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DO TRABALHO À
FORMAÇÃO DE
PROFESSORES
MENGA LÜDKE
LUIZ ALBERTO BOING
RESUMO
Focaliza-se o trabalho como via de realização pessoal, no caso do professor da
educação básica como ponto de partida para sua formação. O magistério, um tra-
balho considerado fácil, na verdade envolve muitas dificuldades, que se refletem
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como desafios à formação de futuros professores. São analisados alguns desses de-
safios e a contribuição de autores, dedicados ao seu estudo, como Nóvoa, S aviani,
Tardif, Lessard, Dubet, Vincent, Labaree, procurando olhar para o trabalho real
efetuado pelo professor como inspiração para a sua formação. Hoje, sob a respon-
sabilidade da universidade, ela está marcada por forte acento no aspecto teórico,
ficando o da prática bem menos atendido. Atentar ao trabalho realizado pelo
professor pode ajudar a aproximá-la das necessidades que o futuro professor irá
enfrentar. Para tanto é urgente que se construa uma parceria efetiva entre as duas
instituições formadoras do professor, a universidade e a escola.
ABSTRACT
The study focuses on work as a path toward personal realization, in the case of
compulsory education teachers, as a starting-point for their training. Teaching, a
job seen as easy, actually involves a great many difficulties, reflected as challenges
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to the training of future teachers. Some of these challenges are examined, as is the
contribution of authors such as Nóvoa, Saviani, Tardif, Lessard, Dubet, Vincent,
and Labaree, who have studied the topic, seeking to focus on the real work done
by teachers as an inspiration for teacher education. Teacher education, today
a responsibility of universities, is marked by a strong accent on the theoretical
aspect, while practice comes a distant second. Attention to the work carried out by
teachers may help bring teacher education closer to the needs of future teachers.
This is why an effective partnership between the two teacher-educating institutions,
universities and schools, needs urgently to be built.
E
M PALESTRA NO SINPRO/SP, em 2008, António Nóvoa, grande conhecedor da
história da educação e da profissão docente, evocando Dewey e refletindo
sobre a preparação de professores, faz a seguinte afirmação: “há um déficit
de práticas na formação” (p. 8). Dewey, prossegue Nóvoa, esclarecia que
o essencial é a reflexão sobre as práticas. Para nossas análises neste texto
essas afirmações são muito estimulantes, pois vamos tratar da ligação en-
tre a formação de professores e as práticas que desenvolvem em seu tra-
balho. Estamos convencidos de que a preparação de futuros professores,
hoje sob a responsabilidade das universidades, sofre, de fato, uma carência
no lado das práticas, estando essas instituições muito mais preocupadas
com a formação no lado teórico. Nossa reflexão é orientada pelo reconhe-
cimento da importância do trabalho na constituição da identidade de todo
profissional. No caso do professor, ele representa uma das principais vias
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los professores da educação básica como ponto central para inspirar sua
formação, eixo que já havia sido proposto como base para um curso de
doutorado em Educação, onde trabalha um dos autores (Lüdke). O novo
sentido, partindo do trabalho para pensar a formação, pode se contrapor
ao caminho habitualmente tomado pelos programas, indo da formação
para o trabalho. Assim, aparece a escola como figura central onde se rea-
liza o trabalho docente, embora seja bem mais amplo o âmbito onde essa
realização também ocorre. Esclarecemos logo a importância de considerar
o trabalho realizado pela universidade na preparação desses futuros pro-
fessores, assegurando a constituição de uma base para a discussão teórica
e metodológica dos problemas educacionais, compondo o lado reflexivo
imprescindível para a formação do professor, como já afirmava Dewey.
MAGISTÉRIO: UM TRABALHO ESPECÍFICO
DO TRABALHO À FORMAÇÃO DE PROFESSORES
with Ed. Schools). Falando de dentro de uma das mais respeitadas universi-
dades americanas (Stanford) e de uma School of Education que já foi classifi-
cada como número 1 do país, o autor aponta com coragem e clarividência
aspectos que têm concorrido para dificultar a construção de uma visão
positiva sobre essa School, por razões que parecem inerentes à própria
área da educação e à função de formar professores, como já assinalamos.
