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2016

ANAIS
IV CONELIN – Congresso de Estudos da Linguagem

Theodore Clement Steele Pintor americano (1847-1926)

UENP- CCP – Letras Português-Inglês


11, 12 e 13 de julho de 2016
Anais

ANAIS 2

IV Conelin – Congresso de Estudos da


Linguagem
Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP)
Campus de Cornélio Procópio

11 a 13 de julho de 2016

Cínthia Morelli Rosa


Danielly de Almeida
Gabriela Martins Mafra
Izabelle C. Godoy
Paulo Henrique Espuri
(Editores)
Realização:

Apoio:

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Coordenação Geral
Profa. Me. Célia Regina Capellini Petreche
Profa. Dra. Eliane Segati Rios-Registro
3

Comissão Organizadora
Profa. Me. Célia Regina Capellini Petreche
Profa. Dra. Diná Tereza de Brito
Profa. Dra. Eliana Merlin Deganutti de Barros
Profa. Dra. Eliane Segati Rios-Registro

Comissão científica
Profa. Dra. Eliana Merlin Deganutti de Barros
Profa. Me. Cinthia Morelli Rosa
Gabriela Martins Mafra
Danielly de Almeida
Paulo Henrique Espuri

Monitores
Amanda Parpinelli
Ana Carolina Bueno
Angélica Ferreira Leal
Anna Karla Veiga
Beatriz dos Santos da Silva
Caroline Helena dos Santos
Daiany Santos Pereira
David Fernandes
Ednéia Fátima de Souza
Fábio Luiz Ortiz
Gilmara S. D. Martinho
Izabelle C. Godoy
Joyce Cristina da Cunha
Kamilla D. Batista
Matheus Jose Sanches
Osnir Branco
Polyana Baganha Munhoz
Rithielle Apª Castellani
Samandra de Andrade Corrêa
Thalita Cristina Jóia
Willian Syoji Souza Azuma

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Carga Horária: 40 horas

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ – UENP


Campus de Cornélio Procópio 2
PR 160, Km 0 (saída para Leópolis)
Cornélio Procópio, PR
Fones: (43) 3904-1906; 3904-1907

Mais informações:
http://uenpcp.wix.com/conelin
https://www.facebook.com/conelin.uenp
conelin.ccp@uenp.edu.br
CEPEL: (43) 39041927

Os textos aqui publicados são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

PROGRAMAÇÃO GERAL DO CONELIN

11/07/2016 – Segunda-Feira
TARDE - Bloco C – Campus Universitário da UENP/CCP

A partir das 14h: Credenciamento e entrega de materiais


15h – Abertura:
GP GETELIN: Líder Profa. Dra. Eliane Segati Rios-Registro
GP DIALE: líder Profa. Dra. Eliana Merlin Deganutti de Barros
15h – 18h: Exposição cultural
Organizadores: Centro Acadêmico de Letras (UENP/CCP)

NOITE - Anfiteatro do PDE – Campus Universitário da UENP/CCP


19h – Apresentação cultural
19h30min – Abertura oficial: Profa. Dra. Célia Regina Capellini Petreche e Profa. Dra. Eliane Segati Rios Registro
19h45min – Conferência de abertura:
"Multimodalidade e letramento digital: recursos da web e tecnologias móveis no processo de formação do professor
de inglês"
Conferencista: Profa. Dra. Renildes Dias (UFMG)
Moderadora: Profa. Dra. Eliane Segati Rios Registro (UENP/CCP)

12/07/2016 – Terça-Feira
MANHÃ – Anfiteatro do PDE – Campus Universitário da UENP/CCP
9h -12h – Encontro com Reinildes Dias e Cristina Mote Fernandes com professores de língua inglesa da educação
básica
12h – Almoço

TARDE - Bloco C, E e F – Campus Universitário da UENP/CCP


A partir das 14h: Credenciamento e entrega de materiais
Das 14h às 17h20min: Sessão de Comunicações Individuais e Coordenadas

NOITE – Bloco C - Campus Universitário da UENP/CCP


Das 19h15min às 22h15min: Minicursos (simultâneos)

13/07/2016 – Quarta-Feira
MANHÃ – Anfiteatro do PDE – Campus Universitário da UENP/CCP
9h –12h – Reunião fechada dos grupos de pesquisa GETELIN e DIALE (UENP)
12h – Almoço

TARDE - Bloco C, E e F – Campus Universitário da UENP/CCP


A partir das 14h: Credenciamento e entrega de materiais
Das 14h às 17h20min: Sessão de Comunicações Individuais e Coordenadas

NOITE: Anfiteatro do PDE – Campus Universitário da UENP/CCP


19h – Atividade Cultural
19h30min – Conferência de encerramento: "Textos humorísticos: caminhos para análise"
Palestrante: Profa. Dra. Ana Cristina Carmelino (UNIFESP)
22h – Encerramento Oficial: Profa. Dra. Eliana Merlin Deganutti de Barros (UENP/CCP)

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Sumário
EIXO I: LINGUA PORTUGUESA E ENSINO
3
A HORA E A VEZ DA ORALIDADE NA SALA DE AULA ....................................................... 7

CRENÇAS DE PROFESSORES SOBRE PRÁTICAS COLABORATIVAS DE FORMAÇÃO


NO CONTEXTO ESCOLAR
............................................................................................................................................... 23

A ABORDAGEM DAS ORAÇÕES ADVERBIAIS NO LIVRO APRENDER E PRATICAR


GRAMÁTICA, DE MAURO FERREIRA
............................................................................................................................................... 40

EIXO II: LINGUA INGLESA E ENSINO

INGLÊS NA EDUCAÇÃO INFANTIL POR MEIO DO GÊNERO TEXTUAL HISTÓRIA


INFANTIL: PROMOVENDO DESENVOLVIMENTO DAS FUNÇÕES PSICOLOGICAS
SUPERIORES
............................................................................................................................................... 56

OS EFEITOS E PRÁTICAS DA FORMAÇÃO CONTÍNUA DE PROFESSORES DE LÍNGUA


INGLESA: MOBILE LEARNING EM FOCO
............................................................................................................................................... 74
PERCEPÇÕES DE PROFESSORES DE INGLÊS EM RELAÇÃO AO INGLÊS COMO
LÍNGUA FRANCA
............................................................................................................................................... 94
REFLEXÕES ACERCA DE DISCURSOS NOS DOCUMENTOS QUE NORTEIAM O
ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA NA EJA
............................................................................................................................................. 112

EIXO III: ESTUDOS LINGUISTICOS: LINGUA PORTUGUESA

A AXIOLOGIA BAKHTINIANA E A ARGUMENTAÇÃO NOS GÊNEROS DISCURSIVOS


............................................................................................................................................. 127

A REPRESENTAÇÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA NO DISCURSO DE SUJEITOS


HAITIANOS.......................................................................................................................... 147

CANÇÃO PARA MINHA MORTE, DE MANUEL BANDEIRA: PELOS CAMINHOS DA


SEMIÓTICA......................................................................................................................... 157

CORREÇÃO E PARENTETIZAÇÃO: ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO TEXTUAL EM


LÍNGUA FALADA NO DISCURSO RELIGIOSO
............................................................................................................................................. 167
DIÁLOGOS FORMATIVOS ENTRE O MST E OS NOVOS ESTUDOS DO LETRAMENTO
IMPLICADOS EM UM DISPOSITIVO DIDÁTICO
............................................................................................................................................. 178
FALA E ESCRITA NO DISCURSO RELIGIOSO: ANÁLISE DO GÊNERO DISCURSIVO
PREGAÇÃO
............................................................................................................................................. 199

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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LATERAL /L/ EM ATAQUE COMPLEXO E EM CODA SILÁBICA NO FALAR DE CHUÍ E


SÃO BORJA, RIO GRANDE DO SUL: UM ESTUDO
PRELIMINAR....................................................................................................................... 209
LEI MARIA DA PENHA: UM ESTUDO SOB A ÓTICA DA SEMÂNTICA ARGUMENTATIVA
............................................................................................................................................. 204 4
LETRAMENTO EM AMBIENTE HOSPITALAR: UMA ANÁLISE DOS PROCESSOS
............................................................................................................................................. 234
LEXIAS PRESENTES NO DISCURSO DOS ASSENTADOS DO ASSENTAMENTO CELSO
FURTADO
............................................................................................................................................ 247
MAKE HISTORY: A TESSITURA ARGUMENTATIVA EM UMA PEÇA PUBLICITÁRIA DA
JEEP ................................................................................................................................... 259
METACOGNIÇÃO E SEMIÓTICA COMO OBJETOS MODAIS PARA A AUTONOMIA E
ABERTURA DA PERCEPÇÃO NA ESCOLA PÚBLICA DE TRÊS LAGOAS
............................................................................................................................................. 272
NARRATIVAS DE EXPERIÊNCIAS E CIBERESPAÇO: DENUNCIANDO A IMPOLIDEZ NO
CONTEXTO MÉDICO-PROFIDDIONAL
............................................................................................................................................. 292
O DESVELAMENTO ENUNCIATIVO DE “RODA-VIVA”: SEMIÓTICA APLICADA À OBRA
DE CHICO BUARQUE DE HOLANDA (REGIME 64-85)
............................................................................................................................................. 308
O POEMA “A VIDA É LOKA” DE SÉRGIO VAZ: SUJEITO E(M) RESISTÊNCIA/ NEGAÇÃO
............................................................................................................................................. 329
O QUE FIZERAM DAS “CAIXAS PRETAS” DE GREIMAS?
............................................................................................................................................. 340
O SIGNIFICADO DA PALAVRA SEM-TERRA NO DISCURSO DO REASSENTADO
............................................................................................................................................. 361
PRODUÇÃO TEXTUAL E ESTILÍSTICA LÉXICA: UM ESTUDO DE CASOS COM
ESTUDANTES DE LETRAS
............................................................................................................................................. 381
RELIGIÃO E LETRAMENTO: EVENTOS DE LETRAMENTO RELIGIOSO E SUAS
INFLUÊNCIAS
............................................................................................................................................. 396

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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EIXO: LÍNGUA PORTUGUESA E ENSINO

A hora e a vez da oralidade em sala de aula


The time and place of orality in the classroom

Valdirene Rover de Jesus Silva (UENP/CCP – PG)


Dra. Marilúcia dos Santos Domingos Striquer (UENP)

RESUMO: O presente trabalho volta seu olhar para o gênero causo, buscando refletir sobre o
ensino da oralidade nas aulas de língua portuguesa. O causo é um gênero textual que se configura
como um importante instrumento para preservação e disseminação da cultura oral e local das
comunidades, nesse sentido, objetiva-se ampliar as experiências com a modalidade oral no ensino
fundamental por meio do gênero causo. Sob tal enfoque, é preciso criar oportunidades ao aluno de
falar adequando a linguagem conforme as circunstâncias (interlocutores, assunto, intenções);
aproveitando os imensos recursos expressivos da língua e, principalmente, praticando e aprendendo
a convivência democrática que supõe o falar e o ouvir. A base teórica-metodológica que norteia esta
pesquisa são os pressupostos do Interacionismo Sociodiscursivo. Dessa forma, Espera-se promover
uma reflexão acerca da modalidade oral e do gênero causo que instiguem outros trabalhos voltados
para o ensino fundamental.

PALAVRAS-CHAVE: Oralidade. Gênero causo. Ensino fundamental.

ABSTRACT: This work returns his gaze to the genre cause , seeking to reflect on the teaching
orality in the Portuguese language classes . The cause is a genre which constitutes an important
instrument for the preservation and dissemination of oral culture and local communities, in this sense,
the objective is to extend the experience with the oral form in elementary education through genre
cause. Under this approach, we need to create opportunities for students to speak the language
adapting as circumstances (parties , subject, intentions); taking advantage of the immense expressive
resources of language, and especially practicing and learning democratic coexistence supposes
speaking and listening . The theoretical and methodological basis that guided this research are the
assumptions of Interacionism Sociodiscursivo. Thus, expected to promote a reflection on the oral
mode and genre cause that instigate other work aimed at elementary school.

KEYWORDS: Orality. Cause genre. Elementary school.

Introdução

Tradicionalmente, a escola vem trabalhando com textos que pouco condizem


com a história de comunidades locais, e, sobretudo, do contexto mais imediato do

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aluno do ensino fundamental. Contudo, orienta Freire (2002) que é essencial que a
escola considere quem é o educando, quais os seus anseios e suas experiências de
vida. Segundo o autor “o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um
6
imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros”
(FREIRE, 2002, p.35). Assim, compreendemos que a escola precisa ser um espaço
em que a criança perceba a valorização das suas histórias, das de sua família, da
sua comunidade, a fim de que o aluno tenha a “oportunidade de observar tanto a
oralidade como a escrita em seus usos culturais autênticos sem forçar a criação de
gêneros que circulam apenas no universo escolar” (MARCUSCHI, 2005, p.36).
Para Freire (2002, p.16), é preciso respeitar os saberes com os quais os
educandos chegam à escola. No caso daqueles que chegam ao ensino fundamental,
muito frequentemente, já conhecem histórias, contadas pelos mais velhos, pessoas
da família, vizinhos, entre outros. É nesse viés que justificamos nosso interesse pelo
trabalho com o gênero causo, pois o concebemos como um instrumento mediador
adequado para o trabalho com a prática discursiva da oralidade, visto que, dentre os
diversos gêneros que circulam socialmente, esse pode estimular o imaginário dos
alunos e contribuir para a valorização da cultura local e da língua oral dos alunos.
Segundo Cascudo (2006, p.11), as histórias que ouvimos quando crianças
"para todos nós é o primeiro leite intelectual. Os primeiros heróis, as primeiras
cismas, os primeiros sonhos, os movimentos de solidariedade, amor, ódio,
compaixão vem com as histórias fabulosas ouvidas na infância" (p.11). Assim, o
causo pode ser um instrumento para instigar o aluno a ouvir e produzir textos orais.
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2013), é
preciso levar em consideração, na prática educativa, a diversidade étnica, regional,
social, individual e grupal dos educandos. “A perspectiva multicultural no currículo
leva, ainda, ao reconhecimento da riqueza das produções culturais e à valorização
das realizações de indivíduos e grupos sociais e possibilita a construção de uma
autoimagem positiva a muitos alunos” (BRASIL, 2013, p.115). Também os
Parâmetros Curriculares Nacionais (Doravante PCN) – Pluralidade Cultural e
Educação Sexual (BRASIL, 1997) – asseveram que é relevante o trabalho com as
culturas regionais, uma vez que “são produzidas pelos grupos sociais ao longo das
suas histórias, na construção de suas formas de subsistência, na organização da

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vida social e política, nas suas relações com o meio e com outros grupos, na
produção de conhecimentos” (p.37). Portanto, o trabalho pedagógico com o gênero
causo oferece oportunidades de “valorizar as diversas culturas que estão presentes
7
no Brasil, propicia ao aluno a compreensão de seu próprio valor, promovendo sua
autoestima como ser humano pleno de dignidade” (BRASIL, 1997, p.39).
Na mesma direção, Marcuschi (2008) chama atenção para o fato de que em
grandes centros urbanos são quase desconhecidos gêneros comuns em outras
sociedades como “os cantos de guerra indígenas, os cantos medicinais dos pajés ou
as benzeções das rezadeiras, os lamentos das carpideiras” (p.191). Dessa forma,
acreditamos que o mesmo aconteça com os causos de pequenos centros
localizados no interior dos estados. Também porque, de acordo com Marcuschi
(2008), o ensino deve sempre ser culturalmente sensível. Nas palavras do autor:
“creio que se deveria oferecer um ensino culturalmente sensível, tendo em vista a
pluralidade cultural. Não se deveria privilegiar o urbanismo elitizado, mas frisar a
variação linguística, social, temática, de costumes, crenças, valores” (MARCUSCHI,
2008, p.172).
Nessa visão, é possível dizer que a aula de língua portuguesa transcende a
consideração apenas dos aspectos meramente internos do sistema da língua para
abarcar a vivência cultural do aluno, uma vez que estará “envolta em linguagem e
todos os textos situam-se nessas vivências estabilizadas simbolicamente. Isto é um
convite claro para o ensino situado em contextos reais da vida cotidiana”
(MARCUSCHI, 2008, p.173).
É importante destacar que foi exatamente o fato do gênero causo ser
característico da oralidade um dos fatores que nos encaminharam a sua delimitação,
por dois principais motivos: grande parte dos trabalhos destinados à sala de aula
investe no aprimoramento da leitura e ou da produção textuais dos alunos, por
vezes, desprezando por completo os aspectos da oralidade; nossa premissa é a de
que quando a criança entra na escola já domina a linguagem oral que se desenvolve
nas suas interações com a família, amigos, comunidade, consequentemente ela
domina primeiro o oral depois o escrito. Desse modo, “ao longo do ensino
fundamental, o aprendiz poderia fazer novas descobertas a respeito desse objeto

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que manipula constantemente e utilizá-lo em contexto que não lhe são ainda
familiares” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p.151).
De acordo com Dolz e Schneuwly (2004), apesar da linguagem oral estar
8
presente nas rotinas cotidianas escolares, nas correções das atividades que se
fazem em sala de aula, por exemplo, não se pode afirmar que a oralidade seja
ensinada, pois, “o ensino escolar da língua oral e de seu uso ocupa atualmente um
lugar limitado. Os meios didáticos e as indicações metodológicas são relativamente
raros” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p.150). O que geralmente se tem é uma redução
das atividades com oralidade apenas à apresentações de trabalhos e ao diálogo
entre professor e aluno, conforme denunciam os Parâmetros Curriculares Nacionais,
“as situações de ensino vêm utilizando a modalidade oral da linguagem unicamente
como instrumento para tratamento dos diversos conteúdos” (BRASIL, 1998, p.24).
Ferraz e Gonçalves (2015) corroboram com essa visão, “é perceptível uma tradição
escolar que valoriza a escrita em detrimento do oral” (p.64). Apesar dos documentos
oficiais afirmarem que a oralidade deve ter um lugar de destaque no ensino, “o
ensino escolar da língua oral e de seu uso ocupa atualmente um lugar limitado. Os
meios didáticos e as indicações metodológicas são relativamente raros” (DOLZ;
SCHNEUWLY, 2004, p.150).
É evidente que as apresentações de trabalho e o diálogo entre professor e
aluno são uma boa oportunidade para o desenvolvimento da oralidade, porém, não é
o suficiente, é preciso que a escola assuma a tarefa de trabalhar efetivamente com
gêneros orais. [...] “crer que essa interação dialogal que ocorre durante as aulas dê
conta das múltiplas exigências que os gêneros do oral colocam, principalmente em
instâncias públicas é um engano” (BRASIL, 1998, p.24). Trabalhar a oralidade é
tomar como objeto de ensino e aprendizagem os gêneros orais, assim como
defendem Dolz e Schneuwly (2004),

Trabalhar os [gêneros] orais pode dar acesso ao aluno a uma gama de


atividades de linguagem e, assim, desenvolver capacidades de linguagem
diversas; abrem-se, igualmente, caminhos diversificados que podem convir
aos alunos de maneiras muito diferenciadas, segundo suas personalidades.
(p.139 – inserção nossa).

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Além disso, acreditamos que a natureza multisemiótica da oralidade é uma


excelente proposta de trabalho para as aulas de língua portuguesa, pois, de acordo
com Gomes-Santos (2012, p.128), “um trabalho voltado para os recursos
9
multisemióticos [...] pode enfocar diferentes usos desses recursos, a fim de
instrumentalizar o aluno para se apropriar deles como fortes aliados” no processo de
produção oral.
Nessa nossa justificativa para um olhar para a oralidade, respaldamo-nos
também na Diretriz Curricular da Educação Básica de língua portuguesa (PARANÁ,
2008) – doravante DCE – que orienta que a escola precisa promover situações que
incentivem os alunos a falar, uma vez que no cotidiano a fala é a prática discursiva
mais utilizada. Nesse sentido, é preciso criar oportunidades ao aluno de falar
adequando a linguagem conforme as circunstâncias (interlocutores, assunto,
intenções); aproveitando os imensos recursos expressivos da língua e,
principalmente, praticando e aprendendo a convivência democrática que supõe o
falar e o ouvir. “Ao contrário do que se julga, a prática oral realiza-se por meio de
operações linguísticas complexas, relacionadas a recursos expressivos como a
entonação” (PARANÁ, 2008, p.65).
Nessa perspectiva, defendem Dolz e Schneuwly (2004) que uma prática
pedagógica comprometida com o desenvolvimento da linguagem oral não pode se
ater aos aspectos superficiais da oralidade, impõe-se a necessidade da escolha de
textos orais que permitam “trabalhar fenômenos de textualidade oral em relação
estreita com as situações de comunicação, estudar diferentes níveis da atividade de
linguagem e tornar o ensino mais significativo” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p.169).

Oralidade

Com vistas a desembaraçar os nós que se formam ao redor da oralidade Dolz


e Schneuly (2004) enfatizam que existem dois tipos de linguagem oral: O oral
espontâneo, “pensado como fala improvisada em situações de interlocução
conversacional, que, numa das extremidades, constitui ‘modelo’ relativamente
idealizado” (p.157) que muito embora pareça desorganizada apresenta
regularidades específicas e a escrita oralizada “considerada uma vocalização, por

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um leitor de um texto escrito. Trata-se, portanto, de toda palavra lida ou recitada”


(p.157). Nessa concepção, todos os orais encontram-se nessas duas práticas, dos
mais restritos aos mais imprevisíveis, considerando sua estrutura, ritualização social
10
e conteúdo. O ensino do oral na escola, nessa abordagem, pode ser um caminho
para a construção de uma relação nova com a linguagem.
Dolz e Schneuwly (2004), ancorados nas características da língua oral,
fundamentam que as hesitações, titubeios, reformulações, retomadas ecoicas,
balbucios, falsos inícios e falsas cadências, fáticos onipresentes, início de turnos
abortados, quebras, interrupções, suspiros de todo tipo, não podem ser vistos como
aspectos caóticos da linguagem oral, mas como características desta, sendo
possível estabelecer uma gramática com regularidades estruturais e funcionais nas
produções de textos orais.
É importante frisar que na oralidade, existe uma importante relação entre a
fala e o corpo. “O organismo pode trair o mal-estal e o medo do locutor quando este
deixa escapar índices involuntários de uma emoção sejam eles perceptíveis ou não,
linguística e prosodicamente” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p.159). São exemplos,
aumento do ritmo cardíaco, movimentos involuntários dos músculos, rosto vermelho,
voz embargada. Também é possível utilizar a posição do corpo, respiração, atitude
corporal, mímicas faciais, posturas, olhares, a gestualidade, colocação da voz na
comunicação oral para confirmar se o objetivo pretendido está sendo atingido e/ou
modificá-lo se necessário.
Portanto, de acordo com Dolz e Schneuwly “a comunicação oral não se
esgota somente na utilização de meios linguísticos ou prosódicos; vai também
utilizar signos de sistemas semióticos não linguísticos, desde que codificados, isto é,
convencionalmente reconhecidos como significantes ou sinais de uma atitude”
(DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p.160).
Quanto aos aspectos não linguísticos da comunicação oral, os autores (2004)
destacam: a) Meios para-linguísticos: qualidade da voz, melodia, elocução e pausas,
respiração, risos, suspiros; b)Meios cinésicos: atitudes corporais, movimentos,
gestos, troca de olhares, mímicas faciais; c)Posições dos locutores: ocupação de
lugares, espaço pessoal, distâncias, contato físico; d) Aspecto exterior: roupas,
disfarces, penteado, óculos, limpeza; e) Disposição dos lugares: lugares, disposição,

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iluminação, disposição das cadeiras, ordem ventilação decoração.


Dolz e Bueno (2015, p.119 – 123) também enfatizam as características da
linguagem oral, embora o texto fale a princípio da exposição oral em geral, é
11
possível por meio desta abordagem, estabelecer importantes ligações com a
contação de causos: Recursos semióticos: quando o contador dá voz às suas
histórias sua elocução é emoldurada por um conjunto de diferentes recursos
semióticos: qualidade da voz, recursos prosódicos, (velocidade e ritmo da fala,
pausa, entonação) e recursos cinésicos (gestualidade, expressividade facial e
corporal) que o subsidiam em sua performance, na tarefa de promover e manter o
envolvimento de seus ouvintes com a exposição; Recursos prosódicos: A
combinação de entoação descendente e pausa, associada a hesitação, dá a
impressão de que a história vai-se pouco a pouco esgotando e paulatinamente
encerrando-se. Também a entoação e a pausa são recursos prosódicos relevantes
para sinalizar a abertura e o fechamento de determinados tópicos da história.
Expressividade facial e olhar: Além dos recursos prosódicos, a expressividade,
facial, incluído o olhar, é relevante recurso que subsidia e ancora a elocução do
contador [...] assumindo uma função interacional relevante de gestão [...]. Por fim, a
gestualidade é um recurso dos mais centrais na contação, uma vez que ganha corpo
em ligação estrita com os elementos do ambiente de produção.
Para um trabalho bem feito “é necessário definir claramente as características
do oral a ser ensinado” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p.151). Esta é a condição
essencial para que o oral seja visto como “objeto de ensino reconhecido pela
instituição escolar, como o são a produção escrita, a gramática ou literatura” (DOLZ;
SCHNEUWLY, 2004, p.151). Nesse sentido, é preciso uma prática consciente e
reflexiva para que o ensino do texto oral seja comparável ao escrito. Essas
construções remetem-nos a pensar que os alunos merecem a oportunidade de
receber a herança cultural das histórias da sua comunidade por meio da oralidade,
bem como, contribuir com a inserção de elementos culturais trazidos por elas de seu
convívio comunitário.
Desse ponto de vista, impõe-se a necessidade da escolha de textos orais
como objetos de trabalho. “Eles permitem trabalhar fenômenos de textualidade oral
em relação estreita com as situações de comunicação, estudar diferentes níveis da

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atividade de linguagem e tornar o ensino mais significativo” (DOLZ; SCHNEUWLY,


2004, p.169). Assim, os gêneros podem ser considerados instrumentos que
possibilitam comunicação aprendizagem.
12
Dolz e Schneuwly (2004) levantam algumas questões essenciais acerca da
oralidade, quais sejam: Quais são as representações habituais do oral e de seu
ensino? Porque é difícil pensar o ensino com base nessa concepção de oralidade? É
que ela implica ou a intervenção no cotidiano ou o trabalho sobre o que já dominado,
a partir da visão de melhoria da língua em geral. Que outros caminhos escolher
então?
Pautado nessas indagações (p.130 -135) apontam algumas ações: a)um
caminho seria partir das finalidades do ensino da língua materna, o que implica uma
concepção mais rica e complexa do oral e um enfoque mais dialético das relações
entre oral e escrito; b)esse enfoque implica também uma nova concepção de
desenvolvimento; c) o enfoque implica uma visão também dialética do
desenvolvimento da linguagem; d) Construir com os alunos uma representação das
atividades de escrita e de fala, em situações complexas, como produto de um
trabalho, de uma lenta elaboração.
A fim de comprovar suas ideias Dolz e Schneuwly (2004) apontam que não há
nenhuma dimensão de linguagem que permitiria definir de maneira uniforme o oral
em relação à escrita. “O oral não existe existem os orais, atividades de linguagem
realizadas oralmente, gêneros que se praticam essencialmente na oralidade”.
(p.139) Existem também produções textuais que combinam o oral e a escrita. E
entre os gêneros da oralidade há características específicas que diferem entre si.
“Os meios linguísticos diferem fundamentalmente; as estruturas sintáticas e textuais
são diferentes; a utilização da voz, sempre presente, sempre se faz de maneira
diversa; e igualmente a relação com a escrita é, em cada situação específica”
(p.139).
Dessa forma, chamam a atenção para um aspecto fundamental, é mais
propício não abordar a oralidade em geral, mas sim os gêneros orais:

Trabalhar os orais pode dar acesso ao aluno a uma gama de atividades de


linguagem e, assim, desenvolver capacidades de linguagem diversas;
abrem-se, igualmente, caminhos diversificados que podem convir aos

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alunos de maneiras muito diferenciadas, segundo suas personalidades.


((DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p.139).

Acerca das diferenças e singularidades entre a fala e a escrita, Marcuschi


13
(2010) também destaca que as duas “são realizações de uma gramática única, mas
que do ponto de vista semiótico podem ter peculiaridades com diferenças
acentuadas, de modo que a escrita não representa a fala” (p.39). Enfatiza que os
textos orais têm uma realização multissistêmica, conforme já afirmado acima, ou
seja, quando falamos utilizamos uma série de recursos como repetições de palavras,
gestos, mímica, entonação, prosódica; do mesmo modo, os textos escritos também
são se limitam apenas ao alfabeto como pode parecer a princípio, apresentam
gráficos, fotos, ícones, infográficos, tabelas, cor e tamanho da fonte. Portanto, fala e
escrita, nas suas manifestações textuais seguem normas.
Assentado no ponto de partida acima estabelecido é mais interessante
pensar oralidade e escrita como um contínuo sócio-histórico de práticas sociais de
uso da língua falada ou escrita:

O contínuo dos gêneros textuais distingue e correlaciona os textos de cada


modalidade (fala e escrita) quanto às estratégias de formulação que
determinam o contínuo das características que produzem as variações das
estruturas textuais-discursivas, seleção lexicais, estilo, grau de formalidade
etc., que se dão num contínuo de variações, surgindo daí semelhanças e
diferenças ao longo de contínuos sobrepostos (MARCUSCHI, 2010, p.42).

Dessa maneira, fazendo coro a Dolz, considera Marcuschi (2008) que tanto a
fala quanto a escrita variam e que as diferenças e semelhanças entre fala e escrita
podem ser melhor observadas num contínuo dos gêneros textuais, uma vez que
existem gêneros similares nas duas modalidades. “O contínuo verificado entre a fala
e a escrita também tem seu correlato no contínuo dos gêneros textuais enquanto
forma de representação de ações sociais” (p.190).
Com efeito, há “uma gama quase infinita de variedades de oral mais ou
menos espontâneo, mais ou menos improvisado, mais ou menos preparado, com
um grau de intervenção mais ou menos forte da escrita” [...] (DOLZ; SCHNEUWLY,
2004, p.157). Os textos orais estão presentes na sociedade em grande número,
representam as características culturais e sociais dessa mesma sociedade e são

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reconhecidos pelas especificidades dos gêneros em seus contextos de produção.


Histórias contadas às crianças, aulas expositivas, palestras, debates, conferências,
pedido de informações, entrevista de emprego, conversas, programas de rádio e
14
televisão, conversas cotidianas, discussão em grupo, explicação numa situação de
interação imediata, narração de um conto em sala de aula, relato de uma aventura
no recreio.
Nesse sentido, pensar que a escrita se sobrepõe a fala por ser mais
elaborada ou que a fala é superior por permitir maior flexibilidade é um equívoco,
pois “são modos de representação cognitiva e social que se revelam em práticas
específicas” (MARCUSCHI, 2010, p. 35). Oralidade e escrita possuem
especificidades próprias, mas não antagônicas para designar dois sistemas
linguísticos dicotômicos. Tanto oralidade e escrita produzem textos com coesão e
coerência, que podem ser usados em situações formais ou informais, com variações
linguísticas (estilísticas, regionais, sociais) dependendo do contexto de produção.
Tanto oralidade e escrita estão presentes nos contextos sociais básicos do cotidiano
como no trabalho, na igreja, em casa, na escola. Oralidade e escrita são “atividades
interativas e complementares no contexto das práticas sociais e culturais”.
(MARCUSCHI, 2010, p.16). Pode-se assim dizer que língua oral ou escrita refletem
e são influenciados pela organização da sociedade.
Essas construções remetem-nos a pensar que na fala normalmente o gênero
textual é especificado durante a produção dos enunciados, observe-se os
enunciados: o jornal de ontem, na aula da manhã, na mensagem de ontem. Em
alguns casos “essas formas textuais têm marcas linguisticamente mais ou menos
estereotipadas identificáveis desde o início” (MARCUSCHI, 2010, p.188). Nos contos
de fadas, era uma vez. Nas receitas, misture, bata, adicione, separe. Nos
telefonemas, alô, quem fala? Nas cartas comerciais, prezado senhor. “Muitas delas
são fórmulas históricas surgidas ao longo do tempo e de muitas práticas sociais que
têm suas características específicas tanto na fala como na escrita” (MARCUSCHI,
2010, p.188).
A Diretriz Curricular da Educação Básica de língua portuguesa (2008) –
doravante DCE – aponta que são diversas as possibilidades de trabalho com os
gêneros orais e apresenta algumas sugestões como: apresentação de temas

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variados (histórias de família, da comunidade, um filme, um livro); depoimentos


sobre situações significativas vivenciadas pelo aluno ou pessoas do seu convívio;
dramatização; recado; explicação; contação de histórias; declamação de poemas;
15
troca de opiniões; debates; seminários; júris-simulados e outras atividades que
possibilitem o desenvolvimento da argumentação. Valoriza também, “a potência dos
textos literários como Arte, os quais produzem oportunidade de considerar seus
estatutos, sua dimensão estética e suas forças políticas particulares” (PARANÁ,
2008, p.67).
É necessário frisar que as atividades propostas não podem ter como objetivo
simplesmente ensinar o aluno a falar ou em conversas com os colegas de sala de
aula. É preciso refletir sobre os usos da linguagem. Ao narrar uma história, podem
ser levantadas questões sobre o “a estrutura da narrativa, refletir sobre o uso de
gírias e repetições, explorar os conectivos usados na narração, que apesar de
serem marcadores orais, precisam estar adequados ao grau de
formalidade/informalidade dos textos, entre outros pontos” (PARANÁ, 2008, p.67).
A DCE (2008) aponta que nas propostas de atividades orais, o aluno deve
refletir tanto a partir da sua fala quanto da fala do outro, sobre: o conteúdo temático
do texto oral; elementos composicionais, formais e estruturais dos diversos gêneros
usados em diferentes esferas sociais; a unidade de sentido do texto oral; os
argumentos utilizados; o papel do locutor e do interlocutor na prática da oralidade;
observância da relação entre os participantes (conhecidos, desconhecidos, nível
social, formação, etc.) para adequar o discurso ao interlocutor; as marcas linguístico-
enunciativas do gênero oral selecionado para estudo.
Efetiva-se, portanto, no documento (2008) como encaminhamento
metodológico para o professor na oralidade: organização de apresentações de
textos produzidos pelos alunos; orientação sobre o contexto social de uso do gênero
oral selecionado; preparação de apresentações que explorem as marcas linguísticas
típicas da oralidade em seu uso formal e informal; contação de histórias de
diferentes gêneros, utilizando-se dos recursos extralinguísticos, como entonação,
pausas, expressão facial e outros; seleção de discursos de outros para análise dos
recursos da oralidade, como cenas de desenhos, programas infanto-juvenis,
entrevistas, reportagem, entre outros.

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Os alunos precisam ter espaço para manifestar-se oralmente. “Viver o direito


à voz é experiência pessoal e intransferível [...]” (BRASIL, 1997, p.40). Nesse viés,
o exercício efetivo do diálogo, “voltado para a troca de informações sobre vivências
16
culturais e esclarecimentos acerca de eventuais preconceitos e estereótipos é
componente fortalecedor do convívio democrático” (BRASIL, 1997, p.37).

O gênero causo

Quem não gosta de ouvir histórias? Todos nós temos lembranças das
histórias que nos foram contadas na infância. Isso porque a sociedade necessita de
histórias e “não consegue se desvencilhar desse processo imaginário que o
momento revela e que se manifesta nas ações, nos sonhos e nos sentimentos do
homem como ser social e cultural”. (GOMES; MORAES, 2013, p.9).
Ao escolhermos trabalhar com o causo nos aproximamos dos saberes
populares, bem como a um grande acervo oral tradicional herdado dos antigos
moradores de uma comunidade. Entramos “nos horizontes de nossas culturas,
mergulhando em um universo transformado pela força dos significados plurais que
habitam a tradição oral [...]” (GOMES; MORAES, 2013, p.9).
Nessa linha sócio-histórica, é preciso ouvir as histórias que os homens
comuns contam, na conversa na esquina, nas varandas, dos relatos mais curtos,
“que nos conduz a um mundo imaginário e fantástico evocando a força da forma de
nossos pensamentos, constituindo, em suas narrativas e brincadeiras com as
palavras, nosso conjunto social”. (GOMES; MORAES, 2013, p.9).
Os Parâmetros Curriculares Nacionais: Pluralidade Cultural e Orientação
Sexual (1997) destacam a importância dos vínculos geracionais sociais e familiares
favorecidos nas práticas de “transmissão de contos tradicionais” (BRASIL, 1997,
p.49). O documento enfatiza que a cultura deve ser valorizada como conteúdo em
seus mais diversos gêneros: “mitos, lendas, histórias, contos, causos, cordel;
tradições orais” (BRASIL, 1997, p.56).
Em decorrência disso, viver essas experiências é imprescindível para a
valorização das redes afetivas, cognitivas e linguísticas. (BRASIL, 1997, p.18).
Assim, tratar da tradição oral “de diferentes grupos étnicos e culturais, terá tanto

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sentido de exploração de linguagem quanto de conhecimentos ligados a diferentes


tradições culturais” (BRASIL, 1997, p. 55).
Outro ponto importante é que, “ao se considerar a participação do aluno como
17
um ouvinte ativo que cria, transforma e produz as histórias por ele escutadas e lidas,
verificamos o quanto a escola pode viabilizar esse espaço-tempo de aprendizagem e
vivência”. (GOMES; MORAES, 2013, p.18).
A palavra, o verbo, a linguagem e o ato de narrar são criadores e
transformadores. (GOMES; MORAES, 2013, p.93), uma vez que os relatos orais
sempre estiveram presentes no decorrer da história da humanidade. Desde “as
fábulas, os feitos e as sagas às epopeias e narrativas mitológicas egípcias, gregas,
hebraicas, romanas, hindus, chinesas, entre outras” (GOMES; MORAES, 2013,
p.94).
De acordo com Gomes e Moraes “considerar o espaço da sala de aula
terreno propício para o encontro entre gerações é de extrema importância para que
ocorra o resgate da tradição oral” (GOMES; MORAES, 2013, p.149). As histórias
que fazem parte da memória da comunidade podem e devem entrar nas salas de
aula como possibilidade de aprendizagem.
Dessa forma, os causos contados pelos pais, avós, vizinhos, professores e
outras pessoas da comunidade “constituem um vasto repertório de tradições, o
mosaico vivo da tradição oral, sempre em constante refazimento e composto de
identidades que se entrelaçam e se constituem umas às outras” (GOMES;
MORAES, 2013, p.151).
O causo visto sob essa ótica, “revela informação histórica, enográfica,
sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando costumes, ideias,
mentalidades, decisões e julgamentos” (CASCUDO, 2004, p.11). A tradição oral de
um povo preserva sua memória e sua história. Nesse contexto, “os causos assumem
o papel de representação social mais próxima da vivência cotidiana e da memória
coletiva” (DALAN, FERREIRA; PAULI, 2009, p.8). É preciso compreender que os
causos fazem parte de um contexto de representação coletiva da memória. “A voz
viva ao recordar o passado alicerça a coletividade ao recriar a vida. Nesse viés, voz,
corpo e percepção são instrumentos divulgadores da essência dos feitos humanos”
(DALAN, FERREIRA; PAULI, 2009, p.8).

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Práticas pedagógicas baseadas nos “causos propiciam estreitamento dos


laços de pertencimento na ação de contar e ouvir histórias dos antigos moradores
das localidades” (DALAN, FERREIRA; PAULI, 2009, p.11). Por meio da contação de
18
causos os moradores percebem o mundo a sua volta, preservam sua identidade
cultural, compartilham conhecimentos com seu grupo social, constituindo uma
memória coletiva.
Asseveram Ribeiro e Souza (2011) que o gênero causo tem um valor muito
importante na cultura popular regional. “É por meio da narrativa do imaginário e da
realidade que os acontecimentos criam formas” (p.2).
Guimarães Rosa enfatiza a importância e a influência que as narrativas dos
velhos, os contos, as lendas, os causos populares representavam em sua magnífica
produção literária. Rosa afirma continuamente que todos somos fabulistas por
natureza, somos do sertão; e ele trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o
que podia e transformava em lenda o ambiente que o rodeava, porque entendia que
o mundo que nos cerca é uma lenda (KONELL, 1999, p. 09).
Segundo Ribeiro e Souza (2011) o causo dá um suporte para o leitor expandir
o seu aprendizado. A sala de aula pode ser um ambiente possível para abrigar esse
estímulo.
De acordo com Costa (2009), em seu Dicionário de Gêneros Textuais, causo
é definido da seguinte forma:

[...] relato/conto/narrativa geralmente falado(a), relativamente curto(a), que


trata de um acontecimento, fato ou conjunto de fatos, reais ou fictícios,
como casos do dia a dia ocorridos com pessoas, animais etc., ou de
histórias da imaginação das pessoas, como “causos” ou “contos populares”
(COSTA, 2009, p.58).

Antônio Cândido (2001), afirma acerca dos causos que:

Sabia-se muitas coisa. Havia gente que começava a contar causos de


manhã cedo e ainda não tinha parado à hora do almoço. Eram casos de
santos, de bichos, de milagres, do Pedro Malazarte, e instruíam muito,
porque explicavam as coisas como eram. Por isso havia respeito e temor:
os filhos obedeciam aos pais, os moços aos velhos, os afilhados aos
padrinhos e todos à Lei de Deus (CÂNDIDO, 2001, p. 245).

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E no que se refere ao fato da oralidade, mencionado por Costa (2009) e por


Candido (2001), na caracterização do gênero, é por meio dessa modalidade, da
contação que ocorre de geração a geração.
19
O Causo é, em sua origem, um gênero primário, segundo a concepção
bakhtiniana, uma vez que origina-se em e de situações de comunicação verbal
espontâneas e que se organiza em um uso mais imediato da linguagem. De acordo
com Bakhtin (2003), os gêneros primários mantém uma relação imediata com a
realidade, com a vida cotidiana, constituem-se em circunstâncias de uma
comunicação verbal espontânea. Segundo Dolz e Schneuly (2004) a oralização
espontânea é aquela que acontece, “como fala improvisada em situações de
interlocução conversacional, que, numa das extremidades, constitui ‘modelo’
relativamente idealizado” (p.157), a qual, muito embora pareça desorganizada,
apresenta sim regularidades específicas.
Os causos apresentam características linguísticas e não linguísticas da
modalidade, conforme apontam Dolz e Schneuwly (2004): hesitações, titubeios,
reformulações, balbucios, falsos inícios, fáticos onipresentes, início de turnos
abortados e interrupções.
Quanto aos aspectos não linguísticos da comunicação oral podemos apontar:
recursos semióticos: quando o contador dá voz às suas histórias sua elocução é
emoldurada por um conjunto de diferentes recursos semióticos – qualidade da voz,
recursos prosódicos, (velocidade e ritmo da fala, pausa, entonação) e recursos
cinésicos (gestualidade, expressividade facial e corporal – que o subsidiam em sua
performance, na tarefa de promover e manter o envolvimento de seus ouvintes com
a exposição; recursos prosódicos: A combinação de entoação descendente e pausa,
associada a hesitação, dá a impressão de que a história vai-se pouco a pouco
esgotando e paulatinamente encerrando-se. Também a entoação e a pausa são
recursos prosódicos relevantes para sinalizar a abertura e o fechamento de
determinados tópicos da história; expressividade facial e olhar: Além dos recursos
prosódicos, a expressividade, facial, incluído o olhar, é relevante recurso que
subsidia e ancora a elocução do contador [...] assumindo uma função interacional
relevante de gestão [...]. Por fim, a gestualidade é um recurso dos mais centrais na
contação, uma vez que ganha corpo em ligação estrita com os elementos do

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ambiente de produção

Considerações Finais
20

Esperamos com este artigo contribuir para o trabalho no ensino do causo em


salas de aula do ensino fundamental, auxiliando professores interessados em tomar
este gênero como objeto de ensino da modalidade oral.
Observamos, durante o processo de produção, a validade da pesquisa para a
produção de futuros trabalhos com enfoque na língua oral e no gênero causo que
estejam inseridos na realidade dos alunos de cada comunidade. Observamos
também que, o gênero causo ganha universalidade por significar caráter identitário
do discurso daqueles que figuram na comunidade escolar. Entende-se aqui, o
gênero como ponto de partida para compreender a língua oral, sem esquecer seu
contexto de uso-reflexão-uso.

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EIXO: LÍNGUA ESTRANGEIRA MODERNA E ENSINO

CRENÇAS DE PROFESSORES SOBRE PRÁTICAS 23

COLABORATIVAS DE FORMAÇÃO NO CONTEXTO


ESCOLAR
Teachers´ beliefs on collaborative formation practices in the school context

Claudinei Aparecido Canazart (UEL, PG)

RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar resultados de uma investigação realizada com
cinco professores de escolas públicas estaduais de Londrina-Paraná com a finalidade de identificar
suas crenças sobre processos colaborativos como mecanismos de formação continuada do
professor, como tais práticas podem contribuir para os campos do ensino e da aprendizagem, bem
como tentar compreender como grupos colaborativos de formação entre professores podem se situar
no ambiente escolar público como espaço de desenvolvimento profissional. A partir de um
questionário de sondagem proposto sobre formação colaborativa os professores puderam oferecer
informações que tornaram possível traçar um panorama sobre seus conhecimentos acerca do tema
investigado e também saber como o ambiente escolar pode representar um ambiente de produção de
conhecimento tendo como referencial as relações de aprendizagem e ensino colaborativas não só
entre profissionais de áreas similares do conhecimento, mas também de áreas diferentes.

PALAVRAS-CHAVE: Prática colaborativa. Aprendizagem. Formação de professores.

ABSTRACT: This article has as main objective to show the results of an investigation carried out with
five teachers from state public schools in Londrina-Paraná aiming to identify teachers´ beliefs about
collaborative processes as mechanisms of teachers continuing formation, how such practices can
cotribute to teaching and learning fields, as well as trying to understand how teachers collaborative
formation groups can be situated in the public school place as an environment for professional
development. From a reseach questionaire on the purpose of collaborative formation the teachers
could provide information which make it possible the establishment of an overview about their
knowledge on the researched subject and also to know how the school place can represent a
productive environment of knowledge having the collaborative learning and teaching relationships as a
reference framework not only among similar areas of knowledge, but also among those different ones.

KEY-WORDS: collaborative practice. Learning. Teachers formation.

Introdução

Tradicionalmente a educação brasileira tem sido marcada por várias décadas


com características que evidenciam práticas isoladas quanto à formação profissional
dos educadores e isso, de forma consequente, tem reforçado até mesmo as práticas
didático-pedagógicas que permeiam o dia a dia de várias etapas de escolarização,
seja nos sistemas público ou privado de ensino. Não comumente ouve-se relatos de

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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professores que, por razões múltiplas, ainda se pautam em crenças pessoais e


profissionais de que a formação do educador se dá de forma mais eficaz quando os
mesmos estão inseridos em cursos de longa duração e/ou eventos que têm como
24
ponto crucial um ou mais profissionais do campo educacional com “maior formação
científico-acadêmica” ou com “maior experiência” em determinada área que pode,
assim, circunscrever-se como apto a formar outros professores que por razões
também diversas necessitam ser “capacitados”, “atualizados” ou mesmo “treinados”
a executar SUS/a atividade profissional de forma mais eficaz e que, portanto,
correspondam aos anseios e necessidades da sociedade que espera ver seu filhos /
alunos melhor preparados para a vida fora do ambiente escolar. Assim, nesse
contexto educacional ainda tão fortemente marcada por práticas isoladas de
formação continuada do professor, raramente pode-se ouvir falar em “formação
colaborativa” onde profissionais fundamentalmente estabelecidos em níveis
similares ou não de experiência, formação acadêmica e contextos de atuação
exerçam, de alguma forma, a prática colaborativa como processo de formação
profissional continuada. Mas, assim como as práticas colaborativas ainda pareçam
desconhecidas por muitas, algumas outras questões também merecem indagação
como, por exemplo, quais seriam as concepções e/ou definições que caracterizam
uma prática colaborativa de formação de professores? Quais seriam os elementos
constitutivos que orientam as práticas dentro de um grupo ou comunidade de
professores que se propõem a “formarem-se colaborativa e reciprocamente”? Quais
sentimentos e relações são possíveis de se estabelecer nesses processos de
interações permeados de diferenças, similaridades, proximidades ou
distanciamentos em termos de conhecimentos, visões, identidades, práticas,
opiniões, emoções, conflitos, objetos e objetivos em comum?
Para MAGALHÃES E FIDALGO, 2010, p. 776) que retomam JOHN-STEINER
1
(2000) ao tratarem de pesquisa investigativa nos contextos escolares

1
collaboration is another crucial concept, one that deals with establishing trust between participants – bringing
them together to share meanings and produce knowledge by working in complementary ways. In this sense,
establishing collaboration is of vital importance to create contexts in which research participants may take risks to
establish conflicts and contradictions; critically debate concepts, values, ideas and visions and to creativity
produce new ones. (minha tradução).

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Anais

[...] a colaboração é outro conceito crucial, que lida com o estabelecimento


de confiança entre os participantes – trazendo-os juntos para compartilhar
significados e produzir conhecimento trabalhando de maneiras
complementares. Neste sentido, estabelecer a colaboração é de 25
importância vital para criar contextos nos quais a pesquisa possa correr
riscos para estabelecer conflitos e contradições; debater conceitos
criticamente, valores, ideias e visões e para criativamente produzir novos
conceitos.

Pressupor que as práticas colaborativas de formação de professores pode


trazer ganhos significativos em termos de aprendizagem de novos conhecimentos,
novas práticas didáticas que refletem em sala de aula aquilo que foi produzido como
conhecimento pelo grupo colaborativo necessita, sem dúvida, também pressupor
que essas construções se dão em momentos que nem sempre se manifestam por
relações de aceitação e/ou passividade entre os membros que, portadores de suas
necessidades diferenciadas e com suas identidades distintas, trazem essas
características para as interações no grupo que, por razões inúmeras, poderá
enfrentar situações de desacordo e contradições, sejam elas manifestas em termos
de posturas críticas, de participação nas atividades propostas para os membros,
pelos diferentes níveis de experiência profissional e de conhecimento, pelas
diferenças entre áreas de conhecimento, pelos contratempos de mobilidade de
espaços e tempos para o grupo,aportes sócio-histórico e culturais que permeiam as
identidades individuais e a do grupo ou ainda pela identificação de objetos e
objetivos em comum que possam justificar e orientar a condução do processo de
formação colaborativa. Nos estudos de MAGALHÃES E FIDALGO (2010, p. 778)
ainda encontramos que apesar de ser desafiador a intenção de definir a
colaboração, é indispensável refletir sobre a diferença que existe entre essa e a
cooperação, sendo que essencialmente a colaboração seria melhor definida a partir
da análise de cada contexto colaborativo em específico dadas as suas
características peculiares como, por exemplo, a metodologia empregada em
determinadas interações colaborativas. Outro fator apontado como fundamental na

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

identificação das interações colaborativas em grupos distintos diz respeito à


linguagem utilizada como ferramenta mediacional das interações (MAGALHÃES E
FIDALGO, 2010, P. 783).
26
Tendo, então, como princípios orientadores a literatura que trata dos
processos colaborativos como contextos de formação de professores, este breve
estudo tem por objetivo principal refletir sobre as crenças e opiniões de professores
do ensino fundamental e médio de um colégio localizado na área urbana da Cidade
de Londrina a fim de tentar compreender as possíveis razões que pautam tais
crenças e opiniões acerca de processos colaborativos de formação e se a escola
pública, a partir desse referencial dos questionários feitos com esses professores,
pode significar espaço propício para o estabelecimento de formativos.

Referencial teórico

Refletir sobre processos colaborativos de formação de professores não é


tarefa fácil que sinaliza para definições simples e exatas sem levar em conta
inúmeras considerações necessárias a serem feitas sobre elementos distintos que
podem, de maneira particular e localizada, orientar para concepções que facilitem a
compreensão de um determinada espaço formativo que possa ser caracterizado
como espaço e processo colaborativo de aprendizagem de professores. Nos
estudos de JOHN-STEINER (2000, p.187-204) são discutidos aspectos que
traduzem, de forma sistematizada, algumas das características que constituem as
práticas colaborativas que podem ocorrer entre os mais diversos grupos ou
comunidades que se propõem a desenvolver trabalhos em colaboração. Com o
aporte de teorias como as de Vigotsky e Piaget que evocam as dimensões
psicológicas e comportamentais como aspectos fundamentais nas relações de
aprendizagem, bem como as de outros estudiosos; e também por meio de narrativas
de experiências comprovadamente vivenciadas por outros em práticas colaborativas,
a autora busca evidenciar quais características se revelam como mais significativas
nas relações de colaboração tais como as relações de interdependência e confiança
que podem ser estabelecidas entre as parceiras colaborativas, os aspectos de
respeito, identidade própria, sentimento de compartilhamento de experiências e

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

conhecimentos, interesses comuns ao mesmo objeto de trabalho ou ensino-


aprendizagem, o saber necessário para o enfrentamento e a resolução de desafios e
conflitos que constituem as interações rumo às descobertas. Também salienta a
27
necessidade de um rigor e organização de trabalho que de fato levem à apropriação
mutua daquilo que se deseja construir como objeto de conhecimento; persistência,
comprometimento, crítica construtiva são outros elementos apontados como
indicadores de sucesso quanto às práticas colaborativas que visam, sobretudo, uma
transformação das identidades envolvidas no processo e nas práticas que se espera
advir dessa transformação em grupos ou comunidades colaborativas. Ainda para
essa autora as chamadas “Comunidades de pensamento capacitam os participantes
a engajar na co-construção de conhecimento como processos
interdependentemente intelectuais e emocionais. Mas a maioria da literatura em
cognição compartilhada enfoca na cognição na espessura da dinâmica relacional da
colaboração. Aspectos de confiança, incerteza, competição, propriedade intelectual,
dependência financeira, equidade, fusão emocional e separação precisam ser
negociadas entre os parceiros na colaboração de longa duração.”2.
Ainda refletindo sobre as práticas colaborativas em ambientes escolares
pode-se concluir que tradicionalmente o sistema público de ensino tem fragilmente
fomentado discussões acerca do tema e tampouco estimulado que tais práticas de
formação entre professores se manifestem mais concretamente, haja vista os tão
sempre comentados aspectos difíceis que permeiam toda a atividade docente no
país que acabam por comprometer tais tentativas de se orientar práticas
colaborativas organizadas em espaços e tempos viáveis para uma realização que
satisfaça a necessidade de formação dos professores em grande escala; os
aspectos mais comumente mencionados são traduzidos por falta de tempo suficiente
para as interações entre professores, dificuldade de organização de espaços físicos
para acomodar grupos de professores, falta de informação e estímulo às práticas
colaborativas, limitadores de políticas públicas como a hora permanência ou hora
atividade do professor, impossibilidade de organização de horários compatíveis para

2
Thought communities enable participantes to engage in the co-construction of knowledge as interdependent
intellectual and emotional processes. But most of the literature on shared cognition focuses on cognition at the
expense of the relational dynamics of collaboration. Issues of trust, uncertainty, competition, intellectual
ownership, financial dependence, equity, emotional fusion, and separation need to be negotiated among partners
in long-term collaboration.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

que mais professores de áreas similares e diferentes possam se agrupar e orientar


suas práticas didático-pedagógicas a partir de documentos de estudos, propostas,
projetos e planejamentos mais coletivos que culminem não somente com a formação
28
profissional dos envolvidos mas que também e consequentemente reflitam no ensino
em sala de aula e na aprendizagem dos alunos. Enfim, nas dinâmicas conturbadas
de ambientes escolares a prática colaborativa fica a desejar em termos de atividade
e reconhecimento como espaço de formação eficaz que de forma direta traz
prejuízos para a instituição escolar e o sistema de ensino como um todo reforçando,
assim, velhas crenças e indicadores que insistem em reafirmar que a escola –
principalmente a pública – não constitui espaço de produção e socialização real de
conhecimento, ficando este a cargo das instituições de ensino superior
representados pelas figuras de seus docentes responsabilizados por “capacitar,
treinar ou atualizar” professores atuantes no segmento da educação básica que vai
da infantil até o ensino médio. Contrapondo-se a esse aspecto, encontramos em
RIGELMAN & RUBEM (2012, p. 980) que “Se nós queremos escolas para produzir
3
uma aprendizagem mais significativa por parte dos estudantes, nós temos que
oferecer mais oportunidades significativas de aprendizagem para professores [...] é
pela indagação sobre suas práticas que professores desenvolvem e melhoram sua
instrução de modo a influenciar positivamente a aprendizagem do aluno.” Ao
considerar que as práticas colaborativas podem promover não somente a formação
do professor engajado num determinado grupo ou comunidade de ensino e
aprendizagem, pode-se visualizar que tais práticas individuais e coletivas dos
mesmos professores se reverterão em práticas semelhantes quando no ambiente de
suas salas de aula onde, em meio à grande diversidade de alunos com seus aportes
socio-culturais e interesses, as possibilidades de ensino e de aprendizagem se
reconfiguram como práticas que permitem a interação entre pares ou grupos de
alunos, pode-se desenvolver a mesma linha de concretização da colaboração que
os próprios professores experimentam em seus grupos colaborativos, trazendo à
tona do ensino as capacidades de ação de seus alunos, as experiências e
conhecimentos individuais, os objetos e objetivos compartilhados pelo grupo em

3
If we want schools to produce more powerful learning on the part of students, we have to offer more powerful
learning opportunities to teachers […] it is through inquiring about their practice that teachers develop and
improve their instruction in order to positively influence student learning.”

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

sala, as Referências de opiniões, habilidades, emoções, responsabilidades,


divisão de trabalho e utilização de uma linguagem dialética entre os diversos pontos
que constituem o processo colaborativo e os resultados almejados pelo professor e
29
pelo grupo de alunos na condução de determinadas aulas; como pontua COCHRAN-
SMITH (1971 apud PHELAN, 1996, p. 336) ao discutir a formação de professores
em situação de pré-serviço que” [...] A mudança surge quando começamos a fazer
as coisas diferentemente, e quando a linguagem que nós utilizamos para executar
estas ações também muda.”4
Ao se falar em utilização da linguagem como elemento indiscutivelmente
necessário para a concretização da colaboração entre professores, é necessário
considerar que numa prática colaborativa que se espera seja reflexiva, crítica,
democrática e construtora de conhecimentos a linguagem precisa assumir caráter
livre e dialético, é importante que se reconheça o valor e o poder que cada “voz”
pode representar para a concretização eficaz de ensino e de aprendizagem que leve
os participantes a níveis significativos e reais que contribuam para sua formação
profissional e identitária reveladas pela identidade do próprio grupo colaborativo de
professores. A linguagem é, nesse contexto, ponto crucial e revelador de como as
interações e relações de poder se revelam como mecanismos constitutivos da
organização e realização da prática colaborativa e sinaliza, assim, para a presença
de vozes mais ou menos influentes, para a necessidade ou não de lideranças ou
articuladores do grupo que se mostrem necessários como estimuladores da
participação de todo se para os possíveis resultados que desse contexto virão.
Nos estudos de PHELAN (1996) encontra-se que “O tipo de consciência
reflexiva que capacita ações implícitas para encontrar uma linguagem de prática
surge mais facilmente em situações onde o diálogo aberto e igual é encorajado.” 5.
Como Magalhães e Fidalgo apontam, cabe ao grupo com todas as suas
peculiaridades “criar” um locus onde todos os envolvidos possam aprender e ensinar
mutuamente, a construir significados e ações partindo-se dos conflitos e encontros,
não estabelecendo relações do tipo top-down quando da negociação de saberes e

4
Change arises when we Begin to do things differently, and when the language that we use to perform these
actions also changes.”
5
The kind of reflective awareness that enables implicit actions to find a language of practice arises more easily
in situations where open and equal dialogue is encouraged.”

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

sentidos novos para o grupo. Para essas autoras a colaboração é um meio para
alcançar a reflexão crítica e desse modo, também é uma chave para projetos de
pesquisa crítica.
30
Para Ann Nevin et al (2009, p.569-574) o ponto fundamental centra-se na
colaboração entre professores, concebendo que há benefícios significativos nessas
colaborações que alcançam, por consequência, não só os professores em situação
de pré-serviço, mas também alunos que apresentam suas necessidades especiais,
bem como alunos de cursos regulares. Como forma de provocar reflexões acerca do
ensino colaborativo, esses autores retomam a literatura relacionada a fim de discutir
as implicações e/ou impactos que programas colaborativos para ensino e formação
trazem como ganhos profissionais e coletivos.
Outro aspecto importante no estabelecimento das interações em grupos
colaborativos de formação diz respeito à ética que deve pressupor todo o
engajamento e atividade dos participantes a fim de que se estabeleça um clima
mútuo de comprometimento e responsabilidade, uma relação equilibrada de ver “o
outro” e “ver-se a si mesmo” num ciclo permanente de interdependência para a
concretização de objetivos rumo ao objeto comum do ensino e aprendizagem que
levam à formação. Nos estudos sobre identidade e comunidade de ROTH (2009) e
de MATEUS (2009) sobre ética, vemos que os dois estudos se entrelaçam com
pontos comuns que são as relações com o “outro” e consigo mesmo no exercício de
práticas que constituem a (s) identidade (s) do individual e do coletivo. Na visão de
Mateus (2007) as dimensões que regulamentam e orientam a ética nas relações
colaborativas passam por inúmeros aspectos ou momentos que não só trazem
possíveis conceitos do que vem a ser ética, mas também como ela se constrói.
Ética, para a autora, é vista como atividade de prática social entre aquele que
“cuida” e aquele que “é cuidado” pelo outro num movimento recíproco. Nesse
cuidado permanente entre as partes e em especial nas relações colaborativas de
trabalho as tensões emergem proporcionando conflitos que podem servir de
instrumentos de autoconhecimento e conhecimento do outro, do individual e do
grupo ou comunidade de ensino-aprendizagem. A dialogia nesse processo de
conhecimentos mútuos se torna indispensável como parte do processo investigativo.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Metodologia

Para a realização desse estudo foram utilizados quinze questionários de


31
sondagem respondidos por professores da educação básica pública quem atuam
nos níveis fundamental II e médio de ensino em diferentes áreas do conhecimento
como Ciências Biológicas, Língua Inglesa, Língua Portuguesa, Física, Química,
Filosofia, Sociologia, Educação Física, Matemática, História, Geografia, e com
tempos diferentes de experiência na área do ensino a fim de verificar suas crenças,
opiniões e/ou percepções acerca da prática colaborativa como processo de
formação de professores no ambiente escolar. Para a compreensão e interpretação
dos dados coletados os questionários foram analisados seguindo-se a ordem
crescente das perguntas e respostas demonstradas nas notas de rodapé.
Na busca de interpretar os dados recebidos por meio dos questionários as
respostas foram agregadas por sínteses observando-se as similaridades e os
distanciamentos nas colocações feitas pelos professores e simultaneamente suas
considerações foram analisadas à luz de teorias pertinentes no sentido de
fundamentar as possíveis interpretações dentro de uma análise interpretativo-
comparativa. Na finalização das análises os dados considerados relevantes serviram
de base para formular algumas teorizações sobre crenças e percepções dos
professores acerca da formação colaborativa no espaço da escola pública.

Discussão de dados

Na observação das respostas dadas pelos professores no questionário de


sondagem foi possível traçar um panorama de suas falas de forma mais ampla no
sentido de buscar compreender tais considerações. Ao serem indagados sobre seu
entendimento quanto ao que seria “formação colaborativa de professores” (1 e 2) 6
suas indicações versaram que formação colaborativa remete à “troca de
experiências, diálogo, esforço em partilhar saberes” sejam eles advindos de áreas
conceituais semelhantes ou mesmo diferentes e também trazidos por professores
6
O que você entende por “Formação Colaborativa de professores”?

Você costuma aprender mais sobre seu trabalho de forma individual ou na colaboração com outros colegas?
Por quê?

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

que estejam em níveis diferenciados em sua escala acadêmica de formação como,


por exemplo, técnicos, graduados, especialistas, mestrandos ou doutorandos sendo
essas “diferenças” extremamente favoráveis aos processos formativos, segundo os
32
entrevistados. Junto a isso somam-se as opiniões dos entrevistados quanto ao
caráter positivo da formação colaborativa em superioridade à formação individual e
isolada; esses professores argumentam que as vantagens da formação colaborativa
se estendem tanto em níveis maiores de complementaridade e produção de
conhecimentos quanto de socialização desses mesmos constructos que, de forma
continuada, podem ser expandidos tanto em termos de aprofundamento quanto de
enfoques alternativos que melhor orientarão o trabalho a ser desenvolvido no ensino
e na aprendizagem. Para STEINER (2000, p. 192) “Em empreitadas colaborativas
nós aprendemos um com o outro ensinando o que nós sabemos; nós nos
engajamos numa apropriação mútua. Práticas individuais são insuficientes para
enfrentar os desafios e as novas complexidades das salas de aula, [...], e a mudança
do local de trabalho.”7. Corroborando com esta visão sobre colaboração vemos
ainda em COCHRAN-SMITH & LITLE, 1993 APUD PHELAN 1996, P. 340) que
“Uma visão pressupõe uma habilidade de ver para além das normas educacionais
para abraçar outras possibilidades educacionais”8. Ora, pensar em processo
colaborativo para formação de professores tendo como premissas os objetos de
pesquisa, ensino e aprendizagem em foco já se constitui em um “olhar para além
das normas” na busca de possibilidades outras que ressignifiquem a prática da
formação e consequentemente que isso reflita no trabalho profissional que alcança
esferas enormes de aprendizes e/ou alunos que poderão receber de forma direta os
efeitos dessa prática colaborativa entre os professores.

Ao serem indagados sobre a possibilidade de aprendizagem colaborativa


entre professores e quais seriam as características que evidenciam esse processo
formativo, (3 e 4)9 os entrevistados responderam afirmativamente de forma unânime

7
In collaborative endeavors we learn from each other by teaching what we know; we engage in mutual
appropriation. Solo practices are insufficient to meet the challenges and new complexities of classrooms,
parenting, and the changing workplace. (minha tradução)
8
A vision presupposes an ability to see beyond educational norms to embrace other educational possibilities.
(minha tradução)
9
Você acredita que é possível aprender com colega (s) professor (s)? Por quê?

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Anais

salientando que as “elaborações e soluções de colegas podem ajudar a solucionar


problemas na própria prática pedagógica”; mesmo sendo por meio de visões
produzidas por áreas diferentes do conhecimento que nem sempre culminam com
33
conclusões convergentes, mas também por meio das divergências que geram
conflitos que, por sua vez, provocam o desejo de aprofundamento mais intenso nas
questões surgidas. Por meio de diferentes saberes e diferentes abordagens torna-se
possível desenvolver um “olhar diferente”. Nesse processo de formação mútua e
simultânea, os entrevistados caracterizam o processo colaborativo como espaço de
“partilha e discussão de erros e acertos”, um “conjunto interdisciplinar” que possa
promover a participação horizontal de todos os envolvidos primando pelo respeito e
corresponsabilidade que permitam a democratização do poder. A partir desses
excertos que tratam das características peculiares em contextos de formação
colaborativa podemos retomar GAUTHIER, (1998, p. 28 apud KLEIMAN 2001, p.
243) afirmando que "[...] é muito mais pertinente conceber o ensino como a
mobilização de vários saberes que formam uma espécie de reservatório no qual o
professor se abastece para responder a exigências específicas de sua situação
concreta de ensino.”, assim, na busca constante de aprimorar o próprio trabalho o
professor irá acessar tanto em seu próprio repertório de conhecimentos quanto nas
parcerias colaborativas que poderão sustentar ações alternativas e facilitadoras para
resultados de maior sucesso.
Na sequência de das questões (5, 6 e 7)10 os entrevistados fizeram
colocações a respeito da possibilidade de espaço para emoções e/ou afetividade
nas relações colaborativo-formativas e, como pode-se observar pelos excertos
abaixo, as respostas indicaram que:

Em sua opinião quais as características que um trabalho de formação colaborativa entre professores deve ter?

10
Nas parcerias colaborativas entre professores há espaço para sentimentos de emotividade / afetividade? Por
quê?

Como seriam as questões de responsabilidade / divisão de trabalho / cumplicidade nas relações colaborativas
de formação?

Como a linguagem / diálogo pode interferir na formação colaborativa?

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

[...] expressar os sentimentos pode ajudar a elaborá-los.


[...] as emoções quanto o afeto participam do processo de aprendizagem.
[...] isso é que move as pesquisas, trabalhos diversos e a interatividade.
esse é um aspecto que não pode ser tirado das características do processo
de socialização, confiança e generosidade são fundamentais.
34

Quanto aos aspectos de responsabilidade, divisão de trabalho, cumplicidade


e o papel da linguagem nas mesmas relações os apontamentos referiram-se à
necessidade de planejamento e organização de um cronograma passível de
alterações para a condução do trabalho colaborativo atreladas a métodos e
metodologias que viabilizem uma sincronia na distribuição e execução das tarefas
pelos membros do grupo e isso, segundo as opiniões, facilitaria uma distribuição
democrática do poder marcado pela corresponsabilidade de ações. A linguagem,
nesse contexto é concebida pelos entrevistados com papel fundamental no sentido
de permitir e alicerçar a prática do diálogo que favoreça a troca de experiências e
propicie a consolidação de conceitos construídos; que a linguagem, como base do
conhecimento, possa subsidiar as interações como “parte constitutiva do
entendimento intersubjetivo” que gera o consenso no grupo colaborativo evitando,
assim, visões unilaterais que não promovem o valor da diferença como elemento
positivo para a formação de todo o grupo. Nos estudos de REIS ET AL (2011) é
possível encontrar reflexões que configuram a linguagem como elemento
constitutivo das relações que fundamentam as práticas dialógicas bem como a
construção da identidade de professores reiterando que “[...] reconhecemos ligações
da identidade com linguagem, discursos, saberes, crenças, subjetividades,
interações produzidas no interior de instâncias formativas [...]”. Linguagem no
contexto colaborativo é ferramenta essencial que traduz objetos e finalidades de
formação profissional e pessoal e por isso sua realização depende de práticas
discursivas que permitam a democratização de vozes e horizontalização nas
participações que concretizem, de fato, uma colaborativo com reelaborações da
linguagem que almeja alcançar mudanças que culminem na realização de sua tarefa
docente diária, reorganizando e ressignificando o trabalho com seus alunos também
em formação, entendendo que “[...] o trabalho do professor é visto como um
processo constante de reconstrução dos meios de trabalho para cumprir ou redefinir
as obrigações prescritas, tendo sempre como objetivo “organizar o trabalho dos

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

alunos”, reconstruindo, redefinindo e reelaborando as prescrições.” 9SAUJAT, 2002,


apud LOUSADA, 2.11, p. 119).
Nas questões seguintes (8, 9 e 10)11 as indagações visavam colher
35
informações sobre o sucesso da formação do grupo colaborativo, o papel dos
administradores para concretizar o processo de formação e quais seriam as
contribuições de áreas diferentes para o grupo em formação. As afirmações dos
entrevistados focalizam os aspectos de “acolhimento, disponibilização de
conhecimentos, cumprimento dos acordos feitos, a pesquisa, a interação social, a
construção do consenso pelas relações intersubjetivas, o rompimento com meios
institucionais que rompem a ação comunicativa, a aptidão em experimentar e
conceber novas ideias.” Ao falarem sobre o papel dos dirigentes e/ou
administradores os apontamentos indicam que cabe a esses indivíduos e/ou
instituições dar o suporte e/ou condições necessárias para a viabilização de
espaços e tempos de formação atuando como facilitadores ou mediadores que
constroem os elos necessários para as interações entre o grupo onde,
subsequentemente, as áreas diferentes do conhecimento poderão completar ou
complementar as deficiências umas das outras construindo uma visão geral de que
o conhecimento não é objeto fragmentado, pode ainda instaurar a aproximação
afetiva e científica entre os pares criando, assim, uma “coesão social na escola”
como ambiente de formação colaborativa. Ao considerar todos esses elementos de
forma conjunta pode-se depreender que para a constituição de grupos colaborativos
de formação de sucesso diversos movimentos precisam ser executados no sentido
de criar interfaces entre sentimentos emotivo-afetivos, conhecimentos e condutas
científico-profissionais e o estabelecimento de papéis e atribuições para os membros

11
Qual o papel que cada participante da colaboração precisa desempenhar para o sucesso da formação?

Qual o papel dos administradores diretos (gestores/diretores/pedagogos) para a concretização de propostas de


formação colaborativa entre professores?

Em que aspectos a formação colaborativa entre professores de áreas diferentes pode trazer ganhos reais para
todos os envolvidos / participantes?

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

envolvidos a fim de que o conhecimento almejado neste processo não se restrinja


apenas aos envolvidos diretos na formação que, sendo professores, não se
encontram simplesmente deslocados em seus espaço e tempo pedagógico
36
desvinculados de outros participantes que, de certa forma, ecoam suas “vozes” e
decisões em forma de prescrições, orientações e até mesmo de limitações quanto
às possibilidades de trabalho nos ambientes escolares, sejam esses tais “vozes” a
da política governamental para a formação de professores, a da comunidade
escolar, a dos gestores / diretores dos estabelecimentos de ensino, dos funcionários,
da sociedade em geral. Ressaltando a importância dessas “vozes” foi perguntado na
pesquisa (11)12 sobre os ganhos que seus alunos poderiam ter quanto à parceria
colaborativa de seus professores e estes pontuaram que o trabalho colaborativo
pode trazer mudanças no exercício do trabalho docente, em especial isso pode
contribuir para uma ação interdisciplinar quando do tratamento dos conhecimentos
trazidos e produzidos em sala de aula sob um enfoque do agrupamento e não da
fragmentação facilitando a “compreensão da realidade (objetos de estudo) na sua
complexidade.
Na finalização de questões (12, 13, 14 15 e 16)13 a sondagem buscava
informações diversas (vide rodapé) sobre aspectos relacionados aos obstáculos à
formação colaborativa, liderança, espaço e tempo institucionalizados, relações de
poder. As colocações evidenciam a preocupação em dizer que obstáculos diretos e
indiretos podem existir e comprometer propostas de formação colaborativa e estão
ligados a: pensamento individualista, destaque para reconhecimentos individuais,
não oportunidade para construção coletiva de planos de trabalho, políticas de
12
E os alunos? Quais seriam os ganhos das parcerias entre professores?
13
Há obstáculos que impediriam a formação colaborativa entre professores? Quais seriam eles?

Você considera o espaço/tempo da hora atividade como uma possibilidade de formação colaborativa? Por quê?

Em sua opinião é possível que todos os participantes de um grupo de formação colaborativa tenham a “mesma
voz” nas interações? Como isso pode se evidenciar?

Num grupo colaborativo há relações de poder? Quais seriam e por quê isso ocorre / não ocorre?

Em grupos de formação colaborativa há a necessidade de liderança (s)? Por quê?

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Anais

Governo em vez de política de Estado, falta de apoio pelos gestores escolares,


dificuldade de entendimento pelos próprios profissionais da educação, sensação de
conforto em lideranças “carismáticas” ou autoritárias no grupo, distanciamento de
37
participação política, inviabilidade da hora-atividade pela incompatibilidade horários,
insuficiência ou descaracterização desse tempo. Quanto ao fato da equidade de
vozes no grupo, essa pode acontecer pautada pelo consenso e o dissenso, pois no
conflito é que surgem as reflexões que (re) configuram papéis, atribuições e direito à
voz no embate de ideias rumo a um objeto e objetivo coletivos. O poder, para os
entrevistados, está centrado “no saber” ou “saberes” e este é manifesto por vezes
em forma de disputa quando alguém está à frente das percepções e por isso das
decisões, essa manifestação de poder pode se dar de maneira democratizada e
horizontal, como já mencionado, mas também, dependendo da construção do
processo colaborativo, ela pode se evidenciar por tendências pautadas em tempo de
trabalho de algum membro, em resistências a novas formas de interagir e agir no e
para o coletivo. Assim, surgem lideranças que poderiam ser chamadas de instintivas
ou mais naturalizadas (aceitas) pelo grupo ou ainda aquelas que se põem à frente
fundamentadas numa espécie de imposição conceitual e reprodutoras de formas
arbitrárias de lideranças vistas em outros segmentos da da sociedade; vale sublinhar
que nesse item quatro dos entrevistados ressaltou a necessidade de liderança
individualizada no grupo, e apenas um salientou que “todos podem assumir a
liderança para que seja democrática e coletiva

Considerações

A partir desse breve estudo sobre o processo de formação colaborativa entre


professores alguns pontos merecem destaque como elementos cruciais para uma
caracterização desse processo que sugerem novas proposições de estudos mais
aprofundados sobre o tema. Assim, é possível considerar que:
 Os professores entrevistados se mostram favoráveis à prática colaborativa de
formação profissional;
 Entendem prática colaborativa de formação atrelada à troca de experiências
entre profissionais de áreas do conhecimento similares e não similares;

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Anais

 Administradores e gestores da educação necessitam subsidiar e tomar parte


nas práticas colaborativas entre os professores;
 A linguagem há que ser tomada como mecanismo essencial para o
38
estabelecimento de diálogo que permita relações democráticas de poder e de
ação com equidade de vozes;
 As emoções e sentimentos como respeito, partilha, aceitação, generosidade e
outros devem permear as relações colaborativas e que por isso sustentam o
sucesso;
 As convergências e divergências constituem-se em fomentadores para a
construção de reflexões que constituem a aprendizagem;
 Há a necessidade de organização sistematizada do trabalho como
cronogramas, prazos, responsabilidades, atribuições;
 Deve-se romper com estruturas e mecanismos que obstruem a ação
comunicativa que leva à construção de relações intersubjetivas;
 Que a hora atividade institucionalizada carece ainda de implementações que
a configure como espaço e tempo propícios aos processos de formação
colaborativa;
 Que, sobretudo, as relações de complementaridade e construção de
conhecimento por meio da formação colaborativa entre professores culminem
em princípios de coesão profissional, produção e socialização democrática de
conhecimentos no ambiente escolar.

Referências

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JOHN-STEINER, V. Thought Communities. In:___. Creative Collaboration. New


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Anais

A abordagem das orações adverbiais no livro


Aprender e praticar gramática, de Mauro
40

Ferreira
The approach of adverbial clauses in the book Aprender e praticar
gramática, de Mauro Ferreira
Kátia Roseane Cortez dos Santos (UEM-PG)

RESUMO: Este estudo objetivou discutir quais concepções de linguagem e de gramática subjazem à
organização e à seleção do conteúdo “Orações subordinadas adverbiais” presente no livro Aprender
e Praticar Gramática, de Mauro Ferreira (2011). Para embasar a análise, foram utilizados os trabalhos
de autores como Possenti (2000), Neves (2002), Perfeito (2005) e Camillo (2007), além dos
documentos oficiais sobre o ensino de português, PCNs (1997) e DCEs (2008). Concluiu-se que, em
grande parte da exposição do conteúdo focalizado, nota-se uma postura essencialmente tradicional
na abordagem do tema. Entretanto, Mauro Ferreira tenta contextualizar a abordagem das orações
adverbiais na seção “As orações adverbiais nos textos” e propõe exercícios de análise linguística
tanto em frases como em textos. Portanto, pode-se dizer que a abordagem do tema analisado se dá
de maneira “híbrida”, valendo-se tanto de estratégias tradicionais quanto de metodologias
provenientes da prática da análise linguística.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de língua portuguesa. Prática de análise linguística. Orações adverbiais.

ABSTRACT: This study aimed to discuss which concepts of language and grammar underlie the
organization and selection of the subject "Subordinate adverbial clauses" present in the book
Aprender e Praticar Gramática, by Mauro Ferreira (2011). To support the analysis, it were used
studies of authors such as Possenti (2000), Neves (2002), Perfeito (2005) and Camillo (2007), in
addition to official documents on the Portuguese teaching, PCNs (1997) and DCEs (2008). It was
concluded that, in the most of the exposure of the adverbial clauses, it is noted an essentially
traditional position on the approach to the subject. However, Mauro Ferreir tries to contextualize the
approach of adverb clauses in the section "The adverb clauses in the texts" and proposes exercises of
linguistic analysis both in phrases and in texts. Therefore, it is possible to say that the approach to the
subject examined is made in a "hybrid" way, using both traditional strategies and methods from the
practice of linguistic analysis.
KEYWORDS: Portuguese teaching. Practice of linguistic analysis. Adverbial clauses.

Introdução

Recentemente no Brasil, a partir de meados dos anos 2000, muito se tem


discutido sobre o ensino de gramática e/ou sobre a prática de análise linguística nas
aulas de língua portuguesa. O debate tem girado em torno, basicamente, da
seguinte questão: a escola deve ou não ensinar gramática aos alunos? Se sim, qual
a maneira mais adequada de se fazer isso?

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Assim, diante desse panorama, este trabalho visa a contribuir com a


discussão ao propor uma análise crítica da abordagem acerca das orações
subordinadas adverbiais na gramática de Mauro Ferreira, intitulada Aprender e
41
praticar gramática. Este estudo teve como objetivo discutir quais concepções de
linguagem e de gramática subjazem à organização e à seleção dos conteúdos
presentes no livro. Foram analisadas tanto as seções que conceituam/classificam
tais orações quanto as seções que apresentam exercícios a respeito do assunto.
Com esse intuito, este trabalho está organizado da seguinte forma: duas
seções (Concepções de linguagem e de gramática; Ensino de gramática), que
apresentam brevemente a fundamentação teórica utilizada nas análises –
constituída pelos trabalhos de autores como Possenti (2000), Neves (2002), Perfeito
(2005) e Camillo (2007), além dos documentos oficiais sobre o ensino de língua
portuguesa: os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) e as Diretrizes
Curriculares da Educação Básica (2008) – ; uma seção intitulada Análise, que está
subdivida em: Estruturação geral do material, Estruturação da Unidade 26: Orações
subordinadas adverbiais e a conceituação do tema, e Análise dos exercícios; e, por
fim, a seção Considerações finais, na qual são discutidos os resultados da análise e
são feitas algumas considerações relevantes sobre o tema.

Concepções de linguagem e de gramática

De acordo com Perfeito (2005), apoiando-se nos trabalhos de Geraldi (1984),


existem três concepções de linguagem, as quais influenciam o trabalho do professor
em sala de aula de forma significativa: a linguagem como expressão do
pensamento, a linguagem como instrumento de comunicação, e a linguagem como
forma de interação.
A autora ainda apresenta a perspectiva adotada por Castilho (1998), que
considera a existência de três modelos teóricos de interpretação da língua humana:
a língua como atividade mental, a língua como estrutura, e a língua como atividade
social. Importante mencionar que esses três modelos estão relacionados,
respectivamente, às três concepções elencadas por Geraldi (1984).

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A concepção de linguagem como expressão do pensamento provém da


tradição gramatical grega, tendo sido rompida, teoricamente, apenas no início do
século XX, com os trabalhos do teórico Ferdinand de Saussure. Durante todo esse
42
período, o que esteve em vigor foi uma doutrina essencialmente normativa do certo
e do errado, que desconsiderava a heterogeneidade e as variações (de diferentes
tipos) da língua (PERFEITO, 2005).
No que concerne à concepção de gramática correspondente a esse
entendimento de linguagem, é valido apresentar o que Camillo (2007) afirma:

O conceito da linguagem como expressão de pensamento estuda a


gramática teórico-normativa (ou prescritiva), a qual se prende a conceitos e
regras e defende a norma culta, ou seja, o português correto; tudo o que
foge a esta norma culta representa um erro. Esta gramática visa o falar e
escrever “bem” (p. 3).

Diante disso, percebe-se claramente que, ainda hoje, a grande maioria dos
professores de língua portuguesa adotam esse posicionamento acerca do ensino de
gramática, isto é, ensinar gramática é ensinar regras, e tudo que foge à norma
constitui um erro.
Na segunda concepção de linguagem (linguagem como instrumento de
comunicação), a língua é vista “como um código, capaz de transmitir uma
mensagem de um emissor a um receptor” (PERFEITO, 2005, p. 15), sendo
focalizada, assim, de maneira objetiva e pelo seu caráter informativo. Isso acaba por
desconsiderar importantes aspectos subjacentes ao uso da língua, como as relações
de poder estabelecidas por meio da utilização desse sistema e as funções emotivas
e conotativas da linguagem, por exemplo.
A essa concepção de linguagem está vinculada a concepção de gramática
descritiva, que busca descrever as regras que de fato são utilizadas pelos falantes.
Considera-se, dessa forma, as variações linguísticas como um aspecto natural da
língua, não havendo “erros” que devam ser apontados (CAMILLO, 2007). Entretanto,
quando analisamos as metodologias pedagógicas que se associam a essa visão,
observamos que

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

em termos gramaticais, na prática, sem o abandono do ensino da gramática


tradicional, focaliza-se o estudo dos fatos linguísticos por intermédio de 43
exercícios estruturais morfossintáticos, na busca da internalização
inconsciente de hábitos linguísticos próprios da norma culta (PERFEITO,
2005, p. 17, grifo do autor)

Diante desse panorama, percebe-se que o tratamento da gramática em sala


de aula ainda não pode ser considerado satisfatório. Atualmente, encontramos um
tratamento mais adequado a esse tema quando nos encontramos no âmbito da
terceira concepção de linguagem: linguagem como forma de interação.
Sob esse enfoque, a linguagem “é o local das relações sociais em que o
falantes atuam como sujeitos (PERFEITO, 2005, p. 22, grifo do autor). Assim, é por
meio da linguagem que os indivíduos interagem, seja informando, emocionando, ou
convencendo, por exemplo. O falante é visto, portanto, como um sujeito que age
sobre o outro por meio da língua.
É possível relacionar, de forma mais evidente, a essa concepção de
linguagem a gramática reflexiva, pois esta “volta-se para as atividades de
observação e reflexão da língua. Essa gramática se preocupa mais com o processo
do que com o resultado, está relacionada com as atividades epilinguísticas”
(PARANÁ, 2008, p. 78). A esse respeito, é importante ressaltar que, a partir dessa
visão, o ensino de gramática passa a ser entendido como uma atividade de análise
linguística, sendo que

o uso da expressão ‘análise linguística’ não se deve ao mero gosto por


novas terminologias. A análise linguística inclui tanto o trabalho sobre as
questões tradicionais da gramática quanto questões amplas a propósito do
texto, entre as quais vale a pena citar: coesão e coerência internas do texto;
adequação do texto aos objetivos pretendidos; análise dos recursos
expressivos utilizados [...]; organização e inclusão de informações etc.
(GERALDI, 2004, p. 74 apud PARANÁ, 2008, p. 60)

Isso posto, podemos afirmar que o trabalho de análise linguística é o que


mais adequadamente atende às necessidades impostas atualmente pela nossa

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

sociedade (a saber, a formação de um sujeito que se relaciona de forma crítica e


autônoma com a linguagem) e às expectativas em relação à escola e ao ensino de
gramática, como veremos mais detalhadamente na seção a seguir.
44

Ensino de gramática

Para iniciar esta seção, é válido observar o que questiona Neves (2002) sobre
o ensino de gramática:

A questão do ensino da gramática – como ocorre em qualquer tipo de ação


de pedagógica – tem de passar por uma primeira pergunta básica: que é
que se pretende com esse ensino? Dentro de objetivos gerais de ensino de
português no ensino fundamental e médio, que, necessariamente, tem de
incluir melhor desempenho linguístico do aluno – tanto ativo quanto passivo,
tanto oral quanto escrito – que papel pode ter a gramática? (p. 225)

Na tentativa de responder a esse questionamento, pode-se elencar – dentre


os muitos objetivos gerais de língua portuguesa constantes nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (1997) – um propósito do ensino de português que está
diretamente relacionado ao ensino de gramática: “usar os conhecimentos adquiridos
por meio da prática de reflexão sobre a língua para expandirem as possibilidades de
uso da linguagem e a capacidade de análise crítica” (1997, p. 33). Em outras
palavras, o ensino de gramática (adotando a metodologia de trabalho da análise
linguística) deve objetivar, como já mencionado neste trabalho, a formação de um
sujeito autônomo e crítico no que concerne ao uso da língua.
Por esse motivo, Sírio Possenti (2000), em seu livro Por que (não) ensinar
gramática na escola, defende justamente que os professores devem ensinar
gramática aos seus alunos. Entretanto, esse ensino deve seguir algumas
orientações, discutidas a seguir.
O ponto chave presente na perspectiva de Possenti (2000) é o estudo da
gramática (análise linguística) levando em consideração dois elementos essenciais:
o texto e o contexto. Sobre esse assunto, seguem algumas citações constantes nas

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Diretrizes Curriculares da Educação Básica (2008) e no trabalho de Neves (2002)


que corroboram com esse ponto de vista:

45

O estudo da língua que se ancora no texto extrapola o tradicional horizonte


da palavras e da frase. Busca-se, na análise linguística, verificar como os
elementos verbais (os recursos disponíveis da língua), e os elementos
extraverbais (as condições e situação de produção) atuam na construção de
sentido do texto (PARANÁ, 2008, p. 60, grifos nossos).

O ensino da nomenclatura gramatical, de definições ou regras a serem


construídas, com a mediação do professor, deve ocorrer somente após o
aluno ter realizado a experiência de interação com o texto (PARANÁ, 2008,
p. 60-61, grifos nossos).

Ora, em tal ponto de vista, tem significado, especialmente para esse nível
de ensino, o tratamento funcional da gramática, que trata a língua na
situação de produção, no contexto comunicativo. (NEVES, 2002, p. 226,
grifos nossos).

Considerando a interlocução como ponto de partida para o trabalho com o


texto, os conteúdos gramaticais devem ser estudados a partir de seus
aspectos funcionais na constituição da unidade de sentido dos enunciados
(PARANÁ, 2008, p. 78, grifos nossos).

Dessa forma, analisando os excertos acima, é possível afirmar que o trabalho


com a gramática em sala de aula deve ser feito de maneira contextualizada, sempre
a serviço do entendimento dos sentidos presentes nos textos. O estudo da
gramática não deve ser encarado como memorização de regras e nomenclaturas
por meio de exercícios essencialmente estruturais, mas como análise crítica dos
elementos linguísticos constitutivos de um texto por meio do que Possenti (2000)
chama de “práticas significativas”, sempre partindo da leitura e da produção textual,
como é sugerido também nos documentos oficiais (DCEs e PCNs).
Por fim, deve-se assinalar que realizar um trabalho de análise linguística em
sala de aula não significa, de modo algum, abandonar certos conceitos e
metodologias da gramática teórico-normativa. Entretanto, é dever do professor não
reduzir sua prática a uma postura prescritiva, mas sim ampliá-la, fazendo uso de
outras perspectivas mais adequadas ao tratamento da gramática em sala de aula.
Corrobora com essa afirmação os próprios documentos oficiais que norteiam o
trabalho do professor ao afirmarem que “[existe] a importância de considerar não

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

somente a gramática normativa, mas também as outras, como a descritiva, a


internalizada e, em especial, a reflexiva no processo de ensino de Língua
Portuguesa” (PARANÁ, 2008, p. 78).
46

Análise

Como objeto de análise deste trabalho, selecionou-se a Unidade 26: Orações


subordinadas adverbiais da gramática de Mauro Ferreira do Patrocínio, intitulada
Aprender e praticar gramática, volume único, publicada em 2011. A análise aborda
tanto a teoria sobre as orações adverbiais quanto os exercícios constantes na
gramática, com o objetivo de fazer uma reflexão crítica sobre as concepções de
linguagem e de gramática que subjazem à elaboração do material e também qual a
visão de ensino de gramática adotada pelo autor.

Estruturação geral do material

Primeiramente, é importante apresentar a estruturação da gramática como um


todo, já que isso ajuda a situar o objeto de análise de forma mais satisfatória. Logo,
em seu sumário, temos a seguinte organização:
 Parte 1: O universo da linguagem
o Unidade 1: As diferentes gramáticas; Variedades linguísticas: padrão e
não padrão; Adequação e inadequação linguística; Funções da
linguagem; Gêneros textuais.
o Unidade 2: Variações linguísticas
o Unidade 3: Figuras de linguagem
o Unidade 4: Noções de semântica
 Parte 2: A palavra: seus sons e grafia
o Unidade 5: Fonologia
o Unidade 6: Acentuação gráfica
o Unidade 7: Ortografia
 Parte 3: Morfologia

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Anais

o Unidades 8 – 19: abordam os seguintes temas: estrutura da palavra,


formação de palavras e classes gramaticais.
 Parte 4: Sintaxe
47
o Unidades 20 – 33: abordam os seguintes temas: funções sintáticas
(tanto no período simples quanto no período composto), concordância
nominal e verbal, regência nominal e verbal, crase e colocação
pronominal.
 Parte 5: Pontuação
o Unidade 34: Pontuação
 Parte 6: Se você quiser saber MAIS – que traz exercícios extras com gabarito.
Diante desse sumário, já é possível tecer algumas considerações,
observando o que Perfeito (2005) afirma a respeito da perspectiva adotada pela
gramática teórico-normativa, que está em consonância com a concepção de
linguagem como expressão do pensamento. Vejamos:

O eixo da progressão curricular e dos manuais didáticos são os itens


gramaticais, isto é, os aspectos relacionados à fonética, à morfologia e à
sintaxe, desvinculados das atividades de leitura e produção e textual.
(PERFEITO, 2005, p. 13)

Ora, com exceção da parte 1 da gramática de Mauro Ferreira, é exatamente


assim que os conteúdos do material analisado são organizados. Entretanto, claro, é
importante ressaltar que o corpus deste trabalho se trata de uma gramática e não de
um livro didático, por isso é de se esperar que não haja atividades de leitura e de
produção textual.
Porém, somente isso não justifica o fato de a organização dos conteúdos
seguirem uma ordenação baseada essencialmente em itens gramaticais, uma vez
que existem outras gramáticas, de orientação funcionalista que apresentam os
conteúdos organizados de outra forma, como e é caso da Nova Gramática do
Português Brasileiro, de Ataliba T. de Castilho, publicada em 2010; e da Gramática
de Usos do Português, de Maria Helena de Moura Neves, publicada em 2000.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Estruturação da Unidade 26: Orações subordinadas adverbiaise a


conceituação do tema

48
Feita a análise da estruturação do sumário da gramática, também se faz
necessário expor a organização da Unidade 26, especificamente, que é o foco deste
estudo.
 Unidade 26: Orações subordinadas adverbiais – abertura da unidade com um
texto que contém orações adverbais.
 Introdução – o autor menciona que as orações adverbiais são importantes na
estruturação de textos narrativos e dissertativos.
 Conceito – o autor estabelece um paralelo entre a função dos adjuntos
adverbiais, no período simples, com as orações adverbiais, no período
composto.
 Classificação das orações adverbais – o autor apresenta cada tipo de oração
adverbial (segundo a Gramática Normativa: condicional, comparativa,
temporal, final, causal, consecutiva, proporcional, conformativa e concessiva)
seguindo a ordem: primeiro a relação semântica estabelecida, depois as
conjunções correspondes, e finalmente alguns exemplos.
 Formas das orações adverbiais – o autor comenta as orações desenvolvidas
e reduzidas (de gerúndio, infinitivo e particípio).
 As orações adverbiais nos textos – o autor faz algumas considerações muito
pertinentes acerca do uso efetivo das orações adverbiais em textos,
exemplificando seus apontamentos por meio de um texto opinativo e de uma
fala de um economista.
 Resumindo o que você estudou – nesta parte são apresentados o conceito de
oração adverbial, sua classificação e exemplos.
 Exercícios de fixação – o autor propõe 13 exercícios, que serão analisados no
decorrer deste trabalho.
 Da teoria à prática – são disponibilizados mais 9 exercícios, que também
serão analisados mais à frente.
 Se você quiser MAIS – ao final da gramática, também são propostos 17
exercícios a respeito das orações adverbiais.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Mais uma vez, diante do exposto, é possível afirmar que a abordagem de


Mauro Ferreira está fundamentalmente centrada na Gramática Tradicional, ao
menos no que concerne à estruturação da unidade e na abordagem da teoria (em
49
oposição à prática, exercícios) adotada pelo autor. Como embasamento para essa
afirmação, levou-se em consideração o que é citado nas Diretrizes Curriculares da
Educação Básica (2008, p. 61), as quais contrapõem “ensino de gramática”
(entendido coma adoção de postura normativa em relação à linguagem) à “prática
de análise linguística” (que está situada numa perspectiva mais recente dos estudos
da linguagem). Vejamos:

ENSINO DE GRAMÁTICA PRÁTICA DE ANÁLISE LINGUÍSTICA


Metodologia transmissiva, baseada na Metodologia reflexiva, baseada na
exposição dedutiva (do geral para o indução (observação dos casos
particular, isto é, das regras para os particulares para conclusão das
exemplos) + treinamento. regularidades/regras).
Quadro 01: Metodologia - Ensino de Gramática x Prática de Análise Linguística (PARANÁ, 2008, p.
61)

Assim, fica evidente que a forma como Mauro Ferreira apresenta as orações
adverbiais está intimamente relacionada à metodologia transmissiva abordada no
documento oficial. Porém, também não se pode deixar de considerar que existe pelo
menos um momento na apresentação do conteúdo que tenta dialogar com a
metodologia reflexiva: na seção “As orações adverbiais nos textos”, em que, ao
contrário da seção anterior (Classificação das orações adverbiais), parte-se do texto
para a discussão dos sentidos produzidos pelo uso da orações adverbiais.

Análise dos exercícios

Na seção intitulada “Exercícios de fixação”, o autor propõe a resolução de 13


exercícios. Destes 13, 6 exercícios (1, 2, 3, 6, 8 e 12), partem de frases isoladas
para que o estudante pratique o uso das orações adverbiais. Apesar disso, o
enfoque não é aquele da gramática tradicional, visto que o objetivo não é apenas

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

identificar e classificar as orações. Ao contrário, nessas atividades, deve-se realizar


operações como: identificar a relação semântica estabelecida entre a oração
principal e a subordinada adverbial; reunir frases para estabelecer as relações de
50
sentido indicadas; identificar a ideia geral implícita nos períodos que apresentam
orações concessivas; e substituir conjunções em frases. Assim, todas os processos
descritos lidam com os sentidos expressos pelas orações em questão e seu
funcionamento nos enunciados.

Figura 01: Exemplo de exercício de fixação a partir de frases

Os demais exercícios (4, 5, 7, 9, 10, 11 e 13), por sua vez, apresentam uma
perspectiva do autor ainda mais condizente com os preceitos da prática de análise
linguística, uma vez que o estudo do elemento gramatical é feito de forma mais
contextualizada, partido de texto que circulam socialmente, e não de enunciados
isolados. Para essas atividades o autor traz vários gêneros textuais: tirinha, poema,
trecho de crônica, slogans de propagandas etc.

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Anais

51

Figura 02: Exemplo de exercício de fixação a partir de texto

O mesmo ocorre em quase todos os exercícios constantes na seção “Da


teoria à prática”. Das 9 atividades disponibilizadas pelo autor, apenas 1 (a atividade
5) parte de enunciados isolados, sendo que, para as demais atividades, o autor
também apresenta diversos gêneros textuais: diálogo, telegrama, anúncio
publicitário, título de reportagem, propaganda etc.

Figura 03: Exercício “Da teoria à prática” a partir de frases

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

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Figura 04: Exemplo de exercício “Da teoria à prática” a partir de texto

Em todos os exercícios, tanto os que trabalham com textos quanto os que


partem de frases, podemos observar uma preocupação por parte do autor em não
utilizar o texto/frase como pretexto, isto é, não são exercícios apenas de
identificação e classificação das orações adverbiais. Pelo contrário, o objetivo maior
dessas atividades é fazer com que o estudante perceba o efeito de sentido
mobilizado pelo uso de determinada oração adverbial naquele texto/frase
especificamente.
Por fim, a última seção da unidade em questão que apresenta exercícios é o
“Se você quiser saber MAIS”. Nesse espaço, o autor disponibiliza 17 exercícios
sobre as orações adverbiais, nos quais se mesclam práticas de análise linguística
com frases e com textos. Entretanto, nessa divisão, é mais interessante notar o
cuidado por parte de Mauro Ferreira com preparação do estudante para exames
vestibulares.
Isso pode ser comprovado pelo fato de que grande parte dos exercícios (com
exceção dos números 7, 9, 12, 13, 14, 15 e 17) é estruturada no formato de múltipla
escolha, que é muito utilizado em avaliações. Além disso, a maioria dos exercícios
(exceto as atividades 4, 5, 7, 13, 14, 15, 16 e 17) foram retirados de exames reais de
diversas universidades, como a UERJ e a PUC-RJ.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

53

Figura 05: Exemplo de exercício “Se você quiser saber MAIS” a partir de texto

Figura 06: Exemplo de exercício “Se você quiser saber MAIS” a partir de frases

Considerações finais

Diante da análise empreendida e do referencial teórico que embasou tal


análise, podemos concluir que o livro de Mauro Ferreira contempla diversas
abordagens da gramática e, consequentemente, deixa transparecer também
concepções diferentes acerca da linguagem.
Em alguns momentos (como na exposição e na exemplificação das orações
adverbiais) nota-se uma postura essencialmente tradicional na abordagem do tema.
Algumas hipóteses que podem ser levantas para explicar essa postura é a
consideração de que o livro Aprender e praticar gramática não se destina a
linguistas ou a estudiosos da linguagem de forma científica, mas foi concebido para
a utilização em sala de aula (o que pode ser inferido pela expressiva presença de
exercícios) e para o ensino da norma padrão, sem a necessidade de se fazer
questionamentos e/ou críticas mais aprofundadas sobre os temas.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Porém, Mauro Ferreira não está completamente alheio às correntes recentes


dos estudos da linguagem, uma vez que tenta contextualizar a abordagem das
orações adverbiais na seção “As orações adverbiais no texto” e também propõe
54
exercícios de análise linguística que buscam trabalhar os sentidos e funcionamento
da categoria gramatical em questão tanto em frases como em textos.
Por fim, é importante mencionar que essa postura “híbrida”, ou seja, que
adota tanto as metodologias do ensino tradicional de gramática quanto as
metodologias da perspectiva da análise linguística, não deve ser rechaçada, tendo
em vista que, como já citado durante este trabalho, é uma postura incentivada
inclusive pelos documentos oficiais do Ministério da Educação. Porém, devemos
fazer um alerta, pois, embora a gramática de Mauro Ferreira ofereça subsídios para
um trabalho interessante com as orações adverbiais, é papel do professor mediar o
aprendizado do estudante em sala de aula, selecionando os conteúdos mais
adequados e complementando o material se necessário.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília: Ministério


da Educação, 1997.

CAMILLO, L. C. V. C. Concepção de linguagem e ensino gramatical. Estudos


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Anais

EIXO II: LINGUA INGLESA E ENSINO

Inglês na educação infantil por meio do gênero 56

textual história infantil: promovendo


desenvolvimento das funções psicológicas
superiores
Teaching English in the Early Childhood Education through genres:
promoting the development of Higher Psychological Functions and Language
Capabilities

Raquel Franciscatti dos Reis(UEL/PPGEL-PG)


Juliana Reichert Assunção Tonelli(UEL/PPGEL-PQ)

RESUMO: O ensino de língua inglesa como língua adicional para crianças da educação infantil
(TONELLI, 2008; TONELLI; CORDEIRO, 2014) está em constante expansão. Tendo em vista a
necessidade de proporcionar um ensino de línguas transformador e significativo, quebrando
paradigmas monolíticos, estruturais, excludentes e alienantes, partindo de uma visão interacionista
sócio-discursiva da linguagem (BRONCKART, 2008; MACHADO; CRISTOVÃO, 2008) este trabalho
tem a proposta de ensino de línguas com base em gêneros textuais (BRONCKART, 2003). O objetivo
geral da pesquisa é o de investigar as funções psicológicas superiores (VYGOTSKY, 1991)
desenvolvidas durante a aplicação de uma sequência didática (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004). O
corpus de análise consiste de dez aulas ministradas no Centro de Educação Infantil da UEL para
crianças entre cinco e seis anos. As aulas gravadas e, posteriormente transcritas, envolvem um
trabalho em torno de uma sequência didática que abordou o gênero história infantil (HI) (TONELLI,
2005) aliado a uma dramatização como produção final. Os resultados parciais revelam que o ensino
de inglês por meio do gênero HI pode propiciar o desenvolvimento de funções psicológicas
superiores, mais especificamente a atenção, memória e percepção de características relacionadas ao
gênero e à língua inglesa.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Infantil. Língua inglesa. Gênero história infantil. Capacidades de


linguagem. Funções Psicológicas Superiores.

ABSTRACT: The teaching of English as an additional language to children of Early Childhood


Education (TONELLI, 2008; TONELLI, CORDEIRO, 2014) is constantly expanding. In view of the
need to provide an education change and significant languages, breaking paradigms monolithic,
structural, exclusive and alienating, from a socio-discursive interactionist view of language
(BRONCKART, 2008; MACHADO, CRISTOVÃO, 2008) this work has teaching proposed language
based on genres (BRONCKART, 2003). The overall objective of the research is to investigate the
Higher Psychological Functions (Vygotsky, 1991) developed during the implementation of a didactic
sequence (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004). The analysis corpus consists of ten classes taught in Early
Childhood Education Center at UEL for children between five and six years old. Recorded lessons and
later transcribed, involve work around a didactic sequence that addressed the gender children's story
(HI) (TONELLI, 2005) combined with a role as final production. Partial results show that the teaching
of English through HI gender can foster the development of Higher Psychological Functions,
specifically the attention, memory and perception related to characteristics of the gender and English.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

KEYWORDS: Early Childhood Education. English Language. Children's Story Gender. Language
Capabilities. Higher Psychological Functions.

Introdução
57

Na sociedade atual, contemporânea e globalizada, é clara a importância do


conhecimento de pelo menos uma língua adicional como instrumento de ação social.
Nesse contexto, o inglês se destaca como o principal meio de comunicação mundial,
portanto o estudo desta língua é bastante valorizado na atualidade, entendido como
língua da globalização e tido como uma commodity (RAJAGOPALAN, 2005).
Além da evidente necessidade do conhecimento da língua inglesa, pelo seu caráter
instrumental, este ensino, assim como o de qualquer língua, é instrumento para o
desenvolvimento sociocultural, cognitivo e psicológico do indivíduo. Portanto, entre os
letramentos necessários para o exercício da cidadania plena, a aprendizagem de tal
língua pode promover o contato entre as diferenças, sejam elas linguísticas, culturais,
socioeconômicas, com vistas à construção de novas identidades e conhecimentos que
auxiliam o contínuo engajamento do indivíduo em novos discursos (MOITA LOPES,
2003). Devido a esse contexto, temos presenciado nas últimas décadas, em escopo
mundial, um crescente número de crianças aprendendo um novo idioma, em especial o
inglês.
O ensino-aprendizagem de línguas na infância em contextos formais tem sido,
desde a década de 1960, objeto de interesse e alvo de discussão em encontros
promovidos pela UNESCO, entre outros. No Brasil, embora seja uma disciplina de caráter
optativo na matriz curricular dos anos iniciais do Ensino Fundamental (EFI), bem como na
Educação Infantil (EI), como se pode averiguar na Resolução CNE/CEB 7/2010, que fixa
diretrizes curriculares nacionais para o ensino fundamental de nove anos, no artigo 17
prevê que “na parte diversificada do currículo do Ensino Fundamental será incluído,
obrigatoriamente, a partir do 6º. Ano, o ensino de, pelo menos, uma Língua Estrangeira
Moderna”, o ensino da língua inglesa para crianças, que se encontra bastante fortalecido
em institutos de idiomas e em escolas da rede privada, no setor público, está em
crescente expansão.
É cada vez mais presente na grade curricular dos primeiros anos da Educação
Básica das escolas públicas e privadas o ensino da língua inglesa enquanto língua

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

adicional (LA). Embora os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs, 1998), bem como o
documento de apresentação da Base Nacional comum (BNC, 2016), elejam o termo
língua estrangeira (LE), escolhemos referir-nos à língua nova adquirida, posteriormente à
58
primeira, como língua adicional (LA). Segundo Schlatter e Garcez (2009, p. 127), o termo
língua adicional vem sendo usado em lugar do termo língua estrangeira por enfatizar “o
acréscimo que a disciplina traz a quem se ocupa dela, em adição a outras línguas que o
educando já tenha em seu repertório”, descaracterizando a ideia de distanciamento do
sujeito com relação à nova língua. O documento de apresentação da Base Nacional
Comum (BNC) embora, como já mencionado, apresente o componente curricular com o
termo “Língua Estrangeira Moderna”, afirma que “aprender, pelo uso e para o uso,
práticas linguísticas que se adicionem a outras que o/a estudante já possua em seu
repertório.” (pg.68), grifo meu, em conformidade com o termo “adicional”.
Diversos são os motivos do aumento dessa oferta na rede pública, porém, o mais
aparente é a preocupação das autoridades governamentais em cumprir com a Lei do Piso
Salarial, 11.738/2008, no artigo 2º, § 4º- “Na composição da jornada de trabalho,
observar-se-á o limite de 2/3 (dois terços) da carga horária para o desempenho das
atividades de interação com os educandos”. Dessa forma, 1/3 da carga horária escolar
deve ser atendida por outro professor de disciplina diversa, geralmente de educação
física, arte ou línguas.
Devido à falta de parâmetros oficiais específicos e diretrizes norteadoras para o
ensino de LA para crianças (doravante LAC), que no Brasil é facultativo, há um sério
comprometimento dessa prática, que acaba por não ser bem sucedida. Dentre os vários
fatores que contribuem para a pouca eficácia do ensino de LAC podem estar materiais de
má qualidade, uma formação docente não adequada ao público em questão, que leva
professores a agirem de acordo com suas crenças sobre o ensino de língua para
crianças, além da falta de diretrizes teórico-práticas específicas para esse contexto.
Propomos nesse estudo, vinculado ao projeto FELICE (Formação de professores e
Ensino de Línguas para crianças), o ensino de inglês como LA na EI por meio do gênero
textual História Infantil (TONELLI, 2005; 2008), entendendo o crescente aumento da
oferta do inglês nas séries iniciais da Educação Básica (Educação Infantil) em escolas
públicas, a ausência de diretrizes oficiais norteadoras desse ensino, o despreparo do
professor para esse contexto devido à formação inicial/continuada inadequada ou

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

inexistente e sabendo que há poucos trabalhos que tratam do ensino de LA, ou inglês na
EI, como afirma Tonelli e Chaguri (2014), buscando assim contribuir com uma pesquisa
nessa área.
59

nos últimos anos, várias pesquisas vêm se ocupando do ensino-aprendizagem de


LEs para crianças (SILVA, 1997; CARVALHO, 2005; SANTOS 2005; RINALDI,
2006; TONELLI; RAMOS, 2007; TONELLI, 2005; LINGUEVIS, 2007; SCHEIFER,
2008; TONELLI;CHAGURI, 2011), mas poucos são os trabalhos que procuram
tratar da importância de se estudar uma LE desde a Educação infantil.

Escolheu-se trabalhar com um gênero no ensino de LAC, partindo de uma visão


enunciativa ou discursiva da linguagem, onde Bakhtin (2003) afirma que é por meio dos
gêneros que organizamos nossas atividades sociais e de linguagem. Nessa perspectiva,
assim como na Teoria Sócio-cultural de Vygotsky (2001), a língua não é vista somente
como instrumento de comunicação, ou pelo seu aspecto formal e estrutural, mas como
atividade social, histórica e cultural, portanto de natureza interativa, portanto, a fim de
proporcionar um ensino de línguas transformador e significativo, quebrando paradigmas
monolíticos, estruturais, excludentes e alienantes este trabalho tem a proposta de ensino
de línguas com base em gêneros textuais (BRONCKART, 2003)
O documento de apresentação da BNC esclarece que será um desafio superar a
visão tecnicista da língua para priorizar uma perspectiva discursiva, que propicie
“vivências com gêneros discursivos orais, escritos, visuais, híbridos, relevantes para a
atuação do/a estudante em espaços plurilíngues.” (pg. 68)
Partindo desse pressuposto, foi escolhido o gênero História Infantil (HI) (TONELLI,
2005), pelo (re)conhecimento deste pelas crianças, e por fazer parte do seu cotidiano, em
especial escolar, visto que as crianças têm contato com livros de histórias, que muitas
vezes contêm HIs. A HI escolhida foi “The very busy spider” do autor Eric Carle. Para a
elaboração das atividades, foi considerado o desenvolvimento das capacidades de
linguagem (CL) (DOLZ; PASQUIER; BRONCKART, 1993; CRISTOVÃO; STUTZ, 2011)
dos alunos, a fim de favorecer as primeiras concepções sobre os modos de
funcionamento da LI, estabelecendo relações entre essa língua e a materna em busca de
uma formação plurilíngue.
Para a sistematização e organização das atividades com vistas ao ensino de IC por
meio de gêneros, propomos o uso do dispositivo sequência didática (SD) que foi aplicada

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Anais

para crianças do último estágio da Educação Infantil, com idade entre 5 e 6 anos de idade
no Centro de Educação Infantil (CEI) da UEL. Estão sendo analisadas quais capacidades
de linguagem são mobilizadas / desenvolvidas nas crianças.
60
Pretende-se também analisar nessa pesquisa, quais funções psicológicas
superiores (doravante FPS) (VYGOTSKY, 1991) estão sendo desenvolvidas nas crianças
ao longo da aplicação da SD, em especial na produção final, uma dramatização da
história “The very busy spider”. Como resultados parciais do que já foi analisado nas
transcrições das aulas gravadas, percebe-se que o ensino de inglês por meio do gênero
HI pode propiciar o desenvolvimento de funções psicológicas superiores, mais
especificamente a atenção, memória e percepção de características relacionadas ao
gênero e à língua inglesa.

Objetivo(s)

O objetivo geral da pesquisa de mestrado é o de investigar se ocorre o


desenvolvimento das funções psicológicas superiores, mais especificamente a atenção,
memória e percepção, de alunos da EI durante as aulas de inglês envolvendo o gênero
HI, bem como as CL desenvolvidas e/ou mobilizadas. Levando-se em conta que este
trabalho se configura como um recorte da pesquisa mais ampla, as análises aqui contidas
são iniciais. Busca-se, desse modo, responder às seguintes perguntas norteadoras de
pesquisa: o ensino de inglês por meio do gênero HI é capaz de proporcionar aos alunos o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores: atenção, memória e percepção?
Quais os tipos de capacidades linguagem são mobilizados e ou desenvolvidos na
aplicação das atividades da SD? Há / qual a relação entre o desenvolvimento das CL e
das FPS desse grupo aprendendo inglês por meio do gênero HI?

Metodologia

Os dados para este trabalho foram gerados a partir da gravação e transcrição de


duas das dez aulas que envolveram o ensino de inglês por meio da mobilização de
capacidades de linguagem do gênero HI, dentro de uma sequência didática em aulas
ministradas a alunos da educação infantil do CEI da UEL, localizado na cidade de

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Anais

Londrina. Os dados obtidos com a transcrição foram analisados a fim de atingir os


objetivos expostos previamente. O projeto de classe proposto consistiu em aulas
ministradas pela pesquisadora no contexto citado com foco no gênero HI. A escolha
61
desse gênero se justifica na medida em que ele faz parte do universo infantil, e previu-se
que a maioria dos alunos participantes o (re)conhecesse e se interessasse por ele. As HIs
“satisfazem algumas das necessidades características da criança e, por esta razão,
conseguem envolver o aluno em sua totalidade, ou seja, suas necessidades emocionais,
psicológicas e cognitivas” (TONELLI, 2008). Sendo assim, a pesquisa se insere naquelas de
natureza qualitativa-interpretativista. Os procedimentos de análise de dados são baseados no
Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART 2006, 2008).

Constituição do corpus

O corpus da pesquisa é constituído da transcrição das de uma SD que envolveu o


ensino do gênero história infantil. A história escolhida foi “The very busy spider”. As aulas
foram transcritas a partir de Tonelli (2005) com algumas adequações que resultaram na
tabela a seguir:
Tabela 1: Convenção para as transcrições das aulas filmadas
Ocorrências Sinais
Alunos S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S8, S9,
S10, S11, S12, S13, S14, S15, S16,
S17
Professora-pesquisadora T
Aluno/a não identificado/a X
Mais de 1 e máximo de 3 alunos falando ao mesmo Va
tempo
Mais de 3 alunos falando ao mesmo tempo VA

Incompreensão de palavras ou de segmentos por um (...)


curto período de tempo
Comentário da transcritora e descrição das ações <>
ocorridas naquele momento
Entonação enfática LETRAS MAIÚSCULAS
Palavras em inglês Itálico
Sinal de entonação correspondente a pergunta ?

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Anais

Sinal de entonação correspondente a exclamação !


Risos Rs
Sinais de prolongação e/ou pausas na fala ...

Falas simultâneas X1: Falas 62

X2: Sublinhadas
Curto intervalo de silencio -
Longo intervalo de silencio ---
Fonte: A autora
Cada aula da sequência teve duração de aproximadamente quarenta e cinco minutos.
A turma era composta por dezessete alunos, porém somente quatorze frequentavam as aulas
no período da manhã, quando aconteciam as aulas de inglês. Esses alunos têm entre cinco e
seis anos de idade. Um dos alunos participante é laudado como autista e contava com a
ajuda de uma auxiliar responsável por ele para realização das atividades. A pesquisadora
contou com a ajuda de sua orientadora, de dois alunos da graduação que estagiavam no CEI
e dos professores de sala e auxiliares. Diante do exposto, o foco desse trabalho é analisar o
desenvolvimento das FPS nos alunos em um recorte da experiência vivida por eles durante a
mobilização de capacidades de linguagem por meio das atividades da SD aplicada.
A seguir segue o Plano Global da SD aplicada:

SEQUÊNCIA DIDÁTICA : “The very busy spider”

GÊNERO: História Infantil DISCIPLINA: Inglês


CONTEXTO ANO / SÉRIE ESCOLAR: E6 IDADE MÉDIA DOS ALUNOS: 5-6
NÚMERO DE ALUNOS: 17
ESCOLA: CEI - UEL
NÚMERO DE ENCONTROS: 10
OBJETIVOS GERAIS  Reconhecer algumas características do gênero
 Reproduzir / recontar o gênero por meio da dramatização do mesmo
 Produzir / ilustrar um “livrinho” seguindo a sequência narrativa da história

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Anais

APRESENTAÇÃO DA  Apresentar o gênero HI (usando como exemplo uma história conhecida

SITUAÇÃO / PROJETO por eles: “Os três porquinhos”)


 Mobilizar conhecimentos prévios (personagens, narrador; começo, meio,
DE CLASSE
fim da HI - imagens; história dentro do livro, autor, capa); Mobilizar
63
capacidade de ação dos alunos acerca da história narrativa, do suporte
’35 - class 1 livro e de suas principais características;
 Apresentar um vídeo com uma dramatização
 Apresentar o projeto de classe e fazer o “contrato didático”
PRODUÇÃO INICIAL  Recontação da história
 Dramatização “Os três porquinhos”

’15 – class 1
MÓDULO 1  Apresentar o livro, apresentar a capa, trabalhar os elementos da capa,
construir a capa do “livrinho”
 Ler a HI “The very busy spider”
’50 – class 2
 Personagen principal: aranha (musica/vídeo “Itsy Bitsy Spider”,
atividade: produzir aranha enquanto toca a musica na sala) (pra
aproximar o mundo discursivo da criança)

MÓDULO 2  Apresentação dos personagens: cavalo, vaca, carneiro, bode, porco,


cachorro, gato, pato e galo (por meios dos sons, onomatopeias, e
atividades).
‘150 – classes: 3 / 4 / 5
MÓDULO 3  Sequência narrativa: beginning, middle, end of the story (trabalhar
construindo o livrinho do aluno)
 Cada personagem trabalha a mudança da sequência narrativa, trabalhar
‘150 – classes: 6 / 7 / 8 /
com os marcadores sequenciais (palavras, ilustrações)
 Trabalhar o início da história: nascer do sol, a aranha e a web.
 Trabalhar o meio da história com os convites dos animais (característicos
a esses animais) para a aranha; o fato de ela estar sempre ocupada
tecendo sua teia
 Trabalhar desfecho da história que se inicia com a aranha pegando a
mosca, o anoitecer e a coruja.

MÓDULO 4  Rever / fixar vocabulário (animais, sons e perguntas) estudado


(Atividade: Abre-Fecha)
 Recontar a história
’50 – class 9

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Anais

PRODUÇÃO FINAL  Dramatizar a H.I. “The very busy spider”


64

’50 – class 10
Fonte: A autora

Fundamentação teórico-metodológica

Diversos têm sido os trabalhos na área da Linguística Aplicada que enfocam o


ensino de Língua Inglesa para crianças cursando as séries iniciais do Ensino
Fundamental, como as pesquisas de Tonelli (2005), Rocha (2006) e Santos (2005), só
para citar alguns. Recentemente, estudos têm também, tidos como foco o ensino de
línguas na Educação Infantil, devido a “importância de uma língua estrangeira na
educação infantil” como afirma Tonelli e Chaguri (2014). Pires (2001) faz um estudo de
caso de uma criança de dois anos de idade para verificar o desenvolvimento de sua
produção oral após receber aulas de inglês na escola de EI e ser exposta a essa língua
através de seus pais, investigando as vantagens e desvantagens desse ensino nessa
idade. Scaffaro (2006) pesquisa a eficácia da contação de histórias para retenção de
vocabulários no ensino de LI. Linguevis (2007) analisa a prática de uma professora bem
como as crenças de seus alunos. Giesta (2007) analisa o livro didático para ensino de
inglês na EI. Forte (2010) faz uma análise crítica do ensino de LI para crianças da EI de
escolas exclusivamente de educação infantil, de educação básica e de idiomas, tendo
como foco de pesquisa o uso da linguagem, a promoção do letramento na língua alvo e
as crenças dos professores, pais e coordenadores das instituições de ensino
pesquisadas. Gazzotti (2011) tem como objetivo compreender criticamente o trabalho com
resolução de conflitos em contextos de educação infantil bilíngue e como ele pode
promover ações colaborativas. Garcia (2011) faz uma análise discursiva do ensino de
inglês para crianças da EI no que tange as representações de criança, língua estrangeira
e ensino de língua estrangeira presentes nos dizeres da legislação brasileira, da mídia e
de coordenadoras da área. Lemes (2014) que em sua pesquisa busca a formação crítica
docente de professores de inglês da EI e 1ª fase do Ensino Fundamental. Selbach (2014)

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Anais

faz um relato interpretativo de um projeto didático em língua inglesa na EI. Silva (2015)
investiga se e como o trabalho com os Multiletramentos a partir de Atividades Sociais em
língua inglesa oferece oportunidades para que crianças da EI construam novos modos de
65
participação no mundo. Queiroz e Stutz (2016) fazem uma análise de uma sequência
didática para o ensino de língua alemã na educação infantil.
Em relação ao ensino de língua inglesa para crianças com base em gêneros por
meio do dispositivo sequência didática, temos Tonelli (2005) que propõe em sua pesquisa
o ensino de inglês para crianças de sete a nove anos por meio do gênero textual história
infantil. Ferreirinha (2014) em sua dissertação de mestrado tem como objetivo explorar as
contribuições e benefícios das “Nursery Rhymes” para o desenvolvimento do letramento e
aquisição do inglês como segunda língua para crianças da EI em Lisboa. Embora a
pesquisadora não mencione que “Nursery Rhymes” caracteriza um gênero, é uma
pesquisa de ensino baseado em gênero. Nascimento (2009) realiza uma pesquisa em
escolas municipais de Pernambuco buscando compreender como um gênero oral formal,
exposição explicativa, trabalhado através de sequências didáticas contribui para crianças
do último ano da EI a se apropriarem dessa modalidade de gênero, porém em língua
materna. Tonelli e Cordeiro (2014) propõe o ensino da língua inglesa com base num
gênero textual, a história infantil (HI), incorporando a proposta de Perregaux et al. (2003)
sobre a educação e a abertura às línguas na escola buscando discutir maneiras de
promover a sensibilização à aprendizagem da língua inglesa (LI) junto a crianças de
quatro a cinco anos, em fase de apropriação do código escrito em sua língua primeira.
Em meio a essas pesquisas, este trabalho se insere, fundamentado na perspectiva
do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) (BRONCKART, 1999/2007), corrente teórico-
metodológica que considera os gêneros textuais como formas de ação social. O ISD
defende o ensino de línguas baseado no trabalho com sequência didática (SD), sendo ela
um instrumento organizador das atividades. Segundo Dolz e Schneuwly (2004), as SDs
são conjuntos de atividades que apresentam objetivos e buscam proporcionar
oportunidades e instrumentos de aprendizagem de operações de linguagem que se
voltem para o desenvolvimento de capacidades de linguagem. A proposta de trabalhar
com sequências é a de explorar gêneros que os alunos ainda não dominam ou precisam
aprofundar no conhecimento. Essa proposta nos permite uma flexibilidade nas atividades
propostas nos módulos, podendo sofrer adequações de acordo com as necessidades dos

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alunos ao longo da aplicação. Ainda segundo os autores, e expandido o conceito, as


atividades propostas com gêneros devem propiciar o desenvolvimento de quatro
capacidades de linguagem (DOLZ; SCHNEUWLY 2013; CRISTOVÃO; STUTZ 2011):
66
capacidades de ação (CA), capacidades discursivas (CD), capacidades linguístico-
discursivas (CLD) e as capacidades de significação (CS). De acordo com Cristovão e
Stutz (2011, p.3) “embora essas capacidades estejam dispostas separadamente, elas são
interligadas e contribuem para que o aluno se aproprie de gêneros textuais orais ou
escritos de forma global”.
De acordo com Vygotsky (1991), precursor da psicologia moderna que considera o
aspecto cultural e social no desenvolvimento físico e psíquico de cada indivíduo, as
funções psicológicas superiores (FPS) se referem às experiências que são adquiridas
durante a vida do sujeito, considerando este um ser que se relaciona com o mundo, sua
cultura, por meio de instrumentos físicos e simbólicos. Assim, temos como exemplo
dessas funções: a memorização, o controle consciente do comportamento, a atenção e a
lembrança voluntária, a percepção, o pensamento abstrato, o raciocínio dedutivo, as
capacidade de planejamento, dentre outras. Estas funções são humanas, segundo
Vygotsky. As FPS são socialmente formadas e culturalmente transmitidas por meio da
linguagem. Para este trabalho, escolheu-se analisar a atenção voluntária, controlada de
forma intencional pelo próprio sujeito, a memória mediada por signos, que refere-se ao
registro de experiências para recuperação e uso posterior, também inclui a ação
voluntária do individuo no sentido de apoiar-se em elementos mediadores que o ajudem a
lembrar-se de conteúdos específicos, e a percepção (não sensorial) que assim como as
outras duas escolhidas neste trabalho surgem como consequência da influencia direta
dos estímulos externos sobre os indivíduos.

Análise

Iniciaremos a análise descrevendo em detalhes como ocorreu a primeira aula da


SD, para posteriormente investigar as FPS emergidas a partir da transcrição.
A primeira aula teve como objetivo apresentar o projeto de classe e a produção
inicial da SD. Apresentou-se o gênero HI usando como exemplo uma história conhecida
por eles: “Os três porquinhos”. Buscou-se mobilizar conhecimentos prévios sobre o

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Anais

gênero. Tivemos o objetivo de mobilizar a capacidade de ação dos alunos acerca da


história narrativa, do suporte livro e de suas principais características. Apresentamos um
vídeo com uma dramatização da história dos “Três porquinhos” por crianças americanas
67
com idade aproximada a deles para que pudessem entender o que seria a produção final
da SD. Então apresentamos o projeto de classe e fizemos o “contrato didático” como os
alunos combinando uma dramatização da HI que seria trabalhada com eles para os pais
no dia da reunião de pais do CEI. Eles aceitaram, então, no final da primeira aula, após
recontarem a história dos “Três porquinhos” para a professora pesquisadora eles fizeram
a dramatização da mesma como produção final.
Na segunda aula da aplicação da Sequência Didática foi trabalhado inicialmente a
capa do livro. Trabalhamos também sobre o personagem principal. Segue abaixo parte da
transcrição da aula:
Transcrição – SD - The very busy spider” – aula 2
T: geralmente o que acontece na capa, o que eu tenho nessa cover?
S9: Tem o desenho do ...
S?: da história ... da aranha
S9: …cara principal
T: very good, nós temos uma illustration de geralmente do “cara principal” ((apontando
para o alunos que disse isso)), do personagem principal, do main character.
Provavelmente, essa story que a teacher vai contar hj é uma story de quem mesmo? De
uma?
S9: aranha
S2: spider
Na sexta aula, retomamos alguns conceitos, como o do personagem principal.
Segue parte da transcrição dessa aula:
Transcrição – SD “The very busy spider” – aula 6
T: Good morning!
Students: Good morning!
(…)
T: Ok. Let’s remember: Qual é o name da story? What’s the name of the story?
S13: A aranha muito ocupada.
T: but in English?

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

S2: The very …


S9/S1/S13/S2: The very busy spider
T: wow! The very busy spider! Congratulations! ((bate palmas))Very good!
68
T: Attention to my question: Who is the MAIN CHARACTER? THE MAIN CHARACTER?
S12: Não é ( )
T: What’s the meaning of “The main character”? O que que é mesmo main character?
S11: é aquele que faz “coo-coo-coooo”
T: oh, tem um main character, daí tem vários outros characters
S2: ah é o personagem
S9: é o personagem do filme
S13: os animais
T: that’s right! É o personagem da story. Quem é o MAIN CHARACTER?
S1: É a aranha
T: a spider
...
T: então nós temos vários outros characters e o main character que vocês falaram quem
que é mesmo? Who is the main character?
S9/S1: the spider
Em relação as FPS, trazemos para este trabalho uma análise inicial das funções:
percepção, atenção e memória. No excerto de transcrição acima, identifica-se o
desenvolvimento e/ou mobilização dessas funções dos alunos. Ao dizerem o nome da
história, “The Very Busy Spider”, percebe-se as três FPD, pois foi uma percepção
cognitiva (diferente da sensorial), atenção voluntária (controlada de forma intencional pelo
sujeito) e memória mediada dos alunos. É também possível identifica-las no
reconhecimento do personagem principal.
Além dos exemplos desse excerto, sobre a percepção, um exemplo identificado
ocorreu na Class 1, quando os alunos perceberam a sequência narrativa (começo, meio e
fim) da HI “Os três porquinhos” por meio de imagens da história. Houve então a
introdução destes termos em inglês, beggining, middle e end, e na Class 6 notou-se a
percepção dos alunos da sequência narrativa, usando os termos em inglês ao lhes serem
mostrado imagens da HI “The Very Busy Spider”. Vygotsky (1991, p. 25) afirma que

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

pelas palavras, as crianças isolam elementos individuais, superando, assim, a


estrutura natural do campo sensorial e formando novos (introduzidos
artificialmente e dinâmicos) centros estruturais. (...) Como resultado, o imediatismo
da percepção "natural" é suplantado por um processo complexo de mediação; a
fala como tal torna-se parte essencial do desenvolvimento cognitivo da criança.
(...) Mais tarde, os mecanismos intelectuais relacionados à fala adquirem uma69
nova função; a percepção verbalizada, na criança, não mais se limita ao ato de
rotular. Nesse estágio seguinte do desenvolvimento, a fala adquire uma função
sintetizadora, a qual, por sua vez, é instrumental para se atingirem formas mais
complexas da percepção cognitiva.

Para Vygotsky (1991, p.27) dentre as grandes funções da estrutura psicológica,


deve-se dar o primeiro lugar à atenção. Vários estudiosos notaram que a capacidade de
focalizar a própria atenção é um determinante essencial do sucesso de qualquer
operação prática. Para ele, a “diferença entre a inteligência prática das crianças e dos
animais é que, aquelas são capazes de reconstruir a sua percepção e, assim, libertarem-
se de uma determinada estrutura de campo perceptivo”. Com o auxílio da função
indicativa das palavras, a “criança começa a dominar sua atenção, criando centros
estruturais novos dentro da situação percebida”. Na produção final da SD, realizada na
Class 10, que foi uma dramatização da HI apresentada aos pais dos alunos, a maioria das
crianças demonstraram atenção ao longo da dramatização, em especial em suas falas,
pois eles imitavam o som dos animais e esperavam pelo narrador antes de fazer o convite
a aranha. Dois dos alunos não esperaram a fala do narrador.

“O estudo comparativo da memória humana revela que, mesmo nos estágios mais
primitivos do desenvolvimento social, existem dois tipos fundamentalmente diferentes de
memória. Uma delas, dominante no comportamento de povos iletrados, caracteriza-se
pela impressão não mediada de materiais, pela retenção das experiências reais como a
base dos traços mnemônicos (de memória ). (...) Memória mediada - operações com
signos são produto das condições específicas do desenvolvimento social (...) Mesmo
essas operações relativamente simples, como atar nós e marcar um pedaço de madeira
com a finalidade de auxíliares mnemônicos, modificam a estrutura psicológica do
processo de memória. Elas estendem a operação de memória para além das dimenções
biológicas do sistema nervoso humano, permitindo incorporar a ele estímulos artificiais,
ou autogerados, que chamamos de signos. (VIGOTSKY, 1991 – pag. 34)

Em diversos momentos da SD foi percebida a memória mediada dos alunos,


porém, nas Classes 3, 4 e 5, as quais foram trabalhadas os personagens da HI, nas
atividades propostas com o uso de imagens, som dos animais, máscaras identificou-se
que as crianças memorizaram e utilizaram os nomes dos animais em inglês.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Considerações Finais

A partir do esboço de análise apresentado neste trabalho e das observações feitas


70
pelas pesquisadoras durante a execução das aulas, é possível perceber que os
resultados parciais revelam que o ensino de inglês por meio do gênero HI pode propiciar o
desenvolvimento de funções psicológicas superiores, mais especificamente a atenção,
memória e percepção de características relacionadas ao gênero e à língua inglesa.
Também analisamos o desenvolvimento das CL na aplicação das atividades da SD.

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Anais

OS EFEITOS E PRÁTICAS DA FORMAÇÃO CONTINUA


DE PROFESSORES DE LÍNGUA
INGLESA: MOBILE LEARNING EM FOCO 74

The effects and practices of contitnuous teacher education: focus on mobile


learning

Danielly de Almeida (CAPES – UEL)

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo compreender os efeitos da formação de


professores para o uso de mobile learning e auxiliar a reflexão e compreensão do nosso atual
contexto de ensino, fortemente influenciado pela ascensão das tecnologias móveis nas últimas
décadas. Mobile learning pode ser definido como a aprendizagem por meio do uso de tecnologias
móveis a fim de potencializar/melhorar/ possibilitar o seu maior alcance e possibilidade (BROWN,
2010). A luz deste objetivo principal realizamos um estudo de caso com um grupo de cinco
professores da rede pública estadual de educação acerca das percepções e experiências deles sobre
o uso do smartphone para o ensino de língua inglesa. Para tanto, melhor compreender as
implicações desse processo, a análise se apoia nos conceitos de letramento e letramento digital,
segundo os estudos de Soares (2002), Xavier (2005), Kleiman (2005); conceitos de multiletramentos
de acordo com New London Group (1996), mobile learning ou m-learning segundo os estudos de
Schuler et.al (2010), Moura (2010) e Pollara (2011).
PALAVRAS-CHAVE: mobile learning; letramento digital; formação de professores de LI.

ABSTRACT: This study aims to understand the effects of teacher education for the use of mobile
learning and assist in the reflection and understanding of our current educational context, strongly
influenced by the rise of mobile technologies in recent decades. Mobile learning can be defined as
learning through the use of mobile technologies to enhance / improve / enable its greater range and
possibility (BROWN, 2010). In light of this main objective we conducted a case study with a group of
five teachers from the state public education about their perceptions and their experiences on the use
of smartphone for English language teaching. Therefore, to better understanding in the implications of
this process, the analysis is based on the concepts of literacy and digital literacy, according to studies
by Soares (2002), Xavier (2005), Kleiman (2005); concepts multiliteracies according to New London
Group (1996), mobile learning or m-learning according to the study et.al Schuler (2010), Moura (2010)
and Pollara (2011).
KEYWORDS: mobile learning; digital literacy; LI teacher education.

1. Introdução

O ser humano, ao longo de sua história, vem buscando meios de facilitar


tarefas cotidianas por meio de invenções que objetivam o domínio da natureza e do
espaço onde vive (KURY, 2007). Desde a civilização primária o ser humano vem
desenvolvendo ferramentas que lhe permite (inter)agir com outros e com os objetos.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A medida que o ser humano se desenvolveu, juntamente com ele


desenvolveram-se as tecnologias utilizadas para o domínio do meio, para a
comunicação e registro de sua história. A pintura e as escritas nas paredes feitas
75
pelos nossos ancestrais foram substituídas aos poucos pelos entalhes na pedra,
seguidos pelas folhas de palmeira, papiro, pergaminhos e outros materiais (PAIVA,
2015). Observando esse processo, pode-se dizer que a tecnologia tem funcionado
como um diagnóstico das habilidades humanas (KURY, 2007), isto é, vem
complementando e potencializando a capacidade do ser humano e todos os
aspectos de suas vidas, seja o social, profissional e pessoal são afetados por novos
inventos.
Nas últimas décadas, a tecnologia deu saltos bastante significativos no que
diz respeito a dispositivos digitais tais como computadores e similares, que estão a
cada dia mais presentes e necessários em nossas vidas. Nesse quesito, os
dispositivos móveis como smartphones e tablets tem ganhado maior destaque por
serem mais práticos e portáteis em comparação com outros, podendo ser
carregados com facilidade e também por possibilitarem acesso à internet, entre
outras funcionalidades.
Dentre os dispositivos móveis, o smartphone é o que ganha mais notoriedade
e ganha mais adeptos ao redor do globo. De acordo com dados da Anatel 14 ao fim
do mês de fevereiro de 2016, o Brasil contava com cerca de 258 milhões de acessos
de telefonia móvel em atividade no país todo.
Em virtude deste fato, as opções de mercado deste produto são hoje muito
vastas e os dispositivos estão a cada dia mais potentes e com novas funções como
mensagens instantâneas, movimentação de contas no banco online, registro por
meio de áudio, fotos e vídeo, leitura de arquivos de texto, reprodução de MP3,
aplicativos que permitem controlar outros aparelhos por meio do celular, entre

14
Anatel: Agência Nacional de Telecomunicações. Dados disponíveis em:
http://www.anatel.gov.br/dados/index.php/component/content/article?id=283 acesso
08/04/16.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

outros. Em suma, os smartphones a cada dia mais medeiam atividades humanas


que outrora eram consideradas de mais difícil acesso.
Mesmo a passos curtos, essa tendência já começou a ter influência forte na
76
escola. Atualmente, amparada por lei, grande parte da comunidade escolar luta para
banir o smartphone das salas de aula, alegando que se trata de uma distração a
mais, visto que os alunos em geral o utilizam para trocar mensagens e para jogos.
Ora, não seria essa uma oportunidade de inseri-lo nas práticas pedagógicas uma
vez que se faz tão presente em nossas práticas cotidianas? A luta para afastá-lo das
salas de aula e trata-lo como a “bolinha de papel” do século XXI (PRENSKY, 2010)
tem sido efetiva?
A busca por respostas a essas perguntas serviu de pano de fundo e de
motivação central para a idealização dessa pesquisa, que busca trazer contribuições
para o ensino de língua inglesa no ensino médio da rede pública de educação, cujos
pressupostos ainda hoje são considerados insuficientes. Tal contexto foi selecionado
a partir da vista de que acreditamos que é apenas através da educação inclusiva
que nossa sociedade de fato poderá ser transformada. Compreendemos como
educação inclusiva uma educação que é de acesso de todos os indivíduos,
considerando suas peculiaridades 1
Para Castro Netto (2012), a sociedade tende a pensar que a escola pública
ainda funciona dentro dos moldes estruturalistas e com práticas arcaicas e é de
senso comum que não há incentivo financeiro por parte do governo para que os
professores atendam a formação específica e que as turmas em geral são
superlotadas.
Embora esses problemas de fato sejam reais e grande parte dos contextos
escolares da rede pública brasileira estejam submetidos a algum deles, temos em
nosso país contextos que permitem práticas mediadas por dispositivos móveis e
mesmo os contextos com plenas possibilidades ruma a passos curtos em direção a
inserção de novas tecnologias relevantes para o ensino (CASTRO NETTO, 2012),
tecnologias as quais são presentes na sociedade e cujo domínio é necessários para
que os indivíduos disponham de plena agência em sociedade.
Com vistas nesses fatos, é visível que nossa sociedade tem se transformado
e juntamente com ela o perfil dos jovens em idade escolar também passou por

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

mudanças (BARRETO, 2003). O jovem de hoje, que cresceu em contato com


computadores, celulares, maquinas fotográficas, gravadores e outros que de alguma
forma fizeram parte de sua formação e seu contato com a informação e
77
principalmente forma de aprender e se comunicar, e, conforme Prensky (2001)
afirma, o sistema de ensino conforme é organizado hoje não mais serve para esses
indivíduos.
É diante desses pressupostos que nossa pesquisa se materializa e
principalmente, se faz necessária. Em face das transformações no perfil dos alunos,
faz-se necessário (re)pensar o sistema de ensino vigente e sua coerência com as
exigências que a sociedade faz ao indivíduo, em termos de agência, uma vez que
acreditamos que o ensino de línguas vai além da finalidade de comunicar-se em
outro idioma, mas leva em conta os valores que essa língua aprendida perpetua na
sociedade por meio dos discursos (PENNYCOOK, 1998).
Desta maneira, ao longo dessa pesquisa iremos contemplar diversas
interfaces da língua inglesa, desde como ela passou a ser uma língua adicional no
nosso país, como se consolidou e como é concebida hoje. A partir dessa percepção,
buscaremos estabelecer relações entre a relevância da língua inglesa à agencia do
indivíduo em sociedade com as tecnologias móveis, mais especificamente o
smartphone, que se faz tão presente no cotidiano de cada vez mais pessoas no
nosso país.
A realização de pesquisas no âmbito da aprendizagem de língua inglesa por
meio de dispositivos móveis pode resultar em novas práticas relevantes para o
ensino, uma vez que a ferramenta que buscamos implementar é a
representatividade da facilidade que as tecnologias nos trazem atualmente. Deste
modo, nossa pesquisa partiu da observação do contexto de alunos do ensino médio
de uma escola da rede pública paranaense e se justifica a partir de três tópicos que
aqui elencamos:
Primeiramente, ao observar os alunos, notamos que grande parte deles
portava um smartphone ou tablet. Vistos como uma distração, os dispositivos móveis
eram (são) proibidos dentro das salas de aula, inclusive por meio de uma lei, de

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

número 18.118/1415 que prevê que o uso ou manejo de celulares e outros


eletrônicos que não sejam para uso pedagógicos poderão ser confiscados pelo
professor e o aluno portador será devidamente punido. Ainda que o seu uso seja
78
permitido para atividades de fim pedagógico, pudemos observar que tais atividades
quase não acontecem em sua máxima potencialidade.
Em segundo lugar, observamos por meio do relato de alguns professores, que
será melhor evidenciado no item de desenvolvimento da pesquisa, que o uso do
celular ou mesmo de outros dispositivos móveis em sala de aula ainda não é
possível e/ou mais recorrente pelo fato de não haver uma formação específica para
o professor. Ao buscar por pesquisas que contemplassem esses objetivos, não
encontramos um número satisfatório de pesquisas que abordassem essa temática.
Por fim, acreditamos que a tecnologia móvel é/ pode ser uma ferramenta cujo
domínio poderá significar a possibilidade de agencia do indivíduo na sociedade, visto
que esse tipo de ferramenta a cada dia mais ganha espaço e finalidade para
usuários de todas as faixas etárias, inclusive os que estão em idade escolar.
Pensamos também ser importante que nossa pesquisa possa contribuir para
que os dispositivos móveis, em última instância, possam ser vistos como
ferramentas essencialmente funcionais, tanto no ensino como na vida prática, jamais
tomando o lugar de outras ferramentas já em uso ou substituindo a interação/
comunicação direta.

