízo
do interesse público e do bem estar da população, sobretudo a mais necessitada. É o que se
apresenta nos resultados que aqui estão sendo apresentados.
Quanto ao método utilizado de consulta à população, citado no sítio de promoção e
divulgação do “Niterói Que Queremos”, observam-se três etapas: entrevistas com
especialistas, congressos e pesquisa de opinião.
Conforme matéria do Bouças:

Como meio de estratégia, foram realizadas 40 entrevistas qualitativas no município,


a pesquisa web com mais de 5.500 pesquisas respondidas no site
niteroiquequeremos.com.br, o Congresso Regional que levou cerca de mil pessoas
ao Caio Martins e agora, já em fase final, o Concurso de Redação, Redação Ilustrada
e Desenho “Criando a Niterói do Amanhã”, que envolve os alunos do 1º ao 9º ano
do ensino fundamental municipal, através da pergunta “Que Niterói você quer?”
para saber os anseios da população e o que a cidade necessita no momento (O
Fluminense, 19-set-2014).

Esse processo tem sido divulgado como participativo, mas vê-se com facilidade que
não tem nada a ver com o conceito de participação social e cidadania, tratado nesse trabalho.
A etapa referente às entrevistas, envolve a ausculta de 40 especialistas, que têm seu
anonimato preservado.
Em relação ao que chamaram de consulta pública, feita na web, refere-se a um
formulário, a ser respondido pela internet, com perguntas dirigidas. No cenário de quase 500
mil habitantes, cerca de 5.550 habitantes teriam respondido.
É preciso observar ainda que o acesso à internet não é universalizado em Niterói; o
questionário, que dirige as respostas, é uma forma de evitar o diálogo direto com a população
e evitar o conflito, que naturalmente existe.
Com relação aos congressos, foram anunciados cinco congressos, um em cada região
administrativa, urbanística da cidade. Isso se resumiu a apenas um congresso, como citado
acima, no Estádio Caio Martins, que contou com um público ínfimo, pouco mais de 1 mil
pessoas.
Portanto, essa estratégia se mostra perigosa, porque pode estar embasada e carregada
de interesses obscuros. A população não participa, o que demonstra que a agenda pública é
determinada pelo mercado. O prefeito se reuniu com empresários, em Icaraí, bairro nobre da
cidade, que possui o IDH mais elevado da região metropolitana segundo o IBGE.
A repercussão que essa estratégia teve no COMPUR mostrou-se presente em cada
proposição apresentada pelo governo, como no Plano Diretor e no PUR de Pendotiba, por
exemplo. Os planos de desenvolvimento relativos a esses instrumentos urbanísticos trouxeram
essas etapas, de forma explícita, como legado do Planejamento Estratégico: consulta pública
digital, entrevista com especialistas e, no geral, audiências públicas ou seminários, para
atender ao quesito congresso.
Ademais as audiências públicas são obrigatórias no caso do Plano Diretor, no entanto,
no PUR de Pendotiba, a previsão apresentada ao COMPUR era de consulta pública e
entrevista com especialistas.
Ressalte-se a prática observada, relativa a atitude dos gestores de política urbana e
atores estatais que sempre que surgiam movimentos com potencial de conflito, como foi o
caso da AMAJA e da AME PENDOTIBA, reuniam-se com eles isoladamente, pedindo
sugestões. Uma forma de amenizar conflitos ou até mesmo de cooptar, a depender da
receptividade.
É aparente a falta de abertura do governo para a participação da sociedade, sobretudo
porque os interesses a que representam colidem com os da sociedade em geral.
   
12  

Assim, fica evidente o compromisso do governo, de sua agenda, com o mercado.


A respeito da participação social no PUR de Pendotiba, o presidente da AMAJA,
Associação de Moradores e Amigos de Jardim América, um bairro, da região de Pendotiba,
afirmou em seu relatório crítico a respeito do diagnóstico apresentado pela prefeitura para o
PUR de Pendotiba, o seguinte:

Pendotiba é uma Região grande com sub-regiões com características distintas tanto
do ponto de vista sócio-econômico, como da ocupação. Para que a participação seja
realmente popular deveria haver pelo menos um evento em cada sub-região, além de
questionários amplamente divulgados e distribuídos previamente.
A participação da população conforme citada também no artigo 8º, § 3º da Lei
2123/2004 – Plano Diretor de Niterói, foi reduzida a umas poucas reuniões mal
divulgadas e conduzidas, nas quais compareceram alguns representantes de
associações. É questionável inclusive o quanto esse reduzido grupo efetivamente
representa a população. Não foram feitas pesquisas mais amplas, com questionários
bem elaborados e objetivos. Tanto assim, que não há no diagnóstico resultados
tabulados de quaisquer pesquisas.
Entendemos que reunir representantes de associações para que as mesmas mostrem
numa planta quais são os problemas que conhecem, é apenas uma parte de um
trabalho sistemático para montar um diagnóstico (RIZZO, 2015, p. 49-50, sic).

Conforme um conselheiro entrevistado (AA3), “o PUR de Pendotiba [...], é


estimulado pelas empresas locais que saíram prejudicadas na OUC. Então, é um cala a boca
para as empresas locais. Quem vai construir com o PUR de Pendotiba? A ADEMI, as
empresas menores” (Informação Verbal10).
Em relação ao potencial de votos no conselho, assim considerando os interesses
envolvidos, o mercado apresenta pelo menos 66,67% dos votos, o equivalente a 12 votos.
Garantia de vitória nas deliberações.
Um fato muito discutido e que foi encaminhado ao Ministério Público, foi a
contratação da Fundação Getúlio Vargas - FGV Projetos para a assessoria técnica da
prefeitura na revisão do Plano Diretor. O debate foi pautado sob dois principais argumentos: a
falta de licitação e a contratação de uma empresa sem histórico ou tradição em questões de
planejamento urbano11.
A falta de licitação está sendo tratada via Ministério Público (MP), visto que os vários
questionamentos feitos no conselho tiveram respostas evasivas. Principalmente, depois que
recorreram ao MP, a resposta dos atores estatais é sempre a mesma: “estamos, através da
Procuradoria, respondendo às questões junto ao Ministério Público”12.
Essa é uma constatação da dificuldade de controle social, vistos a falta de
transparência e accountability. Isso porque, sendo um conselho com capacidade deliberativa,
o questionamento dentro desse espaço merece resposta motivada aos seus membros. Uma
resposta como essa denota que para os atores estatais a obrigação de responder passou a
existir a partir do momento em que o MP entrou em ação.
Ademais, é importante destacar que enquanto conselheiros, os representantes técnicos
atuam com visão crítica a respeito das proposições feitas pelo governo e com olhar maior ao
interesse público. Essa diferença em relação ao posicionamento dos demais conselheiros se
faz presente nas reuniões, na fala desses conselheiros, bem como na análise crítica que fazem

                                                                                                                       
10
Entrevista realizada em 25-jun-2015.
11
A respeito, ver a crítica feita por Jorge Martins (2015), em seu artigo “Desvio de Finalidade no Plano Urbanístico Regional
de Pendotiba”. Disponível em: <http://www.participa.br/lab-par.ufrj/blog/desvio-de-finalidade-no-plano-urbanistico-
regional-de-pendotiba-niteroi>. Acesso em: 20-fev-2015.
12
Anotações de campo.
   
13  

dos projetos apresentados pela prefeitura. Inclusive, são atores sociais que destacam e exigem
participação social nos debates, mesmo não sendo muitas vezes atendidos.
Destaca-se ainda que há uma certa reserva do poder público em relação aos trabalhos e
pesquisas desenvolvidos pela UFF, que tem tradição e experiência em política urbana. Essa
reserva parece existir por questões político-partidárias.
O fato é que o governo contratou sem licitação a FGV Projetos, para assessorar a
Prefeitura nos trabalhos de revisão do Plano Diretor de Niterói, um custo de cerca de R$ 1,9
milhão.13 O caso ainda não foi sanado junto ao MP.
No que tange ao COMPUR, verifica-se com clareza o que Losurdo (2004) apresenta
como característica da democracia representativa: o “entrelaçamento entre desemancipação e
emancipação”. Ou seja, o protagonismo dos atores estatais, representantes dos interesses do
mercado, não permitem que haja emancipação social, através desse espaço público. O que
resulta numa sobreposição da democracia representativa perante à participativa.

4 Considerações Finais

O que se verifica no COMPUR é que as proposições são exclusivas dos atores estatais,
que representam forte e nitidamente os interesses do mercado.
Não há paridade, visto que os interesses são distribuídos de forma a favorecer os
representados pelo Estado-mercado.
O poder de deliberação não se mostrou ativo, trata-se de um conselho consultivo, que
é utilizado pelo governo para “legitimar” ou legalizar suas ações.
Apresentam com nitidez características firmadas na literatura como: cooptação, troca
de favores, clientelismo, etc.
Os fatores de tensão e conflito existentes surgem a partir de poucos conselheiros, em
geral, integrantes do FOPUR, como os representantes técnicos do setor (IAB) e acadêmicos.
São fortalecidos pelos partidos de oposição. Além disso, através de associações e membros da
sociedade civil que participam por questões pontuais.
No entanto, o arranjo institucional, então existente, não colabora para que haja
resistência às iniciativas dos atores estatais. Visto que nas audiências públicas, por exemplo,
que o governo se ausenta, como ocorreu na audiência pública convocada pela oposição com o
apoio dos movimentos sociais.
Fora a força do Ministério Público, que é para onde convergem as demandas de
oposição ao governo, a sociedade se mostra um tanto quanto impotente quanto ao estado de
coisas que os atores estatais criam. O que traduz uma ideia de judicialização da política, haja
vista que esse mecanismo é sempre muito utilizado e os demais na maioria das vezes
mostram-se ineficazes no curto prazo.
A agenda de políticas públicas de Niterói, pelo exemplo setorial (política urbana), é
determinada pelo mercado.
A forma de conter conflito mostra o uso limitado do COMPUR, com o intuito de
manter o protagonismo dos interesses do capital. Isso viabiliza o monópolio de atores na
representação de interesses (empresários, empreiteiras, etc.).
O processo deliberativo no COMPUR não se sustenta, como na democracia
deliberativa habermasiana, pela deliberação dos indivíduos racionais via amplos fóruns de
debate e negociação.

                                                                                                                       
13
Mais detalhes sobre esse caso da contratação da FGV Projetos poder ser lido na matéria do jornal O Globo, Bairros, 08-
dez-2014. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/mp-investiga-contratacao-da-fgv-sem-licitacao-para-
realizacao-do-plano-diretor-de-niteroi-14755946. Acesso em: 16jul-2015.
   
14  

A Teoria do Agir Comunicativo, de Habermas, possui duas dimensões: a construção


do conceito de mundo social, adquirido reflexivamente; e a ação intersubjetiva, voltada para o
consenso comunicativo. No entanto, o falso consenso que se busca demonstrar no ambiente
do COMPUR mostra que não há um reflexão, uma construção do mundo social pela ação da
intersubjetividade.
A suposição de Habermas de que a argumentação é própria do mundo social, não se
verifica no causa em pauta. Isso põe por terra a ideia de legitimidade na política expressa pelo
autor, que estaria ligada ao processo de deliberação coletiva. Na prática, as decisões de
políticas públicas no COMPUR mostram-se ilegítimas, sob essa ótica.
Como demonstra Vitale (2006), a questão é a lógica do sistema e sua estrutura que se
superdesenvolvem, com o encolhimento do mundo da vida. Esse processo é o que Habermas
denomina de colonização do mundo da vida por imperativos sistêmicos, considerado pelo
autor como uma sociopatologia.
Na prática, o mundo da vida, composto por suas dimensões subjetivas, objetivas e
sociais, são o horizonte e de onde os cidadãos buscam o argumento para a ação intersubjetiva
no espaço público. Se o sistema se sobrepõe a essas dimensões - do sujeito, das suas
necessidades materiais, do trabalho e das suas relações enquanto ser social -, fica a economia
se sobrepondo à sociedade e à política. Enquanto aquela deveria ser uma forma de
aperfeiçoamento, complementar a estes.

Referências Bibliográficas

AVRITZER, Leonardo. Teoria Democrática e Deliberação Pública. São Paulo: Lua Nova,
n. 49, 2000. pp. 25-46. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n50/a03n50.pdf>. Acesso
em: 12jul2014.

FARIA, Cláudia Feres. Democracia Deliberativa: Habermas, Cohen e Bohman. São Paulo:
Lua Nova, n.49, 2000. pp. 47-68. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n50/a04n50.pdf.
Acesso em: 07jul2014.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo: sobre a crítica da razão


funcionalista. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. Vol. 2, 811p.

______. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
vol. II, 1997. pp. 92-98.

______.Três Modelos Normativos de Democracia. São Paulo: Lua Nova, n. 35, 1995.
Tradução: Gabriel Cohn e Álvaro de Vita. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ln/n36/a03n36.pdf. Acesso em: 30ago2014.

LOSURDO, Domenico. Democracia ou Bonapartismo. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ;


São Paulo: Editora da UNESP, 2004. 376 p.

MARX, Karl; e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre:


L&PM, 2014. 132p.

VERGARA, Sylvia C. Métodos de Pesquisa em Administração. São Paulo: Atlas, 2008.

   
15  

VITALE, Denise. Jürgen Habermas, Modernidade e Democracia Deliberativa. Salvador:


Caderno CRH, v. 19, n.48, set.-dez/2006. pp. 551-561. Disponível em:
http://www.cadernocrh.ufba.br/viewarticle.php?id=430. Acesso em: 07jul2014.

                                                                                                                       
1
A renovação do Conselho se dá durante a Conferência Municipal da Cidade, que ocorre a cada 2 anos, sendo permitida sua
recondução, a critério do estabelecido na regulamentação de sua representação (art. 7º do Regimento Interno COMPUR).
2
Entrevista a conselheiro.

   
A Administração de Recursos Humanos Como Conhecimento que Constitui
uma Consciência de Classe para o Capital

Deise Luiza da Silva Ferraz (UFMG)

Resumo
A tese discutida no texto ressalta o momento de especialização da força de trabalho como um
dos produtores de grandes obstáculos à constituição da consciência da classe trabalhadora em
si e para si, posto que, no processo educacional, o conteúdo sobre a materialidade do ser é a
universalização dos interesses de um grupo particular, mas não somente isso. Nesse momento,
ocorre, também, a produção da predominância da particularidade-individualidade sobre a
generidade, produzindo uma subjetividade individual para a classe trabalhadora que resiste à
necessária negação das contradições da relação capital-trabalho, consentido aos anseios da
valorização do valor como se houvesse uma captura dessa subjetividade pelos capitalistas,
porém o que temos é a produção dessa subjetividade sendo efetuada, em última instância, pelo
Estado Burguês, não negando, portanto, sua natureza. Para desenvolver essa tese, o texto
demonstrará que um determinado conhecimento científico 1) produz a universalização dos
interesses capitalistas particulares enquanto interesses da humanidade; 2) naturaliza a
(re)produção do ser social como um conjunto de relações de dependência entre sujeitos
mutuamente indiferentes; e, 3) ao ser majoritariamente produzido por meio de financiamentos
públicos, ratifica a natureza burguesa do Estado.

Palavras-Chave: Consciência de Classe, Educação, Ensino Universitário, Gestão de Pessoas

Introdução
A consciência de classe não pode ser compreendida sem a relação com a materialidade
do ser da classe. Considerando que, como Marx menciona em crítica à crítica que Proudhoun
faz a Bastiad, a "sociedade não consiste de indivíduos, mas expressa a soma de vínculos,
relações em que se encontram esses indivíduos uns com os outros" (MARX, 2011, p. 205),
acreditamos que as classes expressam as diferentes relações que os indivíduos estabelecem
uns com os outros a partir das diferentes condições concretas que se encontram no processo
de produção de valores. Relações que condicionam a constituição da consciência dessas
relações, pois "é claro que a efetiva riqueza espiritual do indivíduo depende inteiramente de
suas relações reais" (MARX, 2007, p. 41).
A existência material e a consciência dessa existência são membros de uma totalidade,
parafraseando Marx (2011, p. 53), "diferenças dentro de uma unidade" e que se efetuam em
duas instâncias reciprocamente determinadas: da particularidade-individualidade e da
generidade (LUKÁCS, 2010). Reside nessa complexidade relacional de não dualidades
excludentes a dificuldade de compreender a constituição da consciência de classe, sobretudo,
da classe trabalhadora, uma vez que essa, para ser uma consciência para si, necessita negar a
existência do ser que está sendo, rumo a produção do devir da emancipação da humanidade
(MESZÁROS, 2008).
Afirmar o desejo de um vir a ser é produzir no campo das ideias a materialidade futura
- produção que é condicionada pelas relações concretas de existência - negando o que se está
sendo; porém, outro ponto se apresenta à essa negação: a consciência do que se é, nos é
parcial. "A consciência é, naturalmente, antes de tudo a mera consciência do meio sensível
mais imediato e consciência do vínculo limitado com outras pessoas e coisas exteriores ao
indivíduo que se torna consciente [...]" (MARX e ENGELS, 2007, p. 35). De modo que, a
constituição da consciência da classe trabalhadora em si e para si necessita o rompimento do
cônscio parcial que temos sobre a concretude das relações sociais existentes. Tarefa que é
obstaculizada pela produção de um conhecimento que, usado ideologicamente, constitui a
consciência da classe trabalhadora como uma consciência para o capital, reproduzindo no
campo das ideias de cada indivíduo um devir respaldado no desejo de estabelecer ascensão
entre os estratos que compõem a classe trabalhadora (estrato decorrente das especialidades do
trabalho), mas ascensão que tem como limite concreto as relações que mantém os
trabalhadores como classe trabalhadora.
Lukács (2013) ao discutir a questão de ideologia ressalta que sua produção não tem
como pressuposto a produção de um conhecimento científico falso ou verdadeiro. A
falseabilidade do conhecimento científico está para uma discussão epistemológica, não menos
necessária do que a que faremos aqui, mas que será matéria de outras reflexões, pois envolve
a discussão tanto da forma como do conteúdo do saber científico, sobretudo nesse momento
em que há uma disputa pela legitimidade de ser ciência por duas grandes doutrinas: os
defensores da modernidade e os da pós-modernidade. O que importa, nesse texto, é atentar
para a legitimidade do conhecimento científico na sociedade em geral e na formação do
trabalhador em particular, sobretudo, na formação de terceiro grau, momento ímpar da
produção de uma força subjetiva do trabalho especializada, momento em que o processo
educacional (re)põe à subjetividade as possibilidades do vir a ser desejadas pelo capital,
momento em que se concretiza um dos momentos necessários a produção da mercadoria força
de trabalho que é, muitas vezes, desejada desde a infância em virtude dos anseios social.
Nossa tese central a ser discutida aqui ressalta esse momento de especialização da
força de trabalho como um dos produtores de grandes obstáculos à constituição da
consciência da classe trabalhadora em si e para si, posto que, no processo educacional, o
conteúdo sobre a materialidade do ser é a universalização dos interesses de um grupo
particular, mas não somente isso. Nesse momento, ocorre, também, a produção da
predominância da particularidade-individualidade sobre a generidade, produzindo uma
subjetividade individual para a classe trabalhadora que resiste à necessária negação das
contradições da relação capital-trabalho, consentido aos anseios da valorização do valor como
se houvesse uma captura dessa subjetividade pelos capitalistas, porém o que temos é a
produção dessa subjetividade sendo efetuada, em última instância, pelo Estado Burguês, não
negando, portanto, sua natureza. Para desenvolver essa tese, o texto demonstrará que um
determinado conhecimento científico 1) produz a universalização dos interesses capitalistas
particulares enquanto interesses da humanidade; 2) naturaliza a (re)produção do ser social
como um conjunto de relações de dependência entre sujeitos mutuamente indiferentes; e, 3)
ao ser majoritariamente produzido por meio de financiamentos públicos, ratifica a natureza
burguesa do Estado.
Para realizar as três demonstrações, elegemos a administração de recursos humanos
enquanto uma especialização do trabalho que demandou o desenvolvimento de uma área
especifica da ciência que pode ser denominada tanto como Administração de Recursos
Humanos, Gestão de Pessoas ou ainda Comportamento Organizacional. Muitas polêmicas há
entre as diferenças do que é produzido sob as distintas alcunhas, porém, o que nos interessa
aqui é que são profissionais da ciência que desenvolvem saber sobre as distintas formas de
controlar o fator subjetivo do trabalho no processo de trabalho, visando, sempre, em última
instância alavancar a valorização do valor. Tendo esse recorte, analisaremos como dois temas
debatidos na área são apresentados aos futuros trabalhadores durante o processo de formação,
são eles: avaliação de desempenho e gestão da diversidade e, por fim, levantaremos os
financiadores de tais estudos. Assim, esse textos está estruturado em quatro tópicos excluindo
esse. No próximo tópico, item 2, apresentaremos as análises sobre gestão da diversidade, no
tópico três, será abordada a questão da avaliação de desempenho. Na sequência, item 4,
abordaremos o tema do financiamento das pesquisas e a relação da produção e circulação do
saber financiado pelo Estado. Por fim, no item 5, apontaremos a possível relação da
Administração Política com um saber para além do capital, enquanto nossas considerações
finais.

2. O que os Manuais Ensinam aos Estudantes sobre Gestão da Diversidade?

O subtítulo traz uma pergunta, a primeira análise traz uma constatação irônica:
ensinam pouco. O tema da Gestão da Diversidade é quase inexistente nos manuais publicados
no Brasil. Irônico, pois o Brasil é apresentado mundialmente como o país da diversidade. Mas
um qualitativo de quantidade não nos diz sobre o que é ensinado. Para refletir um pouco sobre
o conteúdo, foi selecionado dois manuais de Administração produzido por editoras que
possuem amplo canal de distribuição - o que facilita a circulação das ideias por elas
publicadas - e que foram citados em uma survey que está sendo realizada junto à instituições
de ensino superior pelo Núcleo de Estudos Críticos sobre Gestão de Pessoas e Relações de
Trabalho da Universidade Federal de Minas Gerais. Um dos textos tem a autoria de Idalberto
Chiavenato. A escolha por esse autor se justifica por ser ele um dos mais utilizados na
formação de bacharéis e tecnólogos em Administração no país. Outro texto é de autoria de
dois estrangeiros, George Bohlander e Scott Snell. A escolha por autores de outra
nacionalidade, em especial, norte-americanos se deve à colonização do pensamento brasileiro,
que na área das ciências administrativa é hegemonicamente efetuada pelos anglo-saxões, fato
que é possível observar nos próprios textos de Chiavenato.
O primeiro ponto que salta aos olhos do analista é a escolha desses autores para a
relação estabelecida entre o tema Gestão da Diversidade e outros temas vinculados às ciências
administrativas. Para Chiavenato, Gestão da Diversidade tem relação com a Cultura
Organizacional, por sua vez, para Bohlander e Snell aquele tema se impõe devido à Lei de
Igualdade de Oportunidade de Emprego existente nos Estados Unidos da América e está
atrelado à administração de recursos humanos pelas atividades de Recrutamento, Seleção e
Progressão. A primeira abordagem demonstra a riqueza do diverso para o capital, a outra
destaca os aspectos legais que garantem a "igualdade de oportunidade" e as punições
decorrentes de seu não cumprimento, garantia necessária, diga-se de passagem, devido as
condições de desigualdades criadas ou recriadas pelo próprio movimento de instituição do
capital enquanto modo de controle metabólico da sociedade.
A constatação de que há conteúdos explícitos distintos demanda apresentar uma
análise separada de ambos, verificando o que dizem de diferente para demonstrarmos o que
essas diferenças escondem.

2.1 Gestão da Diversidade para o Desempenho Organizacional: a Versão Brasileira

Chiavenato é sucinto: a "Administração de Hoje" (nome dado ao subitem que trata de


vários temas, inclusive a Gestão da Diversidade) necessita "fazer as coisas politicamente
corretas para adequar a administração a uma força de trabalho multivariada e culturalmente
diversificada" (2010, p. 165), pois a "diversidade cultural pode melhorar o desempenho
organizacional" (2010, p. 166).
Ele explica que diversidade "significa o grau de diferenças humanas básicas em uma
determinada população. É a existência de uma variedade de pessoas de diferentes
características pessoais que constituem a força de trabalho" (2010, p. 164) e explica que essas
características podem ser de: raças, credos, religiões, classes sociais, idades, sexos,
capacidades físicas, costumes e culturas. Na sequência ele afirma que valorizar as
características pessoais no trabalho por meio de técnicas administrativas podem garantir:
1. Maior probabilidade de obter soluções originais, criativas e
inovadoras, tanto técnica como administrativamente. 2. Criação de
imagem de postura ética ao se declarar e lutar contra preconceitos e
discriminações internas e externas. 3. Maior probabilidade de obter
fidelidade e lealdade dos funcionários. 4. Maior probabilidade de os
funcionários estarem dispostos a se empenharem pela organização. 5.
Maior probabilidade de que os funcionários desenvolvam iniciativa,
autonomia e auto-responsabilidade. 6. Possibilidade de fomentar um
clima de trabalho capaz de estimular o crescimentos pessoal dos
funcionários (de forma que se sintam dignos e contribuintes da
sociedade). 7. Contribuição decisiva para que a organização atue
como um agente de transformação genuinamente social.

Para dar legitimidade aos seus argumentos Chiavenato apresenta os seis argumentos
elaborados por Cox em defesa de uma gestão da Diversidade, a saber: custo, aquisição de
recursos, marketing, criatividade, solução de problemas, flexibilidade de sistema. Reforçando,
junto aos estudantes, que o saber desenvolvido no Brasil guarda veracidade científica porque
confirma o que os americanos já mencionaram. Não consideramos que as especificidades dos
dois países resultariam em diferentes resultados, porque o que interessa aos autores em
questão não é a diversidade em si, mas os resultados que controlá-la traz ao capital, como esse
não possui nacionalidade e não é limitado por fronteiras geopolíticas, o resultado não poderia
ser muito distinto. O recurso discursivo utilizado por todo o livro de legitimar o argumento do
autor brasileiro com as ideias de estrangeiros saxões nos revela que seguimos ofertando aos
estudantes brasileiro uma objetividade que coloca o jeito americano de ser enquanto o
parâmetro correto de estar no mundo e, se assim se faz lá, assim é que deve ser feito. Não
surpreende, portanto, quando ouvimos os estudantes falando: "mas nos Estados Unidos..."
Após elencar os benefícios trazidos pela Gestão da Diversidade em qualquer país,
Chiavenato informa que a diversidade está para o realce das diferenças individuais assim
como o multiculturalismo está para a diferença entre culturas. E exemplifica com o caso da
Matsushita Electric Company que oferece alimentação chinesa, malásia e hindu em seu
refeitório na fábrica instalada na Malásia, respeitando os hábitos alimentares e religiosos dos
diferentes povos que coabitam a região.
Sobre o multiculturalismo, o autor afirma que ele está se tornando uma premissa
básica da moderna sociedade e que, quase sempre, o termo se refere a: fatores culturais como
"etnias, raça, sexo, faixa etária, credo religioso e hábitos diferentes". Em suma, para o autor, a
presença da multiculturalidade nas organizações é a característica do próximo milênio que foi
trazida para as organizações por uma força de trabalho cuja a natureza vem mudando em
grandes proporções. E por isso a diversidade cultural se torna um elemento a ser
administrado.
A diferença cultural se torna um elemento a ser administrado por que é trazida para as
organizações ou a expansão do capital e sua necessidade de aumentar as taxas de lucro
fizeram com que as relações de assalariamento e propriedade privada se alastrassem pelas
diferentes partes do globo incorporando em seu modo de controlar o processo de trabalho
diferentes aspectos culturais quando necessários (e aniquilando-os quando possível)?
É interessante como o multiculturalismo é tratado como um anseio dos "povos" em se
consolidar como força de trabalho assalariada sob o julgo do capital. Ou ainda, mesmo que na
aparência do fenômeno esse pode ser um anseio dos "povos", como relato o filme The
Corporation, é interessante como a situação concreta que faz com que o ser humano deseje
vender sua capacidade de trabalho é totalmente desconsiderado pelo autor. A situação de
pobreza em que vive grande parte da população dos países para onde o capital se expande não
é tratada sobre a perspectiva de que esses países estão em condições desiguais de produção de
riquezas, pois, e para elencar apenas um dos determinantes que os colocaram nessas
condições, suas fontes naturais e humanas foram consumidas em um processo perverso de
colonização justamente em nome do Desenvolvimento (vide o caso da própria Malásia,
colônia britânica).
Desconsiderar as condições concretas que produziram as desigualdades não é
privilégio da abordagem da multiculturalidade apresentada pelo autor, mas também para o da
diversidade. Assim, para Chiavenato, branco/negro; homem/mulher, etc. é a manifestação de
diferentes características pessoais. Nada nos diz Chiavenato sobre a questão de supremacia de
determinada característica sobre as outras. Nada diz aos estudantes sobre a opressão que um
grupo de pessoas vivencia cotidianamente em virtude de possuir determinadas características.
A diferença configura-se apenas como diferença, como não idêntico, jamais como
desigualdade.
O livro desse autor ensina aos futuros gestores que Gestão da Diversidade é conseguir
o máximo de comprometimento da força de trabalho ainda que os proprietários dessa
mercadoria não seja imediatamente idênticos. E sobre esse ponto cabe-nos duas ponderações:
1) a distinção entre pessoa e força de trabalho e 2) a diferença entre trabalho concreto e
trabalho abstrato. Vale lembrar que a substância do valor é o trabalho abstrato, por este ser a
expressão de equivalência entre os múltiplos trabalhos concretos, transmutando o último, sem
o suprimir, em um uso indiferenciado das capacidades humanas. Ao capital interessa o valor
de uso da força de trabalho e essa mercadoria deve possuir determinadas
características/qualidades que correspondam às necessidades do processo de valorização num
determinando período do desenvolvimento das forças produtivas. Logo, sob o ponto de vista
da valorização do valor o que importa são as características da força de trabalho não da pessoa
que a vende. Em resumo, não faz diferença alguma ao capital se a força de trabalho está sendo
vendida por homens, por mulheres, negros, brancos, homossexuais, heterossexuais, desde que
essas pessoas estejam colocando a venda um produto que tenha valor de uso para o
comprador, uma mercadoria que opere dentro das qualidades exigidas pelo trabalho abstrato
em seu correspondente momento do desenvolvimento das forças produtivas. 2) Porém, tais
diferenças, consideradas sobre o prisma da desigualdade, perspectiva não trabalhada por
Chiavenato, faz diferença ao processo de valorização do valor, pois, o trabalhador enquanto
proprietário de capacidades que correspondem ao trabalho abstrato demandado no processo de
valorização, mas também constituído por qualidades que o coloca em condição de subjulgo
social está propenso a aceitar condições de trabalho e até salários menores do que aquele
trabalhador que enquadra-se na dita "normalidade" (considerações sobre normalidade serão
realizadas a posteriori). Aceitação que pode ser ainda subjetivada pelo indivíduo enquanto
"oportunidade" que, "dada" uma vez, deve ter seu merecimento eternamente comprovado, por
meio da - e fazendo uso das palavras de Chiavenato - "fidelidade", da "lealdade", de maior
disposição a "se empenharem pela organização" etc. Portanto, a diversidade, mas agora não
mais entendida como "não identidade" mas sim como desigualdade resultante de condições
materiais históricas distintas, alavanca também o processo de rebaixamento do valor da força
de trabalho, seja por meio de uma competição estabelecidas sobre condições culturais
desiguais cujas raízes se encontram nas condições históricas de reprodução da vida já
desiguais - um exemplo que evidencia essa constatação é apontado por estudos que
demonstram que as mulheres, embora com maior formação educacional recebe menos do que
o homem e, que se essa mulher for negra, seu salário é inferior a da mulher branca -, seja por
aumentar a intensidade e a produtividade do trabalho.
Aumentar a intensidade e a produtividade do trabalho, ou em termos administrativos,
colaborar para efetivar o desenvolvimento organizacional - vulgo desempenho da organização
- é o objetivo da Gestão da Diversidade, quiçá seja por isso que Chiavenato menciona que ela
permite a "Criação de imagem de postura ética". Imagem porque não é objetivo da Gestão da
Diversidade problematizar a opressão existente na sociedade, mas fazer com que as diferentes
características que, na aparência do fenômeno, são justificações para tal opressão, sejam
toleradas em nome do uso da força de trabalho no processo de valorização.
Tolerância que é sustentada pela lógica da meritocracia. Quando ao oprimido é
oportunizada a condição concreta de concorrer com o opressor, o primeiro tem que atender de
forma mais "competente" as exigências do capital, pois somente assim, comprova ser
merecedor do seu "novo lugar" e obstaculiza o desenvolvimento de argumentos que
sustentariam a discriminação reversa, o grande risco da Gestão da Diversidade quando essa é
relacionada a Proteção.

2.2 A Gestão da Diversidade para a Proteção


Bohlander e Snell (2014, p. 119) apresentam a Gestão da Diversidade ou
"Administrando a Diversidade" como sinônimo de Ação Afirmativa. Em resumo, eles
colocam que:

A ação afirmativa vai além de proporcionar igualdade de


oportunidades de emprego para os funcionários. Ela requer que as
companhias se tornem proativas e corrijam áreas em que
anteriormente cometeram discriminação. Isso pode ser atendido
contratando membros de classes protegidas para funções nas quais sua
representação é mínima. O objetivo da companhia é ter uma força de
trabalho interna que seja equilibrada e representativa do mercado de
trabalho relevante para a companhia.

Para os autores, as companhias necessitam ser proativas porque a ação afirmativa é um


"assunto emocional e controverso" (2014, p. 117) que pode gerar "umas discriminação reversa
contra outros funcionários" que não pertencem aos "grupos protegidos". Para discutir o que
são os grupo protegidos, os autores respaldam-se na legislação referente à Equal Employment
Opoortunity (EEO) que tratam elementos como: raça, cor, religião, sexo, nacionalidade,
incapacidades físicas ou mentais, idades. A partir de um levantamento histórico das leis de
EEO e de algumas decisões judiciais de última instância acerca da discriminação no momento
da admissão (para o emprego ou para o ensino superior), os autores concluem realizando a
seguinte reflexão:

O futuro da ação afirmativa pode não estar nos programas voluntários


nem nas decisões judiciais, mas sim nas atitudes gerenciais que
valorizem a diversidade na força de trabalho. Os gerentes que aderem
ao quadro de pessoal diversificado reconhecem as diferenças e
contribuições que podem ser feitas por pessoas com habilidades
variadas. As organizações que consideram a diversidade a partir de
uma perspectiva prática e orientada à negócios (em vez de uma
exigência de ação afirmativa, ordenada por um tribunal) irão empregar
e promover membros das classes protegidas como um meio para
desenvolver vantagem competitiva. Considerando dessa maneira, uma
maior diversidade da força de trabalho aumentará significativamente o
desempenho da organização ao se conhecer vários mercados de
trabalho e soluções criativas para os problemas. (BOHLANDER e
SNELL, 2014, p. 118)
Interessante observar que no livro estrangeiro a gestão da Diversidade é uma das
respostas da Administração à imposição de uma Lei que pode trazer prejuízos ao processo de
valorização se não for conduzida corretamente, e para isso, os autores apresentam uma série
de técnicas que permite a empresa atender as exigências legais para não incorrendo no
recebimento de multas. Não nos interessa tais técnicas aqui, pois são apenas o desdobramento
necessário à efetivação da essência da Gestão da Diversidade, aproveitar a força de trabalho
para aumentar "significativamente o desempenho da organização", conforme já discutido.
Porém, diferente de Chiavenato, Bohlander e Snell entendem a diferença como desigualdade,
ainda que não destaquem essa discussão enquanto a necessária superação das opressões
sustentadas por elas. Pelo contrário, os autores não conseguem imaginar relações sociais
livres de opressão - o que colabora para a naturalização dessas relações -, pois destacam que
se não houver a comprovação de que os membros das "classes protegidas" mereceram a
oportunidade conquistada, a presença deles no mesmo ambiente de trabalho pode gerar a
discriminação reversa, quando então os indivíduos das "classes não protegidas" sentir-se-iam
discriminados, por serem preteridos. Com essas argumentações, além de naturalizarem a
opressão, os autores ainda transferem para os conflitos intrapessoais à impossibilidade do
capitalismo de ter condições de emprego para todos e todas. Como também obstaculizam a
constituição de uma identidade de classe, separando a classe trabalhadora em dois grandes
grupos que denominam classe: os protegidos e os não protegidos. Resta saber, protegidos de
quem ou de quê? Ou seriam protegidos para proteger a algo?
Percebemos que as argumentações dos autores não obstaculizam apenas a constituição
da identidade de classe, mas também a identidade de sujeitos históricos, tendo em vista que as
leis que definem os diferentes como pertencentes à grupos protegidos são resultados de lutas
sociais. São vitórias de trabalhadores negros e negras, das trabalhadoras, etc., que são
contadas aos futuros gestores apenas como medidas protecionistas, que ao impor o
preterimento de um grupo na competição por oportunidades pode ocasionar um clima
conflituoso de trabalho que prejudicaria o desenvolvimento organizacional. E, assim, cabe ao
gerente efetivar a gestão da diversidade em uma "perspectiva prática e orientada à negócios".
Em suma, gerir a diversidade é uma necessidade do capital vinculada ao processo de
intensificação da exploração do trabalhador, seja daquele dito diferente, seja daquele tomado
como padrão que estabelece a diferença. Necessidade que não envolve, por exemplo,
problematizar o padrão de normalidade, antes pelo contrário, importante mantê-lo pelo menos
enquanto os "não normais" seguirem acreditando no doce conto meritocrático.
Nesse debate, como vimos, diferente é todo aquele/a que não se enquadra no padrão
"homem-branco-hetero-cristão" e, por experimentar a vida de forma distinta, traz para o
ambiente do trabalho múltipas perspectivas de abordagem permitindo que "Programas bem-
sucedidos de diversidade" desenvolvam "a tecnologia humana para engajar de modo
construtivo maneiras radicalmente diferentes de pensar e agir. Esse processo resulta na
criação de um novo contexto que abraça as diferenças e supera o atual ciclo de 'conflito e
inclusão'" (OLIVEIRA e RODRIGUES, 2004, p. 3840). Abraçar a diferença em uma
sociedade que ela seja apenas a constatação da não identidade imediata das singularidades
individuais, seria o melhor dos mundos, porém como já discutido, a diferença sob o
sociometabolismo do capital (re)produz as desigualdades históricas assim abraçar a diferença
não significa desnaturalizar normalidade e não-normalidade de ser um ser em sociedade,
tampouco rechaça as discriminações decorrentes da diferença, quiçá significaria altera as
condições concretas que produzem os diferentes como sujeitos que não são igualmente
humanos. Pelo contrário, a palavra central na gestão da diversidade é "tolerância". Tolerar é
permitir que o outro divida o mesmo espaço, não necessariamente como os mesmos direitos e
as mesmas oportunidades, pois esses direitos e oportunidades pouco tem haver com as
qualidades da força de trabalho demandas no processo de valorização. Assim, tolerar é
suficiente para os interesses do capital, pois dividir os mesmos espaços permite efetivar a
cooperação no processo de trabalho. Cooperação que pode inclusive ser potencializada
quando a diferença, ao não ser refutada enquanto base para a desigualdade, faz com que
aquele tratado como diferente dedique-se cada vez mais as suas tarefas com o objetivo de
mostrar-se merecedor do lugar que ocupa um "sujeito normal" - modo de evitar a
discriminação reversa.
Enfim, a luta dos oprimidos, que historicamente conquistou políticas afirmativas,
passa agora a ser balizada pela ideologia meritocrática (ALVES e GALEÃO, 2004). E na
formação do jovem administrador de recursos humanos constitui-se uma subjetividade que
não concebe a diferença enquanto uma desigualdade decorrente de condições históricas e da
imposição de um modelo de normalidade que se gestou na luta pela manutenção do poder de
um determinado grupo social. A diferença, na constituição da subjetividade desses gestores, é
apresentada como uma característica que deve ser suprimida pelo esforço individual,
superação resultante da capacidade do "não-normal" de atingir os mesmos, quiçá melhores,
resultados que os "normais". Não havendo essa superação individual, perpetua-se a ideia de
que é normal a diferença ser anormalidade social. E, por essa razão, o processo de avaliação
de desempenho torna-se imprescindível à gestão capitalista. Para ratificar o cônscio sobre o
tema, as técnicas de avaliação de desempenho são ensinadas enquanto mecanismo que
garantem a isonomia interna, eliminando o conflito gerado pela sensação de injustiça nos
processos de "recompensa" pelo trabalho - como se fosse possível eliminar as injustiças sob o
capital.

