You are on page 1of 18

55

A batalha pelo ar: a The battle for the air: the


construção do construction of the North
fundamentalismo cristão American fundamentalism
norte-americano e a and the re-construction of
reconstrução dos “valores “family values” by the media
familiares” pela mídia (1920-1970)
(1920-1970)
ABSTRACT
Karina Kosicki Bellotti* This article discusses the use of the elec-
tronic media by North-American evangelical
groups between the 1920s and 1970s. Al-
RESUMO though the use of the media by Protestants is
Esse artigo discute o uso da mídia eletrônica a recent subject in the secular press, this
por grupos evangélicos norte-americanos en- practice comes from the initiative of North
tre os anos 1920 a 1970. Ainda que o uso da American preachers of the 1920s. Our goal is
mídia por protestantes seja um assunto recen- to show the early years of the North Ameri-
te na imprensa secular, essa prática é herdeira can evangelical media, the tensions and dis-
da iniciativa de pregadores norte-americanos putes over the access to radio and television,
dos anos 1920. Nosso objetivo é mostrar os and how this context favored the rise of fun-
primórdios da mídia evangélica norte-america- damentalist groups in the mass communication
na, as tensões e disputas pelo acesso ao rádio in the American culture. Through the media,
e à televisão, e como esse contexto favore- the fundamentalists have sought and still seek
ceu a ascensão do grupo fundamentalista na to constitute a non-utopist counterculture,
comunicação de massas na cultura norte-ame- aiming at the defense of the “family values”
ricana. Por meio do uso da mídia, os fun- and the maintenance of the traditional gender
damentalistas procuraram – e procuram até roles in a transforming society.
hoje – constituir uma contracultura não-utó-
Keywords: Religious communication – Fun-
pica, visando à defesa dos “valores familiares”
damentalism – Protestantism – Family -
e à manutenção dos papéis de gênero em
uma sociedade em transformação. United States – Culture.
Palavras-chave: Comunicação religiosa –
Fundamentalismo – Protestantismo – Família La batalla por el aire:
– Estados Unidos – Cultura. la construcción del
fundamentalismo cristiano
norteamericano y la
reconstrucción de los
“valores familiares” por los
medios de comunicación
(1920-1970)
RESUMEN
*
Pós-doutoranda, doutora e mestre em História pela Unicamp,
Este artículo discute el uso de los medios de
atua na área de História Cultural dessa universidade. comunicación electrónicos por grupos evan-
56 GÊNERO, FUNDAMENTALISMO E RELIGIÃO

gélicos norteamericanos entre los años 1920 y as tensões e disputas pelo acesso ao rádio e à TV
1970. Aunque el uso de los medios de comu- e como, nesse contexto, o grupo fundamentalista
nicación por protestantes sea un tema reciente tornou-se expoente na comunicação de massas na
en la prensa secular, esa práctica es heredera cultura norte-americana. É desse grupo que os
de la iniciativa de predicadores norteamericanos brasileiros mais traduzem livros, artigos infantis e
de los años 1920. Nuestro objetivo es mostrar infanto-juvenis. Por meio do uso da mídia, o grupo
los primordios de los medios de comunicación fundamentalista norte-americano trava uma guerra
evangélicos norteamericanos, las tensiones y cultural contra a sociedade secular em torno da
disputas por el acceso al radio y a la televisión, preservação dos “valores familiares”, oferecendo
y como ese contexto ha favorecido la ascen- opções de entretenimento “sadio” para toda a famí-
sión del grupo fundamentalista en la comuni- lia e guias de aconselhamento para a vida cristã.
cación de masas en la cultura norteamericana.
Por medio del uso de los medios de comunica- 1. Primórdios do rádio evangélico
ción, los fundamentalistas han buscado – y – décadas de 1920-1930
hasta hoy lo buscan – constituir una
contracultura no-utópica, visando la defensa de Em 1922 houve a primeira transmissão de rádio
los “valores familiares” y la manutención de nos Estados Unidos, marcando o início de peque-
los papeles de género en una sociedad en trans- nas estações de rádio de curto alcance, incluindo
formación. programas de variedades e religiosos. Em 1924
Palabras clave: Comunicación religiosa – existiam 600 emissoras de rádio e, no mesmo ano,
Fundamentalismo – Protestantismo – Familia a evangelista independente Aimée Semple
– Estados Unidos – Cultura. McPherson, fundadora da Igreja do Evangelho
Quadrangular (Foursquare Gospel Church), trans-
“Não há nada na Bíblia que diga que o mitia em sua própria estação de rádio os cultos de
mundo deva ir à igreja; mas tudo na Bíblia seu Angelus Temple em Los Angeles, com instala-
diz para a Igreja ir até o mundo! O rádio leva o ções para emissão de rádio de seus cultos (CAM-
Evangelho para os que não vão à igreja!” POS, 1997, p. 266; HANGEN, 2002, p. 57-79).
(Paul Rader, pregador e radialista norte-americano, c. A historiadora Tona Hangen afirma que, desde
1920s – apud Hangen, 2002, p. 48). sua invenção, o rádio foi cobiçado por diversos
líderes evangélicos e sua recepção foi positiva e
Introdução imediata. No caso fundamentalista, o rádio foi
crucial para unir culturalmente uma congregação
Esse artigo discorrerá sobre o uso da mídia de fiéis dispersos no espaço geográfico, estabele-
eletrônica por grupos evangélicos norte-americanos, cendo temas e agendas em comum. O grande apelo
em especial no seu início, na primeira metade do dos pregadores fundamentalistas era seu senso de
século XX, até os anos 1970, período de ascensão certeza, apontando para um caminho definitivo
dos fundamentalistas na cultura de massas norte- perante as incertezas da vida urbana do início do
americana. Ainda que o uso da mídia por protes- século XX. Além disso, expressavam os anseios e
tantes seja um assunto recente na imprensa secular, ofereciam soluções para os problemas cotidianos
despertando curiosidade no público brasileiro por dos fiéis por meio do rádio, tais como doenças,
conta de grupos neopentecostais, o fato é que os tribulações e a busca pela paz de espírito
produtos de mídia evangélica são herdeiros de (HANGEN, 2002, p. 7).
práticas estabelecidas desde os anos 1920 nos Nos Estados Unidos, as décadas de 1920 e 1930
Estados Unidos. assistiram a uma expressiva expansão no número
Se missionários evangélicos norte-americanos de estações de rádio que veiculavam programas
trouxeram a mídia eletrônica desde os anos 1950 religiosos, sem regulação alguma por parte do
para nosso País, tal se deve ao desenvolvimento governo norte-americano. A prática mais comum
prévio da mídia evangélica para o público norte- era a da compra de horários em estações de rádio.
americano. Nosso objetivo nesse artigo é mostrar Havia uma grande batalha entre as Igrejas e prega-
os primórdios da mídia evangélica norte-americana, dores evangélicos para ocupar espaço no rádio,
57

não somente porque cada um queria divulgar suas Em 1928, a FCCUSA publicou um programa de
crenças no dial, mas também porque funda- cinco pontos estabelecendo diretrizes para a radio-
mentalistas e liberais disputavam a liderança no difusão religiosa, seguida fielmente pela NBC. A
cenário religioso e cultural. programação religiosa deveria: atender às três gran-
Protestantes liberais (presbiterianos, metodistas, des crenças vigentes nos Estados Unidos; sua men-
congregacionais, episcopais, anglicanos, luteranos) sagem não poderia ser sectária e denominacional;
eram assim chamados por conta da controvérsia sua mensagem deveria ter um apelo amplo 2, a fim
entre evangélicos conservadores, adeptos da inter- de edificar a vida pessoal e social dos ouvintes, não
pretação literal da Bíblia (denominados funda- representando benefício a uma Igreja particular; a
mentalistas a partir dos anos 1920) e evangélicos mensagem deveria ter função educacional; e só
adeptos de uma interpretação histórica da Bíblia. poderia ser transmitida por líderes reconhecidos de
Antes da controvérsia entre fundamentalistas e libe- várias Igrejas (HANGEN, 2002, p. 25-26).
rais (década de 1920), os liberais eram identificados O que poderia ser uma campanha para a supres-
como reformistas, por conta do envolvimento com são sistemática do espaço dos fundamentalistas era,
projetos de reforma social, ou simplesmente evan- na verdade, uma tentativa de enfraquecer o grande
gélicos, pela ênfase na evangelização1. apelo que seus programas tinham. Porém, apesar
As principais emissoras de rádio passaram a de sua popularidade, os fundamentalistas não esta-
dedicar horários em sua programação para diver- vam tão organizados no fim da década de 1920 a
sas Igrejas. A emissora National Broadcasting ponto de fazerem frente à FCCUSA.
Corporation (NBC) decidiu ceder horário gratuito Outro fator que prejudicou o acesso de
para as três tradições religiosas mais importantes fundamentalistas, pentecostais e independentes ao
nos Estados Unidos: a seu ver, o judaísmo, o ca- rádio foram as polêmicas anti-semitas envolvendo o
tolicismo e o protestantismo. O representante padre Charles Coughlin. Após ganhar popularidade
evangélico foi indicado pela organização liberal a partir de 1926, o padre católico envolveu-se com
Federal Council of Churches in USA [Conselho a extrema-direita americana e passou a usar o rádio
Federal de Igrejas nos EUA] (FCCUSA), que man- para veementes ataques a seus oponentes, incluindo
tinha estreitas relações com a NBC. Durante anos, judeus. Como muitos pregadores evangélicos tam-
essa emissora transmitiu o programa National bém polemizavam no rádio, seus espaços foram
Radio Pulpit, produzido pelo departamento de restringidos por várias emissoras na década de 1930.
rádio da FCCUSA. Hangen concentra-se em três casos de evan-
Em 1929, a Federal Communications gelistas bem-sucedidos nas décadas de 1920 e
Commission, uma espécie de ministério das comu- 1930, que souberam explorar o formato comercial
nicações, instaurou a obrigatoriedade de horário do rádio para fazer suas pregações e adaptar sua
gratuito (sustained-time) para programas religiosos mensagem para o novo veículo: Paul Rader, Aimeé
em emissoras de rádio. Boa parte desses horários S. McPherson e Charles E. Fuller. Utilizando técni-
foi destinada a Igrejas liberais, além da Igreja Ca- cas de propaganda e de pregação em avivamentos,
tólica e líderes judaicos (LESAGE, 1998, p. 37). os três pregadores foram pioneiros no uso do rádio
Pregadores fundamentalistas e pentecostais, que para evangelização massiva. Rader converteu Fuller
não possuíam representação na FCCUSA, compra- e ajudou a treinar diversos líderes fundamentalistas.
vam horários em qualquer estação que os aceitas- Fuller, por sua vez, com o dinheiro arrecadado com
se. Por conta dessa prática, o fundamentalista o programa e com seu ministério, fundou o Fuller
Charles E. Fuller tornou-se popular com o seu Theological Seminary, uma das maiores referências
Old-Fashioned Revival Hour, desde 1934. acadêmicas fundamentalistas.

