Infância em perspectiva: Políticas, pesquisas e instituições
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Book preview
Infância em perspectiva - Fernanda Müller
INFÂNCIA EM
PERSPECTIVA
Conselho Editorial de Educação:
José Cerchi Fusari
Marcos Antonio Lorieri
Marli André
Pedro Goergen
Terezinha Azerêdo Rios
Valdemar Sguissardi
Vitor Henrique Paro
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro , SP, Brasil)
Infância em perspectiva [livro eletrônico] : políticas, pesquisas & instituições / Fernanda Müller , (org.). -- 1. ed. -- São Paulo : Cortez, 2014.
1,1 mb ; e-PUB.
ISBN 978-85-249-2085-1
1. Crianças - Aspectos sociais 2. Educação - Finalidades e objetivos 3. Educação infantil 4. Infância 5. Sociologia educacional I. Müller, Fernanda.
13-09329 CDD-306.432
Índices para catálogo sistemático:
1. Infância : Sociologia educacional 306.432
Fernanda Müller (Org.)
Alan Prout • Alma Gottlieb • Alexandre Filordi de Carvalho •
Berry Mayall • Cynthia Andersen Sarti • Damaris Gomes Maranhão
• Ethel Volfzon Kosminsky • Marita Martins Redin • Nick Lee •
Pia Christensen • Rita de Cássia Marchi • Samantha Punch
INFÂNCIA EM
PERSPECTIVA
políticas, pesquisas e instituições
INFÂNCIA EM PERSPECTIVA: políticas, pesquisas e instituições
Fernanda Müller (Org.)
Capa: DAC sobre ilustração de Davi Carvalho
Foto da capa: Viviane Lopes Bastos — Menina da foto Elisa Calvo Ely (responsável Ana Lúcia Baseggio Calvo Ely — anabcalvo2009@gmail.com)
Preparação de originais: Ana Maria Barbosa
Revisão: Maria de Lourdes de Almeida
Composição: Linea Editora Ltda.
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales
Conversão para eBook: Freitas Bastos
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa dos autores e do editor.
© 2010 by Autores
Direitos para esta edição
CORTEZ EDITORA
Rua Monte Alegre, 1074 — Perdizes
05014-001 — São Paulo - SP
Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290
E-mail: cortez@cortezeditora.com.br
www.cortezeditora.com.br
Publicado no Brasil — maio de 2014
Sumário
Sobre os Autores
Prefácio – Alma Gottlieb
Referências bibliográficas
Introdução – Fernanda Müller
Referências bibliográficas
Parte I – Infância e crianças nas políticas e pesquisas
Capítulo I – Participação, políticas e as condições da infância em mudança
Capítulo II – Vozes das crianças, tomada de decisão e mudança
Capítulo III – Ética nas pesquisas com crianças: uma problematização necessária
Capítulo IV – A teoria social contemporânea e a emergência da sociologia da infância
na segunda modernidade: aspectos teóricos e políticos
Capítulo V – Pesquisas com crianças e jovens: algumas reflexões teórico‑metodológicas
Parte II – Infância e crianças nas instituições
Capítulo VI – Lugar, espaço e conhecimento: crianças em pequenas e grandes cidades
Capítulo VII – Relações geracionais na família
CapÍtulo VIII – Experiências fraternais das crianças e ordem de nascimento: alguém acima e alguém abaixo de mim
Capítulo IX – A creche é o pai
: instituição pública ou projeção de uma família idealizada?
Capítulo X – Ética, estética e Educação Infantil
Textos complementares
Sobre o Autor
Sobre a Obra
Sobre os Autores
ALAN PROUT é professor do Instituto de Educação da Universidade de Warwick/Reino Unido.
ALMA GOTTLIEB é professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Illinois/Urbana-Champaign/Estados Unidos.
ALEXANDRE FILORDI DE CARVALHO é professor do curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo.
BERRY MAYALL é professora de Estudos da Infância do Instituto de Educação da Universidade de Londres/Reino Unido.
CYNTHIA ANDERSEN SARTI é professora titular do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo.
DAMARIS GOMES MARANHÃO é professora da Faculdade de Enfermagem da Universidade de Santo Amaro.
ETHEL VOLFZON KOSMINSKY é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp/Marília.
FERNANDA MÜLLER é professora do curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo.