3. Avaliação de Desempenho

A avaliação de desempenho é sagrada. Pelo menos é isso que deseja ensinar aos
futuros gestores Marras, Lima e Tosse (2012)i. Para falar sobre essa atividade de controle do
valor de uso da força de trabalho, os autores recorrem à citações bíblicas, tornando o ato algo
constitutivo da natureza humana por desejo do divino, do absoluto. Vê-se de pronto a
incompreensão do desenvolvimento histórico das categorias. Ou será que os autores entendem
que os capitalistas são deuses que sabem o que é melhor para cada um dos membros de seu
rebanho conforme o grau de obediência?
Não iremos discutir a pertinência do uso bíblico, até porque a própria veracidade das
interpretação dos textos considerados sagrados é alvo de disputas pelas inúmeras religiões.
Importa frisar apenas o processo de naturalização do ato de avaliar o quanto o trabalhador
entrega da mercadoria vendida, o quanto a potência torna-se ato. Ao que se não atingir as
metas impostas pelos "objetivos organizacionais" pode ser avaliado como um atentado contra
o "irmão" capitalista. Nessa perspectiva, em algo os autores estão sendo precisos, não ter um
alto desempenho no trabalho é atentar contra o processo de valorização, prática, portanto, que
o capitalista deseja eliminar.
Em um salto que tem como base impulsionadora os escritos dos primeiros anos da era
cristã (Evangelho de Mateus), respaldado pelo exemplo de Inácio de Loyola, chega-se a idade
moderna industrial do século XIX, quando então, o governo dos Estados Unidos da América,
em 1842, racionalizou a vontade divina implantando um sistema de relatórios anuais de
avaliação. Quase dois séculos depois temos, assim, várias "conceituações" sobre Avaliação de
Desempenho ou Gestão do Desempenho, das quais os autores escolheram duas, e que
tomaremos aqui como base de discussão, a saber:

Vários autores procuraram conceituar a avaliação de desempenho, e é


assim que Latam e Wexley (1994, apud Hipólito, 2002, p. 73)
conceituam esse processo como o "sistema que tem por objetivo a
melhoria global do desempenho e da produtividade das pessoas ao
longo do tempo". (Marras, Lima & Tose, 2012, p. 5)
Lopes (2009, p. 3) conceitua a Gestão de Desempenho como "um
processo contínuo de negociação, acompanhamento e renegociação de
metas individuais e grupais, com foco nos resultados organizacionais e
que gera subsídios para recompensar desempenhos superiores". Essa
conceituação é realmente muito interessante e desejável, mas caba por
ser abrangente demais, não correspondendo à gestão de desempenho
da maioria das organizações, cujo foco, por exemplo, pode ou não
estar associado ao sistema de remuneração. (Marras, Lima & Tose,
2012, p. 6)

Nos parece que, embora expresso de diferentes formas, existe um conceito do que é
avaliação de desempenho: um processo que qualifica, quantitativa e/ou qualitativamente, a
intensidade do uso das forças físicas e mentais do trabalhador, sua capacidade de trabalho.
Vale lembrar que o comprador da força de trabalho pagou pelo trabalho social objetivado em
troca de trabalho vivo a objetivar (MARX, 2001). Logo, para o comprador, a intensidade com
que a potencialidade do trabalho é objetivada é um elemento determinante no processo de
valorização, ainda que essa intensidade seja tratada nos livros de Recursos Humanos apenas
como a possibilidade do trabalhador realizar "o melhor de suas habilidades" (BOHLANDER
e SNELL, 2014, p. 298).
Realizar o melhor de suas habilidades não significa, para o trabalhador, alterações
salariais, como lembra Marras, Lima e Tose (2012). Ironicamente poderíamos sustentar que as
"organizações" não associam a avaliação do desempenho ao sistema de remuneração porque
não se recompensa por "não pecar". Entretanto, não é a linha argumentativa que usaremos.
Não há necessidade direta de relacionar a avaliação de desempenho com a remuneração
porque a primeira está para o valor de uso e a segunda para o valor de troca da força de
trabalho. A falácia do atrelamento reside na necessidade de "motivar para o trabalho" (afinal,
há trabalhadores do tipo X e do tipo Y, há trabalhadores que resistem, por meio de diferentes
mecanismos, a exploração), de fazer o trabalhador exaurir suas forças físicas e mentais em um
processo de trabalho no qual está alienado, ou seja, o tema da motivação apresentado pelos
autores dos livros de Recursos Humanos aos futuros gestores necessita ser discutido à luz da
categoria alienação e não da categoria valor de troca. Portanto, não é equívoco administrativo
a inexistência da relação entre avaliação de desempenho e remuneração. Seria ingenuidade
administrativa (dos teóricos da administração) objetivar esse atrelamento. Por outro lado, seria
equívoco não relacionar o desempenho com a progressão na carreira, pois essa está
diretamente relacionada ao nível de competição entre os trabalhadores, competição que tem
como parâmetro justamente a intensidade do uso da força de trabalho ou, como os teóricos
dos Recursos Humanos mencionam, da entrega que o trabalhador faz à empresa de sua
competência. Entrega que só pode ser feita de modo individual, afinal, cada trabalhador é
único e agrega "valor econômico à organização" a medida em que mobiliza, integra, transferi
conhecimentos, recursos, habilidades... É por isso que, embora as "competências" individuais
sejam determinadas pelas denominadas competências organizacionais, setoriais, grupais; o
ente que deve ser avaliado é o indivíduo trabalhador. (MARRAS, LIMA e TOSE, 2012). Em
face de uma possível dificuldade cognitiva do estudante e futuro gestor, os autores optam
apresentar o desenho desenvolvido por Marras (2011), no qual ele demonstra o lugar do
trabalhador num processo de avaliação, no caso, submetido à técnica conhecida como
"avaliação por múltiplas fontes", a saber:
Figura 1: O Indivíduo com Centro da Avaliação de Desempenho

Fonte: Marras, 2011, apud, Marras, Lima e Tose, 2012, p. 37

Diante desse complexo sistema de avaliação, desenhado por Marras (2011), onde
todas as setas apontam para você, inclusive a sua (auto-avaliação), como seria possível que as
relações concretas existentes no ambiente de trabalho não constituíssem uma subjetividade
propensa a declarar: "culpa, mea culpa, mea maxima culpa"?
A avaliação de desempenho é um processo que verifica o quanto a mercadoria força de
trabalho está sendo utilizada, trata-se de verificar para aprimorar o consumo do valor de uso.
Embora a literatura administrativa exalte o trabalho em equipe, a aprendizagem coletiva, etc.
a avaliação é, em última instância, individual. Reconhece-se que os trabalhos são
interdependentes, porém foca-se no fato de que o trabalho de cada um é indiferente às
relações estabelecidas no trabalho com outros sujeitos. Na prática, não há sujeitos no processo
de avaliação, tão somente força de trabalho sendo avaliada. No entanto, o que o jovem
administrador aprende é que a avaliação de desempenho promove o crescimento pessoal e
profissional (LIMONGI-FRANÇA, 2012) - pessoal? - desde que se alcance os "objetivos
organizacionais". Ainda que acreditando nessa assertiva, não deveria parecer suspeito o
desenvolvimento pessoal ser determinado por objetivos externo à pessoa? Para evitar a
desconfiança daquela desejada verdade, ensina-se que os objetivos são da coletividade,
alcançá-los é responsabilidade daquele que tem capacidades singulares para abraçar tamanha
tarefa. Afinal, como frisa Chiavenato (2010, p. 165) a organização é um agente de
"transformação genuinamente social". Assim, o conhecimento produzido por cientistas
administrativos e ensinados pelos docentes constituem o conteúdo de uma subjetividade
característica ao gestor de recursos humanos que percebe a si, aos outros e as relações sociais
estabelecidas no e pelo capital como a normalidade de ser do ser social. Uma normalidade que
não é experimentada como sendo comum, mas extraordinária, por ser resultado única e
exclusivamente do mérito de ter atendido aos interesses de uma classe particular que se
apresenta como universal, ainda que valendo-se da figura do divino. E quando tal
subjetividade é assim produzida, parece-nos evidente - portanto, dispensa estudos científicos -
o resultado de pesquisas que constataram "que as empresas com programas de diversidade
cultural tiveram melhor performance do que aquelas que não os possuíam, comprovando que
ao valorizar a Gestão da Diversidade as organizações conseguem utilizar melhor os recursos
internos de que dispõem, incentivando a inovação e melhorando a produtividade"
(OLIVEIRA e RODRIGUES, 2004, p. 3840); afinal, aumentar a exploração do trabalho (com
ou sem diversidade) é o que o trabalhador-gestor de recursos humanos acredita ser o seu
maior mérito.
Percebemos assim que as pesquisas desenvolvidas nas áreas de Recursos Humanos e
Comportamento Organizacional são as mediações necessárias ao capital para sustentar as
relações recíprocas entre a produção de uma determinada subjetividade e o uso da força
subjetiva do trabalho no processo de valorização, sobretudo porque, tal subjetividade, ao ser
requerida no processo de trabalho, irá ao/de encontro das contradições concretas e que lhes
foram sonegadas enquanto se especializavam. Ou, para usar termos comuns àqueles
pesquisadores, o ciclo (vicioso) entre capacitação técnica universitária e uso da força de
trabalho se retroalimentam para satisfazer os objetivos do capital. Satisfação garantida ainda
pela disponibilidade do fundo público.
A gestão do fundo público, como mencionado na introdução, reafirma a natureza do
estado capitalista. De modo algum queremos reduzir o entendimento do Estado a mero
instrumento de reprodução político-ideológica da classe burguesa. Essa acepção, pertencente
a uma clássica abordagem marxista, não compartilhamos. Entendemos que o processo de
valorização do valor necessitou, para instituir-se concretamente, gestar inúmeras mediações
das quais não pode prescindir, incluindo o Estado. As mediações assumem características
próprias as necessidades históricas do capital, inclusive, constituindo-se enquanto esfera
externa ao processo de (re)produção do valor e com lógica própria, mas não sem
condicionamentos - reciprocidades dialéticas - para sua operacionalização segundo
necessidades do capital. No debate aqui efetuado, cabe frisar os mecanismos internos de
financiamento daquele "ciclo vicioso": produção da subjetividade do trabalhador-gestor
adequado às necessidades do capital a fim de aperfeiçoar o uso da força de trabalho.

4. Fundo Público: Sucintas considerações sobre patrocínio de pesquisas e incentivos ao


setor livreiro

O Estado gerencia parte da distribuição do mais valor por intermédio do fundo


público, eis aí o Estado enquanto uma instância mediadora do processo de valorização. Por
isso, já defendemos em outros textos que a luta de classes passa também pela luta em torno do
fundo público (FERRAZ e MENNA-BARRETO, 2012; FERRAZ, 2015), seu tamanho, sua
utilização. Quando observamos esses quesitos percebemos que tanto a utilização como
também o montante podem - e são assim geridos - beneficiar os investidores privados. Quanto
ao tema aqui abordado, esses benefícios ocorrem seja por meio das isenções de impostos,
mecanismo que coloca um grupo de capitalista em condições de privilégio no processo de
apropriação do mais valor, seja por meio da aplicação do fundo no desenvolvimento de
pesquisas que atendam as necessidades do capital, tais como as apresentadas anteriormente.
O artigo 150, inciso VI, letra “d”, da Constituição Federal brasileira legisla sobre a
imunidade tributária especial destinada aos produtores de livros, jornais, revistas e periódicos,
como também para o papel adquirido para a impressão dessas mercadorias. Essas empresas
estão livres do pagamento de Impostos de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e
Imposto sobre Produtos Industrializado (IPI). Como explica Marx, o mais valor pode ser
dividido em vários cotas partes, conforme contexto histórico. Isentar um grupo econômico do
repasse de parte do mais valor aos cofres públicos está mais para assegurar o lucro para tal
grupo, do que para tornar a mercadoria vendida por esse grupo "mais acessível", como
mencionam os economistas e defensores da redução dos impostos no país. Não
desconsideramos que o elemento determinante para a imunidade é a forma livros, revistas,
etc., e não o conteúdo que a forma comporta. Assim, qualquer empresa produtora das
mercadorias listadas no artigo 150 estariam imunes a esses impostos, porém aos capitalistas
interessa circular suas ideias e não ideias que propunham a necessidade da superação das
classes, por exemplo. Assim, há também uma gerencia estatal sobre as ideias que serão
produzidas e que circularam livremente pelo mundo das mercadorias, pois falta aos
trabalhadores um elemento para que possam usufruir da imunidade garantida por lei e fazer
circular "livremente" suas ideias - justamente o elemento que os determinada como
trabalhadores: capital para investir na produção de seus próprios manuais. Apenas outra forma
de relatar que os proprietários dos meios de produção da existência material são também os
proprietários dos meios de produção da ideias (MARX e ENGELS, 2007).
As ideias que podem ser produzidas e a própria condição de sua produção também é
majoritariamente determinada pela distribuição do fundo público por meio de editais dos
órgãos nacionais e estaduais de fomento. Concretamente, temos que, por exemplo, mais de
80% das pesquisas desenvolvidas no Brasil sobre Diversidade no âmbito da Administração
são oriundas de trabalhos financiados por órgãos de fomento e, quase a totalidade delas tem
alguma ligação com financiamento estatal decorrente dos salários pagos aos autores que, via
de regra, são professores de universidade federais e estaduaisii. Considerando apenas esse
elemento, é possível afirmar que a força de trabalho da especialidade pesquisador está sendo
remunerada pelo trabalhador para desenvolver conhecimentos e técnicas para controlar e
aumentar a exploração da força subjetiva do trabalho no processo de trabalho.
Como mencionado anteriormente, o Estado possui sua lógica própria e para mediar os
interesses do capital, mantendo a aparência de universalidade, necessita, por vezes, garantir
também a expressão das ideias dos trabalhadores, sobretudo em uma época histórica em que a
democracia parece ser a panaceia para todos os males e, no movimento contraditório, também
no mundo das ideias, o próprio capital produz os meios para sua negação, ainda que de forma
fragmentada e marginal. Caso não fosse assim, esse próprio trabalho poderia não ser
elaborado, pois conta com o verbas do fundo público. Porém o irônico é que a crítica ao
capitalismo, se apropriada pelo capitalismo em sua parcialidade, pode potencializar o próprio
desenvolvimento das forças produtivas, mas desenvolver essa afirmação nos demandaria
entrar em outra seara.

5 Considerações Finais: Tarefas da Administração Política

Conforme mencionado na introdução do texto a tese que procuramos defender é que o


processo educacional do ensino superior é um momento ímpar da especialização da força de
trabalho, um momento em que se consolida a produção de uma subjetividade que corresponda
à necessidade histórica do processo de valorização no que tange a força subjetiva do trabalho.
E, nessa produção, os elementos que constituem o conjunto de ideais ensinadas constituem-se
como um obstáculo à constituição da consciência de classe em si e para si. O elemento que
sintetiza esse processo, como já mencionado por Tragtenberg (2005), porém, hodiernamente
de modo bem mais sofisticado, é o que podemos chamar de psicologização do social. Essa
psicologização não ocorre por acreditar que as ciências psicológicas explicam as relações
sociais de forma mais verossímil, mas porque essa é a mediação, com legitimidade científica,
necessária a produção da predominância da particularidade-individualidade sobre a
generalidade. Portanto, não se trata da mera psicologização dos problemas sociais, pois uma
forma de controle do metabolismo da sociedade que necessita da produção constante de
sujeitos reciprocamente dependentes e mutuamente indiferentes não poderia tratará os
problemas decorrentes dessas relações de outra forma, se não pela esfera da individualização
psíquica. Como demonstramos nas análises dos dois temas discutidos, esse modo de
individualização está no argumento central: a superação das diferenças é oportunizada por
uma gestão da diversidade que conduza o "diferente" a entregar os mesmos resultados que os
"não-diferentes", tornando-se assim uma força de trabalho indiferenciada, o que de fato já era
enquanto pressuposto para se fazer mercadoria, demonstrando, portanto, que a Gestão da
Diversidade não se preocupa nem com os padrões de normalidade nem com as condições
concretas que constituiriam as desigualdades, mas com a exploração dessa força de trabalho
indiferenciada, tanto que a mensuração do uso dessa força é colocada para todos,
independente de ser ou não "diferente". E, quando passamos para o tema de Avaliação de
Desempenho, não restam dúvidas que o indivíduo é o centro da discussão - importante
destacar que nesse tema não há uma ressalva se quer para como avaliar a força de trabalho
cujo portador possui características diferentes, posto que o cerne da questão é justamente ser
merecedor, a despeito das diferenças. Cabe aqui, uma primeira demanda para os estudiosos
comprometidos com o desenvolvimento de uma Administração Política: não parcializar a
realidade concreta, ou em outros termos, não desvincular as lutas sociais de (re)distribuição
das de reconhecimento, pois o sujeito trabalhador é concomitantemente explorado no
processo de valorização e oprimido no processo de produção, dois momentos de uma mesma
totalidade. A não cisão das lutas carrega em si a possibilidade de problematizar a opressão
enquanto mecanismo que potencializa a exploração e, assim, conduzir a constituição de um
saber sobre as condições concretas de reprodução da vida em que a luta pelo reconhecimento
sob o capital apareça em suas limitações para a luta pela emancipação humana.
A tese que defendemos tem que ser ainda considerada em sua potencialidade negativa,
posto que, a objetividade das relações de trabalho também produz a subjetividade do
trabalhador, e assim a subjetividade produzida no processo de formação dos futuros
administradores encontrarão, na prática, as contradições concretas entre capital e trabalho.
Embora o primeiro procure blindar a consciência do trabalhador por meio de um saber
ideológico, aqueles possuem a capacidade de apreender a realidade a partir de seu lugar no
processo produtivo, constituindo, assim, a primeira subjetividade enquanto um obstáculo a ser
rompido. A primeira manifestação desse processo de apreensão das contradições é parcial e
repetidamente mencionada como "na prática, a teoria é diferente". Porém, se a prática das
relações de trabalho fornecem os elementos concretos para o rompimento da subjetividade do
profissional produzida nos bancos escolares, compreender esse hiato entre a prática e a teoria
demanda de mediações nem sempre disponíveis, sobretudo em um momento histórico em que
vivenciamos um sindicalismo de cariz corporativista (e mesmo com esse cariz, rechaçado por
grande parte dos autores e pesquisadores envolvidos no processo de produção da força de
trabalho especializada). Reside nas considerações realizadas nesse parágrafo o que cremos ser
uma segunda tarefa da Administração Política: desenvolver uma "teoria" que não seja
diferente da prática. Ou como colocaria Marx, desenvolver um conhecimento que seja um
concreto pensado. Esse conhecimento constituindo portanto uma ciência verdadeira, pois a
ciência verdadeira é aquela que está comprometida como a emancipação da humanidade,
com a superação da exploração e opressão de um ser humano pelo outro.
Em suma, embora Estado e Capital objetivem produzir uma consciência de classe
burguesa na classe trabalhadora, ela não corresponde imediatamente ao ser da classe
trabalhadora e, portanto, somente se sustenta pela contínua ação educadora para o capital
enquanto mediações para a minimização das possibilidades do arrefecimento das lutas de
classes. Por isso, as considerações até aqui realizadas permitem a ousadia de reivindicarmos
que o conhecimento produzido na Administração Política necessita, para se constituir
enquanto um conhecimento que não oportunize a exploração e a opressão, questionar-se sobre
a produção do saber para além do capital, comprometendo-se com a emancipação da
humanidade.

Bibliografia
ALVES, M. A.; GALEÃO-SILVA, L. G. (2004) A Crítica da Gestão da Diversidade nas
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FERRAZ, D. L. S. . Projetos de Geração de Trabalho e Renda e a Consciência de Classe dos
Desempregados. Revista Eletrônica Organizações e Sociedade, v. 22, p. 123-142, 2015.
FERRAZ, D. L. S.; MENNA-BARRETO, J. A Organização dos Trabalhadores
Desempregados como Mediação para a Consciência de Classe. Organizações & Sociedade
(Impresso), v. 19, p. 187-207, 2012.
LIMONGI-FRANÇA, A. C. (2012). Práticas de Recursos Humanos. São Paulo: Atlas.
LUKÁCS, G. (2010). Prolegômenos Para uma Ontologia do Ser Social. São Paulo:
Boitempo.
LUKÁCS, G. (2013). Para uma Ontologia do Ser Social II. São Paulo: Boitempo.
MARX, K. Grundrisse: Manuscritos econômicos 1857-1858: esboço da crítica da economia
política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Edu UFRJ, 2011.
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, I. (2008). Filosofia, Ideologia e Ciências Sociais. São Paulo: Boitempo.
OLIVEIRA, U. R.; RODRIGUEZ, M. V. R. (2004) Gestão da diversidade: além de
responsabilidade social, uma estratégia competitiva. XXIV Encontro Nac. de Eng. de
Produção - Florianópolis, SC.
SNELL, S.; BOHLANDER, G. A Administração de Recursos Humanos. São Paulo:
Cengage Learning, 2014.
TRAGTENBERG, M. Administração, Poder e Ideologia. São Paulo: Unesp, 2005

                                                                                                                       
i
  Escolhemos o livro desses autores por ser ele um trabalho que reúne as três principais referências brasileiras
sobre o tema. Uma das autoras, inclusive, recentemente foi condecorada pela academia como uma das autoras
mais citadas na área de Administração. Com isso, consideramos o livro um exemplar do que é a referência da
Gestão de Pessoas no Brasil. Ademais, diferente de Chiavenato, esses três autores possuem trânsito também na
esfera da pós-graduação.  
ii
  Vale destacar que encontramos esses resultado quantitativo num levantamento de dados realizados nos
Congressos mais importantes da área no período de 2004 a 2014, a saber, Encontro Nacional dos Programas de
Pós-Graduação em Administração, Encontro Nacional de Estudos Organizacionais e Encontro Nacional de
Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho, todos chancelados pela Anpad.  
Administração Política Brasileira: uma proposta transdisciplinar junto à
História e a Literatura.
Fabiane Louise Bitencourt Pinto1
2
Elizabeth Matos Ribeiro

RESUMO
Primando por inovar e ampliar o pensamento administrativo brasileiro, integrando a
perspectiva administrativa à formação social e econômica do Brasil, optamos por tomar como
base referencial teórica e metodológica central, a Administração Política, pois acreditamos
que este exercício nos possibilitaria integrar conjugações interpretativas interessantes e ricas,
a exemplo do que já vem sendo feito por diversos estudos que optaram por uma abordagem
inter ou transdisciplinar para reinterpretar os padrões que fundamentaram as relações sociais e
produtivas brasileiras, através da articulação da perspectiva Histórica, Literária e
Administrativa. Lançamo-nos, portanto num exercício interpretativo das obras selecionadas
de Jorge Amado, com o intuito de identificar diferentes maneiras de se compreender o
pensamento administrativo integrado, de forma articulada às obras de grandes literatos
brasileiros como fonte incontestável e inesgotável de conhecimento sociológico, econômico,
social, cultural, político e administrativo. A coerência interna dos textos literários fica
evidenciada a partir dos entrecruzamentos com os relatos historiográficos, de análise
econômica, de cunho sociológico, e demais que se façam necessários à construção de um
quadro de referencia que possa ampliar o pensamento administrativo sobre a região sul
baiana, o que compreende exatamente o nosso exercício neste ensaio.

1. Introdução
Nossas interpretações ora apresentadas são produtos das reflexões advindas da participação no
Grupo de Pesquisa em Administração Política do Núcleo de Pós-Graduação em
Administração da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. Primando por
inovar e ampliar o pensamento administrativo brasileiro, integrando a perspectiva
administrativa à formação social e econômica do Brasil, optamos por tomar como base
referencial teórica e metodológica central, a Administração Política, pois acreditamos que
este exercício nos possibilitaria integrar conjugações interpretativas interessantes e ricas, a
exemplo do que já vem sendo feito por diversos estudos que optaram por uma abordagem
inter ou transdisciplinar para reinterpretar os padrões que fundamentaram as relações sociais e
produtivas brasileiras, através da articulação da perspectiva Histórica, Literária e
Administrativa.
Buscando seguir essa trajetória crítica e já desbravada por outros autores, a exemplo de Paulo
Emilio Martinsi, que têm demonstrado a necessidade de maior aproximação das ciências
administrativas na reinterpretação das dinâmicas sócio-históricas, é que o artigo se
fundamenta. Bem como, seguimos com a mesma suposição que Vizeu (2010): que a
Administração e as organizações no Brasil somente serão satisfatoriamente compreendidas no

1
Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
2
Doutora em Ciências Políticas e da Administração pela Universidade de Santiago de Compostela. Professora
Adjunta na Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
1
momento em que se buscar um entendimento destas a partir de suas referências histórico-
culturais específicas.
Lançamo-nos, portanto num exercício interpretativo das obras selecionadas de Jorge Amado,
com o intuito de identificar diferentes maneiras de se compreender o pensamento
administrativo integrado, de forma articulada às obras de grandes literatos brasileiros como
fonte incontestável e inesgotável de conhecimento sociológico, econômico, social, cultural,
político e administrativo. Afinal, de acordo com Ricoeur apud Japiassu (2006), p. 231, “o que
é epistemologicamente discordante, pode ser existencialmente convergente”.

2. Elementos para um quadro de referencia


Em Pieranti (2005), que trata da metodologia historiográfica e sua aplicabilidade no campo da
Administração no Brasil contemporâneo, percebemos que
Mais que instrumento para a investigação, a História é disciplina e
entendimento dos quais derivam formas específicas de observação dos fatos.
Entender a História como linha mestra e explicativa dos acontecimentos não
significa sobrepô-la à Administração e seus tradicionais mecanismos de
coleta de dados e análise dos mesmos; significa, sim, compreender a
interpretação com base histórica como um dos caminhos possíveis à
investigação em Administração, notadamente no que se refere a problemas
de pesquisa no âmbito público. Significa, enfim, acreditar que políticas
públicas e relações de poder, por exemplo, têm fortes bases históricas e que,
portanto, podem ser explicadas por métodos de pesquisa ligados a essa
disciplina (PIERANTI, 2005, p. 08).
Conforme aponta Fischer (et. al, 2007), a literatura deve ser usada por pesquisadores de
administração como recurso de investigação. O fato de a Administração estar classificada
entre as ciências socialmente aplicáveis, somente nos lembra que ela deve ser referenciada à
prática; e é sobre essa prática que se constrói a teoria. Assim, as práticas de gestão e
conhecimento explícito sobre organizações, por exemplo, são estruturadas mediante a
compreensão da sua própria construção social.
Nesta mesma seara, ressaltando a importância da discussão crítica acerca da memória e seu
lugar nos estudos organizacionais, mais especificamente na história empresarial, Costa e
Saraiva (2011), afirmam que a temática memória embora seja amplamente difundida em
particular pela área de História, no campo dos estudos organizacionais apresenta-se como
temática imensamente desafiadora.
Ainda, como ressaltado por Matitz e Vizeu (2012) com a ampliação da comunidade
acadêmica brasileira da área de estudos organizacionais (EOR) quanto às questões
epistemológicas, há de se observar a forma heterogênea que se dá a articulação da área, com
diferentes disciplinas e perspectivas na compreensão plural da realidade organizacional. Para
tal campo, mesmo sendo considerado como salutares os benefícios da multi e
interdisciplinaridade, faz-se necessário o uso adequado, de teorias ou conceitos emprestados
de outras áreas. Neste sentido, acrescentamos que,

de acordo com esse entendimento, a investigação histórica do fenômeno


organizacional e da atividade gerencial deve “conectar-se com questões
atuais no sentido de que podem levar a uma perspectiva diferente [das que
vigoram] sobre tais questões” (JACQUES, 2006, p. 43, tradução nossa), ou
seja, devem ser capazes de questionar o entendimento vigente da realidade
2
organizacional contemporânea pela reconstrução dessa realidade feita com o
minucioso escrutínio de sua trajetória histórica (VIZEU, 2010).
Coadunando com Pieranti (2008), prosseguimos com a expectativa de que a História explica
acontecimentos e estruturas construídas por uma sociedade, e que portanto, a singularidade
dos fatos históricos se organizam de maneira tão especifica que não são passiveis de
generalizações; que a nossa interpretação via literatura amadiana é apenas uma interpretação
possível daquele espaço e tempo sul baiano, e que para tanto, nos lançaríamos ao exercício de
interligação entre diversas áreas do conhecimento. A escolha do viés da literatura nos
distingue inclusive, da farta produção brasileira contemporânea no campo da Administração,
que tem feito uso da historiografia, para recontar a trajetória de personagens e estruturas
(PIERANTI, 2008).
A busca pela transdiciplinariedade em nosso texto portanto, diz respeito à crença de uma
epistemologia com novas bases, não de ruptura, mas de restauração da função critica e
reflexiva no seio do próprio saber administrativo. Entre o dilema do conhecimento
especializado e do generalista, Japiassu (2006), afirma que se faz necessário a reglobalização
dos saberes fragmentados, “para se construir uma representação mais totalizante e adequada
de uma situação e que se torna mais receptiva às questões de ética, direito e política, e às
questões sociais postas pelas ciências humanas, instaurando um diálogo franco e fecundo
entre os pesquisadores das diferentes disciplinas” (Japiassu, p. 10, 2006).

3. Algumas notas sobre o percurso metodológico: a identificação do literato e os


critérios verdade das obras selecionadas
Consideramos que o literato Jorge Amado, foi capaz de retratar no conjunto inicial de suas
obras uma crítica contextualizada do cotidiano que marcou a vida socioeconômica, política e
cultural da região cacaueira da Bahia. Desse modo, fazer uma releitura das obras do autor, a
partir do olhar da Administração Política, implica, pois, ratificar uma percepção que
certamente já estava implícita nas leituras feitas por Amado referente às bases do que
denominamos de relações sociais de produção e distribuição que fundamentavam a sociedade
baiana da época. Esse retrato mostra não apenas como se davam as relações socioeconômicas,
mas também evidencia as lutas sociais reveladas nas relações administrativas estruturadas
para dar conta do novo padrão de administração política brasileira e baiana no período
ambientado; o que implica afirmar que Jorge, na sua sensibilidade crítica, conseguiu retratar o
papel implícito e explicito assumido pelo padrão de Administração Política que orientava as
relações complexas entre Estado e sociedade na região sul da Bahia.
Em Lukács (2010) encontramos que em se tratando de literatura revolucionária, Marx e
Engels exigiam dos autores que a esta categoria se lançavam, um realismo sem preconceitos e
uma autocrítica realista. Pois, “a literatura se manteve como um elemento essencial de sua
batalha ideológica contra as influencias burguesas sobre o proletariado, contra o oportunismo
e o sectarismo, e em favor do incremento da consciência revolucionária da classe operária”
(Lukács, p. 33, 2010).
Desse modo, o mergulho na literatura amadiana com seus relatos sobre os processos de
formação da sociedade sul baiana, ressaltando o caráter institucional e a natureza histórico-
cultural da obra, bem como o engajamento político ideológico do autor à época, busca
contribuir para uma melhor compreensão dos valores, que fundamenta os modos de produção
e distribuição, divisão nacional e internacional do trabalho e das riquezas, e das bases da
organização e relações sociais da região cacaueira no período de ambiência dos textos. O
realismo literário amadiano nesta perspectiva, evidenciado através dos detalhes da reprodução
3
dos personagens típicos em situações cotidianas, está “fundada histórica e dialeticamente,
constitui ao mesmo tempo uma adequada formulação de que a arte reflete a realidade objetiva
e, portanto, que ela pretende possuir valor de verdade objetiva” (Lukács, p. 44, 2010).
O nosso esforço de investigação se constrói, pois, na aproximação entre os campos da
Administração com a História e a Literatura, mais especificamente da Literatura, que tem
como objeto de estudo a história. Ora, tratamos a literatura amadiana não como uma fonte a
mais de documento que possa ilustrar uma interpretação baseada em fontes reconhecidamente
científicas e, por isso, mais confiáveis; ao contrário, assumimos, com a escolha desse objeto,
o desafio de nos lançar à leitura das experiências passadas na região cacaueira, tomando como
fonte privilegiada o discurso literário de Jorge Amado e as maneiras como o autor retrata os
modos/padrões de gestão das relações sociais de produção e distribuição num dado espaço e
tempo. Ainda de acordo com Lukács (2010), tal realismo literário somente é possível se
fundamentar, quando são refletidas nesta literatura, as forças motrizes do desenvolvimento
social humano historicamente construídos.
Daí que, História e a Literatura nos trazem leituras possíveis acerca do real, ambas remontam
a questões como a verdade do simbólico e da gerência do tempo. Todavia, a História constitui
um conhecimento científico e, para tanto, depende de arquivos, métodos de pesquisa e demais
critérios de cientificidade, já a literatura e o cinema não possuem esse rigor, enveredando por
caminhos mais abrangentes, poéticos. Justamente pela Nova História ter renunciado ao
domínio da verdade, enquanto representação, a História atualmente não se mede por critérios
de veracidade, o que configuraria um retrocesso; mas, sim, pela verossimilhança, que é o
ponto de convergência entre hipóteses possíveis de um passado efetuado, vivido; o que
origina a credibilidade do autor, desde que consiga explicar, de maneira plausível e com
respaldo de fontes confiáveis, o acontecimento em questão (Cardoso e Vainfas, 2011). Nesse
aspecto, as fontes são apenas indiciárias e não revelam a verdade propriamente dita como em
outrora. Portanto, admite-se a presença da ficcionalidade no domínio do discurso histórico, o
qual sofre o crivo da testagem, a comprovação (Bloch, 2001).
Desse modo, a Literatura tem sido cada vez mais frequentada pelos historiadores e mais
recentemente por administradores e economistasii, na tentativa de alargar e aprofundar as
formas como entramos em contacto com o passado e os novos olhares permitidos a partir
dessa nova perspectiva (re)interpretativa. Fundamentando a interação da história com a
literatura, Pesavento (2000)iii nos apresenta que é possível resgatar a maneira como os homens
representavam a si próprios e à realidade através do texto literário, o qual poderá dar indícios
dos sentimentos, das emoções, das maneiras de falar, dos códigos de conduta partilhados, da
gestualidade e das ações sociais de um outro tempo.
A obra amadiana, em sua micronarrativa, que prioriza a narração de uma história sobre as
pessoas comuns situadas no local em que estão instaladas, revela os padrões que
fundamentam as bases das novas relações sociais de produção e distribuição que emergem no
pós-30, demonstrando, assim, a permanência e o agravamento dos dramas sociais originários
da velha estrutura socioeconômica e política ainda dominante. Em síntese, a micronarrativa
apresentada por Amado, com a riqueza de detalhes e multiplicidades de atores sociais, oferece
farto e relevante subsídio para pesquisas e interpretações, como é o caso do olhar da
administração política, base teórico-metodológica que fundamentou esta análise.

4. O diálogo fértil da Administração com a História e a Literatura


O nosso esforço de investigação se constrói, pois, na aproximação entre os campos da
Administração com a História e a Literatura, mais especificamente da Literatura, que tem
4
como objeto de estudo a história. Nesse sentido, conforme ressaltado por Da Costa (2010, p.
289),
A aproximação entre administração e história não é recente, mas ainda não
avançou substancialmente de forma a viabilizar todo o seu potencial
ontológico, epistemológico e metodológico (BOOTH e ROWLINSON,
2006). (...) Identificar as visões provenientes do acirrado debate entre as
perspectivas da história tradicional e da história nova no campo da
Administração pode contribuir para: a) melhor compreensão dos fenômenos
administrativos; b) formação de pesquisadores mais conscientes de seus
caminhos de pesquisa e c) fortalecimento da interdisciplinaridade por meio
da criação de vínculos mais profundos entre as áreas.
Tomando como base as colocações acima, Jorge Amado, com suas interpretações da realidade
brasileira e baiana, em particular, denunciou as disparidades socioeconômicas, através da
abordagem de temas populares, de inspiração regional, combinando política, ideologia,
comportamento carnavalizados e forte religiosidade, e evidenciou, na maior parte dos textos,
o imobilismo das classes subalternas. Amado toma posição e constrói uma tese sobre a
formação sócio-organizacional das terras sul baianas, trata-se da “tendência social de
desenvolvimento, implícita no assunto tratado pela obra, em íntima conexão com a práxis
social, com a posição combativa do autor em face dessas grandes lutas histórico-sociais”
(Lukács, p. 47, 2010).
Há uma aproximação natural entre o fazer dos literatos engajados em obras literárias de cunho
social, político e cultural e aqueles que adotam a história como ofício ou matéria de estudo.
Nesse ponto, poderíamos indagar, então, qual seria a contribuição da Literatura à História e às
demais ciências sociais, além das ciências sociais aplicadas como Administração?
Nesse sentido, nos ensina Boaventura de Sousa Santos (2010), que a “crise do paradigma
dominante têm vindo a propiciar uma profunda reflexão epistemológica sobre o conhecimento
científico, uma reflexão de tal modo rica e diversificada que, melhor que qualquer outra
circunstancia, caracteriza exemplarmente a situação intelectual do tempo presente” (Sousa
Santos, p. 50, 2010), e que portanto, questões antes deixadas à cargo dos sociólogos, a
exemplo das condições sociais; dos contextos culturais; dos modelos organizacionais de
investigação científica; passaram a ocupar papel de destaque na problematização da prática
cientifica de todos os cientistas sociais.
Neste ensaio, portanto, tratamos a literatura amadiana não como uma fonte a mais de
documento que possa ilustrar uma interpretação baseada em fontes reconhecidamente
científicas e, por isso, mais confiáveis; ao contrário, assumimos, com a escolha desse objeto,
o desafio de nos lançar à leitura das experiências passadas na região cacaueira, tomando como
fonte privilegiada o discurso literário de Jorge Amado e as maneiras como o autor retrata os
modos/padrões de gestão das relações sociais de produção e distribuição num dado espaço e
tempo. Pois em nossa compreensão, os textos literários representam o real de um tempo
pretérito, como seus modos de ver e de sentir, os quais escapam, muitas vezes, a outros tipos
de fonte e de interpretação (GRUNER; DeNIPOTI, 2008).
Seguindo essa trajetória, nossa pesquisa tomou como referência central de análise a indicação
de Araújo (2003), quando nos ensina que a produção Amadiana se divide em pelo menos
quatro ângulos e espaços geográficos. Desse modo, nosso estudo vincula-se aos romances que
se encontram na primeira matriz citada por Araújo (2003): das obras que se ambientam na
região sul baiana, vinculadas sobremaneira ao ciclo do cacau.

