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PRINCÍPIOS PARA UMA CRÍTICA À ECOLOGIA POLÍTICA: A DIMENSÃO

AMBIENTAL DA CRISE.

Iraldo Alberto Alves Matias1


Rui Carlos Alves Matias2

Resumo
O presente artigo enuncia fundamentos para uma crítica aos pressupostos teóricos da Ecologia
Política, frente à emergência da questão ambiental. A partir da apresentação das principais
correntes ambientalistas, é feita a sua crítica de acordo com autores marxistas que mostram as
limitações conceituais e políticas na análise da “crise ambiental”. O centro argumentativo
consiste em demonstrar a centralidade do trabalho no intercâmbio material entre os seres
humanos e a natureza, além do papel de mediação das relações sociais de produção
capitalistas nesse processo. Daí concluem a necessidade de superação do capitalismo e da
emancipação do trabalho para a efetiva solução dos problemas ambientais.
Palavras-Chave: Centralidade do trabalho; relações sociais de produção; Ecologia Política;
crise ambiental.

Abstract
The present article lays out the foundations for a criticism of the theoretical assumptions of
Political Ecology as it faces the emerging environmental problem. The main environmentalist
schools are presented and criticism is made in accordance with Marxist authors who point out
the conceptual and political limitations of the analysis of the “environmental crisis”. The
argument centres on demonstrating the centrality of labor in the material exchange between
humans and nature and the mediating role of capitalist social relations of production in the
process. Hence the need for the overcoming of capitalism and the labor’s emancipation if the
environmental problems is to be effectively solved.
Keywords: centrality of labor; social relations of production; Political Ecology;
environmental crisis.

Introdução
Nos tempos modernos o extermínio dos bisontes e das focas-
bebé tem apenas como causa o facto de a sua pele ser um
mero valor de troca, dinheiro. Só o reinado desta relação
social muito precisa explica estes massacres; não a
industrialização, nem o “produtivismo”, ainda que o seu
instrumento tenha sido a espingarda.

Tom Thomas

A partir da segunda metade do século XX, a questão que se convencionou chamar de


“crise ambiental global” tornou-se uma questão estratégica no cenário político-econômico

1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas, na Área de
Concentração Trabalho, Cultura e Ambiente, na Linha de Pesquisa em Sociologia do Trabalho. Endereço
eletrônico: iraldomatias@yahoo.com.br.
2
Graduando do Bacharelado em Filosofia da Universidade de São Paulo. Endereço eletrônico:
ruiaugustomc@yahoo.com.br.
2

internacional. Enquanto expressão fenomênica de crises estruturais, provenientes das


contradições intrínsecas ao modo de produção capitalista, por um lado, e demanda
programática de parte das lutas sociais, por outro, a problemática ambiental ganha novas
proporções neste início do século XXI. Isto se deve à seqüência de catástrofes naturais em
diversos continentes, relacionadas às mudanças climáticas globais atribuídas à ação humana;
pelo agravamento das condições de miséria de uma parte considerável da população mundial;
a questão dos transgênicos; e, principalmente, devido à polêmica em torno da produção de
Bioenergia frente à recente “crise dos alimentos” (uma das primeiras manifestações da atual
crise econômica); entre outras temáticas que aparecem na “ordem do dia”.
A Ecologia Política identifica a si mesma como uma área do conhecimento surgida
no contexto da emergência da questão ambiental, em linhas gerais, resultante de uma síntese
entre a Ecologia Humana e a Economia Política. Para Lipietz (2002), trata-se de uma
“interação complexa entre meio ambiente (o meio em que vive a humanidade) e
funcionamento econômico, social e, acrescentemos, político das comunidades humanas”,
fundada numa “tomada de consciência dos efeitos perturbadores da atividade humana e do
progresso técnico” (2002:17). Além disso, no horizonte político ambientalista – salvo raras
exceções, como no “ecologismo popular” –, rompeu-se com as lutas sociais anticapitalistas,
passando-se a discutir “modelos econômicos alternativos” e novas formas de “participação”
na institucionalidade burguesa, e não na transição para um modo de produção de tipo novo,
baseado em relações sociais nas quais a organização e a apropriação social da riqueza é
realizada pelos produtores diretos. Esta assertiva pode ser ilustrada pela significativa
declaração do “verde” Lipietz (2002), para quem “a esperança revolucionária sumiu do
horizonte, o comunismo faliu e o projeto socialista decepcionou” (idem:21).
No entanto, autores como Bernardo (1979) e Thomas (1994) identificam a origem da
chamada “crise ambiental” com a dinâmica global de expansão do capital, e as contradições
no desenvolvimento das condições gerais de produção3 inerentes a esse processo. Bernardo
(1979) ressalta que este último aspecto resulta da “(...) necessidade de integração tecnológica
das empresas capitalistas e fundamentam a sua realização prática” (1979:24). Tal integração
está diretamente ligada ao princípio econômico da concorrência entre capitais, e “é a partir de
uma base comum de inter-relação tecnológica que as empresas vão entrar em concorrência
pelo crescimento da produtividade” (idem:21). Este autor mostra ainda como, no interior das
relações sociais de produção, mais especificamente a partir separação entre gestão e
execução, surge (no pólo capitalista) uma classe especializada na administração das condições
gerais de produção, denominada como classe dos gestores.
Assim, a cisão entre o produtor direto e a gestão da produção introduziu o gestor em
cada um dos processos produtivos particulares, enquanto seu organizador, dando a este um
papel fundamental na organização global do processo de reprodução do capital. Exatamente
por este motivo, o autor identifica o antagonismo entre a classe gestora e a trabalhadora, na
luta pelo controle da produção. Colocadas estas questões, ainda que de forma simplificada,
será possível apreender, no decorrer do texto, a natureza “tecnocrática” da Ecologia Política, a
partir de sua posição “gestorial de um capitalismo globalmente planificado” (idem:35) 4 .

