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Sonhos e Outras Verdades

Ficção

Poncio Arrupe

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Nuno

Margarida, lá atrás, estava muito feliz por seu pai lhe ter proposto um passeio ao
topo da Serra. Só os dois. Talvez nunca tivessem estado tanto tempo a sós, e Margarida
já ia nos seus cinco anos. Sentia-se lisonjeada, e parecia compenetrada em que tudo
resultasse em pleno, em se comportar como uma menina merecedora daquele privilegio,
capaz de fazer companhia a seu pai naquelas férias de carnaval, dispensando a presença
de sua mãe. João apreciava a paisagem com a Serra ao fundo, de vez em quando olhava
para trás e certificava-se de que tudo estava bem, e ia-se deixando envolver por
memórias longínquas, e outras nem tanto. A Serra parecia estar agora a ficar coberta de
nuvens ... lá por alturas ... perto do topo de ... da Penha dos Abutres. Desde o início da
curta viagem, na Folgosa do Salvador, que João vinha a conduzir rápido para chegar lá a
cima ainda com bastante tempo para apreciar o por de sol, e para tirar umas fotografias
a Margarida naquele enquadramento com a sua máquina nova. Receava que já não fosse
possível por causa do capacete de nuvens que parecia avançar inexoravelmente. Fechou
as janelas, começava a esfriar. Felizmente que tinha trazido agasalhos para os dois.
Sabia bem que numa subida à Serra a temperatura podia alterar-se significativamente.
... Optou por ir pela estrada que se apanha junto à Sr.ª do Desterro. Era possível
percorre-la até ao final, por alturas da Lagoa Comprida, sem encontrar um único carro a
subir ou a descer ... conforme gostava de sentir a Serra ... a única zona que conhecia em
Portugal que lhe transmitia a sensação de impotência perante os caprichos da natureza,
de total afastamento de eventuais auxílios que viessem a ser necessários. ... Como
daquela vez, bem antes da era dos telemóveis, em que a atravessou a pé com um grupo
de amigos e tiveram que arrombar uma casa para se abrigarem do frio gélido trazido por
uma tempestade inesperada. Perguntou-se – de novo! – se não haveria alguma morbidez
no prazer que retirava daquele cenário que, a partir dos mil e quinhentos metros, mais
ou menos, se tornava quase desértico, deixado quase inteiramente às leis da natureza,
onde os humanos mal passavam. Sabia que, especialmente porque Margarida ia
consigo, se aquelas nuvens desabassem em tempestade, eventualmente com neve, teria
que regressar quanto antes. Olhou para o banco de trás e encontrou os olhinhos de
Margarida verdes muito claros, quase beige, brilhando, e o seu sorriso de profunda
satisfação que desenhava uma linha fina, delicada, muito ligeiramente arqueada,

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formada pelos dois lábios suavemente puxados por duas pequeninas maçãs de rosto que
entumeciam e ganhavam definição, realçando a sua cor rósea acentuada pelo frio.
... Por alturas de um pequeno planalto em que atravessavam alguns bosques de
pinheiros que lembravam os nórdicos, um nevoeiro denso e húmido começa a envolver
o carro. João abranda, liga os faróis e prossegue cautelosamente. Olha de novo para trás
para verificar se Margarida está tranquila. Para melhor se concentrar, desliga a
aparelhagem que toca um cêdê de música para crianças. O nevoeiro adensa-se
rapidamente, parece quase que se consegue apanhar entre as mãos. ... Aguardavam a
passagem dos carros para atravessar a larga avenida em segurança, em Lisboa ... a
passadeira estava muito longe ... não valia a pena a caminhada ... era sábado de manhã
... havia pouco trânsito ... Os carros tinham deixado de passar, não se ouvia já nenhum
... O semáforo lá longe, oculto pelo cerrado nevoeiro, já deveria certamente ter caído
para vermelho. Nuno e João avançaram cautelosamente, perscrutando com olhos e
ouvidos na direcção do sentido dos carros ... A meio da travessia João ouviu um motor e
pneus em aceleração ... destinguiu uns faróis já bem perto e colocou a mão no ombro de
Nuno ... Este avançou numa passada mais rápida para a frente, adiantando-se ... Um
carro passou em aceleração ... (estilhaçar de vidros) ... apanhou-o com o farol direito
pela parte superior da cocha esquerda, a um metro de distância de João. Em fracções de
segundo Nuno foi projectado violentamente contra o capot, rebolou na diagonal subindo
o pára-brisas, deslizou já inerte sobre parte do tejadilho, e caiu desamparado no alcatrão,
no outro lado da faixa ... Só alguns metros depois se ouviu o chiar da travagem. O
condutor nem teve tempo de travar antes do embate ... a visibilidade era quase nula. ...
A reconstituição daquele episódio que se impôs a João num ápice, sem aviso, causou-
lhe calafrios de angústia. Abranda ainda mais, e olha para trás para vigiar de novo o
estado de espírito de Margarida. Continua impassível, feliz, ansiando por chegar ao
ponto mais alto da Serra. A estrada inclinava-se agora fortemente, parecendo apontar
para o seu final invisível algures lá em cima, bem no interior do nevoeiro cada vez mais
escuro e compacto. As curvas tornaram-se ainda mais frequentes, e mais apertadas. ...
Passados alguns segundos Nuno, imóvel, como uma marionete lançada para o chão,
barriga para baixo, cabeça e face cobertas de sangue, foi rodeado pelo condutor e
restante grupo de adolescentes da sua idade que o acompanhavam naquela manhã ...
João, o mais novo de todos, manteve-se longe, atónito. Alguns olhavam-no incrédulos
... um deles partiu a correr para chamar o 115 ...