5
5. Administração Política, vetor da compreensão crítica ampliada dos fenômenos
Consideramos que a Administração Política apresenta pressupostos teóricos e metodológicos
que contribuirão para uma compreensão crítica e contextualizada acerca dos fenômenos
socioeconômicos, institucionais e organizacionais. Com essa nova perspectiva interpretativa e
significativa, é possível ampliar, pois, as perspectivas analíticas da Administração, deixando
de se concentrar apenas em elementos instrumentais, técnicos e racionais, característicos do
que se denomina de Administração Científica (ou Administração Geral). A relevância da
perspectiva da Administração Política está, portanto, na possibilidade de interação do Estado
com a sociedade, do ente político com o econômico e social, dentre outros, para uma
reinterpretação das bases que fundamentaram o Projeto de nação, projeto de sociedade, baiana
e regional.
Os pressupostos metodológicos que orientaram o desenvolvimento do estudo assumem como
base fundamental a pesquisa qualitativa, feita a partir da leitura histórica e crítica, contida nas
obras selecionadas de Jorge Amado. O método de análise proposto buscou, pois, identificar e
compreender os aspectos essenciais que conformaram os padrões de Administração Política
da sociedade sul baiana, o que significou reconhecer, nas obras selecionadas, os fundamentos
que orientavam as típicas relações de um modelo de capitalismo retardatário e dependente.
Como aponta Gomes (2012, p. 13-14),
[...] o método de análise [proposto] já demonstra, claramente, uma forma
diferente de olhar o processo de desenvolvimento econômico brasileiro [e
baiano em particular], em que os limites entre a economia política crítica e a
administração política ainda não estão definidos. Ressalta o autor que,
embora esse seja um problema aceitável é importante [...] procurar
compreender como a produção capitalista no Brasil [e no sul da Bahia] se
organiza e passa por modificações, reformas ou mudanças [de modo que seja
possível compreender] o processo histórico de construção e reconstrução das
relações entre o Estado e a economia capitalista periférica e a gestão dessas
relações no contexto dos conflitos de classe (inter e intraclasse) [que
denominamos Administração Política].
Considerando essa perspectiva teórico-metodológica crítica da Administração Política,
consideramos que os romances de Jorge Amado assumem lugares fundadores dessa
reinterpretação, na medida em que assumem um papel privilegiado de memória viva da
dinâmica socioeconômica, cultural e política contemporânea. Conforme nos ensina Nora
(1988), os lugares das memórias que Amado nos legou são os locais privilegiados onde estão
os registros das concepções de um projeto de nação, do papel da família, do papel dos
trabalhadores e homens comuns, do papel das instituições, entre outras.
Reforçamos a escolha do autor como objeto de análise do presente estudo, sobretudo, pela
importância das contribuições das obras amadianas para uma (re)intepretação do pensamento
administrativo brasileiro, com especial ênfase para o campo da Administração Política,
considerando, pois, um campo próprio para recontar a dinâmica histórica da formação social,
política, econômica e cultural brasileira sob o olhar crítico e contextualizado da
administração; isto é, buscando ressignificar os mecanismos administrativos que fundaram as
bases de um modus operandi (o como fazer?) que permitiram e ainda permitem a preservação
de modelos tradicionais e excludentes de desenvolvimento econômico e social. Para dar
conta de uma interpretação tão ampla e complexa, considera-se que as obras selecionadas de
Jorge Amado resguardam, pelas formas e objetos, a universalidade do processo de
socialização que marcou a região sul da Bahia.

6
As obras do autor baiano Jorge Amado ocupam lugar de destaque na produção de novos
temas, formas de expressão e apreensão do mundo, sentimentos e lugares, que traduzem a
“paisagem humana e social do Nordeste, particularmente da Bahia, seu Recôncavo, sul e
sertão”, conforme destaca Araújo (2003, p. 09). Em âmbito internacional, a literatura
amadiana notabilizou-se pela projeção da cultura brasileira e baiana, induzindo o leitor à
percepção de valores, condutas e relações dos universos relatados em sua vasta obra,
traduzida em mais de cinquenta países; parte delas foi inclusive adaptada para o rádio, o
cinema, a televisão e o teatro. As matrizes temáticas na literatura de Amado se dividem em
dois ciclos: campo e cidade, tendo início, em 1931, com o lançamento do primeiro livro, O
país do carnaval.

6. (Re)leitura de obras amadianas numa perspectiva Histórica, Literária e


Administrativa
Como já ressaltado anteriormente, a relação indiscutível entre História e Literatura, reservadas
a natureza, objetivos e códigos próprios, aproxima-se nas próprias diferenças, revelando que
História e Literatura se complementam. (Re)interpretar os padrões que fundamentaram as
relações sociais de produção e distribuição da região sul baiana, integra, desse modo, uma
nova dimensão interpretativa que toma como base central o pensamento administrativo, que
permitiu colocar em prática um Projeto de Nação, concebido e idealizado pelos diversos
grupos de interesses amplamente denunciados por Amado nas obras selecionadas.
A dimensão da Administração Política é facilmente reconhecida na própria composição da
comunidade grapiúnaiv que se construiu sobre o desenvolvimento da cultura do cacau. Nesse
sentido, observa-se que o presente estudo segue na trilha do chamado romance social, político
e cultural de Jorge Amado, expresso nas obras do autor relacionadas ao ciclo do cacau: Cacau
(1933), Terras do sem fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944), Gabriela, cravo e canela
(1958), Tocaia Grande: a face obscura (1984) e A descoberta da América pelos turcos
(1992), e como complemento, o livro de memórias O menino grapiúna (1982). Constatamos,
pois, a oportunidade de verificar a afeição universal e as relações socioeconômicas, políticas e
administrativas que Amado imprimiu em seus personagens e histórias relatadas. Como crítico
social, o autor revelou, através da engrenagem ficcional, as manifestações da cultura regional
e práticas socioeconômicas e administrativas efetivas de um dado tempo-espaço.
6.1 O Menino Grapiúna, escritas e motivações
Antes de nos inclinarmos às análises centrais de cada um dos títulos selecionados, faz-se
necessário introduzir alguns comentários mais gerais sobre a trajetória do autor, a fim de
compreendermos a dinâmica da sua escrita e motivações.
Jorge Amado nasceu em 1912, numa roça de cacau, no povoado de Ferradas, hoje município
de Itabuna. Naquele momento, o cacau já figurava como a lavoura de maior importância no
Estado da Bahia. Para o autor, foram as coisas que viu e viveu na infância naquela região que
configuraram a base de tudo que, posteriormente, criou e recriou. Declara que o que lhe
formou foi exatamente o que se encontra ligado ao tempo de vida na região cacaueira
(RAILLARD apud SOUSA, 2001). Aliás, dentre os homens que, por tradição, desbravaram e
conquistaram aquele espaço sul baiano, se encontra a própria família de Jorge Amado. Em seu
livro de memórias, O Menino Grapiúna, escrito em 1982, utilizado neste estudo como
subsídio para compreensão da crítica sociopolítica amadiana, encontramos o seguinte relato:
[...] desbravador de terras, meu pai erguera sua casa mais além de Ferradas,
povoado do jovem município de Itabuna, plantara cacau, a riqueza do
mundo: Na época das grandes lutas [...] segue contando que, ainda jovem,
7
seu pai, João Amado de Faria, “abandonara a cidade sergipana de Estância,
civilizada e decadente, para a aventura do desbravamento no sul da Bahia,
para implantar, com tantos outros participantes da saga desmedida, a
civilização do cacau, forjar a nação grapiúna [...] (AMADO, 2006, p. 05 e
07).
Portanto, o menino grapiúna fez parte do quadro social das terras sul baianas, permitindo,
pois, que, a partir dessa experiência pessoal, Amado fizesse significações do coletivo, das
relações pessoais, das tradições e costumes, da vida dos homens comuns, dos pescadores,
trabalhadores rurais, mulheres da vida e toda a trama social que caracterizava aquele espaço.
Com base nesses relatos, percebe-se que esse contato direto e cotidiano de Amado com a
realidade que o cercava foi decisivo para sua formação literária, em especial quando afirma
que,
[...] no meio do povo, homens e mulheres que possuíam cor e odor da terra,
o menino ia aprendendo sem se dar conta [...] em companhia de
trabalhadores e jagunços: ampliavam seu universo e impediam que medrasse
em seu espírito qualquer espécie de preconceito (AMADO, 2006, p. 53).
6.2 Cacau (1933)
O Romance narra a relação entre o coronel, o empresário, ou seja, os donos dos bens de
produção e o trabalhador rural, Amado mergulha no universo da luta de classes denunciando a
exploração e apropriação do trabalho, os conflitos advindos dessas relações sociais de
produção e distribuição, dando destaque, ainda, à greve e aos incipientes movimentos sociais,
além de explorar ideais socialistas.
Em Cacau, Jorge Amado agudiza o inconformismo e a indignação, mediante a exploração e a
miséria relativas às terras do cacau. Adere à proposta literária e aproximando-se da forma e
conteúdo dessa corrente ao falar diretamente da categoria social povo. Todavia, os críticos
apontam para a simplificação da realidade traduzida neste livro destacando a presença de
antinomias ou maniqueísmos, fato que pode ser justificado pela recente filiação de Amado ao
Partido Comunista, ou ainda, por estar iniciando suas primeiras escritas. Conforme destaca
Araújo (Op. cit., p. 35), “afinal a partidarização cumpriu um ciclo na obra de Jorge Amado e
ele foi sincero, explícito, objetivo e sem reservas, evidenciando com nitidez a face de sua
identidade ideológica”.
Cacau reflete, portanto, o final do século XIX; presenciou grandes mudanças no equilíbrio
demográfico e geoeconômico do país, indicando novos rumos para o desenvolvimento nas
regiões cafeicultoras do Centro-Sul (Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo), enquanto
seguia em decadência o Nordeste açucareiro. Para Prado Jr (1981), o empobrecimento do
Nordeste, povoado densamente, desde a implantação da colônia, resultou numa forte e
constante enxurrada demográfica em direção a regiões com melhores perspectivas de vida e
subsistência:
este movimento de populações tornar-se-á particularmente ativo depois da
grande seca de 1877-80, que despovoará o interior nordestino do Ceará até a
Bahia. As regiões beneficiadas por esta emigração serão o vale amazônico
(graças à extração da borracha); o sul da Bahia (produção de cacau em
progresso); finalmente e, sobretudo São Paulo, o grande polo de atração
(PRADO JR, 1981, p. 151).
O narrador de Cacau enfoca, inclusive, a extorsão que sofrem dos armazéns das fazendas,
onde os preços são exorbitantes e onde são obrigados a comprar gêneros alimentícios,
ferramentas para a lide, além de roupas e remédios. Com esse relato, Amado se aproxima do

8
que aqui denominamos padrão administrativo que fundamentava, pois, os processos e as
relações de trabalho que garantiam a dinâmica do modelo socioeconômico predominante: a
produção latifundiária e extrativista do cacau.
6.3 Terras do Sem Fim (1943)
As obras Terras do Sem Fim (1943) e São Jorge dos Ilhéus (1944) narram o desbravamento
das matas sul baianas para o plantio do cacau. Ao ler o segundo romance, percebe-se
claramente a intenção de Amado de dar continuidade e ampliar as abordagens trazidas em
Terras do Sem Fim. Esta afirmação se fundamenta, pois, na preservação e, ou evocação de
alguns personagens e memórias na segunda obra.
A figura dos coronéis em Terras do Sem Fim são de homens poderosos, proprietários de
extensas roças de cacau, justamente quando a lavoura cacaueira já era reconhecida como
importante riqueza econômica regional e nacional. Tal lavoura atraía muitos interessados, a
exemplo dos trabalhadores vindos de regiões secas do Nordeste, de pequenos comerciantes,
aventureiros, gente de toda ordem tentando enriquecer frente às oportunidades daquela
próspera região.
A narrativa não se atém ao momento em que as primeiras mudas de cacau chegaram à região,
ao contrário, já aponta um período em que os grandes coronéis ali estabelecidos lutavam por
maiores faixas de terra e ampliação da riqueza e poderes. Evidencia, nessas duas obras, de
forma mais ampla e contundente, a exploração do homem pelo próprio homem, fazendo
emergir as vozes e as reflexões daqueles que se encontravam submetidos às práticas
dominantes do coronelato que se formou nas terras do sul da Bahia.
Os coronéis, na perspectiva amadiana, seguiam insaciáveis, conquistando terras e dominando
gente. Podemos balizar, conforme nos ensina Guerreiro de Freitas e Paraíso (2001), entre
1890 e 1920, o período de implantação da monocultura de cacau no sul da Bahia. “Aqueles
tempos foram atravessados por fenômenos de todos os tipos – demográficos, sociais, políticos
e culturais” (p. 99).
Esse retrato parcial da sociedade grapiúna apresenta um forte teor de crítica social e política
com problemáticas ligadas ao patriarcalismo latifundiário, à exploração do trabalhador, ao
imobilismo social que se estabelecera naquelas Terras do Sem Fim (Sousa, 2001).
As metanarrativas fazem emergir os sujeitos que habitavam aquele espaço – coronéis,
jagunços, capatazes, comerciantes, prostitutas, trabalhadores alugados -, além de revelar os
arranjos sociopolíticos, base para a consolidação de um padrão de Administração Política
tradicional e conservador, pautado em bases que garantissem que as classes menos
favorecidas estariam sempre a serviço dos “donos da terra”. Ao evidenciar as relações sociais
de produção do sul baiano, Amado utilizava diversas expressões pejorativas que
manifestavam o uso e abuso do poder dos coronéis como o caxixev, as manobras jurídicas, a
tocaiavi, enfim, todos os tipos de subterfúgios que permitiam a posse das terras alheias.
6.4 São Jorge dos Ilhéus (1944)
Como já ressaltado, a rigor, São Jorge dos Ilhéus é uma continuação do livro Terras do Sem
Fim, com a trama e grande parte dos personagens remanescentes do livro escrito em 1943.
Superado o momento da luta pela posse das terras, com o conflito direto entre os coronéis,
São Jorge dos Ilhéus retrata a luta posterior pela posse definitiva das terras do cacau. Quiçá
uma posse coletiva daquelas terras. Encontramos em Araújo (2003) que ambos os livros
formam um só núcleo ao afirmar que “[...] se desdobram dois períodos distintos: a conquista
da terra pelos coronéis feudais no princípio do século e a passagem da terra para as mãos
ávidas dos exportadores nos dias de ontem” (p. 63).
9
A exemplo de Cacau, a história se passa na década de 1920 e 30, pois, apesar de Jorge Amado
não explicitar o período, remete-nos a acontecimentos da política nacional, tais como: a
Coluna Prestes, o governo de Washington Luis e o Integralismo.
A trama dá passagem a personagens que revelam as novas relações sociais de produção, isto
é, o novo padrão de Administração Política que se desenvolveu nas terras do cacau. Entram
em cena em São Jorge dos Ilhéus, os vorazes exportadores de cacau, representantes do capital
internacional, que ambicionam tornarem-se proprietários das fazendas de cacau, controlando
o fluxo de produção e ditando seu preço no mercado internacional. A política local fica a
cargo dos filhos dos agora velhos coronéis de Terras do Sem Fim.
Ilhéus, a “Rainha do Sul”, com força comercial e riqueza crescente, possui o quinto maior
porto exportador do país, responsável, segundo Jorge Amado, por 98% de todo o cacau
produzido no Brasil. Em raras cidades no país, à época, havia um crescimento tão rápido, ruas
abertas, construções de todo tipo, com praças, jardins, iluminação pública, água e esgoto
canalizados. Nesse período, sua populaçãovii era estimada em 150 mil habitantes. A essa
altura, a cidade já dispõe de aeroporto, cinema, transporte público, cafeterias, teatro, sistema
de telefonia, além de um estádio de futebol. Porém, a despeito de toda a modernidade na
“Rainha do sul”, reinava o patriarcalismo nas relações sociais de produção, revelando, pois,
que, apesar dos avanços, foram preservados praticamente os mesmos interesses locais,
alterado apenas pela presença da hegemonia dos interesses do capital internacional.
Amado nos alerta que Karbanks, Zude e os outros exportadores estavam em toda parte,
ligados a uma infinidade de negócios, inclusive por trás da direção do Banco de Auxílio à
Lavoura. Nesse momento, Jorge Amado chama atenção que se aproximava o momento da luta
entre os coronéis desbravadores, plantadores de cacau, e os exportadores.
Nesta obra, em síntese, é ressaltada a transferência da apropriação das terras, como
consequência do colapso da economia cacaueira em virtude da perda das fazendas de
pequenos, médios e grandes fazendeiros, arruinados e vitimados pela ação coordenada dos
exportadores junto às oscilações do preço no mercado. A terra troca de mãos. Neste momento,
emerge, pois, um novo padrão de Administração Política, em que os interesses internacionais
irão subjugar o poder local a um processo de acumulação e apropriação de riqueza forâneo.
Aqui cabe um questionamento a partir das provocações de Jorge Amado referentes à
avaliação das consequências do choque de dois padrões de administração política que tinham
por objetivo apenas preservar os ganhos dos coronéis, de um lado, e os exportadores rentistas,
de outro. E como ficariam os trabalhadores nesse embate? Com a mesma falta de sorte de
antes, ou seja, entregues à própria sorte.
6.5 Gabriela, cravo e canela (1958)
Em Gabriela Cravo e Canela (1958), Amado não manifesta as questões sociais com o mesmo
destaque dos demais títulos. Na trama, o romance entre Nacib e Gabriela torna-se o centro do
enredo, e as questões sócio-político organizacionais já não se manifestam de forma tão
contundente como nas demais obras ligadas ao ciclo do cacau; a política local e nacional, os
desafios econômicos e a divisão internacional do trabalho aparecem apenas como pano de
fundo nesta obra, predominando portanto, os traços da vida cotidiana, da história social,
cultural e das mentalidades (Cardoso e Vainfas, 2011) da sociedade sul baiana.
A história começa em 1925, na cidade de Ilhéus, e centra-se em três personagens forâneos: 1)
Gabriela, sertaneja e retirante, em busca de trabalho e moradia é posta à venda no mercado de
escravos (local onde as pessoas colocavam à disposição dos coronéis e capatazes, sua força de
trabalho); 2) Mundinho Falcão, jovem carioca que emigrou para Ilhéus e lá enriqueceu como
exportador, e que planeja acelerar o desenvolvimento da cidade, melhorar os portos e derrubar
10
Bastos, um coronel e inepto governante; 3) Nacib, um sírio que chega a Ilhéus com a crença
do eldorado sul baiano, seu estabelecimento comercial passa a ser palco das principais
discussões e articulações político-partidárias e de estruturação da cidade.
Compreendemos que Gabriela, cravo e canela “foi realizado num momento de
desencantamento total de Jorge Amado com o Partido Comunista, [...] construindo não mais
personagens das lutas políticas [...]”, conforme aponta Souza (2001, p. 27). Esse fato não
descaracteriza a validade da obra, pois o autor insere outros temas significativos em suas
discussões, como questões raciais e diferenças culturais, o sincretismo religioso e questões de
gênero.
6.6 Tocaia Grande: a face obscura (1984)
Em Tocaia Grande: a face obscura (1984), elementos primordiais do discurso de Amado
voltam a emergir: os coronéis, jagunços e prostitutas. O texto revisita temas, cotidiano e
conflitos expressos nas três primeiras obras do ciclo do cacau.
A disputa de terras e mando político por parte dos coronéis; a exploração e as condições
subumanas de vida do trabalhador das roças de cacau; a violência corriqueira entre os
seguidores dos grupos políticos; a omissão do poder público do ponto de vista jurídico e
organizacional; e a supremacia do capital internacional dos exportadores, são algumas das
temáticas que se estabelecem na obra, dentro do universo estruturado pelo autor para a cidade
de Tocaia Grande.
Neste período, predominava as atividades ligadas a agricultura e pecuária,
compreendendo uma população instável, denominada de rurbana por Faoro
(2000b), ou seja, corpo social que vive sobre a influencia do campo, é a
cidade servindo à zona rural (FAORO, 2000b).
Registre-se que a cidade fictícia é uma replica da Ilhéus de fins do século XX, quando da
povoação da região e início do ciclo do cacau. Todavia, o autor ressalta nesta obra, a presença
ativa e crescente de estrangeiros nas situações relatadas, a exemplo de árabes e russos.
6.7 A descoberta da América pelos turcos (1992)
Raduan Murad e Jamil Bichara descobriram a América juntos: vieram no mesmo barco de
imigrantes e desembarcaram na Bahia em 1903. No litoral sul do Estado, eram chamados de
turcos, forma brasileira de designar todos os árabes, tanto sírios, libaneses ou de fato, turcos.
Definido pelo autor como um “romancinho”, A descoberta da América pelos turcos é uma
narrativa breve e específica sobre a contribuição dos descendentes de árabes na civilização do
cacau, durante a época em que coronéis e jagunços disputavam as terras virgens da região de
Ilhéus. Em Gabriela, cravo e canela, e em Tocaia Grande, Amado já evidencia a participação
sociocultural desses imigrantes na região. Os personagens estrangeiros de origem árabe,
figuram com destaque no cenário político, e como vitais para o comércio e para a dinâmica da
economia local.

7. Considerações Finais
Cabe-nos ora reforçar, que partindo da interpretação da Administração Política sobre a
transição que se inaugurou no Brasil e que, de algum modo, contribuiu para promover
mudanças substanciais nas relações do poder local no sul da Bahia, de forma clara Jorge
Amado descreve, resguardados as implicações ideológicas dos seus pontos de vista, as
engrenagens construídas e articuladas pelo grupo de exportadoras em prol do esfacelamento

11
da antiga ordem de coisas estabelecidas durante a formação sócio-histórica da região sob a
égide dos coronéis do cacau.
Juntas, as seis obras selecionadas fecham um ciclo socioeconômico e iniciam um outro, sem,
contudo, vislumbrar alternativas que possibilitem alterar minimamente a estrutura social,
cultural, econômica e política da região sul baiana, garantindo à população marginalizada (os
trabalhadores, as prostitutas e toda a massa social) vislumbrar um horizonte que lhes
permitisse de algum modo, melhores condições de vida e sobrevivência. Sem dúvida, ao
retratar e interpretar de forma crítica o processo que possibilitou a transferência da posse das
Terras do Sem Fim, Amado nos permite, observar que, em São Jorge dos Ilhéus, estaria sendo
concebido um Projeto de Nação que permitiria uma reconcentração da riqueza e da renda nas
mãos de uns poucos exportadores, representantes do capital (e interesses) internacional.
O contributo da literatura amadiana para nossa analise perpassa pela compreensão da
organização do sistema produtivo da sociedade sul baiana e de seus agentes econômicos, pelo
entendimento de como se distribuía a riqueza produzida e a proporção com que cada grupo
usufruía das riquezas geradas pelo conjunto da sociedade grapiúna, possibilitando alargar à
nossa percepção portanto, em nuances e matizes que os documentos oficiais não nos
informam ou revelam, a exemplo de, sobre quais bases se organizou a sociedade, a política e
economia da chamada civilização cacaueira.
Está presente na obra amadiana uma preocupação em compreender e problematizar um dado
padrão de Administração Política que se configurou naquele espaço-tempo sul baiano.
Justamente ao descrever como foram estruturadas tanto as condições objetivas de
materialidade daquele grupo social, como as condições subjetivas de vida: suas mentalidades,
crenças, religiosidades, visões de mundo. A transdiplinariedade ensaiada neste texto, portanto,
faz emergir as dimensões da vida política do país e da Bahia, tanto no que se refere aos
detalhes do cotidiano da vida social, quanto no que se refere ao caminho que o poder percorre
na organização da Administração Pública e da Sociedade.
A coerência interna dos textos literários fica evidenciada a partir dos entrecruzamentos com
os relatos historiográficos, de análise econômica, de cunho sociológico, e demais que se
façam necessários à construção de um quadro de referencia que possa ampliar o pensamento
administrativo sobre a região sul baiana, o que compreende exatamente o nosso exercício
neste ensaio.

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ii
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Jorge Zahar, 2007.
iii
PESAVANTO, Sandra Jatahy (org.). Apresentação. In: Leituras cruzadas: diálogos da história com a literatura.
Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2000.
iv
O termo grapiúna compreende o gentílico de todos os nativos do sul da Bahia. Junção de vocábulos em tupi,
acredita-se que o seu significado seja “ave negra da beira do rio” (Barbosa, p. 93, 2013).
v
Termo que se refere à apropriação indevida das terras de terceiros, com o desrespeito à posse, e mesmo aqueles
que possuíam terras titularizadas viam suas fazendas subtraídas pela ação dos advogados dos coronéis. As
vítimas sofriam um golpe jurídico, com a produção de nova escritura da propriedade a favor de terceiros, sem
nenhum tipo de pagamento ou ressarcimento, havia expulsão de suas próprias terras quase sempre com violência.
Ver Guerreiro de Freitas e Paraíso (2001).
vi
Emboscada violenta ao inimigo ou opositor. As tocaias eram motivadas por quaisquer situações, desde o
tradicional antagonismo político, até questões conjugais.
vii
Guerreiro de Freitas e Paraíso (2001) nos mostram que a população de Ilhéus cresceu entre 1980 e 1920 com a
taxa média superior à 6% aa. Entre 1920 e 40, a taxa média se mantém em 3% ao ano.

15
 

Contradições do Modelo de Gestão em Saúde Indígena

Maria Clara Vieira Weiss (ISC/UFMT)


Marcia Leopoldina Montanari Corrêa (ISC/UFMT)
Aparecida Fátima Camila Reis (FAEN/UFMT)

RESUMO
A partir da atividade como representante gestor da Universidade Federal de Mato
Grosso no Conselho Distrital de Saúde Indígena de Cuiabá - MT observamos que o
processo decisório se dá em meio a árdua disputa entre os direitos constitucionais, a
autonomia e a autodeterminação preconizada na Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas (UNESC0, 2007) no contexto neoliberal da gestão do
subsistema de saúde indígena no SUS (BRASIL, 1999; 2002; 2003; 2012). As medidas
contraditórias adotadas na gestão da saúde indígena limitam o acesso dos povos
indígenas aos serviços de saúde nas aldeias e municípios, a adequação das ações de
saúde às diferenças culturais e a participação indígena nas decisões que os afetam. Esses
limitantes são agravados pela falta de comprometimento das administrações públicas
estaduais e municipais com os princípios organizacionais do sistema universalista de
saúde vigente dificultando a sobrevivência nos territórios indígenas (WEISS e
BORDIN, 2013). As contradições no campo político e institucional da gestão do
subsistema de atenção à saúde indígena geram descontentamento e desconfiança entre
os usuários e profissionais de saúde, a adequação da organização dos distritos sanitários
implica no seu serviço à cidadania e emancipação dos povos indígenas.

Palavras – Chave: Saúde Indígena, Gestão Democrática, Participação Cidadã.

1. INTRODUÇÃO

1  
 
 

O período de revisão da Constituição Brasileira foi um marco na mudança


radical na configuração da identidade étnica no país, desde 1985 vários setores da
sociedade civil já debatiam a sua forma e conteúdo. A revisão da Convenção 107 sobre
populações indígenas e tribais, cujos conceitos inspiraram políticas integracionistas
(OIT, 1957), representou um avanço no reconhecimento desses povos como sujeitos
coletivos ao adotar o termo povos em vez de populações, além do reconhecimento de
sua identidade étnica específica e direitos históricos imprescritíveis nos direitos a
autonomia e a autodeterminação. A Convenção 169 “Sobre Povos Indígenas e Tribais”
da Organização Internacional do Trabalho, realizada em 1989, ressalta que:
“A consciência de sua identidade indígena deverá ser considerada como critério
fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da
presente Convenção” (OIT,1989).
A Constituição de 1988, como o mais alto documento legal de garantia de
direitos das populações indígenas, dentre eles, o amparo autônomo do Ministério
Público (RIBEIRO, 1995), no seu Artigo 231 refere que: “são reconhecidos aos índios
sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger
e fazer respeitar todos os seus bens”.
O Artigo 196 da Constituição Brasileira preconiza que “a Saúde é direito de
todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Para Oliveira (2009) os
princípios fundamentais constitucionais e do direito indígena à saúde estão arraigados
na concretização da dignidade da pessoa humana, da justiça social e do principio da não
discriminação.
Na década de 90, os movimentos indígenas ganharam forçai na eclosão dos
movimentos sociais, num contexto em que se consolidam as políticas neoliberais de
ajuste macroeconômico e de reforma estrutural na América Latina, incorporando novos
temas à agenda política, abrindo o campo de possibilidades sociais e a dialética da
emancipação entre as lógicas da identidade e redistribuição (BARRÉ, 1988;
DÁVALOS, 2005).
No Brasil, apesar da conjuntura política ainda desfavorável, as organizações
indígenas buscam a legitimidade da diversidade nacional lutando contra a opressão

2  
 
 

cultural e política. Para Dávalos (2012) a questão indígena na América Latina


permanece no centro da questão nacional, enquanto povos originários da civilização
pré-colombiana. O debate da interculturalidadeii deveria chamar a atenção de todos os
setores progressistas para elaboração de novas estratégias utilizando os instrumentos
tanto do marxismo como do indigenismo, dada a necessidade que o liberalismo tem de
integrá-los ao projeto capitalista, liberal e moderno. Para Ribeiro (1998), no que tenha
de apreensível na vida e na história, deve ser lida através da observação direta ou da
reconstituição histórica criteriosa de contextos sociais concretos.
Para Motta (2007) as novas inspirações ideológicas da Reforma Administrativa
delinearam a ideia de que os governos não conduziriam ao progresso sozinho,
consequentemente à descrença na administração pública. A redução do Estado e a
modernização da administração pública tornaram-se uma nova agenda política, com
transferência de funções estatais para a área privada e as demais, administradas com
formas próximas das praticadas nas empresas privadas, porém com a representação
democrática como premissa. Além da ênfase na eliminação, privatização e terceirização
de serviços, a ideologia liberal centrada no indivíduo propõe com maior vigor métodos
de avaliação de desempenho individual e organizacional.
Assim, o modelo de gestão adotado na atenção à saúde indígena no país
considerando a lógica de parceria público-privado do Governo Federal nas últimas
décadas apontam contradições na garantia dos direitos constitucionais destes povos no
Brasil.

O modelo de atenção à saúde indígena no contexto neoliberal brasileiro

A situação dos povos indígenas tem sido discutida em Conferências Nacionais de


Saúde (CNS) e de Saúde Indígena (CNSI) na perspectiva de garantir seus direitos
constitucionais à saúde e qualidade de vida (Quadro 1).

CNS Ano Temas CNSI Ano Temas Principais


8ª 1986 Saúde como direito. Reformulação do 1ª 1986 Criação da secretaria executiva
sistema de saúde. Financiamento no Ministério da Saúde

3  
 
 

9ª 1992 Municipalização é o caminho 2ª 1993 Diretrizes da PNSI


Cidadania. Gestão e Organização.
10ª 1996 Controle social. Financiamento. 3ª 2001 Obstáculos e avanços na
Recursos Humanos. Atenção Integral implantação dos DSEIs no SUS
11ª 2000 Efetivando o SUS
DSEI – Território de produção
12ª 2003 Saúde direito de todos e dever do 4ª 2006 de saúde, proteção da vida e
Estado valorização das tradições
13ª 2007 Saúde e qualidade de vida, políticas de
Estado e desenvolvimento Acesso, Diversidade e Atenção
14ª 2011 SUS na Seguridade Social, Política 5ª 2013 Diferenciada no Sistema Único
Pública e Patrimônio do Povo de Saúde
Brasileiro
Quadro 1: Conferências Nacionais de Saúde (CNS) e Conferências Nacionais de Saúde Indígena,
realizadas depois da Nova República.Fonte: BRASIL, 2009; 2012

Essas discussões têm defendido a proposta da implantação de modelos


diferenciados, com base nas diretrizes constitucionais do Sistema Único de Saúde
(SUS) e nas peculiaridades das diferentes etnias como: situação de contato, dinâmica do
perfil epidemiológico, mudanças das práticas do sistema médico tradicional e o
moderno; situação geográfica e sua implicação na continuidade das ações de saúde.
As conferências de saúde indígena têm sido marcadas por tensões e confrontos na
busca de garantia dos direitos constitucionais e adequação do modelo de saúde às
necessidades nos contextos locorregionais. A realização da 5ª CNSI em 2013 foi
fundamental diante das mudanças da gestão da Fundação Nacional de Saúde (Funasa)
para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), proposta da primeira conferencia
realizada em 1986, e das discussões sobre as responsabilidades políticas do Estado e
formação de políticas públicas no setor saúde nos últimos anos.
O Decreto nº 3.156, 27 de agosto de 1999, que dispôs sobre as condições para a
prestação de assistência à saúde dos povos indígenas, no âmbito do SUS, preconiza que
a organização das atividades de atenção à saúde deve se efetivar, progressivamente, por
intermédio de Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei), ficando assegurados os
serviços de atendimento básico no âmbito das terras indígenas e a participação de
representantes dos usuários, das organizações prestadoras de serviços e dos
trabalhadores de saúde no Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) de cada um
dos 34 Dsei distribuídos em todo país.