MARITA MARTINS REDIN é professora do Curso de Pedagogia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
NICK LEE é professor do Instituto de Educação da Universidade de Warwick/Reino Unido.
PIA CHRISTENSEN é professora do Instituto de Educação da Universidade de Warwick/Reino Unido.
RITA DE CÁSSIA MARCHI é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Regional de Blumenau.
SAMANTHA PUNCH é professora do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade de Stirling/Reino Unido.
Prefácio
¹
Alma Gottlieb
Quando criança, depois de dizer algo que adultos consideravam especialmente engraçadinho
ou inesperadamente sábio, minha avó ria (para o meu deleite), algumas vezes a galinha pode aprender com os pintinhos
.
Este é um comentário que a maioria das crianças guardaria valiosamente porque em muitas sociedades o ponto de vista delas é raramente respeitado — ou mesmo reconhecido — pelos adultos que conduzem a vida das crianças. Como o ditado britânico do século XV dizia: crianças devem ser vistas, e não ouvidas
. Britânicos disseminaram um modelo de criação orientado fortemente por esse provérbio. Certamente ele foi absorvido nos Estados Unidos mediante os puritanos, que tanto contribuíram para formatar o caráter da nação nascente (Reese, 2000). Em outros lugares, membros de outras sociedades instituíram suas próprias variações sobre o tema.
Logo, é um prazer especial encontrar um livro que insiste que chegou o tempo para ouvir as vozes das crianças. E esses capítulos não tratam de uma escuta genérica da criança. Pelo contrário, eles insistem nas particularidades das vozes das crianças no plural.
Por meio da variedade dos trabalhos organizados neste volume — e a variedade das perspectivas teóricas que eles adotam, os tópicos que eles enfatizam e os espaços geopolíticos nos quais eles focam — um ponto emerge claramente: jamais poderemos assumir a existência de um fenômeno único chamado a criança
. Em vez disso, as crianças são tão diversas quanto os adultos — e talvez muito mais, dada sua notória criatividade a qual, em boas condições, permite a elas extrapolar os limites das regras enfadonhas dos adultos (Fraiberg, 1959).
Nós talvez assumimos que quanto mais velha for a criança, mais os adultos devem escutar os seus desejos. Contudo, na floresta equatorial da Costa do Marfim adultos consideram a subjetividade das crianças mais novas como a mais relevante. Entre os Beng daquele país, uma ideologia de reencarnação afirma que os recém-nascidos são oriundos de uma outra vida, vivida em outro lugar. Consequentemente, nas aldeias Beng, constitui a tarefa básica de bons pais escutar os desejos das crianças pequenas — desejos que crianças pequenas supostamente trazem com elas quando saem do útero, de suas memórias de uma vida passada naquele outro mundo (Gottlieb, 2004). Nos meses precedentes à fala inteligível, bebês requerem a tradução de adivinhos que, com o auxílio de espíritos intermediários, entenderiam os pensamentos das crianças pequenas e transmitiriam seus desejos aos pais. Um bebê Beng que chora talvez esteja tentando comunicar que ele deseja vestir uma camiseta branca, por exemplo, ou que prefere ser chamado pelo nome que tinha na outra vida.
Ainda que os pais Beng moldem as vidas de seus bebês tanto quanto outros pais, eles permitem muito espaço para idiossincrasia e reconhecem as memórias profundas que cada criança traz da sua vida passada; uma criança de dois anos que brinca com búzios para prever o futuro, por exemplo, será aceita como um adivinho profissional e consultada como tal pelos adultos (Gottlieb e Graham, no prelo).
O caso dos Beng nos lembra que a noção sobre o que constitui uma criança é, ela própria, profundamente moldada por estruturas culturais e ideológicas, uma vez que sua definição e contorno podem variar dramaticamente de um lugar para outro (Harkness e Super, 1996). As implicações políticas dessas variações não devem ser esquecidas. Se os adultos Beng devotam tanto esforço para reconhecer a subjetividade de crianças em fase pré-verbal, com certeza as necessidades das crianças mais velhas — necessidades emocionais, sociais e intelectuais igualmente — podem ser (e, os autores deste volume diriam que devem ser) também atendidas. Mais ainda, o século XXI até agora atraiu (ou forçou) números crescentes de crianças, em taxas alarmantes, na pobreza, doença, guerra, desabrigo, prostituição e abuso familiar de todo tipo (como Sarti e Maranhão tristemente documentam aqui), no pessimismo que faz missões de homens-bomba atrativas. Uma gama de questões-chave consequentemente nos atinge neste novo século, o que acadêmicos podem e devem nos ajudar a resolver:
No plano político e legal, direitos humanos
se aplicam igualmente a todas as crianças em todos os lugares, apesar das diferenças locais das concepções dos adultos sobre as crianças? Se sim, como eles podem ser garantidos? Se não, como as crianças podem ser protegidas da exploração, abuso e violência?