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Os últimos pinheiros ficam para trás e o seu cheiro intenso a resina vai-se
desvanecendo, abandona o interior do carro paulatinamente. Só agora, pela sua
extinção, João se apercebe que aquela fragrância os acompanhava há alguns minutos ...
Deve ter sido pela concentração na condução o por quase não se verem os pinheiros. ...
Acordou sentindo um cheiro desagradável, acre, desconhecido, que aumentava de
intensidade rapidamente. ... Na estrada os odores vêm e vão. ... Do lado de lá da porta
fechada vinham também murmúrios. Uma voz de mulher, parecia a de sua mãe, e de
dois ou três homens desconhecidos ... Conversavam em surdina ... Uma ordem. Abriu-
se a porta e a luz também ... Uma leva mais intensa daquele cheiro preencheu todo o
quarto com brutalidade, como uma maré viva ... um soldado armado entrou e pôs-se a
abrir todas as portas que achou, espreitando para dentro de tudo ... para o refúgio dos
monstros, até, ... sua mãe parada à porta, forçando a calma .... “fica quieto, dorme” ...
onde estaria o seu pai? ... o soldado saiu, a luz apagou-se, voltou a escuridão, os
murmúrios afastaram-se, o cheiro intenso, desagradável, ficou ... aprisionado pela porta
fechada, no escuro, ... João não conseguia abstrair-se, adormecer ... Só alguns minutos
depois se deu conta do insólito do acontecimento ... onde estaria seu pai ... o medo
percorreu todo o seu corpo e alojou-se no estômago ... Seu irmão mais novo,
aparentemente, não tinha acordado.
... Margarida já não está tão tranquila ... o seu lindo sorriso e o brilho nos olhos
desapareceram. Com uma vozinha trémula pergunta “Quando chegamos, pai?”. João
responde sem pensar, olhando a estrada, “Estamos quase” e sorri-lhe. Pensa em voltar
para trás, mas decide que é preferível fazê-lo pela estrada principal que se apanha
poucos quilómetros à frente. Põe, baixinho, um cêdê de música para bebés ... para
aliviar a tensão. ... A ambulância chegou com o seu estardalhaço de luz e som. João caiu
em si, realizou a gravidade da situação ... Nuno havia partido uma perna, por certo, e
seguiu para o hospital para tratamento e para ser examinado, na cabeça em particular,
que havia embatido com violência no pára-brisas do carro e no chão ... Dias mais tarde
visitou Nuno no hospital. ... Aquela foi uma época intensa, de ansiedade difusa sempre
em fundo, plena de acontecimentos que não compreendia. A mala de seu pai debaixo da
cama eternamente pronta, os aviões no ar picando e metralhando, os soldados de cabelo
comprido, fumando, como se fossem livres de fazerem o que bem entendessem ... E as
idas ao liceu, no seu primeiro ano, e a prepotência dos mais velhos que não tinham
dúvidas sobre a verdade e o bem, e sobre os bons e os maus ... A sua ingenuidade devia
transparecer num sorriso parecido com o da Margarida, cândido, mas não era ele quem