4  
 
 

Figura 1: Localização dos DSEIs no Brasil e no Estado de Mato Grosso


Fonte: Secretaria de Saúde Indígena – Ministério da Saúde (BRASIL,2012)

Contradições da gestão do subsistema de saúde indígena no Mato Grosso

A gestão do subsistema de saúde indígena, de responsabilidade do Ministério da


Saúde, se mostra orientada para o modelo gerencial, por meio da interveniência
terceirizada de ONG´s, OSCIPS e Fundações desde sua implantação. As perspectivas
apresentadas por este modelo orientaram a Reforma Administrativa do Estado
Brasileiro na década de 90 baseadas nas reformas da Inglaterra e Estados Unidos. No
ano de 1995, no decorrer do governo FHC, foi apresentado o Plano Diretor de Reforma
do Estado, proposto pelo então ministro Bresser-Pereira. Este Plano foi viabilizado pela
Emenda Constitucional 19 de 04 de junho de 1998.
O modelo Gerencial compreende três dimensões: a) institucional-legal, voltada
à descentralização da estrutura organizacional do aparelho do Estado através da criação
de novos formatos organizacionais, como as agências executivas, regulatórias, e as
organizações sociais; b) gestão, definida pela maior autonomia e a introdução de três
novas formas de responsabilização dos gestores – a administração por resultados, a
competição administrada por excelência, e o controle social – em substituição parcial
dos regulamentos rígidos, da supervisão e da auditoria, que caracterizam a
administração burocrática; c) cultural, de mudança de mentalidade, visando passar da
desconfiança generalizada que caracteriza a administração burocrática para uma

5  
 
 

confiança maior, ainda que limitada, própria da administração gerencial. (MATIAS-


PEREIRA, 2012) Para o autor, este novo modelo de gestão diferenciava-se do modelo
burocrático por seguir os princípios do gerencialismo, enfatizando a profissionalização e
uso de práticas de gestão do setor privado, e classificando as atividades do estado em
exclusivas e não-exclusivas.
As atividades não exclusivas do estado compreendem as atividades auxiliares ou
de apoio e os serviços de caráter competitivo. Como atividade auxiliar ou de apoio,
caracterizam-se limpeza, vigilância, transporte, entre outros, sendo submetidas à
licitação pública e contratadas com terceiros.
Os serviços de caráter competitivo, cuja gestão é considerada possível para os
setores não públicos, são representados pelas atividades científicas e pelos serviços
sociais, nos quais se integram a educação, a assistência social, o ambiente, a cultura e a
saúde. Segundo as características do modelo gerencial, estas podem ser prestadas tanto
pela iniciativa privada, quanto pelas organizações sociais que caracterizam o setor
público não-estatal.
Desde a criação do Subsistema de Saúde Indígena observa-se uma forte
tendência à terceirização, tanto das atividades – meio, quanto das atividades-fim, ou
seja, contratualização de empresas para a execução de serviços de apoio (limpeza,
vigilância, transporte), como a contratação de profissionais de saúde, pelas “parceiras”
(Fundações de Apoio, ONG´s, OSCIP e municípios) na assistência à saúde nas aldeias.
Apesar da criação da SESAI em 2010, compondo a estrutura organizacional do
Ministério da Saúde, vislumbrando aos DSEI a perspectiva de se tornar autônomo na
gestão orçamentária e financeira dos recursos da saúde indígena, os antigos modelos de
gestão executados à época da FUNAI e FUNASA permaneceram não proporcionando
avanços na gestão direta dessas unidades e a tão almejada autonomia não veio. Essa
dicotomia é percebida por Paula (2005, pag 45) na crítica ao modelo gerencial, que
“mesmo tendo um projeto bem definido, a reforma causou uma fragmentação do
aparelho do estado, pois os novos formatos organizacionais não substituíram os antigos,
havendo uma convivência de ambos.”
As mudanças interinstitucionais na gestão da saúde indígena, na esfera federal,
vêm se dando no contexto da reforma do Estado, desde 1991, quando atribuída ao
Ministério da Saúde. A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas
aprovada pela Portaria do Ministério da Saúde nº 254, de 31 de janeiro de 2002
determina que: “os órgãos e entidades do Ministério da Saúde, cujas ações se

6  
 
 

relacionem com a temática indígena promovam a elaboração ou a readequação de seus


planos, programas, projetos e atividades na conformidade das diretrizes e
responsabilidades nela estabelecidas”. Integrada à Política Nacional de Saúde,
compatibiliza as determinações das Leis Orgânicas da Saúde e da Constituição Federal,
reconhecendo aos povos indígenasiii suas especificidades étnicas e culturais, e seus
direitos sobre a terra (BRASIL, 2002).
No período de 1991 a 2010, a falta de aparelhamento da Funasa (1991-
2010), então órgão gestor federal, implicou na contratação de quadro para formação da
Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) para atenção à saúde nas aldeias e
na estruturação do modelo de atenção à saúde através da terceirização. Dessa forma, o
cumprimento dos deveres do Estado se deu por convênios com ONGs ou parcerias
como os municípios para contratação de profissionais de saúde. No Mato Grosso foram
realizados convênios com a ONG “Trópicos”, a Fundação de apoio UNISELVA da
UFMT, a ONG Operação Amazônia Nativa - OPAN, a Associação Indígena Halitinã,
municípios, dentre outros. Atualmente a Associação Paulista para o Desenvolvimento
da Medicina  (SPDM) sediada em São Paulo gerencia as ações de saúde na abrangência
do DSEI Cuiabá – MT, no que se refere à contratação dos profissionais de saúde.
Diante deste cenário, que se reproduz no país, recentemente a SESAI-MS
apresentou a proposta de criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena - INSI para a
execução orçamentária e financeira dos recursos destinados à saúde e saneamento
indígena para contratação de trabalhadores em regime celetista, sem concurso público,
além da aquisição de equipamentos e serviços com dispensa de Licitação,
desconsiderando que uma gestão pública democrática envolve o compasso entre as
dimensões econômico-financeiras; Institucional-administrativa e sociopolítica. No caso
das populações indígenas, a dimensão sociocultural é fundamental no atendimento ao
princípio da equidade do SUS e na garantia do direito à saúde.
A estratégia do Ministério da Saúde foi apresentar a proposta para implantação
imediata do INSI. No caso do DSEI Cuiabá, a proposta foi amplamente discutida e ao
final, rejeitada pela maioria dos conselheiros. No entanto, no cenário nacional, a
proposta foi aprovada pela maioria dos Conselhos Distritais - CONDISI no país. Ainda
não foi implantada devido à intervenção do Ministério Público Federal que solicitou
maiores esclarecimentos sobre o modelo de gestão proposto. As contradições entre o
modelo de gestão gerencial praticado nas instituições foram evidenciadas no decorrer do
processo de apresentação da proposta do INSI diretamente aos Conselhos Distritais de

7  
 
 

Saúde Indígena (CONDISI) em reuniões no ano de 2014, considerando-os como


instancia deliberativa de decisões que afetam diretamente a vida nas aldeias, não adotou
as recomendações da Convenção 168 sobre a consulta aos Povos Indígenas e Tribais
(OIT, 1989).
Por outro lado, no Estado de Mato Grosso e, em grande maioria nos demais
estados da federação, em nível local, se travam conflitos históricos na disputa de
territórios entre índios e proprietários de terra, frequentemente agravados pela
emancipação dos municípios e grandes empreendimentos, como o agronegócio,
mineração e construção de hidrelétricas decorrentes da política de desenvolvimento
econômico regional que dificultam a execução de políticas públicas direcionadas a estes
povos.
As terras indígenas e seu contingente populacional estão localizados
majoritariamente na fronteira com países da América do Sul: Uruguai, Argentina,
Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela e a Guiana, Suriname e Guiana Francesa.
Algumas etnias circulam entre os países fronteiriços, devendo ser considerado o
processo de ocupação das fronteiras e o contato interétnico destes povos na
determinação do perfil saúde-doença e no acesso aos serviços de saúde, que
frequentemente envolve relações interinstitucionais internacionais, como o caso da etnia
Chiquitano no Mato Grosso, fronteira com a Bolívia (Figura 1).
Para Barros (2012), a garantia dos direitos constitucionais é um grande desafio
diante do abismo existente entre o pensar biomédico e o pensar das populações
indígenas, que articulam o processo saúde-doença à cosmologia. A falta deste
reconhecimento influencia negativamente toda a articulação e acesso aos serviços de
saúde, os estudos sobre a avaliação da atenção à saúde de povos indígenas no Estado de
Mato Grossoiv têm demonstrado uma enorme distância entre o que é declarado e
formalizado nos planos elaborados de acordo com as normatizações e o que
efetivamente ocorre no cotidiano dos serviços e no fluxo dos usuários indígenas
(VARGAS e col., 2010; FAGUNDES e WEISS, 2011; CINTRA e col., 2012; WEISS e
BORDIN, 2013).
As dificuldades de acesso aos serviços de saúde, vinculado ao imperativo
geográfico das terras indígenas, e o deslocamento da aldeia ao sistema local de saúde
referenciado, conflitam com os conceitos de integralidade e equidade do SUS. Na
discussão dos resultados nos Polos Base e conselho distrital (CONDISI), numa
perspectiva de avaliação participativa, foi recomendado aos gestores: estruturação de

8  
 
 

organização da atenção à saúde indígena; adequação dos programas de saúde às


condições epidemiológicas e de risco, e ao sistema tradicional de saúde; pactuação com
os municípios de referência, ressaltando a valorização étnica e direitos constitucionais
dos povos indígenas; elaboração do Plano Distrital de Saúde Indígena (PDSI) com
maior participação dos profissionais envolvidos com a saúde indígena; e, maior
articulação entre a gestão da saúde indígena com os gestores municipais e estaduais de
saúde. Esses são apenas alguns fatores que dificultam o reconhecimento dos direitos dos
povos indígenas, a diferenciação étnico-cultural e sua participação nos planos e
programas que dizem respeito a sua sobrevivência (OPAN; 2010; WEISS e BORDIN,
2013). A discussão desses resultados visando o fortalecimento da participação social e
mudanças no processo de tomada de decisões, não tem se dado sem dilemas e
contradições devido aos contextos regionais nos quais se dão o confronto entre os
interesses econômicos do Estado e a garantia dos direitos sociais no Mato Grosso.
Numa reflexão para uma reforma democrática do Estado, Nogueira (1998) refere
que o Brasil como um país nitidamente marcado pela falta de sintonia entre os tempos
de economia, de política, da sociedade e da cultura, reitera a capitulação diante do
passado que se prolonga através de múltiplas sedimentações e cristalizações como
citado por Marx:
“atormentados pelos vivos e também pelos mortos”, oprimidos pelos “males
modernos” e pelos “males herdados, originários de modos de produção arcaicos,
caducos com seu séquito de relações políticas e sociais contrárias ao espírito do
tempo” (apud NOGUEIRA, 1998).
Os direitos territoriais indígenas se esboçam num cenário marcado por
transformações de uma geopolítica neoliberal, que vão além dos assuntos jurisdicionais
e administrativos, incorporando o debate das autonomias como forma de realização da
autodeterminação (LLANCAQUEO, 2005) frente as várias medidas provisórias e
portarias deliberadas por interesses econômicos do Estado “neoliberal” que vêm
ameaçando a integridade física e cultural dos povos indígenas no Brasil. Para Santos et
al (2009. p. 930) “a essência das organizações perpassa o espectro das relações sociais
internas e se estabelece nos limites das relações sociais mais amplas; portanto, no
âmbito da sociedade”.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

9  
 
 

Para Santos et al (2009) as organizações enquanto objeto de pesquisa, além da


administração, também são objetos da antropologia, da sociologia, da economia, da
medicina. Nesse sentido, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) traz uma
reflexão essencial sobre a participação das organizações indígenas na formulação de
políticas públicas e da contribuição do antropólogo numa nova construção de nação e de
cidadania no Brasil Contemporâneo (LANGDON e GARNELO, 2004). Neste
movimento, os povos indígenas fazem uso do discurso etnográfico para sustentar seus
projetos de territorialização e autonomia (TURNER, 1991 apud ARAÙJO, 2012). No
campo científico as pesquisas antropológicas, numa perspectiva crítica, não buscam
apenas interpretar a realidade, mas colocar em discussão questões como as de poder,
provocando discussões/práticas para mudanças estruturais (MADISON, 2005).
Nesta perspectiva, o “indigenismo alternativo” no Brasil (OPAN, 2010; CIMI,
2015) apontam a ética indígena do Bem Viver como alternativa ao modo capitalista de
produção, distribuição e consumo, como parte do discurso das resistências e das
mobilizações na Bolívia e no Equador. A ideia de desenvolvimento e acumulação
capitalista não existe na cosmologia indígena, ao contrário, numa visão holística, o
esforço humano deve buscar e criar condições materiais e espirituais para a vida em
plenitudev. Para Clastres (2007) as sociedades indígenas são naturalmente contra o
Estado, pois dependem de uma forma de organização que passa por um desejo coletivo,
assegurados na constituição brasileira. Nesta organização social o chefe está a serviço
da sociedade e o seu reconhecimento é pela competência e superioridade técnica, jamais
transformada em autoridade política, nela quem exerce o poder é a sociedade.
Entretanto, as discussões sobre a implantação do INSI continuam e avançam,
mesmo com ampla mobilização de organizações indígenas e indigenistas, como
claramente evidenciado no documento do CIMI (2014), intitulado Dossiê Saúde
Indígena. Tal situação reforça a perversa lógica de um modelo mais preocupado em
atender os interesses da máquina pública do que com as reais necessidades da
população, as contradições no campo político e institucional da gestão do subsistema
de atenção à saúde indígena geram descontentamento e desconfiança entre os usuários e
profissionais de saúde. Para a garantia da gestão democrática conforme preconizado na
Política Nacional de Atenção á Saúde Indígena (BRASIL, 2002), se faz necessário
avançar nas análises sobre a organização dos DSEIs a partir das contribuições teórico-
metodológicas como da Administração Política, ou seja, considerando a gestão como

10  
 
 

um objeto da Administração para servir a cidadania e a emancipação dos sujeitos


(SANTOS et al, 2009).

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WEISS, M.C.V.; BORDIN, R. Estratégias de atenção à saúde no DSEI Cuiabá. Porto
Alegre:DaCasa; 2013
 
Agradecimentos: Ao Prof. Dr. Paulo Emílio Matos Martins pela supervisão no pós-
doutoramento na ABRAS/EBAPE/FGV-RJ que originou este artigo

                                                                                                                       
i
Para Boaventura Santos (1997), as lutas mais importantes nos países centrais, ou mesmo periféricos e
semi-periféricos foram protagonizadas por grupos sociais congregados por identidades não diretamente
classistas (estudantes, mulheres, etnias, pacifistas, ecologistas, etc.) colocando em questionamento a
primazia explicativa das classes (pág. 39-42).
ii
Para Boaventura Santos (2009) nas condições para uma interculturalidade progressista compete à
hermenêutica diatópica transformar os Direitos Humanos numa política cosmopolita que ligue, em rede,
línguas diferentes de emancipação pessoal e social e as torne mutuamente inteligíveis e traduzíveis.
iii
Conforme resolução Nº. 304, de 09 de agosto de 2000 o Conselho Nacional de Saúde adota o termo
povos com organizações e identidades próprias, em virtude da consciência de sua continuidade histórica
como sociedades pré-colombianas, e conforme recomendação daConvenção 107 (OIT, 1989)
iv
Projeto de Pesquisa Avaliação das estratégicas loco-regionais de articulação entre os níveis de cuidado
à saúde: estudo de múltiplos casos nos estados do Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pernambuco
financiado pelo CNPq sob a coordenação da Profª. Drª. Maria Ceci Araujo Misoczky. No Mato Grosso o
estudo de casos foi realizado noPólo-Base Rondonópolis (VARGAS e col., 2010; FAGUNDES e WEISS,
2011) e no Polo Base Tangará da Serra (CINTRA e col., 2012). No período de 2008-2011 foi
desenvolvido o mesmo modelo de estudo financiado pelo CNPq nos Polos-Base Cuiabá, Brasnorte,
Sapezal e Chiquitano (WEISS e col., 2011)
v
Sumak Kawsay (Quéchua, no Equador) – “Bom Viver” ou Suma Qamaña (Aimara, na Bolívia) – “Viver
Bem” (Dávalos, 2005 e 2012;Misoczky, 2010)

15  
 
ANEXO I

Tabela 1. Universidades Federais Brasileiras de Ensino Superior


com Cursos de Pós-Graduação Stricto Sensu Recomendados Pela Capes:
Informação sobre o Plano Anual de Capacitação (PAC)
Possui PAC?
Universidade Página E-mail
Ano da última
Federal Eletrônica Institucional
edição
UNB http://www.dgp.unb.br/images/stories/media/cursos_procap/catalogo_2014. secom@unb.br Sim/2014
pdf
UFG https://www.ufg.br/p/7554-relatorio-de-gestao-2014-2017 rodirh@ufg.br Não (Plano de
Gestão/2014-2017)
UFMS http://progep.sites.ufms.br/coordenadorias/desenvolvimento-e- cdr@ufms.br Sim/2015
recrutamento/educacao-continuada/qualificacao-tecnico-administrativo/
UFGD http://200.129.209.183/arquivos/arquivos/78/PROGESP/PROGRAMA%20 progesp.codas@ufgd.edu.br Não
DE%20CAPACITA%C3%87%C3%83O-Aprov.%20COUNI%20- (Programa de
%20res%20083-2013.pdf x Capacitação e
Qualificação dos
Cargos Técnico-
Administrativos)
UFMT http://www.ufmt.br/sgp/arquivos/1ca46e4a1fd2edd0672a23706bd79c60.pdf crh@ufmt.br Sim/ 2014
UFAL http://www.ufal.edu.br/servidor/desenvolvimento/capacitacao/acoes/plano- atendimento@nti.ufal.br Sim/ 2015
anual-de-capacitacao-pac-2015
UFBA http://www.capacitar.ufba.br/sites/capacitar.ufba.br/files/plano_de_capacitac prodep@ufba.br Sim/ 2015
ao_2015.pdf
UFRB http://www.ufrb.edu.br/progep/images/documentos/PACAP_2014.pdf progep@ufrb.edu.br Sim/ 2014
UFC http://www.ufc.br/servidores/cursos-de-capacitacao-e-aperfeicoamento codec.progep@ufc.br Não
UFMA http://portais.ufma.br/PortalProReitoria/prh/paginas/pagina_estatica.jsf?id=7 dicap@ufma.br Não
5
UFPB/J.P. http://www.ufpb.br/sods/consuni/resolu/2014/Runi27_2014.pdf progep@progep.ufpb.br Sim/ 2015
UFCG http://www.srh.ufcg.edu.br/index.php?option=com_content&view=article&i cgdp.srh@ufcg.edu.br Não
d=28&Itemid=23
UFPE https://www.ufpe.br/progepe/index.php?option=com_content&view=article smal@ufpe.br Não
&id=66&Itemid=130 (Programa de
Capacitação e
Qualificação 2006)
Possui PAC?
Universidade Página E-mail
Ano da última
Federal Eletrônica Institucional
edição
UNIVASF http://blogdoservidor.univasf.edu.br/images/artigos/PAC2015.pdf ascom@univasf.edu.br Sim/2015
UFRPE http://www.sugep.ufrpe.br/sites/ww2.sugep.ufrpe.br/files//servicos/documen http://www.sugep.ufrpe.br/conta Sim/2014
tos/programa_qualificar_edital.pdf ct
UFPI http://www.ufpi.br/arquivos/File/2012/Resolucao_%20N015- comunicacao@ufpi.edu.br Sim/ 2013
2012_CD_PACAQ.pdf
UFRN http://www.sistemas.ufrn.br/shared/verArquivo?idArquivo=1019036&key= progesp@reitoria.ufrn.br Sim/ 2012
721e70077df825ddcef0786d817b6ea7
UFERSA http://www2.ufersa.edu.br/portal/view/uploads/setores/132/PLANO%20AN abigail.araújo@ufersa.edu.br Sim/2014
UAL%20DE%20CAPACITA%C3%87%C3%83O%20DOS%20SERVIDO
RES%20T%C3%89CNICO%202014.2_4.pdf
UFS http://www.ucufs.ufs.br/mod/page/view.php?id=11867 grh@ufs.br Sim/ 2015
http://grh.ufs.br/pagina/programa-anual-capacita-1514.html
UFAC http://www.ufac.br/portal/informativos-oficiais/plano-de-capacitacao-do- ddd@ufac.br Sim/2015
quadro-de-pessoal-tecnico-administrativo/PlanoCapacitacao2015.pdf
UFAM http://200.129.163.13/portais/anexos/anexos_procomun/wp- ascom@ufam.edu.br Sim/ 2015
content/uploads/2015/03/PAC-2015.pdf
UNIFAP x
UFOPA x
UFPA x
UFRA https://portal.ufra.edu.br/images/PAC_APROVADO_CONSAD_FINAL.pdf dcad@ufra.edu.br Sim/2015
UNIR x
UFRR x
UFT http://download.uft.edu.br/?d=7f5334a4-ecd7-4193-b860- ddh@uft.edu.br Não
d12ae811c94e;1.0:programa_desenvolvendo_os_talentos_humanos_da_uft_ (Plano de
3705.pdf Desenvolvimento
dos Integrantes do
Plano de Carreira
dos Cargos
Técnico-Adminis-
trativos 2006)
UFES http://progep.ufes.br/sites/default/files/anexo1_02-14.pdf progep@ufes.br Sim/ 2014

UNIFAL http://www.unifal- rh@unifal-mg.edu.br Sim/2014


mg.edu.br/progepe/files/Plano%20Anual%20de%20Capacita%C3%A7%C3
%A3o%202014(1).pdf
Possui PAC?
Universidade Página E-mail
Ano da última
Federal Eletrônica Institucional
edição
UNIFEI http://www.unifei.edu.br/files/arquivos/capacitacao/Plano-de-Capacitacao- brauliobueno@unifei.edu.br Sim/ 2012
2012-Itajuba-e-Itabira.pdf
UFJF http://www.ufjf.br/prorh/files/2011/02/Edital-PROQUALI-02-2015- secretaria.prorh@ufjf.edu.br Sim/2015
Publicado.pdf
UFLA http://www.prgdp.ufla.br/site/wp-content/uploads/2015/03/Plano- prgdp@prgdp.ufla.br Sim/2015
Capacitacao-2015-web.pdf
UFMG https://www.ufmg.br/ead/site/images/editais/2015/Edital016-2015.pdf ead@ufmg.br Sim/2015
UFOP http://www.proad.ufop.br/cgp/adp/capacitacao/apresentacao.html adp@proad.ufop.br Não
UFSJ http://www.ufsj.edu.br/portal2- reitoria@ufsj.edu.br Sim/ 2015
repositorio/File/progp/capacitacao/PAC%202015.pdf
UFU x
UFV x
UFTM http://www.uftm.edu.br/capacitacao/images/Cursos2015/Folder%2023-04- capacitacao@prorh.uftm.edu.br Sim/2015
15.pdf
UFVJM http://www.ufvjm.edu.br/rh/index.php?option=com_docman&Itemid=38 drh@ufvjm.edu.br Sim/ 2015
UNIRIO http://www.unirio.br/progepe/informacoes-gerais-1 progepe@unirio.br Não
UFRJ http://www.sintufrj.org.br/CS/CAR/documentocarreira.pdf sfp@pr4.ufrj.br Sim/2006
UFF http://www.noticias.uff.br/noticias/2015/03/PAC%202015%20- dcqcpta@vm.uff.br Sim/2015
%20vers%C3%A3o%20final%20.pdf
UFRRJ http://www.ufrrj.br/codep/avisos/PAC%202015%20Final.pdf codep@ufrrj.br Sim/ 2015
UFABC x
UFSCAR http://pacc.sead.ufscar.br/ codap@sead.ufscar.br Sim/2015
UNIFESP https://www.unifesp.br/reitoria/propessoas/images/Capacitacao/Regulament capacita.ddgp@unifesp.br Sim/2015
o_Progr_Capacita%C3%A7%C3%A3o_2015_aprovado_CONPESSOAS_-
_Procuradoria.pdf
UNILA http://www.unila.edu.br/sites/default/files/files/23422_006262_2015-15- Sim/ 2015
Proposta%20de%20resolu%C3%A7%C3%A3o%20rerente%20ao%20plano unila@unila.edu.br
%20anual%20de%20capacita%C3%A7%C3%A3o%202015-PAC2015.pdf
UFPR http://www.progepe.ufpr.br/progepe/documentos/cdp/Edital%20piq%20201 progepe@ufpr.br Sim/ 2015
5.pdf
UFCSPA x
UNIPAMPA x
UFPEL x
UFSM x
Possui PAC?
Universidade Página E-mail
Ano da última
Federal Eletrônica Institucional
edição
FURG http://www.progep.furg.br/arquivos/capacitacao_qualificacao/capacitacao_2 progesp.secretaria@furg.br Sim/2015
015.pdf
http://www.progep.furg.br/bin/capacitacao_qualificacao/index.php
UFRGS x
UFFS x
UFSC http://capacitacao.ufsc.br/Pac2015.html ccp.ddp@contato.ufsc.br Sim/2015
Fonte: A autora
Potencialidades e Limitações da Gestão de Programas Sociais no Brasil: Uma análise do
Programa Bolsa Família sob a ótica da Administração Política

Doraliza Auxiliadora Abranches Monteiro (UFBA)


Elizabeth Matos Ribeiro (UFBA)
Dennis Willian Lima de Oliveira (UFBA)

Resumo
O presente estudo visa analisar os fatores que limitam e potencializam a gestão de
programas sociais no Brasil, tomando como estudo de caso o Programa Bolsa Família (PBF),
considerado o maior programa de transferência de renda da América Latina. A abordagem
teórica do artigo perpassa na análise do Modelo de Gestão do Programa Bolsa Família e nas
temáticas da Gestão e Avaliação enfocando na perspectiva da Administração Política. A
opção metodológica para a realização da pesquisa foi o estudo de caso, tendo a coleta e
análise de dados primários como base na aplicação de questionários semiestruturados junto a
gestores estaduais e municipais do Programa no período de outubro de 2014 a janeiro de
2015. Como tratamento desses dados utilizou-se a análise de estatística descritiva e a análise
de conteúdo. Na primeira parte da apresentação dos resultados, é descrito o perfil pessoal e
profissional dos gestores respondentes que contemplam aspectos de: gênero, idade, grau de
instrução formal, tempo de experiência profissional, tempo de experiência com o PBF, bem
como carga horária de trabalho, tipo de vínculo empregatício e remuneração. Na segunda
parte, buscou-se descrever os principais achados da pesquisa que permitem inferir que os
fatores limitadores e potencializadores da gestão de programas sociais no Brasil estão
relacionados aos seguintes aspectos: profissionalização da gestão, contingente de servidores
nas funções técnicas, especialmente para atender as demandas da gestão compartilhada entre
estados e municípios; baixo nível de comunicação intergovernamental; política continuada de
capacitação e formação da equipe de trabalho; experiência com a utilização de banco de dados
e análise de indicadores de gestão e avaliação; infraestrutura administrativa das secretarias
estaduais e municipais; número de servidores públicos; e articulação, integração e
coordenação entre as esferas de governo na gestão do programa.

Potencialidades e Limitações da Gestão de Programas Sociais no Brasil: Uma análise do


Programa Bolsa Família sob a ótica Administração Políticai
1. Introdução
Este estudo visou analisar os fatores que limitam e potencializam a gestão de
programas sociais no Brasil tomando como estudo de caso o Programa Bolsa Família (PBF),
considerado o maior programa de transferência de renda da América Latina.
As políticas sociaisii tem assumido um lugar de destaque na agenda pública
contemporânea brasileira, movimento que ganha maior legitimidade com a promulgação da
Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã. A partir dos anos 90, as políticas
sociais ganham notoriedade, principalmente, com a consagração da Seguridade Social como
sistema articulador das políticas de Previdência, Saúde e Assistência Social. Para dar conta
dessa nova institucionalidade, os governos subnacionais, especialmente os municípios, foram
desafiados a construir novas estruturas administrativas e organizacionais que garantissem um
novo ciclo de políticas públicas que deveria integrar as etapas de concepção, implantação,
monitoramento e avaliação dessas ações públicas.
Esse movimento de mudança ganha uma nova institucionalidade, a partir de 2003,
com a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, responsável por
articular e integrar as diversas ações sociais sob a responsabilidade do governo federal. A
concepção desse novo modelo de gestão pública, baseada na promoção do desenvolvimento
através da inclusão social foi a base fundamental do governo de Luiz Inácio Lula da Silva,
denominado de “Plano de Governo Brasil para Todos” (2003-2007). Com essa plataforma e
compromisso políticos, pode-se afirmar que havia uma clara percepção por parte do governo
de que a retomada do crescimento sustentável (com inclusão social) do País passava pela
integração e articulação de um conjunto de políticas sociais que tinham como objetivo central
garantir o acesso à renda de milhões de brasileiros que se encontravam fora do mercado.
Nesse contexto, as políticas sociais lideradas pelo MDS ganham centralidade e passam
a assumir um papel de indutoras de novos processos de desenvolvimento socioterritoriais, o
que significa reconhecer a necessidade de se promover/estimular novos processos de
aprendizagem em gestão de políticas públicas, especialmente como medidas de apoio as ações
do poder local. Pode-se afirmar que o MDS ganha status de órgão competente e responsável
pela promoção da transversalidade das políticas públicas no Brasil, a partir daquele momento,
exigindo, assim, uma capacidade progressiva de indução e estímulo de processos de
aprendizagens, especialmente junto aos municípios, entes responsáveis pela implantação e
acompanhamento das políticas sociais. Esse novo processo de institucionalização representou
um aumento significativo dos investimentos do governo federal em políticas de proteção,
assistência e desenvolvimento social, traduzidas na implantação de diversos programas e
ações de transferência de renda, segurança alimentar e nutricional, assistência social e
inclusão produtiva, criados a partir daquele momento (SOUSA, 2006).
Os Programas sociais definidos pelo governo federal são motivados pela missão
central do MDS que consiste em promover a inclusão social e a emancipação das famílias
brasileiras, com vistas à erradicação da fome e da miséria por meio de políticas públicas de
proteção e promoção social (MDS, 2007). De acordo com o Ministério (2013), cerca de 60
milhões de pessoas são beneficiadas por seus programas, demonstrando, desse modo, a grande
cobertura de serviços e a dimensão da atual rede de proteção social nacional, especialmente da
região nordeste e norte.
Para dar conta desse desafio institucional, o MDS foi estruturado em diversas
secretarias que exercem o papel de execução, avaliação e articulação institucional
respectivamente, responsáveis pela gestão dos programas sociais assumidos pelo governo
federal. O desenho organizacional do MDS contempla a seguinte estrutura: a Secretaria
Nacional de Renda de Cidadania (SENARC), a Secretaria Nacional de Assistência Social
(SNAS) e a Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SESAN), formando,
assim, um conjunto de órgãos responsáveis pela execução das macro políticas e programas
sociais do país. O Ministério conta, ainda, com outras duas Secretarias: a Secretaria de
Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) e a Secretaria Extraordinária para a superação da
Extrema Pobreza (SESEP).
Dentro da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC) nasce, em 2003, o
Programa Bolsa Família (PBF), representando, assim, um dos maiores desafios do governo
federal orientado em alcançar os objetivos estratégicos de combater a pobreza, potencializar a
inclusão social e promover/estimular o desenvolvimento socioeconômico/socioterritorial. O
PBF assume, portanto, grande destaque por ser considerado um programa de transferência
direta de renda com condicionalidades cujo objetivo fundamental era beneficiar famílias em
situação de extrema pobreza. Por essas razões, é considerado por muitos autores como o
principal programa de transferência de renda do Brasil chegando a beneficiar, até fevereiro de
2015, cerca de 14 milhões de famílias com um investimento realizado de, aproximadamente,
R$ 2 bilhões ao ano (MDS, 2015).
A partir do governo Dilma, 2011, esta política passou a integrar o “Plano Brasil Sem
Miséria (BSM)” que tem como meta incluir 16 milhões de famílias brasileiras com renda
familiar per capita inferior a R$ 70 mensais. As novas metas do PBF estão fundamentadas
nos seguintes objetivos estratégicos: garantia de renda, inclusão produtiva e o acesso aos
2
serviços públicos (BRASIL, 2013). Para alcançar esse objetivo, o governo definiu como
diretrizes fundamentais a articulação de três dimensões essenciais à superação da pobreza: (a)
a promoção do alívio imediato da pobreza, por meio da transferência direta de renda à família;
(b) o reforço ao exercício de direitos sociais básicos nas áreas de Saúde e Educação, por meio
dos cumprimentos das condicionalidades; e (c) a coordenação de programas complementares
oferecidos pelos municípios tais como: programas de geração de trabalho e renda,
alfabetização de adultos e jovens, incentivo ao microcrédito produtivo, fornecimento de
registro civil e demais documentos.
O PBF atende famílias em todo território nacional, de acordo com o perfil e tipos de
benefícios: básico, variável, variável vinculado ao adolescente (BVJ), variável gestante
(BVG) e variável nutriz (BVN) e o Benefício para Superação da Extrema Pobreza (BSP). Os
valores dos benefícios pagos pelo PBF variam de acordo com as características de cada
família, considerando a renda mensal familiar por pessoa, o número de crianças e
adolescentes de até 17 anos, de gestantes, nutrizes e de componentes da família (BRASIL,
2013).
É importante destacar que o Programa em análise emerge em um contexto
socioeconômico mais amplo, marcado pela miséria, pobreza e desigualdade social. Fenômeno
que se manifesta tanto nos países capitalistas desenvolvidos, como também assume efeitos
ainda mais perversos nas nações consideradas em desenvolvimento que, além de refletir as
consequências negativas advindas de um ambiente econômico permeado por um alto nível de
desemprego e baixo rendimento proveniente do trabalho, tem que enfrentar os problemas
advindos do crescimento da violência e da criminalidade.
Desta maneira, os padrões de gestão que tem orientado tal política no Brasil têm como
base a descentralização financeira, administrativa e técnica, compartilhada pela União,
Estados, Distrito Federal e Municípios. Segundo os padrões federativos que orientam o
ordenamento jurídico brasileiro, os três entes federados deverão trabalhar em conjunto, de
forma integrada, para aperfeiçoar, ampliar e fiscalizar a execução do PBF. Apesar da União e
Estados terem papel relevante nesse arranjo institucional, a Constituição Federal preservou
um espaço de maior destaque para os municípios, por ser o ente mais próximo dos cidadãos.
Aos municípios cabe, portanto, a responsabilidade direta pela gestão e gerência do Programa,
tendo nos instrumentos de acompanhamento e avaliação das famílias e atendimento das
condicionalidades fundamentais (políticas de saúde e educação) a base fundamental de gestão
da política e as bases do investimento em capital humano.
Sendo assim, os principais deveres dos entes federativos para a execução do PBF estão
dispostos no quadro 1.

3
Federal § Alocar recursos;
§ Regular a política;
§ Avaliar os programas sociais.
Estadual § Articulação de programas complementares;
§ Monitorar e orientar os municípios para melhorar a gestão do Programa Bolsa
Família.

Municipal § Assumir a interlocução política entre a prefeitura, o MDS e o Estado para a


implementação do PBF e do Cad Único;
§ Articulação e coordenação entre as áreas envolvidas do Programa
(Assistência Social, Educação e Saúde) para o acompanhamento dos
beneficiários;
§ Coordenar a execução dos recursos transferidos pelo governo federal nos
municípios;
§ Implementação de programas complementares ao programa nas áreas de: a)
alfabetização e educação de jovens e adultos; b) capacitação profissional; c)
geração de trabalho e renda; d) acesso ao microcrédito produtivo orientado; e
e) desenvolvimento comunitário e territorial, entre outros.

Quadro 1 – Síntese dos deveres dos entes federativos na execução do PBF


Fonte: Elaboração própria.
Dessa maneira, a concepção e implantação da Política Nacional de Transferência de
Renda, é de compartilhamento de responsabilidades da União, Estados e Municípios,
caracterizando-a como uma política multifederativa. A União assume o papel de definir a
alocação de recursos e definir ações de acompanhamento e avaliação, devendo contribuir para
que os estados e, principalmente, os municípios alcancem as metas e os resultados esperados.
Com base neste contexto histórico-analítico, este estudo define como objetivo
analisar os fatores que limitam e potencializam a gestão de programas sociais no Brasil,
tomando como objeto de estudo o Programa Bolsa Família (PBF). Para tanto, serão
tomadas como unidades de análises, municípios brasileiros de quatro importantes estados,
baseando-se na percepção dos gestores responsáveis pelo programa nas esferas subnacionais.

2. Abordagem Teórica
Para fundamentar e contextualizar o estudo foi definido como base teórica discutir
alguns aspectos sobre Avaliação de Políticas Públicas e o Modelo/Padrão de Gestão do
Programa Bolsa Família à Luz da Teoria da Administração Política.

2.1 Uma Aproximação ao Conceito de Administração Política para uma Análise Crítica
e Contextualizada da Gestão do PBF nos Municípios
Para Santos, Ribeiro e Chagas (2009), o ato de administrar se manifesta em duas
dimensões articuladas e integradas: uma seria a dimensão da gestão, definida como a
concepção das formas de condução das relações sociais de produção e distribuição e a outra
seria a dimensão da gerência, definida como a ação, o ato de fazer, a materialização daquilo
que fora concebido no plano da gestão. Os autores fazem distinção entre o significado e
função do ato de pensar e agir administrativos, ressaltando que enquanto a gestão reflete a
capacidade de conceber, de conduzir um dado padrão, conteúdo e sentido ao ato
administrativo, a gerência reflete a execução das práticas administrativas nas organizações.
Com base nessa definição, pode-se inferir que do ponto de vista da concepção da
gestão, o Programa Bolsa Família é um programa de transferência de renda com
condicionalidades que prevê combater o ciclo intergeracional da pobreza, via transferência de
recursos financeiros diretamente aos municípios e beneficiários, bem como objetiva atuar
diretamente na promoção do acesso aos serviços básicos de educação e saúde para as famílias
beneficiadas. Com base nessa definição pode-se concluir que a concepção do programa está
4
centralizada na esfera federal e sua gerência fica a cargo das municipalidades, contando com o
suporte dos governos estaduais, especialmente no que diz respeito à formação e avaliação. Em
tese esse seria uma concepção interessante na medida em que reflete o que a administração
pública classifica como processo de descentralização da gestão. Entretanto, estudos sobre a
eficácia e efetividade do programa, têm revelado muitas dificuldades na condução (gestão) e
execução (gerência) dessa política, especialmente no que se refere ao papel das
municipalidades. Conforme ressalta Filgueiras (2006), a responsabilidade pela gestão do
Programa no âmbito local é muito diversificada, recaindo sobre organismos diversos, segundo
a estrutura de cada município. O que implica observar que o coordenador do Programa pode
estar situado em uma Secretaria de Assistência Social, em uma cidade, ou no Gabinete do
Prefeito, em outra, ou até mesmo na Secretaria de Educação em outros casos. Além disto, há
ocorrências de problemas graves de coordenação dentro do próprio governo municipal, o que
tem repercussões negativas para a qualidade e efetividade da gestão local do PBF.
2.2 Avaliação de Políticas Públicas
A literatura sobre avaliação revela um caráter aplicado e prático, na medida em que o
objeto de estudo são os programas e as políticas públicas. De acordo com Ballart (1996),
diferentemente do setor privado que tem variáveis e indicadores mais objetivos para valorar
suas ações baseadas em critérios objetivos de avaliação do custo-benefício para valorar as
atividades desempenhadas pelo setor publico torna-se mais difícil e complexo devido a
inexistência de critérios claros e amplamente aceitos sobre como fundamentar a avaliação as
ações do Estado considerando um número grande de variáveis e indicadores subjetivos.
Adiciona-se a isso, o fato de que as instituições públicas possuem e se relacionam com
diversos atores, os chamados Stakeholders, definidos como os membros de um grupo que é
afetado, de forma clara pela política e que, portanto, pode ser mobilizado pelas conclusões de
uma avaliação (WEISS, 1983).
Mas apesar desses desafios, a consolidação da democracia no país tem exigido o
investimento continuado em políticas públicas dirigidas para o fortalecimento da “função
avaliação”. Esse esforço tem sido justificado pela necessidade de investir na “modernização”
da gestão governamental, especialmente em um contexto onde se busca uma maior
dinamização (racionalização) e legitimação da concepção da Reforma do Estado (FARIA,
2005).
Mas é importante ressaltar que, desde a década de 1960, observa-se a utilização de
instrumentos de avaliação na gestão governamental, especialmente nos países desenvolvidos
(SCRIVEN, 1972; WEISS, 1983 e SCHNEIDER, 1986). Entretanto, o fortalecimento desse
campo ganhou maior expressividade a partir das décadas de 1970 e 1980 e, principalmente, de
1990. Momentos onde a avaliação de políticas e programas governamentais passou a
desempenhar papel importante no planejamento e gestão de políticas públicas. Conforme
destaca Calmon (1999), alguns fatores contribuíram para aumentar a demanda por ações
avaliativas e dentre eles destaca os seguintes: crescimento vertiginoso das agências
multilaterais em programas governamentais, dirigidos para apoiar os países em
desenvolvimento a superar a crise socioeconômica e política e a preocupação com os
resultados dos gastos públicos.
Nesse sentido, a liberação dos recursos passa a estar diretamente condicionada ao
controle das metas e resultados dos investimentos feitos. E para alcançar esses objetivos as
referidas agências foram definindo, progressivamente, algumas condicionalidades para a
liberação dos recursos, demandando, pois, o cumprimento de metas, indicadores e índices
específicos de eficácia, eficiência e, mais recentemente, de efetividade dos programas
contratados (CALMON, 1999; THOENIG, 2000 e FARIA, 2005).

5
Outro fator relevante apontado na literatura sobre o tema foi à necessidade de avaliar
programas públicos diante do aprofundamento da crise fiscal, da escassez de recursos do setor
público e da imprescindível intervenção governamental para atender à população mais
necessitada, base fundamental da chamada Reforma do Estado, especialmente em contextos
sociais de consolidação da democracia, como é o caso de muitos países latino-americanos.
(COTTA, 1998; COSTA e CASTANHAR, 2003; CANO, 2004).
Esta reforma, chamada também de reforma gerencial do Estado, visava aumentar a
eficiência e melhorar os resultados da administração pública, melhorar a qualidade das
decisões estratégicas do governo e assegurar o caráter democrático da administração pública.
Conforme destacado por Bresser-Pereira e Spink (1998), os princípios norteadores desse
movimento reformista foram os seguintes: desburocratização, descentralização, transparência,
accountability, ética, profissionalismo, competitividade e enfoque no cidadão. Mas com base
no texto Administração Política brasileira de Santos e Ribeiro (2011) observa-se que emerge
nesse contexto mudanças radicais no que se refere à concepção (gestão) do Projeto de Nação,
tendo em vista que a predominância da reforma ficou mais concentrada nos aspectos
gerenciais (vinculados é execução da administração) do que nos interesses vinculados às
funções e alcance da finalidade do Estado.
Dentre os movimentos de descentralização ou desconcentração ocorridos a partir desse
momento, constata-se um esforço no processo de institucionalização da participação social na
gestão pública, através da formalização de diversos Conselhos de Políticas Públicas,
Audiências Públicas e outras formas de estímulo a integração da sociedade civil nas políticas
públicas, especialmente no planejamento e gestão local.
O aumento da participação social exigiu, progressivamente, a integração de
indicadores de resultados, transparência, racionalidade decisória e eficiência alocativa, o que
demandou esforços por parte do governo e da sociedade para avaliar os investimentos
realizados (COTTA, 1998; CALMON, 1999 e CANO, 2004).
A literatura corrente evidencia que existem diversas e variadas definições sobre o
conceito de Avaliação de Políticas Públicas correspondentes, naturalmente, as concepções de
políticas públicas. Essa amplitude revela, pois, a grande complexidade desse campo de
análise e explica o esforço de diversas correntes da Ciência Política com ênfase nos estudos
da Administração Pública e também dos estudos críticos da Administração, especialmente da
teoria da Administração Política, revelando, assim, interações e percepções ideológicas
distintas sobre os fenômenos que envolvem o planejamento e a gestão publica.
Baseado na leitura de alguns estudos sobre o tema pode-se observar, pois, que não há
consenso quanto à definição de avaliação. O que implica afirmar que esse conceito admite
múltiplas definições.
Schneider (1986) introduz uma perspectiva nessa discussão ao justificar que a
avaliação de políticas públicas tem origem em várias disciplinas o que implica a integração de
ponto de vistas diferentes sobre o tema. Para a autora, essa evolução sobre o conceito e
práticas de avaliação produziu, portanto, uma massa confusa de “tipos” de avaliação ao invés
de um quadro referencial coerente.
No mesmo sentido, Ballart (1996) defende que a base teórica desenvolvida para
Avaliação de Políticas Públicas é decorrente de outras disciplinas e da acumulação de
experiências em áreas setoriais específicas. Ou seja, afirmar que o campo possui tradições
científicas diversas e seu desenvolvimento procede de experiências em administrações
governamentais, departamentos universitários, institutos, dentre outros. Para o autor, seria um
erro subestimar a importância da teoria de avaliação de programas e as lições das
experiências.