No plano sociológico e econômico, a infância deve ser prolongada tanto quanto possível, e as crianças protegidas dos males do mundo? Ou as crianças devem ser conformadas (ao menos algumas) aos direitos e responsabilidades dos adultos? Por exemplo, as crianças podem servir como testemunhas confiáveis de crimes nos tribunais? (como Lee explora sensivelmente aqui), e, em outro sentido, quando elas próprias cometem crimes, devem ser julgadas nos tribunais como adultos
?
A maneira pela qual nós, como espécie, tratamos dessas e de outras questões correlatas determinará muito de como a história julgará o século XXI.
Podem os acadêmicos apontar modelos alternativos que ofereçam esperança às crianças crescentemente famintas, abandonadas e violentadas do planeta? O presente conjunto de artigos provocativos com certeza estimulará os leitores a refletirem de novas maneiras sobre as questões levantadas.
Os pesquisadores que contribuíram para esta rica publicação trazem tradições nacionais e disciplinares diversas, assim como agendas políticas e intelectuais para estas e outras realidades importantes e comoventes das crianças. A diversidade das suas formações acadêmicas produziu capítulos que abrangem de políticas sobre direitos legais e papéis das crianças até discussões de ordem de nascimento em famílias nucleares monogâmicas. A gama dessas contribuições nos desafia a relembrar a diversidade das experiências da infância e a diversidade das perspectivas exigidas para entender tais experiências. Se mais pesquisadores, mais políticos e policy makers passassem o período de tempo que Pia Christensen permaneceu na Inglaterra e Dinamarca — onde as crianças a guiaram através de suas vizinhanças e explicaram o que eles sabiam sobre os espaços que habitavam, e como eles se apropriaram desse conhecimento crescente —, as crianças poderiam ter a chance de ser empoderadas e adultos talvez entendessem o que têm para aprender com as crianças que trouxeram para suas vidas.
Referências bibliográficas
FRAIBERG, S. The magic years: understanding and handling the problems of early childhood. New York: Simon and Schuster, 1959.
GOTTLIEB, A. The afterlife is where we come from: the culture of infancy in West Africa. Chicago: University of Chicago Press, 2004.
______; GRAHAM, P. Braided worlds. Chicago: University of Chicago Press, 2010 [no prelo].
HARKNESS, S.; SUPER, C. M. (Orgs.). Parents’ cultural belief systems: their origins, expressions, and consequences. New York: Guilford, 1996.
REESE, D. A parenting manual with words of advice for puritan mothers. In: DELOACHE, J.; GOTTLIEB, A. (Orgs.). A world of babies: imagined childcare guides for seven societies. New York: Cambridge University Press, 2000. p. 29-54.
1 Tradução de Fernanda Müller. Revisão técnica de Alma Gottlieb.
Introdução
Fernanda Müller
Infância em perspectiva: pesquisas, políticas e instituições apresenta uma coletânea de textos de pesquisadores preocupados com o estudo da infância contemporânea. Os dez capítulos resultam de pesquisas realizadas sobre a infância e sobre/com crianças nos campos da Sociologia, Antropologia, Educação, Filosofia e Enfermagem e puderam ser contrastados e aproximados a partir das categorias pesquisas, políticas e instituições. Essa publicação tem o objetivo de promover e divulgar estudos sobre a infância e ajudar na definição de futuras agendas políticas e de pesquisa.
Como objeto de estudo, a infância não esteve excluída de todos os movimentos de classificação e fragmentação do século XX, e as dicotomias criadas entre as ciências humanas e sociais e as biopsicológicas ainda hoje são as mais difíceis de superar. A instabilidade e a insegurança causadas pela tensão entre o velho e o novo, entre os prés e os pós representam um desafio teórico-metodológico para a pesquisa na contemporaneidade, que exige novas alternativas para lidar com a complexidade e com o saber fragmentado.