3
Para Marx (1984b), o conceito de condições gerais de produção abrange as “condições de existência e de vida
do trabalhador”; as “condições naturais ou externas de produção” (os recursos naturais); e “condições gerais, ou
comunitárias de produção” (relativas à infraestrutura urbana e ao espaço da produção). Na perspectiva do capital,
as dificuldades no abastecimento e manutenção de quaisquer destas condições podem diminuir a produtividade
do trabalho, além de afetar diretamente os custos da produção e, portanto, a taxa de lucro. Para uma análise
detalhada da importância das condições gerais de produção no capitalismo ver Bernardo (1991).
4
Esta classe, “que consubstancia a integração tecnológica entre as unidades de produção; em virtude das funções
predominantemente organizacionais que esta desempenha, na união entre os vários processos particulares de
fabrico (e, posteriormente, na própria organização interna de cada um desses processos) e, portanto, na
orquestração do capitalismo como um todo, posso chamar-lhe de classe dos gestores” (Bernardo, 1979:37). Este
3

Mas, para além de suas características gerais, no interior da Ecologia Política


existem diferentes abordagens teóricas com bases políticas divergentes. Sem pretensões de
esgotar o debate, aqui serão apresentadas as mais significativas, que procuram estabelecer
uma relação entre a Ecologia e a totalidade da vida social, em sua dimensão econômica,
política, jurídica e cultural: o ambientalismo de mercado, de tradição tanto liberal quanto
keynesiana e o seu princípio de “quem polui paga”; o ecodesenvolvimento, com sua base
epistemológica “sistêmica” e a política de “gestão de recursos”; a Economia Ecológica, com
sua defesa da autonomia de populações rurais e indígenas e uma análise centrada na crítica
energética ao capitalismo.
O cerne da crítica à Ecologia Política em geral, para além de suas divergências
internas, está baseada em dois pontos fundamentais desta: a sua relativa negação do trabalho
como categoria central no intercâmbio material entre as sociedades humanas e a natureza; e a
desconsideração do papel das relações sociais de produção no capitalismo – os antagonismos
entre capital e trabalho, devidamente demonstrados por Marx, inerentes à dinâmica imposta
pela lei do valor e seu imperativo de acumulação –, como mediações historicamente
desenvolvidas nesse intercâmbio e, justamente por isto, determinantes da própria “crise
ambiental”. Estas questões, juntamente com suas respectivas conseqüências teóricas e
políticas sobre a relação entre os seres humanos em atividade e a natureza, são objeto do
presente texto.
Para tanto, primeiramente, serão discutidos alguns conceitos que aparecem, em
maior ou menor grau, nas diferentes abordagens ecológicas, tais como o de “limites físicos” e
de “equilíbrio ambiental” na sua relação com a questão demográfica. Em seguida, serão
apresentados o Relatório Meadows e o Informe Brundtland enquanto marcos históricos e
políticos das respostas sistêmicas do capitalismo mundial à “crise ambiental”, e da formulação
da ambígua noção de “desenvolvimento sustentável”. Essa discussão inicial dará suporte para
o diálogo crítico com as principais correntes da Ecologia Política.

Crise Ambiental: as noções ecológicas de “limites” e “equilíbrio”.

Desde 1929, quando da primeira grande crise econômica global, vem crescendo em
importância o papel das condições gerais de produção sobre o processo de reprodução do
capital. No Livro III de O Capital, Marx (1984b) demonstrou exaustivamente, entre outras
coisas, as relações entre as condições naturais (ou ambientais: matérias-primas, recursos
energéticos, etc.), os custos e a produtividade do capital.
Por exemplo, o preço dos meios de produção é diretamente afetado pelas variações
de preço da matéria-prima que entra em sua constituição. Assim, “à medida que seu preço
aumenta em virtude das oscilações de preço, seja da matéria-prima, em que consiste, seja da
matéria auxiliar, que seu funcionamento consome, cai pro tanto a taxa de lucro” (Marx,
1984b:81-82). Ou seja, a taxa de lucro cai ou sobe no sentido inverso ao preço da matéria-
prima, resultando, entre outras coisas, “(...) quão importante é para os países industriais o
preço baixo da matéria-prima” (ibidem:82). Como o valor das matérias-primas entra por

marxista português complementa afirmando que, “à medida que a integração tecnológica das empresas
particulares progride, a função social da burguesia reduz-se, e os gestores lutam por se apoderar [coletivamente]
da propriedade do capital ou, pelo menos, obter posições decisivas de controle” (ibidem:58). O autor identifica
os conflitos entre a classe dos gestores (enquanto administradores e, em muitos casos, como proprietários
coletivos dos meios de produção: as chamadas burguesias de Estado) e a dos burgueses (enquanto proprietários
privados) que ocorrem no interior do pólo capitalista, embora sejam as duas antagônicas à classe trabalhadora. A
questão do Estado é importantíssima para se compreender o papel dos gestores e do desenvolvimento das
condições gerais de produção, bem como a problemática ambiental. No entanto, não será possível tratá-la neste
artigo. Uma consulta aos principais autores aqui utilizados pode ajudar a suprir essa lacuna.
4

inteiro no valor da mercadoria produzida, e por ser parte do capital circulante – tendo de ser
reposta por inteiro após a venda desta –, Marx afirma que uma alta no preço da matéria-prima
“pode truncar ou inibir todo o processo de reprodução, ao fazer com que o preço obtido pela
venda da mercadoria não seja suficiente para repor todos os elementos da mercadoria”
(idem:84). Marx vai demonstrar, para a surpresa de muitos ambientalistas, o princípio
econômico que fundamenta a “reciclagem” de materiais, uma vez que o encarecimento das
matérias-primas “constitui, naturalmente, incentivo para a utilização dos resíduos” (Marx,
1984b:78).
Neste sentido Bernardo (1979) procura mostrar como a “crise ambiental” não surgiu
enquanto tal devido à ocorrência de problemas ambientais em si, mas apenas quando estes
passaram a afetar as condições gerais de produção (na forma como acabamos de ilustrar).
Assim, se cada crise apresenta “(...) como carácter dominante da sua fisionomia as
contradições económicas de momento mais relevantes” (Bernardo, 1979:83) então, ao que
tudo indica, a questão ambiental tem se tornado um dos vetores das últimas crises econômicas
internacionais. Um exemplo claro é a forma como analistas oficiais identificaram a crise da
década de 1970 com a questão energética, denominando-a “Crise do Petróleo”. Ou, como
afirma Thomas (1994), “os limites ecológicos à marcha da acumulação são, pois, um dos
factores da crise actual e é por isso mesmo que os problemas ecológicos só hoje desencadeiam
um movimento político de massas” (1994:58).
Diante deste quadro, cientistas, políticos e organizações das mais diversas origens
abordam a problemática ambiental a partir de três temáticas principais, de onde derivam
diversos pontos específicos: a depredação dos recursos naturais (limites naturais de
reprodução da matéria); a geração de resíduos (limites naturais de reciclagem); e problemas
relacionados à pressão de uma superpopulação sobre o ambiente (limite para o abastecimento
de alimentos e outros recursos). Estas temáticas têm como fio condutor, de acordo com
Thomas (1994), a noção de “equilíbrio” (ainda que um “equilíbrio dinâmico”) e de “limites
físicos” da natureza, confrontados com uma “industrialização excessiva”.
Como sugere Thomas (1994), essa visão baseia-se numa separação entre o
“Homem” e a “Natureza”, enquanto conceitos genéricos, sendo o primeiro um predador em
essência e a segunda, um sistema auto-regulador baseado em “equilíbrios imutáveis”
rompidos pelo desenvolvimento industrial. Neste sentido, Foladori (2001) afirma que a
Ecologia estuda as inter-relações de uma espécie determinada, enquanto uma unidade, com
outras espécies e com seu entorno. Dentro desta perspectiva, a “crise ambiental” se dá quando
existe um “desequilíbrio” entre a espécie em análise (no caso a humana) e suas possibilidades
de adaptação a um meio escasso. A questão dos “limites naturais”, tal como abordada pela
Ecologia Política, passa à margem das relações sociais capitalistas de produção5 . Para
Foladori (2001), isto significa que a sociedade humana, antes de se deparar com limites
naturais ou físicos, está frente a frente com contradições sociais provenientes da divisão social
do trabalho, que no capitalismo tem como fundamento a separação entre proprietários e não-
proprietários de meios de produção; entre trabalho manual e intelectual; e entre
concepção/gestão e execução.
Além disso, ao se tratar do problema dos “limites” deve ser considerada também a
velocidade de utilização desses recursos. Antes de se pensar na finitude de um recurso de
forma absoluta, a questão é se o ritmo de utilização desses materiais implica um esgotamento
futuro e em que prazo. A noção de “recursos escassos”, no pensamento ecológico, também se
encontra diretamente ligada à teoria demográfica malthusiana e sua afirmação de que a
população mundial, quando não devidamente controlada, cresceria em uma “progressão
geométrica”, enquanto a produção de alimentos se daria numa “progressão aritmética”. Com
5
Para uma discussão teórica sobre processo dialético entre relações sociais de produção e as forças produtivas,
numa perspectiva de transição para o comunismo, ver Turchetto (2005).
5