6
Com base nos conceitos acima destacados e na análise da Administração Política
Brasileira desenvolvida por Santos e Ribeiro (2011), pode-se observar que existem alguns
elementos comuns nas definições identificadas que ajudam na reflexão das práticas avaliativas
que têm sido utilizadas pela gestão governamental brasileira na contemporaneidade. Com
base nessa síntese, definiu-se como conceito balizador desta pesquisa o seguinte conceito: a
avaliação como um processo que busca a produção e análise de informações no intuito de
guiar os tomadores de decisão quanto a gestão e ao desempenho da política pública,
verificando, pois, a necessidade de correções ou mesmo suspensão de uma determinada
política ou programa, visando contribuir para a gestão e uma alocação de recursos mais
eficiente e eficaz, baseado na aplicação de métodos de pesquisa para verificar o alcance dos
resultados.
Nesse sentido, analisar os fatores que limitam e potencializam a gestão de programas
sociais no Brasil tomando como estudo, o Programa Bolsa Família, presente em todos estados
e municípios brasileiros, permite avaliar e refletir sobre a realidade das práticas gestão de
programas sociais no Brasil.
3. Procedimentos Metodológicos
Esta seção se divide em 3 partes articuladas, sendo elas: a definição da estratégia
metodológica do estudo, a apresentação dos instrumentos de coleta de dados e o desenho dos
métodos de pesquisa e tratamento dos dados.

3.1 Estratégia Metodológica


A estratégia metodológica adotada para esta pesquisa foi o Estudo de Caso de
natureza, predominantemente, qualitativa, no intuito de interpretar o fenômeno investigado.
Assim, o objeto que esta pesquisa se propõe a investigar é o Programa Bolsa Família com
ênfase na identificação dos fatores limitantes e potencializadores da sua gestão em municípios
brasileiros selecionados. Para Eisenhardt (1989), o estudo de caso como estratégia de pesquisa
enfoca a compreensão da dinâmica dentro de uma configuração, envolvendo numerosos
níveis de análise.
Estudar um programa de grande relevância social como o PBF, considerado o maior
programa de transferência de renda da América Latina como estudo de caso ganha relevância
não apenas para dimensionar o perfil/nível de comprometimento do governo para a melhoria
da gestão governamental, mas, principalmente, para dimensionar como estas ações têm, de
fato, repercutido positivamente junto as subunidades nacionais, de modo a contribuir para
promover transformações substanciais nas práticas das políticas públicas locais. Em síntese,
acredita-se que esta metodologia permitirá uma melhor compreensão da capacidade de gestão
do PBF como instrumento de aprendizagem de práticas inovadoras de gestão pública.

3.2 Instrumentos de coleta de dados e área de estudo


Para a coleta de dados foi utilizada a aplicação de questionários semiestruturados por
ser considerado um instrumento por excelência de investigação social, base metodológica
desta pesquisa. O questionário semiestruturado é um instrumento de coleta de dados em que
as questões (conjunto de perguntas ou medidas) são previamente definidas. Utilizado em uma
variedade de tradições epistemológicas, esse instrumento possui potencial de gerar dados
quantitativos e qualitativos. Justifica-se para a análise das dimensões e critérios estabelecidos,
a priori e a posteriori, para a verificação do objeto em estudo. Desta maneira, foram
utilizados dados secundários para compor a investigação proposta.
Os questionários foram destinados aos gestores municipais de subunidades nacionais,
responsáveis pela gestão e/ou gerência do PBF e foram enviados por meio eletrônico
utilizando o sistema Google Forms no período de outubro de 2014 a janeiro de 2015. Assim,
7
para os gestores municipais foram elencados quatros estados, sendo que três deles estão entre
o cinco que possuem o maior número de beneficiários do PBF e os que absorvem a maior
quantidade de recursos destinados ao programa. A escolha destes Estados deu-se então em
função da representatividade que o PBF possui, bem como na acessibilidade das informações.
Foi acordado com os sujeitos da pesquisa que não seriam divulgados os nomes, o que
implica que não será possível indicar também o nome dos estados e municípios participante
da pesquisa, já que os participantes poderiam ser facilmente identificados. Portanto, utilizou-
se a seguinte nomenclatura para referenciar os gestores municipais foi utilizada a sigla (GM) e
seus respectivos estados (A, B, C e D).
Para cada um dos estados selecionados, houve uma receptividade diferenciada dos
gestores municipais, mensurada pela taxa de resposta (Tabela 1). Cabe ressaltar que, embora
tenha havido estados com baixa adesão por parte dos gestores municipais do estado D (GM-
D), considera-se relevante sua inserção nos resultados da pesquisa, visto que no quantitativo
de respostas (N), superou outros dois estados avaliados. Ressalta-se que a importante
participação deste estado se deve ao fato do grande escopo territorial e do alto número de
municípios que possui.

Tabela 1 – Taxa de respostas dos gestores estaduais e municipais, sujeitos da pesquisa


Gestor Municipal Tx resposta (%)
GM - A 17,0
GM - B 12,0
GM - C 8,2
GM - D 4,8
Fonte: Elaboração própria.

3.3 Métodos de pesquisa e tratamento dos dados


Por se tratar de uma pesquisa quanti-qualitativa, os métodos de pesquisa
compreendidos foram: a Análise Exploratória de Dados (AED) e a Análise de Conteúdo.

3.3.1 Análise Exploratória de Dados (AED)


Inicialmente, foi realizada a Análise Exploratória de Dados (AED) que visa
compreender, descrever e resumir o comportamento do conjunto de dados com o objetivo de
conhecer suas características importantes. A AED permite ao pesquisador a identificar
quaisquer características notáveis, especialmente àquelas que possam afetar fortemente os
resultados e conclusões (HAIR et. al 2005; TRIOLA, 2005). A importância da AED está
associada à necessidade de se conhecer o comportamento do conjunto de dados. Por isso, é
composta, em geral, pela análise de frequência e medidas de tendência central, posição e
dispersão e variabilidade como média, desvio-padrão, coeficiente de variação, amplitude e
assimetria, que visam verificar como os dados estão distribuídos e concentrados. Através da
análise, é possível obter relevantes informações para o estudo em questão que serão
explicitadas no capítulo dedicado a apresentação dos resultados e discussão do estudo.

3.3.2 Análise de Conteúdo


A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando
obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,
indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às
condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (BARDIN, 1977).

8
Segundo esta autora, a análise de conteúdo possui três momentos: A pré-análise, a
exploração dos materiais e posteriormente o tratamento dos dados.
Na Pré-análise, determina-se os documentos que constituirão o "corpus" a ser
analisado. No presente estudo foram as questões de livre resposta do questionário
semiestruturado elaborado. No segundo momento houve a exploração do material, onde
procedeu-se a codificação e à categorização utilizando critério semântico, construindo, desta
forma, categorias temáticas adequadas à investigação proposta. E posteriormente, ocorreu o
tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Esta é a fase da reflexão, da intuição,
com embasamento nos materiais empíricos. Confronto entre o conhecimento acumulado e o
adquirido.
A análise de conteúdo realizada nesse estudo foi por categorias temáticas e não pelo
método de dedução frequencial. Portanto, houve a codificação das informações, que
“corresponde a uma transformação dos dados originais do texto em categorias de análise,
permitindo atingir uma representação do conteúdo, ou da expressão, suscetível de esclarecer o
analista acerca das características do texto” (BARDIN, 1977).
Franco (2008) aponta que a definição das categorias, na maioria dos casos, implica
constantes idas e vindas entre a teoria e material de análise e pressupõe a elaboração de várias
versões do sistema categórico. O que ocorreu na presente pesquisa. Desta maneira, buscou
analisar os fatores limitantes e potencializadores no âmbito das práticas de gestão do
programa, por meio das questões de livre repostas dadas pelos gestores, e a partir daí, foram
criadas as categorias de análise conjuntamente com algumas outras categorias criadas com o
apoio da literatura. Nesse caso, as categorias foram definidas de forma mista, ou seja, havia
algumas categorias elencadas, porém no decorrer da coleta e análise dos dados, estas sofreram
algumas alterações, assim como houve inserção de outras.
Sendo assim, o objetivo da análise de conteúdo foi “compreender criticamente o
sentido das comunicações, seu conteúdo, as significações explícitas ou ocultas” (MOZZATO
e GRZYBOVSKI, 2011), emitidas pelos gestores do programa em estudo.

4. Resultados e discussão
Participaram da pesquisa gestores municipais de quatro importantes Estados
brasileiros e que trazem à tona questões relevantes sobre a gestão local do PBF. Para todos os
Estados, na primeira parte da apresentação e discussão dos dados, será apresentado o perfil
pessoal e profissional dos gestores municipais respondentes que contemplam os mesmos
aspectos analisados junto aos gestores estaduais referente ao gênero, idade, grau de instrução
formal, tempo de experiência profissional, tempo de experiência com o PBF, bem como carga
horária de trabalho, tipo de vínculo empregatício e remuneração. A segunda parte focará nos
principais achados da pesquisa que permitem inferir os fatores limitadores e potencializadores
da gestão de programas sociais no Brasil, tomando como objeto o PBF.

4.1 Perfil pessoal e profissional dos Gestores Municipais


Um dado relevante observado dos perfis de gestores municipais é o predomínio de
gestoras mulheres que representaram em torno de 53,9% em relação ao numero total de
sujeitos pesquisados. Deste indicador, essa predominância é ainda maior nos estados e
municípios de B (GM-B) e D (GM-D).

Tabela 2 – Gênero
Sexo (%) GM – A GM – B GM - C GM - D
Feminino 49,3 60,0 33,3 73,2
Masculino 50,7 40,0 66,7 26,8
9
Fonte: Elaboração própria com base nos resultados da pesquisa.

No que se refere ao perfil do grau de instrução formal do conjunto de atores


pesquisados, os achados revelam que os dados indicam que muitos têm nível superior
completo, alguns inclusive com nível de pós-graduação. No caso dos gestores municipais dos
estados B e D também apresentam altas porcentagens de profissionais com nível de graduação
e especialização. Enquanto os gestores municipais dos estados GM-D, GM-A e GM-C
apresentaram níveis baixos de instrução formal, revelando alta porcentagem que tem apenas o
segundo grau (Tabela 3).

Tabela 3 – Grau de instrução formal


Instrução (%) GM – A GM – B GM – C GM - D
Segundo grau 31,0 10,0 20,0 24,4
Ensino técnico 4,2 6,7 2,4
Cursando tecnologia 10,0 4,9
Superior incompleto 9,9
Cursando graduação 9,9 10,0 13,3
Graduação 33,8 40,0 40,0 56,1
Especialização 11,3 30,0 20,0 12,2
Fonte: Elaboração própria com base nos resultados da pesquisa.

Em relação ao tipo de vínculo empregatício (Tabela 4), a maioria dos gestores


municipais, a exceção de GM-A, se encontram na situação de cargos de provimento em
comissão, sendo os gestores municipais do estado B os que apresentam o maior indicador
neste quesito.

Tabela 4 – Tipo de vínculo empregatício


Vínculo empregatício (%) GM - A GM - B GM - C GM - D
Cargos de provimento em comissão 35,2 60,0 40,0 43,9
Efetivo por concurso 36,6 30,0 33,3 34,1
Contrato temporário 21,1 10,0 13,3 19,5
Efetivo sem concurso 1,4 6,7 2,4
Efetivo concursado deslocado para cargo comissionado 1,4 6,7
Outros (3 nomeações) 4,2
Fonte Elaboração própria com base nos resultados da pesquisa

Em relação à carga horária de trabalho semanal é predominante a faixa de 20 a 40 h., o


que pode ser explicado, conforme depoimentos de muitos gestores, pelos baixos salários e a
possibilidade de que os gestores estejam acumulando outras funções concomitantes às
atribuições do PBF, o que de algum modo prejudica o processo de gestão e limita o processo
necessário. Alguns gestores declararam trabalhar mais de 40h, apontando para uma possível
sobrecarga de afazeres com a gestão do programa, fato pode ser avaliado como um aspecto
negativo, visto que essa situação pode levar a uma condição de exaustão dos profissionais e
afetar o desempenho nas atividades do PBF (Tabela 5).

Tabela 5 – Carga horária de trabalho semanal


Carga horária (%) GM - A GM - B GM - C GM - D

10
Menos de 20h. 1,4
De 20 a 40h. 74,6 70,0 86,7 73,2
Mais de 40h. 23,9 30,0 13,3 26,8
Fonte: Resultados da pesquisa.

No que se refere à idade média dos gestores municipais selecionados, observa-se a


seguinte variação: a maior média foi encontrada nos gestores do GM-D (38,4 anos) e a menor
nos gestores do GM-C (33,5). Ao analisar esses dados foi possível identificar que a maior
média de idade pode estar relacionada à alta taxa de experiência profissional. GM-A e GM-D
possuem as maiores médias em tempo de experiência profissional. Assim como foi possível
identificar que (GM-D) que indica gestores com baixa experiência profissional na gestão do
PBF denotando, desse modo, afirmações que confirmam essa análise nas questões de livre
resposta, que apontam para a rotatividade de pessoal no cargo de gestor/coordenador do
programa (Tabela 6).

Tabela 6 – Variáveis descritivas que compõem o estudo comparativo


Variáveis (Média) GM – A GM - B GM - C GM - D
Idade 34,7 35,5 33,5 38,4
Tempo de experiência profissional (em anos) 8,5 5,9 7,5 7,7
Tempo de trabalho com o Programa Bolsa Família (em anos) 5,1 4,4 5,1 3,4
Remuneração média (R$) 1.654,93 2.154,00 1.563,47 2.102,26
Número de pessoas que compõem a equipe do PBF em seu 6,3 9,2 9,0 4,3
município/Estado
População 29.380 116.408 27.426 33.743
Fonte: Resultados da pesquisa.

Outra observação importante com base em uma análise comparativa dos dados é a
disparidade de pessoal nas equipes locais do PBF, onde é possível intensificar que enquanto
alguns tem equipe pequenas (com média de 4 até 9 pessoas), outros registram um numero
maior de quadros. Essa disparidade é ainda mais relevante na comparação entre o número de
equipe dos municípios e dos estados (média de 7,2), indicador que pode ser justificado tanto
pelo número maior de deveres e atribuições constitucionais assumidas pelos municípios em
relação aos estados na execução do programa, como também pode ser explicado pelo fato de
que compõem a amostragem da pesquisa municípios com alta população e maior número de
beneficiários atendidos.
Comparando a média salarial, os dados revelam que os gestores municipais dos
estados GM-C e GM-A possuem os menores salários entre os estados pesquisados. Pode ser
ressaltada, ainda, sobre esse tema, a considerável disparidade salarial entre os gestores
municipais. Podem estar relacionados a dimensão territorial de atuação, assim como
municípios que podem estar atribuindo maior expressão política e administrativa a estes
cargos. A média de população dos municípios possui pouca variação, a exceção de GM-B
que possui alta média entre os municípios (116.408).

4.2 Fatores limitadores e potencializadores da gestão do Programa Bolsa Família


Os principais resultados apontam que os fatores limitadores estão relacionados a
aspectos desde o planejamento e execução do programa, aos recursos humanos, as condições
de trabalho e infraestrutura, assim como integração e coordenação com outras áreas
relacionadas à política/programa.

11
Nesse sentido, a partir da análise de conteúdo realizada foi possível categorizar a partir
da livre resposta dos gestores que os principais fatores limitadores e potencializadores da
gestão do PBF estão relacionados aos seguintes aspectos:

Profissionalização da gestão
Foi declarado por grande parte dos gestores, a falta de profissionalização e o alto
contingente de servidores nas funções técnicas, especialmente para atender as demandas da
gestão compartilhada entre Estados e Municípios. Isso pôde ser observado em alguns trechos
declarados pelos gestores:
“Há falta de valorização profissional das pessoas que estão na rede e nos
profissionais do CadÚnico e o Bolsa Família, onde não existe concurso e salários baixos”
(GM-C);
“as questões de governantes e troca de titulares na prefeitura e Secretaria de
Assistência social” dificultam a gestão do programa e “devido à falta de equipe ficamos
impossibilitados de promover ações para um bom funcionamento do programa” (GM-B);
O gestor “correr o risco de quando houver mudança na gestão [...] vir a ser posto
para fora (demitido) sem motivo aparente, pelo simples fato de não estabilidade profissional”
(GM-A);
“Há necessidade de [...] se possível, poder efetivar funcionários locais pelo MDS
para não virar essa bagunça em troca de gestores do Poder Executivo” (GM-A);
“alta rotatividade da equipe que se solucionaria através de concurso público” (GM-
D).
Além do mais, os dados sobre vínculo empregatício e nível de instrução indicaram
esses aspectos pelo alto número de gestores em cargos de provimento em comissão, assim
como nos baixos níveis de instrução visualizados.
Um aspecto destacado pelos gestores foi o número de servidores públicos destinado
à gestão do programa, conforme mencionado por alguns gestores: “trabalho cansativo e
diversas responsabilidades em relação à função que desempenha” (GM-A) e a “dificuldade
em implementar ações que não sejam o acompanhamento e convocação das famílias
cadastradas para atualizações cadastrais” (GM-D) em função do número de funcionários.

Política continuada de capacitação e formação da equipe de trabalho


Outro fator está relacionado à capacitação e formação da equipe de trabalho. Há uma
sinalização do incentivo federal nesse aspecto, porém observam-se limitações técnicas e
financeiras no nível local para a continuidade de ações de capacitação e formação, como
observadas nas considerações abaixo:
“há incentivo a capacitação dos profissionais que realizam o CadÚnico e PBF,
visando qualificação da informação, participação em seminários relacionados à gestão do
programa” (GM-D);
“o próprio MDS nos disponibiliza aprendizado com cursos: presencial, online e
informes sempre” (GM-C);
“poucas capacitações são oferecidas para aprimorar os conhecimentos dos gestores e
técnicos do programa no município” (GM-B);
“Capacitar a equipe, considerando a demanda local que temos na realização das
atividades de gestão do PBF e CadÚnico, tem sido desafiante. Outra questão é o estímulo ao
estudo individualizado de cada membro da equipe, para complementar a capacitação de
rotina no setor” (GM-A).
No âmbito das capacitações e formação, há queixas em relação à capacitação para o
uso dos sistemas de informação do MDS, conforme destacadas abaixo.
12
Sistemas de Informação e Gestão do programa
Quando mencionadas em relação aos Sistemas de Informação e Gestão do programa,
foi possível perceber limitações no acesso e utilização destes, bem como na relação entre os
responsáveis para a operacionalização dos sistemas. Abaixo a descrição das considerações de
alguns gestores municipais:
“Nossa dificuldade é a falta de capacitação presencial dos sistemas: Bolsa Família na
saúde: SISVAN (dificuldade até de comunicação para eliminação de dúvidas e orientação);
SIGPBF; SAGI; acredito que antes de lançar um sistema ou de reformulá-lo deveria haver a
iniciativa de antecipar a capacitação” (GM-A);
“Há falta de computadores com internet compatível para realizar a
operacionalização dos sistemas” (GM-A);
“inconsistências do Sistema de Benefícios ao Cidadão (SIBEC), o que ocasiona
problemas e interrupção do benefício das famílias” (GM-A);
“problemas existentes no sistema de cadastramento e de benefícios” (GM-D).
“O MDS deveria organizar, conectar e unificar sistemas para quem trabalha na ponta
diretamente com o usuário” (GM-A);

Cabe mencionar algumas referências em relação ao sistema da Caixa Econômica


Federal (CEF), responsável pela gestão dos benefícios em território nacional, como descrito
abaixo:
“o relacionamento da gestão municipal com a agente operadora financeira do
programa, caixa econômica, que em muitos casos realiza através de sistemas,
cancelamentos indevidos nos benefícios de algumas famílias e demoram muito pra
resolver o problema deveria dar uma assistência maior aos gestores principalmente
pela parte da caixa” (GM-C).

Outro gestor aponta, “há dificuldade em gerir o sistema e as informações da Caixa,


assim como em estabelecer contato com a CEF ” (GM-A).
“o contato com a CEF, esse órgão apesar de ser um dos principais articuladores, tem
se mostrado incapaz e muito frágil no apoio às gestões municipais” (GM-B).

Experiência com a utilização de banco de dados e análise de indicadores de gestão e


avaliação
Um fator destacado e que está estritamente relacionado aos Sistemas de Informação e
Gestão, é a utilização de banco de dados e análise de indicadores de gestão e avaliação. Os
sistemas de Avaliação e Gestão da Informação do MDS são considerados por muitos autores
como instrumentos inovadores na gestão governamental brasileira. Assim, foi possível
observar limitações na utilização destes em âmbito local. Contudo, as considerações apontam
para uma boa utilização destes, cabendo apresentar algumas considerações dos gestores:
“[...] o acompanhamento dos dados disponibilizados pelo MDS através do SAGI e de
outros portais são utilizados para discutirmos ações concretas no município que possam
alcançar o público e assim efetivar as políticas publicas de renda, cidadania, emprego, saúde
e educação” (GM-D);
“a partir das avaliações é proporcionado melhor desempenho para a estratégica de
trabalho, em que podem ser identificados os pontos fortes e fracos do programa em seu
município” (GM-B);
“os dados obtidos são utilizados para o gerenciamento das ações do CadÚnico/Bolsa
Família principalmente para a realização da busca ativa de família em vulnerabilidade
socioeconômica e acompanhamento das condicionalidades” (GM-C);
13
“através dos dados do cadastramento único para programas sociais foi possível
identificar e mapear as principais vulnerabilidades sociais e econômicas e possíveis riscos
sociais por bairro, localidade rural, distrito (...) e, a partir (re)pensar e (re)construir
políticas sociais de intervenção no município” (GM-A);
Um gestor afirmou que possibilita a “verificação de falhas, onde elas estão se dando e
o repasse ao setor competente para que sejam corrigidas as distorções”; levantamento e
execução de demandas; (GM-C).
Há municípios que utilizam para implementar ações locais, conforme apresentado pelo
gestor: “utilizamos as informações para elaboração de projetos e ações que possam resolver
ou melhorar a situação indicada, visita familiar, busca ativa, grupos do CRAS, mercado de
trabalho, educação, saúde e etc” (GM-D).
Outro reforça o caráter publico das informações:
“Publicizar a lista de beneficiários deu maior credibilidade ao Programa, o filtro
permitiu um planejamento mais exato e abrangente, tanto ao público, quanto ao
território. Quantitativo de tópicos permitindo maior debate e possibilitam
estratégias específicas particularizadas. Chamou a responsabilidade para os entes
responsáveis para a gestão do PBF: Saúde, Educação e Desenvolvimento Social,
fazendo com que a Gestão Municipal tenha maior interesse no investimento em
ações, programas e projetos municipais” (GM-D).

Articulação, integração e coordenação entre as esferas de governo na gestão do programa.


O PBF demanda uma ação conjunta de várias áreas que envolvem políticas sociais,
nesse sentido essa questão foi muito citada devida sua importância. Observou limitações por
parte de algumas municipalidades nesse bojo, contudo foi possível perceber bom
entrosamento e ações das diversas áreas vinculadas ao programa, como apresentado por
alguns gestores abaixo:

“nós trabalhamos com vários projetos: atualização cadastral constante; capacitação


de profissionais que realizam o CadÚnico visando qualificação da informação; -
acompanhamento Familiar das famílias em descumprimento de condicionalidades
em conjunto com CRAS e CREAS; projeto de qualificação profissional para
beneficiários do PBF...” (GM-D);

Outro profissional declara “há interlocução com as outras secretarias: Educação e


Saúde fazendo reuniões e discussões, ao qual analisa os resultados e propõem estratégias que
melhorem o programa no município” (GM-D);
Um gestor do GM-C afirma que “trabalho é realizado de forma intersetorial, com a
participação das áreas de assistência social, de saúde e de educação, sobretudo para a
gestão das condicionalidades e o acompanhamento familiar, também realizamos diagnóstico,
com a participação das áreas envolvidas na gestão” (GM-B);
Há destaque para integração das áreas relacionadas ao programa como aponta um
gestor: “a maior interação entre Coordenação do Programa e o Centro de Referências de
Assistência Social (CRAS)iii e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social
(CREAS)iv, tem tido grande resultado de pesquisa de campo e acompanhamentos das famílias
cadastradas no programa” (GM-B);
“através de reuniões com a Gestão do Bolsa Família da Educação e da Saúde,
traçam metas visando alcançar os objetivos de atendimento às condicionalidades, previstos
pelo MDS” (GM-B);
Alguns gestores apontaram para a necessidade de “uma melhor aproximação dos
principais atores que compõe as aéreas do Programa Bolsa Família” (GM-A), e
“intersetorialidade com as Secretarias de Saúde e Educação para o melhoramento das
14
atividades” (GM-C). Também apontaram que “os conhecimentos relacionados ao Programa
Bolsa Família ainda estão muito voltados para a assistência social, enquanto que a educação
e saúde ficam em segundo plano” (GM-C).

Infraestrutura administrativa das secretarias municipais


Nesse quesito, há uma série de considerações que vão desde condições de trabalho,
questões políticas gerando rotatividade e mudanças dos gestores do programa, assim como
autonomia do gestor local, infraestrutura local e a capacidade de comunicação
intergovernamental.
Há citações das dificuldades com “o deslocamento para atender as famílias, pois são
locais muitos distantes” (GM-C), principalmente de municípios com zona rural e área
geográfica extensa.
Há declarações de “falta de autonomia do gestor para com a coordenação do
programa, limitada, cada vez mais, pelas esferas maiores do programa” (GM-A). Assim
como “alta rotatividade da equipe que se solucionaria através de concurso público” (GM-
D);
Sobre infraestrutura local e de gestão, há dificuldades como as sintetizadas nessa
colocação de um gestor:

“Falta de computadores com internet compatível para realizar a operacionalização


dos sistemas, como também a necessidade de transportes para as visitas, dificuldade
no recebimento de diárias para as viagens realizadas em atividades em outros
municípios e capacitações solicitadas pelo Estado entre outras demais atividades
realizadas dentro e fora do município...” (GM-A);

Também há menção sbre as condições municipais de financiamento das capacitações:


“as maiores dificuldades em que passamos é que muita vezes não conseguimos ir às
capacitações devido às diárias e passagens que não são liberadas pela gestão do município”
(GM-A).
Estes quesitos foram apontados como os fatores limitadores e potencializados da
gestão do PBF nos municípios Brasileiros.

5. Considerações finais
Compreendendo melhor o universo pesquisado junto aos gestores municipais do
Programa Bolsa Família nos estados selecionados, pode-se observar grande diversidade na
percepção destes sobre o tema objeto da pesquisa, assim como na manifestação de interesse
em participar da pesquisa, fatos que acabou tendo um reflexo na qualidade das respostas aos
questionamentos. Esse perfil possibilitou perceber que existem muitos profissionais que
coordenam o PBF junto aos municípios que tem baixo nível de instrução formal, revelando,
pois, níveis educacionais baixos (fundamental e médio/incompletos). Esta realidade é
comprovada também pela baixa qualidade de algumas respostas, revelando, não apenas
desinteresse no tema como muitos erros gramaticais, sintaxe e concordância, expressos em
frases incompletas e algumas sem qualquer sentido.
Mas dentro desse universo, existem muitos gestores que revelam ter um bom nível de
compreensão, entendimento e interesse sobre os temas tratados, expresso em respostas
qualificadas, demonstrando, assim, que são gestores com melhor qualificação (nível
superior/incompleto). Esse grupo de respondentes revelou predisposição para compreender as
complexidades que envolvem o processo de gestão do PBF.
Os principais resultados apontam que os fatores limitadores estão relacionados a
aspectos desde o planejamento e execução do programa, recursos humanos, condições de
15
trabalho e infraestrutura, como integração e coordenação com outras áreas relacionadas à
política/programa.
Assim, os principais achados da pesquisa que permitem inferir que os fatores
limitadores e potencializadores da gestão de programas sociais no Brasil estão relacionados
aos seguintes aspectos: profissionalização da gestão; contingente de servidores nas funções
técnicas, especialmente para atender as demandas da gestão compartilhada entre estados e
municípios; baixo nível de comunicação intergovernamental; política continuada de
capacitação e formação da equipe de trabalho; experiência com a utilização de banco de dados
e análise de indicadores de gestão e avaliação; infraestrutura administrativa das secretarias
estaduais e municipais; número de servidores públicos; e articulação, integração e
coordenação entre as esferas de governo na gestão do programa.

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1983, p. 213-245.
i
Os autores agradecem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro.
ii
Entende-se como Política Social um conjunto de programas e ações do Estado com o objetivo de atender às
necessidades e aos direitos sociais que afetam vários dos elementos componentes das condições básicas de vida
da população, até mesmo daqueles que dizem respeito à pobreza e à desigualdade (CASTRO et. al, 2008).
iii
O CRAS atua como a principal porta de entrada do Sistema Único de Assistência Social (Suas), dada sua
capilaridade nos territórios e é responsável pela organização e oferta de serviços da Proteção Social Básica nas
áreas de vulnerabilidade e risco social. Além de ofertar serviços e ações de proteção básica, o Cras possui a
função de gestão territorial da rede de assistência social básica, promovendo a organização e a articulação das
unidades a ele referenciadas e o gerenciamento dos processos nele envolvidos. O principal serviço ofertado pelo
CRAS é o Serviço de Proteção e atendimento Integral à Família (PAIF), cuja execução é obrigatória e exclusiva.
Este consiste em um trabalho de caráter continuado que visa fortalecer a função protetiva das famílias,
prevenindo a ruptura de vínculos, promovendo o acesso e usufruto de direitos e contribuindo para a melhoria da
qualidade de vida (MDS, 2014).
iv
O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) configura-se como uma unidade pública
e estatal, que oferta serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou
violação de direitos (violência física, psicológica, sexual, tráfico de pessoas, cumprimento de medidas
socioeducativas em meio aberto, etc.).

17
Cooperação Federativa: possibilidades para a evolução da Gestão Pública e
promoção do Desenvolvimento Regional – o caso dos Consórcios Públicos
Baianos na perspectiva da Administração Política.

Simone Maria Lima de Carvalho1


Camila Lacerda Souza 2
Fabiane Louise Bitencourt Pinto3

RESUMO

Este artigo tem como objetivo suscitar reflexões acerca dos problemas que atingem a gestão
pública e a importância da cooperação entre os entes federativos para a minimização desses
problemas, particularmente, através dos consórcios públicos, dando, assim, impulso ao
desenvolvimento regional. Os consórcios públicos são pessoas jurídicas de direito público ou
de direito privado que viabilizam a gestão associada de serviços públicos como também o
repasse em sua totalidade ou parcialidade com a finalidade de estabelecer relações de
cooperação federativa na realização de objetivos de interesse comum no exercício das
atividades governamentais. Considerando o conceito de Administração Política desenvolvido
por Santos e Ribeiro (1993), a qual é compreendida como a concepção e a organização do
“como fazer, do como conduzir, do como organizar as relações sociais de produção e
distribuição”, os consórcios públicos se inserem nessa perspectiva como um instrumento
relevante para viabilizar o objetivo de promover um determinado nível de bem-estar social. A
experiência do Estado da Bahia, na implementação de consórcios públicos incrementam a
experiência ora relatada.

1. Introdução

Quando se analisam os atributos oriundos e caracterizadores da descentralização, percebe-se


que a capacidade dos entes federados, principalmente dos municípios, em suas respectivas
gestões, incumbidas de atender às necessidades populacionais, é mitigada. Percebe-se que, no
momento em que foi estabelecida e positivada pela Constituição de 1988 a tão almejada
descentralização, foram distribuídas as responsabilidades para os entes federativos, contudo
ainda desprovidos de recursos para alcançar os objetivos que a distribuição de competências
se prestou.
Diante da necessidade de consecução do interesse público, torna-se imperioso que os entes
federados se aliem com intuito de promover o desenvolvimento regional, isto é, social,

1
Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Gestora
Governamental da Secretaria de Administração do Estado da Bahia (SAEB).
2
Graduada em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL)
3
Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Gestora Governamental da Secretaria
de Administração do Estado da Bahia (SAEB).
econômico, cultural, entre outros. O marco desse processo encontra-se exatamente com a
promulgação da Carta Magna de 1988, que promoveu inovação quando trouxe em seu escopo
as ferramentas precípuas para a distribuição e consequente efetivação da descentralização
administrativa, visando o deslocamento das atribuições para as esferas subnacionais, de modo
a eximir a União de certas responsabilidades sobre a execução de serviços e demais demandas
concernentes a tais competências.
Esse artigo tem como objetivo suscitar a reflexão acerca dos problemas que atingem a gestão
pública e a importância da cooperaçao entre os entes federativos para a minimização desses
problemas, particularmente, através dos consórcios públicos, dando, assim, impulso ao
desenvolvimento regional.
De acordo com o Decreto nº 6.017, de 17 de janeiro de 2007, os consórcios públicos são
pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado que viabilizam a gestão associada de
serviços públicos com a finalidade de estabelecer relações de cooperação federativa assim
como a realização de objetivos de interesse comum no exercício das atividades
governamentais.
O principal argumento desenvolvido neste trabalho é o de que, face aos limites do processo de
descentralização no cumprimento dos objetivos de promover o atendimento às demandas da
sociedade e conter as disparidades inter-regionais, emergiram outros arranjos interfederativos,
fortalecendo o federalismo cooperativo.
Primeiramente, o trabalho apresenta uma breve discussão sobre o processo de
descentralização associado aos conceitos de democracia e participação social, seguindo-se
com a ascensão do federalismo cooperativo, finalizando com a apresentação da experiência
baiana de consórcios públicos à luz da Administração Política.
Na tentativa de resposta às questões propostas recorremos ao arcabouço constitucional e a
legislação brasileira sobre consórcios públicos, além de consultas bibliográficas. Para a
análise da situação dos consórcios existentes atualmente na Bahia foram realizadas consultas
em fontes oficiais.

2. A Constituição de 1988 e a descentralização das políticas públicas

Com o processo de redemocratização que se intensificou no país na década de oitenta, o país


passa a uma nova etapa do seu pacto federativo, na qual a descentralização passou a ser
defendida pelos diferentes atores, de orientações políticas distintas, sendo considerado o
caminho para a solução dos mais diversos problemas enfrentados pela sociedade, resultantes
da presença de um Estado autoritário e centralizador, como destaca Nogueira (2007):

(...) a descentralização, como valor e como proposição operacional, acabou


sendo historicamente determinada pela luta em favor da democratização,
tendendo a ser vista como instrumento dela, já que direcionada para reduzir uma
intervenção estatal arbitrariamente centralizadora, fragmentada, iníqua e
excludente (NOGUEIRA,2007, p. 8).

Assim, a descentralização é concebida como um valor que se associa ao conceito de


democracia, integrando a agenda de reformas delineadas nesse período, que incluiu a
participação social e o resgate dos direitos sociais, elementos norteadores da Constituição de
1988.

2
Estabeleceu-se a mobilização de diversos segmentos sociais organizados, buscando o
aperfeiçoamento de mecanismos legais e jurídicos necessários à obtenção de uma
administração descentralizada, promovendo a transferência da gestão de serviços sociais
como habitação, saúde, saneamento básico, educação fundamental, entre outros, do Governo
Federal para estados e municípios.
Esse novo marco de redirecionamento das políticas públicas confere autonomia político
administrativa aos municípios. Conforme Art.18, da Constituição, os Estados, Distrito Federal
e os Municípios recebem poderes administrativos, financeiros e políticos para exercerem
governo e administração autônoma, sendo essa autonomia uma prerrogativa concedida pela
supracitada Constituição e limitada pela mesma.
Esse marco - a Carta Magna - foi cenário de uma nova construção do modelo de atuação
efetiva da população, promovendo uma descentralização participativa. É o que se vê do Art.
204, II/CRFB 88, “literis”:
A participação da população por meio de organizações representativas, na
formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis
(BRASIL, 1988).
Como reflexo dessa iniciativa, nasce a interação do cidadão com o governo, convergindo na
formulação e implementação das políticas públicas que passam a ganhar espaço na medida em
que novos paradigmas vão sendo construidos, sustentados na gestão democrática, orientada
por colunas fundamentais, quais sejam: “ a maior responsabilidade dos governos em relação
às políticas sociais e às demandas dos seus cidadãos; o reconhecimento dos direitos sociais; e
a abertura de espaços publicos para a ampla participação cívica da sociedade” (SANTOS
JUNIOR, 2001, p.208).
De forma prática essa autonomia atribuída aos Municípios, somada a construção da
democracia participativa reflete positivamente à medida que constrói pontes de acesso para o
cidadão usuário de serviços públicos ao seu respectivo município através de ouvidorias,
consultas populares, orçamento participativo, mecanismos que precedem deliberação
legislativa com pauta de orçamento anual, conselhos gestores e de fiscalização de políticas,
etc.
Entretanto, em que pesem as virtudes associadas à descentralização, a simples distribuição de
poder político e financeiro para as esferas subnacionais não se revela suficiente para o
atendimento das demandas dos cidadãos. É preciso conceber que as heterogeneidades
regionais resultam em que a descentralização produz diferentes resultados, visto que há níveis
desiguais de capacidade financeira e administrativa entre os municípios das diferentes regiões,
conforme destaca Souza (2001)

O principal constrangimento relacionado com a descentralização e com a


prestação de serviços sociais está nas disparidades inter e intraregionais, o
que desmonta a hipótese implícita na literatura de que um círculo virtuoso
seria estabelecido por políticas descentralizadoras e que as virtudes da
descentralização se distribuiriam eqüitativamente. (...) a maioria dos
municípios não tem capacidade para expandir a arrecadação de impostos
nem é capaz de financiar nenhuma atividade além do pagamento dos
servidores públicos, muitos com salários abaixo do mínimo, e de
desempenhar, com recursos transferidos para tal fim, algumas atividades
relacionadas à prestação de serviços de saúde e educação. (SOUZA, 2001,
p.437).

3
No que tange ao poder estendido à sociedade, através da adoção de políticas participativas,
notadamente no âmbito local, a visão da participação assume contornos diferenciados, sendo
tema presente nos diversos discursos ideológicos. A previsão constitucional da existência de
conselhos, principalmente no âmbito das políticas sociais, quase sempre assume um caráter
consultivo, portanto conduz-se a participação de forma a não influir no processo decisório,
representando apenas uma formalidade, o que ressalta a importância do aspecto qualitativo do
processo. Outras experiências como o orçamento participativo tem apresentado,
pontualmente, com alguma margem de êxito, mas ainda longe de ser uma prática consolidada
na gestão pública brasileira.
(...) A obrigatoriedade de constituição desses conselhos pode significar, em
muitas localidades, a mera reprodução formal das regras dos programas,
ameaçando os fundamentos principais da participação, quais sejam,
credibilidade, confiança, transparência, accountability, etc (SOUZA, 2001,
p.439).
Apesar das mudanças geradas nos mecanismos de distribuição do poder e alguns ganhos
ocorridos com o processo de descentralização, há uma distanciamento entre os seus
pressupostos e os resultados, sendo apontado por Nogueira (2007) como decorrência de uma
combinação de uma conjunção de fatores relacionados às crises que se apresentaram no final
do século passado: do Estado, da administração, da federação e da representação política.