Morin (2001) aponta a incompatibilidade entre o conhecimento e a realidade, pois enquanto o saber se mostra cada vez mais compartimentado, os problemas se apresentam multidisciplinares. O autor assevera que, para o conhecimento ser pertinente, a educação deverá tornar o contexto, o global, o multidimensional e o complexo evidentes, pois a hiperespecialização — encontrada em todas as áreas da ciência — tanto fragmenta a percepção do global, quanto dissolve o essencial, o que conduz à atrofia da disposição mental de contextualizar e de globalizar. Uma das conclusões de Morin (2001) é que o século XX produziu avanços em todas as áreas do conhecimento, entretanto, ao mesmo tempo produziu novas cegueiras para os problemas globais, fundamentais e complexos.
Estudos da infância demandam abordagens teórico-metodológicas diversificadas; logo, esta coletânea rompe algumas barreiras — entre as disciplinas, entre os espaços, entre os planos de análise, entre os adultos e as crianças. Ela não se filia a uma única linha teórica ou vertente de pensamento. Ao contrário, é sustentada por um referencial interdisciplinar imposto pela complexidade da infância contemporânea. Busca apresentar o resultado de diferentes estudos, focalizando as relações sociais, institucionais e individuais que se apresentam no plano teórico, nas políticas urbanas, educacionais e de proteção, e nas instituições.
Crianças foram reconhecidas como sujeitos de direitos no século XX. Como consequência, chegou-se ao consenso de que elas não devem trabalhar, mas aprender e brincar em lugares planejados e construídos para elas. É possível entender o porquê de os adultos não gostarem da permanência das crianças naqueles espaços não controlados por eles, pois o conceito de direito, associado à ideia de proteção, também está relacionado à necessidade de controle sobre as crianças. James e James (2004, p. 3) lembram que faz parte da experiência de socialização das crianças fazer o que eu (o adulto) estou mandando
, o que reflete a ordem hierárquica entre as gerações.
Conceitualmente, a infância não é uma categoria única, mas universal e singular ao mesmo tempo. Essa universalidade foi oficialmente garantida por políticas internacionais, como a Declaração dos Direitos da Criança, com desdobramentos na Convenção para os Direitos da Criança, que certamente apresentaram avanços para um período histórico de pós-guerra. Em nome de direitos universais, a infância é normalizada e o conceito ocidental de uma infância ideal é legitimado. Igualmente, a infância é universalizada pelos princípios de comportamento esperados dos adultos em relação às crianças — proteção, amor e segurança —, que foram introduzidos pela classe média nas democracias industrializadas durante o século XIX. Com isso, passou-se a garantir às crianças uma infância boa
(Coninck-Smith e Gutman, 2004, p. 133).
Por outro lado, através de suas experiências, as crianças singularizam as suas infâncias, porque, como seres ativos, elas buscam fazer o que desejam. Ambos os movimentos, de universalização e de singularização da infância, podem ser observados por intermédio da ação das crianças. Isto porque a agência das crianças está constantemente em tensão com a agência dos adultos (Mayall, 2003), o que coloca a infância em uma posição relacional, também produzida por processos geracionais.
Os trabalhos de Alan Prout, Nick Lee, Alexandre F. de Carvalho e Fernanda Müller defendem o protagonismo das crianças nas pesquisas e na construção de políticas para a infância. Esses trabalhos insistem na necessidade de escuta às crianças, contudo, uma escuta não centrada nas lógicas do adulto. Em seguida, os trabalhos de Rita de Cássia Marchi e Ethel V. Kosminsky apresentam a construção de estudos da infância nas Ciências Sociais, sobretudo na Sociologia. Este conjunto de cinco artigos é apresentado na primeira parte do livro.
Os capítulos de Pia Christensen, Berry Mayall, Sam Punch, Cynthia A. Sarti e Damaris G. Maranhão e Marita M. Redin chamam a atenção para diferentes instituições sociais, entre elas a cidade, a família e o contexto da educação infantil. Este outro conjunto de cinco artigos compõe a segunda parte do livro. A pesquisa realizada por Pia Christensen oferece às crianças a oportunidade de participar de discussões sobre os espaços e as estruturas de sua cidade, por meio de uma metodologia cautelosamente planejada. Ampliando essa ideia para outras instituições sociais da infância, é possível imaginar que aprendizagens múltiplas e entre gerações poderiam ser realizadas nos centros de educação infantil, nas escolas de ensino fundamental, nos Fóruns e Juizados da Infância e Juventude, de maneira informal (como sugere Nick Lee, ver Capítulo II). Isto ajudaria os adultos a reconhecerem as necessidades das crianças por meio da escuta e da compreensão, considerando-as como protagonistas. Assim, o espaço só faz sentido quando articulado às relações sociais; isso é óbvio, mas a visão do adulto, muitas vezes, perde essas pistas, principalmente ao pensar e executar políticas voltadas para as crianças.
