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Marlocoy red totes Cen) a partir de I SITUANDO O PROBLEMA atte {. CONTEXTO HISTORICO-FILOSOFICO DE ORIGE Os fildsofos até HEGEL (inclusive) partiram da conviegio de que a realidade poderia ser explicada. Buscando clucidar as és gtandes questdes filoséficas: — 0 ser, o conhecere o valor, pre- lenderam exaurir, através da raziio, a comprecnsdo do mun- do. O homem nio era questionado neste cantexto porque nha um lugar assegurado — era o microcosmo para o gtcgo,o filho de Deus para o homem medieval, a res cogitans carte ana para a modernidade. Pereorreu um longo caminho cultu- ral ¢ filoséfico para se tornar objeto de questdo a si mesmo. Neste pereurso acreditou-se diferente porque era racional, li- vre ¢ por isto humano. Estes pilares foram por muito tempo Seu porto seguro porque garantiam sua dignidade, sua trans- cendéncia, sua humanidade ¢ uma perspectiva de evolugdio permanente ¢ racional. HEGEL representou o ponto maximo e © inicio do declinio desta concepgao. Em seu idealismo, iden- tificou razéio e realidade que em, um processo histérico, bus- cavam efetivagia e consciéncia, O homem individual ou social era apenas condigda da explicitagdo da Razd@o em realidade e da realidade em racionalidade. No século XIX essa ingenuidade romantica comegou a ruir, KIERKEGAARD, fildsofo dinamarqués, questionou o papel do homem nesse determinismo progressivo da Idéia 4 Anna Maria Alexandre Laporie ~ Neusa Vendramin Volpe Absolula hegeltana. Engolfado em um process que o TFANS= eendia, o hamem tornou-se uma absiragio para si mesmo. KIERKEGAARD trouxe a0 cendrio filoséfico as questées do homem concrete enquanto individuo existente — “a subjetivi- dade é «@ verdade, @ subjetividade & « realidade”. escreveu cle. Frente aos problemas objetivos, formais e lnpes 2ais: chamou a atengio para a angtistia imanente do proprio existir humano, Existir angustiado porque engloba as possibilidades de escolha da propria existéncia, ressaltando a grande questiio hu- mana — a questao da liberdade, Outro fildsofo que influenciou 0 existencialismo foi NIETZSCHE. Sua reflexdo se desenvolveu em torno do ma- terialismo e do evolucionismo darwiniano e se apresentow a aos valores vigentes, principalmente os cristaos forga de eriagao como criti que submetiam ¢ retiravam do homem sua de si mesmo e revolla. O alerta pelo resgate humane permaneceu adormecido até e segunda guerras mundiais. Esse genocfdio, em particular a segunda grande guerra, implodiu todos os valores sedimentados pela cultura ocidental. A grande inquictagiio da época propiciou a “Kierkegaard Renaissenee”, onde as obras do fildsofo foram traduzidas inicialmente para 0 alemio influenciando o tedloga KARL BARTH ¢ 08 [ilésofos MARTIN HEIDEGGER ¢ KARL JASPERS. o perfode sacudido pela primeira ssava 0 coltineme cu- O clima de perplexidade que perpé o simultinea do existencialismo na Franga ¢ na ropeu gerou a eclosio [tdlia, Os nomes mars expressivos na Franga foram JEAN PAUL SARTRE, GABRIEL MARCEL, ALBERT CAMUS e SIMONE DE BEAUVOIR; na Itdlia destacou-se NICOLAU ABBAGNANO entre outros, O existencialismo também se fez presente na Réssia es nomes de CHESTOV e BERDIAEV com Existenctalismo ie 2.0 EXISTENCIALISMO EO METODO FE! MENOLOGICO . Quando se descortina uma nova perspectiva eientifi- ca ou um novo campo de anilise filoséfica, surge a necess dade de adaptagiio, e muitas vezes criagio, de termos a consigam exprimi-lo com maior precisio e rigor. O hae cialismo nao fugiu a regra porque a existéncia como aie de andlise desafiou as catego ee ' as usadas na osoli é ee. Para contornar esta dificuldade, o ee ii Wolis Sh mao de trés recursos badsicos — a criagfo de ane utilizagdo de palavras compostas e a conotagio a a palavras jd existentes no vocabuldrio filosdfico, Bis din 3 recurso deu margem & interpretagdes Saulddordlas 1 iH posta fenomenologica — existencial, porque, muitas tee termos usados nas correntes filoséficas anteriores - ister: culliaine serio agora empregados com um sentido diferente. Um exemplo € a palayra existéncia que nessas filosofias desi fa que uma coisa € (existe), enquanto para o AE COe islinin, existir significa ser projeto, existencial que se aplica ao. ho- mem que se constitui, diferente das cois - : Ss, que silo, SARTRE ¢ H fos da existér Eel IDE iER, assim como outros filéso- oes ee TRU SRelntos pela fenomenologia de Geek - que viveu na Alemanha de 1859 a 939 ¢ deu um enfoque original A questao do conheciment cindida secularmente entre sujeito e objeto, idealismo ooh pea HUSSERL, analisando © problema do conhecimento angou, luz ao seu processo, estendcu uma ponte entre sujeito e objeto, homem e mundo mostrando-os niéo como realid independentes e isoladas, mas imbri ee cadas, constitui mutuamente, HUSSERL chegou a essa Cee andlise da consciéneia intencional. Em sua épo i isa ce : cia cru conee bine: pela psicologia empfrica como Veedltinievde fungSes psiquicas, um feixe de sensagdes. Todo conhecimento 6 Anna Maria Alexandre Laporte ~ Neusa Vendramin Volpe: 1 r li i i ’ ém os pelo crivo desse psicalogismo fazendo que tambér on a consciéncia psicolégica. objetos da ldgica derivassem d i jéncia era tratada Na perspectiva do idealismo a consciéncia cra tratada i, rente a “ reca humana”, ume nf algo inerente a matures 4 como um a priori a , mniure Pee aie entidade auténoma com categorias proprias que u a aaa do mundo e, no entanto, seriam ccepone es oa ae lace ; i estuda do inconse a ralelam Jesenvolvia-se o estuc sao. Paralelamente, ¢ Ee cy feito pela psicandlise de SIGMUND FREUD. om essas abordagens que, de ecendo 0 sujeito ¢ de ou- ‘0 objeto, encontreu do conceilo esco- HUSSERL insatisfeito © priorizavam © objeto esqu um lado, l m o sujeito em detrimento d tro, enfatizay moi! em FRANZ BRENTANO uma nova abordagem neon ee a i concebia a conscience! fisti “intel aalidade” que concebi ; fistico de “intertciona EEE eee oaiURtO : sciéncia de algo. Desta forma, & conseiencia nado era 0 = ij ne Sa ri@ncia, como queria o empirismo e nem ; jeri idealista, me a constituigdo, unt fazer- a priori idealista, ma se continuo, uma relagao homem-mintdo. apreensbes da expel aes 1s um processo de dup O método fenomenoldgico husserliano que influeactou RTRE e HEIDEGGER nio €é ortodoxo ¢ hermetico mas ie 1 a partir de sua criagio, revelou sua ple tie maneira a se adaptar A especifici- um eaminho que, cidade ao ser utilizado de dade de cada estudo. estabelecer um método tigoroso ando que a objetividade nfo era et HUSSERL pretendeu as ciéneias humatus mos} Ft ee ecciaeior uma categoria que independia da subjetividade, mas qu Ns ian i é ’ ‘OCeSsC é cimento é portanto um pr ava através dela, Todo conhecimen ne ae ito-objero, de tal forma que © mundo esta te eluborando © mundo, © consciéncia e mundo para relagio constitutive suje : constantemente constituindo 0 sujeito € €s! que HEIDEGGER sintetizou na expressa dio-se nim sé e nresino alo” Existencialismo 17 A contribuigéo de HUSSERL foi marcante porque implicou na superagio do dualismo que vigorava até entio nas abordagens do conhecimento feitas tanto pela ciéncia quanto pela filosofia e tragou uma perspectiva relacional ¢ constitutiva do homem e do mundo. Por outro lado, ampliou os campos de andlise do conhecimento obliterados por um cientificismo positivista que sé reconhecia como objeto de estudo o que pudesse receber um tratamento experimental e quantitative. HUSSERL, partindo do conceito de consciéneia intencional que € “consciéneia de”, abertura e relagéo com aquilo que cla nio & queria analisar o ¥ivido na multiplici- dade dos fendmenos que o constitufam. A fenomenologia es- tende-se portanto & tatalidade dos fenémenos ¢ tudo que entrar en relagdo com a consciéneia pode ser seu objeto de andlise, ampliando assim o campo das ciéncias humanas, restringe scu campo de andl ivista se ao experimental, a fenomenologia abre-se a regides veladas para esse método, buscando uma andlise compreensiva e nao explicativa dos fendmenos. A objetividade da fenomenologia é diferente da objetividade das ciéncias empt- ricas que a garantem através do experimento ¢ da demonstra- gdo matemitica. Ja a objetividade fenomenoldgieca € o invari- ante do objeto percebido pelas subjetividades no exerefcio de relag&o da consciéncia intencional — objetividade &, portanto, consenso ou invariante intersubjetiva. Esta abertura de cam- pos de andlise encantou SARTRE que, segundo SIMONE DE BEAUVOIR, ficou deslumbrado quando RAYMOND ARON, que bebericava com ele em um bar, comentou: “se vecé fosse fenomendloge faria filosofia deste copa d'dgua”. quanto a eiéncia posi! 0 métode fenomenolégica compreende entia, a des- erigéo do fendmeno vivido buscando seu eidos, isto €, seu invariante através de varios passos denominados redugdes, 18 Anna Maria Alexandre Laporte — Neusa Vendramin Volpe As redugdes sio suspensées estratégicas que visam o conhe- cimento do fendmeno tal qual se apresenta 4 consciéncia, Os diversos autores nfo chegam a um denominador comum quando tratam de explicar as redugdes. Compreen- dem-nas diversamente quanto 4 forma, ordem e ntimero, Blas consistem basicamente, em primeiro lugar, na redugéo da téncia fatica, onde o empfrico é colocada em suspenso se ao fendmeno que é aquilo que se apresenta A 6 pode haver conhecimento do fendmeno porque “a coisa ent si”, objeto da metafisica classiea, que independe da relagiio com a consciéneia, jamais poderd ser conhecida por ela — nfo ha nada atrés do objeto, sé pode haver conheci- mento daquilo que, se apresentando a consciéneia, a consti- & para dar én consciéneia. tui. O fendmeno, em um primeiro momento, chega a uma consciéneia individual, psicolégica que ainda nfo o percebe em seu invariante porque nele projeta suas proprias caracte- risticas. Assim sendo, a primeira redugio incide sobre o ob- jeto empirico € sobre a conseiéncia empfrica suspendendo-os, pondo-os momentaneamente entre parénieses, ao mesmo tempo em que entrelaga intencionalidade mundo em seu constituirese mutuo, Em seguida, se faz a redugao do sentido constituido do objeto, que implica em uma suspensio das afirmacdes do senso comum ¢ timbém do sentido que lhe foi conferido pela histéria, filosofia e ciéncia. Essa redugao pretende um espago de revelagio do fendmeno independente dos entulhos eulturais que viciam sua percepgao. A redugao ¢ ‘A coisa mesma”, isto é, a rela- um processo que visa chegar gfo original e fundante do conhecimento, onde o fendmeno se apresenta civado de consciéncia ¢ a consciéncia civada de Essa eterna e miitua constituigio — fenédmeno- fendmeno oO de consciéncia, nunca se esgota, de mancira que a concey verdade como adequatie, isto € correlagio entre a realidade e Existencialismo. 19 sua representagdo, € substitufda na fenomenotogia pela con- cepgiio de verdade como alethea que significa desvelar, des- cobri . desvendar. Na adequacéio, a verdade é tomada em seu sen- tido Iégico como correspondéncia entre a realidade ¢ sua represen- tagdo que acontece pelo processo de abstragio. A/erea exprime o sentido ontolégico da verdade, a manifestagéo incessante do fenémeno & consciéncia, de tal forma que nio ha uma verdade aca- bada, absoluta, mas um desv constante do fendmeno porque a compreensio do ser nfo se di de uma vez por todas, mas deorre no tempo. Temporalidade e espacialidade se conju em situagGes culturais ¢ sociais especificas, possibilitando leitu- tas dos fendmenos que, entretanto, nfo o esgotam, Essas Icituras constituem o sentido dado A coisa em um determinado momento histérico, once se desvelam algumas de suas earacteristi- cas ou perfis enquanto outras permanecem ocultas ou veladas ¢ ao mesmo tempo, através de seu invariante, ha um denomi- nador comum que permite sua comunicagio aos outros, Exis- te, portanto, uma dialética entre o velar e o desvelar, o que é m festo em uma cultura pode no o ser em outra, dependendo da es- trutura politica, eeondmica e cultural de uma sociedade, O método fenomenoldgico por sua fecundidade foi con- do por HEIDEGGER e SARTRE como o mais adequado & andlise das questGes da existéncia. HEIDEGGER utilizou o méto- do fenomenolégico enfatizando seu caréter hermenéutico, buscan- do compreensées sempre renovadas e aprofundadas de questies lalizadas pela tradigio filoséfica. SARTRE partiu do método fcnomenoldgico analisando as categorias do existente em sua ori- ginalidade, Ao defiontar-se com as grandes questées sociais de seu tempo, SARTRE combinou a andlise fenomenolégica com a dialética mar 20 Anna Maria Alexandre Laporte ~ Neusa Vendramin Volpe \ INFLUENCIA 3, EXPANSAO DO MOVIME do mo- Ha trés maneiras de se considerar a expansa vimento existencialista. A primeira decorreu do momento vi- . O conflito & seus harro- racio- vido entre as duas guerras mundiai res puseram em questéo os conceilos de humanidade, 1 nalidade ¢ liberdade. Percebeu-se que a humanidade exaltada como condig&o inerente ao humano era um leve verniz facil- mente dilufvel. O animal racional morreu e o homem perdeu mesmo — as alrocidades levadas ao pa- ilidade da evo- a inocéncia frente as roxismo nessas guerras, mostraram-lhe a fi lugio conquistada pela civilizagao. Neste primeira momento, alguns filésofos comegaram a questionar a existéncia de uma esséncia humana e perceberam que ou o homem se faz e€ se escolhe humano ¢ civiliza-se ou cai na barbdrie, pois nada garante sua humanidade. Partiu-se entio, para uma reflexao sobre o homem e o vivido que tinha em comum a existéncia como modo de ser do homem no mundo e o mundo, ndo como algo titufdo, mas como manifesto ao homem condicionando suas fA col possibilidades. O existencialismo é, pois, uma filosofia densa que pretende analisar os meandros da relagéo homem-mundo usando o métado fenomenoldgico que almeja tornar a filosofia uma ciéncia de rigor. Em um segunda momento, essa reflexiio de diffeil sesso até mesmo aos iniciados se popularizou ¢ influenctou ivés da literatura, o teatro, o cinema e a musica. Havi ou exallar o xi at entretanto, uma maneira vulgar de critic tencinlismo, principalmente a linha seguida por SARTRE, como uma forma de viver permissivamente, de niilismo, de auséncia de valores. Essa forma de pereebé-lo era, em geral, feita por pessoas que se arrogavam 0 direito de aderiy a cle banalizando-o, sem entretanto, ter lido uma tinica nolalismo 21 obra de SARTRE ou de qualquer outro filésofo da existéncia encial r popula Simultancamente a essa eclosio do ex do das grandes guerras e sua posteri bém na filosofia causou um abalo censide! de forma original as questdes do humanismo. mo no perio- zagio, tam- el porque repos SARTRE gerou intimeras polémicas ¢ criticas tanto a direita quanto 2 esquerda. A direita conservadora nao dige: 9 abandono dos valores tradicionais e acusava o existencia- lismo de se fixar no lado sérdido da existéncia. A esquerda, por sua vez, o considerava uma filosofia burguesa enredada nos problemas da subjetividade, quictista € que nfo respon- dia aos desafies da construgdo de uma sociedade mais justa. A erflica a HEIDEGGER se deu em dois nfveis - 0 primciro considcrou sua filosofia irracionalista eo segundo o vinculau ao nazismo. Apesar das eriticas, o existencialismo é uma filosofia rigorosa e€ a0 mesmo tempo original, homem foram uma contrib suas asserlivas sobre o n g4o imprescindivel para a antro- pologia porque langaram luz e sombra sobre os labirintos dos mistérios humanos. II SOMOS DONOS DO MUNDO? 