relação à “progressão” da produção de alimentos, as revoluções agrícolas posteriores a esta


formulação refutaram, na prática, o postulado de Malthus (Foster, 2005).
A crítica marxista à teoria malthusiana da população (que tanto influencia algumas
perspectivas ecológicas) consiste no argumento básico de que não existe uma lei geral, supra-
histórica, para a questão demográfica. As dinâmicas populacionais são diferentes nas distintas
formações sociais, em diversos momentos históricos. Foster (2005) lembra que foi em
oposição a Malthus que Engels formulou o conceito de “exército industrial de reserva”, que
aparece em maior ou menor grau em relação à capacidade do setor produtivo de absorver
trabalho vivo. Além disso, esta “superpopulação relativa” cumpre tanto o papel de pressionar
a classe trabalhadora a aceitar um achatamento salarial, quanto de reduzir a solidariedade de
classe devido ao acirramento da competitividade entre os trabalhadores. Engels considera que
o malthusianismo leva a crer que, “(...) como só os pobres são excedentes, nada se deve fazer
por eles senão facilitar o mais possível a sua fome, convencê-los de que ela é inevitável e que
a única salvação para toda a classe deles é manter sua propagação no grau absolutamente
mínimo” (Engels apud Foster, 2005:155).
Neste sentido, para Thomas (1994) a relação entre demografia e miséria não é
necessariamente causada por um excesso de população em termos absolutos. De fato, este
excesso deve ser relacionado com a possibilidade de acesso aos meios de produção, ao
trabalho e, em menor grau, com o acesso aos recursos naturais. Não se trata, para este autor,
da relação entre certo número de seres humanos com uma quantidade de meios de
subsistência disponível, mas da divisão social do trabalho que cerceia o acesso aos recursos a
uma determinada classe, e da apropriação, por outra classe, da riqueza produzida por aquela
(processo que se inicia já no momento da produção). E isto, não numa perspectiva estática,
mas dentro do quadro dinâmico da reprodução do capital. Logo, para o autor, o problema
ambiental não estaria, como querem alguns ambientalistas, no “excesso de industrialização”,
mas numa relação social muito precisa em que se baseia o processo produtivo capitalista: a lei
do valor6 .
Esta perspectiva demográfica calcada na “escassez” e no “equilíbrio” fica bem clara,
como veremos, no Relatório Meadows e no Informe Brundtland, documentos ambientalistas
que penalizam a “pobreza” na sua relação com a “crise ambiental”.

O Clube de Roma e a ideologia do “crescimento zero”.

O Relatório Meadows, publicado em 1972 com o título Limites do Crescimento –


resultado da pesquisa realizada por um grupo interdisciplinar de cientistas ligados ao
Massachusetts Institute of Technology - M.I.T (EUA), conhecido como Clube de Roma –, é
um importante marco histórico da noção de “desenvolvimento sustentável”, evidenciando o
caráter político-econômico por trás da questão ambiental global. Uma das conclusões do
Relatório dizia respeito ao colapso que o atual sistema econômico sofreria em, no máximo,

6
A lei do valor é dinâmica, compreendendo não só a incorporação de valor na mercadoria por meio do trabalho
abstrato e da apropriação de sobretrabalho, durante o mesmo processo, na forma de mais -valia. É importante
ressaltar o caráter reprodutivo do capital, exposto por Marx (1984a) no Livro II de O Capital. Bernardo (1991)
lembra que “os processos de produção de mais -valia pressupõem-se e sucedem-se e, por isso, não podemos
limitar-nos a concebê-los como atos isolados, mas temos de explicá-los como uma cadeia ininterrupta”
(1991:16). O autor mostra como dessa dinâmica surge o antagonismo de classes, pois “a estrutura do modelo de
mais -valia é a de uma relação social, entendida como movimento de tensão entre dois pólos. (...) É neste
movimento de tensão que defino as classes sociais” (idem:15-16) (grifo nosso). É justamente neste processo
contínuo, onde prevalece a produção/apropriação de mais-valia relativa, que a integração tecnológica vai
exercer um papel nevrálgico para reduzir o valor da força de trabalho. Aqui se insere a atividade própria dos
gestores enquanto classe.
6

cem anos caso se mantivessem aqueles níveis de produção e consumo. Principalmente, se os