Não obstante às fundadas críticas que dirige com cuidado a essas escolas,
Labaree conclui suas análises com uma visão positiva a respeito delas e
acaba apresentando uma sugestão surpreendente, mas no fundo coerente
com as análises que desenvolveu. As falhas registradas em grande parte
são explicadas pela dificuldade que essas instituições têm por estarem si-
tuadas na fronteira entre teoria e prática, entre a universidade e o mundo
exterior. O autor sugere, então, que o trabalho das Ed. Schools se volte mais
para o valor de uso, do que para o valor de troca, comum na universidade
tão pressionada hoje pelas forças do mercado:
to, traz em seu título, “Nada substitui o bom professor”, uma mensagem
corajosamente repetida por ele em várias de suas obras e apresentações,
como a que fez em Lisboa, em 2007, intitulada “O regresso dos professo-
res”. São vários os autores voltados para a formação e a profissão docentes
que vêm tratando do tema da recondução do professor para o centro da
cena educativa (de onde, aliás, nunca saiu, em realidade), mas Nóvoa tem
sido um dos mais insistentes, denunciando o paradoxo atual de se atribuir
aos professores a grande responsabilidade de enfrentar os desafios postos
à educação de base para todos, sem a correspondente atribuição dos recur-
sos indispensáveis para tanto. De diferentes perspectivas vêm contribui-
ções de pesquisadores procurando esclarecer os problemas que cercam o
professor nessa sua posição central. Tenti-Fanfani (2005) analisa a situação
do professor, marcada por circunstâncias e fatores que configuram o que
denomina condición docente (2005). A partir dessa expressão o autor tem
nos ajudado a entender o quadro dentro do qual se desenvolve o trabalho
do professor da educação básica nos vários países da América Latina, cuja
realidade ele conhece muito bem. Com poucas exceções, nesses países os
professores enfrentam circunstâncias bastante difíceis para o desenvolvi-
mento de seu trabalho, próprias de sua condição docente, sem, entretanto,
apresentar uma posição negativa, de modo geral, frente a sua profissão.
Em estudo, recentemente publicado, tivemos oportunidade de analisar
essa situação, que, embora carregada de dificuldades, não deixa de conter
sinais de possível melhoria (LÜDKE, BOING, 2012).
Tardif, Lessard e Lahaye (1991) introduziram entre nós a preo-
cupação com o reconhecimento do saber específico do professor e vêm
trabalhando ativamente com os problemas que hoje afligem o professor
em seu trabalho. A pressão da sociedade, empurrando para sua responsa-
bilidade funções novas, anteriormente assumidas por outras instituições,
como a família, ou a Igreja, é um desses problemas que, segundo os au-
tores, acabam roubando espaços do trabalho docente específico. Este fica
prejudicado, em favor de funções distantes daquelas que constituem sua
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professores, pela universidade. Em artigo de 2009, ele traz mais uma boa
contribuição, anunciada no próprio título: “Para uma formação de pro-
fessores construída dentro da profissão”. Ele focaliza especificamente a
formação de professores em seu país, Portugal, desenvolvida em três eta-
pas: a) licenciatura, em uma disciplina; b) mestrado em ensino, com forte
referencial didático, pedagógico e profissional e c) um período probatório
de indução profissional. Já vemos que há diferenças estruturais marcantes
que distanciam nosso sistema de formação do de Portugal. Dois pontos
merecem imediata observação pela sua falta: a exigência do mestrado em
ensino, após a licenciatura, e um período probatório de indução profissio-
nal. Vamos procurar trazer algumas das sugestões de Nóvoa que julgamos
compatíveis com nosso atual esquema de formação de professores, já que
nos aproximamos muito do argumento que ele propõe em seu estudo: “a
necessidade de uma formação de professores construída dentro da profis-
são” (2009, p. 2).
Referindo-se ao longo debate entre teoria e prática no campo edu-
cativo, Nóvoa reconhece que ainda não houve “uma reflexão que permi-
tisse transformar a prática em conhecimento”. A formação de professores
continua orientada mais por referências externas do que por referências
internas ao trabalho docente e, como ele afirma: “impõe-se inverter esta
longa tradição e instituir as práticas profissionais como lugar de reflexão
e de formação” (2009, p. 4). O exemplo da medicina, como ocorre sempre
que se quer indicar como pode ocorrer uma formação que aproxime teoria
e prática, foi também lembrado por Nóvoa. No que se refere à profissão, o
autor se pronuncia claramente: devemos “devolver a formação de profes-
sores aos professores” (2009, p. 5). Só se domina a complexidade do magis-
tério a partir da integração na sua cultura profissional. A contribuição da
investigação, confirmando processos de formação só faz sentido se eles fo-
rem construídos dentro da profissão. Fica aqui sinalizada a importância da
aproximação entre o professor e a pesquisa, sobre a qual temos trabalhado
(LÜDKE, 2008a; 2008b; 2011; LÜDKE, CRUZ, BOING, 2009). O autor tam-
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contínua dos docentes. Para ele esse estudo “está no âmago de qualquer
projeto de profissionalização da profissão. Muito mais que as análises ma-
croscópicas, as da atividade têm uma grande pertinência na formação dos
docentes e na construção de uma profissionalidade reflexiva” (LESSARD,
2009, p. 126).
O depoimento de Claude Lessard, a partir de análise cuidadosa e
detalhada sobre o estudo do trabalho docente, tal como vem sendo objeto
de vários grupos de pesquisadores (2009), nos chega como forte contri-
buição ao argumento desenvolvido neste texto: sobre a importância de se
centrar o foco no trabalho (real) do professor, em busca de sugestões para
tornar a formação inicial oferecida pela universidade aos futuros professo-
res mais próxima das necessidades que irão enfrentar em seu trabalho nas
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MENGA LÜDKE
Professora da Universidade Católica de Petrópolis – UCP (RJ)
e da Pontifícia Universidade Católica – PUC-Rio (Rio de Janeiro, RJ)
menga@puc-rio.br
Recebido em: ABRIL 2012 | Aprovado para publicação em: NOVEMBRO 2012