1,0 QUE EO MUNDO As situagdes do cotidiano sio percebidas ¢ vividas pelo hamem como parte de seu estar no mundo, ¢ nfo mere- cem maiores reflexdes porque parecem evidentes e inerentes 4 sua situagio humana, O homem sente-se em casa no planeta — o mundo, o conhecimento, a vida, a morte, as coisas, enfim tudo o que entra em contato didrio com ele e se torna parte de sua rotina, nfo o surpreende, so vivéncias tio familiares que nfo o instigam a questiond-las. Toda ciéncia parte do pressuposto que o homem eonhece, que o mundo esta af, poucas queslionam o ato do conhecimento, o que o homem conhece, como conhece ¢ o que € 0 mundo, Estudado pelas diversas ciéncias o mundo se decompée ¢ se atomiza nas va- dreas do conhecimento e assim se transforma para a ho- it Tiis mem em seu objeto de estudo e nunca naquilo que o cons horizonte, sua possibilidade de ser. A cultura ocidental fez com que o homem vivenciasse @ mundo como algo fora dele, portanto a objetividade ¢ a exterioridade do mesmo parecem tao evidentes que ele no percebe que, a0 entrar cm relacdo com qualquer coisa, pery na, humani de tal forma que nada pode ser percebido por ele que ndo traga suas préprias mareas e que também nao o marque. A percepedo nfo atinge as coisas ein seu estado bruto porque perceber é significar. i, seu 24 Anna Maria Alexandre Laporte - Neusa Vendramin Volpe O mundo que, na ciéneia, antes da relalividade de EINSTEIN e da mecdnica quantica, era visto como objeto, quando tematizado no vivido mostra-se como uma unidade de relagdo, onde sujeito © objeto perpassam-se continuamente, alias nem existem como sujeito e objeto. Nele o fitico e o constitufdo dialetizam-se com a liberdade em um processo contfnuo de criagio, fazendo do mundo um perpétuo vir-d-ser, portanto nao € uma coisa (objeto) ¢ muito menos algo pronto ¢ acabado, O homem € assim, o texto no contexto do mundo, isto é, se tece nas malhas do mundo que & seu horizonte de possibilidades, seu campo de explicitagao. Verso e reverso da mesma moeda, o homem mundaniza todas as coisas com as quais entra em contato e tudo que para ele era exterior, a partir u contexto de mundo. Neste desta relagéo transforma-se em s enfoque, o homem sé possui duas possibilidades — ou nunca entrou em contato com algo (qualquer realidade) e tudo se passa como se este algo nfo existisse, ou ao entrar em contato com qualquer coisa, mundaniza-a, torna-se dependente dela, ocupa-se dela, quer conhecé-la, significa-a, expressa-a dando- Ihe também um colorido afetivo, Tradicionalmente, o homem vive o mundo de duas formas paradoxais — ou esta dentro dele e se sente um objeto entre outros ou o domina como algo exterior a si, Essas pers- pectivas transformam homem ¢ mundo em algo pronto, aca- bado, cristalizado e no mostram sua miitua pertenga — 0 ho- mem age a coisa, sente a coisa, conheee a coisa transformando-a em coisa-sentido — humanizada sera mundo porque quando se diz mundo se diz humana, se diz sentido. Serd necessdrio que a reflexdo fenomenoldégica-existencial mude este paradoxo revelando que o homem se descobre e ao mesmo tempo, des- vela o mundo através de suas ocupagées, da lida cotidiana que é um fazer que compreende ¢ transcende as coisas dadas, Existencialisme 25 er, Em sua: sé um ser dindmico que aproveita tendo cm vista seu projeto, seu poder. homem mostra cal Ocupagoes, 0 organiza ¢ Ulura o meio cireundante em fungdo de suas necessidades que implicam o seu bem-estar Ffsico, p aspi uico e também suas ugdes de harmonia, ordenag&éo e beleza. Como disse HEIDEGGER, o homem nao esta no mundo como dgua den- tro. de um vaso, lépis em uma gaveta, mas em uma re va, construtiva e criativa com ele, O homem organiza o mundo e organizar consiste em tornar praximo, dispontvel & mio as coisas de que tem neces: sidade e, ao agir deste modo, cle cor de espages corresponde aos divers humanas ¢ se da por estruturagGes em regides ¢ locais um conjunto instrumental capaz de possibilitar a rea gio de um deicrminado campo de atividades, Nela se tornam disponiveis os utensilios necessdrios para a criagho deste espago. Por exem- plo, uma cidade se divide em diversas regides — centro poli- tico-administrative, centro financeire, centro comercial, centro residencial, etc... Os locais apresentam-se como com- ponentes do conjunto instrumental e definem o espaco deste instrumento para uma possivel utilizagao. Quando, por exem- plo, se quer alugar uma casa, o légico seré procura-la no centro residencial, Deseobrir o local implicaré em uma descoberta pré- via da regiao. tui espagas. A criagio os nfveis das atividades A regiiio & O ser-ative-no-munde consiste portanto, na criagho de espagos que implica em um arrumar e desarrumar cons- tantes. O arrumar e desarrumar dependem da cultura ¢ dos interesses da pessoa. O que esta disponfvel, arrumado, a mao Para uma pessoa pode néo estar para out m como um espago pode ser desorganizado e reorganizado para circuns- Lincias diversas, Essa posigio aliva e organizadora caracteriza o homem no mundo. Nao usar esta possibilidade que é inerente 26 Anna Maria Alexandre Laporte — Neusa Vendramin Volpe e essencial a ele, demonstra doenga fisica, psiquica ou dor nagéo cultural. Duas sio as caracteristicas inerentes ao homem que Ihe possibilitam organizar espagos — 0 distanciamento e a di- regio. O distanciamento caracteriza o homem como um exis- tente, um ser aberto ao mundo que nfo esti em uma situagdo dada, colado & circunstdneia, mas distancia-se e aproxima-se dela segundo seus desejos e necessidades. Por nfio estar colado, por poder distanciar-se € que o homem pode aproximar-se. Segundo HEIDEGGER — “nd presenga reside wma tendéncia essencial de proximidade”*® que fica demonstrada através do au- mento compulsive dos meios de comunicagio e pela diminuigio das distincias, pelo aumento cada vez major da velocidade O distanciar e 0 aproximar-se das coisas n&o garan- tem o atrumar, 0 organizar espagos: para tanto € necessirio que o distanciamento seja direcionado, A diregio € a corres- pondéneia entre o corpo = ponto zero, espago original — e as coisas almejadas ¢ define-se nesta correspondéncia, nesta relagio corpo-coisas. Assim se constroem os sistemas de orien- taco desde os mais elementares, como por exemplo a orien- tagiia pelo sol. Neste sistema a referéncia corpo é representa- da pelo brago dircilo e a referéncia externa € representada pelo sol. Estendendo-se o brago direito em diregao ao sol nascente tem-se © ponto cardeal leste. O distanciar direcionado compde todas as agdes hu- manas, faz parte do vivido, é a possibilidade do homem mo- ver-se no mundo. As agdes mais banais, como atravessar uma rua, calgar um sapato, fazer um afago ou marcar um gol, im- * HEIDEGGER, Marlin. Ser e Tempo. Petrépolis: Vozes, 1988, p. 153. aio — Existencialismo 27 plicam hesse distanciar direcionado. Através dele o homem realiza uma mensuragdo existencial constante. origem de to- dos os sistemas objetivos de medida, desde as coordenadas geogrdficas até sistemas métricos complexos. O homem, ao esquecer que é ser-no-mundo e que esta sempre constituindo espages na lida com as coisas, passa a considerar o espago exterior a si, um recipiente objetivo no qual as caisas e ele mesmo estio contidos, A tematizagdo do espago como algo constituido objetivamente é campo de cstudo das ciéncias ditas exatas mas, segundo HEIDEGGER, isto sé é possivel a. um observador nao envolvido nas mensuragdes vividas, Criar e organizar espagos sfo caracteristicas do ho- mem no mundo. A criagéo de espagos obedece a necessida- des ¢ interesses tanto do sujeito quanto da sociedade. Segue os padrdes e os valores vigentes em uma determinada cultura, por- que o homem se mostra e se faz ao criar-se, criando seu refe- rencial, isto é, seu mundo ¢ a si mesmo, organizanda os es- pagos que constituem sua morada, seu habitar, que no mundo € ocupagio, 2. O MUNDO COMO PHISIS VERSUS MUNDO COMO FAZER TECNICO ESCOLHIDO PELO OCIDENTE, A hist6ria ocidental € a histéria do ente, e é marcada pela perda do vinculo humano origindrio com a agua, a terra, o céu ec o sagrado — a quaternidade. O homem esqueceu a hatureza como parte de si e caminhou e caminha, a passos largos, para a “Noite do Mundo”, Segundo HEIDEGGER, a escolha do Ocidente ao re- cair sobre um fazer técnico produziu uma decadéncia, uma despotenciagaéo do espirito, Este processo € histérico e ocorre 28 Anna Maria Alexandre Laporte - Nevsa Vendiamin Volpe do ser através de uma progressiva transformagao da vivén que HEIDEGGER identifica com a idéia de pity : “A physis € 0 ser mesmo em virtude do qual o ente se lorua @ perimanece observdvel, Os gregos ndo experimentaram, 0 que seja a pi nes fendme- nos natrais. Muito pelo contrdrio: por forga de una experiéneia fundamental de ser, factltada pela poesia e pelo pensamento, se thes des velar a qite is, Samente em racdo desse haviam de chamar ph. des-velamento puderat entde ter olhos para a Nain reca em sentido estrito, Physis signified, portanto, originariamente, 0 céu e a terra, a pedra e a plan- ta, tanto o animal como o homem ea Histéria hu- fe mana, enquanto obra dos homens e dos deuses nalmente ¢ em primeira ligar os préprios deus submetidos ao Destino, Physis significa o vigor rei- nante, que braia, eo perdurar, regido e impregna- e vigor, que no desabrochar se do por cle. Nes conserva, se acham incliidos tanto 0 “vir-d-ser” ser”, entendido esse tiltino no sentido is do sureir, came oO restrito de permanéneia estdtica, Plt a si mesmo do escondida e as o ex- trai af servar-se", A physis vepresentava, portanto, a unidade, a totali- dade, a integra era apartado da natureza e dos deuses ¢ jetos, mas participava desse vigor que inclufa o velado ¢ 0 desvelado, cHo natureza, homem c deuses. O homem nio 0 os via como ob- ‘ HEIDEGGER, Martin. Introdugdo a Metafisica. Rio de Jangiro: Tempo Brasileiro, 1987, p. 45 6 65. Existencialismo 2a A idéia de physis vai se modificando ao longo dos tempos ¢ os fildsofos pr Ocidente, os dl- timos baluartes dessa concepgio. A partir do perfodo socrati- co, physis comega a se identificar com a natureza — a ffsica, isto & uma representagio das coisas em sentido material. A partir de SOCRATES, 0 conceito ocidental de natureza em permanente transformagaio vai se empobrecendo gradativa- mente e perdendo seu contato com a totalidade do ser, A perspectiva do desvelar velando-se é substituida per uma no- gio de natureza onde s6 0 desvelado tem lugar — 0 desvelado € a fisica. A natureza & apreendida, a partir deste momento, como aquilo que pode ser dominado, controlado, mensurado, enfim quantificado, Esta forma de interpelar a natureza visa “um saber que assegura a calculabilidade prévia dos acon- lecimentos naturais™, somente o que pode ser previamente ealculado vale como sendo, A natureza é provocada, isto 6, interpelada a mostrar-se como objetividade calculdvel. Esta manecira de se relacionar com ela, dominando-a, tem como principal caracteristica a téenica moderna — aplicagéo da fisica ma- temitico-experimental para a exploragiio das forgas naturais. Através do desenvolvimento moderno da técnica, o homem vive a separago com a natureza acreditando desvendé-la cm seus limites, Aparentemente desvelada, tudo se passa camo se scus mistérios tivessem sido explicitados. O homem, atra- vés da téenica, tem a ilusio de ter em mios a natureza, ¢ como seu amo e senhor, a violenta obrigando-a a comportar-se dle acor- do com seus desejos, esquecendo nessa violéncia, que também faz parte dela, O desenvolvimento da ciéncia e da técnica ocidentais vai afastando, gradativamente, o homem de sua pertenga natural, sua anterior vinculagio de quaternidade (céu, te “Carta de MARTIN HEIDEGGER ao Dr. Takehido K agosto de 1963. 30 Anna Maria Alexandre Laporte — Nousa Vendramin Vol pe tem perspectiva deuses, homens) ¢ a unida com o sagrado ne! mais lugar. Inicialmente, a escolha da physi no enfoque fisico- matemiatico possibilitador da técnica aconteceu na Europa mostrando que essa “interpelagio produtora” era eficiente ¢ que aela se subordinavam a ciéncia, a industria ¢ a economia, No dizer de HEIDEGGER — “como consegiiéncta do dominio deste poder da interpelagdo produtera desaparecem (tempo- reriamente ow para sempre?) as eulturas nacionais que se desenvolveram através de um povo com suc paisagem pica. E em seu Ingar se constitui e cultiva wma civilizagdo planetdria. = Quando HEIDEGGER fez o retorno & idéia de phy no sentido pré-socratico, nfo pretendia uma volta saudo 20 homem contempordneo a essa cultura, mas sim, permili re questionar a opgio que fez pela physis como na- cram. visuali tureza controldvel e as conseqiiéncias que dela decort A sacralidade da physis para os pré-socrdticos impli- cava em um respeito profundo de quem se sentia irmanado ao mesmo destino, A natureza nao era percebida como algo exte- rior mas vivida de forma inlegrada, simbidtica pelo homem. Esta perspectiva se deu porque o homem ainda nao a trans- formara em ente, vinculada A totalidade do ser, ela mantinha seus mistérios ¢ encantos que, oscilando entre o visivel ¢ o invisivel, o velado e desvelado, permitiam sua sacralidade. A evalugdo tecnolégica que culmina em nossos dias coma internacionalizagio ja prevista ¢ deserita por HEIDEGGER ¢, ente do esquecimento do ser e sua perda no ca fragmentagdo pertanto, deco ente. Com a opgiio ocidental pela técnica segue~ * Idem. Existencialismo 31 do homem que perde sua vinculagio com o sagrado, a total dade césmica, Esta escolha esta presente em todo o viver — na eco- nomia, na politica, nas relagdes, nos valores e também, signi- ficalivamente, na linguagem que reflete a pretensfio de tudo desvelar ¢ controlar, Busca-se nas ciéncias uma linguagem cada vez mais exata, matematica, e quantificada, de simbolos universais objetivos. Uma linguagem que se expre: no formalismo Iégico relegando as demais o siléncio por fugi- rem aos padrdes pré-cstabelecidos por ela, A midia, soman- do-se a esse empobrecimento ontoldégico da linguagem, po- pulariza fo vazias ¢ medfocres de expressiio, ¢ assim o ser é relegado a um duplo esquecimento - de um lado se re- duz a “ebjetividade calculdvel” e de outro a um “falatério”™ inécuo ¢ inconseqiiente. Entretanto, como quer LYOTARD, a verdadeira complexidade da linguagem que € a expressiio do ser, estaria em ouvir e deixar alar “a conversacdo livre, o jifgamento reflexive, a meditagdiea, a associagde Hvretne sentido psicanalittico), a poética, a literatura, a muisica, as artes visuais ea linguagem cotidiane. wei Quando sc faz a critica da opgio pela técnica no Ocidente nfo se pretende negd-la, mas colocar em relevo a exclusio que essa escolha produziu no desenvolvimento de formas diferenciadas de vida, de conhecimento, de linguagem, de relagio ¢ de integragiio com a natureza ec com o sagrado. * LYOTARD, Jean Frangois. O inumano. Censideragdes sobre o tem- po. Lisboa: Ed. Estampa, 1989, p. 79. 32 Anna Maria Alexandre Laporte - Neusa Vendramin Volpe 3. INTEGRACAO DIGNISIACA OU NACIONALISMO XENOFOBO “No rude e sdlide peso do sapato esta firmada a lenta e abstinada pegada através dos campos, a lonjara dos caminhos sempre semethantes, seb o vento frie. A pele & marcada pela terra fértil e timida. Sob as solas estende-se a soliddo do cani- nha, do campo, qe se perde no erepisculo, Atra- vés dos sapatos perpassa o apela silencioso da terra, o seu dom tdeito do grda maturescente, ct sta seereta recusa no dvido poisio do campo in- vernal, Através deste produto perpassa a mite ingutetude pela seguranga do pdo, a alegria silen- ciosa de sobreviver de nove a necessidade, a an- gistia do nascimento iminente, o estremecinento frente d morte que ameaga, Este produte pertence a terra e estd em abrigo no munda da camponesa.’