2. Objetivos

A pesquisa tem como objetivo principal compreender os efeitos dos eventos


de formação no que diz respeito a mobile learning e a forma com que dispositivos
móveis podem impactar a forma de ensinar língua inglesa. Mais especificamente,
objetivamos:

15
Texto da lei disponível em: goo.gl/mnJLqk. Acesso: 27/03/16

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

- Reforçar a importância da formação contínua para professores de línguas visando


o aprimoramento e atualização de conhecimentos no que tange ferramentas
disponíveis para o ensino;
79
- Desenvolver ferramentas significativas para pautar os eventos de formação de
professores de língua inglesa bem como estabelecer uma conexão mais direta entre
o formador e a realidade e possibilidades da escola pública;
- Promover a necessidade tanto de campo como bibliográfica para a prática de
ensino, principalmente no ensino de línguas, visto que trata-se de um objeto que
passa por constantes mudanças e também causa mudanças na sociedade
globalizada e conectada.

3. Metodologia

Caracterizamos essa pesquisa, de cunho qualitativo, como um estudo de


caso. O estudo de caso é definido por Leffa (2006) como uma “investigação
profunda e exaustiva de um participante ou pequeno grupo” (p.14), isto é, ao longo
desse processo de pesquisa são consideradas diversas óticas de análise dos dados
coletados por meio de registros de áudio, vídeo, escrita ou observação.

Mais especificamente, nos filiaremos aos pressupostos de um estudo de caso


explanatório que tem como objetivo descrever um determinado fato/evento ou
procedimento e realizar as análises considerando causa e efeito do que é descrito
(LEFFA, 2006).

O contexto em que a pesquisa se situa foi o de eventos de formação 16. Ao


longo de nossa trajetória profissional pudemos observar vários contextos de ensino,
verificando a necessidade de se investigar a ação dos professores no contexto da
escola pública, sendo assim, elaboramos um questionário piloto que foi enviado à
professores de língua inglesa da rede pública do estado do Paraná via e-mail.

Os professores interessados deveriam acessar o link disposto no corpo do e-


mail e responder a um questionário estruturado inicialmente para compreender o

16
Consideramos como eventos de formação aquelas circunstâncias e/ou situações em que o indivíduo, de forma
dialógica ou não, adquire conhecimentos destinados à sua atuação profissional/ pessoal.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

contexto de atuação desse professor e a experiência que ele/ela possuía com o uso
do smartphone para o ensino de língua inglesa. Vale ressaltar, que no texto de
introdução do questionário explicitamos nosso interesse em dialogar com
80
professores de língua inglesa apenas do ensino médio, no entanto mais adiante nas
investigações, este interesse em especifico teve que ser reconsiderado.

O questionário piloto ficou disponível por um prazo de dois meses para que os
interessados respondessem e neste período recebemos o total de oitenta e oito
respostas de professores de todas as partes do Paraná. Após a finalização do prazo
de dois meses compreendemos os dados gerados pelo questionário como dados
prévios, isto é, a compreensão desses dados iniciais será possivelmente melhor
compreendida em contraste com os dados gerados nas outras etapas da pesquisa.

Após esse processo, convidamos o total de oitenta e sete professores para


participar dos eventos de formação via e-mail (um dos respondentes do questionário
piloto não deixou endereço de e-mail conforme solicitado). Do total de respondentes
do questionário dez professores responderam positivamente ao convite. Ao receber
o aceite do convite, a próxima etapa consistia no envio da ementa dos eventos de
formação, formulada a partir da leitura e discussão de textos teóricos bem como
materiais e aplicativos, materiais e estratégias cuja mediação feita pelo smartphone
pode ser efetiva.

A ementa dos eventos de formação fora pensada a partir de experiências


obtidas ao longo do processo de formação contínua recebido durante o mestrado
que ofertava uma disciplina de nome “Novas tecnologias, linguagens e escola” no
programa de pós-graduação em Estudos da Linguagem na própria universidade. Os
textos propostos nessa ementa buscam compreender o processo histórico das
tecnologias bem como o efeito que causam no ensino de línguas hoje e como o
professor pode fazer uso dela em favor da aprendizagem.

Após o envio das ementas, aguardamos o prazo de duas semanas pelas


respostas dos professores a ementa e dos dez que anteriormente demonstraram
apenas cinco professores seguiram adiante com a proposta. Nas ementas enviadas

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para eles, constava o passo a passo de como seria todo o processo juntamente com
datas importantes.

O procedimento de coleta de dados seguiu as seguintes etapas: 1) eventos 81

de formação por meio de um aplicativo para smartphone ou tablete chamado


”Periscope”17, cuja função é de streaming de vídeo que também permite interação
dos telespectadores, isto é, enquanto o usuário faz upload automático de vídeo ao
vivo, os espectadores podem esboçar reações por meio de ferramentas e também
mandar questionamentos e opiniões por meio de texto bem como podem também
produzir vídeos públicos e privados para seus próprios telespectadores; 2)
Discussão geral com todos os participantes via Skype18 a fim de partilhar as
percepções e experiências da semana de forma coletiva, e 3) entrevista semi-
estruturada com todos os participantes para observar as percepções gerais de todo
o processo e suas implicações na prática de ensino de cada professor envolvido.

Por meio desse procedimento, poderemos também observar a possibilidade e


potencialidade do ensino de línguas por meio de mobile learning bem como
poderemos compreender melhor a percepção do professor acerca de sua formação
e de seu papel enquanto agente bem como compreender melhor a forma que o
respaldo teórico ofertado na teoria pode impactar a prática.

4. Constituição do corpus e desenvolvimento

Para compreender todas as questões que subjazem a nossa temática


elencamos um arcabouço teórico que dá suporte e que subscrevem uma perspectiva
congruente a nossos interesses de pesquisa, que são de letramento (GEE, 1996;
KLEIMAN, 2005; SOARES, 2002; LEMKE, 2010; KNOBEL, LANKSHEAR, 2007);
letramento digital (XAVIER, 2005; MARCUSCHI, XAVIER, 2005; COSCARELLI,
2005; RIBEIRO, 2009); multiletramentos (NEW LONDON GROUP, 1996; ROJO,

17
https://www.periscope.tv/
18
https://www.skype.com/pt-br/

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2012); mobile learning (MOURA, 2010; POLLARA, 2011; SCHULER, WINTERS,


WEST, 2013).

Por meio do corpus articulado, buscaremos compreender questões que 82

subjazem a formação de professores bem como percepções possíveis por meio


dessas visões que nos auxiliam na compreensão de que papel a formação
desempenha no processo como um todo. Desta forma, daremos ênfase na
compreensão de como os sujeitos de pesquisa concebem alguns conceitos
fundantes como de letramento, multiletramentos, ensino crítico e uso de tecnologias.

É importante ressaltar que nossa proposta não objetiva dar evidencia à


tecnologias que para substituir a (inter)ação humana no processo de ensino, mas
dar a ela o espaço que lhe cabe no ensino de línguas uma vez que está cada vez
mais presente nas interações humanas e por fim, proporcionar uma formação ao
professor de língua inglesa que o possibilite pensar a tecnologia móvel como uma
ferramenta de promoção de inclusão e reflexão crítica de nossos tempos.

4.1. Letramento

Para alcançar os objetivos propostos nessa pesquisa, nos propomos a refletir


mais profundamente questões relativas ao termo letramento e como ele se
materializa na escola. Soares (2002) considera como letramento todo conjunto de
conhecimentos que possibilite que o indivíduo efetive práticas sociais de leitura e
escrita e tomam parte de forma competente em eventos de letramento. A autora
ainda define eventos de letramento como uma ocasião em que um indivíduo
participa de uma situação e interage competentemente das interações propostas
(HEATH, 1982 apud. SOARES, 2002).

Por essa perspectiva, o indivíduo letrado é capaz de fazer parte à medida que
domina um determinado conjunto de conhecimentos exigido para a determinada
situação. Já Lankshear e Knobel (2007) compreendem letramento por uma
perspectiva sociocultural e afirmam que só é possível compreender o seu real
significado se considerarmos contextos sociais, culturais, políticos, econômicos e

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históricos. Uma definição bastante importante para nossas analises também é a


definição cunhada por Freire (1990):

83

O ato de ler e escrever deve começar a partir de uma compreensão muito


abrangente do ato de ler o mundo, coisa que os seres humanos fazem
antes de ler a palavra. Até mesmo historicamente, os seres humanos
primeiro mudaram o mundo, depois revelaram o mundo e a seguir
escreveram as palavras (p. 66)

Gee (1996) define letramentos a partir de discursos, definidos por ele como
formas socialmente reconhecidas de usar a linguagem por meio de quaisquer
recursos semióticos e essa capacidade de uso da linguagem confere ao indivíduo o
status de pertencente a um determinado grupo social a medida que desempenha um
papel significativo por meio da linguagem. Pensando nisso, Lemke (2010) traz
justamente a concepção de que letramentos são de fato práticas sociais, isto é, “um
conjunto de competências culturais para construir significados sociais reconhecíveis
através do uso de tecnologias materiais particulares” (p.456).

Ao longo do processo de coleta de dados, buscamos investigar através dos


eventos de formação qual a concepção que os professores tinham de letramento e
que tipo de letramento consideravam importante para os seus alunos em especifico.
Dos quatro participantes efetivos do processo, aqui definidos como Fabia, Roger,
Márcia e Mari, apenas um deles tinha uma concepção de letramento que mais se
aproxima em essência às quais nos subscrevemos.

Fabia: “... letramentos são os conhecimentos que ele precisa ter não é? Eu
li na pós... Algo assim”

Os demais participantes, deram respostas que de certa forma nos remeteu a


uma noção vinculada a alfabetização. Os conceitos de alfabetização e letramento,
são frequentemente confundidos desde o início da década de 80 com a maior
incidência de estudos críticos que trouxeram à tona o termo. Desde então, várias

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outras correntes teóricas desenvolveram-se a partir disso. Xavier (2005) ainda


afirma que para que o indivíduo seja de fato considerado letrado digital ele precisa
possuir habilidades que lhe permita ler e produzir textos que circulem em esferas
84
digitais

4.2. Letramento digital

O letramento digital exerce papel fulcral em nossas analises uma vez que
elencamos como ferramenta para o ensino o smartphone. Para Xavier (2005) o
letramento digital consiste na realização de práticas de leitura e escrita em formas
não tradicionais de letramento e alfabetização. Por meio dessa afirmativa, o autor
define como tradicional as práticas especificas de se ler.

Ao falarmos de letramento digital, automaticamente os quatro professores


participantes pensaram que se tratava do letramento especifica e unicamente textos
não impressos, implicando que a única mudança foi a transposição do papel para a
tela, enquanto Xavier (2005) assevera que o letramento digital pressupõe mudanças
no modo de ler e escrever, hoje bastante diferente de outrora devido a presença de
códigos verbais e não verbais que constituem a maior parte dos textos que hoje
circulam frequentemente na escola e no dia-a-dia do aluno.

Tal resposta dos professores pode ter se dado devido ao fato de que o
advento das tecnologias digitais possibilitou novas semioses ao texto que
anteriormente eram menos recorrentes visto que os recursos para tal eram bem
menos comuns do que hoje. Logo, trata-se de um efeito causado por esse fato aqui
explicitado.

Para Ribeiro (2009) o leitor da atualidade tem acesso a vários formatos de


textos em variados suportes comparado ao leitor das gerações anteriores e, devido
a velocidade das mudanças e da informação que vivenciamos hoje, é necessário
compreender os fatores que subjazem a essas mudanças.

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4.3 Multiletramentos

85

O termo multiletramentos foi mencionado incialmente em 1996 em um


manifesto feito New London Group (1996) , pioneiro em pesquisas no assunto . O
grupo propunha a pedagogia dos multiletramentos que preconizava a necessidade
de a escola tomar um posicionamento quanto a modificação dos currículos a fim de
atender a necessidade de novos letramentos que apareciam na escola, isto é, levar
em consideração a multiplicidade de culturas e de influências culturais sob as quais
os alunos eram submetidos (ROJO, 2012).
De acordo com as afirmações do grupo, mais do que desconsiderar e ignorar
as subjetividades do processo de ensino, é necessário recrutá-las e adequar sua
linguagem, tipo de recursos e suporte como um ponto a favor da aprendizagem.
(New London Group, 1996).
Ainda, a fim de melhor categorizar os estudos, o foco foi dividido em dois
parâmetros: a crescente diversidade linguística e cultural, cujo motivo principal é o
processo de globalização, e a multiplicidade de canais e meios de comunicação, que
são resultantes da influência das novas tecnologias. Esses dois diferentes vieses
são então “responsáveis pelo prefixo “multi” da denominação de multiletramentos
(BEVILAQUA, 2013).
O principal foco das discussões acerca do multiletramento, considerando os
estudos do New London Group (doravante NLG), era a construção de um currículo
maleável no quesito sociocultural, a fim de atingir todos os indivíduos em sala de
aula das mais diversas camadas sociais.
Rojo (2012), aponta que os pesquisadores desse grupo são majoritariamente
oriundos de países em que os conflitos culturais são emergentes - como lutas entre
gangues, massacres de rua, perseguições e intolerância - e que de acordo com as
pesquisas do NLG, ignorar esses fatos em sala de aula contribuía para o aumento
da violência dentro e fora da escola. Rojo aponta que tal realidade não é tão
diferente da que vivemos no Brasil e, que da mesma forma que o estudo dos
multiletramentos foi funcional naqueles países, também tem potencialidade para
surtir efeitos no Brasil.

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No que diz respeito a caracterização dos multiletramentos, Rojo (2012)


reforça que é importante compreender que o conceito de multiletramentos e aponta
para dois diferentes tipos de multiplicidade presentes em nossa sociedade
86
contemporânea: “a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade
semiótica de constituição dos textos por meio dos quais ela se informa e se
comunica” (p. 13).
Diante disso, a autora evidencia também a existência de um hibridismo nas
produções culturais letradas, o que resulta na necessidade de existir uma nova ética
e nova estética (ROJO, 2012), em que se leve em consideração os direitos autorais,
que atualmente não são mais tão rigorosos devido a difusão de materiais advindos
da web e nova estética quando se diz respeito ao amplo acesso a diversos
conteúdos independente de sua origem e a caracterização dada pelos receptores
destas produções e suas análises feitas com base no conhecimento prévio daquele
tipo de produção em específico.
Dentro dessas perspectivas, o arcabouço teórico mencionado auxiliará na
compreensão de como organizar materiais que sejam relevantes as práticas letradas
dos alunos e repensar o papel da tecnologia móvel enquanto localizada e utilizada
por diferentes grupos em diferentes contextos. Cada professor participante relatou
suas práticas como situadas em diferentes contextos e diferentes perfis de alunos.
Partindo disso, no que diz respeito ao multiletramento, as discussões realizadas
neste tópico evidenciaram as dificuldades que sentem em relação a compreensão e
adequação do tipo de cultura e vivencia diversa que cada aluno traz.

4.4 Mobile learning ou m-learning

Conforme já fora descrito, atualmente a tecnologia tem tomado conta do


cotidiano do cidadão a medida que os smartphones e tabletes ganham mercado e
ganham versões cada dia mais potentes e também popularizando-se a ponto de
ficar acessível a quase todas as camadas sociais.
A medida que os anos passam, os dispositivos vão se tornando mais potentes
e funcionais para seus usuários. Os itens que tem ganhado mais notoriedade nos
últimos tempos são os dispositivos móveis, tais quais tablets, smartphones e Pocket

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PCs, devido a sua popularidade principalmente ente os jovens entre 10 e 17 anos de


acordo com dados da Anatel do segundo semestre de 2014.
A partir desse cenário é que surge o conceito de mobile learning, que de
87
acordo com as afirmações de Moura (2010), mobile learning ou m-learning refere-se
ao uso de dispositivos móveis como recursos mediadores para a aprendizagem,
tanto a partir de atividades feitas sob medida para esse tipo de plataforma quanto
como um meio de obter informações extras via internet, uma vez que a maior parte
desses dispositivos permitem acesso à internet.
Schuler et al. (2013), em uma publicação pela UNESCO, mostra que já
existem diversos estudos abordando essa temática e que grande parte dos projetos
desenvolvidos por eles são desenvolvidos para atender necessidades especificas
como mensagens de voz motivacionais, aula de inglês ou auxilio na coleta de dados
a longa distância. Os autores ainda apontam que para que a aprendizagem móvel já
vem sendo considerada e desenvolvida acerca de quinze anos e, apesar disso, a
aprendizagem móvel não causou grande impacto.
Mesmo com esses dados, os autores acreditam que em uma década, por
exemplo, o uso de dispositivos móveis será inegável. Schuler et al. (2013) fazem
uma previsão de que em alguns anos, o mobile learning será possível graças a
progressiva acessibilidade dos dispositivos, que graças a grande variedade vem
diminuindo gradativamente de preço
Tratando-se da presença dos dispositivos na educação formal, Schuler et al.
(2013) revelam fatos bastante relevantes para o estado atual da mobile learning.

Em nível global, dois dos modelos mais populares de aprendizagem móvel


nas escolas são programas do tipo 1:1, ou Um Computador por Aluno
(UCA), em que cada aluno recebe o seu próprio dispositivo, sem custos
para o aluno ou para a sua família, e os do tipo Traga o Seu Próprio
Dispositivo (Bring Your Own Device – BYOD), que conta com quea maioria
dos alunos tem os seus próprios dispositivos (p.19).

O exemplo citado, se trata de uma situação em que se leva em consideração


a educação formal, porém existem também recursos da educação informal, como
por exemplo, um serviço de assinaturas via SMS que oferece informações sobre

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saúde, agricultura e educação, intitulado Nokia Life Tools. Este serviço está
disponível atualmente para alguns países da Ásia e África.
Além de analisar o atual estado da mobile learning, os autores traçam alguns
88
encaminhamentos futuros (SCHULER et al.,2013, p. 25), tais quais:

a) A tecnologia será mais barata e funcional;


b) Os dispositivos conseguirão coletar, sintetizar e analisar
enormes quantidades de dados;
c) Teremos à disposição novos tipos de dados;
d) As barreiras de linguagem serão superadas, entre outros.

A partir desses dados ofertados pelos autores, é evidente a necessidade de


se estudar os encaminhamentos da mobile learning visto que é previsível que o uso
de dispositivos moveis para a aprendizagem será necessário.
Pollara (2011) afirma que são vários os desafios que os educadores deverão
enfrentar afim de solidificar o mobile learning dentro dos moldes esperados. Um dos
desafios citados, é a diferença de gerações que lidam com os dispositivos.
A perspectiva de um aluno chamado por Prensky (2001) de nativos digitais,
nascido em contexto rodeado por tecnologia, tendo à mão acesso a todo tipo de
conteúdo desde o dia de seu nascimento, se difere amplamente da perspectiva de
um professor, com no mínimo duas décadas mais velho que estes alunos.
Além disso, segundo a autora, será necessário a reelaboração de estratégias
pedagógicas com o uso de dispositivos móveis em sala de aula, pois toda a
dinâmica da sala de aula irá mudar comparado ao atual status.
Por fim, um outro desafio apresentado, é a falta de dados necessários para
um bom agir. Pollara (2011) afirma que a queda nos preços dos dispositivos fez com
que o consumo aumentasse tão rapidamente que os pesquisadores não tiveram
tempo hábil para designar novas formas de lidar com a inserção desta ferramenta na
escola.
A fim de que a concretização da aprendizagem móvel fosse possível,
decidimos oferecer aos professores eventos de formação online para, além de
facilitar as interações entre um grupo geograficamente diverso, pudéssemos j´[a

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Anais

sentir o efeito da aprendizagem via smartphone. Ao longo do processo, foi


requisitado que os participantes utilizassem um aplicativo já mencionado, o
Periscope. A partir dessa etapa, os participantes da pesquisa foram divididos em
89
dois grupos.
A divisão aconteceu porque dois participantes conseguiram fazer uso do
aplicativo corretamente e dois participantes não conseguiram. Os dois participantes
entraram em contato via WhatsApp afirmando ter dificuldades para manusear, baixar
aplicativos e executar algumas funções do smatphone. A partir disso, a fim de não
comprometer os objetivos traçados para os eventos de formação, decidimos
trabalhar de formas diferentes com os dois grupos que denominamos primário, os
que conseguiram utilizar o aplicativo conforme solicitado; e secundário, o grupo que
não se adequou a proposta original.
Ao longo da realização dos eventos de formação, buscamos observar o que
caracterizava a cada grupo de professores e o motivo de os dois participantes não
terem se adequado à proposta original, pois apenas por meio da analise dos dados
pessoais fornecidos por eles no questionário piloto, dados como idade, formação
acadêmica e tempo de atuação na educação básica.

Resultados Parciais

Ao longo da pesquisa, os professores participaram dos eventos de formação


descritos que tinham como objetivo trazer uma formação complementar no que diz
respeito a tecnologia móvel. Inicialmente, os professores convidados atenderiam aos
eventos de formação por meio do aplicativo Periscope, conforme descrito. No
entanto, dois dos professores não conseguiram utilizar o aplicativo com a devida
maestria. Ao serem questionados no momento da entrevista sobre o motivo de não
terem conseguido utilizar o aplicativo, um dos professores afirmou:

“Ah, não soube baixar, sabe? Eu não tenho muita facilidade igual vocês, os
alunos, pra [sic] usar o celular. Uso só o básico, WhatsApp, mensagem,
né?” – Márcia

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Anais

A partir do que a professora afirma neste trecho podemos observar que a


professora afirma que os alunos possuem mais conhecimento prático da tecnologia
móvel do que ela. Em um outro trecho da entrevista, a professora retoma o assunto:
90

“É complicado levar pra [sic] sala de aula o celular e passar alguma coisa
pra eles com o celular né? Eles mexem nisso o dia todo, usam muito mais
do que a gente. Como vamos acompanhar não é não? ” - Márcia

A partir disso, a professora caracteriza que, a partir do amplo uso do


dispositivo, o aluno utiliza a ferramenta com mais efetividade do que os professores.
A seguir, a professora foi questionada o porquê de os alunos usarem mais
avidamente o dispositivo do que os professores:

“Costume? Deve ser! Eles desde pequeno usam isso aí. A gente pena [sic]
pra aprender usar e eles fazem com facilidade. Os jovens conseguem mais
fácil, eu acho.” – Márcia

Segundo o que postula Prensky (2001) tal fato se daria unicamente pelo fato
haver uma diferença de décadas entre professores e alunos. No entanto, pudemos
compreender por meio dessa pesquisa que trata-se de um processo mais subjetivo
do que unicamente a década de cada indivíduo. Trata-se de um fator ligado a
necessidade do indivíduo afirmar aquilo que Foucault (2004) chama de tecnologias
de si, isto é, a habilidades ou operações em seus próprios corpos, em si próprios.

Para Sibilia (2003) o ser humano hoje, encara a tecnologia digital é encarada
hoje pelos indivíduos como uma extensão das próprias habilidades orgânicas, ou
seja, o ser humano busca hoje nas tecnologias digitais formas de ampliar as
possibilidades do próprio corpo.

Através da fala dos professores que puderam efetivamente utilizar a


ferramentas, é um pouco mais evidente a diferença no perfil desses dois grupos de
professores.

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“Não tive dificuldade não [para usar a ferramenta]. Achei um pouco parecida
com o Snapchat, que eu uso bastante, daí foi tranquilo. Só que o Snap não
dá pra ver o que os outros mandam igual nesse aí, esse que você falou
[periscope]. ” – Roger

91

Ao obter essa resposta, o professor foi questionado sobre sua relação com o
dispositivo móvel:

“Uso bastante sabe. Costumo levar pra todo lugar, o celular. Uso muito pra
coisas da escola também. Desde que comprei meu primeiro smartphone
comecei a usar muito, eu gosto de novidades e consigo usar de boa.” –
Roger

Em relação a faixa etária dos dois professores, de acordo com as respostas


que deram ao questionário piloto, não há uma diferença muito significativa para
caracterizar as diferenças entre os grupos apenas como relativas ao que Prensky
(2001) caracteriza como hábeis ou não com o uso de dispositivos tecnológicos.

Desta forma, compreendemos que as relações de habilidade com o uso de


tecnologia móvel transcende o paradigma nativo e imigrante digital e adentra
questões subjetivas dos indivíduos.

Considerações Finais

A pesquisa aqui apresentada considera apenas resultados parciais, uma vez


que trata-se de uma pesquisa em andamento. Levando em consideração o estágio
em que se encontra, foi possível investigar como o perfil dos professores influenciam
suas práticas em sala de aula com o smartphone.

Ao longo do restante da pesquisa, será possível investigar mais a fundo as


representações desses professores no que diz respeito a mobile learning a fim de
por meio de tal ferramenta e dos efeitos da formação complementar a qual os
professores foram submetidos, possam refletir a respeito do papel da tecnologia na
sala de aula e o potencial que possui para promover práticas inovadoras que
permitam aos alunos tomar parte em uma sociedade permeada por tecnologias
digitais.

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Anais

Para que o indivíduo tenha possibilidades de agencia em nossa sociedade, a


língua inglesa desempenha papel fulcral e está presente em todas as esferas de
interação, especialmente dos dispositivos móveis e em websites, sendo assim,
92
reforçaremos a necessidade de possuir determinadas habilidades que envolvem a
língua inglesa, dominando-a a fim de ter acesso a certas informações e recursos que
só são ofertados aos que possuem essas habilidades mas nunca sendo dominados
pelo domínio econômico e cultural que ela representa (RAJAGOPALAN, 2006).

Referências

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In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Percepções de professores de inglês em relação


ao inglês como língua franca
Teachers of English perceptions towards English as a lingua franca 94

Claudinei Aparecido Canazart (Universidade Estadual de Londrina, PG)

RESUMO: Este artigo tem como objetivo principal apresentar resultados de um estudo realizado com
três professoras de inglês da escolar pública em relação à perspectiva de ensino e aprendizagem de
inglês como língua franca. Os pressupostos teóricos que orientaram o estudo incluiram Alpetkin
(2010), Firth (1996), Jenkins (2009), Kachru (1996), Pakir (2009), Seidhofer (2001, 2004), Siqueira
(2011). A metodologia de pesquisa incluiu a aplicação de questionários por meio dos quais os
participantes puderam refletir e expor suas crenças sobre inglês como língua franca na sala de aula,
e também por uso de videos com o propósito de compreender as reações deles quanto ao uso de
inglês por indivíduos de diferentes partes do mundo contemporâneo.

PALAVRAS-CHAVE: Inglês. Língua franca. Ensino-aprendizagem.

ABSTRACT: This article has as main objective to present the results of a study carried out with three
state school English teachers´ towards the perspective on the teaching and learning of English as a
lingua franca. The theoretical background which oriented the research included Alpetkin (2010), Firth
(1996), Jenkins (2009), kachru (1996), Pakir (2009), Seidhofer (2001, 2004), Siqueira (2011). The
research methodology included the application of questionaries through which the participants could
reflect and expose their beliefs on English as a lingua franca in the classroom, and also through the
use of videos with the purpose of understanding their reactions towards the use of English by
individuals from different parts of the contemporary world.

KEY-WORDS: English. Lingua franca. Teaching-learning.

Introduction

In the globalised world we live today it is necessary to understand the value


that languages can represented to the fields of information, technology, personal and
professional interactions, commercial transactions in global scale, in the networks
that link people from all parts of the world, in scientific and cultural negotiations,
politics, economy, from the job market to the entertainment universe. In this emerging
panorama of communication and experiences, the English language has a featured
place and, more than other ones, being the language which makes the relations or
interactions possible because they happen more widely and quickly trespassing
geographic, social and cultural barriers. Then, being the tool of communication
among people from different social and cultural backgrounds, from diverse political
and economic settings, English goes getting itself peculiar characteristics from those

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

people´s backgrounds and contexts, these peculiarities can be noticed in its daily
use, getting new expressive forms that put in evidence cultural values and
characteristics from those users as well as their identities and emotions when they
95
use the target-language. Then, English becomes a vivid instrument which reveals
innovative lexical-grammatical processes, phonological, syntax and discursive
innovations also appear as a result of its use by different contexts, objectives and
users; so these innovations base various conceptions from different authors who
research and argue in favor of English as a lingua franca.
19
For FIRTH (1996 apud Seidlhofer, 2004) “English as a lingua franca is a
language of contact among people who do not share nor a common mother tongue
neither a common national culture, and for whom English is the chosen foreign
language for communication.. Different authors discuss whether English is a lingua
franca or not, and if this status is enough to define it as a “new variety” of English, or
even if its use in all parts of the world and its innovations are simply peculiar in some
contextualized situations of use which are not enough and effective to confirm that
there is a - or more than one – variety of English language today. Many academics
emphasize that the status of a lingua franca is a natural and contemporary
development process of the language, a linguistic event which does not confirm
necessarily the “birth” of a new English variety. Among those authors’ discussions
and conclusions some of them are, sometimes, very similar, other times they are
strongly opposed. What is established, though, is the undeniable fact that nowadays
the English language is, a means of effective communication which contribute to
social, historical, professional and cultural development in society and this has been
widely facilitated by the media and the advanced technology we see and use in
almost every sector of our everyday lives.
The definition of the linguistic phenomenon or process of English use as “a
language from and to everybody”, that is, a language which can serve us all, has
been varied: World English, World Englishes, English as an International Language,
International English, English as a Foreign Language, English as a Second

19
“Inglês como língua franca é uma língua de contato entre pessoas que não partilham nem de uma língua
materna comum nem de uma cultura nacional comum., e para as quais o Inglês é a língua estrangeira escolhida
para a comunicação.”

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Anais

Language, English as an Additional Language or English as a Lingua Franca are the


most seen in literature.
As a reference point in this investigation the conception – or definition – of
96
English as a lingua franca is not taken from that one based only in a specific author-
researcher, but the references here are basically based on some important
assumptions among authors that, to a certain point, can describe the aspects which
characterize the same linguistic phenomenon. , According to KACHRU (1996: 910
apud Pakir, 2009, 224) “English as a lingua franca, however we define the term, has
became a communicative tool of immense political, ideological, and economic
power”, For SEIDLHOFER (2001, 135)

[…] a question in urgent need of exploration is just what the English is that is
being taught and learnt in this emerging global era, how it squares with the
socio-political and socioeconomic concerns discussed in the profession, and
what its relevance is for the subject taught in classroom all over the world.

The issues around the status of the English language in a globalized context
bear consequences for the teaching in schools, irrespective of their categories
(public, private, language institute) More interesting than trying to find one definition
for English as a lingua franca is to understand the social, political, historical,
economic and cultural circumstances that contribute to such status. Such
understanding involves considering that barriers caused by different languages
cannot mean barriers which block information among people, among companies,
industries, conglomerates, governments, scientific and academic institutions and
schools. We need to to understand, above all, that the use of a common language is
not only a matter of choice, but a vital communicative condition which makes all
interactions in global scale possible.

English as a lingua franca

Although the English language has been used by approximately two billion
people around the world, it is complex to define it using a specific terminology since
the literature reports on many denominations such as : Additional Language, Mother
Tongue, Foreign Language, International Language, World English, World Englishes,

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Lingua Franca or othersdeeply discussion of these terminologies involve different


opinions or arguments : they point out cultural influences, political and economic
reasons, geographic areas, local and global issues which serve as “flags” or
97
indicators to reinforce one or another denomination. The term “English as Lingua
Franca”, is20 according to Seidlhofer (2001),

an additional linguistic system which serves as a means of communication


among speakers from different mother tongues, or a language towards
individuals from different speaking communities can communicate to each
other but it´s not their mother tongue – a language that has no native
speakers. (my translation).

Description does not consider communicative situations where native


speakers could also participate, since English does not “belongs to” exclusively to
some territories For JENKINS (2009, p. 201 apud Pederson, 2011, p. 61)

all English users are included in the definition of ELF, but the critical point is
21 22
that when inner circle speakers participate in ELF communication, they
do not set the agenda … ELF is thus an issue not of orientation to the norms
of a particular group of English speakers, but of mutual negotiation involving
efforts and adjustments from all parties.

In this definition it´s possible to infer that geographic and cultural barriers
require a flexibility of linguistic resources which allow the communication process. In
Jenkins´ definition all users of the language are responsible for the negotiations and
this is what strengthens the lingua franca character, that is, a democratic use of the
language. It is important to recognize English as a language without a sole “owner”it
does not belong to a one “territory or area”. In Jenkins words23 (2007) we also find
that “a lingua franca, in thesis, does not represent only native speakers nor a specific
culture that “speaks” for it, it is a common wealth belonging to all who use it, it does
not has an owner, it is not a mother tongue of only one group of speakers.
ALPETKIN (2010, p. 102 apud Siqueira, 2011, p. 92) the conception is that:

20
“um sistema linguístico adicional que serve como meio de comunicação entre falantes de diferentes línguas
maternas, ou uma língua pela qual os membros de diferentes comunidades de fala podem se comunicar entre si
mas não é a língua materna de nenhum deles – uma língua que não tem falantes nativos.” (minha tradução)
21
A definition for those countries / territories where English is the official mother tongue. (Kachru model
circles).
22
ELF – English as a Lingua Franca

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lingua franca, specially those of great geo-political expansion, turn into


peculiar bilinguism cases without a biculturalism, where non native speakers
use their own version of the language in most different international contexts
where the norms and conventions from natives are considered essentially 98
redundant. What a global lingua franca does, said the author, is “to promote
the raising of a multicultural identity.
The question of whether native speakers are included in the definition of ELF
is also addressed by WIDDOWSON (1994, p. 382 apud Siqueira, 2011, p. 93):

when a language achieve a global status, paying the price of been


dismembered in a myriad of other languages, from the numerous local
experiences, an international language stops belonging to a certain native
speakers group and, according to Smith (1976), any nation can strongly
require its custody over the language. (my translation).

LLURDA (2004, p. 314) characterizes English language in contemporary world


as “International Language” and argues that:

24
In the context of EIL , native speakers are only a part of the much larger
group of speakers of the language. In fact, as MODIANO (1999) argues,
proficiency in speaking English is no longer determined by birth but by the
capacity to use the language properly, a capacity that is shared by some –
but not all – speakers, be they native or non-native.

Beyond discussions about definitions and terminologies, the possibilities of


describing and codifying English as a language with different varieties or as many
languages (Englishes), what matters here is the implications of these discussions to
its teaching and learning. The view that English is a pluricentric language can
encouragelearning that goes beyond the mere lexic-grammatical practice which is,
most of the time, based on standard varieties , i.e., the North-American or British
standards. The English learning process can, then, elicit on learners discussions on
idioms, languages, accents, proficiency, discourses and, ideologies. She points out
that “thinking on the teaching of English as a lingua franca opens possibilities to a
wider awareness from the teachers, since it requires ideological considerations and
the educational function of its learning in contexts like ours.”25. When the author
mentions the “educational function” she refers to the responsibility of teachers of

24
English as an International Language.
25
The author is referring to “Brazilian teaching contexts” when she says “ours”.

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English in doing more in our daily classrooms rather than only teaching structural
features of the language.
She refers to the responsibility of teachers in giving subsidies and
99
stimulating their students to a more complex learning of the target language in the
contemporary world, such as: how it can affect lives revealing notions of different
forms of power in the world, dominants ideologies globalization consequences, job
experiences English as a Lingua Franca studies have motivated discussions on
many elements that in the past were not considered crucial to the teaching –
learning, and now there´s an emergent need to (re) construct conceptions about
language and language diversity, about proficiency and teaching-learning practices
Having introduced the notion of English as a lingua and its importance in reshaping
classroom practices, I now turn to the empirical study developed with teachers to
identify their perceptions regarding this topic.

Methodology

The methodology carried out for this investigation was constituted of four
steps: The first step was to propose to administer a questionnaire written in English
which was also asked to be replied in English with questions that could help identify
the profile of the participant teachers of English who worked in public schools.
The second step of the study was to ask those teachers to watch the videos,
and they were asked to take notes on their impressions about the videos. In addition
they went on to the third step of the study which was the reading of a text - “English
as a Lingua Franca” and, finally, they were invited to answer a final questionnaire
(Appendix B) where they had to answer questions about their views. When asking
the teachers to read the text my intentions included identifying possible reactions
they´d have in terms of knowledge and opinions about the topic.
In order to elicit the teacher´s views on ELFfive videos from the world wide
web three interviews and two film excerpts were exhibited to the participants. In
these videos English is used by both native and non-native speakers. The main
reason for choosing those videos was to expose the participants to different varieties
of English and check their reactions to them and also on the nets´ comments. While

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watching them, participants were invited to take notes of their impressions and also
read some comments posted by netizens –- about the videos and aspects they
considered relevant such as: lexicon,, grammar, pronunciation, sentence structures,
100
accommodations, negotiations in meaning (synonym, antonym, meta-language),
problems of comprehension, objectives and, finally, proficiency. This selection is also
justified by the fact that any teacher of English could easily get those videos from the
Internet and use them as a resource for their daily classroom practice. The corpus
could also give support to teachers for teaching their students about the hybrid
features of the English language, possible approaches to learn it, the “power”
obtained by those who speak it in a “global, multicultural and globalized society”
After the participants had taken their notes about the videos, they were also
asked to read a text which is part of the corpus of the investigation entitled “English
as a Lingua Franca” and finally they were also asked to answer again a second
questionnaire when they could expose their thoughts, reading impressions, opinions
about the videos and make, suggestions for classroom practice. The aim here was to
access how the teachers could .express their views and/or their understandings and
procedures into ELF teaching – learning conceptions and activities.

The videos teachers watched

Video 1: The first video proposed is about an interview made by Brazilian TV


presenter Sabrina Sato from “Pânico”, a Brazilian TV program when she tries to
interview the pop singer Justín Bieber; although there is an official translator to help
Sabrina, she herself wants to talk to Justín, but the interviewed looks a little confused
with Sabrina´s speech. Each video there are some nets´s comments that can
illustrate their reactions into each English performance:
comments
“sabrina sato pelo amor de deus se vc ñ sabe falar ingles ñ fala!!!”
Video 2: The second video proposed to the participants comes from 1984 when the
Canadian teenager Celine Dion which had French as her mother tongue started to
study English because she decided to record her songs in English, too.
comments

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“The year after this,? she'd record in English for the first time - the song "Listen to the Magic Man."
She'd obviously worked hard at her English, because she sounded just as natural singing in English in
1985 as she does today.”

101
Video 3: This video shows again the famous singer Celine Dion being interviewed in
2011 by a Canadian Television Channel in which she speaks only in English.
Video 4: Video four is about a piece of an Indian movie called “Phans, Gaya Re
Obama” from 2010, more specifically a scene that takes place in an English course
for Indians. Confusions and/or misunderstandings occur in communication mostly
caused by accents´ differences among the learners and the coach / teacher.

Comments
“-This is not how Indians in generals speak. This show is making a mockery about certain group? of
people who are ignorant about what they are saying. This does not be necessarily the case of Indians,
it can be anybody.”
“- It's annoying when they speak Indian then squeeze some english in there.”

Video 5: In this video is possible to watch a piece of the movie “Johnny Mad Dog”
directed by Jean Stephane Sauvaire. In this movie made in 2008 it´s possible to
observe the English spoken in the West Africa.
Comments
“-Very hard to understand? without the subtitles lol (laughing aloud).”
“-it's like when they say hafta a word, they just stop and decide not to say the rest? #.#.”

Participants

For this study three English teachers from public schools were invited as
participants. All the teachers work in schools in the city of Londrina teaching to
elementary and high school students. To identify those teachers as participants in the
referred investigation they were asked to use their real names or, if they wanted to,
they could adopt a pseudonym in order to protect their real identities. So, all of them
chose to use their own names, but partially and, personally, I believe that such
decision could be revealing a kind of confidence in terms of participation and
contribution to the research as well as it could establish a comfortable and good
relationship between both researcher and participants, probably crediting more
validity to their answers.

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Anais

Participants´ background
The participants´ background information can be seen in the table below:
QUESTIONS PARTICIPANT PARTICIPANT PARTICIPANT
1 2 3 102
1. What´s your name? Vander Tania Cristiane
(If you prefer you can
use a pseudonym)
2. How long have you Twenty-three years. Approximately 20 years 16 years.
been teaching English?
3. Where did you State University of State University of State University of
graduated? Londrina Londrina Londrina
4. Have you ever No. No. Yes.
worked in private
educational sector?
(high schools, language
institutes)
5. How many hours do 40 hours 40 hours 40 hours
you work a week?
6. How many students Approximatey y 600 450 - 500 students Approximately 500
(approximately) do you students. approximately students.
teach / attend?
7. Do you have any Yes. English Teaching Yes, a Educational Yes, a Specialization
post-graduate / Methodology. Supervising Course Course in Teaching
Specialization Course? Methodology and
In which field? Didactic.
8. Besides your I have participated in In my opinion PDE Only short-terms
academic education, in continuum formation (Programa de courses promoted by
which courses / events courses. Recently I Desenvolvimento the Government (State
have you participated took part in a long term Educacional) was the Educational Secretary)
during your course called PDE most significant to my such as teacher
professional career? (Programa de practicing, although I training courses,
Which ones do you Desenvolvimento have participated in encounters,
consider more Educacional) been this short-term courses or workshops.
relevant? the most relevant. events (encounters,
workshops…)
Table 1: Participants´ background

According to this table, the average of professional time career of the


participants is between 19-20 years. All of them have a specific education in English
language teaching at the same university. They work with an average of 450-500
students forty hours weekly. They all have never worked in private educational
sector. In terms of their development, all of them have Specialization Courses and
have participated in courses and/or events of English language teaching-learning.
Two of them have taken part in a long term course called (PDE – Programa de
Desenvolvimento Educational) promoted by the State Government and considered
the most relevant by them.
Before watching the videos, their opinions about ELF were as follows:

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Anais

QUESTIONS PARTICIPAN 1 PARTICIPANT 2 PARTICIPANT 3


Vander Tania Cristiane
1. Besides your Não. Most for intertainment I use to listen to music,
working context do you (listen to music, watch movies, talk to
use English for any movies…, magazines) other people on the
other activities / tasks? net, in facebook. 103
2. While you were Yes. The American o r The American standard I had in mind the
studying English did British English because looked more beautiful American standard
you have any model or these were the for me that time, but I because I it was
standard in mind? recognized standards was also attracted for beautiful, attractive and
Which one? Why? and they were taught the British one because cause-this it was
through a structural in mind it seemed more important to have that
and communicative correct in terms of standard of English,
method when grammar, pronounce. that beautiful
pronounce was/are pronounce.
repeated for many
times and grammar
aspects was also
emphasized.
3. And when you are I adopt the available In the beginning of my I believe it´s not
teaching? Do you adopt material at school or in career I think I was because eventually I
any standard English? the Internet which are more “loyal” to the use to mix American
Which one? Why? still Americano or American standard and British Standards
British. I have some probably because in my classes., I think
difficulties in finding teacher use to be more other varieties can be
other purposes which enthusiastic in the more difficult to use in
could be interesting beginning of their classes (e.g. the
and appropriate. profession. However, Australian one).
as time goes by I
believe it changes in
some aspects
(pronounce, practicing,
materials) in order to
adequate to the
contexts.
4. What is “speaking Speaking English well When people can Beyond pronounce it is
English well” to you? in my opinion is to communicate clearly when someone can
communicate in (vocabulary, intonation, “speak” to other
English language.. basic grammar and people.
ideas) I think they
speak well if they do
this.
5. And what is Speaking English badly When people cannot I think it happens when
“speaking English is when someone does organize their ideas, someone can´t use
badly” to you? not use English in a sentences, vocabulary well Grammar,
way He/she can enough, so they speak vocabulary, the person
communicate. badly. cannot express.
6. In your opinion for It belongs to all I consider that English It belongs to everyone
whom does English speakers of the today does not belongs which want to learn it.
language belongs to? language and to all “to someone in
who use it to particular”, it belongs to
communicate. everybody who wants
to learn, to improve, to
speak and
communicate.
7. Is it possible to learn Yes, because I believe Yes, it depends on the Yes, IF the person
and use effectively this learning does not person´s interests, it really has interests and

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English without going depend on a perfect possible watching motivation (e.g. seen
abroad? How? pronounce. movies, readings, English as an
studying. intelligent language
spoken in the whole
world, a language tgat
helps in Jobs, 104
readings,
technology…)
8. In a communicative I believe that idiomatic Vocabulary, knowledge If the person can´t be
situation in English expressions and about different themes, able to express, if
what problems can vocabulary can be a lack of communicative he/she doesn´t
occur and block problem. strategies (synonyms, understand the
interactions? antonyms, meta- speaker, if he/she does
language) not construct correct
sentences, correct
rules and verb tenses,
differences in
pronounce, linguistic
varieties.
9. In communicative I think that the efforts to Both needs to search The native must be
situations between adjustments must for strategies to worried about this
natives and non-natives come from the native. communicate because the other one
who should be worried When we communicate effectively, since is not a native,
to do the necessary in another idiom we English, in my opinion although is much more
adjustments to use facial muscles does not belongs to a frequent the native
communicate which generally are not particular speaker. does not do that.
effectively? Why? used in our idiom, it
naturally makes difficult
to pronounce certain
sounds. I think that
having an accent is
natural and some
errors of sentence
constructions can
occur, but not been an
obstacle for
communication.
10. In your working No. As I told before I No because most of Sincerely no because
practice do you use don´t have this materials are based on these are the
materials which bring material, probably there those standards. standards more
any other “models” or must have purposes to featured in linguistic
varieties of English work with these terms ,that is, they still
which are not based on varieties, but I don´t have more prestige
North-American or have any and my time t among others.
British Standards? prepare this kind of
Why? material is not
sufficient, but If I had
an appropriate material
I would use it because I
consider an important
aspect.
11. Nowadays is it I think no because Although most of I think no because the
possible to say that nowadays it has materials and learning- language is totally
someone has “rights” became a globalized teaching practices are globalised nowadays.
over the English language. based on American
language? Why? and British standards, I
believe athat everyone

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who uses English can


have the “rights” over
the language.
12. Have you ever read Yes. I read and heard a Yes, it could be Yes I have heard,
/ heard something little about English as a considered an however, I don´t know
about “English as a lingua franca and I “accessible language” how to define it more 105
Lingua Franca?” Can understood that it is a among people from clear, I think it´s related
you tell anything about language that makes different parts of the to globalization,
that? possible a contact world. globalised language.
among peoples.
Because of that there´s
no need to be worried
about pronounce and
grammar errors which
can happen during a
conversation /
communication.
Table 2: Participants´ views on English and ELF

They all have a conception of proficiency based on structural items


(vocabulary, grammar, sentences and ideas organization…). These are the aspects
that promote communication effectively. All teachers believe that everybody is “the
owner” of the language. All of them have had some information about lingua franca.
After watching the videos and reading the text, the participants´ opinions were:

QUESTIONS PARTICIPANT 1 PARTICIPANT 2 PARTICIPANT 3


Vander Tania Cristiane

1. By the data you I believe it is possible, I believe it´s interesting I think I should teach
informed in the first but teachers of English in order to show to the English in many ways
questionnaire still need to study more students that English and I as a teacher of
(education, job time about this. does not belongs to English should teach
and work context, natives only and it can the students the
readings, courses, ...) also support the English possibilities.
do you believe that it English uses in all
can be possible to work contexts in the world.
English as a Lingua
Franca in your daily
classes? Why?
2. While teaching Inevitably yes, when Language comparisons Yes, I usually like to
English to your we are teaching, for (ex. Portuguese x talk about the nation
students do you use to example, food habits, English), local / global culture, the place, the
discuss other aspects commemorative dates, issues (Ecology, Food people and the
beyond structural- celebrations we talk and Health, medias different dialects of
systemic aspects of the about people and technology, each nation. To do it I
language (lexical, differences. idiomatic expressions, usually like to use
grammar, text cultures) English videos about
structures, the people, magazine,
phonology...?) Which discuss about the
ones? How do you do English people and the

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that? culture.
3. When conducting It´s difficult to do at the : I generally use to As far I am concerned
your work planning / beginning of the year, follow the official each teacher of English
syllabus do you ask / but during the work it prescriptions that, I should investigate
investigate your happens eventually; think, are linked to about the students´
students´ interests and most of the time the students´ needs today; interests about a 106
objectives to learn the teachers themselves but in the actual foreign language in the
target-language? If you try to identify students´ practice I try respond moment that you know
do, when and how do needs or follow the my students´ interest / the students and a
you do that? prescriptions. curiosities about some teacher should show
topics they ask about. them how is spoken
the language in al the
world. In this case the
English is a universal
language that it offers
many opportunities for
the people who know
the language. You
should do it through the
lecture activities,
videos, questions,
discuss and others.
4. In your opinion is it I think yes, many global Yes, I assume that be I think that it is very
important to discuss issues are emerging in well-informed is, in fact, important for the
with your students all subject classes a great need for any knowledge of students
aspects involving today student in the and the experience that
identities, culture, local contemporary world many students can
and global issues in and English language bring for the class
English classes? Why? is a great means of because many times I
doing that. have students that had
an experience abroad
in the USA or in
England
5. In your daily I personally like to Yes, some exercises In many times I do my
practice do you feel prepare or (re) prepare and activities already exercises to create an
comfortable to prepare exercises and done in textbooks need informal class or use
your own English activities, I use didactic to be reformulated to the didactic exercises.
exercises and activities materials as a source promote a wider
or do you always of use and innovations. participation from the
search for didactic students or even to
models already done? facilitate their learning;
Justify your answer another reason for
feeling comfortable is
the fact that teaching
English for many years
gives the teacher more
experience in preparing
activities that can help
each context of
education
6. In terms of speaking Yes, I don´t have any Yes, the confidence I think the teacher
do you feel comfortable problem with that. comes with experience, should leave the
using English with your students free to ask
students? Explain your about the language
answer. and I like to speak with
them because in the
class is a moment that

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they need to try or


listen to the language,
so I try to do it in a
comfortable way.
7. Do you believe your I believe it is the same, Yes, the proficiency is I think there are many
English is “the same” of course when the same slangs in a 107
inside and outside the travelling, for example, independently of the conversation with a
classroom? (ex: I try to use it in a context. native speaker
travelling, internet, different way of depends on the
entertainment,)? teaching it. situation and the
country that this person
lives, of course. In
many times you should
be formal or informal
depends on the
situation and in the
class I try to do my
best for the students.
8. In relation to the I think it ´s possible, it Yes, it depends on Yes, because in these
videos you have depends on what the what the teacher wants videos there are many
watched to this teacher wants to focus. to teach / discuss with people who live in
investigation do you the students, different countries and
think it’s possible to use they have many
them as didactic dialects. Each of them
resources in your speak in different way
classes in the faster or more slowly. It
perspective of English is a way to show the
as a Lingua Franca? students how is the
Why? English language
spoken all the world.
9. Which approach / Pronounce is a The teacher can focus I can introduce a
exercises / activities / possible aspect and pronounce, sentence discuss with the
reflections / discussions also the necessity of structure, cultural students about the
/ would you use with training the language. aspects, greetings, linguistic variation, the
those videos in your body language….) different ways to speak
classes? English and how to
speak English is very
important through the
questions, listening
activities, games and
others.
10. As an “English Obviously yes, English Obviously Yes! In this In my point of view, I
teacher educator” do is spoken or used “movement” of English think very important to
you believe it is everywhere today, around the world many teach for the students
important to the teacher independently of elements are carried the many ways to
be aware about this pronounce it is used ofr and brought from one speak the culture, the
“time” or “status” of different objectives. part to another, from nation and how the
English as a Lingua person to person, from English is known in all
Franca in the world? culture to culture and the world and now like
Justify as languages are not a lingua franca.
static, but dynamic
means of
communication that
transmit and also
receives modifications.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

11. Think about “I heard the videos but I The comments are Considering the videos
comments the nets had some troubles with interesting specially and the comments I
made about the videos the second one, I think thinking English as a think that the
you have watched. Do it was stopped for lingua franca, but in the pronounce of West
you agree with those some reason, the case of Sabrina Sato Africa is really difficult
comments? Why? Canadian English was even been a lingua as someone 108
nice, however I could franca English needs comments, I agree that
not hear it very well proficiency and I think Sabrina should study
because the sound was she doesn´t get it yet more, too. She´s not
a little low in my PC. as Celine Dion did it to really proficient.
Sabrina Sato´s English be fluent and sing.
is simple, she really The Indian accent is
doesn´t know to speak very different on the
or she was kidding with video; the comment
pronounce, since the made make us think
translator´s pronounce about discrimination.
is the one I really can
understand, it is
spoken slowly, Justin
speaks too fast and a
little complicated. The
African English is
difficult to understand,
the pronounce is very
different from what we
use to; if there wasn´t a
legend I think I will
understand nothing.
The Indian English I
could not understand
everything, but I
understood a big part
of it. I think we use to
listen to the same
pronounces and this
makes difficult the
understanding of
others.”

12. English understood As I told before I agree Tania: I agree with the I completely agree with
and studied as with this status of authors above because this author, there´s no
international language English today and its as it was told before choice of denying
(EIL) or lingua franca, implications to English language in the English power
for the best or for the teaching-learning; it is contemporary world nowadays, so we must
worst, by choice or by necessary for the does not belongs to a study it, and search for
force, travelled the teacher to rethink native who could different ways of
whole world and has his/her practices require his/her “rights” teaching.
served most diverse considering the over the language;
purposes.” contemporary moment since English has
(SHARIFIAN, 2009, P. of the language and all expanded to all part of
26
1) (my translation) the people´s needs for the globe and it has
13. “Instead of using the language. been used for a
being in the past, it is diversity of purposes
much more productive by different people with

26
“O inglês compreendido e estudado como língua internacional (ILI) ou língua franca (ILF), para o bem ou para o mal, por
escolha ou por força, viajou mundo afora e tem servido os mais diversos propósitos.” (SHARIFIAN, 2009, P. 1)

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

if we go straight and different


search to see ways characteristics, it
through which we can cannot be accepted
make this language that just one form or
interculturally more standard of language,
democratic, under the specially speaking, as 109
ownership of all a model or a correct
speakers who use it to model; language also
communicate, no brings to discussion
matter how who and other aspects such as
where they are. discourses, power,
27
JENKINS (2000), democracy, equality
(my translation) among people and a
diversity of experience
and learning through
this target-languages.
Table 3 : participants´ views on the teaching of English in the context of ELF

The three teachers agree that in the contemporary world it´s obviously
necessary to adopt a “lingua franca conception” for the classroom practice, revealing
that working language means working culture, diversity, lexical-grammar aspects as
well as approaching a practice that conduct discussions to local and global issues
through the English language as tool of information and communication. They believe
that variation in pronunciation, identities and values should be considered when
teaching the target-language in a globalised society; but on the other hand they still
seem to be “a little static” in terms of standard models of English, I mean American
and British English standards as models for a “good teaching-learning practice”..
Even though they mention that they all use to prepare their own activities and
exercises and are comfortable in speaking their English with their students, they do
not reveal having already used other varieties of English besides the American or
British ones. They also agree that investigating students´ interests is an important
part of their course programme, and they all try to make this during the course as
they notice students´ needs. When asked about their own proficiency the teachers
tell they have the same proficiency in different contexts, but without speaking as they
were “teaching in a classroom”, trying to avoid many pauses, too simple vocabulary
and sentence structures when they are in travels, entertainment situations, what can
be associated with the necessary accommodations English as a lingua franca

27
“[...] ao invés de ficarmos presos no passado, é muito mais produtivo olharmos para frente e buscar enxergar maneiras
pelas quais possamos tornar essa língua mais democrática interculturalmente, sob a custódia de todos os falantes que a
usem para se comunicar, não importando quem são e onde estão essas pessoas. JENKINS (2000),

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

requires. The videos they were exposed to in this study can be used, according to
them, in their classes as a resource for teaching varieties, emphasizing diverse
English and motivating students learning and using the language.
110

Concluding remarks

In this paper I have investigated three teachers of English from public schools
about their knowledge on EFL and their opinions about how it could be possible a
teaching-learning approach to this on their actual classroom practice.
The results of this small scale investigation with teachers of English in public
schools who have been involved in their own development in the last few years,
reveal that the education of English language teachers need to include conceptions
and views of lingua franca and present practical suggestions for in an actual
classroom practice, As MANSFIELD (2012) says:

[...] This does not only require the teachers help their students develop the
linguistic skills needed to understand various kinds of accents and in turn be
understood by others, but it also paves the way for an enhanced awareness
of the existence of non-native speakers all over the world who use English
as a means of communication. With this in mind, it is essential that teachers
respond appropriately (and pragmatically) to equipping their students with
the skills needed in the face of cultural and linguistic differences emerging
between interactants in an international context.

In one hand and specifically in the case of ELF it´s inevitable to considerer
that American and British standards are still strongly influencing the teaching-learning
process across the world by innumerous reasons including economic and political
power in people´s education and consequently on people´s lives. But on the other
hand we have more and more people communicating in English throughout the world
and reinforcing in some ways their value as individuals, citizens and as a country
who needs to use a common language for their trademarks and iinterconnections.
They all have their own characteristics and identities which must be respected even
in terms of their use of the target-language.
1. In the classroom context teachers must consider other varieties of English in
order they can carry out teaching-learning classes and/projects to put into evidence

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

how people are dependent on each other, how languages and English specifically
are dependent on the culture and values of those who speak it.
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111
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Ensino-aprendizagem e formação de professores. Coleção: Novas Perspectivas em
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(http://www.youtube.com/watch?v=Q7Ib4xxWREo).
(http://www.youtube.com/watch?v=vQK0JaVmYU0).
(http://www.youtube.com/watch?v=Zb1UZPrkmnU).
(http://www.youtube.com/watch?v=PZiOfqARHNc).

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Reflexões acerca de discursos nos documentos


oficiais que norteiam o Ensino de Língua 112

Estrangeira na EJA
Reflections about the discourses in the oficial documents that orientate the
Foreing Language teaching in EJA

Cleonice de Fátima Martins (UEPG – PG)

RESUMO: O presente texto tem como objetivo principal refletir acerca de discursos de documentos
oficiais que orientam sobre o ensino de língua estrangeira na Educação de Jovens e Adultos (EJA) e
a relevância dada pelos documentos a essa disciplina para tal público. Nesta reflexão são
apresentados alguns resultados da análise da pesquisa, que tomou como exemplares de discursos
as Diretrizes Curriculares de Língua Estrangeira, (DCEs, 2008) do Paraná, e Orientações Curriculares
Nacionais (OCN’s, 2006). Para tanto a metodologia adotada se deu com estudos bibliográficos,
análise de discursos dos documentos citados (DCEs, 2008; (OCN’s, 2006), sob a ótica pecheutiana,
tendo, no entanto, embasamento de cunho qualitativo. A análise busca refletir alguns aspectos que os
referidos documentos abordam e exploram, alguns efeitos de sentido que determinados orientações
ali encontrados podem provocar no contexto da EJA, sobretudo na (re)construção da identidades dos
educandos envolvidos.

PALAVRAS-CHAVE: Educação de Jovens e Adultos. Análise de Discurso. Diretrizes Curriculares da


EJA.

ABSTRACT: The present text has as main objective reflecting about discourse of official documents
that orientate on the teaching of foreign language in the Education of Young persons and Adults (EJA)
and the relevance given by the documents to this discipline for such public. In this reflection are
discussed some results of the research analysis, which took as an examples of discourse in the
Curricular Guidelines of Foreign Language, (DCEs, 2008) of Paraná, and National Curricular
Guidelines (OCN's, 2006). Therefore the adopted methodology was done with bibliographical studies,
discourse analysis of the referenced documents (DCEs, 2008; (OCN's, 2006), according to the
pecheutiana, having, however, it is based on qualitative research methods. The analysis search to
reflect some aspects that the abovementioned documents approach and explore, some effects of
sense that certain directions there found can cause in the context of the EJA, especially in the
(criminal) construction of the identities of the involved learners.

KEYWORDS: Education of Young persons and Adults. Discourse Analysis. National Curricular
Guidelines.

Introdução
“O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou
os sistemas de dominação, mas aquilo por que e pelo que se
luta, o poder pelo qual nos queremos apoderar”
(Michael Foucault, 2011)

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Tendo em vista os discursos que circulam, nas esferas escolares e em


outros ambientes, em relação à língua estrangeira é que ela ocupa um status para a
formação humana, além da importância na vida profissional, no entanto, é uma
113
disciplina obrigatória na grade curricular da Educação Básica. Segundo os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s, 2000), ela tem o dever de auxiliar na
formação de alunos como sujeitos críticos e transformadores, além de despertar o
interesse para a pesquisa e reflexão por meio do estudo.
Essa concepção conduz a uma nova percepção da natureza da linguagem e
desenvolve uma maior consciência do funcionamento da própria língua. Desta
maneira, se entende que a língua estrangeira, dentro da EJA contribui para o
processo educacional e para o desenvolvimento de habilidades linguísticas, uma vez
que a produção e a reconstrução do conhecimento realizam-se em uma troca entre
esses sujeitos, tendo como referência a realidade na qual ambos estão inseridos.
Segundo as Diretrizes Curriculares Estaduais do Estado do Paraná (DCE’s,
2008) de Língua Estrangeira, o processo de ensino e aprendizagem deve possibilitar
ao aluno uma visão de mundo mais ampla, para que avalie os paradigmas já
existentes e crie novas maneiras de construir sentidos do e no mundo.
Consideram-se, assim, as relações que podem ser estabelecidas entre a
língua estrangeira e a inclusão social, o desenvolvimento da consciência sobre o
papel das Línguas na sociedade, o reconhecimento da diversidade cultural e o
processo de construção das identidades transformadoras.
Essa riqueza, bem como a habilidade linguística, se encaixa nas habilidades
apresentadas nos documentos oficiais para a Educação Básica, as Orientações
Curriculares Nacionais (OCN’s, 2006), salientando os discursos que preconizam que
a Língua é um importante instrumento para o acesso a informações, a outras
culturas, bem como a outros grupos sociais. Pois segundo Orlandi, (2005, p. 11)
para Pêcheux, “a linguagem é um sistema capaz de ambiguidade e define a
discursividade como a inserção de efeitos matérias da língua na história, incluindo a
analise do imaginário na relação dos sujeitos com a linguagem”.
Desse modo, entende-se que a relação com a língua estrangeira, pode e
deve permitir ao aluno tomar conhecimento dessas concepções à medida que o
coloca frente ao diferente, ao desconhecido. Esse desconhecido abrange o povo, a

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

língua, a cultura e a sociedade como um todo. Logo a aprendizagem de uma língua


torna-se potencializadora desse descobrimento.
Neste viés, ao buscar entender os discursos que os referidos documentos
114
oficiais (DCEs, 2008 e OCNs, 2006) preconizam nas formas de educar e de ver o
indivíduo, seriam elas resultados de uma construção social de sentidos conforme
(BAUMAN, 2001). Porém, essa visão dos documentos, seria pensada a todo público
da educação básica, ou alunos da modalidade EJA, estariam à margem deste
contexto? O que os documentos oficiais citados trazem em relação ao ensino de
língua estrangeira na EJA? Esses foram alguns dos questionamentos que instigaram
a desenvolver este trabalho recorrendo a Analise de Discurso de orientação
pecheutiana.
Assim, o presente texto teve por objetivo geral refletir acerca de discursos de
documentos oficiais que orientam sobre o ensino de língua estrangeira na EJA e a
relevância dada pelos documentos a essa disciplina para tal público, recorrendo a
Analise de Discurso (AD) pecheutiana. Como objetivos específicos: a) analisar se
os documentos oficiais apontam relevância de ensino de língua estrangeira para
alunos da EJA; b) buscar se há algum direcionamento diferenciado ao ensino de
língua estrangeira para os educandos da EJA; c) entender se o contexto da EJA é
pensado nos documentos que orientam ao ensino e aprendizagem de uma língua
estrangeira na educação básica, com auxilio da AD pecheutiana.

Educação de Jovens e Adultos e o ensino de língua estrangeira: discursos que


norteiam essa prática

Ao buscar refletir acerca dos discursos de documentos oficiais (DCEs, 2008


e OCNs, 2006) que norteiam o ensino e aprendizagem de uma língua estrangeira na
modalidade de ensino EJA, como já citado anteriormente, faz-se necessário situar a
linha de análise de discurso que se recorreu para tanto: a Análise do Discurso (AD)
de linha francesa, a pecheutiana. Esta conforme afirma Orlandi (2005), consiste
numa corrente desenvolvida majoritariamente na França e que trata a língua em seu
processo histórico, atende a uma perspectiva não-imanentista e não-formal da
linguagem e privilegia as condições de produção e recepção textual, bem como os
efeitos de sentido. Segundo Orlandi (2002),

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Anais

A AD vai articular o lingüístico ao sócio-histórico e ao ideológico, colocando


a linguagem na relação com os modos de produção social. Não há discurso
sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. Há, entre os diferentes modos
de produção social, um modo de produção social especifico que é o 115
simbólico. Há, pois, práticas simbólicas significando (produzindo) o real. A
materialidade do simbólico assim concebido é o discurso. (In MELO, 2009,
p.14)

Esta linha de analise veio a denominar-se de Análise de Discurso (AD) em


1969, com a publicação de Análise Automática do Discurso de Michel Pêcheux na
França. Logo pode-se chamar de AD pecheutiana. Que reitera Orlandi, (2005 p.10)
é a “Análise de Discurso (AD) que teoriza como a linguagem é materializada na
ideologia e como está se manifesta na linguagem. Concebe o discurso como um
lugar particular em que esta relação ocorre e, pela análise do funcionamento
discursivo, [...]”. E no viés da citada linha, se deu a presente reflexão.
Assim, para melhor compreensão do contexto de analise não podemos
deixar de refletir sobre o perfil dos alunos, ou seja, os sujeitos que frequentam a
modalidade de ensino EJA.
São eles Jovens e Adultos que fazem parte de uma parcela significativa da
população que foi precocemente excluída da modalidade de ensino regular. Essas
pessoas não conseguiram permanecer na escola por causa de diversos fatores,
entre eles: dificuldades de aprendizagem, repetência, evasão e ingresso no mercado
de trabalho, etc. e que puderam encontrar na EJA uma oportunidade para retomar
seus estudos.
Segundo as Diretrizes Curriculares da Educação de Jovens e Adultos do
Paraná dispõe:

Em síntese, o atendimento escolar a jovens, adultos e idosos não se refere


somente a uma característica etária, mas à diversidade sociocultural de seu
público, composto por populações do campo, em privação de liberdade,
com necessidades educativas especiais, indígenas, remanescentes de
quilombos, entre outros, que demandam uma educação que considere o
tempo, os espaços e a sua cultura. (PARANÁ, 2006, p.31)

O importante a se considerar, portanto, é que os alunos da EJA são


diferentes dos alunos presentes no ensino regular. São jovens e adultos, muitos
deles trabalhadores, pais de família, com larga experiência profissional e com um

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olhar diferenciado sobre as coisas, sobre a existência e sobre o mundo. Tendo em


vista que muitos desses alunos, quando passam pela EJA trazem consigo marcas
do fracasso e dos bloqueios de aprendizagem, e o curto espaço de tempo que os
116
alunos passam na escola, vem acompanhado da pressa em obter o certificado para
buscar uma melhor colocação no mercado de trabalho isso maioria das vezes.
Considerando, então, esse panorama observa-se que a EJA se torna um
desafio para os alunos como também para os professores envolvidos no processo
de ensino aprendizagem. Alunos que tem em mente outras perspectivas que não a
educação em si e que geralmente são frutos do fracasso escolar anteriormente
sofrido, terão dificuldades para a volta e permanência na sala de aula.
Por isso, uma visão de cunho estruturalista, segundo as Diretrizes
Curriculares Estaduais do Estado do Paraná de Língua Estrangeira Moderna
(DCE’s, 2008, p. 54), com um dos discursos em que acredita-se que “a língua é
entendida como uma estrutura que faz intermediação entre o indivíduo e o mundo,
ou seja, ela seria um meio de ligação entre os dois.”
Nesse contexto a língua estrangeira teria então o papel de abrir novos
horizontes para os alunos, possibilitando um posicionamento diferenciado frente ao
mundo, ao outro, fazendo com que possam se despir de preconceitos,
desenvolverem uma consciência crítica a respeito do mundo em que vivem e, desse
modo, transformar sua realidade.
Também, sobre o ensino de língua estrangeira, a Resolução CNE/CEB
01/2000 ao tratar dos conteúdos relativos à EJA especifica que esses conteúdos
assinalados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais devem observar as
especificidades da EJA e que o ensino de língua estrangeira é obrigatório.
Outra questão importante é que, como a língua estrangeira é o espaço para
ampliar o contato com outras formas de conhecer, posto que deva possibilitar o
confronto entre os conhecimentos escolares e os saberes do cotidiano com outras
formas de construção da realidade, os alunos da EJA conseguirão vê-la como uma
forma de reafirmação de sua identidade, entendimento de sua realidade e da
realidade do mundo (outros).
Observando os aspectos que norteiam a educação no Brasil e considerando
que a EJA é uma modalidade da educação básica, na qual se incluem as etapas do

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ensino fundamental e médio, fica claro que esta se deve pautar, no que se refere
aos componentes curriculares, pelos documentos oficiais, aqui entendidos as
Orientações Curriculares Nacionais (OCN’s) e as Diretrizes Curriculares Estaduais
117
(DCE’s). E ao lançar um olhar ao que trazem os discursos nos documentos citados
cabe a visão de Pêcheux quanto cita que:

É, pois, porque já existe um discurso institucionalmente garantido sobre o


objeto que o analista pode racionalizar o sistema de traços semânticos que
caracterizam este objeto: o sistema de análise terá, portanto, a idade teórica
(o nível de desenvolvimento) da instituição que é sua norma, e permitirá
definir a posição de um conteúdo particular em relação a norma.
(PÊCHEUX, 1967, p.69)

Dessa forma, vale também para a EJA as disposições relativas à educação


básica, compreendidos aqui o ensino fundamental e médio, que constam desses
documentos. O que resta saber é se esses documentos foram elaborados levando-
se em consideração as especificidades dessa modalidade de ensino que, como já
abordado, possui suas particularidades bem determinadas.
Esta é uma preocupação, porque não se pode querer que documentos
elaborados visando apenas o ensino regular se encaixem perfeitamente ao perfil da
EJA. Trabalhar com o sujeito jovem e adulto requer observar as especificidades
desses alunos, inclusive, no que condiz à faixa etária. Portanto, aqui não se faz
possível uma igualdade pura, pois, esse público, precisa de determinações que
sejam contextualizadas com suas características e com o seu mundo.
Tendo em vista ainda que a escola é espaço também de (re)construção de
identidades e de grande importância em formar alunos autônomo, como nos fala
Silva (2008, apud ABRAHÃO, 2008, p. 293) que “A autonomia do aprendiz é
inegavelmente desejável em todas as áreas da educação, uma vez que a escola
toma parte do tempo e do interesse do aluno.” Neste sentido, alerta que

O simples fato de que as pessoas não podem passar a vida na escola e


precisam aprender continuamente, até mesmo para acompanhar as
mudanças do mundo em que vivem, prova que a autonomia na
aprendizagem é uma necessidade imperiosa. (SILVA, apud ABRAHÃO,
2008, p. 294).

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Assim, entende-se a preocupação em formar alunos que se tornem cidadãos


críticos e aprendizes autônomos, e também críticos em relação aos conhecimentos
adquiridos, deve ser estendida, inclusive, à EJA tendo em vista que esses alunos,
118
como já abordado em tópicos anteriores, precisam resgatar sua posição na
sociedade ou, ainda, afirmar-se enquanto sujeitos possuidores de direitos e deveres.
Assim, conquistando criticidade e autonomia, serão capazes de seguir adquirindo
conhecimento continuamente mesmo depois de passarem pela escola.
Desse modo, com base neste panorama, e tendo em vista, segundo
Orlandi,(2005), o que dispõe Pêcheux, ao analisar um discurso, que

as palavras não tem um sentido a sua literalidade, o sentido é sempre uma


palavra por outra, ele existe nas relações de metáfora (transferência)
acontecendo nas formações discursivas que são seu lugar histórico
provisório. De tal maneira que, em consequência, toda descrição está
exposta ao equivoco da língua: todo enunciado é intrinsicamente suscetível
de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar para derivar para um
outro. (In ORLANDI, 2005, p.11)

Assim, considerando tais pressupostos, a presente reflexão vem a ser uma


das possíveis interpretações de discurso buscando verificar nos documentos oficiais
(OCN’s e DCE’s), inclusive nos tópicos relativos ao ensino de língua estrangeira,
que discursos trazem, se trazem possíveis propostas e determinações para a
modalidade de ensino EJA.

Analise e discussões

Os discursos que se houve é que a educação básica é para todos de igual


forma, com essa premissa se voltou os olhos para os discursos que remetessem ao
ensino de língua estrangeira na educação básica, assim, alguns trechos foram
retirados dos documentos já citados, destacando cinco deles, (de trecho A a Trecho
F) como se pode notar ao longo deste tópico. Sempre observando se englobam o
contexto da EJA.
Logo, ao analisar as Orientações Curriculares Nacionais (OCN’s, 2006), que
trazem disposições para o ensino médio, especificamente, se buscou encontrar
disposições que englobem o ensino de língua estrangeira para a EJA, considerando

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que, para essa modalidade de educação, não é possível que se pense nos
procedimentos didáticos apenas.
Os conteúdos a serem ensinados, por exemplo, não devem estar
119
desvinculados da realidade do aluno jovem e adulto, mas sim, integrados ao seu
cotidiano, para que, com essa mescla, possa haver um maior entendimento e um
maior resultado, visando se tornarem mais abrangentes e mais atraentes na sua
totalidade.
O que se observou, no entanto, como será destacado na sequência, foi que
as OCN’s (2006) não fazem nenhuma menção em suas disposições para o ensino
de alunos jovens e adultos.
Na abertura do documento, em uma parte denominada “Carta ao Professor”
as OCN’s (2006) salientam a importância da escola no papel da inclusão e
democratização de oportunidades e a sua luta para oferecer uma educação de
qualidade e para a inserção de todos. Nesse contexto, destacam que suas
disposições, tratando especificamente das particularidades do ensino médio, visam
auxiliar a “institucionalização do ensino médio integrado à educação profissional.”
(OCN’s, 2006, p. 5).
Assim, para que esses objetivos se concretizem sua intenção é conforme o
discurso do trecho seguinte

Trecho A

“Preparar o jovem para participar de uma sociedade complexa como a atual, que
requer aprendizagem autônoma e contínua ao longo da vida [...].” (Ibid., p. 6).

Pode-se perceber neste trecho destacado, à referência explícita ao jovem,


quando poderia ter abordado em termos mais gerais, falando do aluno/sujeito, seja
ele adolescente, jovem ou adulto, posto que todos estes compõem o ensino médio.
Na parte destinada aos “Conhecimentos de Línguas Estrangeiras”, que é
nosso foco, no item em que abordam sobre o “Letramento”, as OCN’s (2006)
desenvolvem seu texto falando apenas do letramento das crianças, como se
observa no trecho a seguir

Trecho B

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

“[...] as habilidades de linguagem que as crianças de classes urbanas menos


privilegiadas adquirem e que são diferentes daquelas adquiridas por crianças de
classes mais privilegiadas [...]” (Ibid., p. 101).

120
Aqui, se observa que as Orientações se esquecem de colocar em discussão
o letramento de jovens e adultos que, muitas vezes, passam tardiamente pela
alfabetização e que precisam de acompanhamento e auxílio para a aquisição e o
desenvolvimento desta competência.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, mas tratando agora dos conteúdos e
metodologias escolares observa-se o seguinte apontamento de Oliveira (apud
PAIVA, 2007)

[...] um dos principais problemas que se apresentam ao trabalho na EJA é


que, não importando a idade dos alunos, a organização dos conteúdos a
serem trabalhados e os modos privilegiados de abordagem dos mesmos
seguem as propostas desenvolvidas para as crianças do ensino regular. [...]
(OLIVEIRA, apud PAIVA, 2007, p. 99).

Portanto, pode-se perceber que, na maioria das vezes a faixa etária, os


conhecimentos adquiridos e a vivências sociais e culturais dos alunos aprendizes
são ignoradas e, por isso, se utilizam propostas que são destinadas a crianças e
adolescentes do ensino regular e não aos jovens e adultos.
Entretanto, voltando a observação das OCN’s, constata-se também que elas
possuem ideias avançadas, no que diz respeito às questões de ensino e
aprendizagem. Essas ideias são embasadas nos ideais da pedagogia crítica, na
preocupação com o desenvolvimento das quatro habilidades (ouvir, falar, ler e
escrever, que devem ser trabalhadas ao longo dos três anos do ensino médio), no
interesse de formar alunos conscientes de seu papel enquanto cidadãos e, também,
no desejo de formar alunos autônomos em sua aprendizagem, posto que acreditam
no direito do sujeito de continuar aprendendo por toda a vida.
Assim, apesar de não trazerem disposições destinadas à EJA e de não
tratarem de questões que envolvem a faixa etária dos educandos e de sua
implicação para o ensino aprendizagem, especialmente quanto ao ensino de língua
estrangeira, idealizam que a classe seja centrada no aluno e desejam o seu
desenvolvimento crítico, bem como sua autonomia enquanto aprendiz.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Pensando nisso, destacamos o trecho a seguir que explicitando o que


preconizam as Orientações Curriculares Nacionais (OCN’s, 2006) quando
estabelecem que
121

Trecho C
[...] ensinar e aprender línguas é também ensinar e aprender percepções do mundo e
maneiras de construir sentidos é formar subjetividades, independentemente do grau de
proficiência atingido. (OCN’s, 2006, p. 134).

Neste trecho se pode entender que os documentos sugerem que ensino de


uma língua estrangeira não pode ter um fim em si mesmo. Assim, tomando por base
esses aspectos, podemos perceber que a o discurso língua estrangeira é uma
facilitadora real da formação de indivíduos enquanto cidadãos, ressaltando a sua
relevância de sua aprendizagem. É o discurso que traz as OCN’s (2006) conforme o
trecho a seguir:

Trecho D
As orientações curriculares para Línguas Estrangeiras têm como objetivo:
retomar a reflexão sobre a função social do ensino de Línguas Estrangeiras
no ensino médio e ressaltar a importância dessas; reafirmar a relevância da
noção de cidadania e discutir a prática dessa noção no ensino de Línguas
Estrangeiras; [...] (OCN’s, 2006, p. 87).

Percebe-se por meio deste trecho um discurso da importância do


aprendizado de uma língua estrangeira vai além do que simplesmente capacitar o
aluno a usar, para fins comunicativos, uma determinada língua estrangeira. Esse
aprendizado passa pelo contato com um mundo diferente, onde há culturas
diferentes, pessoas diferentes, devendo reorientar o aluno para o convívio e o
respeito ao mundo e à cultura do outro.
É o que enaltecem as DCE’s (2008), com discurso no mesmo viés:
Trecho E
Propõe-se que a aula de Língua Estrangeira Moderna constitua um espaço
para que o aluno reconheça e compreenda a diversidade lingüística e
cultural, de modo que se envolva discursivamente e perceba possibilidades
de construção de significados em relação ao mundo em que vive. [...]
Busca-se, dessa forma, estabelecer os objetivos de ensino de uma Língua
Estrangeira Moderna e resgatar a função social e educacional desta
disciplina na Educação Básica. (DCE’s, 2008, p. 53).

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Neste trecho encontram-se objetivos que são esperados da disciplina de


língua estrangeira, na Educação Básica em geral. Primeiramente, destacamos o
efeito da busca pela completude, expresso por meio dos vocábulos “compreenda” a
122
diversidade da língua-alvo (sobre estrutura, funciona- mento e manifestações
culturais) e “reconheça” (sobre variedades linguísticas e culturais).
Percebemos que esse desejo de completude, ou seja, conhecer todos os
aspectos relacionados à língua-alvo e ter consciência sobre suas variedades
implicam uma busca constante, pois o que pode significar para um aluno ter domínio
sobre as manifestações culturais, nas quais essa língua-alvo está envolvida. Ainda
se levar em conta a rapidez com que as informações circulam e, consequentemente,
a fluidez dos conceitos e ideias por elas veiculadas, acrescentando a isso, a rapidez
com que novas palavras são criadas e/ou transformadas em virtude de mudanças
sociais, políticas e econômicas.
Entende-se assim, que ensinar e aprender uma língua estrangeira é também
ter a possibilidade de conhecer, construir e/ou modificar os modos de entender o
mundo e as diversidades, sejam elas culturais, sociais, idiomáticas, políticas ou
econômicas.
Nesse sentido também nos falam os discursos das OCN’s (2006),
exemplificado no trecho próximo:

Trecho F
O intuito delas (línguas estrangeiras) é promover a expansão da
compreensão de mundo, pois pretendem ensinar os alunos a entender as
relações entre as disciplinas pedagógicas – em vez de ensinar as matérias
escolares de maneira isolada, ou seja, voltadas para si mesmas – e as
disciplinas escolares, e delas com a sociedade e a vida dos alunos. O
resultado esperado deve reverter para a compreensão da complexidade
social em que vivem os cidadãos (no caso, alunos, professores, pais,
familiares), sendo a questão da diversidade um dos componentes dessa
complexidade. (OCN’s, 2006, p. 94).

Portanto, dentro desse contexto, é possível perceber que o ensino de língua


estrangeira não pode ocorrer de forma isolada, e, para isso, essa disciplina não deve
se fechar em si mesma, pois o objetivo deve ser a construção coletiva do
conhecimento, tendo em vista que, como já sabemos, é na interação que
aprendemos e evoluímos.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A partir dos discursos expostos entende-se então, que a aprendizagem da


língua estrangeira, pode e deve significar para os alunos da EJA a abertura para
uma visão de mundo mais abrangente, uma possibilidade de continuação dos
123
estudos escolares e uma facilitação para novas oportunidades de emprego além das
demais questões já citadas.
Percebe-se que ambos documentos trazem o discursos que se
complementam em relação a importância do ensino e aprendizagem de língua
estrangeira na educação básica, porém não fazem referência a modalidade de
ensino jovens e adultos.

Metodologia

Para atender ao proposto do presente texto, realizou estudos bibliográficos


análise dos documentos oficiais a saber: Diretrizes Curriculares Estaduais de Língua
Estrangeira do paraná (DCEs, 2008) e Orientações Curriculares Nacionais (OCN’s,
2006), pelo viés dos discursos pecheutiana. Comparando os discursos destes
documentos. Para tanto teve um embasamento de cunho qualitativo. Segundo
Bortoni-Ricardo (2008), esse tipo de pesquisa vem sendo usada há muito tempo na
área da educação.
A partir de leituras de ambos os documentos, foram analisados trechos,
destacando cinco deles, para exemplo de reflexão (nomeados de trecho A a Trecho
F) como se pode observar ao longo deste tópico anterior.
Visando o que se aproximava mais do foco deste estudo, ou seja, ao que se
refere ao ensino de língua estrangeira na Educação Básica atentando a relevância
do ensino desta disciplina na EJA. A análise buscou refletir também alguns aspectos
que os referidos documentos abordam e explora alguns efeitos de sentido que
determinados orientações ali encontrados podem provocar no contexto da EJA,
sobretudo na (re)construção da identidades dos educandos envolvidos.
Apesar da forma como as noções mencionadas nos fragmentos retirados
dos documentos oficiais analisados, tanto das DCES, 2008 quanto das OCNs 2006,
sugerir que a língua estrangeira proporciona reconstrução de identidades, que deve
ensinar de forma que contribua a atender as diversidades culturais, e de estar

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

materializada linguisticamente afirmações positivas quanto ao ensino de língua


estrangeira na educação básica, não menciona especificamente a EJA, produz um
efeito de que prescindem de maiores explicações, como se fossem modalidades de
124
ensino unívocas.
Assim, os enunciados desses trechos colaboram com a criação de um
discurso segundo Pechêux (1997), vazio ao pensar a educação igualmente para
todos, pois todos os trechos destacados de A a F, não remetem a EJA, de fato que
reforça algumas postulações anteriores sobre a possibilidade que deixarão o
professor refém de práticas já cristalizadas, trabalhando de igual forma na educação
básica sem pensar as modalidades existentes.
Também foi possível identificar como sendo, eminentemente, de efeito
retórico (FOUCAULT, 2011) no discurso diz respeito ao objetivo principal dos
documentos analisados, tendo a língua estrangeira meio de ampliar a visão de
mundo que a disciplina deve ser um espaço de cultura e de imaginação criativa,
capaz de intervir na sociedade, transformando-a. (DCEs, 2008); (ONCs, 2006).
Pensa-se que essa questão proposta nos documentos é um discurso em um espaço
oco ao contexto da EJA, se não é citado as particularidades desta modalidade de
ensino, ela é tratada como se encaixasse na modalidade regular que traz outro
espaço e tempo. Fato que, o ponto de vista, imprime no discurso um efeito de
distanciamento, de inoperância das propostas de ensino e aprendizagem de língua
estrangeira para a modalidade de ensino EJA.

Considerações finais

Tendo em vista os discursos apresentados ao longo do texto, percebe-se por


meio dos resultados da análise desses documentos a partir de uma perspectiva
discursiva da linguagem que contempla aspectos sociais, históricos e ideológicos
para a construção de sentidos.
Dessa perspectiva, o texto não é apenas um conjunto de palavras que tem
sentidos previamente determinados e únicos, conforme Orlandi (2001, p.54) “o texto
visto na perspectiva do discurso, não é uma unidade fechada embora, como unidade
inteira – pois ele tem relação com outros textos (existentes, possíveis ou

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

imaginários), com suas condições de produção (os sujeitos e a situação)”. Neste


sentido os apontamentos aqui levantados foi uma das reflexões acerca do exposto
nos documentos analisados.
125
Pode-se perceber ao longo da reflexão que é dada vasta importância ao
ensino e aprendizagem de língua estrangeira, tendo os trechos exemplificados no
tópico de análise e discussões, mostram os discursos dessa relevância na educação
básica, tendo em vista o que essa disciplina pode contribuir na formação mais crítica
e reflexiva do sujeito. Porém, não faz menção aos sujeitos da EJA deixando-a assim
à margem deste contexto como foi a indagação na introdução deste texto.
É notório que as orientações, as sugestões acerca do ensino de língua
estrangeira se dá no geral para a educação básica, como questionamento inicial se
responde que não há especificidades pedagógicas a modalidade da EJA. Contudo
são sugestões de ensino disciplina já citada, que remete ao regular sem explicitar a
modalidade EJA.
Logo se atentar-se para a heterogeneidade (formações discursivas,
perspectivas enunciativas, efeitos de sentido etc.), levando em conta uma
perspectiva discursiva, ainda a prática de ensino e aprendizagem de língua, esse
trabalho didático-pedagógico poderá voltar-se apenas para maneiras pré-
estabelecidas de buscar e manter homogeneidades em sua sala de aula, olhar como
se todos os Jovens e Adultos se encaixassem em identidade única da educação
básica.
Pode-se entender que o contexto da EJA não é pensado nos documentos que
orientam ao ensino e aprendizagem de língua estrangeira na educação básica. Cabe
então, por meio desta reflexão, pensar nas práticas de ensino realizadas em
diferentes modalidades de ensino.

Referências

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2003.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998/2000.

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Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura Ano 05 n.11 - 2º Semestre de 2009-
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ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4ª


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___________________________. Michel Pêcheux e a Análise de Discurso. In Revista


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em: http://www.cpelin.org/estudosdalinguagem/n1jun2005/artigos/orlandi.pdf Acessado
em: 30 de março de 2015.
PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares da Educação
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Educação Básica do Estado do Paraná. Curitiba: SEED, 2008.

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Anais

EIXO III: ESTUDOS LINGUÍSTICOS: LÍNGUA PORTUGUESA

127

A axiologia bakhtiniana e a argumentação nos


gêneros discursivos
The axiology Bakhtiniana and the argumentation in discursive genres

Virginia Maria Nuss (UEM – PG)

RESUMO: Este trabalho objetiva expor que a argumentação se constitui pelo processo
enunciativo, tendo em vista que a enunciação ocorre a partir dos preceitos axiológicos de
Bakhtin, sendo o caráter dialógico da linguagem o ponto de partida para a argumentação, que
ocorre em todo ato comunicativo - verbal ou escrito - em maior ou menor grau. O arcabouço
teórico utilizado consiste na Análise Dialógica do Discurso aliada à teoria da nova retórica,
assim como das teorias funcionalistas. Desse modo, tem-se que é possível identificar em
diferentes gêneros textuais esses graus de argumentação, mesmo naqueles considerados como
neutros. Analisou-se uma resposta argumentativa e um relato produzidos por alunos do ensino
médio. Os textos foram averiguados de acordo com o aparato teórico apresentado, e concluiu-
se que a argumentação se apresenta de diferentes formas, demonstrando que é possível que os
textos se construam dentro de um continuum que vai desde um menor grau argumentativo, a
um maior grau de argumentatividade.
PALAVRAS- CHAVE: Argumentação. Dialogismo. Discurso.

ABSTRACT: This work aims to expose that the argument is by the process of example,
considering that the enunciation occurs from the axiológics precepts of Bakhtin, the Dialogic
character of language being the starting point for the argument, that occurs in any
communicative act-verbal or written- in a greater or lesser degree. The theoretical framework
used is the Dialogical Discourse Analysis combined with the theory of the new rhetoric, as
well as the functionalists theories. Thus, it is possible to identify in different text genres these
degrees of argumentation, even in those considered as neutral. Was analyzed an answer
argumentative and a report produced by high school students. The texts were determined
according to the theoretical apparatus presented, and it was concluded that the argument is
presented in different ways, demonstrating that it is possible that the If construct within a
continuum that goes from a less argumentative, to a greater degree of argumentation.
KEY-WORDS: Argumentation. Dialogical. Discourse.

Introdução

O fato de dizer se um texto é ou não argumentativo, não é critério para


caracterização dos gêneros discursivos. As reais condições de produção devem ser

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

observadas, não se atendo apenas a observar tema, forma composicional e estilo; e


passar a olhar questões discursivas e interacionais, como as práticas de linguagem
e situações de comunicação, intenções do locutor e a finalidade do seu enunciado;
128
para que se tenha uma base para a distinção entre os gêneros discursivos
existentes. Este trabalho justifica-se pelo fato de apresentar que a argumentação se
faz presente em diferentes textos, adquirindo níveis maiores ou menores. E ainda,
em possibilitar uma perspectiva diferenciada, na qual se considera o fato de que,
quando alguém mobiliza os elementos que compõem e possibilitam a comunicação,
ele está argumentando em favor daquilo que está dizendo, visando a adesão e/ou
aceitação por parte de seu interlocutor para o que está sendo enunciado. Uma vez
que, ao interagirmos com alguém, pretende-se (e se obtém) sempre uma resposta
do outro, é plausível dizermos que em todo gênero discursivo há um grau de
argumentação, mesmo os atualmente classificados como não argumentativos por
muitos profissionais do ensino de língua.

1. A nova retórica e Bakhtin

Revisitando a tão conhecida frase “argumentar é a arte de convencer e


persuadir” (FIORIN, 2015; ABREU, 2009), destaca-se que “todo discurso tem uma
dimensão argumentativa. Alguns se apresentam como explicitamente
argumentativos [...], enquanto outros não se apresentam como tal.” (FIORIN, 2015;
p. 9). Uma vez que “todos os textos são argumentativos: de um lado, porque o
funcionamento real da língua é o dialogismo; de outro, porque sempre o enunciador
pretende que suas posições sejam acolhidas” (FIORIN, 2015; p. 9). Tem-se, que a
classificação dos gêneros em argumentativos e não argumentativos não contempla
os amplos estudos linguísticos acerca da argumentação e do discurso, uma vez que
o que se apresenta são gêneros com um grau maior ou menor de
argumentatividade. Considerando a interação social e as práticas de linguagem, é
possível observar que a comunicação tem sempre uma finalidade, e busca sempre
agir sobre o outro, de uma ou de outra forma, em maior ou menor grau (FIORIN
2011, 2015, BAKHTIN, 2011). Desse modo, retomamos aqui o conceito de
argumentação da nova retórica - que considera o fato de convencer e/ou persuadir o

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

auditório por meio da linguagem; para expor que todo construto linguístico em
interação social apresenta maior ou menor grau de argumentação.

Cabe ressaltar que convencer e persuadir são termos distintos, sendo que 129

“convencer é construir algo no campo das ideias” e persuadir “é sensibilizar o outro


para agir” (ABREU, 2009; p. 25). Assim, convencer é levar ouvinte a acreditar em
seu discurso, aceitar seu ponto de vista, e a persuasão, por sua vez, muitas vezes
antecedida do convencimento, faz com que o ouvinte, após ter aceitado seu ponto
de vista, haja conforme a intenção do falante. Todavia, há discursos que apenas
convencem, outros que persuadem, e há também aqueles que convencem para
persuadir, mas em todos os casos, há argumentatividade (FIORIN, 2015). Essa
argumentatividade surge do e no enunciado, sendo a ele intrínseco, pois toda
enunciação pretende um agir sobre o outro, e produz uma atitude responsiva no
ouvinte (BAKHTIN, 2004; 2011).

Acerca da argumentação, esta surge a partir da capacidade de raciocínio,


sendo que, desde a antiguidade clássica, Aristóteles dividiu o raciocínio em dois: os
necessários e os preferíveis. A partir destes raciocínios se orienta então toda
argumentação naquilo que se pode chamar da argumentação lógica e/ou dialética; e
a argumentação retórica. Os raciocínios necessários são formados a partir de
silogismos com premissas lógicas, em que a conclusão é obtida a partir da
possibilidade dos resultados que tais premissas permitem; já os preferíveis são
criados a partir de silogismos e premissas nas quais a conclusão depende dos
valores e crenças do auditório28 (FIORIN, 2015, p. 17-18).

Argumentar consiste em um processo que envolve elementos linguísticos,


sociais, e individuais, assim como o discurso. Desse modo, salienta-se que para
haver argumentação, é necessário que haja um discurso, e não há discurso sem a
produção de enunciados, os quais se constituem por um processo totalmente
dialógico e axiológico.

28
Um exemplo de raciocínio necessário seria um silogismo lógico, como em: “Todo homem é mortal.
João é homem. Logo, João é mortal” – a premissa de que todo homem é mortal é tida como
incontestável, então, se João for homem, não há como negar tal premissa. Já o raciocínio preferível
se vale do silogismo retórico, como em: “Todo professor é honesto. Maria é professora. Logo, Maria é
honesta” – a premissa de que todo professor é honesto não se constitui como verdade universal, e
sua aceitação depende dos valores e crenças do ouvinte (FIORIN, 2015).

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Os elementos mínimos que deve haver para que se possa argumentar sobre
algo, são denominados de fatores da argumentação e consistem, entre outros, no
éthos do enunciador – a imagem que o anunciador constrói de si no discurso; o
130
auditório – aquele para quem o orador produz seu discurso de acordo com o
conhecimento e o tipo do auditório; e o discurso argumentativo (FIORIN, 2015). Ao
falar sobre argumentação, deve-se ter conhecimento que esse termo implica em um
conjunto de processos que vão desde a observação da construção de enunciados
até o contexto de interação social, visando a aceitação do destinatário do discurso
ao conteúdo exposto por quem enuncia, não se restringido a tipos de argumentos e
técnicas argumentativas.

Perelman&Obrechts-Tyteca (2005) apresenta elementos que possibilitam o


âmbito argumentativo, e destaca que, para que haja argumentação, é necessário
que o orador construa suas proposições visando a adesão do auditório, sejam essas
proposições verdades impessoais, resultados de experiências, etc. Da mesma
forma, apresenta que o auditório se diferencia entre si, sendo que o orador deve se
adaptar perante os diferentes tipos de auditório. E ainda, que o discurso do orador
possui diferentes possibilidades estruturais para produção de seu discurso,
conforme a composição social do auditório.

A construção dessas proposições se dá por meio do discurso proferido. Para


explanar acerca da produção do discurso, destaca-se Bakhtin (2004; 2011) que
ressalta o fato de o processo enunciativo se estabelecer a partir da interação, seja
do sujeito com o outro, ou dele para com ele mesmo, e ainda, esse outro pode
variar, sendo um interlocutor real ou virtual. O locutor se projeta em relação ao outro,
para então organizar sua enunciação, de acordo com sua finalidade e o contexto
social imediato que os circunda.

Percebe-se, que os processos de argumentação e o de enunciação possuem


similaridades: o interlocutor muda (do mesmo modo que o auditório); o enunciador
orienta seu discurso de acordo com seu interlocutor (assim como o orador ao seu
auditório); para então enunciar (argumentar), tendo como foco a finalidade que
iniciou a interação (assim como o orador apresenta seu texto e argumentos para
obter a finalidade que deseja). Ou seja, “O mundo interior e a reflexão de cada

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indivíduo têm um auditório social próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se


constrói suas deduções interiores, suas motivações apreciações, etc.” (BAKHTIN,
2004, p. 112), para que o indivíduo possa então exteriorizá-las a outrem, do qual
131
sempre obterá uma resposta.

Nota-se, portanto, que a argumentação constitui-se em um processo que


compreende outros processos, obtendo uma dimensão mais ampla. Há condições
necessárias para que a argumentação aconteça. Os recursos argumentativos
ocorrem dentro destas condições, não podendo, portanto, se constituir como
argumentação sendo observados isoladamente. Não seria possível utilizar um
argumento de autoridade, sem que ele esteja inserido no contexto do discurso.

Após observar esse contexto, podemos então abordar a questão dos


argumentos. Perelman&Obrechts-Tyteca (2005) e Fiorin (2015) destacam que os
argumentos são provenientes de dois tipos: os de processo de ligação e os de
dissociação. Abordar-se-á para as intenções deste trabalho, os argumentos
provenientes dos processos de ligações, que servem para associar elementos
distintos, os quais se baseiam em três diferentes grupos de argumentos: os
argumentos quase lógicos – definição, comparação, tautologia, etc; argumentos
fundamentados na estrutura da realidade – causalidade, fatos, causas necessárias,
etc; e os que fundamentam a estrutura do real – exemplo, ilustração, etc. Assim
como as técnicas argumentativas. No entanto, assim como não foi exaurido os
fatores da argumentação, também não o será os grupos e os tipos de argumentos,
dada a extensão teórica que caberia para este fim, e as intenções e limites físicos
deste trabalho. Todavia, para fins de análise, os conceitos necessários serão
abordados. Para o objetivo a que se propõe este trabalho, basta ter a ciência de que

um argumento são proposições destinadas a fazer admitir uma dada tese.


[...] Como qualquer discurso, o argumento é um enunciado, resultante, pois,
de um processo de enunciação, que põe em jogo três elementos: o
enunciador, o enunciatário e o discurso [...] (FIORIN, 2015, p. 69).

Em conformidade com o que diz Fiorin (2015) destacamos que a teoria


bakhtiniana demonstra o fato da enunciação ocorrer entre dois indivíduos por meio

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Anais

da apresentação do conteúdo verbal (BAKHTIN, 2004). Percebe-se com isso, até o


momento, que, seja na teoria da nova retórica ou no Dialogismo Discursivo, há
sempre a necessidade de que, para que se estabeleça a comunicação, é necessário
132
algo a ser dito, alguém para dizer, e outrem para escutar.

Nesse momento, cabe destacar que esse algo a ser dito tem por finalidade
não apenas exprimir as ideias de alguém, mas também fazer com que o outro se
posicione acerca do que está sendo dito. Uma vez que todo enunciado é uma
resposta a outro enunciado anterior, produzindo e se constituindo em atitudes
responsivas entre os interlocutores (BAKHTIN, 2004, 2011), e, neste sentido, todo
enunciado é considerado convincente e/ou persuasivo.

Bakhtin (1926; 2004; 2011) apresenta uma axiologia que demonstra como o
enunciado se forma através de três principais elementos, quais sejam o extraverbal,
o juízo de valor e a entoação, sendo que cada um destes componentes axiológicos
englobam em si outros elementos.

O extraverbal compreende três fatores: o conhecimento e a avaliação comum,


assim como o horizonte espacial. Os dois primeiros consistem basicamente na
compreensão da enunciação do outro a partir do modo como o recebedor do
discurso se orienta em relação ao que está sendo enunciado. Deste modo, cada
palavra da enunciação sugere um processo de compreensão, que se constitui como
uma resposta ao conteúdo do dizer (BAKHTIN, 1929). Acerca do horizonte espacial,
é ele interligado a um contexto de comunicação em que a enunciação é determinada
pela situação social mais imediata, e necessita tanto da compreensão do enunciador
como daquele que recebe o enunciado. Acerca do horizonte espacial, o enunciador
deve se identificar com o outro

e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo
colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar
seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora
dele; devo [...] criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de
minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento (1992, p.
45 – grifo meu).

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Assim, o locutor parte do contexto comunicativo para aquilo que transcende


tal ambiente, passando a reconstruir sua compreensão desse contexto não apenas
sob a sua perspectiva, mas partindo também da perspectiva do outro, incluindo
133
fatores socioculturais comuns a ambos.

Estes conceitos axiológicos não se encontram isolados na produção do


enunciado, mas imbricam-se. Note-se que a partir do compartilhamento do sistema
de valores dos indivíduos para a (re) construção do horizonte espacial, há
subjacente o juízo de valor, o qual pode ser o presumido – que é social, objetivo e
determinado socioculturalmente; ou percebido – que é individual e subjetivo; sendo,
desta forma, o refratar e o refletir os aspectos socioculturais realizados pelo
indivíduo (BAKHTIN, 1929).

A entoação ocorre em relação ao ouvinte e em relação ao objeto enunciado,


uma vez que o enunciado não possui apenas a significação representada pela
escolha léxica, mas apresenta também “um acento de valor ou apreciativo, isto é,
quando um conteúdo objetivo é expresso (dito ou escrito) pela fala viva, ele é
sempre acompanhado por um acento apreciativo determinado” (BAKHTIN, 1929, p.
127). Isso incorre na avaliação que o falante realiza sobre aquilo que está sendo
pronunciado, e se realiza por meio de uma entoação que pode ser mais ou menos
expressiva. Do mesmo modo, a entoação opera associada ao extraverbal e ao juízo
de valor, ou até mesmo, deles resulta.

Menegassi e Cavalcanti (2011) explanam que a axiologia bakhtiniana constitui


o enunciado, sendo que

[...] o enunciado é a unidade dessa comunicação discursiva, um elo no


processo comunicativo, sendo irrepetível, pois seu contexto e sua razão de
ser diferem dos de qualquer outro enunciado, mesmo sendo verbalmente
idênticos. Esse caráter unívoco e irrepetível se dá justamente por sua
característica axiológica, valorativa, que o sempre acompanha,
manifestando-se polissemicamente em função da situação comunicativa em
que o enunciado ocorre. Dessa forma, cada enunciação é única, mesmo
que o enunciado verbal seja repetido, ele não será valorativamente o
mesmo, pois o contexto de produção é sócio-histórico-contextual e
discursivamente diverso, considerando-se aqui tanto a sua produção inicial,
quanto seus modos de recepção, nas diversas possibilidades complexas da
concretização da linguagem. (MENEGASSI E CAVALCANTI, 2013, p. 434).

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Tendo em vista os conceitos apresentados, tem-se a axiologia bakhtiniana


como formadora do enunciado, o qual se constitui elemento da argumentação. Isso
considerando que, para que haja argumentação, é necessário que haja discurso,
134
para que haja discurso, é necessário que haja enunciados.

Faz-se válido ainda, destacar que os estudos retóricos apontam cinco


operações que organizam o discurso: i) a inventio (encontrar o que se dirá), ii) a
dispositivo (dispor o que for encontrado); iii) a elocutio (ornar com palavras), iiii) a
actio (atuar e enunciar), e iiiii) a memoria (confiar à memória) (FIORIN, 2015).

Por meio de uma correlação da teoria da nova retórica com a teoria dialógica
discursiva, que nos apresenta o conceito dos gêneros discursivos como sendo eles
relativamente estáveis, e passíveis de serem definidos a partir da observação do
tema, estrutura composicional e estilo (BAKHTIN, 2011), é possível assemelhar a
organização do discurso retórico com a organização composicional destes gêneros.
Assim, a inventio se equipararia ao conteúdo temático, ambos designados como o
“sobre o que falar”; a dispositio seria equivalente à estrutura composicional – a
disposição semântico-sintático em que se distribui o tema, observando as condições
de produção do enunciado (o qual resulta em formas relativamente estáveis); a
elocutio corresponderia ao estilo – a seleção dos elementos linguísticos efetuadas
pelo locutor. Sendo as três primeiras operações organizadoras do discurso as mais
estudadas na teoria argumentativa utilizada, este trabalho se limitará à comparação
entre a comparação destes, reconhecendo, todavia, que a actio e a memória
poderiam ser equiparadas a outros critérios discursivos, como o posicionamento do
falante e a esfera social, por exemplo.

Essa correspondência apresentada se torna válida uma vez que possibilita a


compreensão da organização, por assim dizer, dos gêneros discursivos em sua
forma escrita, dentro da organização argumentativa, ancorando e situando a
proposta de análise deste trabalho, demonstrando que as similaridades não estão
apenas no discurso oral, mas também na produção escrita, que será objeto de
análise neste trabalho.

Ainda, a fim de evidenciar de forma mais precisa a transposição dos


apontamentos teóricos até aqui realizados, salienta-se que a teoria dialógica do

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Anais

discurso apresenta que os mesmos atributos do discurso em sua forma de diálogo


real, servem para sua forma escrita. “A obra (escrita), como réplica do diálogo, está
disposta para a resposta do outro [...], que pode assumir diferentes formas:
135
influência educativa sobre os leitores, sobre suas convicções, respostas críticas [...]”
(BAKHTIN, 2011, p. 279) entre outras formas, todavia, o fato é que sempre haverá
uma resposta, sempre haverá um posicionamento, tanto do locutor quanto do
interlocutor, decorrente do discurso, uma vez que “um enunciado absolutamente
neutro, é impossível” (BAKHTIN, 2011, p. 289).

Partindo desta perspectiva, propõe-se que o critério de classificação dos


gêneros em que se observa o fato de determinado gênero pertencer à ordem do
argumentar – resposta argumentativa, artigo de opinião, etc; ou da ordem do narrar
– relato, carta pessoal, etc; se torna pouco produtivo para a abordagem textual, uma
vez que ela desconsidera a linguagem em interação, e, consequentemente, os
fatores socioculturais e linguísticos dos quais tais gêneros são oriundos, assim como
não observa o fato de a argumentatividade ser algo intrínseca ao discurso.

2. A teoria vista na prática: uma análise de textos

A questão da argumentação nos gêneros discursivos pode ser observada em


seu contexto de produção escolar. Os trabalhos com as tipologias da linguagem têm
cedido cada vez mais espaço ao trabalho com os gêneros textuais, os quais são
resultado da materialização escrita dos gêneros discursivos. Todavia, nota-se que
ainda há algumas práticas das atividades com a escrita textual que envolve
puramente critérios tipológicos e estruturais, desconsiderando a situação
sociocomunicativa que origina os gêneros discursivos. Uma vez que os gêneros
textuais trabalhados em contexto escolar constituem-se a partir dos gêneros
discursivos que emergem de determinada situação comunicativa (GERALDI, 2010;
MARCUSCHI, 2008), parece faltar os trabalhos que observem a constituição do
discurso, e privilegiam-se questões que possibilitam estabelecer um padrão fixo de
produção. Como resultado, continua havendo a tão conhecida e antiga divisão entre
os tipos argumentativos, narrativos, injuntivos, etc; sendo que, critérios como a
interação, o contexto social, área de conhecimento, a intenção do falante, sua

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Anais

finalidade, entre outros; que deveriam ser fundamentais para um trabalho com
gêneros textuais, saem de cena, dando lugar para outros critérios superficiais.

Os textos que constituem objeto de análise deste trabalho foram escritos por 136

alunos do terceiro ano do ensino médio de Colégio Estadual, que frequentaram as


oficinas de redação realizadas por alunos da graduação em Letras da UEM que
participavam do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID, na
cidade de Maringá/Paraná.

O primeiro aspecto a ser destacado, e que se aplica a todos os textos desta


análise, é o fato de que todos eles têm suas marcas de estilo e apresentam
determinado ponto de vista, isso de acordo com o horizonte social e o juízo de valor
que cada indivíduo apresenta sobre o tema, expressos por marcas entoacionais nas
unidades linguísticas que compõem o estilo de cada sujeito (BAKHTIN, 1926). Uma
comprovação prática disso é que, diante de um mesmo tema, um mesmo texto base,
um mesmo contexto de produção textual, e a solicitação de um mesmo gênero,
independente da quantidade de alunos em sala, nenhum texto será igual ao do
outro.

Dessa variedade discursiva que apresenta variados pontos de vista, tem-se


que o texto que será produzido adquire um caráter argumentativo de convencimento,
visando à aceitação do leitor/interlocutor aos acontecimentos que serão
apresentados.

Desse modo, é possível observar como o extraverbal ocorre em meio ao


processo em que o aluno, ao escrever, pressupõe seu interlocutor, que corresponde
ao auditório do argumentador, partindo do lugar que ocupa – aluno de ensino médio;
se reconstrói, emoldurando o lugar que deve ocupar – aluno de ensino superior; cria
um ambiente que lhe seja consoante, antecipando e criando circunstâncias que lhe
permite vivenciar a situação proposta, para então discorrer sobre ela. Ou seja, o
aluno assume uma posição em relação ao que irá relatar, se adequando ao seu
interlocutor, por assim dizer, como o orador se emoldura em seu auditório. Isso de
tal forma, que o relato se constitui com um fato verdadeiro, considerando que o leitor
se identifica com os fatos, de fato a considerá-los plausíveis, e, portanto, aceitáveis.
Com isso, o aluno tem como ponto de partida o raciocínio preferível e vai lidar com a

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Anais

construção no campo das ideias, ou seja, tentará convencer seu interlocutor sobre
acerca da sua experiência.

O juízo de valor se apresenta por meio dos enunciados, e é corresponsável 137

pelos diferentes pontos de vista sobre um mesmo assunto, assim como pelo
posicionamento do autor, o que resultará em diferentes produções, de acordo com o
juízo de valor de cada um. Fica evidente o juízo de valor deste aluno – tanto o
presumido quanto o percebido – por meio da perspectiva opositiva entre a
defasagem escolar no ensino público em comparação com o ensino particular,
sendo que desta perspectiva surge o reconhecimento da necessidade de se estudar
mais. O juízo de valor e o extraverbal se por meio de entoações próprias a cada
indivíduo, marcadas verbalmente nos enunciados, por meio de elementos
linguísticos, que possibilitam uma percepção em relação à forma como o aluno (re)
significa seu discurso.

Texto 01 - Relato
Quando eu estava na metade do 2º ano no ensino médio, comecei a estudar para o
vestibular com o auxílio de cursinhos preparatórios. Como estudava em colégio público, não tinha
os mesmos privilégios de um aluno de colégio particular, que tinham mais horas de aula, então
precisei recorrer a cursinhos. A faculdade que eu pretendia fazer era Engenharia Civil, que na
época era muito concorrida. Com muita dedicação aos estudos passei em 3º lugar no vestibular de
inverno da UEM (Universidade Estadual de Maringá). Atualmente, já na reta final da faculdade e
com o emprego garantido, graças ao estágio, vejo que valeu a pena todas as horas que passei
estudando.

Há no texto 01 diferentes marcas expressivas do autor, marcadas


linguisticamente, como se vê em termos como: muita dedicação (que intensifica o
sentido de dedicação); vestibular de inverno (que delimita qual época do vestibular),
passei em 3º lugar (que marca a posição, não foi em qualquer lugar, foi em terceiro),
valeu a pena todas as horas que passei estudando (em que o termo todas, ao
mesmo tempo em que amplia, também fortalece o sentido presente na oração),
precisei recorrer a cursinhos (em que o verbo modal aponta para o fato de recorrer
ao cursinho, não como uma opção, mas como uma necessidade). Do mesmo modo,
há marcas de expressividade que podem surgir implicitamente, a partir do conteúdo
linguístico – léxico, campo semântico, etc. Dessa forma, ressalta-se que os

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Anais

conceitos axiológicos em funcionamento discursivo ocorrem totalmente imbricados,


de forma a produzir enunciados nos quais se nota a subjetividade do falante.

Do mesmo modo, tendo que o enunciado/texto é construído a partir de tal 138

axiologia, nesta construção é possível observar os fatores de argumentação já


destacados neste trabalho, quais sejam – o ethos do enunciador; o auditório e o
discurso argumentativo (FIORIN, 2015). Ainda, “a argumentação trabalha com aquilo
que é plausível, possível, provável. Argumentar, em sentido lato, é fornecer razões
em favor de determinada tese” (FIORIN, 2015, p. 77). Aqui destacamos que o teor
argumentativo do texto 01 não possibilita questionamentos em valor de verdades,
pois é construído sobre hipóteses válidas e aceitáveis ao auditório, prova disso é o
fato de que, devido às situações e pensamentos apresentados ser totalmente
possível, o leitor aceita o conteúdo do texto como verdade. Ao ler o relato, o leitor
adentra na narrativa apresentada, e não questiona se o autor é ou não um aluno de
pós-graduação; etc; encarando os fatos a partir da perspectiva do autor do texto.
Assim, destaca-se a argumentação presente, uma vez que “Um argumento não é
necessariamente uma prova de verdade. Trata-se, acima de tudo, de um recurso de
natureza linguística destinado a levar o interlocutor a aceitar os pontos de vista
daquele que fala” (PLATÃO E FIORIN, 1996, p. 279).

No relato em questão, o autor situa seu leitor temporalmente acerca de um


fato passado por meio da utilização de um advérbio e da marca temporal do verbo
“Quando eu estava na metade do 2º ano no ensino médio”, ao mesmo tempo em
que informa acerca de quem o autor irá falar – ele mesmo, marcado pelo pronome
“eu”. Em continuidade, situa seu interlocutor acerca do assunto o que será narrado -
“comecei a estudar para o vestibular”. Note que a continuação do período o autor
nos aponta o meio pelo qual ele considera que começou a estudar “com o auxílio de
cursinhos preparatórios”. Embora o autor não defina a tese, ela se torna perceptível,
apesar de implícita, a qual pode ser perfeitamente compreendida como estudar para
o vestibular, sendo que “com a ajuda de cursinhos” seria apenas o meio para a
realização desse estudo.

O aluno continua sua apresentação dos fatos, por meio da construção do seu
éthos – aluno de escola pública, e realiza um apelo às emoções do leitor ao dizer

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Anais

que “Como estudava em colégio público, não tinha os mesmos privilégios de um


aluno de colégio particular”, sendo que, na sequência, ele já apresenta quais
privilégios ele se refere “mais horas de aula”. Isso de modo até mesmo a justificar a
139
necessidade que resultou na forma que escolheu para realizar seus estudos “então
precisei recorrer a cursinhos, e, ao mesmo tempo, demonstrar seu esforço no fato de
procurar uma forma de estudar, que não apenas as aulas normais na escola
pública”. Desse modo, o autor deixa claro, por meio do argumento com base em
valores comuns, que ele, como aluno de escola pública deve estudar e se esforçar
mais para passar no vestibular, porque tem menos horas aulas que os alunos de
escola.

O relato continua por meio de um período que reforça a tese defendida, a qual
seria a necessidade de estudar, pois o curso para o qual ele prestaria vestibular era
muito concorrido “A faculdade que eu pretendia fazer era Engenharia Civil, que na
época era muito concorrida”. O autor irá então apresentar o desfecho do relato,
revelando ao leitor o resultado do seu esforço e atribuindo a si mesmo o mérito da
dedicação “Com muita dedicação aos estudos passei em 3º lugar no vestibular de
inverno da UEM (Universidade Estadual de Maringá)”. Note que o resultado
apresentado pelos estudos realizados é marcado, como terceiro colocado em um
vestibular “muito concorrido”, o que valoriza ainda mais o fato de ter passado no
vestibular, pois passou em uma das primeiras colocações.

O autor encerra situando novamente o leitor no tempo, apontando que, após


todos os fatos do passado, atualmente ele desfruta dos resultados benéficos de seu
esforço – o que reforça sua tese de que para passar no vestibular é preciso estudar.
Ao mesmo tempo, sua finalização funciona como uma espécie de
peroração/aconselhamento para seu leitor “Atualmente, já na reta final da faculdade
e com o emprego garantido, graças ao estágio, vejo que valeu a pena todas as
horas que passei estudando”, pois transmite a mensagem de que estudar “vale à
pena”.

Embora se reconheça que o relato não é um gênero “tipicamente”


argumentativo, fica evidente que o autor defende/acredita em uma tese, e convence
seu interlocutor do seu ponto de vista.

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Anais

Retomando o conceito dos tipos de argumentos e técnicas argumentativas,


tem-se ainda, dentro dos argumentos fundados na estrutura da realidade, o
argumento dos fatos, em que “os fatos são bastante eloquentes para servir de
140
argumento. Por exemplo, se se quer argumentar contra a tortura, basta narrá-la em
toda sua brutalidade” (FIORIN, 2015, p. 161). Ou ainda, se se quer argumentar a
favor do estudo, basta narrá-lo como essencial para se atingir o propósito desejado,
que foi o que o autor fez. Neste caso, a necessidade de estudar para que se passe
no vestibular, se constitui, por si só, um argumento.

Há ainda, ao se observar as técnicas argumentativas, e os argumentos


indutivos, que fundamentam a estrutura do real. Neste relato destacamos o
argumento pelo exemplo, no qual é formulado “um princípio geral a partir de casos
particulares, ou da probabilidade de casos idênticos” (FIORIN, 2015, p. 185). Neste
caso, a tese pode aparecer em qualquer parte do texto, ou no texto todo, sendo que,
“o que importa é que ela seja uma generalização fundada numa “história de vida””
(FIORIN, 2015, p. 185). Isso é facilmente percebível, pois a história ali apresentada
relata uma experiência individual, um relato de experiência vivida, o qual é possível
generalizar.

Outro argumento que se pode destacar é o argumento por ilustração, que


consiste em “reforçar uma tese tida como aceita [...] figuratiza-a para dar-lhe
concretude [...]” a qual “não se destina a comprovação, mas à comoção, volta-se
para o sentimento” (FIORIN, 2015, p. 188). Esse argumento surge a partir da
exposição dos fatos e da conclusão, que servem para reforçar uma tese que já é tida
como aceita pelo senso comum do auditório a que se destina este relato: a
importância de se estudar para passar no vestibular.

E mais, “a ilustração difere do exemplo em razão do estatuto da regra que


uma e outro servem para ilustrar. Enquanto o exemplo era incumbido de
fundamentar a regra, a ilustração tem a função de reforçar a adesão a uma regra
conhecida e aceita” (PERELMAN&TYTECA, 2005, p. 407). Assim, tem-se que o
exemplo do relato – que consiste na experiência relatada pelo autor, é reforçado
pela ilustração expressa pela narração dos fatos.

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Anais

Ainda, a própria construção do éthos do autor pode funcionar como um


argumento de autoridade (PERELMAN&OBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 347-353). O
ethos neste texto é construído como o de uma pessoa dedicada aos estudos, que
141
passou em terceiro lugar em um vestibular muito concorrido, mesmo tendo sido
aluno de escola pública, e já está exercendo sua profissão antes mesmo de terminar
seu curso – graças ao estágio, ele tem emprego garantido – e está concluindo sua
graduação. Todos esses fatores atribuem ao autor certas qualificações que o
prestigiam e lhe concede autoridade para falar do assunto, uma vez que ele mesmo
é o exemplo, favorecendo a aceitação de sua tese por parte do auditório. Isso é
possível, pois “Nesse caso, quem argumenta introduz a si mesmo como prova do
exame em questão [...]. O objetivo é levar a plateia a aceitar a aceitar um ponto de
vista, baseando-se na autoridade de quem enuncia, [...] na sua credibilidade ou na
sua integridade pessoal” (FIORIN, 2015, p. 176). Ressalta-se que os argumentos de
exemplo, ilustração e autoridade operam de forma conjunta neste relato, sendo que
o relato como um todo, considerado como um “bloco de sentido” constitui-se a si
próprio como argumento de autoridade. Com relação às técnicas argumentativas,
ainda é possível pensar nos argumentos por lugares-comuns e o recurso aos
valores morais. Sendo o recurso aos valores “são balizas morais que uma dada
sociedade numa dada época considera como verdade” (FIORIN, 2015, p. 200); e os
lugares-comuns são argumentos que servem para apresentar uma tese como
evidente, ou seja; é evidente para o grupo social em que se insere esta produção
que estudar é importante e necessário, assim como isso também é tido como
verdade.

Embora o relato seja um gênero com baixo grau de argumentatividade, seria


incoerente teoricamente, dizer que não há nele argumentação. Um bom relato deve
ser convincente, e, para se fazer convencer, terá que se valer de argumentos. Abreu
(2009) esclarece que convencer é falar à razão, demonstrando, e persuadir é falar à
emoção, sensibilizando o outro para agir. Com isso, é essencial essa noção
argumentativa de convencimento e persuasão para a produção de um relato
coerente e aceitável. Se pensarmos na ideia de que este relato pode servir de
exemplo para outras pessoas na mesma situação do autor, teremos a persuasão
que irá “encorajar” o leitor, motivando-o e induzindo-o a estudar. Já o convencimento

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aqui reside na construção de uma experiência vivida mobilizada dentro de valores de


verdades e possibilidades, e que, por serem racionais, permitem que o leitor as
aceite e as considere plausíveis. Pode não haver marcadores argumentativos
142
explícitos, refutação ou contrarresposta (explícitas, pois o relato é produzido em
resposta a um enunciado, e o autor, ao optar por uma tese, automaticamente está
refutando outra), figuras retóricas, etc; mas sem dúvida, é um texto que obtém a
adesão do auditório acerca do seu ponto de vista.

Há também textos que se caracterizam com um grau de argumentatividade


maior e mais explícita, como no texto 02.

Texto 02 – Resposta argumentativa


O uso do celular em sala de aula pode prejudicar o desenvolvimento, de aluno e até de
professores. Mesmo quando o celular é usado como pesquisas. Como exemplo, quando estamos
pesquisando no celular, podemos receber mensagens ou ficar em rede sociais, e isso acaba
prejudicando a pesquisa.
Existe pessoas de diversas opiniões, a favor ou contra o uso do celular em sala de aula
tem causado muita polêmica. Como aluna do 3º ano de ensino médio, sou contra, porque existe
outras ferramentas de pesquisas, sem ser o celular.

Neste texto, a argumentação aparece explícita, a tese que o autor defenderá


já aparece na primeira oração do texto: “O uso do celular em sala de aula pode
prejudicar o desenvolvimento, de aluno e até de professores”, e, apesar do verbo
modal indicar certo grau de incerteza e não comprometimento do falante, fica
evidente que o aluno se posiciona contra o uso do celular em sala de aula. Ele
antecipa possíveis objeções de seu interlocutor, e afirma que não há exceções para
que se permita o uso do celular em sala de aula, sendo que este tipo de uso seria
prejudicial mesmo em situações nas quais o uso do celular seria aparentemente
benéfico: “Mesmo quando o celular é usado como pesquisas” – sendo que o termo
“como pesquisa” pode perfeitamente ser compreendido para pesquisar, a fim de
pesquisar, o que aponta uma finalidade de uso possível - a possibilidade é expressa
nesta oração pela locução conjuntiva mesmo quando.

O argumento por exemplo, já supra apresentado nesta análise, também


aparece neste texto, mas desta vez aparece marcado lexicalmente: “Como
exemplo”, e o aluno, então, irá explicar porque o celular é prejudicial inclusive em
situações de pesquisa, descrevendo uma situação plausível como exemplo: “quando

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estamos pesquisando no celular, podemos receber mensagens ou ficar em rede


sociais, e isso acaba prejudicando a pesquisa”. Esse tipo de explicação funciona
como argumento por exemplo, realizado também pelo argumento por ilustração.
143
Note que o autor se inclui na situação, como estratégia de persuasão, levando o
interlocutor a identificá-lo como alguém que participa da situação, construindo um
éthos que se aproxima do leitor, e assim passível de adquirir confiança.

Em seguida, o aluno realiza a tentativa de adesão do seu interlocutor,


demonstrando que tem ciência das opiniões que diferem da dele. Fiorin (2015)
apresenta este recurso como argumentum ex concessis, o qual consiste em o
enunciador apontar que a tese contrária à sua pode ser verdadeira: “Existe pessoas
de diversas opiniões, a favor ou contra o uso do celular em sala de aula”, sendo que,
ao mesmo tempo, coloca que ele não é o único a defender a tese que ele apresenta,
destacando que esta tese é controversa, uma vez que “tem causado muita
polêmica”. Ainda, para Perelman&Obrechts-Tyteca (2005) e Fiorin (2015), o
reconhecimento da tese contrária como também verdadeira, dentro deste tipo de
argumento, constitui-se em um ponto de partida para limitar a tese contrária e
sustentar o ponto de vista do locutor.

O autor encerra sua argumentação, retomando e afirmando sua posição –


não apenas sua posição em relação à tese, mas também o lugar social de onde fala:
“Como aluna do 3º ano de ensino médio, sou contra, porque existem outras
ferramentas de pesquisas, sem ser o celular”, com isso, possibilita ao interlocutor
criar uma imagem do autor, em que se infere que ele fala com conhecimento de
causa, uma vez que participa da realidade escolar para a qual se dirige
objetivamente a tese – seria diferente um pai de aluno, que não frequenta e não
conhece os costumes dos jovens e adolescentes considerar o uso do celular como
prejudicial inclusive para a realização de pesquisas.

A causa que fundamenta a posição do aluno é o fato de que há outros


recursos que podem ser utilizados para a realização de pesquisas: “sou contra,
porque existem outras ferramentas de pesquisas, sem ser o celular” – esse
argumento se baseia unicamente na fala do autor, que acredita ser o motivo
apresentado, um motivo suficientemente forte para justificar a sua adesão ao ser

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contrário o uso de celular, e que também poderá levar o auditório, ou parte dele, a
aceitar sua opinião. Esse tipo de argumento, em que se toma a alegação do
enunciador como prova do que foi dito, é o argumentum ad ignoratiam (FIORIN,
144
2015, PERELMAN&OBRECHTS-TYTECA, 2005).

Os conceitos axiológicos neste gênero dão a ele um teor de maior certeza,


apesar do verbo modal no início do texto, o juízo de valor do autor fica explícito
desde a primeira oração (usar celular em sala de aula é prejudicial), e perpassa todo
o texto se aglomerando ao horizonte espacial dos participantes da interlocução do
texto, se manifestando por meio de uma entoação objetiva - construída por meio de
períodos mais curtos e objetivos. Tudo isso opera em favor da autenticidade que há
no texto, assim como nos demais textos que foram produzidos por outros alunos na
mesma situação imediata de produção, se torna único, não havendo outro igual.

Os argumentos apontados aqui foram, em sua maioria, argumentos com base


no real, os quais pretendem a apresentação de pontos de vistas, visando sua
aceitação. Há ainda, a possibilidade de se destacar outros argumentos e outras
técnicas argumentativas, todavia, não há a pretensão de exaurimento analítico dos
textos apresentados, inclusive porque alguns recursos argumentativos como as
figuras de retóricas – figuras de palavras, de pensamentos, de linguagem, etc.
merecem uma análise mais específica que inclua a observação do domínio
discursivo e da escrita do autor.

O que se pretende evidenciar é o fato de que a argumentação pode ser


explícita ou implícita ao discurso, seja ele escrito ou oral; e que se deve aprender a
utilizar as técnicas argumentativas em diferentes textos, a fim de obter a finalidade
desejada. E ainda, que a argumentação, como um processo formado a partir do
discurso, se constitui, antes de tudo, a partir do aspecto dialógico do discurso, o qual
compreende a axiologia bakhtiniana.

A partir das análises realizadas, conclui-se que a argumentação se faz


presente em diferentes textos, inclusive em textos considerados como não
argumentativos, construindo um continuum em que os gêneros podem ser dispostos
de acordo com o grau de argumentatividade, que, neste caso, teríamos o relato
como menos argumentativo, e a resposta, como mais argumentativa. Ressalta-se,

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

no entanto, que há ainda textos que podem adquirir um grau de argumentatividade


maior que a resposta, como os textos jurídicos; ou ainda, um grau menor que o do
relato, como bilhetes; assim como gêneros intermediários. Esta conclusão corrobora
145
não só o conceito dialógico bakhtiniano, mas também as premissas de diferentes
correntes funcionalistas que apresentam uma teoria consistente que apresenta o
fato de todo texto visar produzir algo em seu ouvinte. Assim, este trabalho não
pretende exaurir este assunto, mas abrir novas perspectivas sobre como a
argumentação ainda é vista ao que tange no trabalho com os gêneros.

Considerações finais

Após os apontamentos teóricos e analíticos deste trabalho, pretende-se que


tenha ficado claro que a argumentação se faz presente em todo e qualquer discurso,
sendo que o discurso sempre terá intrínseca a axiologia proposta por Bakhtin – juízo
de valor, extra verbal e entoação. Do mesmo modo, os gêneros discursivos sempre
surgirão a partir das situações imediatas de produção discursiva, tudo isso, ainda,
envolto pelos aspectos sócio-históricos e culturais.

Neste trabalho visou-se explanar sobre questões que vêm sidas


constantemente abordadas nos estudos linguísticos, quais seja a intenção do
falante, as ideologias expressas nos enunciados, e o agir sobre o outro por meio da
utilização discursiva.

Assim como outras questões que vêm ao encontro destas, como quando os
gêneros discursivos são trabalhados no contexto de sala de aula, ambiente no qual
é comum taxionomizar os gêneros, atribuindo-lhes denominações e estruturas que
possibilite um exercício padronizado, classificando-os, em argumentativos e não
argumentativos, por exemplo. No entanto, tal classificação se torna uma abordagem
contrária à proposta dialógica, sendo que, nela, os gêneros são relativamente
estáveis, mas nenhum é realizado fora do contexto interacional do discurso. Como
foi possível demonstrar, o próprio dialogismo se constitui como fator argumentativo.

Com isso, sugere-se uma abordagem mais completa no trabalho com


gêneros, seja em qual âmbito for que aborde, sobretudo, as questões que

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Anais

possibilitem domínio discursivo, ao invés de permanecer na tentativa de engessar os


gêneros, querendo atribuir-lhes designações que os torne isolados, por assim dizer,
uns dos outros. Para tanto, é necessária a realização de pesquisas analíticas e de
146
campo, que abordem e investiguem a argumentação como constitutiva dos gêneros
do discurso.

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Anais

A representação de língua portuguesa no


discurso de sujeitos haitianos 147

The Portuguese language representation on the Haitians’ discourse

Renata Aparecida Ianesko (UFMS/UNIR - PG)


Claudia Poliana de Escobar de Araújo (UFMS - PG)

RESUMO: Este trabalho se insere na visão discursivo-desconstrutivista e tem como objetivo


problematizar a representação de língua portuguesa dos sujeitos haitianos moradores da cidade de
Três Lagoas. Partimos dos princípios teórico-metodológicos oriundos dos Estudos Culturais e da
Análise de Discurso (AD) da linha francesa que entre outros objetivos busca a compreensão da
produção social de sentidos. Abordamos as noções de sujeito, discurso e formação discursiva pela
leitura de Pêcheux (1990) e Foucault (2008); representação, pelo viés de Coracini (2007). Assim, por
meio de entrevistas semiestruturadas, gravadas e transcritas, buscamos refletir sobre a
representação que o sujeito haitiano faz sobre a língua portuguesa. Por fim, podemos observar, por
meio das análises, que no discurso dos entrevistados perpassa a sua representação de estrangeiro
com muitas restrições sociais, a começar pela língua e é o domínio da Língua Portuguesa,
principalmente, que representa sua condição de adaptação no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Haitiano. Língua Portuguesa. Estrangeiro

ABSTRACT: This work is into the vision of desconstructivist discursive and it aims to problematize the
representation of the portuguese language of the haitian people who live in the city of Três Lagoas.
We start from the theoretical and methodological principles derived from cultural studies and the
french line of the discourse analysis, which among other objectives seeks the social production of
meanings. We approach the notion of subject, discourse and discursive formation from the authors
such as Pêcheux (1990) and Foucault (2008); representation from the author Coracini (2007). Thus,
through semi-structured interviews, recorded and transcribed, we aim to reflect about the
representation that the haitian subject has about the portuguese language. Lastly, we could observe,
from the analysis, that on the discourse of the analised people there is the representation of the
foreigner with some social restrictions and they start because of the language and when they can
speak the language they, mainly, have good conditions to adapt in Brazil.

KEY-WORDS: Haitian. Portuguese Language. Foreigner

Considerações Iniciais

Os estudos sobre a questão da emigração haitiana vêm ganhando espaço a


cada ano na academia por ser um fenômeno constante e especialmente, agora, vem
ganhando outros destinos. O Haiti, por assim dizer, se localiza em uma das regiões
mais bonitas do planeta, Mar do Caribe, com uma população de cerca de nove
milhões de pessoas, e possui a condição de país mais pobre das Américas e Caribe,
com a maior parte da população vivendo na condição de pobreza, ou seja, recebem

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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menos de cerca de 2 dólares por dia e, em 2010, aprese,3ntava um dos mais baixos
IDH do mundo, de acordo com dados da ONU, ocupando a 146ª posição. O país
está localizado entre a América do Norte e a América do Sul.
148
Com relação à sua história, podemos considerar que no ano de 1492, o Haiti
foi descoberto por Cristóvão Colombo e recebeu o nome de Ilha de Hispaniola. Por
questões políticas, a ilha foi dividida com a França, assim, a parte hoje denominada
República Dominicana ficou sendo pertencendo à Espanha e a França era colônia
do que viria a ser chamado hoje de Haiti. O país, depois de uma violenta revolta dos
escravos, aboliu a escravidão e em 1801 Toussaint Louverte, um líder popular e ex-
escravo autodidata, tornou-se governador geral do Haiti. Em 1804, Jacques
Dessalines continua com o movimento de resistência e declara o Haiti um país
independente, no entanto, em apoio à França escravistas americanos e europeus
fazem um bloqueio naval comercial no Haiti que durou 60 anos. No ano de 1957 foi
instaurado a ditadura no Haiti que perdurou até o ano de 1986, e que prejudicou
ainda mais a economia do país. No entanto, mesmo com o término do período de
ditadura, o país continuou em crise econômica.
No século XX, especialmente a partir da segunda metade, tem-se assistido à
migração em massa de haitianos para outros países em busca de melhores
condições de vida, seja por liberdade política e social, seja pela busca de
oportunidades de trabalho ou estudos e, nesse sentido o Brasil figura como um dos
destinos da emigração haitiana na contemporaneidade, e em especial nos referimos
neste trabalho, ao contexto da cidade de Três Lagoas, no estado do Mato Grosso do
Sul, doravante MT. Isso ocorreu, principalmente, porque em 2010, o Haiti viveu um
dos mais terríveis episódios de sua história, um terremoto que deixou mais de 1,5
milhões de desabrigados, o que fez com que os haitianos procurassem formas de
melhorarem suas vidas e um dos destinos mais procurados foi o Brasil, país que já
recebeu mais de 38,000 haitianos que entraram sem documentos ou visto.
O contexto desta pesquisa é atravessado pelas relações de poder e, por isso,
é importante dar relevância a essa questão. Acreditamos, assim que os haitianos,
por estarem no Brasil, em busca de melhores condições de vida, constituem sua
subjetividade numa constante arena de luta.

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Assim, esse trabalho tem como objetivo principal refletir sobre a


representação da identidade dos sujeitos haitianos do município de Três Lagoas,
inseridos em um processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa como
149
língua estrangeira a partir da perspectiva discursiva e do processo de referenciação
linguística.
Por intermédio de uma análise linguístico discursiva pretendemos observar
como os dizeres de haitianos, aprendizes de português, significam em uma
determinada situação discursiva e como se articulam para a produção de sentidos.
Utilizaremos a metodologia discutida por Foucault (2008), em que
recorreremos à aplicação de entrevistas semiestruturadas aos alunos-adultos
haitianos. São alunos regularmente matriculados em um curso formal de Português
para haitianos que foi iniciado em 2014 na escola Elson Lot Rigo no município de
Três Lagoas no estado do Mato Grosso do Sul. Partimos dos princípios teórico-
metodológicos oriundos da Análise de Discurso (AD) da linha francesa que, entre
outros objetivos, busca a compreensão da produção social de sentidos.
Com relação às entrevistas optamos por realiza-las em Língua Portuguesa
por concordar que o sentido depende, entre outras questões, das condições de
produções e como acreditamos que o discurso é definido por meio de enunciados
construídos por formações ideológicas, acreditamos poder refletir sobre o discurso
do sujeito haitiano de forma singular, interpelado pelas ideologias que o rodeiam.