2
1
Para uma história do fundamentalismo cristão, surgido em Essa abordagem não-denominacional (broad truth) foi ado-
1910 como movimento reformista do protestantismo ameri- tada pelas grandes redes de rádio e, mais tarde, de televisão,
cano, ver Armstrong (2001) e Marsden (2006). Em 1906 que teria influenciado o tipo de abordagem dada a assuntos
surgiram também os pentecostais. religiosos na grande imprensa americana (HOOVER, 1998).
58 GÊNERO, FUNDAMENTALISMO E RELIGIÃO

Figura 1. Ilustração que retrata a fachada do ministério de Paul Rader, Chicago Gospel Tabernacle, fundado em 1922. Em destaque, as
siglas da emissora de rádio que transmitia a programação de Rader – WJBT – “Where Jesus Blesses Thousands” (Onde Jesus abençoa
milhares). (Fonte: Exposição virtual “The Jazz Age Evangelism”, disponível em http://www.wheaton.edu/bgc/archives/cgt.html.)

Figura 2. Folder promocional do programa de rádio de Paul Rader, Chicago Gospel Tabernacle. Destacamos a simbologia da
ilustração: o programa proclama incansavelmente o evangelho para um mundo em decadência (a dying world). (Fonte: Exposição
virtual “The Jazz Age Evangelism”, disponível em: http://www.wheaton.edu/bgc/archives/cgt.html.)
59

Aimeé S. McPherson, por sua vez, foi convertida dentro do movimento Holiness e enfatizava a cura
em seu ministério. Fundou a Igreja do Evangelho Quadrangular e abriu importante espaço para pregadores
pentecostais ao aliar espetáculo, dramaticidade, cura divina e pregação em seus programas (HANGEN,
2002, p. 77-78).

Figuras 3 e 4. (Da esquerda para a direita) Aimeé Sample McPherson (1931 e 1940). Entre outras técnicas de
divulgação e arrecadação de recursos, Sister Aimeé vendia suas fotos autografadas a um dólar (HANGEN, 2002,
p. 62-63), juntamente com a assinatura de sua revista, Bridal Call (o chamado da noiva). Costumava encenar
sermões aos domingos e tornou-se uma grande atração em Los Angeles pelo estilo teatral e dramático de seu
culto. (Fonte: http://www.foursquare.org/landing_pages/71,3.html).)

Apesar de suas diferenças doutrinárias, o que te. Com o acompanhamento de um enorme órgão, uma
os aproximou foi o aproveitamento da experiência orquestra de catorze instrumentos, conjunto de metais, e
dos avivamentos para cativar a atenção do público, um coro de cem vozes, ela fez a performance de “ser-
oferecendo ajuda espiritual e entretenimento para mões ilustrados” todas as noites de domingo por vinte
diversos segmentos demográficos. anos. Seus sermões ilustrados retiravam temas da cultura
McPherson utilizou diversas estratégias para divul- popular e eram executados com vestimentas elaboradas
gar seu ministério: pilotava um carro com os dizeres alugadas de estúdios de Hollywood e grandes cenários
Gospel Car durante suas viagens; certa vez percorreu com efeitos especiais, graças à ajuda de seu diretor de
a cidade de São Petersburgo em cima de um cami- palco com experiência em teatro de variedades
nhão, tocando órgão dentro de um cenário que re- (vaudeville), Thompson Eade (HANGEN, 2002, p. 63)3.
produzia sua tenda; espalhou panfletos de um avião
em San Diego; participava regularmente da Pasadena
Rose Parade com um carro alegórico; gravou seus 3
“McPherson’s revival meetings were spectacles of
sermões para serem distribuídos e vendidos; e quase entertainment, music, and emotion-rousing preaching. To
se aventurou pelo cinema e pela TV – mas não viveu the accompaniment of a huge organ, a fourteen-piece
para tanto. Morreu em 1944, deixando uma história orchestra, brass band, and hundred-voice choir, she
performed ‘illustrated sermons’ every Sunday night for twenty
de criatividade no evangelismo americano: years. Her illustrated sermons drew on popular culture for
subject matter and were executed with elaborated costumes
Os encontros de avivamentos de McPherson eram espe- rented from Hollywood studios and huge sets with special
táculos de entretenimento, música e pregação emocionan- effects, thanks to the help of her vaudeville-trained stage
manager, Thompson Eade” (HANGEN, 2002, p. 63).
60 GÊNERO, FUNDAMENTALISMO E RELIGIÃO

Já Fuller foi crucial para criar um sentimento de atrair e manter sua audiência (que também era sua
pertença e de unidade entre protestantes conserva- maior fonte de arrecadação). Para burlar as barrei-
dores ao não dar espaço para diferenças denomi- ras dos liberais, alguns optaram por construir
nacionais e apostar em um formato simples de transmissores poderosos na fronteira com o Mé-
programa, com músicas, hinos, sermões, leitura de xico (MOORE, 1994, p. 246), a fim de avançar
cartas e uma mensagem direta, que pregava um com o trabalho missionário.
Deus vivo e preocupado com as aflições cotidia- Entre as décadas de 1930 e 1950, os funda-
nas das pessoas (HANGEN, 2002, p. 80-111). mentalistas fortaleceram-se pelas ondas do rádio,
Manteve-se no ar por quase quarenta anos, jun- pelos institutos bíblicos, por sua imprensa, aviva-
tamente com sua esposa, Grace Fuller, responsável mentos, conferências e associações. Os liberais
pela leitura das cartas no programa. O casal conso- continuavam detendo influência cultural, mas após
lidou uma imagem ideal de família evangélica ame- o fim da II Guerra Mundial os Estados Unidos e
ricana e deu espaço para a participação dos ouvintes os protestantismos não eram os mesmos. No final
por meio das correspondências e dos guerreiros da década de 1940, surgiu um líder que se tornou
oradores (prayer warriors), voluntários cujas ora- a face mais popular do fundamentalismo america-
ções combateriam a oposição persistente de Satã na no: Billy Graham.
vida dos cristãos (HANGEN, 2002, p. 85). Em
1936, eram mais de cinco mil guerreiros4. 2. Anos 1940 a 1950;
Dada a popularidade deste e de outros tantos pre- a virada fundamentalista
gadores independentes, os liberais lutaram junto à
Federal Communications Commission (FCC) para Billy Graham criou-se em ambiente fundamenta-
aprovar regulamentos que restringissem os formatos, lista. Estudou em importantes institutos bíblicos
as práticas e os responsáveis por programas religiosos (Bob Jones University, Wheaton College) e lançou-
nas grandes estações. Na década de 1940, a rádio se pregador pelo Youth for Christ, uma para-ecle-
dominava a cultura norte-americana. Se nos anos siástica fundamentalista. Foi amplamente incenti-
1920 5% da população possuía rádio, no fim dos vado por Charles E. Fuller em sua primeira
anos 1950 menos de 5% da população não possuía cruzada evangelística em Los Angeles, em 1949,
aparelho de rádio. O veículo acompanhou a intensa que durou três semanas e promoveu 72 encontros,
mobilidade da população norte-americana a partir da com um público de cerca de 350 mil pessoas.
Depressão de 1929. No caso evangélico, o rádio Graham atraiu a atenção da imprensa nacional e,
construiu o sentimento de pertença a outra comuni- em 1954, foi capa da revista Time Magazine, a
dade, que reforçava a idéia de purificar o mundo por pedido de William “Cidadão Kane” Randolf Hearst,
meio da associação entre cristãos. dono do periódico.
Para superar as dificuldades impostas pelos libe- Sua mensagem era de arrependimento pessoal,
rais para o acesso ao rádio, os fundamentalistas seu visual era arrojado e sua pregação, vigorosa.
organizaram-se em associações como a National Era metódico em suas campanhas, coordenando
Association of Evangelicals (1942) e a National publicidade à estruturação dos eventos, com o
Religious Broadcasters (1944). Ainda que barrados treinamento de voluntários e encontros de oração.
nas grandes emissoras, os fundamentalistas com- Sua audiência era de pessoas comuns, para quem
pravam horários em emissoras independentes e Graham ressaltava o poder da fé no cotidiano:
alcançavam uma popularidade maior que os progra-
mas de horário gratuito por se preocuparem em Não se trata de quantas almas você ganhou [para Cris-
to], quão grandes foram os encontros de que você par-
ticipou. Trata-se do fato de você ter ou não sido fiel no
4
McPherson também mantinha um “recrutamento” parecido, lugar em que Deus o colocou. Se Deus o colocou para
ao inaugurar uma torre de oração (prayer tower) em seu vender pneus de automóvel e você os vende com toda fé
Angelus Temple, em que voluntários revezavam-se a cada
perante o Senhor e dá testemunho de Cristo em cada
duas horas, durante 24 horas ininterruptas.
61