países “subdesenvolvidos” atingissem o mesmo grau de consumo dos países “desenvolvidos”.
Isto gerou interpretações que penalizavam os países pobres política e economicamente, o que
tornou esse documento alvo de inúmeras críticas, além do fato de boa parte das suas previsões
não terem se confirmado.
A análise de Bernardo (1979) sobre o tema contribui para ilustrar essa questão, ao
traçar uma relação direta entre a emergência da questão ambiental, a tese do crescimento zero
proposta pelo Clube de Roma, e a crise estrutural do capital iniciada na década de 1970,
conhecida popularmente como “Crise do Petróleo”. De acordo com este marxista português,
simplificadamente, no capitalismo “o mecanismo central do sistema de expansão do consumo
particular tem por base um permanente aumento da taxa de produtividade” (1979:123). O
autor ainda afirma que, nos países industrializados, a produção estava voltada para o mercado
de bens de consumo particular, orientando os investimentos em função desse setor da
produção. Enquanto as condições gerais de produção (força de trabalho, infraestrutura e
matérias-primas) permitiram, houve uma elevada taxa de crescimento da produtividade. Mas,
a partir da pressão exercida pela classe trabalhadora pelos movimentos de ocupação de
fábricas da década de 1960, e pela falta de investimento nas condições gerais de produção,
este processo esgotou-se, restringindo o aumento da produtividade e tornando os
investimentos produtivos menos rentáveis. Daí a necessidade de se reinvestir nas condições
gerais de produção, especialmente na infraestrutura, para inaugurar um novo ciclo de aumento
da produtividade.
Portanto, para Bernardo (1979), a proposta de crescimento zero correspondeu a uma
necessidade estrutural momentânea, do capitalismo como um todo, de reorientação dos
investimentos de uma área produtiva voltada aos bens de consumo individual, para o
desenvolvimento das condições de produção (incluindo novas formas tecnológicas de controle
sobre o trabalho). Este autor mostra ainda o financiamento da pesquisa realizada pelo Clube
de Roma por grandes multinacionais, como Volkswagen, Xerox e, inclusive, produtores
texanos de petróleo. Essas informações esclarecem a assertiva de Thomas (1994:82), de que
“não se pode negar que os trusts que vivem do consumo do petróleo não estejam tocados pelo
espírito ecológico”. Apenas nestes termos é possível entender como empresas capitalistas
podem tentar “frear” a produção em determinadas conjunturas.
Na década de 1970, já começava a se delinear a tentativa de realizar uma diferente
forma de integração tecnológica, a partir de novos preceitos produtivos que em nada punham
em risco a dinâmica de acumulação, ainda que entrasse em antagonismo com algumas
empresas capitalistas tomadas individualmente. Essa reorientação passa a colocar em primeiro
plano os interesses “sistêmicos” do “capital em geral”, tendo os gestores como seus principais
beneficiários. A partir do Informe Brundtland esta perspectiva ambientalista tecnocrática se
torna ainda mais concreta.

O Informe Brundtland e a política global de “desenvolvimento sustentável”.

O Informe Brundtland, fruto do relatório da Comissão Mundial para o Meio


Ambiente e o Desenvolvimento (CMMAD, 1991), publicado sob o título de Nosso Futuro
Comum, marcou o debate ambientalista da década de 1980 ao introduzir a noção de
“desenvolvimento sustentável”. De acordo com o Informe, a economia deveria ser orientada
globalmente para que se atendessem “as necessidades do presente sem comprometer a
capacidade de as gerações futuras atenderem também às suas” (1991:09). Em outras palavras,
este relatório tinha como proposta um processo de transformação, onde a exploração dos
recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a
7

“mudança institucional” deveriam se “harmonizar” e “reforçar o potencial presente e futuro, a


fim de atender às necessidades e aspirações humanas” (idem:49).
O economista ecológico Alier (1988) mostra que a formulação do conceito de
“desenvolvimento sustentável” é uma tentativa de unir o conceito de “crescimento” ou
“desenvolvimento econômico” próprio da economia liberal, baseado no crescimento da renda
per capita e do produto interno bruto (PIB), com o conceito ecológico de “capacidade de
sustento”7 . Com isso, se tenta estabelecer a reconciliação de duas idéias opostas, onde a
última coloca um “limite para o crescimento”, e a outra propõe a expansão do modelo de
desenvolvimento dos “países ricos” para os “países pobres” como uma única via possível,
ainda que com uma roupagem “verde”. Mas, na verdade, estes mecanismos garantem os
interesses estratégicos do grande capital e do imperialismo internacional.
Esta articulação conceitual tem como conseqüência “lógica”, mais uma vez, a
culpabilização da pobreza pela degradação ambiental, como vemos nesta esclarecedora
passagem do Informe: “A própria pobreza polui o meio ambiente, criando outro tipo de
desgaste ambiental. Para sobreviver, os pobres e os famintos muitas vezes destroem seu
próprio meio ambiente” (CMMAD, 1991:30). Enquanto isso, aos “ricos” é sugerida apenas
uma adoção de “estilos de vida compatíveis com os recursos ecológicos do planeta”
(idem:49).
Assim, dentro do que Guerra et al (2002) chamam de Divisão Ecológica
Internacional – que consiste no mapeamento mundial das fontes de recursos renováveis e
não-renováveis, e nas estratégias de apropriação e gestão destes –, os programas globais que
engendram políticas ambientais intervencionistas (imperialistas) são construídos no sentido de
privilegiar os países financiadores, em detrimento daqueles incluídos nas áreas sobre as quais
se exige maior rigor na “gestão ambiental”. Neste sentido, existem duas possíveis
conseqüências mais gerais no curso deste processo: a diminuição do acesso das populações
pobres aos recursos, em favor dos interesses econômicos hegemônicos; e criação de uma
política de gestão ambiental internacional em regiões classificadas como “ecologicamente
privilegiadas” (na perspectiva do capital, obviamente). Esta questão não deixa dúvidas sobre
as relações estabelecidas por Marx (1984b) entre os custos de exploração dos recursos
naturais e a taxa de lucro. Desta forma, através da noção de “desenvolvimento sustentável”
voltado à idéia de um “futuro comum” da sociedade, é possível mascarar interesses de classe
utilizando-se de um discurso de “interesse geral”8 . Postas estas questões, cabe agora definir
como esse debate se desdobra no interior da Ecologia Política, sintetizado em diferentes
interpretações teóricas e respostas políticas à “crise ambiental” global.

Algumas abordagens teóricas na Ecologia Política.


Economistas neoclássicos, keynesianos e o ambientalismo de mercado.