Fundamentação Teórica

Partimos da perspectiva que a análise do Discurso, doravante AD, “é o lugar


privilegiado de manifestação da ideologia” de acordo com Brandão (2012, p. 11). Por
isso, acreditamos que para refletir questões referentes a identidade dos haitianos
pesquisados seja importante nos basearmos na metodologia teórica da AD, a qual
tem como objeto de estudo o discurso e não a língua e, o texto é analisado e não o
signo ou a frase. Assim, para Orlandi (1986, p. 107) o texto na AD é considerado
“não em seu aspecto extensional, mas qualitativo, como unidade significativa da
linguagem em uso, logo unidade de natureza pragmática”.

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Dessa maneira, essa metodologia de análise pressupõe um estudo que


observe a materialidade discursiva, pois para Pêcheux (1988), a língua seria um
lugar em que os efeitos de sentido são realizados. Consideramos, nessa
150
perspectiva, que é possível haver a desconstrução nos discursos, ou seja, não há
apenas um sentido para cada discurso e a sua interpretação dependerá dos âmbitos
sociais ao qual eles foram pronunciados. Segundo Orlandi (1999, p. 15), “a análise
do discurso como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da
gramática embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a
palavra etimologicamente tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr, de
movimento”. Para Faucault (2005), o discurso possui esse caráter de não fixidez
quando fala sobre a problematização do linguístico com o histórico social, da
descontinuidade, do descentramento, e do processo diaspórico dos sentidos.
Assim, segundo Indursky (1997, p. 17). “a AD pressupõe a linguística, mas
não se limita a ela”. Na AD, a linguagem seria um produto sócio-histórico e não um
sistema abstrato, no qual os sentidos não são estáveis e transparentes ou fixos, e
sim construídos socialmente em determinado período histórico, por isso a linguagem
não é um produto acabado, mas sim um processo em construção.
Basearemos-nos na teoria de Foucault (2010, p. 122) quando afirma que o
discurso é um conjunto de enunciados, os quais se apoiam em uma mesma área de
conhecimento, podendo ser eles o “discurso clínico, discurso econômico, discurso
da história natural, discurso psiquiátrico” e todos os demais discursos de um mesmo
sistema de formação.
E também de Pêcheux (1988, 1997), quando fala sobre o processo de
reinserção do discursivo, dos efeitos de sentidos e ainda com o processo histórico
no cenário da linguagem, o sujeito emerge como ponto principal, pelo viés da
memória intradiscursiva.
O sujeito para a AD é o sujeito do discurso, social, pois não é apenas um
reprodutor de arranjos. No entanto, esse sujeito, ilusoriamente, acredita ser o dono
de suas palavras e também acredita que determina seu dizer, nos referindo aos
esquecimentos de Pêcheux (1988) e para ele (os indivíduos são ‘interpelados’ em
sujeitos-falantes pelas formações ideológicas que lhes são correspondentes”)
(PÊCHEUX, 1975/1988, p. 161)

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Partiremos de dois pressupostos, o primeiro é com relação à constituição da


identidade dos haitianos pesquisados, os quais são afetados pela alteridade e pela
diferença e o contato com o brasileiro, o que provoca neles um estranhamento,
151
responsável pela forma como eles representam a si próprios e ao outro.
O segundo pressuposto é a concepção de sujeito, o qual é multifacetado,
clivado, heterogêneo, cuja constituição histórica o leva a ser atravessado por
discursos outros e interpelado ideologicamente (PÊCHEUX, 1975/1988). Ou seja, o
discurso dos haitianos, assim como todos os outros, é constituído por enunciados de
outros discursos, pois o sujeito não é uno, coeso, mas é atravessado por uma
heterogeneidade de discursos que o constitui. Para Pêcheux (1975/1988, p. 160),

[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc,


não existe ‘em si mesmo’ (isto é, em sua relação transparente com a
literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições
ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as
palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas).

Assim, buscaremos fazer uma análise com base na conceituação de Pêcheux


sobre ideologia, que é baseada no livro de Althusser “Ideologia e Aparelhos
Ideológicos do Estado” (1974) no qual ele discute como os aparelhos ideológicos
como escola, família e prisão interferem nas práticas sociais, pois o sentido das
palavras não é fixo e nem existe em si, mas é constituído pela interpelação
ideológica do indivíduo que o torna um sujeito ideológico.
Com relação às representações de identidades, Hall (2000, p. 108) explica
que

Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que
elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas;
que elas não são nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao
longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser
antagônicas. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical,
estando constantemente em processo de mudança e transformação.

Assim, para os estudos culturais, o conceito de identidade pressupõe


movimento, algo em construção, ou seja, o conceito passa a ser interpretado como
identificação e vai ao encontro da perspectiva desconstrutivista de Derrida, na
medida em que aponta a identidade como um conceito que acontece ‘sob rasura’.

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Sendo assim, para Hall (1992/1998), existem múltiplos deslocamentos identitários,


deslocamentos esses que acontecem em diferentes momentos da vida do sujeito.

152
Análise Discursiva

Esta pesquisa tem como objetivo fazer a análise de trechos de uma


entrevista, de um haitiano integrante da turma de língua portuguesa destinados a
haitianos em uma turma formal no município de Três Lagoas – MS. Temos como
base o pressuposto de referenciação como atividade discursiva e na Análise de
Discurso de linha francesa.
No seguinte excerto o aluno haitiano fala sobre as vantagens e o motivo pelo
qual se mudou para o Brasil:

SA1: eu acho (no Brasil mais fácil) porque tem pra fazer Enem... se você
tem boa (nota) é fácil ... tem muitas possibilidades pra fazer faculdade
aqui... (...) eu já fezê/ inscrição vou tentar... (...)porque aqui você/um jovem
pode trabalhar de manhã... estudar ainda tarde e noite... e no Haiti vai ser
difícil para trabalhar e estudar também... se é estudar só... trabalhar só...
porque jovem que estuda lá no Haiti é os pais que paga tudo pra ele... (A1)

Observamos que no trecho do aluno existem duas anáforas que remetem ao


mesmo referente, a primeira quando o aluno utiliza o termo “aqui” e segunda com o
mesmo termo, o que coloca o referente novamente em foco, numa recuperação do
termo “Brasil”. Encontramos também a anáfora indireta “ele” se referindo ao termo
anterior “jovem”, o qual tem como objetivo introduzir um novo referente e dar
continuidade ao texto, segundo Marcuschi (2005, p. 58). Podemos notar que o efeito
de sentido principal diz respeito às facilidades encontradas no Brasil, principalmente
relacionadas às oportunidades de trabalho e estudo ao mesmo tempo.
Quando perguntado se acredita que é possível viver bem no Haiti, o aluno
responde:

SA1: Sim... tem que fazer faculdade... ter profissão pra trabalhar... pra
ocupar toda sua família... lá no Haiti... pessoa que trabalha/ homem - - tem
espoSA quase não trabalha... é hoMEM que quase fazer tudo... paga
aluguel... fazer comPRA/... ele trabalha para cuidar da sua família... (toda)
família

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Para Foucault (1997), todos nós estamos atravessados por preceitos,


memórias, possíveis verdades e ideologias ancoradas em filosofias positivistas, e
que o homem está enredado nas limitações que a inscrição social lhe impõe. Ou
153
seja, parece que para este aluno seja importante seguir essa questão cultural do seu
país e para isso, é necessário fazer uma faculdade, o que o permitiria viver “bem” no
Haiti.
Acreditamos que pelo aluno haitiano estar imerso na cultura e língua
brasileira, torna-se possível observar questões sobre sua própria cultura e
identidade, pois segundo Grigoletto (2001, p. 138) o próprio processo de
aprendizagem de uma língua estrangeira propicia o estranhamento, já que o contato
com a nova língua e cultura causa o retorno do olhar sobre si mesmo e sobre a sua
cultura. Esse movimento de retorno instaura o espaço da diferença, significando que
a própria representação de si é afetada pela comparação com o outro (o estrangeiro
ou a língua estrangeira).
Assim, o aluno ao responder o questionamento explicando como é no seu
país, passa a refletir e se mostra preocupado em seguir o enredo vivido no Haiti
objetivando retornar ao lugar de origem para poder realizar a inscrição social que lhe
é imposta que no caso é ser o responsável por “trabalhar para cuidar de sua família”.
Na pergunta sobre como o aluno acredita que o brasileiro o vê, o entrevistado
responde:
SA1: boa questão... tem ( ) o jeito diferente... tem pessoa que me vê como
pessoa que não sabe nada::: que não tem educação... quando ele - - se
eu fui no emprego eu manda pra trabalhar... me dão folha pra preencher - -
quando ele vê eu escrever assim - - ele você sabe escrever? S:::im porque
eu tenho muita facilidade pra aprender a língua... e (ainda) quanto tempo
você tem aqui? quando eu falo ele - - oh você aprende muito...

Assim, percebemos que o aluno nos conduz a entender que há momentos em


que sofre preconceito como observamos na frase “tem pessoa que me vê como
pessoa que não sabe nada”. No entanto, quando o aluno foi perguntado se
considera ser uma pessoa excluída, ele responde que não.
Ou seja, há a denegação de que seja excluído, assim, de acordo com
Indursky (1990, p. 118) “na teoria psicanalítica, por meio da negação, o sujeito pode
mascarar aquilo que, por ter sido censurado pelo superego e recalcado no
inconsciente, não lhe é facultado dizer". Ou, se preferirmos seria através da

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denegação que o sujeito diz sem, de fato, dizer, apresentando-se dividido entre seu
desejo de dizer a sua necessidade de recalcar. E a denegação possibilita a
verbalização dessa divisão, pois o sujeito, ao formular o recalcado negativamente,
154
pode expressá-lo sem, contudo, admiti-lo.
Para Sawaia (2001, p. 9) “a exclusão é processo complexo e multifacetado,
uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É um
processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte
constitutiva dela”.
Quando perguntado o que acha da Língua Portuguesa, o sujeito haitiano
responde:

SA2: para mim português não é TÃO::: difícil... porque eu já sabia faLA:
espanhol... o espanhol e o português é muito parecidos... é filha e mãe...
mas são diferentes... é filha e mãe... a mãe vai ser mais velha néh:::... pode
ser até parecido muito... é essa a diferença, por isso para mim o português
não é tão difícil... o problema é esse... quem já fala espanhol e fala BEM o
espanhol... no momento em que vai falar português... vai querer entrar
palavras espanholas... o que é normal porque é muito parecido (...)

Assim, notamos que ao considerarmos o Português como uma língua


estrangeira, o fato do aluno que já dominar o idioma espanhol torna a aprendizagem
da língua portuguesa mais fácil.
Outro aluno, ao ser perguntado a mesma questão, responde:

SA3: difícil... não vou falar... porque eu não fui pra escola... eu não
especializei em nenhum lugar... mas eu estou falando português agora em
menos de três anos

Acreditamos que pelo motivo do aluno haitiano estar imerso na língua e


cultura brasileira, torna-se possível observar questões sobre sua própria cultura,
pois, segundo Grigoletto (2001, p. 138), o próprio processo de aprendizagem de
uma língua estrangeira propicia o estranhamento, já que o contato com a nova
língua e cultura causa o retorno do olhar sobre si mesmo e sobre a sua cultura. Esse
movimento de retorno instaura o espaço da diferença, significando que a própria
representação de si é afetada pela comparação com o outro (o estrangeiro ou a
língua estrangeira).

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Neste contexto, a comparação é feita baseada nas línguas que os haitianos já


conhecem. Sendo assim, os idiomas português e espanhol são considerados
parecidos o suficiente para ajudar aos haitianos na comunicação básica tanto para
155
os que acabam de chegar como também para os que já moram no Brasil por algum
tempo, pois o espanhol, nesse caso, se torna uma importante base para os que para
os haitianos que já falam a língua portuguesa.

Considerações finais

Com a observação dessas entrevistas percebemos que, apesar do aluno


presenciar certo preconceito em seu dia a dia, talvez queira descrever essa situação
de forma não negativa, negando que seja excluído, mas entendendo que algumas
vezes vai enfrentar situações de preconceito.
Outra questão que diz respeito à sua identidade e, nesse momento talvez
indique seu sentimento de pertencimento, por estar em condição de diáspora por
motivos principalmente financeiras, há uma busca constante em conseguir
demonstrar que sua cultura e características sociais são muito parecidas com a
cultura brasileira, o tornando similar ao brasileiro e, portanto, demonstrando possuir
uma ideia que esteja incluído socialmente. O que indica, todavia, que o objetivo pelo
qual veio para o Brasil seja de caráter provisório, visto que o objetivo principal talvez
seja poder retornar para viver “bem” no Haiti.
Como hipótese de trabalho, partimos do pressuposto de que os sujeitos
haitianos estão em um contexto de marginalização e esteriotipação. Assim, talvez
seja possível identificar, pelos recortes selecionados dos entrevistados, que a
representação de identidade dos haitianos traz uma tentativa de ressignificação
identitária de uma forma geral na sociedade brasileira por parte dos sujeitos, os
quais buscam constantemente uma aprovação social, facilitada quando há o domínio
da língua vigente do país, no caso o Português. Por fim, podemos observar, por
meio das análises, que no discurso dos entrevistados perpassa a sua representação
de estrangeiro com muitas restrições sociais, na qual a língua tem papel
fundamental.

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artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social.
Petrópolis: Vozes, 2001.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Canção para minha morte, de Manuel Bandeira:


pelos caminhos da semiótica
“Canção para minha morte” by Manuel Bandeira: through the paths of 157

semiotics

Mateus Antenor Gomes (G-UFMS)


Simone Andrade Prado (G-UFMS)

RESUMO: Manuel Bandeira foi um poeta de demasiado destaque e importância no período


modernista, portanto são diversas as perspectivas existentes de se observar as obras deste poeta.
Diante desta da grandeza de Manuel Bandeira enquanto poeta, objetivou-se no presente trabalho
analisar a obra Canção para minha morte com o intuito de compreender a construção do sentido
poético. Para tanto, utilizou-se a teoria semiótica de linha francesa como aporte teórico, sendo o
percurso gerativo de sentido a metodologia de análise selecionada para compreender as construções
complexas que revestem o sentido poético. Deste modo, constata-se que Canção para minha morte,
de Manuel Bandeira se aproxima, na construção do sentido, de alguns preceitos referentes à estética
romântica.

PALAVRAS-CHAVE: Manuel Bandeira; Semiótica; Percurso Gerativo de Sentido.

SUMMARY: Manuel Bandeira was a poet of too much emphasis and importance in the modern
period, so there are many existing perspectives to observe his works. In view of this greatness of
Manuel Bandeira as a poet, this paper aimed in the present study to analyze the work “Canção para
minha morte” in order to understand the construction of the poetic meaning in it. For this, we used the
semiotic theory of the French School as the theoretical tool to verify the generative path of meaning to
understand the complex buildings lining of the poetic sense. Thus, it appears that “Canção para minha
morte” approaches some precepts of the romantic aesthetic in its building of meaning.

KEYWORDS : Manuel Bandeira ; Semiotics; Generative Path of meaning.

INTRODUÇÃO

O objetivo da presente pesquisa consiste em analisar o poema Canção para


minha morte, de Manuel Bandeira, a fim de desvendar como o sentido é construído
no texto poético. Para tanto foi empregada a teoria semiótica francesa, que é um
ramo da linguística, para mapear a construção do sentido no poema em seus
diversos níveis de significação e construção, sendo, desta forma, utilizado o
percurso gerativo de sentido como método, visto que o poema apresenta uma
elaboração complexa que reveste o sentido.
Assim, para alcançar tais metas, esta pesquisa se dividiu em três etapas,
organizadas hierarquicamente e sistematicamente, sendo-as: 1) breve descrição do

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projeto estilístico do poeta Manuel Bandeira, com intuito de auxiliar na interpretação


do corpus da presente pesquisa; 2) delimitação dos aportes teórico-metodológicos
utilizados para a análise; e 3) análise, seguindo a teoria e a metodologia proposta
158
pela semiótica greimasiana, do poema Canção para minha morte, de Manuel
Bandeira.

Manuel Bandeira: projeto estilístico

Manuel Bandeira, com uma ampla produção bibliográfica, é um nome de


grande relevância na história da literatura brasileira, essencialmente do período
modernista. Sem participação direta na execução da Semana de Arte Moderna,
Bandeira foi, entretanto, essencial na constituição da estética modernista, pois
exerceu forte influência na produção artística de outros autores.
O projeto estilístico de Bandeira se delineia, de certa forma, a partir de um
lirismo que resulta das experiências vividas pelo poeta, principalmente devido à
descoberta de uma tuberculose durante a juventude. Portanto, desde a juventude –
período em que surgiram as primeiras aspirações poéticas – o poeta conviveu com a
possibilidade da morte. Assim, foram compostos diversos poemas que abordavam a
morte como temática, tendo um ritmo desacelerado e lírico e apresentando-se como
um “discurso utópico” (FIORIN, 2012, p. 153.), sendo, entre outros, exemplos claros
disto Vou-me embora para Pasárgada e Testamento.
Além disto, Manuel Bandeira foi um dos precursores do verso livre no Brasil,
no entanto esta forma de versificação não predominou desde as primeiras obras,
sendo adotada a métrica livre a partir da obra Carnaval. (JARDIM, 2011, p. 39.).
Desta forma, constata-se o percurso traçado pelo poeta durante a sua constituição
enquanto artista moderno, ou seja, tem-se uma evolução profissional: o poeta
iniciou, na literatura, atrelado à estética parnasiano-simbolista e aderiu,
posteriormente, ao Modernismo, chegando, portanto, ao amadurecimento poético.
Nesta perspectiva, Bandeira constituiu um projeto estético de grande
originalidade e bastante diversificado, possibilitando encontrar-se em cada obra um
aspecto novo que, no entanto, mantém a coerência com o todo da obra do poeta.
Versificação livre, lirismo demasiado e o tratamento espontâneo das diversas

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Anais

temáticas levaram a consagração do poeta, garantindo-lhe lugar de destaque no


cânone da literatura brasileira.

Percurso gerativo de sentido: metodologia 159

O percurso gerativo de sentido é, segundo José Luiz Fiorin, uma sucessão de


patamares que mostram, durante a análise de diversos tipos de textos, como o
sentido é construído e como deve ser abstraído no momento da leitura. No entanto,
para isto, o percurso utiliza três níveis de leitura: fundamental, narrativo e discursivo,
que vão do mais complexo e abstrato ao mais simples. (FIORIN, 2001, p. 17).
Na semântica do nível fundamental a leitura do texto se ocupa em “determinar
a oposição ou as oposições semânticas a partir das quais se constrói o sentido do
texto”. (BARROS, 2000, p. 14). Desta forma, é preciso encontrar as categorias
contrárias que servem de base para consolidação do significado que o texto
expressa. Essas categorias podem se manifestar como eufóricas ou disfóricas de
acordo com cada texto, por exemplo: morte e vida são normalmente taxadas como
disfórica e eufórica, respectivamente, entretanto, em contextos bem específicos,
como em casos terminais de câncer, essa valoração pode se modificar.
Já na sintaxe fundamental ocorrem os processos de negação e asserção. Isto
é, parte-se de um determinado ponto (“a”), depois se nega esse ponto (“não-a”) e,
enfim, afirma-se outro ponto (“b”). (FIORIN, 2001). É, portanto, delineado um
percurso na sintaxe fundamental que parte da afirmação para negação, chegando à
asserção.
“No nível das estruturas narrativas, as operações da etapa fundamental
devem ser examinadas como transformações operadas por sujeitos.” (BARROS,
2000, p. 18). Assim, em sua sintaxe, pode se consolidar dois tipos de enunciados:
de estado – que representam a relação de junção do sujeito com um objeto,
podendo ser de conjunção e disjunção; e de fazer – que representam as mudanças
no estado de junção durante a narrativa, portanto o sujeito muda de um estado
juntivo para outro: conjunção-disjunção (sendo um enunciado de privação) ou
disjunção-conjunção (sendo um de liquidação da privação).
As narrativas de enunciado de fazer se estruturam sobre um paradigma:
manipulação, competência, performance e sanção. A manipulação é quando um

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sujeito (destinador) tenta convencer outro (destinatário) a agir de determinado modo.


Tem-se quatro tipos de manipulação mais comuns: tentação (oferece-se uma
recompensa ao destinatário), sedução (por meio de um elogio das competências do
160
destinatário), intimidação (por meio de um ameaça) e provocação (através da
desvalorização das capacidades do destinatário) (FIORIN, 2001). A segunda etapa,
a competência, corresponde à aquisição do destinatário do querer, dever, saber e
poder fazer. Estas competências podem ser adquiridas por meio de uma doação
(outro sujeito dá as competências ao destinatário) ou por vias próprias (o
destinatário cria essas competências). A performance corresponde a fase de
transformação dos estado de junção, portanto é central na narrativa. A sanção, a
última etapa, é o momento em que o destinatário é ou não recompensado pela sua
performance; assim, existem sanções positivas e negativas, porém, por outro lado,
as sanções podem ser cognitivas.
Já na semântica narrativa, estuda-se os objetos modais e os objetos de
valor. Os primeiros dizem respeito a objetos necessários para aquisição de outros
objetos (de valor); os segundos contêm um final em si mesmo. Os modais
correspondem às competências – querer, dever, saber e poder – necessárias para
realização da performance. Já os de valor, correspondem aos resultados
conquistados/adquiridos por meio da performance.
No nível discursivo, por sua vez, as formas significativas serão enquadradas
em um meio de expressão específico e em coerência com o sentido, isto é, “as
formas abstratas do nível narrativo são revestidas de termos que lhe dão
concretude”. (FIORIN, 2001, p. 29). Assim, neste nível, devem ser analisadas as
configurações dos percursos figurativos (encadeamento de figuras que produzem
determinado tema), dos percursos temáticos (encadeamentos de temas que
consolidam determinado sentido), bem como a isotopia criada pelo encadeamento
coerente tanto das figuras como dos temas.

Analise do corpus

Bem que filho do Norte,


Não sou bravo nem forte.
Mas, como a vida amei
Quero te amar, ó morte,

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– Minha morte, pesar


Que não te escolherei.

Do amor tive na vida


Quanto amor pode dar: 161
Amei, não sendo amado,
E sendo amado, amei.
Morte, em ti quero agora
Esquecer que na vida
Não fiz senão amar.

Sei que é grande maçada


Morrer, mas morrerei
– Quando fores servida –
Sem maiores saudades
Desta madrasta vida,
Que, todavia, amei.
(BANDEIRA, 2001).

Nível fundamental

No nível fundamental, portanto, deve-se “determinar a oposição ou as


oposições semânticas a partir das quais se constrói o sentido do texto.” (BARROS,
2000, p. 14). No caso do poema de Manuel Bandeira, a oposição semântica base da
significação é Vida vs. Morte, ou seja, a construção do sentido expresso pelo poema
é delineada a partir deste jogo de contrastes nas diversas partes do texto.
Na primeira estrofe do poema, a categoria semântica Vida é demarcada
como eufórica (“como a vida amei”,), enquanto a categoria semântica Morte é
caracterizada como disfórica (“pesar/ Que não te escolherei.”) para o actante. Assim,
a palavra pesar adquire, na construção frasal, função de conjunção subordinada
concessiva, pois marca a oposição da oração subordinada em relação à oração
principal, ou seja, essa oposição, caracterizada pela conjunção, delineia a imposição
da morte ao actante. Por meio da observação das categorias tímico-fóricas,
depreende-se, nesta primeira etapa, que o actante-narrador, diante da morte
evidente, atribui valores negativos a esta categoria semântica pelo medo do novo –
o desconhecido.
Entretanto, no desenvolvimento do poema, há uma troca, entre Vida e Morte,
dos valores eufórico e disfórico, pois, na segunda estrofe, com a afirmação do eu-
lírico da falta de correspondência no amor que passara (“Do amor tive na vida/

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Quanto amor pode dar:/ Amei, não sendo amado”), a categoria semântica Vida
torna-se disfórica. Já a categoria semântica Morte torna-se eufórica por significar a
possibilidade de um fim deste sofrimento causado pelo não-amor (“Morte, em ti
162
quero agora/ Esquecer que na vida/ Não fiz senão amar”.). Desta forma, diante do
objeto de valor investido durante a vida – o amor – e a disjunção com ele o actante-
narrador entra em estado de disforia. Por outro lado, a morte se torna a possibilidade
futura, ou seja, é um meio para superação do amor não correspondido e para,
portanto, entrar-se em conjunção com um novo objeto de valor – isto é, o
esquecimento de toda a decepção amorosa, advinda da disjunção. Enfim, a
conjunção, proporcionada pela morte, com o esquecimento (objeto de valor) da
disjunção com o objeto de valor (amor) vivida durante a vida.
Na terceira estrofe do poema de Bandeira, a categoria semântica morte
mantém-se eufórica, pois o poeta apresenta conformação diante da morte evidente
(“Sei que é grande maçada/ Morrer, mas morrerei.”) e a categoria Vida ainda é
disfórica, pois é taxada como “madrasta”, termo que na tradição ocidental soa
pejorativamente (“Desta madrasta vida”). Desta maneira, o actante-narrador
confirma o investimento semântico no objeto de valor – esquecimento – como forma
de superação do estado disfórico atual.
Utilizando-se dos pressupostos da sintaxe fundamental, percebe-se, na
primeira estrofe do poema, que o actante encontra-se em conjunção com a vida,
demarcando um estado inicial de euforia. No entanto, no desenvolvimento da
estrofe, a conjunção com a vida é interrompida pela negação de seus valores, ou
seja, é estabelecido um estado de não-vida/não -euforia. Por fim, é consolidado o
percurso com a asserção para a morte e o estabelecimento da disforia.
Como se ressaltou anteriormente, nas duas últimas estrofes as categorias
tímico-fóricas se invertem entre vida e morte, assim, estabelece-se um novo
percurso: o actante-sujeito encontra-se em conjunção com a vida e, no entanto, em
estado de disforia devido à atmosfera construída pelo poema; por meio de um
processo de negação, é estabelecido um estado de não-vida (não – disforia); e, no
final, por intermédio de uma asserção, chega-se à morte (euforia) – elemento que,
entretanto, não é alcançado na narrativa, ficando pressuposto para um futuro
próximo.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Nível narrativo

No poema Canção para minha morte, de Manuel Bandeira são observados


163
dois objetos de valor distintos: o amor e o esquecimento. Cada um destes objetos
mantém uma relação de correspondência com um dos polos da oposição semântica
sobre a qual o sentido do texto é edificado, sendo, portanto, amor e esquecimento
correspondentes à vida e morte, respectivamente.
Assim, sendo um simulacro da categoria semântica morte, o objeto de valor
esquecimento representa a negação do objeto de valor amor, pois, devida a
disjunção circunscrita entre o actante-narrador e o objeto-amor, o objeto-
esquecimento surge como a possibilidade de superação do estado juntivo anterior
(mesmo sem haver a junção entre sujeito e amor). Esquecimento, deste modo, é o
objeto em que está investido o valor da esperança da superação do sofrimento –
causado pela disjunção com o objeto de valor amor – vivido no passado.
Há, então, um objeto de valor subscrito para cada categoria semântica em
oposição; portanto, cada objeto representa uma vertente para a cisão temporal
existente entre passado e futuro. O amor é o objeto da busca do sujeito em um
período passado (“amei, não sendo amado”), porém não acontece a conjunção entre
o sujeito e o objeto de sua busca, ou seja, o estado juntivo para com o objeto é de
disjunção durante toda a narrativa.
Já o esquecimento é simulacro de uma possibilidade juntiva futura (“Morte,
em ti quero agora/ Esquecer que na vida/ Não fiz senão amar”), pois o actante só
será contemplado com a junção com este objeto de valor no momento em que
morrer (fato que não ocorreu no passado tampouco no presente, mas que só poderá
ocorrer no futuro). Entretanto, o esquecimento (objeto de valor do futuro) do
sofrimento vivido pela disjunção com o amor (objeto de valor do passado) é uma
categoria que não se concretiza na narrativa, ficando resguardado para o futuro
pressuposto, portanto constata-se mais um estado de disjunção com outro objeto de
valor.
Na relação com os objetos, portanto, o actante-narrador encontra-se em
estado de disjunção durante toda a narrativa. No desenvolvimento da narrativa não é
apresentado nenhuma mudança no estado juntivo do sujeito com os objetos (estava

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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e termina em disjunção com o amor; estava e termina em disjunção com o


esquecimento), sendo assim o poema se caracteriza como um enunciado de estado.

Nível discursivo 164

No nível discursivo o poema apresenta uma temática voltada para o


sofrimento do enunciador pela não correspondência do amor durante a vida. Assim,
é construído no poema um percurso temático composto por temas que remetem,
direta ou indiretamente, à decepção amorosa, ocasionado pelo amar sem ser
amado.
Os temas são compreendidos como um “investimento semântico, de natureza
puramente conceptual, que não tem referente no mundo real.” (FIORIN, 2001).
Assim, os temas funcionam como determinadas “categorias que organizam,
categorizam, ordenam os elementos do mundo real.” (FIORIN, 2001). Nesta
perspectiva, os temas serão determinada interpretação ou análise, a partir do ponto
de vista assumido pelo enunciador, de algum objeto que existe na realidade.
No caso do poema aqui analisado, portanto, o enunciador utiliza do texto
poético para transmitir uma interpretação específica da consternação causada pelo
amor não correspondido. Neste sentido, o poema leva o tema da decepção amorosa
para vias de comparação da vida e da morte (como já foi explanado no nível
fundamental), sendo a vida representante do espaço onde a decepção amorosa
ocorre e, por outro lado, a morte representa a isenção, fuga, livramento deste
sofrimento.
“Do amor tive na vida/ Quanto amor pode dar”, ou seja, o actante-narrador
aponta o amor que ofereceu para os outros durante a vida, entretanto, no verso
seguinte, esse amor é caracterizado pela não correspondência, isto é, o amor não
foi reciproco: “Amei, não sendo amado”.
E, a partir da não correspondência do amor, apresentada na categoria
semântica vida, surge, posteriormente, na categoria semântica morte, o desejo de
esquecimento e de fuga das consequências disfóricas provocadas pela decepção
amorosa: “Morte, em ti quero agora/ Esquecer que na vida/ Não fiz senão amar.”.
Na última estrofe, é demarcado novamente o descontentamento do actante
para com a vida, resultante da consternação causado pelo amor não correspondido

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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(“Sem maiores saudades/ Desta madrasta vida”). A palavra madrasta, normalmente


categorizada como substantivo, neste caso funciona como um adjetivo, pois atribui
uma característica a outro nome. Assim, vida adquire características próprias de
165
madrasta, passando as duas, por meio da expressão “madrasta vida”, a representar
todo ressentimento do narrador para com a vida, sendo vida, então, caracterizada
como um antisujeito. Percebe-se que existem “traços de intersecção” (FIORIN, 2001)
entre duas leituras possíveis para a palavra madrasta, tem-se uma metáfora neste
caso.
Portanto, constata-se que a o ressentimento, consternação e desejo de
esquecer e/ou fugir são construções temáticas que levam a consolidação do
percurso temático da decepção amorosa, isto sempre acerca da oposição semântica
– central na construção do texto – vida vs. morte. Deste modo, é sempre imprimido
traços semânticos de melancolia, mágoa e resignação para a vida por ter abrigado a
desilusão amorosa e, por outro lado, para a morte são destinados traços semânticos
de escapismo, fuga e esperança de superação; ou seja, é construída uma isotopia
que garante a linearidade e a coerência do texto.

CONCLUSÃO

Os valores tímico-fóricos investidos, no desenvolvimento do poema, em vida


(terminando como categoria disfórica no poema devido ao amor não correspondido)
e morte (terminando como categoria eufórica, por significar esperança do
esquecimento do desamor recebido durante a vida), a disjunção com o objeto de
valor amor (representado pela categoria semântica vida) e a eleição do novo objeto
de valor esquecimento (representado pela categoria semântica morte) e o percurso
temático da decepção amorosa, permitem, destarte, enquadrar o poema em
preceitos da estética romântica. Pois é construída uma atmosfera melancólica em
torno da relação amorosa, é elucidada uma decepção amorosa por parte do actante-
narrador diante do amor não correspondido e, ainda, a morte surge como única
forma de fugir dos tormentos ocasionados pelo amor. Estas temáticas são revestidas
por enunciado de estado (não há transformações nos estados juntivos),
consolidando os traços românticos existentes no poema de Bandeira tanto na
temática como na estrutura.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Referências:

166
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2000.

FIORIN, José Luiz. Elementos para análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2001

FIORIN, José Luiz. Da necessidade da distinção entre texto e discurso. In: BRAIT,
Beth; SOUZA-e-SILVA, Maria Cecília (orgs.). Texto ou discurso. São Paulo:
Contexto. 2012. p. 145-165.

GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, 1983.

JARDIM, Mara Ferreira. Manuel Bandeira e a poesia modernista. Letras de Hoje. v.


46, n. 2, 2011, Porto Alegre. p. 37-42.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Correção e parentetização: estratégias de


construção textual em língua falada no discurso
religioso 167

Correction and bracketing: a textual strategies in the construction language


spoken in religious discourse

Virginia Maria Nuss (UEM-PG)

RESUMO: O propósito deste trabalho é verificar como as inserções parentéticas e as correções


contribuem para a construção textual em elocuções discursivas religiosas. Para isso, realizaram-se
três entrevistas com pastores da região noroeste do Paraná, as quais foram transcritas e analisadas.
Com base nas propostas de Jubran (2006) e Castilho (2002), entre outros, analisou-se o corpus
destacando as ocorrências parentéticas constantes nas transcrições, considerando a classe, o foco e
a função; os tipos e funções interacionais de correção; e como essas realizações contribuíram na
estruturação textual. Os resultados obtidos demonstram, sobretudo, que as inserções parentéticas,
enquanto estratégia de construção textual, é um recurso linguístico que possibilitam uma explanação
mais clara e eficaz do conteúdo tópico, assim como as correções atuam como forma de
reestruturação que visa uma intercompreensão mais satisfatória do conteúdo enunciado.

PALAVRAS-CHAVE: Correção e Parentetização. Estratégias de construção textual. Língua Falada.

ABSTRACT: The purpose of this work is to check how parenthetical inserts and corrections
contributing to the textual construction in religious discursive utterances. For this, there were three
interviews with pastors in the Northwest region of Paraná, which were transcribed and analyzed. On
the basis of the proposal of Jubran (2006) and Castillo (2002), among others, the analyzed corpus
highlighting the parenthetical in the transcripts occurrences, where as the class, the focus and
function; kinds and interactional functions of correction; and how these accomplishments have
contributed textual structure. The results obtained demonstrate, above all, that parenthetical inserts,
while textual construction strategy, is a language feature that enables a clearer and more effective
explanation of the topic content, as well as the Corrections Act with a form of restructuring aimed at
mutual understanding more satisfactory from the content.

KEYWORDS: Correction and bracketing. Textual construction strategies. Spoken Language.

Introdução

Algumas formas de explicitação verbal oral são muitas vezes vistas como
simples desvios, erros, indecisão do falante, etc. No entanto, muito do que se pode
perceber na interação oral, também acontece na escrita, mas de modo mais
discreto, podendo ser atenuado devido à possibilidade de, ao escrever, manter em
seu texto escrito apenas o “resultado final”. Já na interação, certas manifestações
In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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não podem ser omitidas, apagadas, mas podem ser reformuladas, tanto quanto na
escrita.

Em seus estudos da perspectiva-interativa, Jubran (2006) pôde demonstrar 168

bastante detalhadamente como ocorrem tais processos na língua falada. Os


processos de construção textual, obviamente, não se resumem aos aqui
apresentados. No entanto, dada a extensão de tais estudos, há a necessidade de
um recorte teórico, dos quais houve, ainda, a pretensa intenção de verificar duas
estratégias de construção textual, quais sejam a correção e a parentetização. Tai
intenção se baseia no fato de poder demonstrar que estas estratégias não ocorrem
isoladamente, mas são fortemente imbricadas.

A proposta de análise reside na possibilidade de demonstrar como estes


recursos atuam linguística e pragmaticamente na interação verbal, não se resumindo
apenas a desvios (no caso da inserção parentética) e muito menos a simples
reconhecimentos de necessidade de adequação, ou ainda, “erros” que podem
acontecer durante este processo, no caso da correção. A visão minimalista de
algumas estratégias de produção textual podem, por muitas das vezes, reduzir a
riqueza de tais recursos, opacizando a verdadeira função destes recursos. Há
também que se considerar que cada âmbito social apresenta formas e funções
diferenciadas na utilização destas estratégias, por isso a importância de situar
socialmente o tipo de produção textual analisada.

Desta forma, pretende-se, nesta proposta de análise, verificar as ocorrências,


possíveis intenções e diferentes formas de utilização destas estratégias nos textos
produzidos por meio de entrevistas com padres e pastores de diferentes
denominações, todos com formação superior. De modo que é necessário definir que
o corpus analisado trata-se de um corpus de elocução formal, simétrica e de cunho
religioso.

1. A língua falada e as estratégias de construção textual

Toda a atividade discursiva e todas as práticas linguísticas se dão em textos


orais ou escritos com a presença de semiologias de outras áreas, como a
gestualidade e o olhar, na fala, ou elementos pictóricos e gráficos, na
escrita. Assim, as produções discursivas são eventos complexos

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constituídos de várias ordens simbólicas que podem ir além do recurso


estritamente linguístico. Mas toda nossa atividade discursiva situa-se,
grosso modo, no contexto da fala ou da escrita (MARCUSCHI, 2007, p. 12).

E é considerando, mais especificamente, os contextos que envolvem 169

situações de uso oral da linguagem que este trabalho se situa. A fala ocorre em
grande quantidade durante o cotidiano. As concepções teóricas deste trabalho
partem do conceito de continuum entre fala e escrita, tal como exposto pelas teorias
da Linguística Textual e da perspectiva Textual interativa, entre outras. Assim, não
se considera estas modalidades da língua como estanques, mas como modos
diferentes de manifestação linguística, em que, por um lado se tem uma linguagem
oral tão planejada e forma, que pode se assemelhar à escrita, e por outro, uma
escrita tão informal e não planejada que possa se assemelhar à oralidade, como
palestras acadêmicas no primeiro caso, e bilhetes, no segundo.

Há de pensar também que não há apenas a fala e a escrita, mas situações de


construção verbais que se situam no meio destes dois polos, que não se situa nem
no polo formal nem no informal (escritas e falas “normais” – não (in)formais - por
assim dizer), e ainda os tipos mistos (como os textos de prompts de jornais
televisivos).

Ressalta-se que o ponto primordial que se observa em relação ao continuum


fala-escrita aqui, é, sobretudo, o fato de que a língua escrita é resultado de um
processo, e a língua falada é processo. (KOCH, 2006). Deve-se, portanto,
considerar que muitas vezes o que é visto como “imperfeições” comunicativas na
oralidade, na verdade faz parte de um processo que ocorre similarmente na língua
escrita – a diferença e que na escrita a omissão destas ocorrências é mais facilitada
que na oralidade.

Acerca das estratégias de construção textual, Jubran e Koch (2006)


apresentam a repetição; a correção; a o parafraseamento; a parentetização; a
tematização e a rematização; e a referenciação. Há também algumas características
intrínsecas da fala neste processo, quais sejam hesitação e interrupção.

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Pensando a respeito de tais estratégias como parte do processo de


construção textual, e na gama de processos formulativo-interacionais que fazem
parte de sua produção, é interessante ressaltar que
170

Essa visão integrativa entre estruturas e processamento de estruturas


textuais leva a admitir não só regularidades referentes à estruturação
textual, assim como princípios que norteiam o desempenho verbal – o que
significa reconhecer a existência de regras que caracterizam a organização
do texto e a sistematicidade da atividade discursiva (JUBRAN, 2006, p. 31).

Com isso ressalta-se, no tocante à língua falada, que a construção textual não
se fixa unicamente em estruturas de regras que “vigoram no nível da frase”, ou seja

Enquanto unidade sociocomunicativa globalizadora, o texto apresenta


propriedades de coesão e coerência, fundadas numa ordem própria de
relações constituvas, diferenciadas das que se estabelecem no nível frasal.
No caso do texto falado, essas relações ganham feitios específicos, devido
à sua natureza emergente, de produção momentânea e dinâmica, em uma
situação concreta de interlocução: o texto ancora-se fortemente em dados
pragmáticos que interferem em sua constituição (JUBRAN, 2006, p. 31).

Neste caso, é importante considerar que os textos analisados surgiram de


uma situação de comunicação formal, uma vez que se trata de entrevistas,
realizadas em lugares específicos nos quais os entrevistados tinham conhecimento
da finalidade destas entrevistas (análises linguísticas). Tais textos, mesmo
momentâneos, tiveram influência da situação pragmática. Este fato não anula, no
entanto, o caráter dinâmico e espontâneo da produção textual oral. Todavia, chama
a atenção para as diferentes formulações e utilizações das estratégias analisadas,
conforme tais situações.

Em relação à correção, trata-se de um processo que comumente é visto como


uma simples reformulação, muitas vezes truncada na oralidade, com o objetivo de
“arrumar elementos em sua ordenação sintática e gramatical”, tendo como
parâmetro a língua escrita (concordâncias nominais e de gênero, por exemplo).
Todavia, tal processo de formulação linguística envolve critérios muito mais amplos e
significativos do ponto de da organização textual e do próprio ato interativo.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Ao falar, o locutor não está apenas elaborando uma sequência verbal,


concomitantemente, está realizando uma atividade intencional com propósitos
comunicativos. O trabalho que ele realiza neste processo se manifesta pelas marcas
171
deixadas em sua fala (JUBRAN, 2006).

Formular um texto não significa simplesmente deixar ao interlocutor a tarefa


da compreensão, mas significa deixar, através das marcas, pistas para que
ele, interlocutor, se esforce por compreendê-lo, o que faz com que a
produção de texto falado seja ação e interação (JUBRAN, 2006, p. 257).

As correções se inserem, portanto, neste contexto de interação e ação verbal,


visando não apenas uma “autocorreção” do locutor, mas também para instaurar a
compreensão do conteúdo textual. Assim, o falante, a se ver em uma dificuldade de
formulação/linearização, ou de encontrar vocábulos adequados para a continuidade
textual, acaba incorrendo nas correções, muitas vezes associadas às pausas como
a hesitação, ou ainda elaborando paráfrases e repetições do conteúdo (JUBRAN,
2006).

A correção pode ser retrospectiva ou prospectiva. No primeiro caso, a


correção é realizada acerca de um conteúdo já dito verbalmente. Ocorre um
problema de formulação no enunciado fonte (EF), e o falante realiza a correção no
enunciado reformulador (ER). No segundo caso, essa reformulação pode ocorrer
como forma de paráfrase, inclusive de parênteses. No exemplo um temos dois
exemplos de correção retrospectiva, marcadas por um sublinhado, em que os
termos inseridos entre parênteses no texto indicam o enunciado fonte e o enunciado
reformulador.

(01) ..eh..na verdade..a própria palavra de Deus..


..(que)..como tudo que nós fazemos é pautado (EF) na palavra de Deus...(ER) ou
seja..na bíblia..
(EF) ..quem convence/ (ER) quem nos convence..
..quem convence o ser humano do seu pecado...da justiça e do juízo...é o espírito santo..

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

No primeiro exemplo de enunciado fonte, há uma correção no sentido


retrospectivo, corrigindo a terminologia utilizada no enunciado formulador por um
termo similar de uso mais comum. Trata-se de uma correção lexical (palavra de
172
Deus por bíblia), marcada verbalmente pela expressão ou seja. Outras expressões
bastantes comuns são: bom, aliás, digamos assim, ou melhor, em outras palavras,
etc.

Note que o movimento formulativo realiza o seguinte esquema, tal como


apresenta Jubran (2006, p. 258).

O mesmo movimento ocorre no segundo exemplo, em que há uma correção


semântico-pragmática, com o acréscimo de um termo para esclarecimento – (EF)
quem convence – (ER) quem nos convence.

No exemplo dois, o enunciado formulador parece não se apresentar muito


claro para o falante de acordo com a ideia que pretende transmitir, o que faz com
que ele corrija e reformule a sua fala, incorrendo em uma correção que pode ser
considerada como uma paráfrase.

(02)(EF) ..ela procura ser..assim..a mais coerente possível..não é?


..com..com o fundamento bíblico..né?
(ER)..ela..eh..procura assim..ah:..ah:...ser realmente uma igreja bíblica..fundamentada
na bíblia.. né?
..mas não..não de uma forma fundamentali:sta..né?

Neste exemplo, ocorre a correção prospectiva apontada por Jubran (2006, p.


261), e que a formulação linguística apresenta o seguinte movimento:

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

fundamento bíblico, dada a ambiguidade em com o fundamento bíblico, ele


reformula e diz que a igreja procura ser fundamentada na bíblia.
173

Há dois tipos de correção, a que revoga, invalida o que foi dito anteriormente
e a que retifica o que foi dito. Seriam as correções por infirmação e retificação,
respectivamente. Nos dois casos o que se percebe, são correções de retificação. Já
no exemplo três, há uma correção por infirmação, em que se anula o que já foi dito.

(03) ..quando diz que eles não deveriam comer da árvore do bem e do mal..e eles fizeram
suas próprias escolhas...
..foram enganados pela/pelo inimigo que disse:..oh... foi assim que Deus disse?

No (EF) tem-se foram enganados pela; e no (ER) há a correção do termo pela


por pelo, realizando uma correção de concordância, a qual anula o termo pela e
mantém como válido apenas o termo pela, que é compatível com a sequência
formulativa.

A correção possui marcas prosódicas, orientação de foco – como vimos no


exemplo dois, funções de interação, como no exemplo um, tendo sido observadas
todos estes critérios no momento da análise. Outra estratégia de construção textual
que apresenta funções e focos similares, e do qual trata também este trabalho, é o
parênteses.

Os parênteses, além destas características, dividem-se em diferentes classes,


focos e funções. A respeito do parêntese em caráter não-textual que possui a frase
de forma isolada para análise, Jubran (2006, p. 301) destaca que: “os parênteses
têm sido definidos como frases independentes [...], que interrompem a relação
sintática da frase na qual estão encaixadas”. Contudo, essa definição é de exclusivo
caráter sintático e se limita ao nível frásico, pois “[...] eles ocorrem no interior de uma
frase de estrutura sintática canônica, e essa estrutura não é afetada pelo enunciado
inserido”, sendo ainda que: “Não é o caso do texto falado, que tende a apresentar
caracteres de discurso não previamente planejado e que, por isso, muitas vezes
apresenta rupturas de estruturas canônicas”. (JUBRAN; 2006, p. 301).

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Breves desvios do quadro de referência tópica do segmento contextualizador


que não afetam a coesão da unidade discursiva dentro da qual ocorrem, pois não
promoveriam cisão do tópico em porções textuais nitidamente separáveis, visto que
174
a sua interação é momentânea e a retomada, imediata (JUBRAN, 1995, p. 345).

Para a autora, o parêntese se define basicamente pela introdução de


elementos presentes, no caso da LF, na interação entre quem fala e quem ouve e o
contexto de fala. E ainda, “as inserções parentéticas não podem ser consideradas
como desvios descartáveis do texto, porque a contextualização interacional do que
está sendo falado orienta a própria compreensão da fala” (JUBRAN, 2006, p. 305).

Tanto a introdução de informação e/ou desvios de tópicos quanto a retomada de


ideias se relacionam de duas maneiras: ou mais ou menos desviantes do tópico.

o desvio do tópico é menor quando o conteúdo do parêntese se volta para o


conteúdo do enunciado visando corroborá-lo, esclarecê-lo, diminuindo a
ênfase da situação comunicativa, e é maior quando demonstra uma
focalização maior no processo e no contexto enunciativo, contudo, não
deixa sem efeito o desenvolvimento do tópico, ou seja: nesses casos de
maior incidência das condições comunicativas no texto, é menor a
orientação dos parênteses para os elementos de centração tópica
(JUBRAN, 2006, p.325).

Ainda assim, Jubran (2006) reconhece que o grau de variações do desvio de


tópico ocorre em diversas escalas, sendo as duas acima citadas, dois extremos. A
partir dessas observações, Jubran (2006) apresenta uma taxonomia das relações
parentéticas em quatro grandes classes de parênteses, utilizando por critério o foco
de maior incidência de ocorrências de parentetização, sendo: (i) classe (a) -
parênteses focalizadores da elaboração tópica do texto; (ii) classe (b) - parênteses
com foco no locutor; (iii) classe (c) - parênteses com foco no interlocutor; (iiii) classe
(d) - parênteses focalizadores no ato comunicativo.

Quadro 01: Classes e funções dos parênteses – Jubran (2016, p. 321).

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Anais

175

Para cada grau de variação do desvio tópico, entende que á, de acordo com a
classe e a função deste desvio, que caracteriza uma inserção parentética, há
também uma função pragmática e discursiva. No exemplo quatro tem-se um
parêntese com foco no interlocutor, com a função de chamar a atenção do
interlocutor para um elemento do tópico, conforme trecho sublinhado, marcando a
quebra e a retomada de tópico por meio da repetição, conforme trecho em negrito..

(04) ..e ele foi subi:ndo..subi:ndo..


..vencendo a lei da gravidade e uma nuvem o ocultou...
..a gente acredita que essa nuvem é uma nuvem normal..
..uma nuvem o ocultou..

No exemplo cinco, há um parêntese com foco no locutor, manifestando sua


atitude em relação tópico, este parêntese se encontra na segunda linha em

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sublinhado. E no segundo trecho sublinhado, há uma inserção parentética com foco


no conteúdo tópico, visando um esclarecimento/explicação do termo ismo.

(05)...qualquer outra organização humana..ela vai te:r..seus preceitos 176


..mas..até aí..não existe..eu nunca prego religião..nunca prego a Assembleia de Deus..
..eu nunca prego cristianismo..mesmo porque esse ISmo..aí..é extremamente
negativo..né?
..ou..eh..ou o ismo denota exagero ou deformidade...
..então a gente não fala cristianismo..o que a gente fala é evangelho..
..então a gente prega o evangelho de Jesus..a vida de Jesus..evangelho do:: Se-NHOr
Je-sus Cris-to..

A maior recorrência de parênteses foi com foco no interlocutor e no tópico,


com diferentes funções. É perceptível, então, a forma como as relações parentéticas
possuem singularidades inerentes à fala, visando à construção tópica no ato
interativo. Não é possível a apresentação de um número vasto de exemplos, mas
espera-se que esta sucinta explicação tenha sido capaz de exemplificar as funções
e algumas das diferentes ocorrências de correção e de inserções parentéticas no
momento da formulação da língua falada..

Conclusões
Conclui-se que a correção como estratégia de construção textual em língua
falada, assim como os parênteses, possui funções interacionais, visando o
esclarecimento do conteúdo tópico e a compreensão do interlocutor. As recorrências
encontradas acerca da correção, incidem mais fortemente sobre a correção
prospectiva, o que respalda a ideia de que as correções não são aleatórias, e ambas
as estratégias apresentadas aqui denotam uma realização linguística com
intencionalidade do locutor, consciente ou inconsciente, de tornar o conteúdo textual
mais claro, reforçando a interação verbal.

Objetivou-se aqui demonstrar as diferentes utilidades da inserção parentética


e da correção. Demonstrando que o parêntese vai além de um simples desvio de
tópico, desproposital e irrelevante, e mais ainda, que ele não se constitui em uma
forma de funcionamento desnecessário e apenas desviante do tópico, mas que
esses desvios possuem suas funções específicas e por vezes essenciais na
compreensão desse mesmo conteúdo tópico do qual o parêntese se desvia ou

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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interrompe. Ao mesmo tempo em que a correção também representa uma estratégia


de interação e inteligibilidade do texto.

Ressalta-se ainda a capacidade de orientação que reside nestas estratégias, 177

as quais podem inclusive funcionar como um recurso argumentativo, no intuito de


fazer o interlocutor aderir a determinado conceito, uma vez que sua compreensão é
facilitada por meio destes recursos de construção textual.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Zilda Gaspar Oliveira de (2006). Correção. In: JUBRAN, Clélia Cândida Abreu
Spinardi & KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Gramática do português culto falado no
Brasil. Campinas: Editora Unicamp.

CASTILHO, Ataliba Teixeira. A língua falada no ensino de português. 4. Ed. – São


Paulo: Contexto, 2002. (Repensando o ensino).

JUBRAN, Clélia Cândido Abreu Spinard; KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. (Org.)
Gramática do Português Culto Falado no Brasil: Construção do Texto Falado.
Campinas: Ed. da Unicamp, 2006.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Especificidade do texto falado. In: ______ (Org.)
Gramática do Português Culto Falado no Brasil: Construção do Texto Falado.
Campinas: Ed. da Unicamp, 2006. p. 39-46.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; SOUZA E SILVA, Maria Cecília Pérez de. Atividades
de composição do texto falado: a elocução formal. In: CASTILHO, Ataliba de Castilho;
BASÍLIO, Margarida. (orgs.) Gramática do Português Falado. v. IV: Estudos Descritivos.
Campinas/ S. Paulo: Ed. Da Unicamp/ FAPESP, 1996. p. 379-410.

MARCUSCHI, Luiz Antonio; DIONÍSIO, Angela Paiva. Fala e escrita. 1. Ed. – Belo
Horizonte: Auntêntica, 2007.

NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática: história, teoria e análise, ensino. São
Paulo: Unesp, 2002. p. 71-89.

RODRIGUES, Angela Cecília de Souza. Língua falada e língua escrita. In: PRETI, Dino.
(org.) Análise de textos orais. São Paulo: FFLCH / USP, 1993. p. 13-32.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Diálogos formativos entre o MST e os novos


estudos do letramento implicados em um
dispositivo didático 178

Formative dialogue between the MST and the new literacy studies
involved in a didatic device

Bruna Carolini Barbosa (UEL-CAPES)


Orientadora: Profª. Drª. Ana Lúcia de Campos Almeida (UEL – PPGEL/PROFLETRAS)

RESUMO: As práticas escolares, em sua grande maioria, têm se desenvolvido em uma perspectiva
estruturalista da língua, em que o letramento é encarado como um fenômeno neutro, singular e
autônomo, ignorando o fato de que somos sujeitos históricos constituídos pela linguagem. Em
oposição a essa visão instrumental da língua, este trabalho baseia-se em uma concepção sócio-
histórica e ideológica da linguagem (BAKHTIN, 1995) vinculada à perspectiva dos Novos Estudos do
Letramento (STREET, 1984, 1993, 1995, 2005; GEE, 2000; KLEIMAN, 1995; BARTON & HAMILTON,
1998) e por meio da análise de um dispositivo didático elaborado pela professora de Língua
Portuguesa de uma escola de acampamento de reforma agrária, observar os diálogos presentes
entre as práticas de linguagem e o projeto pedagógico do Movimento. Este trabalho visa a contribuir
para o desenvolvimento de práticas de ensino caracterizadas pelos múltiplos letramentos e
diversidade sociocultural, as quais se revelam favoráveis aos alunos inseridos naquele contexto e
contextos similares.

PALAVRAS-CHAVE: Letramento ideológico. Sujeito sócio-histórico. Escola do campo.

ABSTRACT: School practices, for the most part, have developed into a structuralist view of language,
where literacy is seen as a neutral, singular and autonomous phenomenon, ignoring the fact that we
are historical subjects constituted by language. In opposition to this instrumental view of language, this
work is based on a socio-historical and ideological conception of language (Bakhtin, 1995) linked to
the perspective of the New Studies of Literacy (STREET, 1984, 1993, 1995, 2005, GEE, 2000;
KLEIMAN, 1995; BARTON & HAMILTON, 1998) and through the analysis of a didactic device
prepared by professor of Portuguese-Speaking land reform camp school, observe the dialogues
present between the language practices and the pedagogical project Movement. This work aims to
contribute to the development of teaching practices characterized by multiple literacies and
sociocultural diversity, which show favorable students entered in that context and similar contexts.

KEYWORDS: Ideological literacy. Socio- historical subject . School field.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Introdução

179
As práticas realizadas em salas de aula, em sua grande maioria, pretendem
capacitar os alunos para decodificar e sistematizar as formas linguísticas com base
em conteúdos que não relacionam-se à sua vida, meio social e interesses. Essas
práticas tomam a língua apenas como estrutura, ignorando o fato de que somos
sujeitos históricos constituídos pela linguagem. Trabalhos que encaram a língua
como sistema neutro têm se perpetuado nas práticas escolares, veiculando a ideia
de que através da alfabetização o indivíduo alcançará ascensão social e se livrará
das desigualdades sociais às quais estão condenados os não alfabetizados,
sustentando o mito do letramento (GRAFF, 1979, 1995).
Em contraposição à visão autônoma (STREET, 1984, 1993, 2010, 2014) de
ensino da língua e à concepção bancária de ensino (FREIRE, 1978), estudos
apoiados na visão sociointeracionista e nos novos estudos do letramento apontam
para a necessidade de se propor práticas de ensino que priorizem os usos sociais
da língua e as considerem para fins de estruturação dos currículos e seleção de
temas significativos ao contexto o qual estão inseridos os alunos (KLEIMAN, 2010).
Pensando especificamente no contexto ao qual se destinará essa pesquisa,
refletir sobre a questão do letramento torna-se ainda mais relevante, uma vez que a
escola situada em acampamento de reforma agrária é um espaço assumidamente
ideológico e organizado de acordo com uma pedagogia singular ao Movimento Sem
Terra em que se é indispensável um programa específico de letramento que não
apenas considere a língua como código e que não reproduza em seu currículo
escolar as práticas de uma escola urbana.
Pesquisas que investiguem e descrevam os eventos e práticas de
letramento no contexto da escola do campo fazem-se necessárias, pois com base
nas análises desses materiais é que se tornará possível pensar em um trabalho que
vá ao encontro dos interesses dos sujeitos inseridos nesse contexto e o
desenvolvimento de programas de ensino favoráveis aos mesmos.
Esta pesquisa busca investigar e refletir sobre as práticas de letramento
desenvolvidas e os significados que lhes são atribuídos no contexto da escola do

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Anais

campo situada em assentamento de reforma agrária. Para possibilitar a discussão


realizou-se uma pesquisa teórica/documental e uma de tipo etnográfico, para que, a
partir das considerações teórico-metodológicas obtidas na primeira fase, se discuta
180
e analise os eventos e práticas de letramento na comunidade e como os mesmos
(re)configuram-se na escola.
Diante do escopo teórico levantado durante a pesquisa teórica e
documental mostrou-se pertinente a organização do trabalho em três capítulos.
No primeiro fazem-se as considerações sobre as teorias dos Novos Estudos do
Letramento; no segundo capítulo apresenta-se, de forma breve, uma gênese
histórica do MST, sua Pedagogia e os documentos disponibilizados em sua
base nacional; o terceiro capítulo contempla a análise teórica, em que se busca
aproximar os Novos Estudos do Letramento à Pedagogia do MST e análise de
dados obtidos em pesquisa de campo. Por fim, as considerações finais
apontam possíveis contribuições para pesquisas na área da linguagem e da
educação do campo.

Objetiva-se realizar uma pesquisa sobre as práticas de letramento em um


acampamento e em uma escola de acampamento de Reforma Agrária ligada ao
MST. Para tanto, pretende-se observar as práticas de letramento implementadas no
cotidiano de um acampamento do MST situada na região norte do Paraná e,
posteriormente, como essas práticas refletem na escola situada no acampamento e
por fim, apontar os diálogos presentes entre os Novos Estudos do Letramento e o
projeto pedagógico do Movimento.

Metodologia

A pesquisa se desenvolve em um acampamento de Reforma Agrária situado


na região norte do Paraná com um vasto histórico de lutas por terra. A escola
itinerante funciona com a permissão do Conselho Estadual de Educação, aprovada
pelo parecer nº 102 do ano de 2003. O apoio técnico e pedagógico é feito por duas
escolas, as quais são chamadas “escolas bases”.
O trabalho se desenvolverá com base em perspectivas etnográficas “que
podem ajudar a compreender o letramento para tornar diferentes as políticas de

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Anais

educação” (STREET, 2010, p.40). Segundo o mesmo autor esse tipo de pesquisa
tem uma forma complexa e elaborada, porém a define como uma forma mais focada
“para estudar aspectos da vida diária e práticas culturais de um grupo social, tais
181
como suas práticas de letramento” (STREET, 2010, p.45). As análises seguirão o
viés da pesquisa qualitativa e interpretativista (MASON, 1996; MINAYO, 1993;
MOITA LOPES, 1994), em que o contexto é fator constitutivo dos significados
sociais.
A fundamentação teórica provém dos Novos Estudos do Letramento, que
priorizam e incentivam pesquisas em esferas diferentes da hegemônica, para além
da esfera acadêmica. A pesquisa se baseia, também, nos documentos que
embasam a Pedagogia do Movimento Sem Terra, bem como seus desdobramentos
em práticas escolares. Inicialmente, pretende-se sistematizar um diálogo teórico
entre as teorias do campo da linguagem e a teoria que contempla a pedagogia do
Movimento em seus pontos de convergência. Os pressupostos teóricos embasarão
a análise dos dados coletados em pesquisa de campo.

Constituição do Corpus

O corpus de uma pesquisa pode ser definido como “uma coleção finita de
materiais, determinada de antemão pelo analista, com (inevitável) arbitrariedade
com a qual ele virá trabalhar” (BAUER e AARTS, 2002, p.44) e deve atender aos
critérios de relevância, sincronicidade e homogeneidade, que, respectivamente,
estão relacionados à relevância dos materiais coletados de acordo com a temática,
ao período delimitado para a coleta de dados e categorização dos dados e seus
métodos de análise.
Atendendo ao critério de relevância, o corpus dessa pesquisa é composto
por i) dados primários: coletados na pesquisa de campo, a saber, planos de aula,
imagens, diários descritivos e entrevistas, e ii) dados secundários: documentos
norteadores à prática docente, bem como diretrizes pedagógicas do Movimento Sem
Terra, enumerados a seguir:
1. Manifesto das educadoras e dos educadores da Reforma Agrária ao
povo brasileiro (1997);

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Anais

2. Manifesto das educadoras e dos educadores da Reforma Agrária ao


povo brasileiro (2015);
3. Item 6 do tópico III do Programa Agrário do MST “Educação e Cultura”;
182
4. Item 7 do tópico IV do Programa Agrário do MST “A Educação do
Campo”
5. PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
6. Carta dos Sem Terrinha pela Reforma Agrária;
7. Caderno de Educação MST 3
8. Caderno de Educação MST4
9. Caderno de Educação MST 8
10.
Atendendo ao critério de homogeneidade, os dados serão analisados
de acordo com suas especificidades. A coleta de dados obedecerá o período
previamente delimitado de três meses. A seleção feita não esgota o tema, mas pode
ser um ponto de partida, uma contribuição para discussões futuras; trata-se de uma
amostra representativa não probabilística intencional, ou seja, apresenta aspectos
interessantes à pesquisa, selecionados de acordo com a conveniência da
problemática envolvida e definidos por critérios da pesquisadora.

Os Novos Estudos do Letramento

A alfabetização é vista como um processo de aquisição da escrita e ligada


ao processo de escolarização, pertencendo, portanto ao âmbito individual, enquanto
o letramento, por focalizar os aspectos sócio-históricos da escrita, é visto como algo
centralizado no âmbito social, tendo como foco de investigação não só as pessoas
alfabetizadas, mas também as pessoas não alfabetizadas que vivem em uma
sociedade organizada, fundamentalmente, por meio de práticas escritas.
Autores como Goody (1969), Olson (1977) e Ong (1982) sustentaram,
através de seus estudos, a visão dicotômica sobre oralidade e escrita. Essa grande
divisa atribuía à escrita características como raciocínio lógico, pensamento científico,
abstração, objetividade, descontextualização, analiticidade etc., enquanto a
oralidade era vista como algo primitivo. Essa visão está diretamente ligada à visão

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Anais

tradicional do letramento que associa a capacidade de ler e escrever ao progresso


social e econômico e ao desenvolvimento de processos cognitivos superiores nos
indivíduos.
183
Os Novos Estudos do Letramento trouxeram à cena a contestação às teorias
que sustentavam a grande divisa, entre oralidade e escrita. A pesquisa etnográfica
de Scribner e Cole (1981) encontrou raciocínio lógico e complexos processos
cognitivos, até mesmo consciência metalinguística, em sujeitos com pouca ou
nenhuma familiaridade com escrita. Autores como Street, Barton, Heath e Gee,
passaram a discutir as múltiplas faces do letramento, mostrando que este pode
variar de acordo com contextos socioculturais. Adotar o letramento como algo
autônomo, singular é ignorar o fato de que a vida social é textualizada de múltiplas
formas e é plural, por conta disso os letramentos são múltiplos, dêiticos, ideológicos
e críticos (BAYNHAM, 1995; LEU et al., 2004).
Os Letramentos podem ser considerados múltiplos uma vez que existem
diferentes contextos de atividade, a saber: a escola, casa, trabalho, igreja, rua etc. O
contexto é fundamental para a regulação do evento de letramento, por exemplo,
ninguém lê a bíblia em casa da mesma forma que a lê em uma igreja ou templo. São
múltiplos, pois seu uso depende das esferas de atividades nas quais estão inseridos
os indivíduos e porque temos diferentes sistemas simbólicos (virtual, musical, etc.) e
isso leva a entender que o letramento é afetado pela globalização, desenvolvimento
tecnológico, comunicação em massa, ou seja, não é algo estático, mas está em
constante transformação para acompanhar a multiplicidade de situações
comunicativas.
Um texto permite diferentes leituras de acordo com a época e isso faz com
que os textos sejam dêiticos, pois evoluem e se transformam segundo as condições
sócio-históricas. Alguns textos sagrados, por exemplo, são lidos como textos
literários nos dias de hoje, bem como os modos de ler alguns textos, mudaram com
o passar do tempo.
Diretamente ligado à ideologia o letramento está sensivelmente ligado ao
caráter sociocultural das práticas de letramento e às estruturas de poder na
sociedade (STREET, 1993), e mesmo as concepções que se apresentam como
neutras camuflam pressuposições culturais e visões particulares do mundo social,

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Anais

interessadas em sustentar determinadas relações de poder, e por isso, ideológicas.


Segundo Gee (1990) as crenças a respeito do modo como as comunidades elegem
seus bens sociais apontam para um tipo de ideologia, nesse sentido, não há
184
nenhuma orientação de letramento que não seja ideológica.
A multiplicidade e riqueza cultural apontam para uma mesma multiplicidade
e riqueza no que diz respeito à diversidade de letramentos, embora as estruturas de
poder na sociedade determinem o que é válido e privilegiado e marginalizem o que
está 'fora' ou que não seja hegemônico e comprometido com o progresso e
modernização. Entretanto, estudos etnográficos, como os realizados por Street
(2014), contestam essa 'aparente pobreza' dos letramentos locais, observando que
há uma rica variedade de práticas de letramento em comunidades marginalizadas.
O Letramento está relacionado às múltiplas e diferenciadas práticas
socioculturais de uso da escrita em variados domínios ou esferas de atividades,
umas dominantes e outras vernaculares ou marginais, desiguais no que diz respeito
aos termos ideológicos e posições de poder. As práticas de letramento de cada
domínio sociocultural serão atualizadas pelos eventos de letramento e é a pesquisa
etnográfica que dá subsídios para essa investigação.
Um olhar mais crítico sobre a relação entre letramento e poder faz com que
ascenda uma luta para defesa do multiculturalismo (este trecho é criação sua ou
paráfrase de qual autor?), das várias formas de textualizar e significar o mundo,
rompendo com um discurso que entende o letramento como algo único, singular,
hegemônico e neutro e como um instrumento para determinar quem está ao centro e
quem está à margem.
Na década de 1980, Street, através dos Novos Estudos do Letramento,
começou a questionar como a variedade de letramento associada à escolarização
veio a tornar-se o tipo definidor, já que existem tantos outros tipos de letramento
praticados nas comunidades. Questiona também o porquê dessa variedade de
letramento ser privilegiada em detrimento de outras, além de marginalizá-las,
processo que chamou de “pedagogização do letramento”.
Os Novos Estudos do Letramento figuraram, portanto, como um movimento
contrário às teorias da grande divisa e seus desdobramentos, como, por exemplo, a
escrita como fator determinante para ascensão social; introduziram uma nova

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Anais

perspectiva do letramento, não como prática universal, mas como um processo


relacionado aos indivíduos e grupos de um determinado contexto, como se
apropriam do letramento atribuindo a ele novos significados (STREET, 2014). Essas
185
pesquisas evidenciaram “as formas criativas e originais nas quais as pessoas
transformam o letramento para seus próprios objetivos e interesses culturais”
(STREET, 1993, p.1).
Segundo Street (2014) o prestígio do letramento escolar é produto da
ocidentalização sobre escolarização e conhecimento. Os pressupostos ocidentais
privilegiam o letramento escolar em detrimento de outras formas de letramento,
entretanto, o letramento não precisa estar associado à escolarização ou à
pedagogia, o letramento escolar não possui maior valor sobre os demais,

a pesquisa precisa, ao contrário, começar de uma concepção mais


comparativa, mais etnograficamente fundamentada de letramento
como as práticas sociais de leitura e escrita e evitar juízos de valor
acerca da suposta superioridade do letramento escolarizado com
relação a outros letramentos. (STREET, 2001, p.127)

Dentre tantas modalidades de letramento uma única passou a ser


considerada superior. Praticado nas escolas, o chamado letramento “autônomo” é
dominante e institui modelos baseados em formas neutras, abstratas e
desvinculadas do caráter social da língua. A consequência da imposição desse
modelo autônomo aos sujeitos da aprendizagem são traumas e bloqueios cognitivos.
O modelo autônomo de letramento considera a escrita como uma
modalidade linguística superior, capaz de desenvolver no indivíduo o raciocínio
lógico, a inteligência, um fator indispensável para se alcançar a autonomia enquanto
sujeito. Essa escrita deverá ser apropriada pelo aluno por meio do aprendizado dos
microaspectos da língua.
O letramento autônomo, instituído através de uma visão estruturalista,
concebe a língua como um sistema neutro, que não leva em conta o processo de
produção de sentidos, contrapõe-se ao sociointeracionismo bakhtiniano que postula
a indissociabilidade entre o sujeito, a língua e a história. Para Bakhtin (1995, p. 108)
“os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada, eles penetram na

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corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa


corrente é que sua consciência começa a operar”.
O modelo autônomo de letramento cria o distanciamento entre os sujeitos e
186
a língua, que passa a ser vista como um objeto externo e sem vínculo com a
realidade. Os aprendizes passam a ser receptores passivos, encarregados de
cumprir regras e exigências, sem considerar seu papel social, o contexto em que
vivem e sua relação com a língua, por meio da oralidade e outros modos informais
de letramento.
As outras formas de letramento, chamadas de letramentos sociais, são
consideradas inadequadas e, assim sendo, o letramento autônomo passa a ser
dominante e detentor de uma posição de prestígio em relação aos que são
desenvolvidos informalmente.
Entretanto, o letramento escolar não possui, ou não deveria possuir, maior
valor sobre os demais e, sobretudo, não necessita ser associado à escolarização ou
com a pedagogia, entendida não “no sentido estrito de habilidades e estratégias do
tipo usado por professores […] mas como ‘uma força ideológica que controla as
relações sociais em geral e, em particular, as concepções de leitura e escrita”
(STREET, 2014, p.122).
Em oposição à visão dominante, o letramento ideológico concebe a leitura e
escrita como práticas sociais culturalmente determinadas, ou seja, o contexto é que
determinará como se dará a apropriação das modalidades linguísticas. Dessa forma
passam a ser considerados os macroaspectos da língua, ou seja, o papel e as
funções sociais da escrita.
Os projetos de letramento devem ser pensados levando em conta as
variadas situações comunicativas em consideração, dessa forma os novos estudos
do letramento são entendidos “como um conjunto de práticas sociais e ideológicas
abertas à investigação sobre a natureza da cultura, do poder, das relações
institucionais e das ideologias da comunicação” (CAMPOS, 2003, p.38).
Os vários letramentos, culturalmente construídos, compõem a noção de
multiletramentos, fundamentais para contestar o modelo autônomo. Street (2014) os
nomeia como dominante e marginalizados, podendo o último ser definido também

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como periféricoS ou alternativos, em analogia aos estudos sociolinguísticos com a


noção de língua dominante.

187
A Educação do Campo e a Pedagogia do MST

As pesquisas na área a educação vêm buscando e propondo alternativas


para instaurar práticas mais contextualizadas e que considerem o educando
enquanto sujeito histórico e socialmente situado. Pesquisadores e educadores
buscam meios de articular a produção teórica e a prática docente. Entretanto, ainda
se prioriza o espaço urbano, enquanto o campo, sua escola e seus sujeitos ainda
não ocupam o mesmo espaço e prioridade na agenda acadêmica.
A proposta pedagógica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(doravante MST), sendo este um sujeito educativo enquanto movimento social e
cultural, vai ao encontro da atual concepção de educação postulada pela LDB em
seu 1º Artigo: “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na
vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e
pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas
manifestações culturais.”
Essa concepção aponta para construções de saberes e valores a partir
de um olhar mais amplo e essa amplitude se concretiza nos gestos do MST, pelas
suas marchas, imagens, organização, símbolos, celebrações, músicas, poemas, que
mexem com as estruturas políticas e culturais dominantes, chamando a atenção da
sociedade para a coletividade: “são gestos que educam mais do que cartilhas. A
cultura mostra toda a sua força e é assumida aqui como uma matriz formadora”
(CALDART, 2000, p.13). O MST, enquanto sujeito educativo, recupera matrizes
pedagógicas que alertam para a necessidade de se fecundar teoria na prática social,
sobretudo no espaço escolar.
Na perspectiva de uma escola que integre as práticas escolar e social,
a escola rural fica restrita a uma visão reducionista, deve ser repensada e reposta
nessa amplitude em uma função social e culturalmente mais adequada ao contexto,
para que possam ser mais que escolas, como exposto por Caldart (2000), ao se

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referir às escolas do MST, indissoluvelmente ligadas à dinâmica formadora do


Movimento.
O MST tem grande participação na luta pela conquista de uma
188
proposta de educação orientada para seus interesses locais, socioeconômicos e
culturais. Buscam articular os ideais de luta do movimento a uma proposta
educacional significativa e contextualizada. Segundo SOUZA, (2011, p.13) “a história
tem revelado que a educação rural considera a formação escolar para os povos do
campo, ao passo que a educação do campo valoriza a prática educativa pensada e
efetivada pelos próprios povos do campo”.
A educação do campo é aquela pensada pelos próprios povos do
campo, levando em consideração sua cultura, identidade e não uma educação
pensada pelas instâncias governamentais para o contexto rural. Portanto,

Não é mais o Estado ou a instância governamental, isoladamente,


que define o que se quer como educação do campo. É o conjunto de
sujeitos coletivos dos povos do campo que ativamente propõe a
educação desejada. A negociação entre os coletivos do campo e os
governos gera desdobramentos nas políticas e práticas educativas.
(SOUZA, 2011, p.14)

Dentro dessa perspectiva o camponês não pode ser visto de forma


arcaica e pejorativa, mas como um sujeito politicamente ativo na busca por seus
interesses e ciente de que a garantia e manutenção de seus direitos e identidade só
são possíveis se articuladas a uma proposta educacional consistente e situada
culturalmente de forma singular.
O MST destaca-se por ser um movimento social na busca por direitos
garantidos constitucionalmente. O movimento criou setores a fim de acompanhar o
desenvolvimento e implementação das propostas, bem como seu desenvolvimento;
dentre esses setores há o da educação que é responsável por acender os debates e
propostas para uma pedagogia que conceba a educação como uma forma de
transformação e de luta.
O que começou com a luta pela Reforma Agrária, foi desenvolvendo
setores igualmente organizados, como por exemplo, educação, formação
profissional, cooperativismo, etc. De acordo com dados publicados na página oficial

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do movimento, o movimento que começou priorizando a conquista de terras, logo


percebeu o quão significativa era educação para a conquista de seus interesses,
que não estava mais restrito à terra, mas à obrigatoriedade de ensino de qualidade e
189
gratuito, emprego, enfim, dos direitos previstos na Constituição federal, ou seja, pela
cidadania.
A educação no âmbito do MST não pressupõe a reprodução de valores
dominantes, mas de uma educação voltada à prática social e identidade dos povos
do campo, uma proposta educacional que respeite as demandas sociais ali vigentes
e os sujeitos inseridos naquele contexto. A prática social é que irá nortear o
desenvolvimento de conteúdos e metodologias.
O setor de educação do MST é o responsável por garantir que as
instâncias governamentais não serão exclusivamente as únicas a pensar nas pautas
educacionais para a educação do campo, apenas reproduzindo o discurso
dominante em um contexto altamente articulado, culturalmente singular e ideológico,
mas que organizado e mobilizado o Movimento será fundamental nesse diálogo.
Compreender a perspectiva pedagógica da Educação do campo só é possível
se este segmento for considerado dentro de uma totalidade que não está restrita ao
espaço escolar, mas, acima de tudo, à realidade educacional do homem que
trabalha e vive do campo. Dessa forma, a luta pela educação em áreas de reforma
agrária é fundamental para se compreender a origem da Educação do campo, que
não é o mesmo que Educação rural, “a história tem revelado que a educação rural
considera a formação escolar para os povos do campo, ao passo que a educação do
campo valoriza a prática educativa pensada e efetivada pelos próprios povos do
campo” (SOUZA, 2011, p.13).
A Educação do campo não é um continuum da educação que já era praticada
em meios urbanos e reproduzida em contexto rural, é o resultado de protagonismo
emancipatório dos camponeses, dos movimentos sociais que lutaram por uma
educação aliada à realidade da luta pela terra, é o que diferencia a Educação do
campo. Assim, “a vitalidade dos movimentos sociais não deixa dúvidas de que o
atendimento educacional dos povos do campo não se fará pela transposição de
modelos instituídos a partir da dinâmica social e espacial urbana” (BRASIL, 2012,
p.4).

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A organização pedagógica e metodológica da escola do campo se dá de


forma singular e autêntica, inclusive no que diz respeito ao conteúdo a ser ensinado
e à forma que será ensinado. É claro que a escola do campo preocupa-se em
190
ensinar o que é comum à todas as escolas, a base do currículo escolar, entretanto, o
conteúdo a ser ensinado está sempre próximo ao contexto, ao meio, bem como dos
objetivos formativos críticos, de forma significativa aos alunos. Dessa forma, os
movimentos sociais propõem a mudança da ordem vigente, contestam “o atual
estado das coisas”, reivindicando o reconhecimento de sua autenticidade, contestam
à adaptação ao parâmetro. Reivindicam, ainda, serem considerados em sua
plenitude multicultural.
No contexto em que a pesquisa ocorre os letramentos locais, certamente têm
grande influencia e efeitos no letramento escolar, já que a escola figura como uma
das muitas ações educativas do MST. As práticas escolares, sobretudo nas aulas de
Língua Portuguesa, têm grande responsabilidade no que concerne aos usos da
linguagem e habilidades discursivas, necessitando, portanto, de uma metodologia
que vá ao encontro de suas necessidades. É nesse sentido que os projetos de
letramento são favoráveis e dialogam com as diretrizes pedagógicas da escola do
Movimento. Os projetos de letramento podem ser caracterizados como

projetos de trabalho escolar que destacam a centralidade das práticas


sociais de letramento no processo educacional e por isso tornam-no
eixo estruturante das atividades escolares, da apresentação dos
conteúdos curriculares e do desenvolvimento de temas valorizados.
[…] Os projetos de letramento requerem um movimento pedagógico
que vai da prática social para o “conteúdo” (seja ele uma informação
sobre um tema, uma regra, uma estratégia ou procedimento), nunca o
contrário […] não substitui os eixos temáticos nem os eixos
conteudísticos relevantes no trabalho escolar. Ele é um eixo
estruturador das atividades em sala de aula, que permite ressignificar
temas e conteúdos no contexto, em consequência de sua valoração
pela turma. […] o tema surge da observação por parte da professora
do que interessava à turma […] os objetivos e conteúdos são aqueles
do currículo escolar; os planos de atividade visam ao letramento do
aluno e, finalmente; a dinâmica de atividades – inclusive as analíticas
de objetificação da língua para fins de reflexão – são determinadas
pelo desenvolvimento do projeto, que pode assumir novos ritmos e
caminhos em todo momento, segundo os interesses do aluno e da
comunidade escolar. (KLEIMAN, 2010, p.377-383)

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Uma postura observadora e pesquisadora por parte do professor é


indispensável para o sucesso do projeto de letramento, uma vez que se desenvolve
constantemente uma etnografia em sala de aula, para que o planejamento seja feito
191
sob a perspectiva do aluno e não do ponto de vista do professor, que deve estar
disposto, inclusive, a flexibilizar seu planejamento.

Análise

Análise Teórica

A revisão de literatura levou a observação e constatação de alguns pontos de


convergência entre as teorias da área da linguagem e os pressupostos que orientam
a prática pedagógica do MST. Pretende-se detalhar com mais profundidade tais
relações. Para este trabalho apresentamos os resultados de forma breve e
sistematizados por meio da tabela a seguir:

Tabela 1: diálogos entre as teorias de linguagem e a Pedagogia do Movimento

Comunidade discursiva (Barton, 1998) Sujeito social (CALDART, 2000)

 Conjunto de sujeitos  Sujeito social (CALDART,


partilhando dos mesmos objetivos 2000) – coletivo que (na
com procedimentos e práticas coletividade constrói sua identidade
estabelecidos entre eles. a partir de interesses e objetivos em
comum;

Projeto de Educação do MST Projeto de Letramento

 A educação priorizada é a que vai  Movimento pedagógico que vai da


além do espaço e do tempo que o prática social para o conteúdo, e
aluno passa na escola; se relaciona não o contrário (KLEIMAN, 2010)
a diferentes tipos de bens sociais e

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Anais

à participação política (PROGRAMA


AGRÁRIO DO MST, 2014)

192

Letramento ideológico MST e transformação do atual


estado das coisas

 Em oposição a visão
dominante, o letramento ideológico  Inversão dos modelos pré-
concebe a leitura e escrita como existentes como meio de superação
práticas sociais culturalmente das estruturas pré-estabelecidas e
determinadas, ou seja, o contexto é privilegiadas. (CALDART, 2009)
que determinará como se dará a
apropriação das modalidades
linguísticas. (STREET, 2014)

Novos Estudos do Letramento e MST e a constituição de um sujeito


crítica à pedagogização do com uma identidade letrada para
Letramento além dos letramento escolar e seus
objetivos;
 contestação da dominação
exclusiva do letramento escolar  aproximação das práticas
de letramento situada ao letramento
de prestígio concretizando o
continuum oralidade-escrita – uso
social da escrita.

Análise do Material Coletado

Para este trabalho selecionamos o plano de aula de uma das professoras de


Língua Portuguesa da escola pesquisada. O plano de aula tem como tema a “leitura
compreensiva, global e analítica”, em que serão trabalhados os conteúdos “Textos
figurativos e temáticos” para uma turma de terceiro ano do ensino médio. Para tanto,
a professora selecionou o texto “O homem e a galinha” e um trecho que sintetiza as

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Anais

ideais marxistas de crítica e refutação ao capitalismo. Reproduzimos, a seguir, a


justificativa da professora:

193
A escolha desse conteúdo como opção educativa e formativa, baseia-se na importância que a
leitura exerce na formação do educando enquanto sujeito crítico, capaz de intervir socialmente.
Conhecer a potencialidade significativa de um texto através de uma leitura compreensiva,
global e analítica faz com que o leitor não se limite à compreensão de um texto, mas do mundo
que o rodeia. A leitura deve ter a finalidade de permitir que ao leitor o reconhecimento de
ideologias e vozes sociais.

A justificativa da professora evidencia a postura crítica diante do texto, ela


rompe com os mecanismos de ensino que tomam a língua como algo autônomo e
meramente estrutural, se distancia da objetificação da língua e da postura arbitrária
na busca pelos sentidos, lançando mão de uma perspectiva que vê no texto uma
possibilidade em formar o aluno para ler para além das linhas do texto, mas as
vozes sociais que o compõe. A atividade permite a problematização de um tema que
é caro ao movimento: o capitalismo.
A atividade proposta pela professora está estreitamente relacionada com
uma perspectiva ideológica do letramento e com uma postura formativa do ponto de
vista da militância do Movimento. Além do objetivo de trabalhar os conteúdos da
disciplina, a professora preocupou-se em alinhar sua atividade com um temática a
qual os alunos têm familiaridade, permitindo uma possível ampliação do tema do
texto, em que os alunos podem participar, expondo seu ponto de vista,
contextualizando com questões que lhe são significativas, como a exploração da
terra e do trabalho, por exemplo.
Os encaminhamentos metodológicos adotados pela professora permiteM
discutir outros aspectos significativos dessa análise:

Inicialmente pretende-se propor um debate com os alunos perguntando se conhecem a


narrativa 'O Homem e a Galinha', se já ouviram falar em Karl Marx, e se é possível que esses
dois textos tenham alguma relação de sentido. Depois disso propor uma estratégia de leitura
com base no título dos textos, pedindo para que antecipem possíveis assuntos a serem
abordados por eles. Esse debate inicial possibilitará a verificação do conhecimento prévio do
educando, além de oportunizar a interação, levando-o a colocar-se como sujeito investigativo e
interessado, assim como orientam as Diretrizes Curriculares Estaduais. Depois do debate
inicial realizar a leitura dos dois textos e, em seguida, questionar se conseguiram perceber a
semelhança entre eles. Explicar as características dos textos figurativos e temáticos e explorar
as relações de sentido entre os textos lidos, anotando no quadro as principais informações por
meio de uma tabela. Levar os alunos a perceberem que a leitura de um texto se baseia não só
na recuperação de elementos literais ou linguísticos, ou então nas informações explícitas, mas

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Anais

que a compreensão global depende, justamente, da exploração das informações implícitas.


Salientar a importância da exploração dos temas por trás das figuras em um texto, sendo essa
uma atividade capaz de levar o leitor à compreensão das funções sociais da leitura, inclusive
em textos como propagandas, as quais estamos expostos constantemente, e que só através
da exploração dos temas a leitura plena é possível.
194

As palavras da professora evidenciam uma postura democrática diante dos


procedimentos de análise do texto, em oposição à postura hierárquica e autoritária,
em que há “[...] pouca discussão sobre os sentidos da linguagem, sobre
interpretações alternativas dos textos […] ao que parece, o objetivo final é obter
controle e autoridade sobre o texto, cujos significados não são negociáveis […] não
problematiza o conteúdo, pois o foco é a forma.” (STREET, 2014, p. 132). A despeito
das formas da língua, a professora não ignora sua importância para a construção
dos sentidos do texto, mas expande o universo de informações relevantes quando
se refere às informações implícitas, desveladas por meio das inferências.

Considerações Finais

A discussão dos dados obtidos até o presente momento por meio da


pesquisa teórica e documental e de campo permite discutir aspectos significativos ao
campo de pesquisa que embasa esse trabalho, além de contribuir com a reflexão
sobre a proposta educativa que norteia a prática da educação do campo e da escola
situada em um contexto tão específico, o acampamento do MST.
A análise das práticas de letramento desenvolvidas nessa escola de
assentamento na escola e os documento norteadores do setor de educação do MST
poderão ser comparados para que se constate em que medida as práticas em sala
de aula estão alinhadas às diretrizes instituídas e se a aprendizagem da língua está
mais voltada para o ensinamento dos usos formais ou das práticas sociais.
Em termos de formação docente, trabalhos como esse permitem pensar no
currículo acadêmico, pensar se a formação inicial e continuada contempla situações
de ensino diferentes da hegemônica, e se em algum momento se pensa a formação
do ponto de vista da escola do campo e sua forma organizacional, sistematizadas
em diretrizes específicas, em que a mera reprodução de valores e práticas

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educacionais desenvolvidos em ambiente urbano, provavelmente, acarretaria em


fracasso.

195
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etnografia e na educação. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.

Anexos

O HOMEM E A GALINHA

Era uma vez um homem que tinha uma galinha.


Era uma galinha como as outras.
Um dia a galinha botou um ovo de ouro.
O homem ficou contente. Chamou a mulher:
- Olha o ovo que a galinha botou.
A mulher ficou contente:
- Vamos ficar ricos!
E a mulher começou a tratar bem da galinha.
Dava pão-de-ló, dava até sorvete.
E todos os dias a galinha botava um ovo de ouro.
Vai que o marido disse:
- Pra que luxo com a galinha?
Nunca vi galinha comer pão-de-ló... Muito menos sorvete!
Então a mulher falou:
- É mas esta é diferente. Ela bota ovos de ouro!
O marido não quis conversa:
- Acaba com isso, mulher. Galinha come é farelo.
Aí a mulher disse:

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Anais

- E se ela não botar mais ovos de ouro?


- Bota sim! - o marido respondeu.
A mulher todos os dias dava farelo à galinha.
198
E a galinha botava um ovo de ouro.
Vai que o marido disse:
- Farelo está muito caro, mulher, um dinheirão! A galinha pode muito bem comer milho.
- E se ela não botar mais ovos de ouro?
- Bota sim! - o marido respondeu.
Aí a mulher começou a dar milho pra galinha.
E todos os dias a galinha botava um ovo de ouro.
Vai que o marido disse:
- Pra que esse luxo de dar milho pra galinha? Ela que cate o de comer no quintal!
- E se ela não botar mais ovos de ouro? - a mulher perguntou.
- Bota sim! - o marido falou.
E a mulher soltou a galinha no quintal.
Ela catava sozinha a comida dela.
Todos os dias a galinha botava um ovo de ouro.
Um dia a galinha encontrou o portão aberto.
Foi embora e não voltou mais.
Dizem, eu não sei, que ela agora está numa casa onde tratam dela a pão-de-ló.

Karl Marx

O trabalhador é tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais cresce
sua produção em potência e em volume. O trabalhador converte-se numa
mercadoria tanto mais barata quanto mais mercadoria produz. A desvalorização do
mundo humano cresce na razão direta da valorização do mundo das coisas. O
trabalho não apenas produz mercadorias, produz também a si mesmo e ao operário
como mercadoria, e justamente na proporção em que produz mercadorias em geral.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Fala e escrita no discurso religioso: análise do


gênero discursivo pregação
199
Speaking and writing in religious discourse: discursive analysis of genre
preaching
Angélica Prestes Rosas (G-UENP)
Letícia Jovelina Storto (UENP)

Resumo: O tema desta pesquisa é a língua falada na pregação; portanto, seu objetivo é analisar os
aspectos típicos da fala presentes nesse gênero textual da esfera religiosa. O método empregado é o
empírico-indutivo e a análise de conteúdo. Como corpus de pesquisa, foram estudadas três
pregações coletadas na página eletrônica do YouTube. As produções são: do Pr. Edir Macedo (total
de horas 01h06min:45s), “Santo Culto 900 horas, Bispo Macedo 12/05/2013”; do Pr. Silas Malafaia
(total de horas 00h55min:13s), a “A questão do pecado”, e do Pr. Valdemiro Santiago (total de horas
00h44min:05s), “Pregação apostolo Valdemiro Santiago O amor aos irmãos e o ódio ao mundo”. O
aporte teórico empregado é o da Análise da Conversação. Logo, são utilizados estudiosos como Preti
(1997), Heine (2012), Storto (2015), Galembeck (2009a, 2009b) e Rodrigues (1997). As análises
evidenciam que as pregações são, de fato, textos pertencentes à modalidade da língua falada, já que
se realizam oralmente, apresentam um espaço temporal compartilhado com os interlocutores, com os
quais se busca um envolvimento, além de haver planejamento local linguístico-discursivo.

Palavra-Chave: Língua falada. Pregação. Textos falados.

Abstract
Introdução

A pregação é usada na esfera religiosa, principalmente na evangélica, para


passar a mensagem de Deus aos fiéis, em que geralmente temos um pastor,
considerado o representante Deus na Terra. Como porta-voz de tal divindade, o
pastor cria performances e interpretações dos textos bíblicos com a finalidade de
persuadir e, por conseguinte, evangelizar aos que buscam conversão e alimentar
espiritualmente os já convertidos (STORTO, 2015). Na pregação, segundo Storto
(2015), o que une os seus participantes é a fé, pois todos os integrantes
compartilham da mesma crença e, por esse motivo, acabam interagindo. Para isso,
o gênero apresenta características da língua falada, como marcadores
conversacionais, repetições, paráfrases, entre outras particularidades.

Assim, o objetivo deste trabalho é analisar as marcas da língua falada


presentes nesse gênero textual oral da esfera religiosa. Para tanto, recorre-se aos
aportes teórico-metodológicos da Análise da Conversação. O método empregado
nesta pesquisa é o empírico-indutivo (GALEMBECK, 1999), já que os textos

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

analisados são retirados de situações reais de interação. Além disso, as conclusões


derivam da observação das ocorrências. Também emprega-se a análise de
conteúdo como método.
200
Discussão teórico-analítica
Galembeck (2009a) diferencia a língua falada (LF) da língua escrita (LE). Para
esse autor, as unidades da língua escrita, frases e os parágrafos, não são
empregados na língua falada, pois na LF não se encontram limites claros e
definidos, já que não ocorrem com frequência as estruturas de acordo com os
esquemas sintáticos canônicos típicos da LE padrão. Segundo o pesquisador,

[...] há que se considerar, na definição das unidades de fala, a


presença de fenômenos característicos da elocução formal
espontânea (pausas, truncamentos, alongamentos). Finalmente, não
existe, na fala, a disposição visual característica escrita, na qual os
parágrafos são geralmente indicados por um adentramento (alínea) e
as frases têm o início assinalado por letra minúscula e o término mais
frequentemente por ponto final. (GALEMBECK, 2009a, p. 6).

Heine (2012) define texto oral como uma produção linguístico-semiótica, pois é
preciso desviar-se da dicotomia entre os elementos paralinguísticos (elementos não
verbais de comunicação) e elementos linguísticos (código linguístico). Dessa forma,
o texto oral não é formado somente por códigos linguísticos, mas é também
constituído a partir de estratégias específicas, como hesitações, interrupções,
correções, processamento textual, repetições, digressões, meneios de cabeça etc.
Corroborando essa perspectiva, Rodrigues (1997) e Storto (2015) afirmam que
a LF apresenta três aspectos que possibilitam esclarecer sua existência e
caracterização. Primeiramente, a fala não apresenta um planejamento antecipado,
porém há a existência de um planejamento local. Em seguida, na fala, há presença
de um espaço e/ou tempo comum partilhado entre os interactantes. Por fim, nela, o
envolvimento dos participantes entre si e com o tema da conversação é
fundamental. Portanto, essas três características (planejamento local, espaço/tempo
compartilhado e envolvimento) funcionam como uma oportunidade para que a
produção da LF aconteça. Como consequência, a partir desses três elementos
surgem os demais típicos da língua falada, como marcadores conversacionais, o

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

monitoramento da interação, paráfrase, truncamentos, correções e outros (STORTO,


2015).
Além disso, a língua falada é realizada socialmente, por meio de uma interação
201
em que existem pelo menos dois participantes; assim, os dois interactantes
participam do planejamento do texto conversacional (STORTO, 2015). Portanto, a
LF é uma atividade momentânea, que se difere da escrita, pois não existe a
possibilidade de reescrever o que foi dito.
Segundo Chafe (1979 apud RODRIGUES, 1997, p.21), a fala ocorre aos
borbotões, ou seja, “unidades de idéias, ou significativas, com um contorno
entonacional típico, e limitada por pausas” e a passagem de uma unidade para outra
se dá de maneira rápida, tornando o processo de fala mais veloz que o da escrita
(CHAFE, 1979 apud RODRIGUES, 1997). Desse modo, a fala é

[...] entremeada de muitas pausas e alongamentos típicos da língua


falada, que vão lhe dando tempo para organizar seu texto. Este, por
sua vez, mostra-se fragmentado em termos sintáticos, pois frases
são cortadas, ou as ideias são retomadas em frases estruturadas de
uma maneira diferente daquele com que se anunciava. Percebe-se
ruptura da construção (anacoluto) na medida em que a frase se
desvia de sua trajetória, tomando outra direção sintática. [...] Além de
rupturas, são frequentes as repetições de palavras e frases. (CHAFE,
1979, apud RODRIGUES, 1997, p.21).

Diante disso, podemos notar esses elementos (alongamentos, pausas,


repetições, rupturas e outros) da LF presentes em pregações.

Excerto 1

EDM.: VEM... à medida... que nós manifestamos a fé... então nós... nós bispos...
temos que ter fé pra pedir... pra que você tenha fé pra dar... pra que você tenha fé pra?...
receber... é um processo... a construção do templo... então... é importante que você tenha
essa visão... de valores para que você saiba... como nós... estamos... sacrificando nós
to::dos estamos sacrificando... número cento e oitenta então vamos no nosso hinário “A
cidade... santa... dormindo no meuleito”... vamo lá... ((música começa a ser
cantada))rompeu a voz dos anjos... ah... tem que cantar de pé vamo lá... Jerusalém... canta
santa...

Pr.: Edir Macedo – Pregação 04 - L. 30-36

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Na LF, o planejamento e a realização verbal, segundo Rodrigues (1997),


ocorrem de maneira simultânea ou praticamente simultânea, pois deixam clara a sua
marca de organização, como percebemos no exemplo do excerto 1, em que temos
202
pausas (marcadas pelas reticências), repetições, momentos de elevação do tom de
voz (representados na caixa alta), de silabação, marcadores discursivos (“ah”,
“então”) e a menor ocorrência de conectivos. Isso acontece, pois é o discurso e não
a sintaxe que faz a junção desses elementos no texto oral, no qual existe uma
superioridade da coordenação sobre a subordinação (CAMPOS, 1989).

Assim sendo, ocorre a pouca utilização de orações adjetivas e a ausência de


ligação entre os elementos da oração, visto que isso acontece pela maneira com
que o falante, no uso da fala, aplica os meios linguístico-discursivos e gramaticais
disponíveis na língua (STORTO, 2015).

Storto (2015) ressalta que, na pregação, sempre há a presença de um tema, a


palavra de Deus, ou seja, ocorre um planejamento temático em que também podem
ser pensados seus principais subtópicos. Isso é, normalmente acontece um
planejamento na pregação, porém enquanto o pastor prega, ele está sujeito a
interrupções ou reformulações do que havia sido pronunciado, como é o caso dos
truncamentos, da paráfrase. Portanto, além do planejamento temático ocorre,
inclusive, um planejamento local. Assim, a organização linguístico-discursiva na
pregação é elaborada no momento da interação, pois, se fosse o contrário, haveria
uma situação de escrita oralizada, ou seja, de uma leitura de um texto em voz alta, o
que não ocorre (STORTO, 2015).

O pastor faz uso de recursos como: alongamentos, repetições, truncamentos


ou rupturas para facilitar a coesão e a coerência do texto falado religioso e ajudar no
entendimento dos seus fiéis com aquilo que está sendo pronunciado. Cabe ainda
enfatizar que, para Galembeck (2009b), o truncamento/ruptura está relacionado a
uma procura pela reformulação discursiva. Como podemos perceber no exemplo a
seguir:

Excerto 2

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

SML.: ((fiéis))... ((palmas))... quatro... “Deus tem meios pastor?... Deus tem meios
pastor?”... claro que tem... sabe qual é que ele usa?... eu não quero us/... que () mas ele
usa... lutas e adversidades... huhuhu ((gutural))

Pr.: Silas Malafaia – Pregação 06- L. 121-123


203

Nesse exemplo, o truncamento em “eu não quero us/... que” ressalta o


planejamento do discurso. Segundo Storto (2015), em contextos orais, enquanto
falantes, controlamos a linguagem em relação ao ouvinte, pois podemos omitir
formas linguísticas ao notarmos a incompreensão do que foi pronunciado e, dessa
maneira, mudar a estrutura frásica no momento de sua formação ou acrescentar
informações adicionais e subsidiárias quando for necessário. Para isso, o falante
pode recorrer a correções, paráfrases ou repetições.

Barros (1997) salienta, por sua vez, que a correção é uma reelaboração do
discurso que tem a intenção de corrigir uma falha, uma colocação inapropriada do
falante, o qual deseja modificá-la. Por esse motivo, a correção demonstra a
momentaneidade da pregação, ou seja, é planejada no ato da fala.

Uma marca da LF muito presente na pregação é a repetição. Para Storto


(2015), uma das consequências da presença de repetições em textos orais é a
denúncia da simultaneidade do planejamento e da realização do texto falado, de
modo a funcionar, portanto, como um dos recursos de coesão referencial. Com isso,
esse elemento coopera com a coerência textual, proporcionando a inteligibilidade e
auxiliando na organização argumentativa do discurso. Diante disso, a repetição vai
além de uma das características básicas da língua falada, ela representa uma das
estratégias de formulação textual mais presentes na oralidade, atuando em diversas
funções, textuais e interacionais (STORTO, 2015). Além disso, colabora para a
organização tópica e facilita as atividades interativas. Dessa maneira, seu uso deixa
o texto falado menos denso e, por essa razão, fornece maior clareza ao interlocutor,
tornando acessível o entendimento pela desaceleração do ritmo da fala (STORTO,
2015).

No excerto que segue, notam-se as repetições dos numerais e de outros


termos. Nesse caso, além de amarrar o texto e facilitar a compreensão dos fiéis, as
In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

repetições também funcionam para salientar algo que está sendo dito e colaboram
para simplificar o trabalho da produção discursiva.

Excerto 3 204

EDM.: já foram construídos cinquenta e cinco por cento faltam quarenta e cinco por
cento... mas esses quarenta e cinco por cento... que faltam... vale mais do que... não digo
o dobro mas... é quase que o dobro que nós já pagamos... qua::se que o dobro que nós
já pagamos... quer dizer... os quarenta e cinco por cento... na realidade... é mais ou
menos... uns oitenta por cento... oitenta por cento... quer dizer... a bem da verdade falta
oitenta por cento... em termos econômicos...

Pr.: Edir Macedo – Pregação 04 - L. 17-22

Outro aspecto da repetição em pregações, para Storto (2015), é o papel de


introduzir os interlocutores quando forem requeridos pelo falante. Por meio da
repetição, eles demonstram sua atenção e participação.

No ato da pregação, o pastor utiliza meios para facilitar a compreensão dos


seus fiéis, um desses elementos é a paráfrase. Segundo Galembeck (2009a,
2009b), a paráfrase tem como objetivo esclarecer e explicar; além do mais, contribui
para a criação do contexto comum partilhado pelos interlocutores. Hilgert (1997)
aponta que, na paráfrase, um enunciado anterior é retomado em um seguinte com
algumas modificações (semânticas ou distribucionais). A paráfrase é, portanto, uma
atividade de reformulação.

Dessa maneira, em seu discurso, o pastor mescla partes de textos bíblicos


com suas interpretações baseadas nele, como se percebe na pregação de Pastor
Silas Malafaia:

Excerto 4

SMA.: eu quero ler um trecho da Bíblia... no livro de Provérbios... capítulo vinte e oito
versículo treze... “o que ENCOBRE as suas transgressões... NUNCA... prosperará... mas o
que as CONFESSA... e DEIXA... alcançará misericórdia”... vou repetir o texto... “o que
enco::bre as suas TRANSGRESSÕES... NUNCA... prosperará... mas o que as
CONFESSA... e deixa... alcançará... mi-se-ri-cór-dia”... a primeira colocação... que a gente
faz... ninguém é obrigado a entender definições teológicas... que é o pecado?... errar o
alvo... trans::gredir a Lei de Deus... de::sobedecer à Deus... uma definição SIMPLES....
que todo mundo pode entender... sobre o que é o pecado...

Pr.: Silas Malafaia – Pregação 06- L. 9-15

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Nas pregações analisadas, os textos bíblicos são retomados e reformulados


discursivamente, de modo a se atualizar e, muitas vezes, simplificar a linguagem, a
fim de facilitar a compreensão dos interlocutores. Dessa forma, o pregador utiliza-se
205
da paráfrase com a finalidade de auxiliar o entendimento dos fiéis a respeito da
palavra de Deus.

Para que a pregação ocorra, é preciso que haja uma interação social, por essa
razão, é necessário o envolvimento entre os participantes (STORTO, 2015). Heine
(2012) aponta que, para se manifestar o envolvimento de forma produtiva, é
necessária a ocorrência dos pronomes pessoais “eu”, “me”, “nós”, “a gente”, “tu”,
“você” etc. Na pregação a seguir, o pastor emprega pronomes de 1ª pessoa do
singular (eu) e 2ª pessoa do singular (você):

Excerto 5

EDM.: ... EU... estou cansada... cansado... de sofrer... de chorar... eu não tenho tido
prazer de viver... eu quero mudar”... e você diz “óh meu Deus que que eu tenho que
fazer?”... então se você é essa pessoa... desesperada... por saber da solu/... de como você
vai proceder... e... e se encaixa nessa palavra... você sabe o que tem que fazer sim ou
não?...

FIÉIS.: sim...

EDM.: então se você quer... oferecer sua vida no altar... dar a sua vida no altar... se
você quer... começar a partir de agora... a plantar o que é bom... deixar a vida errada... para
trás e começar uma vida nova a partir de agora... é sacrifício... é muito sacrifício... porque
você vai ter que deixar... os seus prazeres... ilusórios... você vai ter que deixar o... mas... eu
pergunto os prazeres que você tem... na cama com várias mulheres ou com vários homens
ou seja lá como for...

Pr.: Edir Macedo – Pregação 04 - L. 247-257

Nesse caso, quando o pastor utiliza esses pronomes (eu, você), ele está
tentando manter uma relação de proximidade com o fiel, para que esse se sinta
confortável e parte daquele grupo, além, é claro, de tentar persuadi-lo. Segundo
Rodrigues (1997), perguntas e respostas também estabelecem marcas do
envolvimento dos falantes, ou mais que isso, são uma das formas do mecanismo
típico da construção do texto conversacional. Diante disso, as perguntas e respostas

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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são frequentes na pregação e, por conseguinte, mais uma marca de envolvimento


entre os interlocutores, como podemos notar a seguir:

Excerto 6 206

VAL.: o que você passou não mas o que Jesus passou por sua causa eu sei... o que
Jesus passou por minha causa eu sei também... e isso é suficiente... lembra daquela
parábola?... o credor... incompassivo?... você lembra... lá na... (Carneiro Leão) lembra da
mensagem?... o credor incompassivo... que não tinha compaixão... cê sabe o que ele
fez?... ele... o credor...

Pr.: Valdemiro Santiago – Pregação 08- L. 52-56

No excerto 6, o pastor Valdemiro Santiago interage com os fiéis para que


tenham a sensação de que a pregação é direcionada ao espectador/público e,
assim, sintam-se inseridos e parte daquele meio. Porém, as perguntas realizadas
são retóricas, pois não há uma troca de turno conversacional e não se objetiva que
os fiéis de fato respondam ao que lhes é perguntado. Nesse caso, as perguntas
servem também para chamar a atenção dos interlocutores, deixá-los interessados.
Para Storto (2015), essas perguntas são realizadas de maneira incisiva, com a
finalidade de conduzir o fiel a concordar com o falante.

Na pregação, os seus ouvintes, geralmente, são submissos ao que o seu


pastor lhe fala, por esse ser o representante de Deus e, por conseguinte, exercer
autoridade sobre os demais. Desse modo, é o pastor quem conduz a interação.
Entretanto, os fiéis interagem com o seu falante para exultarem o que é proferido
pelo seu mentor espiritual, mas só se pronunciam no momento solicitado por seu
condutor (STORTO, 2015).

Storto (2015) ressalta que, na pregação, as funções de falante e ouvinte não se


alternam; contudo, os fiéis nunca são somente um espectador, pois o pastor no ato
da fala anseia ser ouvido e compreendido, para isso os fiéis devem participar da
interação por meio de marcadores conversacionais (ex.: amém e aleluia), com
acenos, meneios de cabeça e outros. Ainda cabe ao ouvinte saber monitorar o
tópico, com o objetivo de manter a interação e a coerência.

Por isso, a pregação é uma interação assimétrica, já que possui um condutor, o


pastor, e cabe a ele conduzir o tópico discursivo e o ouvinte, no caso os fiéis, os

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quais só contribuem com participações episódicas ou secundárias (PRETI, 1997),


como mostra o caso a seguir, em que o pastor Edir Macedo interage com os fiéis, os
quais lhe respondem por meio do marcador conversacional “amém”:
207
Excerto 7
EDM.: deixe-me falar pra vocês umas coisa... tã:::o certo como Deus existe... tã::o
certo como Deus existe... SE... você... tem... determinado isso de todo o seu coração de
mudar a sua vida a partir de agora.. a partir de agora sua vida já está transformada...
((fiéis))... agora é se é hipocrisia a sua vinda aqui à frente... então... saiba de antemão...
profeticamente... não vai acontecer nada... mas profeticamente se é sincera a sua entrega...
profeticamente você está abençoado... porque... os nossos pecados... são perdoados todas
as vezes... que nós... com sinceridade... falamos com Jesus... amém?...

FIÉIS.: amém...

EDM.: entendeu o que estou falando?... cê não precisa pagar promessa... você não
deve mais NADA ao Diabo... cê tá livre... porque Jesus pagou... os seus pecados... e
apagou... de todo... de toda sua vida... o que passou passou... e a partir de agora... tudo
começa novo... amém?

FIÉIS.: amém...

Pr.: Edir Macedo – Pregação 04 - L. 305-316

No excerto acima, o pastor ao utilizar o “amém” tem como objetivo o


monitoramento da fala. Storto (2015) aponta que na pregação são empregados
marcadores prototípicos, isto é, reconhecidos como próprios desse discurso, pois de
acordo com o uso desses marcadores, o falante avalia a atenção e o interesse de
seu público. Exemplos desses marcadores são “amém”, “glória” e “aleluia”, os quais,
quando empregados, sofrem algumas ramificações. Por exemplo: Glória a Deus,
Glória ao Pai, Glória ao Senhor, Glória ao Espírito Santo, aleluia Senhor e em nome
de Jesus, misericórdia (STORTO, 2015). Todavia esse último é apenas utilizado
quando o fiel possui alguma dúvida, principalmente na procura por textos bíblicos
(STORTO, 2015).

Conclusão
Em síntese, por todas as peculiaridades apresentadas, em que temos uma
conversação assimétrica, um planejamento temático, repetições, pausas,
alongamentos, entre outros e por fim todos os aspectos demonstrados acima são

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

típicos da língua falada. Desse modo, a pregação se caracteriza como um gênero


textual falado.

208

Referências

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PRETI, Dino (Org.). Análise de textos orais. 3.ed. São Paulo:
Humanitas/FFLCH/USP, 1997, p.129-156.

CAMPOS, Odette Gertrudes Luiza Altman de S. A língua falada: características


gerais. In: IGNÁCIO, Sebastião Expedito (Org.). Estudos gramaticais: publicação do
Curso de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguêsa, ano III, n. 1.
Araraquara, São Paulo: UNESP, 1989, p.202-216.
GALEMBECK, Paulo Tarso. Língua falada: processos de construção. 2009a.
Disponível em: <http://www.filologia.org.br/xcnlf/2/07.htm>. Acesso em: maio 2016.

GALEMBECK, Paulo Tarso. Processos de construção de textos falados e escritos.


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Acesso em: maio 2016.

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RODRIGUES, Ângela Cecília de Souza et al. (Orgs.). I Seminário de Filologia e
Língua Portuguesa. São Paulo: Humanitas/ FFLCH/ USP, 1999, p.109-119.

HEINE, Lícia Maria Bahia. Aspectos da Língua falada. Revista (Con)textos


Linguísticos. Vitória, v. 6, n.7, p.196-216, 2012. Disponível em:
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HILGERT, José Gaston. Procedimentos de reformulação: a paráfrase. In: PRETI,


Dino (Org.). Análise de textos orais. 3.ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1997,
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STORTO, Letícia J. Discurso religioso midiático: argumentação e Língua Falada em


pregações evangélicas. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade
Estadual de Londrina, Londrina-PR. 2015.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Lateral /l/ em ataque complexo e em coda


silábica no falar de Chuí e São Borja, Rio Grande
do Sul: um estudo preliminar 209

Lateral /l/ in attack complex and in syllabic coda in spoken language


in Chui and São Borja , Rio Grande do Sul : a preliminary study

Édina de Fátima de Almeida (PG/UEL


Rayane Imakami Moreira (G/UEL)
Dircel Aparecida Kailer (PQ/UEL)

RESUMO: O uso da /l/ em ataque complexo e em coda silábica pode caracterizar a fala de algumas
pessoas ou comunidades e, dependendo da variante usada, essa característica, pode estigmatizar
sua variedade como uma fala “caipira”, do “interior” ou de pessoas “menos escolarizadas. (AMARAL,
1920). Neste sentido, o presente estudo, pautado nos pressupostos teórico metodológicos da
Sociolinguística Variacionista (LABOV, 1972), tem como objetivo identificar, com base nos dados da
ALiB, a alternância no uso do [l] e do [r] em ataque complexo (planta ~ pranta) e em coda silábica
(interna: calça ~ carça, cauça; externa: mel ~ mer ~ meu) nas localidades de Chuí e São Borja,
interior do Rio Grande do Sul. Além disso, buscamos averiguar a relevância dos contextos linguísticos
e extralinguísticos no uso de uma ou de outra variante da líquida lateral [l] nos referidos contextos
nas localidades investigadas.

PALAVRAS-CHAVE: Lateral /l/. São Borja e Chuí. ALiB

ABSTRACT: The use of /l / in complex attack and in syllabical coda may characterize the spoken
language of some people or Brazialian communities. Whereas some variants (/l/) in complex attack
and (/w/) em syllabical coda are considered of prestige, but the change of /l/ for the /r/ in the both
context is stigmatized as spoken language of the country people, with slow education level
(AMARAL, 1920) . Following Sociolinguistic and Geolinguistic assumptions, this study aims to identify ,
based on data from ALIB (Atlas Linguistic of Brazil), the use of /l/ in attack complex for example:
planta ~ pranta, and in syllabical coda (feltro ~fertro); to analyse the lingüístic and extralinguistic
contexts in the use variable of this phonem in the spoken language of the two cities of the Rio
Grande do Sul.

KEYWORDS: Lateral /l/. São Borja and Chuí. ALiB

Introdução

Trataremos, neste trabalho, de um dos vários metaplasmos presentes na


língua portuguesa, o rotacismo, ou seja, a troca de um som líquido lateral por um
som líquido vibrante conforme descreve Câmara JR (1972): “Nos grupos de líquida

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Anais

como segundo elemento consonântico, há nos dialetos sociais populares o


rotacismo do /l/ que o muda em /r/.” Este fenômeno não implica em diferença de
significado, mas tem sido tradicionalmente descrito como indicador de diferenças
210
sociais que podem levar à estigmatização de seus falantes. De acordo com Amadeu
Amaral este fenômeno linguístico se fazia presente na fala dos paulistas no século
XX, inclusive “entre muitos dos que se acham, por educação ou posição social,
menos em contacto com o povo rude”. AMARAL (1982, p. 52).

Temos como objetivos. neste artigo, investigar, com base nos dados do ALiB,
se o rotacismo, mesmo sendo um fenômeno há muito estigmatizado, ocorre no falar
de duas localidades do interior do Rio Grande do Sul(São Borjas e Chuí); Identificar,
as variantes da consoante liquida /l/ em ataque e em coda silábica nas referidas
localidades; Averiguar a relevância dos contextos linguísticos, extralinguísticos e do
“estilo de fala” formal, menos formal e de leitura no uso de uma ou de outra variante
do /l/ em ataque complexo e em coda silábica.

O Rotacismo

Como dito anteriormente o rotacismo é um fenômeno fonético que faz a troca


da consoante lateral /l/ pela vibrante /r/, é considerado um traço linguístico variável
do português brasileiro, pode ocorrer em contexto de coda silábica (sal - sar), ou em
encontro consonantal (planta - pranta).

Faremos a seguir uma breve retomada se alguns estudos referentes a tal


fenômeno, visto que ele faz parte da história da Língua Portuguesa, conforme
comprovamos em registros literários de autores portugueses como Camões, Vieira,
Sá de Miranda e Fernão Lopes e deixou evidências apresentadas em gramáticas
históricas como na Gramática histórica da língua portuguesa (SAID ALI, 1966).
Além de se fazer presente em estudos descritivos do português brasileiro como em
Nascentes (1922), Marroquim (1945), Amaral (1955), Costa (2006, 2011), Castro
(2006, 2012), entre outros estudiosos.
Assim como Marroquim (1945, p.37) em sua obra “A língua do Nordeste”
atribuía a mudança do fonema /l/ para /r/ aos tupis, por não apresentarem esse

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

fonema em sua linguagem, Nascentes (1922, p.69), também aponta em sua obra “ O
linguajar Carioca” a mesma justificativa, ou seja, que o rotacismo no Brasil teria
influência do substrato tupi, visto que não existia o som lê, mas o rê (r brando) na
211
fala dos indígenas. (NASCENTES 1922 apud PINHO, 2014, p.123)
Para Nascentes (1922), tal como na passagem do latim para o português, o l
passa para r. Cfr. lat. blandu-brando, clavícula-cravelha, seria comum que os
indígenas também fizessem essa adaptação, por ser “A consoante mais vizinha da
vibrante l é a vibrante r”. (p.69)
Marroquim (1945, p. 42) salienta que o rotacismo é comumente encontrado
na linguagem popular como em calçada, córrego - córgo e alvura - arvura, mas que
também ocorre a queda do fonema /r/ no final da palavra, na palavra de pessoas
consideradas cultas, nos levando a pensar se isso ocorre realmente por influência
do substrato tupi ou por uma mera simplificação dialetal.
Sobre o rotacismo e a questão de estar presente no falar de pessoas cultas
ou não, Amadeu Amaral (1955, p.82) menciona a presença desse fenômeno no falar
de pessoas que estejam em contato com o “povo rude” (p.82), deixando
transparecer a questão sociocultural, que dá a este fenômeno um caráter
estigmatizado, conforme exemplifica o referido autor com: quarquér, papér, mér,
arma (em coda silábica) e polvadeira – porvadera, flor – frô (ataque complexo).
Melo (1983), em sua obra “A língua do Brasil”, publicada em 1946, ao
mencionar a língua falada no Estado de São Paulo e sul de Minas Gerais, assegura
que “quem já viajou por aquelas bandas, sabe que, basta transpor-se a Mantiqueira,
aparecem os meninos vendendo paster de carne” (MELO, 1981, p. 106).
Castro (2006) afirma que o rotacismo apresenta abrangência nos territórios de
Minas e do Paraná, e observa que esse fenômeno fonético apresenta grande
persistência na língua “ Muitos dos traços do dialeto caipira refletem, como nos
mostra a história da língua, acentuadas derivas do português ou mesmo derivas
românicas, e são comuns a outras variedades populares regionais e mesmo à
variedade culta” Castro (2006, p. 29.).
Castro (2012) apresentou alguns resultados do fenômeno tanto em coda
silábica como em grupo consonantal em dados do Atlas Linguístico do Paraná (Sol

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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(carta 138), Alçapão (carta 118), Calcanhar (carta 141), Girassol (carta 139), Anzol
(carta 140).
Costa (2006) ao estudar o rotacismo, com corpus a cidade de São José do
212
Norte (RS), integrante do banco de dados do projeto VARSUL – Variação Linguística
Urbana na Região Sul, assegura que este fenômeno é registrado em São José do
Norte desde os anos cinquenta continua a atuar como um fenômeno produtivo
naquela comunidade sem demonstrar sinais de declínio. Ela destaca que o
rotacismo ocorre principalmente em ambiente de ataque complexo, com maior
incidência entre os falantes mais jovens e mais velhos, sugerindo que o rotacismo é
uma variável estável na comunidade de São José do Norte na fala dos informantes
menos escolarizados.
Considerando os aspectos propostos pelos estudiosos acima, concluímos que
o fenômeno do rotacismo, é um fenômeno antigo e produtivo na língua portuguesa,
mesmo sendo associado a comunidades rurais e de pouca escolarização.

Breve histórico das localidades selecionadas para o estudo

Selecionamos para este estudo duas localidades fronteiriças, São Borja e


Chuí, ambas do Rio Grande do Sul. Como dissemos anteriormente este estudo é
preliminar, visto que estamos investigando o fenômeno no Rio Grande do Sul com a
rede de pontos inqueridas pelo Projeto Alib.
Podemos visualizar as duas cidades por nós selecionadas no mapa a seguir

MAPA 1- ESTADOS DO RIO GRANDE DO SUL

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Anais

213

Como pudemos observar, no mapa, tanto São Borja como Chuí fazem
fronteira com dois países hispanos, São Borja com a Argentina e Chuí com o
Uruguai.
São Borja29 – São Borja teve sua fundação em 10 de outubro de 1682 pelos
padres jesuítas e emancipação no dia 21 de maio de 1834. Possui uma população
estimada de 61.433 habitantes consoante censo 2010 (IBGE). Conforme site oficial
São Borja, historicamente pertence à região das Missões, porém geograficamente
tem elementos que a identificam com outros municípios da Fronteira-Oeste.
Os primeiros habitantes deste território foram os indígenas, que deixaram um
legado na cultura e na formação étnica, logo após chegaram os jesuítas que até a
derrocada em 1756, incrementaram a pecuária extensiva, o artesanato, o cultivo da
terra. Já na década do século XIX, com a vinda de imigrantes europeus intensificou-
se a agricultura e o uso do arado no solo, expandindo a lavoura pelo campo nativo e

29
As informações sobre São Borja foram acessadas em:
http://www.saoborja.rs.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2398&Itemi
d=1328

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partes das matas nativas. Em meados do século XX a lavoura de arroz então


inexpressiva, toma impulso ocupando áreas de várzea e banhados.
Chuí30 - O Chuí é um município brasileiro do estado do Rio Grande do Sul,
214
localizado no extremo Sul do Brasil, se localiza na fronteira com o Uruguai, na
margem esquerda do Arroio Chuí. Consoante o site oficial do município de Chuí, a
freguesia de Santa Vitória do Palmar foi elevada à categoria de Vila e emancipada
do Município de Rio Grande em 1872, suas terras ficaram pertencendo ao novo
município, criado oficialmente pela lei nº 945 de 15 de maio de 1874 e obteve sua
emancipação em 1995. Suas terras localizam-se no centro da área disputada por
Espanha e Portugal nos séculos XVIII e XIX. Pela sua situação de fronteira, o
desenvolvimento econômico e cultural do Chuí brasileiro sempre esteve ligado ao
Chuy uruguaio. Assim com a grande maioria das regiões do Rio Grande do Sul Chuí
também recebeu imigrantes italianos começaram a chegar no município a partir de
1860 trabalhando como mascates. Por estes motivos a população de Chuí é
formada por uma mistura de etnias e nacionalidades que, juntos promoveram o
crescimento regional durante todo o século XX.

Procedimentos Metodológicos

Seguindo os pressupostos teóricos metodológicos da Sociolinguística


Variacionista e Geolinguística, a presente amostra constitui-se de dados, coletados
pela equipe do Projeto ALiB, referentes à fala de 8 informantes, estratificados quanto
à faixa etária (I – de 18 a 30 anos e II – de 50 a 65 anos), sexo ( homens e
mulheres), todos com Ensino Fundamental incompleto. Depois de recortados por
meio do programa Sound Forge (2010), esses dados foram transcritos, codificados
conforme os contextos linguísticos (vogal da sílaba alvo, extensão do vocábulo) e
extralinguísticos (idade, sexo, região e estilo de fala) e, por fim, submetidos à
análise quantitativa por meio do programa GOLDVARB X .
A seguir, apresentamos os resultados referentes ao ataque complexo
(planta~pranta) primeiramente e, em seguida, à coda silábica (feltro ~fertro).
Destacamos que, por termos poucos dados, não submetemos os dados à análise
30
As informações sobre Chuí foram acessadas em: http://www.chui.rs.gov.br/pagina/id/2/?historia-do-
municipio.html

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binominal, pois isso poderia gerar não ortogonalidade e, por conseguinte, falsear os
resultados.

215
Resultados
Rotacismo em ataque complexo

Gráfico 1: Rotacismo em ataque complexo & localidades

Podemos constatar com os resultados do gráfico 1, que o rotacismo


apresenta-se timidamente em Chuí com apenas 12% e em São Borja não ocorre. É
interessante lembrar que esse resultado difere dos obtidos por Costa (2006) em São
José do Norte, região do extremo Sul do Rio Grande do Sul, pois, segundo a referida
autora o rotacismo registrado em São José do Norte desde os anos cinquenta
continua a atuar como um fenômeno produtivo naquela comunidade sem demonstrar
sinais de declínio.”.(COSTA,2011,p.27)

Tabela 1. Rotacismo em ataque complexo & sexo

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Conforme a tabela 1, são os homens os responsáveis pelos casos de


rotacismos observados nesta amostra no contexto de ataque complexo. Esse
resultado vai ao encontro dos observados por Pinho (2014) que também verifica, em
216
Vila Mariana (MT), que a troca da variante /l/ pelo /r/ ocorre mais na fala dos
informantes do sexo masculino e mais velhos. Por outro lado, diverge dos resultados
encontrados por Costa (2006) que apresenta o sexo feminino como mais favorável a
realização desse fenômeno neste ambiente.
Na tabela 2, a seguir, podemos observar os resultados apresentados em
relação ao fator faixa etária.

Tabela 2 – Rotacismo em ataque complexo & faixa etária

Mais uma vez nossos resultados corroboram os observados Pinho (2014),


pois os mais velhos, faixa etária II, são os informantes que lideram o uso do
rotacismo no falar de Chuí.
Ancorados em Labov (2002), lembramos que se a variável, mesmo
estigmatizada, estiver presente no falar dos mais jovens, é um indício de
implementação ou de mudança em progresso, se estiver nas duas faixas etárias
indica estabilidade, mas, neste caso, está na segunda faixa etária, o que nos leva a
crer que este processo linguística está caminhando para o desaparecimento, talvez
por conta do estigma que carrega.

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Tabela 3 – Rotacismo em ataque complexo & estilo de produção de fala

217

Na tabela 3, “Rotacismo em ataque complexo & estilo de produção de fala”,


podemos observar que o estilo de produção de fala formal (entrevista) é o único em
que ocorre o rotacismo ( 8%).Tal resultado nos inquieta, pois esperávamos que o
referido fenômeno acontecesse no estilo menos formal, ou seja , de relato. Esse
resultado, talvez se deva ao fato de termos tidos poucas lexias que possibilitassem o
uso do /l/ ou do /R/ em ataque complexo nos demais estilos, no relato tivemos 11 e
na leitura 6, enquanto na entrevista tivemos 45.

Tabela 4- Rotacismo em ataque complexo & vogal da sílaba alvo

Diante dos resultados da tabela 5, podemos observar que as únicas vogais


que são favoráveis ao uso do rotacismo, são a vogal baixa central (a) e a vogal
média anterior (e), sendo esta (11%) mais favorável do que aquela (5%).

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A seguir, apresentamos os resultados referentes à coda silábica que


possibilita rotacismo, velarização ou vocalização do /l/ .

218
Rotacismo em coda silábica

Gráfico 2 - Rotacismo, velarização e vocalização em coda silábica & localidades

No gráfico 2, podemos verificar que o rotacismo novamente não ocorre em


São Borja e apresenta um único caso em Chuí. Por outro lado, vemos que a
vocalização é majoritária em São Borja (90%) e duela com a velarização. Sendo
que está é mais frequente (57%) do que aquela (42%). Havíamos hipotetizado que
este percentual de velarização poderia ser devido à influência do espanhol, visto que
a língua espanhola apresenta a lateral líquida /l/ muito acentuada. Além disso, essas
localidades foram, em tempos distantes, palco das disputas territoriais entre
espanhóis e portugueses que deixaram como legado grande influência cultural que
foram transferida de geração a geração, inclusive na fala, como pode ter ocorrido no
caso do uso do /l/ em coda silábica, pois tanto em espanhóis quanto portugueses
fazem uso da velarização do /l/ em coda silábica. Todavia, se as duas localidades
tiveram influências parecidas e possuem países que também usam o espanhol,
Chuí (Faz fronteira com o Uruguai) e São Borja (Faz fronteira com Argentina),
precisamos de mais investigações para compreender o porquê de São Borja
apresentar a velarização de forma bastante tímida (10%) e Chuí (57%) de forma
bastante expressiva.

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Tabela 5 – Rotacismo, velarização e vocalização em coda silábica & faixa etária

219

Em relação ao fator faixa etária, podemos observar, na tabela 6, que houve


apenas um caso de rotacismo na faixa etária 2 que também fez uso preferencial da
velarização. Já os mais jovens, faixa etária I, preferem a vocalização, apresentando
um único caso de velarização. Sendo assim podemos inferir que a forma de
prestígio nestas localidades é a vocalização. O rotacismo praticamente não ocorre,
apenas uma ocorrência e a velarização também tende a desaparecer por ser
realizada, quase que categoricamente, pelos mais velhos.
Se pensarmos, apenas, na fala dos mais jovens que optam pela forma de
maior prestígio no falar brasileiro (vocalização), poderíamos atribuir essa tendência à
vocalização em detrimento da velarização, a hipótese da simplificação dialetal,
conforme destaca Marroquim (1945, p. 42) ao explicar a origem do rotacismo por
influência do substrato tupi ou simplificação dialetal. Ou seja, seria mais “fácil” ,se
observarmos todo o movimento articulatório para produzir uma lateral e uma
semivogal em coda silábica, produzir [saw] do que [saɫ].

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Tabela 6 – Rotacismo, velarização e vocalização em coda silábica & sexo

220

Podemos notar, na tabela 7, que os homens de 124 de ocorrências 75 foram


de vocalização e 48 de velarização e apenas um caso de rotacismo, resultado que
se assemelha muito ao resultado encontrado no falar das mulheres, sendo que das
100 ocorrências 69 foram de vocalização e apenas 31 foram de velarização. Apesar
de percentuais muito próximos (homens 60% e mulheres 69%), mas considerando
que os jovens também fazem mais uso da vocalização, conforme vimos no gráfico
anterior, podemos, retomando a Labov (2002) que atribui ás mulheres a liderança no
uso das formas inovadoras de maior prestígio, podemos dizer que a tendência nas
duas localidade é que a velarização caia em desuso e a vocalização prevaleça nas
referidas localidades.

Tabela 7 – Rotacismo, velarização e vocalização em coda silábica & estilo de produção de fala

De acordo com a tabela 8, podemos constatar que o estilo de fala apresenta


comportamento semelhante quanto ao uso da velarização e da vocalização, pois os

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percentuais estão muito próximos. Já o único caso de rotacismo aconteceu no estilo


mais formal (de leitura) na palavra feltro ~fertro. Acreditamos que o fato de haver um
rótico na sílaba seguinte pode ter influenciado nesta ocorrência de rotacismo.
221
Por fim, apresentamos, a seguir, a tabela 9 referente ao uso do rotacismo, da
velarização e do vocalização versus vogal da sílaba alvo.

Tabela 8 - Rotacismo, velarização e vocalização em coda silábica & vogal da sílaba alvo

A tabela 8 apresenta o único caso de rotacismo com a vogal /e/ na sílaba


alvo, consoante ao que observamos em ataque complexo, em que essa vogal é
favorável ao uso do rotacismo também. Já em relação à velarização e a vocalização,
constatamos que não há uma vogal que se destaque no uso de uma ou de outra
variante, pois a vogal /u/ que mais apresenta vocalização (80%) é também a vogal
que mais apresenta velarização (54%). Acreditamos que apenas com uma amostra
mais robusta e aplicando a uma análise binominal podemos verificar o peso de cada
vogal no uso de uma ou de outra variante do /l/ em coda silábica.

Considerações finais

Ao longo deste estudo pudemos, mesmo que preliminarmente por conta do


número de dados, pudemos depreender alguns resultados bastante relevantes

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quanto ao uso do rotacismo , da velarização e da vocalização do /l/ em ataque


complexo e em coda silábica.
O uso do rotacismo nos dois contextos analisados, no falar de das duas
222
localidades do Sul do Brasil, Chuí e São Borja, é bastante tímido, sendo um pouco
mais produtivo em ataque complexo (bicicleta ~ bicicreta), é mais usado por homens
da faixa etária II, o que dá indícios de desaparecimento.
Quanto à velarização em coda silábica, apesar de acentuadamente mais
produtiva do que o rotacismo, acreditamos que trilha os mesmos caminhos deste
fenômeno linguístico pois se faz mais presente na fala dos homens e dos
informantes da faixa etária II.
Por fim, salientamos que a forma de prestigio em ambas as localidades é a
vocalização em contexto de coda silábica, visto que este fenômeno se encontra no
falar das mulheres e também dos mais jovens.
Ficaram algumas inquietações, principalmente quanto ao uso da velarização e
do rotacismo primordialmente em Chuí e do papel do estilo de fala no caso do
rotacismo, às quais procuraremos esclarecer ao dar continuidade ao estudo da /l/
em ataque complexo e em coda silábica em outras localidades do Rio Grande do
Sul.

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CASTRO, Vandersì Sant’Ana. A resistência de traços do dialeto caipira: estudo


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MARROQUIM, Mario. A língua do Nordeste. [1934] São Paulo, ed. 2º, 1945.
MELO, Gladstone Chaves de. A língua do Brasil. [1946] 4. ed. Rio de Janeiro:
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NASCENTES, Antenor. [1923]. O linguajar carioca. 2. ed. completamente


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Municipal de São Paulo, São Paulo: Prefeitura Municipal de São Paulo. Dep. de
Cultura, 1938.

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SAID ALI, M. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. 6ª Edição. São Paulo:


Melhoramentos, 1966.
224

LEI MARIA DA PENHA: um estudo sob a ótica da


semântica argumentativa
Maria da Penha Law: a study from the perspective of argumentative
semantics

Claudete Carvalho Canezin (PG/ UEL)31

RESUMO: A Lei Maria da Penha, sob nº 11.340/2006, tem por objetivo coibir a violência de gênero
contra a mulher. Nos processos envolvendo essa lei, no discurso das vítimas e juristas, é possível
detectar alguns valores que subjazem à noção de família. Ao se referir às ações violentas contra as
mulheres, os operadores do direito normalmente usam expressões como “numerosos casos de
lesões corporais”; “violência velada”; “agressão desenfreada”. Essas expressões revelam o quanto as
agressões são frequentes. Inclusive, de tanto presenciarem casos parecidos, os juristas já
incorporaram expressões que, de certa forma, se instauraram na semântica de seus discursos.
Quando também se observam os relatos das mulheres agredidas, percebem-se termos ou
expressões que se repetem. Termos como “a violência acaba com o recanto do lar”, “com a
convivência harmoniosa”, “com a estrutura familiar” é discurso bastante recorrente, revelando que a
noção de família é concebida como modelo ideal de instituição universal e histórica. Em nome do
modelo “família perfeita,” muita violência é suportada. É possível observar, que a mulher é vista como
um ser que carece de proteção, justificando a elaboração de uma lei que, subjetivamente, expressa o
anseio de toda a sociedade.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha; Seleção Lexical; Semântica Argumentativa.

ABSTRACT: The “Maria da Penha Law’, under No. 11.340 / 2006, aims to curb gender violence
against women. In cases involving this law, in the discourse of victims and lawyers, it is possible to
detect some values that underlie the notion of family. Referring to violent acts against women, rights of
operators often use expressions such as "numerous cases of bodily injury"; "Veiled violence";
"Unbridled aggression." These expressions reveal how the attacks are frequent. Inclusive of both
witnessing similar cases, lawyers have incorporated expressions that, in a way, to have introduced the
semantics of his speeches. When also seen reports of battered women, perceive words or phrases
that are repeated. Terms such as "violence ends with the corner of the home," "with the harmonious
coexistence", "with the family structure" is highly recurrent discourse, revealing that the notion of
family is conceived as ideal model of universal and historical institution. On behalf of model "perfect

31
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da UEL – PPGEL – UEL, sob a orientação da
Professora Doutora Edina Regina Pugas Panichi do Programa PPGEL/UEL. Mestre em Direito Civil pelo CESUMAR.
Especialista em Direito Empresarial pela UEL. Docente do Curso de Direito na Graduação e Pós-Graduação em Direito Civil
e Processual da UEL. Coordenadora do NEDDIJ e NUMAPE, Projetos de Extensão da UEL. Advogada.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

family," a lot of violence is supported. You can see that the woman is seen as a being who needs
protection, justifying the drafting of a law that, subjectively, expressed the desire of the whole society.

Key-words: Maria da Penha Law; Lexical selection; Argumentative Semantics.

225
Introdução

Seguindo os ensinamentos de Guimarães (2002), é possível entender a


linguagem como prática significativa que funciona como mediadora entre o sujeito e
a realidade social que o rodeia, caracterizando-se como uma prática simbólica que
se inscreve na história por fazer parte da constituição dos sentidos e dos sujeitos.
Neste viés, o autor chama a atenção para o fato de que a linguagem não é
transparente, sendo por isso sujeita ao equívoco, ou seja, os sentidos das “[...]
expressões lingüísticas significam pela relação que as mesmas têm com o
acontecimento em que funcionam” (GUIMARÃES, 2002, p.27). Não se trata,
portanto, de uma relação referencial, simplesmente, mas de uma abordagem
transversal, em que a relação da significação tem a ver com a relação integrativa do
enunciado com o texto. Portanto, a linguagem é uma relação construída pelos fatos
históricos e sociais, sendo exposta ao cotidiano.
Neste sentido, pensando no contexto histórico-social da linguagem, este
artigo propõe refletir sobre a violência doméstico-familiar contra a mulher. Essa
violência não é problema atual, sobretudo, no Brasil. Porém, nas últimas décadas,
pesquisas brasileiras têm mostrado que tal fato vem crescendo de maneira absurda.
Assim, a fim de buscar uma forma de minimizar esse problema, o governo brasileiro,
sob pressão dos organismos internacionais de defesa da mulher, elaborou uma lei
específica com o objetivo de prevenir e coibir casos de violência contra a mesma.
Trata-se da Lei nº 11. 340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha.

Fundamentação teórica

A escolha do corpus – “Lei Maria da Penha” – justifica-se por considerar


relevante a verificação do modo como se concebe institucional, legal e
discursivamente a mulher e o modelo familiar em nossa sociedade. Ao que parece,

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

ela é um ser frágil, que necessita de proteção em razão de um posicionamento


machista ainda vigente na atualidade.
Além disso, muitas vezes, por convenções sociais, em nome de uma “família
226
perfeita”, renuncia à própria dignidade ao se submeter à violência diária, acreditando
que o agressor mudará, proporcionando-lhe a família ideal.

Lei Maria da Penha

A violência de gênero contra as mulheres não é assunto recente, é prática


antiga e encontra-se historicamente ligada ao lugar social que o Estado e a
sociedade determinavam para elas, ou seja, eram submissas aos pais e/ou aos
maridos, consideradas propriedades dos esposos que exerciam todo e qualquer
poder sobre a família, nos moldes do antigo pátrio poder.
Após as grandes revoluções, as mulheres começaram a ganhar espaço no
cenário social, lutando pela conquista de seus direitos e contra uma cultura de
dominação masculina. Atualmente, ocupam lugares de poder na sociedade, lugares
nunca antes conquistados, mas, apesar das muitas conquistas, continuam sendo
vítimas de violência doméstica e familiar, de preconceitos e de muitos outros
estereótipos. (IZUMINO, 2002).
Dessa forma, resultado de um processo de construção histórica, a violência
física, verbal, psicológica, moral, patrimonial contra a mulher advém de um amplo
cenário de repressão na esfera social e familiar. Tal situação consiste em qualquer
ato de violência com base na diferença de gênero que cause sofrimento e danos
físicos, sexuais ou psicológicos.
A Lei Maria da Penha surgiu num contexto social marcado pela violência de
gênero. Essa lei ganhou este nome em homenagem à Maria da Penha Maia
Fernandes, biofarmacêutica cearense que foi casada com o professor universitário
Marco Antonio Herredia Viveros, que tentou assassiná-la por duas vezes. Esse ato
mostrou o quanto mulheres, de famílias aparentemente estruturadas, sofrem
violência, necessitando de amparo legal.
Assim, a importância do presente estudo reside no fato de a análise da
violência de gênero expressar de forma mais clara e contundente a desigualdade

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nas relações entre homens e mulheres em nível privado. Nessa modalidade de


violência de gênero, o marido, ou o parceiro, é o principal agressor, indicando assim
que o espaço doméstico é o lugar favorável para o exercício deste tipo de violência,
227
desmistificando o ideal romântico de família. E dessa maneira, com a finalidade de
coibir qualquer forma de violência contra a mulher, foi promulgada a Lei Maria da
Penha.
Desde o início do século XX, com a promulgação do Código Civil, o judiciário
já abarca questões envolvendo penalidades aplicadas aos agressores da mulher. No
entanto, no que tange à sua proteção contra a violência doméstico-familiar, somente
em 2006 ocorreu uma das maiores mudanças na legislação brasileira, com a criação
e aprovação da Lei nº 11.340/2006, a primeira a tratar especificamente da Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher.
A Lei Maria da Penha passa a ser construída, então, nacional e
internacionalmente a partir da insatisfação demonstrada tanto pela sociedade civil
quanto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em relação ao
tratamento dado à mulher na legislação brasileira.
Por conseguinte a elaboração dessa lei concretizou-se porque havia, a
ausência de uma legislação específica a fim de proteger a mulher. No presente, a
formulação da referida Lei significa a projeção de novas possibilidades de a mulher
enunciar para se defender de uma eventual agressão física, psicológica ou moral.
Nas palavras de Guimarães: “Se um enunciado passa a existir é porque um antes o
fez significar. O passado do acontecimento configura o memorável de enunciações
já ditas recortado pela temporalização do acontecimento”. (GUIMARÃES, 2011, p.
18).
É possível entender, então, que a ausência de proteção específica à mulher
nas leis anteriores importa a necessidade dessa proteção por meio de um dispositivo
jurídico, no caso, a Lei nº 11.340/2006, que possibilita novas enunciações, novos
sentidos que não cessam de se movimentar pela incompletude da língua.