oportunidade… você ganhará a coroa! (GRAHAM apud por personalidades como o evangelista Bob Jones
HANGEN, 2002, p. 114) . 5
(fundador da Bob Jones University), e pela
American Council of Christian Churches – ACCC
No início dos anos 1950, Graham assinou com a (1941), entre outras organizações.
ABC para transmitir pelo rádio o programa “Hour Ao longo dos anos 1940, porém, nem todos os
of Decision” (Hora de Decisão), em que a sua fundamentalistas concordavam com o separatismo
maior intenção revelava-se no título: ao final de cada absoluto em relação à cultura norte-americana.
programa, assim como acontecia em cada cruzada, Perseguindo a idéia de cristianizar o país, um grupo
Graham convidava seu ouvinte a tomar uma decisão rompeu com os fundamentalistas mais radicais e
para sua vida – a de se arrepender de seus pecados passou a se denominar “neo-evangélicos” (neo-
e aceitar Jesus Cristo como seu Salvador. evangelicals – depois, denominaram-se somente
Também se referia ao contexto social em que o evangelicals, rótulo pelo qual são reconhecidos até
programa se desenvolvia, pois, em tempos de in- hoje), recuperando a herança deixada pelos evan-
certeza, a decisão oferecida por Graham era certa, gélicos reformistas do século XIX, denominados
além de ser uma tentativa de ganhar relevância e evangelicals (MARTY, 1985, p. 411).
influência na cultura norte-americana. Os líderes “neo-evangélicos” formaram a
Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) National Association of Evangelicals [Associação
cresceu o interesse dos norte-americanos por as- Nacional de Evangélicos] (NAE), em 1942, para
suntos religiosos. Moore (1994, p. 238-265) aponta fazer frente à ACCC e à FCCUSA. Sua intenção
para um despertar religioso na mídia de massas: era atenuar a imagem negativa adquirida pelos
Hollywood lucrara muito com diversos filmes com fundamentalistas perante parte da sociedade norte-
temas bíblicos 6. Billy Graham e o pregador americana, acusados de cultivarem o ódio, o falso
pentecostal Oral Roberts lotavam estádios com julgamento e a hipocrisia.
suas cruzadas; e livros com temáticas religiosas e A oposição ao liberalismo evangélico continuava
esotéricas estavam entre os mais vendidos, devido no discurso dos novos evangélicos. Porém, o libe-
à popularidade de figuras como Norman Vincent ralismo criticado por eles era mais lendário do que
Peale (O poder do pensamento positivo – 1953) e propriamente praticado pelas Igrejas consideradas
Bispo Fulton J. Sheen. Houve um grande aumento liberais. Ele se remetia ao liberalismo da controvér-
na adesão religiosa e na contribuição financeira sia fundamentalista-modernista da virada do século
para as Igrejas evangélicas – 60% da população XIX para o XX, ocorrida entre teólogos protes-
americana pertencia a uma Igreja, sendo que boa tantes de ambas as vertentes, aprofundada com o
parte dessa porcentagem freqüentava regularmente. Caso Scopes 7 (1925). Enquanto isso, muitos libe-
O movimento fundamentalista diversificou-se
7
entre os anos 1930 e 1940 devido à relação que O Caso Scopes foi o julgamento do professor substituto de
biologia John Scopes, que ensinava a teoria da evolução no
esse grupo mantinha com a cultura. Havia o setor Tennessee, então proibida na legislação estadual. Os
que cultivava o separatismo em relação aos que não fundamentalistas, nos anos 1910 e 1920, ganharam popula-
se alinhavam ao seu pensamento. É representado ridade ao advogar contra o ensino do evolucionismo, e por
isso o caso ganhou projeção nacional, sendo o primeiro evento
5
“It’s not how many souls you’ve won; how big the meetings a ser transmitido pelo rádio para todo o país. Clarence Darrow,
were that you had. It’s whether you are faithful in the place advogado da American Civil Liberties Union (Associação
where God puts you. If God puts you to selling automobile Americana de Liberdades Civis) ofereceu-se para defender
tires and you sell them faithfully as unto the Lord and witness John Scopes, enquanto o maior expoente da cruzada
criacionista, William Jennings Bryan, defendeu o Estado.
for Christ at every opportunity… you’ll get that crown”
Apesar de Scopes ser condenado por ter infringido a lei, os
(GRAHAM apud HANGEN, 2002, p. 114).
6
fundamentalistas saíram com a imagem arranhada pela co-
Sansão e Dalila (Samson and Delilah – 1951), Davi e Betseba bertura jornalística, contrária aos fundamentalistas. Se, an-
(David and Bathsheba – 1951), Quo Vadis (1951), O manto tes desse episódio, os fundamentalistas se consideravam
sagrado (The robe – 1953), Salomé (1953), Os Dez Manda- reformadores da cultura norte-americana, após 1925 passa-
mentos (The Ten Commandments – 1956), Ben-Hur (1959), ram a se considerar marginalizados, lutando contra uma cul-
Spartacus (1960), dentre outros. tura secular (MARTY, 1985; AMMERMAN, 1998).
62 GÊNERO, FUNDAMENTALISMO E RELIGIÃO

rais dos anos 1940 e 1950 também se considera- Moore afirma que os fundamentalistas utilizaram
vam evangélicos ou novos evangélicos, por con- muitas estratégias criadas pelos liberais para com-
cordarem com as experiências e ensinamentos do petir no mercado cultural. Se no final do século
protestantismo norte-americano. O problema de XIX os liberais cristianizaram o entretenimento e
definição interna das Igrejas denominacionais tra- tornaram as atividades cristãs mais divertidas, os
dicionais residia na acomodação dos cristãos pe- fundamentalistas se reapropriaram dessas práticas
rante a próspera sociedade de consumo que se para atrair público. Evangelistas como Paul Rader
instaurou com o pós-guerra. e Charles Fuller fizeram isso, como visto acima.
De fato, os fundamentalistas “ sejam os radicais, Com Billy Graham não foi diferente, e mesmo entre
sejam os “moderados” “ ditaram mudanças na dinâ- pentecostais, como Oral Roberts e Rex Humbard,
mica religiosa dos Estados Unidos ao estabelecerem as lonas itinerantes profissionalizaram-se, ganhando
fronteiras, definições, estratégias e planos de ação multidões e espaços no rádio e na TV.
dentro e fora das Igrejas evangélicas. Marty e Em 1957, Billy Graham fez uma gigantesca cru-
Appleby (1993, p. 7) denominaram os funda- zada rumo a Nova York, tornando sua campanha um
mentalistas de boundary-setters “ definidores de fron- grande evento midiático, planejado com muita ante-
teiras. Sua visão de mundo ressignificou questões cedência e com resultados bem-sucedidos. Graham
cotidianas, políticas, econômicas e sociais à luz de elegeu Nova York como meta, pois seria um símbolo
uma batalha espiritual entre o bem e o mal em todas de conquista do norte descrente secularizado.
as instâncias da vida (ARMSTRONG, 2001, p. 11). Os fundamentalistas ofereciam um senso de
Ao definirem as fronteiras entre os bons e os pertencimento para pessoas que se sentiam desgar-
maus, conferiram um sentido missionário à sua radas com a intensa migração e com as mudanças na
existência: os salvos precisavam combater os males sociedade de consumo e trabalho norte-americana. A
da humanidade em nome de Deus, e trazer para elas Graham oferecia as respostas sobre os rumos
suas fileiras aqueles que ainda não conheciam o que os indivíduos podiam tomar em suas vidas e os
Evangelho. Foi o que Karen Armstrong (idem) de- rumos que os Estados Unidos podiam escolher para
finiu como religiosidade combativa: os funda- seu destino (MARTY, 1985, p. 410; NOLL, 2002, p.
mentalistas, sentindo-se ameaçados pelo secula- 104). Segundo Graham, Deus oferecia uma nova
rismo, contra-atacam a fim de ressacralizar a vida chance de avivamento em meio ao julgamento que
pública e a privada. Criam uma contracultura não- se seguiria à iminente volta de Cristo.
utópica, com o intento de proteger sua identidade e Graham e o fundador da NAE, Harold John
expandi-la para além das fronteiras infiéis, conquis- Ockenga, pretendiam conferir maior respeitabilida-
tando seus inimigos: “Enquanto lutavam por tempo de aos novos evangélicos, e criaram a revista
no rádio, os evangelicais tentaram corrigir o concei- Christianity Today em 1956. Um exemplo interes-
to errôneo de que o protestantismo era de um só sante de como os fundamentalistas utilizaram as
pensamento; não, havia ‘dois tipos distintos de pro- mesmas armas e estratégias antes adotadas pelos
testantismo na América’” (MARTY, 1985, p. 412). liberais, a CT foi inspirada na maior revista liberal
Ainda que muitas dessas lutas pelo acesso ao evangélica, a Christian Century, fundada em 1900,
rádio e por questões doutrinárias não despertassem que trazia artigos de teólogos e acadêmicos evan-
interesse na maioria dos evangélicos, os funda- gélicos, promovendo debates e estabelecendo agen-
mentalistas viam-se em conflito com a cultura das (FACKLER, 1995, p. 145): “Entendo que a
secular norte-americana. Eles não se enxergavam circulação da Christian Century está em declínio e
nos produtos de mídia e nos espaços de sociabili- que este é nosso momento oportuno para atacar”,
dade disponíveis e não aceitavam a forma como a escreveu o editor da revista, Carl Henry, em carta
religião vinha sendo abordada pelos liberais na a um ministro dos Discípulos de Cristo, James
grande mídia: “era tempo de cercar o inimigo com DeForest Munch (op. cit., p.146).
seus números superiores e derrotar os liberais em Os periódicos foram as primeiras publicações
seu próprio jogo” (MOORE, 1994, p. 244). religiosas de massa a circularem pelos Estados
63