Economistas ligados organicamente ao sistema capitalista, tanto liberais quanto as


correntes econômicas que postulam uma participação mais incisiva do Estado na regulação da
economia (entre eles, os keynesianos) procuraram soluções para a “crise ambiental” dentro da

7
Segundo Martinez Alier (1988), este conceito “refere-se, em ecologia, à população máxima de uma espécie que
pode manter-se indefinidamente em um território, sem provocar uma degradação na base dos recursos que leve a
diminuir esta população no futuro” (1988:91).
8
A noção de um “futuro comum” está diretamente relacionada com a idéia de “interesse geral”, devidamente
criticada por Marx (2005), para quem “só em nome dos interesses gerais da sociedade é que uma classe
particular pode reivindicar a supremacia geral” (2005:154). Para Thomas (1994) este é o principal aspecto
ideológico na questão ecológica, pois o apelo dos gestores ao “interesse geral” sobre esta temática tem fácil
aceitação, na medida em que todos se sentem “ameaçados” de alguma forma pelos problemas ambientais.
8

dinâmica do mercado. Com base em premissas que atribuem “necessidades ilimitadas” a uma
sociedade imersa em um ambiente restrito por “recursos escassos”, as soluções apontadas por
estes apologetas do capital vão no sentido de tentar “internalizar as externalidades”9
produzidas pela economia. Esta “internalização” deve ser quantificável para poder entrar na
contabilidade capitalista, logo são atribuídos arbitrariamente preços tanto aos prejuízos
ambientais (princípio do “quem polui paga”), como aos recursos naturais que antes de serem
submetidos ao trabalho não possuem valor, principalmente os de “uso comum” (como a água
dos rios, o ar que respiramos, etc.)10 . Sendo assim, se aos olhos da economia esse preço passa
a ter um equivalente na forma fetichizada do dinheiro, na realidade assume uma relação com
o verdadeiro equivalente universal no mundo das mercadorias: o trabalho abstrato (Thomas,
1994; Foladori, 2001).
Disto decorrem alguns problemas: como saber a extensão dos danos ambientais e
suas respectivas conseqüências para poder quantificá-los, e pior, com quais critérios? Além
disso, essa política leva a uma elevação dos custos do capital, aumento este transferido ao
preço dos bens de consumo, incidindo diretamente sobre a carestia da vida, além do
agravamento da pressão sobre os salários, apenas para citar alguns dos efeitos perversos para
a classe trabalhadora. O encarecimento de certos produtos, enquanto parte de uma estratégia
ecológica de frear o consumo, não elimina a necessidade produzida socialmente deste
produto, ao invés, elitiza o seu acesso. Ademais, Thomas (1994) demonstra que a criação de
uma “indústria de despoluição” significa “levar a divisão do trabalho ao cúmulo do absurdo:
uns trabalham para poluir, outros trabalham para despoluir” (Thomas, 1994:61). Enquanto
isso o capital continua seu processo de valorização “no melhor dos mundos possíveis”.

O Ecodesenvolvimento e a gestão de recursos.

O termo “ecodesenvolvimento” foi desenvolvido conceitualmente e difundido pelo


economista Ignacy Sachs. O próprio Sachs (1993) afirma que este conceito consistia na
proposta de um caminho intermediário entre um ecologismo “catastrofista” e um
“desenvolvimentismo economicista”. Este autor define o “ecodesenvolvimento”
fundamentando-o sobre “três pilares do desenvolvimento sustentável” (relevância social,
prudência ecológica e viabilidade econômica) e “cinco dimensões da sustentabilidade”
(sustentabilidade social, econômica, ecológica, espacial/geográfica ou territorial e cultural).
Posteriormente, Sachs (2002) incluiu a “sustentabilidade política”, traduzida em termos de
“governabilidade”. Estas diretrizes são utilizadas como parâmetros ideal-normativos para a
análise de problemáticas ambientais específicas. Estes devem partir, para o autor, de um
“duplo imperativo ético”: a solidariedade sincrônica (em relação à geração atual) e a
solidariedade diacrônica (com as gerações futuras).
Sachs (1993) aceita a competição como premissa econômica, naturalizando uma lei
econômica própria do capitalismo, ao afirmar que a globalização exige que “todos os países
sejam suficientemente competitivos em relação a uma variedade crescente de produtos, para
conseguirem uma participação maior no comércio mundial” (1993:48). Em linhas gerais, o
autor postula que para os “países do Sul” enfrentarem o mercado globalizado de forma
competitiva devem investir, com auxílio dos “países do Norte” e das organizações
multilaterais, num “desenvolvimento endógeno” e “não autarcizado”.

9
Alier (1988:166) define as “externalidades” como “impactos ambientais cujos valores não são captados pelos
preços do mercado, permanecendo externos a ele”.
10
As regulamentações que fixam preços sobre a poluição tornam-na um negócio rentável, vide o Protocolo de
Kyoto e seu mercado de cotas de carbono. É assim que “o ar torna-se objecto de negócios da Bolsa, dinheiro,
coisa indiferenciada, abstracta; a poluição também” (Thomas, 1994:65).
9

A ambigüidade fundamental dessa proposta consiste na idéia de um


desenvolvimento autônomo de mercados nacionais, dentro de uma lógica competitiva
internacional (na verdade, imperialista), onde ficaria ao encargo dos países que dominam o
mercado, e suas instituições financeiras, investirem no desenvolvimento econômico dos seus
futuros competidores. Contudo, não fica claro como isto seria possível. Ademais, sua base
epistemológica funcionalista não apreende as contradições estruturais inerentes ao sistema
capitalista, sendo estas apresentadas, grosso modo, como “desvios” (“anomias”) a serem
corrigidos por medidas jurídicas, ou por reformas econômicas e políticas.
Neste sentido, Thomas (1994) demonstra como esse tipo de reformismo leva a uma
reestruturação “sistêmica” – ou a um “capitalismo verde” –, buscando a “sustentabilidade” do
capital em geral ainda que se coloque, muitas vezes, contra os interesses de capitalistas
tomados individualmente. Aqui fica patente a natureza gestora desta linha teórica, não sendo
mero acaso a centralidade por ela dada à “gestão de recursos comuns”.

A Economia Ecológica e a questão energética.