Semântica Argumentativa

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Oliveira (2004) elucida que o conceito de argumentação remonta ao século V


a.C, com vários e marcantes desdobramentos. (OLIVEIRA, 2004, p.109-131).
A Semântica Argumentativa foi criada na França (École des Hautes Études en
228
Sciences de Paris), por Oswald Ducrot e Jean – Claude Anscombre, tendo como
embrião a noção de valor linguístico, sistematizado por Ferdinand de Saussure na
obra Curso de linguística geral.
Além do valor linguístico, as noções de língua e fala de Saussure (2006)
foram essenciais para a formação da Semântica Argumentativa. Sabe-se que a
língua é a forma de realização do pensamento daquele que fala ou escreve,
ressaltando ainda mais o valor linguístico na construção dos discursos.
Segundo Barbisan, “[...] a Teoria da Argumentação na Língua postula que a
palavra contém, na língua, uma significação que permite certas continuações no
enunciado e impede outras [...]”. E, para Ducrot, “[...] a função fundamental da
linguagem é a intersubjetividade, o lugar onde o locutor encontra seu interlocutor”.
(DUCROT, 1977. p. 20). Assim, a argumentação está na própria natureza da língua,
revelando valores.
É possível afirmar, portanto, que a Semântica Argumentativa estuda o sentido
construído pelo linguístico, não na língua, mas no discurso, no emprego da língua.
A fim de discorrer sobre a Semântica Argumentativa, Barbisan ensina:

Em síntese, é do modo de explicar o sentido essencialmente pela


noção de relação que decorrem o objeto de estudo e as
características da teoria: a de ser uma semântica, porque vai em
busca da explicação do sentido; a de ser uma semântica linguística,
porque explica o sentido construído pela relação entre palavras,
enunciados, discursos; a de ser uma semântica linguística do
discurso, isto é, do emprego da língua, não da palavra ou da frase
isoladas; a de ser uma teoria explicativa do sentido do discurso,
sempre olhando a linguagem a partir das bases epistemológicas que
a sustentam. (BARBISAN, 2013, p. 21-22).

O ‘enunciado’, entidade empírica (sentido), é entendido como a realização da


frase, entidade teórica (significação), sendo que os dois são inseparáveis. Assim, o
significado de uma entidade lexical é a orientação que ela dá ao discurso ou à
sequência de enunciados. Portanto, o exercício da linguagem surge da relação entre
o locutor e o enunciado, e a Semântica Argumentativa apresenta-se como uma
teoria da enunciação.

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Análise do Corpus

229
Como um gênero situado na prática decisória do judiciário, as decisões
envolvendo a análise da Lei Maria da Penha está inserida no que Fuzer e Barros
(2008, p.48) definiram como sistema de gêneros, ou seja, "[...] uma série ou
seqüência de atos conjugados que se realizam e se desenvolvem no tempo,
destinando-se à aplicação da lei penal no caso concreto". No ambiente jurídico, um
gênero segue outro gênero em uma sequência regular e em padrões temporais
previsíveis, revelando um fluxo comunicativo típico do grupo que o originou. Ferraz
Júnior acrescenta que “[...] o ato decisório implica uma situação de comunicação,
entendida como sistema interativo global, pois decidir é ato sempre referido a
outrem, em diferentes níveis recorrentes". (FERRAZ JÚNIOR, 2013, p. 287).
Também Colares (2008), seguindo as lições de Bakhtin, discorre que as
produções linguístico-discursivas, ainda que não o intentem de forma explícita, são
determinadas por ideologias, crenças e valores que saturam o discurso de seu
enunciador de subjetividade. Sendo assim, toda elaboração legislativa estará
inexoravelmente embebida das mais profundas ideologias e hábitos que permeiam o
seio social. No caso específico da Lei Maria da Penha, é possível perceber isso por
meio dos valores familiares e da intenção de proteger a mulher, coibindo toda e
qualquer forma de violência, física ou moral.
A linguagem direta do discurso representa, de fato, uma visão subjetiva da
sociedade, que para o senso comum se projeta como neutra e universalizante.
Assim, para Bakhtin e Volochínov (2009, p.36) "[...] palavra é o modo mais puro e
sensível de relação social”.
Sabe-se que as palavras são selecionadas para o destinatário com valores
específicos, apropriadas à situação por meio de recursos argumentativos. Sendo
assim, pode-se afirmar que a gramática possui mecanismos que nos levam o modo
como os argumentos são orientados. Esses mecanismos são as marcas linguísticas
da argumentação.
Oliveira (2002) ensina que os operadores argumentativos contribuem para
expressar a variedade de valores semânticos que envolvem a produção textual:

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Assim, palavras pertencentes a diferentes classes gramaticais como pronomes,


adjetivos, advérbios e conjunções podem expressar efeitos subjetivos.
Nos processos envolvendo violência contra a mulher é muito comum o uso de
230
termos que pronunciados pelos operadores do direito (Juízes, Promotor de Justiça,
Advogados, Defensores Públicos, Delegados), revelam o quanto as agressões são
extremas. No processo da Vara Maria da Penha de Londrina, Autos nº 0031.950-xxx
(segredo de justiça), processo em análise, página 2 da Pronúncia, no relato dos
fatos, lê-se a seguinte informação:

[...]“Assim, o crime de homicídio fora praticado mediante meio cruel, pois


atacou a vítima, fulana de tal, com uma roçadeira e deixou-a sangrar até a
morte da forma acima descrita, demonstrando ausência de sensibilidade
moral e falta de piedade, vez que causou sofrimento atroz e desnecessário
à vítima”. (Autos 0031.950-xxx Segredo de Justiça).

Os adjetivos “cruel”, “atroz” e “desnecessário” já mostram a atrocidade do


crime, denotando a visão do Ministério Publico em relação ao ocorrido. Ora, essa
adjetivação não seria necessária uma vez que as formas verbais “atacou” e “deixou”
expressam uma argumentação extrema, uma vez que o verbo “atacar” permite
deduzir que a ação fora cometida de forma sorrateira, repentina e cruel. O verbo
“deixar”, por sua vez, no contexto em que se encontra, leva o leitor a pressupor que
o agressor poderia ter evitado o óbito, mas o permitiu, fazendo supor a crueldade
dos fatos.

Essa citação é um exemplo bastante ilustrativo do quanto as mulheres


agredidas são vulneráveis. Tal vulnerabilidade foi marcada também pela preposição
“até”, um operador discursivo que assinala o elemento mais forte de uma escala
orientada no sentido de determinada conclusão. Na citação, o argumento mais forte
é o fato de a vítima ter tido uma morte lenta. O operador “até” contribui fortemente
com a persuasão, dando ênfase à perversidade do agressor.
Além da clara noção de agressividade extrema percebida nos processos da
Vara Maria da Penha, no discurso das vítimas fica perceptível o quanto a busca por

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um homem e pela família perfeita é idealizada pelas mulheres que se subjugam e


aceitam o quanto podem a violência.
É importante ressaltar que a violência doméstica não é marcada apenas pela
231
violência física, mas também pela violência psicológica, sexual, patrimonial, moral
dentre outras, o que em nosso país atinge grande número de mulheres, as quais
vivem estes tipos de agressões no âmbito familiar, ou seja, a casa, espaço da
família, onde deveria ser “o porto seguro” considerado como lugar de proteção,
passa a ser um local de risco para elas.
O alto índice de conflitos domésticos já detonou o mito de “lar doce lar”. As
expressões mais terríveis da violência contra a mulher estão localizadas em suas
próprias casas que já foi um espaço seguro, com proteção e abrigo.

Considerações Finais

Assim, ao conduzirmos nosso olhar para contextos que envolvem decisões


com base na Lei Maria da Penha, é possível perceber itens lexicais comuns no
discurso de mulheres e homens envolvidos nos processos de violência, sendo
possível também trilhar caminhos que a partir desses itens, sobre como a violência
permeia esse discurso, colocando a mulher num papel de inferioridade.
As expressões, a fala, o discurso dos operadores do direito e das vítimas,
revelam que a violência é recorrente e, de certa forma, está inserida na sociedade e
que o modelo de família estruturada e perfeita não passa de uma convenção social.
Na verdade, há muitos problemas relacionados à desestruturação familiar. Porém,
muita violência é suportada em nome do mito da família perfeita, de salvar o
casamento pelos filhos.
Ao analisarmos a Sentença Judicial onde o crime praticado é o de violência
doméstica contra a mulher, percebemos a utilização de recursos, como os
operadores argumentativos, na construção de seu texto. Tais instrumentos são
utilizados a fim de demonstrar o crime e tipificá-lo para que a condenação seja justa
diante dos fatos delituosos praticados. “A palavra deixa de ser meramente
informativa, e é escolhida em função de sua força persuasiva, clara ou dissimulada.”
(CARVALHO, 1996, p. 18).

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Koch (1984, p. 22) informa que “os operadores, de natureza gramatical,


contêm um valor retórico ou argumentativo da própria gramática, e é esse fato que
leva a postular a argumentação como o ato linguístico fundamental”. Por isso
232
pretendemos demonstrar aqui o valor argumentativo que existe nas tramas dos
elementos gramaticais, esclarecendo que a Semântica Argumentativa e a Linguística
Textual recuperam tais marcas e, em um nível discursivo, as denominam de
operadores argumentativos.

Referências

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Introdução às ciências das linguagens. A palavra e a frase FERRAREZI JUNIOR
Celso; GUIMARÃES, Eduardo e ZOPPI-FONTANA, Monica (Orgs.) Campinas:
Pontes Editores, 2013, p. 113 - 146.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do


método sociológico na Ciência da Linguagem. 13. ed. Trad. Michel Lahud e Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2009.

CARVALHO, Nelly de. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática,


1996.

COLARES, Virgínia. Linguagem e direito no Brasil. Relatório parcial do projeto de


pesquisa interdisciplinar Análise Crítica do Discurso Jurídico (nº
2546463711149023), CNPq / Edital MCT/CNPq 50/2006. Núcleo de Pesquisa e
Estudo Sociojurídico (NUPESJ) e Mestrado em Direito. Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP), 2008.

DUCROT, O. Princípios de Semântica Linguística. Trad. Brasileira. São Paulo:


Cultrix, 1977. (Original francês: 1972).

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__________. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes, 2002.

IZUMINO, Wania Pasinato. Os Estereótipos de Gênero nos Processos Judiciais e a


Violência Contra a Mulher na Legislação. Painel 02 In: Maria L. Q. de Moraes,
Rubens Naves. (Orgs.). Advocacia pro Bono em defesa da mulher vítima de
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FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. Técnica,


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março de 2016. 233

KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 1984.

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SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. 2º. ed. São Paulo: Cultrix,
2006.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Letramento em ambiente hospitalar: uma análise


dos processos
234
Literacy in Hospital: an analysis of the processes

Itamara Peters¹ (UENP-PG)


Eliana Merlin Deganutti de Barros² (UENP-PP)
Agência Financiadora: CAPES

RESUMO: A análise dos processos de letramento no ambiente hospitalar foi gerada a partir de um
questionário de pesquisa aplicado aos professores do programa de escolarização hospitalar no
Paraná (SAREH), com foco no modo como o professor ensina os conteúdos de língua. Trata-se de
um recorte do trabalho de conclusão do Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS)
desenvolvido na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), cuja finalidade é investigar as
práticas de letramento escolar realizadas no SAREH e produzir orientações para subsidiar a área de
códigos e linguagem desse programa. A pesquisa tem como referencial teórico de base os estudos
sobre letramentos (SOARES, 2004; KLEIMAN, 1995; ROJO, 2015; STREET, 2014; entre outros). O
letramento significa, entre outras coisas, compreender o sentido, numa determinada situação, de um
produto cultural escrito; por isso, uma prática de letramento escolar poderia implicar um conjunto de
atividades visando ao desenvolvimento de estratégias ativas de compreensão da escrita, à ampliação
do vocabulário e das informações para aumentar o conhecimento do aluno e à fluência na leitura.

PALAVRAS-CHAVE: Letramento. Educação Hospitalar. Profletras.

ABSTRACT: The analysis of the processes of literacy in the hospital environment was generated from
a questionnaire survey applied to teachers of the Service to Schooling Hospital Network –SAREH –
Paraná, with a focus on how the teacher teaches the content of the language. This is a snip of the
work of completion of the Professional Master in Letters (PROFLETRAS); developed in the State
University of Northern Parana (UENP), whose purpose is to investigate the practices of literacy the
school performed in the SAREH and to produce guidelines for the support of the area codes and
language of this program. The research has as theoretical base the studies on literacy (SOARES,
2004; KLEIMAN, 1995; ROJO, 2015; STREET, 2014; among others). Literacy means, among other
things, to understand the sense in a given situation, a cultural product written; therefore, a practice of
literacy in school could imply a set of activities aiming at the development of the strategic.

KEY WORDS: Literacy. Hospital Education. Profletras.

Introdução

Este trabalho tem por finalidade investigar as práticas de letramento escolar


realizados no programa de escolarização hospitalar (SAREH) do Estado do Paraná
e produzir orientações para subsidiar a área de códigos e linguagem desse
programa.

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A problemática que envolve esta pesquisa relaciona-se ao complexo


conteúdo de língua que pode ser desmembrado do conteúdo estruturante (discurso
enquanto prática social de oralidade, leitura e escrita) em conteúdos básicos que
235
possam propiciar o letramento dos estudantes atendidos pelo programa de
escolarização hospitalar no Paraná.
Cabe considerar que o estudante da Educação Hospitalar é um sujeito
matriculado numa escola regular ou especial que se ausenta da sua escola por
razões do tratamento de saúde. Seu processo de escolarização, na maioria das
vezes, é fragmentado: ocorre no hospital, nos períodos de internação, algumas
vezes, em casa, com tarefas domiciliares.

Fundamentação teórica e discussões

A pesquisa tem como referencial teórico de base os estudos sobre


letramentos (SOARES, 2004; KLEIMAN, 1995; ROJO, 2015; STREET, 2014; entre
outros). Segundo Soares (1998), “no Brasil, os conceitos de alfabetização e
letramento se mesclam, se superpõem e frequentemente se confundem”.
Já Kleiman (1995) define letramento como: “Um conjunto de práticas sociais
que usam a escrita enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos
específicos, para objetos específicos. ” (KLEIMAN, 1995, p. 19-20).
O letramento significa, entre outras coisas, compreender o sentido, numa
determinada situação, de um produto cultural escrito; por isso, uma prática de
letramento escolar poderia implicar um conjunto de atividades visando ao
desenvolvimento de estratégias ativas de compreensão da escrita, à ampliação do
vocabulário e das informações para aumentar o conhecimento do aluno e à fluência
na sua leitura.
A dimensão individual do letramento se refere aos processos e habilidades
cognitivas e metacognitivas envolvendo a leitura e a escrita. A dimensão social do
letramento considera o mesmo uma prática social, ou seja, compreende o uso que
as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita em um determinado
contexto, relacionando-as com suas necessidades, valores e intenções. Segundo
Kleiman (2007, p.10),

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A perspectiva social não pode eximir-se de focalizar o impacto social da


escrita, particularmente as mudanças e transformações sociais decorrentes
das novas tecnologias e novos usos da escrita, com seus reflexos no
homem comum. 236

Ainda considerando os estudos de Kleiman (2005), o letramento é complexo,


envolvendo muito mais do que uma habilidade (ou conjunto de habilidades) ou uma
competência do sujeito que lê. Envolve múltiplas capacidades, conhecimentos e
competências que nem sempre têm relação direta com a leitura.
O letramento não está restrito ao sistema escolar, no posicionamento de
Kleiman (1995), cabe a ele envolver os estudantes em um processo mais profundo
nas práticas sociais que envolvem a leitura e a escrita. Ele é um processo complexo
que envolve muito mais do que uma habilidade (ou conjunto de habilidades) ou uma
competência do sujeito que lê.
Todo processo de letramento envolve múltiplas capacidades e habilidades
que mobilizam as capacidades de leitura e escrita e exige um conjunto de
competências que pressupõe imersão no mundo da escrita e abrange a prática
social da língua.
Kleiman (2007, p. 25) defende ainda o conceito de letramento como prática
situada que “refere-se ao entrosamento ou à sobreposição parcial existente entre a
prática social e a situação; podemos atribuir isso a uma capacidade básica do ser
humano de contextualizar os saberes e a experiência.
No ambiente hospitalar as propostas de letramento são compreendidas, de
acordo com Kleiman (2005), como uma prática situada, ou seja, os objetivos da
leitura e da escrita na educação hospitalar estão diretamente relacionados ao
contexto de produção do conhecimento.
Todas as questões que envolvem a criança e o adolescente no processo de
tratamento – deslocamento de cidade, alteração de rotina, uso de medicamentos,
mudança de hábitos de vida em virtude do tratamento – interferem também no
processo educativo e ditam os caminhos que professor e aluno vão percorrer.

As práticas de letramento são práticas situadas, o que significa que os


objetivos, os modos de realizar as atividades, os recursos mobilizados pelos
participantes, os materiais utilizados, serão diferentes segundo as

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características das práticas sociais (por exemplo, uma missa, uma festa), da
atividade de linguagem desenvolvida (ler o missal, mandar um convite), da
instituição/esfera social (religiosa, familiar). (KLEIMAN, 2005, p. 25-26).

As práticas situadas de letramento acontecem, desse modo, em um contexto 237


de produção da linguagem e dos processos de aprendizagem que é completamente
diferenciado em termos de ambiente de produção e de finalidade da produção. É
preciso compreender que os usos da língua são extremamente heterogêneos,
variando segundo o contexto/situação mais imediato e mais amplo.
De acordo com Kleiman (2005, p. 25), “a prática situada refere-se ao
entrosamento ou a sobreposição parcial existente entre a prática social e a situação;
podemos atribuir isso a uma capacidade básica do ser humano de contextualizar os
saberes e a experiência”. É nessa junção entre experiência linguística (repertório de
palavras, expressões, frases), prática social (o uso efetivo da linguagem) e novos
saberes que o ensino de língua na educação hospitalar se constrói e se concretiza.

Cenário da pesquisa

A educação hospitalar é um campo relativamente novo no Brasil. Os primeiros


relatos sobre a área levantados por Fonseca (1999) datam de 1950, com o
surgimento da primeira classe escolar em hospital brasileiro. Mas é somente em
1981 que há uma ampliação do número de classes implantadas e em pleno
funcionamento.
Segundo Fonseca (1999, p.10), “o crescimento do número de classes
hospitalares coincide com o redimensionamento do discurso social sobre a infância
e à adolescência, que culminou com a aprovação do Estatuto da Criança e do
Adolescente e seus desdobramentos posteriores” e, obviamente, com a clareza dos
direitos de acesso à educação para todos, que promove uma série de debates,
discussões e divulgação de informações sobre o direito a educação da criança em
tratamento de saúde.
O fortalecimento do debate e das lutas pelos direitos das crianças e
adolescentes a educação faz com que tanto a iniciativa privada quanto a pública
passem a pensar no atendimento das crianças em tratamento de saúde como
afirma:

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As escolas nos hospitais no Brasil estão inseridas nos movimentos


internacionais em defesa das crianças e adolescentes. Entretanto, embora
existam legislações voltadas para a proteção desses cidadãos, durante
décadas, eles foram tratados pela cultura da indiferença, herança das 238
políticas públicas marcadas pelo descompromisso com as minorias.
(PAULA, 2010, p. 01).

Porém, é somente a partir da década de 90 que os movimentos em defesa


das classes hospitalares ganha forma e de fato atenção social. E os atendimentos
educacionais as crianças hospitalizadas começam a tomar forma.
Embora a educação hospitalar seja um direito, apresentado, defendido e
aprovado em lei, conforme Resolução N° 41/1995 do Conanda, oriunda da
Sociedade Brasileira de Pediatria, relativo aos Direitos da Criança e do Adolescente
hospitalizados e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990. Na prática esse
atendimento demorou muito tempo para se concretizar e a tomar forma.
Há o reconhecimento de que é direito, porém, as políticas públicas não têm
seu olhar voltado para este público da educação. De acordo com Paula (2004):

Embora esteja previsto por lei que as crianças tenham acompanhamento


pedagógico no hospital e que existam professores para realiza-lo, os
hospitais de modo geral, quer sejam públicos os privados, tem feito muito
pouco para possibilitarem a criança hospitalizada dar continuidade aos seus
estudos, salvo raras exceções que tem se preocupado em atender as
necessidades biopsicossociais dessa população. Também os órgãos
públicos, os educadores e a sociedade em geral pouco reconhecem esses
espaços educativos como uma modalidade oficial de ensino em nosso país,
pois são raras as Secretarias de Educação que implantam essas práticas
educativas nos hospitais, garantindo-lhes apoio e assistência. (PAULA,
2004, p.27)

Desde 1950 quando iniciou o atendimento educacional hospitalar, muitos


avanços significativos já podem ser percebidos e descritos. O aumento do número
de classes espalhadas em quase todos os estados do país, a organização dos
estados e municípios para garantir o atendimento educacional a crianças e
adolescentes em tratamento de saúde demonstra avanço. Porém, falta ainda
políticas públicas que orientem, regulamentem e garantam o financiamento dessa
educação.
Atualmente o atendimento educacional hospitalar avançou numérica e
teoricamente, mas ainda não conta com uma definição do Ministério da Educação
sobre sua regulamentação ou sobre seu pertencimento enquanto ensino. Ora a
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educação hospitalar pertence a educação básica regular ora a educação especial,


se ser definitivamente nenhuma delas, ao mesmo tempo que atende um público que
pertence as duas modalidades.
239
A organização da educação hospitalar é uma responsabilidade de Estados e
Municípios, como prevê o documento “Classe hospitalar e atendimento pedagógico
domiciliar: estratégias e orientações”:

O atendimento educacional hospitalar e o atendimento pedagógico


domiciliar devem estar vinculados aos sistemas de educação como uma
unidade de trabalho pedagógico das Secretarias Estaduais, do Distrito
Federal e Municipais de Educação, como também às direções clínicas dos
sistemas e serviços de saúde em que se localizam. Compete às Secretarias
de Educação, atender à solicitação dos hospitais para o serviço de
atendimento pedagógico hospitalar e domiciliar, a contratação e capacitação
dos professores, a provisão de recursos financeiros e materiais para os
referidos atendimentos. (BRASIL, 2002, p.16).

Até o momento as classes hospitalares, o atendimento a escolarização


hospitalar e o atendimento educacional domiciliar está vinculado as Secretarias de
Educação Básica Regular ou a Secretarias de Educação Especial dos Estados e
Municípios dependendo de programas desenvolvidos por tais secretarias.

O SAREH

O Serviço de Atendimento à Rede de Escolarização Hospitalar – SAREH – é


compreendido como um programa de inclusão educacional, criado pelo governo do
Estado do Paraná em 2007, por meio da Secretaria de Estado da Educação, com o
foco de dar continuidade ao processo educativo formal, em ambiente diferenciado,
especificamente o ambiente hospitalar. Tem o objetivo de assegurar às crianças,
adolescentes, jovens e adultos, o cumprimento do princípio da universalização e do
acesso à educação, bem como os preceitos constitucionais da educação como
direito social e dever do Estado. Visa atender os educandos em seu direito de aluno
e dar continuidade ao seu processo educacional de forma singular e diferenciada.
O SAREH teve início em 2005, com a pesquisa da Professora Cintia Vernizi
Adachi de Menezes, e com um levantamento realizado pela Secretaria Estadual de
Educação junto aos 27 Estados e Distrito Federal em busca de informações sobre a
existência de programas de classes hospitalares e suas organizações.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Após esse levantamento inicial a pesquisadora atuando na Secretaria de


Educação do Paraná, buscou saber se havia um número significativo de crianças e
adolescentes nos hospitais paranaenses que justificasse a criação do programa
240
SAREH.
Levantamento realizado e percebida a necessidade de existência de um
mecanismo de acompanhamento educacional das crianças hospitalizadas, o
programa foi desenhado, estruturado e implantado inicialmente em oito unidades
hospitalares, sendo seis em Curitiba, uma em Londrina e uma em Maringá, por meio
de convenio com as unidades hospitalares.
Atualmente o SAREH está presente na modalidade de educação hospitalar
em sete (7) núcleos do estado: Curitiba, Londrina, Cascavel, Maringá, Paranaguá
União da Vitória, Ponta Grossa e Área Metropolitana Sul. Com atendimento em
dezoito locais diferentes, sendo quatorze hospitais, três clinicas e uma casa de
apoio. Dos dezoito locais de atendimento do SAREH na modalidade de Educação
Hospitalar, oito (08) encontram-se em Curitiba.
A presença de alunos de idades e séries diferenciadas é marca registrada do
programa, a fragilidade e a reclusão do aluno-paciente, a defasagem de conteúdos e
um grande número de faltas na escola de origem caracterizam o aluno a ser
atendido e fazem com que o professor seja sensível a esse quadro e capaz de
compartilhar tristezas e alegrias desde o internamento até a alta hospitalar,
compreendendo que todas estas etapas caracterizam e identificam o ambiente de
trabalho do SAREH.
No contexto hospitalar é importante compreender que a visão do mundo
muda de foco de acordo com o olhar de quem a vê: “Quando alguém adoece o seu
mundo entra em parafuso: as certezas tornam-se dúvidas, a força, muitas vezes
cede lugar à fraqueza, o otimismo é suplantado pelo pessimismo” (MEZZONO, 2003,
p.335). E dessa forma compreender o mundo da criança doente implica entender a
mudança de foco, as angustias e suas necessidades imediatas.
Os tipos de atendimento no universo hospitalar dependem da especificidade
de cada unidade conveniada, esses atendimentos variam entre os feitos a alunos
internados por longos períodos como: pacientes da hematologia, hemodiálise,
queimados, transplantados, neurologia, cirúrgicos, entre outros; e atendimentos aos

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

alunos internados por períodos mais curtos como: traumatizados, hospital-dia,


ambulatórios.
Segundo Fonseca (2010), as especificidades do atendimento pedagógico em
241
ambiente hospitalar compreendem a diversidade de estratégias para favorecer o
ensino e aprendizagem e a consideração sobre a situação hospitalar do aluno. Além
disso, é necessário um olhar sensível e diferenciado do docente, preparado para
perceber os aspectos cognitivos, psicológicos e sociais deste aluno.
O trabalho de escolarização dos alunos internados (pacientes/alunos) deve
ser realizado visando atender os direitos da criança/adolescente estabelecidos pela
LDB, pelo ECA, pela lei dos Direitos da Criança e dos Adolescentes Hospitalizados e
pelas políticas de Educação Especial definidas pelo MEC e do documento Classe
Hospitalar e Atendimento Pedagógico Domiciliar também do MEC. Além desses
aspectos deve-se considerar as diferentes formas e estruturação das práticas
educativas retratadas na literatura específica.

Público da pesquisa: o professor da área de linguagens do SAREH

O professor da área de linguagem no SAREH é responsável por um conjunto


de disciplinas: língua portuguesa, línguas estrangeiras, arte e educação física. Ele é
selecionado de acordo com as normas gerais do processo que não contemplam
conhecimentos específicos de nem uma disciplina da área de linguagem.
Assim para ser professor da área de linguagem o professor pode ser formado
em qualquer uma das disciplinas que compõe a área e atuar tranquilamente com os
conteúdos dessas disciplinas. No entanto, o currículo das disciplinas é bastante
diverso e carga horária das disciplinas também varia.
Observando rapidamente o currículo dos cursos das disciplinas que compõe a
área só há uma relação curricular entre língua materna e língua estrangeira, arte e
educação física tem um rol de conteúdos muito diferente das ementas dos cursos de
línguas e assim motivam ainda mais a reflexão sobre essa articulação das diferentes
disciplinas que compõe a área de linguagem.

Metodologia

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, baseada no estudo de


caso que utiliza instrumento de coleta de dados pré-definido (questionário) que foi
242
aplicado em 09 (nove) unidades hospitalares conveniadas com a secretaria estadual
de educação do Paraná, coletando respostas de 10 (dez) professores da área de
códigos e linguagem que apresentam diferentes disciplinas de formação para a
atuação no ensino de Língua Portuguesa. Neste trabalho, trazemos à tona a análise
de uma questão voltada para a orientação metodológica dos professores que atuam
no programa SAREH (Se não há orientação metodológica da mantenedora com
relação à metodologia, de que modo você ensina os conteúdos de Língua?). A
análise das respostas dadas foi feita com base nos estudos da análise de conteúdo
proposta por Bardin (2011) e na análise linguística observando os estudos do ISD.

Resultados e discussões

Com relação ao ensino de língua portuguesa foi apresentada uma questão


que exigia dissertação sobre a pergunta realizada (Se não há orientação
metodológica da mantenedora com relação à metodologia, de que modo você
ensina os conteúdos de Língua?), nesta questão os resultados demonstram uma
dúvida clara do processo de ensino. Ao serem questionados como ensinam língua
portuguesa no programa SAREH, sete (07) professores não responderam à questão.
O que implica numa série de análises possíveis e de questionamentos. O professor
não sabe de que modo está ensinando língua portuguesa no SAREH? Não tem
certeza do que está fazendo? Não está trabalhando com a língua? Não sabe
descrever o modo como ensina? Entre tantas outras possibilidades.
A afirmação dos professores que responderam à questão retrata a realidade
da educação hospitalar no SAREH, o método de trabalho e os instrumentos surgem
da necessidade educacional da criança ou adolescente. Cada situação, cada clínica
e cada momento indicam um método diferenciado e a seleção de um conjunto de
recursos materiais e teóricos diferenciados para atender à necessidade especifica
de cada estudante. Comprovando que há no espaço da educação hospitalar uma

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

dinâmica de letramento muito peculiar que caracteriza cada comunidade e a torna


única.
Assim, entende-se que as práticas de letramento no programa SAREH
243
precisam ser discutidas, aperfeiçoadas e orientadas para que o professor tenha mais
segurança ao relatar o seu processo de ensino da linguagem, os eventos de
letramento e as práticas de letramento que emergem das aulas de língua.
No ambiente hospitalar as propostas de letramento são compreendidas, de acordo
com Kleiman (2005), como uma prática situada, ou seja, os objetivos da leitura e da
escrita na educação hospitalar estão diretamente relacionados ao contexto de
produção do conhecimento.
As práticas de letramento são práticas situadas, o que significa que os
objetivos, os modos de realizar as atividades, os recursos mobilizados pelos
participantes, os materiais utilizados, serão diferentes segundo as características
das práticas sociais (por exemplo, uma missa, uma festa), da atividade de linguagem
desenvolvida (ler o missal, mandar um convite), da instituição/esfera social (religiosa,
familiar). (KLEIMAN, 2005, p. 25-26).
As práticas situadas de letramento acontecem, desse modo, em um contexto
de produção da linguagem e dos processos de aprendizagem que é completamente
diferenciado em termos de ambiente de produção e de finalidade da produção. É
preciso compreender que os usos da língua são extremamente heterogêneos,
variando segundo o contexto/situação mais imediato e mais amplo.
De acordo com Kleiman (2005, p. 25), “a prática situada refere-se ao
entrosamento ou a sobreposição parcial existente entre a prática social e a situação;
podemos atribuir isso a uma capacidade básica do ser humano de contextualizar os
saberes e a experiência”. É nessa junção entre experiência linguística (repertório de
palavras, expressões, frases), prática social (o uso efetivo da linguagem) e novos
saberes que o ensino de língua na educação hospitalar se constrói e se concretiza.
Quando o professor pensa e planeja as atividades para o estudante
hospitalizado, os objetivos de cada aula, o modo de realizar as atividades; os
materiais utilizados são adaptados para cada situação e voltados para a
necessidade comunicativa desse estudante que se encontra impossibilitado de
frequentar a escola regular. Porém na educação hospitalar essa adaptação

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

contempla ainda as condições físicas, psíquicas e espacial de desenvolvimento e


interação com o conhecimento a ser trabalhado.
Há todo um conjunto complexo de condições de tratamento de saúde, de
244
interações e intervenções, tanto internas quanto externas, que interferem no modo
de realizar as aulas e nos níveis de conhecimento do estudante que está no
ambiente hospitalar.
Assim, a prática situada de letramento, como afirma Kleiman (2005), se
concretiza em cada aula de língua portuguesa. Dessa forma, os materiais devem ser
sempre disponibilizados e pensados para cada atividade e para cada estudante,
seguindo os objetivos das atividades e a situação de linguagem que surgiu do
planejamento realizado entre professor e estudante.
Logo, as práticas situadas de letramento na educação hospitalar pressupõem
ações de linguagem que envolvem tanto o contexto imediato – necessidades do
cotidiano, da convivência no ambiente hospitalar e de situação de tratamento da
saúde, contato com a escola de origem, as informações com a família que ficou
distante, o vínculo com os amigos, etc. – como as necessidades do contexto amplo
– que envolvem tanto os aspectos contextuais da situação como o momento sócio-
histórico, a cultura, os fatores sociais, os elementos linguísticos (variação linguística
em função dos diferentes locais de procedência das crianças e adolescentes).
O próprio caráter personalizado das atividades de linguagem na educação
hospitalar pressupõe práticas situadas de letramento, como os estudos já apontaram
anteriormente. Street (2014, p. 71) reafirma: “As práticas de letramento referem-se a
essa concepção cultural mais ampla de modos particulares de pensar sobre a leitura
e a escrita e de realizá-la em contextos culturais”. Ou seja, o fato da educação em
foco se desenvolver no ambiente hospitalar, determina uma série de saberes em
relação ao mundo letrado que extrapolam os limites conteudísticos da escola
regular.
Nesse contexto, na educação hospitalar, o uso e o entendimento da
linguagem devem se tornar mais próximos do uso real e social da língua. As
situações de interação, interferência, uso linguístico se aproximam muito e exigem
uma prática situada, pensada para esse espaço atípico, para um determinado
aprendiz nele inserido, para o familiar que o acompanha e com o propósito

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

comunicativo determinado pela situação posta. De acordo com Jung (2007, p. 85),
[...] as práticas de letramento seriam social e culturalmente determinadas, o que
equivale a dizer que os significados específicos que a escrita assume para um grupo
245
social dependem dos contextos e das instituições em que ela é adquirida e
praticada.
Dessa forma, reitera-se o fato do letramento ser uma prática situada e
determinada pelo contexto de uso da linguagem e pelo ambiente no qual ela se
desenvolve.

Considerações finais

A partir do estudo sobre letramento e do questionamento realizado aos


professores podemos compreender que a educação hospitalar é um campo em
desenvolvimento.
Há neste espaço processos de letramento muito peculiares que podem ser
descritos para que o professor perceba seu campo de ação e atuação. Além disso, o
questionamento aos professores demonstrou que há a necessidade de pensar em
orientações metodológicas próprias para o ensino de língua portuguesa em
ambiente hospitalar e de orientar o processo de letramento que o professor pode
desenvolver ao atuar com o estudante hospitalizado ou em tratamento de saúde.
A docência em educação hospitalar pressupõe uma prática situada do
professor, considerando todos os aspectos que envolvem o ambiente, o processo
educativo e principalmente o estudante.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Classe hospitalar e atendimento pedagógico


domiciliar: estratégias e orientações. / Secretaria de Educação Especial. – Brasília:
MEC; SEESP, 2002.

FONSECA, Eneida Simões da. O papel do professor no ambiente hospitalar e a


inter-relação da equipe pedagógica com a equipe de saúde e a família da criança
hospitalizada. In: Secretaria de Estado da Educação. Superintendência de
Educação. Diretoria de Políticas e Programas Educacionais. Núcleo de Apoio ao
Sareh. Curitiba: Seed-PR., 2010. – 140 P. - (Cadernos temáticos).

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hospitalizados: realidade nacional. – Brasília: Instituto Nacional de Estudos e
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prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995.

________. Preciso ensinar o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever?


CEFIEL/ IEL, Unicamp. 2005.

MEZZONO, Augusto Antônio.et al. Fundamentos da Humanização Hospitalar: uma


versão multiprofissional. São Paulo: Loyola 2003.

PAULA, Ercília M. A. T. de. Educação, diversidade, esperança: a práxis pedagógica


no contexto da educação hospitalar. Salvador: UFBA, 2004. Tese de doutorado.

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na formação de professores. In: Secretaria de Estado da Educação.
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SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica,


1998.

STREET, B. Letramentos Sociais: abordagens críticas do letramento no


desenvolvimento, na etnografia e na educação. Trad. Marcos Bagno. São Paulo:
Parábola, 2014.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Lexias presentes no discurso dos assentados do


assentamento Celso Furtado
Lexias present in the discourse of the settlement settlers Celso Furtado 247

Juliana de Oliveira Mendonça Ribeiro (UFMS/CPTL-PG)


Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento (UFMS/CPTL-PQ)

RESUMO: O contexto rural da cidade de Castilho-SP caracteriza-se, atualmente, pela legalização


de treze assentamentos, dos quais o Assentamento Celso Furtado, o segundo maior da região, lócus
desta pesquisa, reúne cento e oitenta e sete famílias. Sabemos que pela constante luta pela posse de
terra, pela força do MST (Movimento Sem Terra), e até mesmo pela exclusão e resistência diante da
sua representação social esse grupo além de fazer história vem criando a sua própria linguagem
(MARTINS, 2001). Ao nos basearmos nos estudos lexicográficos o presente trabalho tem como
objetivo principal verificar se o efeito de sentidos nas palavras recorrentes nos discursos dos
assentados (des)convergem com o registro apresentado pelo dicionário de Ferreira (2010). Para
tanto, foram recortados de entrevistas de sete assentados lexias que se repetiam constantemente
nos seus dizeres, como os adjetivos: baderneiro, pistoleiro e caipira e fichado. Para discutir as
considerações sobre lexicografia, baseamo-nos pressupostos teóricos de Biderman (2001a).
Observamos que as lexicais apresentadas nos dizeres dos assentados se assemelham com os
registros dos dicionários, pois eles manifestam que são desqualificados como indivíduos, pois
acreditam que a sociedade usam de adjetivos para denigrir a sua posição sujeito no tecido social.

PALAVRAS-CHAVE: Lexias; Assentado; Dicionário.

ABSTRACT: The rural context of the city of Castilho-SP is characterized currently by the legalization
of thirteen settlements, including the settlement Celso Furtado, the second largest in the region, locus
of this research, brings together one hundred eighty-seven families. We know that the constant
struggle for the possession of land, the MST force (Landless Movement), and even the exclusion and
resistance in the face of social representation that group besides making history has been creating its
own language (MARTINS, 2001). When we base the lexicographical studies the present work has as
main objective to verify the effect of meaning in recurrent words in the speeches of the settlers (un)
converges with the record presented by Ferreira dictionary (2010). So, they were cut seven lexias
settlers interviews that constantly repeated in their sayings, as Adjectives: tearaway, gunslinger and
hillbilly and fichado. To discuss the considerations of lexicography, we rely on theoretical assumptions
Biderman (2001a). We observed that the lexical presented in the words of the settlers resemble the
records of dictionaries because they state that are disqualified as individuals, because they believe
that the company use of adjectives to denigrir your subject position in the social contexture.

KEYWORDS: Lexias; Seated; Dictionary.

Introdução

Esta pesquisa foi realizada por meio de estudos de autores que abordam o
trabalho rural no Brasil, como Caldart (2004) e Martins (2003 e 2010), além do
interesse pelo estudo lexicográfico e especialmente das lexias presentes no discurso

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

do sujeito assentado. Interesse que nos levou a manter contatos informais com
vários moradores do Assentamento Celso Furtado da cidade de Castilho-SP.
Entendemos que o léxico representa o acervo vocabular de uma sociedade,
248
ou seja, todo o conjunto de palavras que as pessoas de uma determinada língua têm
à disposição para expressarem-se, oralmente ou por escrito. Considerado
patrimônio vocabular de uma comunidade linguística, o acervo linguístico é
transmitido de geração em geração, transmitindo, desse modo, a história de uma
comunidade.
Ao considerar as contribuições dos estudos lexicais, para o artigo podemos
nos apoiar em Biderman (2001a, p.178) quando a autora afirma que “O léxico de
qualquer língua constitui um vasto universo de limites imprecisos e indefinidos.
Abrange todo universo conceptual dessa língua. Qualquer sistema léxico é a
somatória de toda experiência acumulada de uma sociedade funcionam como
sujeitos-agentes, no processo de perpetuação e elaboração contínua do Léxico da
língua”.
Pela esteira de Biderman (2001a), inferimos que o sujeito assentado, traz nos
seus dizeres as ideologias do MST, já que eles possuem uma experiência social que
vem se constituindo durante anos pela luta da posse de terra. Além disso, os léxicos
proferidos nos acampamentos sem-terra e no próprio assentamento, nos
possibilitam estudar como esses sujeitos-agentes perpetuam as lexias que
constituem os seus enunciados.
Para trazer a contextualização do MST (Movimento dos Sem-Terra) no Brasil,
recorremos ao texto de Caldart (2004), em que a autora esclarece que o movimento
teve sua maior repercussão no dia 4 de maio de 1978, quando cerca de 1800
famílias de colonos foram expulsas da reserva Indígena de Nonoai, no Rio Grande
do Sul, legalmente propriedade de indígenas Kaingang desde 1847. Esse fato
contribuiu para o desenvolvimento de um dos principais movimentos sociais do
Brasil, o Movimento dos Sem-Terra.
Ao analisar os dizeres dos assentados propomos contribuir para os estudos
lexicográficos e temos como objetivo principal verificar se as lexias pronunciadas
pelos assentados estão de acordo com o registro apresentado pelo dicionário de
Ferreira (2010). Para tanto recortamos trechos de entrevistas de sete respondentes,

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

nos quais verificamos a repetição de algumas palavras: baderneiro, caipira, fichado


e pistoleiro.
Este artigo divide-se em três partes. Na primeira, apresentamos algumas
249
reflexões sobre os estudos lexicográficos e dicionário e um breve histórico do
Assentamento Celso Furtado. Na segunda, descrevemos a metodologia da
pesquisa, já na terceira, trazemos as análises empreendidas e por último, tecemos
algumas reflexões sobre os resultados.

Estudo Lexicográficos e o dicionário

Como sabemos a interação do homem com a sociedade é inevitável, pois


além de propiciar conhecimentos também realiza a troca com o outro. Por meio da
sua vivencia em sociedade o sujeito percebe e compõe o universo e por fim constitui
a sua identidade. Assim, diante de semelhanças e interesses, o ser humano se
enquadra em grupos sociais, que dividem as mesmas ideologias, costumes e
crenças, possibilitando a transmissão e a disseminação de conhecimento. Esse
conhecimento possibilita que o indivíduo compartilhe o universo verbal e não verbal.
Para Isquerdo (2008, p.447)

a língua funciona também como forma de identidade de um grupo, já que o


vocabulário atualizado por um indivíduo evidencia marcas socioculturais do
grupo a que pertence e do espaço geográfico onde reside ou nasceu, uma
vez que é fato assente que condicionantes de natureza sócio histórica e
físio geográfica podem motivar o surgimento de variedades na manifestação
de uma língua.

Portanto, um dos níveis que explicita a relação do sujeito com a língua e a


sociedade é o léxico no qual ele tem a possibilidade de expressar pelo conjunto de
palavras a realidade que o cerca. Assim observamos que o estudo do léxico
possibilita analisar e compreender a realidade sócio linguística cultural de uma
comunidade de falantes, trazendo dessa forma, o reflexo das transformações
sofridas no decorrer da sua história.
Entendemos por Biderman (2001a) que mesmo o léxico ser pertencente ao
sistema linguístico, são os falantes que têm a possibilidade e capacidade de
transformá-lo de acordo com as suas necessidades. Portanto, é comum o indivíduo

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

não se ater ao repertório lexical da língua, pois não encontra na mesma a palavra
que traduza o conceito em questão. Então, observamos que a inovação lexical é
continua e a língua permanece em constante evolução.
250
O homem inevitavelmente atribui valores culturais as palavras de acordo com
a sua cultura e ideologia. Dessa forma, ao estudarmos um léxico, podemos
identificar questões estruturais de um signo linguístico e ainda analisar conceitos,
costumes e crenças de um determinado grupo social.
De acordo com Biderman (2001, p.79) “qualquer sistema léxico é a somatória
de toda experiência acumulada de uma sociedade e do acervo da sua cultura
através de idades. Os membros dessa sociedade funcionam como sujeitos-agentes,
no processo de perpetuação e reelaboração contínua do Léxico da língua”.
Compreendemos, então que os falantes podem ser reconhecidos e até
mesmo diferenciados pela seleção lexical que usam para se expressarem, já que
nesse processo as suas escolhas são motivadas pela conduta do grupo e pelo meio
do qual faz parte. Assim, pela leitura de Ferraz (2007, p.54) vislumbramos que a
“inovação lexical, ou criação de novas palavras, é um fenômeno permanente na
língua em evolução”.
O dicionário, por sua vez, pode ser definido como o livro que traz as
definições de palavras que são faladas por uma determinada sociedade. Ele é o
responsável por descrever o léxico geral da língua nas suas várias representações,
apresentado a língua na norma culta. E por apresentar um caráter normativo,
descreve informações gramaticais e linguísticas.
Segundo Biderman (2001b) o dicionário apresenta a representação de termos
específicos de uma determinada língua, onde a localização de palavras se dá por
meio de ordem alfabética e com a respectiva significação de cada léxico. E também
trazem a tentativa de descrever um léxico de uma língua, mencionando
classificações diversas, de acordo com a finalidade que se dispõe, com o intuito de
atender várias áreas de conhecimento.
Entendemos que o dicionário tem com premissa representar a língua de um
grupo social, a partir de um certo período da sua história, podendo ser definido
também como o manifesto de língua e cultura. Por isso, deve acompanhar a
sociedade e mudar com os avanças tecnológicos.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Ao nos reportamos ao dicionário da língua concluímos segundo Krieger


(2007, p. 295) que ele expressa o

251
[...] léxico de um idioma é registrado de forma sistemática. Isto lhe atribui o
estatuto de instância de legitimação do léxico, constituindo-se, em
consequência, em paradigma linguístico modelar dos usos e sentidos das
palavras e expressões de um idioma. O dicionário assume, nessa medida, o
papel de código normativo de um sistema linguístico, e, como tal, nas
sociedades de cultura, goza de uma autoridade que não é menor. Ao
contrário, a autoridade é socialmente institucionalizada, posto que é
consultado em todos os lugares, e por todos os segmentos sociais e
profissionais que procuram respostas, sobre o significado das palavras.
Portanto, o uso dos dicionários corrobora para orientar as pessoas na busca
pela significação das palavras e das acepções que podem ser atribuídas a essas
palavras. Além de trazer a possibilidade de analisar semelhanças e diferenças que
possam existir no registro da mesma lexia.

Assentamento Celso Furtado: breve histórico

Hoje existem, em Castilho, 13 assentamentos: Jupiá, Timboré, Anhumas, São


Joaquim, Celso Furtado, Rio Paraná, Santa Isabel, Cafeeira, Terra Livre, Nossa
Senhora Aparecida, Primavera, Pendengo e Ipê, que, juntos, reúnem
aproximadamente 1.185 famílias, de acordo com o Incra. O Assentamento Celso
Furtado, lócus desta pesquisa, é o segundo maior da região, com 187 famílias
assentadas, perdendo somente para o Assentamento Pendengo, que conta com
224. Os outros onze assentamentos têm entre 42 e 115 famílias32.
O nome “Celso Furtado”, segundo o assentado Nilton Caldeira dos Santos,
representante dos trabalhadores no Superior Tribunal de Justiça (na ocasião da
assinatura da desapropriação das terras), foi sugestão do Senador Eduardo
Matarazzo Suplicy, como homenagem ao economista Celso Furtado, que morrera no
ano anterior ao acordo de concessão das terras da fazenda Três Barras para a
instalação efetiva do Assentamento.
Celso Furtado, nascido no dia 26 de julho de 1920 e falecido em 20 de
novembro de 2004, foi considerado o maior economista brasileiro da História e um

32
Informações retiradas do site oficial do Incra: http://www.incra.gov.br/index.php/regionais-incra-nos-estados,
acesso no dia 20/08/2015

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Anais

dos mais destacados intelectuais do país ao longo do século XX. Suas ideias sobre
o desenvolvimento e o subdesenvolvimento divergiam das teorias dominantes em
sua época, pois enfatizavam o papel do Estado na economia33.
252
O documento apresentado e redigido pelo assentado Nilton Caldeira dos
Santos relata o percurso do assentamento até a sua intitulação como “Assentamento
Celso Furtado”. De acordo com o documento, o acampamento foi criado no dia 18
de setembro de 2002, denominado como Terra Livre II, e teve o seu acordo final
lavrado em audiência pública no Superior Tribunal da Justiça no dia 14 de setembro
de 2005, pondo fim à demanda de mais de R$ 12 milhões referentes a 2.427 mil
hectares de terra que vinham sendo negociados há quatro anos.
O acerto foi homologado pelo então ministro Luiz Fux, do Superior Tribunal de
Justiça, com a presença do presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Região de
Andradina e Região (STR), Marcelo Dantas; do proprietário da fazenda Três Barras,
Francisco Alves Linhares Neto; das procuradoras federais Gilda Diniz dos Santos e
Renata Almeida D´Ávila; do chefe da Divisão Técnica do Incra, Sinésio Sapucaí; dos
representantes dos trabalhadores rurais José Carlos Bossolon, João Mota Santos e
de Nilton Caldeira dos Santos; e da advogada do proprietário da fazenda, Cloridytes
Peixoto Lemos. O então senador Eduardo Matarazzo Suplicy contribuiu efetivamente
para a finalização do acordo.
No dia 17 de outubro de 2005, foi concedida pelo Incra a posse da Fazenda
Três Barras às famílias acampadas. Assim, no ano de 2006, no mês de março, as
famílias receberam o primeiro apoio: R$ 2.400,00. Logo em seguida, foi liberado o
crédito-habitação, no valor de R$ 5.000,00. Com a criação do decreto presidencial,
aumentando o teto da habitação de R$ 5.000, 00 para R$ 7.000,00, as famílias
assentadas foram contempladas com mais R$ 2.000,00. No ano de 2006, houve a
abertura das estradas, que teve o seu término no ano de 2007. Nos anos de 2007 e
2008, foram abertos sete poços e ocorreu a liberação do projeto “Luz Para Todos”,
que trouxe energia para propriedades rurais.
Ainda a coletânea de reportagens do assentado Nilton Caldeira dos Santos
traz um trabalho de recuperação do núcleo comunitário, situado numa casa do
assentamento, que foi chamado de Centro de Formação e funciona até hoje como

33
Informações retiradas do site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Celso_Furtado, acesso maio/2015.

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um posto de saúde com atendimento médico-odontológico, com salas de vacina e


de ginecologia. O assentamento também possui um horto de seringueira nomeado
“Seringal Chico Mendes”, onde está sendo desenvolvido um projeto de
253
processamento do látex.
Na atualidade, os assentados pleiteiam o investimento na criação de
pequenos animais, pois as famílias têm como principal produção a leiteira e
também buscam recursos destinados a infraestrutura, já que os poços do
assentamento não correspondem à demanda.

Metodologia

A partir do dicionário de língua, o Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa - 5ª


edição, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira foi realizado um estudo das lexias:
baderneiro, caipira, fichado e pistoleiro presentes nos dizeres dos assentamentos.
Para tanto, buscamos analisar se o efeito de sentido nas palavras recorrentes nos
discursos dos assentados (des)convergem com o registro apresentado pelo
dicionário.
Ao abordar as condições de produção e pensar como pode ser proferido e
orientado o discurso de um grupo social podemos inferir de acordo com Orlandi
(1999) que as condições de produção compreendem os sujeitos e a situação na qual
o seu discurso é proferido, interpretando o contexto, que engloba um determinado
discurso e a representação do sujeito por meio do enunciado que profere. Assim, as
condições de produção atuam diretamente na constituição dos sentidos e
contribuem para a análise de um acontecimento discursivo, apontando para as
imagens que o locutor faz do lugar de onde fala, de si mesmo, do outro e do
referente, imagens essas que direcionam e provocam sentidos em seu dizer.
Vejamos, a seguir, o perfil dos sete assentados entrevistados:
Quadro 1- Perfil dos entrevistados
Data da entrevista Sexo Idade Sem-terra Assentado
15/06/2015 Feminino (A1) 37 anos 04 anos 06 anos
22/06/2015 Feminino (A2) 29 anos 04 anos 06 anos
03/07/2015 Masculino (A3) 42 anos 03 anos 06 anos
10/07/2015 Feminino (A4) 44 anos 03 anos 06 anos
13/07/2015 Masculino (A5) 32 anos 03 anos 05 anos
25/07/2015 Masculino (A6) 44 anos 03 anos 06 anos

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03/08/2015 Feminino (A7) 47 anos 04 anos 06 anos


Fonte: Conteúdo das entrevistas.
Durante a constituição do córpus e depois de submetermos as entrevistas à
transcrição grafemática, conforme as Normas de Transcrição de Dados Orais de 254

Preti (2002), efetuamos a seleção dos enunciados, procedemos aos recortes e


verificamos as lexias recorrentes nos dizeres dos assentados, ao perguntarmos:
Como você acredita que a sociedade o vê na condição de assentado?
O conceito de entrevista, por sua vez é tratado por uma ótica discursiva que
se regulariza por uma produção situada na história e na sociedade, podendo ser
realizada num local combinado com o entrevistador, o que favorece um contato mais
direto com o entrevistado. Cabe lembrar que a entrevista não pode ser vista apenas
como um mero instrumento de coleta de opiniões que busca responder aos anseios
pessoais do entrevistador. Entendemos que ela tem o intuito de identificar, nas
práticas discursivas, o sentido do texto e realizar um trabalho de ressignificação,
com o propósito de chegar à compreensão do que (não) foi dito (ROCHA et. al.,
2004).

Análise dos dados

Abaixo segue o Quadro II, que retrata o registro do dicionário de Ferreira


(2010) e o recorte do discurso dos assentados nomeados como A1, A2, A3, A4, A5,
A6 e A7 como apresentado no Quadro I – Perfil dos entrevistados:
Quadro II – Palavras e recorte do discurso dos assentados
Palavras Discurso
Baderneiro [De baderna + eiro] Adj. S.m. Bras. A2: a gente sofre exclusão... chama a gente de
Que ou quem é dado a baderna (3a5); baderneiro... o tempo todo chamam.
bagunceiro, badernista. (p. 264)
A3: quem faz baderna... que é baderneiro... é
político... aqui a gente se organiza... o MST é
organizado.

A5: baderneiro é o povo de Brasília... a gente


tem lei... aqui não tem bagunça.

A6: a gente é excluído... é chamado de


baderneiro... mais a gente não é.
Caipira [De or. Controversa; tupi, poss] S.2g.1. A1: nossa... eles vive chamando a gente de
Bras. S. Habitante do campo ou da roça, caipira... a gente não é isso não... a gente não é
particularidade, os de pouca informação e de sem instrução... a gente não é burro.
convívio e modos rústicos e canhestros. [Sin.,
sendo alguns regionais: araruama, babaquara, A2: vixi... se chama de caipira... fico bravo... eu

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babeco, baiano, baiquara, beira-cargo, tenho conhecimento... não sei só as coisas da


beiradeiro, biriba ou biriva, brocoió, bruaqueiro, roça.
caapora, caboclo, caburé, cafumango, caiçara,
cambembe, camisão, canguaí, canguçu, capa- A3: não só capiau... não só caipira... faço parte
bode, capiau, capiau, capicongo, capuava, do MST... só politizado... tenho raízes... tenho
capurreiro, cariazal, casaca, casca grossa, conhecimento. 255
catatuá, catimbó, catrumano, chapadeiro, curau,
curúmba, groteiro, guasca, jeca, jacu, A7: caipira é aquele que dança em junho... é
macaqueiro, mambira, mandi ou mandim, gente cafona... aqui é gente de assentamento...
mandioqueiro, mano-juca, maratimba, mateiro, gente que sabe dos direitos e deveres.
matuto, mixanga, mixengo ou muxuango,
mocorongo, maqueta, mucufo, pé-duro, pé no
chão, proca, piraguara, piraquara, queijeiro,
retingueiro, roceiro, saquarema, sertanejo,
sitiano, tabaréu, taprocano, urumbela ou
urumbeva]. S.m. 2. Bras. N.E. Jogada de
parada, com um dado apenas, ou roleta, entre
gente de condição humilde. Adj. 2g. 3. Bras. Diz-
se do caipira (1) birila ou biriva, jeca, matuto,
roceiro, sertanejo. 5. Bras. Diz do indivíduo sem
traquejo, social, cafona casca-grossa.6. Bras.
Diz-se das festas juninas e do traje típico usado
nessas festas. [(f. (nas acepçs 1,3,4 e 5)
provinciado]~V.pagode-. (p.384)
Fichado [Pat. pass. de fichar]. Adj. Bras. A1: a gente não quer fichar... ser fichado dá
Registrado em ficha (7): É um sujeito fichado, problema... porque não dá para ser fichado não.
perigoso. (p. 939)
A2: ah fichado eu não quero ser... porque aí dá
problema... porque se o Incra descobre... a gente
perde as terras...

A4: ser fichado é besteira... não certo... nós se


compromete em trabalhar só na terra... então se
manté em empresa vai dar problema.

A7: se for para deixar ser fichado... é melhor


nem ir procura bico... porque o Incra descobri.
Pistoleiro. [De pistola + eiro] S.m. 1. Facínora, A1: ah se chamar de pistoleiro... o pau tora...
bandido. 2. V. capanga (4). 3. Assassino pistoleiro é demais né... somos trabalhadores e
profissional. (p. 1647) não marginais.

A4: aqui não tem capanga.. aqui não tem


bandido... aqui ninguém é pistoleiro...temos
trabalho.

A6: nós não matamos... não usamos de


violência... somos assentados... fomos sem-
terra... e não pistoleiro.

A7: então... o pior nome é de pistoleiro... eu


não aguento... a nossa arma é a pá... a gente
trabalha.
Fonte: Conteúdo das entrevistas.
Ao analisarmos a palavra “baderneiro”, notamos que o discurso dos
assentados se assemelham ao efeito de sentido do dicionário, mesmo não trazendo

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as definições “baderna e bagunceiro”, observamos que os entrevistados A2, A3, A5


e A6, mencionam que essa lexia remete o sentido de desordem e que não aceitam
essa definição, pois defendem que esse atributo não se identifica com o MST
256
(Movimento Sem Terra), por ser um movimento organizado. Além disso, o adjetivo
“baderneiro”, acentua nos enunciados o sentimento de exclusão apresentado na
identidade dos entrevistados.
Na palavra “caipira”, observamos que os dizeres dos assentados A1, A2, A3 e
A7, como na lexia “baderneiro” também se assemelham com o registro do dicionário
de Ferreira (2010), verificamos que esses sujeitos rejeitam que a representação de
caipira seja associada a sua imagem, pois proferem que esse adjetivo lhe trazem a
categorização de pessoa desprovida de conhecimento. Ainda notamos que os
assentados mencionam alguns registros do dicionário de Ferreira (2010): o
respondente A2 afirma que não é “capiau” e o A7, relata que não é “cafona”.
Portanto, as palavras: capiau e cafona, que definem o caipira no dicionário também
são apresentadas nos enunciados.
Já a palavra “fichado” registrada no dicionário e o “fichado” apresentado na
fala dos entrevistados A1, A2, A4 e A7 não se assemelham, pois no registro de
Ferreira (2010), observamos que a palavra qualifica alguém que tem os seus dados
numa ficha, que não vem definida como ficha trabalhista ou ainda define o indivíduo
que praticou um crime. Nos enunciados, esse atributo designa alguém que tem um
trabalho fixo e registro em carteira de trabalho. Situação essa, que não pode ser
vivida por esses sujeitos, pois como eles ressaltam, o INCRA (Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária) não permite que os eles trabalhem fora do
assentamento, pois devem tirar o seu sustento dos produtos que são cultivados na
terra onde moram.
Quanto a lexia “pistoleiro”, notamos que esse adjetivo é o que mais traz a
rejeição dos assentados A1, A4, A6 e A7, eles não concordam com essa
denominação e se sentem ofendidos quando são vistos por meio dessa
representação. Como no dicionário de Ferreira (2010) e no discurso desse grupo
social, essas palavras trazem o efeito de sentido de marginalização. Conceito esse
que se distancia da identidade que eles desejam passar para a sociedade, pois
querem ser vistos como trabalhadores e não como marginais.

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Considerações finais

257
Este estudo teve por objetivo analisar se os adjetivos: caipira, baderneiro,
fichado e pistoleiro registrados no dicionário de Ferreira (2010) (des)convergem com
o discurso apresentado por esse grupo social em entrevista gravada no próprio
Assentamento Celso Furtado, com sete entrevistados. Assim, ao observamos os
recortes, verificamos a repetição constante dessas lexias, o que nos empenhou a
buscar o registro dessas palavras na tentativa de contribuir com os estudos
lexicográficos.
Após a comparação dessas lexias especificadas no dicionário e o recorte dos
enunciados proferidos pelos assentados verificamos que diante da palavra “caipira”,
eles manifestaram algumas das definições apresentadas por Ferreira (2010), como
“capiau e cafona”, o que converge com a representação do dicionário. Ao nos
reportarmos a palavra “baderneiro” descrita por Ferreira (2010) empreendemos pelo
discurso dos assentados que o conceito de bagunça se assemelha ao dicionário,
pois apresenta o sentido de desordem e desorganização. Já a lexia “fichado”
representa o trabalho realizado fora do assentamento e prestado para alguma
empresa, não convergindo com o sentido apresentado pelo autor, já que a palavra
retrata alguém que possa ter os seus dados incluídos em uma ficha ou um indivíduo
que traz perigo a sociedade. Por fim, a lexia “pistoleiro”, converge com o dicionário,
pois apresenta a representação negativa e emana o mesmo efeito de sentido na voz
dos assentados.
Esperamos que os resultados desta pesquisa contribuam de alguma forma
para os estudos lexicográficos e o também para o reconhecimento dos assentados
como participantes do tecido social, o que corroboraria para a desmistificação da
imagem do sem-terra explorador, aproveitador e depredador. Além disso,
acreditamos que pesquisas voltadas para cidadãos que têm a sua identidade
moldada por uma sociedade discriminatória possam ganhar voz e conquistar o seu
lugar na sociedade.

Referências

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

BIDERMAN, Maria Teresa Camargo. Teoria Linguística (teoria lexical e


computacional). São Paulo: Martins Fonste, 2001a.
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______. Os dicionários na contemporaneidade: arquitetura, métodos e técnicas. In:
As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. OLIVEIRA, Ana Maria
Pinto Pires; ISQUERDO, Aparecida Negri. (orgs.). Campo Grande – MS.: Ed.
UFMS, 2001b.

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do movimento sem-terra. São Paulo:


Expressão Popular, 2004.

FERRAZ. Aderlaine Perreira. Neologismo na publicidade impressa: processos mais


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Maria. As Ciências do Léxico. Lexicologia, Lexicografia, Terminologia. VIII. Campo
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ISQUERDO, Aparecida Neri. Normas lexicais no português do Brasil e desafios para


a lexicografia brasileira In: MAGALHÃES, José Sueli; TRAVAGLIA, Luiz Carlos
(Orgs). Múltiplas Perspectivas em Linguística. Uberlândia: EDUFU, 2008, p.447-458.
MARTINS, José de Souza. O sujeito oculto: ordem e transgressão na reforma
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______. O cativeiro da terra. São Paulo: Contexto, 2010.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos.


Campinas: Pontes, 1999.

PRETI, Dino. Interação na fala da escrita. São Paulo: Humanitas/FELCH/USP, 2002.


p. 15 e 16.

ROCHA, D.; DAHER, M. D. C.; SANT’ANNA. A entrevista em situação de pesquisa


acadêmica: reflexões numa perspectiva discursiva. Polifonia. Cuiabá: EDUFMT,
2004, p. 161-180.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Make history: a tessitura argumentativa em uma


peça publicitária da Jeep
Make history: the argument construction in a Jeep’s advertising piece 259

Julianne Rosy do Valle Satil (PG-UEL)


Como a Ilha da Fantasia, a mensagem publicitária
é o reino da felicidade e da perfeição.
(CARVALHO, 2000, p.20)

INTRODUÇÃO

O discurso publicitário tem se tornado objeto de interesse entre as várias


áreas de pesquisa dentro dos Estudos da Linguagem, por apresentar grande
expressividade, persuasão, e por estar presente no cotidiano de grande parte dos
sujeitos de nossa sociedade. Por isso, elegemos a peça publicitária Seu nome, sua
história, parte da campanha Make history (em português, “Faça história”), da
empresa automotiva Jeep, como corpus de análise deste estudo.
Observando a relevância dos elementos gramaticais para a construção
argumentativa do texto escolhido, utilizamos como fundamentação teórica as
contribuições advindas da Semântica Argumentativa, desenvolvida por Oswald
Ducrot. Para o linguista, a “argumentação está na língua” (DUCROT, 1989, p.16), ou
seja, a língua é o meio privilegiado para que a persuasão aconteça.
A estrutura do trabalho está dividida em três etapas. Em um primeiro
momento, apresentaremos as particularidades do texto publicitário. Em seguida,
uma breve contextualização histórica dos estudos da Gramática e da Semântica
Argumentativa. Por fim, analisaremos alguns dos elementos persuasivos –
estratégias de manipulação – contidos no texto selecionado, visto que tais recursos
buscam “atingir a vontade, o sentimento do(s) interlocutor(es), por meio de
argumentos plausíveis ou verossímeis e têm caráter ideológico, subjetivo, temporal”
(KOCH, 1996, p.20).

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O TEXTO PUBLICITÁRIO
260

O discurso propagandístico, assim como qualquer outro discurso, não é


ingênuo. A publicidade utiliza como matéria-prima a linguagem – essencialmente
ideológica – trabalhando com a emoção, com o desejo, com o sonho, fatores que
motivam as relações de consumo. Para que o receptor da mensagem publicitária
efetive a compra, tornando-se consumidor/cliente da marca, os produtores do texto
valem-se de inúmeras estratégias de elaboração da linguagem. Trabalham com as
palavras, na busca da persuasão de seu público-alvo.

Os profissionais da linguagem publicitária estão conscientes de que, para


vender um produto, o consumidor precisa ser emocionalmente envolvido por
um texto sedutor, um texto que o conduza à finalização da compra. E para
que tal processo de concretize, a propaganda deve explorar, de forma
peremptória, os recursos linguísticos responsáveis pela tessitura persuasiva
do texto, já que a argumentatividade é própria do uso da linguagem e fator
básico que subjaz à organização de todo e qualquer discurso. (OLIVEIRA;
AZEVEDO; NASCIMENTO, 2008, p.121)

Distanciando-se do que é negativo ou triste, a publicidade busca construir um


espaço comunicativo em que o interlocutor se sinta envolvido por valores voltados à
familiaridade, confiança, pessoalidade, os quais são estratégias persuasivas e visam
a instauração de um relacionamento com o cliente. Nessa perspectiva, afirma
Carvalho (2000, p.11):

Ao contrário do panorama caótico do mundo apresentado nos noticiários


dos jornais, a mensagem publicitária cria e exibe um mundo perfeito e ideal,
verdadeira ilha da deusa Calipso, que acolheu Ulisses em sua Odisséia –
sem guerras, fome, deterioração ou subdesenvolvimento. Tudo são luzes,
calor e encanto, numa beleza perfeita e não-perecível.

É necessário destacar que esse universo prazeroso e agradável sempre


estará associado ao uso de determinado produto ou marca. Ao mesmo tempo em
que os divulga, a publicidades exalta, também, suas qualidades. Assim, se o

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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indivíduo os consome, será possuidor dessas qualidades também, usufruindo das


características associadas ao produto/marca.

GRAMÁTICA E SEMÂNTICA ARGUMENTATIVA: BREVE CONTEXTO 261

Os elementos gramaticais – componentes estruturantes da língua – são


recursos essenciais para a construção da atmosfera argumentativa dos textos,
especialmente, a do publicitário. Nossa proposta de análise objetiva unir a
Gramática, abordada, aqui, não apenas como compêndio de regras, mas como
ciência, à Semântica Argumentativa.
Na Grécia Antiga, a gramática era vista como arte do falar e escrever, suas
normas eram inspiradas no uso que os escritores consagrados faziam da língua. De
acordo com Britto (1997, p. 47), essa primeira definição seria

uma atualização do conceito de gramática de Dionísio Trácio: ‘A arte da


gramática (das Letras) é o trato das coisas ditas com mais freqüência nos
poetas e prosadores.” Sob esta perspectiva de gramática, a única variedade
realmente válida é a norma culta ou padrão. As demais variedades
lingüísticas são consideradas desvios da língua.

Com o surgimento da Linguística Textual, na década de 1970, é revista a


verdadeira função da Gramática, que deixa de ser baseada nos grandes escritores,
deixa de ser cópia, modelo e passa a ser considerada um mecanismo para o
trabalho com os efeitos de sentido, passa a ser o lugar de reflexão sobre
conhecimento linguístico.
O verdadeiro leitor lê nas entrelinhas, tem o aparato para alcançar o sentido e
não apenas decodificar. Dessa maneira, a Gramática possibilita o trabalho linguístico
e a compreensão de seus efeitos de sentido – possibilita a interpretação.
No início da década de 1970, Oswald Ducrot elabora a Semântica
Argumentativa ou Teoria da Argumentação na Língua (TAL). Nas duas primeiras
fases da teoria, conta com a colaboração de Jean-Claude Anscombre, na terceira,
faz parceria com Marion Carel. Inspirado pelo Estruturalismo e pela Teoria da
Enunciação, o estudioso recebe influência dos trabalhos de Ferdinand de Saussure
e de Émile Benveniste.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Assim como Benveniste, Ducrot aborda, em suas análises linguísticas, o


termo “enunciação”, no entanto, cada autor apresenta sua própria definição do
conceito. Para Benveniste (2006, p.82), o processo de enunciação é “colocar em
262
funcionamento a língua por um ato individual de utilização”, ou seja, o sujeito deixa
marcas nos enunciados. Por sua vez, Ducrot (1987, p.168) defende que a
enunciação é “o acontecimento constituído pelo aparecimento de um enunciado”.
Acrescentando que, na realização de um enunciado, instaura-se um acontecimento
histórico: “é dada existência a alguma coisa que não existia antes de se falar e que
não existirá mais depois” (DUCROT, 1987, p.168).
De acordo com Ferreira (2005), a Semântica Argumentativa teve início no
Brasil, com a tese de doutorado de Carlos Vogt, iniciada em Paris, sob orientação do
próprio Ducrot, e defendida na UNICAMP, em 1974. Desde então, essa teoria vem
sendo estudada por vários linguistas brasileiros, entre eles, Ingedore Koch e
Eduardo Guimarães.

ANÁLISE DO CORPUS

A argumentação depende de um repertório de investimentos linguísticos com


o objetivo de comunicar valores, manifestar ideologias e convencer o interlocutor,
em um complexo processo de manipulação.
Neste trabalho, analisaremos a peça publicitária Seu nome, sua história,
integrante da campanha Make history, da empresa automotiva Jeep. Essa
campanha começou a ser veiculada no mês de fevereiro de 2015 e marca o início da
fabricação do modelo Renegade em território nacional. O texto faz parte de um
vídeo, com duração de um minuto, e possui uma grande quantidade de elementos
persuasivos. Entretanto, neste estudo, focalizaremos os recursos retóricos de maior
interesse para a construção argumental da referida peça publicitária, são eles:
operadores argumentativos (“porque”, “só”, “e”), figuras de repetição (paralelismo,
reiteração, paráfrase), gradação, fatores de textualidade (aceitabilidade e
intencionalidade), estrangeirismo e seleção lexical.
Apresentaremos o texto e em seguida, iniciaremos sua análise.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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[01] SEU NOME, SUA HISTÓRIA

Tenha orgulho do seu nome.


Ele define você.
É a sua identidade. 263
[05] Sua marca no mundo.
O seu nome carrega uma história que é só sua.
Ninguém pode apagar.
Nem hoje, nem amanhã, nem nunca.
Porque só existe um de você.
[10] Só existe um de nós.
E é isso que importa no final:
Que a sua história seja única.

Jeep. Make history.

(Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qqtTHkPfmDQ.


Acesso em 28 fev. 2016)

Figura 1 – Recorte do vídeo publicitário Jeep

FONTE: Canal Youtube

Figura 2 – Recorte do vídeo publicitário Jeep

FONTE: Canal Youtube

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Figura 3 – Recorte do vídeo publicitário Jeep

264

FONTE: Canal Youtube

Os operadores argumentativos são elementos linguísticos que expressam o


valor persuasivo dos enunciados, revelando o posicionamento assumido pelo
enunciador ao dizer algo.
Dentro da Gramática Normativa, os operadores podem se enquadrar em
várias categorias, podem ser conjunções, preposições, advérbios, pronomes. Os
operadores podem, de acordo com alguns estudiosos, até mesmo, não fazer parte
de nenhuma dessas classes. Koch (2004, p.30) explica que o conceito foi “cunhado
por O. Ducrot , criador da Semântica Argumentativa (ou Semântica da Enunciação) ,
para designar certos elementos da gramática de uma língua que têm por função
indicar (‘mostrar’) a força argumentativa dos enunciados, a direção (sentido) para o
qual apontam”. Para a Semântica Argumentativa, tais palavras fazem parte de um
inventário de “conectores argumentativos que desdobram efeitos de sentidos
originais nos contextos singulares em que se inserem” (MAINGUENEAU, 1996,
p.65).
Nesta análise, trabalharemos com alguns dos operadores mais relevantes do
texto, são eles: “porque”, “só”, “e”. O operador “só” (advérbio para a Gramática
Normativa) aparece em vários momentos do texto. Na linha 06, “O seu nome carrega
uma história que é só sua”; na linha 09, “Porque só existe um de você”; na linha 10,
“Só existe um de nós”, a relação semântica estabelecida é de restrição, fortalecendo
ainda mais a ideia de identidade, de unicidade que permeia todo o texto. Na linha
09, vale destacar a presença do operador “porque”, que introduz uma justificativa,

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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uma explicação, retomando, também, a ideia de “ser único”, recorrente ao longo da


publicidade apresentada.
No geral, o operador “e” (conjunção coordenativa aditiva em nível gramatical)
265
indica a adição de argumentos de igual valor, porém possui uma grande
versatilidade na construção argumentativa, podendo indicar diversas relações
semânticas. Nesse sentido, Oliveira (1996, p. 78) afirma que “o conector E é
fortemente polissêmico podendo significar conclusão, conseqüência, tempo
simultâneo, tempo posterior, contraste, reforço argumentativo e restrição (= E
adversativo)”.
Na linha 11, no trecho “E é isso que importa no final”, o “e” é utilizado para
apresentar uma conclusão, mostrando, mais uma vez, sua capacidade de instaurar
efeitos de sentidos variados, extrapolando a simples soma de argumentos.
Segundo Fairclough (2001, p. 259), “a publicidade é discurso ‘estratégico’ por
excelência”, nessa perspectiva, um dos procedimentos persuasivos mais presentes
no gênero é a intensificação. Sobre a questão, observa Koch (2009, p.83):

A presença de elementos de recorrência num texto produz quase sempre


um efeito de intensificação, de ênfase, isto é, tem função retórica. ‘Martela-
se’ na cabeça do ouvinte/leitor, repetindo palavras, estruturas, conteúdos
semânticos, recursos sonoros etc., de tal modo que a mensagem se torne
mais presente em sua memória – não é o que faz a propaganda? – e ele
acabe por criar um hábito ou aceite sua orientação argumentativa.

No que diz respeito aos processos intensificadores relacionados à repetição,


identificamos três figuras: a reiteração (nível lexical), paralelismo (nível sintático) e a
paráfrase (nível semântico).
A reiteração é a repetição de uma mesma palavra sem uma posição fixa. No
texto, são repetidos os pronomes possessivos “seu” (linhas 01, 02, 06) e “sua”
(linhas 01,04, 05, 06,12); substantivos “nome” (linha 01,02,06) e “história” (01, 06,
12). A força semântica dos termos repetidos reforça o sentido do texto – “ser único”.
O paralelismo, conforme Martins (1989, p. 176), “é uma frase retórica por
excelência”, transmitindo “a sensação de um movimento ondulatório”. Nesta figura, o
foco é a recorrência de estruturas sintáticas, como acontece nas linhas 09 e 10 em
que são apresentadas orações subordinadas adverbiais causais.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Ninguém pode apagar [linha 07] – porque só existe um de você. [linha 09]
(Ninguém pode apagar [linha 07] – porque) só existe um de nós. [linha 10]

266
A paráfrase, retomada de um mesmo conteúdo semântico, é um mecanismo
muito utilizado ao longo do texto. Para identificar o substantivo “nome” sempre
precedido pelo pronome possessivo “seu”, são mobilizadas concepções, como
podemos observar: “define você” (linha 03), “é a sua identidade” (linha 04), “sua
marca no mundo” (linha 05), “carrega uma história que é só sua” (linha 06). Vale
ressaltar que os efeitos de sentido produzidos convergem para uma mesma relação
nome – história – identidade/unicidade. A relação entre os substantivos “nome’ e
“história”, dentro do contexto da publicidade, é tão íntima que um chega a ser
sinônimo do outro, conforme podemos observar no título do texto “Seu nome, sua
história”, onde a equivalência se mostra mais explicitamente.
Temos, ainda, como figura de linguagem a presença da gradação, como
podemos observar no encadeamento de ideias “Nem hoje, nem amanhã, nem
nunca” (linha 08). Constamos uma progressão ascendente que vai se intensificando
até alcançar o clímax, reforçando, assim, a mensagem transmitida, ou seja, que a
história de vida é eterna, impossível de se apagar.
Sendo assim, podemos afirmar que as figuras de repetição contribuem para a
intensificação do caráter persuasivo do texto, sendo mecanismos altamente
argumentativos.
Durante a análise, contatamos, também, um trabalho com os fatores de
textualidade. Costa Val (1999, p.05) cita os sete critérios de textualidade, baseados
nas pesquisas de Beaugrande e Dressler:

Beaugrande e Dressler (1983) apontam sete fatores responsáveis pela


textualidade de um discurso qualquer: a coerência e a coesão, que se
relacionam com o material conceitual e linguístico do texto, e a
intencionalidade, a aceitabilidade, a situacionalidade, a informatividade e a
intertextualidade, que tem a ver com fatores pragmáticos envolvidos no
processo comunicativo.

Por se tratar de uma peça publicitária, vamos focalizar nos dois princípios
muito utilizados dentro do discurso propagandístico e que se referem aos
protagonistas da ação comunicativa: a aceitabilidade e a intencionalidade.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A intencionalidade está intimamente relacionada à etapa inicial de produção


do texto, momento em que o emissor reflete a melhor maneira de concretizar o seu
objetivo comunicativo, a melhor forma de persuadir seu interlocutor. Beaugrande e
267
Dressler (1981) defendem que, para uma manifestação linguística se organizar em
texto, é primordial que haja a intenção daquele que formula o discurso em expô-la
aos receptores e destes de acatá-la, de seguir a orientação argumentativa proposta
pelo emissor. Desse modo, a produção de textos – especialmente no universo
propagandístico – funciona como ação discursiva relevante para atingir objetivos
específicos – o de conduzir o consumidor à efetivação da compra.
A intencionalidade, portanto, relaciona-se diretamente à aceitabilidade, não
sendo possível desagregá-las, visto que o texto inscreve-se na situação
comunicativa em que estabelecemos interação, portanto, sua organização sempre
indicará a pertinência dos nossos objetivos, sempre será manifestará uma
motivação.
O princípio da aceitabilidade liga-se ao comportamento do interlocutor frente
aos textos, avaliando se há relevância ou serventia para ele. Conforme já
apresentamos, tal fator de textualidade está vinculado, especialmente, à
intencionalidade, que se relaciona ao produtor da mensagem, o qual buscará – da
melhor maneira possível, utilizando-se de estratégias – apresentar um texto que
agrade e convença o receptor/consumidor
Os recursos utilizados no texto analisado, a forma como a propaganda foi
construída, é coerente ao público-alvo da marca Jeep. São consumidores que
gostam de aventura, contato com a natureza, jovens, mas que buscam, também,
refinamento e elegância. Reboul (2004, p.86) ressalta que tais sentimentos
costumam ser os mais vislumbrados pela sociedade atual, declarando: “Lembremos
os lugares mais conhecidos: juventude, sedução, saúde, prazer, status, diferença,
natureza, autenticidade, relação qualidade/preço”
No vídeo, com duração de um minuto, são exibidas imagens que sustentam
esse direcionamento. É necessário ressaltar que o trabalho é feito também com a
linguagem não verbal, ao final do vídeo, alguns enunciados do texto são dispostos
de forma vertical e formam a imagem frontal de um veículo da Jeep, como pode ser
observado nas figuras 01 e 02.

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A linguagem publicitária seduz, por se dirigir diretamente ao leitor/consumidor,


buscando, cada vez mais, uma aproximação. Para Breton (2003, p. 64) “argumentar
é mais do que simplesmente conceber um argumento. É também, mais globalmente
268
comunicar, dirigir-se ao outro, propor-lhe boas razões para ser convencido a
partilhar de uma opinião”. Nesse sentido, o texto publicitário utiliza muitos artifícios
sempre visando a persuasão do leitor.
No texto em questão, verificamos a presença do modo imperativo,
característico da propaganda, “Tenha [você] orgulho do seu nome” (linha 02). Além
disso, é recorrente o uso dos pronomes possessivos “seu” e “sua”, os quais remetem
à segunda pessoa do discurso – e terceira pessoa gramatical – você. Desse modo, o
enunciatário se sente mais próximo do enunciador e pode, dessa maneira, ser
persuadido mais facilmente.
Ainda sobre o uso do imperativo, no final do texto, observamos a presença da
expressão estrangeira Make history, em português, “Faça história”, aparecendo ao
final do vídeo, conforme figura 03. O uso de estrangeirismos na publicidade garante
um aspecto mais sofisticado, mais requintado ao produto que está sendo
apresentado. Aqueles que conhecem, mesmo que minimamente, o universo
automotivo sabem que os carros da Jeep não se enquadram em padrões populares,
assim, o uso do estrangeirismo, neste caso, da língua inglesa, demonstra que o
cliente da marca é diferenciado e único.
Sandmann (1993, p.35), evidencia alguns valores presentes nos textos
publicitários:

[...] o valor do tradicional, do antigo, conjugado muitas vezes com o


moderno e com o que tem qualidade; a juventude e a beleza que podem ser
permanentes ou imutáveis; o requinte dos alimentos, bebidas, trajes ou
espaços físicos, ecologia e alimentos naturais; o vestir-se de acordo com a
moda; sucesso pessoal ou profissional manifestado pela riqueza, pelos
bens, roupas, carros, moradia, padrão alto de vida, status social; a eficiência
de artigos de beleza ou roupas, principalmente as roupas íntimas femininas,
para o início ou continuidade das relações eróticas; o apreço pelo que tem
origem estrangeira, com destaque ao que é de origem francesa,
principalmente, ou anglo-saxã.

Observamos, então, que ao desenvolver a peça publicitária em análise, a


seleção lexical foi fortemente trabalhada, visto que o uso da linguagem cria uma

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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atmosfera que envolve o leitor/cliente em um sentimento de unicidade, de ser único


no mundo e também de requinte e status social. Dentro desse universo em que se é
especial, único, a grande proeza da Jeep revela-se na escolha da palavra “marca”
269
(linha 05), que mobiliza alguns sentidos dentro do contexto do texto, podendo
significar o que torna uma pessoa única, especial, diferente das outras, mas que,
também, remete a própria marca de veículos Jeep. Dessa maneira, “seu nome” é
“sua história”, logo adquirir um veículo da conceituada marca (nome) Jeep, permite
ao comprador fazer história, uma história única.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O universo da publicidade produz textos dotados de intenções e de forte


trabalho com a linguagem, exigindo que conheçamos seus artifícios argumentativos,
visto que tudo o que é apresentado ao leitor (futuro consumidor) é meticulosamente
organizado. Por inúmeros mecanismos, a argumentação é conscientemente
arquitetada, é construída intencionalmente e, por meio dela, o enunciador evidencia,
também, a ideologia da qual partilha:

Como ser dotado de razão e vontade, o homem,


constantemente, avalia, julga, critica, isto é, forma juízos e
valor. Por outro lado, por meio do discurso – ação verbal
dotada de intencionalidade – tenta fluir sobre o comportamento
do outro ou fazer com que compartilhe determinadas de suas
opiniões. É por esta razão que se pode afirmar que o ATO DE
ARGUMENTAR constitui o ato lingüístico fundamental, pois A
TODO E QUALQUER MOMENTO SUBJAZ UMA IDEOLOGIA,
na acepção mais ampla do termo. A neutralidade é apenas um
mito: o discurso que se pretende “neutro”, ingênuo, contém
também uma ideologia – a da sua própria objetividade. (KOCH,
1996, p. 19, grifos da autora)

Comprovamos, portanto, que o processo de construção de um texto


publicitário é complexo, envolvendo escolhas linguísticas e intenso trabalho com a
linguagem. Todo o desenvolvimento da argumentação visa a uma interação mais
eficiente com o leitor/consumidor, buscando sua persuasão.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Neste artigo, não esgotamos a investigação no que diz respeito à construção


argumentativa do texto escolhido, sendo possível, em outra oportunidade, a análise
mais aprofundada de seus mecanismos linguístico-argumentativos.
270

REFERÊNCIAS

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In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Metacognição e semiótica como objetos


modais para a autonomia e abertura da 272

percepção na Escola Pública de Três Lagoas

Metacognition and semiotics as modal objects for autonomy and


opening of perception in the public school of Três Lagoas

Valdenildo dos Santos (UFMS-PG)


Ana Paula Teixeira de Amorin Rodrigues (UFMS-M)
Gustavo Pinheiro Queiroz (UFMS-G)

RESUMO: Este trabalho apresenta os conceitos para cognição, metacognição e sociocognição como
forma de compreensão da atividade do aluno leitor da escola pública de Três Lagoas, mediante
pesquisa em sala de aula da Escola Estadual “Dom Aquino”. Seu objetivo primeiro é mostrar que os
alunos leitores embora utilizem alguns dos conceitos aqui mencionados em sua abordagem de
leitura, não tem consciência do processo e que, a partir de pesquisa e sequência didáticas esse
quadro seria mudado provocando maior autonomia deste aluno leitor e, em consequência, de seu
próprio desenvolvimento cognitivo, metacognitivo e sociocognitivo, levando-o fatalmente à desejada
autonomia. O material utilizado são textos que trazem os conceitos e resgatam tais abordagens e
pesquisas quantitativas e qualitativas cujos resultados obtidos mostraram que as hipóteses estavam
corretas e que o conhecimento dos alunos de tais processos mentais trouxe-lhes autonomia no ato de
ler e escrever. Conclui-se, portanto, que a utilização de tais mecanismos alinhados aos processos
semióticos de leitura crítica do texto contribuem de forma decisiva em sua formação escolar não só
como bons leitores, mas também como leitores críticos.
Palavras-chaves: cognição, metacognição, sociocognição, autonomia, semiótica, leitura crítica.

ABSTRACT: This paper presents the concepts for cognition, metacognition and sociocognition as a
way of understanding the activity of the reader student of the public school of Três Lagoas, through
research in the classroom of the State School "Dom Aquino." Its first goal is to show that these reader
students while using some of the concepts in their reading approach have no consciousness of the
process and that it could be changed through research and teaching sequence causing greater
autonomy for them and, consequently, for their own cognitive, metacognitive and social-cognitive
awareness, leading them inevitably to the desired autonomy. The material used are texts that bring
the concepts and rescue such approaches, quantitative and qualitative research whose results
showed that the assumptions were correct and that the students' knowledge of such mental processes
brought them autonomy in the act of reading and writing. It follows, therefore, that the use of such
mechanisms aligned with the semiotic processes of critical reading of the text contribute decisively in
their education not only as good readers, but also as critical readers.

Keywords: cognition, metacognition, sociocognition, autonomy, semiotics, critical reading.

Introdução
Cogito, ergo sum1.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Segundo René Descartes é preciso pensar para existir. Marcamos nossa


existência, deste ponto de vista, pelo exercício do pensamento. É esse “pensar” que
nos interessa aqui, como objeto modal da autonomia, do ato de ler e escrever, do
273
saber sobre o ser no mundo. Para ser no mundo é preciso que desenvolvamos a
criticidade e aprofundemos nossa percepção de tudo que nos cerca. É, igualmente,
em como adquirir esse saber que estamos interessados.
Partindo deste princípio, este trabalho apresenta os conceitos etimológicos
para cognição, metacognição e sociocognição com destaque ao termo
metacognição, a ação de pensar e refletir sobre os próprios pensamentos, ou sobre
a atividade mental de si mesmo.
Num segundo momento mostra as pesquisas realizadas com 26 alunos da
Escola Dom Aquino de Três Lagoas, que pertencem ao Estado e que fornecem
instrução para os educandos do ensino fundamental e médio.
Finalizando-o, a proposta de que ao desenvolvermos nestes alunos a
consciência dos processos metacognitivos aliados, por meio de sequências didáticas
com os níveis de leituras possíveis do texto num viés semiótico, teríamos como
resultado certa autonomia e a abertura da percepção do sentido no interior do texto.

Cognição, metacognição e sociocognição.

A “aquisição do conhecimento”, o “conhecimento”, a “percepção” é o que


define etimologicamente o termo cognição, (1873), do latim cognitio-onis (CUNHA,
1997, p. 193). O “Arcade Dictionary of Word Origins” de John Ayto (1990, p. 123) já
explicava a origem do termo como vindo do verbo latino cognit que produziu o
substantivo cognitio, fonte da palavra “cognition”, em inglês, “the act or experience of
knowing, including consciousness of things and judgement about them” (LOGMAN,
1992, p. 239).
Como vemos, esta segunda definição amplia o raio de alcance da palavra,
posto que se refere ao ato ou experiência do saber, incluindo a consciência das
coisas e seu julgamento. Entramos, deste modo, numa relação próxima entre os
termos cognição e metacognição, posto que o segundo não aparece nos dicionários
(pelo menos naqueles que foram aqui pesquisados e que constam da nossa

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

referência) e foi usado pela primeira vez por John H. Flavell (1979), ao realizar
pesquisas sobre a metamemória infantil, ou seja, o saber e controle que as crianças
tinham do processamento de sua memória.
274
O prefixo grego “meta”, como Cunha o apresenta, “expressa as ideias de
comunidade ou participação, mistura ou intermediação e sucessão” (1997, p. 516)
conduzindo-nos ao pensar no conceito de sociocognição, a junção de socius do
Latim, “associado, companheiro, aliado”, repercutindo a ideia de agregar, unir,
reunir, associar. Logo, há uma aproximação entre os três termos que, neste artigo,
quer que desaguem em autonomia, o gerenciamento próprio dos afazeres, da
expressão cognitiva, da aquisição do conhecimento, do ato de ler e escrever de
maneira crítica, num pleno exercício de cidadania.

As Pesquisas de Flavell e Brown.

Flavell descobriu que ao aumentar a quantidade e qualidade do


conhecimento, da consciência da criança sobre como se processa a aquisição do
saber, o que ele vai chamar de “children’s metacognitive knowledge” e monitorar as
habilidades através de um treinamento sistemático “may be feasible as well as
desirable” (1979, p. 906).
Além de Flavell, a estudiosa da psicologia do desenvolvimento Ann Brown
(1943-1999) também estava interessada no assunto, mas foi com Kreutzer e
Leonard que Flavell (1975) entrevistou crianças na pré escola, séries 1ª, 3ª, e 5ª a
fim de determinar seu conhecimento sobre o funcionamento de sua memória.
A metodologia utilizada pelos estudiosos envolvia perguntas abertas sobre
situações baseadas em sugestões usando o saber de uma pessoa, a tarefa e varias
estratégias que influenciavam a memória.
Um exemplo descrito por Linda Baker (2009)1 consistia em perguntar as
crianças como elas poderiam ter certeza de se lembrar de levar seus “skates” para a
escola no dia seguinte de aula e como se lembrariam de um número de telefone e
se seria mais fácil ou mais difícil se lembrarem de uma lista de palavras que já
tinham estudado. As respostas revelaram que mesmo as crianças menores tinham

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

algum conhecimento do funcionamento de sua memória, mas eram as crianças mais


velhas que apresentaram maiores percepções.
Brown utilizava fotos de objetos simples, materiais acadêmicos e prosa,
275
conforme suas publicações “Knowing when, where, and how to remember: A
problem of metacognition” (1978) e Metacognitive development and reading (1980).
É, portanto, na segunda metade da década de 70 que os estudos sobre
metacognição ganham corpo.
As pesquisas de Brown nos idos de 1970 sobre as habilidades das crianças
de acessar sua própria leitura para serem testadas quanto à sua capacidade de se
lembrarem das experiências ou informações recebidas no uso de material de apoio
didático pedagógico, como fotos de objetos comuns, resultaram com a maior
naturalidade em investigações sobre o papel da metacognição nos estudos de
material acadêmico e na compreensão de prosa. É na década de 80, todavia, que
Brown apresenta a metacognição à comunidade de pesquisadores da leitura e
contribui de forma decisiva na linha ativa de inquisição de domínio específico do
assunto.
É preciso salientar, no entanto, que embora seja Flavell que utilize o termo
“metacognição” pela primeira vez e se reconheça a importância de suas pesquisas,
das pesquisas de Brown nas décadas de 70 e 80, já existiam pesquisadores
interessados no assunto no início do século passado, documentando a importância
das atividades de monitoramento e regulação dos processos de compreensão da
leitura.
Na década de sessenta, por exemplo, surgem os pesquisadores da memória
que estudavam as sensações, as emoções, os sentimentos das crianças ao fazerem
o monitoramento de seu pensamento, fazendo surgir os modelos de processamento
da informação da década de 70 como os sistemas de controle executivos que
regulam os processos cognitivos básicos.
Além destes pesquisadores, o psicólogo soviético Lev Vygotsky (1896-1934)
e o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) já incluíam em suas teorias sobre o
pensamento das crianças os processos metacognitivos. Vygotsky, por exemplo,
observou que as crianças desenvolviam a capacidade da auto regulação de suas

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

atividades por meio da interação com outras crianças que possuíam mais
conhecimento que elas.
Dentre as anotações de Vigotsky podemos citar: a) assunção da
276
responsabilidade do progresso do monitoramento; b) o estabelecimento de metas; c)
o planejamento das atividades e d) a alocação da atenção, o que chamou de
processos executivos nos quais a responsabilidade da execução do processo de
leitura, do aprendizado, é dada de forma gradual, tornando os alunos capazes de
regular suas próprias atividades cognitivas.
Desta forma, a marca indicativa de excelência da metacognição surge no
início do ano 2000, como sendo a transição entre ser regulado pelos outros e ter seu
próprio regulamento, se fazer a própria regulação das atividades.
Foi Piaget quem descobriu e teorizou que os semelhantes, os colegas numa
sala de aula, por exemplo, desafiam os pensamentos uns dos outros e, por assim
fazerem, desenvolvem sua cognição. Ao levar uma criança a pensar em seu próprio
pensamento a induzimos à prática da metacognição.
Desta forma, na verdade, é a teoria vigotskiana que fundamenta as
intervenções em sala de aula nos dias atuais que começam com as instruções
explícitas por parte do professor, seguidas da prática dirigida e modelada das
estratégias metacognitivas e cognitivas, com a liberação gradual da
responsabilidade aos alunos.
O professor é, assim, o sujeito destinador que delega ao aluno a
responsabilidade do processo do aprendizado, ou seja, da leitura, no caso, de um
texto, fazendo o próprio monitoramento do passo a passo que chegará ao término
do processo, momento da auto avaliação e do repensar das atividades com base no
que funcionou melhor durante o processo para a solução dos problemas
encontrados.
São, portanto, os trabalhos de Flavell, Brown, Palincsar e tantos outros mais
recentes, inclusive no Brasil (LEFFA, 1996, SILVEIRA, 2005, GERALDI, 2010 dentre
outros) que refletem as imagens passadistas da teoria de Piaget, que revelam que
as discussões, os debates e a colaboração ajudam os estudantes a monitorar sua
própria compreensão e construir novas capacidades estratégicas.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A pesquisa em sala de aula da Escola “Dom Aquino”.

A pesquisa foi realizada por meio da aplicação de um questionário


277
quantitativo e qualitativo com vinte perguntas sobre cognição, sociocognição,
metacognição e leitura, elaborado durante as aulas do Mestrado Profissional em
Letras no segundo semestre de 2015, que foi levado à sala de aula para verificar
junto aos educandos do 8º ano “C” do ensino fundamental da escola pública “Dom
Aquino” de Três Lagoas seu nível de consciência quanto às atividades cognitivas,
metacognitivas e sociocognitivas e seu ritual de leituras.
Verificou-se pela pesquisa que nenhum dos alunos, dos 26 pesquisados,
conhecia os termos cognição, sociocognição e metacognição. A partir dessa
descoberta intuímos que tais alunos não possuem nenhuma estratégia de regulação
ou controle de sua aprendizagem, ou se a possuem, fazem isso de maneira
inconsciente, o que pode implicar significativamente no processo de aprendizagem.
Averiguou-se, depois, o seu nível de conhecimento sobre os termos apresentados,
passando a perguntas relacionadas à leitura.
Os 26 alunos pesquisados conheciam o termo “leitura”, sendo que a maioria
definiram-na como “ler”, não dando mais pistas sobre suas possíveis formas ou
definições, se ato de decodificar, extrair do texto o máximo da mensagem que o
autor quis imprimir, sistema de comunicação, ou uma constante interrogação do
texto (NUTTAL, 1987, p. 5-10).
Em relação à frequência da leitura, a maioria (20) lê todos os dias, num rito
cotidiano, a bíblia, redes sociais (facebook); mensagens de whats app; livros
didáticos; placas; crônica; ficção (A culpa é das estrelas); histórias em quadrinhos;
sites; matéria escolar e; histórias de guerras e mangás1.
Quanto ao grau de dificuldade ao lerem um texto e não entendê-lo e a busca
da solução do problema, o que fazer, observem as respostas:
- “Pergunto para a professora”,
- “Nada”,
- “Peço ajuda para a professora”,
- “Leio na segunda vez”,
- “Pensar ou procurar a palavra”,

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

- “Leio novamente até entender”,


- “Releio o texto uma, duas, até 05 vezes que for necessário até eu entendê-
lo”,
278
- “Ler novamente”,
- “Repenso tudo que li do texto para entender”,
- “Leio outra vez”,
- “Pergunto para alguém que já leu”,
- “Ler mais 15 vezes”,
- “Mi acalmo, e começo a ler de novo”,
- “Converso com um colega e leio novamente”.
Como vemos no gráfico que segue apenas duas das respostas (8% dos
alunos) remetem diretamente aos processos metacognitivos, a meta memória, ao
pensar sobre o pensar ou o pensar sobre como resolver o problema. Isso indica a
necessidade e a importância do trabalho e exploração dos processos metacognitivos
do professor. A maioria usa a estratégia de ler novamente o texto até obter o
entendimento ou não possuem uma estratégia.

Questionados sobre a metodologia de leitura, alguma técnica, alguma


estratégia, 19 alunos responderam “Não” e 11 alunos responderam “Sim”. Podemos
ilustrar melhor com o gráfico seguinte que a maioria dos alunos (63%) não segue
nenhum ritual, técnica ou estratégia para a leitura.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Dos que disseram ter uma estratégia (37%), três utilizam anotações ou resumos:
- “Fazer resumo”,
279
- “Anotação”,
- “Fazer um pequeno resumo e concentra naquilo. Fazendo uma anotação”.
Sete alunos acreditam que elementos externos interferem na leitura,
preferindo ficar sozinhos e num local calmo:
- “Bom eu leio de manhã pois eu acho que tenho disposição eu relaxo
também antes de ler”,
- “Leio dois capítulos de manhã e a noite”,
- “Gosto de ir para um quarto e ficar sozinha e imaginar”,
- “Ah eu me concentro e leio”,
- “Se acalme deito na cama se concentro, imagine o que lê e solte a
imaginação”,
- “Ler em silêncio e sozinha”,
- “Quando estou num lugar quieto, leio e silencio e tiro as coisas mais
importantes”.
Um aluno relatou que a repetição é a estratégia utilizada:
- “Eu releio novamente”.
No entanto, desses 37% que possuem um ritual de leitura, somente 9%
remetem a processos metacognitivos.

Com essas respostas podemos perceber que alguns alunos não sabem o que
seria uma estratégia de leitura, pois na pergunta anterior, a maioria disse ler
novamente quando não entende algo, o que é uma estratégia de leitura. No entanto,
não conseguiram reconhecer essa estratégia, pois alguns alunos que disseram fazer
isso, não escreveram tal ato como estratégia. Percebemos, com base nas respostas,

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que essa é a estratégia mais explorada pelos professores na escola. Não estão
acostumados a ler, pois esta tarefa demanda concentração e ferramentas para se
tornar mais fácil.
280
Na pergunta, “Como você melhor apreende o sentido do que lê?”, algumas
estratégias foram surgindo:
- “falando em pensamento” (essa é uma atividade metacognitiva, embora não
tenha consciência);
- “Quando escuto música”;
- “Quando estou concentrado e ouvindo música”;
- “Quando tem o significado”;
- “Lendo várias vezes”;
- “Com ajuda de amigas”;
- “Com alguém explicando”;
- “Fazendo anotação”;
- “Em silencio”;
- “Em grupo e em discussão”;
- “Lendo com atenção”;
- “Sozinha”,
- “Com um pequeno resumo”.
Nove alunos não responderam esta pergunta, outros repetiram que ouvindo
música, sozinhos, em silêncio ou concentrados, entendem melhor o sentido do que
leem.
O acesso desses alunos a leitura é variado. Seis alunos disseram ter acesso
à leitura por meio da biblioteca da escola. Dezessete, disseram ler na internet1. Seis
alunos disseram ter acesso em casa. E um aluno disse ter acesso na biblioteca
municipal.
Como se pode perceber, a maioria dos alunos tem acesso à leitura via
internet, o que não podemos dizer é qual seria o nível dessa leitura. O que sabemos
de forma empírica é que geralmente esse tipo de leitura é superficial, tratando-se
apenas de textos curtos, mensagens e piadas. Por outro lado, não se pode ignorar
que a Grande Rede Internacional constitui-se num lócus de leitura da maioria e, por
isso, a Internet na sala de aula deve ser pensada como proposta pedagógica,

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principalmente para o ensino de língua inglesa, ou mesmo língua materna quando


outras pesquisas específicas podem mostrar o conteúdo que mais agrada esse
público e explorá-lo enquanto mecanismos de motivação para o ensino de Língua
281
Portuguesa.

A faixa etária dos alunos está entre 12 e 16 anos, onde 7 são do sexo feminino e 20
do sexo masculino.
Na parte específica do questionário sobre o quê gostam de ler, o motivo
porquê leem e a quantidade de livros que leram naquele ano (2015), 14 alunos
responderam que gostam de ler, fornecendo motivos diversos, dentre eles,
destacamos:
- “Porque começo a imaginar o que leio”;
- “Porque estimula a criatividade”;
- “Gosto de histórias”;
- “Porque ajuda eu adquirir mais conhecimento tanto na vida tanto nas
histórias”;
- “Porque lendo a gente aprende mais”;
- “Ocupo a mente lendo e deixo os problemas de lado”;
- “Gosto de imaginar as coisas na minha mente”;
- “Porque é interessante conhecer coisas novas”;
- “Porque gosto de conhecer novas histórias”;
- “Porque gosto de ocupar meu tempo”;
- “Sou acostumado a ler muitas vezes”;
- “Pois ajuda a melhorar o desempenho da leitura”;
- “Porque é educativo”,

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- “Porque é interessante”.
Na pergunta que procurou verificar sua capacidade ou habilidade para
interpretar qualquer tipo de texto e o motivo da leitura, a maioria dos alunos
282
respondeu que não consegue interpretar qualquer tipo de texto, o que nos reforça a
hipótese de que precisam de incentivo (motivação), de uma teoria ou método (talvez
um roteiro de leitura).
Os que responderam que conseguem interpretar todo tipo de texto foram
poucos, mas no geral foram os mesmos que responderam que gostam de ler, o que
nos faz afirmar que quanto mais se lê mais se adquire a competência leitora.
Na questão que pedia sua opinião sobre a importância de “saber” ler e
interpretar os textos e a razão para tal, todos responderam que é importante, com
justificativas positivas. Entendemos, portanto, que os alunos têm a consciência de
que precisam saber interpretar e que essa habilidade é primordial para vários
processos do dia-a-dia.
Na pergunta que procurava aferir sobre seu constrangimento ou não em não
conseguir interpretar um texto ou imagem, somente sete alunos responderam que
“sim”. Fizemos esta pergunta para identificar se teríamos alguma barreira ou
traumas com a leitura. Dos sete, quatro disseram anteriormente que gostam de ler e
três disseram que não gostam de ler, o que nos faz entender que tal
constrangimento não lhes impediu de ler outras vezes.
Quanto à pergunta sobre a existência de um método que os ajudasse a
interpretar melhor os textos e imagens, a maioria respondeu que gostaria que esse
método existisse e cinco alunos responderam que não seria necessário, sendo que
três disseram já saber interpretar, e dois não gostam de ler e não acham a leitura
importante.
Todos responderam que não conhecem e nunca ouviram falar da Semiótica, o
que nos leva a pensar que essa teoria é pouco difundida e utilizada nas escolas
desta região pesquisada, o que motiva ainda mais nosso trabalho com o objetivo de
descobrirmos quais as contribuições da Semiótica para a interpretação textual e se
ela é capaz de preencher lacunas na construção de sentidos de texto, conforme
verificaremos agora.

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A Semiótica como objeto modal para a abertura da percepção.

Estes mesmos alunos, no início do semestre de 2016 foram revisitados com


283
uma sequência didática que mostrou o nível fundamental, o nível narrativo e o nível
discursivo de leitura propostos pela semiótica.
Apesar do tempo ter sido bastante exíguo, pudemos observar que houve uma
ampliação da percepção do sentido do texto com base na prática da sua
interpretação. O gênero por nós escolhido nesta revisitação a estes alunos e alunos
de uma nova sala foi o poema “Motivo” de Cecília Meireles, também musicado pelo
cantor Fagner, a fim de despertar a motivação pela leitura pelo processo
intersemiótico em que a música e o seu conhecimento funcionam como mecanismos
de efeito de aproximação e identificação.
Ao expô-los ao texto poético ficaram um tanto apáticos, mas ao mostrarmos o
vídeo do poema cantado pelo artista brasileiro da Música Popular Brasileira mudou o
panorama, seu estado de alma e pudemos observar a passagem da apatia à
simpatia, da disforia à euforia.
Louis Hébert, com a colaboração de Nicole Everaert-Desmedt (2011), informa
que podemos medir o nível das modalidades tímicas por meio de palavras ou
expressões, ou números e porcentagens, numa perspectiva descritiva, prescritiva,
comparativa ou relativa ou mesmo superlativa como vemos a seguir:

We will represent intensity by words or expressions (or even numbers, like


40%, etc.). These may be: descriptive (low, normal, high, for instance) or
prescriptive (not enough, enough, too much, for instance); comparative or
relative (less than, as much as, more than); or superlative (least, most).
comparative or relative (less than, as much as, more than); or superlative
(least, most). Within one text, there is nothing to prevent a single subject
making use of categorical values at times, and incremental values at other
times: all the more so if two subjects are involved (HÉBERT & EVERAERT-
DESMEDT, 2011, p. 107)

Com base neste modelo apresentado o que percebemos, na maioria absoluta


das reações quando expostos à música, é que o nível ou níveis de euforia
desencadeados, que trazem valores positivos, transformaram a apatia de quando
expostos somente ao poema.
Houve, portanto, uma narratividade em sua performance, uma vez que

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estavam em disjunção com a motivação e passaram a gostar da atividade, entrando


em conjunção com o estímulo da prática da análise, da interpretação. Foi com a
música, portanto, que os sujeitos discursivos, estes alunos, atores sociais que o são,
284
passaram de uma situação de tensão, em ambiente de sala de aula, a um estado de
relaxamento.
Hébert (2011), também elabora avaliações da categoria euforia/disforia,
chamada, de maneira mais simples, de positivo/negativo, ou “prazer e desprazer”.
Para essa avaliação estabelece a seguinte sequência, ao se fazer uma análise do
tímico:
1) devemos olhar para o sujeito,
2) para o objeto,
3) para os valores tímicos atribuídos ao objeto,
4) para a intensidade do valor (baixo, médio, alto, etc., (inspiração em
Courtés),
5) para o tempo da avaliação” e
6) para as transformações que podem afetar os elementos tímicos (2011, p.
106).
É preciso dizer, nesta altura, como sugere Hébert, que as avaliações para o
tímico são quantificadas e, por essa razão, não pertencem mais à lógica clássica,
quando algo era eufórico ou não, mas ao que chama de lógica incremental, que
permite representar a intensidade desta euforia ou disforia.
Santos, nas pegadas da psicanálise de Freud e Lacan, mostra essa mistura
de sentimentos e a ambivalência, por meio do quadrado semiótico da paixão em que
os termos amor/ódio aparecem no eixo dos contrários (1996, p. 36). Hébert, na
esteira de Courtés (1991, p. 160), também apoiado na psicanálise, afirma que ao
mapearmos a oposição euforia/disforia, englobada da categoria tímica, no quadrado
semiótico “we obtain several thymic values, the main ones being: euphoria (positive),
dysphoria (negative), phoria (positive and negative – ambivalence) andaphoria
(neither positive nor negative – indifference)” (2011, p. 107).
Não foi nosso objetivo, neste trabalho, fazer uma ecografia do tímico, mas
mostrar que dependendo do gênero que se usa na sala de aula, pode-se obter maior
ou menor estímulo por parte dos alunos.

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Como amostra da ampliação do modo de perceber o sentido no interior do


texto, reproduzimos, por uma questão de espaço, peculiar a este artigo, duas
redações, uma produzida antes e outra depois da sequência didática, cujos
285
resultados estão a seguir por meio de análise comparativa.

O Corpus: Motivo, poema de Cecília Meireles.


SEQUÊNCIA I SEQUÊNCIA II
Motivo
Eu canto porque o instante existe Irmão das coisas fugidias,
e a minha vida está completa. não sinto gozo nem tormento.
Não sou alegre nem sou triste: Atravesso noites e dias
sou poeta. no vento.

SEQUÊNCIA III SEQUÊNCIA IV


Se desmorono ou se edifico, Sei que canto. E a canção é tudo.
se permaneço ou me desfaço, Tem sangue eterno a asa ritmada.
— não sei, não sei. Não sei se fico E um dia sei que estarei mudo:
1
ou passo. — mais nada .

Esta redação destaca o canto como responsável pela plenitude da vida de


uma poeta que revela um estado de alma neutro, “nem alegre, nem triste”, na
indiferença segunda a proposta de Hébert como vimos. Explica que é o sujeito,
irmão das coisas fugidias, não permanentes e que se revela como sujeito não
afetado pelo tormento, mas que goza os dias de sua vida, indiferente ao que possa
lhe acontecer.
Como sujeito que sabe sobre o final de todas as coisas, usa do canto como
ferramenta do bem, numa visão eufórica da música, posto que “um dia ficaremos
mudos, morreremos e mais nada”.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Não há, como vemos, uma análise profunda, mas um resumo de alguns
aspectos que conseguiu captar nos versos do poema.
Já sua segunda redação mostra o uso do nível fundamental ao dizer que “O
286
poema “Motivo” afirma que a vida é bela e que é possível cantar enquanto se está
vivo”.

Além de captar esse sentido, a narradora identifica o sujeito narrador como da


neutralidade e instabilidade e um provocador, velejando entre o nível fundamental,
discursivo e narrativo, ao dizer das provocações que faz o destinador da mensagem
ao que chama, sob efeito da influência de Roman Jakobson, de “emissor”.
Fala de euforia e disforia, diz que estão presentes, e, de fato, estão, mas não
as identifica no poema, o mesmo ocorrendo com os termos “performance”, e
“sanção” pertencentes ao esquema canônico da narrativa e encerra identificando
sua escrita em primeira pessoa.
O que faltou, aqui, foi explicar ou aplicar os termos no interior do texto. Há,
claro, uma manipulação por provocação, que a nossa narradora admite existir, no
poema, quando este é escrito, possuidor de palavras bonitas, difíceis, às vezes, do
entendimento comum, cuja polissemia própria da literatura leva nós, destinatários da
mensagem, ao desafio de entendê-lo ou mesmo analisá-lo, esse processo ao qual
foi submetida. Isto é, de fato, uma provocação, porque ao escrever o poema sua
autora, na forma de “eu lírico” ou “narradora posta”, deixa oculta a seguinte frase:
“duvido que você seja capaz de decodificar, de interpretar os meus versos”.
É essa poeta o actante-sujeito principal na narrativa deste poema, ao que
chamaremos na literatura de protagonista que, por sua natureza de poeta, não pode
desperdiçar o instante que existe e porque a vida está completa, nem alegre, nem

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triste. Então, não se fala aqui do ser humano, de Cecília Meireles, mas do ofício de
ser poeta que para o sê-lo, tem que se ser completo e aproveitar o momento que lhe
é peculiar, o da poesia e poetar, sem revelar este ou aquele estado de alma. Há,
287
portanto, uma distinção, por pressuposição lógica, entre o ser humano comum e o
poeta. O primeiro, incompleto, ora alegre, ora triste. O segundo, completo, nem
alegre, nem triste, apenas cumprindo sua função de poeta completo que, por isso
canta, ou seja, expressa sua poesia. A poesia é, assim, ato de inspiração, que surge
num momento existente que não pode passar em branco, que deve simplesmente
fruir e fluir ouvidos adentro tal qual uma canção que todos gostam de ouvir.
O poeta é o irmão das coisas fugidias, que escapam das mãos, que não lhe
pertencem mais tal qual a palavra depois de dita, depois de cantada. A profundidade
do poema de Meireles nos chama, assim, a reflexão sobre o ofício do poeta,
reforçando a ideia de que sua poesia não lhe pertence, mas pertence aqueles que
vão lê-la e, se forem sensíveis o suficiente, poderão também ouvi-la como a brisa
suave que faz som aos ouvidos mais sensíveis.
O fio comum do poeta são as coisas fugidias com as quais se funde o
sentimento universal de fraternidade, cujo pai e mãe são os mesmos, numa isotopia
fusional que leva ao declínio rápido, que escapa aos nossos dedos, que foge, se
deserta, se esquiva, que não se pode apalpar, isto é, está mais para o nível do
sensível que do cognoscível, como quem diz, poesia é para se sentir, feito a música,
cuja melodia, a harmonia e o som criam efeitos de sentidos estésicos, quinésicos,
patêmicos e sinestésicos.
Além do não pertencimento, a poesia escapa daquele instante único de
inspiração, ganha as páginas de um livro e como uma melodia faz o seu sentido
ressoar, reverberar não só os sentidos tradicionais do corpo humano, mas de todo o
corpo que responde a sua força, sua ação em nosso interior. A narradora fala-nos,
portanto, das propriedades da poesia e dos seus efeitos, de sua função estética ao
falar do poeta que, tomado por um instante que existe de inspiração, se deixa usar
pela força inerente do poema que o penetra e o atravessa, escapando-se de si e
pertencendo a quem o alcança.
É por isso que o poeta não sente gozo nem tormento e atravessa noites e
dias no vento, ou seja, como a vela de um barco, se deixa levar mar afora. É esse

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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deixar-se levar do poeta que é pedido ao analista, ao leitor, ao ouvinte de sua


melodia. Se alguém é capaz de sentir o vento soprar, é também capaz de sentir e se
deixar levar pela poesia.
288
O poeta é irmão das coisas que podem não durar, que podem não interagir,
por isso não importa se permanece, se desmorona ou se edifica, se provoca este ou
aquele efeito em quem vai lê-lo, se vai ficar em sua memória, se vai fazer ruir suas
estruturas, se vai causar destruição ou se vai construir algo em alguém. O poeta é o
sujeito da dúvida, porque não sabe se permanece ou se desfaz a si mesmo, se fica
ou se passa na vida daqueles que atravessa.
Por todas estas razões, o poeta só sabe que canta e a canção é tudo que
tem. A canção é a poesia que escreve e a poesia é tudo que tem e que tem vida e
eternidade, sangue eterno, asa ritmada, chamando à unidade da realidade, a
repetição contínua de seu movimento, como as asas do vento. O poeta está vivo e é
eterno e sua asa ritmada é a sua poesia que jamais se acaba.
É esse estatuto de eternidade em oposição à efemeridade, à fugacidade da
vida de seres comuns que busca o poeta, é esse o motivo de sua existência,
buscando um caráter divino, mesmo que um dia saiba que estará “mudo:
— mais nada”.
A mudez se caracteriza pelo não querer falar, não conseguir produzir a fala,
mas não representa a perda da vida. Logo, ao poeta a eternidade, ao ser comum, a
efemeridade da vida, mesmo que o tempo passe, ainda assim, sua poesia vai existir.

Esse quadrado semiótico, a estrutura elementar da significação, resume essa


análise, ainda que sob efeito de sentido já que, do sentido propriamente dito, não
podemos falar, posto que está “mudo”.

Considerações Finais.

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Mediante os dados aqui apresentados é preciso dizer que as estratégias de


leitura aqui utilizadas somadas aquelas de caráter metacognitivo serviram para
promover certa autonomia dos alunos e aprofundamento de seu modo de perceber o
289
sentido engendrado no texto.
Embora a amostra aqui apresentada seja pequena, do ponto de vista da
análise comparativa do antes e depois, e o tempo da aplicabilidade da teoria
semiótica em sala de aula tenha sido pequeno, pode-se ver, pelos resultados, que
houve certa consciência por parte dos alunos da necessidade de buscarem um
compromisso com o seu próprio processo de aprendizagem, sem aquela
dependência costumeira do professor ou do dicionário.
Além desta consciência fundamental para o percurso da autonomia, eles
mesmos perceberam, ao final da experiência, que mergulharam um pouco mais no
oceano do sentido do texto, percebendo os rios que ali deságuam. O período de dez
aulas, todavia, fragiliza as atividades que, para surtirem um efeito maior, deveriam
ser prolongadas durante pelo menos um semestre.
Uma visão mais detalhada e abrangente, no entanto, só teremos após a
conclusão da análise de todas as redações aqui coletadas. Os resultados parciais,
todavia, e o tempo destinado à apresentação e aplicação da teoria nos induzem a
crer que é preciso uma parceria entre universidade pública e escola pública, entre
professores pesquisadores e professores cursistas o que pode se começar, por
exemplo, via estágio de regência que possa ir além da perspectiva do ensino, mas
que sirva de pesquisa e inspiração para cursos de extensão ministrados em mais
tempo em sequências didáticas, momento em que se poderá trabalhar com mais
detalhes todos os níveis de leitura possíveis do texto.

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Narrativas de experiência e ciberespaço:


denunciando a impolidez no contexto médico-
profissional 292

Narratives of experience and the cyberspace: denouncing impoliteness in the


doctor-professional context

Renata Martins Amaral (PUC-Rio) (PG)


Mayara de Oliveira Nogueira (PUC-Rio) (PG)

RESUMO: Propomo-nos, a partir de uma perspectiva sociodiscursiva de narrativas (LINDE, 1993;


BASTOS, 2004), analisar a coconstrução de uma experiência descortês compartilhada em um blog
pessoal. A história corresponde a uma denúncia de impolidez no contexto profissional experenciada
pela narradora, particularmente na relação médico-paciente. Para tanto, valemo-nos da Pragmática
(AUSTIN, 1975), mediante os princípios da Polidez de Brown & Levinson (1987) e das estratégias de
Impolidez de Culpeper (1996) e Shum & Lee (2013). A investigação é de natureza qualitativa e
interpretativa (DENZIN & LINCOLN, 2006) e cunho ciber-etnográfico (THOMSEN, STRAUBHAAR &
BOLYARD, 1998). Buscou-se com o presente estudo: (i) compreender como a narrativa de
experiência é coconstruída em ambiente digital; (ii) investigar a coconstrução da experiência
descortês em ambiente profissional; (iii) analisar como outros interagentes digitais se envolvem e
avaliam a experiência narrada publicamente no ciberespaço. Percebeu-se que, na contextualização
da narrativa online, há marcas de indignação da narradora-consumidora do serviço, bem como
reclamações e descortesia dos personagens da história através de formulações extremas
(POMERANTZ, 1986; EDWARDS, 2000) em diálogo reportado, que tendem a ser minimizados no
contexto não-digital. No ciberespaço, os interagentes manifestaram concordâncias e contaram
histórias semelhantes, o que potencializou a natureza denunciativa da narrativa contada no blog.

PALAVRAS-CHAVE: Narrativa em contexto profissional. Impolidez. Formulações extremas.

ABSTRACT: We propose, from a social-discursive perspective of narratives (LINDE, 1993; BASTOS,


2004), to analyze the co-construction of an impolite experience posted on a personal blog. The story
corresponds to a complaint of impoliteness in a professional context lived by the narrator, particularly
in a doctor-patient relationship. In order to comprehend this study, we use some principles of
Pragmatics (AUSTIN, 1975), mainly, Politeness Brown & Levinson (1987) and impoliteness strategies
(CULPEPER, 1996; SHUM & LEE, 2013). The research nature is qualitative and interpretative
(DENZIN & LINCOLN, 2006) and cyber-ethnographic (THOMSEN, STRAUBHAAR & BOLYARD,
1998). The objectives of this research are to: (i) understand how the narrative of experience is co-
constructed in the digital context; (Ii) investigate the co-construction of the experience of impoliteness
in a professional context; (Iii) analyze how other digital interactors are involved and evaluate the
experience that was shared in cyberspace. We noticed that, concerning the online narrative, the
narrator-consumer of the service leaves traits of indignation on the narrative, as well as the characters
in the story register their complaints and rudeness through extreme formulations (POMERANTZ, 1986;
EDWARDS, 2000) in reported dialogue, which tend to be minimized in the non-digital context. In
cyberspace, the interactors expressed concordances and told similar stories, which enhanced the
denouncing nature of the narrative told in the blog.

KEYWORDS: Narrative in professional context. Impoliteness. Extreme formulations.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Introdução

Tencionamos investigar no presente trabalho o registro de uma experiência


293
descortês por meio de um blog que, dentre múltiplas funcionalidades, comporta o
papel de denúncia sobre relações cotidianas conflituosas na área de prestação de
serviços. Neste estudo, de natureza qualitativa e interpretativa (DENZIN & LINCOLN,
2006) e cunho ciber-etnográfico (THOMSEN, STRAUBHAAR & BOLYARD, 1998),
realizamos uma análise pragmático-discursiva da narrativa desta experiência
coconstruída em um blog pessoal, com denúncia de uma situação de impolidez em
contexto profissional, na relação médico-paciente.
Dentro da perspectiva Sociopragmática (BLUM-KULKA, 1987; BROWN E

LEVINSON, 1986; GOFFMAN, 1974, 1981; SCHEGLOFF, 1984; TANNEN, 1981, 1986),
privilegiaremos a abordagem e princípios da Polidez de Brown & Levinson (1987) e
das estratégias de Impolidez de Culpeper (1996) e Shum & Lee (2013) com foco nos
atores sociais, a partir de visão teórica que percebe a linguagem enquanto ação
(AUSTIN, 1975). Alinhamo-nos ainda, no que tange à abordagem a propósito das
Narrativas, ao posicionamento de Bastos (2008) sobre a organização da experiência
humana e do dinamismo social do contexto online de Sutherland, Breen & Lewis
(2013).
Valendo-nos do posicionamento metodológico e epistemológico de natureza
qualitativa e interpretativa de análise (DENZIN & LINCOLN, 2006) e cunho netnográfico
(THOMSEN, STRAUBHAAR & BOLYARD), buscamos compreender a natureza
denunciativa tanto em narrativas da autora do blog Paticca, quanto na interação
com/entre os seguidores de seu blog.
Nosso objetivo, então, compreende: (i) analisar como a narrativa de
experiência é coconstruída em ambiente digital; (ii) investigar a coconstrução da
experiência descortês em ambiente profissional; (iii) observar como outros
interagentes digitais se envolvem e avaliam a experiência narrada publicamente no
ciberespaço.
A análise de dados é composta de excertos de narrativa e de interação
produzidos em contexto digital. O evento relatado reporta-se às dificuldades
enfrentadas por Patrícia, como se identifica a autora do blog, ao comparecer em

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Anais

uma consulta médica, em um consultório no Rio de Janeiro. Emergem, de sua


construção narrativa e, posteriormente, da interação com/entre os interagentes de
seu blog, descontentamentos, desde o agendamento da consulta médica até o
294
atendimento clínico per se. Desta forma, o blog parece servir ao propósito de
denúncia online a partir de situação de descortesia.

A abordagem sociopragmática

Com os olhos projetados teoricamente a partir das lentes da perspectiva


sociopragmática (BLUM-KULKA, 1987; BROWN E LEVINSON, 1986; GOFFMAN, 1974,
1981; SCHEGLOFF, 1984; TANNEN, 1981, 1986), o presente trabalho privilegia o estudo
do fenômeno linguístico a partir de uma óptica situada, isto é, na compreensão de
sentidos coconstruídos no aqui e no agora da interação – seja ela escrita ou
oralizada. De acordo com esta concepção de língua(gem), o significado
convencional das palavras não corresponde a um todo suficiente, de modo que há
uma exigência exponencialmente maior de se vislumbrar o intercâmbio de
significados pré-estabelecidos, observados na intencionalidade dinâmica e situada
de seus usos. Nesse sentido, o significado é coconstruído por um processo
complexo linguístico e paralinguístico ancorado no contexto (SCHIFFRIN, 1994).
A corrente sociopragmática se ocupa de estudar o significado (para)linguístico
das orações usadas em atos de comunicação, caracterizados pela intencionalidade
e por sua dependência às circunstâncias contextuais em que se produz o ato da
palavra. O significado que o falante quer comunicar apresenta duas facetas: uma
face explícita e uma outra implícita – sendo certo que aquilo que o nãodito ou
implicado também diz. A interpretação deste significado é o resultado de uma
operação de decodificação e de derivação de inferências: inferimos o que nos
querem dizer, o que não está totalmente explícito.
As implicaturas conversacionais ativam o que Grice (1980) denominou
princípio da cooperação, segundo o qual cada participante deve fazer sua
contribuição conversacional tal como requerida, no momento em que ocorre, pelo
propósito ou direção do intercâmbio conversacional em que se está engajado. Em
acordo com tal princípio, são sistematizadas quatro categorias ou máximas

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conversacionais, quais sejam: (i) quantidade, relacionada com a quantidade de


informação a ser oferecida (“faça com que sua contribuição seja tão informativa
quanto requerida”; “não faça sua contribuição mais informativa do que é requerido”);
295
(ii) qualidade, a qual se vincula à noção de verossimilhança (“não diga o que você
acredita ser falso”; “não diga senão aquilo para que você possa fornecer evidência
adequada”); (iii) relação, relacionada aos tipos de focos de relevância e
modificações legítimas (“seja relevante”); (iv) modo, em que a forma do que é dito
ganha relevo, isto é, como o que é dito deve ser dito (“seja claro”).
Com base nos postulados griceanos bem como na Teoria dos Atos de Fala de
Austin (1990) e Searle (1981), Brown e Levinson (1986) desenvolvem uma teoria
pragmática cujo objetivo central era proporcionar ferramental para a análise
transcultural de relações sociais, a qual será adiante abordada.

Polidez e (Des)Cortesia

Em consonância com os propósitos deste trabalho, esta sessão não poderia


iniciar de outro modo que não fosse indicar ponderação feita por Villaça e Bentes
(2008) acerca da diferença entre o conceito de polidez e o de cortesia. Ao
percorremos as reminiscências de ambas as noções deparamo-nos com dois
campos associativos: enquanto a polidez tem sido historicamente associada à noção
goffmaniana de face e processos figurativos; a cortesia está relacionada à uma
tomada de atitude que leve ao reconhecimento de sua distinção em relação ao
outro.
Desse modo, “o comportamento cortês, atualmente, seria menos ritualmente
determinado e mais ligado às instâncias subjetivas da interação” (VILLAÇA & BENTES,
2008, p. 31), bem assim estaria a cortesia relacionada aos tipos de relações que
emergencialmente podem ser estabelecidas entre interlocutores e ligadas aos
próprios interlocutores. Cumpre registrar que ambas as categorias (polidez e
cortesia) variam de uma cultura para cultura.
Influenciados pelas noções de face e território de Goffman (1985) e com base
no princípio cooperativo griceano, Brown e Levinson (1986) proporão a Teoria da
Polidez, a qual corresponde ao desenvolvimento e sistematização dos estudos sobre

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face, a qual é concebida por Goffman (1980, pp. 76-77) enquanto um “valor social
positivo que uma pessoa efetivamente reclama para si mesma através daquilo que
os outros presumem ser a linha por ela tomada durante um contato específico”.
296
Nesse sentido, face corresponde a uma imagem do self delineada em termos de
atributos sociais aprovados, é, pois, uma atribuição e construção social.
Duas espécies de face são distinguidas: uma face positiva, ligada à
proximidade entre falante e ouvinte, e uma face negativa, vinculada à distância
social entre os interagentes. Considerada a possibilidade de ocorrência de situações
ameaçadoras da face, Goffman formula o que ele chama de elaboração da face,
processo constituído por “ações através das quais uma pessoa é capaz de tornar
qualquer coisa que esteja fazendo consistente com a face” (ibid., p. 76-77). Desse
modo, “esta elaboração serve para contrabalançar ‘incidentes’ – isto é, eventos
cujas implicações simbólicas efetivas ameaçam a face” (ibid., p. 82).
De acordo com Oliveira (2007), correspondem à atos ameaçadores da face:
(i) atos que ameaçam a face negativa do ouvinte (ex.: pedidos, avisos, ameaças,
advertências); (ii) atos que ameaçam a face positiva do ouvinte (ex.: queixas,
críticas, desaprovação, levantamento de assuntos “tabu”); (iii) atos que ameaçam a
fase negativa do falante (ex.: aceitar um oferecimento, aceitar um agradecimento,
prometer relutantemente) e (iv) atos que ameaçam a face positiva do falante (ex.:
pedidos de desculpa, aceitar elogios, confessar-se).
Embora a teoria de Brown e Levinson (1986) corresponda a grandes avanços
aos estudos pragmáticos, seu caráter racionalista e universal tem sido alvo de
críticas (SHUM & LEE, 2013). Culpeper (1996), por exemplo, evidencia a não
abrangência do fenômeno da (des)cortesia, propondo, então cinco estratégias para
a descortesia, sendo elas: (i) descortesia direta, dizendo respeito à atos claramente
ameaçadores; (ii) descortesia positiva, a qual corresponde ao uso de estratégias
para atacar a face positiva do ouvinte; (iii) descortesia negativa, relacionada ao uso
de estratégias para atacar a face negativa do ouvinte; (iv) descortesia simulada,
referindo-se aos atos aparentemente descorteses, mas que, na verdade,
correspondem à ironia e sarcasmo; (v) não-cortesia, a qual diz respeito à ausência
de cortesia, quando esta é socialmente esperada.

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Tendo em vista que no corpus deste trabalho fora observado majoritariamente


o uso de estratégias de impolidez e ataque tanto à face positiva e quanto à face
negativa do parceiro, focaremos nossa análise na coconstrução da descortesia
297
como reação denunciativa de atos praticados por interactantes hierarquicamente
distintos na cena de fala institucional.

Formulações extremas

Percebemos que, consonante ao perfil denunciativo do blog Paticca, está o


conceito de formulações extremas, característico de abordagens de natureza
descortês. Ao relatar sua experiência de descortesia presencial no contexto digital, a
participante Patrícia utiliza argumentos para convencer seu interlocutor, em muitos
momentos, utilizando formulações extremas para sustentar seu ponto de vista.
Nesse sentido, os casos de formulações extremas são utilizados para
apresentar alguns comportamentos tidos como inaceitáveis e incorretos (CUNHA,
2009), por parte da autora do blog. De acordo com Pomerantz (1986), os casos de
formulações extremas são uma maneira de legitimar créditos. A autora afirma que os
casos de formulações extremas têm a função de: 1- Fazer valer o caso (argumento)
mais forte; 2- Propor a causa de um fenômeno; 3- Falar da correção ou incorreção
de uma prática (ação).
Segundo Edwards (2000), não há nenhuma fórmula lógica ou regras
gramaticais para os casos de formulações extremas. Elas podem aparecer no
discurso por meio de declarações cujo conteúdo contenha adjetivos extremos (total,
absoluto), quantificadores (todo, sempre, nenhum), alguns substantivos e palavras
afins (todo mundo, nada), advérbios (sempre, nunca), construções comparativas (tão
bom quanto ele) e construções superlativas. Deste modo, as formulações de caso
extremo são mecanismos utilizados pelos participantes ao argumentarem, isto é,
defenderem seus pontos de vista distintos, a fim de torná-las mais eficazes (CUNHA,
2009), ao darem credibilidade as suas versões apresentadas.
Ao observarmos a ocorrência de formulações extremas no discurso linguístico
registrado no blog, as seguintes categorias de análise serão contempladas:
coconstrução das sequências de concordar e discordar; uso de mitigadores

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(POMERANTZ, 1984) para atenuar a força dos atos de discordância e de


instigadores (PACHECO, 2008) para acentuar tais atos; argumentos centrais
utilizados para a sustentação de argumentos de insatisfação dos participantes ao
298
registrarem seus pontos de vista.

Narrativa

De acordo com Bruner (2002:03) “(...) estamos tão acostumados à narrativa


que esta parece ser tão natural como a própria linguagem”, o que nos permite
estudá-la em diversos contextos, ou seja, em múltiplos espaços sociais, com base
nas experiências de vida individuais e coletivas.
A visão precursora de Labov (1972 apud Bastos & Fabrício 2009) – referente
a constituição da narrativa predominantemente em seu caráter estrutural, composta
de seis elementos: resumo, orientação, ações complicadoras (elementos essenciais
à narrativa), avaliação, resolução e coda – tem sido reconfigurada sob a ótica de
estudiosos que focalizam os discursos construídos na ordem das narrativas como
centrais para a produção dos sentidos que perpassam a visão Laboviana e as
compreendem por meio das interações e construções de sentidos nas relações
micro/macro.
Os estudos desenvolvidos por Moita Lopes (2001), Starosky (2009), Bastos &
Fabrício (2009), Pereira & Santos (2009), e Bastos & Santos (2013), que têm uma
visão socioconstrutivista da narrativa, se preocupam com outros aspectos nelas
contemplados que vão além da forma tradicional de análise estrutural, já que todos
consideram a narrativa dentro de um fenômeno social, que são coconstruídas dentro
de um processo interacional.
Linde (1997) valoriza o uso das narrativas com finalidades específicas, pois
segundo a autora, “em um nível pessoal nós utilizamos a narrativa para descrever –
para nós mesmos e para outras pessoas – quem somos, onde estivemos, e onde
iremos: nossas histórias de vida.” (p.283) (Tradução nossa). Partindo dessa
premissa, os tipos de narrativa estão diretamente ligados às histórias de vida de
cada participante, que nesta investigação se revela em forma de um relato de
experiência sobre a pré consulta, a consulta médica em si, e reflexões posteriores à

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ela. Em Pereira, Lima & Bastos (2013), as autoras destacam as narrativas de


experiências de migração que traduzem as experiências de deslocamento de
nordestinos para os grandes centros urbanos como a cidade do Rio de Janeiro,
299
enquanto Bastos (2008) volta seu interesse para outro tipo de narrativas, as de
sofrimento, direcionada ao contexto da saúde, assim como parte da história narrada
por Patrícia, autora do blog Paticca.

Posicionamento epistemológico e metodologia

Como anteriormente sinalizado, o referencial teórico deste trabalho


intersecciona a Sociolinguística Interacional e a Pragmática. Tais paradigmas se
ancoram metodologicamente sobre uma base de natureza qualitativa e interpretativa
de análise, observado o fato de, conforme aduz Erickson (1990), a pesquisa
qualitativa ser deliberadamente interpretativista; e a interpretação inerente ao ato de
investigar.
Nesse sentido, por pesquisa qualitativa entendemos “uma atividade situada
que localiza o observador no mundo” e que consiste em um conjunto de práticas
materiais e interpretativas que conferem nitidez e visibilidade ao mundo, sendo, pois,
“um campo interdisciplinar, transdisciplinar e, às vezes, contradisciplinar, que
atravessa as humani-dades, as ciências sociais e as ciências físicas” (DENZIN &
LINCOLN, 2006, p. 17-21).
Trabalharemos no presente trabalho com uma postagem intitulada “Grosseria
médica”, publicada em 27/10/2009 no Blog da Paticca. Imediatamente abaixo desta
publicação há um espaço reservado para que os visitantes desta página deixem
seus comentários, de modo a interagir com a autora da página virtual. Tendo em
vista que a interação se dá no espaço virtual, embasamo-nos ainda na perspectiva
metodológica netnográfica (THOMSEN, STRAUBHAAR & BOLYARD, 1998).

Análise de dados

A análise dos dados desta investigação compreende a análise de narrativas


postadas por Patrícia no blog Paticca e interações entre os seguidores da autora. A

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composição desta seção é a seguinte: os três primeiros excertos analisados


correspondem a narrativas, já os dois últimos, à interações assimétricas online.

300
Excerto 1 – “Para minha total indignação”

O primeiro trecho selecionado nos remete à cena de Patrícia indignada com a


presença longínqua de duas representantes de laboratório, que entraram na frente
se todos os pacientes agendados, “furando a fila” e atrasando ainda mais o
atendimento de todos.
“Lógico que elas entraram na minha frente. Até aí, estava achando bom demais ser
atendida com apenas 10 minutos de atraso. Porém, para minha total indignação,
elas ficaram lá dentro uma hora e quarenta minutos! Às gargalhadas. Uma senhora
que estava na sala de espera comigo, estava com suspeita de câncer de mama,
nervosa, chorando e eles lá, sem o menor pudor. Ele, né? Por que elas não tem
nada a ver com isso. Sinceramente, pensei em ir embora, mas fiquei, até pra dizer
o que estava sentindo”. (grifos nossos)
Aqui, percebemos o Ato Atentatório à Face Positiva do Médico. Os atos de
Patrícia sinalizam avaliações negativas de aspectos da face positiva do médico por
meio de formulações extremas através de expressões de desaprovação (sem o
menor pudor), crítica (não tem nada a ver), desprezo (lógico), ridicularização (bom
demais), reclamações (sinceramente), acusações (Ele, né?) ou insultos (bom
demais). A autora do blog ainda compartilha sua reflexão, possivelmente, a fim de
envolver o interactante virtual em seu relato de experiência. O sintagma nominal
“para minha total indignação”, que inclusive intitula o estudo, resume a sensação de
impotência da autora, que chega ao clímax de desaprovação da atitude à qual ela e
outros(as) pacientes foram submetidas.