Embora prevista em lei e aceita como meta meritória por todos, a


descentralização produz poucos resultados. Permanece no papel, a espelhar uma
grave desarticulação política e societal. A espelhar, antes de tudo, uma espécie
de “omissão” do centro, isto é, uma ausência de comando unificado, legitimado
e em condições de coordenar, planejar e viabilizar a descentralização
(NOGUEIRA,2007, p. 12)

Ademais, segundo o autor, contribui para as dificuldades nos avanços da descentralização


participativa o tratamento igualitário estendido aos municípios diante de um quadro de
desigualdades inter e intra-regionais, que implica na diferenciação quanto à capacidade dos
governos de prover satisfatoriamente os serviços públicos bem como a adoção de uma gestão
participativa.

3. Da descentralização para a cooperação

Em virtude de sua estrutura político-organizacional administrativa, qual seja, o federalismo, o


Brasil formalmente busca distribuir e efetivar o exercício do poder político na sociedade,
visando a consecução do interesse coletivo, vez que, por meio deste sistema garante-se a
autonomia política dos seus entes.
Por sua vez, a Carta Magna traz em seu bojo as competências de cada um dos entes federados,
resguardando os interesses do cidadão, criando, assim, o desafio de organizar e articular ações
conjuntas para que, efetivamente, se cumpra esse mister.
A introdução da descentralização e municipalização das políticas sociais trouxe consigo
atribuições municipais desproporcionais aos recursos que as Prefeituras recebem, dadas as
disparidades na capacidade financeira e administrativa dos municípios, conforme Souza
(2001). É o mesmo que dizer que os serviços foram transferidos para os municípios, contudo
4
o orçamento não é suficiente para atender a tais demandas. As exigências legais oriundas
desse modelo descentralizado oneram os municípios e trazem complicações para suas
respectivas gestões municipais.
(...) a maioria dos municípios não tem capacidade para expandir a arrecadação
de impostos nem é capaz de financiar nenhuma atividade além do pagamento
dos servidores públicos, muitos com salários abaixo do mínimo, e de
desempenhar, com recursos transferidos para tal fim, algumas atividades
relacionadas à prestação de serviços de saúde e educação. Esses municípios não
possuem atividade econômica significativa e são caracterizados pela extrema
pobreza de suas populações. Dessa forma, as desigualdades inter e intra-
regionais anulam o objetivo último da descentralização, que é o de permitir
maior liberdade alocativa aos governos e às sociedades locais (SOUZA, 2002,
p.437)
Assim, embora possua o município legitimidade para atender as demandas de seu perímetro, a
realidade demonstra que somente a sua consagração como autônomo e responsável pela
gestão de seus munícipes não lhe confere o resultado pretendido, conquanto seus recursos são
escassos. Nessa senda, a simples descentralização se tornaria apenas instrumento de
desresponsabilização do Estado, na medida em que as responsabilidades, e somente elas,
seriam repassadas para os municípios, desprovidos de preparo técnico e recursos financeiros
para executar suas respectivas políticas públicas gerando uma preocupante sobrecarga do
Poder Público local.
Cumpre salientar que o fato de não conseguir de forma eficaz a garantia dos interesses da
população, surgem os entes de cooperação ou paraestatais, que auxiliam a administração
direta na gestão pública desses interesses.
Nesse momento institui-se expressamente o federalismo cooperativo dispondo matérias de
competência comum entre todos os entes federados. Isto se justifica “pelo fato de que num
Estado intervencionista e voltado à implementação de políticas públicas, as esferas
subnacionais não têm mais como analisar e decidir, originariamente, sobre inúmeros setores
da atuação estatal, que necessitam de tratamento uniforme em escala nacional”: em assuntos
da ordem econômica e social há necessidade de unidade no planejamento e direção das
tarefas. (BERCOVICI, 2004, p. 57-58).
Desse modo, uma das alternativas de solução resulta da coordenação e realização de acordos
intergovernamentais para a aplicação e execução de programas e financiamentos coordenados,
que se configura no federalismo cooperativo. Nesse modelo há uma mudança no parâmetro de
decisões, isto é, delegações de competências em prol de um mecanismo menos rígido de
negociação e acordo intergovernamental.
Com o estabelecimento desses arranjos, torna-se evidente o desafio do reconhecimento de
uma relação de complementaridade entre os entes federados e a necessidade das coordenações
dessas atividades governamentais. Por conseguinte, essa interdependência é construída e
efetivada na interação e cooperação entre aqueles entes, deixando de lado a estrutura
hierárquica rígida.
O federalismo cooperativo não exclui os conflitos de competência tampouco a concorrência
de atividades entre os entes da federação, buscando tão somente a redução de alcance desses
impedimentos por meio de acordos políticos negociados e formalizados, em razão da
centralização e descentralização do poder.
Todavia, válido ressaltar que não se confunde a unidade do Estado com a centralização de
competências. O Estado, como forma de organização política capaz de assegurar a unidade,
5
existe em virtude de um mínimo de centralização, ou seja, “centralização e descentralização
não são duas alternativas contrapostas, mas, sim, duas realidades presentes sempre (como
complementares), no âmbito da organização.” (GONZÁLES ENCINAR, José Juan. Obra
citada. p. 109).
Com isso, a atuação conjunta dos entes federados na efetividade e otimização das políticas
publicas deve preservar a autonomia de cada um desses entes e, proporcionando ao mesmo
tempo a utilização e compartilhamento de políticas e ações coordenadas. O federalismo de
cooperação, proposto pelo texto constitucional de 1988, proporciona a solução dos desníveis
econômicos e sociais entre os entes federados dirigindo a economia nacional, por um lado, e,
por outro, reforça o papel da União Federal em relação aos demais, transformando a relação
em cooperativa, alterando, inclusive, a estrutura das relações intergovernamentais.
É notória a vulnerabilidade dos governos locais no Brasil em sua tarefa de executor do
sistema descentralizado e participativo aventado, conforme destacado por Souza (2002), dada
a heterogeneidade inter e intra-regionais as quais revelam deficiências organizacionais,
instrumentos gerenciais escassos e carência de recursos humanos aptos e qualificados para
atender as demandas sociais aliados às limitações financeiras.
Nesse contexto, os consórcios públicos despontam como uma alternativa para a resolução de
problemas comuns entre os municípios, o fortalecimento das relações interfederativas, além
de proporcionar a retomada da perspectiva do desenvolvimento regional.

4. Consórcio público: instrumento de cooperação federativa e desenvolvimento regional

Conforme explicitado anteriormente, de acordo com Souza (2002) a descentralização político-


administrativa e financeira, embora apropriada como um instrumento para melhoria do
desempenho do serviço público e democratização do Estado, na prática, apresentou resultados
diferenciados no país, situação que dificulta a promoção das condições básicas de cidadania
quando se trata de contextos marcados por alto nível de desigualdades.
Vale lembrar que o processo de redemocratização, durante o qual se ampliaram as conquistas
dos direitos sociais e se fomentou a participação social na definição das políticas públicas, foi
sucedido pelo aprofundamento do processo de globalização e implementação do projeto de
Estado Mínimo de inspiração neoliberal, que prevê a redução do papel do estado e,
consequentemente, o encolhimento das suas funções na provisão de bens e serviços, conforme
argumenta
A erosão do padrão desenvolvimentista de intervenção estatal na economia e na
sociedade, em curso desde os anos oitenta e intensificada com as orientações
liberalizantes para a política econômica, abalou a estrutura corporativa de poder
e a tradicional atuação do Estado na economia e no financiamento do setor
público, desestruturando relações políticas e financeiras entre governo federal,
governos estaduais, agentes econômicos e sociais. Assim, os governantes eleitos
se viram diante das tarefas de responder pelas novas obrigações constitucionais;
renovar as relações federativas; redefinir as relações entre Estado, economia e
sociedade e ajustar as finanças públicas (RIBEIRO, 2009, p.821)

Nesse contexto, as dificuldades do município em executar as políticas públicas, especialmente


as de cunho social e de prestação de serviços, pelas quais tem primazia, foram agravadas,
6
abrindo o caminho para a busca de novos arranjos, embora prevalecesse a disputa por
transferências de recursos financeiros federais.
Dentre os arranjos utilizados pelos municípios estão os consórcios intermunicipaisi que
ganharam impulso com o avanço do processo de descentralização e a disseminação da visão
da racionalização da gestão presente nos anos noventa.
Conforme Dallabrida e Zimermann (2009), as experiências de consórcios intermunicipais no
Brasil são anteriores à Constituição de 1988, entretanto a prática se intensificou com a
promulgação da mesma. Em termos regionais, embora o Nordeste seja a região que apresenta
o maior número de consórcios, o sul e sudeste são as regiões cujas experiências ganharam
mais destaque.
De acordo com a Constituição de 1988, a cooperação federativa é um dever, previsto no artigo
23, Parágrafo Único:

Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os


Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do
desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

A cooperação federativa enfatiza o relacionamento entre os entes autônomos tendo em vista o


atendimento as demandas da sociedade, as quais se apresentam cada vez mais em níveis
elevados de complexidade, o que implica a implementação de políticas públicas que requerem
uma estrutura administrativa e financeira condizentes com tais características.
O consórcio público, um dos instrumentos de cooperação entre os entes federados, foi
recepcionado pela Emenda Constitucional nº. 19, de 1998, a qual conferiu nova redação ao
art. 241 da Constituição Federal:

A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por


meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os
entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem
como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens
essenciais à continuidade dos serviços transferidos.

Os consórcios públicos se distinguem dos convênios de cooperação por terem aqueles


personalidade jurídica, o que os tornam uma ferramenta de maior amplitude, desfrutando de
maior capacidade para execução de ações de interesse comum Sob forma de autarquia, ou
pessoa jurídica de direito privado, o consórcio público faz parte da Administração Indireta de
todos os entes federativos que o formam. Assim ensina o Decreto nº 6.017 de 17 de Janeiro de
2007, em seu art. 7º, “in verbis”:

Art 7º O consórcio público adquirirá personalidade jurídica:


I - de direito público, mediante vigência do protocolo de intenções; e
II – de direito privado, mediante o atendimento do previsto no inciso I e,
ainda, dos requisitos previstos na legislação civil.
1º Os consórcios públicos, ainda que revestidos de personalidade jurídica de
direito privado, observarão as normas de direito público no que concerne à
realização de licitação, celebração de contratos, admissão de pessoal e à
prestação de contas.
7
Prevista na emenda constitucional mencionada, a lei disciplinadora dos consórcios públicos,
somente foi publicada no ano de 2005(Lei nº. 11.107/ 2005) e regulamentada em
2007(Decreto 6.017/07), constituindo-se num marco da institucionalização das relações
federativas de cooperação, atendendo a reivindicações dos municípios, diante do avanço na
formação de consórcios administrativos pelo país, juridicamente precários.
Diversas iniciativas de formação de consórcios anteriores à lei – os consórcios administrativos
- ocorreram no país apresentando com certo nível de êxito, entretanto a fragilidade jurídico-
institucional não permitiu que os ganhos da cooperação se expandissem e consolidassem.
Com o advento da lei dos consórcios públicos, vem crescendo por todo o país a utilização do
instrumento de gestão associada. Nos termos do Decreto 6017/207, o consórcio público é
definido como:

(...) pessoa jurídica formada exclusivamente por entes da Federação, na


forma da Lei no 11.107, de 2005, para estabelecer relações de cooperação
federativa, inclusive a realização de objetivos de interesse comum,
constituída como associação pública, com personalidade jurídica de direito
público e natureza autárquica, ou como pessoa jurídica de direito privado
sem fins econômicos (BRASIL,2007, art.2º);

Conforme o artigo 6º da Lei de Consórcios Públicos, só é permitido que a União se consorcie


com município se houver também o consorciamento do Estado. Reconhece-se, assim, com
base no princípio da subsidiariedade, que compete, em primeiro lugar, aos outros municípios
o dever de cooperar e, insuficiente a cooperação intermunicipal, é que se legitima a
cooperação do estado. Somente quando insuficiente a cooperação do próprio estado é que se
admite a cooperação da União.
Observa-se que a cooperação federativa poderá ser estabelecida de forma vertical ou
horizontal, o que possibilita o suprimento das deficiências municipais pelas instâncias maiores
nas questões que são da sua competência, de modo a fortalecer as instâncias locais na
promoção do desenvolvimento regional. Embora permitida a cooperação vertical, com fulcro
na Lei 11.107/2005, para que a União se consorcie com município, é necessário que, para
isso, haja consorcamento do Estado, em decorrência do princípio da subsidiariedade.
Contudo, prevalece no Brasil experiências de cooperação horizontal, qual sejam, os
consórcios intermunicipais, atuando como instrumento de descentralização administrativa.
A lei de consórcios trouxe diversas inovações e incentivos, dentre os mais importantes as
vantagens licitatóriasii e a possibilidade de atuação multifinalitáriaiii, o que permite a este
órgão da administração indireta dos entes consorciados a atuação em diversas áreas, a
assunção de atividades de elevado nível de capacitação técnica, além de proporcionar a
otimização dos recursos.
Excetuando a proibição quanto à contratação de operações de crédito, não existem limites no
que toca ao conteúdo a ser abordado por um consórcio, atendendo aos fins que se dedica a
gestão, o desenvolvimento e melhoria da qualidade dos serviços públicos prestados à
sociedade.
Os consórcios públicos se apresentam como um instrumento de grande potencial para uma
maior eficiência da gestão pública, entretanto, para que se consolidem há desafios a serem
superados, principalmente relacionados à cultura política, sendo, por isso, a sua
8
implementação dependente da visão pessoal do gestor, conforme destaca Dallabrida e
Zimermann (2009):

O processo de cooperação interfederativa pressupõe o desprendimento do


agente político. Há a necessidade de liberar uma carga de poder concentrado
nas mãos do governante em favor do novo sujeito que surge: por exemplo, o
consórcio. E isso, muitas vezes, pode ser um processo pessoal, do gestor,
bastante complexo, dado a cultura individualista e personalista fortemente
enraizada na nossa sociedade (DALLABRIDA E ZIMERMANN,2009,
p.16).

Além de se constituírem mecanismos de modernização da gestão, os consórcios públicos


devem ser pensados como espaços de planejamento do território, evoluindo para uma nova
instância política de reivindicação e afirmação de identidades regionais. Para tanto, faz-se
necessário que os gestores públicos abdiquem de parte do poder político e financeiro em favor
de uma gestão compartilhada e a sociedade se aproprie de um novo conceito de
desenvolvimento.

4.1 A experiência de consórcios públicos na Bahia: uma análise empírica na perspectiva


da Administração Política

De acordo com Matos (2006), na Bahia, uma das primeiras iniciativas de consorciamento é a
do Consórcio Intermunicipal do Vale do Jiquiriçá, criado em 1993 por prefeitos dos
municípios da Bacia do Rio Jiquiriçá. Anterior à lei de Consórcios Públicos, trata-se de uma
associação civil, sem fins lucrativos, o qual, segundo a literatura, enquadrava-se como
consórcio administrativo.
De acordo com a Secretaria do Planejamento do Estado da Bahia (Seplan), a partir de 2007, já
sob a vigência da lei, iniciaram-se as discussões sobre consórcios no âmbito do governo
estadual, motivadas pelas demandas de soluções na área de saneamento e resíduos sólidos. À
medida que o debate evoluiu e inseriu novos atores e áreas, chegou-se ao entendimento de que
diversos serviços poderiam ser viabilizados de maneira mais eficiente por meio da gestão
associada, o que resultou na definição de um modelo de consórcio multifinalitário, ampliando
a sua atuação nas diversas áreas.
O governo do Estado passou a apoiar a formação de consórcios públicos multifinalitários, sob
a coordenação da Seplan, a partir de uma perspectiva de desenvolvimento regional. Nesse
sentido, busca-se promover a cooperação intermunicipal através das identidades regionais.
De acordo com informações da Seplan, divulgadas em 2015, por meio de sites oficiais, a
Bahia possui atualmente mais de 30 consórcios intermunicipais multifinalitários formalizados,
incorporando quase a totalidade do território baiano, predominando a configuração territorial
adotada no planejamento do estado, qual seja, os territórios de identidade. Esses consórcios
encontram-se em estágios de funcionamento variados, encontrando-se algumas dessas
entidades com um nível de atuação em diversos projetos, a exemplo do Consórcio de
Desenvolvimento Sustentável do Território do Sisal, que vem atuando, dentre outras, na área
de resíduos sólidos, na gestão ambiental, na construção de cisternas e outros equipamentos
voltados à solução de problemas hídricos, enquanto outros consórcios apenas atingiram o
estágio da formalização, com a inscrição no CNPJ.
9
Nesse sentido, nos aproximamos das questões epistemológicas colocadas pelos autores
Reginaldo Santos e Elizabeth Ribeiro pesquisadores da Universidade Federal da Bahia, que
em síntese, compreendem por Administração Política a concepção e estruturação do como
fazer, do como conduzir, do como organizar as relações sociais de produção e distribuição
para o alcance de um determinado padrão de bem-estar social (SANTOS; RIBEIRO, 1993),
cabendo ao consórcios públicos essa tarefa neste caso.

Ao sustentar que a Organização estaria muito mais vocacionada para assumir o papel de
objeto especial de estudo ou de pesquisa da administração e não como campo científico,
Santos e Ribeiro (2009) demonstram que a organização não se qualificava para objeto
científico pelo simples fato de que esta era considerada como campo de estudo para diversas
outras ciências, e a administração portanto, deveria identificar um objeto próprio que
garantisse uma ação autônoma de interpretação e ação sobre a realidade social (ainda que
compartilhado com diversos outros saberes, já que se trata de um campo interdisciplinar por
natureza), identificado, pois, como sendo a Gestão o objeto de estudo da Administração.

Isso implica afirmar que a Administração Política, para interpretar, ressignificar e transformar
a realidade, necessita assumir um papel político mais ativo, rompendo, assim, com uma
perspectiva meramente instrumental. Naturalmente a ciência administrativa, aqui denominada
de Administração Política, assume um relevante papel de ciência normativa e prescritiva,
tendo em vista ser responsável por definir modos de comportamento, formas de
relacionamento, padrões de gestão, modos de relações sociais de produção e de distribuição,
dentre outras modalidades de comportamento individual, organizacional e social que refletem,
pois, o como organizar-se, o como preservar interesses e também o como construir bases
para a transformação.

Em síntese, ao integrar definitivamente a dimensão política para compreender não apenas a


dimensão micro-organizacional, mas principalmente para dimensionar a dimensão
macrossocial, a Administração Política coloca a ciência administrativa em um patamar de
poder estabelecer um diálogo à altura com as perspectivas de desenvolvimento local,
especialmente na compreensão dos fenômenos socioeconômicos, culturais e políticos
contemporâneos e brasileiros, em particular.

Nosso texto ressalta portanto, a existência de Consórcios públicos na Bahia numa perspectiva
da Administração Política, onde há uma participação direta e efetiva do Estado na formação
dos consórcios públicos intermunicipais, contribuindo com apoio técnico para a realização
dos procedimentos para a formalização, capacitação dos gestores envolvidos e
disponibilização de recursos financeiros, a exemplo de convênios firmados entre a Secretaria
do Meio Ambiente e os Consórcios para a implementação da Gestão Ambiental
Compartilhada. A Seplan, conjuntamente com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano do
Estado da Bahia (Sedur), instituiu um grupo de trabalho, através da Portaria Conjunta Seplan /
Sedur nº 003 de 13 de setembro de 2010, para, entre outras atribuições, “prestar assessoria
técnica aos municípios interessados em constituírem consórcios públicos.”

A União tem uma participação relevante no processo ao estabelecer nas suas Leis de
Diretrizes Orçamentárias - LDO tratamento privilegiado aos consórcios públicos, no caso das
transferências voluntárias, conforme art.39, da LDO de 2011:

§ 1º A contrapartida, exclusivamente financeira, será estabelecida em termos

10
percentuais do valor previsto no instrumento de transferência voluntária,
considerando-se a capacidade financeira da respectiva unidade beneficiada e
seu Índice de Desenvolvimento Humano, tendo como limite mínimo e
máximo:
I - no caso dos Municípios:
a) 2% (dois por cento) e 4% (quatro por cento) para Municípios com até
50.000 (cinquenta mil) habitantes;
b) 4% (quatro por cento) e 8% (oito por cento) para Municípios acima de
50.000 (cinquenta mil) habitantes localizados nas áreas prioritárias definidas
no âmbito da Política Nacional de Desenvolvimento Regional – PNDR (...);
II - no caso dos Estados e do Distrito Federal:
a) 10% (dez por cento) e 20% (vinte por cento) se localizados nas áreas
prioritárias definidas no âmbito da Política Nacional de Desenvolvimento
Regional - PNDR, nas áreas da SUDENE, SUDAM e SUDECO; e (...)
III - no caso de consórcios públicos constituídos por Estados, Distrito
Federal e
Municípios: 2% (dois por cento) e 4% (quatro por cento) (BRASIL, LDO
2011).

Ademais, o governo federal vem definindo áreas prioritárias para implementação de diversas
políticas, executadas pelos consórcios públicos, por meio de editais e convênios, a exemplo de
resíduos sólidos, saneamento, etc. Conforme informações da Secretaria de Comunicação
Social do Governo do Estado da Bahia – SECOM (2015), os consórcios da Bahia lideram a
captação de recursos federais, por meio de convênios, atingindo quase 80% dos recursos
captados no Brasil em 2013 (R$115,9 milhões) e mais de 60% (R$88,7 milhões) em 2014.
Em relação ao envolvimento da sociedade civil, esta é representada pelos Colegiados
Territoriais (Codeter)iv, identificando-se a sua participação em diversas situações: na
mobilização dos gestores municipais para formação dos consórcios, em debates sobre o tema
e contribuições na indicação de projetos através dos Planos Territoriais de Desenvolvimento
Sustentável.
De acordo com informações de diversos atores - gestores municipais, representantes da
Seplan, entre outros - há algumas situações de divergências entre os Colegiados territoriais e
os Consórcios públicos, numa perspectiva de disputa de espaços de poder, prevalecendo a
visão de competição e não de complementaridade. Enquanto os colegiados territoriais são
instâncias de representação da sociedade civil nas discussões das políticas públicas, os
consórcios são instituições públicas, executoras de políticas públicas, mas a abrangência
territorial os tornam interventores do mesmo espaço.
Quanto à participação das associações municipais, em alguns casos, essas organizações
lideraram as discussões e condução do processo de formação do consórcio, inclusive dando
suporte material e de recursos humanos para as atividades iniciais até que a nova instituição se
estruture.
Percebeu-se, nos últimos três anos, um movimento crescente de adesão à cooperação, atribui-
se, dentre outros aspectos, ao esgotamento das soluções individuais para questões de interesse
comum, tais como os resíduos sólidos, gestão ambiental, estradas vicinais, entre outros,
reforçadas por pressões do Ministério Público, queda das receitas e exigências do governo
federal de soluções regionalizadas para repasse de recursos em determinadas áreas, dada a
importância da escala.

11
No que se refere ao aspecto político, considerando a diversidade dos partidos aos quais os
gestores estão associados, observa-se pouca influência na articulação para a constituição do
consórcio, encontrando-se maior dificuldade no processo legislativo, o que tem ocasionado,
em muitos casos, a formação inicial com uma adesão mínima, avançando com o passar do
tempo. Para que os consórcios usufruam dos benefícios previstos na lei, é necessário que o
arranjo cooperativo conte com, no mínimo, 03 municípios, conforme o artigo 17 da Lei
11.107, de 6 de abril de 2005.
Os resultados preliminares da implementação desse novo arranjo acenam para grandes
possibilidades de o consórcio se estabelecer como um instrumento de melhoria da gestão
municipal, traduzindo em melhor oferta dos serviços à população, qualitativa e
quantitativamente. Para tanto, faz-se necessária a conjugação de uma série de medidas, que
requer dos atores envolvidos nas mudanças que começam com a concepção de um modelo de
desenvolvimento que se pretende seguir.
Para Fonseca (2008), a Administração Política nos auxilia a compreender melhor as relações
produtivas que fundamentam o sistema e a sociedade capitalistas modernos e
contemporâneos, dando destaque para os modos como se estabeleceram os padrões de
acumulação e distribuição da riqueza, dando destaque para o papel do Estado nesse processo
ao assumir a liderança pela concepção e coordenação de um padrão de Administração Política
centrado em bases conservadoras de socialização.

5. Considerações finais

A proposta desse artigo consistiu em situar os consórcios intermunicipais na trajetória das


reformas esboçadas no processo de redemocratização do país, a partir dos anos oitenta, tendo
como mote principal a descentralização política.
A distribuição de poder político e financeiro para as esferas subnacionais presumia ser o
caminho para a superação dos problemas deixados pelos governos autoritários, especialmente
o acesso aos direitos sociais, entretanto não resultou nos avanços na magnitude esperada
quanto ao atendimento das necessidades dos cidadãos tanto qualitativa como
quantitativamente.
Considerando as disparidades inter e intra-regionais, a transferência das obrigações às esferas
subnacionais não teve o devido respaldo financeiro. O aumento dos recursos subnacionais não
fizeram frente às distorções socioeconômicas presentes nos municípios, demandando e
dependendo cada vez mais de transferências federais, passíveis de interferências políticas.
No bojo das mudanças, o federalismo cooperativo mostra-se um caminho para a minimização
dos desníveis econômicos e sociais transformando a estrutura das relações
intergovernamentais, promovendo a atuação conjunta dos entes federados para a otimização
das políticas públicas. Entretanto, ainda não há uma estratégia consolidada para
fortalecimento do instrumento, ficando dependente de decisões isoladas dos gestores, em
todas as esferas.
O instrumento do consórcio público instituído pela Lei 11.107/2005 constitui-se um avanço
nas relações interfederativas, que cada vez mais se reveste de importância diante de um
cenário de elevadas disparidades regionais e sociais, ao incorporar a dimensão regional do
desenvolvimento. O compartilhamento de problemas e soluções conduz o debate a uma visão

12
de coletividade, aliada a uma perspectiva de gestão mais eficiente, dadas as peculiaridades
desse instrumento.
Os consórcios públicos intermunicipais da Bahia se inserem na estratégia de desenvolvimento
territorial do Estado, contando para isso com o apoio do governo na sua formação,
estruturação e implementação de políticas públicas. Embora a implementação desse
instrumento seja recente no Estado, é possível verificar alguns resultados no tocante a
execução de ações de alcance regional, com a participação dos entes federados, exercitando
assim o federalismo cooperativo.
Entretanto, alguns entraves precisam ser superados para que esses arranjos não reproduzam os
vícios das respectivas administrações centrais, uma vez que, enquanto personalidade jurídica
de direito público compõe a administração indireta de todos os entes consorciados. A
utilização do consórcio como instrumento político de ampliação de poder dos dirigentes
poderá desvirtuar o seu propósito.
Outra questão a qual é determinante para a sustentabilidade do arranjo se refere ao
planejamento do consórcio. Enquanto órgão de natureza executora de políticas da
competência dos entes consorciados, requer que estes definam conjuntamente aquilo que será
transferido para a atuação do consórcio. Caso contrário, ficará este um órgão meramente
captador de recursos disponíveis sem uma correlação direta com as reais necessidades dos
municípios.
Nesse sentido, a Administração Política promove reflexões acerca do papel assumido pelos
consórcios públicos no desenvolvimento sócio econômico dos territórios baianos, afinal o
estudo da Administração Política não se limita apenas à esfera da gestão estatal, mas, também
inclui a gestão dos negócios privados e sociais; considera que existem correlações de forças
ideológicas, teóricas e de prática da gestão dentro do campo da administração; bem como
admite que existem outras formas de gestão das relações sociais de produção que requerem da
administração uma análise mais sistemática e aprofundada, não respondida pelos atuais
paradigmas.

6. Referências

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convênios com consórcios públicos. Planejamento. Postado em: 03/02/2015 11:33, disponível
em http://www.secom.ba.gov.br /modules/noticias/ makepdf.php?storyid=123531

BERCOVICI, Gilberto. Dilemas do Estado federal brasileiro. Porto Alegre: Liv. Do


Advogado, 2004.

BRASIL, Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005, disponível em


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11107.htm

___________. Decreto nº 6017 de 17 de janeiro de 2007.


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6017.htm

DALLABRIDA, Valdir Roque e ZIMERMANN, Viro José. Descentralização na gestão


pública e estruturas subnacionais de gestão do desenvolvimento: o papel dos consórcios
Intermunicipais. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional. G&DR • v. 5, n.
3, p. 3-28, set-dez/2009, Taubaté, SP, Brasil.

13
FONSECA, Francisco. A Administração Política: em busca de uma teoria crítica da
administração pública. Salvador: Revista Brasileira d Administração Política, v. 1, n. 1, p.
7-9, out., 2008.

GONZÁLES ENCINAR, José Juan. El Estado Unitario-Federal. Madri: Editorial Tecnos,


1985.

NOGUEIRA, Marco Aurélio. A dimensão política da descentralização participativa. São


Paulo em perspectiva, 11(3) 1997.

RIBEIRO, Patrícia Tavares. A descentralização da ação governamental no Brasil dos anos


noventa: desafios do ambiente político-institucional. Ciência & Saúde Coletiva, 14(3):819-
828, 2009.

SANTOS, Reginaldo Souza. (org.) A Administração Política como Campo do


conhecimento. São Paulo: Mandacaru/Hucitec, 2009.

SANTOS, Reginaldo Sousa; RIBEIRO, Elizabeth Matos et. al. Bases Teórico-Metodológicas
da Administração Política. Salvador: Revista Brasileira de Administração Política, v. 2, n
1, p. 19-43, abr./2009.

______; RIBEIRO, Elizabeth Matos. A administração política brasileira. RAP, Rio de


Janeiro, nº 4, 1993.

SOUZA, Celina. Governos e sociedades locais em contextos de desigualdades e de


descentralização. Ciência & Saúde Coletiva, 7(3):431-442, 2002.
i
De acordo com a Lei 11107 de 6 de abril de 2005, artigo 3º, parágrafo 1º, inciso I, os consórcios públicos
poderão ser constituídos apenas por municípios, formando portanto consórcios intermunicipais.
ii
Conforme Art. 16 da Lei 11107 de 6 de abril de 2005, os consórcios públicos obterão vantagens licitatórias,
através de aumento de limites nas modalidades, nos casos de dispensa, entre outras.
iii
De acordo com o artigo 3º “os objetivos dos consórcios públicos serão determinados pelos entes que se
consorciarem, admitindo-se, entre outros, os seguintes: I- a gestão associada de serviços públicos; II - a prestação
de serviços, inclusive de assistência técnica, a execução de obras e o fornecimento de bens à administração direta
ou indireta dos entes consorciados(...)”
iv
Conforme o artigo 6 º do Capítulo III da Lei nº 13.214 de 29 de dezembro de 2014, os Colegiados Territoriais
de Desenvolvimento Sustentável CODETERs constituem-se “espaços de referência para discussão e
acompanhamento da Política de Desenvolvimento Territorial do Estado da Bahia, sem prejuízo das contribuições
oriundas de outros espaços de oitiva social.”

14
A Administração Política da Memória da
Ditadura Militar-empresarial brasileira

Lucas Pacheco Campos (UFF)


Joana D'Arc Fernandes Ferraz (UFF)
Larissa Paiva Fernandes (UFF)
Mayara Vicentini (UFF)

Resumo
Este trabalho pretende explorar o tema da memória e do esquecimento coletivo
enquanto objeto de pesquisa do campo das ciências da administração, em especial da
administração política. Para tanto, será realizada uma discussão teórica articulando as
possibilidades e limites de manipulação do arcabouço memorial, focando no papel de
gestor da memória coletiva nacional exercido pelo Estado. Serão estudadas políticas de
memória e de esquecimento enquanto instrumentos utilizados no desenvolvimento desse
processo de gestão da memória nacional oficial. No entanto, este debate não pretende se
realizar de maneira abstrata e geral, mas sim a partir do movimento concreto do
desenvolvimento histórico das políticas públicas de memória referentes à ditadura
militar-empresarial brasileira. Mais de meio século depois do golpe de 1964, as políticas
de memória aqui analisadas demonstram que a posição o Estado segue reforçando as
narrativas públicas dos vencedores. Através de estratégias que passam pelo
esquecimento-manipulação, pelo esquecimento-direcionamento e pelo esquecimento-
destruição, conforme definição de Johann Michel (2010), a administração política da
memória segue mantendo as memórias de resistência e de luta nos subterrâneos das
narrativas oficiais sobre a ditadura militar-empresarial.

Introdução
Desde a década de 1980 está em curso no Brasil um processo de disputas
em relação à memória política da ditadura militar-empresarial brasileirai, período que
foi de 1964 a 1985. Em um lado deste cenário estão as tentativas de construção de uma
memória nacional oficial, conforme definição de Michel Pollak (1989). Tais iniciativas
se desenvolvem a partir de ações promovidas pelo Estado e perpassam diferentes
governos desde o reestabelecimento da democracia.
Em contraponto à memória oficial estão as diversas iniciativas que mantém
vivas memórias relacionadas especialmente a grupos e classes sociais que sofreram com
o golpe de Estado e com o regime que o seguiu. Conforme define Joana D’Arc Ferraz
(2007), estas são as memórias de resistência e de luta. De forma geral, as ações desses
grupos visam uma melhor compreensão sobre os acontecimentos daquele período, o que
inclui a devida publicidade das atrocidades cometidas pelo Estado e pelos grupos que
apoiaram e se beneficiaram do regime. Nesse sentido, já foram lançados e ainda estão
por vir diversos trabalhos acadêmicos, filmes, peças de teatro e documentários, sem
contar as ações de movimentos populares que estão espalhados por todo o país.
A importância de se aprofundar as análises com relação a este tema tem a
ver, em primeiro lugar, com a relevância social da memória em si mesma. Para Myrian
Sepúlveda dos Santos (2012), a memória é de fato um objeto amplo e que afeta as mais
diversas partes da vida social e individual. Cada passo que damos, cada ideia e cada
ação realizada estão impregnados de memória. Para a autora, é ainda mais do que isso.
“Nós somos tudo aquilo que lembramos. A memória não é só pensamento, imaginação e
construção social; ela é também uma determinada experiência de vida capaz de
transformar outras experiências, a partir de resíduos deixados anteriormente”
(SANTOS, 2012, p. 30).
Além da importância imanente da memória, a memória política relativa à
ditadura militar-empresarial tem um aspecto ainda mais profundo. Trata-se de um tema
ainda muito caro para toda a sociedade brasileira, pois a forma como nos relacionamos
com este passado é um ponto de fundamental interferência no desenvolvimento social
do presente e do futuro. Conforme afirma Jeanne Marie Gagnebin (2010), os silêncios e
esquecimentos relacionados às conexões entre o passado ditatorial e o presente
democrático não apenas parecem tornar vivo o passado, como se demonstram
necessários para a manutenção da ordem social do presente.
Levando em consideração a importância de se estudar a memória, em
especial a memória da ditadura militar-empresarial brasileira, o presente trabalho
buscará trazer a temática da memória para as discussões no campo da administração. O
ponto aqui será a investigação sobre as possibilidades de manipulação e gestão das
memórias e dos esquecimentos coletivos, em especial do papel do Estado em tal
processo. Assim, a proposta do trabalho é explorar o que chamamos de administração
política da memória, enquanto uma das tarefas desempenhadas pelo Estado – criadas
por governos, materializada em políticas públicas e executadas por aparelhos estatais e
instrumentos da administração pública.
Para efeitos metodológicos, o trabalho iniciará com um debate teórico, para
somente no fim apresentar sua aplicação concreta no âmbito das políticas públicas de
memória relacionadas à ditadura militar-empresarial brasileira.
Inicialmente, serão revisadas partes das teorias clássicas e contemporâneas
sobre memória e o esquecimento. A segunda parte deste artigo analisará as bases
teóricas que compõem o campo da administração política. Pretende-se, dessa forma,
apresentar como as discussões sobre a memória coletiva se encaixam na administração
política. Mais especificamente, a partir das revisões realizadas sobre as referidas teorias,
almeja-se demonstrar que a memória é passível de ser politicamente administrada,
focando no papel do Estado. Na terceira parte, o artigo pretende apresentar os principais
instrumentos por meio dos quais o Estado operacionaliza este trabalho de administração
de memórias e esquecimentos coletivos. Serão discutidos os conceitos de política de
memória e política de esquecimento, apresentando suas especificidades, funções e
complementaridades. Na parte final do artigo, será construído um desenrolar histórico
sobre as políticas de memória e esquecimento que vêm sendo desenvolvidas pelo
Estado desde o fim da ditadura militar-empresarial. A intenção neste momento será
expor concretamente como funciona a gestão de memórias e esquecimentos públicos.
Além disso, pretende-se estudar como o Estado brasileiro vem administrando a
memória desse período, isto é, entender um pouco mais sobre quais narrativas vêm
sendo privilegiadas e quais esquecimento têm sido instituídos.
Considerando o exposto, o presente trabalho pretende revisitar a tradição
teórica relacionada à memória coletiva e demonstrar como tal temática se encaixa na
discussão da administração política e, portanto, nas discussões realizadas no âmbito das
ciências da administração como um todo. É nesse sentido que será analisado o campo de
disputas pela memória política referente ao período da ditadura militar-empresarial
brasileira, levantando principalmente o papel do Estado neste cenário. Almeja-se
demonstrar que esse papel se materializa em leis e políticas públicas que estabelecem
determinadas narrativas, podendo ser extraído daí as posições do Estado com relação ao
passado ditatorial brasileiro. Pode-se citar como exemplo a Lei de Anistia promulgada
pela ditadura em 1979 e que se mantém intocada até os dias de hoje, os arquivos
militares que permanecem fechados e as indenizações meramente financeiras que têm
sido apresentadas como reparações aos atingidos por aquele regime de terror.