* HEIDEGGER percebeu que a crise da cultura oci- dental era ontolégica porque o homem caiu no esquecimento do ser. Buscou filosofar através de uma linguagem poética para tentar dizer 0 ser que € indizivel & linguagem exata da ciéncia, fixada no ente. Sentiu como nenhum outro o enrai- zamento é a ligagéo do homem com a natureza — falou da ter- rae da semente, da vida e¢ da morte, do humano e do sagrado, da existéncia finita ¢ da transeendéncia imanente vinculando-os 20 ser que brota e permanece. Os vinculos com o solo fala- vam-lhe de rafzes, de profundidade, da terra, da finitude ¢ do mistéria do velamento do ser. A amplidado dos céus, com seus deuses solares, falava-Ihe do Dasein e na eclosio de luz na escuridao da ser, de seu desvelamento, Percebia o homem em ® RESWEBER, Jean Paul, © pensamento de Martin Heidegger. Coimbra: Li- vraria Almedina, 1979, p. 19-20. Existencialismo 33 sua relagdo com o ser como a clareira, a réstia de luz que ilumina a floresta, como o lavrador que com seu arado des- vela a terra, abrindo sulcos no campo. O homem, “Pastor do Ser”, dividida entre os vinculos com a terra e a criagio do mundo humano, € também o lugar do Nada porque embora vele o ser néio é seu dono. HABERMAS comenta que HEIDEGGER buscon uma recuperagao dionisfaca do ser, tentando superar a apartagao da modernidade que desfez os vinculos do homem com a terra c a hatureza cerceando-o e criando, cada vez mais, um mundo de objetos, coisas e entes. , Os vinculos com a terra apresentam aspectos positives ¢ negativos. Nos primeiros, a relagio do homem com o solo, a terra propicia a ele uma integragaio humanizante, uma pertenga fra- terna que impede o exercicio de dominagio da natureza pré- prio do desenvolvimento ocidental. O vinculo com o solo da também ao homem a sensagdo de seguranga e de enraiza- mento afastando momentaneamente o cardter trdgico de sua separagdo onloldgica que o faz um ser de distancia. Por outro lado, 0 aspecto negativo deste elo com a terra pode ser enca- tado de duas formas — como um vinculo de sangue com a mie-terra, altamente regressive, onde o homem, para se li- vrar da solidao que acompanha sua emancipagio, abdica, também, de sua liberdade. O homem para se tornar humano deve se libertar dos vinculos areaicos com o solo, sem, en- tretanto, perder a identidade que o vincula a seu pais e a sua cultura. O vinculo com a terra representa um abdicar da li- berdade quando aparece como um retorno ao titero da miic- terra, onde existe uma pseudo-seguranga incompativel com o arriscar-se exigido pela liberdade que caracteriza o processo de amadurecimento humano. 34 Anna Maria Alexandre Laporte — Neusa Vendramin Volpe A outra forma negativa deste vinculo é a que pretende alimentar a mie terra com o sangue do inimigo. No mundo contemporaneo, aparentemente sem inimigos, os pafses, na ten- tativa de preservar a propria identidade, a partir da pasteurizagao conduzida pelo neoliberalismo internacional, podem cair no fanatismo e na negagao do outro, do diferente visto como ini- migo a ser desprezado ou eliminado. Criam-se assim vinculos patolégicos com a terra através dos. nacionalismos exacerbados em suas formas mais primitivas que buscam no grupo nacional ou racial o lider (pa?) dominador. Nessa perspectiva, embeber a terra com © sangue inimigo € tornd-la mais vigorosa e produtiva, como se 0 édio e o furor a alimentassem. A ligagdo com a terra entretanto, pode ser dionisfaca, erdtica e crialiva como pensou HEIDEGGER que viu com desconfianga o descnraizamento provocado pela perda das culturas locais com a evolugdo tecnoldgica. Hoje esta condigéio in- cou-se com a implantagdo do retrocesso neoliberal ontel- tens mundial pelo qual os pafses mais ricos, ignoranda as ras das nagdes, comandam um mereado que, pela ideolo liberal, deveria ser livre. Nao é porém, o que acontece, porque, ape- sar o discurso “libertario” do antigo liberalismo, a internacionalizagao cria fronteiras intransponiveis de misé e riqueza e em uma ambigiiidade mentiros diz pretender um mundo sem fronteiras, mas que na verdade, estabelece a bar- reira do capital que pode se tornar prédigo ou restritivo segundo sua Iégica perversa — especulagao e lucra, a sar de Os pafses submetidos & ideologia da internacio zagio podem desenvolver um nacionalismo radical em uma tentativa de preservar sua identidade nacional, da mesma forma que o nareisista tenta salvar um minimo de identidade pessoal através do eu narefsico, | Existencialismo 35 O nivelamento por classe social de desejos ¢ merca- dorias, valores e comportamentos através da padronizagiio yeiculada pelos meios de comunicagio gracgas A evolugio técnica, exclui diferengas ¢ mata aquilo que sempre foi a maior riqueza humana — a diversidade de ragas, credos ¢ culturas. HEIDEGGER foi quase profético ao temer 0 cami- nho seguido pelo ocidente através da opgao pela técnica: “A decadéncia espiritial da terra jd foi tdo longe, que os poves se véen ameagades de perder a ifltima forga do esptrito, capaz de os fazer simplesmente ver e avali- ar, como tal, a decadéncia fentendida em suc relagéo com o destino do ser)... Coin efeite, 0 ebscurecinento do mundo, a fuga dos deuses, a destruigdo da ter ra, a massificagde do homem, a suspeita odiose contra tudo que € criador e livre, ja atingiu, em toda o orbe, dimensdes tais, que calegorias tao pue imismo e otimismo, de iid ninito se terna- ram ridferlas”” como pes Entretanto, a solugio escolhida por ele para deter 0 poder diabdlico do avango lecnolégico foi nacionalista, ingé- nua ou de ma-fé - para conter esse avango tanto na América capitalista quanto na antiga Russia comunista, coneebeu a Alemanha coma o lugar de onde poderia nascer um levante do espfrilo capaz de se contrapor a técnica, A medida em que este apelo ressoasse em outros paises e povos. Para ser o messias condutor que levaria os po¥os a um porto seguro, a Alemanha deveria ter um fiihrer, um herdi no sentido trigico grego, capaz de se contrapor a esse movimento aniquilador dos homens. HEIDEGG posicionou assim 0 pove alemio ° HEIDERGGER, Martin. Introdugao & Metefi po Brasileiro, 1987, p. 65. a. Rio de Janeiro: Tem- 36 Anna Maria Alexandre Laporte - Neusa Vendramin Volpe como um povo superior, ¢ da superioridade ao racismo foi um pass. O smo foi a forma encontrada para fundamentar sua superioridade. Recorrer a um salvador para se mudar a histéria ou se chegar a liberdade € infantil e destrutivo porque a ele se transfere a responsabilidade das escolhas livres do homem (é a persisténcia da idéia do lider salvador). Delegar aos outros a propria emancipagao é abdicar da liberdade e eleger o auto- ritarismo. Foi o que HEIDEGGER fez apesar de, em 1937, ja ter perdido a fé na missiio do povo alemao ¢ j4 se mostrar decepcionado com Hitler. Em 1966, a revista Der Spiegel publicou uma entrevista em que HEIDEGGER afirma que nenhum esforgo, nenhuma obra, sé mesmo um deus poderia salvar a humanidade, expres- sando sua amargura diante da impoténcia humana frente A perspectiva técnica ocidental de dominagio. Mais uma vez, HEIDEGGER nfo acreditou na possibilidade do préprio ho- mem mudar o seu destino. Hoje, entretanto, o avango da ciéncia e da técnica parecem ir em diregao a um caminho sem volta, Ao aparente evanescer das fronteiras mundiais criam-se outras muito mais intransponiveis de miséria, desemprego e fome. A internacionalizagao, ao diluir as identidades nacionais, pode ¢ estd levando os paises a um processo defensivo de preservagio da propria identidade através dos nacionalismos, da discrimi- nagiio racista e dos fundamentalismos religiosos, Hoje a ideo- logia neoliberal € imposta como a tinica opgaio da humanidade, seu discurso inquestiondvel age como o discurso de um fiilrer salvador, e se posiciona como a grande e mortal ideologia quando apregoa a morte de todas as ideologias e utopias ¢ proclama o fim da histéria. Til SOMOS OU EXISTIMOS? 1. A PERSPECTIVA ESSENCIALISTA DO HOMEM O homem surge como um ordenador de cosmos porque desde suas origens buscou compreender ¢ explicar o mundo. UL trapassado 0 periado mitico que se caracterizou por uma re- lativa indistingao entre sujeito e objeto, surgiu na Grécia a primeira tentativa de explicagio racional do universo. Os lésofos pré-socraticos o fizeram buscando a arqué, isto 6 as origens primeiras, os elementos constitutivas de todas as coisas ¢ nesta busca de compreensio das coisas, compreendiam-se auavés delas, Mesmo to perfodo socrdtico, 0 homem ainda se via com as categorias auridas das coisas, Perecbia em si a sintese co mundo vegetal ¢ animal somadas essencial — a ra auma diferenga ionalidade que possibilitava a ele a compreensiio das coisas e o fazia um animal diferente. Viu-se, entdo, como um microcosmo, uma esséncia c definiu-se como animal racional. A busca das esséncias comegou com SOCRATES que perguntava insistentemente o que as coisas cram aos que se julgavam sdbios porque se considerava ao menos sdibio dos homens. Seu esforga em busca do conhecimento o levou a investigagao do auto-conhecimento. A frase inscrita no Ord- culo de Delfos: conhece-te a ti mesmo fez com que ele vol- tasse a filosofia para os problemas antropoldégicos. 38 Anna Matia Alexandre Laporte — Neusa Vandramin Volpe. A busca de compreensio da esséncia do homem pros- seguiu com PLATAO que viu no mesmo a dualidade do sensf- vel e do inteligivel, do corpo ¢ da alma. Nos séculos posterio- res a concepefio dualista foi abragada pelo Ovidente e atra- vessou, com pequenas variagdes, a Idade Média e parte da Modernidade. Permaneceu por tanto tempo porque corres- pondia & vontade humana de diferenciagao, de fuga da ani- malidade, de um desejo de transcendéncia e ansiava por uma dignidade que néo poderia originar-se s6 da matéria. Identi- ficou a alma racional como sua essénc tuindo para s um lugar diferenciado na natureza, uma superioridade ontoldgica. O cristianismo corroborou com esta concepgio am- 4 foi criado por ndo-a porque o homem na Gptica cris a imagem e semelhanga, Filho de Deus transcendia pelo espirito a matéria que o aprisionaya. O mundo passa a ser um lugar de sofrimento, pecada e desterro, Nele o homem se sente distante de sua verdadeira patria celeste. O desprezo grego peta matéria vista como negofiunt trabalhada pelo escravo, ampliou-se no cristianismo em um primeiro momento porque ligava o homem ao dominio do sensivel, distanciando-o de sua esséncia divina, No infcio da Idade Média, a esséncia humana polari- zou-se entre a filiagéo divina ¢ a visio dualista platdnica. Essa concepgiio perpassou a Idade Média € 86 no século XIIL, com Toms de Aquino, a reflexfio sobre a esséncia humana desenhou-se a partir de Aristételes, como unio substancial corpo ¢ alma, ressaltando a unidade do homem, filho de Deus, Tomas de Aquino ao resgatar a filosofia aristotélica comegou a valorizar a razio e nela se concentraria a nogio de esséncia humana, Existencialismo 39 No alvorecer dos tempos modernos, 20 lado da @nfa- se & razo, percebeu-se uma ténue valorizagio da natureza, vista como ens creat, exaltada no Cantico das Criatiras de Sio Francisco de Assis. No Renascimento a nogio de natureza humana, vista como caracterist a prior’ do homem, transcendeu o as- pecto contemplativo, tedrico e passou a integrar 0 agir, a ca- pacidade de operar e transformar @ mundo. O tema da digr dade humana ser exaltado e o homem passara a se perceber além de criatura, também como criador. Essa nova posigae foi vista de forma lticida ¢ genial por PICO DELLA MIRANDOLA: undo te dei, Addo, nem unt digar determinado, vem ut aspecto préprio, nem qualquer prerroga- fiva sé tua, petra gue obtenhas e conserves o as pecto e as prerrogativas que desejares, segundo a turd voniade e os teus motives. A natureza limitada dos astros estd contida dentro das leis por mint preseritas. Mas tu determinaré constrito a nenhuma barreira, segundo o tet ar- bitrie, a cujo poder eu te entreguei, Coloquei-te na meio do inundo para que, dat, tr percebesses tudo o que existe no mundo. Néo te fiz celeste nem terreno, mortal nem imartal, para qite, como livre e soberano artifice, tu mesmo te escilpisses e@ te Pplasmasses na forma que tiveres escalhido. Ti po- derds degenerar nas coisas inferiores, que site britas, poderds, segundo o teu querer, is superiares, que sto divines”!° a@ Mut sem estar Fegenerar-te nas ov “REALE, Giovanni: ANTISERE, Dario. Histéria da Filosofia, Vol. II, S4o Paulo: Paulus Ed., 1990. p. 62, 40 Anna Maria Alexandre Laporte ~ Neusa Wendramin Volpe O tema da natureza humana universal foi repensado com as grandes navegagdes e descobertas e com a expansiio gcografica e cultural. O €ncontro com novas culturas e@ civi- lizagGes iré interrogar a questo da identidade humana diante das diferengas cullurais, O naturalismo comegou a tornar-se uma caracterfstica do humanisme e a natureza corpdrea do homem comecou a ser investigada., As dissecagdes de cadi- veres que se iniciaram nesta época apareceram como profa- nagio de um territério sagrado — 0 corpo, sede da alma, in- vélucro do espirito. No tacionalismo cartesiano esta dessacralizagio acen- tuou-se com a priorizagdo da racionalidade humana. A con- cepgio dualista que perpassou toda a histéria ocidental ren- firmou-se ¢m DESCARTES que apreendeu o homem como constitufdo por duas substancias auténomas — 6 corpo, res extensa, que era matéria governada por fungdes mecdnicas, sujeitas ao dominio da necessidade e a alma, res cogitans, agora percebida como raziio — esséncia humana. DESCARTES quando proferiu a célebre oragae: “Penso, logo exista”, esta- beleceu a prioridade absoluta da razio sobre todas as coisas priorizar a razdo desvinculada do corpo e do mundo, elabo- rou de forma marcante para os séculos posteriores a separa- ¢4o entre o homem superior porque pensa ¢ a natureza. Sua concepgiio matemético-mecanicista entendia as coisas como objetos passiveis de serem dissecados e portanto, conhecidos. Propunha em seu método analitico a diviséo dos problemas em partes ¢ ascendia das mais simples as mais complexas permi- tindo & raziio compreendé-las em sua functonalidade. O método cartesiano propiciou um enorme desenvol- yvimento das ciéncias & medida que reduzia a complexidade do real que era metodologicamente fragmentado e desvincu- Jado da totalidade. Acenava com a possibilidade da razao, es- Existencialismo at séneia humana, compreender 0 mundo independente dos crité- rios dogmiaticos da autoridade. Em DESCARTES, 0 homem foi exaltado como subjetividade pensante, como senhor ca- paz de exercer um dominio sobre a realidade, O homem e o mundo assim concebidos foram naquele momento uma evo- lugio, um grande passo para a humanidade. Essa concepgao, entretanto, ao desvelar o mundo sob a perspectiva comparti- mentar, fragmentaria e mecanica, velava-o enquanto unicidade e complexidade, ¢ isolava o homem dessa teia viva ¢ orgdnica de relagées. O empirismo, contrapondo-se ao racionalismo, rejei- tou a nog&o de uma esséncia humana a priori. O homem é fruto da experiéneia, de suas relagdes com o meio. Seu “eu” nada mais é que um feixe de sensagdes. O empi de sujeitar o homeim ao meio e valorizar a razio empirica, ainda 0 concebeu como o senhor que impunha o seu dominio sobre a realidade como queria FRANCIS BACON. mo, apesar Tanto no racionalismo quanto no empirismo o homem se percebia desvinculado da natureza, era superior is coisas, acredilava poder desvendd-las e domind-las. Coneebendo-se e ao mundo desta maneira, se fez verdugo da natureza transfor- mando-a em sua fonte inesgotdvel de recursos, seu objeto de dominio, através do caminho sem volta da evolugho tecnold- gica, Sd questionaraé esta opg&o séculos depois ao perceber que ©s recursos naturais so esgotdiveis e que, aniquilando a natureza, serd a si mesmo que estard destruindo porque faz parte dela, 2.0 HOMEM COMO PROCESSO EF A MORTE DA ESSENCIA A filosofia existencialista criard novas categorias para pensar o homem. A percepgio do inacabamento humano ird 42 Anna Maria Alexandre Laporie — Neusa Vendramin Volpe trazer ao pensamento contemporaneo uma perspectiva dife- rente da visio essencialista. NIETZSCHE pressentiu essa mudanga ¢ aexpressou através da fala de ZARATUSTRA: “O homent é uma corda estendida entre o animal e @ super-homem — uma corda sobre unt abisnio. Bo perigo de transpd-lo, 0 perigo de estar a caminhe, o perige de olhar para tras, 0 perige de trener e parar. O que hd de grande, no homem, é ser ponte, endo meta: @ que pode amar-se, no home, é ser ma (ransi¢de eum ecase ett HEIDEGGER e SARTRE buscaram através da reflexiio a compreensiio do ser do homem como abertura, intencionalidade, relagdo ¢ processo — em outras palavras, existéncia. E o que se entende por existéncia? HEIDEGGER, em sua carta Sobre 0 Humanismo a Jean Beaufret, apresentou as diversas conotagoes do conceito de existéncia na metafisica cldssica que, em um primeiro momento, significava