A possibilidade de ser criança está na relação com outros grupos geracionais (pais, avós, professores) ou de idade (irmãos, colegas, primos, vizinhos e amigos). Portanto, as fases da vida se diferenciam porque estão em relação, e não porque estão segregadas. Para pensar a infância como etapa geracional, é fundamental perceber a posição social das crianças. É possível observar diferenças geracionais expressas em contextos particulares, como a família. Isto é evidenciado nos trabalhos de Berry Mayall e Sam Punch.
Nas diversas dinâmicas familiares, a socialização deve ser entendida como um processo ao longo da vida, e não como um fim na infância. Esta afirmação recompõe as relações entre crianças e adultos: todos são seres em formação que aprendem nas relações intra e intergeracionais ao longo de toda a vida. Cynthia A. Sarti e Damaris G. Maranhão apresentam um interessante trabalho que mostra processos de transição de famílias para a educação infantil, sobretudo a creche. Por fim, é nesse contexto da educação infantil contemporânea que Marita M. Redin discute as dimensões da ética e da estética.
Portanto, esta coletânea espera oferecer contribuições para futuras pesquisas, mas também um retorno social e político. Pesquisas sobre e com as crianças permitem a construção de novos objetos científicos relacionados com os desafios da contemporaneidade, sendo alguns deles: a vida nas grandes cidades, a relação das crianças nas suas famílias e na escola e as políticas de proteção.
A infância vem sendo estudada no Brasil a partir de diferentes disciplinas, que precisariam estar mais bem organizadas em torno deste objeto de estudo. Aproximações interdisciplinares poderiam fortalecer um campo de estudos da infância, comprometido com a discussão de temas que se colocam cada vez mais complexos.
Referências bibliográficas
CONINCK-SMITH, N.; GUTMAN, M. Children and youth in public: making places, learning lessons, claiming territories. Childhood, v. 11, n. 2, p. 131-141, 2004.
JAMES, A.; JAMES, A. L. Constructing childhood: theory, policy and social practice. London: Palgrave/Macmillan, 2004.
LIMA, M. S. A cidade e a criança. São Paulo: Nobel, 1989.
MAYALL, B. Towards a sociology for childhood: thinking from children’s lives. Maidenhead: Open University Press, 2003.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: Unesco, 2001.
PARTE I
Infância e crianças nas
políticas e pesquisas
Alan Prout
Nick Lee
Alexandre Filordi de Carvalho e Fernanda Müller
Rita de Cássia Marchi
Ethel Volfzon Kosminsky
CAPÍTULO I
Participação, políticas e as
condições da infância em mudança¹
Alan Prout
Introdução
Durante as últimas duas décadas diversas sociedades observaram uma onda crescente de ideias sobre a participação e a voz das crianças. Enaltecidas no Artigo 12 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, essas noções angariaram apoio e esforço para a sua implementação na prática. De fato, elas se tornaram parte da ortodoxia retórica, até mesmo entre aqueles que sob outras condições não vinham apoiando com muito entusiasmo os direitos da criança, como é o caso do atual governo britânico. Por exemplo, a iniciativa Children and Young People’s Unit, criada recentemente para desenvolver uma política de inclusão
nessa área, declara o seguinte: Queremos ouvir as vozes dos jovens influenciando e moldando os serviços locais, colaborando em suas comunidades; que sintam-se ouvidos e valorizados e sejam tratados como cidadãos responsáveis
(Children and Young People’s Unit, 2000, p. 27).
Neste capítulo discutirei brevemente o contexto sociológico do surgimento desses fenômenos. Meu tema principal é o de que as mudanças sociais ocorridas nos últimos 25 anos modificaram as condições e as experiências da infância, desestabilizando os conceitos sobre o que ela é e o que ela deveria ser.² Essas mudanças são complexas, em geral contraditórias, não acarretando necessariamente benefícios às crianças. No entanto, observo que essas mudanças, assim como a desestabilização provocada por elas, geram um contexto essencial para que se entenda a emergência da voz e da participação das crianças.