Excerto 2 – “A minha vontade é de nunca mais pisar aqui”

O excerto a seguir se passa no momento que Patrícia é, finalmente, atendida


pelo médico. Sua reação foi desabafar sua insatisfação mediante uma pergunta que,
em outros contextos, deveria ser meramente retórica. Um “Tudo bem?” geralmente é

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respondido com a continuação “Tudo bem. E você?”, porém a indignação de Patrícia


fez com que a pergunta do médico fosse respondida de modo sincero e com uma
palavra de negação que causou uma série de formulações de caso extremo.
301
“- Tudo bem?
- Não. Como pode estar tudo bem se a gente fica tanto tempo esperando, tendo
marcado um mês antes e passam duas pessoas que nem hora marcada tinham,
pra falar de assuntos pessoais? Sei que não vai adiantar nada falar isso, mas
faço questão de registrar a minha insatisfação com a falta de respeito de vocês,
médicos. Do fundo do meu coração, a minha vontade é de nunca mais pisar
aqui”. (grifos nossos)
Percebemos o Ato Atentatório à face negativa do médico – Patrícia
demarca seu desejo em relação ao médico (nunca mais pisar aqui), fazendo com
que pense em atitudes que protejam o objeto de desejo do falante, através de
expressões negativas de fortes emoções contra o ouvinte (não vai adiantar nada).
De acordo com o conceito de Ato Atentatório à face positiva do médico,
notamos que a autora é indiferente à face positiva do profissional, na medida em
que cita más Referências sobre o ouvinte (falta de respeito de vocês, médicos) e
boas sobre o falante (que nem hora marcada tinham), proferimento no qual
percebemos a implicatura: ter marcado hora.
As formulações extremas são notadamente marcadas ao longo do excerto,
vez que Patrícia convoca até o elemento “coração” no sintagma “Do fundo do meu
coração” para se referir de cor a uma situação de descortesia que ultrapassa a
dimensão linguística e atinge o sentimento de Patrícia, que transborda insatisfação e
decepção. Patrícia parece usar as formulações de caso extremo com objetivo de
propor a causa de um fenômeno (POMERANTZ, 1986), isto é, a desvalorização
profissional, assim como a utilização de uma generalização de empenho de todos os
profissionais de médicos, especialmente, ao se dirigir ao individual de modo coletivo
“falta de respeito de vocês, médicos”.

Excerto 3 – “Câncer de endométrio, ué!”

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O trecho abaixo demonstra a frieza com que alguns médicos têm ao informar
seus pacientes sobre o diagnóstico de doenças e seus tratamentos necessários. A
questão da falta de Humanização do atendimento médico sobressai neste excerto.
302
“- Não serve. A visão é diferente. E esse endométrio hipertrofiado, hein?
- Eu que te pergunto. O que isso quer dizer?
- Câncer de endométrio, ué!” (grifos nossos)
Ao utilizar o Ato Atentatório à face positiva do médico, Patrícia desafia o
médico e avalia negativamente sua face positiva, indicando que seu interlocutor está
errado no modo como interage, desaprovando, assim, a conduta do profissional de
saúde.
Com relação ao Ato Atentatório à face negativa de Patrícia, o médico é
indiferente à face da paciente, tanto pelo não envolvimento emotivo com a fala e o
possível diagnóstico de Patrícia, quanto por cria uma atmosfera
perigosa à interação. A utilização do marcador discursivo “ué” sinalizou uma
expectativa de que a paciente já soubera os nomes científicos das doenças mais
comuns atualmente. Além disso, tornou a admiração do médico ainda menos cortês
face a ignorância/desconhecimento sobre a doença, da parte de Patrícia.

Excerto 4 – “Eles tem pavor dessa palavra: publicar”

A Interação Virtual a seguir representa claramente as concordâncias, nesta


pesquisa, são marcadas explicitamente (STADLER, 2006) no discurso endereçado
aos outros interlocutores, a autora do texto e os demais interagentes, mostrando que
o contexto em que foram produzidas permite a produção de tais atos (HUTCHBY e
WOOFFITT, 1998; SIFIANOU, 1997), sem que haja situações de conflito e
embaraço entre os(as) participantes da interação.
Haline, 28/10/09 às 10:58
“Ai, Pat, concordo com a Cris. Faz uma denuncia/reclamação oficial, via site ou a
Unimed e tals. E diga claramente na reclamação que pretende publicar. Eles tem
pavor dessa palavra: publicar. Agora como vc vai fazer isso? Se não te
responderem nada, ce manda pra jornal, jornal de bairro, blog. Quero so ver
ninguem se movimentar. Quero só ver.” (grifos nossos)

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No trecho de relação interacional assíncrona acima, percebemos uma


concordância, apoio e instigação da parte de Haline para que Patrícia se
posicionasse de forma mais emblemática e, desta forma, oficializar sua denúncia
303
para além das fronteiras virtuais de seu blog. O alinhamento ao posicionamento do
blog Paticca por parte da interagente Haline ratifica o enquadre de denúncia
(GOFFMAN, [1974] 2002) no blog.
As relações interpessoais de avaliação via julgamento e apreciação são
moldadas através da concordância entre o mesmo ponto de vista das interactantes
virtuais (TURKLE, 1995).

Excerto 5 – “Um imbecil sem nenhum tato!!!”

Neste último excerto que analisamos, Lenir e Patrícia são solidárias uma a
outra no que concerne o tópico “denúncia em redes sociais digitais”. Afinal, no
mundo pós moderno líquido (BAUMAN, 2005), os interactantes virtuais circulam nos
mais variados suportes digitais. Portanto, a estratégia de postar a mesma indignação
em outros veículos de comunicação poderia, de fato, ter uma repercussão mais
abrangente.
Lenir, 29/10/09 às 00:32
“Ontem vc comentou no twitter e fiquei boba...
Como pode uma pessoa estudar tanto pra ser um imbecil sem nenhum tato!!! Vc
ainda tem uma cabeça boa, soube captar a frieza estupida e gratuita desse
projeto de medico...E quem não tem, não é??
Imperdoavel!!
Fique bem..
:)
Bjss
le”

Patrícia Caetano, 29/10/09 às 15:50


“Vou fazer, haline! Sei que não vou mudar o mundo, mas vou fazer a minha parte.
Beijo!” (grifos nossos)

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Partindo do princípio da “função libertadora da internet” (Blikstein, 2013),


pudemos perceber alguns movimentos de alinhamento ao posicionamento de
Paticca por parte de Lenir, atos atentatórios à face do médico (ou projeto de
304
médico), e avaliações relacionais por afeto e julgamento.

Considerações Finais

Com o advento de novas tecnologias novos arranjos sociodiscursivos foram


construídos, o que possibilitou diferentes modos de atuar no palco da vida social.
Dentre os novos suportes em que se pode narrar experiências vividas, por exemplo,
há os blogs pessoais ou mesmo as redes sociais – suportes estes que
correspondem a uma espécie de autofalante, em que há projeção e propagação de
vozes.
A propagação de vozes localmente marginalizadas para diversas esferas
sociais implica a potencialização do uso das ferramentas digitais, as quais possuem
o condão de minimizar assimetrias interacionais pelo processo denunciativo. No
caso, por exemplo, de um paciente narrar uma experiência negativa vivida em um
consultório médico, assimetrias esperadas na fala-em-interação em contexto
institucional podem ser realinhadas no contexto virtual.
Via de regra deparamo-nos com o discurso de que o ato de impolidez
comporta, em si mesmo, uma carga negativa. Entretanto, cremos que mesmo os
atos mais impolidos devem ser interpretados contextual e situadamente, tendo em
vista que estamos diante de um constructo social que, em sua execução
performática, pode significar a resistência do oprimido sobre aquele que oprime.

Referências

AUSTIN, J.L. Quando dizer é fazer: palavras e ações. Porto Alegre: Artes Médicas,
1990.

BASTOS, L.C. Diante do sofrimento do outro – narrativas de profissionais de saúde


em reuniões de trabalho. Calidoscópio. Vol. 6, n.2, p. 76-85, mai/ago, 2008.

BLUM-KULKA, S. Indirectness and politeness in requests – same or different. Journal


of Pragmatics, 11.2: 131-46, 1987.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

BROWN, P. & S. LEVINSON. Universals in language usage: politeness phenomena.


Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
BRUNER, Jerome. Making stories: law, literature, life. Cambridge: Harvard University
Press, 2002.
305
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Anais

O desvelamento enunciativo de “Roda-viva”:


semiótica aplicada à obra de Chico Buarque de
Holanda (regime 64-85) 308

The enunciative unveiling of “Roda-Viva”: applied semiotic to the work of


Chico Buarque de Holanda (64-85 regime)

Bárbara Taynara Silvestre Castro Capelari (UFMS-G)


Igor Iuri Dimitri Nakamura (UFMS-G)

RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar a construção do sentido na letra da canção Roda-viva,
de Chico Buarque de Holanda, tendo como referencial teórico os estudos semióticos de linha
francesa. Para tanto, explana-se o modelo de análise do percurso gerativo de sentido e, a partir dos
seus níveis e componentes sintático-semânticos, interpreta-se a letra do corpus da pesquisa. Deste
modo, depreende-se que, no corpus, a relação de dominação e impotência, explicitada no jogo modal
do querer-fazer e não-poder-fazer na estrutura actancial, se camufla, discursivamente, nas isotopias
do tempo e da circularidade, cujo plano de fundo é a categoria semântica do movimento. Conclui-se,
portanto, que o fazer persuasivo em contraste com a modalização do sujeito oprimido desvela, do
âmbito enuncivo ao enunciativo, traços histórico-sociais do regime ditatorial brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Chico Buarque de Holanda. Ditadura.

ABSTRACT: The objective of this study is to analyze the construction of the meaning in the lyrics of
the “Roda-Viva” song, by Chico Buarque de Holanda, having as theoretical reference the semiotic
studies of French line. For this purpose, the generative path analysis model of meaning is explained
and, from their levels and syntactic-semantic components, the letter of the corpus of the research is
interpreted. Thus, it is deduced that, in the corpus, the relationship of dominance and impotence,
explained in modal game of the “want-to-do” and “can’t-do” in the actantial structure, camouflages
itself, discursively, in time isotopies and circularity, whose background is the semantic category of the
movement. It is concluded, therefore, that the persuasive doing in contrast to the modalization of the
oppressed subject reveals, from the enuncive scope to the enunciative, historical and social traits of
the Brazilian dictatorship.

KEYWORDS: Discourse. Chico Buarque de Holanda. Dictatorship.

Introdução

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Este estudo constitui-se de uma leitura semiótica da letra da canção Roda-viva,


de Chico Buarque de Holanda, composta durante o regime militar dos anos 1964-
1985. Portanto, objetiva-se depreender a construção do sentido da letra do corpus,
309
tendo como fundamentação teórica o modelo de análise da semiótica francesa, no
que tange à abstração da significação, das estruturas superficiais às mais profundas
do discurso. Para tanto, realiza-se uma descrição do percurso metodológico da
semiótica, da linhagem greimasiana às tendências atuais, e seus devidos conceitos
junto à sua devida aplicação na análise do discurso da letra da pesquisa.

Deste modo, este trabalho se subdivide cinco em etapas, além da introdução e


da conclusão: inicialmente, expõe-se a letra Roda-viva, de Chico Buarque de
Holanda; em seguida, explana-se sobre o histórico do método da semiótica de linha
francesa; feito isso, realiza-se um levantamento de premissas junto a um recorte
teórico-metodológico; e na sequência, analisa-se a letra do corpus mediante os
conceitos semióticos.

A canção “Roda-viva”, de Chico Buarque de Holanda

A canção Roda-viva compõe, como sexta faixa, o álbum Chico Buarque de


Holanda – volume 3, lançado em 1968, e constitui-se, estruturalmente, de quatro
oitavas com refrão intercalado, de forma que este, após a última oitava, se repete
três vezes, como se observa na leitura da letra:

Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo então que cresceu

A gente quer ter voz ativa

No nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda-viva

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

E carrega o destino pra lá

Roda mundo, roda-gigante


310
Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente

Até não poder resistir

Na volta do barco é que sente

O quanto deixou de cumprir

Faz tempo que a gente cultiva

A mais linda roseira que há

Mas eis que chega a roda-viva

E carrega a roseira pra lá

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração

A roda da saia, a mulata

Não quer mais rodar, não senhor

Não posso fazer serenata

A roda de samba acabou

A gente toma a iniciativa

Viola na rua, a cantar

Mas eis que chega a roda-viva

E carrega a viola pra lá

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Nas voltas do meu coração

O samba, a viola, a roseira


311
Um dia a fogueira queimou

Foi tudo ilusão passageira

Que a brisa primeira levou

No peito a saudade cativa

Faz força pro tempo parar

Mas eis que chega a roda-viva

E carrega a saudade pra lá

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração

(HOLANDA, 1968)

Gênese do método e dos modelos de análise

A semiótica francesa surgiu como tal através dos estudos da semântica


estrutural desenvolvidos por A. J. Greimas (1978), linguista e lexicólogo lituano que
propôs um modelo de análise de conteúdo em nível transfrástico, após leituras de

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Saussure, Hjelmslev, É. Souriau e V. Propp. Este modelo, denominado percurso


gerativo de sentido, objetiva abstrair o sentido das camadas mais simples às mais
complexas, perpassando em seu percurso, as gramáticas ou níveis fundamental,
312
narrativo e discursivo, subdivisíveis em componentes sintático e semântico.

Entretanto, outros modelos teórico-metodológicos de análise emergiram a partir


das contribuições do percurso gerativo de sentido, como a semiótica das paixões
(GREIMAS & FONTANILLE, 1993) e a semiótica tensiva (ZILBERBERG, 2006,
2011), entre outras tendências.

Delimitação e premissas

Ao ponderar-se o percurso metodológico da semiótica francesa, de Greimas às


tendências posteriores, faz-se necessário delimitar o arcabouço teórico em si e em
sua explanação e aplicabilidade. Desta forma, a semiótica aplicada à Roda-viva
pondera a letra da canção, em sua imanência textual, conteudística, distanciando-
se, portanto, de uma semiótica da música ou da canção.

No que tange à explanação, sintetizam-se os componentes semântico-


sintáticos dos níveis do percurso gerativo de sentido e as demais tendências
semióticas (semiótica tensiva, semiótica das paixões, entre outras), linearmente, isto
é, tópico por tópico de forma homogeneizada.

Já com relação à aplicabilidade, cada nível e componente do percurso gerativo


de sentido é, após a sua devida explanação, posto em prática na análise de Roda-
viva, segundo os tópicos estabelecidos, de modo a possibilitar uma abstração
didática e gradual dos conceitos, do seu funcionamento e do sentido da letra.

A transformação da roda-viva: operações sintáticas fundamentais

A sintaxe do nível fundamental ou profundo trata das operações sintáticas ou


transformações, no domínio sêmico, em que se tem, segundo Fiorin (1990, p. 20):
“a) afirmação de a, negação de a, afirmação de b; b) afirmação de b, negação de b,
afirmação de a”. Esse jogo de afirmação x negação de termos a e b podem ser

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

transcritos em uma relação esquematizada por Greimas (1975, p. 151-2) como: seja
S₁ → -S₁, seja -S₁ → S₂.

Assim, observa-se que a letra Roda-viva se baliza em um jogo de afirmação e 313

negação dos termos /liberdade/ e /opressão/, através dos quais a opressão da roda-
viva é afirmada, em uma assertividade final, como se nota em:

O samba, a viola, a roseira

Não quer mais rodar, não senhor

Foi tudo ilusão passageira

Que a brisa primeira levou

(HOLANDA, 1968)

Nota-se que ‘samba’, ‘viola’ e ‘roseira’ não desejam rodar (negação da


liberdade ou não-liberdade), pressupondo um ‘querer rodar’ anterior (liberdade
pressuposta), de modo a culminar com a ilusão levada pela brisa (a opressão).

Além da assertividade do termo /opressão/, há a operação sintática dos termos


/resistência/ e /rendição/, cuja assertividade é a rendição do sujeito que canta. Como
exemplo, tem-se o ‘ir ao sentido contrário da corrente’ como /resistência/, termo que
se desdobra em uma negação ou /não-resistência/ do não poder resistir as águas, a
ponto de a volta do barco transmitir o não cumprimento da resistência, isto é, o
termo /rendição/:

A gente vai contra a corrente

Até não poder resistir

Na volta do barco é que sente

O quanto deixou de cumprir

(HOLANDA, 1968)

Além das transformações +liberdade, –não-liberdade, +opressão e


+resistência, –não-resistência, +rendição, são inúmeras as demais operações

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

sintáticas de asserção e negação (+ ou -) sobre as quais Roda-viva se assenta:


partida/ida > não-partida/não-ida > retorno/volta (‘ir à corrente’ e ‘volta do barco’);
vida > não-vida > morte (‘sentir-se como quem morreu’); ação/atividade > não-
314
ação/não-atividade > inação/inatividade (‘cultivar a roseira’ e ‘não cultivá-la);
dinamicidade > não-dinamicidade > estaticidade (‘estancar-se de repente’ e
‘crescer’), entre outras.

Da opressão e da liberdade: timia, axiologia e quadrado semiótico

As operações sintáticas instauram um jogo de oposições, definidoras de


categorias semânticas, na semântica fundamental ou profunda, de modo que +a, –a,
+b figura-se na oposição a X b, definíveis pelo valor (axiológico) positivo ou negativo
empregado pela categoria da timia (disposição afetiva dos elementos), expressa em
/euforia/ X /disforia/. Ademais, as categorias semânticas, enquanto estruturas
elementares da significação, podem ser também esquematizadas visualmente, em
sua lógica, no quadrado semiótico, segundo Greimas & Courtés (2013, p. 400).

De posse de tais apontamentos, compreende-se que, em Roda-viva, os termos


/liberdade/ e /opressão/ compõem uma categoria semântica, ligada por uma relação
(a espoliação), assim como os demais termos justapostos em oposições
fundamentais. Além disso, axiologicamente, /liberdade/ e /opressão/ recebem um
investimento de valor, no qual a /liberdade/ enquadra-se como elemento positivo,
euforia, em contraste com a /opressão/, enquadrado como elemento negativo, na
disforia. Logo, ao se considerar a categoria semântica opositiva /liberdade/ X
/opressão/, tem-se um montante de categorias, axiologizadas pela timia, como:

Quadro 1 – Timia e categorias semânticas opositivas de Roda-viva

CATEGORIA SEMÂNTICA
EUFÓRICO DISFÓRICO
ESPOLIAÇÃO /liberdade/ x /opressão/
COFRONTO /resistência/ x /rendição/
CAMINHO /partida ou ida/ x /retorno ou volta/
EXISTENCIA /vida/ x /morte/

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

EXERCÍCIO /ação ou atividade/ x /inação ou inatividade/


MOVIMENTO /dinamicidade/ x /estaticidade/
Fonte: autoria própria

315

Portanto, sendo cada categoria semântica articulável visualmente, enquanto


estrutura elementar da significação, no quadrado semiótico, tem-se o seguinte
montante de categorias/estruturas do nível fundamental em Roda-viva:

Imagem 1 – Quadrado semiótico de Roda-viva

Fonte: autoria própria

Ou seja, o sentido de Roda-viva pode ser abstraído das estruturas mais


profundas e visualizado no quadrado semiótico, de modo que, segundo Greimas &
Courtés (2013, p. 402), esquematizam-se em ↔ a relação de contradição, em ←--→
a relação de contrariedade, em → a relação de complementariedade, obtendo-se,
portanto, em S₁ – S₂ o eixo dos contrários, em S₁ – -S₁ o eixo dos subcontrários, em
S₁ – -S₁ o esquema positivo, em S₂ – -S₂ o esquema negativo, em S₁ – -S₂ a dêixis
positiva e em S₂ – -S₁ a dêixis negativa. De uma forma geral, ilustra-se, por
exemplo, a relação entre S₂ – -S₁ ou /opressão/ e /não-liberdade/, que ocupam a

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

dêixis negativa do quadrado semiótico, pois se concatenam em um jogo de


complementariedade (-S₁ → S₂), do não-eufórico ao disfórico.

Da tensividade e das modalidades tensivas na opressão da roda-viva 316

Na construção de uma semiótica tensiva, Zilberberg (2011) analisa o espaço


tensivo coexistente entre os elementos ‘a’ e ‘b’, expressos axiologicamente pela
categoria tímica /euforia/ x /disforia/, das estruturas elementares da significação e,
para tanto, conceitua três conceitos-chaves: a dependência (quanto à estrutura), a
foria (quanto à direção) e o afeto (quanto ao valor) (idem, ibidem, p. 11). Nesta
perspectiva, Zilberberg (ibidem) esmiúça o jogo tensivo subjacente ao quadrado
semiótico e propõe os conceitos de intensidade e extensidade (idem, ibidem, p. 89),
correspondentes, respectivamente, ao sensível e ao inteligível, com graus de maior
ou menor tensividade, expressos a partir de um esquema visual de tensão, em uma
correlação inversa, se +intensidade (ascendência), e conversa, se +extensidade
(descendência) (ibid., p. 93). Assim sendo, a tensão situada no vazio dos termos
estanques da categoria tímico-fórica torna-se uma tensividade fórica, uma vez que a
variante se correlaciona com o estado tensivo e também axiológico, apreendido pelo
sujeito.

Ponderando tal teorização, na canção de Chico Buarque de Holanda, o chegar


da roda-viva condiz com o aumento da tensão apreendida pelo sujeito, isto é, com a
intensidade, na medida em que a opressão do extenso, inteligível, externo, age no
intenso, sensível, interno, do sujeito, em coerência com o seu aumento disfórico.
Logo, no domínio das modalidades tensivas de Zilberberg (2011) e sua respectiva
esquematização, obtém-se a seguinte correlação inversa:

Imagem 2 – Extensidade e intensidade em Roda-viva

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

317

Fonte: autoria própria

Percebe-se, pois, que os termos /opressão/ e /liberdade/ alternam-se no


espaço tensivo, ou melhor, tratando-se de tensão, quanto maior a opressão, menor
a liberdade e vice-versa, na medida em que se confluem tais termos na relação
entre intensidade X extensidade, engendrado pelo grau de tensividade analisáveis.

Denúncia e dominação: Programas, percursos e esquemas da narrativa

No desenho sintático da superfície do texto ou sintaxe narrativa de superfície,


enunciados elementares (de estado e de fazer) associam o ator da narrativa, grosso
modo, o sujeito à posse (conjunção) ou não-posse (disjunção) de um objeto , no qual
se contém um valor, tal qual observa Fiorin (1990, p. 21). Esses enunciados,
conforme sistematiza Barros (2005, p. 39), se hierarquizam dentro de programas
narrativos (transformações em torno dos atores e seu estado com o objeto de valor),
estes dentro de percursos do destinador-manipulador (que atribui competência para
o fazer do sujeito), do sujeito (de estado ou de fazer) e do destinador-julgador (que
sanciona o sujeito) e, por conseguinte, os percursos dentro do esquema narrativo
canônico, decomponível, conforme aponta Fiorin (1990, p. 22-23) nas etapas de
manipulação (sedução, provocação, tentação e intimidação), performance,
competência (querer, poder, saber e dever) e sanção. Amiúde, na semiótica
narrativa, Courtés (1979, p. 80) faz menção ao modelo actancial, aproveitado por

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Greimas de É. Souriau, e que se delineia pelas implicações entre destinador e


destinatário com o objeto e entre adjuvante e oponente com o sujeito.

Na letra de Chico, nota-se a presença de inúmeros programas narrativos (de 318

base ou PNb, em torno do ator principal, e de uso ou PNu, em torno dos demais
atores), esquematizados sob a fórmula PN = F [S₁ → (S₂ ∩U Ov)], sendo programa
narrativo (PN) equivalente à função do sujeito de fazer (S₁) empregada na
transformação (→) do sujeito de estado (S₂) em conjunção (∩) ou disjunção (U) do
objeto de valor (Ov) ou de valor modal (Ov/m), como se nota em:

 PNb = F ‘dominação’ [S₁ ‘roda-viva’ → (S₂ ‘actante coletivo’ U Ov/m


‘liberdade/poder’)]
 PNu = F ‘renúncia’ [S₁ ‘actante coletivo’→ (S₂ ‘actante coletivo’ U Ov
‘liberdade’)]
 PNu = F ‘denúncia’ [S₁ ‘eu/cantor’ → (S₂ ‘narratário/público’ ∩ Ov/m
‘história/saber’)]

No programa narrativo da dominação, percebe-se o embate entre a roda-viva e


o sujeito ‘actante coletivo/a gente’, principalmente, nos 7º e 8º versos das oitavas:
“Mas eis que chega a roda-viva / E carrega (...) pra lá” (HOLANDA, 1968). Porém,
além do programa da dominação, há o programa da renúncia desse sujeito para
com o objeto de valor ‘liberdade’, perceptível na chegada da roda-viva também nos
7º e 8º versos das oitavas. Ademais, o programa da denúncia é empregado pelo que
se pode denominar de ‘eu-cantor’ (de “[eu] Não posso fazer serenata” (idem,
ibidem)), que narra para alguém, o narratário ou público ouvinte, a dominação da
roda-viva e a falta do objeto de valor ‘liberdade’ do actante coletivo, de forma a levar
o ‘saber’ sobre engendramento ou ‘história’.

Os programas narrativos enquadram-se nos percursos do destinador-


manipulador, do sujeito e do destinador-julgador: o destinador-manipulador consiste
no próprio ‘eu-cantor’, que, a partir da manipulação (provocação ou descrença do
fazer) do sujeito, estabelece o contrato da união (do ‘eu’, do ‘actante coletivo’) e o

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

destina, com o saber, à luta, ao confronto, à resistência, contudo, sob a sanção


negativa do destinador-julgador ‘roda-viva’, que se apropria da liberdade, da voz
ativa, da saudade, da competência do ‘poder’, entre outros objetos de valores, desse
319
sujeito. Logo, delineia-se o esquema narrativo canônico e suas quatro tradicionais
etapas (manipulação, competência, performance e sanção), projetadas no plano de
fundo do nível superficial da letra.

A propósito do modelo actancial descrito por Courtés (1979, p. 80), constata-se


a seguinte esquematização em Roda-viva:

Imagem 3 – Modelo actancial de Roda-viva

Fonte: autoria própria

Nota-se que o destinador ‘eu-cantor’ e o destinatário ‘público-ouvinte’ implicam-se com


o objeto ‘liberdade’, enquanto que o sujeito ‘actante coletivo’ (o ‘povo’, na forma coloquial
marcada ‘a gente’) tem, respectivamente, ao seu favor e desfavor, o adjuvante ‘música’ e o
oponente ou antissujeito ‘roda-viva’, para a procura de tal objeto, ou, em outras palavras, a
roda-viva é o obstáculo à conquista da liberdade pelo povo, mas este tem a seu favor a
música.

Do querer versus poder e da liberdade: modais, valores e objetos

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Anais

Na semântica narrativa de superfície, situam-se as modalidades, concebidas como


predicados que remetem a outro predicado (de ser ou de fazer). Em meio a isso, os termos
modais da competência (querer, poder, saber, dever) se articulam junto a duas modalidades
englobantes, o ser e o fazer, sendo, segundo Greimas & Courtés (2013, p. 315), 320

modalidades virtualizantes, o dever e o querer, e modalidades atualizantes o poder e o


saber, enquanto que são modalidades realizantes o ser e o fazer. Ainda no domínio da
semântica de nível narrativo, situam os objetos de valores e a tipologia do sujeito. Os
valores, conforme observa Greimas (1974, p. 17), podem ser classificados como valores
positivos ou negativos e valores imanentes ou transcendentes. Já os sujeitos classificam-se,
de acordo com Greimas & Courtés (2013) em sujeitos virtualizados (que não têm
competência para realização da performance), atualizados (que têm competência, mas não
realizam a performance) e realizados (que têm o ser e o fazer).

Em Roda-viva, observa-se o querer-fazer ou ter posse da voz ativa, em detrimento


com o não-poder-fazer, decorrente da presença da roda-viva, como no fragmento inicial da
letra:

A gente quer ter voz ativa

No nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda-viva

E carrega o destino pra lá

(HOLANDA, 1968)

Faz-se necessário colocar que, conforme lembra Barros (2001, p. 53), a modalidade
/querer-fazer/ se denomina vontade ou volição, ao passo que a modalidade /não-poder-
fazer/ equivale à /impotência/. Assim, o sujeito ‘actante coletivo’ ou, grosso modo, o povo
possui a vontade/volição em atrito com a impotência, mediante o objeto de valor positivo e
imanente ‘liberdade’.

Desânimo e virtualização de um povo: entre paixões e apaixonados

As modalidades permitiram o desenvolvimento da Semiótica das paixões


(GREIMAS & FONTANILLE, 1991), uma vez que, para tal metodologia, a

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

modalização torna o discurso passionalizado e ilustra, no nível epistemológico, a


tensividade e a foria, ou tensividade fórica, como simulacros associados ao sujeito.
Logo, Greimas e Fontanille (ibidem) elaboraram uma epistemologia das paixões,
321
com sistema taxionômico próprio, agrupando-as segundo os dispositivos modais que
as constituem, como, por exemplo, a estrutura modal da obstinação, equivalente a
/poder-não-ser, saber-não-ser, querer-ser/. (idem, ibidem, p. 66). Além disso, na
classificação das paixões, elas (as paixões) se subdividem, em seu nível
epistemológico (BARROS, 1990), em paixões simples e paixões complexas,
dependendo a estrutura modal em torno do modo de existência do sujeito. Não
obstante, a semiótica das paixões definiu, na sintaxe do seu microssistema
(GREIMAS & FONTANILLE, 1991, p. 128-9), os modos ou simulacros existenciais
do sujeito através da sintaxe do quadrado semiótico, expressada pela realização
(sujeito realizado, conjunto), virtualização (sujeito virtualizado, não-conjunto),
atualização (sujeito atualizado, disjunto) e potencialização (sujeito potencializado,
não-disjunto).

Em Roda-viva, observa-se a configuração da sintaxe intermodal do querer-


fazer e não-poder-fazer ou, respectivamente, da volição (vontade) e impotência de
S₁ (a gente) perante o fazer de seu antissujeito (roda-viva). Nessa perspectiva, S₁
(actante coletivo-povo) se virtualiza no querer-fazer (o querer ter voz ativa, o querer
cultivar, o querer cantar viola na rua, o querer que a saudade pare o tempo),
enquanto que se atualiza após cada não-poder-poder (o não poder ter voz ativa,
cultivar a roseira, cantar viola e parar o tempo, na chegada da roda-viva) e, por fim,
se potencializa mediante o fazer do antissujeito roda-viva, tornando-se, pois, sujeito
disjunto, sem apossar-se do seu objeto de valor. Ou seja, o modo de existência de
S₁ desenha-se em: virtualização → atualização → potencialização.

Acredita-se, pois, que a paixão decorrente da estrutura do dispositivo modal


/querer-fazer e não-poder-fazer/ é a paixão complexa de malquerença denominada
/desânimo/, segundo listagem de Barros (1990, p. 69), elemento passional que ora
virtualiza, ora potencializa S₁. É o desânimo que enreda, paralelamente, todas as
oitavas, do início ao último verso, isto é, do querer-fazer ao investimento do não-
poder-fazer do sujeito.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A desapropriação da liberdade: pessoa, tempo e espaço


322

A sintaxe discursiva trata da discursivização, isto é, da actorialização,


espacialização e temporalização, que, segundo Fiorin (1996), se articulam por meio
dos processos de debreagem (instauração dêitica no discurso) e embreagem
(retorno dêitico ao discurso), de caráter enunciativo (a partir dos dêiticos
eu/aqui/agora) ou enuncivo (a partir dos dêiticos ele/lá/então), os quais projetam as
categorias de pessoa, espaço e tempo da enunciação no enunciado, com
determinados efeitos de sentido, como aproximação e distanciamento, subjetividade
e objetividade.

Com base nessas ponderações, na letra de Chico Buarque de Holanda (1968),


tem-se, na actorialização, o engendramento do enunciador da enunciação-
enunciada pelo uso coloquial debreado do termo ‘a gente’, em substituição do
pronome ‘nós’. Assim, enunciador, narrador e interlocutor confluem, na narrativa,
com o mesmo ator, ou seja, sincretizam-se no enunciado. Porém, o enunciador
realiza a embreagem enunciativa, ao desvelar o sua impotência (não-poder-fazer) e
se reafirmar, no discurso, como um ‘eu’: “[eu] Não posso fazer serenata” (idem,
ibidem).

A espacialização, por sua vez, se desenvolve sob a forma de espaço +aberto,


+natural e +cognitivo (‘corrente da tormenta’ e ‘jardim da roseira’, por exemplo),
demarcado pelo ‘lá’, com efeito de sentido de objetividade e distanciamento,
enquanto que o espaço pressuposto pelo ‘aqui’ é não demarcado. Portanto, o
espaço distante, objetivo, reflete a perda ou desapropriação da liberdade do sujeito,
na enunciação-enunciada.

Já na temporalização, o tempo do ‘agora’ é delimitado pela +concomitância,


com traços, ora de +anterioridade, ora de +não anterioridade. Então, passado e
presente são debreados, sendo o tempo passado (‘então’) associado à liberdade e o
tempo presente (‘agora’) à ausência dela.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Da dissimulação do enunciador: as modalidades veridictórias

Nas modalidades que envolvem o ser e o seu termo contrário, o parecer, as 323

denominadas modalidades veridictórias, de acordo com Greimas & Courtés (2013, p.


532), a transição, efetuada a partir dos eixos do quadrado semiótico, articula a
verdade (ser x parecer), a mentira ou dissimulação (parecer x não-ser), a falsidade
(não-parecer x não-ser) e o segredo (não-parecer x ser).

Em Roda-viva, o interlocutor ‘eu-cantor’ não parece um eu tão somente, devido


ao sincretismo com o[s] não-eu[s] ou o[s] outro[s], mas o é (/não-parecer/ x /ser/), ao
passo que a roda-viva não é, necessariamente, uma roda-viva, mas parece, devido
às ações, ao carregar x de y a z (/parecer/ x /não-ser/), configurando o quadrado da
veridicção:

Imagem 3 – Modalidades veridictórias

Fonte: Greimas & Courtés (2013, p. 532)

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Deste modo, o eu-cantor oculta-se na somatória eu + outro = nós/ a gente, da


mesma forma que a roda-viva se dissimula enquanto tal pelo discurso do narrador e
seu fazer persuasivo (fazer-crer-ser e fazer-crer-parecer).
324

ELEMENTOS DE SEMÂNTICA ESTRUTURAL

Em sua Semântica estrutural, Greimas (1973) esmiúça a significação


manifestada e, para isso, analisa o efeito de sentido, o semema (Sm), como
combinatória entre o sema nuclear (Ns) e o sema contextual (Cs), sendo o sema
nuclear pertencente ao nível semiológico e o sema contextual “o denominador
comum a toda classe de contexto” (RECTOR, 1978, p. 154). Assim, para Greimas
(1973, p. 62), o semema expressa-se pela fórmula: Sm = Ns + Cs.

Em Roda-viva, faz-se necessário observar, pois, o lexema <roda> (cuja raiz é


rod–), tão recorrente no texto e, para isso, aponta-se que um traço essencial do
núcleo sêmico do efeito de sentido, o semema, de tal lexema é a +circularidade.
Inicialmente, esse lexema aparece em: “Mas eis que chega a roda-viva / E carrega o
destino pra lá” (HOLANDA, 1968). Nesse sentido, o nível da manifestação do seu
efeito de sentido, o semema, equivale à combinatória do traço +circularidade, com
os traços contextuais de +vida, +dinamicidade, +intangibilidade e
+dimensionalidade, junto, respectivamente, aos lexemas “vida”, “carregar”
(movimento dinâmico), “destino” (intangível) e “lá” (referido à distância, dimensão).
Além dessas categorias contextuais, o lexema <roda> aparece, nas oitavas da letra
referindo-se a “roseira”, “viola” e “saudade”, variando do tangível ao intangível.

O lexema <roda> aparece ainda, ao longo do refrão, em:

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração

(HOLANDA, 1968)

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Nessa perspectiva, <roda> comporta os traços +circularidade e +grandeza na


lexia complexa ‘roda mundo’, na medida em que, nos demais lexemas, seus traços
325
se ampliam: ‘roda-gigante’ (+circularidade, +ludicidade, +grandeza), ‘rodamoinho’
(+espiralidade ou espiral, +aeriformidade) e ‘roda pião’ (+circularidade, +ludicidade,
+pequenez).

Ponderando tal levantamento, observa-se a variante contextual na significação


de <roda>, ao longo da letra de Chico Buarque, podendo apenas afirmar-se a
circularidade como traço recorrente, fixo no núcleo sêmico do semema. De uma
forma mais abrangente, a significação do elemento lexical ‘roda’ se desnuda
complexadamente.

FIGURAS E TEMAS

Na semântica discursiva, conforme observa Barros (2005), estudam-se os


processos de figurativização e tematização, além das recorrências de figuras e
temas, as denominadas isotopias, sendo as figuras a representação concreta e
sensível da existência e os temas os traços que as unem e são por elas revestidos.

Na letra de Chico Buarque (HOLANDA, 1968), os temas presentes (como o


confronto, por exemplo) são recobertos por figuras (corrente, barco) ligadas a
isotopias comuns (isotopia do fluvial), mas que, através da metaforização, obtém-se
uma combinatória (isotopia da luta, no caso), conforme se observa na listagem da
figurativização e tematização de Roda-viva:

Quadro 2 – Temas e figuras de Roda-viva

PERCURSO ISOTOPIA TEMAS METÁFORAS


FIGURATIVO (figuras) (percurso) (conexões)
partida, morte despedida despedida, morte tempo
estancamento, crescimento parada inatividade tempo
corrente, barco fluvial confronto luta
roseira, cultivo cuidado atividade/exercício esperança
saia, mulata arte popular impedimento retardamento
serenata, samba arte popular impedimento retardamento
ilusão, brisa intangibilidade efemeridade liquidez
peito, saudade passado nostalgia apego
roda gigante, pião ludicidade superioridade dominação

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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roda-viva movimento desapropriação dominação


a gente fusionalidade pluralidade/união política
Fonte: autoria própria

326
Nota-se, pois, que a figura do sujeito ‘a gente’, associada à isotopia da
fusionalidade (eu + ele[s] = outros), constitui o tema da pluralidade/união popular,
uma vez que se tem a forma coloquial. A pluralidade/união popular, implicadas com
a fusionalidade, remetem à metáfora da política. Por outro lado, a figura ‘roda-viva’
compõe a metáfora da dominação, uma vez que a isotopia do movimento reveste o
tema que a envolve: a desapropriação da liberdade.

Portanto, política e dominação, além também das demais metáforas (tempo,


luta e etc.), consolidam o tema central de Roda-viva: a retratação e denúncia de um
período marcado pela dominação, pelo impedimento, pelo retardamento das artes e
cultura popular. Retratação esta, desvelada na enunciação-enunciada a partir da
depreensão dos conectores de isotopias (metáforas) que poetizam temas e figuras,
tornando demasiadamente abstrato o conteúdo do texto.

Conclusão

Constatou-se, que Roda-viva, de Chico Buarque de Holanda (1968), se baliza


na categoria semântica /liberdade/ versus /opressão/, suscetível de esquematização
tímica no quadrado semiótico. Não obstante, notou-se que o destinador-manipulador
‘eu-cantor’ leva, com a competência modal do saber cedida ao destinatário ‘público’,
o sujeito ‘povo/actante coletivo’ a uma performance, sendo sua sanção a privação da
liberdade, de modo a desenhar-se o programa narrativo da dominação. Viu-se
também que sujeito o narrador (enunciador pressuposto) manipula a enunciação por
meio da objetividade das debreagens enunciativas actancial, espacial e temporal,
embora se desvele como um ‘eu-cantor’ e, através da metaforização, figurativiza
seus temas com isotopias variadas, metaforizando, por meio das figuras ‘a gente’ e
‘roda-viva’, a política e a dominação.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Ademais, ressalta-se que a metodologia da semiótica greimasiana (níveis


fundamental, narrativo, discursivo e suas devidas sintaxe e semântica), junto às
suas bases e tendências, permite a abstração do sentido por intermédio de uma
327
análise textual, imanente, sem, contudo, prender-se à estrutura e afastar-se da
enunciação, neste sentido, enunciação-enunciada.

Deste modo, conclui-se que a riqueza poética da letra de Roda-viva convida o


leitor e ouvinte a uma viagem temporal metaforizada, em que subjazem a
dominação, a opressão, a busca de um povo pela liberdade e, de uma forma geral, a
retratação crítica de uma época sob um viés passional. Tal convite conduz a uma
retomada histórica ao regime militar brasileiro, instituído durante os anos 1964-1985,
sua política, repressão e anacronismo artístico e intelectual.

Entretanto, faz-se necessário ressaltar que a tessitura da retomada e


retratação de um período, imbricadas no âmbito mais abstrato de uma letra, só é
possível mediada pela genialidade de Chico Buarque de Holanda. Com maestria,
Chico não se restringe ao ‘o que se diz’, mas, do contrário, embarca seu texto no
‘como se diz’, ao interdito, oculto a cada nível de leitura, atestando-se, assim, como
um dos maiores compositores da Música Popular Brasileira de todos os tempos.

Referências

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3. ed.
São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.

______. Teoria semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2005.

______. Paixões e apaixonados: exame semiótico de alguns percursos. Cruzeiro


semiótico, Porto, n. 11/12, 1990, p. 60-73.

COURTÉS, Joseph. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Trad. Norma


Backes Tasca. Coimbra: Almedina, 1979.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

HOLANDA, Chico Buarque de. Roda-viva. In______. Chico Buarque de Holanda –


vol. 3. São Paulo: RGE, 1968. 1 LP, lado A. Faixa 6 (3 min 42).

328
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto,
1990.

______. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São


Paulo: Ática, 1996.

GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural: pesquisa de método. Trad. Haquira


Osakabe e Izodoro Bliksten. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1973.

______. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Trad. Ana Cristina Cruz Cézar [et al.].
Petrópolis: Vozes, 1975.

______. Um problema de semiótica narrativa: os objetos de valor. Letras de hoje,


Porto Alegre, PUC-RS, n. 16, jul. 1974, p. 7-17.

GREIMAS, Algirdas Julien & COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Trad.


Alceu Dias Lima [et al.]. São Paulo: Contexto, 2013.

RECTOR, Monica. Para ler Greimas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.

ZILBERBERG, Claude. Elementos de semiótica tensiva. Trad. Ivã Carlos Lopes, Luiz
Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

O poema “A vida é loka” de Sérgio Vaz: sujeito


e(m) resistência/ negação
The poem "Life is loka" Sérgio Vaz: subject and(in) resistance/denail 329

Heitor Messias Reimão de Melo (PG-PLE/UEM)i


Aline Rodrigues dos Santos (PG-PLE/UEM)ii

RESUMO: Os poemas periféricos têm sido alvos de investigação em diversos campos das Ciências
Sociais, não apenas na área de concentração literária. Nesse contexto no qual a arte da periferia
ganha visibilidade e importância nos mais variados lugares sociais, o poema A Vida é Loka de Sérgio
Vaz é tomado como corpus de análise discursiva. O trabalho fará uma comparação entre as
concepções de Pêcheux e Foucault no que se refere em as relações de força e poder,
respectivamente, na Análise do Discurso de linha francesa. Abordaremos a noção de sujeito e
negação, que é tratada por teorias de linha Pecheutianas e o sujeito e resistência de teorias
Foucoultianas. Para melhor compreensão, a partir desses conceitos, o artigo tem como objetivo,
entender os (possíveis) efeitos de sentidos presentes no poema e como esses efeitos são produzidos
em uma abordagem linguística/discursiva.

PALAVRAS-CHAVE: Poema Periférico; Sujeito; Resistência; Negação.

ABSTRACT: Peripheral poems have been targets of research in various fields of social sciences, not
only in the area of literary concentration. In this context in which the art of the periphery get visibility
and importance in various social places, the Ségio Vaz poem Life is Loka is taken as a discursive
analysis corpus. The study will compare the conceptions of Pêcheux and Foucault with regard to the
relations of strength and power, respectively, in the French Discourse Analysis. We will discuss the
notion of subject and denial, which is handled by Pecheutianas line theories and the subject and
resistance in the Foucoultianas theories. For better understanding, from these concepts, the article
aims to understand the (possible) effects of meaning that poem presents and how these effects are
produced in a linguistic/discursive approach.

KEYWORDS: Poem Peripheral; Subject; Resistance; Denial.

Considerações iniciais

A produção artística da periferia apresenta uma pluralidade e diversidade


em suas manifestações, a exemplo dessas artes que se destacam não somente na
comunidade, temos Sergio Vaz que é considerado um dos poetas mais influentes
para a cultura dos sujeitos à margem, utilizando de seu saber para produzir poemas
que desconstroem alguns conhecimentos tidos como verdades acerca da periferia.
Os poemas periféricos têm sido alvos de investigação em diversos campos
das Ciências Sociais, não apenas na área de concentração literária. Nesse contexto
no qual a arte da periferia ganha visibilidade e importância nos mais variados
lugares sociais, além de ser assunto de interesse dos pesquisadores, o poema A
Vida é Loka de Sérgio Vaz é tomado como corpus de análise discursiva.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

As seções deste trabalho trarão as concepções Pêcheux e Foucault, no que


se referem em as relações de força e poder, respectivamente, e que são autores
importantes para a Análise do Discurso de linha francesa. Será abordada a noção de
330
sujeito e negação, que é tratada por teorias de linha Pecheutianas, levando em
consideração a noção de ideologia que é característica importante para uma teoria
advinda de Pechêux, e o sujeito e resistência de teorias Foucoultianas, em uma
análise sobre o regime de verdade e os saberes acerca dessa verdade circunscritos
a temporalidade do poema enquanto prática discursiva.
Para melhor compreensão, a partir desses conceitos, o artigo tem como
objetivo, entender os (possíveis) efeitos de sentidos presentes no poema e como
esses efeitos são produzidos em uma abordagem linguística/discursiva.

Sujeito, relações de forças e negação

Antes de um aprofundamento no que é sujeito, compreenderemos a forma-


sujeito, que segundo Althusser (1974), que afirma que todo indivíduo humano só
pode ser inseridos a práticas sociais após revestir-se da forma-sujeito. Podemos
pensar, nesse momento, que o indivíduo é dispositivo está nulo de contato social e a
forma-sujeito é um dispositivo que já está inerente as relações do mundo.
Seguindo o pensamento de Althusser (1974), pode-se pensar que para um
sujeito estar inerente as relações de mundo, ele está constituído de um
funcionamento ideológico que o determina, a ideologia é materializada em discurso,
assim a (re) significa, ao se pensar no Discurso Religioso, o sujeito interpelado pela
ideologia religiosa propaga os seus discursos e a transmite, como por exemplo, os
missionários, que são um dos encarregados para levar a palavra de Deus aos que a
necessite, logo, materializam a ideologia em discurso.
Dessa forma, percebe-se que a Análise do Discurso Pecheutiana mostra um
sujeito “moldado” pela ideologia, como se a mesma fosse dando formas já
padronizadas, e isso ocorre em várias Instituições, como a religiosa, a legislativa, a
familiar: “a ideologia interpela o indivíduo em sujeito e este se submete à língua
significante e significando-se pelo simbólico na história” (ORLANDI, 2010, p. 19).

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Segundo “Pechêux (1975), não se pensa o sujeito como origem de si”


(Orlandi, 2010, p. 18), isso é, o sujeito está em funcionamento pela sua interpelação,
realizada por meio das formações ideológicas, que ao ser assujeitado, o indivíduo
331
sofre atravessamentos discursivos (interdiscursos) que imbricam a sua constituição,
ao se “detectarem” inclusos a uma ideologia X, tem-se a noção de “natural”, mas
não a noção de “regulado”.
Para tanto, o “estar incluso” a uma ideologia X é estar restrito ao sítio da
ideologia, da história, mesmo que o negue, pois, ao romper total ou parcialmente
com dados saberes de uma Formação Discursiva (FD) iii, automaticamente, desloca-
se para o domínio de outros saberes concernentes à ideologia.
Ao pensar em negação, o texto Polêmica e denegação: dois
funcionamentos discursivos da negação (1990), de Freda Indursky, aborda o
conceito de denegação discursiva, calcados no trabalho de Ducrotiv: “Na teoria
psicanalítica, através da negação, o sujeito pode mascarar aquilo que, por ter sido
censurado pelo superego recalcado no inconsciente, não lhe é facultado dizer”
(INDURSKY, 1990, p. 118),
A negação de um ideologia, ora discurso, pensa-se a partir das posições do
sujeito que o permitem estar inserido a mais de uma FD, ou seja, instala-se na
heterogeneidade do discurso, que “ao incidir sobre um elemento de saber que pode
ser dito pelo sujeito do discurso mas que, mesmo assim, por ele é negado, tal
elemento permanece recalcado na FD (INDURSKY, 1990, p. 120)”, podemos pegar
a crença ateísta como exemplo, que para negar a existência de um Deus, ela
precisa que alguma FD discursiva que Deus exista.
Ao negar, pode-se relacionar às Relações de Forças, que segundo Orlandi
(2015), pode-se dizer que o poder é o lugar o qual parte a fala do sujeito, e é
indispensável do que ele diz. Ainda na perspectiva de Orlandi (2015), como se trata
de uma sociedade capitalista com relações hierarquizadas, ou seja, relações de
forças, um discurso para se sustentar precisa estar calcado no poder e no(a)s
lugares/posições em que são pronunciados.
Em outras palavras, as relações de força são determinadas pelos lugares
sociais ocupados pelos locutores: aquele que ocupa o lugar social de maior prestígio
e poder detêm, ao menos em teoria, maior força no processo discursivo.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Sujeito, poder e resistência

332
O poder numa análise discursiva, no método arquegenealógico de Foucault,
deve ser tomado em suas relações, ele se exerce, se dá nos modos de ação de
alguns sobre outros. Em O Sujeito e o Poder (FOUCAULT, 1995), vemos que o
poder “só existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de
possibilidade esparso que se apoia sobre estruturas permanentes” (p. 242). Nessa
mesma obra, o objetivo do filósofo fica claro: ao analisar a questão do poder, seu
propósito é, na verdade, o sujeito (p. 231).
O sujeito do enunciado é “um lugar determinado e vazio que pode ser
efetivamente ocupado por indivíduos diferentes” (1986, p. 109), essa frase do
estudioso é uma das mais memoráveis no entendimento que tira o sujeito do centro
e da origem de todo o dizer e prática, este (o sujeito) é, pois, no exercício do poder,
“dividido no seu interior e em relação aos outros” (p. 231). Uma característica
imanente do poder é, então, que ele existe nas relações entre os indivíduos ou
grupos de indivíduos, nas quais uns exercem poder sobre os outros, numa via de
mão dupla, o que significa que não há sujeito que será sempre opressor e outro que
será sempre oprimido.
Mesmo nossa sociedade moderna ter-se constituído naquela que disciplina e
normaliza não se trata, contudo, de um contínuo dizer “não” e imposição por meio da
repressão e Foucault convida a refletir: “se o poder fosse somente repressivo, se
não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido?”
(1979, p. 7-8). Então, “o poder só se exerce sobre ‘sujeitos livres’” (p. 244),
produzindo efeitos de verdade sobre o corpo social, em outras palavras, um regime
de poder se inscreve num determinado discurso produzindo um regime de verdade
de uma sociedade, para regular e controlar os corpos, enfim, criar condutas. Ora, em
nossa sociedade, todos são “livres” (sujeitos individuais ou coletivos) para agir e
reagir, possuem diversos comportamentos, podendo, até mesmo, resistir às
exigências de normalidade.
Portanto, “onde há poder há resistência” (DUARTE, p.48), pois, nesse jogo da
sociedade de controle que constitui o Estado ocidental moderno o qual harmoniza

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técnicas de individualização (biopoder) e procedimentos de totalização (biopolítica)


afim de “conduzir condutas” (FOUCAULT, 1995, p. 244), haverá sempre embate de
forças, ou seja, resistência. Não, porém, no sentido de tentar escapar ao poder, pois
333
não existe esta possibilidade, já que ele não se encontra em apenas uma instituição
ou em um indivíduo. Em seu exercício nas práticas heterogêneas constituídas
historicamente em uma sociedade, ele alcança a todos de modo que ao resistir a
certas forças, o sujeito não lhe escapa totalmente, mas decide sobre qual poder quer
ser governado, afinal, todas as resistências a alguma relação de poder acontecem
sempre dentro das suas próprias redes (DUARTE, p. 47-48).
Dentre as inúmeras posições que o sujeito pode ocupar no embate de forças,
para resistir a (ou as) relações de poder, entraremos na análise discursiva do poema
de Sérgio Vaz pelos pontos estabelecidos por Foucault (1995): sistema das
diferenciações, tipos de objetivos, modalidades instrumentais, formas de
institucionalização e os graus de racionalização. A fim entender os (possíveis)
efeitos de sentidos presentes no poema.

Sergio Vaz e “a vida é loka”

Os poemas periféricos têm sido alvos de investigação em diversos campos


das Ciências Sociais, não apenas na área de concentração literária. Nesse contexto
no qual a arte da periferia ganha visibilidade e importância nos mais variados
lugares sociais o poema A Vida é Loka de Sérgio Vaz é tomado como corpus de
análise discursiva.
Segundo um dos sites em que rap, periferia e poemas periféricos são temas
de suas publicações, o Do Lado de Cá, “nosso grande poeta da periferia lança vídeo
(declamando um poema) inspirado em histórias reais de alunos e nas letras do
Racionais MC's”v, ainda no corpo da matéria o seguinte texto, que foi escrito por
Tatiana Ivanovici:

Um dos maiores expoentes da cultura periférica no Brasil, idealizador


da Cooperifa e pioneiro no movimento dos saraus, que transformou os
bares nas periferias em centros culturais, o poeta Sérgio Vaz, lança mais
um vídeo poesia. “A Vida é Loka” é uma homenagem aos estudantes
brasileiros que lutam por sua evolução em meio a um cenário repleto de

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

dificuldades e necessidades básicas, “vida loka é quem estuda” é uma


valorização para estes jovens resistentes das periferias brasileiras. (2015)

Segundo Orlandi (2010, p. 15), “as condições de produção incluem pois os 334
sujeitos e a situação”, indo além, pensando em um sentido lato, que (idem) afirma
que, “a situação compreende imediato e contexto histórico, ideológico, mais amplo”.
Assim, pode-se tomar como as condições de produção, seguindo tais conceitos, que
Sérgio Vaz é pioneiro de um sujeito que vai contra a um já-dito acerca da periferia.
Sabendo que existe um interdiscurso pré-estabelicidos de que se o sujeito for
da periferia, logo, é “criminoso”, o autor já se apresenta como negação de uma
Formação Discursiva (FD), pensando que a FD não é apenas formada por discursos
que são ditos a partir dela, mas também sobre ela.
Ao ser “um dos maiores expoentes da cultura periférica no Brasil, idealizador
das Cooperifa e saraus”, Sérgio Vaz fala de um lugar com maior prestígio, e nas
relações de forças, se tornou o sujeito autoritário do discurso periférico, e num
processo discursivo, detêm poderes para discursa e defender a sua cultura.
Percebe-se que Sérgio Vaz não nega a sua FD, mas sim, nega a
negatividade discursada sobre ela, “a que se pode denominar retórica da
denegação, ou seja, a negação da negação” (ORLANDI, 1987, p. 257). Que nas
relações de forças podemos ir contra o conceito de maniqueísmo, já que
transformou bares em centros culturais.
Prova de tais negações, Sérgio Vaz publica o poema “A vida é loka”, no livro
Flores de alvenaria, lançado no ano de 2015, pela editora Global. Em seguida o
poema, que é o objeto dessa análise discursiva, por meio de das teorias
foucaultianas.

Esses dias tinha um moleque na quebrada


com uma arma de quase 400 páginas na mão.
Uma minas cheirando prosa, uns acendendo poesia.
Um cara sem nike no pé indo para o trampo com o zóio vermelho de tanto ler no ônibus.
Uns tiozinho e umas tiazinha no sarau enchendo a cara de poemas. Depois saíram vomitando versos
na calçada.
O tráfico de informação não para, uns estão saindo algemado aos diplomas depois de
experimentarem umas pílulas de sabedoria. As famílias, coniventes, estão em êxtase.
Esses vidas mansas estão esvaziando as cadeias e desempregando os Datenas.
A Vida não é mesmo loka? (2015, p. 103)

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Anais

O “agir sobre a ação dos outros” (Foucault, 1995, p. 246) só é permitido sob
um sistema de diferenciações que, nesse caso, pensamos ser econômicas e
culturais (artíticas). Vejamos, o texto é do gênero poema, tem linguagem e estrutura
335
poética e se constrói resignificando enunciados que produzem certos efeitos de
sentido nos discursos da (e sobre) a periferia: arma de quase 400 páginas,
cheirando prosa, acendendo poesia, enchendo a cara de poemas, pílulas de
sabedoria.
Tais enunciados evidenciam a ação do sujeito poeta sobre as ações das
posições assumidas por aqueles que, como os Datenas, não vivem nas mesmas
condições econômicas, e por isso estão num embate de forças com a quebrada.
“Toda relação de poder opera diferenciações” (Foucault, 1995, p. 246) e as
diferenças que permitiram a produção desse texto são as mesmas que permitem
que o sujeito resista às verdades que o colocam em posição de inferioridade cultural
e econômica.
Consequentemente, ao agir sobre a ação do outro, os tipos de objetivos são
diferentes (p.246). O sujeito poeta tem por objetivo subverter as verdades atreladas
à violência, ao uso/trafico de drogas e ao baixo nível de educação e cultura do
morador dos subúrbios, verdades essas mantidas pelos discursos de outros grupos
econômica e culturalmente superiores (segundo suas verdades) por meio de
programas policiais de TV, para construir verdades completamente contrárias: ...uns
estão saindo algemado aos diplomas... / Esses vidas mansas estão esvaziando as
cadeias e desempregando os Datenas.
Pelo fato de que o poder se exerce e para isso usa instrumentos, Foucault
introduz a noção de modalidades instrumentais:

ameaça das armas, dos efeitos da palavra, através das disparidades


econômicas. Por mecanismos mais ou menos complexos de controle,
por sistemas de vigilância, com ou sem arquivos. segundo regras
explícitas ou não, permanentes ou modificáveis, com ou sem
dispositivos materiais etc. (Foucault, 1995, p. 246)

O sujeito poeta usa dos efeitos de palavras para produzir efeitos de


resistência, desconstrução e reconstrução de outras verdades. É pela poesia
(instrumento) e pela própria estruturação dos enunciados, construindo-os por meio

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Anais

de idéias contrárias que esta reconstrução das verdades sobre os sujeitos das
periferias é produzida. Nos pares a seguir, os primeiros termos são os que
chamaremos de “esperados” e os segundos termos dos pares serão chamados de
336
“não-esperados”: arma/ de quase 400 páginas; cheirando/prosa; acendendo/ poesia;
zóio vermelho/ de tanto ler no ônibus; enchendo/ a cara de poemas; vomitando/
versos na calçada; tráfico/ de informação; algemado /aos diplomas; pílulas/ de
sabedoria; as cadeias/ esvaziando; Datenas /desempregando. Portanto, a quebra
da expectativa torna-se a própria resistência nas relações de poder com grupos mais
privilegiados representados no poema também como aqueles que se utilizam dos
efeitos de palavras: os programas policiais de TV e, ainda, mecanismos de controle
como as prisões. É de suma importância também destacar a valorização que o
sujeito poeta dá ao discurso da periferia, usando as palavras, termos e linguagem
desta para compor o texto: quebrada, minas, cara, trampo, zóio, tiozinho, tiazinha,
loka.
As maneiras como os grupos se organizam entre si e nas relações com os
outros são as formas de institucionalização. Nesse caso em que a poesia é a
resistência à maneira como o Estado controla, regula e distribui as relações de
poder organizando na periferia os mais pobres, oferecendo ensino precário e forte
incidência das ações da polícia, a arte literária é um “dispositivo fechado sobre si
mesmo com seus lugares específicos, seus regulamentos próprios, suas estruturas
hierárquicas cuidadosamente traçadas, e uma relativa autonomia funcional”
A poesia (a arte literária) usada como instrumento elabora altos graus de
racionalização, pois assume um lugar de privilégio entre os textos. Atinge o público
com maior grau de instrução, apreciadores da arte, leitores de uma classe social
com maior poder econômico que tem acesso a livros e livrarias, mas também atinge
o próprio subúrbio que pode ler “A Vida é Loka” pela internet, ouvir do outro e até
mesmo ler no próprio livro; e, pela linguagem usada, identificar-se com o texto,
começando pelo próprio título.

Possíveis considerações finais

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Anais

A teoria Pecheutiana pensa a no sujeito constituído ideologicamente, nunca


desassociando um ao outro, através dos seus discursos essa interpelação cria
efeitos de sentidos, e por meio da ideologia pode-se instaurar todas as relações de
337
sua teoria, a exemplo, a negação de um enunciado ou as suas relações de força.
Enquanto Foucault pensa o sujeito como uma dispersão que, nas relações
de poder, ocupa um lugar para falar, para agir sobre o outro, produzindo verdades
ou resistindo a elas (produzindo, então, outras verdades), mostrando uma
possibilidade de escolha da forma como quer ser governado.
Utilizando a poesia como instrumento, o sujeito poeta ao mesmo tempo que
resiste a uma verdade sobre a periferia, constrói uma outra identidade sobre os
sujeitos “da quebrada”, produzindo, assim, um novo regime de verdade, isso só é
possível porque o poder se exerce, se dá em ato. Ao agir sobre a ação de um corpo
coletivo que marginaliza o modo de vida das periferias, a poesia evidencia as
relações de poder e saber cotidianas da temporalidade contemporânea das
periferias.
Sergio Vaz discorre seu poema negando a noção de que uma periferia possuí
apenas sujeitos à margem, no entanto, ao negar esse já-dito, reafirmado por
discursos da negatividade, silencia que possam existir os dois lados de uma
periferia, pois “o silêncio não é mero complemento da linguagem. Ele tem
significância própria” (ORLANDI, 2002, p 23), e ao silenciá-lo não anula a existência
de sujeitos que estão inseridos a práticas ideológicas que não são aceitas pela
sociedade, mas mostra a positividade ao estudo e uma tentativa de desconstruir o
pré-estabelicido acerca de um sujeito periférico.
Porém, Tanto as teorias pecheutianas, quanto as foucaultianas colocam o
discurso como o lugar em que o sujeito vai agir. É na prática discursiva que as
relações de força, de poder acontecem e, consequentemente, a negação e a
resistência.

Referências

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Ideológicos de Estado. 2. ed. Trad. Valter José Evangelista e Maria Laura Viveiros
de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1974.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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DUARTE, André. Biopolítica e Resistência. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO,


Alfredo (Orgs). Figuras de Foucault. 2. ed. Belo Horizaonte: Autêntica. 2008, p. 45-
55.
338
DUCROT, Oswald. Provar e dizer: linguagem e lógica. Tradução de Maria Aparecida
Barbosa, Maria de Fátima Gonçalves Moreira, Cidmar Teodoro Pais. São Paulo:
Global Ed., 1981.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 11. ed. Org. e Trad. Roberto Machado.
Rio de Janeiro. Edições Graal. 1979

______. Sujeito e Poder. In: DREYFUS, H. & RABINOW, P. Michel Foucault, uma
trajetória filosófica: (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Vera Porto
Carrero. Rio de Janeiro: Universitária, 1995.

INDURSKY, Freda. Polêmica e denegação: dois funcionamentos discursivos da


negação. In: Cadernos de Estudos Linguísticos, 19, jul/dez, Campinas: Editora da
UNICAMP, 1990. p. 117-122.

IVANOVICI, Tatiana. Sergi Vaz lança “A vida é loka”. 2015. Disponível em: <
http://www.doladodeca.com.br/2015/03/26/sergio-vaz-lanca-a-vida-e-loka/> Acesso
dia 05 de julho de 2016.

ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso.


2. ed. rev. e aum. Campinas, SP: Pontes, 1987.

______. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 12 ed. São Paulo: Pontes,


2015.

______. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Edunicamp,


2002.

______. Introdução às ciências da Linguagem – Discurso e Textualidade / Suzi


Lagazzi-Rodrigues e Eni P. Orlandi (orgs) – Pontes, 2010 – 2ª Edição: Campinas,
SP.

VAZ, Sérgio. A Vida é Loka. In. Flores de alvenaria. 1 ed. Global. 184 pag. 2015.

i
Mestrando em Letras - PLE, na linha de Estudos Linguísticos, na área Estudos do Texto e do
Discurso, pela Universidade Estadual de Maringá - UEM. Integrante do GPDISCMÍDIA - Grupo de
Pesquisa em Discursividades, Cultura, Mídia e Arte (UEM/CNPQ) e do DIALE – Grupo Diálogos
Linguísticos e Ensino: Saberes e Práticas (UENP/CNPQ). heitorletras@gmail.com
ii
Mestranda em Letras - PLE, na linha de Estudos Linguísticos, na área Estudos do Texto e do
Discurso, pela Universidade Estadual de Maringá - UEM. Integrante do GPLEIADI – Grupo de
Pesquisa em Leitura, Análise do Discurso e Imagens (UEM/CNPQ). alineunisintonia@gmail.com

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

iii
Não será discutida a noção de Formação Discursiva (FD), porém segundo Orlandi (2010), a
Formação Discursiva é aquilo que, numa formação ideológica dada determina o que pode e deve ser
dito, exemplo, “uma Formação Discursiva Escolar não se deve falar palavras esdrúxulas aos seus
colegas”, logo, o sujeito-aluno está interpelado por essa ideologia, inserindo-se na FD Escolar.
iv 339
Ducrot define dois tipos de negação, uma negação descritiva como sendo “uma afirmação de um
conteúdo negativo sem referência a uma afirmação antitética (pode-se ter, então, tanto uma negação
de frase como uma negação de predicado)” (1981, p. 98). E a negação polêmica, que é definida a
partir da Teoria dos atos de fala, tem como noção mor, o ilocucional, que para o autor, uma negação
polêmica equivale a “um ato de fala de negação, e que se apresenta, pois, como refutação do
enunciado positivo correspondente (trata-se sempre, nesse caso, de uma negação de frase)” (1981,
p. 98). Segundo Ducrot, ao refutar um enunciado anterior, o locutor está tendo uma atitude
psicológica de negar. Uma negação de frase recai sobre uma frase antitética que funciona como uma
negação metalinguística, feita sobre um enunciado anterior, que pode ter sido dito, estar
subentendido ou pressuposto no diálogo.
v
Disponível em: < http://www.doladodeca.com.br/2015/03/26/sergio-vaz-lanca-a-vida-e-loka/> Acesso
dia 05 de julho de 2016.

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Anais

O Que Fizeram das “Caixas Pretas” de Greimas?


What Was Done of the “Black Boxes” left by Greimas?
340

Valdenildo dos Santos (UFMS)


Pâmela Salmazi dos Santos (UFMS, G)
Ana Maria Lacerda Cândido (UFMS, G)

RESUMO: O trabalho aqui resumido refere-se ao descobrimento do que fizeram das “caixas pretas”
de Algirdas Julien Greimas (1917-1992) em sua semiótica enquanto termo englobante, a fim de iniciar
cientificamente os alunos de Letras à pesquisa e introduzi-los à Semiótica da Escola de Paris
enquanto ferramenta para análise de textos/discursos na esfera verbal, não verbal e sincrética.
Quanto à metodologia, partiu-se de pesquisas preliminares de ordem descritiva de iniciação científica
assumindo um caráter teórico, desde as leituras que dizem respeito à metodologia de pesquisa (GIL,
2002) às leituras mais específicas quanto à teoria em questão, com um relato detalhado das
atividades. Em relação ao corpus de investigação constitui-se na verificação em algumas publicações
não generalizadas, mas específicas que constam da obra “Semiótica Sincrética Aplicada. Novas
Tendências (2007) de Nícia Ribas D’Ávila resposta para a pergunta que forma esse artigo. Os
resultados parciais, uma vez que esta é uma parte de uma pesquisa maior, indicam que D’Ávila tem
contribuído de forma decisiva para se não o desvelamento, a ampliação do legado deixado por
Greimas no tocante à figuralidade que precede a figuratividade vastamente explorada e aplicada por
vários semioticistas greimascianos.

PALAVRAS-CHAVES: Semiótica, Greimas, “Caixas Pretas”.

ABSTRACT: The work summarized here refers to the discovery of what was made of the "black
boxes" of Algirdas Julien Greimas (1917-1992) in his semiotics as encompassing term to introduce the
students of Letras (language) scientifically to research and introduce them to Semiotics of the School
of Paris as a tool for analysis of texts / speeches in the verbal sphere, non verbal and syncretic
languages. As for methodology, it started with preliminary descriptive research of scientific initiation
assuming a theoretical character, since the readings concerning the research methodology (GIL,
2002) to more specific readings on the theory in question, with a detailed account activities. Regarding
the research corpus it constitutes of checking in some publications not generalized, but specific
contained in the book “Semiótica Sincrética Aplicada. Novas Tendências” (2007) by Nícia Ribas
Davila to answer the question which is the title of this article. The partial results, since this is a part of a
larger research indicate that D’Ávila has contributed decisively to if not unveiling, but allowing the
expansion of the legacy left by Greimas regarding the figurality that precedes the widely explored
figuration and applied by several greimascian semioticians.

KEY-WORDS: Semiotics, Greimas, “Black Boxes”.

Introdução

O projeto de pesquisa englobante em que este trabalho é englobado,


““Caixas pretas” e importância da semiótica francesa na análise de discurso verbal,
não verbal e sincrético na UFMS, Três Lagoas” trata do levantamento por meio de
leituras de artigos e livros que tragam algumas contribuição sobre o assunto e se
iniciou em 2013 e tem o seu final projetado para 2018, com o propósito de atualizar

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Anais

a teoria semiótica de Algirdas Julien Greimas quanto a sua aplicabilidade não só ao


discurso verbal, mas também não verbal e sincrético.
Neste trabalho, portanto, por ser uma parte do todo, tem esse caráter 341

preliminar sobre o assunto, a fim de atualizar a referida teoria, por meio de materiais
que se constituem de textos relativos ao assunto publicados e encontrados na
grande rede internacional ou impressos por meio de artigos ou livros, imprimindo o
método indutivo de verificação na hipótese da existência de uma relação dinâmica
entre o que a teoria apresenta hoje em dia (mundo real) e a prática dos sujeitos
discursivos que dão prosseguimento as ideias iniciais de Greimas, assumindo,
portanto, um caráter descritivo.
Os resultados parciais refletem pesquisa de referência bibliográfica,
privilegiando os estudos realizados por Nícia Ribas D´Ávila, que nos indicam que as
“caixas pretas” de fato foram mencionadas pelo próprio Greimas e das pesquisas de
seus seguidores quanto ao assunto.

A Pesquisa Científica: Iniciação as leituras

Para se iniciar em pesquisas, um dos livros importantes sobre o assunto é


“Como elaborar projetos de pesquisa” de Antonio Carlos Gil (2002), que tem como
foco principal direcionar estudantes ou profissionais de diversas áreas, que tem
objetivo de participar de pesquisas científicas. Dessa forma, o autor apresenta uma
série de táticas que podem ser seguidas para que haja sucesso na iniciação
científica, classificando a pesquisa como aquilo que procura por algo que ainda está
desconhecido, ou que não tenha tido bons resultados para serem esclarecidos e que
para realizá-la é preciso paciência, já que o resultado em alguns casos demora a ser
desvendado por apresentar algumas fases de desenvolvimento até que chegue ao
seu veredito final.
Quanto à sua busca, esta se dá por motivos distintos, seja por curiosidade
própria de desvendar novas descobertas, seja pelo simples fato de esclarecer algo
que necessita de um resultado mais eficaz e com determinado direcionamento ético,
como no caso de algumas doenças. Assim, temos as pesquisas classificadas como

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Anais

"puras" ou "aplicadas", sendo que a ciência não seleciona a finalidade que gera a
pesquisa, mas sim os conhecimentos e resultados gerados, já que ambas
apresentam resultados significativos, independentemente do seu motivo de ser 342

pesquisado.
Para se fazer uma pesquisa é preciso ter um certo perfil de pesquisador, é
indispensável apresentar um certo conhecimento prévio do assunto a ser
pesquisado, ser curioso, criativo, ter uma imaginação disciplinada, paciência e ter
recursos materiais e financeiros. Gil nos mostra como planejar um projeto de
pesquisa, utilizando as táticas de formular um problema e como resolvê-lo, como
construir as hipóteses ou especificar os objetivos, identificar o tipo de pesquisa,
operacionalizá-lo quanto às variáveis, fazer a seleção, colher amostra, elaborar os
instrumentos e determinar a estratégia de coleta de dados, determinação esta
englobada do plano de análise de dados, prevista sob a forma de apresentação dos
resultados, com cronograma da execução e definição dos recursos, mantendo,
assim, o objetivo central em foco.

Uma abordagem semiótica da Pintura de Manoel da Costa Ataíde de Elisson


Ferreira Morato.

A leitura do artigo de Elisson Ferreira Morato, cujo título é “Uma abordagem


semiótica da Pintura de Manoel da Costa Ataíde” destaca a semiótica greimasiana
como uma teoria de cunho linguístico, cuja metodologia se aplica também a corpora
não-linguísticos, uma vez que distingue genericamente os textos como verbais ou
não-verbais.
Morato procura mostrar quanto ao caráter não-verbal da teoria semiótica que
a semiótica plástica, ou visual, desdobramento da teoria de Greimas que se volta
especificamente para a análise de textos visuais, apresenta uma contribuição à
teoria de Greimas para a leitura de textos icônicos, o que procura exemplificar com
uma tela do pintor Manoel da Costa Ataíde (1762-1830), ou simplesmente Mestre
Ataíde, nascido e falecido na cidade de Mariana (MG), deixando obras em diversas
cidades mineiras, como Ouro Preto, Mariana e Santa Bárbara. Suas pinturas

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

pertencem ao período barroco e exploram temas sacros como, por exemplo,


passagens da vida de Cristo.
A tela reservada por Morato para a análise é a Santa Ceia e se encontra na 343

Igreja de São Miguel e Almas ou Bom Jesus de Matozinhos em Ouro Preto. Antes
da análise propriamente dita a que se propõe, Morato apresenta um procedimento
analítico da semiótica baseado em três princípios:
a) O texto formado por um plano de conteúdo e por um plano de expressão;
b) O texto organizado em uma estrutura narrativa;
c) A estrutura narrativa do texto se organiza em um percurso formado por três
níveis complementares.
Na tela analisada, por exemplo, Morato identifica que se trata de uma
representação da Santa Ceia, em que Jesus abençoa o pão, remetendo ao plano de
conteúdo do texto. Por outro lado, o articulista reconhece que esse assunto é tratado
com cores tais, que são trabalhadas pelo artista conjuntamente com jogos de luz e
sombra, que pertencem ao plano de expressão.
Há, por assim dizer, um resgate do período barroco, da passagem da Ceia
com os discípulos, a representar o primeiro episódio que alude à trajetória da Paixão
de Cristo, ocasião na qual foi anunciada aos discípulos a possibilidade de os
homens comungarem com o divino, alimentando-se do corpo de Cristo, que é
simbolizado pelo pão.
Por meio de sua análise pode-se ver uma sequência de eventos que levam à
temática da crucificação como:
a) A benção do pão e comunhão dos apóstolos com Jesus,
b) O anúncio da traição de Judas e,
c) A saída para o Jardim das Oliveiras.
Ao término da análise Morato conclui que há o momento da Ceia em que
Jesus abençoa o pão e o oferece a seus discípulos como seu próprio corpo e
esclarece que por não apresentar data e assinatura nesta obra foram levantadas
hipóteses de que se tratava de uma pintura de discípulos de Mestre Ataíde, ou de
que a obra teria sido retocada posteriormente, já que encontramos os traços
essenciais das pinturas de Ataíde, como a fisionomia mestiça das personagens, a

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Anais

composição em linha curva e o cromatismo de azul e roxo que caracterizam as


vestes do Cristo.
Quanto às cores, em análise semiótica, é preferível que estas não sejam 344

levadas em consideração por pertencerem ao mundo virtual e cultural que provocam


efeitos de sentidos e não falam do sentido propriamente dito. Todavia, o articulista
informa sobre a presença das cores frias do traje do Cristo, roxo e azul que
contrastam com o vermelho do manto de João e do apóstolo anônimo, de costas
para o espectador. Arremata que essas matizes contrastam com a massa cromática
das figuras dos apóstolos, formada pelo predomínio do tom ocre.
Essa questão das cores, encarada por nós, semioticistas, como elementos
que provocam efeitos de sentido, não pode ser definida. Não há, ainda, uma teoria
que dê conta das cores, por serem culturais. É preferível, na análise pura semiótica,
analisar as figuras em preto e branco, uma vez que o cromático, como dizia
Greimas, ainda estava a ser pesquisado e aprofundado, uma vez que não havia, na
década de setenta, elementos de análise das cores nem dos graus de tonalidade,
ritmo, espessura, etc., um caminho que, parece-nos, Ana Claudia Mei de Oliveirav e
Nícia Ribas D´Ávilav, atuando em universos diferentes, embora queiram dizer a
mesma coisa, querer aprofundar.
A disposição das figuras é orientada por um alinhamento curvilíneo formado
pelos olhos dos personagens. No centro, Jesus, e os apóstolos se aglomeram em
torno do mestre. Acima da cabeça de Jesus, tem-se um candelabro com velas,
tendo o centro como a área mais iluminada da cena. O cenáculo onde se reúnem é
preenchido por uma luminosidade difusa que contrasta com as áreas escuras
formadas pelo cortinado preto à direita e por uma porta à esquerda. A mesa
banhada pela luz das velas, encontramos os alimentos de que nos fazem menção os
evangelhos: o pão e o vinho. Esses alimentos simbólicos fazem contraponto ao saco
de dinheiro que Judas tem consigo.
Quanto a análise de Morato aqui reproduzida e comentada como ilustração de
que é possível que a questão do cromático não era algo resolvido pela semiótica de
Greimas, esta se limita à descrição do corpus, sem um aprofundamento mais crítico
e teórico do ponto de vista do preenchimento de uma possível “caixa preta”.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

João, o evangelista, considerado o apóstolo preferido de Cristo, diz Morato,


se debruça sobre a mesa com os olhos fechados e que em contraste à cena, a
figura de Judas estampa no rosto uma imagem de inocência, o que é contraditório, 345

posto que ele, Judas, é o traidor, que ainda revela distração e exaltação ao participar
da bênção do Mestre da Galiléia.
Há de se admitir, por outro lado, que o artigo de Morato nos serve de
informação sobre o plano de conteúdo de qualquer texto, seja verbal ou não-verbal,
porque este se forma por um percurso gerativo de sentido, conforme vemos na
simplificação do esquema de Greimas em seu dicionário com Courtés, nos livros e
vários artigos que seguem José Luiz Fiorin e Diana da Luz Barros, como os níveis:
a) Fundamental (mais simples e abstrato).
b) Narrativo (intermediário).
c) Discursivo (mais complexo e concreto).
É assim que Morato chega à temática do quadro o qual diz que decorre do
fato de Cristo oferecer a comunhão com o divino através do consumo do pão, o qual
representa seu corpo. Assim, o pão – além do próprio Cristo e do cálice de vinho
sobre a mesa – remete ao tema da salvação.
O pão é a representação, pela narrativa neo-testamentária dos evangelhos,
do corpo de Cristo e Cristo deu sua vida pela salvação de todos aqueles que
viessem a nEle crer. Deste ponto de vista sim, podemos falar de salvação em
oposição, como Morato coloca, da temática da perdição, figurativizado pelo ator
Judas, à direita do quadro, que segura um saco de moedas. Oras, aí está mais
evidente, em primeiro plano, a temática da traição que é seguida, sim, da perdição,
da auto-sanção condenatória, posto que não há lugar, no Céu, para os suicidas,
segundo a narrativa escatológica.
Conclui Morato que embora os evangelhos mencionem que Judas era o
tesoureiro do grupo, o guardador do dinheiro, o saco de moedas é geralmente
associado ao pagamento pela delação de Jesus, de modo a fazer dele uma figura
negativa ligada à perdição. E é fato, que isto o qualifica, falamos nós, como o traidor,
manipulado que foi por tentação por aqueles que procuravam uma só contradição

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para condenar o próprio Senhor Jesus diante das autoridades e da Lei da época, os
fariseus, anti-sujeitos do programa narrativo de base cujo foco de luz está em Cristo.
346

Semiótica Sincrética Aplicada: novas tendências de Nícia Ribas D’ Ávila.

A obra de D’Ávila de 2007 sem dúvida oferece uma contribuição à Teoria


Semiótica da Escola de Paris ao propor a teoria da figuralidade ou figuratividade
visual por meio de artigos de seus orientandos que apresentam de forma detalhada
a aplicabilidade da teoria de Greimas e toda uma nomenclatura da proposta de sua
teoria, também chamada de teoria daviliana, diferentemente de Morato e de outros
semioticistas que procuram dar conta da leitura da imagem sem apresentar
cientificamente um arcabouço teórico.
Esse arcabouço D’Ávila apresenta desde o primeiro artigo que abre seu livro,
retomando os estudos que deram conta do símbolo, para falar, depois, do semi-
simbolismo, desde sua origem etimológica, “Do grego sýmbolon, e do latim symbolu”
Platão (347 a.c) a Henry Morier, em sentido restrito ou amplo” (2007, p. 15).
Explica D’Ávila que o símbolo se manifesta como “sinal”, “alegoria”,
“comparação” e “metáfora” e que é possível que o observemos ainda como
“elemento gráfico” e “objeto” que, de forma convencional arbitrária, faz “analogia” em
cuja “forma” ou ainda quanto à “natureza, represente, evoque, ou substitua outra
coisa num determinado contexto, a exemplo do sinal “&” (e comercial), que significa,
de forma abstrata ou ausente” (2007 p. 15-16).
Quanto ao seu valor, o símbolo é “um elemento descritivo ou narrativo
suscetível de dupla interpretação, associada quer ao plano das ideias, quer ao plano
real, portando valor ora evocativo, ora mágico, ora místico” (2007, p. 16). É por isso
que na Teoria Geral dos Signos do americano Charles Sanders Peirce, o símbolo
também pode funcionar como índice ou tem um caráter de “um sinal indicativo de
uma instituição, de uma associação ou de um partido” (2007, p. 16).
D’Ávila cita Michel Arrivé que o chama de “simbolizante” em respeito à
terminologia de Sigmund Freud, segundo a qual ele representa a “clareza” e a
“obscuridade”, sua face não manifestada. A semioticista greimasciana cita ainda

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Rank, Sachs, Ferenezi, Jones que, segundo ela, “sustentam que só se pode falar de
simbolismo em psicanálise nos casos em que o simbolizado é inconsciente” (2007,
p. 16-17), fazendo distinção entre o símbolo na psicanálise e na linguística e 347

explicando que o termo é empregado “para designar signo, ao passo que, em


psicanálise, o símbolo é definido como uma ideia consciente que representa e
encerra a significação de outra inconsciente” (2007, p. 17).
Ao retomar Platão, a semioticista informa que ele investigou a “arbitrariedade
do signo na relação entre nomes, ideias, coisas, levando seus seguidores a
questionar se a relação entre homem e signo é natural ou arbitrária, definida por
convenção social” (2007, p. 17-18) e cita ainda Winfried Nöth, (1998, p. 29) para
resgatar Aristóteles para quem “o signo linguístico era denominado símbolo
(sýmbolon)”.
Aristóteles definiu o signo como sendo “convencional das “afecções
(pathémasa) da alma”, ou seja, “retrato” das coisas (prágmata)” (2007, p. 18) e que
tinha um aspecto triádico quanto à sua natureza, talvez vindo daí a concepção
peirceana das idades do signo, por conta da existência de “uma relação de
implicação: se (q) implica (p), (q) atua como signo de (p). Uma premissa que conduz
a uma conclusão” (2007, p. 18).
D’ Ávila retoma ainda os epicuristas para os quais o signo está ligado à
percepção e que representa algo não perceptível e Santo Agostinho (354-430) que,
segundo D’ Ávila, “é considerado o fundador da semiótica, na antiguidade [e
considera] o signo uma coisa que, além da impressão que produz nos sentidos, faz
com que outra coisa venha à mente como consequência de si mesmo” (2007, p. 19),
o primeiro que falou da “existência de signos verbais e não-verbais” (2007, p. 19).
D’Ávila veleja, portanto, da antiguidade à modernidade, chegando à Peirce, para
quem um símbolo “é um signo que se refere ao objeto que denota, em virtude de
uma lei, normalmente uma associação de ideias gerais” e que se define e se
fundamenta “numa convenção social que surge em oposição ao ícone (caracterizada
por uma relação de contiguidade natural)” (2007, p. 20).

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É assim que D’ Ávila chega a Ferdinand de Saussure (1981, p. 97-101), que


se refere ao “simbolismo como a soma de um significante a um significado (ambos
abstratos) e pertencente à língua que é o objeto da linguística”. (2007, p.21). 348

De Saussure ela chega à Louis Hjelmslev que define o signo

como uma grandeza biplanar (expressão + conteúdo estruturalmente


independentes) e o símbolo como uma grandeza das semióticas
monoplanas, as que só comportam um plano de linguagem, ou aquelas
cujos dois planos (expressão e conteúdo) estariam ligados por uma relação
de “conformidade” (correspondência termo a termo entre as unidades (2007,
p. 22).

Do conceito de símbolo, D’ Ávila passa a elaborar sobre o objeto, retomando


Husserl, em Recherches logiques (1959), para quem o objeto se estabelece como
algo “real” ou “ideal”, conforme se apresenta ao sujeito. Além do filósofo da
imanência, ela busca Brondal (1943), sobre o estatuto do objeto, bifurcado em
“objetivo” e “subjetivo”. No primeiro caso, o objeto “elucida” aquela noção que se tem
de “substância” “quantitativa (distinta do pensamento aristotélico, como “os objetos
do pensamento, da nossa consciência, indefinidos, individuais, sem relação mútua”
e no segundo caso, “a noção demonstrada é a de objeto independente, com
capacidade de determinação qualquer, inscrito numa ordem dada, apto a receber
definições e qualidades” (2007, p. 22-23).
Trazendo Peirce ao debate sobre o objeto, afirma que ele procurou
demonstrar “os planos de abstração que compõem a significação do objeto”,
definindo-o como “dinâmico” e “imediato” e situando sua dinamicidade como “agente
por meio do qual o objeto é interpretado, significado” e que “de certo modo, está
“situado no exterior do lugar onde o objeto imediato é manifestado”, a medida que
“ele funciona como ponto de partida de um processo de sentido contínuo” (2007, p.
23).
D’Ávila resgata o pensamento de Brondal sobre o objeto, finalmente, antes de
chegar a Greimas e Courtés, que “segundo Larsen (1991)”, aqueles de caráter
subjetivo são aqueles da capacitação das formas “uma vez que são sempre
desprovidos de qualidade, pois não foram ainda caracterizados; são apenas formas
ou enquadramentos que a gente cria (ou que encontra feitos) e que estão prontos a
receber um conteúdo descritivo” (2007, p. 24).

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Em Greimas & Courtrés (1979, p. 258-259), cita a reflexão epistemológica dos


semioticistas sobre o assunto que afirmam ser o objeto “o que é pensado ou
percebido como distinto do ato de pensar (ou de perceber) e do sujeito que o pensa 349

(ou o percebe)” (2007, p. 25).


Para Greimas e Courtés, o objeto é desprovido de pré-determinação a não ser
que esta esteja ligada à sua relação com o sujeito. Eles falam ainda do “sujeito-
objeto na qualidade de actante delegado a desempenhar uma determinada ação, e a
semiótica-objeto – como uma grandeza manifestada qualquer, que se propõe
conhecer” (2007, p. 26). É, portanto, retomando a noção de simbolismo e de noção
do objeto que D’Ávila chega à proposta da teoria semiótica da figuratividade
visual”, sugerindo que:

“Na era atual, seria interessante que a semiótica plástica, lugar do


pensamento mítico, detivesse o olhar na organização do objeto posto e dele
conseguisse extrair esse 'além da razão', cuja dessemantização levar-nos-á
à apreensão dos elementos básicos gerados do conceito de figuralidade,
parte essencial na avaliação do conceito de figuratividade visual”. (2007. p.
27).

D’Ávila parte, como vemos, da já existente figurativização explorada e


desenvolvida na semiótica de Greimas para sugerir um esboço teórico organizado
do objeto posto, como as obras plásticas, para preencher o lugar do “pensamento
mítico”, como coloca, em relação à semiótica plástica atual. O sujeito manipulador de
seu fazer é a percepção de uma falta, de uma disjunção dessa semiótica hoje em
dia, quanto a esse arcabouço teórico. É essa sua contribuição, desvendar uma caixa
preta deixada por Greimas em sua teoria e que, na sua perspectiva, seus discípulos
não teriam ainda construído e, por isso, constrói um arcabouço de verificação
objetiva, organizada e próprio para as artes plásticas que venha dar conta do que
chama de “além da razão”, ou seja, justamente da questão mítica que interioriza o
objeto. É essa “desemantização”, desconstrução do sentido de forma objetiva e
organizada, organizacional que nos dará pistas, nos fará apreender os objetos
básicos gerados do conceito de figuralidade, objeto modal imprescindível, essencial
na avaliação do conceito de figuratividade visual:

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“Para caracterizar a figuratividade em semiótica visual e elucidar a natureza


dos conteúdos nela investidos, propomos demonstrar a existência de uma
organização rítmico-formal, relacional, interativa – constante de uma
organização universal fundamentada nos eixos semânticos a) da
350
figuralidade (simbólico) e b) do figurativo (semi-simbólico)” (2007, p. 28).

Sua proposta se estabelece, assim, na demonstração de que existe uma


organização rítmico-formal, relacional e interativa, oriundas de uma organização
fundamental, universal com base na figuralidade, mundo do simbólico e na
figutatividade, mundo do semi-simbólico. É com base nesta premissa que D’Ávila
passa a definição da arte abstrata como “formas livres” de expressão que levam ao
“infinito de combinações” quando assume um aspecto de ineditismo do ponto de
vista de sua produção.
O sujeito produtor, em outras palavras, pela abstração e liberdade de sua
forma tem esse poder de produzir variadas combinações que parecem não ter fim.
Deste ponto de vista, afirma “A arte abstrata nada mais é que a dessemantização do
objeto sensível que se torna desprovido de todo o valor denominativo por toda a
significação intrínseca” (2007, p. 29).
É assim que D’ Ávila cria o conceito de “figurador I” a fim de que possa se
referir à representação. O figurador I é vertente do logos, cujo significado é “palavra”
desde os estudos sobre esse significado nas línguas em 1880. Nesta visão teórica,
procura-se levar o destinatário da mensagem artística à decodificar, extrair da
imagem figurativa o figurador. É ele, essa “vertente de estudos sobre o
conhecimento e reconhecimento que ele mesmo impõe pela palavra”, por aquilo que
a semioticista vai chamar de “crescensas do seu significado como imagem
representativa de objeto do mundo natural”, autorizando frases do tipo “toda imagem
é metafórica” que vai tomar como ponto de reflexão e explicação de sua proposta
(2007, p. 31). Ela faz, finalmente, uma comparação entre o figurador I e o hipoícone
peirceano que se constitui uma metáfora plástica.
É possível, portanto, que o neologismo criado por D’ Ávila tenha sua
inspiração no conceito de ditongo que é o encontro de duas vogais, melhor dizendo,
de uma vogal e uma semivogal numa mesma sílaba em que, no caso das vogais
serão (a, e, o) e semivogais serão (i, u) cujo estudo mais aprofundado mostra que
essas letras têm uma representação própria para os seus sons.

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Charles Sanders Peirce retoma o conceito de ícone, como um signo referente


ao objeto com propriedade denotativa somente em virtude de sua própria
característica na existência ou não do objeto, o que implica em dizer que “Qualquer 351

coisa, seja uma qualidade, um existente ou individual ou uma lei, é ícone de


qualquer coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como um
seu signo” (1903, p. CP 2. 247).
Peirce fala ainda do ícone puro, ao qual vai chamar de possibilidade lógica,
não singular tal qual uma ideia, mas como representante fiel do objeto e, neste caso,
o ícone é o próprio objeto.
Por ser uma possibilidade lógica e não algo existente, no dizer de Peirce, o
ícone puro assim se manifesta porque o signo em sua possibilidade de relação com
o objeto de natureza existencial passa a ser encarado como índice e não como um
ícone.
Já o símbolo, nesta categorização da primeiridade, secundidade e
terceridade, extrapola essa categoria e a simples relação de semelhança, caso
específico do ícone que representa o objeto por conta da comunhão de qualidades
produtora da semelhança entre o ícone e o objeto. Se a existência pressupõe a
secundidade, o ícone puro não vai existir, porque existe uma isotopia fusional entre
ele, o ícone puro e o objeto, pelo fato do primeiro não fazer distinção do segundo.
É com base nesta não existência de um ícone puro que Peirce apresenta os
hipoícones como uma possibilidade, aquela que nos fala da primeiridade e, neste
caso não é ícone, mas índice. O signo, por sua vez, pode ser icônico ao representar
por meio da similaridade. Assim, o hipoícone será um representâmen, na formulação
piramidal peirceana, dado o seu potencial de representar o objeto via similaridade.
Ao formular as três categorias lógicas universais da primeiridade,
secundidade e terceiridade Peirce dá as dicas do modo de ser do hipoícone,
relacionando a primeiridade à qualidade do signo (índice), a secundidade à sua
relação (ícone) e a terceiridade à uma lei universal (símbolo), sendo que esta última
depende das duas primeiras por ser por elas constituída e a segunda depende
também da primeira.

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Os hipoícones participam, assim, da primeridade, quando esta se constitui


pelas qualidades simples ou primeiras, como é o caso das imagens. Eles participam
também da secundidade quando representam relações diádicas ou não das partes 352

de algo por relações análogas em suas partes como os diagramas. Eles participam,
finalmente, da terceiridade, quando representam a própria representatividade de um
representâmen via paralelismo com alguma outra coisa, como as metáforas.
Tanto as imagens quanto os diagramas e as metáforas são sinsignos
icônicos, porque no caso das primeiras, elas mantém relação de similaridade com o
seu objeto pelos aspectos qualitativos, dinâmicos e imediatos, uma vez que os
objetos que as constituem são de natureza material existente e seus atributos dos
mais importantes são a reflexão, a tensividade superficial, o formato, tamanho
relativo, seu desenho que representa o perfil de uma pessoa ou objeto, de acordo
com os contornos que a sua sombra projeta e finalmente o seu peso. As segundas
apresentam um padrão de relação pela similaridade com o seu objeto, fazendo com
que haja dinamicidade em seu objeto formador de um padrão regular de relações
cujo objeto imediato é um existente. As terceiras apresentam similaridade com seu
objeto baseada em aspectos de lei. Logo, o objeto do hipoícone tem esse caráter
pertencente à terceiridade ou a generalização, numa abrangência maior, simbólica.
Retomados estes conceitos peirceanos pela referencialização do texto
daviliano a fim de entendermos melhor essa analogia, voltemos à proposta aqui
engendrada de uma teoria da figuralidade, que procura agora mostrar o nível
profundo na Comunicação Visual e o Semi-Simbolismo de inspiração flocheana,
porque D’ Ávila cita Jean Marie Floch, contemporâneo de Greimas, que teria
contribuído com a semiótica visual, que definiu o semi-simbolismo como “a
manifestação sincrética (verbo-visual), na qual as substâncias da expressão tenham
um caráter verbal e visual, para exprimir uma única categoria do conteúdo” (2007, p.
42).
Afirma D’Ávila que “No sincretismo verbo-visual, o visual pode interagir no
contexto, alterando o conteúdo do verbal” (2007, p. 42) e sugere que há
“potencialidades simbólicas” tanto na linguagem verbal quanto na linguagem não

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verbal ou sincrética e postula para a sua “Teoria da Figuratividade” “a construção de


uma metalinguagem apropriada” (2007, p. 42).
D’Ávila cria neologismos para falar do “signo visual” que, ao seu ver, é um 353

“formante” que pertence ao plano da expressão cujo “formema” pertence ao plano


do conteúdo e que é “apreendido pela consciência fundada num objeto posto ou por
ela pressuposto, que representa e encerra a própria significação, ou em ideias
gerais e específicas que desse algo emanem (2007, p. 43). O signo visual é, desta
forma, uma constituição da semiose existente entre ambos os planos quando estes
se manifestam no interior do texto.
Ela justifica sua posição ao dizer que é pela linguagem verbal que se
reconstitui o que a obra diz, do jeito que diz o que diz, naquela mesma perspectiva
da imanência do texto defendida por Greimas em sua teoria e reproduzida por Fiorin,
Barros e tantos outros semioticistas. Afinal, quem nunca, no ambiente desta
semiótica, não ouviu falar da repetida frase “o que o texto diz, do jeito que diz o que
diz”, ou seja, o Percurso Gerativo do Sentido? É justamente esta a proposta de
D’Ávila, criar uma metalinguagem que venha dar conta do “como” do sentido, “o
modo por meio do qual ela transmite a sua mensagem, fazendo-se entender” (2007,
p. 47), o que já existe no tocante à linguagem verbal, deixada pelo semioticista
lituano. É assim que ela percorre sua busca incansável da “natureza dos conteúdos
visuais envolvidos nesse tipo de manifestação, principalmente aquela que é
desprovida de histórias a narrar, no caso, a obra abstrata” (2007, p. 47).
Os quadros que seguem servem de ilustração para melhor compreensão de
sua proposta. Observem:

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D’ Ávila explica o quadrado semiótico da figuratividade visual por meio dos


figurais 1 e 2 os quais vão compor o eixo semântico da Figuralidade e dos
figuradores 1 e 2 que pertencem ao eixo semântico do Figurativo, cuja soma de 354

ambos se traduz na Figuratividade Visual propriamente dita (2007, p. 29). O quadro


2 que segue informa sobre aquilo que pode se representar como símbolo, guiando à
“referentes externos”:

A imagem posta, segundo D’Ávila, serve de ilustração para mostrar sua


teorização, porque “independentemente do que possa representar como símbolo –
que conduz a referentes externos” – ela procura desconstruir do ponto de vista
“formal” e sígnico “todo significante” com vistas à “encontrar a essência na formação
do traço, cujas modificações neles efetuadas implicam, consequentemente, a
alteração do significado visual” (2007, p. 32).
É essa busca da essência das coisas, dos fenômenos, do “ser” do sujeito,
cujo seu não encontro, em nossa opinião, é a frustração dos analistas, dos artistas,
como Pablo Picasso já nos indicava em seu touro linha, que D’ Ávila procura
resolver, ao propor sua teoria e explicar os novos termos, como o “formema
complexo”, em sua definição,

“aquele que possibilita a análise do referente interno do texto ou objeto


semiótico, permitindo que o mesmo possa ser interpretado pelas somas
contextuais extraídos dos seus figurais classemáticos dos tipos “manchas”,
ou primitivos figurativos, geradores de isotopias rimas plásticas, projeções
(2007, p. 34).

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355

D’Ávila explica que “O excesso de inclinância (extraído do /ft/) evidencia a


isotopia da diagonalidade ascendente, direcionada à direita, indicativa de uma
intencionalidade de movimento rítmico” (2007, p. 36) e que ao nível do significado,
no plano do conteúdo, “o não-verbal sofre alterações em virtude da necessidade de
extraírem-se os conteúdos do material plástico presentificado, representado e re-
presentado, face à qualificação e à quantificação da substância da expressão”
(2007, p. 40), conforme veremos no quadro geral do Percurso Gerativo do Sentido
na manifestação visual com base no mesmo percurso já delineado por Greimas.
Neste quadro, na semiótica visual, o conteúdo é sinônimo de significado e a
substância do conteúdo é variável e a forma do conteúdo é invariável. Assim, a
substância do conteúdo apresenta variáveis perceptíveis e se manifesta de maneira
triádica que expõe:
a) A Substância do conteúdo em que a presentificação simbólica denotativa, como
o figural 2, existente nas artes abstratas e suas variantes; a representação semi-
simbólica denotativo-conotativa, que apresenta o figurador 1, do logos, o que a
imagem representa, sua história retratada com fidelidade ao figurativo que tem
implicação com o semantismo verbal e a re-representação, que tem um caráter
conotativo cujo figurador 2 se manifesta, desta vez, do “mythós”, bebendo na fonte
de Jean Claude Coquet, em que a representação do objeto apresenta traços
subjetivos de seu observador analista que não consegue, como dizia Greimas,
isentar-se de sua timia, aqueles efeitos psicofisiológicos, ao que D’Ávila vai chamar
de “repertório e criatividade”.
b) A forma do conteúdo, na coluna do meio de seu quadro em que podemos ver no
nível superficial, o figural e o figurativo.

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Ela explica primeiro aquilo que é concernente ao mundo denotativo, como o


ritmo, o aspecto, o ritmo dos espaços analisável pela proxêmica, a disposição de
objetos em determinado espaço com o fim de significar, como os termos englobante 356

versus englobado, a simetria, a assimetria e o sincretismo, aquilo que está


misturado, os aspectos, como o incoativo, isto é, o início de tudo, o durativo, aquilo
que ocorre durante, o terminativo, aquilo que é concernente ao fim da operação, o
contínuo, aquilo que permanece, o descontínuo, aquilo que é interrompido, o não-
descontínuo, numa relação de contrariedade no quadrado semiótico e da mesma
forma o não-contínuo.
No interior do espaço e do ponto de vista temporal, o que chamamos de
espacio-temporalização o analista pode explorar os planos 1, 2, 3, e assim por
diante e dentro dos planos, os espaços 1, 2, 3 e assim sucessivamente.
Aponta também como verificar as oposições como contorno e contornado, a
perspectiva como as superfícies e volumes, a proporcionalidade como dimensão,
posição, orientação; rimas plásticas simples e complexas, que vão determinar os
classemas, as posições sintagmáticas e paradigmáticas, planos isotópicos, as
sincopas que pertencem ao figural, e os formemas parciais e totalizantes aos quais
abrevia na forma fp e ft.
Todos estes aspectos são do mundo denotativo. Do mundo conotativo, sua
implicação verbal, as rimas poéticas e míticas, e as funções da sincopa no nível
figurativo, o ponto de tensão, o figurema, o ponto de transição e o imagema.
Ainda em relação à forma do conteúdo, agora no nível profundo de análise, D’
Ávila, em seu quadro, sintetiza as denotação e as categorias semânticas
responsáveis pelas isotopias, os semas que mostram as quantificações e a
qualificação da figura, o pontuema, o tracema, o angulema, o colorema, o cromena,
o saturema, o texturema, o densirema, o largurema, o poietema, o sincopema, o
extensurema, o figurema, o projetema, e assim por diante, todos neologismos
criados no nível profundo e oriundos dos níveis anteriores.
Ela sugere que eles sejam dispostos no quadrado semiótico a fim de
determinar a forma, abstrata ou sistêmica e paradigmática extraídas de isotopias
como da retilineidade, que podem aparecer na vertical, horizontal, na diagonal,

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perpendicular, cruzada 1 e 2, na curva côncava, aquela na qual qualquer segmento


de reta unindo dois de seus pontos está mais próxima do observador que o trecho
da curva entre estes pontos, que pode ser horizontalizada, verticalizada, 357

diagonalizada, perpendicularizada, ascendente, descendente, etc.


A curvilineidade pode ainda se apresentar com as mesmas características,
porém de forma convexa, ou seja, aquela na qual qualquer segmento de reta unindo
dois de seus pontos está mais afastada do observador que o trecho da curva entre
estes pontos.
Ao analista cabe notar ainda as projeções paradigmáticas que varam o
quadro, a estrutura, extrapolam a forma, a cor, ou os movimentos
suprasseguimentais, aqueles que deságuam em mais que um seguimento.
D’Ávila fala, finalmente, em seu quadro demonstrativo, que as conversões em
que os termos se transformam em valores investidos nos objetos sintáticos, na
esteira de Greimas e Courtés (s/d, p. 87) são necessárias, porque elas podem
converter figuras e ícones do mundo e que esse é um teste que fundamenta a
coerência da teoria semiótica.
É, portanto, com este suporte teórico que D’Ávila esboça seu quadro
constituído de um percurso delineado e organizado para a análise do não verbal e
sincrético, com a criação de neologismos e convenções que procuram ampliar,
preencher uma lacuna deixada na teoria semiótica da Escola de Paris quanto ao
fornecimento de um arcabouço teórico para a análise do discurso não verbal e
sincrético.
Para melhor compreensão de sua proposta, reproduzimos o quadro 6 que
sintetiza sua proposta:

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358

Além de seu quadro, reproduzimos ainda o quadrado semiótico que nos fala
da conversão, da totalidade e das partes do objeto de análise, que mostra a
manifestação sincrética (verbo-visual), na qual as substâncias da expressão
apresentam um caráter verbal e visual, para exprimir uma única categoria do
conteúdo. Esse sincretismo próprio das artes plásticas, como a linguagem verbo-
visual interage com o contexto, alterando o conteúdo do verbal. D’Ávila valoriza as
potencialidades simbólicas existentes em cada linguagem e postula a construção de
uma metalinguagem apropriada” (2007, p. 42).

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Ela encerra o seu artigo que abre o seu livro, repleto de outras
aplicabilidades, com a reconstrução do sentido inserido numa comunicação visual, a
saber, uma pintura em que procura mostrar a competência de seu constructo.

Conclusão

Os estudos de D´Ávila ampliaram consideravelmente a teoria semiótica


greimasiana, posto que mostram a criação de uma nomenclatura e meios
específicos de análise verbo-musical e verbo-visual.
A leitura dos artigos aqui utilizados como ilustração serviu-nos de base para
conhecermos com mais vagar a proposta daviliana e a leitura de seu livro e dos
demais artigos que o compõem que mostram a sua aplicabilidade nos faz crer que,
de fato, sua proposta preenche uma das possíveis caixas pretas deixadas por
Greimas em sua semiótica, conforme o próprio Greimas admitia em seus seminários
por D’Ávila assistidos na Sourbone, cujo registro temos em entrevista em vídeo da
própria semioticista concernete às frases de Greimas, sobre as “boite-noires”,
catalogadas para posterior análise.
Não só na entrevista em vídeo de D’Ávila, que teve sua tese de doutoramento
orientada por Greimas, na França, cuja defesa se deu em 1987, mas também ao
longo do dicionário de semiótica, num exame mais atento, pode-se perceber que, de
fato, as tais “caixas pretas” existiram e ficaram para ser desvendadas pelos
discípulos de Greimas, uma vez que o semioticista lituano nos deixou em 1992, aos

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Anais

72 anos de idade e não teve tempo vital para desenvolver. Isso, todavia, não
significa que sua teoria não seja completa.
360

Referências

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D'ÁVILA, Nícia [org.]. Semiótica Sincrética Aplicada: novas tendências. São Paulo:
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In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

O significado da palavra sem-terra no discurso 361

do reassentado.
The word landless resettled in the speech.

Juliana de Oliveira Mendonça Ribeiro (UFMS/CPTL-PG)


Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento (UFMS/CPTL-PQ)

RESUMO: O contexto rural da cidade de Castilho-SP caracteriza-se, atualmente, pela legalização de


treze assentamentos, dos quais o Assentamento Celso Furtado, o segundo maior da região, lócus
desta pesquisa, reúne cento e oitenta e sete famílias. Com a meta de contribuir para os estudos
sobre identidade e do sujeito-assentado o artigo pretende problematizar as representações que um
morador do assentamento faz de si quando era designado como sem-terra, abordando os efeitos de
sentido do signo “sem-terra”, por meio dos construtos teóricos realizados por Orlandi (1999) e Fiorin
(2002), enfocando a metáfora e a metonímia. Já para discutir as considerações sobre sujeito e
discurso, baseamo-nos pressupostos teóricos de Pêcheux (1990) e Foucault (2007); a identidade, por
seu turno, é vista pela esteira de Hall (2005) e Coracini (2007); no conceito de exclusão, reportamo-
nos às contribuições de Bauman (1998) e Bhabha (1998) e para discorrer sobre semântica,
percorremos as leituras de Cançado (2012) e Ferrarezi Júnior; Basso (2013). O trabalho é inscrito no
viés discursivo, com base no método arqueo-genealógico foucaultiano, que tem o objetivo de discutir
como surgem os saberes e como estes se transformam. Para a coleta dos dados, realizamos a
entrevista gravada em áudio no próprio assentamento, no qual o assentado respondeu a pergunta:
como se via na condição de sem-terra? Observamos que a exclusão manifesta-se por meio das
representações que o assentado atribui à identidade atual e as imagens que ele acredita que a
sociedade realiza dele.

Palavras-chave: Identidade; Exclusão; Semântica; Sem-Terra.

ABSTRACT: The rural context of the city of Castilho-SP is characterized currently by the legalization
of thirteen settlements, including the settlement Celso Furtado, the second largest in the region, locus
of this research, brings together one hundred eighty-seven families. With the goal of contributing to the
study of identity and subject-seated the article intends to discuss the representations that a resident of
the settlement makes him when he was designated as the landless, addressing the effects of meaning
of the sign "landless" through theoretical constructs made by Orlandi (1999) and Fiorin (2002),
focusing on metaphor and metonymy. Already to discuss the consideration of the subject and speech,
we rely on theoretical assumptions of Pêcheux (1990) and Foucault (2007); identity, for its part, is
seen by the mat Hall (2005) and Coracini (2007); concept of exclusion, we refer to the contributions of
Bauman (1998) and Bhabha (1998) and to discuss semantics, we traveled readings Cançado (2012)
and Ferrarezi Junior; Basso (2013). The work is inscribed in the discursive bias based on archaeo-
genealogical method Foucault, which aims to discuss how the knowledge arise and how they are
transformed. To collect the data, we conducted the interview recorded audio on the settlements, in
which the seated answered the question, as was seen in the condition of landless? We observed that
the exclusion manifests itself through the representations that seated attaches to the current identity
and the images he believes that society realizes it.

Keywords: Identity; Exclusion; Semantics; Landless.

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Anais

Introdução
362

Esta pesquisa é resultado de algumas inquietações diante de leituras de


estudiosos que enfocam o trabalho rural no Brasil, entre eles Caldart (2004) e
Martins (2003 e 2010), além do interesse pelo estudo da representação/identidade
do sujeito assentado. Interesse que é decorrente de conversas informais que
tivemos com alguns assentados que prestam serviços no Condomínio Encontro das
Águas, a seis quilômetros do assentamento Celso Furtado, em Castilho-SP. Nessas
conversas, algumas vezes eles deixaram transparecer o que “pensam” de sua
condição de assentado, em formulações ou em enunciados ambíguos, que nos
provocaram a empreender esta busca pelos seus dizeres.
O mundo globalizado do qual fazemos parte permite-nos questionar diversos
conceitos cristalizados durante a história de algum grupo social, o que pode conduzir
a uma prática discriminatória, em que o poder social acaba gerando pensamentos
hegemônicos e interdita aqueles que não acreditam numa sociedade homogênea.
Segundo Martins (2003, p. 122), o acampamento sem-terra pode ser definido
como “a aparência concreta do provisório, do nada e da multiplicação de todas as
heranças que poderiam ter existido um dia [...] é um momento de vivência de um
processo de dessocialização, de eliminação das Referências sociais e dos
valores que norteiam lealdades e condutas”. Ao qualificar o acampamento sem-terra
como “provisório”, Martins (2003) aponta para o fato de que alguns requisitos
básicos para sobrevivência humana geralmente não são oferecidos nesse espaço.
Diante da falta de recursos, os moradores também perdem o direito de
socialização, situação que pode colocá-los à margem da sociedade. A isso se
acrescenta, pela leitura de Rodrigues (2011, p. 13), “que qualquer tipo de formação
social se sistematiza tensamente em busca de uma homogeneização a partir de
posições ideológicas de classes e de grupos específicos”. Entendemos que, mesmo
buscando a homogeneização, qualquer tipo de formação social é considerada
heterogênea, já que se baseia em várias instâncias produzidas pelo Estado. A noção
de homogeneidade é uma ilusão necessária do sujeito, que não se concretiza por

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não haver uma transparência de sentido, já que o seu discurso pode ser sustentado
pela subjetividade. Na certeza de que é capaz de ser o dono do seu discurso e
detentor das suas escolhas, intenções e decisões, o sujeito apoia-se nessa ilusão 363

necessária, esquecendo que várias vozes se fazem presentes na sua fala, revelando
a sua inscrição ideológica, a sua historicidade e as formações discursivas que
perpassam os seus dizeres.
Ainda segundo Rodrigues (2011, p. 21), as formações sociais são definidas
como “heterogêneas”. Se elas se apresentam totalizantes e hegemônicas, é tão
somente em virtude de “um conjunto de efeito em suas múltiplas materializações
disseminadas no tecido social”. Assim, para mudar da condição de sem-terra para
assentado, é preciso produzir e regularizar a posse de terras, por meio de um
documento cedido pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária), que confere autonomia para instalar legalmente as famílias desses
produtores rurais.
Para trazer a contextualização do MST (Movimento dos Sem-Terra) no Brasil,
recorremos ao texto de Caldart (2004), em que a autora esclarece que o movimento
teve sua maior repercussão no dia 4 de maio de 1978, quando cerca de 1800
famílias de colonos foram expulsas da reserva Indígena de Nonoai, no Rio Grande
do Sul, legalmente propriedade de indígenas Kaingang desde 1847. Esse fato
contribuiu para o desenvolvimento de um dos principais movimentos sociais do
Brasil, o Movimento dos Sem-Terra.
Sabe-se que hoje, no Brasil, ainda existe uma desigualdade na distribuição de
terras, predominando assim a concentração fundiária e, como a reforma agrária não
acontece, a realização da política de assentamentos rurais vem-se fortalecendo.
Observamos que os objetivos do MST vão além da reforma agrária, buscando a
inclusão social dos sem-terra e assentados. Os acampamentos sem-terra, que
geralmente se perpetuam à beira das estradas, contam com uma infraestrutura
precária, na qual várias famílias criam os seus filhos, que, por sua vez, são expostos
a confrontos sociais e perdem a sua referência, o que pode contribuir para a
exclusão social. (MARTINS, 2010).

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Posto isso propomos contribuir para os estudos sobre identidade do sujeito-


assentado, problematizando a representação que ele faz de si quando era
designado como sem-terra, abordando a metáfora e a metonímia pelo viés de 364

Orlandi (1999) e Fiorin (2002), o conceito de exclusão é reportado pelas


contribuições de Bauman (1998) e Bhabha (1998) e de semântica por Cançado
(2012) e Ferrarez Júniori; Basso (2013).
Este trabalho inscreve-se na perspectiva do discurso-desconstrutivista, no
qual Coracini (2003, p.18) afirma ser necessário “problematizar as situações
naturalizadas pelo hábito e que, por isso mesmo, parecem inquestionáveis”.
Entendemos que devemos compreender o contexto histórico-social do sujeito para
trabalharmos o córpus discursivo com o propósito de desconstruir dicotomias e
certezas construídas ao longo da história. Assim, propomos a desconstrução de
grupos sociais homogêneos e a fragmentação de condutas. Nessa perspectiva,
consideramos que todo discurso é passível de desconstrução e, por isso, não pode
apresentar um significado anterior à interpretação, já que a constituição dos sentidos
é decorrente de vários âmbitos sociais. Notamos, segundo a autora, que tanto a
abordagem discursiva como a desconstrução trabalham com a determinação social
que atua na constituição dos sentidos. E no método arqueogenealógico de Foucault
(2008), no qual aborda-se a historicidade constitutiva agregada aos valores no
momento social e reconstrói as singularidades históricas e as suas rupturas. Desse
modo, o método arqueogenealógico desenvolvido pelo filósofo prima por criar
consciência crítica sobre a circulação dos discursos diante das verdades aceitas e
dos valores praticados. Tal método subsidiou os procedimentos para a análise do
recorte da entrevista gravada em áudio com uma assentada no próprio
assentamento.

Abordagem teórica

A Análise do Discurso de linha francesa surgiu na intelectualidade francesa na


década de 1960, marcada pela conjunção entre a filosofia e a prática política, já
como um campo transdisciplinar, que permite ao analista do discurso transitar entre

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a linguagem e o social, de modo a buscar várias redes teóricas e transformar o seu


olhar por meio delas. Seu marco inicial data de 1969, com a publicação da obra
Análise Automática do Discurso (AAD), com Michel Pêcheux (1988), e da revista 365

Langages. A partir dessas publicações, a AD reage contra o estruturalismo, em


busca do estudo do sujeito, seus discursos e suas práticas. Vale lembrar que a AD
foi pressionada por dois fatores que refletiam um estado de crise à época de sua
fundação: a evolução que se expandia nas teorias linguísticas e as transformações
no campo histórico e político.
A AD reflete o percurso histórico, social, econômico e cultural do sujeito,
revelando a composição dos sentidos de seus dizeres diante da materialização da
sua linguagem e demonstrando para o outro quais discursos perpassam a sua
identidade. Esta não é inata ao ser humano e nem concreta, mas um processo
contínuo de construção/transformação. E nesse processo contínuo, a linguagem
realiza a mediação entre o homem e o meio social de que ele faz parte e, por meio
do seu discurso, observamos a produção de sentidos que emanam dos seus
dizeres. Dessa forma, pela leitura de Orlandi (1999, p. 15 e 16) entendemos que “a
análise de discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas
com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando,
considerando a produção de sentidos enquanto membros de uma determinada
forma de sociedade”.
O discurso, por sua vez, é definido por um conjunto de enunciados que se
configuram por meio das formações ideológicas, consideradas instáveis pela AD
francesa. Entendemos que não existe um discurso considerado “único”, já que o
mesmo discurso pode ser proferido por sujeitos diferentes. Os sentidos das palavras
não são literais, pois estão ligadas à exterioridade, de modo que todo discurso é
produzido e orientado pelo já-ditov e manifesta os seus efeitos de sentido pela
materialidade. Pêcheux (1990) ressalta que o já-dito é conduzido pelo inconsciente e
pela ideologia, elementos que, na AD, deixam de residir apenas na linguagem e
tornam-se constitutivos do discurso. O sujeito então se apresenta como um indivíduo
interpelado pelas ideologias que o rodeiam; ele não é, pois, mero ator coadjuvante
do discurso, mas o responsável pelo discurso que profere, cindido pelos

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interdiscursos que orientam os seus dizeres e constituem a sua identidade. Ainda


Pêcheux (1990) retoma o conceito de ideologia de Althusser, para fixar o lugar da
ideologia na construção de sua teoria do discurso. Para ele, o Aparelho Ideológico 366

de Estado, não é a expressão da ideologia dominante burguesa, mas o local e o


meio para a realização desta dominação, ou seja, a ideologia dominante é
propagada nos discursos das instituições sociais, com o propósito de interpelar os
sujeitos, orientando assim o discurso.
Já que o sujeito é interpelado pelas instituições sociais, nos reportamos ao
conceito de identidade pelo viés de Coracini (2007), no qual ela relata que diante da
ilusão da univocidade, o sujeito acredita ser o responsável pela formação da sua
identidade, não atribuindo ao outro a sua constituição. Esta se apresenta como um
processo inacabado, que se orienta por momentos de identificação revelados pelas
formações discursivas e pelo inconsciente do sujeito. A identidade não está,
portanto, pronta e acabada; ela é preenchida a partir do nosso exterior e pelo olhar
do outro. Desse modo, todo sujeito passa por uma transformação identitária
constante, pelo fato de transitar por várias instituições sociais. Notamos uma busca
social para nomear determinado grupo ou nação, acreditando que, dessa forma, seja
possível atribuir identidades que busquem a homogeneidade. A esse respeito,
Coracini (2007, p. 49) salienta que “não há identidade possível a não ser na ilusão,
na promessa sempre adiada a consciência consigo mesmo, do pertencimento
imaginado (e inventado) a uma nação, a um grupo que iguala ou assemelha aqueles
que são desiguais, inassimiláveis”.
Entendemos, com Coracini (2007), que a busca pela completude do sujeito
diante da sua identidade faz que ele acredite numa identidade homogênea, mesmo
se constituindo como um ser desejante. Ao acreditar na homogeneidade,
desconsideram-se as características pessoais do indivíduo, a sua historicidade e as
formações discursivas que constituem ou formam seu discurso. Ao citar Lacan, a
autora afirma a dificuldade de considerar a alteridade, já que tememos anular as
características do sujeito e as suas produções discursivas.
Segundo Hall (2005, p. 7), “a questão da identidade está sendo extensamente
discutida na teoria social [...] as velhas identidades, que por tanto tempo

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estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e


fragmentando o indivíduo moderno”. Observamos, pois, que a identidade concreta e
conclusa não faz mais parte do conceito de identidade moderna e que o sujeito não 367

é mais visto como um ser unificado; há um processo de mudança que se estabelece


nos dias atuais: o sujeito desestabiliza o conceito de homogenização e abala as
estruturas sociais que defendem a fragmentação da identidade. Portanto,
estabelece-se uma crise identitária nos meios sociais, pelo fato de vários sujeitos
não estarem preparados para conceber a ideia de um sujeito heterogêneo, que
desconstrua o conceito de univocidade. A questão da desestabilização traz um
sujeito cindido, que é visto no e pelo olhar do outro. Existe uma perda de sentido de
si e o sujeito não é estável e definido, já que, para “formar” a sua identidade, ele é
invadido por várias circunstâncias, como etnia, gênero, religião, classe social e
outras. As mudanças ocorridas na sua vida e o próprio contato com outros sujeitos
representam o seu processo de transformação.
Hall (2005, p. 38) afirma que, na identidade, “existe sempre algo imaginário,
ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre
em processo, sempre sendo formada”. Portanto, a identidade não é conduzida pela
racionalidade e, sim, pelos processos que emanam do inconsciente e pelas
formações ideológicas que cercam o sujeito. Dessa forma, entendemos que a
incompletude faz parte da sua essência, pois esse sujeito busca e deseja, fantasia e
idealiza o seu eu e o mundo do qual faz parte. Entendemos, então, que a identidade
não está pronta e acabada; ela se desenvolve ao longo do tempo, por processos de
identificação que são inerentes à consciência e se apresentam no decorrer da vida
do sujeito.
Ainda Hall (2005) afirma que o conceito de identidade pode dialogar com a
tradição cultural, por meio de um processo dinâmico de transformação e reiteração,
do mesmo modo que se realizam as articulações das diferenças culturais
ressaltadas por Bhabha (1998), quando se refere ao “entre-lugar”, afirmando que a
relação com a tradição possibilita que os sujeitos busquem uma identidade e
confiram autoridade aos seus discursos. Bhabha (1998, p.21) destaca que “o
reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao

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reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis


na invenção da tradição”. Entendemos que esse processo acaba afastando do
sujeito a possibilidade de “identidade original” ou de “tradição recebida”, já que 368

esses embates diante da diferença cultural são consensuais e conflituosos,


confundindo nossas definições de tradição e modernidade.
Por acreditarmos num sujeito interpelado pelas instituições sociais, pela
presença do outro, abordarmos na sequência o conceito de exclusão com o
propósito de entendermos como essas relações se fazem no discurso e como elas
determinam o lugar que o sujeito ocupa no meio em que vive.
Conforme Bauman (1998, p. 27), os sujeitos excluídos “não se enquadram
num padrão aceito pela maioria das pessoas, o que faz deles estranhos, pois a sua
simples presença causa desconforto, trazendo obscuridade e gerando incertezas por
meio das suas condutas”. Notamos que cada sociedade produz os seus estranhos,
ao mesmo tempo em que cria padrões estéticos e morais a serem seguidos, já que
esses sujeitos não se enquadram nas condutas estipuladas pela sociedade.
A exclusão não é um estado; ela define a relação do homem com outros. Não
tem uma única forma, pois abrange vários grupos e determina-se por várias
condutas, como a humilhação, a violência e até mesmo a exploração. Também não
é uma falha do sistema, que alguns acreditam que deve ser combatida por perturbar
a ordem social. (SAWAIA, 2001).
Esses grupos sociais, conforme Bhabha (1998, p. 21), não correspondem
somente à imagem das pessoas que dele fazem parte, mas também ao “lugar
discursivo e disciplinar de onde as questões da identidade são estratégica e
institucionalmente colocadas”. Entendemos que as instituições que moldam a
identidade do sujeito e conduzem o seu discurso fazem que ele estabeleça uma
conduta que julgue adequada para a maioria das pessoas, tentando discipliná-lo, o
que de certa forma corrobora a exclusão. Mesmo diante desse poder disciplinador, o
sujeito não se torna passível, o que contribui para que ele deixe a sua marca de
resistência. Segundo o autor essa conduta pode, para muitas pessoas, gerar uma
“mancha” na identidade do sujeito.

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Para Bhabha (1998), o lugar da diferença e da alteridade nunca se afasta da


vida social do sujeito, configurando-se como uma pressão que se vai estabelecendo
gradualmente, que ocorre de forma desigual ao longo da vida do sujeito, 369

contribuindo com práticas discriminatórias que podem desqualificar grupos sociais.


Assim, entendemos que os efeitos discriminatórios se realizam por meio de uma
estratégia de recusa daquilo ou daquele que não se enquadra na grande maioria das
condutas sociais e não aceita a sujeição.
Ao postular a exclusão, Bhabha (1998, p. 163) menciona que os sujeitos
discriminados “podem ser instantaneamente reconhecidos, mas eles também forçam
um reconhecimento da imediação e da articulação da autoridade”. Entendemos que,
ao reconhecer a autoridade que está a sua volta, o sujeito adquire o poder da
intervenção e se liberta da repressão silenciosa, representando, pelo enunciado,
aspirações, condutas e as vozes que perpassam os seus dizeres.
No caso dos lugares de onde enunciam os sujeitos assentados da pesquisa,
podemos dizer que se trata de entre-lugares, que são decorrentes das diferenças
sociais, ideológicas, raciais. Bhabha (1998, p. 20) afirma que “é na emergência dos
interstícios, a sobreposição de domínios da diferença que as experiências
intersubjetivas e coletivas de nação, que o interesse comunitário ou o valor cultural
são negociados”. Esse sujeito do “entre-lugar” realinha as fronteiras de espaço e
tempo e dialoga com o seu passado para ressaltar a sua transformação identitária.
Assim, entendemos que ele não tem uma condição social definida e transita entre o
passado (o antes) e o presente (o agora).
Já para buscarmos o conceito de Semântica, recorremos aos estudos de
Cançado (2012), nos quais a autora enfatiza que o significado pode ser definido
como semântico contido nas palavras, o que para ela é denominado como sentido
literal ou representacional que ancora-se em nossas representações mentais ou no
pragmático, se fundamentando nos elementos contextuais. Ainda a autora traz o
conceito de referência que define como o objeto alcançado no mundo, enquanto o
significado seria explicado em termos de referência.
Assim, ela apoia-se nos estudos de Frege (1892), para entender o significado.
Observamos então, que Frege considera fundamental reconhecer o sentido, que é a

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maneira com que uma expressão nos apresenta o objeto que ela nomeia, de modo
que a referência dependa do sentido. Portanto, o significado de uma expressão está
em conhecer seu sentido e achar sua referência no mundo. Dessa forma Cançado 370

(2012) ressalta que o sentido é nomeado como o conteúdo informacional que


captamos ao entender uma sentença, o qual seria público.
Já segundo Ferrarezi Junior e Basso (2013, p. 136) a semântica “tem por
objetivo fornecer condições de verdade das sentenças de uma dada língua, que é
considerado o mínimo que sabemos quando interpretamos uma dada sentença”.
Entendemos que diante de uma sentença temos que identificar em quais condições
de mundo e quais as verdades que foram relacionadas a entidades extralinguísticas
que definem se tal sentença é verdadeira ou não. Portanto ao pensarmos no item
lexical sem-terra, podemos inferir quais os efeitos de sentido que são atribuídos as
pessoas que moram na beira da rodovia, que segundo Martins (2010) e Caldart
(2004) são na maioria das vezes depreciativos, pois o sujeito “sem-terra”, não tem
residência fixa e por isso são considerados “invasores”.
Para contribuir com o estudo do significado, podemos também discorrer sobre
a metáfora e metonímia por meio do estudo realizado por Fiorin (2002, p.65) no qual
o autor busca empreender o signo enquanto denotação e conotação. Para tanto o
autor aborda que o “signo é a união de um plano da expressão a um plano de
conteúdo”. E como exemplo apresenta o sentido denotativo que permeia da palavra
olho que define-se o órgão do corpo responsável pela visão e da palavra gato
(animal mamífero e doméstico), que associados denominam a palavra olho de gato,
que engloba um significado. Na língua o termo “olho de gato” designa segundo o
estudioso (2002, p. 65) “chapinha colocada em pequenos postes instalados ao longo
das estradas de rodagem, que refletem a luz dos faróis dos automóveis, para marcar
os limites do leito da estrada”.
Entendemos então que a o signo denotado no plano da expressão é um signo
ao qual podemos acrescentar um plano de conteúdo. Assim ao acrescentar
significado ao significado já existente no signo que denotado, corroboramos com a
mudança de sentido, criando dessa forma, um outro sentido para o signo conotado.

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Diante disso, Fiorin (2002) justifica que essa relação conclui-se se houver relação
significado que se acrescenta ao outro já existente.
Ao percorremos os estudos do significado realizado por Fiorin (2002), 371

visualizamos o conceito de metáfora e metonímia nos enunciados. Para ele, a


metáfora é o acréscimo de um significado a outro por meio relação de semelhança e
pela transferência de sentidos. Portanto ao retomarmos o exemplo da expressão
“olho de gato”, entendemos que os dispositivos colocados às margens das estradas
são definidos desta forma pelo fato de refletir a luz, como acontece com os olhos do
animal mamífero gato. Já a metonímia é o acréscimo do significado a outro, gerando
proximidade em que a propriedade do ser designa o ser, como exemplo citamos os
dizeres: a fome é sempre analfabeta, em fome está retomando a expressão
miserável, já que na metonímia o ser designa outro.
Já Orlandi (1999) enfatiza a metáfora abordando o inconsciente e a
historicidade que perpassam os dizeres do sujeito que estabiliza meios de
procedimentos de análise do discurso do sujeito. Assim o efeito metafórico, o
deslize, próprios do simbólico e lugar da interpretação, da ideologia e da
historicidade “são próprios da relação da língua e do discurso. Isto é, segundo ela,
esses deslizes e o efeito metafórico na interpretação apontam para a duplicidade do
discurso que na psicanálise envolve o inconsciente, e na análise do discurso envolve
a ideologia. Assim, é nos deslizes dos sentidos que o efeito metafórico ― está na
base de constituição dos sentidos e dos sujeitos. (ORLANDI, 1999, p.63).
Ainda para autora ao trabalhar materialidade discursiva o analista pode
estabilizar na análise a paráfrase e a metáfora no interior de sua prática,
considerando o equívoco, ou seja, a falha da língua inscrevendo-se na história.
Assim, a paráfrase e a metáfora podem ser definidos como suportes analíticos de
base, pois ambas, pois ambas são definidas diferentemente pela análise de
discurso. Portanto, ao pensarmos na configuração das formações discursivas, é a
paráfrase que está na base da noção de deriva, que por sua vez se relaciona ao que
Pêcheux (1990) define como efeito metafórico que seria o fenômeno semântico
fabricado por uma substituição contextual, produzindo um deslizamento de sentido,
no qual o gesto de interpretação do analista, ao descrever e interpretar um discurso

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

opera com a paráfrase e a metáfora como constitutivas do funcionamento da


discursividade.
Para Orlandi (1999) a paráfrase e a metáfora tem a função de explicitar 372

procedimentos de análise e constituem-se como uma marca de especificidade da


análise do discurso, pois introduz uma noção de metáfora que não deriva dos
estudos literários, da mesma forma que a o conceito de memória não remete apenas
as noções cronológicas. Dessa forma, ao trabalhar essas noções dentro do corpus o
analista tem a possibilidade de trabalhar o que é estabilizado e o equívoco do sujeito
no discurso.

Metodologia

De acordo com Orlandi (1999, p. 59), a Análise do Discurso “não possui uma
metodologia específica, um modelo, um esquema já dado que permita ou pudesse
apenas enquadrar dados nem forma de trabalhá-los”, cabendo ao analista “adotar
princípios e procedimentos”. Dessa forma, não existe um “esquema” apropriado
para todos aqueles que se propõem analisar discursos, pois a AD não tem como
propósito reforçar dados estatísticos em pesquisas quantitativas e não prima por
nomear as pessoas, por meio de números, tabelas e gráficos. Na esteira da autora,
entendemos que as condições de produção compreendem os sujeitos e a situação
na qual o seu discurso é proferido, interpretando o contexto, que engloba um
determinado discurso e a representação do sujeito por meio do enunciado que
profere. Assim, as condições de produção atuam diretamente na constituição dos
sentidos e contribuem para a análise de um acontecimento discursivo, apontando
para as imagens que o locutor faz do lugar de onde fala, de si mesmo, do outro e do
referente, imagens essas que direcionam e provocam sentidos em seu dizer.
Já a noção de representação é entendida, segundo Brandão (1998, p. 35),
“como uma operação, por meio da qual o sujeito se apropria do objeto, de algo que
lhe é heterogêneo e, convertendo em ideia, torna-o homogêneo à consciência”. Ao
pensar na representação, recorremos ao imaginário discursivo de Pêcheux (1990):
todo sujeito atribui imagens ao outro e a si. Por meio dessas imagens, ele elabora os

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Anais

seus discursos e determina as relações de sentido, que podem ser produzidas


conforme o lugar social que ocupa. Observamos que a posição social ocupada pelo
sujeito é inerente ao seu dizer e, às vezes, pode reportá-lo ao lugar do outro. 373

Entendemos então, que o lugar que o sujeito ocupa é responsável pelo seu discurso
e pela imagem que ele faz de si e do outro. Neste artigo, analisamos o recorte de
uma entrevista, gravadas em áudio e transcrita com a finalidade de mostrar, nos
dizeres da assentada a representação de sua condição de ex sem-terra e da
sociedade.
O referencial teórico da pesquisa foi construído por meio de investigações
bibliográficas pertinentes à Análise do Discurso de Linha Francesa, aos Estudos
Culturais, a Semântica e os estudos realizados sobre o Movimento dos Sem-Terra.
Esta investigação inscreve-se na perspectiva discursivo-desconstrutivista, em
que a análise de qualquer fato linguístico, segundo Coracini (2003), deve levar em
conta as condições de sua produção, ou seja, o contexto histórico-social, o espaço
onde foi proferido, bem como o lugar discursivo ocupado pelo sujeito, com o
propósito de problematizar determinadas condutas. Também se baseia no método
arqueogenealógico foucaultiano, que tem como propósito responder como surgem e
se transformam os saberes, o que, numa terminologia nietzchiana, Foucault nomeou
como “genealogia”. Entendemos que não há uma teoria do poder, mas um
entendimento de como ele é constituído historicamente, baseando-se a ideia de
poder numa teoria provisória e inacabada. O poder não é direcionado apenas pelo
Estado, mas prolifera em várias instituições, caracterizando os micropoderes
(FOUCAULT, 2008). Já a arqueologia tem como premissa abordar a epistemologia,
ou seja, o conhecimento, construindo uma história dos saberes. Foucault (2008)
afirma que a episteme pode ser definida como a ordem específica do saber e a
configuração que ele assume em um contexto histórico.

Análise

Os dizeres analisados são de um assentado, designado A1, de 37 anos, que


há seis anos tornou-se assentado, tendo permanecido na condição de sem-terra

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Anais

durante quatro anos. Nesse excerto, ele fala sobre a representação da condição de
sem-terra:
374

R 01: Para o social a gente era bando de vagabundo... quando a gente


era sem-terra era sim complicado... porque você tinha que morá num
barraco de lona né...num tinha um banheiro...você tinha que cavá um
buraco rodeado de lona pra fazê as necessidades... você vivia uma vida
precária por ajuda de outras pessoas... porque você tava lá e não podia
trabalhá... a assistência que eles davam pra gente era muito pouca né...
você num podia sair pra trabalhá... nem o homem nem a mulher... então
você tinha que ficá ali né... pra constá que você morava ali... pra podê
consegui né um pedaço de terra[...] A gente passava assim as vezes
humilhação... que às vezes as pessoas passavam na beira da pista
xingava a gente... dizia que a gente era baderneiro né/ falava... “Vai
trabalhá vagabundo seu sem-terra”... aí era humilhante... mais como a
gente queria um pedaço de terra né... a gente si submetia a tudo a isso...
que passava dias e dias sai hoje sai amanhã... graças a Deus que até um
dia deu certo saiu e a gente conseguiu.

Logo no início dos seus dizeres, o assentado afirma que a condição de sem-
terra o colocava como “vagabundo”, trazendo o efeito de sentido de aproveitador
que desvincula a sua imagem de um sujeito que se engloba na maioria dos moldes
sociais, pela condição de não trabalha para promover o seu próprio sustento. Para
corroborar com essa visão segundo Michaelis (2014, p. 35) o termo “bando”, define-
se como “ajuntamento de pessoas ou animais; facção e partido; tropa indisciplinada;
companhia de malfeitores; quadrilha; certo número de famílias associadas em
caráter permanente e que habitam uma determinada região; gente que anda pelas
ruas pedindo auxílio financeiro para alguma que para alguma obra”. Ao recorrermos
aos construtos teóricos de Fiorin (2002), observamos que a junção dos signos
“bando” e “vagabundo”, conduzem ao conceito de metáfora e metonímia, já que para
o autor a metáfora realiza-se pelo acréscimo de um significado a outro por meio da
relação de semelhança e transferência de sentidos. Portanto entendemos que o
termo “bando” pede outro signo para determinar qual o bando que estamos nos
reportando, no qual inseriu-se a palavra “vagabundo”, trazendo assim um efeito de
sentido depreciador a representação de sem-terra e a metonímia que para Fiorin
(2002) é entendida como o acréscimo do significado a outro significado.
Observamos a reiteração de “a gente”, colocando todos os assentados na
mesma condição, por sofrerem das mesmas privações humanas, no período em que

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Anais

moravam nos acampamentos sem-terra. Essas privações são apresentadas em todo


o recorte. Nos dizeres: “porque você tinha que morá num barraco de lona”, “num
tinha banheiro”, “você tinha que cavá um buraco rodeado de lona pra fazê as 375

necessidades”, notamos que a condição de sem-terra não proporciona ao sujeito A1


o “cuidar de si”, que, para Foucault (1998), significa desenvolver atividades e criar
condições que contribuam com a existência. Por outro lado, ao expressar todas as
precariedades vividas como sem-terra, A1 também traz o discurso da vitimização,
que, segundo Martins (2003), é uma situação que pode ser contextualizada histórica
e socialmente: ser vítima é tornar-se ou ser eleito pela sociedade como alvo de
isolamento, já que as suas concepções de vida não estão de acordo com a conduta
da maioria dos indivíduos.
O uso do pretérito imperfeito, em “tinha”, “podia”, “submetia”, “vivia”, produz
sentido de repetição, de hábito ou frequência, a que se aliam os efeitos de obrigação
e proibição, advindos da modalidade deôntica que circunda os enunciados,
reportando ao passado de A1 e às condutas que deveria seguir para se manter
dentro do acampamento. “Hoje”, na condição de assentado, recorre à memória, que,
segundo Pêcheux (1990), a memória traz as ideologias apresentadas pelo
interdiscurso, que perpassa os dizeres do sujeito, os já-ditos.
O pronome “eles” remete, por anáfora indireta (AI), ao outro, aos
representantes do Incra, que concedem alguma ajuda aos sem-terra no período em
que ficam nos barracos de lona. Já os dêiticos “ali” e “lá”, segundo Fiorin (2005),
trazem o conceito de espaço ocupado, de lugar, designando os acampamentos dos
sem-terra, representados ora como próximos, ora como distantes, embora também
por AI, mas sempre como um espaço restrito de abrangência. Importa esclarecer
que a relação de AI ocorre, conforme Marcuschi (2005), quando não há um
antecedente textual.
Os dizeres: “você num podia sair pra trabalhá” e “nem o homem nem a
mulher”, configuram relações de poder impostas pelo Incra: critério adotado para o
repasse de terras, os sem-terra devem permanecerem durante o dia e à noite nos
acampamentos, sem nenhum vínculo empregatício, perpassando aqui a formação
discursiva institucional do Incra. Entendemos, então, que permanecer no

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acampamento e atender às exigências do Instituto definia-se como uma condição do


poder, porém uma submissão temporária, até o alcance das terras, conforme o
comprovam as formas verbais de imperfeito, em seu sentido aspectual de processo 376

que teve sua ocorrência/duração interrompida. Diante disso, mencionamos Gore


(1994): para compreender por que o sujeito se expõe a uma condição de submissão,
devemos observar quais os pontos particulares que o levam a tal conduta. Também
entendemos ser pertinente aqui o que postula Bhabha (1998): interroga-se não
apenas a imagem da pessoa, mas o lugar discursivo e disciplinar de onde suas
estratégias são conduzidas pelas instituições a que pertence. No caso dos sem-
terra, eles permaneciam à “margem da sociedade”, com o propósito de alcançar o
pedaço de terra.
Os trechos: “a gente passava assim às vezes humilhação”, “que às vezes as
pessoas passavam na beira da pista xingava a gente” e “dizia que a gente era
baderneiro” inscrevem-se na formação discursiva da exclusão, pois trazem o olhar
do outro, a inquietação da sociedade diante da presença dos assentados. Segundo
Bauman (1998), toda pessoa que não está vinculada a nenhum modelo moral ou
estético social traz o incômodo da sua presença, por ser “imaginada” como estranha
pelo outro. Assim, o fato de os sem-terra estarem expostos nos acampamentos
montados à beira das rodovias provoca uma representação negativa de si pela
sociedade, que vê pessoas inativas (porque “num podia sair pra trabalhá”) e
barracos espalhados, em desordem.
O trecho “vai trabalhá vagabundo seu sem-terra”, em discurso direto, traz
para a cena enunciativa o discurso do outro, numa manifestação da
heterogeneidade mostrada a que se refere Authier-Revuz (1990), constituído pela
formação discursiva da exclusão. É o olhar do outro – a sociedade organizada –
incidindo sobre aqueles que se encontram à margem da sociedade. Impedidos pelo
Incra de buscar o sustento fora do acampamento sem-terra e mesmo diante da vida
precária e da exclusão social, a entrevistada afirma que resistia e continuava no
acampamento, pois a posse da terra era o seu objetivo. Esse fato é observado
quando ela diz: “a gente se submetia a tudo isso”. O “tudo isso” traz o sentimento de
exclusão, da falta de recurso, de humilhação e de submissão. Essa submissão não é

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entendida simplesmente como uma relação de poder imposta pelo Incra, já que,
segundo Martins (2003), sempre existe um motivo, um objetivo, um interesse dos
sem-terra em permanecer na situação de desconforto para mais tarde alcançar a 377

sua casa, a sua comodidade e inserir-se no mercado do trabalho rural.


