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Raízes e Utopias do Nosso Tempo 1

Mendo Castro Henriques

Desenho de Isa Silva

1. O projecto imaginativo e a tensão existencial


Em que circunstâncias surgem as utopias? A imaginação utópica irrompe quando se
constata que o absurdo e a miséria existencial parecem mais fortes que a construção
do sentido e da sociedade. Quando o fardo da existência perde sentido e se torna
absurdo; quando o imaginário crê possuir o poder de transfigurar utopicamente a
existência imperfeita em estado de perfeição; então, a quebra com o sentido vital
presente na realidade obriga o utopista a construir uma narrativa imaginária, um
projecto de transformação do mundo. Nascem as utopias, boas ou más, esperançosas
ou malditas, eutopias ou distopias, em que a impaciência da ordem nova perfeita
substitui o amor que reconstrói a ordem presente carregada de imperfeições. Todas
as utopias fazem parte do imaginário; mas nem todo o imaginário tem que viver
dentro de utopias.
2. Por um mundo melhor : as cidades felizes desde a Antiguidade.
A história da utopia confunde-se com a história do imaginário social?
Existem descrições de sociedades melhores na Suméria, no Antigo Testamento e
entre antigos Gregos. Debate-se até que ponto é um fenómeno universal humana e
mesmo a observação de que não existiam utopias Japonesas está a ser ultrapassada
pelas séries televisivas, tipo Pokemon. A discussão da eu zen, e das sociedades
melhores surge em Aristóteles, que em Política critica Platão e outros projectistas de
sociedade melhores. Aristóteles (§§27-8) argumenta que o desígnio de uma
sociedade ideal constitui uma aproximação à teorização política. Mas sugere que a
crítica de sociedades contemporâneas e o desenvolvimento de propostas para
melhorar as actuais tem que se basear na compreensão realista dos sistemas políticos
e da acção humana. Na filosofia dos clássicos mesmo a melhor ordem social está
carregada de imperfeições pessoais. Pelo mesmo motivo a utopia nunca constituiu

1
Versão da conferência “Raízes e utopias do nosso tempo” Congresso de Jovens Filósofos, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 19 de Abril de 2000
particular problema para o Cristianismo, sendo vista quer como expressão de heresia
(Molnar 1967) quer como dinâmica de esperança (Tillich 1971). Está destinada a ser
superada, a decair por pressão das paixões humanas, de circunstâncias, de imagens.
Mantemos a ordem num mar precário de desordem envolvente.