Memória e Esquecimento
O objetivo aqui é revisitar parte da teoria da memória e do esquecimento,
ressaltando seus campos sociológicos, a fim de adentrar na dialética da memória e
explorar certas dimensões da memória e do esquecimento coletivo. Tendo em conta que
não se pretende esgotar o tema, serão debatidas teorias que apresentam possibilidades e
limites para a manipulação de memórias e esquecimentos. E é nesse sentido que serão
trazidas à tona algumas polêmicas históricas que perpassam este campo de estudo. Tais
polêmicas marcam discussões fundadas em certos tipos de pensamento binário que
colocam em confronto memória coletiva e memória individual, memória como coesão e
memória como conflito ou ainda memória contra esquecimento.
Nas primeiras décadas do século XX, o sociólogo Maurice Halbwachs foi
pioneiro no estudo da memória a partir de uma dimensão coletiva. Admirador e
discípulo de Émile Durkheim, Halbwachs (2004) foi o primeiro autor a entender a
memória como um objeto fundamentalmente social. Isso significa entender que a
memória está profundamente enraizada nas relações sociais, sendo construída
coletivamente.
Seguindo o legado teórico de seu mestre, Halbwachs (2004) desenvolveu
uma teoria que entende a memória a partir de determinações prévias do coletivo sobre o
individual. Fundamentalmente, parte da ideia de que as esferas da vida social devem ser
entendidas a partir de fatos sociais que se desenvolvem sobre vínculos construídos na
sociedade. A materialidade da memória está nos fatos sociais (Halbwachs, 2004).
É nesse sentido que o autor privilegiou as estruturas coletivas de lembrança,
marcando claramente a distinção entre indivíduo e sociedade. Halbwachs (2004) vai
além de demonstrar que a memória tem uma dimensão social. O autor não entende que
as recordações estejam materializadas no nível do consciente e do indivíduo, o que
demonstra a base de suas polêmicas com Freud e com Henri Bergson. Na verdade,
Halbwachs (2004) entende que a memória se constrói somente na sociedade. Portanto,
para o autor, toda memória é exclusivamente coletiva.
Para a memória coletiva, as lembranças de um indivíduo somente podem se
desenvolver e se revestir de sentido quando estão sustentadas de alguma maneira por
outros indivíduos. Em outras palavras, os indivíduos não recordam sozinhos, pois
necessitam que suas lembranças sejam confirmadas pelo grupo. Os sujeitos se
organizam em grupos sociais e recordam de acordo com as interações e convenções
estabelecidas coletivamente com vistas ao bem estar, à solidariedade e à coesão dos
grupos. Assim, Halbwachs (2004) destaca os aspectos positivos da memória e ressalta
sua função de produção e reprodução da coesão social, fundamentando e reforçando
sentimentos de pertencimento, assim como as fronteiras socioculturais.
Halbwachs (2004) buscou compreender ainda como se operacionaliza a
memória. A partir de observações das práticas sociais, o autor afirmou que a construção
da memória ocorre através de quadros sociais. Segundo ele, a memória se constitui
sobre estruturas sociais – quadros sociais – que antecedem os indivíduos. O indivíduo se
depara com distintos quadros ao longo de sua vida e a memória coletiva se assentará
sobre as combinações entre tais quadros, relativos à família, à escola e a todos os grupos
aos quais pertencemos.
Ainda sobre o funcionamento da memória, uma importante percepção de
Halbwachs (2004) é que as combinações entre os quadros sociais não são definitivas,
tampouco realizadas no passado. Na verdade, tais construções se dão no presente e estão
sempre sujeitas a novas combinações. Ou seja, o passado é constantemente
(re)construído no presente.
No entanto, tais processos de entrelaçamentos são profundamente
complexos. É por isso que Halbwachs (2004) vai argumentar que as combinações entre
os quadros sociais não dependem da vontade dos indivíduos. Para ele, a constante
reconstrução desses quadros não depende de intenções deliberadas e nem de uma
escolha individual. São construídas a partir das questões propostas pelo presente.
Resume Halbwachs (2004, p. 75-76):
Temos repetido: a lembrança é em larga medida uma reconstrução do
passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso,
preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a
imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. (…) Mas, mesmo se é
possível evocar de modo tão direto algumas lembranças, não o é em
distinguir os casos em que procedemos assim, e aqueles onde imaginamos o
que tenha acontecido. Podemos, então chamar de lembranças muitas
representações que repousam, pelo menos em parte, em depoimentos e
racionalização.
Halbwachs (2004, p. 89) argumenta que uma lembrança coletiva estará
sempre ali, enquanto estiver conservada em algum corpo social. “A memória de uma
sociedade estende-se até onde pode, quer dizer, até onde atinge a memória dos grupos
dos quais ela é composta”.
Em suma, para Halbwachs (2004), a memória deve ser entendida como o
resultado de representações coletivas construídas no presente para manter a sociedade
coerente e unida.
As ideias trazidas por Maurice Halbwachs revolucionaram a forma de se
pensar a memória e suas funções. O sociólogo contribuiu definitivamente para que a
memória passasse a ser entendida para além de uma dimensão individualizada e
independente das relações sociais. Pensando na perspectiva do tempo histórico, que para
o autor é um tempo social, Halbwachs (2004) argumenta que a lembrança de um
período não é o somatório de lembranças de dias, de reflexões pessoais, ou familiares,
mas em termos de lembranças de acontecimentos pensados em conjunto, reconstruídos
na sociedade. Lembranças ou acontecimentos individuais são amparados nas
lembranças dos outros, que antes poderiam até mesmo ter uma significação obscura, a
memória se enriquece de bens alheios, que desde que tenham enraizado e encontrado
seu lugar, não se distingue mais das outras lembranças.
Sua compreensão sobre a memória, apesar de reduzi-la apenas aos níveis do
coletivo e da coesão social, abriu passagem para uma gama de estudos que ampliaram
as discussões sobre o tema. Seu maior legado talvez tenha sido o de demonstrar que a
memória é também uma construção social.
Para Myrian Sepúlveda dos Santos (2012), as polêmicas históricas que
circundam este campo de estudo não devem ser reforçadas a ponto de funcionarem
como prisões teóricas. Ao contrário, dicotomias como indivíduo-sociedade, coesão-
conflito e memória-esquecimento devem ser utilizadas como ponto de partida para o
alargamento do pensamento científico. Em seu livro Memória Coletiva e Teoria Social
(2012), a autora propõe que o pesquisador que trabalhe com o tema da memória deve
ser capaz de enxergar para além dessas dicotomias. As distintas abordagens sociológicas
sobre a memória coletiva devem ser compreendidas como complementares e não como
antagônicas (Santos, 2012).
É nesse sentido que os trabalhos de Michael Pollak devem ser encarados,
como contribuições para a ampliação da teoria da memória coletiva. O autor parte de
Halbwachs para perceber que nem toda memória é necessariamente positiva em um
sentido de construção da coesão social. Pollak (1989) concorda com Halbwachs quanto
à possibilidade da memória coletiva manter, reforçar e construir bases referencias
capazes de contribuir para a coesão interna de um grupo social. Em outras palavras, ele
também entende que a memória coletiva pode se constituir como memória nacional, isto
é, contribuindo para a defesa das fronteiras daquilo que um grupo tem em comum,
definindo o lugar desse grupo, e deixando claro suas complementariedades e suas
oposições.
No entanto, diferente de Halbwachs, Pollak (1989) não considera que tal
processo de construção de uma memória coletiva nacional tenha um aspecto apenas
conciliatório e positivo. Ao considerar o processo de negociação inerente à memória
nacional, isto é, a determinação do que deverá ser lembrado e do que deverá ser
esquecido, percebe-se um processo que necessariamente hierarquiza histórias e
desvaloriza memórias de grupos dos vencidos, dos excluídos, das minorias, dentre
outros.
Pollak (1989) destaca, portanto, que a memória deve ser compreendida
enquanto um campo de disputas, onde determinadas memórias se sobrepõe a outras por
meio não apenas da conciliação, mas também do conflito. Qualquer construção de
memória é, em alguma medida, um processo de violência contra as memórias que não
foram eleitas para compor o arcabouço geral de preservação do passado. Tal aspecto de
violência está implícito em qualquer construção coletiva da memória. É levando este
processo de conflito em consideração que o autor cunha o conceito de memórias
subterrâneas.
As memórias subterrâneas são aquelas vinculadas às ideias e às histórias
marginalizadas dentro de um determinado contexto social. Tais memórias prosseguem
em um trabalho e fluxo de subversão contra os aspectos opressivos e uniformizadores
da memória coletiva nacional. Esse trabalho se mantém no nível do “não-dito” – nível
do silêncio –, de maneira quase imperceptível, despertando para a massa social
principalmente em momentos de crise, quase sempre de forma brusca e sobressaltada.
Em seu artigo Memória, Esquecimento e Silêncio (1989), Pollak apresenta
três exemplos que deixam claro o que pretende dizer com o conceito de memória
subterrânea. O primeiro exemplo se refere ao fenômeno de “destalinização”
desenvolvido na antiga União Soviética após a divulgação do relatório de Nikita
Kruchev, no XX Congresso do Partido Comunista Soviético (PCUS). Este processo,
levado a cabo pelo Estado, tinha como objetivo a destruição de signos e símbolos que
remetiam a Stalin. Era um processo político que visava desvincular a União Soviética
dos crimes citados no relatório Kruchev, como ficou conhecido. O segundo exemplo se
refere ao silêncio dos deportados após a Segunda Grande Guerra. Tais grupos, por
estarem fora de suas redes de sociabilidade, demonstraram dificuldades de integrar suas
lembranças na memória coletiva das nações que passaram a viver. Já o último exemplo
se refere à formulação da memória nacional francesa que, após a Segunda Guerra,
procurou eliminar o estigma da vergonha do chamado colaboracionismo com os
nazistas.
Pollak (1989) determina a partir destes exemplos concretos três aspectos
fundamentais das disputas no campo memorialístico: (a) os movimentos políticos de
transformações necessitam também de mudanças no campo da memória, ou seja, as
leituras e narrativas sobre passado afetam o cenário político do presente e do futuro; (b)
a memória oficial não é capaz de controlar plenamente as construções e mudanças no
campo da memória nacional, pois sempre haverá memórias subterrâneas, por mais que
estejam excluídas do espaço público; (c) as memórias subterrâneas, traumatizantes e
dissidentes da memória oficial, são capazes de sobreviver no nível do ”não-dito”
durante muito tempo, o que se trata de uma forma de resistência da sociedade a um
excesso de discursos oficiais.
Partindo das conclusões de Pollak, pode-se notar a dimensão política e de
seletividade da memória. Toda memória é seletiva e responde, pelo menos em parte, a
estímulos políticos do presente. Percebe-se ainda que o Estado pode assumir a tarefa de
seleção e manipulação da memória coletiva nacional.
Na medida em que busca a coesão social de determinados grupos de
indivíduos, em determinado território e sob determinada hegemonia política, econômica
e ideológica, o Estado assume também a tarefa de administrar a memória daquele todo
social. É o Estado administrando narrativas e lembranças do passado a partir de
condições, necessidades e interesses do presente. Em última análise, pode-se dizer que a
gestão do passado e das memórias está no rol de atribuições operacionalizadas pela
administração pública. Portanto, o Estado administra politicamente o que pode ser
chamado de memória ou discurso oficial.
Os debates realizados até o momento trataram, sobretudo, da dimensão
coletiva da memória e de sua dialética coesão-conflito. Além disso, trouxeram à tona as
possibilidades de manipulação da memória, sobretudo da tarefa de administração
política da memória nacional assumida pelo Estado. No entanto, falta ainda discutir algo
sobre a relação memória-esquecimento.
Andreas Huyssen (2014), após revisar obras clássicas do campo da memória
e do esquecimento, como as de Theodor Adorno e de Walter Benjamin, afirmou que a
exigência moral do ato de lembrar foi articulada em diversos contextos ao longo da
história – religiosos, culturais e políticos. O mesmo não se pode dizer do ato de
esquecer. O esquecimento, segundo Huyssen (2014), hora é visto como disfunção
(doença), hora é visto apenas como a oposição à memória.
Partindo do estudo de situações concretas onde o tema da memória estava
no centro de debates nacionais, como as memórias da ditadura argentina e dos
bombardeios na Segunda Guerra Mundial, o autor aprofundou os estudos sobre como se
dão os modos de esquecimento nas esferas pública e política. Huyssen (2014) percebeu
que, em alguns casos, “o esquecimento público revelou-se constitutivo de um discurso
politicamente desejável da memória” (HUYSSEN, 2014, p. 160). Em outras palavras, o
esquecimento foi mais do que a não-memória, foi parte integrante de construções
memorialísticas.
Huyssen (2014) parte da tentativa de Paul Ricoeur em estabelecer uma
fenomenologia do esquecimento para fazer uma defesa histórica do esquecimento
público e político. Para tanto, resgata algumas definições basilares sugeridas por
Ricouer para se categorizar distintas formas de esquecimento. A primeira forma trata o
esquecimento como memória impedida. Nesse caso, entende-se o ato de esquecer como
uma experiência humana natural, uma espécie de “patologia” fundamental à vida. A
segunda forma, denominada de memória manipulada, entende o esquecimento a partir
do conceito de instrumentalização da memória. Refere-se à produção de esquecimento
inerente ao processo de manipulação da memória coletiva, que ao mesmo tempo em que
privilegia determinadas lembranças, desfavorece outras. A última forma básica seria o
esquecimento comandado, isto é, uma espécie de esquecimento declarado publicamente
e estabelecido por vias institucionais. Um exemplo são as clássicas leis e imposições de
esquecimento coletivo, como podem ser enquadradas as leis de anistia referentes às
ditaduras do Cone Sul.
Santos (2012) lembra que o “homem pode ser feliz sem a lembrança, mas a
vida é absolutamente impossível sem o esquecimento” (SANTOS, 2012, p. 31). Ao
retornar ao pensamento de Nietzsche sobre o esquecimento, a autora percebe o
consentimento geral com o fato de que o homem esquece que esquece. “É importante
aqui prestarmos atenção não para a perda da memória, considerada irremediável, mas
para o argumento de que o esquecimento é essencial e sem ele a vida não é possível.
(SANTOS, 2012, p. 31).
O que se pretende destacar aqui é que o esquecimento não deve ser
entendido como mero recalcamento ou negação. Mais do que isso, o esquecimento não
é simplesmente o outro lado da memória. Esquecimento e memória fazem parte de uma
mesma totalidade e um não existe sem o outro, isto é, são membros que se constituem
entre si. Esquecimento e memória não se anulam, se complementam. A ação de
memória depende da capacidade de esquecer. O que ocorre é que ambos se manifestam
tanto de forma natural, como no caso da memória impedida, como de forma
administrada, como no caso da memória manipulada e do esquecimento comandado.
Assim, compreendendo tanto a dialética memória-esquecimento, quanto os
processos de coesão e conflito intrínsecos às relações entre memórias subterrâneas e
memória oficial administrada pelo Estado, percebe-se que a memória coletiva pode
assumir duas dimensões políticas distintas. Por um lado, a partir de suas possibilidades
de afirmação e resistência, a memória possuí um caráter libertário e de emancipação.
Por outro lado, a memória também pode ser uniformizadora e manipuladora,
assumindo, neste caso, seu viés de controle e coerção.

A Administração Política da Memória


Acredita-se ter sido demonstrada a relevância social do estudo da memória e
do esquecimento, assim como seus diversos matizes. É a partir desta percepção que se
fazem necessárias ainda mais reflexões sobre as disputas pela memória da ditadura
militar-empresarial e sobre o rumo que as mesmas têm seguido nos últimos anos. Para
tanto, é importante perceber que a memória social é um campo de conhecimento
essencialmente multidisciplinar. Em outras palavras, a memória pode se configurar
como objeto de pesquisa de diversas áreas científicas, como a sociologia, a história, a
psicologia, a ciência política, as ciências sociais aplicadas, a biologia, a administração
pública, dentre outras.
Neste sentido, a proposta central do trabalho é demonstrar como a
administração da memória coletiva oficial pode ser entendida a partir da teoria da
administração política. Propõe-se aqui a categorização da administração política da
memória oficial como uma das tarefas desempenhadas pelo Estado, a qual se
materializa em políticas, ações e programas criados por governos e gerenciados e
executados por aparelhos estatais e instrumentos da administração pública. Constatado
que toda memória é seletiva e fundamentalmente construída a partir de decisões
políticas, entende-se que o Estado atua como um verdadeiro gestor do passado e
construtor de narrativas para o presente e para o futuro, isto é, desempenha o papel de
administrador de memórias e de esquecimentos.
Para se estabelecer esta relação entre teoria da memória e teoria da
administração política, parte-se da concepção de que a administração política é a
disciplina que estuda as formas que o Estado organiza e estrutura os instrumentos
capazes de gerir a dinâmica das relações sociais de produção (Santos e Ribeiro, 1993). É
nesse locus onde está a administração política da memória, enquanto um dos
instrumentos utilizados pelo Estado na gestão das bases sociais de produção. Isto
significa esclarecer que as decisões políticas que dão origem as maneiras pelas quais o
Estado administra narrativas e esquecimentos não tem origem em outro lugar, senão no
palco do desenvolvimento histórico, a base social produtiva. Para se compreender
melhor esta proposta, entende-se ser necessário um maior aprofundamento sobre as
bases teóricas da administração política.
!!!O papel decisivo do Estado como interventor econômico e gestor do
processo produtivo demonstra a relevância desta forma de se encarar a administração.
Autores que se dedicam ao tema da administração política, como Santos e Ribeiro
(1993) e Fábio Gomes (2012), se utilizam da história e do desenvolvimento das forças
produtivas no Brasil para enquadrar epistemologicamente a disciplina. Assim, a
administração política resgata a importância da crítica a partir do ponto de vista
administrativo sobre a gestão das relações produtivas e sociais e em uma sociedade
capitalista periférica. Com base nas transformações que atingiram e seguem atingindo o
Estado, as relações de produção e o processo de acumulação brasileiro, a administração
política se afirma como disciplina fundamental para compreensão das complexidades e
efeitos produzidos no decorrer da consolidação das relações capitalistas de produção no
Brasil.
Nota-se que a importância central colocada como objeto pela administração
política é
[...] procurar compreender como a produção capitalista no Brasil se organiza
e passa por modificações, reformas ou mudanças, seja lá qual for a categoria
que compreenda o processo histórico de construção e reconstrução das
relações entre o Estado e a economia capitalista periférica, e a gestão dessas
relações no contexto dos conflitos de classe (inter e intraclasse). (GOMES,
2012, p. 13-14)
Percebe-se ainda o importante deslocamento do objeto da ciência da
administração proposto pela administração política, saindo das organizações e indo para
a gestão. Ao analisar as clássicas obras de Taylor, Waldo, Dimock, Simon e Guerreiro
Ramos, Reginaldo de Souza Santos (2001) percebe que a administração não possui um
objeto e um método claramente definidos. Na verdade, ambos se modificam em cada
um dos autores analisados. É a partir desta constatação que Santos (2001) identifica na
administração política uma possibilidade de aproximar o campo administrativo de uma
definição mais clara de seu objeto científico. Observa, portanto, que o objeto da
administração não está centrado na organização, mas sim na gestão. A partir desta
conceituação, o autor estabeleceu a categoria gestão como ponto central no
desenvolvimento administrativo.
Complementando as análises de Santos, Gomes (2012) procurou definir
porque o objeto de estudo da administração não deve estar centrado na organização.
Para o autor, a organização é um objeto interdisciplinar, capaz de envolver diversos
interesses oriundos de diferentes campos científicos. "Dado o grau de complexidade que
envolve as relações sociais internas à organização e os vários problemas que emergem
de seu interior, elas podem ser objetos de estudos de várias áreas do conhecimento"
(GOMES, 2012, p. 15). E é nesse contexto interdisciplinar que recai sobre a
administração seu objeto específico em meio aos outros tantos que compõem o universo
organizacional: "estruturar um modelo de gestão viabilizador do objetivo da
organização" (SANTOS, 2001, p.63).
Partindo da gestão como objeto de estudo da administração, Santos (2001)
indica que a gestão pode estar em dois campos de análise: o político e o profissional.
Enquanto o primeiro se refere a um campo macro e aplicável necessariamente a
qualquer modo de produção e formas de organização, o segundo se refere a uma
dimensão micro, ocupando-se com unidades econômicas, sociais e políticas específicas.
No que diz respeito à gestão no campo político, Santos (2001) busca
compreender como se desenvolve a dinâmica da gestão das relações sociais. Neste
ambiente, destaca-se a análise do Estado enquanto entidade essencial no processo de
administração das relações sociais de produção em um determinado país e com notado
poder de influência extranacional. Com isso, a análise da administração política não fica
restrita a uma lógica tipicamente capitalista, ao contrário, foca em um ambiente amplo
que não ignora o movimento histórico e dialético que emerge das bases das relações
sociais, políticas e produtivas.
A linha histórica da administração política do capitalismo se distancia da
responsabilidade de garantia de bem-estar social assinalada por Santos (2004) na
medida em que um dos imperativos últimos do sistema é incorporar um valor de troca a
tudo, sem necessariamente representar uma utilidade para a sociedade.
No capitalismo, a administração se dedica a gerir as relações sociais e
produtivas seguindo os imperativos de competição e acumulação emanados pelo
mercado, conforme afirma Ellen Wood (2012), isto é, focando seus esforços no
processo de geração e apropriação crescente e ininterrupta de mais-valor. Nesse
contexto, conforme observam Santos (2004) e Gomes (2012), a administração política
deixa as necessidades sociais de lado, ou no máximo em segundo plano, e se volta
primordialmente para atender os interesses do capital.
Para Gomes (2012), a gestão é imprescindível enquanto instrumento de
auxílio na pactuação de interesses divergentes emanados pelas relações sociais de
produção. Nesse sentido, o Estado se torna força fundamental para garantir as mínimas
condições materiais e sociais. Partindo dessa constatação, percebemos a importância
que cabe à administração política para o desenvolvimento das relações de produção e,
portanto, para as relações sociais como um todo. No entanto, cabe destacar que, quando
o autor fala do papel do Estado na manutenção das condições materiais e sociais, está se
referindo à sobrevivência do próprio sistema do capital, logo, à administração política
de uma conjuntura social, política e econômica específica. Esta percepção nos
demonstra que a administração política extrapola as delimitações fechadas com que a
administração vem majoritariamente trabalhando ao longo de mais de um século.
É neste espaço onde se insere a administração política da memória;
enquanto instrumento desenvolvido e executado pelo Estado para gerir a memória
coletiva nacional em função das condições objetivas do desenvolvimento produtivo. Em
outras palavras, a gestão política da memória é uma ferramenta da “gestão estatal e da
gestão das relações entre o ente público e a sociedade” (GOMES, 2012, p. 11).

Políticas de Memória e de Esquecimento


Tendo em vista que este trabalho se propõe a estudar a administração
política da memória e do esquecimento enquanto tarefa do Estado, algumas perguntas
ainda ficam em aberto: como funciona esta administração? Quais são os instrumentos
utilizados para este fim?
Dito de outra maneira, a administração política da memória se materializa
na forma de políticas públicas, que visam privilegiar determinadas narrativas em
detrimento de outras, produzindo silêncios e esquecimentos selecionados politicamente.
Para tanto, o Estado desenvolve e gera dois tipos específicos de políticas públicas: as
políticas de memória e as políticas de esquecimento. Mas o que são, de fato, estas
políticas?
As políticas de memória se inserem no rol do que o cientista político Johann
Michel (2010) chamou de políticas simbólicas. Uma das funções essenciais de uma
política simbólica está no campo ideológico. Essa dimensão tem por finalidade construir
bases de sustentação subjetiva para a classe ou grupo de classes que detém o poder em
determinado tempo histórico. Nas palavras de Johann Michel (2010), os objetivos da
função ideológica das políticas simbólicas são “forjar imagens, símbolos e narrativas
que permitem aos indivíduos se reconhecer em um espelho idealizante, ao mesmo
tempo como membros de um determinado grupo e diferente de outros” (MICHEL,
2010, p.14).
Tal como afirma Marx, uma das necessidades básicas da classe dominante é
apresentar seus interesses como universais para toda a sociedade.
De fato, cada nova classe que passa a ocupar o lugar da que a precedeu no
poder se vê obrigada, para realizar os fins que persegue, a apresentar o seu
próprio interesse como o interesse de todos os membros da sociedade, ou
seja, expressando-o em termos ideais, a apresentar suas ideias como
universais e as únicas racionais e absolutamente válidas. (MARX, 2010, p.
49)
É nesse sentido que as políticas simbólicas devem ser compreendidas,
enquanto conjunto de dispositivos e práticas desenvolvidas e administradas pelo Estado
para construir uma projeção idealizada – ideológica – e consensual de uma determinada
ordem nacional, produzindo, ao mesmo tempo, uma autolegitimação do poder em vigor
(Michel, 2010).
Em meio às políticas simbólicas, a memória e a história assumem um lugar
privilegiado. Este privilégio tem origem na própria essencialidade do passado coletivo
para a construção de identidades. História e memórias individuais ou coletivas possuem
nexo direto com a construção de identidades, também individuais ou coletivas (Pollak,
1992).
As políticas de memória são, portanto, aquelas políticas públicas que têm
como objetivo universalizar determinadas narrativas como material de recordação de
toda uma sociedade. Dessa forma, tais políticas podem se apresentar sob diversos
formatos, tais como: na definição de currículos escolares e políticas de educação; nas
políticas de preservação de patrimônio (físicos ou culturais); nas construções de
monumentos e homenagens em espaços públicos (nomes de ruas, de praças, de pontes,
etc.); na construção e valorização de mitos e heróis nacionais; e etc. Todas essas
políticas de memória desenvolvidas pelo Estado estão necessariamente, de forma
implícita ou explicita, valorizando certas interpretações históricas e construindo
determinadas narrativas, ao passo que desvalorizam outras.
Michel (2010) define política de memória da seguinte forma:
Pode-se chamar de políticas da memória o conjunto de intervenções de atores
públicos que objetivam produzir e impor lembranças comuns a uma dada
sociedade, em favor do monopólio de instrumentos de ações públicas
(comemorações oficiais, programas escolares de história, leis memoriais,
panteões, etc.). A construção de uma narrativa coletiva feita pelos poderes
públicos é parte integrante desse modo de ação pública. Essas narrativas se
orientam a supostamente unir membros de uma sociedade ao redor de uma
história comum, mesmo se essas configurações narrativas dizem mais sobre a
maneira pela qual o poder se coloca em cena e seus valores do que
propriamente sobre a memória coletiva sobre a qual supostamente se
apoiaria. (MICHEL, 2010, p. 15).
Já a política de esquecimento seria o instrumento de ação memorial
utilizado também pelo Estado no sentido de criação de uma política de antimemória
(Michel, 2010). No entanto, falar em política de antimemória administrada pelo Estado
não é uma tarefa tão fácil, visto a dificuldade de se evidenciar que uma política pública
tenha como objetivo deliberado a criação de determinados esquecimentos. Assim,
Michel (2010) sugere uma tipificação para o esquecer coletivo: esquecimento-omissão,
esquecimento-negação, esquecimento-manipulação, esquecimento-direcionamento e
esquecimento-destruição.
Os dois primeiros tipos, esquecimento omissão e negação, podem ser
relacionados à categoria da memória impedida, conforme resgatado por Huyssen
(2014). De acordo com Michel (2010), ambos são oriundos de uma forma involuntária
de esquecimento. O ponto central está no aspecto naturalmente seletivo da memória,
pois, de fato, é ontologicamente impossível se lembrar de tudo.
No campo da construção de uma memória coletiva oficial, tais tipos se
referem à produção de esquecimento vinculado às políticas públicas que, mesmo sem
ter como objetivo deliberado a construção ou o reforço de determinadas narrativas
coletivas acabam contribuindo naturalmente para esquecimentos específicos. “Tudo se
passa, portanto, como se houvesse efeitos de políticas memoriais cujas intenções e
motivações estivessem em parte não acessíveis aos sujeitos” (MICHEL, 2010, p. 17)
Nesse sentido, são os esquecimentos manipulação, direcionamento e
destruição que mais interessam ao presente trabalho.
Entre os cinco tipos-ideais de esquecimento (esquecimento-omissão,
esquecimento-negação, esquecimento-manipulação, esquecimento-comando,
esquecimento-destruição) que desenvolvemos aqui, apenas os três últimos
vinculam-se rigorosamente a uma política pública de esquecimento uma vez
que fatos do passado ou personagens históricos são intencionalmente
evacuados senão da memória coletiva, pelo menos da memória oficial.
(MICHEL, 2010, p. 24)
O esquecimento-manipulação corresponde a uma estratégia ativa e deliberada de se
produzir determinados vazios de memória. São estratégias voluntárias e levadas à cabo por
entidades e atores públicos no sentido de construir e transmitir determinada memória pública
oficial, a partir de esquecimentos específicos (Michel, 2010).
Este tipo se materializa em instrumentos próprios de políticas de antimemória.
Ações ou acontecimentos do passado podem ser propositalmente dissimulados, quando for
julgado que afetam negativamente os interesses políticos do presente. Trazendo a discussão para
um campo concreto, podem-se relacionar as políticas de esquecimento-manipulação diretamente
com a memória da ditadura militar-empresarial brasileira. Este tipo de política está presente, por
exemplo, na ausência de determinadas memórias dos currículos escolares.
A luta e as memórias dos trabalhadores e de outros grupos de resistência ao regime
não estão contempladas nos programas oficiais de ensino. Na realidade, o próprio tema da
ditadura militar-empresarial é abordado de forma muito discreta e abstrata nas escolas. Os
exemplos que contrariam esta política têm relação, em geral, com iniciativas independentes de
professores ou grupos que se opõem deliberadamente aos programas escolares oficiais.
Existem, porém, estratégias de esquecimento que se posicionam para além dos
vazios narrativos das memórias oficiais. O poder público também desenvolve e administra
instrumentos de esquecimento que não pretendem dissimular o esquecer. Ao contrário disto, o
Estado assume explicitamente a necessidade do esquecimento. Trata-se do que Michel (2010)
chamou de esquecimento-direcionamento. Nas palavras do autor,
[...] aqui não se trata como no caso precedente – esquecimento-manipulado –
, de fazer como se os acontecimentos, um determinado período ou os abusos
não tivessem existido, mas sim usar os instrumentos públicos para comandar
o esquecimento, para retomar a expressão de Paul Ricoeur. É certo que no
comando do esquecimento, paradoxalmente, ocorre o reconhecimento de que
algo ocorreu. Mas em razão de supostas ameaças de que esse passado possa
interferir no processo de coesão nacional do presente, as autoridades públicas
reivindicam solenemente que esse passado não seja recordado. Comandar,
manobrar, agir formalmente em prol do esquecimento vincula-se a uma
prerrogativa dos poderes públicos que em geral se servem de instrumentos
legislativos ou regulamentários para esse fim. (MICHEL, 2010, p. 20-21)
Partindo desta definição, verifica-se que este tipo de estratégia de produção
de esquecimento possui ligação com a forma básica de esquecimento comandado,
conforme trazido por Huyssen (2010). As leis de anistia aplicadas no fim ou após as
ditaduras na América Latina se enquadram perfeitamente neste tipo de política de
esquecimento.
Em princípio a anistia age apenas sobre a anulação de penas e perseguições
criminais, trata-se portanto de esquecer o caráter passível de punição de um
ato. De fato, o uso político da anistia em decorrência de graves perturbações
que afetam a nação se aproxima frequentemente do sentido de amnésia
coletiva. Dito de outra forma, em decretando o esquecimento das penas e atos
criminais, as autoridades políticas levam por vezes ao esquecimento dos fatos
em si mesmos. (MICHEL, 2010, p. 21)
É nesse sentido que as leis de anistia funcionam, colocando uma espécie de
ponto final em processos jurídicos e suspendendo penalidades. Como lembra Michel
(2010) tal esquecimento é, até certo ponto, limitado, visto que se aplica na esfera
jurídica, contudo, possui vasto efeito na medida em que, suspender determinadas
penalidades pode equivaler ao apagamento do próprio passado. No caso da Lei de
Anistia brasileira, promulgada em 1979, ainda pela ditadura brasileira e mantida até os
dias de hoje, foi garantida anistia não apenas para os perseguidos políticos pelo regime,
mas também para os próprios agentes do Estado responsáveis pelas milhares de prisões,
perseguições, torturas e assassinatos. Trinta anos após o fim da ditadura, a interpretação
de que os crimes conduzidos pelo Estado tinham conexão com os movimentos de luta
dos militantes perseguidos segue como dominante perante o judiciário brasileiro.
Por último, observa-se o esquecimento-destruição, uma estratégia que se
vincula à categoria mais violenta de esquecimento. Trata-se, de fato, da política de
esquecimento mais radical, aquela que não se propõe a produzir consensos específicos
por meio de esquecimentos, mas da eliminação de outras memórias em si.
Essa forma instituída de esquecimento é utilizada no sentido de construir uma
memória oficial hegemônica em detrimento de memórias coletivas
concorrentes que são o objeto de uma ação sistemática de aniquilação
(destruição de documentos públicos, autos de fé, etc.). Através dessas ações
objetiva-se fragmentar ou até mesmo eliminar a identidade coletiva (em sua
reprodução física, social e simbólica). [...]Assim como a instrumentalização
do esquecimento-manipulação se encontra, em diferentes graus, em todas as
sociedades, também a pratica do esquecimento-destruição traça em princípio
uma linha de demarcação entre as sociedades abertas e democráticas de um
lado, e as sociedades fechadas ou Estados de tendência totalitária, de outro.
Nesse último caso, as instituições políticas se esforçam por controlar o
conjunto de expressões públicas da memória, buscando impor uma só
verdade oficial da História e da memória coletiva e reprimindo as expressões
públicas de memórias rivais. (MICHEL, 2010, p. 23)
O regime militar-empresarial brasileiro, iniciado em 1964, buscou excluir da
sociedade seus adversários políticos que ameaçavam a ordem instituída, isto é, os
comunistas, os socialistas, os reformistas, os trabalhadores organizados, dentre outros.
Seguindo esta lógica, eram “desaparecidos” tanto aqueles que sobreviviam às
perseguições e às sessões de tortura – através do cárcere ou dos exílios –, quanto
aqueles que eram assassinados – por meio do desaparecimento de seus corpos. Tal
política desenvolvida pelo Estado ditatorial pode ser enquadrada como uma política de
esquecimento-destruição, na medida em que buscava eliminar definitivamente
memórias que se opunham ao regime ou a seus objetivos.
Cabe ressaltar que os tipos de esquecimento resgatados do pensamento de
Johann Michel são apenas tipos ideais, na linha proposta por Max Weber. Isso significa
dizer que estes tipos não se apresentam isolados e independentes na realidade concreta,
mas sim combinados uns com os outros. Assim, os programas curriculares oficiais, a
Lei de Anistia e as estratégias de desaparecimento dos adversários políticos do regime
não são exemplos puros das respectivas estratégias. Em todos estes casos concretos de
políticas de esquecimento, pode-se notar em alguma medida, tanto o esquecimento-
manipulação, quanto os esquecimentos direcionamento e destruição.
Percebe-se, portanto, que toda memória é seletiva e que, através de políticas
de memória e de esquecimento, o Estado se lança à administração política da memória
coletiva nacional. Nesse sentido, com relação à memória da ditadura militar-empresarial
brasileira, as perguntas que ficam são: que seleção está sendo feita com relação a esse
passado? Qual ou quais narrativas estão sendo privilegiadas? E qual o impacto de tais
escolhas para o presente e o futuro?

Políticas de Memória e Esquecimento sobre a Ditadura Militar-


empresarial Brasileira
Neste momento do trabalho, pretende-se trazer um breve histórico de
políticas de memória e de esquecimento que têm sido desenvolvidas pelo Estado
brasileiro, desde o fim da ditadura militar-empresarial. O objetivo é demonstrar de
forma concreta, isto é, através do resgaste e da contextualização histórica destas
políticas públicas, como o Estado brasileiro tem se posicionado com relação a este tema.
As políticas de memória implementadas pelo Estado brasileiro, através dos
governos civis que se sucedem desde 1985, devem ser entendidas, em primeiro lugar,
como consequências de pactos e conciliações estabelecidos entre estes governos e
forças político-econômicas ainda oriundas da ditadura militar-empresarial (Coimbra,
2013). Ressaltar este ponto significa perceber justamente as dimensões seletiva e
política da administração da memória.
Os referidos acordos se estabelecem a partir de necessidades políticas do
presente. Muitos deles seguem valendo até os dias de hoje, auxiliando na
governabilidade das coligações que assumem o poder do Estado e, ao mesmo tempo,
fortalecendo e valorizando a história narrada pelos vencedores, a história oficial. Tal
situação é decisiva para a sufocação de memórias subterrâneas, isto é, memórias de
resistência e de luta relativas àquele período de terror.
Um dos principais exemplos de política de memória é o não questionamento
da Lei 6.683 de agosto de 1979, a qual ficou conhecida como Lei de Anistia. Na
realidade, tratou-se de uma autêntica política de esquecimento. No plano institucional, a
anistia tradicionalmente indica o perdão concedido pelo Estado a quem tenha cometido
crimes, e, em especial, crimes políticos. No Brasil, apesar de ter sido o primeiro passo
para uma redemocratização, com o retorno de perseguidos políticos que viviam no
exílio, ela significou um grande caminho para o esquecimento. Esta lei, que segue em
vigência nos dias de hoje, foi instituída pelo próprio regime ditatorial e serviu para
anistiar também aqueles que perseguiram, torturaram e assassinaram presos políticos.
A lei anistiou todos os que, de setembro de 1961 a agosto de 1979 –
posteriormente ampliado de 1946 até 1988 –, cometeram crimes de motivação política e
crimes eleitorais, valendo também para aqueles que tiveram seus direitos políticos
suspensos, servidores públicos, militares e dirigentes e representantes sindicais punidos
com fundamento nos atos institucionais e complementares do regime militar. No
entanto, a lei parte da premissa de que o terrorismo de Estado deve ser tratado como
crime conexo aos crimes políticos que serviram de base para as perseguições, torturas e
assassinatos. Em outras palavras, foram anistiados tanto torturados, quanto torturadores.
A consequência é simple: nenhum agente do Estado pode sequer ser processado, muito
menos ser considerado culpado por tais crimes. Além disso, não foram contemplados
com a anistia os condenados por crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado
pessoal.
A questão aqui levantada é que entram e saem governos desde a eleição
presidencial de 1989 e a interpretação hegemônica da Lei de Anistia segue sendo a
mesma da ditadura. Em 2010, a Ordem de Advogados do Brasil (OAB), junto com
outras entidades da sociedade civil e juristas, entrou com solicitação pela revisão da lei
no Supremo Tribunal Federal (STF). Contudo, o STF decidiu pela não revisão. Manteve
a interpretação de que os crimes cometidos por agentes públicos durante a ditadura
podem ser considerados crimes conexos às infrações políticas.
No entanto, não é isso o que pensam diversos juristas reconhecidos nacional
e internacionalmente. Para Hélio Bicudo (2005), por exemplo, os crimes conexos “[…]
contemplam ações de uma ou mais pessoas objetivando o mesmo resultado” (Bicudo,
2005, p.12). Dessa forma, os atos de terror do Estado não poderiam ser tratados como
crimes conexos, uma vez que esses pressupõem ligação entre si. E não há nexo entre os
dois crimes, pois “só pode haver conexidade se os vários autores buscam a mesma
finalidade na prática o ato delituoso” (Bicudo, 2005, p.12). O que não é o caso.
Quando se pensa em uma Lei de Anistia efetiva, quando os movimentos
sociais pedem – desde a década de 1970 – uma anistia ampla, geral e irrestrita, pensa-se
em uma lei que promova uma reparação histórica. Isto é, uma lei que descriminalize
todos os opositores do regime que foram considerados como criminosos à época. Uma
lei que permita a sanção e punição dos verdadeiros criminosos, aqueles que atentaram
contra a dignidade humana. Ao contrário desta concepção, a Lei de Anistia que ainda
está em vigor no Brasil mantém a impossibilidade de processar os sujeitos, agentes
públicos ou não, que participaram do terrorismo de Estado. Esta lei, portanto, segue
reforçando o discurso oficial e conciliatório de que os dois lados estavam errados e
desqualificando todos as formas de luta de resistência. Segue produzindo a ideia de que
as ações do Estado ditatorial eram respostas equivalentes aos “crimes” cometidos por
opositores do regime. Segue contando a história segundo os interesses dos vencedores.
Outro exemplo de política de memória é a Lei 9.140 de 1995. Esta lei criou
uma Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, concedeu atestados de
óbito para os desaparecidos e instituiu uma reparação financeira para os familiares
(Coimbra, 2013). No que se refere à reparação, esta lei somente se preocupou com a
parte econômica. Não se investigou e publicizou os atos de terror, nem significou um
reconhecimento por parte do Estado de seus crimes. Assim, de acordo com Coimbra
(2013), a reparação econômica, que deveria ser apenas o fim de um longo e intenso
processo de reparações, significou um autêntico “cala boca”. Tornou-se um mecanismo
de esquecimento e silêncio.
Além disso, a Lei 9.140 somente declarou os desaparecidos como mortos.
Na realidade, declarou “morte presumida”, “sem, no entanto, esclarecer onde, quando e
como ocorreram tais crimes e quem os cometeu” (COIMBRA, 2013, p. 37). Outra
perversidade recai sobre o ônus da prova e da não abertura dos arquivos da ditadura. A
lei prevê que cabe aos interessados apresentarem as provas de que houve prisão, tortura
e/ou morte. No entanto, os arquivos seguem fechados para a sociedade.
As provas de que esses mortos e desaparecidos estiveram sob a guarda do
Estado e/ou foram assassinados por agentes daquele mesmo Estado deveriam ser
demonstradas por seus próprios familiares. “Com isto, de modo perverso, colocou-se o
ônus da prova nas mãos dos familiares: os arquivos da ditadura continuaram trancados a
sete chaves” (COIMBRA, 2013, p. 37).
A problemática que envolve a abertura dos arquivos possui ainda outras
implicações com a memória do período. Conforme observa Ferraz (2007), um dos
últimos atos do governo Fernando Henrique Cardoso estabeleceu novas classificações
para os arquivos da ditadura militar-empresarial, através do Decreto 4.553, de 27 de
dezembro de 2002. Os documentos reservados, que tinham prazo de cinco anos para se
tornarem públicos, passaram para dez anos; os confidenciais subiram de dez para vinte
anos; os secretos, de vinte para trinta anos; e os ultra-secretos podiam permanecer
sigilosos para sempre.
Entre 2002 e 2015 os prazos de classificação foram novamente alterados.
No entanto, mais de meio século após o golpe de Estado, os principais arquivos da
ditadura militar-empresarial permanecem fechados. Dentre eles, estão os arquivos do
Exército, da Marinha, da Aeronáutica e da Polícia Investigativa (P2). Tais arquivos
estão disponíveis apenas para o atingido ou o familiar devidamente autorizado. E
mesmo assim, somente são liberadas as partes que se referem especificamente ao
atingido. Dito de outra maneira, os arquivos não estão abertos em sua totalidade nem
para o grupo de atingidos diretamente pelo terror de Estado. Em suma, a sociedade
segue sem acesso aos arquivos da ditadura.
Esta pequena amostra de políticas de memória e de esquecimento fornece
uma noção sobre os posicionamentos que o Estado brasileiro vem adotando nas últimas
três décadas.