realidade efetiva, isto é, ato, diferente da esséncia que é possibilidade, isto é, poténcia. Na filosofia medieval, a existéncia foi compreendida como actualitas. KANT a representou como objetividade da experiéncia. Para HEGEL, existéncia seria a idgia que se sabe a si mesma ou a idéia da subjetividade absoluta. Na concepgiio de NIETZSCHE o eterno retorno do mesmo. Para SARTRE, a existéncia precede a esséncia, ¢ se- gundo HEIDEGGER, a precedéncia da existéncia sobre ae séncia justificou o nome de existencialismo a esta posig’o filoséfica. Para ele, entretanto, SARTRE ao inverter a formulagio 1) WIETZSCHE, Friedrich W, Assim falou Zaratustra, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987, p. 31 Existencialismo 43 metafisica, continuou metafisico porque existéncia continuou sendo concciluada como atualidade e esséncia como possibilidade, caminho seguido pela histéria metaffsica do ocidente. HEIDEGGER nfo se posicionou como existencialista e nele existéncia possui outro significado: “A esséncia do ser-at. reside em sua existéncia... O ho- ment desdobra-se assim em sect ser (west) que ele é a “at”, isto 6, a clareira do ser, Este “ser" da af, e se- mente ele, possui o trago fundamental da ec-sisténcia, isto significa, o trago fimedamental da in-sisténcia ec- stdtica nc verdade do ser. A esséncia ec-stdtica do ha- ment reside em sua ec-sistéacia, que permanece distinta da existéncia pensade metafisicanente”. fe A problematica da filosofia heideggeriana € ontold- gica, Preocupou-se com o esquecimenta do ser e procurou, através de seu questionamento, remover os escombros que o relegaram a essa condigaio. Percebeu que, visando o ser, destacava 0 dnico ente que a ele tem acesso - o homem, isto 6, o ser-aé. Para HEIDEGGER ha um processo de mititua ¢ ante implicagdo entre o ser € o ser-ai que justi analftica da presenga (ser-cf) tendo em vista uma ontologia fundamental. Esta inteng&o é 0 fio condutor de “Ser e Tempe”, sua obra principal ¢ inacabada. ca uma O ser-af seria a in-sisténcia, ec-sistente na verdade do ser, ou seja, nele reside um processo que o abriga, o vin- cula ao ser ¢ ao mesmo tempo o extrojeta em abertura, defi- nindo-o como elareira do ser. “Ato de irrupgda de presenga na noite do ser.” © ser-af presentifica o ser, percebe a seu " HEIDEGGER, Martin, Sobre o humanismo. Carta a Jean Beaufret, $40 Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 155. 44 Anna Maria Alexandre Laporte ~ Neusa Vendramin Volpe desvelamento e¢ o expde na linguagem. O homem por essa condig&o vigia e protege a verdade do ser — “O homem € 0 pastor do ser”. A proximidade da Floresta Negra fez HEIDEGGER pensar o homem como clareira e clareira, em uma floresti uma abertura no meio do intrincado da mata que permite o iluminar, 0 penetrar da luz na escuridao, O homem é entiio, abertura no scio do ser capaz de ilumind-lo e, ao mesmo tem- po que instaura uma compreensiio do ser, vai constituindo-se a si mesmo ¢ por isso define-se como tempo. Ex-pasto na in-sisiéncia, clareira ¢ guardiao do ser, 0 ser-af & também, cuidado, Ha uma correspondéncia entre desvelo em sentido de desvelar, desvendar, descobrir e des- velo em sentido de zelar, de cuidar, mostrando que aquele que desvela ¢ responsdvel pela verdade que faz eclodir, deve zelar pela verdade do ser, por sua manutengao como manifestagao. A morte da esséncia como a priori foi caracterizada por HEIDEGGER em “Ser e Tempa” como o pader-ser do ser-af que se constitui a medida em que desvela 0 ser no tem- po. O homem nao & mais concebido como um ser constituida mas um ser cujo ser pode ser. Na trilha da rejeigao de uma esséncia humana tam- bém encontra-se o existencialismo sartreano que, como todas as linhas existencialistas, parte do princfpio — a existéncia precede a esséncia, ou no dizer de SARTRE: “Temos de partir da subjetividade. Que é qite em rigar se deve entender por isso? Consideremos tn objeto fabvicade, como por exempto wm livre ei wn corta-papel: ial objeto foi fabricado por win artifice que se inspirou de um conceito; ele re- portou-se ao conceite de corta-papel, € igual- Enxistencialisma 45 mente a ume téenica prévia de produgda que faz parie de conceito, e que no fundo é uma receita. Assini, 0 corta-papel é€ ao mesma tempo um objeto que se praduz de certa itaneira e qite, por oitre lado, tein uma utilidade definida, endo € posstvel imaginar um homem que produzisse wn corta- papel sem saber para que hé de servir tal objeto, Diremos pois que, para 0 corta-papel a esséncia — quer dizer, a conjumo de receitas e caracteristicas que permitem produci-la e defini-lo — precede a exis- iéncia: e assim a presenga frente a min, de tat corta-papel ou de tat livro esté bem determinada, Temos, pois, uma visdo técnica de mundo, na quel se pode dizer que a produgdo precede a existéncia’."° SARTRE, diante do problema da subjetividade., mos- trau que ela nao poderia ser analisada como algo pronto e aca- bado como um carta-papel ou um objeto qualquer, As coi suem um conceito predeterminado, um modelo @ prior? que as enforma possibilitando sua fabricagéo, enquanto 0 homem se faz. Logo. o homem primeiro surge no mundo e, sé depois se define, isto para SARTRE, é a subjetividade. Para ele, portanto, AS Pos “[...] @ homem é antes de mais nada, um prajeto que se vive subjetivamente, em veo de ser in creme, qualquer coisa padre, ou wma couve-fler, nada existe anieriormente a este projeto: nada hd no céu inteligtvel, eo homem serd antes de mais a que ti- ver projetado ser. Nada o que ele qniser ser”. ® idem, “ SARTRE, Jean Paul, O existenclalismo é um humanismo. Lisboa: Ed. Presenga, 1970, p. 21. 46 Anna Maria Alexandre Laporta ~ Neusa Vendramin Volpe Para SARTRE a idéia de Deus implicava em uma idéia de esséncia, Devs seria 0 artifice do homem, seu formatador. 0 atefsmo sartreano seria, portanto, um resgate do homem, auto-criagdo ¢ sua autonomia — sem Deus 0 homem existe, com Deus, o homem é. Para SARTRE nao é importante que Deus exista ou nao exista porque “nada paderd salvar 0 homein de simesino.” A vistio essencialista deu ao homem uma dignidade mas também a possibilidade de sua transformagao em objeto 5 repete-se a idéia técnica de fabricagao. A nogao de essen ia é ambigua porque, ao mesmo tempo que o homem tem garantido u m lugar especial no conjunto dos seres, também pode ser consi- derado como algo preconcebido, coisa como eles. Oexistencialismo é um humanismo tanto para SARTRE como para HEIDEGGER, mas ambos rejeitam a idéia de uma natureza humana. A humanidade e a dignidade do homem estio em seu poder-ser e poder-ser € esperanga e liberdade. yy IV O QUE E 0 TEMPO 1, DIFERENCIACAO ENTRE O EM-SI EO PARA-SI A ordem das coisas prima pelo siléncio, pela opacidade, pela auséncia de qualquer presenga ou textura. O no afetare nio ser afetado, 0 nio tocar e nao ser tocado, a indiferenga que nao se sabe indiferente, é algo longinquo e inapreensivel ao ser humano. Nessa esfera, cada ser possui os olhos vendados, cegos ao mundo que o cerca. O ser Em-si € o ser pleno de si, Ontologicamente, basta-se a si mesmo ¢ &, por isso fechado, enredado em seus limites, Esta pronto, dele pode-se dizer — é. Sem frestas, sem janelas, sem vios, sua plenitude é sua miséria porque sendo absoluta, fecha-se em si mesmo sem possibilidade alguma de relagdo, de compreensiio e de comunicagiio. Segundo SARTRE: “O ser En-si ido possiti um dentro que se eponha aum fora, e seja andloga a um jutzo, uma lei, una conseféucia de si. O Ent-si nao tent segredo: & niacicgo, Em certo sentido, podemos designd-le como sintese. Mas a mais indissoltvel de todas: shitese de si consigo mesmo. Resulta, evidente- menie, que a ser esta isolacdo em seu ser endo maném relagda alguma com a que ndo é."" "SARTRE, Jean Paul, O Ser @ © Nada, Petropolis: Vozes, 1997, p. 39. 48 Anna Marla Alexandre Laporta — Neusa Vendramin Volpe. O ser Em-si é contingente, gratuito, sem possibilidades, produz um sentimento de sufocag&o porque tudo o que se ve € mate: € inerte, é nausente. O Em-si em sua plenitude — positividade pura — é impiedoso em sua estabilidade, pois se mantém inalterado, impa el frente aos acontecimentos do mundo humano, Seu “é” sem possibilidades nao reflete as mudan- gas, as dores, as alegrias ¢ os tormentos da existéncia, Quando se percebe a impassividade das coisas frente a uma grande gédia da vida humana, o sentiment de gratuidade do Em-st faz aflorar no homem a percepgio nauseante de sua prépria gratui- dade, assim expressa por ROQUENTIN: “4 pequena Lucienne foi violada. Esirangutada. Seu corpo ainda existe, sua carne pisada, bla jt ndo existe. Suas miios, Ela jd ndo existe. Ay casas. Caminho entre as casas, estou entre as casas muito feso sobre o calgamento; o calgamento sob meus pés existe, as casas tornam a se fechar sobre mim, coma a dgna se fecha sobre mim sobre o pa- pel em forma de montanha de cisne, eu sow nt Por outro lado, essa mesma estabilidade pode ser con- solo porque quando tudo parece ruir, a impassividade do Em- si remete xos homens um sentido de enraizamento, de segu- ranga, de “normalidade”. Enquanto o Em-si € pleno, positive e sem fissuras, o Para-si € um corte na plenitude do ser. Cindido, aberto, sai de si, cria distancias e percebe-se, a0 mesmo tempo que percebe as mesmo, originando 0 Para é é coisas. O que separa a Ei-si de s o Nada. —“O homem é 0 ser pelo qual o nada vem ao mun- *® SARTRE, Jean Paul. A Nausea. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1986, p. 152 Existencialismo 4g do.” Ao contrério da positividade do Em-si, 0 Para-si é ne- gatividade. E o Nada. O nada é a brecha no seio do ser. Ea distancia ontolégica que permite a separagado da interioridade enclausurada do ser em sua imanéncia total. Distincia nico espacial pois, € a possibilidade do Para-si perceber-se como diferente do £ni-si, esta diferenga permite a ele entrar em relagiio e comunicagao. Ao emergir do scio do ser, o Para-si faz celodir a presenga das coisas. O Para-si nao é aquilo que 6, nfo € coisa, é vazio de si, é nada, O Nada possibilita a percepgdo, a imaginagio, o conhecimento e a liberdade, Para pereeber uma drvore, o homem precisa saber que ele nfo é aquele ser e que aquele ser nao € oulro porque é o fue € e, portanto, toda afirmagio implica em uma negagio. Ea negagdo que possibilita a dis- tingdo ¢ a negagdo nao se encontra na positividade do ser, é uma prerrogativa do Para-si. O nada sartreano nao € niilista, quietista, o nada da derrota, € sim, possibilidade pura, através da qual a consciéneia, a abertura, a diferenga humana se faz presente. O Para-si nado possui contetido em si, é uma fuga in- cessante em diregéo ao mundo. A censciéncia intencional: Para-si & um vértice, uma forga centrifuga em dircgio iquilo que ela nio é. SARTRE disse que se o homem pudesse entrar ha prépria consciéneia seria, imediatamente expelido por ela porque consciéncia € movimento de extrojegio, exteriorizagio. O poder nadificador do Pare-si que, possibilita a percepgao do real, permite, também, a percepgao do irreal — a imaginagao. Imaginar € ter presente @ ausente em unv Lri- pla perspectiva: ~ criar o inexistente, presentificar o ausente e dar sentido para aquilo que seria sensagio pura, som, cor, 50 Anna Maria Alexandre Laporte — Neusa Vendamin Volpe odor, sabor, etc., transformando-os em miisica, palavras, be- leza, estérias, enfim, criando 0 mundo humano. A imaginagado cria a partir da nadificagao, projetando-se em seres fantdsticos como o Ad&o de Michelangelo, o “ET” de Spielberg ¢ tam- bém mantendo imortais na meméria pessoas, acontecimentos ¢ objetos que ja nfo existem no real. A imaginag&o mantém uma distincia do constitufdo e nfo pode originar-se da ple- nitude do Em-si, é caracteristica do homem perpassado pelo espago nadificante que se instaura entre o sere o nada. O Para-si por nio ser pleno, por constituir-se como possibilidade, como abertura, é a eterna busca de si, busea de totalidade, busca de plenitude jamais atingida. A consciéncia — Para-si, nio pode ser constitufda e nem determinada porque projeta-se naquilo que n&o € © desejo de plenificar-se, cria no homem o anseio contraditério de realizagéio plena e de deseanso, de encontrar o seu lugar, a sua finalidade, a segu- ranga da total posse de si o que significaria tornar-se Em-si, desejo que sé seré atingido com a morte. SARTRE expressa bem esse anseio dizendo: “O homem é desejo de ser Deus” ou melher um £m-si-Para-si. Uma plenitude (Em-si) mas, ao mesmo tempo, consciéncia ¢ liberdade (Pere-si). © Para-si ndo & substancia, € sim, auséncia de contetide ¢ para SARTRE defini-se como nfo sendo o que é e sendo o que nao é. A perspectiva sartreana aponta para um homem ¢riador de si mesmo, plena liberdade de [azer-se, projegao de futuro, de possibilidades, Ser arquiteto do préprio ser, projetar seu pré- prio modelo dignifica 6 homem ao mesmo tempo que o an- gustia, O poder-ser est associado a responsabilidade de ser, fata que pesa sobre os ombros do homem como uma carga dit qual desejaria livrar-se. Existencialismo 51 © existencialismo traz a luz uma caracteristica que tanto a cultura como o homem gostariam de esconder — 0 po- der-ser, As correntes que véem 0 homem pronto e acabado tiram dele qualquer responsabilidade e isso ocorre tanto nas correntes essencialistas, quanto no estruturalismo, As primeiras porque, ao conferir-Ihe uma esséneia, privam o homem da liberdade ontolégica da escolha do proprio ser e 0 estrutura- lismo por colocar o homem sob o doménio de estruturas in- conscientes. Todo o sistema politico, eeondmico, religioso, educacional nega sub-repticiamente a individualidade do pader-ser. Toda domi- naciio se faz através clo nivelamento que mascara os restos, os de- Sejos € os projetos em uma fisionomia tinica. A maioria dos homens se compraz em entrar nesse jogo, porque isso per- mite a eles abdicar do peso da responsabilidade de ser e de escolher. E mais facil ter alguém que diga ao homem o que pensar, 0 que sentir, o que desejar do que ele préprio esco- Iher sua vida e seu ser, Os mecanismos de dominagio tentam transformar 9 Para-st em Em-si porque se dirigem a ele como algo constitufdo, A individualidade do projeto se opde ao nivelamento, parece, entretanta, que tudo é valicdo para se libertar da angtstia, Para SARTRE a angtistia se da pela gratuidade da existéncia, pelas possibilidades que nunca se fecham, pela con- tingéneia; entretanto, hoje no mundo, a angtistia se dé também porque se nega ao homem a possibilidade de angustiar-se como ser de escofha, restando-lhe a angtistia de ser objeto. 