Figura 5. Folheto de divulgação de outra cruzada em Pittsburg,


em outubro de 1952. Destaca-se a necessidade de um avivamen-
to (“Pray for revival” – Ore pelo reavivamento) e de se buscar Figura 6. Verso do mesmo folheto, divulgando outras ativida-
“armamento” espiritual (“Hunt Armory”). “There’s no other des de Graham, como o programa de TV e de rádio (Hora da
way” - não havia outro jeito senão recorrer a Deus. (Fonte: Decisão), treinamento e preparação para a campanha. (Fonte:
http://www.wheaton.edu/bgc/archives/exhibits/NYC57/ http://www.wheaton.edu/bgc/archives/exhibits/NYC57/
cover.html.) cover.html.)

Unidos desde o fim do século XVIII, tomando menosprezado, mal-representado – o cristianismo


grande impulso ao longo do século XIX. Foi o evangélico precisa de uma voz clara para falar com
caso da American Tract Society (Sociedade Ame- convicção e amor, e para atestar sua verdadeira
ricana de Tratados), que editava folhetos, posição e relevância para a crise mundial’”
almanaques, cartilhas e revistas para serem distri- (FACKLER, 1995, p. 145).
buídas por colportagem (de porta em porta). Mark A edição da revista foi dada a Carl Henry, teó-
Fackler (1995, p. xi-xvii) apontou que o mercado logo da Fuller Theological Seminary, enquanto que
de revistas diminuiu ao longo do século XX, ao o custeio das despesas foi financiado pelo magna-
passo que outros meios de informação e entreteni- ta do petróleo J. Howard Pew 8, pelo empresário
mento evangélicos surgiram. do ramo de calçados Maxey Jarman e pela Billy
Ao criar o periódico, Graham pretendeu criar Graham Evangelistic Association. Dessa forma,
um espaço de discussão acadêmica para os novos Christianity Today foi distribuída gratuitamente
evangélicos, além de permitir a expressão de opi-
niões, debates e ideais sobre comportamentos e 8
Esse novo fundamentalismo atraiu pessoas ricas, como Pew,
valores cristãos. Em seu primeiro número, os edi- pois era um tipo de fé que resistia às mudanças teológicas e
tores justificaram o porquê do título da revista: não questionava o capitalismo, ao contrário dos evangélicos
“Por que ‘Christianity Today’: ‘negligenciado, liberais naquela época (MARTY, 1985, p. 412).
64 GÊNERO, FUNDAMENTALISMO E RELIGIÃO

para cerca de 200 mil ministros, pastores e líderes Autoridade significava seguir as regras para
evangélicos até março de 1967, quando a revista preservar a harmonia da criação. Apesar das dife-
passou a ser cobrada. renças entre as Igrejas, a Bíblia ofereceria um
A idéia de se infiltrar na cultura norte-america- conjunto de questões sobre as quais todas deveri-
na para instilar os valores cristãos guiou a edição am concordar – o reconhecimento do pecado, a
da revista e serviu para unificar uma visão sobre a morte redentora de Cristo, a necessidade do arre-
identidade cultural que os evangélicos deveriam pendimento e do perdão dos pecados, a imortali-
assumir perante a sociedade. Ainda que não fosse dade da alma e os perigos da negligência espiritu-
tão arrivista quanto os críticos de Graham, al. Graham lembra seus leitores da missão dos
Christianity Today defendia a verdade perante o pregadores no mundo contemporâneo:
“mundo” decaído, conforme artigo de Graham na
primeira edição da revista, em 15 de outubro de Nós, ministros cristãos, temos a Palavra de Deus. Nosso
1956, intitulado “Biblical authority in evangelism” Comandante disse: “Vá, leve essa mensagem para um
(Autoridade bíblica no evangelismo). Nele Graham mundo moribundo!” […] Lembremo-nos de que estamos
afirma que, em meio a uma batalha espiritual pes- semeando a semente de Deus. Algumas sementes de
soal, havia descoberto o segredo que mudaria seu fato podem cair em caminhos batidos, e algumas entre
ministério: ele não precisaria provar para todos que espinhos, mas é nossa tarefa continuar semeando. Não
a Bíblia era verdadeira, e sim, que ela tinha auto- devemos parar de semear porque alguns dos solos não
ridade. Os trechos reproduzidos nesse artigo são parecem promissores. Estamos segurando uma luz, e
fontes primárias interessantes, que merecem ser devemos deixá-la brilhar. Embora possa parecer uma frá-
reproduzidas mais detidamente: gil vela em um mundo de trevas, é nossa tarefa deixá-la
brilhar (GRAHAM, 1956, p. 14)10.
A autoridade criou a fé. A fé gerou resposta, e centenas
de pessoas foram impelidas a ir para Cristo […] Desco- Segundo Zygmunt Bauman, o fundamentalismo
bri que não teria de confiar na inteligência, oratória, liberta o ser humano das angústias da escolha no
manipulação psicológica das multidões, ou em ilustrações mundo pós-moderno quando lhe oferece uma au-
apropriadas ou citações contundentes de homens famo- toridade suprema. Longe de ser uma irracio-
sos. Comecei a confiar cada vez mais nas próprias Escri- nalidade pré-moderna, o fundamentalismo apresen-
turas, e Deus abençoou. Estou convencido, por meio de ta-se como uma racionalidade alternativa para
minhas viagens e experiências, que pessoas de todo o resolver os problemas da sociedade pós-moderna
mundo estão famintas para ouvir a Palavra de Deus. (BAUMAN, 1998, p. 205-230).
Assim como o povo foi para um lugar deserto para ou- Sem dúvida, a autoridade de Deus, revelada na
vir João Batista proclamar “Assim disse o Senhor”, o Bíblia, é o valor máximo na pregação de Graham
homem moderno, em suas confusões, frustrações e em meados dos anos 1950, e é um dos valores
transtornos, virá para ouvir o ministro que prega para partilhados por outros pregadores evangélicos nes-
seu povo com autoridade (GRAHAM, 1956, p. 14) 9 . se contexto de pós-modernidade (AMMERMAN,
9
1998, p. 60). A autoridade bíblica é uma constante
“Authority created faith. Faith generated response, and hundreds
da tradição protestante, porém, a partir da segunda
of people were impelled to come to Christ […] I found that I did
not have to rely upon cleverness, oratory, psychological
manipulation of crowds, or apt illustrations or striking quotations 10
“We Christian ministers have the Word of God. Our
from famous men. I began to rely more and more upon Scripture Commander said, ‘Go, take this message to a dying world!’
itself, and God blessed. I am convinced, through my travels and […] Let us remember that we are sowing God’s seed. Some
experiences, that people all over the world are hungry to hear indeed may fall on beaten paths and some among thorns,
the Word of God. As the people came to a desert place to hear but it is our business to keep on sowing. We are not to stop
John the Baptist proclaim, ‘Thus saith the Lord,’ so modern sowing because some of the soil looks unpromising. We are
man in his confusions, frustrations, and bewilderments will holding a light, and we are to let it shine. Though it may
come to hear the minister who preaches to his people with seem but a twinkling candle in a world of blackness, it is our
authority” (GRAHAM, 1956, p. 14). business to let it shine” (GRAHAM, 1956, p. 14).
65