Nesse aspecto, devemos observar o sentido que assume (ou os efeitos que
emergem) do verbo “trabalhar”: para o sujeito A1, o verdadeiro trabalho é o
assalariado, vinculado ao mundo do capital. Na falha, ele acaba por assumir-se
como “não trabalhador”, assim como o vê o outro, embora tenha uma “justificativa”
para esse não fazer: o poder do outro institucional sobre si e sua condição de
submissão. Os discursos do sujeito não confluem, portanto, para identidades
“acabadas”, mas para flexibilidades e ambiguidades, oscilantes nas representações
que atravessam esse sujeito.
Ainda no trecho “vai trabalhá vagabundo seu sem-terra”, o termo sem-terra,
constitui-se de metáfora e metonímia, pois diante dos estudos realizamos por Fiorin
(2002) o termo “sem” acrescido da palavra “terra”, traz o conceito de metáfora e
metonímia pois cada palavra possui o seu próprio sentido e ao associá-las,
chegamos ao um signo linguístico. Além disso, Orlandi (1999) afirma que a metáfora
relata a historicidade que perpassam os dizeres do sujeito que estabiliza meios de
procedimentos de análise, portanto ao ser chamada de sem-terra o assentado
acredita que está sendo desqualificado dentro da condição social que se encontrava.

Considerações finais

Nos dizeres de A1, observamos necessidade de relatar a falta de subsídios


dentro dos acampamentos, como a falta de banheiro. Além de apresentar essa
condição indigna de sobrevivência, ele fala sobre as ofensas e as humilhações às
quais foi submetido quando era sem-terra.
Notamos na fala de A1 que mesmo depois de ter mudado da condição de
sem-terra e para assentado se sente excluído socialmente, sobretudo quando era
referida pelo outro como “sem-terra”. Diante disso, ele apresenta nos seus dizeres
um sentimento de indignação diante do seu passado de sem-terra. Observamos

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então que o desejo de defesa é retratado quando manifesta que só queria um


pedaço de terra para efetuar o seu trabalho.
Além disso, notamos as formações discursivas: religiosa, em que os 378

assentados se apoiam para alcançarem a posse das terras; a trabalhista, para


manifestar a luta constante pelo assentamento; e da exclusão, reconhecendo que a
exclusão é marca da identidade de quem luta pela terra, seja como sem-terra ou
assentado.
Enfim, registramos aqui nosso olhar discursivo, abordando ainda o conceito
de metáfora e metonímia, porém outras possibilidades de interpretação são
plausíveis em variadas abordagens. Acreditamos que a interpretação não se esgota
no texto, mas foca no leitor, nos sentidos e nos efeitos, o que possibilita outras
contribuições, a partir de novos olhares.

Referências

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Anais

Produção textual e estilística léxica: um estudo


de casos com estudantes de letras 381
Textual Productionand Lexical Stylistic: a case study with Language
undergraduate students

Diná Tereza de Brito(CLCA-UENP/CCP)

RESUMO -É de se esperar que todo aluno do Curso de Letras venha a adquirir um bom desempenho
na arte de ler, entender e produzir um texto, já que, em essência, qualquer usuário da língua é capaz
de reconhecer um texto mal redigido, confuso, ambíguo, sem unidade de assunto. Mas nem sempre é
o que acontece, ou seja, as dúvidas quanto à produção textual são inúmeras, principalmente com o
acadêmico de Letras, que tem sobre si essa responsabilidade em sua formação. Assim, com esta
pesquisa, busca-se verificar a evolução da produção textual desse aluno que virá a ser o profissional
da linguagem, analisando-se suas produções de Língua Portuguesa no decorrer de todo o seu curso,
especialmente no que tange ao uso dos recursos estilístico-semânticos, responsáveis pela riqueza
das expressões e a clareza das ideias, que formam um estilo. O estudo já possui as produções de
texto de 2014 a 2016 dos alunos que fazem parte da amostra. O embasamento teórico aborda obras
sobre produção textual e estilística: Costa Val (1999), Fiorin (2008), Geraldi (2000), Lapa (1998),
Martins (2012), Discini (2004), entre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Produção Textual. Evolução Linguística. Estilística Léxica.

ABSTRACT: It is expected that every student of Language Courses come to aquire a good
performance in the art of reading, comprehend and produce a text, considering that, in fact, any
language user is able to recognize a confuse, ambiguous, badly written and unfocused text. However,
it is not always like that, in other words, the doubts regarding textual production are countless, mainly
among the Language undergraduates, who have that responsibility in their major. Thus, throughout
this research, we seek to verify the evolution in the written production of these students, that are
bound to become language teachers, analising their productions in Portuguese, all over their course,
specially regarding to the use of stilistic-semantic tools, responsible for the richness of expressions
and the clarity of ideas that constitute a style. There are textual productions of 2014 until 2016 of the
students object this research. The authors that base this study are Costa Val (1999), Fiorin (2008),
Geraldi (2000),Lapa (1998), Martins (2012), Discini (2004), among anothers.

KEYWORDS: Textual Production. Linguistics Evolution. Stylistic Lexicons.

Introdução

O trabalho com a leitura e a escrita nos Cursos de Letras vem passando por
uma série de reflexões, já que a exigência atual é no sentido de que o estudante
tenha uma atitude de sujeito realmente frente aos textos que lê, numa total interação
com o outro, bem como relativamente àqueles que ele próprio constrói. Espera-se,
portanto, que todo aluno do Curso de Letras venha a adquirir um bom desempenho
quando lê um texto qualquer, ou específico sobre alguma temática mais científica,

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sendo capaz de entender o que lê, discutir as ideias ali presentes, elaborando
comentários críticos e, igualmente, produzindo seus próprios textos com
argumentação segura, unidade temática, conteúdo organizado e coerente com a 382

temática proposta.
Mas isso nem sempre ocorre, ou seja, as dúvidas quanto à construção textual
são inúmeras, o acadêmico dessa área receia sempre não atingir o ponto ideal
nesse mister, até porque pesa sobre ele essa responsabilidade: “deve escrever
muito bem, porque faz Letras”.
Até algumas décadas atrás, o ensino da língua era realizado de modo alheio
às necessidades reais de comunicação, trabalhando-se conteúdos isolados,
desvinculados da interação social que deve ser a característica primeira dessa área;
o aluno era simplesmente um recebedor de informações teóricas, passivo diante de
um texto, que lia por ler e, consequentemente, escrevia por escrever, como se fosse
uma ação fora dele, estranha às suas emoções e indiferente ao seu papel de sujeito
do próprio discurso.
Na atualidade, esse procedimento e essa concepção estão completamente
fora de cogitação, pois é sabido que a escrita está vinculada à leitura e vice-versa,
como as duas faces da moeda, implicando um processo de interação, em que o
autor se torna recebedor e este, ao mesmo tempo, co-produtor do texto. Vários
estudiosos traçaram novas concepções de linguagem que buscam trazer o texto
mais próximo do aluno, desmistificando-o, tirando-lhe a aura de inatingível em sua
completude e transformando-o em algo próximo, construído na medida da
necessidade e do interesse do falante, já que o autor constrói o texto para o outro
que, além de dar sentido ao que lê, participa também do projeto dessa construção,
como se desse a esse material o “sopro” da vida, materializando-o.
Reflexões dessa natureza vieram contrariar as propostas que embasavam o
trabalho com o ensino/aprendizagem da Língua Portuguesa, trazendo um novo
caminho, um olhar diferente do professor, fazendo-o ver um leque de opções em sua
metodologia que o levariam a criar em sala de aula um cenário diferente para o
aluno. As novas concepções dessa prática criaram condições para o aprendiz
perceber a multidão de vozes que estão em seu discurso, os falares que permeiam o

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discurso de cada indivíduo, a experiência da própria humanidade acumulada em


cada expressão do falante. A partir disso, o aluno consegue perceber a força de sua
fala, que ele também tem voz e vez, quando se apropria dos recursos que garantem 383

a sucesso da construção de seu enunciado.


Todos os documentos oficiais, atravessados pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais, as tão procedentes Diretrizes Curriculares, esclarecem essa apropriação
dos recursos linguísticos, quando estabelecem que o aluno em seu trabalho com a
língua deve ser capaz de produzir textos com informações relevantes, que tenha o
que dizer e a quem dizer em sua produção, que consiga manter a unidade temática,
explicitando dados necessários à interpretação do que escreve, utilizando-se dos
recursos linguísticos apropriados, tais como as retomadas, as anáforas, os
conectivos, ao explicitar as relações entre as expressões.
Apesar de toda a atualidade em concepções da linguagem, da
conscientização da necessidade de mudança de postura frente a esse processo de
ensino-aprendizagem, ainda é comum ouvirem-se reclamações dos professores que
atuam no ensino superior, no sentido do fraco desempenho dos alunos quando se
trata de interpretar um texto, ou de comentá-lo criticamente. Isso é preocupante, até
porque em se tratando do curso de Letras, suas dúvidas poderão afetar sua
produção na língua materna e/ou seu próprio ensino.
O problema parece estar na priorização das regras gramaticais (essenciais
sem dúvida para o conhecimento teórico - gramatical do professor: afinal, ele precisa
saber do funcionamento da língua, para explicitar aos seus alunos o porquê de se
usar um termo em vez de outro, um tempo verbal adequado na correspondência
entre as orações, um conectivo para expressar enfaticamente a intenção do produtor
de um texto, etc.). Porém, em se tratando de disciplinas específicas como “Leitura e
Produção de Texto”, “Gêneros Textuais”, “Formação do Profissional em Letras”,
“Linguística Textual”, “Estudos Textuais e Discursivos da Língua Portuguesa” e
semelhantes, que compõem a grade de vários cursos de Letras, é preciso realmente
partir para a verdadeira produção textual, com reflexões acerca dos sentidos que
perpassam as expressões, do conteúdo explorado em vista de um objetivo, de uma
necessidade de interagir com o interlocutor, em situação real de comunicação.

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Muitos ainda acreditam que escrever é um dom e que, à frente de qualquer


tema, mesmo que pobremente explorado em sala, independente do interesse do
aluno, este será capaz, a partir do momento em que o professor apresente técnicas 384

de “bem escrever”, de produzir um texto perfeito.


Os estudos e as teorias de Linguística Textual têm vindo comprovar que um
texto só é bem elaborado quando vinculado aos conhecimentos de todos os
mecanismos que regem a coesão e coerência de um texto, bem como aos fatores
que dão textualidade. Afastando-se desses mecanismos, o resultado só poderá
trazer textos mal elaborados, ambíguos, incoerentes, desarticulados,
desinteressantes, com pouca ou nenhuma informação ou atualidade.
Apesar de sabermos que o professor que trabalha com a produção textual
consegue perceber tudo isso, sente-se ainda inseguro para intervir no processo
construtivo do texto de seu aluno. Isto, porque já não é mais aceitável que só se
atenha aos aspectos ortográficos ou de pontuação ao se analisar o texto do aluno: é
preciso ir além, localizar os desvios da construção textual, identificar e desfazer as
ambiguidades, possibilitar a interação do que foi produzido numa “conversa” entre
textos, observar o grau de informatividade, ou seja, criar hipóteses de funções
sociais para o que foi produzido. Deve-se trabalhar aqui como se estivesse a tecer,
observando e arranjando cada fio em seu devido lugar. E isto ainda é difícil, haja
vista a formação mais tradicional de inúmeros docentes que precisam,
primeiramente, despojar-se dela para depois apropriarem-se de novos conceitos,
novas concepções de linguagem, leituras e discussões atualizadas que serão
incorporadas à sua metodologia.
Aí, sim, juntamente com os docentes integrados à tarefa há menos tempo, e
por isso com formação mais atualizada, com base em estudos teóricos mais
avançados, será possível ensinar o aluno de letras (especialmente) a escrever
verdadeiramente e, o mais importante, ensiná-lo a ensinar a escrever, já que a ele
caberá esse compromisso de trabalhar a linguagem em sua carreira de professor de
linguagem.

Língua Portuguesa X Produção Textual

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

As Diretrizes Curriculares do Ensino da Língua Portuguesa priorizam o


aprimoramento das habilidades do falar e do escrever por parte de quem produz um
texto e, por outro lado, entendem que o recebedor desse texto deve ser capaz de 385

ouvir, ler e compreender o que está posto naquilo que o primeiro elaborou, ou seja,
existe um esforço de trabalho conjunto, cooperativo.
Assim, no trabalho com a produção textual, é preciso que produtor e leitor
estejam presentes em qualquer ato; não se pode esquecer, então, de que o ato de
escrever traz implícito que se irá enviar uma mensagem escrita a alguém, fato que
irá gerar um desconforto no aluno que não encontra um recebedor interessado no
que ele irá dizer, pois tal leitor é artificial, irá receber o texto não como alguém
interessado no que lhe foi dito, mas preocupado em verificar se o mesmo está bem
escrito, dentro das normas gramaticais, como ocorre quando o professor não se
transforma em leitor, mas em “controlador” do que o aluno escreveu. É claro que
semelhante texto não terá um resultado positivo. Durvali Emílio Fregonezi, já há
mais de uma década, assegurava isto:

E ainda poderíamos acrescentar mais. O receptor artificial da mensagem


escrita do aluno, além dessa artificialidade, desde o início da vida escolar é
visto pelo emissor- o aluno- como o juiz, como um censor cuja
preocupação não é outra senão a de procurar e assinalar “erros” em sua
mensagem escrita, desde que ela não se enquadre nos modelos traçados
pelo censor, na maioria das vezes bastante distantes dos modelos
presentes no sistema de comunicação do emissor. (FREGONEZI,1999, p.
29)

Neste ponto, surge a pergunta se é realmente esse o profissional de Letras


que se pretende formar, em termos de leitura/produção de textos escritos. E se esse
professor de Português que está saindo dos cursos de Letras preenche as
aspirações para tal. É bom, porém, que se entenda primeiramente o que se quer
dizer com ensinar Português e conhecer o que se espera do estudante de Letras, o
futuro profissional que irá atuar nessa área e responsabilizar-se por seu ensino e
aprendizagem. Que aspectos do saber linguístico ele deverá dominar para levar a
cabo essa tarefa, considerando-se os famosos questionamentos: o como, o porquê,
o para quem se ensina o que se ensina em linguagem.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Para Geraldi (2000), o ato de produzir um texto implica um sujeito inserido na


temática bakhtiniana, que vê o indivíduo como produto das interações verbais com
os seus pares, confrontando seus pontos de vista, elaborando, a cada palavra uma 386

contrapalavra, construindo a compreensão, dando vida a novos atos a cada ato


repetido. Ao se propor a devolução da palavra ao sujeito, reforça-se a possibilidade
de se recuperar a história contida e não contada, diferentes formas de inventar o
cotidiano. E é Geraldi ainda que vê na produção textual (oral ou escrita) a
oportunidade de se devolver a palavra ao falante para que ele a desenvolva com
suas verdades ou bloqueios, num discurso concreto, opinando sobre o mundo e as
pessoas, interagindo com seus semelhantes, ainda que explorando um velho
discurso, porém com roupagens novas
Na realidade, sob a ótica de Bakhtin (1992:319), “Nenhum locutor é o Adão
Bíblico”. De lá para cá se continua recriando o mesmo discurso.
Mas isso só ocorre no contexto da interação discursiva, que é onde o falante
se realizará como tal e irá receber toda a influência do trabalho linguístico do grupo
em que está inserido para que seja capaz de elaborar a sua fala a fim de atingir seus
objetivos do falar, agindo sobre seu interlocutor, produzindo sentidos sobre este.
Com isso, a incompletude do texto vai sendo vencida pelo sujeito que vai à busca de
sua completude, porque é justamente na interação que a linguagem, os textos vão
sendo constituídos: a linguagem vai sendo o resultado desse trabalho do sujeito.
Com isso, é preciso que o aluno entenda que não pode ser ingênuo diante de
um texto, que há sempre alguém passando uma ideologia através das linhas e será
sempre possível ao leitor produzir sentidos para o que lê, numa conversa com o
autor/produtor de um texto. E nesse espaço, é natural que se discutam as ideias
expostas por alguém, haja vista que esse alguém está sempre falando daquilo que
ele também entende e quer passar para o leitor como a sua verdade. Deve-se
buscar sempre a interação autor/leitor, via texto, discutindo-se valores, contestando-
se posicionamentos, recriando-se opiniões. Nessa discussão com as ideias de um
texto, o leitor vai entender que sempre se produz algo para ser lido por alguém e é o
leitor, do outro lado do texto, que vai conduzindo a produção, fazendo o autor do
texto buscar saber sempre que influência ele pretende alcançar, que convencimento

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deseja instaurar em seu leitor, o que será sempre mediado pela experiência de vida
que tal leitor possua. Assim, o papel na sala de aula é sempre buscar a apropriação
pelos alunos de diversos gêneros textuais, haja vista que eles permeiam as práticas 387

sociais, na leitura, na compreensão, nos relacionamentos interacionais, na produção


textual. E, ao explorar isso, o professor estará sempre buscando uma forma de
consolidar a prática do letramento, que é fundamental para aquele que, em breve,
estará frente às turmas de alunos também, buscando formas de trabalhar a leitura e
a produção. Estas são as teorias do Interacionismo Sociodiscursivo, defendidas por
Schneuwly; Dolz, 2004; Bronckart, 2003; Aguiar & Bordini, 1993, dentre outros.
É óbvio que não se poderá descuidar dos aspectos sociais que rondam as
dificuldades de aprendizagem de leitura e compreensão de textos, tais como
desigualdade social, desintegração quase total da família aos aspectos culturais da
sociedade e outros tantos inseridos no cotidiano das famílias que, apesar de
assustadores, não poderão ser empecilhos para que um trabalho de resgate seja
feito pelos educadores. Por isso, a responsabilidade da escola reforçada pelas
Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Paraná (PARANÁ, 2008).

A Textualidade

Uma seqüência linguística só pode ser considerada como um texto quando


nela estão presentes certos fatores que irão lhe dar textura, aqueles responsáveis
por sua textualidade. E isso só é possível quando o recebedor dessa sequência
linguística percebe sentido nos aspectos : pragmático, semântico-conceitual e
formal.
Costa Val (1999) refere-se a Beaugrand e Dressler (1983), quando aponta os
sete fatores responsáveis pela textualidade, aqueles conhecidos por tornarem um
texto algo com consistência argumentativa, longe de ser apenas um amontoado de
frases: coesão, coerência, intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade,
informatividade e intertextualidade. No tocante à coerência e à coesão, já se sabe
que sua característica comum é a inter-relação semântica entre os elementos do
discurso, uma estabelecendo o nexo entre os conceitos e a outra se referindo a esse
nexo no plano linguístico.

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Anais

É interessante saber que a simples presença de um marcador linguístico de


coesão não provoca a efetiva significação a qualquer sequência linguística, já que tal
marcador pode não estar proporcionando a relação estabelecida na estrutura lógica 388

do texto. Muitas pessoas não conseguem estabelecer essas relações lógicas nos
segmentos de um texto, por desconhecerem como se empregam determinadas
conjunções ou pronomes, ou até mesmo certas preposições, por exemplo. Assim,
mesmo conhecendo os recursos coesivos, se não houver uma atenção aos
princípios que os regulamenta, a sequência textual ficará irregular, incompreensível,
ambígua.
Além da coesão e coerência, Beaugrand e Dressler (1983) enfocam no
produtor do texto e no seu recebedor dois outros fatores, que afirmam serem
fundamentais no êxito da relação autor  leitor. São eles: a) Intencionalidade- o
empenho colocado pelo produtor do texto para ver satisfeitos seus reais objetivos
quando de sua comunicação, estreitamente relacionado à força ilocutória do
discurso; b) aceitabilidade – que leva em conta o recebedor, a sua capacidade ou
não de aceitar um texto como relevante, entendendo ou não aquilo que o produtor
pretendeu no momento de sua composição. E, neste contexto, está claro que o
produtor conta com a capacidade do recebedor em fazer inferências e interpretações
no/do que lê.
Quanto aos outros fatores de textualidade, tem-se que: a situacionalidade é a
adequação que deve existir entre o texto e a situação comunicativa, tornando-se o
contexto o responsável pelo direcionamento do discurso, orientando aquele que o
produz, bem como quem o recebe. Isto quer dizer que há situações que um texto,
aparentemente menos elaborado, seja mais eficiente do que um outro bem escrito,
como certos avisos que precisam de leitura rápida.

Daí vem a noção de coerência pragmática, ou seja, a necessidade de o


texto ser reconhecido pelo recebedor como um emprego normal da
linguagem num determinado contexto. (COSTA VAL, 1999, p.13)

Outro fator acima arrolado é a informatividade : um texto precisa


manter um nível mediano de informações, com suficiência de dados, deixando
inequívocas todas as informações necessárias, cuidando, porém, para que não se

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exceda nas mesmas, a fim de que o recebedor possa trabalhar as idEias. É bom que
um texto seja menos previsível para que as informações ali contidas despertem o
interesse e a emoção do leitor ao descobri-las. Se esse texto, porém, se mostrar 389

completamente inusitado para o recebedor, poderá não ser entendido ou


processado por este.
Costa Val (1999) diz que, avaliar a informatividade, para ela

significa medir o sucesso do texto em levar conhecimento ao recebedor,


configurando-se como ato de comunicação efetivo. Esse sucesso depende,
em parte, do discurso de acrescentar alguma coisa à experiência do
recebedor, no plano conceitual ou no plano da expressão
(imprevisibilidade). De outra parte, resulta do equilíbrio entre o que o texto
oferece e o que confia à participação de quem o interpreta (suficiência de
dados). (pág. 32-33)

Quanto à intertextualidade, tem-se que : muitos textos só podem ser


entendidos relativamente a outros que funcionam como seus contextos. Não se
constrói um texto do nada; é necessário sempre voltar a uma fala anterior, retomar
conhecimentos já noticiados, para que se introduzam outros aspectos que se
desejam ver informados. É a fala do outro que deve ser avaliada como elemento
mensurável do grau de informatividade.
A intertextualidade está, portanto, vinculada aos fatores que fazem a
produção e recepção de um texto depender do conhecimento de outras leituras.
Conforme o tipo de texto já lido pelo aluno ou trabalhado em sala, diferentes serão
os processos de coesão, coerência, informação, intenção do produtor, por exemplo.
Tendo claros os conceitos de texto e de textualidade, é possível aceitar, então, que
a seqüência textual é construída, no aspecto sociocomunicativo, através dos fatores
pragmáticos: intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade e
intertextualidade; no aspecto formal, através da coesão textual e, no aspecto
semântico, através da coerência.
Costa Val (op. cit., p. 14) afirma que:

Essa questão é da maior importância para quem trabalha com o ensino de


redação, pois vem daí o fato de que a textualidade de cada tipo de discurso
envolve elementos diferentes. O que é qualidade num texto argumentativo

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formal poderá ser defeito num poema, ou numa estória de suspense, ou


numa conversa de botequim, por exemplo.

390

Além de todos esses aspectos de ordem discursiva e gramatical, um bom


texto deve apresentar recursos de estilo de seu autor, haja vista que o ser humano
está sempre expressando suas emoções, expectativas, receios, objetivos, valores,
etc., por meio de expressões que marcam seu estilo, além de darem reforço ao que
está expondo. Mesmo que seu texto seja o mais racional possível, de ordem técnica
ou científica, sempre haverá uma expressão, um termo qualquer, uma nuance
pessoal que tornará o comunicado mais rico, pois sempre será possível identificar,
no que tange ao uso dos recursos estilístico-semânticos, a riqueza das expressões e
a clareza das ideias que formam um estilo. E a parte da linguagem que trata desses
recursos é a Estilística Léxica.

A Produção Textual e a Estilística

Ciência bastante recente, criada em 1902 por Charles Bally, que foi discípulo
de Saussure, a Estilística já teria seu nome sendo usado por trinta anos na língua
francesa e na alemã. Considerando o ser humano extremamente complexo, Bally
entendia que a língua, além dos pensamentos, fazia o homem expressar também
seus sentimentos e vontades, o que o levou a pesquisar melhor os efeitos da
afetividade nos atos de fala.
Com o mesmo entendimento, assim se expressa Melo (2000, p. 15):

Realmente, o homem é um ser complexo: inteligente, racional, livre;


sentimental, apaixonado, impressionável, escravo de sua sensibilidade;
reflete o mundo e quer refletir-se no mundo; sofre influência de todos os que
o rodeiam ou que o precederam, e pretende influir – tanta vez sem disso se
aperceber – em todas as pessoas com quem convive

dando a perceber que Bally via o homem como possuidor de um espírito no qual
reina o tumulto, em que se mesclam a sombra da ignorância com a luz do
raciocínio e da razão. Assim, a língua passa a ser a expressão desse homem todo,
denunciando suas expectativas, suas dúvidas, seus lampejos emotivos que
emolduram toda a sua produção discursiva.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Muitos preferem ver o estilo como algo puramente estético, literário em que a
vulgaridade não tem lugar, como uma escolha consciente dos meios de
comunicação e outros, buscam nele a obscuridade do subconsciente que permeia 391

a linguagem do homem. Sendo a sua expressão, a língua evolui com o homem,


com sua maneira de ver e sentir a sua atualidade, plasmando-se na expressão que
contempla os ideais da própria coletividade, nas angústias de uma época, na
liberdade, permitida ou reprimida, em tantas outras.

O homem expressa o pensamento por meio da língua que, por sua vez,
compõe-se de inúmeros elementos, estruturas variadas para que isso se materialize.
Aí estão presentes as formas, as estruturas sintáticas, as palavras utilizadas para
expressar as ideias. Essa estrutura toda é como se fosse o esqueleto da expressão
que prende, envolve, combina aqueles elementos para dar “vida” ao pensamento.
Acontece que o falante se expressa de um modo todo seu, próprio,
característico, permeado pelas emoções do momento, afetado pela situação
dialógica, desde o puro som emitido pelo aparelho fonador, que depende do físico
de cada um, passando pelo sotaque de cada pessoa, denunciador de suas origens
regionais e sociais, chegando até mesmo à pura intenção de impressionar o
interlocutor, dando à sua fala a entonação preferida no instante da produção. Vê-se
que a expressão das ideias abrange os aspectos da noção, com o valor chamado
nocional, vinculado a uma lógica do raciocínio linguístico, atrelado a outros dois
valores propriamente estilísticos: um, carregado de fatores sociológicos e
psicológicos, conhecido como expressivo, e o outro, impressivo, que se caracteriza
intencional, em que o falante emprega um diferencial em sua expressão. É aqui,
pois, que se percebem os diferentes meios de se expressar uma ideia, constituindo
um modo todo particular de demonstrar um mesmo conceito sob diferentes prismas,
selecionados pelo usuário da língua, que vêm a ser as variantes estilísticas.
Quando se trabalha com uma construção textual, impossível não se
perceberem as características que, como pistas, denunciam o enunciador. Mas,
como identificar tais pistas? Esse algo a mais, esse diferente que identifica o estilo
de alguém? Seria preciso observar com mais rigor as possíveis expressões
estilísticas para confrontá-las com aquelas nem tão buriladas assim? É certo que,

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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dependendo do posicionamento e da intencionalidade do enunciador, do momento


histórico e da sua visão de mundo, as suas escolhas vão determinar alguns efeitos
de sentido e não outros. Por meio de seu jeito peculiar ele se faz perceber, num 392

modo só seu de dizer. As coisas materiais, as descobertas, os conhecimentos, os


avanços tecnológicos, os fatos, podem trazer inúmeros benefícios, desde que
trabalhados por mãos hábeis e mentes férteis: tudo isso está fora do homem, fazem
parte de seu entorno. O estilo, entretanto, a sua maneira de atuar sobre tais coisas,
está dentro do homem, é ele próprio. E assim vão esses sujeitos desenvolvendo sua
maneira própria de escrever, dentro de um gênero, dentro de uma época, buscando
o entrelaçamento entre o enunciado, o texto, a própria enunciação com o eu que o
texto construiu em sua totalidade. XXX

O Estudo de Caso com os Estudantes de Letras

Com base na teoria e nas reflexões acima, pensou-se na realização de um


projeto visando à análise da produção textual dos alunos do curso de Letras da
Universidade Estadual do Norte do Paraná, campus de Cornélio Procópio, desde a
primeira série do referido curso até a sua conclusão (quatro anos), a fim de se
avaliar a evolução da produção de texto de cada aluno nesse lapso de tempo. Ou
seja, recolherem-se as produções, em torno de duas ou três em cada série, para
acompanhar a escalada evolutiva de cada um nesse mister da escrita.
O objetivo maior desse trabalho é levantar os principais obstáculos à
apropriação do discurso que tornam a produção textual do aluno distante dos
padrões de textualidade exigidos para o profissional dessa área do conhecimento, e
elaborar estratégias para corrigi-los, identificando, a partir das análises dos textos
redigidos pelos alunos que comporão o corpus, os problemas de ordem gramatical,
discursiva e estilístico-semânticos que impedem uma comunicação textual mais
efetiva.
Assim, será possível traçar um quadro evolutivo das composições textuais
desses alunos, no tocante aos aspectos analisados bimestralmente, verificando o
percentual de melhora e levantando as dificuldades encontradas por eles no uso dos
recursos da Estilística Léxica. Buscar-se-á também observar o uso indevido de

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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certas classes de palavras que podem causar deformação na compreensão,


ambiguidades, conforme o gênero textual trabalhado.
Com isso, a linguagem será pensada em relação à constituição dos sujeitos e 393

à produção dos sentidos, pois o discurso supõe um sistema que se relaciona com
sua exterioridade, ele é visto como o resultado de uma construção que exige a
presença de um sujeito ideológico que, inserido em um contexto social e histórico,
desencadeia o processo de significação. E é importante que se observe que em todo
texto, o falante busca expressar suas ideias com os recursos linguísticos e
expressivos de que dispõe, já que a língua oferece extrema gama de flexibilidade. É
aí que se concentram as análises estilísticas do autor de um texto. Não se pode
deixar de lado o aspecto do estilo, cujos conhecimentos estão atrelados à Estilística,
sobretudo à Léxica, que busca ver o peso de cada termo usado pelo autor de um
texto pra manifestar o seu eu, sua afetividade, sua ironia, seus valores.
Com base nas teorias apontadas, buscar-se-á levantar as dificuldades de
emprego dos aspectos linguísticos na produção textual do aluno, amparando-se em
conhecimentos gramaticais da elaboração do texto, tais como aqueles aspectos
explorados por Beaugrande e Dressler (1983) tratados como princípios constitutivos
da textualidade, a saber: coesão, coerência, intencionalidade, aceitabilidade,
informatividade, situacionalidade e intertextualidade.
Mas, e em especial, buscar-se-á também acompanhar a evolução estilística e
consequente amadurecimento dessa produção dos alunos de uma turma do curso
de Letras, da UENP-CCP por um período de tempo, comprovando-se ou não a
importância dos conhecimentos dispostos em sala de aula, e com base na ideologia
que perpassa toda e qualquer elaboração textual. Esta proposta de pesquisa visa a
acompanhar os mesmos alunos, desde a 1ª série do referido curso, a partir de suas
produções de setembro de 2014, até sua série final (4ª), em setembro de 2017.
Caso alguns dos alunos selecionados para o corpus desistam do curso, ou sejam
reprovados na disciplina de Língua Portuguesa, a pesquisa buscará também
levantar as causas e fazer o devido relato.
Participam do referido projeto os alunos do Curso de Letras deste campus
que ingressaram em 2014; todos foram consultados sobre o interesse em participar

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

ou não da pesquisa, após isso, assinaram um termo de anuência que os tornava


corpus das análises, como regulado pelo Comitê de Ética. Eram, à ocasião, em 28
alunos. Hoje, restam apenas 13 na amostragem, já na 3ª série do curso, pois muitos 394

foram se perdendo pelo caminho, por motivos vários que serão avaliados, tais como:
desistências, transferências, reprovas, etc.
Os trabalhos recolhidos de cada aluno naquele ano foram 03; no ano de 2015
foram mais 03 textos para a amostra e, neste ano de 2016, 02 novos textos foram
incorporados, aguardando-se mais 02 até o final do ano. Pretende-se recolher em
torno de mais 02 textos no 1º semestre de 2017 para a finalização das análises, haja
vista o término do referido projeto previsto para agosto/2017.
A princípio estão sendo levantados problemas de ordem gramatical, tais
como: emprego da crase, concordâncias verbal e nominal, regências, redundâncias,
correspondências de tempos verbais, aspectos verbais, impropriedades
vocabulares, de acordo com o que Costa Val (1999) explora em sua obra. Depois
disso, com base nos teóricos da Estilística, em especial Rodrigues Lapa (1998),
autor de grande destaque dentro da Estilística da Língua Portuguesa, todos os
aspectos dessa área serão analisados, considerando-se os arranjos estilístico-
semânticos que dão o toque de estilo aos textos.
Os resultados detalhados serão levados ao conhecimento dos participantes e
depois expostos em publicação final, respeitando-se o anonimato daqueles, por
meio de artigo-relatório, encerrando-se os trabalhos.

Referências :

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 4ª ed. São Paulo: Hucitec, 1988.

BEAUGRANDE, Robert- Alain e DRESSLER, Wolfgang U. Introduction to text


Linguistcs. 2a. imp., Londres, Longman, 1983.

BRITO, Diná Tereza de. Os padrões de textualidade da produção escrita dos


formandos de Letras. Dissertação de Mestrado. UEL- Universidade Estadual de
Londrina, 2003

______________, PANICHI, Edina. Crimes contra a dignidade sexual: a memória


jurídica pela ótica da estilística léxica. – Londrina:Eduel, 2013.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e Textualidade, 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
395
______ Repensando a Textualidade. In: AZEREDO, José Carlos( org.): Língua
Portuguesa em Debate: conhecimento e ensino.Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

DISCINI, Norma. O estilo nos textos: histórias em quadrinhos, mídia, literatura. 2.ed.;
São Paulo: Contexto, 2004.

FIORIN, J. L. Em busca do sentido: Estudos discursivos – São Paulo: Contexto,


2008.

LAPA, M. Rodrigues. Estilística da língua portuguesa. 4 ed. Martins Fontes, 1998.

MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística. São Paulo: T. A. Queiroz –


Editora da Universidade de São Paulo, 1989.

FREGONEZI, Durvali Emílio. O ensino de língua materna- a formação do professor


de língua portuguesa. Boletim CCH, Londrina, n. 11, p. 67-75,1986.

GERALDI, João Wanderley (org.) O texto na sala de aula, 2a. ed. Cascavel,
ASSOESTE, 1985.

______Portos de Passagem. 4a.ed.-São Paulo: Martins Fontes, 1997.

______ Da redação à produção de textos. In: Aprender e ensinar com textos de


alunos, GERALDI, J. Wanderley e CITELLI, Beatriz. São Paulo: Cortez, 2000

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares de Língua


Portuguesa para a Educação Básica. Curitiba. 2008.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Os gêneros escolares: das práticas de


linguagem aos objetos de ensino. In: ____ (Org.). Gêneros orais e escritos na
escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004, p.71-91.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Religião e Letramento: Eventos de letramento


religioso e suas influências 396

Religion and Literacy : Religious literacy events and their influences

Monique Susan Morara Lavisio (CAPES/UEL- PG)

RESUMO: Há na esfera religiosa um número relevante de textos que circulam nos eventos
promovidos por Igrejas, principalmente envolvendo práticas de leitura bíblica. Por ser um evento
permeado por ideologias, acredita-se que o contato com esse letramento desempenhe uma função
significativa na interação sociocultural do indivíduo. Deste modo, este trabalho se apresenta como
recorte de uma dissertação e objetiva verificar a influencia do letramento religioso, em seus aspectos
linguísticos-discursivos, nos textos escolares de alunos que participam desses eventos. Para
subsidiar este estudo utiliza-se uma metodologia de pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico,
fundamentada pelo aparato teórico dos Novos Estudos do Letramento (STREET 1984; HAMILTON,
2000; KLEIMAN; 1995) que compreende as práticas de leitura e escrita como letramentos
socialmente situados. Para compor o corpus, serão utilizados questionários socioeconômicos,
entrevistas e produções textuais escolares produzidas pelos sujeitos, membros de igrejas
evangélicas; eles serão observados em suas práticas de letramento religioso para constatar essas
influências. Espera-se que este estudo contribua com as práticas dos professores e colabore para a
valorização dos letramentos vernaculares em sala de aula.

PALAVRAS-CHAVE: Letramento religioso. Desenvolvimento escolar. Eventos de letramento.

ABSTRACT: There is the religious sphere a significant number of texts circulating in events
sponsored by churches, mainly involving Bible reading practices. Being a permeate event by
ideologies, it is believed that contact with that literacy plays a significant role in the socio-cultural
interaction of the individual. Thus, this work presents itself as clipping a dissertation and aims to verify
the influence of religious literacy in their linguistic-discursive aspects, the textbooks of students who
participate in these events. To support this study used a qualitative research methodology,
ethnographic, grounded by the theoretical apparatus of the New Studies of Literacy (STREET 1984;
HAMILTON, 2000; KLEIMAN, 1995) comprising the reading and writing practices as socially situated
literacies . To compose the corpus, socioeconomic questionnaires will be used, interviews and school
textual productions produced by the subjects of evangelical churches members; they will be observed
in their religious literacy practices to observe these influences. It is expected that this study will
contribute to teachers' practices and collaborate for the recovery of vernacular literacies in the
classroom.

KEYWORDS: Religious literacy. School development. Event literacy.

Introdução

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

No âmbito de pesquisas voltadas aos modos e usos da leitura e escrita no contexto


social, constata-se que há limitados estudos direcionados ao letramento na esfera religiosa,
sobretudo em relação com as práticas escolares. De acordo com Montezano (2006), há no 397

meio acadêmico escassas pesquisas acerca da religiosidade articulada com as experiências


de escolarização, dificilmente encontramos pesquisas que focalizem as práticas de
letramento das camadas populares, principalmente no que diz respeito à inserção dos
sujeitos nesse universo letrado.
Acredita-se que este tipo de letramento se dá devido a presença de leitura de textos
religiosos, pois no cotidiano as pessoas, principalmente do meio rural, participam de alguns
desses eventos ao longo de suas vidas (JUNG, SEMECHECHEM, 2009). Desta forma, este
trabalho é um recorte de uma dissertação de mestrado em andamento que procura
investigar a relação entre o letramento da esfera religiosa e o escolar, partindo da hipótese
de que haja uma influência de práticas sociais e do discurso religioso sobre o letramento
escolar gerada pela observação da professora-pesquisadora das aparentes intercorrências
do léxico do texto religioso nas produções textuais dos alunos. Pretende-se verificar se as
práticas de leitura e escrita da esfera religiosa são significativas para o desenvolvimento
dessas habilidades na escola. Descrever e analisar eventos de letramento religioso no
contexto rural serão os meios pelos quais poder-se-á examiná-los e compará-los com os
eventos de letramento escolar, com a finalidade de constatar suas semelhanças e possível
influência de um sobre o outro tipo de letramento. Alguns questionamentos foram
norteadores para a execução desta pesquisa: com que práticas de escrita e de leitura os
indivíduos têm contato?; que usos tais práticas possibilitaram? Os eventos de letramentos
por eles frequentados influenciam em seu desenvolvimento linguístico-discursivo?.
A leitura da bíblia, os cânticos, o sermão na Igreja, as reuniões realizadas nas casas
dos membros denominados como as células, são acontecimentos em que a escrita e
oralidade letrada se sobressaem; trata-se de eventos de letramento em que as práticas de
letramento se concretizam; os modos como ocorrem e como influem no desenvolvimento do
letramento dos indivíduos são aspectos cruciais nesta pesquisa.
Para a constituição do corpus, este estudo utiliza a metodologia de pesquisa
qualitativa, de cunho etnográfico, e adota os fundamentos dos Novos Estudos do
Letramento (STREET; BARTON, HAMILTON; KLEIMAN) que considera que os letramentos
estão associados aos espaços socioculturais em que se inserem vinculados às relações de
poder social.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A coleta dos dados é realizada por meio de entrevistas com os indivíduos e


professores, e observações em eventos religiosos, como: cultos, células, escola dominical,
entre outros. No contexto escolar, são observadas as produções textuais propostas pelos 398

professores de Língua Portuguesa, averiguando as possíveis intercorrencias dessa rica


experiência de letramento num contexto exterior à escola, influindo no uso da língua refletido
em redações e textos escolares.
Nessas condições, espera-se que este estudo promova uma abertura à reflexão
sobre as práticas de letramento consolidadas fora de um contexto escolar. Acredita-se que o
campo pedagógico será beneficiado, ao utilizar as vivências de uma prática social do aluno,
atribuindo sentindo ao seu desenvolvimento escolar, colaborando, consequentemente, com
a formação continuada do professor/pesquisador preparando-o para explorar os inúmeros
letramentos extraescolares em suas práticas pedagógicas.

Letramentos e práticas sociais

Apesar das divergências conceituais quanto ao termo “letramento(s) v”, este é um


conceito recente incorporado no discurso dos educadores e linguistas. Pela ótica dos Novos
Estudos do Letramento, e de acordo com os conhecimentos de Street (1982) um dos
representantes desta perspectiva teórica, é preciso compreender os Letramentos como
prática social, pois há um esforço em avaliar o que os sujeitos sabem sobre textos escritos e
como eles manipulam o uso da escrita em diferentes contextos históricos e culturais. A esse
respeito, Street acredita que as “práticas letradas são produtos da cultura, da história e dos
discursos que vivenciam a língua real”. (STREET, 2014, p.9).
A ideia de letramento vem relacionar as mediações ocorridas entre os sujeitos e suas
relações sociais e o mundo da cultura escrita. Por essa via, o indivíduo letrado é “aquele que
vive em estado de letramento, e não só aquele que sabe ler e escrever, mas o que usa
socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente às
demandas sociais de leitura e de escrita” (SOARES, 1998, p. 40).
Esta concepção de letramento veio ampliar a noção tradicional de letramento “cultura
oral – cultura letrada”. A priori, os discursos dissociavam a oralidade da escrita, pois eram
compreendidas como habilidades ímpares, sendo predominante a visão da escrita que
agregava valores cognitivos intrínsecos no uso da língua; sem a abordagem dos aspectos
das práticas sociais. Partindo da desconstrução desse contraste surgem mais abordagens

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

contemporâneas na alfabetização englobando o termo “letramento” como um plural de


práticas sociais.
Deste modo, ao trazer este conceito para o campo da religião pode-se dizer que o 399

letramento religioso é constituído de um conjunto de práticas religiosas que se manifestam


em eventos religiosos mediados por textos escritos. Ao aplicar este conceito às práticas dos
indivíduos em diferentes contextos entende-se, de acordo com Kersch (2012) e Kleiman
(1995), que os eventos de letramento não escolares podem ser especialmente
colaborativos, em contraste com o caráter individual do processo de aquisição da língua
escrita em ambiente escolar, que costuma ser próprio da alfabetização.
Em síntese, os novos Estudos de letramento privilegiam o letramento social em nível
local. No entanto, é necessário que o pesquisador se inteire de um processo interpretativo
em que a escrita é o todo da situação da qual os indivíduos participam, este processo pode
ser intitulado como um evento de letramento. Ao se envolver nesses eventos a pessoa se
apropria desses modos culturais e atua utilizando a linguagem escrita em diferentes
domínios sociais, sendo descrito como prática de letramento. Para Street (2010, p.33 )

Práticas e Eventos de letramento são modelos analíticos utilizados por


pesquisadores que buscam compreender os usos e os significados da
escrita e da leitura para diferentes grupos sociais e as consequências
educacionais, políticas e sociais de tais usos e significados para os
indivíduos e para os grupos a que pertencem.

Ao participar de eventos religiosos nota-se que esses têm um papel relevante na


comunidade rural em questão. Os eventos promovidos pelas Igrejas Evangélicas, no caso o
culto, permite aos indivíduos entrar em contato com um numero relevante de textos
religiosos, principalmente a leitura da Bíblia, percebe-se que ao exercitarem sua leitura
nestes eventos, determinadas habilidades podem ser desenvolvidas, além de uma
construção de identidade social sob os fieis. Ao refletir sobre estudos como os de Kersh
(2012) verifica-se que os eventos de letramento que envolve a leitura da Bíblia afetam muito
o desenvolvimento do letramento dos leitores – no caso de sua pesquisa, de diferentes
escolaridades – que praticam a leitura da Bíblia, eclodindo até em sua formação pessoal.
Ao pensar na repercussão destes letramentos, Soares (2008) afirma que, ao ocupar
diferentes espaços na sociedade as pessoas impõem diferentes funções para a leitura e
escrita, determinadas, por exemplo, por sexo, idade, localização rural ou urbana ou religião
(neste caso). Na participação aos cultos percebe-se que os membros das comunidades
rurais participam das práticas da Igreja, aos finais de semana, porque se sentem unidos.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Verifica-se que os discursos religiosos, constroem uma moral e uma conduta a ser seguida
pelos membros, a figura do pastor naquele momento é a voz que domina e que representa
àquela comunidade, no qual presumidamente possa influenciar na construção de sua 400

identidade em sua prática social.


O indivíduo ao ter contato com esse discurso acumula um letramento vantajoso em
termos de cognição e desenvolvimento social, e espera-se que ele atue de acordo com
estes discursos, pois, a partir da visão religiosa, o fiel deve ser um sujeito de “bem” na
sociedade agindo sobre preceitos e conceitos éticos morais. Já se sabe que desde a época
da colonização, com a vinda dos padres Jesuítas, os discursos e letramentos eram
utilizados para ensinar as pessoas a serem comportadas, “domesticadas”, ainda
perpassadas aos tempos atuais.
Diante dos fatos, entende-se que os indivíduos se envolvem em atividades que
tenham significado para sua vida e que os contatos com os diferentes modos de leitura e
escrita estejam relacionadas a suas práticas sociais.

Eventos de letramento – Igreja Assembleia de Deus

A fim de contribuir para a compreensão do perfil sociológico dos sujeitos


investigados, é necessário traçar um breve relato sobre a religião protestante ao qual eles
pertencem, para conceber as práticas ligadas à educação religiosa dos indivíduos.
A Assembleia de Deus é uma igreja cristã evangélica, sendo a maior instituição
evangélica e pentecostal, em número de fiéis, no Brasil. Segundo dados do IBGE 2010, a
Assembleia de Deus (AD) possui cerca de 12.314.410 de membros no Brasil.
Essa instituição religiosa surgiu nos Estados Unidos (1914) e veio para o Brasil em
1911 com os missionários suecos Daniel Berger e Gunnar Vingren. Por ser uma igreja
pentecostal, as AD acreditam no batismo por meio do Espírito Santo, evidenciado por meio
do falar em línguas; e na doutrina da Santa Trindade, possui um forte trabalho missionário,
enfatizado pela pregação do Evangelho.
Os eventos de letramento da igreja Assembleia de Deus (AD) são os cultos, a escola
dominical, o batismo, a ceia, e as células (pequenas reuniões na casa dos “irmãos” da
igreja).
Os cultos se caracterizam por orações, cânticos, testemunhos e pregações, onde
muitas vezes ocorrem manifestações dos dons espirituais, como, por exemplo, profecias e

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línguas espirituais. Na cidade de Rancho Alegre possui dias e horários específicos para
cultos que acontecem às terças-feiras, quintas-feiras, sábados e domingos às 19h30. A
duração dos cultos é de aproximadamente 2 horas, e esse se estrutura por: a) Oração inicial 401

(normalmente feita pelo pastor ou obreiro), logo após, b) Cânticos iniciais - Utilizando-se
a Harpa Cristã, que é o hinário oficial da IEAD, geralmente o obreiro convida alguém da
assembleia para proclamar o cântico; c) Leitura bíblica (ou palavra introdutória) - Neste
momento a leitura do trecho bíblico e inspirada pelo Espírito Santo, geralmente é o pastor
quem realiza a leitura, d) mais cânticos; e) Testemunhos por membros - momento no qual
os membros relatam o que Deus revelou para eles (nem sempre há este momento); f)
Louvor e oração pela ofertas; g) Pregação (O momento em que o pastor da igreja, ou um
obreiro, até mesmo pastores convidados explicam a palavra do Senhor); h) Avisos sobre os
eventos e acontecimentos durante a semana; i) Bênção final (somente dado pelo pastor, ou
evangelista ou presbítero).
Em relação às escolas bíblicas dominicais, elas acontecem todos os domingos das
9h00 às 11h00. É um espaço na igreja em que o membro tem a oportunidade de interagir
com a palavra ministrada. Os professores geralmente são pessoas com experiência no
estudo bíblico, sendo estes homens e mulheres tementes a Deus, que também têm uma
vida secular ativa que enriquecem a lição ministrada com suas experiências profissionais,
emocionais, familiares, entre outras, tornando a escola mais rica e contemporânea.
Após a breve apresentação do contexto religioso do qual os sujeitos pesquisados fazem
parte, apresentar-se-á uma concisa análise dos textos dos alunos.

Breve Análise

Questionários

Para selecionar os sujeitos desta pesquisa aplicou-se um questionário


socioeconômico a 185 alunos do único colégio com ensino fundamental II e médio
da cidade, visando obter informações sobre a moradia, escolaridade, instituições
religiosas das quais fazem parte, além das opções de lazer e leitura por eles
praticadas. Desta forma, chegou-se ao seguinte resultado sobre a frequência de
alunos a alguma instituição religiosa: 53% participam de eventos religiosos católicos,
40% são protestantes e 7% se intitulam sem religião. Dentre os protestantes, estão
alunos que participam de igrejas; Metodista, Assembleia de Deus, Congregação
Cristã do Brasil e Presbiteriana. Quanto à frequência da leitura de textos religiosos
ou a Bíblia, os resultados foram; 23% sempre leem, 20% dos estudantes leem de

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

vez em quando, 29% quase nunca leem, 19% não opinaram. Abaixo os gráficos
exemplificando os resultados:

402
Gráfico1 – Alunos que seguem uma religião

Católicos

Protestantes
7%
Sem Religião

40% 53%

Fonte: Autora (2016)

Gráfico 2 – Frequência de leitura de textos religiosos, como a Bíblia:

19% 23%
sempre
de vez em quando
29% 29% quase nunca
não opinaram

Análise de textos

Para compor o corpus desta pesquisa foram selecionados alguns textos, dos sujeitos
observados (F1 e F2), produzidos no contexto escolar em sala de aula. A professora de
Língua Portuguesa ao trabalhar com o tema “Tecnologia” levantou alguns questionamentos
para uma proposta de debate feito em sala. Logo após, a partir da charge abaixo, a
professora solicita uma produção de textual como forma de registrar escritamente as
opiniões lançadas no debate.

Imagem 1 – Proposta de Redação por imagem

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403

Fonte: site www.neofighters.info


Analisando previamente os textos selecionados, produzidos pelos sujeitos
observados, averiguou-se que eles agregam os valores passados na instituição religiosa às
produções de textos escolares.
Por meio dos textos verificou-se que os sujeitos apresentam o termo “próximo”
quando se referem a pessoas, falando sempre em ser solidários. No texto de F1 aparecem
expressões como “... oferecem ajuda sempre estão esperando algo em troca” e “ se formos
verdadeiros há uma paz de espírito em seu interior que nos deixa meio leve”. No contexto
religioso, em pregações e sermão religioso, o termo “ajudar sem esperar nada em troca”
“cria-se uma paz de espírito” sempre é abordado nos discursos, assim como “ajudar o
próximo”.
No caso da produção do sujeito F2, ele se apresenta no texto como cristão dizendo
que “Mas eu sou cristão e penso totalmente diferente...”. Para o leitor, dá-se a entender que
todo o cristão deva ter um pensamento voltado à misericórdia e perdão. O amor ao próximo,
também foi referenciado por meio da citação bíblica que diz “Amarás ao teu próximo como a
ti mesmo” (Matheus, 22:39). O sujeito F2 explicita esta citação no texto.
Todos estas expressões são enunciadas em sermões religiosos reproduzindo as
citações e ensinamentos bíblicos. Mesmo encontrando problemas de coerência e coesão
nos textos, entende-se que o letramento adquirido na esfera religiosa permite aos alunos
opinar e expor suas críticas quanto a tais assuntos em outras esferas, como no caso a
escolar.

Imagem 2 - Texto sujeito F1 Imagem 3 - Texto sujeito F2

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404

Fonte: Sujeitos F1 e F2

Após as reflexões sobre os textos pode-se averiguar que o discurso religioso é


marcado no perfil discursivo dos alunos que frequentam esses eventos de letramento. A
partir dos breves dados apresentados, verifica-se que as práticas e eventos de letramento
religioso, em que estão envolvidos os sujeitos desta pesquisa, influenciam de certa forma no
desenvolvimento crítico escolar dos mesmos.

Considerações finais

Diante dos fatos apresentados, espera-se que este estudo sobre a análise das
práticas sociais em eventos de letramento religiosos no contexto rural seja de grande valia
para abertura de possíveis pesquisas nesta área de letramento, a qual é pouco explorada.

Essas atividades de letramento têm um papel crucial na construção e na manutenção


de uma identidade local em dois sentidos, primeiramente pelos modos de participação nos
eventos de letramento que a Igreja propõe e, pela orientação cristã que oferece. Além disso,
elas estão articuladas com a construção discursiva presente na comunidade religiosa e
contribuem em alguma medida para o desenvolvimento escolar do aluno. Este tipo de
contribuição ainda não foi profundamente analisado, mas acredita-se que as práticas de
letramento os auxiliam na desenrolar discursivo dos textos.

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Os poucos dados já conseguem apontar uma importância de se abordar os estudos


etnográficos situados em eventos e práticas de letramento sociais das quais os sujeitos
participam. Analisar os contextos não-escolarizados podem auxiliar o professor em sua 405

reflexão pedagógica, pois contribuem para melhor o desempenho do aluno em seu


letramento escolar.

Esse passeio pelos eventos sociais poderá ser capaz de revelar a existência de
vários eventos de letramento com características diferentes, amparados por um grande
número de gêneros textuais formando se, assim, a prática de letramento presente no evento
social litúrgico.

Referências

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WILGES, I. Cultura religiosa - as religiões no mundo. Petrópolis: Vozes, 1994.

“Tá vendo, alí era dignidade humana mesmo”:


construindo ética profissional e
intersubjetividade através de narrativas de
grupo
“See, there was human dignity really": building professional ethics
and intersubjectivity across narratives of group
Mayara De Oliveira Nogueira (PUC-Rio/CNPq PG)

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

RESUMO: Partindo de corpus constituído por narrativas sobre acesso à justiça, notadamente a um
ideal de justiça social partilhado por um grupo de advogados, o presente trabalho objetiva analisar
aspectos da dinâmica interacional da narração de histórias tecidas por membros de um mesmo
escritório. Alinhamo-nos à Análise da Narrativa – intercambiando os estudos canônicos de Labov e
407
Waletzky (1967) e Labov (1972) aos estudos da narrativa e interação (BASTOS, 2005; GARCEZ,
2001), com o objetivo de investigar (i) a construção narrativa pelos participantes da conversa e (ii)
como o evento co-narrado sobre vulnerabilidade socioeconômica de uma pessoa idosa propulsiona,
interacionalmente, o estabelecimento da intersubjetividade entre membros de uma comunidade.
Valeremo-nos, ainda, de ferramental da Sociolinguística Interacional para observação do jogo
interacional e coordenação de tipos de atividades e sincronia conversacional, os quais indicam o
(in)sucesso da cooperação e compartilhamento. Quanto à metodologia, pautamo-nos no método
qualitativo e interpretativo (DENZIN & LINCOLN, 2006), e no viés autoetnográfico (REED-DANAHAY,
1997; VERSIANI, 2005), vez que a pesquisadora é insider do contexto investigado. Observou-se que
o sofrimento do Outro é trazido à tona como mote propulsor do posicionamento dos profissionais
perante dada questão, numa construção de ética de grupo que tenciona a humanização das relações
judicializadas.

PALAVRAS-CHAVE: Análise da Narrativa. Acesso à justiça. Ética e intersubjetividade profissional.

ABSTRACT: Begining corpus consists of narratives about access to justice, especially to an ideal of
social justice shared by a group of lawyers, this paper aims to analyze aspects of interactional
dynamics of storytelling woven by members of the same office. Align us to the analysis of narrative -
interchanging the canonical studies Labov and Waletzky (1967) and Labov (1972) to the narrative
studies and interaction (BASTOS, 2005; GARCEZ, 2001), in order to investigate (i) the construction
narrative by the participants of the conversation and (ii) as the co-narrated event on socioeconomic
vulnerability of an elderly person propels, interactionally, the establishment of inter between members
of a community. We have used also tooling of Interactional Sociolinguistics to observe the interactional
game and coordination of types of activities and conversational synchrony, which indicate the (un)
successful cooperation and sharing. As for the methodology, we take as a basis on qualitative and
interpretative approach (Denzin & LINCOLN, 2006), and autoetnography (REED-DANAHAY, 1997;
VERSIANI, 2005), since the researcher's insider context investigated. the suffering of the Other was
observed that is brought up as a motto propeller positioning professional before given issue, a
construction group ethic that will the humanization of judicialized relations.

KEYWORDS: Narrative Analysis. Access to justice. Professional ethical and intersubjectivity.

Primeiras palavras

Considerando a centralidade da narrativa em nosso fazer cotidiano bem como


do trabalho enquanto um dos cernes construtores de nossa(s) identidade(s)
social(s), o presente trabalho investigará um encontro espontâneo ocorrido entre
colegas de trabalho. Trata-se, mais especificamente, de um almoço ocorrido no ano
de 2015 na cidade de Vitória/ES no intervalo de um congresso de direito
previdenciário. São participantes do encontro seis advogados que trabalham no
mesmo escritório advocatício reconhecido localmente por seu posicionamento e
ativismo ideológico de esquerda, razão pela qual os casos contemplados pelo
escritório versam, prioritariamente, sobre matérias de Direito do Trabalho e Direito

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Previdenciário. Importa ressaltar que as contas de tal escritório são compostas


exclusivamente por sindicatos e trabalhadores urbanos e rurais.
Tomamos como perspectiva de língua aquela que toma como cerne a natureza 408

interacional e dialógica dos fenômenos da linguagem na medida em que considera


os sujeitos seres ativos. Assim sendo, a produção de sentidos é coconstruída pelos
pares relacionais, os quais mobilizam ativa e conjuntamente saberes inerentes ao
evento comunicativo.
Estrutura-se o trabalho do seguinte modo: em primeiro lugar faremos uma
breve abordagem a propósito do referencial teórico a que nos filiamos,
especificamente no que se refere aos estudos da narrativa e à perspectiva
socioconstrucionista e interacional da língua. Posteriormente trataremos sobre a
metodologia em que este estudo se pauta, isto é, discorremos sobre sua natureza
qualitativa e interpretativa da pesquisa, bem como seu viés autoetnográfico. Em
seguida construímos uma análise dos dados que compõem o corpus do estudo,
privilegiando o trabalho interacional dos pares na conarrativa em conversa cotidiana.
Por fim, são feitas breves considerações a propósito do trabalho em questão.

Pressupostos teóricos
Interseccionamos, no presente estudo, campos teóricos que estabelecem um
conjunto de postulados comuns, dentre os quais a apreensão da língua(gem) como
modo de coconstruir o mundo das coisas e como fenômeno social por excelência.
Coarticulamos, como anteriormente apontado, as abordagens da Análise da
Conversa Etnometodológica e Análise da Narrativa, isto é, assumimos um fazer
Análise do Discurso numa perspectiva interacional.
Dentre os campos ou disciplinas que estabelecem relações de interface no
paradigma sociointeracional destacam-se (ALKMIM, 2000): (i) a Antropologia,
especialmente no que se refere à Etnografia da Comunicação inicialmente pensada
por Dell Hymes, cujo interesse repousa em como os modos de falar variam de uma
cultura para outra; (ii) a Filosofia, particularmente a Teoria dos Atos de fala de Austin
e Searle a propósito da descrição e criação da realidade; (iii) a Linguística, a partir
de seu olhar discursivo; (iv) e, por fim, a Sociologia, notadamente o Interacionismo

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Simbólico da Escola de Chicago em franca e clara oposição à sociologia


macrossociológica durkheimiana clássica.
Do interacionismo descente a Etnometodologia (liderada por pensadores 409

como Garfinkel), com recortes mais específicos e interesse em se estudar os


métodos e as regras que os indivíduos utilizam cotidianamente em culturas
determinadas, procurando entender a organização da produção dos discursos e a
maneira como essas relações são relevantes no contexto situado. A Análise da
Conversa é produto desta arquitetura teórica organizada e objetiva demonstrar “que
a conversa não é uma ação tão caótica quanto parece e que as pessoas se
organizam socialmente através da fala” (SILVA; ANDRADE; OSTERMANN, 2009, p.
03).
O olhar dos analistas da conversa volta-se para o nível micro, entendido como
discursivo e situacional, em ruptura com a sociolinguística tradicional, que
compreendia os grupos sociais enquanto blocos homogêneos e estáveis. Há,
portanto, uma reorientação desta concepção apriorística para noções socio-
historicamente situadas, como a de comunidades de prática. Nesse sentido,
estamos diante de uma análise do discurso de perspectiva interacional, a qual
corresponde a uma abordagem ecológica que entende que nada existe de maneira
isolada, mas que há uma regulação mútua que emerge da presença do Outro, que
regula e monitora o Eu.
Logo, será nas situações sociais que valores e atributos culturais serão
reconhecidos no interior de determinado arranjo social (GOFFMAN, 2002[1964]). A
fala, por exemplo, orienta e desenha o contexto ao mesmo tempo que é por ele
desenhada e orientada. Um dos princípios básicos da interação, de acordo com esta
perspectiva, é que a fala é estruturalmente organizada, e, por sua sistematicidade, a
conversa é passível de estudo e análise. Não falamos sobre qualquer coisa, de
qualquer maneira a qualquer momento porque sabemos agir socialmente e nos
orientamos contextualmente.
Os estudos de corrente sociointeracionista se aplicam aos contextos
interacionais em curso e seus objetos de análise se situam nos padrões linguísticos
e paralinguísticos, no aqui e no agora do momento interacional. O aqui direciona a

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

interpretação para o contexto situacional, e o agora remete ao momento da


interação em curso. Trata-se de uma análise que vai do nível microssociológico ao
nível macrossociológico (histórico/cultural). 410

Tendo em vista os propósitos do presente estudos, dentre os quais a


observação do coconstrução do self em narrativa de vida laboral que emerge em
contexto institucional, salientamos que, no que se refere à narrativa, alinhamo-nos a
De Fina (2007, 2010), para quem a orientação do narrar histórias ilustra como o uso
de recursos linguísticos conecta narradores e interlocutores a contextos sociais de
nível macro e microssociológico. Ora, considerar a orientação em diferentes tipos de
narrativas apresenta duas importantes consequências metodológicas: em primeiro
lugar leva os analistas a observar com criticidade noções já existentes sobre a
estrutura da narrativa; e em segundo lugar possibilita novas vertentes para a análise
das diversas conexões entre as narrativas e os contextos sociais. Partimos,
outrossim, de uma abordagem segundo a qual as narrativas correspondem a uma
prática cotidiana em contextos situados (LINDE, 2001) de modo a ressignificar e
reconstruir eventos ocorridos no passado.
A representação de aspectos identitários no contexto da narrativa (DE FINA
2003; 2006) implica questões ideológicas que identificam tipos de ações e tipos de
pessoas, de modo que atributos como ascendência étnica são, por vezes,
empregadas para auxiliar na construção esquemática dos personagens e, de forma
mais importante, nas representações de grupos – o que se observou nos dados
deste estudo. Tais representações, por sua vez, apontam para ideias globalmente
aceitas sobre estes mesmos grupos, e seu emprego em uma narrativa pode auxiliar
o narrador a confeccionar os personagens de uma estória, ao mesmo tempo em que
fornece direções indexicais sobre como interpretar os eventos (FLANNERY, 2010).

Pressupostos metodológicos
O referencial teórico deste artigo, como sinalizado anteriormente,
intersecciona os primados da Análise da Conversa Etnometodológica e da Análise
da Narrativa por acreditarmos que estas teorias possuem um amplo aparato
conceitual e ferramental adequados para análise dos fenômenos narrativo e

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interacionais. Tais paradigmas seguem o método qualitativo e interpretativo de


análise.
Por pesquisa qualitativa entendemos uma atividade situada que localiza o 411

observador no mundo e que consiste em um conjunto de práticas materiais e


interpretativas que dão visibilidade ao mundo (VELHO, 1978; W INKIN, 1998), sendo,
pois, “um campo interdisciplinar, transdisciplinar e, às vezes, contradisciplinar, que
atravessa as humanidades, as ciências sociais e as ciências físicas” (DENZIN &
LINCOLN, 2006, p. 21). O modelo em questão, portanto, corresponde a uma forma de
fazer análise do discurso numa perspectiva interacional, em que a fala é utilizada em
um contexto social específico e a língua é concebida enquanto fenômeno social.
Seis advogados que trabalham no mesmo escritório de advocacia participaram
do encontro que compõe o corpus deste trabalho (sendo que três dos advogados
são membros da mesma família: a autora deste trabalho, seu pai e sua irmã –
Mayara, Jader e Thatiana, respectivamente). Apresento, assim, uma categorização
identitária bivalente, vez que, a um só tempo, sou advogada e pesquisadora. O
almoço durou cerca de uma hora e meia e se deu no intervalo do segundo dia do II
Congresso de Direito Previdenciário do Espírito Santo – evento em que os
advogados estavam participando e que pode ser observado a partir de algumas
pistas de contextualização que surgem ao longo da interação. Tais dados foram
gravados em áudio, com posterior transcrição com base nas convenções adaptadas
e simplificadas da Análise da Conversa, e aqui observado apenas o intervalo de
25’19’’ a 31’33’’, ou seja, pouco mais de seis minutos.
Cumpre ressaltar o fato de a posição de observador participante poder gerar
algumas dificuldades pessoais e interpessoais na interpretação dos dados, contudo
tal fator “não invalida o estatuto científico do antropólogo” (W INKIN, 1998, p. 160). Ao
descrever o contexto, reflito o outro, mas também me reflito. No presente trabalho,
em que a pesquisadora é duplamente insider do contexto de pesquisa (tanto
membro daquela comunidade de prática laboral, quanto membro da família de
alguns dos participantes), a abordagem autoetnográfica que privilegia a relevância
de concepções e subjetividades na contribuição da construção do objeto coletiva e

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Anais

dialogicamente arquitetado entre pesquisador e pares envolvidos nos parece melhor


ajustada.
412

Análise de dados

Uma das categorias que se revelou de grande importância na observação no


trato com os dados é a noção do sofrimento, tomado aqui não como algo
essencializado ou universal, mas, antes, o concebemos como socialmente situado e
construído, existindo, pois, diferentes modos de sofrer bem como diferentes modos
de perceber o sofrimento ainda que no interior de uma mesma comunidade. Assim,
o sofrimento corresponde a um fenômeno social e interacionalmente construído
(BASTOS, 2008).

EXCERTO 01: Episódios de sofrimento

 85 Thatiana [Mas ele não tá tão bonitinho agora?


 86
87 João [é a ex-mulher. (0.4) A ex mulher dele
88 que vem de quinze em quinze dias na casa dele, tá!?
89
 90 Thatiana Ele chega lá no escritório assim, ó ((estende os braços e gesticula
 91 com as palmas das mãos)). Com o dinheiro assim, [ó ((gesticula)).
 92
93 Mayara [Nossa! Veio tudo e a carne não vem!
94
95 Thatiana Ele embola o dinheiro todinho no com o valor do saque.
96 “<Douto::ra>, aqui ó ((gesticula)). A senhora tira a sua parte e o fo o
97 <resto é meu>, né!?”. Aí é fo esse mês ele falou “ah, doutora, esse
98 mês passado, como eu não tinha troca:do, faltou DOIS reais. A
99 senhora tem que tirar DOIS reais a mais esse mês”.
 100
 101
 102 Mayara .hh tadinho
 103 Jader Corta o coração da gente, né!? Eu falei ali pra uma <bichona> ali, o
104 Fabrici[ano, que
105 João [Jader, você chegou uns vinte ve (incompreensível)
106
107 Jader [Eu falei “Fabriciano, como não tira o
108 (incompreensível) do senhor disso, né!?
109
 110 Thatiana Corta o meu coração.
111 Jader Não é:?
112 (.)

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 113 Thatiana Ele é muito bonzinho, menina!


 114 Rosângela É, ele é sim.
 115 Jader O Luiz, né, Thatá!? Todos eles são assim. Interessante, né!? (.) E aí,
 116 Luciana!? ((sorri para ela, que retribui)) (0.7) O Luiz vai lá entregar o 413
117 dinheiro ou deposita.
118
 119 Thatiana Ah, é!? (.) Tá vendo, ali era <dignida:de HUMANA> mesmo, porque
 120 o homem mudou <até o VISUAL> dele.
121 Jader Mudou.
 122 Thatiana E é [um salariozinho mínimo.

Os episódios de sofrimento construídos na interação são estabelecidos a


partir da articulação entre eventos e recursos avaliativos, como em: “como eu não
tinha troca:do, faltou DOIS reais. A senhora tem que tirar DOIS reais a mais esse
mês” (linhas 99 a 101) e “.hh tadinho” (linha 102).
Nas linhas 75 e 76, Thatiana torna relevante o fato de que a aparência de
Adomar alterou, e essa alteração se dá após o recebimento do benefício assistencial
que corresponde a “um salariozinho mínimo”. Ora, o uso reiterado de diminutivo e os
contornos entoacionais sinalizam avaliações encaixadas por parte da narradora, a
qual constrói relação de afeto pelo reconhecimento do sofrimento do Outro: pouco
recurso financeiro foi capaz de deixar Adomar “tão bonitinho agora” (linhas 85 e 86)
por se tratar de uma questão de “<dignida:de HUMANA> mesmo, porque o homem
mudou <até o VISUAL> dele” (linhas 119-120).
Assim, a narrativa que emerge na linha 90 sobre o pagamento de honorários
advocatícios e a importância dada ao valor de “DOIS” reais, alinha-se à defesa do
posicionamento afetivo de Thatiana e evidencia o sofrimento de Adomar em virtude
da situação socioeconômica a que está inserido. Bem assim, observa-se um fluxo
em cadeia de alinhamento dos demais participantes no que tange a condição do
cliente: “.hh tadinho”; “corta o coração da gente, né!?”; “corta o meu coração”; “ele é
muito bonzinho, menina!”; “É, ele é sim” (linhas 102, 103, 110, 113 e 114,
respectivamente).
Assim, há uma relação mútua de envolvimento dos participantes àquilo que é
considerado duradouro (classe econômica) e importante para o outro – no caso, sua
saúde e condição social, a partir de uma forte dramatização indiciada por
sequências de ações dramáticas trazidas pela advogada em narrativa
argumentativa. Ao contar a história de Adomar, Thatiana socializa a experiência
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individual, que é generalizada por Jader (“O Luiz, né, Thatá!? Todos eles são assim.
Interessante, né!?”, linhas 115-116). O grupo, por seu turno, ao participar da
narração por meio de avaliações coordenadas, estabelece similaridades nos 414

julgamentos compartilhados, dimensionando um reconhecimento intersubjetivo.


O trabalho conjunto de construção da narrativa demanda a imposição de um
desenho interacional próprio imposto pela audiência, a qual poderá participar
interrompendo, corrigindo, conarrando. Coates (2005, p. 90) denominou
“conarrativa” o fenômeno que nada mais é que uma história contada de modo
articulado; articulação esta que só é possível em virtude de os participantes se
conhecerem muito bem e partilharem sobre o tema em questão, estando, pois, aptos
para conarrarem uma história. As contribuições feitas neste tipo de narrativa
colaborativa frequentemente são marcadas por elocuções contínuas e falas
sobrepostas que se unem (COATES, 2005, p. 91).
Norrick (2007), por seu turno, entende que neste tipo de narrativa
conversacional tão logo os interlocutores sejam ratificados como conarradores
passam a ser coautores da história, auxiliando na condução da história, na estrutura
e no ponto da narrativa. Além de colaborar com a construção da narrativa, os
interlocutores também se envolvem em sua finalização, haja vista que as narrativas
são ações cooperativas.
Parece que há um certo consenso entre os pesquisadores que lidam com
narrativa enquanto forma de organização do discurso para a ação no mundo social –
desempenhando neste processo construções identitárias – de que contar histórias é
um meio de fazer sentido da vida (BRUNER, 1990) e meio pelo qual somos
construídos no mundo social. Nesse sentido, as narrativas assumem o papel de
instrumento organizador do discurso e de construção de identidades sociais. Por
meio das narrativas as pessoas relatam experiências e se engajam discursivamente,
construindo a si e aos outros, de onde se infere a natureza ontológica das narrativas
tendo em vista que a vida social é historiada na narrativa (MOITA LOPES, 2001).
Nesse mesmo sentido, contar histórias corresponde a um modo de construir
realidades sociais e controlar a realidade dos interlocutores. Será a análise das

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práticas narrativas que possibilitará o acesso do analista à socioconstrução das


identidades sociais no momento de sua realização.
415

Para (não) finalizar


Contar histórias é uma atividade central em nossas vidas, exige um trabalho
extra e um engajamento interacional interpessoal. Mais do que isso, contar histórias
na conversa cotidiana vem a ser a forma primordial de narrativa (GARCEZ, 2001). É
através da contação de histórias que organizamos o mundo, bem como é por meio
dela que também mantemos a organização social, as crenças, as estruturas de
poder, e estabelecemos relações de intersubjetividade. Ora, contar uma história é
construir discursivamente uma experiência; experiência esta que construímos a
partir de um estoque discursivo e de uma tecnologia da conversação, a qual
corresponde a todo um acervo de recursos e técnicas.
No estudo em apreço foram analisadas narrativas que emergem de uma
conversa em situação de fala-em-interação em almoço entre seis advogados que
trabalham no mesmo escritório sobre quais são os critérios que norteiam a
consagração ou não de um acordo judicial. Para tanto, o sofrimento do Outro é
trazido à tona como mote propulsor do posicionamento dos profissionais perante
dada questão, numa construção de ética de grupo que tenciona a humanização das
relações judicializadas.
Ao conarrarem experiências vivenciadas pelo grupo, valendo-se de elementos
semânticos, sintáticos e prosódicos para envolver a ouvinte endereçada das
segundas histórias, observou-se o exercício de construção de uma memória
colaborativa que desvela e (re)cria a identidade do nós.

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WINKIN, Yves. A nova comunicação. Da teoria ao trabalho de campo. São Paulo:


Papirus Editora, 1998.

Anexos

Convenções de Transcrição (adaptadas de estudos da Análise da Conversa [Saks,


Schegloff e Jefferson, 1974], com incorporações de Loder e Jung, 2009)
Tempo
... Pausa não medida
(2.3) Pausa medida
(.) Pausa de menos de 2 décimos de
segundo
Aspectos da produção da fala
. Entonação descendente
? Entonação ascendente
, Entonação intermediária, de
continuidade
- Parada súbita
Sublinhado Ênfase em som
MAIÚSCULA Fala em voz alta ou muita ênfase
◦palavra◦ Fala em voz baixa
>palavra< Fala mais rápida
<palavra> Fala mais lenta
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: ou :: Alongamentos
[ ] Fala sobreposta
 Som mais agudo do que os do entorno
418
 Som mais grave do que os do entorno
Hh Aspiração ou riso
.hh Inspiração audível
Formatação, comentários, dúvidas
= Elocuções contíguas, enunciadas sem
pausa entre elas
( ) Fala não compreendida
(palavra) Fala duvidosa
(( )) Comentário do analista, descrição de
atividade não vocal
Outros
“palavra” Fala relatada

EIXO: Estudos linguísticos: língua estrangeira moderna

ESTUDO DOS RÓTICOS EM CODA SILÁBICA NO


FALAR DE MORRETES, NOVA LONDRINA E
GUARAPUAVA
Róticos en coda silábica en Blumenau,
Santa Catarina

Bianca Reinere Alves (G/UEL)


Dircel Aparecida Kailer (PQ/UEL)
Édina de Fátima Almeida (PG-UEL)

RESUMO: Seguindo os pressupostos teórico-metodológicos da Geolinguística e da Sociolinguística


Variacionista, o presente estudo tem como objetivo investigar as variantes dos /R/ em coda silábica
que predominam em uma cidade do interior de Santa Catarina (Blumenau). Averiguaremos, em
dados coletados pela equipe do Projeto Atlas linguístico do Brasil (ALiB), na fala de 4 informantes (2
homens e 2 informantes mulheres com Ensino Fundamental incompleto, estratificados conforme a
localidade, sexo, idade, escolaridade, que sejam nascidos na localidade pesquisada e filhos de
pessoas também da região. Examinaremos o papel do estilo de produção de fala para desta forma

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descrevermos o predomínio do uso de uma variante mais coloquial ou mais formal, bem como a
interferência das características socioculturais dos informantes no uso dos róticos nas referidas
localidades.
419
PALAVRAS-CHAVE: Róticos. Santa Catarina. ALiB.

Resumen: Siguiendo los presupuestos teórico-metodologicos de la Geolinguística y de la


Sociolinguística Variacionista, el presente estudio tiene como meta investigar las variantes de /R/ en
coda que predominan en una ciudade del interior de Santa Catarina (Blumenau). Vamos a
comprobar, en los datos recogidos por el equipo del Proyecto Atlas Lingüístico del Brasil ( ALIB ), la
habla de 4 informantes hombres y 2 informantes mujeres con educación primaria incompleta,
estratificada por ubicación, género, edad , nivel educativo y nacido en la localidad buscado y los
padres también de la región . Vamos a examinar el estilo de producción del habla de los informantes,
para describir de esta manera la prevalencia del uso de una variante más formal o más coloquial, así
como la interferencia de las características socioculturales de los informantes en el uso de los róticos
en estos lugares.

PALABRAS-CLAVES: Róticos. Blumenau, Santa Catarina. ALiB.

Introdução

Pensar em língua portuguesa é o mesmo que pensar nas variações


existentes em todo o território linguístico, para isso, faz-se necessário identificar as
variações existentes na língua de uma comunidade, verificar as condições em que
elas se apresentam, para então poder sistematizá-la. Assim sendo, deve-se
considerar o conhecimento de quais são os fatores que favorecem esta variação, se
são de natureza linguística e/ou de natureza social, além de estabelecer a
correlação entre eles. (Labov,1972). Compreende-se como variáveis linguísticas, as
variáveis internas à língua e as variáveis não-linguísticas, ou seja, variáveis de
natureza social como sexo/gênero, idade, escolaridade, classe social, região, dentre
outras.
Silva-Corvalán (2001), a esse respeito, enfatiza a necessidade de incluir,
nesta correlação de fatores linguísticos e sociais, os diferentes sistemas de
organização política, econômica, social e geográfica de uma sociedade, assim como
os fatores individuais que apresentam repercussão sobre a organização social, e os
aspectos históricos e étnico-culturais, sem deixar de lado a situação de interação em
que ocorrem os feitos linguísticos, visto que os indivíduos variam o seu modo de
falar conforme a situação em que se encontram.

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Muitos estudiosos (BRESCANCINI e MONARETTO, 2008; AGUILERA e


KAILER, 20012; ALMEIDA e KAILER, 2013, dentre outros) salientam que o uso dos
róticos é influenciado pelos fatores linguísticos, sociais e estilísticos, perpassando 420

desta forma pelos campos da Fonética, da Fonologia e da Sociolinguística.


O interesse principal da Fonética e da Fonologia, em relação ao /R/, deve-se,
principalmente, à diversidade de formas fonéticas empregadas em sua realização,
pois é considerado um fenômeno que retrata a mudança linguística no Brasil, além
de apresentar um processo de variação muito produtivo, independente da posição
(inicial, ou medial e final de palavra), o /R/ se realiza de maneira diversificada na
língua. Por este motivo, muitos estudos de cunho sociolinguístico têm procurado
esclarecer a relação entre o uso das variantes róticas e os fatores linguísticos e
extralinguísticos.
O presente estudo, pautado, em resultados de pesquisas relacionadas aos
róticos no Sul do Brasil, tem como objetivo investigar as variantes dos /R/ em coda
silábica que predominam em cinco localidades do interior de Santa Catarina
(Blumenau). Averiguaremos a fala de 4 informantes, nascidos na localidade
pesquisada. Esses informantes foram estratificados, pela equipe do ALiB (Atlas
Linguístico do Brasil), conforme a idade, sexo e escolaridade. Além de investigar as
variantes do /R/ em coda silábica, examinamos, também, as variáveis linguísticas e
sociais que possam interferir no uso das variantes desse fonema.

Alguns estudos sobre o /R/ no Português Brasileiro (PB)

Muitos estudiosos da área têm investigado o uso dos róticos no português do


Brasil (PB), tais como Callou, Moraes e Leite (1996); Monaretto (1997, 2002);
Brescancini e Monaretto (2008); Silva (2008); Martins (2006); Silva-Brustolin (2010);
Ferraz (2005); Monguilhott (2007); Ribeiro (2011); Silveira (2007) , Aguilera (1999),
Aguilera e Silva (2010) Aguilera e Kailer (2012), Almeida e Kailer (2013) dentre
outros. Sendo assim, faremos uma breve revisão da classificação empregada ao
fonema /R/ em posição pós-vocálica e, em seguida, apresentaremos alguns estudos
que tratam dos róticos em Santa Catarina.

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A literatura associa a realização dos róticos do PB, a dois aspectos


importantes: o primeiro está relacionado, com a variedade dialetal e o segundo ao
contexto linguístico em que se apresenta, sendo de extrema importância o estudo 421

destes dois aspectos de forma correlacionada, para compreendermos o processo de


variação e mudança linguística.
Cabe lembrar que, no português, assim como em outras línguas europeias,
por exemplo, há muito discute-se a existência dessa oposição fonológica entre um
/R/ brando com apenas uma vibração e do /R/ forte com várias vibrações. A esse
respeito Malmberg (1954) declara que existem dois tipos de /R/ como podemos ver a
seguir:

Há duas espécies de R, do ponto de vista do órgão que o articula: o r


anterior ou apical e o r posterior ou uvular. O primeiro é pronunciado de tal
forma que a ponta da língua, tocando os alvéolos, é empurrada para frente
pela corrente de ar. Graças à sua elasticidade, a língua regressa à primeira
posição, e o mesmo movimento vai-se repetindo quatro ou cinco vezes
seguidas num r múltiplo. É a este r que frequentemente se chama r “rolado”.
MALMBERG (1954, p. 82-86)

Câmara Jr (2000), também defende a existência de dois fonemas no


português: um /R/ fraco ao lado de um /R/ forte e que com a passagem das
consoantes latinas para o português, as geminadas desapareceram, restando
apenas rr, que, mesmo não apresentando mais a articulação geminada, manteve-se
diferente do r simples intervocálico. Sendo assim, conforme Câmara Jr, há dois
fonemas no Português Brasileiro (PB) que se opõem apenas em posição
intervocálico.

Já nas vibrantes a língua vibra, quer num só golpe junto aos dentes
superiores, para o /R/ brando, quer para o /R/ forte em golpes múltiplos
junto aos dentes superiores, ou em vibrações da parte dorsal junto ao véu
palatino, ou em vez da língua há a vibração da úvula, ou se dá além do
fundo da boca propriamente dita uma fricção.” (Câmara, 1995, 49).

Sobre a realização do fonema /R/, Bisol (1999) declara, que são múltiplas as
variantes para o (r) pós-vocálico: vibrante [r], fricativa, velar [x], uvular [R], aspirada
[h], vibrante simples [ɾ], ou um som retroflexo [ɽ]. Silveira (2010) também constata
estas variantes para os róticos em posição pós-vocálica e ressalta a importância do

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estudo da variante, apagamentov, isto é, o cancelamento do /R/ em alguns contextos


como em verbos no infinitivo (botar ~ botá, varrer ~ varrê) e em alguns não-verbos
como (maior ~ maió, menor ~ menó). 422

Ribeiro (2011), por sua vez, corrobora Silva-Corvalán (2001), ao declarar que
as diferentes formas de realização do /R/ são condicionadas pelo contexto no qual a
assimilações de sonoridade podem ocorrer, dependendo igualmente da forma de
uso ou do sotaque predominante nas diferentes regiões do Brasil.
A partir desta breve retomada, foi possível observar que a pronúncia do
fonema /R/ em posição pós-vocálica pode manifestar-se de diversas formas
dependendo do contexto em que está inserido e das regiões brasileiras.
A seguir, apresentamos alguns estudos sobre os róticos em coda silábica em
Santa Catarina.

Alguns estudos sobre os róticos em Santa Catarina

Monaretto (1997) ao estudar o /R/ em três capitais do Sul do Brasil (Curitiba


(PR), Florianópolis (SC) e Porto Alegre (RS)), em coda silábica e em ataque, com
dados do projeto VARSUL, estudou a fala de informantes estratificados quanto à
distribuição geográfica, gênero, faixa etária e níveis de escolaridade. A referida
autora investigou a atuação das variáveis linguísticas: posição na sílaba, conforme
os cinco fatores: ataque, em início de palavra, ataque, no interior de palavra,
precedido por consoante, entre vogais, na coda em interior de palavra e na coda em
final de palavra e a atuação da variável extralinguística etnia e constatou que os
contextos mais relevantes foram dentre os linguísticos, a posição na sílaba e dentre
os extralinguísticos a procedência geográfica.
Com isso, Monaretto (1997) conclui que em Porto Alegre e em Curitiba os
informantes usam as quatro variantes, mas em Curitiba predomina a retroflexa e a
vibrante anterior (tepe), em Porto Alegre predomina a variante tepe, já em
Florianópolis, predomina a posterior, também seguida do tepe. Vale ressaltar que,
segundo a autora, em Porto Alegre, das ocorrências totais dos róticos, 21% foram
da retroflexa, já em Florianópolis, houve apenas um caso desta variante.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Em um estudo semelhante ao de Monaretto (1997), Borba da Silva (1997)


investigou os róticos em posição de coda (contexto final e medial de palavra), ele
observou a existência do tepe alveolar, da fricativa velar, da fricativa glotal e do 423

apagamento, na região Sul, mais especificamente, em Florianópolis. A mesma


constatou que dentre os fatores linguísticos, o apagamento do rótico predominou
com 84% na posição final absoluto; 77% em final de palavra seguida de consoante e
79% em posição intervocálica. Borba da Silva (1997) também verificou que, de modo
geral, a fricativa glotal é a mais recorrente entre os falantes da cidade de
Florianópolis, o tepe alveolar é a variável mais frequente na fala dos informantes
acima de 70 anos.
Monguilhott (1998), que também utiliza dados do projeto VARSUL, investigou
as variantes do /R/ no intuito de constatar quais delas se sobressaíam entre os
falantes das diversas etnias em quatro cidades catarinense (Florianópolis, Lages,
Blumenau e Chapecó). A partir dos resultados obtidos, a mencionada autora,
verificou que os falantes de Florianópolis tendem a usar a fricativa (93%) enquanto
os informantes de Lages (86%), Blumenau (71%) e Chapecó (70%) privilegiam o uso
da variante tepe. Já em relação a variante retroflexa, a autora declarou que esta foi a
mais utilizada na fala dos informantes de Chapecó (29%), contra 0% em
Florianópolis, 8% em Chapecó e 13% em Lages.
Monaretto (2000) ao investigar o apagamento dos róticos em coda silábica
final, no Sul do Brasil, entre outras coisas, constatou que, nas 36 entrevistas
analisadas, seus resultados indicavam maior realização dos róticos do que
apagamento deste fonema.
Brescancini e Monaretto (2008), ao analisar alguns estudos sobre os róticos
na região Sul, destacam, primeiramente, que por não focalizarem sempre a mesma
variante ou a mesma posição na sílaba, alguns estudos mesmo fazendo uso da
amostra do VARSUL apresentam-se díspares. Sobre os róticos em coda silábica no
Sul do país, as autoras destacam que em posição final de palavra, a ocorrência mais
predominante é a do apagamento e, em coda medial, a variante mais recorrente é o
tepe.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Em um estudo das variantes do fonema /R/ que predominam na fala do Sul do


Brasil (Londrina - PR, Pato Branco - PR, Lages – SC e Blumenau – SC), Silveira
(2010), também com dados do VARSUL, verificou que o apagamento se demonstrou 424

muito recorrente nos verbos e não-verbos. A mesma também observou uma


porcentagem muito baixa, no uso das vibrantes posterior e anterior nas cidades
pesquisadas e constatou grande ocorrência da variante tepe [ɾ] nas quatro
localidades, o que confirmou os dados de Monaretto (1997), que também observou
que o tepe [ɾ] se mostrou a variante preferida na fala da Região Sul do Brasil.
Silveira (2010), tratando do Paraná, também constatou que o retroflexo [ɽ] é a
variante mais utilizada neste Estado (23% em Pato Branco e 40% em Londrina) em
comparação com as cidades de Santa Catarina com apenas (6% em Lages e 27%
em Blumenau). Já em relação à posição que o /R/ ocupa na sílaba, Silveira
percebeu que a frequência de uso das variantes varia conforme o grupo geográfico,
como por exemplo em: coda medial (carta e porta) Lages e Blumenau preferem o
tepe [ɾ] e Londrina e Pato Branco utilizam mais o retroflexo [ɽ] ; já em coda final (dor,
mulher), há o predomínio do apagamento do /R/, embora ainda ocorra em pequena
porcentagem o tepe [ɾ] e o retroflexo [ɽ] nas quatro localidades.
Almeida e Kailer (no prelo), investigam, com dados do projeto ALiB, o /R/ em
coda silábica em quatro localidades de Santa Catarina (São Miguel do Oeste,
Concórdia, São Francisco do Sul e Porto União) e verificam que os contextos
linguísticos exercem pouca influência no uso dos róticos nas quatro localidades.
Sobre as variáveis extralinguística, as autoras salietam que, em Porto União, a
variante retroflexa é praticamente categórica, em são Miguel do Oeste, há duelo
entre as duas variantes retroflexa e tepe, onde a primeira está vencendo; já em
Concórdia e em São Francisco do Sul, a variante tepe predomina. Quanto aos
informantes, as autoras destacam que, no falar dos jovens, predomina a variante
retroflexa, e que os homens da faixa etária acima de 50 anos fazem uso
preferencialmente da variante retroflexa, enquanto as mulheres, da mesma faixa
etária, preferem a variante tepe. Por fim, as autoras destacam que o contexto mais
relevante para a realização de uma ou de outra variante do /R/ em coda silábica é a
região.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Neste estudo, como os autores anteriormente mencionados, também


investigamos o /R/ em coda silábica na região Sul, especificamente em Blumenau,
interior de Santa Catarina. Além de averiguar as variáveis linguísticas e sociais que 425

possam interferir no uso das variantes desse fonema, buscamos identificar a


provável interferência do estilo de produção de fala no uso do /R/ em coda silábica
no discurso monitorado(entrevista), menos monitorado ( relato) e mais monitorado
(leitura de texto).
Antes de procedermos à análise, destacamos que Blumenau, terceira maior
cidade de Santa Catarina, situa-se a Nordeste deste Estado, conforme podemos ver
no mapa 1. Seus primeiros moradores eram os índios carijós e xokleng que foram
escravizados por colonos portugueses. Posteriormente, recebeu muitos imigrantes
alemães e italianos, atualmente, “pouco mais da metade da população constitui-se
de descendentes de alemães”, segundo Silveira (2010, p.19).

Mapa 1: Localização de Blumenau

Metodologia

Utilizando os dados coletados entre os anos 2001 e 2002 pela equipe do Atlas
Linguístico do Brasil (ALiB) e ancorados nos pressupostos teóricos e metodológicos
da Geolinguística e da Sociolinguística Variacionista, investigamos as variantes dos

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/R/ em coda silábica na fala dos 4 informantes, 2 homens e 2 mulheres,


estratificados quanto à faixa etária (18 a 30 anos (faixa etária I) e 50 a 65 anos (faixa
etária II)), todos nascidos em Blumenau e filhos de pessoas da região. 426

Primeiramente, recortamos os itens lexicais de nosso interesse (que


apresentaram róticos em coda silábica interna e em coda silábica externa) do
Questionário Fonético-fonológico (QFF), do relato e da leitura de texto.
Em seguida, esses itens lexicais foram codificados conforme as variáveis
linguística (classe morfológica, vogal precedente, modo e ponto de articulação
seguintes, posição na coda silábica), variáveisextralinguística (sexo, localidade,
idade) e estilo de fala. Após a referida codificação, os dados foram submetidos
análise estatística por meio do programa Goldvarb X que fornece resultados em
percentual e em peso relativo.
À medida que o programa fornecia os resultados em percentual, alguns
ajustes foram necessários, tais como: cruzamentos e mais rodadas, devido aos
amálgamas e/ou exclusões por conta de nocautes. Após esses ajustes, o programa
indicou quais eram as variáveis linguísticas e extralinguísticas mais relevantes
quanto ao uso dos róticos na referida localidade.v

Resultados

Primeiramente, apresentamos os resultados em percentual referentes às


variantes do /R/ em coda silábica interna em Blumenau, em seguida, os resultados
em percentual e peso relativo referente às duas variantes mais produtivas.

Gráfico 1: Róticos em coda silábica interna em Blumenau

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427
0,6

29,2

62,9

7,1

Tepe Retroflexo Glotal Vibrante múltiplo

De acordo com o gráfico 1, podemos observar que a variante tepe (62,9%) é


a predominante em coda silábica interna de nomes e de verbos seguida pela
variante glotal (29,2%). A variante retroflexa (7,1%), por sua vez, aparece
timidamente e a vibrante múltipla é praticamente inibida em Blumenau.
É interessante observamos que este resultado, de modo geral, confirma, em
parte os observados por Monaretto (1997) e por Silveira (2010) que também
identificam o tepe como a variante mais produtiva na referida localidade.
A seguir, apresentamos os resultados dos contextos considerados mais
relevantes, pelo programa Goldvarb X, quanto ao uso das variantes mais produtivas
em Blumenau (tepe e glotal). Destacamos que os pesos relativos referem-se à
variável dependente glotal, ela foi escolhida por que parecer ser a inovadora na
referida localidade.

Tabela 1- Róticos em coda silábica interna de nomes e verbos- Glotal & sexo
Variante glotal & sexo Total/Oco % Peso relativo
Homens 158/2 3,4% 0,236
Mulheres 83/43 51,8% 0,695

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É interessante observarmos que as mulheres são mais favoráveis ao uso da


variante glotal (0,695) e os homens são bastante desfavoráveis (0,236). Como
cruzamos glotal e tepe, podemos ver, portanto, que os homens usam mais a 428

variante tepe. Segundo Labov (1972), as mulheres são mais conservadoras, mas
quando se trata de variante de prestígio, elas lideram a mudança linguística. Sendo
assim, podemos pensar que a glotal é a variante de maior prestígio em Blumenau.

Tabela 2: Róticos em coda silábica interna de nomes e verbos- Glotal & Faixa
etária
Glotal & Faixa etária Total/ Oco. % Peso
Relativo
Faixa etária I (18 a 30 91/44 48,4% 0,766
anos)
Faixa etária II 50/1 2% 0,103
(De 55 a 65 anos)

Dentre outras variáveis, a faixa etária possibilita-nos verificar se há uma


mudança em curso ou uma variação estável quanto ao uso de uma ou de outra
variante, neste caso, da glotal e do tepe que estão coexistindo no falar dos
informantes investigados.
A tabela 2, sobre o uso da glotal em coda silábica interna de nomes e verbos
mostra-nos os informantes da faixa-etária I sendo bastante favoráveis ao uso da
variante glotal (0,766) e os informantes da faixa etária II sendo muito desfavoráveis
(0,103), na verdade, eles praticamente inibiram o uso desta variante. Se
compararmos os resultados da tabela 1 e da tabela 2, podemos dizer que, apesar de
nossa amostra ainda não ser robusta, ela nos dá indício de uma mudança linguística
em curso quanto ao uso da variante glotal, indicando uma tendência a
posteriorização do /R/ em coda silábica no falar de Blumenau.
A seguir apresentamos os resultados em percentuais sobre todas as variantes
em coda silábica externa de verbos e, em peso relativo, apenas as duas variantes
mais recorrentes (tepe e ausência do /R/ em coda silábica).

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Gráfico 2: Róticos em coda silábica externa de verbos em Blumenau


429

63,8

34

1,1 1,1
Tepe Retroflexo Vibrante múltiplo Ausência do /R/

Os resultados do gráfico 2 mostram o contexto de coda externa de verbos


como favorável à não realização do /R/ em coda silábica, pois temos 63,8% de não
realização do /R/. Já a variante tepe apresenta 34% de ocorrências e as demais
praticamente não ocorrem (1,1%).

Tabela 3- Róticos em coda silábica externa de verbos- Ausência & Extensão


silábica
Ausência & Extensão silábica Total/Oco % Peso Relativo
Dissílabos 54/25 46,3% 0,640
Trissílabos 34/11 32,4% 0,286

Como separamos coda externa de coda interna e verbos de nomes, contextos


estes mais favorecedores da não realização do /R/ em coda silábica, neste estudo,
tivemos como primeiro contexto selecionado como mais relevante para a ausência

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do /R/, a extensão silábica, sendo os verbos dissílabos (0,640) (sair ~ sai, montar ~
monta) os mais favoráveis e os trissílabos (0,286) (perguntar ~pergunta, encontrar
~encontra) (menos favoráveis à aplicação da regra em estudo. 430

O segundo contexto selecionado pelo programa Goldvarb X como relevante à


ausência do /R/ em coda silábica de verbos foi o estilo de fala, conforme vemos a
seguir.

Tabela 4- Róticos em coda silábica externa de verbos- Ausência & Estilo de


produção de fala
Ausência & Estilo de Fala Total/Oco % Peso Relativo
Menos 24/24 100% 1,00
monitorado(Relato)
Monitorado (Entrevista) 43/28 65,1% 0,797
Mais monitorado( 45/8 17,8% 0,213
Leitura)

Como já esperávamos, o discurso menos monitorado, menos formal, o relato,


foi categórico no favorecimento à aplicação da regra de não realização do /R/,
seguido da entrevista (0,797). Já a leitura (0,213), momento de maior
monitoramento, foi bastante desfavorável. Tais resultados estão consoantes ao que
Labov (1972) fala a respeito do estilo de fala, ou seja, quanto mais o informante se
envolve emocionalmente com o assunto relatado, mais deixa transparecer
características linguísticas de seu vernáculo, neste caso, a não realização do /R/ em
coda silábica externa de verbos.

Gráfico 3: Róticos em coda silábica externa de nomes em Blumenau

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431
67,9

7,1

10,7
14,3

Tepe Retroflexo Glotal Ausência do /R/

Como tivemos apenas três casos de ausência de /R/ em coda silábica externa
de nomes, sendo os três na leitura, na faixa etária II, duas produzidas pelas
mulheres e uma por um informante homem, não fizemos a rodada binominal das
variantes mais produtivas, neste caso, do Tepe eda ausência do /R/ em coda
silábica. Portanto apresentamos apenas os resultados em percentuais, que também,
mostram-nos que no contexto de coda silábica externa de nomes, a não realização
/R/ apresenta um percentual bastante baixo (14,3%) se comparada aos resultados
do gráfico 2, em que 63,8% das ocorrências não apresentaram o /R/ em coda
silábica. A variante tepe apresenta-se majoritária (67,9%) seguida das poucas
ocorrências da glotal (10,7%) e da retroflexa (7,1%). Esses resultados encontram
respaldo em estudos como os de Monaretto (1997, 2002), Aguilera e Kaler (2012),
Almeida e Kailer (2013, no prelo), que também observam que os nomes
desfavorecem a ausência do /R/ em coda silábica.

Algumas considerações

Concluímos, com o referido estudo, que a variante predominante em coda


interna de nomes e verbos e em coda externa de nomes em Blumenau é o tepe. Já

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em coda externa de verbos, a ausência do /R/ é a regra na referida localidade.


Quanto às variáveis extralinguísticas sexo e faixa etária, verificamos que os homens
e os informantes da faixa etária II fazem mais uso da variante tepe, enquanto as 432

mulheres e os informantes da faixa etária I, apesar de também usarem a variante


tepe, são favoráveis à variante glotal.
A ausência do /R/ segue os resultados obtidos por outros estudos (ALMEIDA
e KAILER, 2013; AGUILERA e KAILER,2015), ou seja, é mais recorrente em coda
externa de verbos no infinitivo.
Diante desses resultados, mesmo que preliminares, pois este estudo faz
parte de um projeto maior que continua em andamento, podemos levantar a
hipótese de que o uso dos róticos em coda silábica em Blumenau dá indícios de
uma possível mudança em progresso quanto ao uso da variante glotal, pois está
sendo mais usada por informantes mais jovens e pelas mulheres. Silva (1997), ao
afirmar que o tepe alveolar predomina no falar de informantes com idade acima de
70 anos, reforça nossa hipótese.

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EIXO: LINGUAGEM LITERÁRIA

A Cleópatra de Shakespeare sob um olhar


feminino
The Cleopatra by Shakespeare from a feminine perspective

Regiane Maria Ferreira (UEPG-PG)v


Marly Catarina Soares (UEPG) v

RESUMO: A mulher foi por muito tempo, na literatura, uma figura a sombra de uma representação
masculina. “E o que é masculino torna-se feminino e o desejo do impossível torna-se possível do
desejo”. (BRANDÃO, P.19). Num universo em que a mulher não tinha espaço para se expressar, sua
forma de viver na sociedade foi apresentada nas vozes de autores do sexo masculino. Neste viés, o
presente trabalho, que é parte da pesquisa de mestrado em andamento, e tem como principal
objetivo discutir a partir da perspectiva de uma leitura feminina a representação da personagem
Cleópatra, na obra Antônio e Cleópatra, construída por William Shakespeare, a partir do viés
masculino. Para isso, além de estudo bibliográfico, far-se-á uma análise da peça “Antônio e
Cleópatra” de Shakespeare. Espera-se com este trabalho entender melhor a figura feminina de
Cleópatra, retratada em uma obra ficcional e como Cleópatra e as relações de poder e domínio entre
os gêneros são interpretados em uma leitura feminina. Almeja-se ainda contribuir para outros estudos
neste campo.

PALAVRAS-CHAVE: Leitura feminina. Relações de poder. Cleópatra

ABSTRACT: The woman was for a long time, in literature, a figure behind the masculine
representation. “And what is masculine becomes feminine and the desire of the impossible becomes
possible of the desire”. (BRANDÃO, P.19). In a universe where the woman did not have space to
express by herself, its form of living in the society was presented in the voices of masculine authors. In
this bias, the presente article is part of the research in progress, and has as main objective to argue
from the perspective of a feminine reading the representation of the Cleópatra character, in the
Shakespeare’s work , Antonio and Cleópatra, from the masculine bias. For this, besides
bibliographical study, an analysis of the play “Antonio and Cleópatra” by Shakespeare. One expects
with this work is to understand the female figure of Cleópatra, represented in the fiction and as
Cleópatra and the relations of authority and domain between genres is interpreted in a feminine
reading. Look forward to contribute for other studies in this field of study.

KEYWORDS: Feminine reading, relations of authority, Cleopatra.

Introdução

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A mulher na literatura foi, na maioria das vezes, representada pelo viés de um


autor masculino. A crítica literária feminista discute sobre esses aspectos. Em Toril
Moi (2006, p. 54, tradução nossa),“(...) no inicio dos anos 70, a maior parte dos 436

cursos ministrados sobre a presença da mulher na literatura estavam focados em


estudos de estereótipos femininos em obras de autores do sexo masculinov". Por
muito tempo essa foi uma realidade, a representação da figura feminina se dava
pela perspectiva de um autor masculino, seus desejos, seus anseios, sua visão da
mulher.
Este trabalho fará, portanto, uma análise da obra Antônio e Cleópatra (1609),
escrito por William Shakespeare, poeta e dramaturgo inglês, que dentre tantos
clássicos renomados, destacam-se: Ricardo III (1592), Hamlet (1601), Romeu e
Julieta (1596), Otelo (1604), Rei Lear (1606) e Macbeth (1607).
Shakespeare é um autor que sabia como trabalhar com a figura humana,
segundo a crítica de teatro e escritora Barbara Heliodora (2008, p. 8), ele jamais se
voltava para lições de moral na construção de seus personagens, “prefere deixar
bem claro que o homem é sempre responsável por suas ações e que toda ação tem
consequências”.
Mesmo com essas características, a figura de Cleópatra foi escrita sob a
perspectiva de um autor masculino, cabe à reflexão que a peça de teatro é
composta por quarenta e duas cenas, Antônio e Cleópatra estão juntos em treze
cenas, Cleópatra aparece em quatro cenas sem Antônio e ele aparece em onze
cenas sem a presença da rainha (HELIODORA, 2000). Portanto, embora a
personagem de Cleópatra tenha espaço e falas concretas na obra, sua presença em
cena é muito inferior a de Marco Antônio.
O texto teatral exige mais interpretação de seu leitor, por não ter a presença
de um narrador para esclarecer determinados aspectos do texto, como os
sentimentos e ações dos personagens, exige-se a imaginação de quem lê
(HELIODORA, 2008, p. 33). Por isso, a reflexão sobre o papel da mulher pode ser
mal interpretada neste tipo de texto, sem uma reflexão sobre o papel da mulher na
obra, por não ficar claro as intenções do autor sem um narrador.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A peça explora um romance que acontece em um clima tenso e de guerra, no


entanto, as personagens vivem um amor adulto, consciente de seus riscos, nesse
contexto aparece a figura feminina, romântica, dramática de Cleópatra, capaz de 437

viver ou morrer pelo bem de seu homem, mesmo diante de seus servos, ela
demostra fragilidade e desequilíbrio, quando trata-se de Marco Antônio.
Para buscar comprovar as análises de determinados trechos da obra, tomou-
se como aparato teórico a crítica literária feminista e a crítica teatral, busca-se
entender melhor a figura de Cleópatra na obra, através de uma leitura feminina, as
formas de representação da imagem feminina e como ela é recebida por uma leitora.

Considerações sobre a imagem feminina construída por um autor masculino

Amar uma figura composta por uma literatura masculina é o mesmo que amar
o eco de uma voz de um autor, em que repetidas vezes ilustram uma imagem
figurativa, criada por um homem. Branco e Brandãov (1989, p, 18) assim descrevem:
“De sua repetição nascem todos os equívocos e paradoxos que ilustram a fala da
mulher em textos feitos por homem”.

É no espelho da folha branca do texto que surge esta figura de mulher que
circula no imaginário literário e social. Entretanto, a idealização feminina,
qualquer que ela seja, sempre cumpre a sentença de morte da mulher. Se
ela aceita este lugar, ela aceita sua petrificação, por mais bela e perfeita
que seja a estátua onde ela se erige: aí é o lugar da alienação de seu
desejo. (BRANDO; BRANDÃO; 1989, p.18-19).

Como em Metamorfoses de Ovídio, trazido por uma leitura de Branco e


Brandão (1989), em que Narciso e Eco se fazem repetir inúmeras vezes, amar Eco é
amar a incompletude, a sua voz sempre transitando na voz alheia. Assim é a figura
feminina sendo representada sob a perspectiva masculina, a voz do homem que
ecoa a imagem idealizada da mulher.
A leitura feminina crítica é capaz de identificar esses elementos e não
somente em acatar a figura feminina imposta, imaginada e transcrita em uma folha
de papel em branco que aceita o desejo de seu escritor. Já na primeira fase do
movimento feminista começa-se a questionar o papel da mulher leitora, assim para
Bellin (2011, p. 3) essa mulher, “o contrário da mulher que lê uma obra de ficção

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Anais

sem criticar e analisar, nunca se perde nas páginas de um romance, sempre


questionando a herança cultural e literária da qual é tributária”.
Nota-se que não é de hoje a preocupação de uma leitura realizada por uma 438

mulher numa obra masculina, mas este trabalho procura discutir a representação da
figura feminina e de que forma essa imagem é assimilada pela leitora, visto que a
personagem da literatura é uma miragem que surge do desejo de seu criador, sua
idealização da mulher perfeita, com características sobre-humanas, capaz de viver e
morrer, especialmente por amor.
No entanto, a mulher real se depara com uma imagem que somente existe na
ficção, lugar em que é possível se tornar mulher, heroína, fruto de beleza e
perfeição, o que não condiz com a realidade. Branco e Brandão (1989, p. 19)
abordam desta forma: “E esta miragem do feminino vem seduzindo há séculos,
nesses textos onde o narrador ou o poeta são capazes de fazê-lo falar, através do
gesto mágico do deslocamento de vozes”. É a voz do masculino ecoando na figura
representativa da mulher.

O eco da voz masculina na figura de Cleópatra em Antônio e Cleópatra de


William Shakespeare

Antônio e Cleópatra (1609) é uma peça que envolve duas personagens


centrais que se entregam a um amor já na fase adulta, com isso eles são
responsáveis pelos seus atos, suas ações são determinantes para o desfecho da
peça. Shakespeare desde o início do texto traz elementos sobre a construção da
personagem de Cleópatra, ora tida como rameira, ora tida como uma pobre
sofredora pelo amor de um homem casado.
Cleópatra é uma personagem, segundo Bárbara Heliodora (2008, p.71), que
foi possivelmente construída por Shakespeare “caprichosa e de humor tão instável
para que ela pudesse ser trabalhada como um papel de composição”. Pensada, pois
como uma personagem a ser construída por uma atriz, no entanto, no teatro
elisabetano, os papéis femininos não eram interpretados por mulheres, assim,

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

mesmo a espectadora não podia se sentir representada em cena, ao ver um homem


executando as suas tarefas.
Refletindo acerca da leitura feminina, de uma obra teatral, pensa-se sobre o 439

papel que a mulher desenvolve numa literatura masculina. Branco e Brandão (2008,
p. 17), trazem que “o texto literário é sempre confusão de vozes, Babel de desejos,
fascinante equívoco, lido como realidade”. Lido principalmente por mulheres a partir
do surgimento da sociedade burguesa.

Com o surgimento da sociedade burguesa que ampliou a escolarização das


camadas altas e médias da sociedade, e também com o inicio do romance
sentimental no século XVIII, há uma ampliação no universo de leitores,
sendo que as mulheres passam a ser as principais leitoras desses
romances sentimentais, que tratavam de assuntos considerados tipicamente
“femininos”, tais como o casamento por interesse, a conquista de um
grande amor, as decepções amorosas, o ciúme e a infidelidade. As
leitoras femininas, agora com mais oportunidades de escolarização e
consequentemente, de desenvolvimento de hábitos de leitura, se
identificavam com esses temas. (BELLIN, 2011, p. 3).

Embora a obra Antônio e Cleópatra pertença ao período elisabetano, (1558-


1603), a figura feminina sofre decepções amorosas, sabe da infidelidade de Antônio,
pois ele foi duplamente infiel, ele era casado quando se envolveu com a rainha, a
leitora entende aspectos extremamente romantizados na atitude da personagem, o
assunto central da peça é o amor outonal do casal. (HELIODORA, 2014).
Por se pensar em uma perspectiva feminina, é importante ressaltar a
importância que é dada ao imperador romano, a trama segundo Bárbara Heliodora
(2014) inicia com uma fala que situa a leitora sobre o papel definido ao homem na
peça, que é definido por Heliodora (2014, p.324) como “um tema básico da obra: a
visão de Antônio, general e triúnviro romano, transformado por amor e entregue, aos
olhos de Roma, a languidez e a devassidão asiáticas”.

Essa tola paixão do general


Passa dos limites: o seu nobre olhar
Que brilhou sobre tropas guerreiras,
Qual Marte armado, hoje gira e firma
Serviço e devoção de sua mira
Numa testa morena; (...)
Tornou-se o fole e o leque que refrescam
O cio da cigana. (SHAKESPEARE, 2001, P.19).

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

O texto já inicia com a perspectiva dos amigos de Antônio sobre a sua paixão
pela cigana egípcia, da forma como Cleópatra temia que o amado pudesse voltar
para Roma e, principalmente, para os braços de sua verdadeira mulher. 440

CLEÓPATRA

Talvez? Não, com certeza:


Aqui não fica; a tua demissão
Veio de César, então ouve, Antônio.
E o processo de Fúlvia? Ou de César? De ambos?
Chame quem trouxe. Por minha coroa
Está corando, Antônio; e esse sangue
É honra a César; ou é por vergonha
Se Fúlvia grita. (SHAKESPEARE, 2001, 20-21).

Cleópatra, na obra, é em muitos momentos apresentada com uma mulher


submissa, típica figura da mulher apaixonada, dominada pelo amor romântico, a
forma como a personagem é apresentada ao público leitor nem sempre é a mulher
verdadeira. Branco e Brandão (2008, p. 17-18) falam sobre a mulher escrita e a
comparam com um espelho sendo utilizado pelo autor “a heroína literária, romântica,
sempre pronta a ser o desejo de seu herói. E neste espelho do texto, (...) emerge
uma certa miragem da mulher”.
Esse espelho reflete uma concepção masculina da mulher, é o desejo do
autor, o que ele pensa e idealiza a respeito das atitudes, dos sentimentos e das
ações das personagens femininas, enfim, da figura da mulher, o que segundo
Branco e Brandão (2008, p. 18) “aquela tão conhecida nas produções e
subproduções literárias”. Portanto, a leitora ao ter contato com a literatura dessa
forma, assimila e tem de concordar, compactuar com aquela imagem estabelecida.
No entanto, essa mulher representada sob um viés masculino não é a mulher real.

A personagem feminina, construída e produzida no registro do masculino,


não coincide com a mulher. Não é sua réplica fiel, como muitas vezes crê o
leitor ingênuo. É, antes, produto de um sonho alheio e aí circula, neste
espaço privilegiado que a ficção torna possível.

Essa mulher apresentada é fruto da ficção, é um produto manipulado, que é


produzida na imaginação de um homem, que reflete os desejos do criador, ou seja,
o autor tem nas mãos o poder de fabricar sua criatura da forma como ele pretende,

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deseja e anseia. Branco e Brandão (1989, p. 19) assim descrevem “E o que é


masculino torna-se feminino e o desejo do impossível torna-se possível do desejo”.
Apesar de Shakespeare ser considerado um autor que se preocupou com 441

questões humanas nas construções de suas personagens (HELIODORA, 2008),


isso não quer dizer que em sua criação de Cleópatra, a figura feminina foi construída
como fonte de representatividade para as leitoras, as características que se esperam
de uma rainha que governava o Egito sozinha, não foram exploradas, o que se
percebe é uma mulher volúvel que colocou seu território em jogo pelo amor de um
homem.
Para Branco e Brandão (1989) a mulher que se encontra na literatura “é
ilusão da completude”, é um fetiche do ser feminino. Cleópatra é uma rainha exótica,
sedutora, uma cigana no cio que é capaz de qualquer artimanha para manter seu
amante sob seus cuidados.

CLEÓPATRA
Bela mentira!
Então casou com Fúlvia, sem amá-la?
Pareço boba, mas não sou; Antônio.
Vai ser Antônio.

ANTÔNIO
Movido por Cleópatra
Mas pelo amor do amor, que é tão suave,
Não vamos perder tempo com disputas:
Não devemos viver só minuto
Sem prazeres. Qual é o desta noite? (SHAKESPEARE, 2000, P. 21).

Nessa discussão entre os amantes percebe-se a postura de Cleópatra diante


de Antônio, que é o de um a mulher inconformada com o casamento de seu amado,
preocupada com os sentimentos românticos que é o fruto de intenso sofrimento
feminino na literatura, enquanto a postura de Antônio é o de um homem imerso no
mundo das frivolidades e preocupado com os intensos prazeres e devassidão
asiáticas. (HELIODORA, 2014).
Enquanto isso, Cleópatra está preocupada em manter seu amante em terras
egípcias, na Cena III do Ato I, Cleópatra dá ordens a Alexas (servidor da rainha),
para buscar Antônio e dar-lhe notícias:

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Anais

CLEÓPATRA
Vê onde está, com quem e o que faz:
Não te mandei. Se o encontras triste,
Diz-lhe que danço; e se alegre o avises
442
Quem num repente adoeci. Vai e volta. (SHAKESPEARE, 2000, P. 34).

Na mesma cena, entre uma conversa entre Charmiana, serva de Cleópatra e


a rainha, elas discutem sobre a melhor maneira de prender o general romano:

CHARMIANA

Senhora, eu creio que se o ama mesmo


Não é esse o caminho para forçar dele
O mesmo amor.

CLEÓPATRA

O que devo fazer?

CHARMIANA

Ceder em tudo, e não contrariá-lo.

CLEÓPATRA

Ensinas mal; assim o perderia.

CHARMIANA

Não o tente tanto. Eu lhe peço que não.


O tempo faz o medo virar ódio. (SHAKESPEARE, 2000, p. 34-35).

Essa discussão sobre como prender o amado de Cleópatra pode ser físico ou
sentimental, pois não era somente em solo egípcio que Cleópatra queria Antônio,
mas ela também queria o seu coração. Branco e Brandão (1989, p. 19) ainda
completam sobre a figura feminina: “A voz que aí se ouve não é feminina, mas seu
simulacro fica modulação da ilusão que a faz existir”.
A crítica feminista proposta por Toril Moi (2006, p. 56, tradução nossa),
afirma que “a imagem das mulheres na literatura se define por oposição à pessoa
real, que, de uma forma ou de outra, a literatura nunca consegue transmitir ao
leitorv”. A mulher é uma transposição do imaginário de seu autor masculino, não
transmite as ações reais da mulher, não convence a leitora, que ali não se encaixa,
não se enxerga.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A figura feminina é fina voz retirada de um registro masculino, que se


constrói de forma similar ao ventríloquo e seu boneco: confusão de vozes,
perversa construção enganosa, enquanto fantasma consciente ou
inconsciente, nestes tortuosos caminhos do desejo, que se mimetizam ou
443
reduplicam nas linhas do texto. (BRANCO; BRANDÃO, 1989, p. 22).

Nas quatro únicas cenas em que a personagem de Cleópatra aparece sem


Antônio, o assunto central continua sendo o imperador romano. No Ato I, Cena V
que acontece no palácio de Cleópatra, a rainha conversa sua serva Charmiana
sobre Antônio que retornou a Roma e demonstra toda sua infelicidade por estar
longe de seu amado.

CLEÓPATRA
Ah, Charmiana,
O que acha que ele está fazendo agora?
Anda, senta, estará em seu cavalo?
Feliz cavalo, que sente o seu peso!
Vibra, cavalo, sabes a quem moves?
O semi-Atlas do mundo, a armadura
E a arma dos homens. E eis que fala:
“Minha serpente do Nilo, aonde está?” (SHAKESPEARE, 2000, p. 46).

Antônio retorna para Roma ao saber que sua esposa Fúlvia havia falecido,
no entanto, no Ato II, Cena V Cleópatra descobre por intermédio de um mensageiro
que seu amado casou-se novamente, desta vez com Otávia, irmã de Otávio César,
mais uma vez a personagem de Cleópatra é apresentada como uma mulher frágil,
capaz de morrer por amor e que não admite o relacionamento de seu homem com
outra.

CLEÓPATRA
‘Stou paga. Levem-me daqui. Desmaio.
Iras! Charmiana! Não importa.
Procure o homem, Alexas, e lhe peça
Que lhe descreva Otávia: sua idade,
O seu modo de ser; e não se esqueça
Da cor do cabelo. E tudo depressa (SHALESPEARE, 2000, p. 78).

As rivalidades femininas são refletidas através da curiosidade de Cleópatra


em saber como a atual esposa de Antônio era fisicamente, uma comparação talvez
para procurar sentir-se melhor e acalmar seu ego depois de mais uma decepção
com seu amado. No Ato III, Cena III, no palácio da rainha, ao conversar com o
Mensageiro que traz notícias de Otávia:

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

CLEÓPATRA
É alta como eu?
444
MENSAGEIRO
Não é, senhora.

CLEÓPATRA
E ao falar, tem voz aguda ou grave?

MENSAGEIRO
Eu a ouvi, senhora, fala baixo.
(...)

CLEÓPATRA
É o que penso: tola de fala e anã!
Tem porte majestoso? Pense bem,
Se já viu majestade. (SHAKESPEARE, 2000, p. 105).

No ultimo ato em que a protagonista aparece sem a presença de Antônio, a


cena consiste em demonstrar repetida vez a fragilidade e fraqueza feminina, em que
Cleópatra foge da batalha final e manda notícias para Antônio de que havia se
matado, no Ato IV, Cena XIII:

CLEÓPATRA
Mardian, vá dizer-lhe que eu me matei;
E “Antônio” foi minha última palavra;
Use termos patéticos. Vá logo,
E volte pra dizer-me como o ouviu. (SHALESPEARE, 2000, p. 168).

Branco e Brandão (1989, p. 54), falam sobre o poder da fala dos amantes “As
palavras dos amantes são duplamente poderosas, pois nelas se encontram os ecos
de leituras forjadas de seus ideais amorosos”. Cleópatra reproduz em sua fala uma
visão masculina sobre o sofrimento de uma mulher ao sentir que o amor, o desejo
de seu amado escapa de seu controle, é o eco da voz de um autor masculino, que
reproduz sua percepção na literatura da desenvoltura feminina diante de um fato
trágico, que leva os personagens a morte no final.

E esta miragem do feminino vem seduzindo há séculos, nesses textos onde


o narrador ou o poeta são capazes de fazê-lo falar, através do gesto mágico
do deslocamento de vozes. E o que é masculino torna-se feminino e o
desejo do impossível torna-se o possível do desejo. (BRANCO; BRANDÃO,
1989, p. 19).

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Na voz da personagem Cleópatra seu assunto central é a vida de Antônio, as


batalhas de Antônio, seu amor pelo triúnviro, sua tristeza por estar longe do amado,
nos quatro momentos que a personagem feminina teve destaque (sozinha) na peça, 445

leu-se seu sentimento por um homem, seu amor por Antônio.


Portanto, como Branco e Brandão (1989) afirmam que a mulher apresentada
na literatura não é sua réplica fiel, a personagem de Cleópatra não é a mulher real,
não é representação dos desejos de uma mulher, mas é o eco da voz de um autor, é
a reprodução em uma folha em branco da percepção, da imagem refletida de uma
concepção masculina da figura da mulher.
Com um país para salvar, a rainha egípcia é mostrada na literatura como uma
mulher frágil, disposta a morrer pelo amor de Antônio, mesmo que para isso coloque
em risco o Egito e todo o seu povo. A batalha é um fracasso e os personagens
entregues tem uma morte poética, Cleópatra aperta a serpente contra seu peito
chamando o nome de seu amado:

CLEÓPATRA

Doce bálsamo, ar suave, delicado;


Oh, Antônio! Não; vem tu também.
(Aperta a outra serpente contra o peito)
O que devo dizer... (Morre.) (SHAKESPEARE, 2000, p.205).

Assim como Branco e Brandão (1989) argumentam sobre a literatura que traz
a figura feminina “de sua repetição nascem todos os equívocos e paradoxos que
ilustram a fala da mulher em textos feitos por homens”. Mesmo antes de sua morte,
a vida de Cleópatra resume-se em Marco Antônio, seus momentos de destaque na
peça são para falar sobre ele e sua morte, no clímax final, a leitora é surpreendida
por uma rainha dominada, que acaba de ser destituída do poder e clama pelo nome
de seu amor: “Oh, Antônio”, e assim termina a heroína romântica, rainha sagaz,
cigana no cio de Willian Shakespeare.

Considerações Finais

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Partindo do pressuposto de uma leitura feminina, procurou-se na figura de


Cleópatra da peça teatral Antônio e Cleópatra, escrita pelo autor masculino William
Shakespeare, buscar elementos que comprovassem uma literatura feita sob o viés 446

de um homem.
Com isso, forma encontrados trechos da obra em que a rainha é dominada e
levada a cometer atos de loucura por amor, a tragédia termina com a morte dos
personagens e acima de tudo com a rainha declamando em seu último sopro de vida
o nome de seu amado. Uma morte poética e que leva a figura feminina ao ato mais
extremo de paixão, a morte.
O eco da voz masculina através da fala da personagem Cleópatra, se
reafirma nos quatro momentos em que a rainha aparece em cena sem seu amante,
o assunto central é sempre Antônio, todas as atitudes de Cleópatra tem um fim: o
amor de Antônio, a personagem da rainha egípcia ganhou vida e morreu na peça
por seu deus na terra, sempre seu Marco Antônio, por isso a representação feminina
de Cleópatra tem um eixo central, suas ações são pensadas de forma a agradar
sempre uma figura masculina.

Referências

BELLIN, G,P. A crítica literária feminista e os estudos de gênero: um passeio pelo


território selvagem. Disponível em:
<http://www4.pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n7/download/pdf/artigos
_Greicy.pdf>. Acesso em 18/07/2016.

BRANCO, L.C; BRANDÃO, R,S. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Casa-Maria


Editorial: LTC – Livros Técnicos e Científicos Ed, 1989.

HELIODORA, Barbara. Por que ler Shakespeare. São Paulo: Globo, 2008.

HELIODORA, Barbara. Shakespeare: o que as peças contam. 1.ed. Rio de Janeiro:


Edições de Janeiro, 2014.

MOI, Toril. Teoría Literária Feminista. Madrid: Ediciones Cátedra, 2006.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

SHAKESPEARE, William. Antônio e Cleópatra. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio


de Janeiro: Lacerda, 2001.
447

A construção sígnica da novela O invasor, de


Marçal Aquino: conceitos de narratologia
genettiana aplicada
The signic construction of the novela O Invasor, by Marçal Aquino: Applied
concepts of genettian narratology

Igor Iuri Dimitri Nakamura (UFMS-G)

RESUMO: Objetivou-se, por meio deste trabalho, analisar a construção sígnica da novela O invasor,
de Marçal Aquino, com ênfase nas categorias narrativas do tempo, aspecto e modo. Para tanto,
fundamenta-se no modelo da gramática narrativa de Genette (1995), sobretudo, no que tange aos
conceitos de ordem, duração, frequência, modo e voz. Assim, explana-se o método de análise
estrutural da narrativa genettiana, seguido de uma interpretação da novela de modo a articular
conjuntamente os elementos narrativos e os seus respectivos efeitos de sentido. Logo, conclui-se que
os temas da obra, como o interesse e a crise psicológica, se subjazem a partir da discordância
temporal entre diegese e narrativa, enquanto que a suspense, o mistério e o desmascaramento se
desvelam através da focalização.

PALAVRAS-CHAVE: Marçal Aquino. Narratologia. Discurso.

ABSTRACT: It was objected, by this work, analyze the signic construction of the novela O Invasor, by
Marçal Aquino, emphasizing the narrative categories of time, aspect and mode. For this purpose, the
study was based on Genette model of narrative grammar (1995), especially in what is related to the
concepts of order, duration, frequency, mode and voice. Thus, the structural analysis method of
genettian narrative is explained, followed by an interpretation of the novela as a way to articulate the
narrative elements and their respective effects of meaning together. Therefore, it is concluded that the
work subjects, such as interest and psychological crisis, underlie from the time discrepancy between
diegese and narrative, while the suspense, mystery and unmasking are unveiled by focusing.

KEYWORDS: Marçal Aquino. Narratology. Discourse.

Introdução

Este trabalho consiste em uma análise da narrativa de O invasor, de Marçal


Aquino (2011), sob o viés da narratologia genettiana e, por isso, tem como objetivo
geral a interpretação da tessitura formal-conteudística da obra, selecionada como
corpus da pesquisa. Para tanto, analisa-se a novela do autor, centrando-se nos

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

elementos narrativos e seus devidos efeitos de sentido para a abstração dos signos
que sintetizam, e apresenta-se a análise depreendida, didaticamente, mediante os
conceitos de “ordem”, “duração”, “frequência”, “modo” e “voz”. 448

Deste modo, este trabalho se subdivide em cinco etapas, além da introdução e


conclusão: inicialmente, apresenta-se a biografia de Marçal Aquino e contextualiza-
se a sua obra; feito isso, discute-se O invasor, seu enredo e estrutura; na sequência,
explana-se o método de Genette e sua terminologia; em seguida, faz-se um recorte
didático do método e, por fim, analisa-se a novela, perpassando, linearmente, os
conceitos da narratologia genettiana e seus efeitos de sentido na obra.

Vida e obra de Marçal Aquino

Marçal Aquino nasceu em 1958, graduou-se em jornalismo pela Pontifícia


Universidade Católica de Campinas em 1983, trabalhou como jornalista na Gazeta
Esportiva e no jornal O estado de S. Paulo, atuou como repórter policial no Jornal da
Tarde, produziu inúmeros roteiros, entre os quais o do filme O invasor (2002), em
parceria com Beto Brand, e o da série televisionada Força tarefa (2009-2011), com
Fernando Bonassi, e, recentemente, tem participado como consultor do IV
Laboratório de Roteiros de Sundance / Rio Filme pela Sundance Institute.
Além de um master em cinema, Marçal Aquino também é autor de inúmeras
obras literárias, dos mais variados gêneros, sendo elas: A depilação da noiva no dia
do casamento (1983, poesia), Por bares nunca dantes naufragados (1985, poesia),
A turma da rua Quinze (1989, infanto-juvenil), Abismos, modos de usar (1990,
poesia), As fomes de setembro (1991, contos), Famílias terrivelmente felizes (1991,
contos), O jogo do camaleão (1992, infanto-juvenil), Miss Danúbio (1994, contos), O
mistério da cidade fantasma (1994, infanto-juvenil), O primeiro amor e outros perigos
(1996, infanto-juvenil), O amor e outros objetos pontiagudos (1999, contos),
Faroestes (2001, contos), O invasor (2002, novela), Cabeça a prêmio (2003,
romance) e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005, romance).

Uma leitura de O invasor, de Marçal Aquino

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A novela O invasor (AQUINO, 2011) tematiza a história de um trio de recém-


formados engenheiros, amigos desde os tempos de faculdade e sócios em uma
construtora, em que dois deles, Ivan – o narrador que vivencia os acontecimentos – 449

e Alaor tramam a morte do majoritário, Estevão, após desentendimentos


empresariais, e, para tal fim, contratam o matador de aluguel Anísio, indicado pelo
desconhecido Norberto. Feita a contratação em um bar da Zona Leste, Ivan e Alaor
partem a um prostíbulo em Pinheiros, onde o narrador, após transa com a garota
Mirna e epifania com sonhos pretéritos e proféticos, descobre que seu sócio é
também proprietário da casa e envolvido com prostituição infantil, em sociedade com
Norberto. Após o assassinato de Estevão e de sua esposa, Silvana, delineia-se um
período de investigações policiais e de interrogatórios dispersos com familiares e
amigos das vítimas. Mesmo nesse período, o pistoleiro Anísio se propõe a trabalhar
como segurança na construtora, isto é, deixa seu espaço marginalizado e invade o
espaço da burguesia paulistana, de forma a causar o temor e o peso na consciência,
sobretudo, de Ivan. Não obstante, a filha de Estevão, Marina, assume o cargo do pai
e, com o tempo, Ivan descobre o relacionamento dela com Anísio. Então, Ivan
associa a proximidade de Alaor, Anísio e Marina a um plano de eliminá-lo das
frentes de negócios da construtora e, por isso, conflui para uma crise interior, que o
leva a planejar uma fuga frustrada com a amante, Paula. Nesse entremeio, Anísio
convida Ivan para a festa do seu aniversário e denuncia sua onisciência sobre o
caso do protagonista com Paula. Ademais, Ivan parte para casa de Paula para a
fuga, mas descobre o plano de seu sócio com ela, prostituta de Alaor e, com isso,
resolve encaminhar-se ao prostíbulo e assassiná-lo. Porém, Ivan não o encontra, é
expulso do prostíbulo e quebra o pé. Logo, a crise psicológica de Ivan é tamanha a
ponto de fazê-lo confessar o crime em uma delegacia. Para sua surpresa, no
entanto, os policiais da delegacia o levam ao delegado corrupto, Norberto, e seus
comparsas Alaor e Anísio, em plena festa de aniversário do invasor.
Estruturalmente, a obra O invasor se subdivide em quinze pequenos capítulos
ou partes, sendo elas: 1 – contratação de Anísio (pp. 9-18); 2 – saída da Zona Leste
rumo ao Pinheiros e praga da mulher na Radial Leste (pp. 19-20) / prostíbulo e Mirna
(pp. 21-34); 3 – conversa de Ivan e Estevão (pp. 35-42); 4 – discussão de Ivan e

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Alaor (pp. 43-52); 5 – assassinato de Estevão e Silvana (pp. 53-58); 6 – delegado


Junqueira (pp. 59-65); 7 – decisão de matar Estevão e encontro com Paula (pp. 66-
69) / conversa com Anísio (pp. 69-73); 8 – pagamento de Anísio (pp. 74-78) / 450

primeiro dia de trabalho de Anísio (pp. 78-80); 9 – volta de reunião com Rangel e
delegado Junqueira no Aeroporto de Congonhas (pp. 81-82) / Marina (pp. 82-87); 10
– visita à mãe de Ivan (pp. 88-89) / empréstimo a Claudino (pp. 90-93); 11 – outro
encontro com Paula (pp. 94-95) / decisão de Ivan de desligamento da sociedade (pp.
95-97) / término do casamento de Ivan e Cecília (pp. 97-98) / morte de empresário
(pp. 98-99); 12 – compra do revólver (pp. 100-102) / convite à festa de Anísio (pp.
102-103) / plano fuga de Paula e Ivan (pp. 103-106); 13 – tocaia de Ivan na
construtora (pp. 107-108) / furto de Ivan na construtora (pp. 108-110) / saída de Ivan
da própria casa (pp. 110-112) / fuga frustrada de Ivan e descoberta sobre a trama de
Alaor e Paula (pp. 112-115); 14 – invasão de Ivan ao prostíbulo, impedimento e
quebra do pé (pp. 116-118) / batida de carro (pp. 118-119) / delação de Ivan à
delegacia (pp. 119-120); 15 – entrega de Ivan às mãos de Alaor, Anísio e Norberto.

Princípios de narratologia genettiana e descrição do método

Durante o limiar do pensamento estruturalista, Gérard Genette (1995) publica,


em Figures III, um estudo sobre À la recherche du temps perdu, intitulado Discurso
da narrativa, a partir do qual propõe, não só a interpretação ao Proust romanesco,
como também um modelo teórico-metodológico, no âmbito narratológico. Para isso,
Genette (ibidem, p. 25) distingue história ou diegese (significado, conteúdo narrativo)
de narrativa ou discurso (significante, texto narrativo) e narração (ato de produção
narrativa), ao passo que subdivide seu método em três categorias, similares à forma
verbal: tempo (relação narrativa X história), modo (relação narrativa/história) e voz
(relação entre narração/narrativa e narração/história), de forma a abranger a
categoria tempo os elementos ordem, duração e frequência dos acontecimentos
narrados no discurso. Assim, o modelo narratológico genettiano de análise se
configura em torno de cinco básicos: ordem, duração, frequência, modo e voz.
A ordem, abordada como primeiro conceito teórico de Genette (ibid., pp. 31-
83), equivale à ordenação dos acontecimentos narrados (ou tempo da história) em

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concordância (acronia) ou discordância (anacronia) temporal no discurso (disposição


dos acontecimentos, tempo da narrativa). Esta última, a discordância temporal da
ordenação, ou anacronia, antecipa (movimento proativo ou prolepse) ou retrocede 451

(movimento retroativo ou analepse) os acontecimentos no discurso, tomando como


referência a narrativa primeira (ponto de referência de uma anacronia) de modo a
produzir uma extensão (amplitude) e um limite (alcance) de prospecção ou
retrospecção (do tipo ‘olhou a foto dele: há três anos casaram-se/casar-se-ão’,
sendo analepse/prolepse = casaram-se/casar-se-ão, narrativa primeira = momento
em que se olha a foto, amplitude = três anos, alcance = o casamento).
Define-se a analepse, pois, com referência ao seu campo de extensão e o da
narrativa primeira, sendo analepse interna heterodiegética (ou ainda analepse
completiva ou reenvio) aquela intercalada com a diegese da narrativa primeira, ou
analepse interna homodiegética (ou ainda analepse repetitiva ou rappel) aquela com
diegese equivalente, memorativa, à da narrativa primeira, analepse mista aquela que
entrecruza os campos interno e externo de expansão da narrativa primeira e, ainda,
analepse completa aquela que se realiza e analepse parcial a que caminha para
uma elipse da narrativa. Têm-se também, mas de movimento lógico-temporal
contrário ao da analepse, a prolepse externa heterodiegética, prolepse interna
heterodiegética (ou prolepse completiva), prolepse interna homodiegética (ou
prolepse repetitiva ou anúncio), prolepse mista, prolepse completa e prolepse
parcial.
A duração, advogada por Genette (1995, pp. 85-112), refere-se à velocidade da
narrativa, a qual pode ser classificada, a partir da simultaneidade entre tempo da
história (abreviado por TH) e tempo da narrativa (abreviado por TN), no caso de
isocronia, ou, por outro lado, a partir da aceleração ou retardamento entre TH e TN,
no caso de anisocronia.
Logo, quando cessa o tempo da história, numa equivalência a zero, de modo
que há prosseguimento no tempo da narrativa, de modo que este se coloque como
infinitamente maior do que o tempo da história, tem-se uma pausa (esquematizada,
sinteticamente, por TN = n, TH = 0. Logo: TN ∞ > TH, do tipo ‘Ana era loira, alta,
olhos castanhos...’), geralmente, com função descritiva, reflexiva ou de digressão.