3 Tomás Moro: peçam o impossível - a sociedade que existe nenhures.


No livro Utopia (1516) Moro descreveu uma sociedade melhor que a Inglaterra do
seu tempo e o termo utopia designa, desde então, uma sociedade imaginária melhor
que aquela em que o autor vive e que funciona como uma crítica. A obra pode ainda
funcionar como orientação para a mudança social ou como alvo a ser atingido. Mas
Moro sabia que estava a pedir o impossível. Na sua acção como governante em nada
se comportou como pedia na sua obra, sem contudo perder a tensão com a realidade
política que lhe foi dado administrar. Após Moro, o termo foi adoptado em todas as
línguas europeias e empregue sistematicamente desde 1520. A utopia desenvolveu-se
depressa como género literário (Hölscher 1996); 20 utopias foram publicadas no séc.
XVI (Sargent 1988), o primeiro estudo é de 1704 (Ahlefeld 1704; cf. Widdicombe
1992). A tradição utopista ficou estabelecida desde a modernidade Tomás Moro
Utopia de 1516, Tomás Campanella Cidade do Sol de 1623 e Francis Bacon Nova
Atlântida de 1627. Rápida influência em França e Inglaterra, nos países das ideias
claras e distintas.
4 Variações iluministas sobre a sociedade perfeita que não pode ser realizada.
Enquanto as utopias iniciais têm um prólogo em que o narrador apresenta a
situação e epílogo comparativo com situação europeia, a partir do séc. XVIII o cenário
é dispensado. E o séc.,.XIX apresenta a pretensão de profecia histórica. São as
variações iluministas sobre o modelo de sociedade perfeita que não pode ser
realizada mas sem que os autores aceitem ou manifestam consciência desse facto.
Julgam Quebrar barreiras, e Partir muros , mas é em cima de nós que caem os
escombros criados pelo iluminismo. Fraude intelectual, autodecepção, iliteracia:
existem várias explicações para a inversão iluminista da utopia: mas esse lugar que o
activista quer criar e que T. S. Eliot caracterizou como dreaming of systems so perfect
that no one will need to be good coloca problemas especiais. A utopia francesa que
levou aos socialismo utópico, é prólogo ao pensamento de Marx e da proliferação de
programas para o futuro e de projectos planeadores.
5 De como os socialismos utópicos se digladiaram entre si desde o sec. XIX
Friedrich Engels em Die Entwicklung des Sozialismus von der Utopie zur
Wissenschaf (Socialism: Utopian and Scientific), de 1882, criou a expressão ‘socialista
utópico’ para descrever Owen, Fourier, Saint-Simon e Cabet, cujas propostas
considerava inferiores às do ‘socialismo científico’ de Marx. No entanto as propostas
de ambos os sectores digladiaram-se ao longo do séc. XX porque o esquerdismo
utópico sempre alimentou as correntes estabilizadoras ortodoxas. Marxistas e anti-
Marxistas consideram que utopia é naïve e irrealista e tem pressupostos inaceitáveis
sobre ‘humana natureza’. As utopias são um primeiro passo que quase
inevitavelmente conduz ao totalitarismo. Segundo a visão superficial de Karl Popper
em The Open Society and Its Enemies: ‘the Utopian approach can be saved only by the
Platonic belief in one absolute and unchanging ideal, together with two further
assumptions, namely (a) that there are rational methods to determine once and for
all what this ideal is, and (b) what the best means of its realization are’ ([1945] 1957,
vol.1: 161). É mais uma das confusões de Popper (seguida desajeitadamente por
Rorty) entre platonismo e realismo.
6 O Futuro já não é o que era – ou as distopias do séc. XX.
O debate contemporâneo sobre as utopias nasce da sua rejeição. Karl Mannheim,
em Sociologia do conhecimento, usa os conceitos utopia e ideologia como
construções mentais que distorcem o discurso político. Mannheim libertou as
palavras utopia and ideologia de significados negativos em Ideology and Utopia
(1929). Utopia designa qualquer processo de pensamento gerado pelo imaginário
mas considerado como não-existente. São ideologias se visam estabilizar a realidade
social; são utopias se inspiram uma actividade colectiva de transformação da
realidade.
O aviso de Hans Jonas em Das Prinzip Verantwortung, 1979 contra a ingenuidade
dinâmica de Ernst Bloch em Das Prinzip Hoffnung, 1961, é um dos grandes avisos de
quer a utopia se converte facilmente em distopia. George Orwell, 1984, é apenas o
mais saliente dos exemplos das distopias do séc. XX das descrições de sociedades
imaginadas, ou imaginárias, em que a vida decorre às avessas, em que a violência e o
mal se instalaram definitivamente e que culmina uma longa série da literatura inglesa
em que H.G Wells com o Homem Invisível, Aldous Huxley com Brave New World,
Anthony Burgess com Mechanical Orange, descrevem a banalização crescente do mal
desde um indivíduo, aos gangs, à violência organizada do estado. Poderíamos
acrescentar que testemunhos como Cisnes Selvagens,1994, de Jung Chang,
Arquipélago goulag, 1972, de Soljhenitsyn, Sobreviverá a URSS em 1984 ? de Andrei
Amalrik dão corpo a esta tendência em que a realidade ultrapassa a ficção.
7 Sonhar ou morrer – as novas utopia críticas
Segundo Tom Moylan, Demand the Impossible (1986) existe um novo tipo de utopia,
a ‘utopia crítica’ em que novelistas e teóricos têm produzido um fluxo contínuo. Tem-
se argumentado que o imaginário social é ao mesmo tempo essencial e
potencialmente arriscado. As nossas utopias são muito boas mas as dos outros são
perigosas. Diz F.L. Polak em The Image of the Future que as nossas imagens do futuro
(eutopias ou distopias) afetam o futuro: ‘We will view human society and culture as
being magnetically pulled towards a future fulfilment of their own preceding and
prevailing, idealistic images of the future, as well as being pushed from behind by
their own realistic past’ (1961, vol. 1: 15;). Afirma ainda sobre o homem ocidental que
este has no choice but to dream or to die, condemning the whole of Western society
to die with him’ (vol. 1: 53). Vivemos até 1989 rodeados pela força maciça de
activistas que nos queriam libertar à força através da imaginação utópica de mundos
perfeitos. Vivemos desde então presos pelos vendedores de bens, espectáculos e
seduções que nos querem libertar à força através de uma imaginação eutópica –
planeadora, aquisitiva, uniformizadora, centralizadora, politicamente correcta. Após a
ilusão de uma nova ordem mundial de que actos de imaginação criadora seremos
ainda capazes ?

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