metade do século XX, ela se torna pedra de toque 3. Anos 1960-1970:


para os fundamentalistas ao apontar um caminho fundamentalistas vão ao paraíso
de certezas em um mundo de incertezas. Reto-
mando o sociólogo Stuart Hall, a cultura “não é Em 1960, a Federal Communications Commission
questão do que as tradições fazem por nós, mas extinguiu o horário gratuito para programas religio-
do que nós fazemos com as nossas tradições” sos. Desde finais da década de 1950 a tevê era um
(HALL, 2003, p. 44), e sob essa perspectiva po- veículo popular, e mais uma vez os liberais saíram
demos pensar em uma cultura fundamentalista em na frente para garantir seu espaço. Todas as gran-
formação nos Estados Unidos, organizando seus des emissoras reservavam um espaço para que a
símbolos e líderes, com a intenção de transformar recém-criada National Council of Churches in
a cultura norte-americana por meio de uma religi- Christ of USA (NCCCUSA – 1950) produzisse seus
osidade prática e uma atenção especial para as programas, por meio do Department of Broadcas-
questões familiares. ting and Film (Departamento de Rádio e Cinema).
Em 1958, Graham deu uma entrevista à Enquanto isso, pentecostais e fundamentalistas con-
Christianity Today e versou sobre o panorama tinuavam a comprar horários em emissoras indepen-
religioso da época, o papel dos cristãos na socie- dentes para fazer valer sua mensagem, tal como nos
dade e o destino do cristianismo, entre outros as- tempos do rádio.
suntos. Ainda que houvesse um crescimento de Porém, a suspensão do sustained-time deu um
freqüência religiosa, para ele a espiritualidade era novo impulso à mídia evangélica norte-americana.
superficial. Era necessário investir em uma sólida Como era muito mais rentável às emissoras de rádio
base espiritual, ancorada na autoridade bíblica, e e tevê venderem ou alugarem horários para Igrejas
havia muito a ser feito na Igreja cristã para que a e ministérios, os programas de Igrejas liberais per-
verdade fosse mostrada a todos. O prospecto não deram espaço por não serem competitivos ou por
era positivo, como acontece no discurso pré- não possuírem verba suficiente para sustentá-los.
milenarista fundamentalista: Moore (1994, p. 247-248) conclui que o fato de os
liberais terem feito uma reserva de mercado para
Bom, a tarefa da Igreja Cristã na proclamação do Evan- seus programas desde os anos 1920 cobrou-lhes
gelho não é necessariamente ganhar o mundo, mas um alto preço quarenta anos depois.
confrontá-lo com o Evangelho de Cristo e oferecer-lhe Pregadores fundamentalistas tinham desenvolvido
uma oportunidade para receber a Cristo ou rejeitá-lo. […] formatos atrativos e afinados com as demandas do
Penso que a Bíblia ensina o contrário [ao ser perguntado grande público, pois dependiam dele para financiar
se a Bíblia ensinava que no fim o mundo inteiro seria seu ministério. Com o fim do horário gratuito, au-
convertido]. As Escrituras dizem que o cálice de iniqüi- mentou significativamente o número de programas
dade tornar-se-á tão cheio que a única alternativa é o fundamentalistas e pentecostais no rádio e na tevê.
julgamento [final] (GRAHAM, 1958, p. 4) 11. Os ministérios de comunicação passaram a substi-
tuir lentamente os avivamentos e os institutos bíbli-
Os fundamentalistas, porém, experimentaram cos como centros “denominacionais” do movimento
um prestígio que os tornaram parte da cultura fundamentalista (AMMERMAN, 1998, p. 87).
americana que tanto os combateu. Outro fator que aumentou a força dos funda-
mentalistas foram os conflitos que marcaram a
11
“Well, the job of the Christian Church in the proclamation of sociedade norte-americana nos anos 1960. As lutas
the Gospel is not necessarily to win the world, but to confront por direitos civis, a Guerra do Vietnã, feminismo e
the world with the Gospel of Christ and to give the world an “hippismo” expuseram as contradições e os jogos
opportunity to receive or reject him […] I think the Bible
de poder vigentes nos Estados Unidos. Por conta
teaches the contrary [ao ser perguntado se a Bíblia ensinava
que no fim o mundo inteiro seria convertido]. The Scripture
da prosperidade financeira no sul dos Estados
says that the cup of inequity will become so filled that the only Unidos, houve uma grande migração de profissio-
alternative is judgement” (GRAHAM, 1958, p. 4). nais liberais e estudantes do Norte para o “Bible
66 GÊNERO, FUNDAMENTALISMO E RELIGIÃO

Belt” (o cinturão bíblico no Sul e Meio-Oeste mais com questões ecumênicas e com problemas
americanos) e o “Sun Belt” (cinturão bíblico mais sociais, também perderam dinheiro pelo envol-
jovem da Califórnia). Isso fez com que fundamen- vimento com os direitos civis. Os democratas que
talistas e conservadores evangélicos (em especial passaram a se preocupar com questões morais e
os batistas) recrudescessem a defesa de sua fé e com estilos de vida mudaram seu voto em favor
de seus costumes perante uma juventude seculari- do Partido Republicano. Muitos desses considera-
zada e liberada sexualmente. Não era somente uma vam a posição de suas Igrejas para tomar decisões
contra-reação de velhos crentes, mas também de políticas. Tradicionalmente, os fundamentalistas
jovens, que ficaram “doidos com Cristo” (Jesus pouco se envolviam com política de forma direta.
freaks), como atesta o Movimento de Jesus (Jesus Fazia parte do caráter separatista o apolitismo.
Movement) no final dos anos 1960, em que jo- Contudo, a partir do fim dos anos 1960, a situa-
vens adaptam símbolos hippies e psicodélicos para ção mudou dramaticamente.
viver em comunidade como os primeiros cristãos Uma questão que agregou politicamente muitos
(MCDANNELL, 1995, p. 246-256). evangélicos foi a proibição, em nível federal, da
As Igrejas mainline liberais do Norte perderam oração em escolas públicas, em 1963. Durante a
membresia ao darem maior ênfase às capacidades década de 1970, prospera entre evangélicos a idéia
humanas do que ao poder de Deus na vida huma- de que havia uma conspiração humanista e secu-
na, abraçando causas humanitárias e ecumênicas larista para minar a América cristã. Tim LaHaye diz
dentro e fora dos Estados Unidos. Já as Igrejas que que o “humanismo secular” é uma espécie de reli-
apostavam no poder sobrenatural de Deus, seja pela gião dos ateus e inimigos da fé cristã. Outra ques-
inerrância bíblica (fundamentalistas), seja pelo poder tão foi a aprovação do aborto na Suprema Corte
do Espírito Santo (como as Igrejas pentecostais e o norte-americana, em 1973, no caso Roe vs. Wade.
nascente movimento carismático)12, ganharam adep- Mas outras agendas estariam por vir.
tos ao determinar claramente os limites entre o Ao longo de trinta anos os fundamentalistas
“certo” e o “errado”, os bons e os maus, os salvos constituíram uma rica rede de escolas, meios de
e os que deviam ser salvos (NOLL, 2002, p. 107). comunicação, estilos de vida, artigos de consumo –
Isso se refletiu no missionarismo, pois até a pri- uma piedade própria por meio do mundo da educa-
meira metade do século XX boa parte das missões ção e do consumo (WHEELER, 1996, p. 292-295).
era mantida por Igrejas denominacionais ou associ- A tevê foi um poderoso meio para se arrecadar
ações missionárias liberais. Com a ascensão dos fundos para várias iniciativas – universidades, hos-
fundamentalistas e a perda de poder e dinheiro entre pitais, editoras, missões e até parques de diversão
as Igrejas liberais durante os anos 1950 e 1960, boa (como o Heritage USA, de Jim e Tammy Faye
parte das missões passou a ser comandada pelos Bakker). Porém, enquanto tinham grande repercus-
“novos” evangélicos, também denominados de “new são dentro de seu próprio espaço, os
mainline”, em contraposição à “velha” mainline – as fundamentalistas passavam despercebidos pela opi-
denominações tradicionais do Norte. nião pública da “outra” América. Essa situação tam-
Na mesma época, o Partido Democrata, com bém os motivou a buscar visibilidade e a romper o
tradicional base no Sul dos Estados Unidos, perdeu isolamento cultural. Por meio de colégios evangé-
muitos votos ao apoiar os direitos civis. Igrejas licos, que cresceram em seis vezes de 1965 a
liberais, que vinham se comprometendo cada vez 1983, e de homeschooling13, eles procuraram cons-
truir uma ambiente seguro e controlado, ao mesmo
12
O movimento carismático aconteceu em meados dos anos tempo em que delimitaram seu campo de batalha
1960 na Igreja Católica, em igrejas luteranas e episcopais, para conquistá-lo (AMMERMAN, 1998, p. 94-95).
destacando a ênfase nos dons do Espírito Santo no culto.
Diferentemente dos pentecostais, os carismáticos não rom- 13
Educação infanto-juvenil ministrada por pais ou responsá-
peram com suas Igrejas, mas promoveram avivamentos in- veis em casa, que vem sendo adotada por muitas famílias
ternos a Igrejas tradicionais e liberais (mainline – fundamentalistas que não querem seus filhos no ambiente
AMMERMAN, 1998, p. 58). escolar não-evangélico.
67