52 Anna Maria Aiexand’e Laporte — Neusa Vendramin Volpe 2. A TEMPORALIDADE O Para-si, como ser de fissura, de brecha, de caréncia, distende-se em uma busca incessante daquilo que nao é, Esse projetar-se cria a temporalidade que tem no futuro seu atrator porque ld reside sua possibilidade. “E no tempo que o Para-si & seus proprios posstveis no mode de “ndo-ser"; € ne tempo que meus possiveis apareceni nas limites do mundo que tor- ram meu"? Para SARTRE 0 tempo € uma estrutura do Para-si, a lemporalidade io existe no mundo objetivo, sua plenitude nfio permite captar as linhas de fuga representadas pelo “ainda-ndo” do futuro eo “jd-ndo” do passado, tendo no presente o limite entre a transcendéncia do porvir e€ o trans- cendido que ja foi, O presente sera sempre o projete se tor- nando passado, O tempo € uma caracterfstica ontolégica do Para-si y que € nada é capaz de sintetizar a perma- lade, constituindo a unificagéa do ja sido do passado com © sendo presente ¢ o poder ser futuro, Essas és ek-siases que se interpenctram constituem o tempo hu- mano que é sempre unitirio. A pereepgio da temporalidade como sucessio & uma caracteristica do tempo cronolégico que o concebe como uma entidade, uma positividade. Essa concepgao procede de Aristételes que estabeleceu a célebre férmula do tempo como mumerus metus secundum prius et posterins, isto é, tempo & enumeragio, & sucessao. Essa enu- meragdo preenche formas vazias, simétricas ¢ homogéneas, Nelas a hora possui sempre sessenta minutos; os minutos sessenta porque sé um s * SARTRE. Jean Paul, O Ser e o Nada, Pelrdpolis: Vozes, 1997, p. 157. E; ancialismo 53 segundos, o tempo seria assim uma medida do movimento, da mudanga e da permanéneia. Mas como perceber a mudanga na permanéncia ¢ vice-versa? Mudangas e permanéncias nao existem no mundo mas advém a ele por um ser que sendo ainda nao é —o homem, ser das distancias ¢ das lor A concepgiio de tempo objetivo ofuscou a percepgio da temporalidade como condigio propria do homem, radi- calmente diferente da perspectiva cronolégica. Q homem cria © passado, o presente e o futuro, porque é um poder-ser ou seja, unidade que se refaz em cada uma de suas agdes. Sendo estrutura de falta, projeta-se do instante pre- sente buscando no futuro o que ainda nfo €, aquilo que Ihe falta. Por ser um ser fora de si em busca de si, o homem cria o tempo, SARTRE chamou esse processo de busea de si de circuito de ipseidede, nele a consciéncia realiza um movi- mento incessante de criagao, extrojetando-se rumo a seus possiveis, constiluindo um arco continuo que se abre para o futuro, aquilo que ela nao €, através do projeta e retorna ao presente que ja se torna passado. © que acontece quando se faz esse movimento de projeciio ao futuro? Nesse movimento © homem se dé conta de seus possiveis, de seu poder ser, ¢ entdo, retorna ao presente percebendo que para realizar seus possfveis deve transformd-los em tarefa, O trabalho estabelece a mediagéo que transforma os possiveis em realidade. O ho- mem persegue 0 ideal de plenitude visualizaco como possfveis fu- turos, essa dimensio do projeto dé sentido as coisas e apre- senta o mundo como tarefa a realizar, Sem o projeto o mundo serd excesso, opacidade. Desse modo sé 0 futuro possui forga de dar sentido ao presente ¢ revigorar o passado. O circuito de fpseidade integra presente, passado e futuro em uma unidade dinamica. Qual é, entretanto, o signi- 54 Anna Maria Alexandre Laporte - Neusa Vendramin Volpe fieado de cada uma dessas ek-stases da temporatidade? Segundo SARTRE, a expressiio “fer” um passado deve ser substituida por “ser seu proprio passado’ “Ndo hed passado salvo para un presente que sé pode existir sendo ld airés seu passado, ow seja: sé iém passado os seres de tal ardem que em seu ser esta em quesido sew ser passado, seres que tém-de-ser seu passado {...J. Somente para a Reatidade Humane é manifesta a existéncia de in passade, porque ficou estabelecido que ela tem- de- sero que &. E pelo Para-si que 6 passado chega ao mundo” .!® Para SARTRE “sou ¢ n@o sou meu passado”. Sou, porque o passado no & uma coisa que o homem tem e poderia nao ter, nao é algo que Ihe € exterior mas o afeta — 0 homem € seu passado, Nia sou, porque o passado ¢ o transcendido no homem, aquilo que se transformou em Em-si — “o passado é a totalidade sempre crescente do Eni-si que somos.” E a fatici- dade no homem que pode mudar sua significag&o mas nao seu contetido. O passado é o Em-si de um Para-si, porque € aquilo que ficou, que se petrificou de um ser que ¢ abertura ¢ poder-ser. As pessoas costumam considerar © presente um perfodo de tempo — hoje, esse dia, esse ano, entretanto, o presente nao existe, 6 0 limite entre o passado ¢ 0 futuro. O presente tam- bém pode ser considerado como presenga a, caracteristica do Para-si que pode tornar as coisas presentes porque € proximi- dade ao mesmo tempo que distancia, exterioridade e negagao do ‘Idem, p. 166. Existenclalismo 55 1-si, O “Para-si se define como presenga ao ser”, tornando presente o Em-si que esta af. “Presenca a wit ser implica em estar em conexdo con este ser por um nexa de interioridade sendo nenhune conexdo do Presente com 0 ser seria posstvel; mas esse nexo de interioridade é unt nexe negative: nega ac ser presente que seja o ser ao qual se estd presente, Caso contrdario, o nexo de interioridade desvaner-s ia em pura e simples identificagda. Assi a presenga do Para-si ao ser pressupée que o Para-si seja tes- Jemunha de si em presenga do ser camo ndo sendo 0 en ser; @ presenca ao ser é presence do Para-si na me- ‘ te dida em que este ndo é".! O Presente € 0 tempo da realizagio do projeto que jmediatamente vai se transformar em passado. A maioria das pessoas considera o presente como o Gnico tempo a sua dis posigao, por isso pensam em vivé-lo com intensidade, mas, o presente sem o futuro e o passado seria uma abstragio va: uma impossibilidade, uma vez que sd as experiéncias passadas tor- nam possiveis as presentes que por sua vez s6 se realizam em fungao do futuro. Perseguindo seu ser, o homem cria o futuro, seu ina- cabamento, sua falla faz com que se projete em busca do que nio é. Seriio deterministas as filosofias que enfatizam uma “natureza humana”, ¢ também os sistemas psicoldgicos que priorizam o ja sido como determinante da conduta, enfim que tornam o passado um elemento configurador do ser do ho- mem. Para HEIDEGGER nao € 0 passado o pélo de maior "Idem, p. 76. 56 Anna Maria Alexandre Laporte ~ Neusa Vendramin Volpe importincia da temporalidade humana mas o futuro, Para SARTRE apesar de nenhuma dessas dimens6es ontoldgicas ter prioridade sobre as outras, a énfase recairé sobre o pre- sente que € 0 “vaio de n@o-ser indispensavel a forma sintética total da temporalidade”, © homem &€ Para-si abertura presente que, sendo tempo, lem como moto propulsor o fuluro — distancia de si que almeja ser para tornar-se um si pleno nunca alcangado. O futuro é 0 que screi para em seguida ter sido, 14 residem os ideais, as buscas, as esperangas sem as quais o homem nao existiria. Por outro lado, seria erréneo creditar ao futuro sé. as dimensdes utdpicas do homem = a agio mais banal, mais colidiana, como por exemplo fazer um trabalho, comer, namorar, estudar, remetem ao projeto, ao futuro, alvo que, quando alin- gido, dé a sensagio de completude que logo escapa ao homem, porque outro desejo ou caréncia surge em seu horizonte de infinitas possibilidades. O homem, sendo falta, nunca poderd atingir em ple- nitude o futuro porque se assim fosse se transformaria em um Em-si. Concretizar seu sonho seria sua morte. O O Para-si € pois, um vazio langado ao futuro, por i jamais teré chegado a ser no presente, o que tem de ser no fu ture. "Todo o Futuro do Para-si presente cai no Passado como futuro, juntamente cam esse mesmo Para-si ” 7° Portanto, “a tenporatidade ndo é, mas o Para-si se temporaliza existindo.” * Idem, p. 182. Existencialismo- 57 3. OS CONDICIONANTES EXTERNOS DO PROJETO O tempo é uma estrutura do homem ignorada por cle como sendo uma condigio de si em relag&io com o mundo. Desde o alvorecer de sua existéncia, 0 homem preocupou-se em medir esse movimento de seu poder-ser, apreendendo-o como algo exterior a si, porque; percebendo as transformagées que ocorriaim a sua volta, achava que as coisas apresentavam ne- Jas mesmas um movimento de degradagio, evolugio, perma- néncia e sucessio. Usou entio, a “variagdo” do dia ¢ da noite, das “fases” da lua, e das mudangas aparentes do sol como mensuradores externos daquilo que acreditava em constante mutagdo e notou que esses movimentos davam re- gularidade as alteragdes por ele percebidas e assim estabele- ceu os primeiros parametros de medida do tempo. O que nao percebeu € que tanto a regularidade quanto a mudanca sio espelhos de scu modo de sere que, na auséncia de um obser- vador capaz de estabelecer conexdo nessa sucessio, a sfio fixas, esto af, cm ato, A poténcia, o nexo de passagem e aparente causalidade so caracteris da condigaa do homem. coisas “Assim a temporatidade nado é am tempo universal que contenha todos as seres, ent particular, as realidades humanas. Nao é tampoteo uma lei de desenvelvi- mento que se inponha de fora do ser. Também ndo & O ser, itas, sin, a intra-estrutura de ser que é sta prépria nadificagdo, ou seja, 0 modo de ser prdpria do ser Para-si, O Para-si € 0 ser que tem que ser na forma diaspérica da temporalidade.! ™ SARTRE, Jean Paul, O Ser eo Nada. Petrdpolis: Vozes, 1997, p. 199. 58 Aana Maria Alexandre Laporte - Nousa Vendramin Volpe Por nao pereeber que é inerente 4 sua condigéo tem- poralizar e¢ espacializar, 0 homem pode ser condicionado por elementos externos, alienando-se de seu prajeto pessoal. Torna-se entio, dominado, de maneira sutil e poderosa, por um controle externo que manipula sua estrutura interna, im- possibilitando sua verdadeira realizagao pessoal. as formas - A manipulagio do tempo se deu de v. desde a apropriagdo da vida do escravo, na realizagio de um projeto que lhe era exterior, até nas mais sofisticadas formas de tecnologia que jd podem dispensar o homem por conterem em si uma sintese superior da temporalidade humana. Por exemplo, se uma indistria pode despedir empregados em nome da produtividade, para substitui-los por uma inovagdo tecnolégica, isso ocorre porque essa tecnologia contém a concentragio de trabalho, vida e conhecimente, isto é, tempo humano. Assim em um primeira momento, a dominagiio se fez pela apropriagdo do tempo © sua incorporagiio a projetos alheios a quem os executava, Hoje a dominagao se faz pela exclusio do tempo vivo dos homens, exeluindo-os do trabalho, pela automagdo creseente que jA contém esse tempo em forma de tecnologia, As operagdes velozes dos computadores e dos sofisticados robés para 6 aumento da produgao séo tentativas fio do homem por outros de apropriagio do tempo e a expropria homens que fazem do lucro seu projeto de vida Para o existencialismo o homem escolhe-se, ¢ as ¢s- colhas se concretizam através das agdes. As agdes humanas — efetivacio de alguns de seus possfveis — possuem uni amplo horizonte de manifestagées. Para sobreviver cm um mundo, hostil, o homem fez do trabalho seu campo primordial de agio. Concentrou no trabalho seus projetos, a expressiio de sua potencialidade, de seu poder-ser, Pelo abalho o homem Existencialismo 59 se faz, criando © mundo pois é um ser de ek-stases, de tempo; é a Mmaneira que o Para-si encontra de suprir sua falta e de trans- ecnder-s¢, criando a si e dando sentido as coisas. O que aconteceré ao homem em uma sociedade onde © trabalho cada vez mais automatizado, torna o préprio ho- mem obsoleto? A civilizagio mundial desenvolveu-se através do trabalho. O homem realizou-se e realiza-se por ele e as hutas ¢ conquistas se deram para que todos os homens tivessem condigdes de sobrevivéncia, de criag&o e humanizagio — é pelo trabalho que o homeni se torna humano, Séculos se passaram para que o trabalhador passasse da escravidio para a liberdade que € também uma condigio propria de seu ser, sempre através do trabalho, seu instru- mento de dignificagdo, de mundanizagaio. Entretanto, com a aulomagdo e tecnizagéo sempre crescentes da sociedade con- temporanea, onde a economia comanda as agdes humanas, surge um gueto mundial de exclufdos — os sem-terra, sem teto ¢ sem trabalho. Como esses homens realizaréo seu projeto, como suprirao sua falta? VIVIANE FORRESTER assim desereve 0 problem: “Quando tamaremos conseiéncia de que nde hui crise, nem erises, as mrtagdo? Ndo mutagdo de tia so- ciedade, mas mutagdéo brutal de uma ci agdo? Participamos de uma nova era, sem conseguir obser- vd-la. Sem admitiv e nem sequer perceber que a eva anterior desapareceu”. © FORRESTER, Viviane. O Horror Econémico. Sao Paulo: Ed. Unesp, 1991, p. 8. 60 Anfia Maria Alexandre Laporte - Neusa Vendramin Volpe Para ela o desemprego e a morte do trabalho vieram para ficar ¢ o homem nao esta vivendo uma crise passage como querem fazer erer os governos ¢ Os “rechnopols” dos diversos paises, mas o fim de uma civilizagfo e tudo que re- presentou desde 0 momento em que arrancou 0 hominideo do estado de natureza para o de humanidade. Como o Para-si poderd realizar seu projeto no pre- sente, relegando-o ao passado para novamente projetar-se 10 futuro em perpélua busca de seus possiveis que jamais atingird? Como podera ser o que €? O que restard a ele? A violéncia? A barbaric? O que sobrard aos excluidos? Por outro lado, hé outra forma mais terrivel de mani- pulagdo do Para-si — o homem pensa que realiza seus proje- tos, entretanto, € induzido a desejar s4 o que deve desejar — 0 Para-si esquece o que é; um ser que almeja ser, para ser um escravo que ignora a propria escravidio, Aldous Huxsley percebcu essa manipulagio da falta, da caréneia humana, ao enunciar: “Os homens sempre fém o que querem e junca querent o que ndo podem ter”. Perdeu-se aqui, a dimensio da utopia, da ultrapassagem, da transcendéncia do prdéprio ser. A angiistia da gratuidade de si, soma-se também, a angdstia difusa de desejar samente o que se tem que desejar, da falta aparentemente suprida sempre por coisas que parecem arrancar o Para-si do Em-si, mas que o transformam em acomodagio sem futuro ¢ sem passado, O Para-si seré um presente imedi- atista com um projeto que nfo & seu, mas de una estrutura que o manipula e aliena de si. HA, portanto, duas formas de exclusio do projeto — uma, pela acumulagao como forma de realizagio e outra pela Existencialismo 61 impossibilidade total de acumulagio, mesmo sendo levado ao paroxismo por esse deseja. Aos que possuem ¢ se cercam de coisas restara a an- gustia difusa da insatisfagio, Aos excluidos, aqueles cuja vida € uma perpétua falta, restard a anguistia do desejo nunca satisfeito — um eterno “presente” sempre irrealizavel. Sera tratado como Eni-si, mas se conformara em ser objeto? ; O que se pretendeu mostrar aqui ¢ a alienagio do projeto por elementos externos aele e nico que o Pare-si perdeu sua condigdo ontolégica de ser temporalidade, mas que cssa con- digdo ¢ a realizagio de seus desejos e seus prdéprios desejos sio ditados por uma ordem exterior. E impossivel prever o que acontecerd a essc ser que tem de ser sua nadiftcagdo. Vv SOMOS LIVRES? 