A Economia Ecológica, ou “ecologismo popular”, fundamenta-se na análise dos


fluxos de energia, com base nas Leis da Termodinâmica, especificamente sobre o princípio da
entropia11 . Sua crítica ao capitalismo considera o consumo produtivo de energia, partindo da
contradição entre um “mundo finito” em materiais e uma “sociedade consumista” e de
“crescimento ilimitado”. Alier (1988) propõe que o uso de “recursos renováveis” não exceda
sua taxa de renovação, e que o uso de “recursos esgotáveis” não atinja um ritmo superior ao
de sua substituição por renováveis.
A Economia Ecológica critica o marxismo, considerando que lhe falta uma “visão
entrópica da economia”, por este não considerar o esgotamento dos recursos e a produção de
resíduos (Alier, 1988). No entanto, Foster (2005) refuta essa crítica argumentando que Marx
demonstrou, em muitos momentos de sua obra, uma grande preocupação sobre os efeitos do
desenvolvimento capitalista sobre o meio ambiente, principalmente no caso da relação entre a
moderna agricultura e o uso do solo 12 , através do conceito de falha metabólica13 . De acordo
com Foster (2005), esta falha é decorrente da separação cidade-campo gerada, no
desenvolvimento do modo de produção capitalista, como uma das dimensões da divisão
social do trabalho. Ela consiste na transferência, para as cidades, de nutrientes do solo no
processo de produção agrícola, sem a devida reposição. Esta condição é agravada pelo
imperativo do aumento da produtividade agrícola, próprio do processo de aplicação do capital
no campo.
A crítica energética é, sem dúvida, uma importante ferramenta para analisar a
relação entre os seres humanos e a natureza na sua atividade produtiva evidenciando, assim, a
ineficácia do capitalismo em relação à utilização de recursos e à produção de resíduos. Apesar
disso, esta abordagem apresenta algumas ambigüidades. A primeira é a de considerar os

11
De acordo com Foladori (2001) a energia total em um sistema fechado é constante; e, quando a energia flui em
uma só direção, tende a se dissipar em calor de baixa temperatura que não pode ser utilizado. A entropia é essa
soma de energia não aproveitável.
12
Como exemplo, citamos a seguinte passagem de Marx (2004b): “Todo o progresso da agricultura capitalista
significa progresso na arte de despojar não só o trabalhador, mas também o solo; e todo aumento da fertilidade
da terra num tempo dado significa esgotamento mais rápido das fontes duradouras dessa fertilidade. Quanto mais
se apóia na indústria moderna o desenvolvimento de um país (...), mais rápido é esse processo de destruição. A
produção capitalista, portanto, só desenvolve a técnica e a combinação do processo social de produção,
exaurindo as fontes originais de toda a riqueza: a terra e o trabalhador” (Marx, 2004b:571).
13
A idéia de falha metabólica, em Marx, deriva do conceito de metabolismo (Stoffwechsel), utilizado para
explicar o intercâmbio material entre os seres humanos e a natureza no processo de produção (Foster, 2005).
10

limites físicos da matéria em termos absolutos, dando pouca ênfase às determinações das
relações sociais de produção, enquanto mediação para o uso e a apropriação dos recursos
naturais. Tende, assim, a autonomizar a produção agrícola em relação à totalidade da
dinâmica sócio-econômica capitalista – lembrando que esta corrente, também conhecida como
“ecologismo popular”, defende os movimentos camponeses, principalmente por valorizar os
“saberes ambientais” dessas populações.
Do ponto de vista político, o deslocamento do centro da análise ambiental para a
questão energética cria “critérios técnicos” de tomada de decisão, legitimando o poder
tecnocrático dos gestores, entrando em contradição com a idéia inicial da Economia Ecológica
de popularização das decisões sobre as problemáticas ambientais. Thomas (1994) traz uma
contribuição importante a este debate, ao mostrar que muitos ecologistas consideram que
apenas a ciência deve determinar quais elementos da biosfera devem ser protegidos e como.
Isto criaria uma tecnocracia “auto-empossada” para conduzir de forma “sustentável” o
desenvolvimento global, dependente de processos complexos muito distantes dos indivíduos
concretos. Desta forma, estariam as soluções dos problemas ambientais reservadas a este
grupo “seleto” de especialistas e gestores atuando em nome do “interesse geral”, engendrando
uma nova forma de totalitarismo.
No limite desta questão, Bernardo (1991) demonstra que é a energia do “trabalho em
ação” (o trabalho vivo) “a única capaz de uma ação criadora”14 , absorvida na forma de
trabalho abstrato, sendo a substância real do valor, então,

(...) a mais-valia constitui, no capitalismo, a entropia negativa. É ela a fonte


dos ganhos de energia, que permite a expansão da sociedade existente, e não o
seu declínio; a obsessão de tantas correntes doutrinárias pelo problema da
entropia revela a preocupação com a ameaça de suspensão da mais-valia, a
conversão ideológica do que para elas seria uma catástrofe social numa
catástrofe natural (1991:17).

Este desperdício da energia, na forma do trabalho de toda uma classe, bem como sua
apropriação por outra classe no pólo oposto da produção, geralmente não é assunto entre os
ambientalistas. Neste ponto se dá, ideologicamente, a cisão entre os seres humanos e a
natureza, uma vez que a energia proveniente do trabalho (que não é menos “natural” do que a
energia mecânica do vapor d’água, que impulsionou a primeira Revolução Industrial) não é
considerada na “contabilização” da entropia.

Trabalho, “estranhamento” e emancipação.

Retornando à perspectiva de “escassez” presente na Ecologia Política que, em linhas


gerais, se apresenta na forma de uma pressão sobre os recursos naturais, esta deriva do fato de
que na maior parte da produção teórica ambientalista, a atividade produtiva humana
(representada aqui pelo “trabalho” enquanto categoria) é tratada como algo “antinatural”. Nos
casos em que isto não acontece, a produção é tomada em seu caráter genérico, suprimindo-se
da análise categorias-chave para a apreensão das relações sociais de produção no capitalismo,
tais como a divisão social do trabalho, a mais-valia, entre outras.

14
Bernardo (1991) complementa seu raciocínio afirmando que, “este caráter absolutamente exclusivo da força de
trabalho enquanto ação decorria, para Marx, do caráter específico e único do seu valor de uso. De todas as
mercadorias existentes, afirmava ele, a força de trabalho é a única capaz de despender mais tempo de trabalho do
que aquele que nela se incorpora e, assim, é a única capaz de produzir mais -valia, de fundamentar o capital e a
sociedade contemporânea” (1991:54).
11