Em 1976, a revista semanal Newsweek declarou da Bíblia está sendo cada vez mais procurado com uma
que aquele era o ano dos evangélicos (“The Year of nova intensidade. […] Somente esses fatores atestam a
the Evangelical”). A revista Christianity Today ana- força evangélica e justificam a atenção da mídia. Além do
lisa alguns fatores que levaram a grande imprensa a mais, os evangélicos amadureceram e comunicam-se com
voltar seus olhos para os evangélicos. Enquanto maior eficiência. Não existe mais o hiato cultural existen-
celebridades (atletas, astros de TV, políticos) decla- te anos atrás. Os evangélicos estão presentes em todos
ravam-se cristãs (born-again, believers, Christians) círculos sociais e profissionais da nossa sociedade, ricos
nos anos 1970, a recuperação evangélica demorou e pobres, e há um terreno comum para comunicação
cinqüenta anos. Igrejas liberais e mainline perderam (grifos nossos, KUCHARSKY, 1976, p. 13) 15.
espaço e relevância teológica:
Primeiramente, ao afirmar a decadência do
Todos os esforços de arquitetos teólogos para remodelar mundo, do humanismo e a descrença no futuro,
a mensagem bíblica e adaptá-la às necessidades suposta- podemos nos lembrar de uma das figuras de Paul
mente especiais do homem moderno surtiram pouco efei- Rader, em que seu programa anunciava o Evange-
to. […] Para as pessoas comuns, a Cruz e a Ressurreição lho para “Um mundo moribundo” (A dying world).
parecem mais significativas do que nunca (KUCHARSKY, O pessimismo pré-milenarista pontua fortemente o
1976, p. 13)14. artigo sobre a ascensão dos evangélicos em 1976,
tal como surgiu no depoimento de Billy Graham
A idéia da constância e da autoridade suprema sobre o copo de iniqüidade transbordante.
eliminaria a relevância de alternativas autodeno- Em seguida, ao afirmar que não existia mais um
minadas cristãs. Além disso, encontramos ecos de hiato cultural entre evangélicos e o restante da so-
debates contemporâneos àquela época, como a ciedade, o autor quis dizer que os fundamentalistas
preocupação com questões ambientais e com es- não eram mais “caipiras” incrustados nos rincões do
cândalos como Watergate. Vale destacar esse ex- cinturão bíblico norte-americano, pois haviam se
tenso trecho abaixo sobre a nova fase que os qualificado por meio de suas universidades e con-
evangélicos estariam vivendo nos Estados Unidos. quistado posições no poder público e no mercado
Há muita semelhança entre essas idéias e o discur- de trabalho. Haviam se tornado mercado consumi-
so e a atuação correntes entre os evangélicos dor e estavam em todos os lugares da sociedade, o
fundamentalistas americanos dos anos 2000: que lhes permitia comunicar-se mais eficazmente
com a sociedade secular – portanto, havia um ter-
[…] Outro fator na ascensão dos evangélicos é a desilu-
são quanto à ciência e à tecnologia evidentes nos anos 15
“[…] Another factor in the rise of the evangelical is the
recentes. À medida que descobrimos mais e mais sobre
disillusionment about science and technology evident in recent
como, por meio da ignorância e da negligência, estamos years. As we find out more and more about how, through
poluindo não somente nosso meio ambiente, mas tam- ignorance and negligence, we are polluting not only our
bém nossos próprios corpos, muitos jovens e alguns environment but also our own bodies, many young people
mais velhos estão começando a sentir que a humanidade and some older ones are beginning to feel that humanity
cannot be trusted after all, and that outside help is needed
não merece confiança alguma, e que ajuda externa é
[…] Add to this the outrage about Watergate and other high-
necessária […] Acrescenta-se a isso o ultraje do [caso]
level improprieties and one can see why people are fed up
Watergate e outras altas impropriedades e pode-se ver with people, why humanism is on the verge of bankruptcy
por que as pessoas estão fartas umas das outras, por que and why the God of the Bible is being sought after with a
o humanismo está à beira da bancarrota e por que o Deus fresh intensity […] These factors alone attest to evangelical
strength and justify media attention. Moreover, evangelicals
14
“All efforts of theological architects to remodel the biblical have been maturing and are communicating more effectively.
message and adapt it to the supposedly special needs of There is not the cultural gap there was a few years ago.
modern man have counted little […] To the rank and file, the Evangelicals are present in all social and professional circles
Cross and the Resurrection seem more meaningful than ever” of our society, high as well as low, and there is more common
(KUCHARSKY 1976, p. 13). ground for communication” (KUCHARSKY, 1976, p. 13).
68 GÊNERO, FUNDAMENTALISMO E RELIGIÃO

reno comum. Com isso, a própria mídia evangélica No midiático mundo norte-americano, dificilmente
estava preparada para se comunicar com evangéli- encontraremos um pregador de um veículo só. À
cos e não-evangélicos de forma profissional, como moda de Aimeé S. McPherson, boa parte dos pre-
se viu no fortalecimento dos impérios de comunica- gadores evangélicos, independentemente de Igreja
ção dos televangelistas e na ampliação do mercado ou tendência, são polivalentes: possuem programas
consumidor de produtos evangélicos. A idéia do ter- de rádio e/ou tevê, publicam livros, fazem palestras,
reno comum significava que tanto os evangélicos conferências e cruzadas, editam revistas, gravam
souberam se aproximar da sociedade secular por audiobooks, gravam sermões, vendem produtos
meio da mídia e da educação, como a sociedade es- com sua grife, e atualmente, disponibilizam todos
taria se interessando aos poucos pela mensagem esses itens em sua página na internet.
cristã, dado o sentimento geral de desilusão e des- Dessa forma, evangelistas como Robertson,
confiança em relação à raça humana. Jerry Falwell (fundamentalista batista), Jim e
A afirmação mais contundente desse trecho é Tammy Fay Bakker (carismáticos), Jimmy
que as pessoas estavam fartas umas das outras; Swaggart (pentecostal), Paul e Jan Crouch
que o ser humano não era confiável e, por isso, (pentecostais, fundadores da Trinity Broadcasting
Deus seria procurado e Jesus seria mais bem acei- Network – TBN), entre tantos outros, representa-
to. O fundamentalismo aposta na certeza e na in- ram uma nova e mais visível força evangélica.
falibilidade de Deus e da Bíblia e, mesmo que não Em 1976 também aconteceu a eleição do presi-
se denominem como tais, os simpatizantes dessa dente Jimmy Carter, democrata, sulista e conver-
infalibilidade comungam da herança estabelecida tido (born-again). Líderes fundamentalistas enxer-
pelo fundamentalismo, que releu as certezas divinas gam uma concreta chance de mudar a nação ao
– presentes no cristianismo desde o seu início – à se verem com maior poder aquisitivo e com
luz do mundo pós-moderno: representatividade na mídia e na política – conso-
lidava-se a Direita Cristã.
É mais fácil do que nunca falar sobre o que o Senhor Sua agenda é variada: controle de porte de ar-
Jesus Cristo fez pelos seres humanos decaídos e sobre mas, condenação às drogas e à pornografia, veto
os princípios que ele estabeleceu para a ordem do mun- contra o ensino da evolução, instituição do ensino
do. Elas podem não estar prontas para acreditar [nesse do criacionismo, restabelecimento da oração em
discurso], mas muitas pessoas estão ao menos interessa- escolas públicas e veto ao aborto, são alguns dos
das em prestar atenção para o que é oferecido (idem)16. temas que agregaram debates entre evangélicos a
partir dos anos 1970 até os dias atuais. Contudo,
É mais fácil falar sobre Jesus Cristo, ainda mais o principal eixo que atraiu evangélicos de várias
se sua mensagem estiver bem apresentada e dispo- denominações e Igrejas foi o dos valores familia-
nível para o maior número de pessoas possível. res (family values). A família deveria ser protegida
Desde meados dos anos 1960, televangelistas con- para a sobrevivência da nação em tempos consi-
solidaram seu espaço como formadores de opinião. derados sombrios e incertos, tendo em vista a
Em 1960, o pentecostal Pat Robertson inaugurou reconfiguração dos modelos familiares, a liberdade
seu próprio canal de tevê, a Christian Broadcasting sexual feminina e a expansão de uma cultura jo-
Network, em um canal de UHF. Nos anos 1970 já vem contestadora e rebelde.
era um império de comunicações (LESAGE, 1998, O maior soldado era a mulher, que, segundo os
p. 21-49), com retransmissoras e horários com- evangélicos, deveria salvaguardar a família, o ca-
prados em diversos canais. samento e a criação dos filhos. Assim como no
século XIX, mulheres lideraram organizações para-
16
“It is easier than ever to talk about what the Lord Jesus eclesiásticas de caráter moralizante para defender
Christ has done for fallen human beings and about the
a manutenção dos papéis tradicionais de gênero,
principles he has set forth for order in the world. They may
not be ready to buy, but many people are at least willing to considerados permanentes e irrevogáveis desde a
look at what is offered” (idem, ibidem). criação do mundo. Beverly LaHay convocou as
69