1. INTRODUZINDO OG PROBLEMA iherdade, essa palavra que a sonho humcno alimenta, que ndo hd ningwém que explique e ninguén gue nido entenda”. (CECILIA MEIRELES, in Romanceiro da Inconfidéncia) Serd a liberdade apenas um sonho, uma palavra? Por ela os homens lutaram, sofreram, amaram ¢ mataram, Madame de Roland, ao ser guilhotinada pela Revolugdo Francesa, exclamou: “Liberdade, quanios crimes se cometem ent tea neme!", O que € a liberdade? Sera uma aspiragdo jamais atin- gida pelo homem ou uma condigio de si? O ser humano é livre ou lutou, sofreu, morren e matou por uma alienag&o, uma mira- gem no deserto da vida? erdade. Eis o problema da li O homem € condicionado bioldgica, psicolégica e socialmente e, observando-se seu comportamento na vida cotidiana, na repetigio incansdvel de gestos ¢ agdes, pergun- ta-se sobre a liberdade humana. Cada homem 6 prisioneira de uma teia infinddvel de condicionamentos internos e externos que o enredam em situagdes determinadas, Analisando-se a proporcionalidade entre as agées livres e as estruturas condi- Volpe 64 Anna Maria Alexandre Laporte - Neusa Yendramin Volpe cionantes, verifica-se que, aparentemente, os determinismos ed ' ae am a liberdade. Essa simples constatagéo porém, implica C i a capacidade do ade porque revela um: ais se sobre ela — supe! na existéncia da P i AY as aga AC LON homem de distanciar-se da situagao e posic eran se o homem nfo fosse livre, nfo poderia se f liberdade. : HMLPISTIOS 86 A vivéncia da opressio, o peso dos determinismos s ‘ i iber r sfio peree- se fazem presentes a um ser de liberdade e por an ee bidos ¢ sentidos em sua dor. Para aes ane verdad i igdes ontold. s a tel alidade s&io condigé uanto a tempora ‘sont ee aa A liberdade nao é uma experiéncia magica ae : : : - 18 . , homem anula a realidade ¢ realiza de imediato seu eae Nao ocorre em um vazio, nado é uma abstragiio, ie ene Y - roj essita defy os i ‘a-s? como projeta, nec Mile a medida que o Pare-sé ‘ ae an pean, sitasgto dada, para nela escavar seus oa " a situaga t ei ee : hae seus fins, Nesse sentido, a liberdade ie ane ae ' ela i bt s dela de 5 bilitada pela faticidade, pela situagia, mas del ees ane mesmo tempo que a liberdade engendra-se no en pa a situe a ta S jetar fdo, também a situagao, a 8M rojetar e o constituido, : fae icohuoes como conseqiiéncia das agoes ues me constitui a situagio ¢ a situagao constitui a liberd < ivr i ade € con- O homem 6 homem porque é livre, albert Mees a ré6prio ser istingue de todos os s igh 1 proprio ser ¢ o dist. ; fe ort i ‘alder de SARTRE “a homem é sondeene e i a ixar de FE condenado a ser livre porque nao pode dei ser projeto, Para-si, abertura, fuga do Em-st, ia, siona e refaz Na liberdade, o homem recria, redimensiona ew 2 7 1. Em SARTRE, o peso da liberdade € tio del s8i reear O po- aul que nao ha determinismos que possam eee - Jad “Para-si serd aquilo ¢ z rque o “Para-si sera eq: ser do homem, porqu - ne eee daquilo que fizeram dele”. Portanto, para ele, Existenclalismo. dade coneretiza-se na agdo, pois é na agdo que o homem se Mostra nu, sem mascaras, despido de idealizagdes e justifica- livas, se mostra definido e expe seus motives, constituindo seus valores, Nao hd como fugir da transparéneia e auto- definigada que o ser vre revelaré em sua agao, ela represen- tard uma exposicao publica do projeto indiviclual, ¢ por isso podera ser julgada, Principalmente no grau de comprometi- Mento que traré em relagio ao projeto de libertagéo humana, que deverd estar embutide em cada projeto individual, E sempre no ato de comprometer-se com a humanidade, com o poder- ser comunitirio e Solidario que se cobrara a responsa- bilidade angustiante do homem porque escalher é sempre es- colher para todos os homens. Todo projeto individual deve conectar-se ao Projeto fundamental do homem que € a de ultrapassagem ¢ transcen- déncia continuas. Quando se age ignorando o projeto original de todos os homens e se deixa de lado a responsahilidade da agdo e da escolha, coopta-se esse projeto, ¢ coopltar o projeto €, no dizer de SARTR agir de ma-fé. Mé-fé Porque na busea de uma pseudo-realizacio individual, ignora e oprime a liberdade do outro, Por esse motive, cada a reflete uma escotha in- dividual em uma situagado conereta, mas #0 escolher-se, a homem escolhe também, a humanidade €, assim, individual ganha uma abrangéncia universal, a escofha O ser do homem engendra-se através de suas escolhas que se cfetivam na agao. Totalmente responsdvel por si, o homem angustia-se porque nfo Possui orientagdes de apoio, terd as- sim, de criar-se conlinuamente, sem esteios que sustentem suas escolhas. F jogado no mundo e€ sera sempre solitario em Suas decisées porque nao tem onde buscar ajuda, modelos ¢ exemplos que possam condu i-lo em seu caminho. ! fo ha um “Bem” a priori, nem valores eternos que Possam livrd-Lo 66 Anna Maria Alexandre Laporte — Neusa Vendramin Volpe de si. A angtistia o persegue na gratuidade de seu existir, onde percebe a infinidade de seus possfveis ¢ a responsabili- dade absoluta de suas escolhas. Cada escolha é um risco que terd que ser assumido por esse ser precirio que carrega nos ombros a responsabilidade de si e da humanidade, Ao agir, cria valores que s6 existirio & medida de sua escolha, Para SARTRE, “oe homent estd sé e sem desculpas” e@ por isso & condenado & liberdade, a ser Para-si — projeto e responsabi- lidade. Fugir da escolha € cair na ma-fé, é se perceber cons- titufdo, é se sentir vitima, é se acomodar ao “destino”, mas, felizmente ou infelizmente, o destino do homem é a liberda- de — Para SARTRE, expressées corriqueiras como; Deus quis im, cu nasei para sofrer, nfo posse lutar contra o destino, Jia posso mudar esse modelo econémico, o que poderci fa- zer sozinho, denotam md-fé, A md-fé é uma hipocrisia para consigo mesmo porque camufla a si possibilidades e respon- sabilidades. E uma mentira que se prega, em primeiro lugar. asi mesmo e, em scguida ao outro, na medida em que este & manipulado para alienar-se de seu projeto, nfo se perecbendo como ser livre, Para SARTRE, nada impede a liberdade, nem as si- tuagdes e nem as emogées, Nas situagGes condicionantes, homem continua livre porque todo o condicionamento que existe na situagio, dependerd do projeto de cada um. A erupgio de um vulefio, por exemplo, podera ser objeto de estudo para uns, de beleza para outros ou de pinico para aqueles que mo- ram em sua encosta, cada um o pereeberd de acordo com seu projeto. Ea liberdade que determinard a situagfio porque siio os objctivos do homem que farfio das coisas possibilidades ou limites. As emogées também silo escolhas livres, também fa- zem parte do projeto ¢ nfo impedem a liberdade como alguns Existencialisma rd querem fazer crer. Para SARTRE, a emogio faz parte da consciéncia pré-reflexiva e por nfio implicar em reflexio, podera dar a impressao de ser um estado que, apossando-se do homem, dominara sua conduta. Na verdade, também ela & uma escolha que buscard superar as dificuldades usando arti- ficios do mundo mdgico, como o choro, a manha, 0 riso, 0 descontrole, a ira, entre outros, pretendendo, pela fantasia, dissolver situagdes que deveriam ser enfrentadas através de agGes efelivas. A emogio, portanto, nfo é algo petrificado que, vindo do inconsciente, toma de assalto o indivfduo, mas & uma ati- tude livre na condugdo de uma situagfio. A emogiio nao ob- nubila a liberdade humana mas, 20 contrario, a reitera. Enquanto a emogao faz parte da consciéncia pré- reflexiva, a vontade faz parte da consciéncia reflexiva. Para muitos pensadores 0 ato voluntirio designa a liberdade, para SARTRE nao é assim — para ele a liberdade é anterior ao ato voluntirio — porque o homem é livre, pode querer. O homem sé pode escolher e agir, voluntariamente, porque € Para-si. O En-si €, pov isso ndo podera jamais escolher. $6 6 homem, totalizagdo em-curso, projeto em busca de fins, pode querer, refletir e escolher. A liberdade, condigio do Para-si, é vivida e assumida por cle, na angiistia ¢ no risco, Nao é facil assumir a liberdade que se € porque sempre ha a possibilidade de ser outro que nao si mesmo. Escreveu SARTRE: “Sendo a liberdade ser-sem-apoio e sem trampolinr, o projeto, para ser, deve ser constantemente renovade. Eu escalhe a mim mesmo perpetuamente, ¢ jamais « titulo de tendo-sido-encothide, sendo recairia na pitra ¢ siinples 68 Anna Marin Alexandre Laporte - Neusa Vendramin Volpe existéncia do Em-si. A necessidade de me escother per- petuamente identifica-se cam a perseguigdo-perseguida que sou. Mas, precisamente por tratar-se de unta es- cotha, essa escolhd, na inedida em que se opera, desi- gna ent geral como possiveis otras escothas. A pos- sibilidade dessas outras escolhas nado é explicitada nen posicionada, mas vivida nto seatimento de injus- tificabilidade, e se exprime pelo fato da absurdidade de minhe escatha e, por conseguinte, de mew ser, As- sim minha liberdade corvéi a minha liberdade. Sendo livre com efeito, projeto meu posstvel total, mas, com isse, posiciona o fate de que sau livre e de que posse sem- pre nacificar esse projeto primordial e preterificd-lo. Assim, no momento em que o Para-si supde captar-se e, por um nada projetade, anunciar a si quite que ele é, escapa de si, uma vez que posiciona cam & suc prdépria possthilidade de ser autro que nao si 023 MeSTHO . G homem estaré sempre em perpétuo risco, no limite de seus possiveis, de suas escolhas, de sua fuga do Eni-si, de sua busca de si, do medo da contingéncia e da finitude. Em sua precaricdade apreende seu mistéria - a cada momento terd de resgatar scu projeto ¢ sua escolha nunca serd definiti- va porque sempre podera nadificd-la porque é temporalidade e liberdade, ¢ af reside sua fragilidade e sua grandeza, 2, LIBERDADE EF VERDADE ‘cante, ao descobrir o “A realidade-humana, ve. Ser, dexcobre seu desamparo no seio da inumana. @3 SARTRE, Jean Paul. O sere o nada. Petropolis: Vozes, 1997, p. 591. Existancialismo 69 Pois a mundo é aim s6 tempo humane e inumano. FE humane no sentido do que é surgido nium mundo que nasece pelo surgimento da homem. Mas ro NNHCA quis dizer que era adaptade ao home. £ a liberdade que é perpétua projeto de se adaptar ao mundo, O mundo € humane, mas néo antropomédrfice, Em outras pala- vras, 0 Para-si apreende primeiro no ser a@ recuse silenciosa de sua propria existéncia, Cama ele é 0 Ser que nada tem a utenos que faga (condenagde é liberdade), 0 mundo the aparece primeire como aquilo em que nada é dado aa homem, aqnilo em que o homem ndo tem nenhitun lugar a menos que o tathe para si. Se o ser é excessive em relagdo ae homem, e homem € excessive em relagdo ao ser. O ser é 0 Para-si vecusado de teda densidade do ser. Ndo hé lugar para o Para-si dentro do ser. O ser & uma hipera- bundancia condensada que ndo se locupleta.™ O Para-st desamparado emerge no seio do Ser como abertura, falta, tempo e liberdade, Existe uma discrepancia brutal entre a densidade do Em-si ¢ a fragilidade do Para-vi, entretanto o Para-si é uma fragilidade forte porque & consciente dessa fragilidade. Sua fortaleza consiste em ilumin cidade desse ser excessivo, para trazer a luz suas caracteris- ticas que permitirio ao homem habitd-lo de forma menos indspita, mais suave. Para se adaptar ao mundo, o homem conhece, logo o conhecimento 6 uma de suas possibilidades, mas também, uma necessidade porque no mundo “nada & dado ao homem." ra opa- “ SARTRE, Jean Paul. Verdade e Existéncta. Ria de Janciro: Nova Fronteira, 1989, p. 73. 70 Anna Maria Alexandre Laporte - Neusa Vendramin Volpe lidade do conhecimento e por A agio livre é a pos conseguinte da verdade. A pergunta sobre a verdade acompanha o homem na mundo - aparece com o surgimento da realidade-humana e portanto, da hisiéria, O homem por ser projeto, temporalidade e liberdade busca seus fins ¢ posiciona-se como ex-sistente, como diaspérice ¢ nio como ser, Em seu projeto cesvelador o Para-si é agente de sua histéria, nao ha um Dews ov uma sociedade perfeita como destino incxordvel da histéria porque se mo fosse, o homem nao seria livre. Nio existe um fim da historia a ndo ser na perspectiva da finitude e da tempeorali- zagio humanas, Portanto, © ser esta ai e instiga o homem a ilumind-lo, mas sua iluminagio depende do querer humano porque o Para-si € livre para trazé-lo A luz ou nico, A forma do Para-si iluminar o ser é 0 conhecimento, porque a origem do Para-si & a ignorancia, sem o nio-saber, o Para-s via By é no buscar perpétuo que o homem € aquilo que é— 6 “tirar o ser da noite do ser” — iluminagiio. A verdade sera, portanto, uma luz que ehega ao ser pela conseiéncia, a abertura afetada pelo ser que o ilumina. A verdade € a pre- sentificagdo do ser, € o ser iluminado em relagao ao Para-si. Segundo SARTRE o ser € a noite, e o homem, ao desvela-lo, ilumina o Em-sf que se transforma em outro sem deixar de ser Em-si eo homem nessa agdo transforma-se em sujeito. Nfio existe, portanto, um sujeito a prieri e um objeto-mundo, mas uma mdtua pertenga entre Para-si ¢ Em-si — a presentifi- cagio ¢ a iluminagfo. A verdade € pois. a histéria do homem afetado pelo ser e este iluminado pelo homem, Ela nio é ab- soluta ou relativa porque o ser se desvela yelando-se: a ver- dade no € uma representagdo légica, mas a manifestagdo do ser “como wn hd" na historializagio da realidade-humana — ir endo o existe o ser” — “a esséncia da verdade é a e Existencialisma A nio ha um objeto a ser apreendido por um sujeito, mas um eclodir de mundo ¢ homem imbricados um no outro. A ver- dade niio deve ser propriedade de um tinico homem, ela é dom que deve ser comunicado a tados os homens e af reside sua “ebjetividade” — um “sujeito” (capacidade desveladora) traz & luz um Ew-si surgido a si e sua aparigdo se comunica ao outro que o devolve como objeto. Para SARTRE, © ideal da verdade é que todo o Ser seja iluminado, entretanto o homem busea esse ideal sem jamais atingi-lo, porque assim se transformaria em um Evr-si- Pare- si (Deus). Para ele, a verdade nao adyém como queria HEGEL, se ela adviesse teria um fim que determinaria o ho- mem e ele nao seria livre. A verdade sartreana é adveniente e quando termina de eclodir, morre, mas nado se torna falsa, torna-se indeterminada, € uma lei, esté morta como desvel: mento, mas serve de “estrutura evidente « priori de fatos” ¢ pode ser retomada, criticada e modificada pelas geragdes sub- seqiientes que devem ir além dela em um novo desvelamenio — verdade é viva enquanto for iluminagio. As tradigGes religiosas tendem a ligar a verdade a eternidade (verdade morta) eriando preccitos, leis e dogmas eternos, impossibilitando assim, a condigaéo humana de des- velamento, de busca do ser e¢ de si. Alguns sistemas econd- micos € polfticos também mantém verdades perenes em seu prdéprio beneficio tentando transformar o Para-si em ser apa- lico, alienado e escravo porque “a passibilidade da verdade é a liberdade e a possibilidade da liberdade é a verdade”. O homem portanto, pode escolher o risco do desvela- mento e 6 compromisso com a verdade desvelada e sua doagio ao outro, ou as verdades mortas e petrificadas ; pode escolher o 72 Anna Maria Alexandra Laporta ~ Neusa Vendramin Volpe nio desvelar ou o manter-se na ignorfncia ou ainda manter a todos na ignordancia ¢ na mentira. Como o homem busca o ser na agéo desveladora como liberdade & projeto, é antecipagiio porque se o € futuro, ele é langa para o futuro escalhendo, em sua maneira de ser, como comprometer-se no desvelamento. No conhecimento, “ndo vemos nada que nda tenhamos primeiramente do e esta an- previsto, mas precisamente, esta previs tecipagdo ndo podem ser elas mesmas dados puros: ado podem vir a nés do fundo de nossa mendria, evocadas pelo lage purdritente nectnico das associagdes, ndo poderiam vir a nds da fundo de futuro, enviadas, emitidas conio particulas de futuro por ndo sei qite Deus, pois entdo estariamos abrigades a decifra-las por meio de aoevas hipoteses. E preciso, a todo o custo que sejamos nossa préprica hipdtese, au seja, gue nds a vivamas como wn comporiamente anteci- pador e revelador do objeto encarado”.? Portanto, para conhecer, o homem teré que prever ¢ ver o que quer desvelar, e é sua ago que faz surgir a verdade porque, ao prever, pode acertar, errar ou suspender a previsdo. As previsdes sido as hipdteses levantadas na tentativa da busca da verdade; nessa tentativa, o homem poder decidir nfo desvelar ¢ também poderd se enganar e errar, O no des- velar & possibilidade do homem que é liberdade e errar “é dizer do ser aquilo que ele nde é”. A verdade é pois, sempre co de erro, mas nao arriscar é abdicar da condigio de Li- * SARTRE, Jean Paul. Verdade e existéncia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 36-37, Existencialismo. 73 berdade. Desvelar uma verdade é comprometer-se com ela, é comunicd-la ¢ arriscar-se ao erro, O conhecimento advém pois, pela liberdade e esta pela agdo — 0 exemplo de SARTRE é ilustrativo: “a crianga por nda fazer nada, nao sabe nada, ela aprende a medida que fi Ignorar & sempre possibilidade de saber e errar é possibilidade da busea da verdade. © erro, segundo SARTRE, vem sempre de fora a realidade, € a possibilidade de ps abandonar o processo de verificagdo de qualquer experiéncia, war Ou Para SARTRE, portanto, a liberdade & o resultado de um projeto individual cujos fins devem buscar a verdade, ¢ escolher a verdade do ser é cr valores que amplia estreitardio as possibilidades de todos os homens, Portanto: fio ou “Querer a verdade é preferir o Ser a tudo, mesmo sob uma forma catastrdfica, simplesmenie porque ele é. Mas ao mesmo tempo é deixd-lo-ser-tal-quat disse HEIDEGGER". como A reflexfo heideggeriana sobre a verdade, também tem a liberdade como fundamento — “A liberdade é a prdépria esséncia da verdade”. Em seu trabalho sobre a Esséneia da Verdade, HEIDEGGER caracteriza o que a liberdade no &, 0 que a liberdade ée quais suas conseqiiéncias em relagdo & verdade. A liberdade, portanto, no ¢ algo que se manifesta oca- sionalmente e que permite a escolha por isso ou por aquilo; também nao € a auséneia de constrangimento referente ds pos- bilidades de ag&o ou inagio: também nfo consiste na dis- ponibilidade para uma exigéncia ou necessidade. “Liberdade idem, p. 55. 