Leff (1994) – para citar um dos mais importantes representantes da Ecologia


Política, que aceita determinados pressupostos do marxismo para a crítica ao capitalismo –,
chegou a formular teoricamente a virada da centralidade do trabalho para a “centralidade da
cultura”. Acusando o pensamento de Marx de um “vazio ecológico”, afirmou que era
necessária a passagem do postulado de um modo de produção fundado na propriedade social
dos meios de produção, para a construção de uma nova racionalidade produtiva a partir de
princípios ecológicos, que denominou de “racionalidade ambiental”15 . Leff (1994) recorre,
desta forma, a um recurso idealista, uma vez que pretende que uma transformação radical
ocorra subjetivamente, sem que as relações sociais concretas sejam de fato modificadas.
Logo, “é limitada e em suma ineficaz a posição dos ecologistas que vêem na produção em
massa a fonte de todos os males e que pretende controlá-la sem tocar nas suas representações
(valor, preço, salário, etc.) nem nos seus alicerces (a divisão capitalista do trabalho)”
(Thomas, 1994:37).
Neste sentido, autores como Thomas (1994), Foladori (2001) e Foster (2005)
contestam a tese de que a atividade humana é predadora per se, e convergem na idéia de que,
não só a espécie humana (embora só aqui possamos chamar de trabalho), mas todas as formas
de vida modificam constantemente seu habitat e contribuem para criar um novo,
fundamentando-se nos mais variados exemplos retirados das próprias ciências naturais. Logo,
a transformação da natureza por meio da atividade produtiva torna-se uma condição humana
natural, embora não exista um comportamento imutável dos seres humanos em relação à
natureza. Ou, nas palavras de Marx (2004a):

A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza enquanto ela


mesma não é corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é
o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não
morrer. Que a vida física e mental do homem está interconectada com a
natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada
consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza (2004a:84).

Mas, como lembra Thomas (1994) o “Homem” em geral e a “Natureza” em geral


não existem. O que existe são "homens concretos, elementos da natureza, unidos entre si num
movimento de transformações recíprocas” (1994:27). De acordo com Foster (2005), a
especificidade humana de intercâmbio com a natureza define-se pelo trabalho e o seu
desenvolvimento dentro de formações sociais historicamente determinadas. Como afirma
Marx (2004b) numa passagem central sobre esta questão, em O Capital:

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a


natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona,
regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a
natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de
seu corpo – braços e pernas, cabeça e mãos –, a fim de apropriar-se dos

15
Ao deslocar a centralidade do trabalho para a “racionalidade”, Leff (1994) acaba se aproximando do
pensamento habermasiano e a sua “centralidade da comunicação”. Neste caso, o autor fica sujeito às mesmas
críticas que Lessa (1997) faz ao filósofo alemão, para quem “a centralidade ontológica do trabalho, tal como
proposta por Marx deveria ser substituída pela centralidade fenomenológica do ‘mundo da vida’” (1997:156). No
desdobramento político de sua teoria, Habermas, segundo Lessa, tenta demonstrar que “a humanidade apenas
avança quando é capaz de construir um ‘mundo da vida’ de tal forma denso que possibilite um elevado nível de
consenso entre os homens. E seria o consenso, – e não a luta de classes – o verdadeiro motor da história”
(idem:159-160). Não por acaso o “consenso” (traduzido nas noções de “governabilidade”, de “participação, de
“co-gestão”, entre outros) é um dos pressupostos da Ecologia Política.
12

recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando


assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua
própria natureza (2004b:211).

Todavia, não se quer defender aqui uma “antropologia ontológica” fundada na


positividade do trabalho. É preciso apreender o processo de trabalho a partir de suas
contradições. Se o trabalho, enquanto atividade genérica, tem essa dimensão positiva de
afirmação do humano, apresentando um potencial emancipador (na medida em que através
dele os seres humanos conseguem minimizar suas limitações diante das forças da natureza),
por outro lado, numa sociedade de classes como a capitalista, há uma dissociação do produtor
do controle sobre a totalidade das condições da produção. As relações sociais de produção
capitalistas garantem e reproduzem a separação entre possuidores e não-possuidores dos
meios de produção. Materializa-se um sistema que assegura e reproduz a divisão entre
trabalho manual e intelectual, entre concepção/gestão e execução. Para os produtores diretos
tal desapropriação é radical, pois estes “(...) não só não influenciam o destino ulterior do
produto e a ele permanecem alheios, como também ninguém os consulta quanto ao tipo de
bens que convirá fabricar, que características lhes dar, onde procurar matérias-primas e de que
qualidade, e assim por diante” (Bernardo, 1979:33). A negatividade do trabalho, como mostra
Thomas (1994), manifesta-se quando este “perde a sua existência concreta de mediação
transparente para se tornar trabalho abstrato e se cristalizar em trabalho morto nas máquinas e
no capital, senhor do homem, hostil ao homem” (1994:29).
A este processo Marx (2004a) chamou de estranhamento16 , ou de trabalho
estranhado17 , que consiste na não-identificação do trabalhador com o produto de seu trabalho,
tampouco com sua própria atividade, na medida em que estes são apropriados por outrem,
tornando-se “estranhos” e antagônicos a ele. Sendo a atividade produtiva condição natural de
sua existência social, “o trabalho estranhado 1) estranha do homem a natureza, 2) [e o
homem] de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital; ela estranha do
homem o gênero [humano]” (Marx, 2004a:84). Assim, a relação entre os seres humanos e a
natureza, intermediada pela atividade produtiva capitalista, torna-se uma relação de classe.
Bernardo (1991) mostra como Marx pôde “identificar a alienação, enquanto perda de si
próprio, com a exploração, enquanto apropriação alheia do cindido” (1991:53), sendo este o
fundamento filosófico da mais-valia, enquanto categoria que expressa a relação social de
antagonismo entre a classe exploradora e a explorada.
Logo, como toda contradição inerente ao atual sistema econômico, no caso aquela
entre capital e natureza, não pode ser resolvida dentro dos marcos de uma sociedade baseada
na exploração do trabalho, o horizonte da solução para a “crise ambiental” deve estar
circunscrito pela luta pela superação do capitalismo, do “estranhamento” e a conseqüente
emancipação no trabalho. O que se está defendendo é a necessidade de uma transformação