mulheres cristãs a retomar seu papel de proteção fossem evangélicos. Os requisitos para se ter apoio
à família no livro “Who but a woman?” (Quem, da Moral Majority era compartilhar dos princípios
senão uma mulher? – DIAMOND, 1989). e valores morais defendidos pela organização e
Não era a primeira vez que a família era chamada demonstrar competência para o cargo em disputa.
para a linha de frente de batalha por Deus. No sé- Com isso ganhou aliados inusitados: as feministas
culo XIX, as cruzadas de temperança (contra o juntaram coro contra a pornografia; mórmons uni-
alcoolismo, a jogatina, o tabagismo e a prostituição), ram-se a ele contra a Emenda de Direitos Iguais; e
lideradas em boa parte por mulheres, conseguiram judeus foram buscar aliados para Israel. Dessa for-
unificar a opinião nacional em torno de questões ma, os fundamentalistas da Moral Majority entra-
morais quando não havia lideranças políticas que ram no jogo secular, seguindo regras seculares, a
conseguissem aglutinar a vontade das unidades fe- fim de constituir um campo moral em comum
derativas (DEBERG, 2000). Nos Estados Unidos, as com aliados. Isso rendeu a Falwell a antipatia de
questões morais sempre despertaram grande enga- fundamentalistas mais radicais, como Bob Jones, Jr.
jamento popular, em especial da parcela mais religi- Porém, Falwell justificou-se, apelando para o ímpe-
osa. Apesar de a constituição federal garantir, em to missionário: como os Estados Unidos poderiam
sua primeira emenda, a separação entre Igreja e retomar seu Destino Manifesto se o país não fosse
Estado, muitos setores da população norte-america- comandado por ideais e políticas cristãs? Era neces-
na não separam a religião da política. sário, a seu ver, aliar avivamento espiritual à reno-
Se a educação infantil e juvenil já era prioridade vação política. Não eram os evangélicos que estavam
entre fundamentalistas, as questões do aborto e da se rendendo ao mundo – o mundo é que se rendia
união homossexual passaram a ter destaque no aos cristãos (AMMERMAN, 1998, p. 97-99).
discurso e no ativismo fundamentalista: “Para a Nessa arena política, inimigos de outrora, como
nação ser forte, suas famílias deveriam ser cons- pentecostais e fundamentalistas, apertavam as
tituídas conforme as regras divinas, que incluem a mãos. No espaço midiático, com algumas diferen-
chefia da família pelo homem e a disciplina física ças de abordagem teológicas, os televangelistas
dos filhos pelos pais […]” (AMMERMAN, 1998, defendiam a família, a moral, a diversão sadia,
p. 97-98). atacando feministas, gays, intelectuais
Além disso, as relações entre televangelistas e “secularistas”. Seus produtos podiam ser encontra-
política não se limitaram ao campo da moral. Sara dos em cadeias de lojas evangélicas, em que tudo
Diamond (1989) atesta que Robertson, Swaggart e se misturava.
os Bakker estiveram envolvidos no apoio financeiro As batalhas em torno de questões doutrinárias
a ações americanas em países latino-americanos no persistem, mas não ocupam o mesmo espaço que
“calor” da Guerra Fria, como a Nicarágua e a uma controvérsia fundamentalista-modernista. O que
Guatemala. Na América Central, esses evangelistas pesa desde os anos 1970 até os dias atuais é uma
conseguiram comprar grandes faixas de horário batalha ideológica para controlar a forma como a
nobre das televisões para transmitir seus progra- sociedade americana concebe seu passado e seu
mas. Além disso, em 1979 surge a Moral Majority futuro; e como os evangélicos podem exercer influ-
(Maioria Moral), uma coalizão liderada por Jerry ência cultural nas mais diversas instâncias sociais.
Falwell que visava unir diversas Igrejas em torno Com o envolvimento evangélico nas esferas pú-
de grupos de pressão e ativismo social. blica, política e cultural, houve uma mudança de
Sua mobilização era feita pelo uso da imprensa foco missionário – maior atenção vem sendo dada
escrita, boletins, seminários, ministérios televisivos à reforma coletiva do que à salvação individual. O
e radiofônicos, registro de eleitores nas Igrejas, pessimismo pré-milenarista que vimos no depoimen-
lobbies no Congresso e apoio a candidatos para to de Billy Graham em 1958 deu lugar a um otimis-
eleições. Falwell, contudo, entrou em um terreno mo semelhante ao pós-milenarismo dos moralistas
perigoso para qualquer líder religioso: uniu-se a do século XIX. Porém, os fundamentalistas não
adversários. Ele não dispensou aliados que não deixaram de ser pré-milenaristas, e sim passaram a
70 GÊNERO, FUNDAMENTALISMO E RELIGIÃO

considerá-lo irrelevante para o envolvimento político outras opções de vida. O ativismo e o espírito
(AMMERMAN, 1998, p. 99). combativo dos fundamentalistas lembram outra
Marty considera que os acontecimentos religio- afirmação de Marty: “Conservadores são pessoas
sos nos anos 1960 e 1970 marcam uma tendência muito ocupadas. A escolha de permanecer em uma
de retorno às origens para diversas tradições: tradição é extenuante” (Idem, p. 431).
Para Sara Diamond (1998), o segredo da longe-
Os anos 1960 e 1970 permaneceram como anos de ação vidade da Direita Cristã e dos grupos evangélicos
pública, de tentativas de mudar o mundo exterior. Po- conservadores e dos fundamentalistas nos Estados
rém, por meio disso tudo, cidadãos sensíveis, jovens e Unidos deve-se não à mobilização política realizada
velhos, combinaram a vida de ação com a jornada interi- pelo Partido Republicano, mas justamente pelo
or. […] Eles queriam voltar: para a natureza, para os fato de esses grupos possuírem uma cultura pró-
primitivos, para os índios norte-americanos, para a auto- pria que se sustenta por organismos para-
ridade católica, para a África, para a Bíblia, para a antiga eclesiásticos. Escândalos de televangelistas, como
família da religião dos velhos tempos, para a experiência Jim Bakker e Jimmy Swaggart, no final dos anos
de nascer de novo, e mesmo voltar espiritualmente para 1980, não abalam as estruturas socioculturais que
o continente asiático de onde a peregrinação para a irrigam a vida de muitos evangélicos norte-ameri-
América começara dezenas de milhares de anos atrás 17 canos. O fato de eles se voltarem para os valores
(grifo nosso, MARTY, 1985, p. 437). familiares nos anos 1960 e 1970 foi decisivo para
que dessem vazão à sua agenda e fomentassem
A imagem da peregrinação compôs o livro de suas alianças.
Marty (Pilgrims in their own land – Peregrinos em Nos anos 1960 e 1970 intensifica-se o uso da
sua própria terra) e tangencia a discussão sobre mídia não somente para evangelização direta, mas
religião e pós-modernidade, em que a desregula- também para a produção de alternativas de entrete-
mentação e a autonomia dão a tônica na constru- nimento para a família, e em especial para as crian-
ção de identidades religiosas na atualidade ças, consideradas as maiores vítimas do “bombar-
(HEELAS, 1998). Ainda que esses cidadãos sensí- deio” da cultura secular de consumo. O ministério
veis tenham escolhido a retomada de uma matriz “Focus on the Family” (Foco na Família), fundado
religiosa, fizeram-no sob os termos pós-modernos, pelo psicólogo Dr. James Dobson, é um grande
a fim de responder a questões pós-modernas, expoente desta tendência. Dobson ganhou popula-
como o sentimento de abandono individual, a an- ridade ao vender em fita de VHS suas palestras de
gústia do consumo e da escolha, a complexidade aconselhamento marital e familiar e, posteriormente,
das relações sociais, culturais e afetivas. diversificar a produção de mídia para a família,
Embora o fundamentalismo lance mão da idéia de como os desenhos animados Eu e McGee, Aventu-
uma autoridade suprema que alivia a angústia das ras em Odisséia e a edição audiovisual da famosa
escolhas, ela é uma religião pós-moderna por ser obra de C. S. Lewis, As crônicas de Nárnia.
orientada para a constante batalha individual para As guerras culturais que os fundamentalistas
continuar a ser cristão em uma sociedade plena de passaram a travar contra a alegada “sociedade
secular” abriram novas oportunidades de uso da
17
“The sixties and seventies remained years of public action, of mídia. Percebendo a atração exercida sobre as
attempts to change the exterior world. But through it all, crianças e adolescentes pelos formatos seculares
sensitive citizens, young and old, combined the life of action de entretenimento midiático, como o desenho ani-
with the interior journey […] They wanted to go back: to mado, videogames e bandas musicais, alguns pro-
nature, to the primitives, to the American Indians, to Catholic dutores evangélicos passaram a produzir sua ver-
authority, to Africa, to the Bible, to the old family album of
são cristã de desenhos, videogames e rock. Nos
old-time religion, to the experience of being born again, and
even back spiritually to the Asian continent from which the anos 1980 e 1990 a indústria de entretenimento
pilgrimage to America began tens of thousands of years cristão profissionalizou-se, oferecendo inúmeras
before” (MARTY, 1985, p. 437). opções de estilos de vida cristão por meio do
71