74 Anna Maria Alexandre Laporte — Neusa Vendramin Volpe € e abandono ao desvelamento do ente como tal”, E o deixar ser do ente ¢, assim compreendida, constitui-se na esséneia da verdade, sob a forma de desvelamento do ser. "O homem néio possi a liberdade como uma prepri dade, mas antes, pelo conivdrio: a liberdade, @ ser- at, ek-sistente e desvelador, possui 0 homen”. Tanto para SARTRE como para HEIDEGGER, a liber- dade possui o homem porque € sua constituigao ontoldgica, como ser de abertura, clarcira, ek-sisténcia e presenga. Para HEIDEGGER, a abertura ao ecladir como presenga, sc vé talada no scio dos entes com os quais se ocupard. Essa abertura expressio de liberdade, manifesta-se simulaneamente posigio, compreensa&o e discurso. humana: como A disposigio se dé como tonalidade afetiva, de humor, constante na presenga, ela se origina de sua insergao, de seu estar langada em um mundo determinado que a afeta. A com- preensio € a abertura em seu poder-ser. Os objetos, os manuais, as coisas revelam-se solicitadas pelo projeto, pelo estar cm canstante busca de ser ¢ do realizar-se do homem. Este poder ser, procura efetivar-se através das possibilidades oferecidas pelas coisas ¢ € nelas que, freqiientemente, a presenga busca a compreensio de seu proprio ser. O discurso caracteriza a abertura enquanto articulagao significativa da compreensio ¢ da disposigdo do ser-no-mundo. O discurso expée assim, a vivéneia anfmica e compreensiva nao articulada em palavras, transformando-as em linguagem, Essa linguagem, em sentido amplo, expressa-se nfio sé coma fala, ciéncia, filosofia, mas também em todas as formas de arte. HEIDEGGER, Martin. Sobre a esséncia da verdade. Os Pensado- res, SA0 Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 139. Existencialismo is A liberdade da presenga encontra-se instalada ¢ vin- culada aos demais entes que aafetam ¢ com os quais se ocupa, visando 0 poder- ser. Como clareira, luz ¢ abertura, cxibe ¢ manifesta as coisas, estabelecendo, assim uma relagao entre a liberdade e a verdade. Esse “destina” do Dasein se expressa no “foges” que, segundo HEIDEGGER em Ser e Tempo, & verdadeiro na medida em que é “deixar ¢ fazer ver o cnte em seu desvelamento, retiranda-o do velamento”. Em sua liberdade, a presenga expde o ser a luz ca verdade ¢, entéo, comparada por HEIDEGGER a um roubo, porque neta o ente é arrancado, reti- rado do seu velamento. Essa “invasdo de privacidade", esse retirar os véus e des-velar, 6, portanto, um desnudar para manifestar o velado, Escreveu HEIDEGGE “Serd por acaso que os gregos se prommeiaram sobre a esséncia da verdacde, valendo-se ce wre expressdo privada a-letheia?"** A liberdade € entendida entio, como deixar ser o enle, & permilir que ele se manifeste em sua abertura, que é a esséncia da verdade, € isso que da origem ao homem histor Para HEIDEGGER, a histéria humana inicia-se quando “o primeira pensador & tocado pete desvelamenio do ente e se perguuta pelo que é o ente™, essa interrogagio que busca desvelar o ente em sua totalidade, marca o inicio da histéria ocidental. Essa histéria se caracterizaré pela alterndncia entre velamento ¢ desvelamento porque como a liberdade € a es- séncia da verdade, ela poderé no permitir que o ser seja assim como 6, naquilo que é. Quando isso ocorre, a aparéncia é& quem passard a dominar ¢ 0 ser é dissimulado e encoberto, “ HEIDEGGER, Martin. Sobre a esséncia da verdade, Os Pensado- res, SAo Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 140. 76 Anna Maria Alexandre Laporte — Neusa Vendramin Volpe portanto, a liberdade que é descoberta do ser, podera ser assim seu encobrimento. A maioria dos homens, em seu cotidiano, movem-se entre o que € conhecido ¢ direcionam-se entre os enles reve- lados. Dessa maneira, desaparecem as perguntas, as inquietag6es & indagagées a respeito do ser porque, aparentemente, tudo esta explicado ¢ respondido. Assim, a vida torma-se mondtona e os comportamentos sempre repetitivos porque o mistéria, que é © que incila a curiosidade e 0 encantamento, se vela dando lugar & rotina, Nesse contexto, as necessidades mais imediatas € que organizam os projetos, os cilculos e a medida do ho- mem. Por ivonia, a dissimulagao do ente serd maior, la onde seu conhecimento é tido como mais assegurado, 14 onde o olhar © apreende petrificado em uma dimensio cientffica que preten- de esgoti-lo, HEIDEGGER chamou de errancia, esse vaivém do homem correndo de um objeto a outro da vida cotidiana, afustando-se cada vez mais do mistério, porque a errancia participa da constituigao intima da presenga: “O erra se estende desde 6 mats contun engano, inad- verténcia, erro de cdleulo, até 0 desgarramento @ 0 perder-se de nossas atituces ¢ decisées essenciais. Aquilo que o habito e as doutrinas filosdficas chameam de erro, isto é, a nda conformidade de juizo ¢ falsi- dade do conhecimento, € apenas un modo eo mais superficial de errar’” Portanto, na vida desse ser original que é 0 homem, a mesma liberdade que vela ¢ encobre os entes, se percebe de 3 HEIDEGGER, Martin. Sobre a essénela da verdade. Os Pensado- res, S40 Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 143. Existencialismo 77, tempos em tempos, boquiaberta diante da totalidade do mun- do e pressionada por seu mistério, se perguntarsé sobre o ser dando origem a novos tempos. onde, ao pensar sobre o Ser, 0 homem recobrard sua autenticidade de ck-sitente, 3. A LIBERDADE E SUAS DECORRENCIAS ETICO-POLITICAS E possfvel fundamentar uma ética depois da descons- trugdo de todos os fundamentos? Para SARTRE, a Gtica se fundamenta na liberdade do homem ¢ na responsabilidade radical inerente a seus atos livres. Suas idéias pautaram sua vida, Filésofo engajado em todas as lutas politicas de seu tempo, foi o Unico pensador respeitada e ouvido tanto por operdrias quanto por estudantes na revolta de maio de 68 ¢ seu livra O Ser ec 0 Nada se transformou em biblia para seus alunos. Suas preocupagées com a homem & os caminhos por ele trilhados, sua capacidade de participag a coragem de, publicamente, mudar de idéia ¢ de posigio quando percebia que determinadas posturas e ages levariam a escraviddo do homem, in me inspiram respeilo e ad- miragfic. Disse dele DE GAULLE - “Néo se preade Voltaire”. ‘Os problemas mundiais hoje, clamam, urgentemente, por um pensador comprometido como SARTRE — por um “companheiro de viagem” doe Alguns autores situam HEIDEGGER ao largo da questiio ética porque sua preocupagiio se concentrou no Ser; outros ten- tam mostrar que seus escritos deram margem ds idéias nazis Entretanto, sua preocupagio com o esquecimento do ser e suas implicagées no desenvolvimento da técnica moderna, assinala- ram_o caminho inexerdvel seguido pelo mundo ocidental ¢ apontaram para a possibilidade de uma ética.Quando se pensa nos problemas do mundo hoje, pereebe-se que “a physis” esta wid Anna Marla Alexandre Laporte ~ Neusa Vendramin Voips sendo agredida e esgotada em nome do progresso, que os homens es sem emprego em raziéo da nova ordem mundial ¢ do avango da tecnologia, que a ciéncia € manipulada por interesses de pafses e grupos de capital privado para criar armas cada vez mais sofisticadas, que o mundo esta se cel cando de engenhocas atémicas prontas a explodir, como ex- plodem as lutas aqui e ali, O homem vive acuado e perpassado por uma angdstia difusa com medo que, de repente, tudo va pelos ares. Serf que HEIDEGGER foi profético? A hist6ria humana foi e ainda é uma luta pela cons- trugdo de espagos de liberdade, onde todos — pessoas € povos — possam realizar seus projetos. O desafio do homem contempo- rineo, na construgiio desses espagos livres, implicard na escolha que fizer dos valores éticos que os nortearao. Em HEIDEGGER a questao ética foi preterida frente A questo do Ser, O maior compromisso do Dasein, Ser-f é com a escuta silenciosa e a iluminagao do Ser. O Dasein, Pastor do Ser, pauta sua vida no cuidado que zela o Ser, dei- xando-o ser e ao fazé-lo zela por si, garantindo a si mesmo a autenticidade. O outro aparece de mancira secunddria mas presente, porque o ser-af é sempre Mitsein, Ser-com. O ho- mem ocupa-se com as coisas e preocupa-se com os oUlros. Como ser-no-mundo, percebe constantemente, & sua volta, in- dicios que o remetem ao outro — Todo instrumento traz consigo o outro que o fabricou ¢ a quem se destina: “o campo" onde passeamos pertence a alguém e é por ele mantido em ordem, constituinda-se num vinculo que une permanentemente o ser- ent ao ser-com, HEIDEGGER earacteriza como “deficiente” o modo de relagiio cotidiana com o outro, nela a preocupagdo se dé com a Existencialismo 7 percepgao indifereme da presenga do outro, com um nilo sentir-se tocado por sua existéncia. Em seu modo positive de ser-cesi, onde se percebe e se é afetado pela presenga do outro, “a preocupagdo possui duas posstbilidades extremas. do autre e tomar-the 0 lugar nas ocupagdes, strbstituinde-o, Essa preacupagdo assume a ocupagdo que o outro deve realizar... Nessa, preecupagde a oro podera tornar-se dependente e dominado, mesmo que esse dominio seja silencioso e permanega enceberto para o dominado”.” Ela pode, por assin dizer, retirar e “cuidado Existe porém, a possibilidade de uma preocupagia que nfo substituird o outro, mas se antepord a cle, Nela, a preocupagao ajudard o outro a tornar-se transparente ¢ livre em scu ser-tarefa no mundo. A preacupa Issim caracteri- zada, nfo quer a dependéncia ¢ a dominagio do outro, mas a liberdade que the abrird a condigio para uma vida auténtica. O dominio na relagio ¢ comprometimento com o outro torna-se esmaecido, empalidece se comparado ao vigor com que HEIDEGGER analisa a relagdo entre a presenga-ser-af e o Ser. Essa reflexto do Ser pode, por derivagdo, dar pistas para © tratamento da questio ética, jf comprometida entretanto em sua base, pela opgao que privilegia o sere coloca a questio do outro em Um patamar de inferioridade. HEIDEGGER, ao realizar a “destruigdo” propedéutica da metafisica ocidental, o faz situ- ando-a nas bases sacralizadas por essa cultura — a cternidade, A filosofia no Ocidente desenvalveu-se sob a recusa da tempo- ralidade. Buscou-se, sempre, 0 eterno, 0 imutdvel como fun- * HEIDEGGER, Martin. Ser @ tempo, Vol. |, Rio de Janeiro: Ed. Vozes. 1988, p. 174. a0 Anna Maria Alexandre Laporte — Neusa Vendramin Volpe damento da ontologia, da teoria do conhecimento e da ética. O tempo, responsdvel pelo fluxo, movimento, mutagao ¢ doxa, nfo trazia seguranga para garantir conhecimentos e valores universais capazes de fornecer diretrizes 4 agio humana. Com HEIDEGGER esse posicionamento € radicalmente modificado, o homem, tempo que unifica o ser-em, ao vigor de ter-sido que pode-ser, nio possui outra perspectiva a ndo ser a da tempo- ralidade. Seu modo de ser nfo the da acesso ao eterno, ao in- finito, ae imutdvel; como temporalidade, so lhe € permitido entrar em contato com o mundo sob a perspectiva da finitude e, 6 sob essa perspectiva que ele poder ser, conhecer ¢ agir no mundo, Finitude, entretanto, nfio significa relatividade de conhecimentos, de valores, mas o tinico prisma pelo qual esses va- lores e conhecimentos serao filtrados pelo homem. A finitude coloca o poder-ser do homem sob os “olhares da marte” — mortalidade e finitude sic sindnimos ¢ marcam as possibilidades e r gdes em sua aventura pela existéncia, Se a morte € limite, é limitando que ela inscreve possibilidades e¢ urgéncias, O poder-ser diante da morte nio possui a cternidade como fim, sua distensiio temporal diz a todo instante, para os que ainda podem ouvir, que a morte os pode pér fim a seus projetos ¢ que, portanto, faz-se ser espreit necessdria uma selegdo de prioridades e valores no pode humano, A finitude esboga assim, uma ética humana sem fundamentos absolutos, uma ética ligada & contingéncia do desyvelamento/velamento do ser em cada home e em cada cultura, Para aqueles que nao se fecharam a seu apelo, é a finitude que apresentara o caréter urgente de selego de valores ao poder-ser do homem. Outro esbogo da questio ética em HEIDEGGER diz respeito ao compromisso do ser-af-abertura, em morar na proximidade do ser, zelando por seu desvelamento, por sua Existencialismo ay possibilidade de manifestagio, de apresentagao — 84 4 medida que o homem se faz disefpulo do ser, escutando-o ¢ interro- gando-o, € que a liberdade terd possibilidade de aparecer no mundo. Freqientemente, o homem se perde nas lidas do coti- diano, na distragio e¢ no falatério que esquece o ser, frustrando e empobrecendo 0 acontecer do ser e em conseqiiéncia 0 ser- do-homent-no-inuitdo, ‘Outra possibilidade de uma dimenséio ética em HEIDEGGER &€ a que liga a existéncia 4 culpa, revelando o cardter trigico da vida humana, A culpa nasce poryue o ser dividido cntre o estar langado no mundo como poder-ser, com infinitas possibilidades, € perpassado continua- mente, pelo nde-poder-ser-mnais da morte, “O ser enlpado do Estar-ai uo sentido de ser oe fun- damenio sem findamento, também dado ne resolugdo, undo pode de maneira algama ser remediado. Ele estd pre- sente ent cada situagde como sinal de negatividade origi- ndria do fundamento do existir. Momento consti- tuinte da faticidade do ser Inumano, do seu estado de langado no mundo e no ser-para-a-morte, a culpa na sua origem, é da origem, Ela é um peso que resulta da prépria estrutura iemporal do funcdamente cindido do Estav-af. De onde se segue, que, uo tempo funda- mental, nde é possivel ao homem auto-fundar unra vida que seja feliz” A culpa € constante a um ser aberto a totalidade de seu poder-ser porque também tem que conviver com a preca- riedade de seu estar langado no mundo, os condicionamentos * LOPARIC, Zéliko. Heidegger réu: um ensato sobre a peculiosidade da filosofia. $40 Paulo: Papirus, 1990, p. 187, 82 Anna Maria Alexandre Laporte — Neusa Vendramin Volpe que dele decorrem e uma inegocidvel finitude. Como conciliar 6 poder-ser com um Ser-em @ um ja nao poder-ser-nrais? Para SARTRE, a liberdade mesmo sendo condigio de cada homem pelas escolhas individuais de seus fins, afeta todos os homens, pois as escolhas efetivadas nas agGes trans- formam-se em meio de liberlagio ou coergio para todos. Dessa forma, 0 homem seré sempre, radicalmente, responsdvel pelas escol que fizer, em todas as situagGes de sua vida. Escolher-se & escolher uma imagem de homem e de mundo pela qual o indivfduo se torna responsdvel, Essa responsabi- lidade ¢ tio dolorosa, tao diffcil de ser sustentada que, deses- perado, o homem tenta eximir-se da liberdade e da responsa- bilidade da escolha, buscando esteies, amparos ¢ sinais, até descobrir, quando o faz, que cada escolha € uma escolha so- ilidade intransferivel. litaria de respon ingularidade e na © desamparo do homem reside na individualidade da escolha que o coloca sempre como nico frente a uma siluagao tinica que, entretanto, é universal. ase furtar & escolha e suas conseqiiéncias, o ho- mem cria artificios, como respaldar-se no senso comum cbe- decendo a valores ¢ prdticas jd institufdas, colocar-se sob a tutela de uma autoridade, querer a ignorfncia, acomodar-se a uma situagiio e mentir, alienar-se, esquecendo que, ao utilizar esses subterftigios, estar sempre exercendo sua liberdade de escolha. Ser livre e agir como se nao o fosse, buscando fora de si o fundamento das escolhas e a automdatica isengdo das res- ponsabilidades, € o que SARTRE chamou de ma-fé. Ele dis- lingue entre mentira e maé-fé. Na mentira ha o conhecimento da verdade ¢ o desejo de enganar ao outro; na ma-fé a mentira Existencialismo 83 € dirigida a si mesmo e € perpassada por uma ambigitidade, onde quem engana é a mesma pessoa que € enganada. Em suas anotagées sobre a verdade e a liberdade, SARTRE disse procurar a moral de sua época, Essas anotages, escr em 1948, podem ser tran: is para a atualidade. Hoje, também se procura uma élica que dé conta das grandes transformagdes € ses softidas pelo mundo. A grande questéio levantada por SARTRE, quanto ao problema da liberdade e da verdade, é a questao da agao livre e suas implicagdes, Hoje, a liberdade é, aparentemente, buscada de todas as formas — no sexo, nas drogas, no consumo, na velocidade, na afirmagdo da individualidade, nos esportes radicais e por- tanto, na alicnagdo. Ninguém se compromete na busca de si mesmo, de uma sociedade melhor, mais soliddria ¢ verdadcira. Essa breve problematizag4o indica que mesmo ao expressar a liberdade almejada, 0 individuo nao percebe que essa liberdade & modulada socialmente, & o perimetro de possibilidades que uma sociedade oferece para que ninguém mude ou fira seus interesses e valores constitufdos, Essa liberdade permitida por determinada socicdade, difere em cada época, e & garantida pela organizagao de um consenso social que dita o que € li- berdade, onde buscd-la ¢ como vivé-la. Esse consenso obnu- bila a busca da agio livre comprometida com a yerdade do ser. A liberdade, em primeira lugar, deve implicar a verdade porque € a liberdade do desvelamento. Desvelar o ser € dé-lo 4 luz, € mostra-lo ao mundo naquilo que ele revelou de si a uma subjetividade. Ao desvelamento, etapa subjetiva da ver- dade. segue-se o dom onde o desvelado é doado aos outros para que possam verificd-lo ou nfo. Aquele que desvela é co- rajoso porque se compromete com o Ser, assumindo os riscos de sua revelagio. 