Conclusões
Este artigo tem como escopo contribuir para as reflexões concernentes às
novas perspectivas e às novas abordagens das bases epistemológicas do campo da
administração política, por meio da análise da teoria da memória e do seu contraponto, o
esquecimento-manipulação, esquecimento-direcionamento e esquecimento-destruição, a
partir dos enfoques dos autores clássicos e contemporâneos da teoria da memória.
Se, como definem Santos, Ribeiro e Santos (2009, p. 930), “cabe à
administração estruturar formas de gestão que viabilizem os objetivos da organização”,
sendo o Estado uma organização, a definição do que deve ou pode ser lembrado ou
esquecido, em termos de gestão política da memória nacional, também pode ser pensada
enquanto um campo específico do saber na área. Esta concepção contribui sobremaneira
para o conhecimento de aspectos relativos ao processo cultural e civilizatório da
sociedade, com vistas no pleno desenvolvimento da humanidade.
Partiu-se do pressuposto de que a memória é continuamente reconstruída
pelos grupos sociais e pelo Estado. No âmbito do Estado, foco central deste artigo,
verificou-se que, ao fazer a gestão das memórias, ou seja, ao evidenciar o que deve ser
lembrado, o Estado também deixa um rastro, uma zona cinzenta, composta de fatos e
acontecimentos que não são rememorados, que são esquecidos.
Desta forma, a condução política da memória da ditadura militar-
empresarial brasileira (1964-1985) pode ser pensada no campo da administração
política, na perspectiva da gestão da memória política do Estado e de suas
consequências para a sociedade, para o próprio Estado e para os grupos sociais
atingidos.
O estudo aplicado destas formas de esquecimento foi realizado por meio da
análise dos dados relativos à Lei de Anistia, à política de indenizações financeiras aos
atingidos pelo terror de Estado e à política de arquivamento dos arquivos da ditadura.
O contexto em que fora formulada e instituída a Lei de Anistia, no processo
de “redemocratização”, “transição” e “abertura”, demonstra que houve uma tentativa de
silenciamento por parte do Estado sobre todos os crimes cometidos pelo regime. A
manutenção desta lei tal como fora concebida em 1979, posição reforçada pela recente
decisão do STF de negar sua revisão, sustenta a interpretação de que os crimes
cometidos por agentes públicos durante o regime devem ser considerados como crimes
conexos às infrações políticas. Evidencia-se, dessa forma, o não interesse do Estado em
alterar sua posição com relação a este tema. Segue-se reforçando a narrativa do
consenso a partir da produção de certos esquecimentos. Sobressai neste caso a dimensão
do esquecimento-direcionamento.
A política de indenizações, por sua vez, pode ser relacionada, sobretudo, ao
esquecimento-manipulação. Uma política de indenizações deve se constituir como parte
de um processo maior de reparações, o que inclui diversas esferas para além da
financeira, como a jurídica, a moral e a psicológica. Além disso, este processo deve
estar imerso em uma intensa contextualização e investigação sobre o passado opressor.
É nesse sentido que uma pretensa reparação exclusivamente financeira tem a capacidade
de se tornar um “cala-boca”, isto é, mais um mecanismo de esquecimento. Ao invés de
trazer o passado dos atingidos à superfície do conjunto de narrativas nacionais, acaba
por não fazê-los protagonistas em uma nova construção memorial coletiva e por
minimizar suas reivindicações à esfera meramente econômica.
O mesmo se pode dizer sobre a política de arquivamento dos arquivos da
ditadura. Conforme foi demonstrado, a maior e principal parte arquivos relacionados à
ditadura militar-empresarial segue fechada para a sociedade (arquivos do Exército,
Marinha, Aeronáutica e Polícia Investigativa). Acrescente-se que o Decreto 4.553 de
2002 piorou as possibilidades de mudança de posição do Estado com relação a este
tema, visto que dificultaram ainda mais o acesso a tais arquivos. Impedir o acesso aos
arquivos significa omitir deliberadamente certo passado, o que pode ser relacionado
principalmente à estratégia de esquecimento-manipulação.
É preciso lembrar, contudo, que estas relações entre as políticas de memória
e a tipologia sugerida por Michel (2010) necessitam ser pensadas sob a ótica de tipos
ideias. Na realidade concreta estas estratégias não aparecem em seu formato puro.
Todas as políticas de memória e esquecimento aqui analisadas produzem um pouco de
cada uma das três formas de esquecimento deliberado – esquecimento-manipulação,
esquecimento-direcionamento e esquecimento-destruição.
O impacto dessas políticas de esquecimento é muito prejudicial não só para
os atingidos diretamente pelo terror de Estado, mas para toda a sociedade. O silêncio e o
esquecimento intensificam as parcialidades da história e das sequelas da ditadura
militar-empresarial. Ocorre que estes diferentes tipos de esquecimentos ultrapassam a
fronteira das análises meramente aplicadas da administração política, a partir do
pressuposto de que toda a sociedade é afetada, direta ou indiretamente, seja em relação à
ação direta dos seus efeitos sobre os atingidos, seja em relação aos efeitos nocivos
transgeracionais que determinados tipos de esquecimento são produzidos.
Pensar, portanto, no esquecimento enquanto produção de uma política
pública, inserido no campo da administração política e entendido enquanto uma ação
direcionada para um determinado fim, pode nos oferecer recursos para pensar não
somente na perspectiva da falta, mas da gestão da administração política da memória
nacional a partir das relações sociais, políticas e de produção.

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i
Este trabalho denominará a ditadura militar brasileira como ditadura militar-empresarial brasileira.
Trata-se de uma escolha política que tem como objetivo ressaltar a importância das ligações associativas
entre a classe burguesa, o golpe de 1964 e as ações do Estado ditatorial brasileiro. Ver mais em “1964 - A
Conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe”, de René Dreifuss (1987), ou em “A natureza
de classe do Estado brasileiro”, de João Quartim de Moraes (2014).
O Estado e os problemas contemporâneos: reflexos da gestão pública nos
índices de pobreza e desenvolvimento humano do município de Itabuna-BA

Jamile Cunha (UFBA)

Resumo
O Estado tem procurado atender de forma eficaz aos amplos aspectos sociais. Na
contemporaneidade, diversos sãos os problemas que afligem o Brasil. Talvez o mais importante
deles seja a questão da pobreza, tema cujo entendimento é defendido de forma ampla por
Amartya Sem e pelo Banco Mundial. O Brasil, na condição de país periférico, deve ter sempre
como foco principal a redução da pobreza e das desigualdades sociais, associando-as aos demais
elementos da busca pelo desenvolvimento humano. São notórias as ações já implementadas. Há
acertos, há erros, e há a necessidade de continuidade das políticas sociais com esse foco.
Considerando o entendimento abrangente da pobreza, as políticas sociais são fundamentais para
combatê-la, em especial através de programas fortemente implantados em municípios da região
Nordeste. A cidade de Itabuna situa-se no interior da Bahia e apresenta uma atuação
representativa frente a essas políticas, por isso consiste no objeto de estudo. Na medida em que a
Administração Política abrange tanto a esfera pública quanto a privada e social, esse conceito
engloba perfeitamente as questões sociais aqui discutidas. Este trabalho visa evidenciar esses
problemas no âmbito nacional e municipal, demonstrando como as políticas públicas contribuem
para o desenvolvimento humano do município e, como conseqüência, do país.

Introdução
A gestão pública brasileira se caracteriza na atualidade pela busca por seus limites de atuação.
Diante do atual cenário o Estado precisa se renovar para atender de forma eficaz aos amplos
aspectos sociais. A discussão acerca dos tipos de proteção social que têm sido implementados
pelo Estado em diferentes contextos é atual e crescente.
O campo da Administração Política para o Desenvolvimento tem como um dos princípios
fundamentais a orientação para emancipação do homem na sociedade (SANTOS ET AL, 2014).
Tendo como uma das vertentes a contemplação das relações sociais, este campo serve de base
para as discussões acerca das relações e problemas sociais do país.
A pobreza é um dos principais problemas do Brasil, país onde há grande desigualdade social.
Entretanto desde a década de 1990, vários programas foram criados pelo governo na tentativa de
dirimir os problemas existentes nas áreas de saúde, educação, assistência social, redução da
pobreza, emprego e renda.
A região nordeste compreende aquela com os maiores índices de pobreza e miséria do país. Por
esse motivo, escolheu-se um município baiano para análise dos reflexos da gestão pública, por
meio da implantação dos programas de governo, em seus índices de pobreza e desenvolvimento
humano. O município de Itabuna – BA está situado no território litoral sul da Bahia e possui uma
população de 218.925 habitantes, sendo um dos maiores e mais representativos municípios desse
território.
O objetivo deste trabalho consiste em evidenciar os problemas contemporâneos do país no
âmbito social, analisando as ações da gestão pública municipal para mitigá-los. O objeto de
estudo trata-se de uma cidade de interior nordestina. A pesquisa realizada teve caráter
bibliográfico, descritivo e documental. Justifica-se a realização deste trabalho por demonstrar em
que grau as políticas sociais contribuem para o desenvolvimento humano municipal.
O presente trabalho apresenta os dados estatísticos acerca dos índices de pobreza e
desenvolvimento humano, além dos programas sociais implantados no território brasileiro e no
município escolhido. Ele está dividido da seguinte forma: estado e problemas contemporâneos,
onde se apresentam as atuais ações de governo voltadas para proteção social, destacando os
programas mais relevantes, assim como os principais problemas contemporâneos enfrentados
pelo Estado brasileiro na gestão pública; pobreza e desenvolvimento humano, com uma
discussão conceitual sobre a pobreza e sua relação com o desenvolvimento humano; índices da
gestão pública no município de Itabuna – BA, onde se analisa os dados do município através de
correlações; e conclusão.
Há críticas sobre as intervenções pontuais focadas nos pobres visando alívio imediato da pobreza
ao invés de implementar um sistema de defesa e garantia de direitos universais ou políticas que
convirjam em ações universais. É preciso considerar que determinadas estratégias políticas
necessitam de uma análise mais profunda sobre a adequação entre os tipos de intervenções e os
determinantes da pobreza.

O Estado e os Problemas Contemporâneos


Na esfera pública, a Administração Política relaciona-se com os pensamentos Marxistas quando
trata da relação estrutura-superestrutura como base da Administração como um fenômeno social
de relações (SANTOS ET AL, 2014):
O conceito de Administração Política resgata tradições clássicas do pensamento
crítico ao mesmo tempo que questiona o paradigma referendado acerca da
“neutralidade”, da supremacia da técnica e dos objetivos consensuais do Estado.
Afinal, o Estado não é neutro – dado que, reitere-se, está a serviço da
reprodução da sociedade de classe -, é constrangido pela lógica da acumulação
capitalista, que é imutável e inclui necessariamente o contexto internacional, e
seus objetivos (do Estado) são contraditórios em razão da própria contradição
da sociedade de classes à qual sua existência é condicionada. (FONSECA
APUD SANTOS ET AL, 2014, p. 189).
Na medida em que o Estado deve garantir os direitos de todas as classes, a Administração
Política conversa perfeitamente com as discussões que envolvem os problemas sociais,
especialmente os relacionados com pobreza e desenvolvimento humano. De acordo com Santos
Et Al (2014), a Administração Política inclui a gestão das questões sociais.
Na contemporaneidade, diversos sãos os problemas que afligem o Brasil. Talvez o mais
importante deles seja a questão da pobreza. O Brasil, sendo um país periférico ou “emergente”,
deve ter sempre como foco a redução da pobreza e das desigualdades sociais. Essas são ações
essenciais para fortalecer a democracia e realizar coesão social (SANTOS, 2009). São notórias as
ações já implementadas. Há acertos, há erros, e há a necessidade de continuidade das políticas
sociais com esse foco.
De acordo com o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome – (MDS, 2010),
linha de extrema pobreza está relacionada com o rendimento familiar per capita de R$ 70,00
mensais. Em 2012 a Secretaria de Assuntos Estratégicos – SAE do governo federal propôs a
atualização da condição de pobreza para o rendimento per capta mensal de até R$162,00, a linha
de extrema pobreza o rendimento de até R$81,00 per capta mensal, e os vulneráveis com faixa
de renda per capta mensal entre R$162,00 e R$292,00. Porém vale ressaltar que até o momento
os programas vinculados ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome vem
utilizando o critério de R$70,00 para populações em linha de extrema pobreza.
Considerando a concepção ampla da pobreza (abrangendo baixos indicadores de renda,
educação, nutrição, saúde, e demais áreas do desenvolvimento humano), cabe aos gestores
públicos a criação e implementação de políticas sociais para combatê-la. No Brasil, país onde
existe um considerável contingente populacional desprivilegiado, já são conhecidos os
programas de transferência de renda com direcionamento aos pobres, que buscam uma proteção
social, auxiliando nos períodos de crise e na superação da situação de pobreza. A questão da
pobreza assumiu maior relevância no país em meados dos anos 90, quando se deu foco a
instituição de políticas de assistência social e de enfrentamento à pobreza, em especial com o
programa Fome Zero e seus componentes.
Programas para melhoria da renda, crédito popular e inserção produtiva foram criados com foco
nos trabalhadores desempregados e informais, como o Plano Nacional da Educação Profissional,
Programa de Geração de Renda, Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar, Programa
de Crédito para a Reforma Agrária e o Programa Crédito Produtivo Popular do BNDES. Ainda
na década de 90 surgiram também os programas de transferência de renda, garantindo patamares
mínimos de renda familiar para dar condições para melhoria do desempenho escolar e da saúde
dos sujeitos assistidos, como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Essa estratégia
continuou na década seguinte com o Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás e Benefício
de Prestação Continuada. No governo Lula, os programas de transferência de renda foram
unificados no Programa Bolsa Família, atingindo todas as famílias abaixo da linha de pobreza no
Brasil.
De acordo com Panorama Ipea (2012), os principais programas de assistência social hoje no
Brasil correspondem a ações articuladas dentro do Plano Brasil Sem Miséria – PBSM, iniciado
em junho de 2011 com os eixos de garantia de renda (Programa Bolsa Família e Benefícios
Variáveis Gestantes e Nutrizes), acesso a serviços (assistência social, com o Sistema Único de
Assistência Social – SUAS e o Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social – BPC;
saúde e educação) e inclusão produtiva (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e
Emprego – Pronatec Brasil Sem Miséria, Programa Nacional de Promoção do Acesso ao Mundo
do Trabalho – Acessuas Trabalho e Programa de Apoio à Conservação Ambiental – Bolsa
Verde). Este plano foi criado com o objetivo de superar a extrema pobreza no país, tendo como
público as famílias com renda mensal inferior a R$77,00 por pessoa. A porta de entrada para o
BSM é o Cadastro Único, realizado pelos municípios e atualizado a cada dois anos, de acordo
com o MDS (MDS, 2010). Entre 2000 e 2010 esse plano já trouxe como resultado uma redução
dos extremamente pobres e crescimento do emprego e da renda. Outros resultados concretos
observados entre os participantes são: crianças com maior assiduidade escolar e menor
repetência, carteira de vacinação em dia, redução da desnutrição, redução do trabalho infantil,
empoderamento das mulheres, maior frequência das mulheres ao pré-natal e maior uso de
contraceptivos.
Para De Azevedo e Burlandy (2010) a presença dos programas isoladamente não é suficiente
para assegurar a existência de uma estratégia política de combate à miséria que compreenda de
maneira integrada intervenções por objetivos mais amplos. No Brasil, há uma variação nos
investimentos do governo para com o social, entretanto desarticulados das demais políticas.
Panorama Ipea (2012) confirma esse ponto, afirmando que há dificuldades em formular e
integrar políticas públicas sociais, além de um grande desafio nas articulações horizontais e
verticais. Segundo Vianna (2008) o Brasil tem criado políticas sociais de combate à pobreza
como forma de compensação pelos danos causados pela desigualdade, justificando assim o foco
nos pobres.
Os problemas contemporâneos do Estado brasileiro compreendem também as questões de
educação. Vários são os desafios do sistema educacional brasileiro e foi para enfrentá-los que foi
criado o Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE em 2007 pelo MEC. Apesar de as
estatísticas atuais apontarem uma quase totalidade do percentual de crianças e adolescentes
matriculadas as escolas, a qualidade do ensino nas escolas públicas brasileiras ainda deixa a
desejar, uma vez que os estudantes têm apresentado baixa habilidade com leitura, escrita e
cálculo. O analfabetismo funcional, ou seja, a incapacidade de interpretar o que se lê, é
expressivo na educação básica brasileira. As elevadas taxas de repetência no ensino fundamental
é um problema que precisa ser solucionado para reduzir a evasão escolar, assim como a
qualidade do ensino médio, no qual os estudantes apresentam baixo desempenho.
Uma boa estratégia do PDE para ajudar a modificar esse cenário é utilizar a mensuração do
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB, indicador de qualidade que mede o
desempenho de alunos e escolas de educação básica do Brasil, possibilitando detectar escolas e
regiões com maior necessidade de ajuda e acompanhar os avanços alcançados (SANTOS, 2009).
Dessa forma é possível planejar ações mais concretas rumo à melhoria da educação básica
brasileira.
Outro ponto importante de se destacar é que o Estado já tem melhorado e muito o acesso ao
ensino profissional técnico. O número de escolas técnicas tem aumento muito com o
PRONATEC, facilitando o acesso a uma formação profissional. Um dos aspectos mais
importantes do atual Plano Nacional da Educação é a formação profissional vinculada ao ensino
médio (SANTOS, 2009). Já o acesso ao ensino superior é reduzido e desigual, em especial em
função da renda familiar. As ações implementadas até o momento nesse sentido consistiram na
instituição do ENEM como única forma de ingressar no ensino superior público, mas que ainda
tem pouca aprovação de estudantes de baixa renda, já que a educação básica tem sido ineficaz; o
PROUNI como mecanismo de financiamento à educação superior em instituições privadas e o
aumento da oferta de cursos na modalidade à distância.
No que tange às políticas de saúde, o Brasil é o país que tem o melhor modelo de saúde do
mundo em sua Constituição Federal, mas não consegue pôr em prática (SANTOS, 2009). O
Sistema Único de Saúde – SUS criado na década de 80 prevendo a universalidade e equidade no
acesso, a integralidade das suas ações e a participação social na sua gestão, é um dos maiores
sistemas públicos de saúde do mundo (SOUSA, 2002), mas que não aplica seus ideais de
criação. Por conta disso Faveret e Oliveira (1990) defendem que surgiu então o fenômeno de
Universalização Excludente, onde os mais abonados da sociedade aderiram aos Planos de Saúde
como alternativa à assistência da saúde, enquanto o SUS atende às parcelas de menor renda da
população. O principal problema enfrentado desde a criação do SUS é o seu financiamento.
O Brasil precisa criar uma política de saúde voltada a prevenção de doenças. Apesar do amplo
programa de vacinação gratuita existente (o país apresenta representativa criação e aplicação de
vacinas), nota-se que o Brasil mais cuida de doentes do que previne as doenças. Os atendimentos
são em sua maioria para tratar de alguma doença, ao invés de prevenir. A criação de um
programa de prevenção seria de grande importância para o país prevenindo doenças e reduzindo
assim o número de atendimentos à longo prazo.
Dentre os problemas sociais do Estado brasileiro, destaca-se também a questão do Trabalho e
Geração de Renda. Embora já mencionados acima os programas do eixo Inclusão Produtiva do
Plano Brasil Sem Miséria, cabe ressaltar a importância do tema, uma vez que “A desigualdade
social está profundamente associada aos diferenciais de renda da população, oriundos, por sua
vez, da sua heterogênea inserção no mercado de trabalho (SANTOS, 2009)”.

Pobreza e Desenvolvimento Humano


A definição do conceito de pobreza é difícil, pois, de acordo com Rocha (2003, p. 9), “pobreza é
um fenômeno complexo, podendo ser definido de forma genérica como a situação na qual as
necessidades não são atendidas de forma adequada”. Definir as necessidades e o que é ou não
adequado não é fácil. Para De Azevedo e Burlandy (2010, p.202) esse fenômeno complexo é
“(...) composto por dimensões subjetivas, econômicas, sociológicas e políticas que variam
conforme as especificidades locais, em razão das heterogeneidades sociais e culturais”.
Em geral, a concepção de pobreza dá ênfase ao caráter econômico, caracterizando-a como uma
falta de renda. Mas é necessário que dimensões não econômicas, que compreendem capacitações
e necessidades básicas, sejam consideradas na análise das condições de vida. Essa abordagem
incorpora outras necessidades humanas, como habitação, saneamento, educação, etc. De acordo
com Amartya Sen (2014), ampliar a visão econômica do Índice de Desenvolvimento Humano –
IDH é uma questão urgente. Este autor considera que a pobreza não é falta de renda (visão
clássica da pobreza), mas privação de capacidades (enfoque alargado da pobreza).
O Banco Mundial já considera que a pobreza abrange baixos indicadores de renda, educação,
nutrição, saúde, e demais áreas do desenvolvimento humano, destacando o combate à pobreza
como um dos principais desafios mundiais. Amartya Sen (2014) defende a necessidade de
visualizar a conexão entre crescimento econômico e a redução da pobreza no amplo sentido da
privação de capacidades. Para isso ele propõe a implantação de um crescimento econômico
sustentável, onde crescimento econômico é mais que Produto Interno Bruto – PIB; além de
aspectos do desenvolvimento independentes do crescimento econômico (como o uso da renda
gerada pelo crescimento do país em prol da qualidade de vida do povo - para ele o Brasil é um
bom exemplo disso). Considerando esse entendimento abrangente da pobreza, as políticas sociais
são fundamentais para combatê-la, em especial através de programas de transferência de renda
com direcionamento aos pobres, auxiliando nos períodos de crise e na superação da situação de
pobreza.
As políticas de enfrentamento da pobreza surgiram na década de 90, após o Plano Real. A
criação do Plano Real foi o ponta pé inicial como forma de estabilização monetária. A partir de
então surgiram políticas voltadas para as regiões e populações mais pobres. Para Amartya Sen
(2014), o Brasil é um país que faz grandes mudanças no âmbito do desenvolvimento humano. De
acordo com De Azevedo e Burlandy (2010, p.204), com a redemocratização do país veio a
“Ação da Cidadania contra a Fome, que culmina em 1993 com o surgimento do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar (Consea)”, sendo este extinto dois anos depois. Em seu lugar
foi criado o Comunidade Solidária, que não teve muito sucesso.

Índices da Gestão Pública no Município de Itabuna – BA


O nordeste brasileiro compreende uma das regiões com os maiores índices de pobreza e miséria.
O território litoral sul da Bahia, compreendido entre os municípios de Maraú ao norte e
Canavieiras ao sul, é estritamente urbano e possui IDH (0,67) abaixo da média nacional (0,727).
A cidade de Itabuna - BA conta com uma população de 218.925 habitantes e é uma das maiores
e mais representativas desse território, sendo um dos participantes do Plano Brasil Sem Miséria.
Os registros de julho de 2014 mostram que o município tem 36.185 famílias registradas no
Cadastro Único (MDS, 2014). 1.529 famílias que estavam em situação de extrema pobreza no
município foram inscritas no Cadastro Único e incluídas no Programa Bolsa Família entre julho
de 2011 e junho de 2014. De acordo com o boletim do MDS (2014), atualmente todas as famílias
inseridas no programa superam a pobreza. A tabela a seguir mostra os percentuais de pobreza e
desigualdade neste município.

RENDA, POBREZA E DESIGUALDADE EM ITABUNA - BA


1991 2000 2010
Renda per capita (em R$) 330,17 419,51 605,12
% de extremamente pobres 29,62 13,88 6,12
% de pobres 0,68 0,61 0,56
Fonte: ATLAS BRASIL, 2014.
É possível verificar na tabela acima o incremento da renda per capita entre 1991 e 2010, assim
como a redução dos índices de pobreza e extrema pobreza. Possivelmente o PBSM contribuiu
para este resultado, o que demonstra aspectos positivos de sua implantação.
No âmbito do eixo Garantia de Renda, 26,21% da população de Itabuna – BA é beneficiária do
Programa Bolsa Família. São 18.975 famílias que representam 99,47% da estimativa de famílias
com perfil de renda do programa (MDS, 2014). O total de recursos transferidos às famílias
beneficiárias do programa foi R$ 2.768.544,00 em agosto de 2014. Desde o início do programa
já houve redução de 3,69 % no total de famílias beneficiárias. Os acompanhamentos escolar,
nutricional e de saúde das crianças e gestantes participantes do programa são condicionalidades
do mesmo. O acompanhamento de frequência escolar em Itabuna – BA está abaixo da média
nacional, sendo necessária articulação para melhorar esse acompanhamento. Em agosto de 2014
haviam 275 famílias que recebiam o benefício variável à gestante e 374 famílias que recebiam o
benefício variável nutriz neste município. Veja no gráfico a seguir o incremento nos repasses de
recursos pelo Programa Bolsa Família entre 2004 e 2013 em Itabuna – BA, registrando um
expressivo aumento de 664,58%.

Fonte: MDS, 2014.

Já o eixo Acesso à Serviços, tem a vertente assistência social relacionada com a rede do Sistema
Único de Assistência Social (SUAS). Em junho de 2014 Itabuna – BA tinha em seu território
dois Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), um Centro de Referência
Especializado de Assistência Social (CREAS), um Centro de Referência Especializado de
Assistência Social para População em Situação de Rua (Centro POP) e cem vagas em Serviços
de Acolhimento para População em Situação de Rua, todos cofinanciadas pelo MDS (MDS,
2014). Há previsão de ampliação de doze Unidades Básicas de Saúde no município. Na vertente
educação, em 2012 o município deixou de participar da Ação Brasil Carinhoso (vagas em
creches públicas para crianças de 0 a 48 meses beneficiárias do Bolsa Família) por falta de
registro de informações acerca do atendimento dessas crianças, mas no ano de 2013 voltou a ser
contemplado, mediante a identificação de 452 crianças em 12 creches. Também no ano de 2013
o município passou a fazer parte do Programa Mais Educação, ofertando educação em tempo
integral em 58 escolas de ensino fundamental, nas quais há mais de 50% de seus alunos no
Programa Bolsa Família.
Quanto ao eixo inclusão produtiva, a principal estratégia é o PRONATEC, que visa, através da
qualificação profissional, aumentar as possibilidades de inserção de pessoas de baixa renda nas
oportunidades de trabalho disponíveis (MDS, 2014, p.5): “De janeiro de 2012 a julho de 2014,
foram efetuadas 1.126 matrículas em cursos ofertados pelo Pronatec Brasil Sem Miséria no
município”. Já o Acessuas Trabalho repassou em 2013 R$98.400,00 ao município. Houve ainda
10 famílias beneficiárias do Bolsa Verde entre outubro de 2011 e julho de 2014, recebendo, cada
uma delas, R$300,00 por trimestre para conservar e fazer uso sustentável das áreas prioritárias
onde vivem.
Há outros aspectos interessantes quanto ao desenvolvimento humano desse município. O
primeiro é o próprio IDH, síntese da medida do progresso a longo prazo compreendido por três
dimensões (educação, saúde e renda) do desenvolvimento humano e que contempla
oportunidades e capacidades das pessoas (PNUD, 2014). Foi criado para oferecer um
contraponto ao indicador que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento, o
PIB per capta. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal – IDHM ajusta o IDH para a
realidade municipal, demonstrando as particularidades e desafios no alcance do desenvolvimento
humano no Brasil. A consulta ao IDHM pode ser feita através da plataforma Atlas de
Desenvolvimento Humano no Brasil, assim como de outros indicadores cujos dados são
extraídos dos Censos Demográficos (Atlas Brasil, 2014).

EVOLUÇÃO DO IDHM DO MUNICÍPIO DE ITABUNA - BA


Ano IDHM Itabuna - BA
1991 0,453
2000 0,581
2010 0,712
Fonte: ATLAS BRASIL, 2014.

Na tabela acima, é possível verificar que o município de Itabuna - BA teve um salto entre 1991 e
2010, chegando próximo da média do IDHM do Brasil, classificado como alto na faixa do
IDHM. Entre 2000 e 2010, a taxa de crescimento do IDHM foi de 22,55%, reduzindo a distância
para o máximo do índice (1) em 68,74% nesse período. A Educação foi a dimensão com maior
crescimento (0,222), seguida por Longevidade e por Renda. Já entre 1991 e 2000, a taxa de
crescimento do IDHM foi de 28,26%, reduzindo a distância para o máximo do índice (1) em
76,60% nesse período. A Educação foi a dimensão que também cresceu mais (0,165), seguida
por Longevidade e por Renda. Por fim, entre 1991 e 2010 a taxa de crescimento do município foi
de 57,17% enquanto a da Unidade Federativa – UF foi de 47%, reduzindo a distância para o
máximo do índice (1) em 52,65% para o município e 53,85% para a UF. A educação foi o incide
que mais cresceu tanto no município quanto na UF. Essas dimensões do IDHM estão evidentes
na tabela abaixo.
DIMENSÕES DO IDHM DO MUNICÍPIO DE ITABUNA
1991 2000 2010
IDHM Educação 0,256 0,421 0,643
IDHM Longevidade 0,607 0,733 0,807
IDHM Renda 0,598 0,636 0,695
Fonte: ATLAS BRASIL, 2014.
Pode-se inferir por esses dados que o município de Itabuna - BA teve incremento dos percentuais
em todos os períodos apresentados. Considerando as proporcionalidades de aumento da taxa de
crescimento, no próximo período de análise o IDHM do município baiano continuará crescendo.
Quanto às três dimensões do IDHM desse município, cabem ainda as seguintes análises:
Demografia e saúde: O município baiano apresenta o crescimento de sua taxa de urbanização
no período de 1999 a 2000 de apenas 1,43%. É possível observar que o município baiano tem
controle do crescimento da população, onde a taxa média anual de crescimento da população é
de 0,66% em Itabuna – BA. Quanto a expectativa de vida ao nascer, é de 73,4 anos no município
baiano, embora o crescimento entre 2000 e 2010 no município baiano seja de 4,5 anos em
Itabuna – BA.
Educação: A estatística mais preocupante é a proporção de jovens de 18 a 20 anos com ensino
médio completo, sendo de 35,62% em Itabuna – BA no ano de 2010. A expectativa de anos de
estudo é baixa (9,36 anos em Itabuna - BA no ano de 2010), mas houve um aumento de 17,29%
entre 2000 e 2010.
Renda: O crescimento da renda per capta média é de 83,28% em Itabuna – BA nas últimas duas
décadas. A taxa anual de crescimento aumentou em Itabuna – BA de 27,06% para 44,24 %.
Importante ressaltar a redução na proporção de pessoas pobres no município, 17,09 % em
Itabuna – BA.
Outro aspecto interessante sobre o desenvolvimento humano do município são os dados
referentes ao Mercado de Trabalho, disponibilizados pelo Censo 2010 e a Dinâmica de
admissões em ocupações formais segundo CAGED. De acordo com o último Censo
Demográfico (IBGE, 2010), em agosto de 2010 Itabuna – BA possuía 98.549 pessoas
economicamente ativas, das quais 84.834 estavam ocupadas e 13.715 desocupadas. Em
percentuais, a taxa de participação é de 56,3% enquanto que a taxa de desocupação municipal é
de 13,9%. Apenas 47,1% das pessoas ocupadas tinham carteira assinada. Os demais se dividem
em trabalhadores sem carteira assinada (22,8%), trabalhadores por conta própria (22,8%),
empregadores (2,2%), servidores públicos (3%) e trabalhadores sem rendimentos e na produção
para o próprio consumo (2,1%). Dentre as pessoas ocupadas, 51,6% ganhavam até um salário
mínimo por mês. A diferença do rendimento entre homens e mulheres chega a 50,36% a mais
para os homens. A distribuição da ocupação por grupos e por seção de atividades mostrou que
quase 30% da população está ocupada na agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e
aquicultura, comércio e a reparação de veículos automotores e motocicleta. De acordo com o
CAGED (MTE, 2014), entre janeiro e setembro de 2014, registrou-se 9.172 admissões no
mercado de trabalho formal, sendo a maior quantidade de admissões concentrada em Serviços,
Comercio em Lojas e Mercados.
A tabela abaixo demonstra da vulnerabilidade social no município, no âmbito trabalho e renda. É
possível verificar redução tanto nos índices de vulneráveis à pobreza quanto nos índices de
pessoas maiores de idade sem formação completa e em ocupação informal. Esses dados são
importantes quando se trata de inclusão social, acesso à renda e redução da pobreza.

VULNERABILIDADE SOCIAL EM ITABUNA - BA


Trabalho e Renda 1991 2000 2010
% de vulneráveis à pobreza 73,29 60,04 39,61
% de pessoas de 18 anos ou mais sem fundamental completo e em - 50,54 34,97
ocupação informal
Fonte: ATLAS BRASIL, 2014.
O município de Itabuna – BA tem um dos melhores índices de desenvolvimento do Estado da
Bahia. A educação tem sido a dimensão de maior crescimento no município, o qual, conta
também com o setor de serviços e comércio como carro chefe do seu PIB. A participação nos
programas do governo integrantes do Plano Brasil Sem Miséria tem sido crescente, o que
contribui de forma significativa para erradicar a pobreza no município, embora seja fato que
ainda há muito que fazer para atingir uma erradicação ampla, tanto em nível municipal quanto
nacional.

Conclusão
Sendo a Administração Política um campo da Administração que aborda a gestão das relações
sociais, consiste em uma abordagem em envolve as discussões sobre os problemas sociais do
Estado. Sua abrangência quanto à gestão estatal e também social permite as discussões acerca do
problema aqui levantado.
A questão da pobreza tem sido amplamente debatida e considerada na formulação dos programas
sociais no Brasil. Verifica-se que as ações implementadas privilegiam a transferência e geração
de renda. Para De Azevedo e Burlandy (2010), essas intervenções fragmentadas não conseguem
operacionalizar uma concepção ampliada da pobreza. Por outro lado, observa-se “esforços no
sentido de equalizar os investimentos em ações no âmbito dos serviços básicos e universais, com
ênfase para a saúde e a educação” (De Azevedo e Burlandy, 2010, p.207). Ainda assim, fazem-se
necessários maiores investimentos em amplos aspectos dos serviços públicos de saúde e
educação, especialmente.
O Brasil é um país com considerável contingente populacional desprivilegiado e por esse motivo
tem implantado políticas e programas assistenciais direcionados aos pobres, buscando proteção
social e alívio de pobreza. Os programas têm apresentado resultados, como redução dos
extremamente pobres, crescimento do emprego e da renda, maior assiduidade escolar das
crianças, redução da repetência, carteira de vacinação em dia, redução da desnutrição, redução
do trabalho infantil, empoderamento das mulheres, maior frequência das mulheres ao pré-natal e
maior uso de contraceptivos. Todavia, há necessidade de ações de intervenção mais integradas e
articulações para que haja garantia de uma estratégia política de combate à miséria. Uma
possibilidade seria a ampliação da visão econômica do IDH para além da falta de renda,
englobando todas as necessidade e capacidades que os indivíduos sofrem privação.
Importante ressaltar como resultado positivo desses programas o município de Itabuna – BA,
estudado nesse trabalho. Sua participação no Plano Brasil Sem Miséria retirou da situação de
pobreza mais de 1.500 famílias, além outros resultados demonstrados na análise dos dados
levantados.
Considera-se de extrema relevância trazer a discussão da inclusão social, erradicação da pobreza
e acesso à educação, trabalho e renda para o campo da Administração Política, a qual trata dos
problemas sociais, especialmente da gestão destes. Essa relação com o Estado enquanto
garantidor dos direitos fundamentais de todas as classes fortalece a análise e busca de soluções
das questões sociais.
Ressalta-se também a importância de analisar se as ações implementadas até o momento para
fins de redução da pobreza são efetivamente as mais relevantes para cada localidade específica
ou se haveriam medidas diversificadas que trariam melhores resultados para determinado
contexto e que abrangeria os múltiplos determinantes da pobreza. Essa análise contribuiria para
formulação de uma política que contemplaria todos os aspectos da ampla concepção da pobreza
(baixos indicadores de renda, educação, nutrição, saúde, e demais áreas do desenvolvimento
humano).
Este trabalho buscou contribuir para uma reflexão sobre a relação dos aspectos
multidimensionais da pobreza, Estado e desenvolvimento humano, evidenciando dados nacionais
e municipais. Ademais se considera ainda importante que se faça no futuro uma avaliação mais
aprofundada da qualidade dos programas existentes no município estudado.

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