consumo de uma mídia “segura” e “sadia”, isto é, determinado pela Bíblia e estabelecido desde o iní-
livre de sexo, drogas e mensagens consideradas cio dos tempos (SILVA, 2006, p. 11-27).
negativas. A tendência não se restringiu aos funda-
mentalistas mais fechados, mas foi bastante usada Conclusão
pelos evangelicais, e diversos outros nichos protes-
tantes. Como em um grande supermercado no país Nosso texto discorreu sobre a relação entre o
mais capitalista do mundo, praticamente todos os protestantismo americano e o uso da mídia para
setores evangélicos possuem sua cultura midiática evangelização e instrução cultural. Observamos que
nos anos 2000 (HENDERSHOT, 2004). a batalha pelo acesso aos meios de comunicação foi
Basta conferir o catálogo on-line da maior um fator crucial para que os fundamentalistas se
revendedora de artigos evangélicos, a ChristianBook tornassem um grupo influente na sociedade norte-
(www.christianbook.com). Nela encontram-se ro- americana, superando as influências das Igrejas li-
mances, roupas (camisetas com desenhos e dizeres berais. O que, no início do rádio, foi uma medida
bíblicos, imitando tendências da moda jovem secu- desfavorável a fundamentalistas e pentecostais tor-
lar), músicas gospel, rock cristão, videogames, jo- nou-se o maior trunfo para o crescimento desses
gos de tabuleiro (Bibleopoly, imitação do Monopoly, grupos a partir dos anos 1950 e 1960.
conhecido como Banco Imobiliário), e a grande Por meio da mídia, principalmente os funda-
vedete da mídia cristã americana, o desenho anima- mentalistas mais moderados, auto-intitulados
do VeggieTales (Os Vegetais), cuja popularidade “evangelicais”, traçaram estratégias de reapro-
equivale à do personagem Smilingüido no Brasil. São ximação com a sociedade secular, tomando-lhe
vendidos, também, exemplares de Good, clean fun emprestados os formatos midiáticos mais popula-
– diversão boa e limpa, como diriam os norte-ame- res do entretenimento de massa para constituir uma
ricanos. Até livros de piadas “limpas” e histórias hu- cultura que fosse cristamente correta e agradável
morísticas são vendidos para entreter os cristãos à família. A guerra cultural entre fundamentalistas
(WRIGHT, 1985). e sociedade secular acirra-se com a criação da
Além de Os Vegetais, o Brasil traduz vários tí- Direita Cristã norte-americana nos anos 1970, que
tulos de aconselhamento para a vida cristã, alme- leva ao plano político os debates sobre casamento
jando principalmente a mulher e a família. Nos gay, aborto e feminismo. Mas, para além da polí-
anos 1950 e 1960 os escritores fundamentalistas tica, o que permite sustentar a cultura desse setor
questionavam se a mulher deveria assumir respon- evangélico é a indústria cultural protestante, que
sabilidades além das maritais e familiares, após tem sido exportada para todo o mundo desde os
uma grande ocupação de postos de trabalhos du- anos 1980, inclusive para o Brasil.
rante a Segunda Guerra Mundial. Já nos anos 1970 Assim, compreendemos não somente as matrizes
e 1980, a literatura mudou o foco – em que medi- das mídias evangélicas que aportaram no Brasil nos
da as responsabilidades da esfera pública devem anos 1950 – uma história que fica para outro artigo
ser equilibradas com as responsabilidades familia- – como entendemos a história da Direita Cristã
res (GALLAGHER, 2003). norte-americana em atividade até os dias atuais
Nesse campo das relações familiares e de gêne- como uma luta pelo controle da cultura nos Estados
ro, a realidade sobrepôs-se aos ideais evangélicos Unidos, tendo como grande bastião a família, a
dentro de famílias evangélicas, ainda que muitos criança e a preservação de papéis tradicionais de
casais afirmem acreditar na submissão feminina e gênero para assegurar a sobrevivência da instituição
na autoridade do marido como cabeça do casal. familiar de modelo heterossexual e nuclear.
“Na prática, a teoria é outra…” Mas as aflições Para encerrar, deixaremos um desafio: seguindo o
femininas quanto ao acúmulo de funções dentro e exemplo da historiadora Eliane Moura da Silva e da
fora de casa não deixam de alimentar uma série de socióloga Sandra Duarte de Souza (2006) é impor-
livros que aconselham como a mulher não deve tante ampliarmos os estudos sobre a recepção desses
perder de vista o propósito de Deus para sua vida, discursos no Brasil, comparando com as repercus-
72 GÊNERO, FUNDAMENTALISMO E RELIGIÃO

sões que eles possuem em seu local de origem. Em HANGEN, Tona. J. Redeeming the dial: radio, religion and
meio às traduções para o português de conselhos popular culture in America. Chapel Hill: University of
North Carolina Press, 2002.
pensados para uma realidade norte-americana, o que
HEELAS, Paul. (ed.) Religion, modernity and postmodernity.
apreendem os brasileiros – e em especial as brasileiras Oxford: Blackwell Publishers, 1998.
– desta herança fundamentalista americana? HENDERSHOT, Heather. Shaking the world for Jesus:
media and conservative evangelical culture. Chicago/
Referências London: University of Chicago Press, 2004.
HOOVER, Stewart. Religion in the news: faith and
AMMERMAN, Nancy. North American Protestant journalism in American public discourse. Thousand Oaks:
Fundamentalism. In: KINTZ, Linda & LESAGE, Julia Sage Publications, 1998.
(eds.). Media, culture, and the religious right. Minneapolis/ KUCHARSKY, David. ’76 – The Year of the Evangelical.
London: University of Minnesota Press, 1998. p. 55-113. Christianity Today. Carol Stream (Illinois), Christianity
ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o Today International, p. 12-13, Oct. 22, 1976.
fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no LESAGE, Julia. Christian Media. In: KINTZ, Linda &
islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. LESAGE, Julia (eds.). Media, culture, and the religious
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. right. Minneapolis/London: University of Minnesota Press,
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 1998. p. 21-49.
CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado. MARSDEN, George. Fundamentalism and American
Petrópolis/São Paulo/São Bernardo do Campo: Vozes/ Culture. 2. ed., New York: Oxford University Press, 2006.
Simpósio/Umesp, 1997. MARTY, Martin E. & APPLEBY, R. Scott (eds.).
DEBERG, Betty. Ungodly women – Gender and the first Fundamentalists and society; reclaiming the sciences, the
wave of American fundamentalism. Georgia: Mercener family, and education. (The Fundamentalist Project – v. 2).
University Press, 2000. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1993.
DIAMOND, Sara. Not by politics alone – the enduring _____. E. Pilgrims in their own land: 500 years of Religion
influence of the Christian Right. New York/London: The in America. New York/London: Penguin Books, 1985.
Guilford Press, 1998. McDANNELL, Colleen. Material Christianity, religion and
______. Spiritual Warfare: the politics of the Christian popular culture in America. New Haven: Yale University
Right. Boston: South End Press, 1989. Press, 1995.
FACKLER, P. M. & Lippy, C. H. (eds.). Popular religious MOORE, R. Laurence. Selling God in the marketplace of
magazines of the United States. Westport (Connecticut): culture. New York/Oxford: Oxford University Press, 1994.
Greenwood Press, 1995. NOLL, Marc A. The work we have to do: a history of
GALLAGHER, Sally K. Evangelical identity & gendered Protestants in America. New York/Oxford: Oxford
family life. New Brunswick/New Jersey/London: Rutgers University Press, 2002.
University Press, 2003. SILVA, Eliane Moura da. Fundamentalismo evangélico e
GRAHAM, Billy. Biblical authority in evangelism. questões de gênero: em busca de perguntas. In: SOUZA,
Christianity Today, Carol Stream (Ill.), Christianity Today Sandra Duarte de. (org.). Gênero e religião no Brasil: en-
International, p. 14-16, Oct. 22, 1976. saios feministas. São Bernardo do Campo: Umesp, 2006. p.
______. BILLY Graham speaks: The Evangelical World 11-27.
Prospect – Exclusive interview. Christianity Today, Carol WHEELER, Barbara G. You who were far off: religious
Stream (Illinois), Christianity Today International, p. 3-5, divisions and the role of religious research. Review of
Oct. 13, 1958. Religious Research. v. 32, n. 4, p. 289-301, Jun. 1996.
HALL, Stuart. Pensando a diáspora: reflexões sobre a terra WRIGHT, Rusty & RANEY, Linda. 500 clean jokes and
no exterior. In: SOVIK, Lia (org.). Da diáspora: identidades humorous stories and how to tell them. Uhrichsville-Ohio:
e mediações culturais. Belo Horizonte/Brasília: UFMG/ Barbour Publishing, 1985.
Unesco, 2003.

You might also like