84 Anna Maria Alexandra Laporte — Neusa Vendramin Volpe Na época de SARTRE, como hoje, o mundo Ado mu- dou muito em relago & questao da liberdade — 0 problema crucial continua sendo o da responsabilidade e 0 da falta de comprometimento nas agdes. A liberdade € uma liberdade vazia pela auséncia de compromisso com a verdade e com a responsabilidade que isso implica. Essa forma de liberdade se exime do compromisso com o Ser, quer os fins sem pass pelos meios que o realizam. Mesmo essa liberdade vazia e imedi- atista € uma forma de liberdade porque o homem € ontologi- camente livre, mas, ao querer os fins sem passar pelos meios, m0, caindo no imediatismo das solu- reforga secu egocent goes faceis que esquecem a verdade do ser que se expde em uma dada situagio e exige ser reconhecido. O reconheci- mento do Ser, portant, constitui a liberdade como possibili- dade de atuagio real no mundo. Abdicar do ser ¢ de sua wer- dade empobrece a liberdade, trans ‘ormando-a em voalunta- rismo do querer narefsico descompromissado. Essa liberdade yazia € a liberdade veiculada no mundo de hoje, € essa liber- dade quem cria os valores atuais. Para SARTRE, os valores nfo existem “ex homini’, em um céu cterno ou em uma sociedade definitiva, mas re- sultam das agdes humanas no nundo — € 0 homem quem cria seus valores e os escolhe para todos 08 homens — eis af o seu compromisso inalienavel. Os valores que circulam no mundo contemporaneo resullam da desapego ao ser € do apego as coisas. Em tal mundo o lucro € 0 valor maximo porque per- mite o acesso veloz As coisas. O “Grande Irmio”, aparelho burocrético manipulador de informagées, manipula a falta, a earéncia constitutiva do Para-si, preenchendo-a com objetos, banalizando assim, a densidade ontolégica, a profundidade humana da falta. Sendo o lucro o valor instalado no apice da pirdmide das escolhas humanas, todos os outros valores a cle Existencialismo 85 se subordinarao, gerando uma abundancia pobre para uma Minoria (auséncia total de sentido para a vida) e a miséria eivada de violéncia para a maioria. A auséneia de uma educagio para o comprometi- mento com a mediag&o do ser e a responsabilidade para com o outta e a difusio massificada do lucra e do consumo de coisas como valor, constituem um solo fértil para que germine a mentira e a md-fé nas relagdes pessoais, politicas ¢ sociais. Essa auséncia de educa compromissada com a verdade ¢ a liberdade, mantém a maioria na ignorincia, produzindo um estreitamento das consciéneias que afetaré as subjetividades em relagdo ao mundo, impedindo-as de reconhecer a singula ridade dos projetos pessoais (escraviddo} ¢ mergulhando-as em fins exteriores ao prajeto humano de libertagia e realizagiio, Para SARTRE, uma sociedade que esquece 0 Ser ¢ sua verdade, vivera na mentira e na ma-fé. Para cle, a mentira é ber da verdade e guardd-la para si, apresentando-a aos outros de forma falsificada, para ludibrid-los. Essa maneira de es- camotear a verdade € usada como estratégia na defesa de in- teresses pessoais, de grupos, pafses e pessoas ocullando o verdadeiro objetivo de suas agdes, Essa pseudo- ade é entio, um artificio utilizado como maneira de cooy a li- berdade dos outros, submetendo-os a fins esptirios. Exemplos nao faltam: — mente um candidato que se elege defendendo um plano de governo € passa os anos de seu mandato apli- cando uma ideologia totalmente contradiléria A sua proposta inicial. Nao admite idéias que divirjam das impostas pelo grupo politico que o apéia, diz-se o grande moralizador dos costumes ¢, entretanto, alia-se a partidos politicos fisioldgicas e nepéticos. Usam de ma-fé aqueles que, subordinados a esse lipo de governante, se enganam fingindo acreditar que sua proposta inicial esta senda cumprida, quando sabem perfei- er 86 Aona Maria Alexandre Laporte ~ Neusa Vendramin Volpe tamente que cla sé existe no “falatério” indcuo do lider, mas é constantemente, desmentida por suas agées. Porlanto, todas as agdes que nde visam o Ser, que niio se arriscam em seu desvelamento ou que o desvelam apresen- tando-o de forma mentirosa, que usam a liberdade em proveito préprio ignorando as responsabilidades sociais, que escolhem projetos despidos de valores para a libertagio progressiva do homem e das estruturas que 0 oprimem, scrio vazias, pobres ¢ diminuirao o ser do homem, O poder-ser humano, estrutura da presenga do Para- i, expressa a dignidade ontolégica de um ser livre ¢ respon- sdivel pela construgio do préprio ser. Essa estrutura de falta no entanto, da brechas a preenchimentos inadequados & sua caréncia que é a caréncia do Ser. As formas oferecidas pela sociedade nesse sentido, s4o, na maioria das vezes, lesivas ¢ debochadas quanto a grandeza do: 8 propostos pelo pro- jeto humane. Uma dessas formas & a competitividade, exal- tada como mola propulsora do desenvolvimento social e hu- mano. Nela, o homem afirma seu poder-ser através da con- quista de determinado objetivo. A competitividade é um defeito so- cialmente modelado e € apresentada como qualidade na soci- edade da exceléncia do “self made man”, onde os fins, ma- quiavelicamente, sempre justificariéo os meios. O que inte- ressa & vencer a todos e chegar ao objetivo proposto, Como os meios nfio importam, j4 que o outro € aquele que se deve sempre derrotar, ele sera visto como um inimigo — o obstd- culo que se antepée ao projeto do cencorrente, O chegar LA, ser o melhor, o mais competente, o mais agressive, o mais sagaz, 0 primeiro, o vercedor implica em passar por cima dos projetos dos outros, em derroté-los impedindo seu poder- ser, o que redundaré em uma guerra de todos contra todos. Nesse caso, a vivéneia de possibilidade, de liberdade, de po- der-ser, parece ser gralificada, sé que n&o é traduzida pelos Existanciallsmo 87 verdudeiros fins dos projetos de cada um. A competitividade gera relagées sociais amargas, sem solidariedade e sem fra- idade permeadas por agées, muitas vezes, mentirosas ¢ fraudulentas, mas capazes de conferir o troféu “ao melhor”. Convivendo com seus paradoxos — a transcendéncia e a faticidade, a liberdade ¢ a situagdo, o Para-si eo Eim-si, 0 projeto e a finitude, o homem 6 colocado, constantemente, em xeque porque terd que fazer de cada uma de stlas escolhas uma opedo pela liberdade ou pela md-fé e, ao mesmo tempo, tera que imprimir a marea dessas escolhas no humano e na saciedade. Para SARTRE, © homem, ao confeecionar a tapegaria social, nela estard sempre, imprimindo a sua face com cores ¢ formas que projetarfio a sua possibilidade ¢ as possibilidades de to- dos os homens, mas, ao construir o mundo, deverd trazer im- pressa nele a responsabilidade do artista pela obra de arte, isto € a vida que iré desenhando com a participagio de toda a humanidade VI A RELACAO, UM DUELO DE OLHARES? 1, O MEU OLHAR E O GLHAR DO OUTRO. “Como estamos constantemente ein presenga de outros, mesmo no moniento em que nos deitamos e eit que adormecemos, como outro estd lé sab a forma de ob- deta (se estou sé ent men quarto, sob a forma de wm chamado, de wna carta sobre minhe escrivaninha, da limpada que foi feita por algwém, do quacro que fot pintado por alguém, em suma, sempre o outro estd ld e ine condiciona) minha reagéo que nde é€ apenas minha reagdo, mas uma reacdo condicionada por outros des- deo nascinento é uma reagdo de cardter moral".~ O problema do outro é uma discusséo que apareceu tar- diamente na filosofia, O outro era pressuposto, come o mundo tam- bém o era, mas nio tematizado. Foi o existeneialismo, a partir da perspectiva da consciéncia intencional, que se dedicou a andlise dos vinculos que ligamt o humano ao outro no eontexto do mundo, SARTRE e HEIDEGGER estabeleceram uma relagio direta com 0 outro. Para SARTRE, 0 Para-si 6 Para-outro ¢ para HEIDEGGER, o Datsen (ser-ai} & Mitsein (ser-com)., O ser-comt-o-outro & portanto, também uma condigio onteldgica “ SARTRE, Jean Paul. O testament de Sartre. Porto Alegre: LPM, 1986, p. 32. 90 Anna Maria Alexandre Laporte — Neusa Vendramin Volpe do Para-si que € langado no mundo onde existem os outros. Para ambos, o reconhecimento do outro independe de um co- nhecer que o mostre como humane, O mundo ¢ compartilha do por todos os homens e ha indicies da presenga do outro em toda a parte. Nao ha necessidade de raciocinio para que um homem perceba 0 outro como diferente de si e das coisas. O outro irrompe no mundo como “consciéncia que eu nao sou", irrompe como outro projeto, outra liberdade, como ex- terioridade absoluta que € limite ao meu projeto e a minha liberdade, A grande originalidade de SARTRE residiu em anali- sar a relagio do alhar do outro sobre mim e n&o sé a minha perspectiva sobre o outra — “O outre é @ mediadar indispen- sdvetl entre mim e mim mesmo: sinto vergonha de mim tal como aparece de outro, E, pela aparigde mesmo do outro, estou em condigdes de formular sobre mim um juizo igucl ao juizo sobre um objeto, pois € como objeto que apareco ao autro”.“* O que significa o Ousre ser o mediador entre mime mim mesmo? O Para-si seria incapaz de formular um juizo sobre si sem a mediagio do outro, pois somente o Ourro & eapaz de observé-lo de fora de sua prépria experiéncia e vé- lo como objeto, O Para-si deseja, ardentemente, a posse de si que existe no Outre, O Outro possui uma parte de mim que nfo tenho e desejo ter — uma compreensio objetiva de minha subjetividade, Essa compreensao esta distribuida entre todos os que me cercam ¢ eu gostaria de sinletizd-la, vendo-me objetivamente, como os outros me véen. Embora o Outro seja condigio ontolagica do Para-si, existe uma impossibilidade de conhecimento e de relagao que ® SARTRE, Jean Paul. O sere o nada. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 290. Existencialismo or seja verdadeiramente satisfutéria entre mim e o Outro. As relagGes se fario sempre pelo canflito porque ou sou olhado pelo Oitro e me transfermo em objeto para o seu olhar, ou como em um duelo, olho o Outre tentando capturar sua li- berdade — “Tudo que wale para min vale para o Outro. kn- quanto temo livrar-me da dominio do Outro, 0 Outro tente livrar-se do meu; enquanio procure subjugar o Outro, o Outro procurd me subjugar. Nao se traia aqui, de medo algun, de relagdes wnilaterais com wn objeto-Em-Si, mas, sim, de relagdes recipracas e moveutes. As descrigées que se seguem deven ser encaradas, porlanto, pela perspectiva da conflite. O con- flito é 0 sentido origindrio do Ser-Para-Outro”." Na finsia de possuir a liberdade, a subjctividade do outro e o segredo do conhecimento objetive que ele tem de mim, lango-me em uma teia infinita de tentativas de relagdo com 6 outro. Essas relagdes nao sido dialéticas porque niio ha uma superagéo do conflito, todas elas estao fadadas ao fra- casso — 0 outro é sempre a liberdade que me escapa, nunca consigo captura-lo e nem apreender minha subjetividade ob- jetivada por seu olhar. Ha sempre um mal-estar nas relagdes, 6 outro que quero transcendido é transcendente, como eu também o sou. O amor é o labirinto no qual me perco para busear, capturar a subjetividade do outro ¢ tento fazer-me objeto para ele, mas néo um objeto qualquer e, sim, um objeto especial — objeto tinico que dé sentido a sua vida, capaz de constituir seu mundo = “o amante quer ser o mundo inteiro para o amado”. No amor, 0 amante quer que o amado abdique livremente de sua liberdade para ser cativo, mas um cativo que escolha li- “Idem, p. 454, 92 Anna Maria Alexandra Laporte - Neusa Vendramin Volpe: yremente o cativeiro, doce prisio, per ele mesmo escolhida. O amado se inquieta com medo de deixar de ser o objeto tinico © especial do amante e, por isso, quer que o amante o recrie perpetuamente, como sendo seu proprio mundo, © funda- mento de tados os scus valores, mas o amante também quer ser amado, quer que o outro entregue a ele livremente a sua liberdade, quer que o outro a veja também como seu tinico objeto especial e para isso, oS dois usarfio a sedugao. Na se- dugio nfio me apresento como subjetividade ao Outre porque minha liberdade, ao olhid-lo, o transformaria em objeto ¢ 0 que quero dele € sua subjetividade, por isso, arrisco a apre- sentar-me como objeto ante o olhar do outro. Mas, como o outro também quer a minha subjetividade para fundamenta-lo em seu ser, ele se apresentard a mim, também, como um ab- jeto especial, Essa polarizagao gera 0 conflito porque nenhum dos dois encontrard a subjetividade que procuram para seu pro- se um no outra como objetos jeto, pois os dois querem perder ‘Se espec Para SARTRE, hi uma wiplice destrutibilidade no amor: ao querer amar, quero que me amem ¢ quero que o outro gueira que eu o ame, isso é invidivel porque quanto mais busco ser um objeto especial para © outro, “mais sou devolvido as mi- nhas proprias responsabilidades, ao meu préprio poder-ser ¢ a0 outro acontecerd a mesma coisa", O amor leva, também, os amantes A inseguranga porque o outro sempre pode deixar de me amar e assim, me transformaria em um objeto qual- quer. Por dltimo, o amor é um absoluto onde cada um vive da idealizagdo de si mesmo para o outro ¢ do outro para i, O encanto quebra-se quando o casal de amantes € observado pelo olhar de um terceiro elemento que, 20 olhd-los, relativiza 0 pseudo absolute dessa relagéo. Existencialismo 93) Na ilusdo do amor hd alegria porque os amantes sen- tem sua vida justificada — um pensa ter nascido para o outre e apesar de nao realizarem seus projetos, suas liberdades nao estarao em perigo. : Outra tentativa de fugir a esse cfreulo vicioso € 0 ma- soquismo, nessa relagéo renuncio totalmente a minha liber- dade, quero que o outro cuide de meu existir, submerjo em minha objetividade enquanto afirmo a liberdade e a subjetivi- dade do outro. Nio quero sua liberdade cativa como no amor. quero-a absolutamente livre para que, assim, assuma a es. ponsabilidade de meu ser, O masoquismo gera a vergonha eal culpa porque, nessa relagdo, aliena-se o proprio ser ao outro, nega-se a propria transcendéneia, posicionando-se como ob- jeto para o outro, ‘ O amor ¢ o masoquismo sao lentativas de objetivagio diante da liberdade do outro, para que ele, como liberdade. devolva ao Para-si seu ser objeto, a imagem objetiva que busca de si, O fracasso dessas tentativas de apreender-se através de uma liberdade produz a inversio do jogo — o olhada quer olhar e submeter a liberdade do outro ao seu dominio, “Sobre o outre que me ofha, aporto por minha vec oe meu othar, Mas wn alhar néa pode ser alhado: desde que otho em diregdo ao olhar, este se desva- nece @ nie vejo mais que ofloes. Neste instante, o Outro forna-se MEN Ser que eu posse € que reconhece minha liberdade. Parece que minha meta foi alcan- sada, j@ que possuo o ser que detém a chave da sti-

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