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decidia se era polícia ou se era ladrão. Estava decidido e ele não sabia ... Anos mais
tarde reencontrou e aprendeu a tolerar aquele cheiro quando fez a tropa ... Lia uma carta
de Paula no bar do quartel ... queixava-se que João não lhe dava notícias ... quem afinal
estava retido?, ... o enfermeiro insistia para que João se queixa-se mas João tinha as
radiografias e o diagnóstico ... o médico negro entrou inesperadamente pela porta, fez o
exame, João acompanhava no écran tentando encontrar sinais ... já não seria necessário
a queixa ... que mais seria necessário?, não bastava ter?, ... fazia o teste na secretária, o
comandante por trás espreitando, o bafo demasiado próximo ... Estava só, por sua conta
..., ele por ele, os outros pelos outros, Paula, família, amigos ... é assim, ficou a saber.
... João tem que sair do carro para procurar a placa que indica Torre. Encontra-a e
volta para o volante. Avança cautelosamente até à estrada principal. Olha para a
esquerda e para a direita e decide arriscar. Vai até ao fim, já que estava ali. O nevoeiro
parece estar a abrir, embora a visibilidade continue quase nula ... Continua a subir, passa
pela Lagoa Comprida, avança por uma recta plana extensa, e de novo a estrada se
inclina apreciavelmente, e as curvas voltam. Sobem agora para o planalto da Torre. Já
falta pouco. Olha para Margarida ... continua calada e sem o sorriso e o brilho dos
olhos. Sorri-lhe. Margarida faz-lhe o favor de corresponder. ... Nuno insiste que lhe
perdoa, e João aturdido pelo absurdo da crença ..., o colega mais velho politizado ri-se
do alto das suas certezas, ... João sabe que, diga o que disser, as convicções deles serão
reforçadas ... Se ficar calado, também ... Parece estar a aproximar-se do final da parte
mais inclinada. O nevoeiro deixa passar alguma luz que vem de cima. ... “Dizes isso
porque te recusas a reconhecer”, ... “Ficas calado porque não há nada a contrapor”, ... a
luz que atravessa o nevoeiro vinda de cima está cada vez mais intensa ... a estrada
parece agora inclinar-se pela última vez ... João sente-se impotente para sair de um
enredo que não é o seu, e no qual tem já um papel perfeitamente definido, que não
conhece, de que não pode escapar ... como daquela vez em que sua mãe o obrigou a
vestir-se de igual a seus irmãos, fazendo-o parecer-lhes, ... e posar com eles para a
fotografia eternizando e mostrando a toda a gente o momento, tornando para sempre
impossível a sua saída de cena (ficou a sua expressão facial como sinal de protesto!). ...
Chegam ao cimo da subida, uma luz intensa difunde-se por toda a névoa, encadeante ...
o médico negro diz, com um sorriso, “está tudo bem”, “não há problema”, ... com
lágrimas nos olhos “perdoo-te”, ... queixa-se da retenção de João no quartel, “não dizes
nada, não escreves”, ... “o Hans Blix é um trouxa!”, ... leva os seus filhos à missa e o
comunismo é uma utopia, .... “quem se quer queixar ao Dr.?”, ... “quero que sejas o meu

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fotógrafo!”, ... “a Europa é a Alemanha ...”, ... a luminosidade é agora cada vez mais
intensa, vem do lado direito, de baixo, .... aproximam-se do final de mais uma subida,
descrevem uma lomba longa e acentuada para a esquerda, ... João diz para si “cada um
por si ..., nada é ... , há desejos, só.”,
no topo, antes do início de nova descida emergiram das nuvens repentinamente para
a claridade perfeita, para a estrada agora completamente desimpedida, ladeada à direita
por um mar de nuvens compactas, com suaves ondulações, algodão, pintadas de laranja
ouro do início do por do sol que começava agora a tocá-las ... Margarida gritou em
êxtase “Olha, pai, que lindo!”. João ficou sem palavras ... Olhou para trás para fruir a
alegria e prazer genuínos na face da Margarida. Lá estavam o sorriso e o brilho nos
olhos, e a face com uma suave patine laranja transparente. Parou o carro e ficaram a
olhar por uns minutos, em silêncio. Saíram e tirou uma fotografia a Margarida, sentada
numa pequena rocha, só com a extensão de nuvens alguns metros abaixo por trás como
fundo, até ao horizonte, como se estivesse suspensa, no vazio, linda e feliz. Ninguém à
vista. Os dois, sós, naquele promontório no céu, defendidos pelo nevoeiro impenetrável
mais abaixo. Um súbito desejo de se dirigir ao ponto mais alto da Serra para prolongar
aquele cenário levou-o a pegar em Margarida, a voltar ao carro e a arrancar. ... Sobem
ao longo de um planalto muito pouco inclinado, com esparsa e rasteira vegetação e
afloramentos dispersos de rocha granítica, pequenos e grandes. Muitas rectas e algumas
curvas largas, suaves. Margarida olhou para trás para o sol que se escondia cada vez
mais por baixo das nuvens. Estas iam gradualmente passando da coloração laranja ouro
para o laranja laranja. “Pai, depressa!”. Tinha que conseguir chegar a tempo à Torre. ...
Mais à frente a cor já era laranja avermelhado. O planalto estreitou, transformou-se
numa crista de contornos redondos, continuando a subir com pouca inclinação. Do lado
direito o terreno, oblongo, mergulhava devagar no tapete de nuvens, como uma praia no
mar. ... Abriu as janelas para deixar entrar a brisa fria, leve, pura ... cheirava a quase
nada ... não sabia a que cheirava, ... resfriava as ventas, a garganta, os brônquios, bem lá
no interior do corpo, ... purificava? Margarida aproximou a sua face da janela, fechou os
olhos e inspirou prolongadamente. Chegaram à Torre deserta. Um mar vermelho
refulgente, que agora recebia a luz do sol por baixo, rodeava-os por todos os lados. O
promontório tinha-se transformado em ilha ... o isolamento estava completo ... as
certezas desejadas pelos outros estavam longe ... não se viam ... parecia que ninguém se
tinha lembrado do mesmo ... eram únicos! ...

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Pegou no telemóvel e ligou para algures nas profundezas longínquas daquele mar
vermelho. Preveniu que, por certeza, iriam chegar atrasados para jantar ...

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