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Já quando o tempo da história e o tempo da narrativa ocorrem


simultaneamente, isto é, equivalem-se, há a cena (esquematizada por TN = TH, do
tipo ‘Ana lhe disse, eu não vou mais, pegou a bolsa e saiu’), geralmente, configurada 452

na instauração do diálogo e no consequente e hipotético desaparecimento do


narrador.
Por sua vez, quando se resume o tempo da história, ou melhor, acelera-se a
narrativa em contraposição à cena, tem-se o sumário (esquematizado por TN < TH,
do tipo ‘João acordou, fez sua higiene, vestiu-se e seguiu à escola’), com a função
de narrar-se apenas o que se julga importante, no discurso.
Já quando se elimina do discurso algum acontecimento, o tempo da narrativa
figura infinitamente menor que o tempo da história e há, pois, a elipse
(esquematizada pela fórmula TN = 0, TH = n. Logo: TN < ∞ TH), podendo ser elipse
explícita (demonstrada no texto, do tipo ‘passado algum tempo, retornou’) elipse
implícita (não perceptível no texto, do tipo ‘retornou...’) e elipse hipotética, quando
dela se origina uma analepse, ou ainda, elipse determinada (com duração indicada,
do tipo ‘dois anos depois, retornou’), indeterminada (sem indicação, do tipo ‘tempos
depois, retornou’) e qualificada (quando adjetivada, do tipo ‘após anos de alegria,
retornou’).
A frequência, enquanto o terceiro conceito genettiano (idem, ibidem, pp. 114-
158), associa-se à recorrência dos elementos na narrativa. Assim, têm-se o
singulativo em que se conta uma vez aquilo que se passou uma vez (representado
pela fórmula 1N/1H, do tipo ‘sábado foi à igreja’, sendo H = ida à igreja); o
singulativo anafórico, no qual se conta n vezes aquilo que se passou n vezes
(esquematizado por nN/nH, do tipo ‘sábado, foi à igreja... domingo, ao ir à igreja’,
sendo H = várias idas à igreja); a narrativa repetitiva, em que se conta n vezes aquilo
que se passou uma só vez (representado por nN/1H, do tipo ‘sábado foi à igreja...
àquela ida, sábado, na igreja...’, sendo H = ida à igreja no sábado); e narrativa
iterativa, na qual se conta uma única vez o que se passou n vezes (na fórmula
1N/nH, do tipo ‘ia à igreja’, sendo H = idas frequentes à igreja).
Sobre a narrativa iterativa, a iteração se expressa pelo imperfeito (‘lia’,
‘acordava’, ‘dormia’) e pelo durativo (‘todos os dias’, ‘aos sábados’) e possui função

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proximal à da descrição (de característica de pessoas, espaços...) por traços


iterativos (do tipo ‘José lia’ = intelectualidade), monótonos no tempo da história.
Ademais, a iteração acontece a serviço das cenas singulares, ou melhor, no 453

interior destas. Então, a iteração pode extravasar o tempo das cenas com duração
mais ampla, exterior a elas, sendo, pois iteração externa ou generalizante (do tipo
‘ali [cena singulativa descrita] José lia todos os dias’, sendo duração de ‘lia todos os
dias’ (iterativo/diariamente) externo ou ≠ de duração de ‘ali’ (singulativo)). Por outro
lado, a iteração pode limitar-se às cenas com duração equivalente, interna a elas,
sendo, por fim, iteração interna ou sintetizante, (do tipo ‘ali, [cena singulativa
descrita], José lia’, sendo duração de ‘ali’ (singulativo) = duração de ‘lia’
(iterativo/naquele espaço da cena)). Por fim, a iteração também pode figurar-se com
cenas de caráter singulativo pelo uso do imperfeito (do tipo ‘[naquele dia] José lia
rapidamente’ = equivalente ao singulativo), tratando-se do pseudo-iterativo em que a
iteração que não acontece.
A iteração figurativiza-se, em sua duração, por meio da determinação, ou
melhor, do início e término dos limites diacrônicos exteriores das séries iterativas
recorrentes, de forma definida ou indefinida textualmente (do tipo definido em ‘à
tarde, José lia’, do tipo indefinido em ‘em certas tardes, José lia’) ou enquanto
determinação interna às cenas singulares, completa ou em fragmentos (como ‘José
lia’..., ‘José lia’...). Além disso, a iteração classifica-se pela sua especificação ou,
grosso modo, frequência (do tipo simples em ‘nos sábados de maio, José lia’, do tipo
complexa em ‘nos sábados de calor, José lia’, do tipo indefinido em ‘muitas vezes,
José lia’), que pode ser uma especificação interna às cenas singulares. Por fim, a
iteração desenvolve-se em uma amplitude diacrônica ou duração temporal,
denominada extensão, (do tipo extensões pontuais em ‘há dois anos, José lia’).
Ressalta-se, contudo, que as diversificações ou variações ancoradas pelas
determinações e especificações internas da iteração podem ou não desdobrar uma
narrativa desenvolvida, segundo a extensão, analisável em quantidade de páginas.
Ainda sobre a iteração, pondera-se que ela também pode variar em uma série
sucessiva de acontecimentos do singulativo, a diacronia real, sendo esta condizente
à unidade sintética da cena singulativa (diacronia interna do tipo ‘faz duas horas que

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José lê... José ainda lê...’, sendo duas horas = elemento interno-variável à duração
do singulativo) ou condizente à série real externa interferente na cena singulativa
(diacronia externa do tipo ‘nas primaveras, José lê... José ainda lê’, sendo primavera 454

= elemento externo-variável à duração do singulativo). Todavia, faz-se necessário


considerar que, na frequência em geral, é preciso abstrair a alternância e transição
do singulativo/iterativo da narrativa, tal qual, na duração, da relação cena/sumário.
Já o modo, na gramática narrativa de Genette (1995, pp. 159-209),
corresponde ao processo de regulagem de informação da narrativa, sendo a
distância e a perspectiva do fato narrado as formas subjacentes a esse processo. De
antemão, a distância é o mecanismo de expressão narrativa em que se mostra ou
conta algo, sendo o mostrar e o contar elementos já retratados na dicotomia
platônica “diegesis X mimesis” e na dicotomia da crítica americana ou jamesiana
“showing X telling”, de forma que quanto mais informador e informação, mais
mimético é o texto, e do contrário, mais diegético (no esquema +informação e
+informador = C, em que +informação e –informador = mimesis, –informação e
+informador = diegesis).
Do âmbito +mimético, depreende-se a narrativa de acontecimentos e do âmbito
+diegético, depreende-se a narrativa de falas, sendo estas classificadas como
discurso narrativizado ou contado (discurso da personagem mencionado
resumidamente pelo narrador, do tipo ‘Maria disse da sua viagem à Europa e etc.’),
discurso transposto (em estilo indireto, pronunciado ou interior, com a tênue
presença do narrador, do tipo ‘Maria disse-lhe que viajou à Europa’) e discurso
relatado ou reportado (diálogo ou forma dramática, em que o narrador finge delegar,
com totalidade, a fala à personagem, do tipo ‘Maria lhe disse: viajei à Europa’).
Em contraste à distância, a perspectiva refere-se ao ponto de vista pelo qual os
acontecimentos são narrados e dela abstraem-se, a partir do foco narrativo em uma
personagem dita “focal” (sobre a qual lhe recai o foco), a focalização zero ou
narrativa não focalizada (em que o narrador onisciente, demiurgo, sabe mais que a
personagem, segundo o esquema narrador > personagem, do tipo ‘João, alegre,
mas em silêncio, olhava-a’), a focalização interna (decorrente a partir da
personagem em que o narrador conta apenas o ela sabe, segundo o esquema

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narrador = personagem, sendo, pois, focalização interna fixa, do tipo ‘João olhava-a
alegremente’, variável do tipo ‘João olhava-lhe o sorriso... ela o viu, ignorou-o e
seguiu’ ou múltipla do tipo ‘João olhava-lhe o sorriso... José avistou-a distante... Ana 455

observava-a com furor... ela, embora sorridente, chorava...’) e a focalização externa


(decorrente na externalidade superficial da personagem, em que o narrador ignora o
saber da personagem, segundo o esquema narrador < personagem, do tipo ‘João
parou, esperou o semáforo fechar e seguiu’).
Entretanto, na tomada das focalizações emergem (ou podem emergir)
alterações do ponto de vista, com efetuação de ruptura proposital (focalização
variável, onisciente ou com restrição parcial) ou equivocada (no caso de infração
momentânea) ao código narrativo vigente. Então, essas infrações isoladas, advindas
das alterações, concedem menos informação que o necessário (paralipse) ou mais
informação que o necessário (paralepse) nos limites focalização. Porém, a partir de
um narrador em primeira pessoa (como o autobiográfico) ou onisciente, a
focalização pode, tratando-se de polimodalidade, tanto bifurcar-se em uma dupla
focalização, envolvendo herói e testemunha, quanto permitir ao narrador afirmar
hipoteticamente o que não é capaz, por meio de algumas locuções modalizantes (do
tipo ‘talvez’, ‘sem dúvida’, ‘como se’, ‘parecer’, ‘aparecer como’), ou até mesmo
denunciar a experiência ulterior do herói (dos personagens em geral) e do narrador
com outras locuções (do tipo ‘vim depois a saber’).
Quanto à voz, último conceito de Genette (1995, pp. 211-260), cabe-lhe, em
primeira instância, o tempo da narração, a partir do qual esta pode ser ulterior
(narrativa no passado), anterior (narrativa preditiva, no futuro, como sonhos e
profecias), simultânea (narrativa no presente) ou intercalada (entre vários momentos
da narrativa heterogeneizados).
Cabem também à voz as funções do narrador e a tipologia deste. As funções
do narrador se classificam segundo o aspecto da história, em função narrativa
(narrador centra-se na história), o aspecto do texto narrativo, em função de regência
(narrador centra-se no texto, como uma metalinguagem), e o aspecto da situação
narrativa (relação narrador x narratário), em função de comunicação (narrador como
pródigo comunicador), função testemunhal ou de atestação (em episódios que

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despertam a emotividade do narrador) e função ideológica (intervenções diretas ou


indiretas do narrador). Já o narrador classifica-se, pois, como narrador
heterodiegético (ausente, não participante da história, narrador de terceira pessoa), 456

homodiegético (presente, na história, como testemunha, narrador de segunda


pessoa) e autodiegético (que narra a própria história, sendo narrador = herói,
protagonista, narrador de primeira pessoa).
Por fim, os níveis narrativos são aqueles a partir dos quais o narrador, tal qual
o narratário, situa-se exteriormente (nível extradiegético) ou interiormente (nível
intradiegético) à diegese que narra, podendo conceber a voz a uma personagem na
conversão de mais um nível (metadiegético), sendo que, em suma, os níveis se
hierarquizam em: N (extradiegético) [P/N₂ (intradiegético) [P/N₃ (metadiegético)
[P/N...]]], de modo que um nível (N) se insere em outro, mediante a pessoa (P) que
detém a voz, embora um nível metadiegético possa não se concretizar como tal,
tornando-se, assim, nível pseudodiegético.

Nossas premissas

Embora a narratologia genettiana se apresente como uma semiótica ou


gramática narrativa centrada, estruturalmente, em conceitos teórico-metodológicos
próprios, imanentes no texto, faz-se necessário delinear algumas premissas voltadas
à aplicação do método, à apresentação da aplicação do método e ao recorte dos
seus conceitos.
Genette (1995) define a narrativa ou discurso como seu objeto de estudo, já
que é por ela que a história se faz perceptível, mesmo que ambas coexistam. Logo,
na coexistência de história e narrativa, enquanto significado e significante,
subentende-se que estes se imbricam indissociavelmente na textura do signo.
Assim, na aplicação do método de Genette (ibidem), considera-se que os elementos
narrativos figurativizam o conteúdo, de forma a tecer uma construção sígnica na
análise da obra literária.
Ademais, a densidade narrativa varia na economia e particularidade de cada
obra, a ponto de alguns conceitos genettianos serem mais recorrentes a uma
interpretação do que outros. Entretanto, para a apresentação do método

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narratológico de Genette (ibid.), persiste-se na linearidade dos domínios, da ordem à


voz, em prol de uma explanação didática dos signos da novela O invasor.
Por fim, a estruturação tipológica de alguns conceitos (por exemplo, a 457

classificação das analepses, das elipses e da iteração) podem não conduzir, em sua
terminologia, a efeitos de sentido tão profícuos. Por isso, analisa-se a obra O
invasor, de Marçal Aquino, mediante a um recorte dos conceitos e de suas devidas
classificações tipológicas, de modo a filtrar a excessiva abrangência terminológica
empregada pelo narratólogo.

Ordem

Em O invasor, de Marçal Aquino, é perceptível o jogo temporal opositivo das


relações entre passado X presente, presente X futuro e suas devidas
transformações na narrativa, entre alcance-amplitude analépticos-prolépticos e as
ações da narrativa primeira, envolvendo a imundície e a fragmentação das
personagens.
Como exemplo, tem-se a passagem em que o narrador Ivan encontra-se só, na
construtora, após agravamentos psicológicos e que, ao observar o espaço, retorna
ao passado, no momento em que, juntos – ele, Alaor e Estevão – abriram o negócio,
de modo a enunciar, na relação entre passado X presente, a oposição
amizade/esperança/coletivismo X interesse/desesperança/individualismo, como se
nota em:

Lembrei dos nossos primeiros tempos ali. Estevão, Alaor e eu. Três caras
cheios de planos e sonhos. Éramos amigos, a vida se abria à nossa frente.
Olhei as paredes da sala, os móveis, o carpete de cor escura que, numa
tonalidade mais clara, desgastada, exibia uma trilha que conduzia da porta
à minha mesa. (AQUINO, 2011, p. 109).

Além disso, figurativizam-se, na oposição entre passado X presente, os signos


da atenuação da vida conjugal, na qual Ivan enuncia a analepse da efervescência
amorosa, em: “Eu tinha me casado com ela dois anos de depois de associar-me a
Estevão e Alaor na construtora. Foi um tempo feliz, hoje eu sei. Havia certeza que
todos os nossos planos dariam certo, era só questão de tempo.” (AQUINO, 2011, p.
33). Em contraposição à efervescência pretérita, Ivan relata, no presente das ações

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da narrativa primeira, a acomodação volitivo-afetiva: “A camisola que ela vestia


estava levantada e pude ver que sua calcinha saíra do lugar, deixando exposta a
carne branca de suas nádegas.” (idem, ibidem, p. 33). 458

Observa-se, pois que as analepses desempenham, em O invasor, uma função


primordial: sintetizar, concisamente, a deterioração em torno das personagens, nas
contraposições do passado versus presente. Assim, essas relações opositivas
culminam com a tensão que acompanha as personagens no decorrer da narrativa e
as fragmenta, ao longo do tempo, segundo as suas devidas amplitudes
retrospectivas (alguns anos da montagem da construtora, 2 anos de casamento...).
Já no domínio lógico-temporal contrário ao das analepses, em O invasor, as
prolepses (= antecipações) sobre o assassinato de Estevão instauram-se não só a
convicção do narrador, como também a avidez de sua condição volitivo-emocional,
consonante com o presente das ações da narrativa primeira da conversa com
Estevão: “Anísio vai matá-lo. (...) Anísio vai matar Estevão, que continua parado à
frente da minha mesa (...). Anísio vai acabar com esse sorriso a tiros.” (AQUINO,
2011, p. 41).
Portanto, as oposições das anacronias, em relação às ações da diegese da
narrativa primeira, constroem, retrospectivamente, os signos do interesse e da
atenuação conjugal da elite paulistana, enquanto que constroem, prospectivamente,
o signo da frieza adjunto à ansiedade.

Duração

Em O invasor, há a alternância entre aceleração e desaceleração do ritmo da


narrativa, que implica na duração ou velocidade. Observa-se que, nessa alternância,
a aceleração (sumário/elipse) equivale à ligeireza da narrativa refletida no discurso
do narrador, enquanto que a desaceleração ou lentidão (pausa/cena) equivale à
aproximação do detrimento do exterior-interior de Ivan.
A exemplo disso, a pausa, com função de pausa descritiva, apresenta a
degradação da externalidade em consonância com a deterioração, da internalidade,
do “eu” que narra em O invasor. Percebe-se isso logo no capítulo inicial, em que
Ivan e Alaor chegam ao bar, onde está Anísio, e o espaço é adjetivado com o teor

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da interioridade do narrador: “Havia algo de melancólico no calçamento pintado de


verde e amarelo, uma lembrança desbotada dos dias de jogos da Seleção na Copa.”
(AQUINO, 2011, p. 9, grifos nossos). 459

Ainda sobre a pausa descritiva envolvendo o espaço descrito e a interioridade


do “eu”, tem-se a confluência externa, espacial, com a inconcretude interna,
psicológica, de Ivan acerca da ameaça de um sonho ruim, no prostíbulo: “Continuou
me oprimindo, pairando no quarto que, naquele momento, tinha o aspecto de uma
paisagem lunar, por causa da luz azulada que entrava pelas frestas da janela.”
(idem, ibidem, p. 27, grifos nossos). Atesta-se, pois, que a pausa corrobora com a
inconcretude psicológica de Ivan aderida ao cansaço e ao sono, em detrimento com
o espaço, tal qual em: “Eu me sentei na cama e fiquei olhando no resto do meu
corpo algo entre o melancólico e o ridículo – camisa aberta, calças arriadas sobre os
sapatos e semiereto.” (Id., ibid., p. 25, grifos nossos). Nessa perspectiva, a pausa
não só é responsável pela descrição do espaço, mas também dos detalhes, dos
elementos externos em profusão com a interioridade de Ivan.
Já as cenas de O invasor delineiam-se na simultaneidade dos acontecimentos
mostrados (showing) em confluência com a intensidade da obra, como se percebe
nas ações de Estevão, ao perscrutar Ivan, gradativamente, em: “Estevão está
sentado à minha frente, folheando sem muito interesse uma revista de arquitetura
(...). Várias vezes ele levanta os olhos da revista e me observa, dissimulado. (...)
Estevão quer me falar alguma coisa. Mas espera, faz rodeios. (...) me olha mais uma
vez e tira o porta-cigarrilhas (...). Pega uma cigarrilha marrom e passa-a diante do
nariz.” (AQUINO, 2011, p. 35)”.
Por sua vez, o sumário articula, em O invasor, a aceleração da narrativa e sua
função refere-se à redução temporal da história para o acabamento da obra, isto é,
contar o não importante e necessário em poucas linhas, como se nota na passagem
da montagem da construtora em: “Quando saímos da faculdade, Estevão usou o
dinheiro da família para abrir a construtora. Como éramos amigos, ele nos deu parte
na sociedade.” (AQUINO, 2011, p. 13).
Ressalta-se, pois, que a novela O invasor é uma mescla rítmica equipolente
entre o modo cena e a narrativa sumária, ou seja, entre expansão e condensação da

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diegese. Logo, a relação entre o mostrar (o expandir, showing, diegesis) e o contar


(o condensar, telling, mimesis) se dá de forma equiparada: no capítulo inicial, por
exemplo, as cenas encadeiam diálogos em cenas narrativas e a sumarização 460

explica a montagem da construtora e o plano de Estevão; o terceiro capítulo traz à


tona a intensidade do diálogo de Estevão e Ivan via cenas narrativas, enquanto que
os capítulos finais condizem à narrativa sumária correspondente à aceleração
gradativa das ações vividas pelo narrador (compra do revólver, tocaia e furto na
construtora, fuga frustrada, descoberta da trama de Alaor e Paula, invasão de Ivan
ao prostíbulo para matar Alaor, impedimento dos seguranças e o pé quebrado,
acidente de carro, chegada do táxi, delação e desfecho da história).
Já os movimentos de elipses são responsáveis pelo acabamento final de
algumas temáticas de O invasor. Como ilustração, no episódio de Paula e Ivan, as
elipses ocultam, assim como alguns sumários, o ato sexual em si e, por isso, tecem
o fechamento da erotização: “Abri os olhos e ergui a cabeça no momento em que
ouvi o ruído da porta do banheiro. A tempo de ver Paula surgir por ela. Como uma
vertigem. Vestida apenas com seus brincos.” (AQUINO, 2011, p. 69). Nota-se, pois,
que o encerramento do episódio, nesta moldura, induz ao ato sexual dos amantes,
elidido no tempo da narrativa, de modo a conservar a erotização em torno de Paula
e evitar a vulgaridade do ato em si.
Outro fechamento orientado pela elipse é perceptível ao final do livro: “O
investigador ligou o motor da viatura. Eu abri os olhos.” (idem, ibidem, p. 122). Nesta
elipse, o narrador Ivan elimina o final mais tangível da novela, deixando à indução o
fato de estar, pelo menos, vivo, já que narra a própria história.

Frequência

Na novela de Marçal Aquino, constata-se também a intensificação dos


acontecimentos pelo filtro narrativo de Ivan no discurso, desde a singularidade das
cenas ao desenho iterativo das personagens, a ponto de as recorrências
frequentativas se imbricarem com a crise psicológica do narrador.
Ressalta-se, pois, que, em O invasor, as cenas singulativas, por muitas vezes,
não figuram uma simples singularidade, propriamente dita, que irrompe com a

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Anais

iteração não marcada na narrativa. Pelo contrário, o singulativo aparece enquanto


decorrência, ou até mesmo enquanto causa → consequência, da crise interior de
Ivan e seu reflexo exterior, tal qual se uma onda de azar o afetasse, ao longo da 461

história. A respeito disso, por exemplo, observa-se que, após a contratação do


invasor, o protagonista narra a cena em que Anísio levara um amigo para lhe pedir
empréstimo: “Na tarde daquele dia, Anísio havia entrado na minha sala
acompanhado por um mulato barrigudo. (...) o homem estava desempregado havia
meses e, como não achava trabalho, planejava abrir um bar (...).” (AQUINO, 2011, p.
90).
Além da cena singulativa descrita, recapitula-se que Ivan viu-se obrigado a
contratar o matador de aluguel, tolerá-lo durante os dias de serviço e emprestar-lhe
a um amigo o dinheiro correspondente à abertura de um boteco. Nesta sequência de
acontecimentos, até certo ponto negativos, Ivan reflete sobre sua onda de azar: “O
mundo começou a desabar ao meu redor” (idem, ibidem, p. 97). Depois disso, o
narrador ainda apresenta, de uma só vez, outras duas desgraças decorrentes da
fase ruim de sua vida:

Uma noite, ao chegar em casa, encontrei a empregada me esperando na


cozinha. Ela reclamou que seu salário estava atrasado – era Cecília quem
cuidava disso, porém a empregada disse que não se encontrava com ela
fazia dias. Estranhei e fui conferir. E descobri que minha mulher tinha saído
de casa. (AQUINO, 2011, p. 97).

Todavia, a degradação de Ivan mediante a presença do invasor, Anísio, se


compõe através do singulativo-anafórico, como se percebe no primeiro dia do novo
segurança da construtora: “Na manhã seguinte, quando cheguei à construtora,
Anísio já estava lá. Sentado numa das poltronas da recepção, ele conversava
animadamente com nossa secretaria.” (idem, ibidem, p. 78). As outras descrições
em cenas singulares do encargo de Anísio intensificam, da história (do externo, da
diegese) ao discurso (do interno, filtrado por Ivan-narrador), a intrusão do matador
de aluguel, como em “Assim que cheguei, vi um carro deixando um de nossos
funcionários mais assíduos” (id., ib., p. 87) ou “Anísio me aguardava na entrada do
estacionamento” (id., ibid., p. 102).

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Anais

Nota-se, pois, que é o singulativo dos acontecimentos na narrativa que condiz


com a invasão de Anísio, por intermédio da recorrência e intensificação gradual da
figura do homicida e, quando não, esse singulativo condiz com os acontecimentos 462

axiologicamente negativos ocorrentes na vida do narrador-herói. Portanto, a


frequência em O invasor condensa, no discurso, tanto o signo da invasão junto aos
signos do medo e da inadequação (de Ivan), quanto o signo do azar ou mau agouro.
Distante do presente, do atual momento de Ivan, o tempo da montagem da
construtora, ocorrido há anos, fica a encargo da memória do narrador, a partir da
narrativa repetitiva, como se lê em “Quando saímos da faculdade, Estevão usou o
dinheiro da família para abrir a construtora. Como éramos amigos, ele nos deu parte
na sociedade.” (AQUINO, 2011, p. 13)” ou “Lembrei dos nossos primeiros tempos ali.
Estevão, Alaor e eu. Três caras cheios de planos e sonhos” (idem, ibidem, p. 109). A
partir desse discurso repetitivo de Ivan sobre um acontecimento ocorrido uma vez,
apreendem-se os signos da união, da lembrança, compostos, gradualmente, pela
repetição memorial-discursiva.
No tocante à rotina das personagens de O invasor, observa-se o desvelamento
dos caráteres escondidos por trás do singulativo. Como ilustração, recorda-se da
cena singulativa em que, após a saída do prostíbulo, o narrador dialoga com Alaor e
este lhe diz: “Eu tenho de ir lá [prostíbulo] com frequência. Sabe como é: a gente
nunca pode descuidar dos negócios” (AQUINO, 2011, p. 30). Nota-se, neste caso,
que Alaor conduz com o aspecto iterativo (‘tenho de’, ‘frequentemente’ = o que se
passou n vezes) a um quadro moral: um amigo dos tempos de faculdade, sócio em
uma construtora, que esconde do outro amigo ser sócio de um prostíbulo (com
adolescentes, inclusive), mas que, somente após aliança em um plano homicida,
conta-lhe tudo o que já é rotineiro.
Outro desvelamento de caráteres de personagens, descrito uma vez na
narrativa e n vezes na história, converge com a chegada de Ivan à casa de Paula
para a efetivação da fuga, em que o narrador, ao não encontrá-la e vasculhar os
objetos do quarto dela, traz à tona uma surpresa: “Em todas elas [fotos], Paula
aparecia seminua. Paula era uma das prostitutas de Alaor. (...) Desde o começo, ele
[Alaor] não confiava em mim. Por isso, colocou Paula por perto, para monitorar meus

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movimentos.” (AQUINO, 2011, p. 114). Consta-se, pois, que o aspecto durativo (das
formas verbais era, confiava, monitorar/monitorava) descreve Paula como prostituta
de Alaor e cúmplice do seu plano, isto é, Paula não era a vítima que Ivan previa, 463

mas sim a coadjuvante do seu vilão.

Modo

Há também na obra, o teor volitivo-emocional do narrador (numa relação ‘eu x


outro’), implicado no discurso das personagens, quando Ivan, por exemplo, faz
menção à fala de Alaor, após deixarem o prostíbulo: “Olhei para Alaor, que batucava
eufórico no painel do carro, falando de um endereço onde iríamos nos divertir muito,
e invejei-o.” (AQUINO, 2011, p. 14, grifo nosso). Nesse discurso narrativizado ou
contado, o narrador infere com sua carga volitivo-emocional, no caso, a inveja,
reduzindo a fala da personagem que o acompanha. Outra recorrência do teor
volitivo-emocional no discurso narrativizado ou contado de Ivan e seu primeiro
encontro com Paula é: “Conversamos sobre tudo. O céu e o inferno. Música (...).
Livros (...). Cinema (...). Comidas (...). Religião (...). Viagens (...).” (idem, ibidem, p.
68, grifo nosso).
Já neutro, sem implicações nos discursos alheios, o narrador traz a lume o
tempo real, simultâneo, a ponto de construir, gradualmente, a intensidade da
história, como se observa no discurso relatado ou reportado de Ivan, que liga para
Alaor:

A figura [Anísio] está aqui.


Eu sei, Alaor disse. Liguei de manhã avisando a Márcia que o segurança ia
começar a trabalhar hoje.
Você falou com o Norberto?
Alaor ficou em silêncio. Achei que a ligação tinha caído.
Alô, Alaor?
Eu estou aqui, Ivan. Você se esqueceu daquele negócio que eu disse sobre
as conversas pelo celular?
Foda-se. Você falou com ele ou não falou?
Falei, Ivan, falei.
E aí?
(AQUINO, 2011, p. 79)

Lado a lado com a explicitação proximal dos acontecimentos e sua tensão,


abstraída a partir do tempo real, está a intensidade do ‘eu’ que narra/vê e recepciona

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os acontecimentos, como se nota após a contratação de Anísio: “Eu também deveria


estar feliz. Mas não conseguia. Estava me sentindo sujo, cansado, doente.”
(AQUINO, 2011, p. 14). Nesse fragmento, a focalização recai sobre Ivan e este, por 464

ser narrador e personagem, sabe o tanto quanto sabe (narrador = personagem), na


medida em que expõe sua interioridade, sua crise psicológica e, axiologicamente, se
coloca como diferente de Alaor, seu caráter e naturalidade.
Ademais, ao fim do nó da narrativa, Ivan expressa o seu querer (matar Alaor),
reflexo do clímax de sua crise interior, em: “Rodei sem rumo pela cidade durante
horas (...) minha pressa tinha acabado. (...) Só queria encontrar Alaor – antes que
Anísio me achasse.” (AQUINO, 2011, p. 116). Outro exemplo que reforça a recepção
de Ivan é quando se descobre Alaor proprietário do prostíbulo: “Fiquei atento
olhando para o rosto daquele homem ao meu lado, como se o estivesse vendo pela
primeira vez.” (idem, ibidem, p. 32).
Amiúde, a explicitação do interior de Ivan por meio da focalização interna se
concatena, coerentemente, na narrativa com o mistério que a obra encerra, afinal, o
narrador, que é a personagem, sabe o equivalente a todos os acontecimentos, já
que os viveu anteriormente. Então, em O invasor, o mistério se processa em não
revelar todos os acontecimentos, ou melhor, suspendê-los e somente revelá-los
gradativamente. Assim, dessa regulagem ou paralepse, o mistério e seu efeito, o
suspense, estão em consonância com o desmascaramento das ações, das
personagens, tal qual em: “A frase que Anísio disse (...) teve o impacto de um soco
em meu estômago: Leva a ruivinha com você.” (AQUINO, 2011, p. 110). Neste caso,
a paralepse reside no fato de Ivan informar apenas o necessário para o mistério e
suspense da narrativa (ou seja, que ele e a inocente Paula são vigiados) e não os
acontecimentos como um todo (ou seja, que Paula integra o plano de Alaor,
Norberto e Anísio).
O mistério e o suspense truncados na paralipse figuram-se no desenlace da
novela, no momento em que Ivan, após entregar-se a polícia e delatar os crimes
cometidos, é levado em uma viatura para Alaor, Norberto e Anísio: “Olha só o que
vocês me aprontaram. Alaor baixou a cabeça, evitou olhar para mim. Anísio me
encarou. Tinha um ar de vitória no rosto.” (AQUINO, 2011, p. 122). Vê-se que a

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paralepse está na indefinição do final tido pelo narrador Ivan, que, embora se saiba
que sobreviveu, afinal é ele que narra, não se revela como sobreviveu às mãos dos
assassinos e comparsas. 465

Voz

Ao tratar-se de mistério e suspense em O invasor, constata-se que, no âmbito


da narração, a obra toda é construída a partir de fatos já ocorridos e, em decorrência
dessa narrativa ulterior, as lacunas são preenchidas gradualmente (por anacronias,
analepses), como se percebe no fragmento, durante a contratação de Anísio:
“Quando saímos da faculdade, Estevão usou o dinheiro da família para abrir a
construtora. Como éramos amigos, ele nos deu parte na sociedade.” (AQUINO,
2011, p. 13). Atenta-se, neste caso, que a lacuna posta em jogo a Anísio é a
propósito da montagem da construtora.
Já no capítulo da conversa de Ivan e Estevão, as ações acontecem
simultaneamente, isto é, por uma narrativa simultânea, só que com cujo efeito é a
apresentação do majoritário a ser assassinado, como se lê no recorte: “Começam
aparecer na barba de Estevão os primeiros fios brancos. Nos cabelos, eles já são
maioria e dão um tom acinzentado à sua cabeça” (AQUINO, 2011, p. 35). Trata-se,
neste trecho, de uma tentativa de aproximação a Estevão, dado que tal capítulo é o
único de toda novela em que o majoritário age, fala.
De uma forma geral, todo mistério, engendrado na história do jogo de
interesses da burguesia paulistana, só se define enquanto tal através das escolhas
do nível intradiegético, com narrador autodiegético, uma vez que a este lhe é cabido
a incumbência de narrar a própria história, a partir da relação entre o contar e o não-
contar. Lê-se, pois: “Fiquei quieto, olhando para o rosto daquele homem ao meu
redor. Ali estava o meu sócio Alaor, o inofensivo Alaor, meu amigo desde os tempos
de faculdade, a quem eu pensava que conhecia bem.” (AQUINO, 2011, p. 32).
É, pois, o narrador, presente na narrativa como protagonista ou narrador
autodiegético, que se situa em uma posição de não-saber mais do que as
personagens que o cercam (isto é, mediado pela focalização interna fixa) no nível
intradiegético, a ponto de elevar ao extremo a loucura decorrente da sua crise e

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denunciar Alaor, Anísio, os demais e a si à polícia, sem oscilar perante a possíveis


consequências: “Contei toda a história. O homem não chegou a tomar notas ou fazer
comentário. (...) Estávamos em sua sala e a placa sobre a mesa informava que ele 466

era o escrivão de plantão no distrito policial.” (AQUINO, 2011, p. 119).

Em suma...

Por meio da narratologia de Genette (1995), depreende-se uma gama de


signos em O invasor, que se definem enquanto tais sendo um todo, constituído de
conteúdo (temas) em coerência com a forma (estrutura narrativa).

Tabela 1 – Análise estrutural da narrativa de O invasor

ESTRUTURA NARRATIVA SIGNOS


semiótica narrativa de Genette (1995) análise do discurso narrativo de O invasor

analepse (recuo) interesse, individualismo, atenuação conjugal


prolepse (avanço) volitivo-emocional, avidez
pausa (TN = n, TH = 0. Logo: TN ∞ > TH) inconcretude psicológica
cena (TN = TH) simultaneidade
sumário (TN < TH) aceleração
elipse (TN = 0, TH = n. Logo: TN < ∞ TH) –
singulativo (1N/1H) mau agouro, azar
singulativo-anafórico (nN/nH) invasão, medo, inadequação
narrativa repetitiva (nN/1H) união, lembrança
narrativa iterativa (1N/nH) desmascaramento
discurso narrativizado ou contado volitivo-emocional
discurso relatado ou reportado simultaneidade
focalização interna interioridade
paralepse mistério, suspense, desmascaramento
narrativa ulterior mistério, suspense
narrativa simultânea aproximação
nível intradiegético –
narrador autodiegético não-saber

Fonte: autoria própria

Em suma, tem-se na novela O invasor, de Marçal Aquino, um complexo e


coerente enredamento a serviço da narrativa, sua organicidade e verossimilhança:
na imanência, depreendida pela análise textual, constata-se que o narrador
autodiegético, utiliza-se da paralipse, da focalização externa e do aspecto iterativo
para, gradativamente, desvelar os acontecimentos, as personagens e a podridão
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Anais

humana, de modo a apreender a atenção do leitor, uma vez que tais elementos
narrativos não culminam, de forma tangível, com o final da obra, nem com sequência
narrativa que possa induzir uma leitura convergente a ele. 467

Pondera-se também que o ritmo acelerado/desacelerado, advindo das


variantes cena/sumário e singulativo/iterativo, corrobora com a fluidez da obra, já
que delimita o discurso a qualquer monotonia. No entanto, esse ritmo só se realiza
em meio à segunda história da novela de Marçal Aquino: a invasão de Anísio no
espaço elitista, da ostentação e da aparência. Invasão no sentido de deflagração
moral das personagens, sobretudo Ivan, e o peso da mancha individualista que
carregam, em consequência do interesse próprio.

Conclusão

Atestou-se, por meio deste estudo, que a análise da narrativa de base


genettiana proporciona a abstração dos signos de uma obra literária, na coerência
interna do discurso, uma vez que tempo, modo e voz, enquanto categorias da
narrativa, no âmbito dos significantes, balizam a história ou diegesis, no âmbito do
significado, de modo a possibilitar um método cujo objeto, o discurso da narrativa, se
coloque como suscetível de uma análise textual de sua significação como um todo.
Além disso, atestou-se, pois, que a novela O invasor trata tematicamente do
jogo de interesse por trás das relações econômicas da elite paulistana. Ao
apresentar esse tema na diegese, o narrador o desmascara e coloca-se como um
impossibilitado do saber, através da focalização externa, e como um ser em conflito
psicológico, através da simultaneidade dos tempos da história e da narrativa e da
interiorização do discurso.
Subentende-se, portanto, que a arquitetura formal da novela O invasor,
suscetível de uma análise do discurso narrativo, se deve também à capacidade
criadora do escritor Marçal Aquino, que se utiliza de temas simples, cotidianos,
presentes nos jornais e noticiários, como o “interesse” e a “violência”, sem deixá-los
à mesmice, mas, do contrário, tece-os genuinamente no acabamento da sua obra.

Referências

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

AQUINO, Marçal. O invasor: novela. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
468
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa:
Vega, 1995.

A estrutura e o tema na poesia contemporânea,


antologia poética “A chuva nos ruídos”, de Vera
Lúcia de Oliveira
The structure and theme in contemporary poetry, poetry anthology “The rain
in the noise”, by Vera Lúcia de Oliveira

Kátia Cristina Pelegrino Sellin (UFMS-PG)


Dr. Ricardo Magalhães Bulhões (UFMS-PQ)

RESUMO: Tomando por base as noções de análise estrutural, porém sem deixar de lado a temática,
procuraremos no presente trabalho de pesquisa fazer leitura interpretativa de alguns poemas que
compõem a antologia poética “A chuva nos ruídos”, de autoria da poeta brasileira contemporânea
Vera Lúcia de Oliveira. Com versos minimalistas, alguns compostos de uma única palavra, os
poemas são de uma criação original, textos claros, objetivos, que também nos direcionam a reflexões
filosóficas, a partir das coisas simples que se relacionam com a vida e a existência humana. Ainda
que sejam linhas simplistas, o estilo autoral aponta para o uso de figuras de linguagem diversificadas.
Cabe-nos fazer uma leitura atenta com o objetivo de elucidar que o tema acaba por se vincular à
forma, sendo elementos associáveis no horizonte da interpretação literária.

PALAVRAS-CHAVE: Estrutura. Tema. Poesia contemporânea.

ABSTRACT: Based on the concepts of structural analysis, but without neglecting the issue, try the
present research do interpretive reading some poems that make up the poetry anthology " The rain in
the noise", by the contemporary Brazilian poet Vera Lucia Oliveira. With minimalist lines, some
composed of a single word, the poems are an original creation, clear texts, goals, which also directs
us to philosophical reflections, from the simple things that relate to life and human existence. Though
simplistic lines are the copyright style points to the use of diverse language figures. We must make a
careful reading in order to elucidate the theme ends up linking to form, being assignable elements in
the horizon of literary interpretation.

KEYWORDS: Structure. Theme. Contemporary poetry.

Introdução

“A chuva nos ruídos”, antologia poética de Vera Lúcia de Oliveira, é composta


de uma coletânea dos livros da autora, como “Pássaros convulsos”, “Tempo de
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doer”, “Pedaços”, “Geografias de sombra” e “A porta range no fim do corredor”. A


autora possui um estilo próprio e original, seus poemas não têm pontuação, os
títulos estão em caixa alta (letra maiúscula) e o corpo do texto está em itálico, todo 469

em letra minúscula.
Dentro da estilística, são textos repletos de metáforas, onomatopeias,
antíteses, prosopopeias, trocadilhos, aliterações, formando poemas raros, com ritmo
e musicalidade, com pura transmissão de uma mensagem de que a vida é
sofrimento, mas também é doçura: “adoecia para ver o pai despetalar-se” e “não se
envergonhava de amar”. O amor, que todo sofrimento amaina, também aparece em
seus versos. Ela trabalha com a alquimia de palavras, transformando metais baratos
em ouro, lapidando os vocábulos como se fossem pedras preciosas, transforma,
enfim, em especial aquilo que é banal.
Vera Lúcia de Oliveira nasceu em Cândido Mota - SP, em 1958. É formada
em Letras pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP (1981) e em Línguas e
Literaturas Estrangeiras Modernas pela Università degli Studi di Perugia (1991). Em
1983 recebeu bolsa de estudo do Ministério do Exterior para especializar-se na
Itália, onde atualmente reside. Concluiu o Doutoramento em Literatura Brasileira na
Università degli Studi di Palermo. Atualmente ensina “Língua e Literatura
Portuguesa”, “História da Cultura Brasileira” na Università degli Studi di Lecce e
ministra cursos de pós-graduação no Brasil sobre a poesia modernista.
Morando e lecionando na Itália, a autora considera que o Brasil é mais
conhecido pelos seus aspectos considerados exóticos (carnaval, futebol, praias,
belas mulatas,...). Diz que a maior parte das pessoas fica nisso, nesta imagem
estereotipada. Por outro lado, ela provoca os seus alunos desmontando com eles
lugares comuns, através do estudo da nossa cultura, da nossa história, da nossa
literatura, demolindo a construção ideológica. Assim, seus alunos vão descobrindo o
Brasil como é realmente, com todos os defeitos e qualidades. Eles se entusiasmam,
querem ir a fundo, perguntam, pesquisam. Para ela, a poesia não é progresso, até
porque há tanta coisa que não é progresso e nem por isso é negativa, muito pelo
contrário. No entanto, é o processo fundamental do pensamento, da criação artística
e literária. Cita o "caminhar" do poema como um andar de outra forma. Aliás, é uma

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falta de andar para o essencial, para onde está a raiz das coisas, o cerne do tempo
e da memória, o “osso” da consciência.
Quando questionada sobre o que é necessário para ser poeta, Vera Lúcia diz 470

que não sabe e até hoje ainda quer saber. Fica perscrutando dentro de si para
colher o momento da poesia, e nunca é quando espera. Para João Cabral de Melo
Neto, a poesia é construção, junção de um tijolinho sobre o outro, ordenadamente,
quase matematicamente. Ela acha que Manuel Bandeira era mais honesto, quando
dizia que não sabia de onde vinha a poesia, mas que ele a aceitava, humildemente,
de onde quer que fosse que essa jorrasse. Ela também pensa assim. Basta que
jorre de vez em quando, que nos dê essa sensação maravilhosa de ter posto, por
um breve instante, as mãos nesse fio misterioso e subterrâneo que escorre, como a
eletricidade, e que é a vida.
Da leitura à interpretação

Na construção da estrutura do poema da poeta Vera Lúcia de Oliveira,


notamos uma preocupação com a forma para a melhor transmissão de suas
mensagens, com farto emprego de metáforas e outras figuras de linguagem usuais
como antítese, honomatopeias, prosopopeias e, principalmente, aliterações.
De acordo com Alfredo Bosi (2003), interpretar é eleger, escolhendo
possibilidades semânticas e ler é colher tudo quanto vem escrito, é questionar: “o
que o texto quer dizer?”. Diz que a interpretação literária não pode deixar de ser um
projeto cultural aberto.

Na invenção do texto enfrentam-se pulsões vitais profundas (que


nomeamos com termos aproximativos de desejo e medo, princípio do prazer
e princípio da morte) e correntes culturais não menos ativas que orientam
os valores ideológicos, os padrões de gosto e os modelos de desempenho
formal (BOSI, 2003, p. 461).

Quando nos dirigimos ao estudo de textos literários, em busca de uma


interpretação, temos que de fato perceber que o que o texto deseja é tocar um alvo
difícil e para tanto temos que: elaborar um discurso de compreensão. Apreender
uma palavra é analisá-la enquanto vocábulo, buscando a sua significação e a sua
origem etimológica. Bosi (2003) diz que é segurar com a sua palavra o que já é, em

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si, a resultante formalizada de operações complexas de projeção, deslocamento,


condensação, sublimação, degradação, mascaramento, desmascaramento,
harmonização, ideologização, etc. 471

A compreensão não impõe critérios explicativos absolutos e excludentes. O


mesmo complexo simbólico, por exemplo um romance polifônico, os irmãos
Karamazov de Dostoiévski, exprime poderosas tensões de ordem
existencial (nas falas e nas ações das personagens), revela conflitos sociais
cortantes (nas situações de classe ou de grupo vividas ao longo da trama),
articula correntes ideológicas “russas” e “europeizantes” (nos juízos de valor
pelos quais o autor dá a conhecer a sua visão de mundo), além de perfazer,
pela sua elaborada construção, moldes romanescos e estilísticos que o
constituem como obra ficcional (BOSI, 2003, p. 476).

Para Bosi (2003) quando estamos pensando nos grandes modelos de


interpretação que a história da crítica nos apresenta, caímos em um relativismo total,
pois cada época tem seus módulos de interpretação. Quanto mais denso e belo é o
poema, tanto mais entranhado estará em seu corpo formal o “mundo” que se abriu
no evento e se fechou no claro-escuro dos signos. Dessa forma, refazer a
experiência simbólica do outro, cavando-a no cerne de um pensamento que é teu e
é meu, por isso universal, eis a exigência mais rigorosa da interpretação.
Michael Hamburger (2007) fala sobre a verdade da poesia, especialmente da
poesia moderna, dizendo que essa verdade deve ser encontrada não apenas em
suas afirmações diretas, mas também em suas dificuldades peculiares, atalhos,
silêncios, hiatos e fusões.
Em suas considerações na leitura de “Campo de flores”, João Luiz Lafetá
(2004) fala da leitura estrutural, declarando que a sintaxe torna-se, pois, um
elemento estruturante e significante do poema; já a metáfora, quando examinada,
parece pertencer a esse mesmo tipo de elemento estruturante. Ocorre
simultaneamente um movimento de diferenciação e um de reiteração de
significados, que afinal se fundem. Lafetá (2004) também fala das tensões
existentes nos paradoxos, tensões estas que geralmente são identificadas nas
polaridades, contrariedades e oposições de ideias.
Com o objetivo de direcionarmos a presente pesquisa para ramo da análise
estrutural nos poemas do livro “A Chuva nos ruídos”, no entanto, sem deixar de lado
a temática, dentro do sentido daquilo que se quis dizer, vamos interpretar alguns

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poemas mais marcantes, bem como analisar a obra de maneira geral, na tentativa
de eliminar possíveis equívocos de leitura e interpretação.
472

A presença da palavra OSSO

A palavra “osso” está presente em muitos poemas da primeira parte do livro,


coletânea da obra “Pássaros convulsos”. O substantivo “osso” é por vezes
apresentado em seu estado concreto, como uma peça na composição esquelética
do ser humano, assim como é o tijolo em uma construção. Por outro lado, é na
maioria das vezes usado como uma metáfora. O “osso” é o traço da existência e da
morte na criação de uma secura que não permite intervalo da inconsciência: “o
universo inchado que não lateja por não ter osso”.
As coisas palpáveis através do tato, o qual é representado pelo tempo,
remete à ideia de que tudo é trituração, absorção, lucidez e intermitência; os
compostos palavras-ossos, palavras-tijolos, palavras-pedras, palavras-juízos
representam toda essa concreção mencionada, de que o abstrato planeja a
claridade e o concreto tem seu lugar no universo material da poesia.
No primeiro poema, “ave em carne viva / ave em tumulto / ave no osso” temos
a palavra empregada em sentido figurativo. Assim acontece também no poema
“Pastores de pássaros”, quando cita “a tarde convocou pastores de pássaros / os
que sabem ler frus-frus de osso / percorrendo a noite a latejar tijolos”. No poema
“Moenda”, o osso torna-se algo mole: "moendo e remoendo grãos / graves como
dentro / os vórtices / o sol da tarde / o osso mole dos panos / o barulhinho do sangue
/ raspando-se nos ângulos”. Em “O bojo das coisas”, também o osso fica mole:
“como as pedras se fincam / no osso mole da terra”. No poema “O abandono”, a
palavra muda de sentido, representando lugar: “porta lentamente / batida no osso /
um baque de corpo / coxo”. Em “Pássaros convulsos”, osso apresenta o mesmo
sentido do poema anterior: “destroçam-se em vôo natural / batem contra os ossos /
surdos”. No poema “O vento não conhece”, o grão trabalha no osso: “o vento não
conhece / a sede do grão / que trabalha / sua subversão / no osso”. No poema “A
passividade”, o lirismo em torno da palavra osso: “golpear no golpe / amar o osso /

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da dor”. Em “Luz da tarde”, o osso novamente representa lugar: “a luz abre buracos /
aguça entranhas / lúcida olhos na tarde que caminho / palpando tudo / no osso”.
473

Do OSSO ao tijolo

Assim como o osso é peça fundamental na composição do esqueleto


humano, ou seja, ajuda a montar a nossa base; o tijolo é também fundamental na
estrutura de uma construção. A união das peças forma a obra, do mesmo modo que
a união de palavras forma um texto literário.
O poema livre “Tijolo” mostra em poucas palavras e de maneira minimalista,
com apenas duas estrofes, a primeira com um dístico e a segunda com um terceto,
o uso metafórico de tijolo com o significado de dureza e de algo primitivo, em
iniciação.

TIJOLO
a casa está doendo seus cantos
tendas rachaduras e vãos

está de través
como um tijolo
urdindo seu início de olho
(OLIVEIRA, 2004, p. 12)

Quanto ao tema, a metáfora do tijolo, como uma peça de quebra-cabeça,


remete a um elemento indispensável que precisa de outros semelhantes para
exercer a sua função. Para efeito de sentido, “osso” e “tijolo” transmitem a ideia de
resistência.
Alfredo Bosi (2010) afirma que certas metáforas não só traduziriam estados
anímicos habituais no autor como dariam forma a correntes ideológicas supra-
individuais e seriam, por isso, representativas de tensões que ocorrem no interior da
sociedade. Portanto, o círculo interpretante é assim alargado pela força das próprias
significações encontradas em dados particulares da leitura; e o todo, a que se refere
a leitura circular, receberá qualificações psicossociais.

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Segundo Bosi (2010), a linguagem própria serviria à prosa; a linguagem


figurada, à poesia. Então a teoria literária do ecúmeno ficou literalmente tomada pela
obsessão de descobrir, recortar e classificar as estruturas linguísticas e retóricas de 474

todos os textos jamais produzidos pelo homo loquens.

Projeto de identificar o caráter próprio da literariedade da literatura, por


oposição aos outros modos e usos da linguagem que suprem as
necessidades da comunicação entre os homens. A poeticidade mesma teve
que passar pelas apertadas grades (grilles) de certos paradigms cuja
presença lhe concedia registro de identidade. Há paradigma projetado sobre
a cadeia sintagmática? Há duplicação? Há binarismos e paralelismos? A
rima com A, B com B, sendo que AA se opõe a BB? Então, seguramente,
há função poética (BOSI, 2010, p. 25).

Quanto à perspectiva estrutural, Bosi (2010) fala de onde estava o


fundamento científico dessa busca universal e sistemática de redundâncias. Diz que,
sem dúvida, na linguística estrutural fundada por Saussure e matizada por um
linguista sensível à poesia, Roman Jakobson, a linguagem verbal supõe a vigência
de um código no qual alguns poucos elementos parassemânticos se combinam, logo
voltam periodicamente para formar unidades de significação.

De fato, que poema jamais conseguiria subtrair-se àquela constatação óbvia


das regularidades linguísticas? Ritmo é repetição. Metro é repetição.
Recorrem os morfemas de gênero, número e grau bem como flexões
pronominais e verbais. A morfologia é um esquema de classes que
necessariamente se repropõem e se combinam. O mesmo se dá com a
sintaxe: sujeito, predicado e complementos integram todas ou quase todas
as frases (BOSI, 2010, p. 26).

É o que notamos em vários poemas de Vera Lúcia de Oliveira. O poema


“Tijolo”, por exemplo, é prosaico no sentido de apresentar uma descrição e também
na composição sintática simplista, formação convencional dos termos essenciais da
oração, o sujeito a casa, o verbo de ligação “estar” e o predicativo do sujeito. O uso
do tempo presente “está” aproxima o enunciador do seu destinatário (leitor).
No verso “A casa está doendo” percebemos o uso da figura de linguagem
chamada prosopopéia, pois casa não dói. Ela é um ser inanimado. A dor é para
seres vivos. Há também o uso da figura de aliteração: “entre a dor e o amor,
aprendo”, com a repetição do fonema “d” em “dor”, “doendo” e “aprendo”.

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Há nos versos a figura humana tentando se entender em um manancial de


tensão existencial, gerando um conflito que só será solucionado à medida que o eu
lírico se aproxima do princípio das coisas, do “início de olho”. 475

Presença de lirismo

Em suas considerações na leitura de “Campo de flores”, João Luiz Lafetá


(2004) discursa sobre a temática do amor, quanto à imagem do poeta que, posto
defronte ao amor, ama e investiga, sente e procura a causa do sentir, interioriza e
tenta exprimir, no seu poema, o “ser objetivo” daquilo que sente.
No poema “O indizível”, o eu lírico fala de um amor que não pode ser
revelado, está oculto, um sentimento que, quando é dado, tem a sua perda sentida,
ou seja, quando se dá amor, perde-se o mesmo amor.

O INDIZÍVEL

dentro de mim
o oculto
amor

não te dou senão


o que vou tecendo
de perda em perda

o que dou já se destrói


o que dou perverte
o que dou
(OLIVEIRA, 2004, p. 85)

Este lirismo é considerado por Fábio de Souza Andrade (2010) como um


elemento do movimento básico da poesia, particularmente a moderna, de “inscape”.
A busca de um abrigo, de um refúgio na interioridade. A lírica é a um só tempo a
porta e a chave que possibilitam este voltar-se para dentro de si mesmo, difícil em
tempos que tendem à publicidade total e cultuam a completa extroversão.
Quando Fábio Andrade (2010) fala de oposições, a figura responsável por
esta justaposição de contrários – o oxímoro – está particularmente presente na
poesia final de Jorge de Lima.

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Trata-se da expressão tensa, que força e estende metaforicamente os


limites dos significados para dar conta de novas realidades. A própria
poesia não faz mais do que potencializar os significados latentes nas 476
palavras e descobrir novas possibilidades de significado (ANDRADE, 2010,
p. 134).

O psicanalista francês Lacanv, diz que latente é aquilo que existe e não se
manifesta, o não dito, sendo esta uma visão alicerçada pela psicanálise. Temos
como exemplo o poema “O indizível”, o qual trabalha um não dito, o amor oculto,
que acaba sendo dado sem ser revelado e, talvez por isso, resulte em perdas.

Texto e intertexto

Em seu texto “Sobre alguns modos de ler poesia: memórias e reflexões”,


Alfredo Bosi (2010) discursa sobre as noções de intertextualidade. Diz que o poema
novo é refacção, glosa ou paráfrase. Retrocede-se a concepções retóricas
seiscentistas para banir de vez a ideia de plágio.

“O senhor sabe que todo texto é um intertexto?” – perguntou-me


glacialmente em Paris uma especialista na marginalia de Flaubert. Prudente
ouvi e nada respondi. Quando o tom muda, mas o velho fraseio se mantém,
diz-se que o poema é paródia ou carnavalização de outro poema. Ou
pastiche ou centão. As teorias de Bakhtin aplicadas pontualmente a
Rabelais são extrapoladas desabusadamente. A literatura nada mais seria
do que um contínuo espetáculo, variamente encenado, da própria literatura.
Textos gerariam textos por partenogênese. A imagem lírica já não mais
revelaria abertura da palavra à existência como postulavam Croce ou, com
diversa filosofia, os fenomenológicos e seus discípulos existencialistas
(BOSI, 2010, p. 41).

O poema “Canção de exílio às avessas”, é típico exemplo das tais noções de


Alfredo Bosi, pois sofreu uma evidente influência intertextual em relação ao
conhecido poema do Romantismo, “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias.
Intertextualidade presente no título com uma clara identificação de que se trata de
paródia, principalmente devido à expressão “às avessas”.

CANÇÃO DO EXÍLIO ÀS AVESSAS

cidade

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antiga
cansaço pulsa e corta o tempo
presente
477
chão arado pelas guerras
consumido pelas horas
produz e expande erva daninha na fecundidade
mutilada

caminho outro país


olho outros rostos
sinto outras raivas

apodrecer em outro país


é uma dor que não satisfaz nunca
(OLIVEIRA, 2004, p. 111)

Trata-se de uma reformulação da “Canção do exílio”, de maneira que não há


exaltação da terra natal, mas sim o contrário disso, portanto, justifica-se o uso da
expressão “às avessas”.
Há o uso das palavras “outro, outros, outras”, sendo uma repetição proposital,
para reforçar a noção de que tudo mudou e sempre muda, nada permanece do
mesmo jeito.
Ocorre a oposição de ideias, antítese: “cidade antiga x tempo presente”,
“fecundidade x mutilado”. Reforço para “raivas”, “dor”, “apodrecer”: abundâncias de
palavras com a letra “p”: pulsa, tempo, presente, pelas, produz, expande, país,
apodrecer. Mensagem do poema: o eu lírico sente forte sentimento de melancolia
mediante a possibilidade de morrer fora de seu país de origem. “Apodrecer em outro
país / é uma dor que não satisfaz nunca”.

Da crítica à análise dos poemas de “A chuva nos ruídos”

O professor da USP, poeta e crítico literário Alcides Villaça (2010) diz que o
trabalho da crítica é um trabalho de iluminação do texto. Sob esta noção podemos
afirmar que o livro de Vera Lúcia de Oliveira apresenta poemas que inspiram o

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método e a técnica. Villaça (2010) cita ainda o “campo metafórico em que o poeta
acusa o esvaziamento interior e a alienação básica do nenhum contato efetivo com o
cotidiano e o mundo” (VILLAÇA, 2010, p. 145). 478

Os poemas analisados são do tipo poemas livres, os quais são compostos por
versos livres e soltos, sem metrificação, com ausência de rimas. Antônio Cândido
(2002), por outro lado, diz que quando enfrentamos um poema escrito segundo a
versificação tradicional, devidamente metrificado e rimado, a análise tende a se
apoiar nas características aparentes, que definem a fisionomia poética. Metro, rima,
ritmo, cesura, divisão em estrofes atraem logo a atenção e, servindo para trabalhar o
texto em certo nível, podem induzir o analista a não ir mais longe, e a não tirar deles
o que podem realmente “significar”. Portanto, a partir do ponto de vista de Cândido
(2002), consideramos que os poemas livres proporcionam que consigamos tirar
significados sem nos prendermos tanto à estrutura.

Elementos “materiais” do poema são portadores de sentidos que contribuem


para o significado final (...). Mas quando se trata de um poema não-
convencional, isto é, sem métrica, nem rima, sem pausa obrigatória nem lei
de gênero, a camada “aparente”parece não existir, ou não ter importância
(...). Mesmo que os recursos convencionais de formalização sejam
descartados, os códigos continuam a existir. Na análise de um “poema
livre”, o objetivo inicial é a própria articulação da linguagem poética – fato
mais geral e durável do que as técnicas contingentes que a disciplinam nos
vários momentos da história da poesia (CÂNDIDO, 2002, p. 81).

Quanto à tensão, Cândido (2002) diz que esta tensão subsiste, pois estamos
ante uma estrutura de contradições, a começar pela discrepância entre as duas
partes: na primeira, há descrição objetiva de uma fantasmagoria, que serve de
quadro às principais incongruências lógicas; na segunda, a linguagem é
relativamente direta e pertinente. Todavia esta segunda parte fervilha de paradoxos,
como a contradição entre os meios de comunicação, já indicados, e o seu objeto.
A obra de Vera Lúcia de Oliveira é um manancial para estudos estruturais e
temáticos. Os poemas, embora aparentemente simplistas, trazem uma riqueza de
elementos figurativos e fonéticos, com eficazes efeitos sonoros e bons arranjos.
Também apresentam vocábulos usados com maestria e sentidos que proporcionam
reflexões filosóficas.

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O poema “Aprendo” apresenta a fricativa “v” e a bilabial “p”: “o vício de virar


do avesso o ventre / se palpar a vértebra / onde palpita a voracidade / do ser em
oscilação”. Palavra puxa palavra, imagens puxam outras imagens, símbolos puxam 479

símbolos, formando uma linguagem poética de rara criatividade.


O poema “No teu corpo” exibe a tensão entre algo muitas vezes duradoura
como a dor e o uso do adjetivo fugaz, para que esta dor, desta vez, seja fugaz: “uma
dor que tudo / seja fugaz”.
Em “Os livros”: “os livros deram para tombar da estante, tropeçam... Clamam”,
quem faz isso é gente... “Livros esperneando / mostrando a carne...”, trata-se do uso
da figura de linguagem denominada prosopopéia, atribuindo vida a seres
inanimados.
“Dos loucos” apresenta a tensão existente entre as polaridades viver x morrer,
com a tacitez expressa: “na intermitência / entre morrer de vivo / e viver de morto”;
há também trocadilho nas expressões “morrer de vivo” e “viver de morto.
O poema “Resistência”, ocorre novamente o uso da figura de prosopopeia: “a
casa / respira mansa” e o poema “Geografia”, com fartura de metáforas, ritmo e
musicalidade na profusão de metáfora, em repetição, com beleza incomparável.
Repetição esta da mesma estrutura frasal na construção de cada verso traz ritmo
agradável, capaz de emocionar o leitor exigente: “A dor é um prego cercado de
carne / por todos os cortes”. Havemos aqui de ressaltar os trocadilhos existentes por
entre as metáforas, as aliterações: “parto, penas, poros, portos, golpe, parvos...”.
Em “Infância”, o uso da figura de aliteração com as consoantes “t”: tio, teu,
ontem, desconta, tua tortura, íntima, morte; “úlceras untadas de tristura, tio”, “latão
de lixo no céu”. E a consoante “d”: desconta, de, dado, bojudas, afunda, das,
untadas, de grande... Para transmitir sentimento de profunda tristeza que
provavelmente tenha ocorrido na infância do eu lírico.
O poema “Casa abandonada” está todo formado por comparações certeiras,
com repetição do adjetivo qualificativo, muda casa, “muda” realçando o sentimento
de abandono absoluto e total de uma casa.

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No poema “O sádico”, há o realçar da dor que o próprio sádico provoca na


repetição das consoantes “s” e “c”: sobrevive, constrói, sua, conversa, as migalhas,
ser, só, existe, função, esmaga. 480

O poema “Tortura” mostra que a dor da tortura aumenta à medida que se


repete nas palavras a consoante “t”: costurado, liberto, vasto, óbito, morte, temendo,
retorno, grito, futuro, sendo mais um típico exemplo de aliteração.
O poema “Cândido Mota” traz a reminiscência, a memória da cidade natal da
autora, uma volta no passado que já não a empolga mais, estampando o sentimento
com rima nas palavras “Cândido Mota”, “à porta”, “rua em que me sinto morta”.
“Borboletinha” expõe o uso de neologismos a partir do nome Lívia, nome este
que se repete bastante no poema e serve de radical para formar palavras novas,
derivadas, como: “Livivendo” e “Livigramas”.
Em “Poema para Manoel de Barros” vemos a apresentação da figura de
aliteração com consoante “r”, reforçando a ideia de que o poeta é recluso e
competente: “rasgo, retiro, corpo, enroscado, ventre, caracol, rastejo, relva, arranho,
resvalo, vírgulas, lágrima, espera, dor, atropelar”.
A religiosidade está presente no poema “Gênese de Miró”, com o uso de
expressões como “nova gênese” e “olho absorto de Deus”, ou seja, o olhar distraído
de Deus ao contemplar a nova gênese. Esta mesma presença do sagrado se faz no
poema “Posvérbio”, página 103, o qual remete à passagem de Provérbios da Bíblia,
porém com o prefixo “pós”, em uma tentativa de reformulação. Trata-se de um
poema dístico, com apenas dois versos e uma única estrofe: “depois de ter puído a
pedra / a água perdeu o emprego”.
No poema “Árvores”, há beleza na oposição de imagens, no contraste entre
“copas verdes”, “o céu” e o oposto destas ideias em “chuva”, “os relâmpagos e seus
roncos”.
O poema “Na volta” cita “as andorinhas quando migram buscam o espanto”.
Elas “não buscam a primavera”. Estampa o que preconiza o poeta Ferreira Gullar
quando diz que a boa poesia vem do espanto. Com a vida que “de volta”, da mesma
situação já vivida, às vezes, não se vê mais “primavera” e sim “espanto”. Lindas

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metáforas onde as andorinhas representam pessoas que correm para o passado e


só colhem espantos.
Em “Migração”, algumas metáforas relacionadas com “meus olhos”, que são 481

“tropicais”, “esperam folhas claras vermelhas”, “pássaros”, “esteiros”, “pregados na


luz” e “esperam a tarde (de céu de setembro que nasce) crescer”.
O poema “Postes”, o uso da figura de prosopopéia: “postes pacientes /
amansam a noite”. Quem amansa é gente. Também nas expressões “sabem
conversar” e “nem que o escuro se plante”, o escuro não consegue plantar. “O poste
se assusta”, só gente se assusta. Poema com prosopopeias do início ao fim, mas
com a finalidade de mostrar que seres humanos, às vezes, pensam, agem e sentem
como postes. Postes se personificam na poesia e viram gente e gente vira poste na
vida.
No poema “Infância”, há metáfora: “o mundo / jardineira velha”. “Que me
encanta com tudo”. Sou criança, tenho inocência e candura. Sou pura, por isso “me
encanto com tudo”.
Em “Os olhos do pai” surgem figuras metafóricas em quase todo o texto: O
pai triste era abismo. A morte, fabricadora de patas de cavalo (corre demais, por isso
logo chega), “olhos do pai”: são duas valas, a cidade microfone de sua alma. A
mensagem do eu lírico estampa melancolia ao pressentir que seu pai logo vai
morrer.
No poema “Coisas aflitas”, para realçar o valor das palavras, a poeta emprega
metáforas do início ao fim do poema. As palavras são: “pingos de chuva”, “sólidos
amanhecidos”, “enxurrada de imagens”, “represa de sonhos”, raivas, coisas,
tumultos, filtro, coisas volumosas, coisas aflitas.
Em “Profano as coisas” o eu lírico faz tudo na vida, até profanar, mas sempre
com amor: “profano as coisas por amor”.
“A porta range no fim do corredor” traz o atávico emprego de onomatopéia
para realçar a ideia do nada que é viver: “viver ouvindo gota d’água / poc / poc.
O livro apresenta poemas com satisfatório uso de conotação. A autora utiliza
uma diversidade de figuras de linguagem para enriquecimento de seu estilo
individual. Sua construção poética é simplista, com versos minimalistas, formados às

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vezes de uma única palavra, por exemplo, o último verso do poema “Assis: a
criação”, que apresenta o verbo ser no presente do indicativo “é”, verbo este
formado com uma única letra, a qual formou o último verso. Isto revela a obra de 482

uma autora destemida em sua arte de produzir poesia.

Conclusão

Os poemas de Vera Lúcia de Oliveira são livres de métrica, sem preocupação


com rimas, com estruturas e formas que revelam o quanto a beleza pode estar mais
na simplicidade do que em arranjos rebuscados. A única pontuação que raramente é
usada nos versos da poeta é o emprego do ponto de interrogação. Outra novidade
está no fato de inserir os títulos de cada poema com letras maiúsculas e o corpo dos
textos em letras minúsculas no formato itálico.
São textos poéticos minimalistas, versos curtos, livres e soltos, ausência de
rimas, as quais surgem às vezes ao acaso. Também não há preocupação com a
métrica, fato este que comprova a ideia de Antônio Cândido (2002), quando diz que
quando enfrentamos um poema escrito segundo a versificação tradicional,
devidamente metrificado e rimado, a análise tende a se apoiar nas características
aparentes, que definem a fisionomia poética, podendo nos induzir a não ir mais
longe, e a não tirar deles o que podem realmente “significar”. Por isso, a partir de
Cândido (2002), consideramos que os poemas livres proporcionam que consigamos
tirar significados sem nos prendermos em demasia à estrutura.
Embora com temáticas que revelam um sentido muitas vezes desencadeador
da mais pura reflexão existencial, articulamos nossa leitura a partir dos significados
dos vocábulos, relacionando-os com os dramas da existência humana. Mas não
deixamos de lado as análises estruturais, para que, a partir da forma, verificando as
construções sintáticas, morfológicas, estilísticas, pudéssemos interpretar os poemas
com garantia de eficácia.
A mensagem que pudemos colher da obra, de maneira geral, é a de que na
vida há beleza, mas há também dor, a qual só pode ser amenizada com o amor.
Além da possível tensão existente entre amor e dor, a expressão do título “chuva

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nos ruídos” também pode dizer muito sobre a obra. A metáfora de chuva serve para
algo que lava ou banha, faz passar e, até mesmo, purifica. Metáfora esta que
também serve para o tempo, o qual amaina tudo, abranda o pranto, faz tudo passar. 483

E o termo ruídos, no plural, pode representar as dificuldades pelas quais as pessoas


perpassam na vida, dificuldades estas que são lavadas pelo tempo. Assim como
passa a vida, com a rapidez de uma chuva de verão, passam também os problemas
e as dificuldades.
De uma grande riqueza conotativa são os poemas do livro “A chuva nos
ruídos” e isto fica mais do que confirmado quando nos adentramos na leitura desses
versos que, embora simplistas, minimalistas, revelam um cunho filosófico de
mensagem transmitida pela temática juntamente com a magistral arquitetura dos
versos. Minuciosa reflexão é que o livro nos convida a realizar, restando-nos buscar
outras obras da mesma autora a fim de nos deleitarmos ainda mais com sua arte de
pintar com palavras.

Referências

ANDRADE, Fábio de Souza. A Musa Quebradiça. In: BOSI, Alfredo. Leitura de


Poesia. São Paulo: Ática, 2010, p.125-140.

BOSI, Alfredo. A interpretação da obra literária. In:__________. Céu, inferno. 2 ed.,


São Paulo: Duas Cidades/34. 2003. p. 461-479.

____________. Sobre alguns modos de ler poesia: memórias e reflexões.


In:__________. Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 2010. p. 7-48.

CÂNDIDO, Antônio. Na sala de aula. Caderno de análise literária. São Paulo: Ática,
2002.
HAMBURGER, Michael. A verdade da poesia. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 35-
61.

LAFETÁ, João Luiz. Leitura de “Campo de flores”. In:________________. A


dimensão da noite. São Paulo: Duas Cidades/34, 2004. p. 38-54.
OLIVEIRA, Vera Lúcia. A chuva nos ruídos. São Paulo: Escrituras Editora, 2004.

VILLAÇA, Alcides. Expansão e limite da poesia de João Cabral. In: BOSI, Alfredo.
Leitura de Poesia. São Paulo: Ática, 2010, p.143-169.

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A experiência da leitura: letramento literário na


484

biblioteca escolar

The experience of reading: literary literacy in school library

Ana Claudia Costa de Aquino Teixeira (UEFS/PG)


Flavia Aninger de Barros Rocha (UEFS/PQ)

RESUMO: Um livro, um leitor, uma biblioteca. Um cenário propício e convidativo ao estímulo à leitura.
Com o objetivo de socializar os resultados de uma intervenção pedagógica de leitura, intitulada
“Tempo para o letramento literário: uma proposta de leitura na biblioteca escolar”, o presente trabalho
descreve atividades desenvolvidas com estudantes do quinto ano do Ensino Fundamental I em uma
escola pública municipal situada no município de Feira de Santana/Bahia que se configuram numa
ação de mediação realizada no Mestrado Profissional em Letras (ProfLetras) da Universidade
Estadual de Feira de Santana. Como procedimentos metodológicos foram utilizados: a) a leitura
mediada (SOLÉ, 1998; BALDI, 2009) do livro “O menino e o tuim”, do escritor Rubem Braga (1986),
cujo principal foco é garantir reflexão sobre o gênero crônica literária numa comparação com os
contos clássicos; b) atividades organizadas em sequencia didática (DOLZ & SCHNEWULY, 2004)
que permitiram conhecer o perfil leitor e saber como as crianças de 10 a 12 constroem sentidos a
partir da interação com o gênero selecionado e c) o empréstimo de livros do acervo da biblioteca
escolar. Os resultados apontam que as/os estudantes estão em prontidão a tocar os livros de
literatura da biblioteca escolar dando voz aos muitos saberes relacionados ao texto literário e ainda
sinalizam que a formação do leitor literário está intimamente ligada às experiências de leitura do
mediador. Esperamos que esse material contribua cada vez mais na formação do leitor literário, uma
das metas mais desafiadoras para a escola.

PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Letramento. Literatura. Biblioteca escolar.

ABSTRACT: A book, a reader, a library. A favorable scenario and inviting to encourage reading. In
order to socialize the results of an educational intervention reading, entitled “Time for literary literacy: a
reading of the proposal in the school library”, this paper describes activities with the fifth year of
elementary school students in a public school located in the city of Feira de Santana / Bahia that are
configured in an action of mediation carried out in the Professional Master of Arts (ProfLetras) of the
State University of Feira de Santana. As methodological procedures were used: a) the mediated
reading (SOLÉ, 1998; BALDI, 2009) of the book "The boy and the tuim" writer Rubem Braga (1986),
whose main focus is to ensure reflection on the literary chronicle genre in compared to the classic
tales; b) activities organized in didactic sequence (DOLZ & SCHNEUWLY, 2004) that allowed us to
know the reader profile and learn how children 10 to 12 construct meanings from the interaction with
the genre selected c) the loan of books from the school library collection . The results show that
students are in readiness to touch the school library literature books giving voice to many knowledge
related to literary text and also indicate that the formation of the literary reader is closely linked to the
mediator reading experiences. We hope this material will contribute increasingly in the formation of the
literary reader, one of the most challenging goals for the school.

KEYWORDS: Reading. Literacy. Literature. School library.

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485
Introdução

Ao pensar sobre literatura, volto às primeiras impressões que as leituras


escolares (diga-se de passagem, pouquíssimas) deixaram na minha trajetória de
estudante: O escaravelho do diabo (1972), O menino do dedo verde (1957),
Memórias póstumas de Brás Cubas (1880), O Apólogo (1896), A cigarra e a formiga
(Séc. VI a. C.) entre outras. Apesar de poucas, lembro-me como cada uma delas me
levou a conhecimentos muito significativos sobre o homem, suas vivências,
emoções e valores.
Por meio dessas leituras, ainda que muito timidamente, encontrei um caminho
só meu de recontá-las e reinventá-las a partir da minha realidade de vida. Hoje,
vendo à minha volta com muita empolgação como a literatura se tornou
democraticamente nossa – refiro-me ao plano federal para a implementação das
bibliotecas e de seus acervos na escola e para a escola – fico imaginando o que,
então, ela pode vir a produzir na vida de meninos e meninas, jovens e adultos que
buscam, também na escola, modos de compreensão da vida e de como sobreviver a
ela.
O presente projeto, apresentado ao ProfLetras/Mestrado Profissional em Letras
da Universidade Estadual de Feira de Santana-BA, configurado numa pesquisa-
ação, buscou criar condições para que estudantes do 5º Ano do Ensino
Fundamental I, inseridos numa escola pública municipal de Feira de Santana, por
meio do fortalecimento da compreensão leitora – atribuindo significado ao texto lido,
através do conhecimento prévio, das características do texto, do contexto da leitura
e das estratégias aplicadas a esta leitura –, consolidem aprendizagens para além da
alfabetização e, ainda, possibilitar a ampliação das discussões sobre o tema da
leitura e da escrita como práticas de participação social. Neste sentido, todos têm
direito a tocar o livro e a ele atribuir sentidos e, de dizer sobre si e seu mundo por
meio da produção de textos orais e escritos, práticas possíveis de serem realizadas
na biblioteca escolar – potencial para a consolidação de múltiplos letramentos,

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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dentre eles o letramento literário – espaço que faz parte do imaginário dos
indivíduos.
As observações iniciais apontam que, apesar dos avanços nos estudos sobre a 486

concepção de ensino de língua portuguesa pela via dos gêneros textuais a partir das
orientações dos Parâmetros Nacionais Curriculares (PCN) publicados em 1998, há,
ainda, muito a ser difundido e implementado sobre práticas escolares que permitam
o contato de meninas e meninos com o maior número possível de gêneros de texto
como forma de fortalecer a leitura e a escrita.
Procurou-se, também, neste projeto, refletir como se desenvolve uma
sequencia didática que tem como principal foco a leitura em voz alta realizada na
biblioteca escolar como recurso motivador para a formação do leitor e escritor e,
qual o papel desta intervenção no ensino-aprendizagem de língua materna.
Além da leitura em voz alta, o acervo da biblioteca escolar, para este projeto,
tem papel fundamental para a ampliação de experiências com a literatura, já que o
empréstimo de obras aponta para um dado importantíssimo: o livro – de papel – tem
o seu lugar assegurado num mundo fortemente marcado pela escrita virtual.

Leitura, Literatura e a Formação do Leitor

Ler na escola se tornou ao longo do tempo um dos temas mais discutidos em


muitas esferas da sociedade. Todos nós reconhecemos que a leitura é uma porta
que se abre para o empoderamento social, mas para muitos, a porta ainda encontra-
se ainda fechada ou somente entreaberta. A apropriação da cultura escrita tem
pedido passagem para a reinvenção do mundo porque ler é um alimento necessário
em sociedades regidas pela escrita. A experiência como professora de Língua
Portuguesa em rede pública de ensino tem sinalizado que é preciso agir para
modificar esse cenário de “desnutrição” de leitura. O meu convívio com leitura, com
literatura e com a prática da leitura em voz alta, me faz acreditar que nada está
perdido e que há uma necessidade urgente em reservar tempo e espaços para a
promoção da leitura. Ler se aprende. Ler na escola é uma prática ensinável possível.
Ler para além do código é um processo contínuo, construído todos os dias. Ensinar

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a ler todos os dias é papel da escola e a literatura torna-se um potencial para


consolidar práticas de leitura empreendidas no espaço escolar.
Na docência, pode-se trazer a literatura como catalisador do potencial de 487

autoria dos estudantes, bem como a melhoria da qualidade desempenho oral e


leitor, ajudando-os a interagir de forma reflexiva por meio da língua. A literatura
mobiliza os sentidos para os textos multimodais e colabora para a ampliação do
imaginário, tão importante à formação do indivíduo, pois “a literatura mantém a
língua em exercício, e sobretudo a mantém como patrimônio coletivo” (Eco, 2001).
A tarefa do docente com relação ao trato com o texto literário fica evidente nas
palavras de Cosson (2014, p. 29-30),

Ao professor cabe criar as condições para que o encontro com a literatura


seja uma busca plena de sentido para o texto literário, para o próprio aluno
e para a sociedade em que todos estão inseridos... Em suma, se quisermos
formar leitores capazes de experienciar toda a força humanizadora da
literatura, não basta apenas ler... A leitura simples é apenas a forma mais
determinada de leitura... É para ir além da simples leitura que o letramento
literário é fundamental no processo educativo. Na escola, a leitura literária
tem a função de nos ajudar a ler melhor, não apenas porque possibilita a
criação do hábito de leitura ou porque seja prazerosa, mas sim, e
sobretudo, porque nos fornece, como nenhum outro tipo de leitura faz, os
instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o
mundo feito de linguagem.

Por tudo isso e, também, por vivenciar na realidade do contexto escolar


selecionado certo distanciamento por parte dos professores em relação ao
letramento literário, seja por desconhecimento, pouco conhecimento, ou mesmo por
escolher a repetição daquilo que se aprendeu ou vivenciou, é que acredito que o
projeto aqui empreendido seja válido para a escola, para a família e, sobretudo, aos
estudantes; para aproximar os leitores iniciantes da biblioteca escolar, e que, ao
tocarem o texto literário sejam tocados pela experiência da literatura e da leitura.

Biblioteca Escolar e Letramento Literário

A história das bibliotecas é tão antiga que se confunde (grosso modo) com a
história da própria humanidade. Fazer história é criar um material que serve de
acervo a uma biblioteca que primeiramente é “virtual” – ideias guardadas na
memória – e depois se difunde de forma materializada nas escritas encontradas

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atualmente em diversas bibliotecas espalhadas pelo mundo. Funari (2012, p.4)


explica um pouco sobre isso:
488
Na verdade a Biblioteca de Alexandria não era do jeito como conhecemos
as bibliotecas hoje. Não era um lugar para se guardar livros [...], o
conhecimento era registrado em rolos [...] tinha, sim seu acervo, mas estava
mais para um centro cultural. Os maiores intelectuais iam para lá trocar
ideias, além de artistas e todos os interessados nas novidades.

Portanto, a biblioteca deve ser concebida como espaço de construção de


conhecimento por meio da interação de ideias e ideais. Um espaço para a
consolidação de ações que impactam de alguma forma a sociedade e sua postura
em relação ao mundo. Dessa forma, vista como um espaço de letramentos na
escola, a biblioteca pode conter em si e viabilizar atividades que criem uma ponte
entre o real e o imaginário, entre o real e o ideal através de práticas que envolvam
os gêneros de texto para a produção oral e escrita.
Sendo concebida como espaço diverso e dinâmico, a escola comporta
multifaces para a aprendizagem. Quando pensada e estruturada para favorecer os
múltiplos letramentos, não pode priorizar a sala de aula como espaço único de suas
práticas educativas. Contribuir para a construção de conhecimentos que auxiliarão
na formação de indivíduos que se posicionem criticamente frente às crescentes que
impõem à sociedade moderna, exige por parte de todos os envolvidos no processo
educacional um olhar para a escola como sendo uma luneta sempre direcionada ao
mundo.
No espaço escolar cada indivíduo precisa se conhecer e se reconhecer como
parte da História que é construída todos os dias, dentro e fora de seus muros.
Portanto, é necessário que cada estudante se reconheça em todos os ambientes
que compõem a escola. Sendo assim, podemos, metaforicamente, perceber a
biblioteca escolar como sendo um organismo vivo e um espaço potencial de
aprendizagens.
Entende-se, neste projeto, que a escola através de práticas de dinamização da
biblioteca, pode mobilizar vivências de leitura que impulsionem uma cultura de
leitura, uma cultura que traz à luz leitoras, leitores, autoras e autores de/para um
novo mundo, fortalecendo a identidade e construindo uma rede de aprendizagens
significativas para todos os envolvidos nessa ação.

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A biblioteca, da instituição selecionada para a aplicação do projeto aqui


descrito, no que se refere ao espaço físico, mobiliário e localização tem algumas
peculiaridades. A biblioteca foi pensada após a escola ser construída, mais 489

precisamente quando os livros do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE)


chegaram à unidade escolar (a chegada dos livros do PNBE se deu a partir de 2002;
a escola foi construída na década de 80).
Sendo assim, no projeto inicial de construção da unidade de ensino, não
constava o espaço destinado à biblioteca escolar. A escolha desse espaço se deu
por conta da urgência em acomodar as obras e, então, foi escolhida uma sala que
estava vazia e fica no primeiro andar do prédio. O mobiliário da biblioteca é o
mesmo das salas da Educação Infantil e é utilizado por todos os alunos de 2 anos
ao 5º ano; o espaço físico é pequeno abrigando não mais que 20 estudantes, já que
são 5 pequenas mesas compostas de 4 cadeiras em cada uma delas (o projeto foi
aplicado a 22 estudantes e a matrícula de alunos, geralmente, ultrapassa esses
números).
É importante destacar que o PNBE contribuiu de forma decisiva, apesar de
questões como as descritas acima, para a ampliação das possibilidades do acesso à
leitura no espaço escolar desde o seu início em 1997, já que impulsiona práticas de
ensino em torno da literatura, texto que agrega em si o real, o imaginário e o mágico.
Nessa perspectiva, no espaço da biblioteca escolar é possível promover
momentos de escuta, de conversas e até de silêncio, mas nunca o silêncio
ideológico e sim o silêncio físico que permite a reflexão das leituras. A biblioteca
jamais pode ser concebida como o espaço “de horários vagos”, de ações não
planejadas, improvisadas, correndo o sério risco de passar de espaço de
conhecimento para espaço de enfado e castigo. De acordo com Freire (1989) a
compreensão crítica da biblioteca desenvolve a compreensão crítica da
alfabetização e da leitura. Nesse sentido, Moraes (2013, p. 25) afirma:

Portanto, para que a alfabetização e a leitura sejam práticas fundadas em


uma compreensão crítica, é imprescindível que a biblioteca seja concebida
como espaço popular no qual a voz do educando, a fala do povo, a
linguagem da comunidade e os saberes locais tenham vez [...].

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No que se refere à proposta deste projeto, que objetiva, também, dinamizar e


dar visibilidade ao espaço da biblioteca escolar, a leitura em voz alta se tornou uma
ação promissora, visto que, a partir da atividade de leitura em voz alta da crônica O 490

menino e o tuim (BRAGA, 1986), a retirada de livros na biblioteca se tornou uma


prática contínua permitindo aos estudantes o contato com variados gêneros e
motivando-os a ler de forma significativa, pois ao final da leitura de cada livro os
relatos orais sobre as leituras eram produzidos e desses relatos as crianças
produziram o resumo escrito do livro favorito, gerando, assim, um cartaz intitulado

“Histórias recomendadas”, para estimular outros estudantes a ler.


Figura 1 – Resumo escrito por uma estudante sobre o livro favorito lido na biblioteca
durante o projeto

Construindo uma Experiência de Leitura

Na caminhada docente, muitas são as perguntas que surgem sobre o fazer


didático e seus desdobramentos. Penso que todas elas precisam (ou deveriam) ser

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respondidas: Pró, a senhora vai me ensinar a ler melhor? Que dia vamos ler na
biblioteca? Posso levar um livro para ler em casa?
Consciente do papel/lugar de professor que é o de oferecer a cada estudante 491

não somente o direito de ler e escrever mas, para além disso, torná-los leitores
críticos que, a partir da leitura dos variados textos que circulam no espaço escolar,
se reconheçam como parte do processo de construção de sua história e da História,
é que surge esta pesquisa. Buscando respostas às perguntas que emergem durante
o fazer diário da sala de aula.
O projeto “Tempo para o letramento literário: uma proposta de leitura no
espaço da biblioteca escolar” objetiva aproximar os estudantes do texto literário.
Para a consolidação da ação, um questionário composto de 9 questões, foi aplicado
com o propósito de levantar dados sobre o contato dos estudantes com a leitura e a
biblioteca. As perguntas foram feitas levando em consideração o ciclo escolar em
que as crianças se encontram, final do Ensino Fundamental I.
A partir da análise das respostas, foi possível organizar atividades numa
sequência didática adaptada da proposta de Schneuwly & Dolz (2004). Essas
atividades permitiram conhecer o perfil leitor e saber como estudantes de 10 a 12 de
uma turma de 5º Ano do Ensino Fundamental I constroem sentidos a partir da
interação com o gênero selecionado, crônica. Ainda, como parte das atividades
empreendidas no projeto, o empréstimo na biblioteca escolar foi consolidado como
uma condição favorável à ampliação do repertório de leitura.
Após, a apresentação do projeto à comunidade escolar, percebeu-se que na
rotina da escola a visitação à biblioteca e o empréstimo de livros do seu acervo não
se configuravam, ainda, como ações sistematizadas. Por esta razão o projeto se
mostrou como um diferencial na rotina das crianças, trazendo novas expectativas e
construções sobre o ato de ler a partir das ações desenvolvidas naquele espaço.

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492

No primeiro contato
com as crianças, por meio da aplicação do questionário semiestruturado, foi possível
perceber a euforia quando foram expostas as intenções do projeto relacionadas à
leitura e escrita na biblioteca da escola. Abaixo, seguem algumas perguntas e
respostas que permitiram construir uma sequência de atividades que desse conta do
anseio das crianças: tocar e se encantar com os livros que estão dentro da
biblioteca.
Figura 2 – Questão 4/Questionário de sondagem

Analisando a figura 1, percebemos que o conto de fadas e o conto fantástico


constroem essa primeira memória de leitura das crianças e, com base no que
sinaliza Vigotsky, é a partir do que eles já sabem sobre o que leem (conhecimentos
prévios sobre leitura) e, levando em consideração a tipologia textual presente no
gênero conto de fadas, que foi selecionado o gênero textual crônica literária
também dentro do eixo NARRAR (DOLZ & SHCNEUWLY, 2004, p. 50), a fim de
permitir que os estudantes a ampliem seu reper11tório para além do mágico.
Sobre o contato com a biblioteca, vejamos o que os estudantes sinalizam:

Figura 3 –
Questão 5/Questionário de sondagem

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É importante analisar a figura 2 sob a hipótese de que essa turma pode ser
composta de alunos oriundos de turmas e escolas diferentes, o que pode sinalizar 493

que a biblioteca ainda não é uma realidade para todos os estudantes, objetivo
perseguido por esta proposta de trabalho e que já foi consolidado através da
intervenção. Dos vinte e dois estudantes que participam do projeto, todos estão
inseridos na rotina semanal de visitação à biblioteca e empréstimos de obras
literárias.
Ainda sobre o contato com a biblioteca escolar e os livros do seu acervo, a
resposta apresentada à próxima pergunta confirma uma das hipóteses deste projeto
que diz respeito ao afastamento entre os estudantes e a literatura.

Figura 4 –
Questão 7/Questionário de sondagem

A análise das respostas aos questionários tem sinalizado que há uma


necessidade urgente em colocar os estudantes em contato com a leitura por meio de
ações que promovam os múltiplos letramentos, visando uma maior participação
desses sujeitos em situações que exijam a leitura proficiente. É importante, ainda,
entender que a escola possui recursos – humanos e didáticos – para consolidar
ações que promovam a leitura, mediando atividades que impactem
significativamente nas experiências entre o leitor e o texto.
Os primeiros encontros na biblioteca escolar apontam, também, que a prática
da leitura/escuta do texto literário desencadeia novas atividades de letramento.
Durante a aplicação do projeto, muitas atividades se configuraram como ótimas
oportunidades de ampliar o letramento dos estudantes. Algumas delas:

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a) Consulta ao dicionário;
b) Pesquisa sobre a história de vida dos escritores lidos
(biografia/documentário); 494

c) Produção textual oral e escrita (textualização de crônicas);


d) Visualização de filmes/vídeos adaptadas de obras lidas;
e) Contato com variados gêneros e suportes;
f) Aprendizagem mediada pelas tecnologias da comunicação e da informação;
g) Atividades em grupos;
h) Ilustrações de obras lidas através de desenhos, entre outras.

Nesse sentido, o presente projeto de intervenção se mostra como uma ação


válida no desenvolvimento dos múltiplos letramentos, ampliando consideravelmente
as interações com os textos que circulam socialmente. Das muitas atividades
desenvolvidas a partir da leitura em voz alta, o nosso ponto de partida e de chegada
está situado no processo de textualização do gênero crônica.
A crônica literária foi selecionada por se aproximar do gênero que os
estudantes sinalizaram ter mais contato, conto de fadas (figura 1). Os dois gêneros
em discussão, segundo Dolz & Schneuwly (2004) pertencem ao agrupamento de
gênero da ordem do NARRAR, portanto se organizam em torno de uma mesma
sequência narrativa. Podemos reproduzir uma sequência narrativa da seguinte
forma:

Figura 5 – Sequência narrativa adaptada de Guimarães (2006)

A partir da seleção do gênero, os estudantes tiveram contato com a crônica


e realizaram sua primeira produção textual com base nos seus conhecimentos
prévios, sem uma orientação mais sistemática, a não ser que o texto escrito deveria

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apresentar uma situação vivida por eles ou por pessoas conhecidas. Analisando a
primeira escrita, foi possível perceber que dos textos escritos pelos 22 estudantes, 9
traziam de forma marcante expressões que indicam a situação inicial e final dos 495

contos de fada: “Era uma vez...”, “ E viveram felizes para sempre.”

Figura 6– Primeira produção de uma crônica (Situação inicial)

Figura 7 – Primeira produção de uma crônica (Situação final)

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A partir daí, os módulos que compuseram as oficinas se constituíram como


material de contato e reconhecimento do gênero crônica e tiveram a seguinte
configuração: 496

Oficina dos Saberes


Módulo 1 – Cotidiano
 O que são crônicas?

Apresentação de uma seleção crônicas e a partir dela, observação de suas


principais características. Neste módulo, as crianças tiveram contato com livros
compostos por crônicas, conheceram seus autores e o contexto de produção:
crônicas Vou-me embora desta casa e A educação em pés descalços (Scliar, 2000,
1998 ); entre outras.

Módulo 2 – O que será?


 Lendo crônicas na biblioteca da escola: leitura em voz alta

Neste módulo foi escolhida a crônica O menino e o tuim (BRAGA, 1986 ) para a
realização de sua leitura em voz alta. O texto foi lido por partes e as crianças
criavam expectativas sobre os acontecimentos relacionados aos elementos
sequenciais da narrativa (figura 4) a cada leitura.

Módulo 3 – Produzindo um final para a história


 Completando o final da crônica: produção escrita

Ao final da leitura da terceira parte da crônica O menino e o tuim (Braga), foi


proposto aos estudantes que produzissem o final da história. Percebeu-se nessa
produção, ainda, um aspecto pertencente ao conto de fadas: o final feliz marcado
pela expressão “E viveram felizes para sempre”.

Módulo 4 – E não viveram felizes para sempre!

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 Finais inesperados: escrevendo coletivamente uma história do cotidiano

Aqui, os estudantes socializaram o final da história produzido por eles. Dos 22 497

finais produzidos pelas crianças, apenas 3 trazem um final contrário ao dos contos
de fadas, sinalizando outras possibilidades de finalizar uma narrativa.
Após a leitura realizada pelos estudantes dos finais da crônica por eles
produzidos , foi lido, em voz alta, o final original da história O menino e o tuim (
Braga, 1986)que não traz o elemento “mágico” dos contos de fadas, elemento este,
que colabora para um final feliz.
O desfecho da crônica, lida em voz alta, é contrário às expectativas das
crianças o que permitiu uma reflexão sobre o repertório de leitura. As crianças se
dão conta que conhecem muito sobre finais felizes e muito pouco, ainda, sobre finais
que se aproximam da realidade.
Nesse ponto, inicia-se a progressão da leitura trazendo um dado novo na
construção do conhecimento sobre leitura: nem toda história tem final feliz. Neste
ponto da intervenção foi proposto que as crianças produzissem coletivamente uma
crônica com uma temática do cotidiano deles.

Módulo 5 – Eu sou o escritor


 Histórias da minha vida: escrevendo uma crônica engraçada

A partir de conhecimentos relacionados ao gênero estudado, crônica literária,


as crianças puderam, empreender a primeira escrita individual. A proposição tomou
como base as crônicas engraçadas que foram lidas durante o projeto e que tiveram
como tema a vida dos escritores ou de fatos do cotidiano observados por esses
autores. Assim, cada criança pode escrever sobre fatos engraçados ocorridos no
seu cotidiano.

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498

Figura 8 – Produção final da crônica

Em relação à primeira produção, que não teve uma orientação específica sobre
o gênero, a produção final, realizada nessa etapa, apresenta um distanciamento dos
contos de fada trazendo uma característica presente desse gênero: a marca pessoal
de escrita.

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Considerações
499

Os temas que envolvem leitura e letramentos têm suscitado muitas discussões


em âmbito nacional devido ao desempenho não satisfatório dos estudantes em
indicadores nacionais e internacionais. Buscando compreender essa realidade, as
atividades propostas nesse projeto visaram conhecer o perfil leitor do estudante ao
final do primeiro ciclo do Ensino Fundamental.
Os resultados parciais têm motivado a reflexão sobre o papel das sequências
didáticas nas práticas de ensino de língua portuguesa entre docentes. A aplicação
das atividades, aqui propostas, apontam importantes contribuições para a ampliação
das capacidades de linguagem. A análise dos textos produzidos pelos estudantes
mostrou, inicialmente, que as dificuldades relacionadas às questões da temática da
crônica se resolveram à medida que os estudantes foram mobilizados a realizar a
adequação textual; ler e escrever requerem tempo e planejamento e; para se
tornarem leitores muitos estudantes precisam ter exemplos e o professor pode ser
uma excelente referência.
Portanto, é preciso considerar que o papel do professor é fundamental no que
diz respeito à organização das práticas de ensino da língua pela via das sequências
didáticas que têm como objeto de ensino os gêneros textuais. Investir nesta direção
pode contribuir para responder a alguns questionamentos que nos fazemos na
caminhada docente: Os estudantes podem falar, ler e escrever melhor? É possível
motivá-los, mesmo na era da tecnologia, a produzir textos orais e escritos no espaço
escolar? A escola ainda pode encantar os estudantes? As análises desta
intervenção apontam que sim.
Além disso, pensar o tempo e eleger espaços para a leitura se torna urgente,
não apenas como forma de instrumentalizar os indivíduos para as demandas
sociais, mas também para possibilitar o cruzamento de histórias de vida, ajudando a
ressignificar a realidade ao redor.

Referências

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Tradução e organização de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas/SP:
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GUIMARÃES, Ana Maria de Mattos. Construindo propostas de didatização de


gêneros: desafios e possibilidades. In: Linguagem em (Dis)curso – LemD. Tubarão,
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JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

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SCLIAR, Moacyr. Vou-me embora desta casa. In: Para gostar de ler. Volume 18 –
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_______. A educação em pés descalços. Disponível em


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff25059807.htm

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artmed, 1998.

VIGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos


processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Benjamin, Baudelaire e a modernidade: a poética


In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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como crítica ao nosso presente


501
Benjamin, Baudelaire and modernity: the poetic how to critical our
presente

Estéfani Dutra Ramos (UNESP/PRESIDENTE PRUDENTE – Pós-Graduanda)

RESUMO: A proposta deste trabalho está vinculada à pesquisa que realizei no Mestrado, cujo tema
se relaciona ao diagnóstico Benjaminiano acerca do empobrecimento da experiência na modernidade
entendido enquanto a perda da capacidade narrativa de elaborar e transmitir a tradição por meio do
relato. Ao tecer suas críticas ao tempo presente e às formas de percepção inauguradas com ele,
Walter Benjamin justifica que a experiência presente no relato foi substituída pela vivência individual
em que assimilamos como experiência apenas o estímulo e o choque sentidos nos espaços de
convivência coletiva. A partir desse diagnóstico, o autor nos convida a refletir acerca da vivência a fim
de que possamos retirar dela algum sentido para aquilo que pensamos, fazemos e sentimos nos dias
de hoje. Para tanto, a poética de Baudelaire ganha amplitude no pensamento de Benjamin, sobretudo
se pensarmos que ela metaforiza esse exercício de elevar a vivência a uma experiência possível
mediante a poetização do contrachoque. Pelo exposto, selecionamos neste trabalho os temas da
experiência, da vivência e a poética baudelairiana como formas de pensarmos e tencionarmos a
nossa modernidade. Fazemos isso recorrendo aos ensaios de Benjamin “Experiência e pobreza”
(2012), “Sobre alguns temas em Baudelaire” (1994) e “Parque Central” (1994) e “As flores do mal”
(2007), de Baudelaire. Trata-se de um trabalho teórico cujo objetivo é aproximar o diagnóstico
benjaminiano sobre o empobrecimento da experiência à poética de Baudelaire para analisarmos em
que medida a poesia permite se dizer o tempo e elaborá-lo.

PALAVRAS-CHAVE: Experiência. Vivência. Modernidade. Poética. Baudelaire.

ABSTRACT: The purpose of this work is linked to the research carried out in the master’s degree,
whose theme relates to Benjamin's diagnosis about the impoverishment of experience in modernity
understood as the loss of narrative ability to prepare and transmit the tradition by reporting. When
weaving their criticism of the present time and forms of perception opened to him, Walter Benjamin
justifies this experience in reporting has been replaced by individual experience in which we assimilate
as experience only the stimulus and the shock felt in the areas of collective coexistence. Based on this
diagnosis, the author invites us to reflect on the experience so that we can take from it some meaning
to what we think, do and feel these days. Therefore, the poetry of Baudelaire gains amplitude at the
thought of Benjamin, especially if we think that it metaphorizes this exercise to elevate the experience
to a possible experience through poeticization the countershock. For these reasons, we selected this
work the themes of experience, the experience and Baudelaire poetry as ways to think and
problematize our modernity. We do this using the Benjamin tests "Experience and Poverty" (2012),
"Some motifs in Baudelaire" (1994) and "Central Park" (1994) and "The flowers of evil" (2007),
Baudelaire. This is a theoretical work aimed at bringing the Benjamin diagnosis of the impoverishment
of experience the poetry of Baudelaire to analyze the extent to which poetry allows you to tell the time
and produce it.

KEYWORDS: Experience. Modernity. Poetics. Baudelaire.

Introdução

Em seus escritos sobre experiência, memória, história e narrativa, sobretudo


“Experiência e pobreza” (2012) e “O narrador...” (2012), “Sobre alguns temas em

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Anais

Baudelaire” (1994), “O flâneur” (1994) e “Parque central” (1994), Benjamin se propõe


a pensar um fenômeno característico de nosso tempo, qual seja, o empobrecimento
da experiência. Observando os efeitos da Primeira Guerra sobre os combatentes 502

que voltavam para casa emudecidos tamanho o trauma sentido, percebera o filósofo
certa inaptidão para narrar uma experiência tão simbólica.
Nesse caso, tais combatentes teriam voltado não mais ricos senão mais
pobres em experiências partilháveis. Essa incapacidade de narrar a experiência, que
decorreu das transformações de ordem tecnológica e capitalista, culminou naquilo
que Benjamin diagnostica como o empobrecimento de nossa experiência, isto é, na
ausência de uma linguagem capaz de colocar no relato, no provérbio, no conto ou
na história as experiências da tradição que são compartilhadas pelas diferentes
gerações e que nos formam moralmente se pensarmos que tais relatos atribuem
sentido para a vida em comunidade.
Desprovidos das imagens da tradição e dos ensinamentos presentes nos
relatos de experiência, Benjamin entende que a vida passou a ser regida apenas
pela vivência nua e crua do cotidiano, em que registramos na memória apenas os
acontecimentos breves e efêmeros do dia a dia. Nesse caso, os choques e
estímulos teriam convertido a experiência da tradição (Erfahrung) na vivência
(Erlebnis) cotidiana.
Pelas razões apresentadas, Benjamin nos convida a refletir sobre essa
vivência e retirar dela algum ensinamento coletivo. Para tanto, o autor recorre à
poética de Baudelaire, pois a escrita baudelairiana é entendida aqui como
experiência de contrachoque, isto é, ao tomar a vivência como objeto de sua lírica, o
poeta consegue extrair da pobreza de experiência própria do cotidiano uma reflexão
acerca daquilo que fazemos, pensamos e sentimos nos dias de hoje.
Assim sendo, diante da proposta ora apresentada, é de nosso interesse
aproximar o diagnóstico benjaminiano acerca do presente à leitura poética de
Baudelaire como forma de tencionarmos e refletirmos sobre essa temporalidade
marcada pela pressa e pela vivência do choque. Para tanto, discutimos, num
primeiro momento, duas noções presentes no pensamento de Benjamin, Erfahrung e
Erlebnis, para evidenciarmos aquilo que é entendido como experiência da tradição e

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Anais

aquilo que é entendido como vivência do choque. Por fim, para refletirmos sobre a
experiência do presente, recorremos à poesia de Baudelaire cuja lírica nos permite
extrair dessa vivência um sentido para a vida no presente. Cabe ressaltar que este é 503

um trabalho teórico, centrado na leitura e análise de nosso referencial teórico, que


tem como objetivo refletir sobre os temas da experiência, da vivência e do
empobrecimento da experiência no presente.

Erfahrung e Erlebnis: duas experiências em foco

No pequeno ensaio “Experiência e Pobreza”, escrito por Walter Benjamin na


década de 1930, o autor fundamenta um dos principais conceitos que marcam o seu
pensamento e percorre considerável parte de sua obra. Nele, Benjamin faz uso de
duas noções diferentes para diferenciar a experiência da vivência, qual seja:
Erfahrung e Erlebnis. De que se trata tais conceitos? Tomando como ponto de
partida uma bela fábula, e Benjamin sempre apreciou pensar por metáforas,
alegorias, imagens e mosaicos, o autor delineia seu entendimento sobre o tema.
Na fábula do vinhateiro um pai, em seu leito de morte, reúne os filhos ao pé
da cama para segredar-lhes acerca de um tesouro escondido nas terras destinadas
ao cultivo de videiras e que seriam deixadas como herança aos seus herdeiros. Já
bastante debilitado e no limiar da morte, ele revela que os filhos teriam que
empreender a busca por tal tesouro se quisessem realmente encontrá-lo. Após a
morte do pai, e conscientes de que algo estava escondido nas videiras, os filhos se
ocupam na descoberta do tesouro de modo que revolvem todo o solo para tentar
encontrar qualquer objeto que estivesse escondido, no entanto, não encontram
nada.
Cansados da busca, os filhos voltam a dedicar-se à ocupação ensinada pelo
pai, e que muito provavelmente fora transmitida de uma geração a outra, e dão
continuidade ao cultivo das videiras. Na chegada do outono, a vinha cultivada por
eles se revela a mais produtiva da região e, então, os herdeiros compreendem a
verdadeira materialidade do tesouro, qual seja: que ele não estaria expresso em
riquezas, bens materiais ou objetos de valor, mas na experiência valiosa do labor

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transmitida pelo pai que os ensinou que a verdadeira riqueza e felicidade são
decorrentes do fruto do trabalho.
Excetuando-se qualquer caráter moralizante proveniente da referida fábula, 504

interessa a nós o efeito dela sobre os ouvintes. Nesse caso, podemos notar que “o
pai fala do seu leito de morte e é ouvido, que os filhos respondem a uma palavra
transmitida nesse limiar, e reconhecem, em seus atos, que algo passa de geração
para geração; algo maior que as pequenas experiências individuais”. (GAGNEBIN,
2006, p. 50).
Esse gesto de partilhar uma experiência, de ser ouvido e de ser formado
moralmente pelo ensinamento de outro constitui aquilo que Benjamin chama de
Erfahrung, termo alemão que define o conceito de experiência e o aproxima de uma
tradição compartilhada que tem na autoridade e na sabedoria do narrador, no caso o
pai metaforizado na narrativa, os meios para a sua transmissibilidade. Compreende-
se por experiência, na filosofia de Benjamin, portanto, a “experiência que passa de
boca em boca [e que] é a fonte a que recorrem todos os narradores”. (BENJAMIN,
2012, p. 214).
O conceito de experiência pressupõe, pelo exposto, a vida do narrador, a
matéria do vivido e a narrativa como elementos que fundam a tradição, possibilitam
que ela seja repassada de uma cultura a outra, extrapolando tempos e espaços, e
atribuem sentido à vida em comunidade já que o ensinamento narrado é tomado
como exercício de moralidade e seguido pela vida inteira. Nesse sentido, não
podemos negar a considerável importância da narrativa para a experiência se ela
não pode ser dita, ser ouvida ou ser tomada como lição para a vida.
Nesse caso, Benjamin (2012) nos ajuda a entender que não haveria
experiência, em seu sentido substancial, se ela não pode ser posta no relato. Desse
modo, conforme esclarece Agamben (2005, p. 22-23), retomando o pensamento do
filósofo, “a experiência tem o seu necessário correlato não no conhecimento, mas na
autoridade, ou seja, na palavra e no conto”. Por essa razão, noções como narrativa,
palavra e linguagem são tão importantes no pensamento filosófico de Walter
Benjamin, pois denotam o instrumento pelo qual a experiência é repassada entre os
membros das comunidades:

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Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou


ameaçador, à medida que crescíamos: “Ele ainda é muito jovem, mas em 505
breve será um dos nossos”. Ou: “Um dia ainda vai experimentar na própria
carne”. Sabia-se também exatamente o que era a experiência: ela sempre
fora comunicada pelos mais velhos aos mais jovens. De forma concisa, com
a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua
loquacidade, em histórias; às vezes como narrativas de países longínquos,
diante da lareira, contadas a filhos e netos. (BENJAMIN, 2012, p. 123).

De acordo com Benjamin (2012), a experiência se materializa na palavra


sintética do relato ou no discurso prolixo mediante o qual histórias, provérbios,
contos e outras narrativas auxiliam na aprendizagem das gerações. Nesta feita, a
Erfahrung transporta-se na linguagem lendária e extrapola diferentes tempos e
espaços ao passo que diferentes comunidades têm sua vida orientada por ela. Se
considerarmos a própria etimologia do termo, podemos notar que a experiência
corresponde a uma viagem que interliga culturas, hábitos, práticas culturais, ou seja,
temporalidades e lugares diversificados:

Lembremos aqui que a palavra Erfahrung vem do radical fahr – usado ainda
no antigo alemão no seu sentido literal de percorrer, de atravessar uma
região durante uma viagem. Na fonte da verdadeira transmissão da
experiência, na fonte da narração tradicional há, portanto, esta autoridade
que não é devido a uma sabedoria particular, mas que circunscreve o mais
pobre homem na hora de sua morte. (GAGNEBIN, 2011, p. 58).

O vínculo entre tempos e espaços estabelecido pela experiência narrada é o


que, segundo Benjamin (2012), auxilia na formação dos indivíduos. Chamamos aqui
de formação aquilo que não é apenas escutado ou lido, mas aquilo que decorre
desta escuta ou leitura, isto é, a tomada do conteúdo narrado como prática moral
que orienta e solidifica a vida em comunidade. A aprendizagem que decorre da
experiência partilhada, portanto, nunca é solitária, mas vivida em coletivo.
Benjamin (2012) localiza a sua prática nas sociedades artesanais em que
ainda era possível executar um trabalho que não fosse apressado, especializado ou
centrado exclusivamente nos espaços da fábrica; em que os trabalhadores tinham
contato uns com os outros, onde era possível falar ao outro ou escutar o que ele

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tinha a dizer; em que havia não só uma experiência com o trabalho e com a matéria-
prima do trabalho, como também com outros trabalhadores. Nas sociedades
artesanais podemos falar que havia espaço, tempo e linguagem para que a 506

experiência acontecesse, pois ela pressupunha tais elementos.


Quando essa modalidade de trabalho é substituída pelo espaço da fábrica,
pela especialização da mão-de-obra, pelas grandes tecnologias, pelo
desenvolvimento do capitalismo, pela exploração da própria força do trabalho e por
todas as outras transformações que inauguraram o tempo do progresso, vemos
declinar a experiência compartilhada, já que nesse cenário não há tempo, lugar ou
mesmo uma linguagem em que seja possível narrar a experiência de si e a
experiência do outro.
Nessa temporalidade marcada pela pressa e pelas demandas do progresso,
Benjamin diagnostica o empobrecimento da experiência entendido como a nossa
incapacidade de narrar aquilo que nos passa e nos acontece e que são comuns à
tradição do coletivo. A relação entre indivíduo, cultura e coletividade, que originava a
experiência e era expressa por meio do relato, se vê barrada por uma expécie de
experiência solitária, fundada na pressa e na correria do dia a dia que, além de não
ser verbalizada, não favorece a formação dos indivíduos. Para sermos mais claros,
que lição poderíamos tirar de um dia extenuante de trabalho se não temos tempo
sequer de elaborar tal experiência? Ou ainda, que experiência podemos transmitir
ao outro diferente de nós, se as pessoas estão acostumadas a partilhar dos espaços
sem se olharem ou trocarem sequer uma palavra umas com as outras?
No contexto acima descrito, parece bastante evidente os efeitos do progresso
sobre a experiência e sobre a narrativa da experiência. É nesse contexto que se
inaugura uma nova forma de experiência centrada naquilo que Benjamin define
como Erlebnis ou vivênvia. A vivência, segundo o autor, provém de modos de vida
estritamente individualizados, da necessidade de atendermos aos estímulos
constantes do cotidiano e do tempo presente, fatores estes que transformam nossa
percepção sobre ele e consomem toda a nossa atenção. Nesse sentido, atarefados
e extenuados do começo ao fim do dia, estamos habituados a executarmos nossas

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atividades diárias de modo mecânico e automático, sem nos preocuparmos em


encontrar sentido para aquilo que fazemos, pensamos, sentimos e vivemos.
Todas as transformações econômicas, sociais e mesmo culturais decorrentes 507

do tempo do progresso, do capitalismo e do desenvolvimento tecnonógico incidiram


em novas formas de percepção sobre o tempo e em novos modos de nos
relacionarmos que justificam toda a nossa incapacidade de experimentar e
intercambiar experiências. Essa pobreza de experiências é problematizada por
Benjamin como uma espécie de miséria que recaiu sobre nós:

Nunca houve experiências mais radicalmente desmentidas que a


experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica
pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos
governantes (...). Uma forma completamente nova de miséria recaiu sobre
os homens com esse monstruoso desenvolvimento da técnica (...). Aqui,
porém, revela-se com toda clareza que nossa pobreza de experiências é
apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto,
nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o
nosso patrimônio cultural, se a experiência não o vincula a nós?
(BENJAMIN, 2012, p. 124).

A crítica de Benjamin ao empobrecimento da experiência remonta os anos


decorrentes da Primeira Guerra Mundial em que percebera-se que os combatentes
voltavam para casa emudecidos tamanho o trauma sofrido pela experiência da
guerra, não mais ricos senão mais pobres em experiências partilháveis. Nesse caso,
o autor diagnostica esse fenômeno como a atual incapacidade de colocar no relato o
vivido que é da ordem da tradição e da história coletiva, que é comum a todas as
gerações que vivenciaram a guerra e as que ouviriam falar sobre ela posteriormente
através dos registros de memória próprios da história.
Na temporalidade do presente não precisaríamos mais de uma catástrofe
para diagnosticar o fim da experiência, “a pacífica existência cotidiana em uma
grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente”. (AGAMBEN, 2005, p.21).
Com essa afirmativa, Agamben, retomando a crítica de Benjamin, esclarece que o
nosso tempo, ao menos quando marcado pela pressa, pelo automatismo, pela frieza
e apatia próprias das nossas ações e dos nossos afetos atestam que nos tornamos
mais pobres em experiências narráveis e vivemos numa espécie de superfície onde
o vivido fica restrito aos acontecimentos e choques do cotidiano.

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Todos esses pequenos acontecimentos reduzem a experiência à vivência nua


e crua do cotidiano, sujeita ao ritmo apressado que impomos a nós e aos outros,
vivência esta marcada pelos estímulos e exigências do dia a dia que expropriam 508

nossa abstração sobre aquilo que fazemos diariamente. Pelo exposto, ela consiste
na vivência individual e particular que, diferente da vivência coletiva, é vivida num
espaço temporal muito definido e recortado, isto é, desvinculado de um tempo em
que as tradições invadiam o instante mesmo do vivido.
Se a Erfahrung diz respeito à experiência partilhada em comunidade, a
Erlebnis, por outro lado, diz respeito à mera vivência isolada e solitária de um sujeito
que não tem nada pra contar ou pra trocar com o outro. A experiência da Erlebnis,
portanto, é a experiência que se emancipa da tradição e do relato, pois “um
acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo
que o acontecimento rememorado é sem limites, pois é apenas uma chave para
tudo o que veio antes e depois”. (BENJAMIN, 2012, p. 38-39).
Desse modo, podemos compreender a Erlebnis como a vivência curta e
efêmera do cotidiano, que tem prazo para começar e acabar. Nessa vivência não é
permitido ao indivíduo moderno reconhecer-se naquilo que ele faz, nos espaços que
habita, na relação com o outro, no produto do seu trabalho ou mesmo na sua
cultura. Portanto, como pode ele experimentar algo ou falar de algo que em si
mesmo não lhe faz sentido? Com o desaparecimento de uma estrutura coletiva onde
ainda era possível uma troca e partilha com o outro, portanto uma comunidade de
experiência, o indivíduo moderno tem que dar conta de assimilar as mudanças do
tempo sobre a sua percepção. Contudo, isso não acontece, já que ele não conta
mais com as imagens do passado. Na verdade, as imagens que ele possui são as
cargas de energia dispendidas nas atividades diárias necessárias ao trabalho, ao
estudo, aos exercícios, ao lazer e aos relacionamentos.
Todas essas atividades estão permeadas pela vivência do choque
(chockerlebnis) ou pelos constantes choques que invadem nossa percepção e que
são próprios de uma estrutura e organização espacial onde a arquitetura das
grandes metrópoles, por exemplo, impõe ao indivíduo novos ritmos de vida, novos
comportamentos e ações, novas formas de se relacionar. Embora Benjamin tenha

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diagnosticado essa fisionomia da cidade grande no século XIX, podemos afirmar


que ele não destoa de nossa contemporaneidade, sobretudo se pensarmos que as
ruas e demais espaços coletivos são organizados como territórios de passagem 509

onde não é permitido demorar-se, nem no passo, nem no flanar, nem no diálogo,
nem no olhar.
Pelos argumentos apresentados, podemos pensar que o palco do cenário
urbano é o palco da vivência onde as pessoas estão acostumadas a se
acotovelarem, pedir desculpa (ou nem isso) e retomar o seu passo apressado.
Quando não na rua, nos espaços destinados ao uso coletivo dos meios de
transporte, por exemplo, cada um está encerrado em seus smartphones ou nos
fones de ouvido que impossibilitam qualquer contato ou palavra com o outro. Do
mesmo modo, ao pensarmos nos modos como nos relacionamos e cultivamos
nossos afetos, as pessoas parecem ter desaprendido o contato humano, o encontro
presencial, o olho no olho, o diálogo franco e sincero. Nesse caso, confirmamos
presença e marcamos encontros por meio das tecnologias de informação e das
redes sociais ou mantemos contato com os amigos e familiares através de
aplicativos que substituem o encontro e o diálogo com aqueles de quem gostamos.
Se pensarmos, ainda, no nosso ritmo de vida, veremos que a simples vivência
do cotidiano está impregnada em tudo o que fazemos. Nesse caso, a própria rotina a
que as pessoas estão submetidas na atualidade falaria por si só. Do início ao fim do
dia, saímos da cama, nos imbricamos no trânsito, vamos para o trabalho, ou o
trabalho nos acompanha em nossas casas, executamos as funções que nos são
esperadas, voltamos para casa e utilizamos o tempo do ócio para estarmos
informados. Obviamente tal rotina não é uma regra seguida por todas as pessoas,
no entanto, ela é bastante comum em nossos dias. Nessa rotina, poderíamos pensar
o quão desgastante é viver em prol das demandas do dia a dia ou viver em função
de nossos compromissos diários que consomem toda a nossa energia, nos deixando
estressados e frustrados por nunca conseguirmos fazer, de fato, aquilo que
gostaríamos de fazer.
Acostumados a preencher todo o tempo do nosso dia, nos sentimos úteis e
produtivos quando, mesmo sendo extenuante, nos habituamos a aproveitar cada

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segundo do relógio. Nesse caso, o tempo do relógio parece ser o condutor dos
nossos dias, tempo este que, diferente de outrora, dita e normatiza nossas ações
diárias. Vejamos, pelos exemplos citados, que o diagnóstico benjaminiano, embora 510

tenha sido feito no início do século XIX, não está distante de nosso presente, pelo
contrário. Na nossa atualidade ele é muito mais expressivo e contundente. Se em
outras temporalidades o tempo era sentido como lembrança ou como rememoração,
nos dias de hoje não podemos sequer fazê-lo, já que não nos é dado tempo para
isso.
Pelo exposto, a impossibilidade de uma cesura ou de uma ruptura no tempo
apressado sentido no progresso nos expropria a capacidade de experimentar e de
elaborar as nossas experiências. Toda a crítica de Benjamin à vivência e à
experiência do choque tão comum em nossos dias nos coloca o desafio ou expõe a
nossa dificuldade de elevá-la a uma experiência possível no sentido de refletirmos
sobre ela, tomar consciência e transformá-la. Obviamente não podemos resgatar as
experiências da tradição, e chamamos de tradição aqui tudo aquilo que nos forma a
partir de uma escuta narrativa e de sensibilidade com o outro, mas podemos refletir
sobre toda a vivência própria do presente para extrairmos dela um sentido para
aquilo que pensamos, sentimos e fazemos.
Esse é o caminho indicado por Benjamin ao justificar que seria preciso nos
conscientizarmos da experiência do choque, estranhá-la e romper com ela mediante
um gesto de elaboração daquilo que vivenciamos no cotidiano para atribuir sentido a
ele. O desafio, nesse caso, reside, segundo Mitrovitch (2011), em perceber a função
do cotidiano em nossos modos de experimentar e extrair dele algo que seja possível
de ser posto no relato para conhecimento coletivo. Ou ainda, utilizando como
referência uma metáfora de Benjamin (2012), tomar nas mãos o contemporâneo, em
toda a sua nudez, e assumir uma atitude altamente consciente e crítica de nossa
realidade.
Dizendo em outras palavras, tomar a vivência como experiência possível
significa, ao nosso ver, reconhecer no cotidiano empobrecido algo que atribua
sentido a tudo o que vivemos e fazemos. Isso significa que a própria vivência e o
cotidiano são, enfim, palcos de experimentação ao ofertarem, para a crítica, a

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realidade tão efêmera e mutável da contemporaneidade. Desse modo, a experiência


da pobreza expressa na vivência cotidiana possui uma potencialidade crítica que
constitui a própria base para experimentarmos no presente. 511

O diagnóstico benjaminiano nos convida, portanto, a experimentar a partir do


pouco, da precariedade das vivências do cotidiano. Por esta razão, extrair daquilo
que é imperceptível e vivido na esfera do automatismo das ações é condição
essencial à construção de novos sentidos para a vida na atualidade. Esta é uma
tarefa que num contexto bastante específico da Paris do Segundo Império, por
exemplo, foi feita pelo trabalho da poesia cuja poética de Baudelaire foi pensada por
Benjamin como uma espécie de experiência de contrachoque.
Para o filósofo, Baudelaire representa um dos maiores críticos da Erlebnis ao
fazer uso de personagens como o dândi, o trapeiro, o flâneur, as prostitutas, os
mendigos, enfim, as personagens-tipo da sociedade, para explicitar o real. Tais
personagens foram construídos na poesia para representar aquilo que representa a
antítese da sociedade da época, isto é, representam a marginalidade, o ócio, a
resistência, o passo lento, a falta de rigor com o cotidiano do trabalho, a
sobrevivência pelo que é descartado pela sociedade industrial como lixo; enfim, são
personagens que ousam dizer o tempo e as transformações que lhes são próprias
sobre a percepção daqueles que estranham tais fenômenos.
Pelas razões apresentadas, é de nosso interesse dedicar o próximo tópico
deste trabalho à discussão da poética baudelairiana como expressão da
possibilidade de tomarmos a vivência como crítica e explicitação de nossa
contemporaneidade para evidenciarmos a importância desse exercício à
experimentação de nossa realidade. Embora o contexto de que fala Baudelaire seja
a Paris do Segundo Império, todas as transformações ocorridas na esfera do
trabalho, dos espaços urbanos, da fisionomia da cidade grande, da fisiologia da vida
dos indivíduos e das inovações tecnológicas também nos são próprias quando
constatamos que a nossa vida está permeada pela pobreza de experiências que nos
expropriam a capacidade de percebê-la e narrá-la. Assim sendo, a poesia de
Baudelaire nos ajudará nesse exercício afim de que possamos retirar do cotidiano
empobrecido, algo que possa ser explicitado no relato poético.

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Poética e crítica em Baudelaire: uma experiência de contrachoque


512

Nos ensaios “Sobre alguns temas em Baudelaire”(1994), “O Flâneur (1994) e


“Parque Central” (1994) Benjamin se propõe a evidenciar certos temas que são
centrais na poética de Baudelaire para pensar a vivência como experimentação.
Tomando como ponto de partida a poesia baudelairiana e o cenário da Paris do
Segundo Império, o autor ressalta o mergulho do poeta na pobreza de experiências
parisiense para justificar a possibilidade de experimentar a partir da precariedade do
cotidiano. Baudelaire faz isso em “As Flores do Mal” (2007), coletânea de poesias
dais quais Benjamin extrai uma importante discussão acerca das inúmeras
transformações sofridas na fisionomia dos espaços urbanos e na fisiologia da vida
contemporânea.
Todas essas transformações inauguram, segundo Benjamin (1994), novas
formas de vida, de percepção, de formas de relacionar-se e de modos de habitar o
espaço urbano que demarcam aquilo que o autor chama de vivência do choque,
conforme vimos anteriormente. Todos esses temas podem ser vislumbrados na
escrita de Benjamin, mas também são bastante evidentes na poesia de Baudelaire.
O poeta Baudelaire oberva a cidade grande de Paris tomando como ponto de partida
para a sua crítica a própria desvalorização da poesia em detrimento de outras
formas de comunicação muito mais rápidas e centradas nos acontecimentos do dia
a dia, tais quais o jornal, a revista, o rádio, dentre outros. Por essa razão, o poeta se
assume como um esgrimista cuja ferramenta de trabalho é a pena e o papel que
atuam na luta de crítica e conscientização de uma temporalidade marcada pela
pressa e pelo progresso em todas as esferas da vida pública e privada.
Nesse sentido, podemos afirmar que o contexto de que fala Baudelaire é o
pleno desenvolvimento do capitalismo, da técnica, das forças de produção e da
divisão do trabalho que marcam o progresso e pretendem facilitar a vida das
pessoas. O vínculo entre todos esses fenômenos, conforme anunciamos
anteriormente, alterou a fisionomia do espaço urbano, o funcionamento da vida
coletiva e individual e a percepção sobre a temporalidade. Na função de observador

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cuja visão aguçada se aproxima de um grande caleidoscópio dotado de consciência


(BENJAMIN, 1994), Baudelaire chama atenção ao primeiro aspecto de sua crítica: a
fisionomia do espaço urbano. 513

À época, percebera o poeta que a cidade de Paris fora invadida por toda
espécie de galeria, ruas luxuosas, grandes centros comerciais e lojas de todos os
tipos. Na arquitetura das casas não era diferente, materiais como veludos, vidros e
mármores, por exemplo, evidenciavam o luxo, a inovação, a transparência e a frieza
de lares que funcionavam como cápsula ou estojo para a vida particular. Nesse
caso, o estilo simples de vida e de morada foram substituídos por qualquer espécie
de modernização e luxuosidade necessários para que as pessoas sentissem que
podiam acompanhar o passo do progresso.
Todos esses espaços novos foram assimilados como moradia para a
população no sentido de que quase todo o tempo do dia era consumido em passeios
públicos ou no isolamento das casas. Essa nova fisionomia causava certa
fascinação e mesmo euforia para os transeuntes que deixavam os seus lares para
se misturar à multidão sem rosto das ruas parisienses. Esse cotidiano despertou a
atenção do poeta, conforme explicita Benjamin (1994, p. 34):

Desde o vendedor ambulante do bulevar até o elegante no


foyer da ópera, não havia nenhuma figura da vida parisiense
que o “fisiólogo” não tivesse retratado (...). Tudo passava em
desfile... dias de festa e dias de luto, trabalho e lazer, costumes
matrimoniais e hábitos celibatários, família, casa, filhos, escola,
sociedade, teatro, tipos, profissões. (BENJAMIN, 1994, p. 34).

É nesse cenário de transformações que Baudelaire expressa seu lamento. No


poema “O Cisne”, por exemplo, o poeta evidencia que “Paris mudou! Porém minha
nostalgia é sempre igual: torreões, andaimes, lajedos, arrabaldes, em tudo eu vejo
alegoria, minhas lembranças são mais pesadas que rochedos. (...) Penso no
marinheiro esquecido numa ilha... Nos vencidos de sempre e nos sem esperança!”.
(BAUDELAIRE; 2007, p.100-101).
No poema acima referido podemos notar que o poeta narra a rápida
transformação da paisagem urbana de Paris, mas também expressa seu lamento
pela atrofia da tradição em tempos modernos. Nele, a cidade é observada como
território de mutação e de passagem na qual a mudança rápida na arquitetura

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urbana e a inconstância da vida demonstram que a modernidade já preconizava, à


época, a novidade e nunca a permanência, portanto, o moderno e nunca a tradição.
Por meio dessa observação, o sentimento nostálgico do poeta não muda. Na 514

verdade há uma cesura que paira entre a experiência do tempo para Baudelaire e o
curso do tempo na modernidade.
Essa cesura é evidenciada pelas lembranças do eu-lírico, que insistem em
demarcar o território do passado no instante do presente. Baudelaire associa o
sentimento melancólico à lembrança para reivindicar um “tempo pleno e
resplandecente de um lembrar imemorial” (GAGNEBIN, 2005, p. 150). O poeta
figura, então, como uma espécie de narrador que protesta contra a passagem rápida
do tempo.
Além da fisionomia do espaços urbanos, outro elemento que chamou atenção
do poeta foi a fisiologia da vida moderna, elemento este que se aproxima
diretamente do diagnóstico benjaminiano acerca do empobrecimento da experiência.
A experiência inaugurada com o progresso, expressa na Erlebnis, demonstra o
modo como a vida era regida à época e os sacrifícios imputados àqueles que
precisavam acompanhar os feitos da civilização. Nesse sentido, a nova fisiologia da
vida demostrava certo isolamento, certa frieza, indiferença, apatia e pressa cuja
afirmativa de Benjamin o atesta:

Eis algo característico da sociologia da cidade grande. As relações


recíprocas dos seres humanos nas cidades se distinguem por uma notória
preponderância da atividade visual sobre a auditiva. Suas causas principais
são os meios públicos de transporte. Antes do desenvolvimento do ônibus,
dos trens, dos bondes no século XIX, as pessoas não conheciam a situação
de terem de se olhar reciprocamente por minutos, ou mesmo por horas a
fio, sem dirigir a palavra umas às outras. (BENJAMIN, 1994, p. 36).

São nesses espaços habitados sem habitação que o poeta e o filósofo


evidenciam uma fantasmagoria em que as pessoas estavam presentes no cenário
coletivo ao mesmo tempo em que eram invisíveis para ele. Isso é sentido, por
exemplo, no isolamento necessário ou na preservação do espaço individual
despertado pelo esbarrão do outro que levava o transeunte a ser tocado fisicamente,
mas que o desconforto sentido por esse toque fazia cada um pedir desculpa e

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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retomar o seu passo apressado. Nenhum rosto, nem de quem esbarrou e nem de
quem sofreu o esbarrão é percebido. O dia a dia é consumido, portanto, por essas
pequenas vivências empobrecidas em que ninguém conhece ninguém, ninguém 515

escuta ninguém e nenhuma palavra é trocada com o outro. Nesse contexto, que
experiências poderiam ser realizadas ou que sentido se poderia extrair dessa pressa
própria do cotidiano?
Toda essa vivência cotidiana reflete, por ora, a indiferença humana e a perda
do tato entre as pessoas inauguradas por um tempo em que tudo se passa rápido
demais, mas quase nada é percebido verdadeiramente como acontecimento
passível de registro mnemônico. No poema “Vida anterior” (BAUDELAIRE, 2007),
por exemplo, o poeta critica a rápida passagem do tempo sem que haja, no entanto,
a elaboração da experiência do cotidiano:
Longo tempo habitei sob algum pórtico alto
(...) E foi lá que eu vivi nas volúpias mais calmas,
Todo em meio do azul, das vagas, dos fulgores,
E dos escravos nus, impregnados de odores,
Refrescando-me a fronte, a abanar suas palmas,
Cuja única ambição era o de aprofundar
O segredo da dor que me fazia definhar. (...)
(BAUDELAIRE, 2007, p. 26).

Conforme expresso no poema, podemos notar que o sentimento de nostalgia


vivido pelo eu-lírico leva a personagem a lamentar um tempo cuja experiência
parece extinta. A forma com que o eu-lírico encontra correspondência com o
passado é a rememoração através da qual o passado, embora não possa se repetir,
incide sobre o presente do poeta de modo a transformá-lo. Há, portanto, um vínculo
entre a memória que rememora e a tradição vivida pelo eu-lírico. No entanto, esse
vínculo é manifesto pelo lamento diante da perda de algo. A nosso ver, essa perda
está representada na perda da experiência, cuja tradição do passado histórico deixa
de ressoar no presente e dar sentido à vida.
Da leitura do poema “A Vida Anterior” (2007), podemos inferir que Baudelaire
consegue extrair uma experiência do presente através da correspondência que ele
estabelece entre seu passado individual e o passado histórico coletivo. O passado
individual diz respeito ao modo como uma tradição registra no sujeito as suas
impressões e o passado histórico coletivo, por sua vez, diz respeito a uma herança

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histórica construída pela humanidade que dá unidade à vida em grupo. Esse lembrar
imemorial, próprio da experiência da tradição, está presente também no poema “O
relógio”, em que o poeta evidencia a necessidade de uma cesura em face do tempo 516

ditado pelo relógio:

Relógio! Deus sinistro, assustador, indiferente,


E cujo dedo ameaça a nos dizer: Recorda!
(...) Cada instante destrói um pouco de alegria
Que a cada homem se deu para toda a estação.
Por hora mais de três mil vezes, o Segundo
Murmura: Lembra então! Com sua voz sonora
De inseto, Agora diz: Olha que eu sou Outrora,
Bombeou a minha tromba a tua vida, é imundo!
(...) Lembra então que este Tempo é um jogador atento
Numa lei de ganhar, perene e sem trapaça. (...)
(BAUDELAIRE; 2007, p. 94-95).

Diante de todas as transformações que evidenciamos até aqui, notamos que


a poesia de Baudelaire opera no sentido de um inconformismo que desconfia de um
progresso que vislumbrava o desenvolvimento, a evolução, a democracia e a
liberdade dos indivíduos, mas que, na prática, ainda reiterava tantas misérias e
desigualdades. Apesar de todos os progressos e todas as inovações próprios da
modernidade, o poeta reivindica uma vida em que se torna essencial contentar-se
com pouco já que a vida, em si, tornou-se tão pobre de experiências partilháveis.
Baudelaire faz isso transformando a sua poética em experiência de
contrachoque ou naquilo que Benjamin chama de um esforço heroico para extrair
das imagens da modernidade uma experiência própria de ser poetizada ou narrada.
Nesta feita, entendemos como experiência de contrachoque o esforço do poeta em
inserir “a experiência do choque no âmago do seu trabalho artístico” (BENJAMIN,
1994, p. 111) para extrair dela um sentido para a vida no presente e elevá-la à
condição de uma experiência que pode ser posta no relato poético. Aqui evidencia-
se o esforço de Baudelaire de não recuperar a Erfahrung, mas dar à vivência uma
nova roupagem.
A partir destas leituras, em suma, que relação poderíamos estabelecer com o
nosso presente? Ao nosso ver, o próprio ritmo de vida e de trabalho que temos hoje,
por exemplo, atestam, por si só, o quanto nos tornamos pobres em experiências
partilháveis. Do mesmo modo como os transeuntes de uma Paris do século XIX,

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estamos cada vez mais habituados a seguir esquematicamente nossos cronogramas


de atividades que mantém nossos dias sempre ocupados.
Nesta feita, numa temporalidade marcada pelo uso produtivo do tempo, o 517

empobrecimento da experiência se revela ao constatarmos que não nos é dada a


cesura necessária à reflexão, à crítica, ao julgamento e à ponderação acerca daquilo
que estamos fazendo, vivendo e sentindo nos dias de hoje. Essa pressa que nos
obriga a ocupar todo o nosso tempo expropria de nós o tempo para a palavra, para a
escuta, para a troca de experiência com outro. Nos expropria, portanto, o tempo
para experimentar, o tempo em que ainda nos percebíamos como uma comunidade
humana, o tempo em que ainda nos reuníamos todos juntos para ouvir o que o outro
tinha a dizer, o tempo que, mesmo sendo de trabalho, ainda permitia que às
pessoas que se reunissem em coletividade para desempenhar uma tarefa que
carecia do auxílio mútuo.
A vivência metaforizada por Baudelaire em sua poesia e por Benjamin em
seus escritos filosóficos não estão, portanto, distantes de nosso tempo, pelo
contrário, são ainda mais expressivos quando nos damos conta do quanto estamos
pobres em contato humano, em experiências partilháveis. A leitura que fazemos
desses autores nos convidam a estranhar o nosso presente, pois esse
estranhamento é essencial para percebemos as fissuras da realidade. Estranhando
esse presente e, junto a esse exercício, tudo aquilo que empobrece nossa vida e
nos torna tão automatizados em nossas ações, talvez podemos pensar então em
modos de experimentar que nos retire desse atual estado de apatia e indiferença
com as coisas, as pessoas e os acontecimentos do dia a dia.

Considerações Finais

Ao longo de nosso trabalho nos dedicamos a problematizar o nosso presente


a partir do diagnóstico benjaminiano acerca da nossa atual incapacidade em
partilhar experiências, diagnóstico este que também está presente na poética de
Baudelaire quando o poeta se dedica a pensar a vivência moderna como aquela
desprovida de tradição, mas rica em estímulos e choques.

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Reconhecendo a impossibilidade de resgate da Erfahrung, a leitura que


Benjamin e Baudelaire fazem da modernidade nos convidam a extrair da vivência
uma experiência possível. Nesse caso, acreditamos que pensar a modernidade 518

através desses dois autores significa pensarmos num gesto de interrupção, cuja
ação esteja voltada para reflexão dos modos como as demandas do tempo presente
expropriam nossa relação de experiência com o mundo.
Assim sendo, extrair da vivência uma experiência que possa se converter em
ensinamento significa tencionarmos o nosso presente e percebermos também, nas
nossas ações tão automatizadas, essa pobreza de que fala os autores. Além disso,
o desafio que nos é colocado a partir dessas leituras nos impulsiona a
questionarmos os modos como vivemos, pensamos, sentimos e agimos nos dias de
hoje para que possamos interromper nosso passo apressado para perceber, escutar
e entender não só o que o outro tem a nos dizer e o que temos para partilhar uns
com os outros, mas compreender o outro em toda a sua singularidade. Essa
humanização que nos falta hoje é condição para que reabilitemos em nós a nossa
condição de sujeitos da experiência.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: Ensaio sobre a Destruição da Experiência.


In: Infância e história. Destruição da experiência e origem da história. 1.ed. Trad. de
Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005.

BAUDELAIRE, C. As Flores do Mal. São Paulo: Martin Claret, 2007.

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política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras escolhidas Vol. I.
Tradução Sérgio Paulo Rouanet, prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8º ed. - . São
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______. Parque Central. In: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo.


Obras escolhidas Vol. III. Trad. de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves
Batista. São Paulo, Brasiliense, 1994.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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______. Sobre Alguns Temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire um lírico no


auge do capitalismo. Obras escolhidas Vol. III. Trad. de José Carlos Martins Barbosa
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GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo Editora 34,
2006.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo:


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GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História. 2. ed.
Rio de Janeiro: Imago, 2005.

MITROVITCH, C. Experiência e Formação em Walter Benjamin. São Paulo: Editora


Unesp, 2011.

RAMOS, Estéfani Dutra. Ética, educação e experiência formativa na temporalidade


do presente. 2014. 171 f. Dissertação. (Mestrado em Educação). Faculdade de
Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2014.

Cenários estáticos e antiquados: introspecção e


realidade em A menina morta, de Cornélio Penna
Static and outdated sceneries: insight and reality in A menina morta, by
Cornélio Penna

Mariângela Alonso (USP)


Pesquisadora de Pós-Doutorado (PG)

RESUMO: Oferecendo uma das realizações mais completas no quadro geral da ficção brasileira, a
obra de Cornélio Penna (1896-1958) caracteriza-se pelo ritmo lento ao privilegiar o universo
psicológico dos personagens e os mistérios irreconciliáveis da alma humana, os quais surgem ao
leitor como quadros estáticos. O texto apresenta evocações de ambientes antiquados, de
personagens estranhos ou anormais e de famílias degeneradas pela dor e pelo tempo. É o caso da
narrativa intimista A menina morta, publicada em 1954. Nessa obra, a espacialidade é marcada por
uma visualização quase teatral, cuja dinâmica coloca as personagens integradas em seus
comportamentos, ao mesmo tempo em que são entrosados acontecimentos e cenários, marcando,
assim, a organização plástica do enredo. O que se pretende neste trabalho é fazer uma breve
sondagem de como esse espaço interior é desenvolvido na narrativa em questão, procurando
averiguar o lugar e a importância da obra corneliana em nossas letras. Em linhas gerais, buscamos
empreender um caminho possível de análise ao romance A menina morta, guiando-nos pelos estudos
acerca do elemento psicoespacial da obra literária, empreendidos por Gaston Bachelard (1976).

PALAVRAS-CHAVE: Espaço. Cornélio Penna. A menina morta.

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ABSTRACT: Offering one of the most completions in the general framework of brazilian fiction, the
work of Cornélio Penna (1896-1958) is characterized by the slow pace to favor the psychological
universe of characters and irreconcilable mysteries of the human soul, which appear to the reader as
static frames. The text presents evocations of old-fashioned environment, strange or unusual 520
characters and degenerate families for the pain and time. This is the case of intimate narrative A
menina morta, published in 1954. In this novel, spatiality is marked by an almost theatrical display,
whose dynamics puts the characters integrated into their behavior while they are mingled events and
scenarios, marking, thus the plastic organization of the plot. The aim of this work is to make a brief
survey of how this interior space is developed in the narrative, trying to ascertain the place and
importance of corneliana work in our letters. In general, we seek to tread a possible path to the
analysis of the novel A menina morta, guiding us by studies of psicoespacial element of literary work,
mostly undertaken by Gaston Bachelard (1976).