O século da criança
Em uma obra publicada em 1900, a reformista social sueca Ellen Key argumentou que o século XX deveria ser o século da criança
(Key, 1900/9). Nas décadas posteriores à publicação, essa frase serviu de plataforma para a identificação estratégica da criança como um ponto de intervenção e investimento para o futuro. Através de ações tanto do Estado quanto da sociedade civil, a infância foi transformada num projeto. Em parte, isso estava relacionado com a proteção e o provimento às crianças. Foram gastos muitos recursos em todo tipo de serviços, que melhoraram a vida e o bem-estar das crianças. Entretanto, ao mesmo tempo, essas ações transformaram as crianças em objetos de saber, colocados sob o olhar adulto a fim de serem pesquisados, estudados e compreendidos. Consequentemente, foram escritos inúmeros livros e artigos sobre como as crianças se desenvolvem e podem ser moldadas em futuros cidadãos e trabalhadores, já que a infância tornou-se, segundo Nicholas Rose (1989, p. 121):
[…] o momento da existência humana mais intensivamente controlado. De maneiras diferentes, em épocas diferentes e por diferentes caminhos, variando de um segmento da sociedade a outro, a saúde, o bem-estar e o cuidado das crianças passaram a ser relacionados com o futuro da nação e com a responsabilidade do Estado, tanto na teoria quanto na prática.
E, no entanto, um século depois o otimismo quanto à infância e a sociedade que animou reformistas como Key está menos difundido e parece menos convincente. Pelo contrário, a visão cultural predominante sobre a infância nas sociedades europeias e norte-americanas parece ser, na melhor das hipóteses, confusa e angustiada, e na pior das hipóteses, hostil. Por que, muitos devem perguntar, depois de todo esse esforço e investimento, a infância parece fugir aos nossos propósitos e intenções?
Neste capítulo trabalharei com uma resposta (parcial) para essa questão. Ela diz respeito à adequação das representações sociais disponíveis sobre a infância (Hendrick, 1997; Holland, 1992). Sugiro que a discussão pública parece estar lutando contra uma ambiguidade da infância, presa entre duas imagens que, embora sejam diferentes, são igualmente problemáticas: crianças em perigo e crianças perigosas. A primeira dessas imagens, crianças em perigo, compõe a infância através de conceitos de dependência, vulnerabilidade e inocência idealizada. O lado positivo dessa imagem é que ela chama a atenção para problemas sociais importantes, como a negligência, a pobreza e a segurança no espaço público, mas em geral acaba transformando-se numa versão sentimental da infância, saturada de nostalgia. Paradoxalmente, isso requer uma vigilância e controle ainda maiores sobre as crianças, já que atividades outrora rotineiras para elas, como brincar juntas nas ruas, são atualmente consideradas cada vez mais arriscadas. Estimulado por acontecimentos trágicos, mas felizmente raros, como assassinato e sequestro de crianças, o exagero promovido pela mídia sobre os riscos aos quais elas estão expostas desempenha um papel importante para que haja maior preocupação. Como os pais preocupam-se cada vez mais com a segurança das crianças no espaço público, há uma proliferação de lugares especiais que concentram grupos de crianças, para que suas atividades possam ser mais bem supervisionadas pelos adultos (James, Jenks e Prout, 1998; McKendrick, 2000; Furedi, 1997). A partir desse ponto de vista, o espaço da infância torna-se mais limitado, mais especializado e mais supervisionado pelo adulto.
A segunda imagem, crianças perigosas, trata das crianças contemporâneas como uma ameaça a si mesmas, às outras e à sociedade como um todo. Nessa imagem as crianças são vistas como personificadoras dos supostos males da sociedade contemporânea, como a criminalidade, a decadência moral, o consumismo e o fracasso financeiro. Novamente, o jornalismo sensacionalista parece sempre pronto para interpretar de forma exagerada acontecimentos estatisticamente raros, como crimes violentos cometidos por crianças, chegando até a apelações que às vezes se desdobram em demonização (Jenks, 1996; Davis e Bourhill, 1997). Isso também gera mais tentativas de aumentar o controle sobre as