16
Temos consciência da negação da problemática da alienação por parte de muitos marxistas das relações de
produção, no entanto, outros autores deste mesmo campo teórico, como Thomas (1994) e Bernardo (1991), se
reapropriam desta temática sem comprometerem suas análises sobre a transição para o comunismo e sem
perderem o foco e a radicalidade da crítica às relações sociais de produção capitalistas. Esta posição pode ser
criticável, porém, não menos legítima.
17
Existe um amplo debate no interior do marxismo sobre qual o termo mais adequado para designar esse
processo descrito por Marx (2004a), nos Manuscritos de Paris, de 1844: alienação (Entäusserung), ou
estranhamento (Entfremdung), ambos utilizados pelo autor. Ranieri (2004) defende a necessidade de demarcar,
com maior precisão, as divergências e complementaridades destes termos. Para os objetivos deste artigo, não
cabendo aqui um aprofundamento sobre esta questão, utilizaremos a categoria “estranhamento” tal como
interpretada por este último, que afirma que “(...) se estruturam em Marx, graças à descoberta da contradição
interna da propriedade privada, todos os desdobramentos do estranhamento do trabalho (...) sob o pressuposto do
trabalho subordinado ao capital” (Ranieri, 2004:13).
13

radical que leve a um novo modo de produção, visto como um novo complexo de relações
sociais de produção onde, segundo Marx, existiriam “produtores associados” regulando
racionalmente seu intercâmbio material com a natureza e pondo-a sob controle comum.
Neste momento, as formulações teóricas de Turchetto (2005) sobre a transição para
o comunismo são de suma importância. Para a autora, “(...) não pode existir uma propriedade
coletiva dos produtores sobres os meios de produção que seja separada da reapropriação do
conhecimento e do domínio sobre o processo produtivo, portanto, da recomposição entre
trabalho manual e intelectual, trabalho de direção e de execução, etc.” (2005:46). Logo, não é
possível “(...) modificar os ‘papéis sociais’ burgueses sem superar a organização capitalista do
processo de trabalho, nem superar a forma valor sem transformar a estrutura do processo
laborativo subordinado aos fins de valorização” (ibidem). Mas, como vimos, a natureza
tecnocrática da maioria das abordagens ambientalistas é a expressão, e o aprofundamento, da
cisão entre trabalho manual e intelectual, e entre os campos da gestão e da execução da
produção. Assim como a quantificação dos recursos e da poluição em termos de preços, nada
mais é do que a afirmação da forma fetichizada da mercadoria enquanto mediação das
relações sociais. O que significa a manutenção do trabalho subsumido ao capital, com todas as
suas representações sociais.
Além disso, como bem mostrou Turchetto (2005), mesmo sem se referir à questão
ambiental, não basta trocar uma “tecnologia suja” por uma “tecnologia limpa”. O que é
preciso, numa perspectiva realmente emancipatória, é a transformação da estrutura material
das forças produtivas capitalistas concomitantemente à revolucionarização das relações
sociais de produção, com toda a complexidade desses processo. Caso contrário, o máximo
que pode ocorrer é a criação de um novo “vetor de relançamento do processo de valorização
do capital”, na forma de um “capitalismo verde”, com a assinatura e o carimbo de uma
Ciência18 que se coloca em nome do “interesse geral (Thomas, 1994:11). Em outras palavras
“(...) é esse alvo – a maior acumulação possível de capital, material e intelectual, nas mãos
duma minoria –, esse movimento sem outro objetivo do que ele próprio, que determina o
desperdício generalizado, bem como a miséria, as duas faces dos problemas ecológicos”
(idem:47).
Assim, com a supressão das relações sociais capitalistas a tendência seria o
desaparecimento das “velhas mediações fetichizadas” (salário, preço, juro, renda, etc.), pois,
do valor, só continuaria existindo “o conteúdo (trabalho), mas já não a forma (valor de troca)
nem a substância (trabalho abstracto)” (Thomas, 1994:97). Do ponto de vista ambiental, isto
poderia levar ao fim de determinadas produções inúteis e de desperdícios, tanto de trabalho
humano como de recursos materiais e energéticos, voltados meramente ao processo de
reprodução do capital. Sob o controle direto dos produtores, a produção pode ser, de forma
realmente racional, concebida e direcionada para a satisfação de necessidades sociais
engendradas sob novas bases. Qual a forma que essa nova sociedade “deve ter”, não é
possível determiná-la antes de sua realização histórica, mas quanto às relações que de forma
alguma podem permanecer, algumas delas foram aqui delineadas.

18
É importante lembrar que a ciência de forma alguma é “neutra”, ou encontra-se “acima” dos processos sociais
reais. Como mostra Turchetto (2005), “o capital tem necessidade da ‘ciência’ para fundar o seu domínio no
interior da produção: como já vimos, a expropriação’subjetiva’ dos produtores – que caracteriza de modo
específico a relação de produção capitalista – passa pela aplicação da ciência aos processos de trabalho e a sua
transformação em ‘potência do capital’” (2005:52).
14

Considerações Finais

Embora as denúncias da Ecologia Política sobre a problemática ambiental


demonstrem, per se, a irracionalidade do atual modo de produção, a não negação de fato das
relações sociais de produção capitalistas – situação presente até nas correntes ambientalistas
mais “avançadas” na crítica ao capitalismo, como o “ecologismo popular” –, interfere
diretamente no que é considerado um dilema, ou uma solução, para a questão ambiental.
Como vimos, maior ou menor exploração da natureza é sem dúvida um problema, mas não o
de fundo. No entanto, não se está afirmando que buscar resolver questões ambientais
imediatos seja uma tarefa desnecessária ou mesmo fácil. Antes, o que se quer mostrar é que a
questão ambiental, tal como apresentada pela Ecologia Política, com toda a sua complexidade
e seus avanços, é parcial e passa ao largo da crítica às contradições inerentes ao atual sistema
produtor de mercadorias. O que significa uma “crise ambiental” para um determinado grupo
ou classe social, para outro pode representar justamente uma “oportunidade de negócios”,
dentro da lógica de um imperialismo “verde” voltado à “sustentabilidade” do capitalismo
internacional.
As exigências ecológicas podem fazer desaparecer certas empresas, devido ao
acréscimo dos custos do capital. Mas, isso pode acontecer sem comprometer os interesses
gerais do capitalismo, agora vestido com uma roupagem “verde”. Mas, se existe um “interesse
geral” do capital, existe necessariamente uma classe que o organize e que dele se beneficie: a
classe dos gestores (além dos velhos burgueses de sempre). É neste sentido que, diante da
situação de bilhões de pessoas que não têm nenhuma garantia de vida para as gerações atuais,
o que dizer sobre suas gerações futuras. Portanto, se não há um “presente comum” para o
conjunto da sociedade, torna-se questionável tentar projetar um “futuro comum” sem que
sejam enfrentadas e suprimidas as formas de exploração do trabalho, ainda mais quando estas
são legitimadas por um discurso “ecologicamente correto”. Em última análise, resolver a
questão ambiental significa transcender a oposição seres humanos/natureza que é, no atual
sistema econômico, determinada em última instância pelo antagonismo entre capital e
trabalho. Desta forma, mantém-se viva a necessidade de uma revolução social e política, não
como uma aspiração utópica, antes, como um projeto historicamente viável.

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