KEY-WORDS: Scenery. Cornélio Penna. A menina morta.

Introdução: Figurações antiquadas

A estreia de Cornélio Penna em nossas letras deu-se em 1935 com a


publicação do romance Fronteirav. Por meio do personagem Nico Horta, que
ressurgia na trama de Dois romances de Nico Horta, o autor fixava a sua
personalidade literária, oferecendo-nos umas das realizações mais completas no
âmbito da narrativa brasileira moderna.

Contabilizando quatro romances, Fronteira (1935); Dois romances de Nico


Horta (1939); Repouso (1948) e A menina morta (1954), a obra corneliana destacou-
se na linha da chamada ficção psicológica, cuja fabulação remetia a atmosferas de
estranheza e solidãov.

Conforme observado pelo crítico Adonias Filho (1960), todos os romances do


autor são marcados por uma mesma problemática, ainda que escritos com
fabulações distintas: “Prendem-se uns aos outros como membros do mesmo corpo
e, precisamente porque não se interrompe a continuidade especulativa, é que
encontrará em A menina morta a conclusão de Fronteira” (FILHO, 1960, p. 9). Tal
problemática pode ser observada através da reflexão acerca da condição humana
implicitamente trabalhada pelo escritor em cada uma de suas obras.

A presença do elemento episódico é mero acessório, uma vez que o


romancista apega-se a uma espécie de atmosfera diluída aos aspectos misteriosos
da alma de seus personagens. Nesse contexto, a obra corneliana proporciona uma
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viagem interior, movimentando os protagonistas na problemática subjetiva e sombria


do enredo. Desse modo, sobressaem cenários estáticos, misteriosos e antiquados,
cujo enquadramento se dá por meio de uma organização extremamente plástica. 521

Conforme notara Mário de Andrade:

As suas evocações de ambientes antiquados, de pessoas estranhas ou


anormais, de cidades mortas onde as famílias degeneram lentamente e a
loucura está sempre à ‘espreita de novas vítimas’, tudo isso é admirável e
perfeitamente conseguido. Alma de colecionador, vivendo no convívio dos
objetos velhos, Cornélio Penna sabe traduzir, como ninguém entre nós, o
sabor de beleza misturado ao de segredo, de degeneração e mistério, que
torna uma arca antiga, uma caixinha de música, um leque, tão evocativos,
repletos de sobrevivência humana assombrada. (ANDRADE, 1972, p. 122)

Conhecido pelo gosto e apego a objetos raros e obsoletos, Cornélio Penna


apresenta em suas narrativas uma complexa relação com o passado, na medida em
que organiza uma obra fragmentada e desinteressada do enredo factual. Sobre o
apego ao passado e o hábito de colecionador, retomamos a lembrança do poeta e
amigo Murilo Mendes acerca do autor:

Essas coisas eram objetos ‘antigos’. [...] A cada um, fosse um móvel, um
leque, um bastão, uma salva de prata, atribuía uma história particular, um
significado próprio. Guardava com grande zelo caixas de borboletas.
(MENDES,1980, p. 165 apud VILELA, 2013, p. 17).

Ademais, para além do hábito de colecionar objetos antigos fez-se presente


na vida do autor a atividade com a pintura, descoberta por volta dos onze anos de
idade. Segundo André Luís Rodrigues (2006), tal atividade artística desponta anos
depois, já em 1923, quando Penna expõe alguns quadros no Salão da Primavera, no
Rio de Janeiro. Mas é em 1928 que consegue a primeira exposição individual, no
Saguão dos Empregados do Comércio. Contudo, esta veia artística é abandonada
pelo autor, que, em contrapartida continua a realizar ilustrações de livros escritos
pelos amigos. Como última composição consta a tela Anjos combatentes, de traços
japonizados no alongamento das feições e das figuras:

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1 Anjos combatentes, de Cornélio Penna (Acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa, RJ):

522

Fonte: (VILELA, 2013, p. 10)

Em que pese a presença da atividade pictórica exercida pelo autor, cabe


ressaltar, quanto à linguagem utilizada nas suas obras, a intrigante correlação da
fatura romanesca aos episódios, dos personagens e ações, bem como dos cenários
e das situações, os quais se revelam como verdadeiros “quadros plásticos” (FILHO,
1960, p. 11). Nessa dinâmica, a trama enreda-se em uma aura sombria e obscura,
na medida em que está submersa na consciência dos personagens, cujas ações
vagarosas corroboram planos psicológicos, com paisagens plasticamente
representadas, tais como as cidades interioranas e as fazendas, tudo regado a dor e
desolação:

O ritmo da narrativa não se precipita e, porque lenta, sua movimentação


não força a vivência dramática. Não a forçará também em A menina morta,
que, em sua arquitetura tradicional, revela o equilíbrio na base de todas as
linhas, todas as peças e todas as áreas. [...] levantam-se os quadros em
visualização quase teatral, as personagens integradas em seus
comportamentos, entrosados acontecimentos e cenários, que o romance se
descobre em plena organização plástica. (FILHO, 1960, p. 12)

Por sinal, A menina morta é o tema deste trabalho, cujo objetivo é fazer uma
breve sondagem de como esse espaço interior é trabalhado na narrativa em
questão, procurando averiguar o lugar e a importância da obra corneliana em nossa
literatura. Em nossa empreitada analítica, abordaremos a organização interior da
espacialidade narrativa, que, ao modo de cromos ou quadros vivos apresentam

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cenas plásticas e autônomas, bastante reveladoras do âmago das personagens. O


artesanato do escritor articula-se na atmosfera fantasmal configurada nas suas
páginas e no enquadramento de cenários, medido sobremaneira pela condição 523

humana e seus problemas:

Associava seu poder imaginativo – a sua imaginação de romancista – ao


enquadramento quando, limitando as margens das tramas, submetia os
romances ao espaço exato. É decisiva, na cobertura técnica, essa
percepção de espaço. (FILHO, 1960, p. 12)

Caberá ao nosso trabalho comprovar tais relações, guiando-nos pelos


estudos de acerca do elemento psicoespacial da obra literária, empreendidos por
Gaston Bachelard (1976).

Um quadro, um enredo:

Conforme consta na fortuna crítica de Cornélio Penna, a inspiração para o


romance A menina morta deu-se a partir de um retrato a óleo de uma das tias
bisavós do escritor, falecida na infância. Nele há uma criança morta, em posição de
repouso, que teria despertado a curiosidade e obsessão do autor, resultando no
processo alquímico de reinvenção da história da menina na escrita.

O quadro trazia a criança no leito de morte e fora pintado no passado por um


artista francês que se hospedara numa fazenda da família. A tela exercia grande
fascinação ao escritor, que frequentemente a mostrava aos amigos que o visitavam,
guardando-a com intenso desvelo até o fim de sua vida. Assim, o autor efetuava o
resgate dos laços familiares, unindo tempo e espaço como matérias de sua ficção,
pois a partir daquela pintura sentiu-se inspirado para compor a trama de seu último
romance, numa clara correspondência da escrita com o fator nostálgico, conforme
ele mesmo declarara:

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Quando vivia solitário em minha casa, ela [a menina morta] me entristecia e


povoava meus dias com sua presença patética. Tinha o hábito de dizer que
ela ‘vivia em mim’ e que um dia escreveria o seu romance [...] Sua presença
tornou-se quase real ao meu lado, e ouvi que murmurava muitas coisas em 524
meus sonhos. (PENNA, 1958, p. 42)

2 Quadro da menina morta (Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa)

Fonte: (VILELA, 2013, p. 65)

A trama de A menina morta passa-se em meados do século XIX, mais


especificamente antes de ocorrer a abolição da escravatura. As doze cenas iniciais
retratam a preparação do corpo da criança para o enterro. A partir deste momento,
inicia-se um processo de mitificação da figura da menina, que, a todo o momento é
lembrada pela família e pelos moradores do Grotão (nome dado à fazenda produtora
de café, situada às margens do rio Paraíba, na fronteira do Rio de Janeiro com
Minas Gerais).

Nesse papel de resgate da memória da criança, efetua-se o aspecto


nostálgico de volta ao passado, na medida em que a menina torna-se uma
“presença ausente” cada vez mais forte no imaginário dos demais personagens.
Desse modo, o texto beira a fantasmagoria, uma vez que a presença da criança
morta circula por entre aqueles que habitam a fazenda, tal como uma entidade
fronteiriça entre vivos e mortosv.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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Vale salientar que o apego do autor ao passado da menina estende-se ao


contexto republicano, o qual está arrefecendo (no momento da trama), junto a um
momento de ascensão capitalista, que marcou a história do país. Há, portanto, 525

reminiscências da vida pretérita do passado patriarcal brasileiro:

Sobre a mesa colocada bem no centro da sala do oratório, que era imensa
e guarnecida dos lados por marquesas cujos encostos se erguiam em
pesadas volutas [...] Era ali que devia ser posto o pequenino caixão de
cetim branco, nesse momento quase terminado por José Carapina, e fora
esse trabalho demorado, porque o escravo o fazia sem enxergar bem o que
tinha diante de si, de tal modo seus olhos estavam nublados. [...] Ora
duvidava se não estavam muito grossas as pranchas que aplainava, ora
corria nervosamente as mãos sobre elas, para sentir se não tinham ficado
ásperas, de forma a ferir aqueles bracinhos redondos, que tantas vezes
tinham passado em torno de seu pescoço cheio de cordas. Já sabia que
aquela sua obra tosca seria coberta pelo tecido branco e brilhante
desdobrado pela mucama, para medir sobre o seu trabalho, mas, mesmo
assim, desejava fazer a caminha bem macia, onde a nenê poderia
descansar para sempre... (PENNA apud FILHO, 1960, p. 46)

A passagem evidencia o traço realista da escrita corneliana, na medida em


que o narrador percorre o detalhamento do cenário e a confecção do caixão,
desenhando ao leitor uma cena com muita expressividade, sobretudo na ênfase
dada à cor do tecido, “branco e brilhante”, que envolveria o féretro da menina. De
acordo com Alfredo Bosi: “A poesia desta grande obra está precisamente na
redução de um mar de imagens à atmosfera de dor e de opressão que a ausência
da menina provoca em cada personagem” (BOSI, 1994, p. 417 apud VILELA, 2013,
p. 24).

A cena apresenta matizes contrastantes por comportar as tristezas e dores do


escravo José Carapina junto à puerilidade da criança, que frequentava os espaços
da casa grande e senzala do Grotão, congregando memórias ao fazer parte do
imaginário dos demais personagens. Desse modo, todas as emoções reprimidas dos
escravos são liberadas após a morte da menina, junto aos conflitos entre senhoras,
escravas e agregados, marcando os embates ocorridos no interior do seio familiar
da fazenda. Conforme observa Guilherme Zubaran de Azevedo:

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A morta da fazenda se estende ao patriarcalismo, cujas estruturas


econômicas e sociais também sangram, o que revela a crise e a decadência 526
dos seus dispositivos de verdade que legitimam os papéis, os espaços e as
divisões de gênero, bem como o poder do pater familias. (AZEVEDO, 2012,
p. 46)

A configuração da morte da criança resvala na presença de fatos traumáticos,


relacionados com as vivências da vida patriarcal brasileira. É assim que o escravo
rememora a sua própria história a partir da morte da menina:

Nunca sentira tristeza tão grande e tão estranha, nem mesmo quando fora
vendido pelos seus antigos senhores, pois não nascera ali, e sim muito
abaixo do rio, na humilde ‘situação’ onde os donos morenos e pobres quase
confundiam com os escravos. Viera de lá com a respiração cortada de
soluços, e às vezes parecia ter sido essa uma irremediável desgraça sem
fim e sem medida que lhe acontecera, mas o coração lhe doía ao lembrar-
se que, no caminho, o tinham assaltado as esperanças de comer bem e
tornar-se ‘negro importante’ da fazenda do novo Sinhô muito rico, que ia
sempre à Corte e conhecia o Imperador. (PENNA apud FILHO, 1960, p. 46)

Diante do exposto, cabe refletirmos brevemente a respeito da imagem do real


e como esta pode ser extraída da obra corneliana, cujas bases romanescas
assentam-se na tendência introspectiva de ficção. O autor traz para a fatura
narrativa de A menina morta a preocupação com o pormenor, retornando ao
realismo e ao mesmo tempo tingindo-o de matizes antimiméticosv. Para além da
plasticidade da cena, despontam as agruras da escravidão, revividas de forma
melancólica pelo escravo José Carapina.

Não se deve esquecer que no contexto da narrativa o desamparo é situação


absoluta entre os personagens, surgindo constantemente por outros termos, os
quais podem ser compreendidos sempre através de seu primeiro sentido, ou seja,
ausência de escora, esteio ou arrimo. A observação está de acordo com o que
André Luís Rodrigues aponta em sua tese a respeito de um dos motes de A menina
morta: “o que ele [Cornélio Penna] dramatiza em A menina morta, como já o fizera

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nas obras anteriores, é também o desamparo humano em sentido amplo, a dor de


estar no mundo, a condição humana por excelência” (RODRIGUES, 2006, p. 191).
527
A estaticidade das cenas pode encampar modos alternativos de vivência da
morte, sendo esta tratada pelo narrador como evento concreto relacionado à
ausência da menina, até a sua transformação em morte figurada, metamorfoseada
nas agruras da escravidão e na solidão dos demais personagens, as quais se
colocam “á sombra da morte, e a esperam, porque apenas através de seus
caminhos é que o encontro se realiza” (FILHO, 1960, p. 14).

Além disso, a fixação ao passado e a construção de uma espacialidade


penumbrosa tendem a intensificar o clima de desolação e mistério, que resvala nos
demais personagens. A desestruturação das cenas, tais como estranhos cromos,
guardam o universo psíquico dos seres, aprofundando questões subjetivas, as quais
participam do tempo e do espaço por onde se movimentam as personagens. Assim,
o narrador confere voz aos objetos da casa grande, atentando para o detalhamento
dos espaços internos e externos, tais como a descrição dos telhados e janelas, do
mobiliário antigo, junto a cofres, escrínios, armários, gavetas e candelabros, que,
junto à cozinha e a despensa funcionam como uma espécie de ritualização da vida
cotidiana do Grotão. Embora longa, a passagem abaixo está apta a fornecer tal
constatação:

Na grande cozinha cujo teto muito alto, de telha-vã, parece imensa abóbada
negra, e o chão calçado de pedra, constantemente borrifado de água, para
evitar a poeira, segundo as ordens da Senhora, lembrava a sala
subterrânea de convento antigo, todos se agitavam depois da saída dos
pratos do almoço. Era dia de fazer azeite para as lâmpadas da sala e para
as candeias e lamparinas de toda a casa, e um grande tacho de cobre tinha
sido já posto sobre a trempe, e por baixo dele fora feita pequena fogueira
destinada a entretê-lo em fervura, abrigada por pedras soltas, tisnadas de
carvão. A um canto, três negras socavam nos pilões as sementes de
mamona que se viam, em cestos alinhados junto da parede, cheios de
bichinhos de conta formados pelos caroços debulhados dos cachos, sérvio
para o qual tinham reunido os negrinhos da mandrião lá fora no ângulo do
pátio, durante horas de risos e gritos [...] Grandes bolhas se abriam na
superfície da água, e o ruído surdo da fervura enchia toda a enorme sala
com o seu murmúrio, igual à conversa misteriosa de muitos negros lá na
senzala quando tramavam alguma coisa má. Muitas vezes a menina viera
espiar o que se passava, porque todas as escravas se mantinham em

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

silêncio, e escutara aquela chiada com os olhos brilhantes de curiosidade,


para compreender a conversa dos diabinhos escondidos embaixo daquelas
águas revoltas, e essa agitação bem demonstrava como deviam-se
digladiar os coitados que estavam lá no fundo. (PENNA apud FILHO, 1960, 528
p. 60-61)

A cena acima se constrói por linhas de força que costuram a estrutura do


romance, na medida em que o narrador descreve os espaços, centrando-se na
“grande cozinha” e a estiliza em efeitos sinestésicos, inserido-a no cotidiano dos
personagens. Como auxílio à compreensão destes efeitos vale ressaltar a
contribuição do filósofo Gaston Bachelard com o estudo A poética do espaço (1976).

Definindo a topoanálise como “o estudo psicológico sistemático dos lugares


físicos de nossa vida íntima” (BACHELARD, 1976, p.24), a noção de casa é
apresentada pelo estudioso como sendo vivida não apenas no momento presente,
mas também por meio de pensamentos e sonhos, inserida em qualquer espaço
essencialmente habitado. Oniricamente visitada, a casa constitui uma das maiores
integrações para os pensamentos e sonhos do ser. Nela prevalecerão os valores de
intimidade do espaço interior de seus narradores. O estudo fenomenológico das
imagens da casa pode revelar ainda “quais são os valores do espaço habitado, o
não-eu que protege o eu” (BACHELARD, 1976, p.22).

Assim, o significado que se depreende da descrição acima dialoga


diretamente com os resquícios do passado, na medida em que o narrador confere
presença à menina morta, relembrando seus atos no cotidiano da fazenda. Edificada
numa espécie de fortaleza com a cozinha espaçosa, “cujo teto muito alto parece
imensa abóbada negra” (PENNA apud FILHO, 1960, p. 60), a casa mantém em suas
paredes e em seu imaginário a memória da criança, na medida em que a
presentifica em seus cômodos, objetos e ações dos personagens. De acordo com
Bachelard: “Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do
pensamento e dos sonhos” (BACHELARD, 1976, p. 200).

Nesse contexto, cabe atentarmos para a descrição do teto como “imensa


abóbada negra” como imagem que conjuga interioridade ao espaço e aos escravos:
“O mundo é redondo em torno do ser redondo.” (BACHELARD, 1976, p.176).

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Anais

A imagem do teto como uma abóbada permite-nos recorrer a um certo


simbolismo. As abóbadas surgiram na Idade Média, com os chamados Pedreiros
Livres, os free masons, que guardavam ciosamente o segredo da construção. 529

Maçonicamente significam, “[...] o teto dos Templos, onde são artisticamente


reproduzidos, os astros principais [...]” (CAMINO, 1990, p. 13). O cosmos encontra-
se simbolizado nesses templos e o firmamento é parte relevante. Em atitude de
meditação frente ao firmamento, integra-se a abóbada celeste do universo interior de
cada ser humano.

Também observado por Chevalier e Gheerbrant (1997), de modo geral, as


abóbadas “repousam sobre uma base quadrada. Esta aliança entre as linhas curvas
do alto e das retas da base simbolizam a união do céu e da terra” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1997, p. 6). Desse modo, o efeito estilístico da redondeza do teto
coabita espaço e sujeitos, possibilitando a estes últimos congregarem-se
intimamente e permanecerem envoltos pela presença da menina insistentemente
arraigada em seus imaginários.

A presença da menina estende-se ainda à personagem Carlota, irmã mais


velha da menina morta, que fora criada na Corte, longe do Grotão. Ao retornar à
fazenda, Carlota será frequentemente confundida com a menina morta pelos
moradores, especialmente os escravos, tal como Libânia, ama de leite da criança
falecida:

[...] ainda mais comovida ficou ao ver que ela [Carlota] revivia a menina
morta, os seus atos de caridade humilde, o seu amor pelos desgraçados,
sempre pronto a levá-la a fazer o bem, ainda mesmo quando julgava
divertir-se apenas. (PENNA, 1958, p. 408-409)

É dado supor a atuação de Carlota arquitetada à temática do duplo, pois


mesmo negando cultuar a irmã mais nova, ela se identificará com esta no fim da
narrativa. No todo enigmático desta questão não é demais atentarmos para a rima
final existente entre as palavras morta e Carlota, as quais ecoam, espelhando-sev.

Conforme já dissemos, a presença de cenas autônomas e fantasmais


converte-se em instigantes e vivos cromos, cuja atuação é expressiva quanto à

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atuação dos personagens. Assim, vale salientar a importância do quadro que


inspirara a pena do escritor na composição da trama de A menina morta.
530
O quadro surge no romance trazido por Dona Inacinha à sala de visitas da
casa grande; ela o mostra à Sinhá Rola, sua irmã. Bastante realista nas descrições e
enigmático em seu conjunto, a tela é bastante semelhante àquela que fascinara o
autor:

[...] coberta pelo vestido de brocado branco, de grandes ramagens de prata


onde brilhavam os tons azulados e cinzentos, coroado de pequeninas rosas
de toucar, feitas de penas levemente rosadas e postas sobre seus cabelos
curtos, cortados rente da cabeça. As mãos tinham sido cruzadas sobre o
colo, bem baixas, quase junto da cintura, mas os dedos eram tão polpudos
ainda, apesar da cor lívida que os cobria, tornando-os quase transparentes,
que se tinha separado, e formavam um gesto de espanto, desmentido pela
expressão extremamente pura e ausente do rosto (PENNA, 1958, p. 27).

A melancolia e o passado apossam-se da cena, que se faz por uma situação


mista de choro, lembranças e confissões das duas mulheres. Destarte, o passado
atravessa as paredes da sala de visitas da fazenda, atingindo o âmago dos
personagens: “A casa da lembrança se torna psicologicamente complexa. A seus
abrigos de solidão se associam o quarto e a sala em que reinaram os seres
dominantes” (BACHELARD, 1976, p. 206).

Portanto, tal como um centro de força, a sala favorece a polaridade das


recordações em torno da menina morta, irradiando os limites da representação. A
menina é mitificada e eternizada com um centro de lembranças revividas em sua
imensidão: “A imensidão está em nós. Está presa a uma espécie de expansão do
ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que volta de novo na solidão”
(BACHELARD, 1976, p. 317).

Considerações finais:

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Anais

Todas as considerações feitas até aqui sobre A menina morta, de Cornélio


Penna, constituem-se na busca de expor alguns aspectos que auxiliam na
construção estética da espacialidade e sua importância nessa narrativa. 531

Após ter desistido da pintura, Cornélio Penna encontra na literatura o seu


verdadeiro caminho. Porém, foi no diálogo com a pintura que a obra corneliana
atingiu sua melhor expressão, edificada em A menina morta, sua última obra.

Toda a trama tem como centro a morte da menina, que dilacera as


esperanças dos demais personagens e os atemoriza, ao mesmo tempo em que é
eternizada no cotidiano do Grotão.

Assim, em todo o romance o espaço é a instância fundamental para demarcar


a presença fronteiriça da menina morta. Nesse contexto, é imprescindível a
demarcação da fazenda entre casa grande e senzala como introdução a
polaridades. Conforme observara Costa Lima (2005), à senzala compreendem as
figurações e espaços do feminino, ao passo que à casa grande reserva-se o poder e
a atitude masculina e patriarcal. Tais separações não são meramente formais ou
inócuas, uma vez que participam da estrutura do romance, conferindo intrigantes
sentidos:

O lado feminino [...] forma um triângulo, Mariana, Carlota, Celestina,


dimensionado pelas formas diversas de rebelião contra o masculino
patriarcal, bem como pelas formas também diversas de relacionamento com
a menina morta. (COSTA LIMA, 205, p. 175)

Durante todo o livro, a casa é representada como um espaço amplo e


austero em que despontam a opressão e amargura vividas pelos personagens. A
morte da menina, transfigurada na dimensão cotidiana torna a fazenda um ambiente
labiríntico e fantasmal:

O senhor Justino, diante do quarto de vestir dos senhores, parou, e


despediu com aspereza a pretinha que tomara como guia, pois perdera-se
na confusão de entradas de salas e corredores daquela casa que lhe
parecera sempre um palácio encantado e proibido. (PENNA, 1958, p.758)

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A imponência do mobiliário e a arquitetura da casa grande são igualmente


destacadas, como forma de composição do próprio ambiente opressor e dominante:
“A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço 532

geométrico” (BACHELARD, 1976, p. 227).

Seguindo a pista de Bachelard, percebe-se que ao empreender a descrição


dos cômodos, o narrador penetra os escombros da subjetividade sob a escravidão,
revelados por sutis cromos da escrita. Como se percebe nas últimas linhas do
romance, quando Carlota leva o quadro da menina morta de volta à parede, num
misto de ilusão ótica e constatação:

Carlota então apoiou à parede o seu corpo que esposou a muralha fria. E a
luminosidade flutuante em farrapos pela sala toda se concentrou na figura
leve da menina morta que, tendo a cabeça pousada na almofada, parecia
sorrir, mas seu sorriso poderia ser apenas o efeito daquela luz pobre, que
dentro em pouco deveria cessar de bruxulear, para se apagar para
sempre... (PENNA, 1958, p. 623)

Como romance seminal da ficção brasileira moderna, A menina morta


permanece à espera de leitores que um dia reconheçam sua singularidade.

Referências

ANDRADE, Mário de. Romances de um Antiquário. In: ANDRADE, Mário de. O


empalhador de passarinho. 3. ed. São Paulo: Martins/INL‐MEC, 1972.
AZEVEDO, Guilherme Zubaran de. Natureza e melancolia: uma leitura de A menina
morta e Repouso de Cornélio Penna. Cadernos Benjaminianos, Belo Horizonte, n. 6,
p. 41-51, 2012.

BACHELARD, G. A poética do espaço. Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia


do Valle Santos Leal. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca, 1976. (Coleção Quid).

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

CAMINO, Rizzardo da. Dicionário Maçônico. Rio de Janeiro: Aurora, 1990.


533

CHEVALIER, Jean ; GHEERBRANT, Alain . Dicionário de símbolos (mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Tradução Vera da Costa e Silva
et al. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

COSTA LIMA, Luiz. O romance em Cornélio Penna. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2005.

FILHO, Adonias. Cornélio Penna: romance. Rio de Janeiro: Agir, 1960.

MENDES, Murilo. Transistor: antologia de prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


1980.

PENNA, Cornélio. Romances completos. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958.

RODRIGUES, André Luís. Fraturas no olhar: realidade e representação em Cornélio


Penna. 274 f. Tese (doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciencias Humanas da Universidade de São Paulo, 2006.

VILELA, Ana. Restauração de uma menina morta: da ausência à presença ausente.


80 f. Dissertação (mestrado em Literatura) - Instituto de Letras da Universidade de
Brasília, 2013.

Clarice e Nelson: inovações estéticas no


Modernismo
Clarice and Nelson: aesthetic innovations in Modernism

Carla Kühlewein (Unespar - PQ)

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

RESUMO: Inovações estéticas são fenômenos recorrentes na literatura brasileira, no entanto é no


Modernismo que elas encontram de fato um terreno fértil de manifestação. A exemplo disso, a obra
534
de Clarice Lispector e de Nelson Rodrigues inaugura rupturas significativas no campo estético,
especialmente no que diz respeito aos gêneros literários. Nessa medida, com base nos pressupostos
teóricos de Afrânio Coutinho, Mario da Silva Brito e Sábato Magaldi, desenvolve-se neste breve
estudo uma análise comparativa entre a obra destes dois autores, tendo em vista seus pontos de
encontro, no que tange à inovação estética por meio da fragmentação textual.

Palavras-chave: Clarice Lispector. Nelson Rodrigues. Fragmentação. Estética.

ABSTRACT: Aesthetic innovations are recurrent phenomena in Brazilian literature. However, it is the
Modernism that they actually find fertile ground of manifestation. As an example, the works of Clarice
Lispector and Nelson Rodrigues introduce meaningful breaks in the aesthetic field, especially with
regard to literary genres. To that extent, based on the theoretical assumptions of Afrânio Coutinho,
Mario da Silva Brito and Sábato Magaldi, this brief study develops a comparison between the works of
those two authors, in view of their meeting points, regarding the aesthetic innovation through textual
fragmentation.

KEYWORDS: Clarice Lispector. Nelson Rodrigues. Fragmentation. Aesthetic.

Introdução

"O século XX daria coordenadas absolutamente inéditas ao mundo."

(Mario da Silva Brito)

Inovações estéticas não são privilégio do Modernismo, mas sem dúvida é


nesse período que encontram terreno fértil para se manifestarem aos milhares,
diversificadamente, numa torrente inesgotável de possibilidades. Isso se deve,
oportunamente a uma série de fatos sócio-históricos que serão aqui avaliados um
pouco mais atentamente, a partir da obra de Mario da Silva Brito, em História do
Modernismo Brasileiro (1974) e em um dos ensaios de sua autoria contido em A
literatura no Brasil (2004), livro organizado por Afrânio Coutinho, no volume 5 da
coleção.

Numa perspectiva histórica, Brito resgata informações, detalhes e matizes


que são de fundamental importância para se compreender amiúde os bastidores da

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Literatura Brasileira que se formam no decorrer dos tempos, para tanto o teórico faz
um resgate do Modernismo desde os resquícios do Romantismo, passando pelo
Simbolismo e culminando no movimento modernista de 22 em diante. 535

Além destes textos, será contemplado ainda o ensaio O Modernismo na


ficção, de Afrânio Coutinho, no que diz respeito à prosa clariceana, já para o teatro,
se recorrerá a Sábato Magaldi, em Moderna Dramaturgia Brasileira (2010) e
Panorama do Teatro Brasileiro (2004), tendo em vista o mesmo enfoque histórico-
literário como fonte de análise.

Grosso modo, compreende-se que grande parte da produção literária que se


dá no século XX tem como enfoque a inovação, enquanto uma forma de ruptura,
seja ela de natureza temática, ideológica ou estética. A esta última se dará enfoque
nessa pesquisa, buscando reconstituir alguns traços marcantes de obras literárias
representativas de cada um dos gêneros literários propostos. Nesse sentido
selecionou-se como corpus a obra de Clarice Lispector (prosa) e Nelson Rodrigues
(teatro)v.

De alguma forma o universo literário modernista emerge de uma turbulenta


movimentação social, política e econômica, o que não poderia resultar senão em
uma vasta produção literária tão diversificada quanto a literatura brasileira ainda não
havia provado. Nesse vasto terreno de obras das mais variadas linhas, tendências e
correntes apontam-se as inovações no campo da estética literária que romperam
certas "barreiras clássicas", em especial a dos gêneros literários.

Nesse sentido figura Clarice e sua prosa intimista, que cria uma maneira
própria de fazer ficção, justamente para dar conta do universo íntimo de que ela trata
e Nelson Rodrigues arrepiando, com seu teatro desagradável, os ânimos de um
público que se acostumara a rir e se deliciar com as comédias de costumes, nos
idos de Martins Pena e Artur Azevedo.

Os tempos eram outros, o que se sucedia agora, no século XX já iniciado,


reservava acontecimentos vários que surgem aos atropelos, ao som do automóvel, das
buzinas, sirenes, o homem moderno gira em torno de si mesmo e precisa urgentemente
mudar sua forma de se expressar, uma vez que aquela, a realista, já não dava mais
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Anais

conta de suas novas angústias. Era preciso mudar radicalmente os contornos artísticos
do Brasil. E foi o que eles fizeram...
536

Os antecedentes do Modernismo

"Uns se escondem para ocultar a miséria; outros para fugir à


justiça... um belo carnaval! E ninguém lê livros". (Aluísio
Azevedo)

Exatamente quando o Realismo florescia, direto dos laboratórios de pesquisa


e do aparato científico que se formava, a sociedade brasileira sentiu o amargor de
sua primeira crise econômica. O resultado, logo após a bancarrota, aponta para uma
realidade dura a caroável: de um lado os que perderam tudo e do outro, os que
ganharam, agravando a desigualdade social.

Como a proposta do movimento literário exigisse a observação atenta dos


acontecimentos socioeconômicos que emergiam aos trancos e barrancos, escritores
e artistas desse período declaravam-se, muitas vezes, estarrecidos e até
preocupados com os rumos do país diante de uma situação tão caótica. Raimundo
Correia chega a declarar: "Tudo enfim, caído de tal sorte que não sei quando se
erguerá de novo"v.

Nesse meio tempo o Parnasianismo já soava um tanto agastado, pois o sabor


de novidade parecia ter caído numa estética previsível e sem maiores notoriedades.
Nesse meio tempo já desfilavam pelos holofotes literários alguns escritores que
rejeitavam a "arte pela arte" dos parnasianos e se aventuravam em uma maneira de
compor mais ligada à sensibilidade artística, retomando, em certa medida, a
versificação livre do Romantismo. Era o "novismo", mais tarde chamado de
Simbolismo.

Porém o Simbolismo não resistiu muito tempo no Brasil, a bem da verdade,


parece mais um suspiro poético diante do turbulento século XIX, recheado de
movimentos literários de forte impacto na Literatura nacional. Coutinho chega a

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Anais

mencionar, no volume 4 de A literatura Brasileira (2004), que o Simbolismo só não


alcançou expressividade e maior permanência no Brasil porque em outros países da
Europa eclodiu imponente como reação factual à plasticidade parnasiana. 537

Brito confere à crise econômica o fato de tal estilo de época passar quase
despercebido, mesmo assim, alerta para a importância deste como preparação para
a corrente modernista que viria posteriormente (tanto assim é que os modernistas
rechaçavam o Parnasianismo mas reconheciam o valor dos simbolistas), donde Brito
conclui: "Enfim, é o progresso, a modernidade, a afirmação da nacionalidade. É uma
época nova à espera também de uma arte nova, que exprima a saga desses tempos
e do porvir" (1974, p. 28).

Na busca por essa "arte nova" surgem os movimentos de vanguarda, cada


qual com sua proposta artística, porém todos propondo a ruptura com os ditames
passados e o revigoramento dos fundamentos da arte. Daí pra frente foram só
propostas inovadoras, algumas mais radicais, ousadas, como na chamada "primeira
geração", outras mais modestas e sem menos impacto, como a segunda e terceira
gerações. Seja como for, o Modernismo, todo ele, de fio a pavio, propõe uma
espécie de reforma literária em todos os campos da arte, numa variedade
estonteante.

A Semana de Arte Moderna (1922) foi o marco inicial da corrente literária que
se estenderia pelo século afora. De lá pra cá muito se produziu em termos de
literatura e mais ainda se inovou. A exemplo disso cite-se o inventivo poema-pílula
de Oswald de Andrade:

amor

humor

Ou mesmo sua prosa ousada que arruína a gramática da Língua Portuguesa,


em Memórias Sentimentais de João Miramar, pervertendo-lhe a sintaxe, sem se

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

limitar à semântica e à morfologia, na busca de um novo fazer literário. A literatura


brasileira começava a dar saltos ornamentais, tentando driblar o passadismo e a
falta de originalidade a que ficara reduzida no século XIX. 538

Na fase germinal desse movimento é fácil detectar as mais diversas


inovações estéticas, sobretudo na obra dos Andrades. No entanto, para a presente
pesquisa optou-se por autores das fases seguintes, justamente por não estarem
mais envoltos no calor das novidades e, mesmo assim, preservarem o mesmo
enfoque do início da proposta modernista.

Como artifício comum aos autores em questão destaque-se, apenas para fins
de organização metodológica, a palavra-chave que será aqui identificada como o
impulso motivador da busca, em cada um deles, de criar sua própria arte: para
Clarice: introspecção e para Rodrigues: desagradável.

Cada qual em sua medida e a seu tempo segue a proposta modernista e


simultaneamente insere algo tão particular que fica difícil definir características
gerais ao movimento, como se costuma proceder aos demais estilos de época. Em
alto e bom som, o Modernismo é, por si só, uma corrente de estilos entrecortados,
que se aproximam e se distanciam, mas que se voltam para um mesmo eixo: a
renovação da arte a todo custo.

A introspecção de Clarice

"É que olhei demais pra dentro de mim" (Clarice Lispector)

Clarice Lispector promove o aprofundamento intenso do "eu" e, curiosamente


o faz via narrativa, gênero que, até então, ao menos na literatura brasileira, não
experimentara incursão dessa magnitude. Ora, não seria para ela a poesia o modo
adequado para exprimir tal intento? Não por acaso a escritora elege a prosa como
forma de comunicação dileta para expressar as divagações de um "eu" perdido em
si mesmo, afinal o que haveria de novo em expressá-las poeticamente? Os poetas
In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

românticos e outros tantos já o haviam feito, se a ordem era inovar, nada mais
instigante do que criar na prosa mecanismos que viabilizassem tal intento. Não por
acaso a escritora alcança na crítica literária brasileira a alcunha de criadora do 539

"romance introspectivo".

Em A Literatura no Brasil, Coutinho agrupa os romancistas modernos de


acordo com uma característica que, de certa forma, os aproxima, nesse sentido tem-
se o grupo de escritores pertencentes ao: experimentalismo; regionalismo;
psicologismo e costumismo; instrumentalismo. Clarice, ao lado de Guimarães Rosa,
é situada neste último grupo, justamente por se considerar que ambos desenvolvem,
cada qual a sua maneira, instrumentos linguísticos novos de aplicação no romance,
denotando a ruptura estética que se lhes cabev.

Luis Costa Lima destaca diversas características da obra de Clarice, dentre


as quais merecem destaque duas, que contemplam mais especificamente o universo
introspectivo que a autora procura abarcar: a desarticulação com o real e a
hipertrofia da realidade. Em análise de Perto do coração selvagem, Lima destaca a
luta individual travada pela personagem central, Joana, numa gradativa
subjetividade, conforme se observa na sua fala "Tudo o que é forma de vida procuro
afastar, Tento isolar-me para encontrar a vida em si mesma".

Nesse sentido, as personagens clariceanas se veem incapazes de seguir


adiante, dada sua existência limitada, e por isso se perdem na subjetividade, mais
uma vez Joana é a porta-voz dessa realidade: "Aceito tudo o que vem de mim
porque não tenho conhecimento das causas e é possível que esteja pisando no vital
sem saber; é essa a minha maior humildade, adivinhá-la".

Desse mecanismo voltado para a subjetividade das personagens, Clarice


desenvolve instrumentos que lhe permitem representar o fluxo de consciência delas,
numa espécie de "raio-x" captando laivos de memória, ilusão e realidade, nisso
reside uma das inovações estéticas mais expressivas da autora. Outro exemplo
bastante ilustrativo disso pode ser observado no conto "A quinta história" (publicado
em dois livros: Felicidade clandestina e A legião estrangeira), cujo enredo apresenta

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Anais

experiências sobre o extermínio de baratas, a narradora queixa-se à vizinha da


presença excessiva desses insetos e decide exterminá-los.
540
O tema do conto seria algo absolutamente banal, não fosse pelo modo como
a contista decide fazê-lo, num misto de humor e suspense, a história principia cinco
vezes (daí o título) mas não se conclui. Para cada parágrafo apresenta-se o início de
uma narrativa, que nada mais é do que a mesma história com títulos diferentes
("Como matar baratas", "Assassinato", "As estátuas", "Leipniz e a transcendência do
amor na Polinésia").

A sobreposição de inícios diferentes para a história rompe com a estrutura


clássica da narrativa (início, meio e fim) e oferece novas possibilidades ao fazer
literário. Além disso, a incompletude do final do texto sugere que o texto pode ser
repetido, na mesma estrutura, à exaustão, sem que para isso exista um fim de fato.

Como se não bastasse o esfacelamento da narrativa, ainda há no conto de


Clarice uma barata que não só fala como emite nas palavras um pensamento
profundo, que praticamente traduz a autora: "é que olhei demais pra dentro de mim",
exclama o inseto envolto pelo pó branco do veneno. Não é privilégio desse conto o
emprego de insetos humanizados ou mesmo de uma história sem fim, Clarice
emprega esses e outros recursos com frequência na ficção. A barata é o elemento-
chave em paixão Segundo GH, ao devorar o asqueroso inseto, a personagem
principal compartilha, nesse gesto canibal (uma vez que a barata é também um ser
humanizado), da vida dele e este da dela. Em A quinta história a narradora chega a
identificar-se com esse inseto, "Como para baratas espertas como eu, espalhei
habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza". Humanizar a
barata torna o gesto mais atroz, ao mesmo tempo em que despersonaliza o ser
humano que o pratica.

"A quinta história" é apenas um exemplo do quanto a obra de Clarice pode


romper com ditames clássicos, como no caso da estrutura narrativa. Tratar de um
assunto à primeira vista banal, o extermínio de baratas, parece ser o pretexto certo
para usar e abusar dos experimentos literários aos quais a autora se lança. Fato
este que, como não poderia deixar de ser, encontra na introspecção o veículo

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

propulsor da criação artística, pois o fato de a história reiniciar várias vezes remonta
ao fluxo de consciência que perpassa na mente humana ao elaborar uma narrativa.
541
Empregar esse recurso dá à Clarice a possibilidade de modular a narrativa de
acordo com tal fluxo, buscando captá-lo o melhor possível. O fluxo de consciência é
uma dentre as várias maneiras que Clarice busca na prosa para construir sua
narrativa introspectiva, porém é um exemplo do quanto sua obra pode ser inovadora,
em termos de literatura produzida até então.

O desagradável de Rodrigues

"A ficção para ser purificadora precisa ser atroz" (Nelson


Rodrigues)

Se Clarice Lispector encontra no fluxo de consciência o mecanismo adequado


para construir sua prosa intimista, Nelson Rodrigues o faz também, via texto
dramático. É segundo esse fluxo que Nelson Rodrigues constrói sua obra expoente
Vestido de noiva (1943) e, como Clarice, ele precisa empenhar-se em certas
rupturas para dar conta do desafio de trazer o universo intimista para o palco. Tarefa
árdua que o dramaturgo resolve na interpolação de planos: memória, alucinação e
realidade, numa espécie de simulacro da mente humana. Segundo Magaldi, em
Moderna dramaturgia brasileira:

Quando o alimento habitual do nosso palco eram as comédias de


costumes e os dramas pseudofilosóficos, passando da apresentação
ao desenvolvimento e ao desfecho de uma história, ele subverteu e a
técnica narrativa, para incorporar a flexibilidade do cinema e admitir
as flutuações do inconsciente" (2010, p. 23)

Para Magaldi, Nelson Rodrigues assume uma postura inovadora desde o


início de sua carreira, com a peça Mulher sem pecado (1941), inaugurando
oficialmente seu "teatro desagradável", conforme o próprio Nelson registraria em

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

uma de suas polêmicas declarações. No entanto foi com Vestido de noiva que sua
obra dramática efetivamente se consagrou, como escritor representativo da nova
arte, um verdadeiro "marco renovador do palco brasileiro, nos campos da 542

dramaturgia, da encenação e da cenografia" (MAGALDI, 2010, p. 24).

Vale ressaltar que a estreia dessa peça foi feita pelo grupo carioca de teatro
Os comediantes, que estimulou o surgimento de outros, em diversas partes do país,
como o Teatro de amadores, de Pernambuco, e o Teatro Experimental, em São
Paulo. Nesse meio tempo o Teatro de Arena surgiu com a peça de Gianfrancesco
Guarnieiri Eles não usam black tie, que ficou em cartaz com casa lotada por doze
meses. É no afã dessa efervescência cênica que o dramaturgo empenha-se na
construção de um teatro de fato novo.

O enredo de Vestido de noiva baseia-se em um fato cotidiano: o


atropelamento de uma jovem, Alaíde, e sua permanência no hospital oscilando entre
a vida e a morte. Um acontecimento, sem dúvida banal, ao que Magaldi avalia, em
Panorama do Teatro brasileiro, como "de tamanha necessidade que se assemelha a
uma catástrofe trágica" (2004, p.219).

Além da cadência trágica que Nelson dá à peça, há o trunfo que a torna


definitivamente um texto atípico, ao menos em termos de dramaturgia brasileira: a
divisão da cena em três planos que se intercalam constantemente, um recurso que
procura dar conta do fluxo de consciência de Alaíde, permitindo a representação
mais próxima da ideia de uma mente conturbada da personagem.

À medida que os lapsos da memória de Alaíde aparecem, vai-se tomando


conhecimento das complicações em sua vida que a levaram a morrer, no triângulo
amoroso (melhor seria "odioso"), entre ela, Lucia e Pedro. Lucia, irmã de Alaíde, é a
antiga namorada de Pedro e não se conforma com o fato de ele tê-la deixado pela
irmã, a relação conflituosa entre as duas e o cinismo de Pedro marcam a tensão que
permanece do início ao fim da trama:

PEDRO (cínico) - Se você chegasse um pouquinho mais tarde, o


casamento teria se realizado!

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LÚCIA (desprendendo-se de Pedro, gritando, com o punho erguido,


como na saudação comunista) - Eu é que devia ser a noiva!...
ALAÍDE (excitadíssima, também com o punho erguido) - Mentirosa! 543
Sua mentirosa! Roubei seu namorado e agora ele é meu! Só meu!

É no plano da alucinação que as angústias de Alaíde afloram, momento em


que a peça transcende o limiar do texto dramático e se estende à lírica, conforme
aponta Magaldi (2010): "É que está em jogo, em Vestido de noiva, a aventura interior
da protagonista. Paralisada a atividade consciente, Alaíde, no choque, libera as
fantasias da subconsciência, que se abrem para o território poético" (p. 24),
conforme se observa logo no início da peça:

3ª MULHER - Você é casada?


ALAÍDE (fica em suspenso) - Não sei. (em dúvida) Me esqueci de
tudo. Não tenho memória - sou uma mulher sem memória.
(impressionada) Mas todo o mundo tem um passado; eu também
devo ter - ora essa!
3ª MULHER (em voz baixa) - Você o que é, é louca.
ALAÍDE (impressionada). - Sou louca? (com doçura) Que felicidade!

Na verdade as alucinações de Alaíde são o fio condutor da trama, já que a


realidade e a memória funcionam como lembretes, em flashback desordenado, do
passado da personagem. A adoção desse recurso provoca um efeito estético bem
ao gosto cinematográfico, pois é a partir dessa perspectiva que se torna possível
manter três planos de fundo com cenografia distinta e personagens centrais
oscilando entre eles.

Apesar de Nelson Rodrigues classificar sua obra como "desagradável"


apenas sua peça posterior a Vestido de noiva, Álbum de família, chegou a ser
censurada. Mesmo assim, é importante ressaltar que "Vestido" já apresenta alta
dose desse ingrediente, a começar pelo trio odioso que se forma (Lúcia, Pedro e
Alaíde), uma vez que as relações burguesas que se estabelecem entre as

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personagens, em todos os planos, apontam para a manutenção de um constante


conflito.
544
O desagradável é o mecanismo pelo qual, Rodrigues consegue não só
garantir a estrutura entrecortada da trama como também deixá-la sem um final de
fato, o que provoca uma dupla ruptura estética: a da linearidade no teatro e a
necessidade do desfecho. Nelson parece ter encontrado na relativização do
desfecho, tal como Clarice, uma saída para fugir do óbvio a que parecia condenado
o teatro brasileiro até então.

Uma introspecção desagradável

Acontece que o recurso empenhado tanto por Clarice quanto por Nelson, a
fim de atingirem a inovação estética a que se propõem, emerge de uma
característica tipicamente modernista: a fragmentação. Em oposição ao estilo
discursivo parnasianista, tendente à retórica, os modernistas com frequência
lançaram mão desse recurso como forma de romper com a obscuridade criativa em
que jazia a literatura brasileira desde o século XIX.

Para Clarice a fragmentação funciona como uma estratégia para burlar a


sequência lógica e cadenciada da narrativa tradicional, ao romper a estrutura básica
desse gênero, pautada em: começo, meio e fim, a autora cria um novo fazer literário
ainda não inaugurado na literatura brasileira, em que o texto em prosa serve à
expressão artística e não contrário. Tentativas semelhantes já haviam sido
manifestas ao longo da história, no entanto, Clarice é original no que diz respeito a
fragmentar a narrativa, de um modo ainda não visto/lido. Ainda que Machado de
Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas inicie o romance pelo fim, não se
configura numa fragmentação de fato, uma vez que o fio condutor se estabelece tão
logo o defunto-autor explica a que veio.

Ao reservar para o último parágrafo a quinta história, no texto clariceano,


entende-se o porquê do título e se confirma a incompletude do mesmo. Afinal, o que

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importa são as sensações, as percepções da personagem feminina diante de seu


cotidiano intento em matar baratas, e não a narrativa em si: "A quinta história
chama-se ‘Leibnitz e a transcendência do amor na Polinésia’". Começa assim: 545

queixei-me de baratas". O texto encerra com a consumação da fragmentação da


estrutura narrativa e uma insinuação irônica, um tanto atípica para os moldes
convencionais, porém bem característica do texto à lá Clarice.

Já para Nelson Rodrigues, a fragmentação funciona como uma espécie de


empréstimo da linguagem cinematográfica e, de certo modo, da prosa tradicional,
que sempre permitiu o uso de flash backs, mesmo no século XIX (Machado de Assis
se utiliza desse recurso para compor "A cartomante"). O desafio para o dramaturgo,
portanto, está em inserir no teatro um recurso tipicamente narrativo, para tanto foi
preciso que, dentre outras coisas, ele interferisse na conhecida “unidade de ação”,
aristotelicamente (Poética) tida como a característica máxima desse tipo de texto.

Eis, portanto, que Nelson abala a célebre estrutura do texto dramático para
servir ao propósito último de representar no palco a mente de uma personagem em
estado de choque, entre a vida e a morte. Se não fosse dessa forma, qual seria
então a mais adequada para representar os delírios da mente humana? Talvez
houvesse outra, porém, ele encontra na fragmentação dos atos em cenas mutiladas
uma solução para transmitir com maior expressividade o perturbado inconsciente de
Alaíde.

Se lá ou cá, a fragmentação pela qual ambos os escritores optam é justificada


por um fator em convergente: a instrospecção. Pois é nos tênues limites do
inconsciente de Alaíde e nas entranhas do fluxo de consciência da narradora
relutante de "A quinta história" que o texto se fragmenta e se modula como um
entrecortado de sensações, desconexas, que seguem apenas e tão somente o fluxo
de sua natural manifestação.

Uma vez que essa introspecção ultrapassa os limites até então não
avançados da estética no campo da literatura brasileira, é natural que a leitura de
textos desse caráter atinja, não raras vezes, a alcunha de "desagradáveis". É no
gosto amargo que o texto entrecortado de Nelson e Clarice encontra a expressão de

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sua originalidade e o enlace com a proposta modernista de empenhar-se na


inovação a qualquer preço. São, portanto, autores de uma introspecção
desagradável se tomados comparativamente aos clássicos, em especial os do 546

século XIX, como modelo de referência.

Considerações finais

De fato o berço em que cresceu o Modernismo não foi dos mais afetuosos, no
entanto a própria hostilidade do momento histórico parece ter sido a mola propulsora
para uma vasta e diversificada produção literária, nessas proporções, ainda inédita
no Brasil. É interessante notar que, mesmo diante do arsenal multicolorido de obras
e artistas nesse tempo, tenha-se preservado o enfoque na busca de uma renovação
da arte no Brasil, que parecia ter caído na inércia.

O sangue novo que passa a circular nas veias literárias em vários cantos do
país rendeu frutos nas mais diversas direções, sobretudo na estética. A exemplo da
prosa introspectiva de Clarice e do teatro desagradável de Nelson, a proposta
modernista foi levada a cabo por estes e outros escritores, que se negaram à
reprodução exaustiva dos clássicos e se lançaram por "mares nunca dantes
navegados" (Camões). A empreitada surtiu efeito, já que depois do Modernismo a
literatura brasileira nunca mais seria a mesma.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores).

BRITO, Mario da Silva. História do Modernismo brasileiro. 1976.

COUTINHHO, Afrânio (Coord.) A literatura no Brasil. 7 ed. rev. e atual. v. 4. São


Paulo: Global, 2004.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

LISPECTOR, Clarice. A quinta história. In: A legião estrangeira. São Paulo: Ática,
1977.
547

MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. 6. ed. São Paulo: Global, 2004.

_______. Moderna Dramaturgia brasileira. São Paulo: Perspectiva, 2010.

RODRIGUES, Nelson. Vestido de noiva. In: Teatro Completo - Peças psicológicas. v.


1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

O foco narrativo no romance Fim, de Fernanda


Torres
The narrative focus on the novel The End, by Fernanda Torres
Kátia Cristina Pelegrino Sellin (UFMS-PG)
Dr. Ricardo Magalhães Bulhões (UFMS-PQ)

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo problematizar uma discussão acerca da questão do foco
narrativo ou focalização, que constitui uma categoria crucial para a teoria da narrativa. Definindo-se
como a representação da informação diegética à disposição de um determinado campo de
consciência, seja um narrador-personagem ou um narrador em “terceira pessoa”, o foco narrativo não
somente diz respeito à quantidade da informação narrativa, mas abrange aspectos afetivos, pois
traduz posições psicológicas, éticas e ideológicas da instância responsável pelo narrar. A proposta
deste trabalho de pesquisa surgiu, inicialmente, de uma questão fundamental: quem são os novos
ficcionistas no cenário literário brasileiro do século XXI? Para tanto, utilizamos o romance Fim (2013),
da escritora carioca Fernanda Torres, o qual apresenta alternâncias de técnicas narrativas que
possibilitam estudos mais aprofundados.

PALAVRAS-CHAVE: Diegese. Ponto de vista . Produção contemporânea.

ABSTRACT: This paper aims to discuss a discussion about the question of narrative focus or focus,
which is a crucial category to the theory of narrative. Being defined as the representation of diegetic
information available to a particular field of consciousness, is a narrator-character or narrator in "third
person", the narrative focus not only concerns the amount of narrative information, but encompasses
emotional aspects, it translates psychological, ethical and ideological positions of the body responsible
for narrate. The purpose of this research work came initially from a fundamental question: Who are the
new fiction writers in the Brazilian literary scene of the XXI century? Therefore, we use the novel The
End (2013), the writer Fernanda Torres, which has alternating narratives techniques that enable
further study.

KEYWORDS: Narration. Viewpoint. Contemporary production.

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Introdução
548

Ao discutir o papel do narrador na literatura brasileira contemporânea, o


pesquisador Jaime Guinzburg (2012) afirma que “a partir da psicanálise, podem ser
elaboradas reflexões sobre constituição do sujeito”. Segundo ele, “integrando
algumas ideias de Freud e Lacan, o estudo do narrador pode privilegiar elementos
dissociativos, construções fragmentárias e perspectivas traumáticas em narrativas”
(GUINZBURG, 2012, p. 204). Na esteira das palavras do crítico, pode-se afirmar que
a configuração da memória abre mão da configuração realista, o que se tem, como
no fragmento acima, é a livre associação de ideias.
O romance Fim, de Fernanda Torresv, focaliza a história de um grupo de cinco
amigos cariocas que rememoram as passagens marcantes de suas vidas, desde
festas a casamentos frustrados, separações e reencontros que a vida proporciona.
O estudo propõe observar, a partir do fluxo de consciência desses narradores
criados realisticamente pela autora, o modo como a obra contemporânea reescreve,
através de um texto objetivo e sucinto, as passagens memorialísticas de
personagens que estão no extremo da vida.
Quando fala do mercado editorial, Karl Erik Schollhammer (2009) faz o
seguinte esclarecimento com relação à produção de livros e ao surgimento de
escritores contemporâneos:

À luz dos dias atuais, é curioso registrar que diversos autores que
emergiram encarnavam verdadeiros canônicos anônimos, superando esse
dilema, assumindo liderança no mercado nacional dentro dos parâmetros
possíveis e modestos de venda e de aceitação crítica (...). Alguns escritores
forjaram os moldes estéticos de uma nova geração de sucesso que viria a
se consolidar no fim da década de 1980 e no início de 1990, como, por
exemplo, João Ubaldo Ribeiro, Antônio Torres, Ana Miranda, Patrícia Melo,
João Gilberto Noll e Bernardo Carvalho. Seria injusto, no entanto, acusar
essa geração de sucumbir à tentação do best seller. (…) É verdade que
alguns autores alcançaram independência profissional, mas a maioria ainda
não pode abrir mão de outros empregos, e a expansão do mercado nunca
se realizou segundo profetizavam as visões otimistas do início do Plano
Real. (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 47).

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Schollhammer (2009) procura responder questionamentos sobre quem são os


novos ficcionistas no cenário literário brasileiro do século XXI, como estão surgindo
e de que forma escrevem. Alguns escritores apresentam em seus textos certa 549

dialogia com obras canônicas.


No romance Fim, transparece um possível diálogo com a obra Memórias
Póstumas de Brás Cubas. É evidente que há no romance de Machado de Assis um
narrador-defunto, personagem protagonista. O romance Fim apresenta narradores
defuntos, não apenas um, mas cinco personagens protagonistas que narram suas
memórias. Em termos de caráter filosófico, mostrando falsidades, traições, injustiças
e sofrimentos existenciais de toda sorte, os dois romances também se aproximam.
Além disso, como exemplo de influência explícita, no romance Fim há uma citação
de um trecho da obra machadiana: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze
contos de réis” (TORRES, 2013, p.174).
Fim, de Fernanda Torres, é um livro que se destaca pela minuciosa
construção dos personagens e pelo modo como a autora fala através desses
personagens masculinos de forma confortável. Há cinco personagens protagonistas
que narram suas reminiscências, desde momentos de felicidades, com participação
em circunstâncias decorrentes daquilo que a vida oferece de melhor, até momentos
de infortúnios, incluindo doenças, traições, enganos, falsidades provocadores de
angústias e estampando a miséria da condição humana. Depois de sofrimentos e
aflições de toda espécie, eis que cada personagem vai a óbito, justificando o título
do romance.
Propomos analisar a estrutura narrativa do romance com base nas teorias de
focalização. O romance apresenta não apenas um único personagem protagonista,
mas cinco. Assim, para melhor entendermos a obra ficcional, pretendemos
pesquisar e analisar o aspecto estrutural da obra. Procuraremos visualizar primeiro a
estrutura da narrativa de maneira geral, para depois refletirmos sobre o foco
narrativo.

1. Aspectos da estrutura do romance Fim

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O crítico Antônio Cícero v diz que o romance Fim alterna técnicas


550
narrativas, destacando magistrais instâncias de fluxo de consciência. Segundo o
autor, o romance de Fernanda Torres captura brilhantemente a dramática
oscilação de tristezas e ilusões, grossuras e sutilezas, pequenos afazeres e
grandes esperanças, cujo entrecruzamento compõe as tragédias e as comédias
humanas de nossos dias.
Todo texto narrativo de qualidade segue uma determinada estrutura. A
estrutura de um bom texto narrativo não surge ao acaso. No caso do romance Fim, a
autora pensou e refletiu sobre o método, sobre a melhor maneira a ser seguida para
realizar os seus objetivos de apresentar ao público leitor uma obra de ficção
adequada tanto no aspecto formal, quanto em termos de conteúdo, para a
transmissão de sua mensagem.
O romance foi construído de modo diferente das estruturas usuais dos demais
romances e contos já conhecidos. No momento em que surgem cinco protagonistas,
é possível dividir a estrutura total do romance em cinco estruturas menores, sendo
que cada estrutura menor é narrada por um dos cinco personagens principais, os
amigos Álvaro, Ribeiro, Sílvio, Neto e Ciro.
As cinco narrativas menores, contidas no romance Fim, aparecem com
estruturas muito semelhantes, mas com desfechos diferentes para cada história.
Todos se casam, mas só o casal Neto e Célia ficam juntos até o fim de suas vidas. O
protagonista Álvaro, o último a ir a óbito, aparece em primeiro lugar no romance,
narrando suas memórias, sendo que o último protagonista a narrar suas memórias é
justo o que foi a óbito primeiro, Ciro, com apenas 50 anos de idade.
Com relação ao espaço, procura-se dividir os espaços onde se passaram os
principais acontecimentos narrados entre: espaço geográfico – onde quase toda
narrativa se passa, a cidade do Rio de Janeiro, com exceção do último óbito
narrado, o do padre Graça, que se passa na Amazônia. Espaço social – residências
dos personagens, hospitais, clínica de tratamento psiquiátrico, clubes, praia, hotéis,
bares, ruas e calçadas da cidade. Espaço psicológico - os cinco personagens
protagonistas e também alguns personagens secundários sempre estão em

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constante reflexão interior ao narrarem suas memórias e conflitos interiores em


solidão, nas suas residências, em seus quartos já deitados, caminhando pelas ruas
da cidade do Rio de Janeiro, na praia de Copacabana, etc. 551

Na perspectiva de personagens, encontramos cinco protagonistas: os amigos


Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro, cinco amigos que pensam, agem e sentem
completamente diferente um do outro, cinco pessoas a representarem tipos sociais
diferentes, que vemos circular no cotidiano da sociedade brasileira.
Há também as personagens secundárias: as esposas e ex-companheiras dos
personagens principais, Irene, Ruth, Norma, Suzana e Célia; Rita, filha de Álvaro, e
também o padre Graça, com participação importante no desfecho da diegese.
Torna-se importante destacar que algumas personagens secundárias também vão a
óbito, ou seja, também chegam ao fim da existência.
Os personagens protagonistas, que depois de mortos vêm nos narrar suas
memórias, principais e significativos momentos de quando em vida, na realidade
viveram suas vidas não só em dificuldades. Muito pelo contrário, colheram cada um
ao seu modo, o que a vida pode oferecer de melhor. Mas no final, foram a óbito,
como qualquer outro mortal, como qualquer um de nós, um dia. Os amigos
representam tipos sociais completamente diferentes, simbolizando os principais tipos
sociais existentes na existência humana, em especial na sociedade do Rio de
Janeiro, onde se passam as histórias. Os cinco amigos formam tipos característicos
da sociedade brasileira de um modo geral, os quais podem ser encontrados no
nosso meio social. Vemos a vida por detrás de cada óbito. São personagens
construídas a partir de uma arquitetura que as aproxima do real, dentro da
perspectiva neorrealista, própria de obras contemporâneas e do caráter pós-
moderno.
Uma observação importante é a de que, embora os personagens
protagonistas sejam masculinos, a participação das personagens secundárias
femininas é importante na diegese. Elas são sempre mulheres fortes, em contraste
com homens vacilantes, fazendo lembrar a participação das mulheres nas estruturas
narrativas de Machado de Assis. Irene, sua filha Rita, Ruth, Norma, Célia, enfim

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todas as mulheres que participam das tramas, dos maiores conflitos e clímax, são
mulheres “poderosas” que tiram de letra todas as situações embaraçosas da vida.
Quanto ao elemento tempo, para Gérard Genette (1972) as determinações 552

temporais são muito importantes na instância da narrativa, elas são até mesmo mais
importantes que as determinações espaciais. No plano da diegese, o tempo é por
vezes configurado por meio de digressões, às quais são denominadas por Genette
como anacronias. Dentro desta anacronias encontramos a analepse, a qual marca
os retornos temporais e a prolepse, que marca as antecipações ou previsões
temporais. Então, podemos afirmar que a analepse se relaciona com a memória, ao
tempo passado, e a prolepse se relaciona com o futuro, ao que ainda acontecerá.
No romance Fim, o tempo, representado pela sequência dos fatos, não ocorre
de forma linear. Há inversão temporal. O romance se inicia com a narrativa do
personagem principal Álvaro, já com 85 anos de idade, com dificuldades para se
locomover, para depois voltar no tempo e narrar suas memórias desde o início de
seu relacionamento amoroso com sua esposa por apenas 15 anos, para depois
voltar a narrar seu óbito. O mesmo acontece com cada um dos outros personagens
protagonistas. Somente o personagem protagonista Neto conviveu com sua esposa
Célia o tempo todo até que a morte os separasse. Todos os demais personagens
principais permaneceram com seus cônjuges apenas alguns anos e depois se
divorciaram. Considera-se como tempos psicológicos, os momentos em que cada
um dos personagens principais usa o fluxo de consciência ou monólogo interior ao
narrar suas memórias. Não notamos preocupação com minuciosa citação de tempo
cronológico em detalhes tais como: descrição de minuto, hora, mês, dia ou ano, tão
próprios das estruturas de textos narrativos mais antigos.
Em relação ao tempo em que os fatos ocorreram, há curiosidades: a autora
apresenta, em primeiro lugar, o óbito de Álvaro, que foi a óbito por último entre os
cinco amigos protagonistas, aos 85 anos de idade. Por último, já no final do livro,
aparece o óbito de Ciro, que na diegese aparece como aquele que foi a óbito
primeiro, de câncer, com apenas 50 anos de idade. Inclusive, o personagem
protagonista Álvaro, cujo óbito ocorreu por último e é relatado primeiro, tem como
data de falecimento, o ano de 2014, sendo que o romance Fim foi publicado no ano

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de 2013. Parte-se do pressuposto de que o óbito de um personagem tão importante


no desenvolvimento da diegese não constitui um lapso da escritora. Provavelmente
ela se colocou de propósito numa posição de onisciência a ponto de saber 553

antecipadamente até o óbito de um personagem protagonista que ainda não havia


ido a óbito por ocasião da publicação do romance. Eis o uso de uma técnica na
estrutura da narrativa, empregando-se o recurso narrativo da prolepse. Descreveu
no presente o óbito de Álvaro que ocorreria só mais no futuro. Antecipou o tempo e
narrou memórias ainda a acontecer.
Por fim, destacamos a onisciência dentro da narrativa. Parece-nos que houve
certa transgressão intencional do sistema estrutural usual em narrativas. A escritora
usou plenamente a liberdade que a arte lhe faculta, ao narrar da forma que achou
mais conveniente e importante, para a mais adequada transmissão de sua
mensagem. Já era conhecedora antes, na sua onisciência, até dos óbitos ainda não
ocorridos no momento em que escrevia o romance Fim e já sabia exatamente o dia,
mês e ano em que os óbitos não ocorridos, haveriam de ocorrer.

2. O Foco Narrativo no romance Fim


O foco narrativo tem diferentes denominações de acordo com cada teórico.
Quem usa a expressão “foco narrativo” são Brooks e Warren; quem fala em
“focalização” é Gérard Genette; quem fala de “ponto de vista” é Norman Friedman;
de “visão”, quem fala é Jean Pouillon; de “perspectiva”, quem fala é Todorov. Cada
teórico usa uma nomenclatura, todas são formas de se nomear este mesmo
elemento da narrativa.
Walter Benjamin (1980) trabalha em seus textos com o narrador ligado aos
moldes tradicionais, pensando sobre esse narrador. Na concepção de Balzac v, a
literatura está mais próxima da pintura do que da fotografia, sendo um retrato do
contexto social.
Para responder como funciona a mimese, como o narrador dá a ideia de
que é ele quem fala, Gérard Genette (1972) distingue a narrativa de
acontecimentos da narrativa de falas e faz a seguinte explanação:

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A noção de showing, como a de representação narrativa ou imitação é


perfeitamente ilusória, contrariamente a representação dramática
nenhuma narrativa pode mostrar ou imitar a história que conta. Mais não
pode que contá-la de modo pormenorizado, preciso, vivo, e dar assim 554
mais ou menos a ilusão de mimese que é a única mimesis narrativa
possível, pela razão única e suficiente de que a narração, oral ou escrita,
é um fato de linguagem, e que a linguagem significa sem imitar
(GENETTE, 1972, p. 162).

Norman Friedman (2002) apresenta um teor descritivo e classificatório nada


de pejorativo, pois é necessário descrever e classificar. Quando fala do autor
onisciente intruso o qual nomeamos como autor implícito, faz no intróito uma
distinção entre cena e sumário, distinção esta que Henry James e seus discípulos
fazem associando cena ao mostrar – showing e sumário ou panorama ao contar –
telling:

No que toca aos modos de transmissão do material da história, temos


primeiro, portanto, que definir concretamente nossa principal distinção:
sumário narrativo (contar) versus cena imediata (mostrar). (...) misturar
narração e diálogo, um método cativante para o leitor. (...) a cena
imediata emerge tão logo dos detalhes específicos, contínuos e
sucessivos de tempo, espaço, ação, personagem e diálogo, que
começam a aparecer. Não do diálogo tão somente, mas detalhes
concretos dentro de uma estrutura específica de espaço-tempo é o sine
qua non da cena. (...) sumário narrativo puro (...) apesar da data
específica, é o tom do narrador, e não o evento ele mesmo, que
predomina (FRIEDMAN, 2002, p. 172).

Mais adiante, Friedman (2002) fala da tendência do autor onisciente intruso


que está longe da cena, pois é a voz do autor que domina o material, falando
frequentemente por meio de um “eu” ou “nós”. Então a marca do autor onisciente
intruso se faz pela presença das intromissões e generalizações autorais sobre a
vida, os modos e as morais que podem estar explícitos ou implícitos na história.
A partir desta perspectiva de ponto de vista, nota-se que a autora, Fernanda
Torres, se faz presente, muitas vezes, por meio de seus narradores no romance Fim:
“O tempo é mesmo cruel com as mulheres” (TORRES, 2013, p. 97). Trata-se da
visão da autora implícita na fala do personagem Ribeiro, pois partimos do
pressuposto de que um ponto de vista como este é mais comum em mulheres e
quem fala é um personagem masculino.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Em uma outra passagem, a autora fala também através do personagem


Sílvio: “O ser humano não é movido a bons sentimentos” (TORRES, 2013, p. 76),
para depois concluir a ideia dizendo: 555

Venho de uma linhagem antiga e perversa de dráculas, crápulas e afins. O


paraíso não me serve para nada, prefiro a companhia dos que praticaram
violência contra o próximo, contra si próprio, contra Deus, contra a arte e
contra a natureza (TORRES, 2013, p. 76).

Depois, Sílvio raciocina e depois perde para sempre o raciocínio, deixa de


saber que existe. Vai a óbito mergulhado em vícios. “O homem não muda, transmuta
sempre igual. Até a próxima eternidade.” (TORRES, 2013, p. 77). Notamos a
influência da doutrina filosófica existencialista, neste ponto, misturada com alguns
toques de espiritualismo.
Surge também a autora implícita através do protagonista Ciro, demonstrando
a falta de solidariedade humana até entre os amigos mais íntimos. E Ciro afirma
para si mesmo ao sentir o desdém de seu amigo Álvaro: “O pânico de Álvaro foi
quase obsceno. Ele se afastou da mesa como se temesse o contágio. Câncer não
pega, filho da puta” (TORRES, 2013, p. 159).
Quando classifica o narrador-protagonista, Norman Friedman (2002) fala do
narrador em primeira pessoa, como personagem principal, sendo aquele que está
limitado em seu sentimento, com um anglo fixo de visão. O ponto de vista é do
próprio personagem protagonista e devemos entender o efeito deste ponto de vista.
No livro de Fernanda Torres, encontramos cinco narradores protagonistas,
que começam narrando em primeira pessoa e depois, há a mudança de foco
narrativo da primeira para a terceira pessoa. Com esta mudança, a narrativa passa a
ser contada por um narrador onisciente.
Genette (1972), quando faz a descrição dos modos da narrativa, diz que a
função da narrativa é simplesmente contar uma história, ou seja, relatar fatos reais
ou fictícios. Para ele, no romance, o modo gramatical é o indicativo, mas,
evidentemente, existem vários modos de contar algo: “Pode-se contar mais ou
menos aquilo que se conta, e contá-lo segundo um ou outro ponto de vista”.
Também fala que “pode-se manter maior ou menor distância daquilo que se conta;
e, pode-se, também, filtrar o que é relevante para narrativa, adotando assim uma ou

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Anais

outra perspectiva” (GENETTE, 1972, p. 160). Assim, define distância e perspectiva


como modalidades necessárias na regulação da informação narrativa, a qual o
crítico chama de modo. 556

No momento em que fala da distância, Genette (1972) menciona Platão e a


distinção que o filósofo grego faz sobre dois modos narrativos: o da narrativa pura:
narrador falando em seu nome, sem procurar fazer-nos crer que é outro que não ele
quem fala (diegese); e o da imitação ou mimese, no qual o narrador se esforça por
dar a ilusão de que não é ele quem fala, mas uma personagem (texto dramático).
Para Genette (1972), a narrativa de acontecimentos, qualquer que seja o seu
modo, é sempre narrativa; isto é, transcrição do (suposto) não-verbal em verbal: “a
sua mimese nunca será mais do que uma ilusão dependendo de uma relação
eminentemente variável entre o emissor e o receptor” (GENETTE, 1972, p. 164). A
mimese define-se por um máximo de informação e o mínimo de informador, já a
diegese, pela relação inversa. Então, a imitação verbal de acontecimentos não
verbais não é mais que utopia ou ilusão. Enquanto que na narrativa de falas, essa
absoluta imitação que preside verdadeiramente à criação das palavras, faz da
linguagem uma reduplicação do mundo.

Uma das grandes vias de emancipação do romance moderno terá


consistido em levar ao extremo essa mimese do discurso “diluindo as
últimas marcas da instância narrativa e dando logo a primeira palavra à
personagem (GENETTE, 1972, p. 171).

Retomando os textos clássicos, o crítico francês, distingue dois estados do


discurso do personagem: discurso imitado (ficticiamente relatado, como se fosse
pronunciado pela personagem) e discurso narrativizado (tratado como um
acontecimento entre outros e assumido pelo próprio narrador), diferenciando mais
três estados do discurso (pronunciado ou interior) de personagem, ligados a
distância narrativa: discurso narrativizado, discurso transposto e a forma mais
mimética.
O discurso narrativizado ou contado é o estado mais distante e, em geral, o
mais redutor. Pode ser considerada uma narrativa de pensamentos ou discurso
interior narrativizado. O discurso transposto em estilo indireto: é um pouco mais
mimético que o discurso contado, mas não dá ao leitor garantias de fidelidade literal

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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das falas pronunciadas; ou seja, o narrador ao transpor as falas em proposições


subordinadas, as integra ao seu próprio discurso. E o discurso transposto em estilo
indireto livre: há uma economia da subordinação que autoriza uma maior extensão 557

do discurso.
Há a distinção entre o monólogo imediato do estilo indireto livre. No primeiro,
o narrador dilui-se e a personagem o substitui. No segundo, o narrador assume o
discurso da personagem, ou seja, a personagem fala pela voz do narrador. No
discurso exterior, tradicionalmente nomeado por “diálogo”, mesmo se
comprometendo mais de duas personagens e se afasta do estilo indireto livre.
No romance Fim, uma linha do foco da narração é iniciada e levada até certo
ponto, sempre em discurso indireto, narrador-personagem, para depois ser
interrompida, lá na frente ser retomada e continuada mais um pouco até chegar ao
seu final, com a descrição da morte de cada um dos cinco amigos personagens
principais, sempre narrado em primeira pessoa, narrador-personagem. Neste ponto,
os personagens protagonistas narram suas memórias e depois o final óbito.
As brechas nas alternâncias do foco narrativo são bem preenchidas por vários
personagens secundários, com descrições e reflexões narradas em terceira pessoa,
narrador observador, com narrativa quase sempre em discurso direto. Os
personagens principais vão compondo a trama junto com os personagens
secundários, de uma maneira tão concatenada, tão bem intercalada e interligada,
como várias fontes de águas cristalinas, a desembocarem no mar representado pelo
epílogo, tudo combinando, tudo bem elaborado, costurado, entrelaçado, bem
iniciado e bem finalizado.
Genette (1972) retoma as categorias sobre o narrador de Stanzel, Friedman,
Pouillon, Romberg para se propor a apresentar uma classificação somente sobre o
ponto de vista, tipos de focalização: narrativa não-focalizada ou de focalização zero,
trata da onisciência do romancista clássico (autobiografia). Pode muitas vezes
relacionar-se a uma narrativa multifocalizada. A narrativa de focalização interna, que
fica plenamente realizada nas narrativas de monólogo interior, subdividindo-se em
fixa, na qual quase nunca se abandona o ponto de vista do protagonista. E a
narrativa de focalização externa, em que o herói age à nossa frente sem que alguma

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vez sejamos admitidos ao conhecimento de seus pensamentos ou sentimentos.


Afirma Genette (1972) que “A fórmula de focalização nem sempre se aplica ao
conjunto de uma obra, portanto, mas antes a um segmento narrativo determinado, 558

que pode ser muito breve” (GENETTE, 1972, p.189).


No romance de Fernanda Torres, percebe-se que a narração não é linear e
também que, quando o narrador é fragmentado, há na sequência um fluxo de
consciência, para que depois a narrativa mude o foco para terceira pessoa,
passando-se a falar de personagens secundárias.
No âmbito das alterações, temos as variações de ponto de vista que se
produzem no decorrer de uma narrativa e podem ser analisadas como mudança de
focalização. Se essa mudança surgir isolada num contexto coerente, pode ser
analisada como uma infração momentânea ao código que rege esse contexto.
Genette (1972), ao nomear essas infrações isoladas de alterações, distingue dois
tipos: a omissão lateral ou paralipse e a paralepse. Sendo paralipse a omissão de
certa ação ou pensamento importante do herói focal, que nem o herói, nem o
narrador podem ignorar, mas que o narrador prefere esconder do leitor. E paralepse,
o excesso de informação que pode consistir numa incursão da consciência de uma
personagem no decorrer de uma narrativa geralmente conduzida em focalização
externa. Ou, a focalização interna sobre os pensamentos de uma personagem, que
não é a personagem focal, sobre um espetáculo que ela não pode ver.
Por fim, temos a polimodalidade, que fala da narrativa em primeira pessoa, ou
melhor, da identidade da pessoa do narrador e do herói, não implicando nenhuma
focalização da narrativa sobre esse último. Ao contrário, o narrador do tipo
autobiográfico (seja uma autobiografia real ou fictícia) está mais autorizado a falar
em seu próprio nome do que o narrador de uma narrativa em terceira pessoa.
O romance Fim apresenta um encadeamento do foco narrativo de interrupção
e retomada bem realizado pela autora, com determinada técnica, tática e arte, que o
leitor não é afetado em seu entendimento do conteúdo. Pelo contrário, o suspense
promovido, tão bem proporcionado pelas precisas interrupções e retomadas do foco
narrativo, ainda faz prender mais sua atenção e interesse. Portanto, o romance Fim
apresenta uma estrutura narrativa completamente diferente das estruturas narrativas

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usuais. São cinco pequenos romances, dentro de um só romance. Cinco histórias de


relacionamentos afetivos, representadas cada história por um dos cinco
personagens protagonistas, só uma com final feliz até que a morte os separasse. Só 559

Neto e Célia parecem se amar até o final de suas vidas. Os demais quatro pequenos
romances só são iguais entre si na estrutura narrativa, pois no desfecho, são
histórias de amor e ódio, com traições.
Percebemos novidades, não só no conteúdo, com tanto óbito, com os cinco
personagens protagonistas narrando suas memórias sempre em discurso indireto,
primeira pessoa narrador-personagem, intercalando narrativas de personagens
secundários em terceira pessoa, com, muito raramente, a presença de narrativas em
discurso direto. Toda esta técnica literária, na forma ou no conteúdo, é sempre bem-
vinda e digna de análises.

Conclusão

O romance Fim, de Fernanda Torres começa e termina falando de morte, mas


fala também da vida, fazendo uma reflexão existencialista sobre o viver humano.
Na construção da estrutura narrativa do romance, a autora criou uma espécie
de norma própria, a qual seguiu à risca, sempre no mesmo ritmo. É empregada a
mesma estrutura narrativa no desenvolvimento da diegese em relação a cada um
dos cinco protagonistas: Álvaro, Ribeiro, Sílvio, Neto e Ciro, sempre na mesma linha,
no mesmo tom.
Primeiro cada protagonista em forma de narrador-personagem, com o
emprego de apenas o discurso indireto, entrando em profunda reflexão na descrição
dos pontos mais importantes de suas memórias. De repente, há uma interrupção do
modo de narrar, passando a narração para a terceira pessoa, narrador-observador,
com o emprego, de vez em quando, do discurso direto. Nestes momentos, ocorrem
as participações dos personagens secundários que têm alguma relação em vida
com o protagonista daquele momento e descrição reflexiva de locais e paisagens
relacionados com eles durante momentos em que viveram juntos. Depois, a

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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narrativa retorna novamente para o narrador-personagem, com o protagonista


retomando suas memórias, através do fluxo de consciência, e assim por diante,
sucessivamente, num mesmo e idêntico ritmo de alternâncias na estrutura narrativa, 560

intercalando mudanças na forma de narrar até o término da história de cada


protagonista com ele próprio, narrador-personagem, narrando em discurso indireto,
como aconteceu o seu óbito.
Pressupomos que o momento em que cada óbito é narrado, o texto atinge o
seu ápice em termos de trama, atinge um caráter emocionante. Não é comum um
narrador-protagonista narrando o exato momento de seu próprio óbito. E são cinco
protagonistas, com cinco narrativas estruturadas da mesma forma, mas com
desfechos completamente diferentes um do outro, onde cada um conta a passagem
de seu óbito em detalhes. É uma lei particular, uma espécie de norma diferente de
narrar, sempre no mesmo ritmo, que a escritora criou e seguiu até o final da
narrativa de seu romance Fim.
Esta estrutura narrativa elaborada e montada pela autora, obedecendo
fielmente formas idênticas de espaços compassados, no mesmo ritmo como se
fossem as mesmas notas musicais contidas em cinco letras de músicas diferentes,
são captadas quando percebemos que de certa forma foram elaboradas para que
tenham até mesmo efeito de humor e para que se acostume facilmente, previamente
percebendo o que vai acontecer em termos de narratividade.
Percebemos cinco tramas principais com clímax em cada uma delas, justo no
momento final de cada uma das cinco histórias de vidas que se esvaem, quando
cada protagonista começa a narrar o seu próprio óbito. Cada história narrada por um
dos protagonistas, sempre revestida do mesmo ritmo de estrutura narrativa, sempre
termina rodeada de extrema emoção, pois é narrado o final de vida de cada um.
Portanto, a estrutura narrativa se desenvolve na mesma forma e no mesmo ritmo em
cada um dos cinco pequenos romances, representados por um dos cinco
protagonistas, formando cinco momentos chocantes. Momentos emocionantes,
dentro da narrativa geral do romance Fim, que tem seu desfecho, com mais um
óbito, a morte do personagem secundário, o ex-padre Graça, na defesa do meio
ambiente, bandeira de defesa social que a autora sustenta em sua narrativa.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Referências
561

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4 ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.

BENJAMIN, Walter. Textos escolhidos. Trad. José Lino Grünewald. São Paulo: Abril
Cultural, 1980.

CANDIDO, Antônio. A personagem de ficção. 10 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.

FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: O desenvolvimento de um conceito


crítico. Trad. Fábio Fonseca de Melo. Revista USP, São Paulo, n. 53, p. 166-182,
2002.

GENETTE, Gérard. O discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa:


Arcádia, 1972.

GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas, São Paulo:


Autores Associados, 2012.

SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro:


Editora Civilização Brasileira, 2009.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário da narrativa. São Paulo, Ática, 1989.
TORRES, Fernanda. Fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

O Narrador na sala de aula


The narrator in the classroom

Cristiano Dias de Souza (UEL) (G)

RESUMO: É lugar comum afirmar-se que crianças e jovens não gostam e não sabem escrever, e
também não foge ao clichê a questão de que é da escola o compromisso de mudar tal realidade.O
presente trabalho pretende investigar as propostas de sequências didáticas para o ensino de textos
narrativos em alguns livros didáticos. Dessas sequências será investigado, em especial, o elemento
do narrador/foco narrativo e como ele é proposto e trabalhado. Essa avaliação será feita à luz da
proposta da escrita criativa, por acreditar-se que essa metodologia pode acrescentar muito ao
desenvolvimento do gosto pela produção escrita dos alunos. Espera-se comprovar que a maioria dos
materiais hoje de produção de texto hoje utilizados no Fundamental Final ainda apresentam
sequências insipientes.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

PALAVRAS-CHAVE: Escrita Criativa. Narração. Ensino.

562

ABSTRACT: It is commonplace to say that children and young people do not like and do not know
how to write, and also the question: “which is the school's commitment to change such reality?” This
paper aims to investigate the didactic sequences proposals for the narrative texts’ teaching, in some
textbooks. In these sequences, in particular, the element of the narrator / narrative focus and how it is
proposed and worked will be investigated. This evaluation will be done in the light of creative writing
proposal , as they believe that this methodology can add a lot to the development of students written
production’s taste . It is expected to prove that most text production materials used nowadays in
Fundamental K-12 still have ignorant sequences.

KEYWORDS: Creative Writing. Narration. Teaching.

Introdução

Este trabalho surgiu de questionamentos levantados a partir de uma proposta


feita no Projeto de Escrita Criativa na UEL, conduzido pelo professor Dr. Flávio Luis
Freire Rodrigues. Cada participante, tomando por base os princípios da Escrita
Criativa (EC) e estudos nas áreas de análise literária e produção textual, deveria
elaborar exercícios a partir de temas pré-definidos, como personagem, espaço,
tempo, narrador entre outros.

Os estudos feitos sobre o narrador nos textos literários e nas propostas de


produção textual levaram a perguntas acerca dos conceitos e possibilidades desse
elemento da narrativa em contraponto às propostas de atividades encontradas.

Após um levantamento na internet e em alguns livros didáticos, percebeu-se


que os exercícios sugeridos resumiam-se, em geral, à transposição das pessoas do
narrador (da 1ª para a 3ª ou da 3ª para a 1ª pessoa), além da leitura de trechos de
textos literários a fim de se indicar em qual pessoa do discurso os mesmo eram
escritos.

Foi a partir dessas constatações que surgiu o questionamento de o porquê,


muitas vezes em sala de aula, e nos materiais didáticos não se explorar de maneira
mais producente, dinâmica e interessante para o aluno o elemento do NARRADOR,

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

uma vez que esse, junto com a matéria narrada revela-se tão importante nas
narrativas.
563
Acredita-se que a proposta da Escrita Criativa possa surgir como uma opção
para o enriquecimento das aulas de produção textual, já que a mesma oferece
recursos de leitura e novas possibilidades para os exercícios de escrita.

Definição de Escrita Criativa

Antes de se definir o que é Escrita Criativa interessa tratar um pouco sobre a


mesma no Brasil, apresentando algumas informações acerca da mesma.

No Brasil, existem diversos cursos de EC, quer online e/ou presenciais


gratuitos, quer cursos pagos. Tais cursos, em sua grande maioria, são destinados a
pessoas que já escrevem e querem aperfeiçoar suas técnicas, são também
profissionais liberais que desejam incrementar seu estilo.

Destacam-se nesse universo a Oficina Literária do escritor pernambucano


Raimundo Carrero e a Oficina de Criação Literária da Faculdade de Letras da
Pontifícia Universidade Católica do rio Grande do Sul, coordenada pela Profª. Maria
Eunice Moreira e pelo professor e escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, atuante
desde 1985, e que funciona junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da
PUCRS. O curso do professor Assis Brasil é responsável por formar vários escritores
nacionais com vasta produção literária.

Neste ano de 2016, a PUCRS iniciou para a graduação o curso de Tecnologia


em Escrita Criativa, tendo como proposta um curso que formará profissionais que
possam transitar por muitas linguagens e formas diferentes, desde obras literárias e
conteúdo para a web até ações na área de empreendedorismo, a fim de saber
trabalhar em vários setores diferentes.

Essa breve contextualização da EC no Brasil se faz necessária, uma vez que


pouco material teórico de nível superior ou fruto de pesquisas acadêmicas há
disponível para a fundamentação deste artigo.
In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Vale apontar que no levantamento bibliográfico feito, não foram encontrados


produções brasileiras que tratassem da EC e ensino de produção textual em sala de
aula para as séries do Fundamental Final. 564

Há uma até vasta produção acerca do tema em Portugal, desde artigos sobre
EC e produção literária até a EC e ensino.

Por Escrita Criativa pode-se entender, em um primeiro momento, toda a


escrita de textos literários (romance, conto, poema, novela entre outros).

Também é possível entender por Escrita Criativa a disciplina ou área do saber


que tem como objetivo a transmissão de técnicas e práticas de escrita, muitas vezes
por meio de oficinas e cursos

A partir da leitura de alguns textos sobre o tema, todos produções de


Portugal, verificou-se que é possível entender EC como um conjunto de métodos
que visam criar o prazer pela escrita (MACHADO, 2012), ou então é escrever de
forma mais desembaraçada, livre e criativa (MACHADO, 2012). Ambas as definições
anteriores se prestam melhor à proposta deste trabalho, que é analisar como a EC
pode contribuir com o ensino de produção textual nas escolas.

Proposta da Escrita Criativa

Nos Estados Unidos, na Europa e em muitos dos cursos no Brasil pode-se


entender, em um primeiro momento, que a proposta da Escrita Criativa é apenas
formar escritores, produzir literatura e não proporcionar um ferramental ao
professores para a atuação em sala de aula.

No entanto, acredita-se que as estratégias usadas EC podem (e devem) ser


aplicadas ao ensino, em especial nas séries do Fundamental Final e na 1ª e 2ª
séries do Ensino Médio.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

O professor deve ser um colaborador no processo de construção textual da


criança e proporcionar em sala de aula atividades enriquecedoras e estimulantes,
usando diversas estratégias de ensino/aprendizagem (MACHADO, 2012). 565

Os trabalhos promovidos pela EC primam pelo desenvolvimento das


competências de leitura, por entender que sem um escopo, sem uma base onde se
sustentar não é possível produzir textos de qualidade ou tomar gosto pela escrita.

A escrita, na EC, é vista como algo que deve ser prazeroso e compartilhado,
não que o objetivo seja transformar os alunos em escritores, mas entende-se que na
utilização de estratégias e práticas mais significativas a criança assimilará de
maneira mais adequada o que é escrever.

Ainda encontra-se nas escolas, mesmo depois de muita avanço, produções


textuais que são realizadas apenas para o professor, é por isso que incluir rodas de
leitura e discussão de texto, prática comum na EC, é significativo.

A Redação na Escola

Na escola, comumente, ensina-se produção de texto a partir de propostas


estruturadas com base nos gêneros textuais. Mesmo assim, esse ensino é, muitas
vezes fragmentado, desmembrando-se o ensino de Língua Portuguesa em aulas de
gramática (análise linguística), aulas leitura (recepção) e aulas de produção textual,
isso é ainda mais significativo no Ensino Médio.

O aluno acaba, assim, aprendendo a escrever por meio de “receitas” prontas,


sem refletir sobre o processo da escrita e sem desenvolver o gosto pela mesma.

Ainda impera em muitas escolas a concepção de que um bom texto é um


texto sem erros gramaticais e que tenha seguido de forma plena as orientações da
proposta do livro ou do professor.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

A questão do Narrador

566

Entende-se que o NARRADOR é um dos principais elementos da estrutura


narrativa. É a voz que conta a história; se há uma história a ser narrada, há um
NARRADOR.

É comum a divisão do NARRADOR a partir da pessoa do discurso que se


utiliza para narra e também do grau de participação na história narrada (1ª e 3ª
pessoas; personagem ou observador). Mesmo que relevantes, esses são critério
insuficientes dada a complexidade e a importância do NARRADOR dentro da
narrativa (BONNICI, 2003).

Essa divisão é a mais comum nas práticas de sala de aula, por ser mais e
rápido entendimento, e a ideia de tornar o conteúdo mais “palatável” para as
crianças não é de todo errada. O erro está em limitar o ensino a apenas essas
possibilidade de narrador, quando tal elemento pode ser muito mais explorado.

Um exemplo “Nós, o Pistoleiro” de Moacyr Scliar

Um breve exemplo de como a escolha do NARRADOR pode ampliar as


fronteiras de um texto está no conto de Moacyr Scliar “Nós, o Pistoleiro”.

O narrador é construído na 1ª pessoa do plural, criando um efeito ímpar no estilo do


texto.

Nós, o pistoleiro
Nós somos um terrível pistoleiro. Estamos num bar de uma pequena cidade do Texas. O ano é
1880. Tomamos uísque a pequenos goles. Nós temos um olhar soturno. Em nosso passado há
muitas mortes. Temos remorsos. Por isto bebemos.

A porta se abre. Entra um mexicano chamado Alonso. Dirige-se a nós com despeito. Chama-nos
de gringo, ri alto, faz tilintar a espora. Nós fingimos ignorá-lo. Continuamos bebendo nosso
uísque a pequenos goles. O mexicano aproxima-se de nós. Insulta-nos. Esbofeteia-nos. Nosso
coração se confrange. Não queríamos matar mais ninguém. Mas teremos de abrir uma exceção
para Alonso, cão mexicano.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Combinamos o duelo para o dia seguinte, ao nascer do sol. Alonso dá-nos mais uma pequena
bofetada e vai-se. Ficamos pensativo, bebendo o uísque a pequenos goles. Finalmente atiramos
uma moeda de ouro sobre o balcão e saímos. Caminhamos lentamente em direção ao nosso
hotel. A população nos olha. Sabe que somos um terrível pistoleiro. Pobre mexicano, pobre 567
Alonso.

Entramos no hotel, subimos ao quarto, deitamo-nos vestido, de botas. Ficamos olhando o teto,
fumando. Suspiramos. Temos remorsos.

Já é manhã. Levantamo-nos. Colocamos o cinturão. Fazemos a inspeção de rotina em nossos


revólveres. Descemos.

A rua está deserta, mas por trás das cortinas corridas adivinhamos os olhos da população fitos
em nós. O vento sopra, levantando pequenos redemoinhos de poeira. Ah, este vento! Este
vento! Quantas vezes nos viu caminhar lentamente, de costas para o sol nascente?

No fim da Rua Alonso nos espera. Quer mesmo morrer, este mexicano.

Colocamo-nos frente a ele. Vê um pistoleiro de olhar soturno, o mexicano. Seu riso se apaga. Vê
muitas mortes em nossos olhos. É o que ele vê.

Nós vemos um mexicano. Pobre diabo. Comia o pão de milho, já não comerá. A viúva e os cinco
filhos o enterrarão ao pé da colina. Fecharão a palhoça e seguirão para Vera Cruz. A filha mais
velha se tornará prostituta. O filho menor ladrão.

Temos os olhos turvos. Pobre Alonso. Não se devia nos ter dado suas bofetadas. Agora está
aterrorizado. Seus dentes estragados chocalharam. Que coisa triste.

Uma lágrima cai sobre o chão poeirento. É nossa. Levamos a mão ao coldre. Mas não sacamos.
É o mexicano que saca. Vemos a arma na sua mão, ouvimos o disparo, a bala voa para o nosso
peito, aninha-se em nosso coração. Sentimos muita dor e tombamos.

Morremos, diante do riso de Alonso, o mexicano.

Nós, o pistoleiro, não devíamos ter piedade.

As Propostas dos Livros Didáticos

Foram analisadas 02 coleções de livros didáticos para as séries do


Fundamental Final (6º ao 9º ano), material apostilado também para as séries do
Fundamental Final e 01 livro didático que reúne as três séries do Ensino Médio.

As propostas de exercícios apresentaram muita semelhança e a maioria em


momento algum explorava habilidades de leitura, trabalhando apenas com a
produção de um texto ou com a identificação da pessoa do discurso narrativo.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

Análise das Propostas

568

Observou-se, na análise do material selecionado, a estruturação dos


exercícios, a linguagem, as Referências teóricas que podiam auxiliar os alunos na
execução das atividades, além da maneira como essas atividades contribuem para
que o estudante desenvolva habilidades de leitura e escrita.

Pôde-se perceber que em todos os livros didáticos analisados não se


encontrou nenhuma proposta para um trabalho mais criativo e producente com o
NARRADOR. Entende-se por criativo aquela atividade que desafia o aluno a
produzir buscando estratégias que possam enriquecer seu texto. Assim, acredita-se
ser possível um trabalho producente no sentido de se conseguir textos que revelem
maior comprometimento em sua produção e, por conseguinte, uma maior qualidade.

Todos os materiais analisados, sem exceção, apenas apresentavam o


conceito dos três tipos básicos de NARRADOR (primeira pessoa/narrador
personagem, terceira pessoa/narrador observador, terceira pessoa/narrador
onisciente) sem, no entanto, ampliar ou explorar tais conceitos.

Os livros de 6º e 7º anos indicavam a ocorrência desses tipos de narradores


sem se preocupar com um aprofundamento teórico maior. Esse fato é até
compreensível, levando-se em consideração a idade dos alunos e seu nível de
abstração. As propostas de atividades traziam apenas as orientações para que se
produzisse um texto com um determinado narrador, ou então lembrando o aluno do
conceito de narrador.

Porém, mesmo em séries posteriores do Fundamental Final (8º e 9º anos),


como também no Ensino Médio, não houve Referências às possibilidades
oferecidas pelos tipos de NARRADOR e as maneiras como eles podem ser
explorados nos mais diversos tipos e estilos de textos narrativos (contos de
mistérios, terror, suspense, policial, ficção científica; apólogo entre outros).

A linguagem das propostas eram adequadas às séries e à idade dos alunos.


Algumas, em suas estruturas, traziam orientações para que o estudante pudesse

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

avaliar seu texto, outras - poucas - sugeriam que se fizesse a troca de textos entre
os alunos - um esboço de um círculo de leitura. Entretanto, no que diz respeito ao
item analisado - o narrador - nenhuma delas, em nenhum livro, apontou textos com 569

estratégias de leitura para que os alunos pudessem criar uma base para a própria
produção.

No material para o Ensino Médio encontram-se apenas propostas para o


vestibular, mesmo na 1ª e 2ª séries, quando seria possível - e desejado -
aprofundar-se no estudo das estruturas narrativas, já que são alunos mais maduros.

A imagem 1 mostra uma das atividades analisadas, pede-se apenas que o


estudante assinale os trechos que comprovam o tipo de narrador. Tal atividade é
válida, quando não se esgota apenas nela, ou seja, quando a atividade é um ponto
de partida para uma maior reflexão acerca das estratégias de produção por parte do
aluno.

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570

Imagem 1 - Exemplo de atividade

A imagem 2 traz outro exemplo, dessa vez há uma questão para a


identificação do tipo de narrador, além de orientações para a construção da
narrativa, fazendo referência apenas à utilização do narrador-personagem.

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Mais uma vez a atividade se reduz a ações sem um maior desafio para
o aluno, ou possibilidade de enriquecimento da construção textual.
571

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Imagem 2 - Exemplo de proposta de produção

572

Considerações Finais

Ainda que as propostas da Escrita Criativa não sejam vistas nas práticas de
sala de aula, nem nos livros didáticos, acredita-se que uma sistematização de seus
procedimentos e a elaboração de exercícios contribuirão muito para o ensino de
produção textual, tornando-o mais atrativo para os alunos e com resultados mais
significativos na construção das habilidades de leitura e produção.

Pretende-se elaborar atividades tendo como base as propostas da EC e


aplicá-las a alunos de 6º ao 9º ano do Fundamental Final, a fim de avaliar sua
eficácia no despertar do gosto pela leitura e pela escrita.

Referências

ALVES, Rosemeire; BRUGNEROTTO, Tatiane. Coleção Vontade de Saber


Português. São Paulo: FTD, 2012.

BELTRÃO, Eliana Santos; GORDILHO, Tereza. Coleção Diálogos em Gêneros


Língua Portuguesa. São Paulo: FTD, 2013.

BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia O. Teoria Literária. Abordagens históricas e


tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003.

CAMPOS, Maria Inês; ROCHA, Regina Braz. Gêneros em Rede: leitura e produção
de texto. São Paulo: FTD, 2013.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

CARRERO, Raimundo. Segredos da ficção. Um guia da arte de escrever. Rio de


Janeiro: Agir, 2005.
573

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 5ª ed. São Paulo: Ed. Ática,
1998.

GONZAGA, Pedro; TUTIKIAN, Jane. Escreva! Guia de escrita criativa. Porto Alegre:
Literatura XXI, 2015.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 8ª ed. São Paulo: Ed. Ática, 1997.

RAY, Robert J.. O escritor de fim de semana. Como escrever um romance com
criatividade em 52 fins de semana. São Paulo: Ed. Ática, 1998.
REUTER, Yves. Introdução à análise do romance. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

MACHADO, Susana Isabel Moriés. A escrita criativa no 1º ciclo.


<http://hdl.handel.net/10400.26/3911> Acesso em: 29 de junho de 2016.

MATOS, João Carlos Gonçalves de. Escrita Criativa.


<http://repositorio.esepf.pt/bitstream/20.500.11796/871/2/Cad_2EscritaCriativa.pdf>.
Acesso em: 04 de julho de 2016.

SCLIAR, Moacyr. Nós, o pistoleiro. <http://literatortura.com/2013/02/canto-do-conto-


moacyr-scliar-nos-o-pistoleiro-nao-devemos-ter-piedade/>. Acesso em: 07 de julho
de 2016.

SILVA, Solimar Patriota. A escrita criativa: escrevendo em sala de aula e publicando


na Web.<http://www.filologia.org.br/xix_cnlf/cnlf/min_ofic/001.pdf>. Acesso em: 04 de
julho de 2016.

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
Anais

SOARES, Rosa Mariana Rathlew. Língua Portuguesa 6º ano. Curitiba: Positivo,


2012.
574

SOARES, Rosa Mariana Rathlew. Língua Portuguesa 7º ano. Curitiba: Positivo,


2012.

SOARES, Rosa Mariana Rathlew. Língua Portuguesa 8º ano. Curitiba: Positivo,


2012.

SOARES, Rosa Mariana Rathlew. Língua Portuguesa 9º ano. Curitiba: Positivo,


2012.

O teatro oitocentista carioca: Revista Ilustrada


(1876-1898)
The Rio nineteenth century theater: Revista Ilustrada magazine (1876-
1898)
Benedita de Cássia Lima Sant’Anna (UFPR/PNPD-CAPES)

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo revisitar o cotidiano do teatro oitocentista carioca,
verificando por intermédio da reflexão e da análise de informações acerca das apresentações teatrais
ocorridas nos palcos cariocas, durante os anos de 1887 a 1889, e divulgadas na Revista Ilustrada
(1876-1898) - publicação satírica, política, abolicionista e literária, lançada no Rio de Janeiro pelo
caricaturista ítalo-brasileiro Ângelo Agostini-, em particular, por intermédio das informações
disseminadas nas resenhas teatrais impressas na seção da revista intitulada "Pelos Teatros", se os
fatos políticos e sociais do período, dentre os quais a abolição dos escravizados e a Proclamação da
República Brasileira influenciaram, de algum modo, na escolha do repertório teatral encenado nas
diversas instituições teatrais existentes na cidade do Rio de Janeiro e/ou se os autores de teatro,
atores e companhias teatrais da época que exerceram atividade na cidade especificada mantiveram-
se alheios aos acontecimentos citados, ou seja, se os trabalhos artísticos por eles realizados não
interagiram com tais acontecimentos.
PALAVRAS-CHAVE: Cotidiano teatral. Teatro oitocentista. Revista Ilustrada.

ABSTRACT: This paper aims to revisit the daily Rio nineteenth century theater, checking through
reflection and analysis of information about the theatrical performances that took place in Rio stage,
during the years 1887-1889, and published in the Revista Ilustrada magazine (1876- 1898) - satirical
publication, politics, literary and abolitionist, launched in Rio de Janeiro by the Italian-Brazilian
caricaturist Angelo Agostini- in particular through the information disseminated in theatrical reviews
printed in the magazine section entitled "by Theatres" if political and social events of the period,
among them the abolition of the enslaved and the proclamation of the Brazilian Republic influenced in
any way, the choice of the theatrical repertoire staged in the various existing theater institutions in the
city of Rio de Janeiro and / or the authors of theater, actors and theater companies of the time who

In: CONGRESSO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, 4, 2016, Cornélio Procópio. Caderno de resumos. Cornélio Procópio: UENP, 2016.
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exercised activity in the city specified remained oblivious to such events, that is, if the artwork they
made did not interact with such events.

KEYWORDS: Theatrical Daily. Nineteenth-century Theater. Revista Ilustrada magazine.


575

Introdução

Idealizada pelo desenhista, ilustrador e caricaturista ítalo-brasileiro Ângelo


Agostini (1843-1910), a Revista Ilustrada, publicada semanalmente no Rio de
Janeiro, foi disseminadora de teses liberais como o fim da escravidão, a
proclamação da República e o incentivo ao desenvolvimento do setor industrial. E,
desde que foi lançada, em 6 de janeiro de 1876 até o momento em que encerrou
suas atividades em agosto de 1898, utilizou-se de textos escritos e imagéticos -
crônicas, charges e caricaturas da época - como opção de lazer, entretenimento e,
sobretudo como um recurso significativo para formar opinião, para sugerir, por
intermédio das imagens, modelos ideológicos das teses que defendia a seu público:
fosse este leitor ou analfabeto.
A revista manteve correspondente em diversas províncias brasileiras, em
geral proprietário de livrarias ou homens que, apesar de não terem um
estabelecimento comercial, dedicavam-se a atividade de compra e venda de livros.
Tais homens foram responsáveis pela divulgação e comercialização da Revista
Ilustrada na província em que residiam e ora ou outra também atuaram como
informante da publicação, mantendo a redação da folha informada acerca dos
principais fatos ocorridos em tal localidade.
Foi devido ao auxílio desses correspondentes e, em particular, ao modo
impertinente com o qual Ângelo Agostini e os demais articulistas da folha abordaram
os temas tratados nas matérias divulgadas na Revista Ilustrada, que a publicação,
mesmo sendo alvo de vários questionamentos, alcançou grande sucesso junto ao
público do período e atingiu a tiragem de quatro mil exemplares para assinantes,
número considerado imenso para a época se pensarmos na enorme quantidade de
analfabetos, cerca de 80% dos brasileiros, sendo que o índice de alfabetização do
Rio de Janeiro, em 1872, quatro anos antes da publicação da Revista Ilustrada,
oscilava entre 1,56% da população.

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Para esse público que não sabia ler, as informações constantes nos textos
não imagéticos nela impressas, como as notícias e apreciações presentes em
resenhas teatrais divulgadas na Revista Ilustrada, objeto de nossas reflexões neste 576

trabalho, chegavam certamente por intermédio da troca de informações, ou seja, por


meio de comentários entre os leitores da publicação acerca de menção nela
constante referente à companhia e a autores que estavam com peça em cartaz na
cidade do Rio de Janeiro, bem como referente à atuação de atores, atrizes e ao
comportamento do espectador de teatro que compareciam nas encenações
apresentadas nas diversas instituições teatrais existentes na cidade do Rio de
Janeiro (Teatro Fênix Dramática, Teatro Polytheama, Teatro Recreio Dramático,
Teatro Sant’Anna, Teatro Variedades, Teatros Apolo, Teatro Lírico, Teatro Pedro II
etc.).
Neste sentido, importa ressaltar que, ao longo dos quase 23 anos em que a
Revista Ilustrada permaneceu em atividade, a publicação manteve seção fixa
destinada a observações e a apreciações acerca de apresentações teatrais
realizadas nos diversos palcos cariocas por companhias teatrais nacionais e
estrangeiras, ademais, relacionadas à atuação de atores e atrizes, bem como
relacionadas ao próprio comportamento do público que, não raramente e por
motivações diversas, mostrava-se indiferente em relação a determinada peça e/ou
instituição teatral em que, de acordo com a opinião dos articulistas da Revista
Ilustrada, estava sendo desenvolvido um bom trabalho, ou seja, sendo encenada
uma peça que graças ao elenco, a atuação desse ou mesmo de um ator específico,
ao repertório, ao cenário e ao figurino, merecia maior atenção do espectador, a qual
só se comprovaria com uma presença mais significativa do público na plateia.
Dedicada, portanto, a traçar um breve panorama das apresentações teatrais
ocorridas na época, ou melhor, de manter o leitor da revista informado acerca do
cotidiano teatral do período, particularmente do cotidiano teatral carioca, tal seção
sofreu, ao longo dos anos, alteração com relação ao título, inicialmente denominada
de ″Resenha teatral″, passou a ser intitulada de ″Teatros″, ″Teatro e teatricis″,
″″Sobre o teatro″, ″Pelos Teatros″; depois novamente ″Resenha Teatral″, seguida
pelos título ″Divertimentos″ e, por fim, ″Diversões″, mas manteve-se, durante todo o

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tempo, como uma seção que tinha por objetivo divulgar e instigar a apreciação
referente à arte apresentada nos palcos cariocas para os leitores da folha. Talvez
por esse motivo, ou seja, por acreditar que se fazia necessário incentivar e apurar o 577

gosto do leitor da Revista Ilustrada pelo teatro - pois se assim o fizessem,


conseguiriam, indiretamente, fornecer a esse leitor/espectador de teatro meios para
que pudesse analisar outros fatos do cotidiano da época, não necessariamente
relacionados às artes, nem a arte teatral -, os articulistas da Revista Ilustrada
procuraram, em tais resenhas, transmitir opiniões, que se referiam a observações
sobre fatos e atos artísticos e não a ligação desses ou a interação daquele,
principalmente de autores, atores e peças com os acontecimentos políticos do
período, ainda que, ora ou outra, de um modo sutil, isso pudesse ocorrer, conforme
veremos a seguir, nos apontamentos referentes ao cotidiano teatral carioca,
divulgado em resenhas teatrais publicadas na Revista Ilustrada durante os anos de
1887, 1888 e 1889.
Em 1887, por exemplo, um dos fatos relacionados aos acontecimentos
teatrais ocorridos e divulgados na Revista Ilustrada, escolhido para ser noticiado
neste texto em virtude da importância a ele atribuída pela folha, é a apresentação
lírica realizada no teatro D. Pedro II e noticiada pelo caricaturista Ângelo Agostini em
resenha impressa no exemplar número 459 da publicação. Com o título de o
"Grande Concerto", no número citado e sob o pseudônimo X, o caricaturista publica
um texto em que faz uma breve apreciação de cada cena/ato do concerto
apresentado em benefício das vítimas do terremoto da Itália em junho de 1887. Já
os demais textos relacionados a apresentações e/ou representações ocorridas nos
teatros da Corte, particularmente, os impressos na seção fixa intitulada "Pelos
Teatros", foram, durante todo o ano citado, assinados pelo pseudônimo Binóculo e
escritos pelo pernambucano Luiz de Andrade.
Nesses textos, também se encontram informações referentes a
apresentações realizadas no teatro D. Pedro II, como a que anuncia que, por
iniciativa do compositor Carlos de Mesquita, foi realizada uma série de concertos, no
teatro D. Pedro de Alcântara, sob o título de concertos populares, o qual agradou o
público interessado por uma boa música (Revista Ilustrada, 1887, nº 459, p. 7), bem

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como a informação que discorre acerca da chegada da companhia dramática italiana


para trabalhar naquele teatro, comparecendo no primeiro espetáculo, por ela
realizado, um público bastante diminuto, porém, seleto. Posteriormente, críticas 578

favoráveis ao espetáculo publicadas na imprensa da época fizeram com que o


público aumentasse consideravelmente e aqueles que ali não tinham comparecido
no primeiro dia de apresentação lamentassem a ausência (nº 460, p. 7).
No ano de 1888, foram publicados, na Revista Ilustrada, 37 textos sobre o
cotidiano dos teatros da Corte; desses, um saiu sem indicação de autoria, vinte e
nove foram assinados pelo pseudônimo Binóculo, quatro pelo pseudônimo Dominó,
dois pelo pseudônimo Thomé Junior e um pelos pseudônimos Thomé Junior e Júlio
Verim. São textos que, assim como os anteriormente referidos, discorrem sobre
peças colocadas em cartaz, atuação de atores, intrigas e/ou disputas pelo gosto do
público entre companhias teatrais e até mesmo sobre o espectador de teatro da
época.
Encontram-se, em tais textos, apreciações como a referente à encenação da
peça O Homem, de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio, realizada no teatro Lucinda
e acerca da atuação da companhia Zarzuella, que estava trabalhando na instituição
e que alcançou grande sucesso junto ao público; sobre a encenação das comédias
Um romance de Paulo, o Macário, mulher e filho, o Capricho da vovó, a Casa de
hóspedes, A Sogra, Cocart e Bicoquet, essa traduzida pelo Dr. Oscar Pederneiras, e
muitas outras encenadas no palco do Recreio Dramático, durante o ano
especificado. Encontram-se também informações relacionadas ao estado predial dos
teatros no Rio de Janeiro e a constatação de que os teatros da Corte como o D.
Pedro II, o Recreio Dramático e o Lucinda estavam em boas condições e com obras
em execuções para garantir a vida do público (Revista Ilustrada, 1888, nº 495, p. 6).
Importa mencionar que a preocupação com a segurança do espectador dos
teatros aflorou-se no Rio de Janeiro, a partir de março de 1888, quando se registrou
um incêndio no teatro Baquet, localizado na cidade do Porto, em Portugal, no qual
teriam perecido mais de 120 pessoas. Sobre tal incêndio, escreveu o professor
português Lopes Cordeiro:

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Na noite de 20 para 21 de março de 1888, quando se representava a ópera


cómica Os Dragões de Villars, com a lotação esgotada, perfazendo cerca
de seis centenas de espectadores, deflagrou um violento incêndio nos
bastidores e, em menos de cinco minutos, o fogo destruiu o teatro por
579
completo. (CORDEIRO, 2002, p. 56)

Construído a mando de António Pereira Baquet, alfaiate portuense que


faleceu em 1869, o teatro Baquet foi inaugurado em 1859 e quando ocorreu o
incêndio pertencia a Ana Vitória de Ascensão, mãe de António Teixeira de Assis,
segundo esposo da viúva de Baquet, também já falecido na data em que ocorreu a
catástrofe.
Com a grande repercussão do fato nos países do ocidente, sobretudo, no
Brasil, os espectadores, por um determinado tempo, compareceram aos teatros
temerosos e ficaram, segundo textos impressos na Revista Ilustrada, examinando as
portas já imaginando como poderiam sair, caso ocorresse algum incidente. O
governo, por sua vez, para garantir a segurança do público nos diversos teatros da
Corte, passou a fazer vistorias nos teatros, e os engenheiros propuseram obras que
os empresários teatrais foram intimados a realizá-las.
Ressalta-se, entretanto, que apesar da necessidade de realizar certas
benfeitorias nos prédios, os teatros não foram obrigados a fechar as portas, ou seja,
continuaram com os ensaios e as apresentações cotidianas. Do mesmo modo,
ressalta-se que apesar de aludir o fato ocorrido no Porto, a Revista Ilustrada, ao
contrário do que vemos em jornais e revista da atualidade, não explorou a notícia de
modo a aumentar o temor do espectador de teatro e o trauma ocasionado pela
catástrofe. Enfatizou, conforme já sugerido, o bom estado das instituições teatrais da
Corte, procurando, provavelmente, mitigar as marcas que o incêndio teria causado
também ao espectador brasileiro, além de, é claro, continuar com a divulgação de
informações relacionadas ao cotidiano dos teatros fluminense, particularmente, dos
teatros da Corte, portanto, dos teatros cariocas.
Ainda em 1888, dentre as resenhas teatrais impressas na Revista Ilustrada,
há de se apontar aqui a resenha impressa na página 7 do número 496, que dá
destaque ao benefício do ator Francisco Corrêa Vasques (1839-1892) ocorrido em
1888: "Esteve animadíssima a festa deste insigne ator; o que de certo não é
novidade para os nossos leitores, uma vez que, de longa data, isso sucede com

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regularidade matemática – todos os anos" (Revista Ilustrada, 1888, nº 496, p. 7).


Entretanto, importa mencionar que, na resenha, a apreciação acerca do benefício
pouco se pauta a peça apresentada e ao desempenho dos autores em cena, pois 580

essa é realizada em linhas muito gerais - "A peça escolhida pelo beneficiado foi bem
acolhida e agradou. Os importantes papéis representados por Vasques e Peixoto
tiveram ótima interpretação" (p.7) -, isso ocorre, dentre outros motivos, porque o
talento e o mérito de Vasques, como artista, não suscitava mais discussões,
entretanto, o articulista da revista considerava necessário homenageá-lo e declarar
para o artista e para os demais leitores da folha o quanto era admirado pelos
jornalistas da Revista Ilustrada, devido ao seu caráter abolicionista e ao seu talento:

O Vasques sabe o apreço que merece a todo o povinho cá da Revista


Ilustrada. Como ator e como homem nós o admiramos, em extremo, e só o
que não compreendemos é como sendo ele um tão grande abolicionista, é,
ao mesmo tempo, um escravo tão implacável dos corações (nº 496, p.7).

Na página 7 do exemplar número 524, também impresso em 1888, outro


benefício se destaca como tema de apreciação referente aos teatros da Corte.
Realizado no teatro Recreio Dramático, esse benefício foi a favor do ator Dias Braga
e, de acordo com o que se observa na resenha divulgada na revista, também contou
com a adesão de um público significativo e animado:

[...] essa festa animadíssima, que todos os anos dá o Recreio, desta vez, se
juntariam atrativos extraordinários pela exibição de Cristovão Colombo.
Por tudo isso, será escusado dizer que no dia aprazado às 8 horas da noite
o Recreio Dramático estava, que era um ovo, sem um cantinho vazio,
apresentando o recinto do teatro e as suas dependências um aspecto
feérico.
Bastava a estima de que o Dias Braga goza entre os seus companheiros,
para que nesse dia, o Recreio se apresentasse coberto de galas, pois cada
qual tinha o maior desejo de obsequiar o seu inteligente e digno diretor.
(Revista Ilustrada, 1888, nº 524, p.7)

Observa-se que a apreciação referente ao benefício de Dias Braga difere-se


da apreciação relacionada ao benefício de Vasques, ao apresentar informações e
reflexões relativas à peça colocadas em cartaz, tendo em vista que com relação à
peça encenada no benefício de Francisco Correia Vasques, pouco se menciona e
ela acaba exercendo papel de coadjuvante, não do espetáculo, mas da resenha. Já
na resenha acerca do benefício de Dias Braga, a peça encenada não é vista como

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Anais

elemento secundário da apreciação, nem do benefício. Isso, porque, de acordo com


o que se depreende da leitura da resenha, a encenação da peça Cristovão Colombo
sempre atingia grande sucesso junto ao público da época, assim como o próprio 581

autor Dias Braga que conquistara grande respeito no meio artístico.


Assinadas pelo mesmo articulista, ou seja, por ″Binóculo″ um dos pseudônimo
utilizados pelo jornalista pernambucano Luiz de Andrade que, naquele momento,
ocupava o posto de articulista e chefe da redação da revista, as duas resenhas
citadas, além de tratarem respectivamente do benefício desses dois atores, também
trazem outras informações sobre o teatro como a série de concertos organizada por
Arthur Napoleão, o benefício em favor do fiscal de teatro denominado Juca e as
touradas realizadas naquele momento por Pontes são aludidas na resenha que
discorre sobre o benefício do ator Vasques. Esse ator também é citado na resenha
que trata do benefício de Dias Braga, tendo em vista que tal resenha apresenta,
após as informações acerca da encenação da peça Cristovão Colombo, informações
relacionadas ao aniversário da empresa do Recreio Dramático e, em seguida, sobre
a encenação da peça O Annel de Salomão, colocada em cartaz no teatro Sant’Anna,
pela empresa de Heller a qual pertenciam os atores Mattos, Vasques, Hermínia e
Peixoto, os quais, juntamente com outros atores da companhia, encenaram a peça
citada.
No ano de 1888, outras resenhas teatrais, assinadas pelo mesmo
pseudônimo, chamam nossa atenção, mas desta vez não por discorrer acerca de
benefício de atores consagrados na época, nem por trazer elogios a ator pelo seu
empenho abolicionista, mas por trazer em cena um debate realizado por meio da
imprensa entre Luiz de Andrade, articulista da Revista Ilustrada e ″Eloy, o herói″,
pseudônimo utilizado por Arthur Azevedo para assinar as Crônicas "De Palanques"
publicadas no Diário de Notícias e Novidades entre os anos de 1885 e 1889.
O debate inicia-se após a publicação do exemplar número 526 da Revista
Ilustrada, que traz, na seção fixa intitulada "Pelos Teatros", pequenas notas sobre
cinco teatros do Rio de Janeiro (Recreio Dramático, Carraneini, Lucinda, Sant’Anna
e Fênix).

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Anais

Na seção, ao trazer informações sobre a peça colocada em cartaz no teatro


Fênix, o articulista da revista define esse como tradicional teatro boulevardier,
tencionando afirmar que o teatro Fênix tinha por hábito colocar em cena peças mais 582

populares, de caráter cômico e ligeiro. Afirmação que não se pautava em nenhum


equívoco, tendo em vista que o teatro em questão foi de fato um palco de
variedades em que se apresentavam espetáculos populares diversificados - importa
informar que, ainda em 1888, o nome do Teatro Fênix Dramático foi alterado para
Teatro de Variedades Dramáticas e, como tal, permaneceu até 1926, data em que
volta a ser nomeado Fênix Dramática -, mas, Arthur Azevedo, em crônica impressa
no Diário de Notícias, na seção já especificada, contesta tal classificação e
considera o emprego do termo boulevardier impróprio para definir o teatro Fênix, fato
que teria sido interpretado por Luz de Andrade como um ato de espírito, ou melhor,
um deboche e/ou provocação, como mostram os questionamentos não menos
espirituosos, realizados por esse, em crônica impressa no exemplar 526 da revista,
citamos:

Eloy, o herói formalizou-se todo, porque em nosso último número


chamamos a Fênix, teatro boulevardier. E pergunta: será porque a rua da
Ajuda esteja transformada em boulevard? Então o Carceler por ter muito
engraxate, merecerá o nome de boulevard dos italianos?
Vê se que Eloy emprega bons esforços para fazer espírito, e se o não
consegue, ao menos mostra boa vontade.
Nós podíamos perguntar, também, porque é que Eloy se chama Arthur.
Será por ser bonito, elegante, um galã, como o nome indica?
Já vê que sua pergunta não tem razão e mostra só má vontade e ingratidão
para como está pobre Fênix, o teatro de suas glórias e das apoteoses de
Maria Angú.
Esse teatro sendo o primeiro que, entre nós, legou as operetas, as peças
populares ou de boulevard, pelas suas tradições tem direito ao qualificativo
que lhe demos ao correr da pena.
Não sabemos pois ao que vem essa investida de Eloy. Será porque ele
tenha o monopólio dos teatros ou não admita que ninguém anime essa
classe simpática, a dos artistas dramáticos, da qual Eloy quer ser senhor de
baraço e cutelo? (Revista Ilustrada, 1888, nº 526, p. 7).

O debate entre Luiz de Andrade ora utilizando-se do pseudônimo ″Binóculo″,


ora utilizando-se do pseudônimo ″Júlio Verim″, com Arthur Azevedo, ou melhor, com
″Eloy, o herói″, estendeu-se de dezembro de 1888 até o início de janeiro de 1889,
período em que Verim, na seção intitulada "Pelos Teatros", rebate as agressões

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desferidas contra ele pelo cronista do Diário de Notícias, por meio da crônica
denomina ″Eloy, o herodes″,
583
Eloy, o herodes
O público é testemunha do modo como temos tratado o plumitivo Arthur
Azevedo, Sem perder a calma, temos repelido as suas agressões, uma por
uma, provando que ele mente e que desonra o lugar que ocupa na
imprensa.
Muito ocupados com os nossos trabalhos, visto que, como ele, não no
sentamos à mesa do orçamento, sendo empregado público. . . nas horas
vagas, nem dávamos pela existência desse perverso e desse invejoso,
quando ele, do alto da sua carroça de lixo, rebolando-se todo, como quem
fez a sua educação a dar à bomba, quis exercer sobre nós uma tardia
vingança, acusando-nos de empregar mal a palavra boulevardier.
Replicamos-lhe, como devíamos, provando que ele mentia, provando que
ele era um ignorante, provando que ele era uma mediocridade chata e
odienta!
Que empregamos perfeitamente a palavra boulevardier, dizem-no todos e o
próprio Eloy.
Teatro boulevardier quer dizer teatro que leva peças de boulevard, peças
populares. Mas se boulevardier, como ele declara, é um termo de argot (que
sandice!) então não está classificado e não tem acepção tão determinada,
que seja lícito a qualquer, censurar o seu emprego como incorreto.
Mas, a verdade é que essa palavra já há muito, passou do argot para a
literatura, o que ele ignora, sendo empregada trivialmente por todos os
cronistas e escritores há muito tempo (Revista Ilustrada, 1888, nº 529, p. 6).

Arthur Azevedo, por sua vez, simula ignorar as queixas de Luiz de Andrade,
bem como as críticas que esse lhe desfere e, por meio de tal simulação, reforça seu
desagrado com o redator chefe da Revista Ilustrada e com a própria folha como
mostra o trecho da crônica "De Palanque" publicada no Diário de Notícias, em 04 de
janeiro de 1889, transcrito abaixo.

Intervindo no lamentabíssimo incidente, que tanto tem irritado Júlio Verrina


ou Luiz de Andrade, Guimarães Passos declara que eu talvez não ouvisse a
frase que este senhor diz ter proferido.
Guimarães Passos, que me conhece de perto, bem sabe que eu não ouvi: o
seu talvez surpreendeu-me. Ninguém acredita que haja homem educado,
por mais anêmico, por mais pusilânime, por mais covarde, por mais
miserável, nem mesmo mulher por mais fraca, que ouvindo uma insolência
dessas, não reagisse energeticamente. Eu não ouvi, já o disse, e repito-o
sob minha palavra de honra (AZEVEDO, 1889).

Esse posicionamento adotado por Arthur Azevedo de não responder,


respondendo, ou de acordo com outra provável interpretação, de responder, não
respondendo, apesar de extremamente irônico, pode ter sido empregado para
acalmar os ânimos de Luiz de Andrade e para apaziguar a rixa entre ambos. O fato

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Anais

é que, depois das crônicas citadas, não foram encontradas, na Revista Ilustrada,
nenhuma outra crônica atacando verbalmente o cronista do Diário de Notícias, o
qual, aliás, após um breve período, passou novamente a ter suas peças, que eram 584

encenadas nos teatros do Rio de Janeiro, apreciadas por ″Binóculo″, bem como
pelos demais articulistas da revista que atuaram como colaboradores, responsáveis
pelas resenhas publicadas na seção "Pelos teatros".

O Cotidiano dos teatros na Corte a partir de 1889: Revista Ilustrada

O ano de 1889 foi de significativa movimentação política, tendo em vista que


nele ocorre a passagem do Império para a República, fato que poderia ter
influenciado negativamente e/ou positivamente os teatros da Corte, ou seja, ter
contribuído para uma diminuição na encenação de peças teatrais, bem como
auxiliado para diminuir o número de espectador presente nos teatros ou talvez
cooperado para o aumento do número de público nos teatros cariocas e, ademais,
refletir nas temáticas das peças escolhidas para serem colocadas em cartaz.
Entretanto, de acordo com o que se observa nas resenhas teatrais impressas na
Revista Ilustrada, nada disso ocorreu, pelo menos não de modo muito aparente: nos
palcos da Corte, as apresentações prosseguiram como de costume, alguns
momentos de modo pouco satisfatórios, sem nenhuma novidade; outros com
número significativo de peça em cartaz nos diferentes teatros da cidade.
Nos dois primeiros números da revista (530 e 531), publicados durante o ano
citado, a seção "Pelos teatros" não foi publicada. No número seguinte (532), Luiz de
Andrade, utilizando-se de seu pseudônimo ″Binóculo″, assina a resenha. Nela,
constam reflexões sobre a revista de Valentim Magalhães e Filinto de Almeida;
sobre a peça Dona Sebastiana, escrita por Moreira Sampaio e colocada em cartaz
no teatro Sant’Anna. Cabe ressaltar que, conforme se depreende com a leitura da
resenha, a encenação da peça recebeu elogios de Luiz de Andrade no que se refere
à escolha e ao desempenho dos atores: "O desempenho dos principais papéis,
confiados ao Vasques, Lopiccollo, Mattos e Peixoto, enfim, a escolhida troupe do

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Sant’Anna foi excelente", mas também recebeu correções em algumas cenas


(Revista Ilustrada, 1889, nº 532, p. 6).
585

Notamos muita frieza na parte relativa à abolição. Uma ou outra frase,


destacada, fria como o gelo, de quem não compreende mesmo o alcance
da grande lei votada o ano passado.
A apologia é de bonito efeito e honra o talento de Coliva, mas é uma cena
muda, fraca, tão distanciada do fato que comemoramos, como um raio de
luar empalhado, do sol que nesse dia brilhou nos céus de nossa pátria
(ANDRADE, 1889).

Ainda assim, o resultado das observações de Luiz de Andrade apresenta


saldo positivo à encenação da peça: "Apesar desse senão, a revista agradou
realmente, fez rir e era notado que as alusões tinham sido feitas com um escrúpulo
que muito honra o autor" (1889).
Na mesma resenha, o articulista e redator chefe da Revista Ilustrada informa
o espectador de teatro da época sobre a primeira encenação da peça o Bendegó,
escrita pelo advogado e dramaturgo Oscar Pederneiras, no teatro Recreio
Dramático, e anuncia que estava sendo ensaiada para apresentação, no teatro
Sant’Anna, uma peça escrita por Aluízio e Arthur Azevedo. Sobre a peça Bendegó,
importa informar que ela permaneceu em cartaz por longo tempo, período em que
lhe é atribuído muitos elogios.

No Recreio, o Bendegó continua também nas boas graças do público,


achando-se já em 14ª representação.
A apoteose à lei de 13 de maio, um dos mais deslumbrantes efeitos de
cenografia que têm aparecido em nossos teatros, é sempre aplaudida com
entusiasmo.
Como temos dito, esta revista tem muitas cenas de efeito e outras que
produzem enorme hilaridade.
A sua permanência em cena, e o fato de ser levada quase todas as noites,
provam a aceitação que tem tido (Revista Ilustrada, 1889, nº 535, p. 7).

É importante informar que, em 1889, ocorreram bem mais de 100


apresentações dessa peça, ademais, que tais representações contaram com um
número significativo de espectadores, bem como que, a partir de maio do ano citado,
a peça passou a incluir em seu roteiro cenas relacionadas a fatos daquele ano: "O
Bendegó, depois de explorar os assuntos do ano passado, extravasa para os de 89

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e prepara algumas cenas, entre as quais a da Água em seis dias, que nos dizem
será de um efeitarrão (sic)". (nº 549, p. 6)
As renovações e inclusões de cenas na peça contribuíram para que essa 586

revista dos acontecimentos de 1888 se mantivesse em cartaz, o que possibilitou que


além de se comemorar o centenário da peça,

No Recreio o Bendegó está mesmo a entrar no centenário.


Que revista milagrosa!
Cremos que é fato único em nossos anais, uma peça de tal ordem dar esse
número de representações.
Mas, justamente por ser caso virgem o centenário do Bendegó vai ser
comemorado de um modo estupendo e que há de dar brado em toda cidade
Quem ainda não tiver bilhete, que se não descuide. (Revista Ilustrada, 1889,
nº 552, p. 7).

pensassem na possibilidade de um novo festejo, em comemoração ao segundo


centenário de Bendegó: "O Recreio, não precisamos dizê-lo, continua a levar o
Bendegó, com a coroação, e tão cedo não o deixará de lado porque o povo
acostumou-se ao Bendegó e não quer outra coisa. Também não tarda aí o segundo
centenário" (nº 565, p. 6).
Entretanto, na Revista Ilustrada, não há registros de tal comemoração, pelo
menos não no ano de 1889. Nesse ano, a revista comemoraria, juntamente com seu
público, o regresso de Carlos Gomes ao Brasil e daria destaque às apresentações
de Guilietta Dionesi, musicista então com apenas 11 anos, que realiza sua primeira
apresentação no teatro Sant’Anna (nº 558, p. 7).
Sabe-se que a família imperial prestigiou a apresentação da musicista e foi ao
sair do Teatro Sant’Anna, após assistir à Guilieta Dionesi, que o imperador sofrera o
atentado desferido pelo português Adriano do Vale. Entretanto, ao divulgar o
ocorrido, os articulistas da Revista Ilustrada, procurando resguardar o nome da
jovem violinista, para que não suscitasse lembranças desagradáveis, transmitiu a
informação acerca do atentado sofrido pelo imperador no exemplar número 576 da
folha.

[...] com dolorosa, surpresa, que soubemos do fato do Sant’Anna, passado


terça-feira última.
No momento em que a família imperial saia, findo o espetáculo um grupo de
exaltados julgou o momento oportuno, para fazer uma demonstração, que
além de tudo, era minimamente grosseira.

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Um certo tumulto levantou-se então no átrio do teatro, sendo a família


imperial rodeada pelas pessoas presentes, e levantando-se vivas, em
sentido contrário aos gritos que se tinham ouvido. [...] Instantaneamente,
começou a correr entre o povo que um tiro de revolver havia sido
587
desfechado contra o Imperador, causando tal notícia a mais funda
indignação.
Era, em verdade, um ato de louco.
Acorrendo as autoridades, e sindicando do fato, puderam orientar-se de
modo a ser preso, a 1 hora da madrugada, Adriano Augusto do Valle,
indigitado autor do atentado. (Revista Ilustrada, 1889, nº 557, p. 6)

Nesse número, entre as breves informações sobre os teatros na Corte,


divulgadas na seção "Pelos teatros", alude-se que, no teatro Sant’Anna, havia se
apresentado a jovem violinista (p.7). Tal alusão, não só confirmam que Guilietta
Dionesi havia se apresentado no teatro na data em que ocorreu o atentado contra o
Imperador e que teria sido a musicista que a família imperial havia ido prestigiar
naquela noite, como também coloca em evidência, por meio da brevidade da nota
sobre a jovem, bem como pela ausência de outras informações sobre a
apresentação, o desejo dos articulistas da Revista Ilustrada de evitar que o grave
incidente fizesse uma segunda vítima, fato que poderia ocorrer se a apreciação
acerca da jovem e de sua apresentação fosse atrelada ao grave incidente.
Prova disso, é encontrada no exemplar seguinte da Revista Ilustrada (nº 558).
Nesse, imprime-se uma pequena nota na seção "Pelos Teatros", inteiramente
dedicada à pequena violinista. Em tal nota, ao elogiar o talento da jovem que
adquiria notoriedade no mundo musical, faz-se referência a sua primeira
apresentação ocorrida na segunda-feira, sem especificar o dia do mês e/ou a
semana. Com isso, o autor da nota acaba simulando que a apresentação teria
ocorrida uma semana após o atentado contra D. Pedro II, e o leitor mais desatento
continuaria sem saber que o incidente, na porta do teatro Sant’Anna, ocorrera
justamente no dia da primeira apresentação da musicista:

Guilietta Dionesi
Consta apenas 11 anos de idade e no entanto é já uma notabilidade no
mundo musical.
Fez-se ouvir pela primeira vez segunda-feira, no Teatro Sant’ Anna e
assombrou a todos os seus ouvintes com o seu divino gênio.
Precedida de reputação de fenômeno artístico, os espectadores que
enchiam o teatro e entre os quais se notavam alguns dos nossos maestros,
acreditavam mais na benevolência dos grandes mestres da velha Europa,
do que na possibilidade de que uma criança pudesse interpretar com

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sentimento e arte os grandes compositores (Revista Ilustrada, 1889, nº 558,


p. 7).

Além desse evidente auxílio recebido dos articulistas da Revista Ilustrada, a 588
jovem também contou com uma bela homenagem realizada por eles: Antônio
Bernardes Pereira Neto que a partir de outubro de 1888, substituiu, oficialmente,
Ângelo Agostini na direção e elaboração da parte ilustrada da revista, desenhou um
lindo retrato de Giulieta Dionisi, o qual foi divulgado na última página do exemplar
número 558, portanto, o mesmo em que a nota citada foi impressa.
Ainda em 1889, nas resenhas teatrais impressas na Revista Ilustrada,
encontram-se informações e/ou apreciações acerca da ópera O Escravo, de autoria
de Carlos Gomes; sobre o benefício do ator Romeu Bastos, realizado em 4 de
novembro daquele ano no teatro Recreio Dramático, ademais, acerca de peças
representadas nesse mesmo teatro, como a Grande Avenida e os Guardas do Rei
de Sião, bem como de peças colocadas em cartaz nos demais teatros da Corte,
como a peça Garra do Açor, colocada em cartaz no teatro Sant’ Anna pela
companhia do Heller e a exibição do Ditoso Fado, no teatro São Pedro, realizada
pela atriz Isolina Mouclar e o ator Mattos.
O encerramento do ano seria, posteriormente, marcado pela divulgação de
um relato desolador de Binóculo, relacionado ao estado dos teatros no Rio de
Janeiro:

Vai grande pasmaceira pelos teatros.


Nem uma peça nova, nem um acontecimento de sensação. Nem mesmo as
prisões dos atores que se arriscavam a falar do fruto proibido – as laranjas,
o que tanto irritava os delegados dos maus tempos da monarquia.
Nada de novo, absolutamente nada. Os mesmos dramas, as mesmas
operetas, as mesmíssimas comédias.
Percorre-se a quarta página dos jornais diários, faz-se uma visita aos seus
pavimentos térreos, e não se encontra uma novidade, qualquer coisa que
proporcione à gente meios de variada diversão.
Que isso é horrível, compreende-se. Habituados, como estávamos, a
assistir todos os dias aos novíssimos espetáculos que nos forneciam os
ministros do ex-império, as câmaras, a polícia, etc. não podemos passar
assim inopinadamente ao regime da dieta.
Peças novas, peças novas, cidadãos empresários (Revista Ilustrada, 1889,
nº 573, p. 6).

Observa-se que o trecho citado, ao discorrer sobre o estado do teatro carioca


naquele momento, faz alusão a um fato sociopolítico significativo ocorrido em julho

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do ano em estudo, quando a vendedora de laranja Sabina, que já mantinha por


vários anos seu comércio em frente a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi
proibida pelo subdelegado da Freguesia de São José de prosseguir com a venda de 589

laranjas naquele local, fato que gerou o protesto por parte dos estudantes da
Faculdade, de jornalista e de atores da época que transformaram a atitude arbitraria
do subdelegado em temática abordada em revistas teatrais por eles encenadas, o
que provocou, na ocasião, a prisão de atores, em particular, de atores que insistiram
em revisitar o acontecimento em peças por eles encenadas.
Tal referência comprova, portanto, que os atores, os autores de revistas
teatrais e que as próprias companhias teatrais da época estavam atentas aos
acontecimentos sociais e políticos ocorridos em nosso país e, em particular, na
cidade do Rio de Janeiro. Do mesmo modo, comprava que havia sim uma
interação/diálogo entre tais fatos e as produções artísticas por eles colocadas em
cartaz.
Mas, excetuando esse trecho, as resenhas teatrais divulgadas na Revista
Ilustrada pouco ou nenhuma referência fazem a tal interação, ou seja, ao debate
e/ou ao empenho dos artistas teatrais em realizar uma releitura crítica acerca dos
acontecimentos sociais e políticos da época. Isso, porque de acordo com o que se
depreende da leitura e reflexão acerca de tais textos, o principal objetivo da Revista
Ilustrada, ao divulgar a resenha teatral contendo os acontecimentos teatrais
ocorridos durante a semana, era o de divulgar a arte teatral entre seus leitores,
incentivando neles o gosto pelas apresentações teatrais, de modo a transformá-los,
caso ainda não fossem, em espectadores de teatro. Também era estabelecer meios
para que as companhias teatrais e os atores da época pudessem corrigir os
equívocos presentes em apresentação, bem como valorizar as atuações e escolhas
teatrais bem realizadas, promovendo o desenvolvimento da arte teatral no Brasil e
deleitar, ou seja, entreter o público da folha por intermédio da leitura de tais
resenhas.
Assim sendo, concluindo este texto, importa informar que, ao longo dos anos
em que permaneceu em atividade, principalmente no período aqui referido (janeiro
de 1887 a dezembro de 1889), a Revista Ilustrada procurou inserir seu público no

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ambiente teatral da época, ao mesmo tempo em que denunciou vícios, rixas e falhas
presentes em apresentações e educou e/ou direcionou o gosto de seu público leitor
acerca do teatro de acordo com o que era postulado por seus articulistas nas 590

resenhas teatrais nela impressas.

Referências

ANDRADE. "Pelos Teatros". In: Revista Ilustrada. 19 de janeiro de 1889, nº 532, p.


6.

AZEVEDO, Arthur. "De Palanque". In: Diário de Notícias. 04 de janeiro de 1889.

CORDEIRO, José Manuel Lopes. ″O teatro do alfaiate Baquet″. In: Público.


14/04/2002, p. 56. Disponível em:
http://www.prof2000.pt/users/secjeste/recortes/teatro/baquet01.htm Acesso em: 08
de Nov. 2015)

COUTINHO, Afrânio e SOUZA, J. Galante (dir). Enciclopédia literária brasileira. 2ª Ed.


São Paulo: Global/ Rio de Janeiro Fundação Biblioteca Nacional/ DNL: Academia
brasileira de Letras, 2001. vol. I e II.

MARZANO, Andrea. Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e o Rio de Janeiro


(1839-1892). Rio de Janeiro: Folha Seca, 2008.
________________ e MELO, Victor Andrade (orgs.) . Vida divertida: histórias do
lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010.

Revista Ilustrada, revista semanal, literária e ilustrada dirigida por Ângelo Agostini. Rio
de Janeiro: Tipografia de Paulo Hildebrandt. 1º de jan. de 1876 – agosto de 1898.

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