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Constiruinte e Democracia no Brasil Hoje Emit Sader (org.) Diteitos Civs no Brasil, Existem? Helio Bicudo Direitos Humanos Leah Levin (UNESCO) Diteitos Humanos vol. Le2 vitios aueoces Educagio, Estado © Poder Fabio K. Comparato ‘Muda Beas bio K. Comparato Sociedade e Estado na Filosofia Politica Moderna Norberto Bobbio/M. Bovero Colegio Primeitos Passos O que é Dialétiea Leandro Konder O que € Diteito Robetto Lira Filho (0 que so Diteitos da Pessoa Dalmo de Abreu Dalla © que & Participacto Politica Dalmo de Abreu Dallasi © que € Poder Gerard Lebrun FABIO KONDER COMPARATO PARA VIVER A DEMOCRACIA editora brasiliense Sumario Introducéo « 9 Primeira parte © DIREITO A DIGNIDADE Liberdades formais ¢ liberdades reais . 15 ‘Aeatraneidade dos dititos humanos na América Latina raabes e solucdes 38 (Os problemas fundamentais da sociedade brasileira ¢ 08 direitos humanos .... et 44 Segunda parte GOVERNO DO POVO, PELO POVO E PARA O POVO? Por que néo a soberania dos pobres? : 61 Planejar o desenvolvimento: a perspectiva institucional .. 83 A patticipagdo popular no exercicio das funodes pablicas 124 Tocando no ponto nevrilgico: a democratizagio da infor- magao e da comunicagio social : 137 Novas fungdes judiciais do Estado moderno .... 147 ‘A funcdo social do advogado 7 seees 163 Introducao Terceira parte A SEGURANCA COMO VALOR DEMOCRATICO Seguranga ¢ democracia : 17 Democratizar a seguranga .......cee esse veseees 198 © denominador comum de todos os escritos zeunidos neste livro & a democracia. Agora e sempre, 6 preciso © cerne da idéia democrética encontrase, classicamente, na soberania do povo, entendida como expressio de vontade me- joritéria, Mas esse principio sofreu, no decorrer da Historia moderna, dois temperamentos essenciais. Em_primeiro lugar, pessou-se s compreender, a partir do sfculo XVIII, que a yontade da maioria néo tem lezitimidade ara Violar os atributos essenciais de pessoa humana, expres. ‘SOE Gin direitos comuns a todos, independeniemente das dife. Tenoas de sexo, taca ou condico social. Os ensaios da primeira parte deste livro tém por objeto compreender, em sua unidade essencial, a variedade crescente dos direitos humanos, como fator de transformagio social, Em segundo lugar, @ idéia de soberania popular, hoj de ser reanzlisada, em funcao da enorme complexidade das relagGes sociais, provocada pela concentracio do fator tecno- ligico. Vamos, aos poucos, nos dando conta de que, em meio as alteracies fundamentais do modo de vida em sociedade, 10 PARA VIVER A DEMOCRACIA causadas pela cletrGnica, a informatica ¢ 2 biotecnologia, a Vontade da maioria nem sempre 0 guia mais seguro para @ corientagdo do poder piblico. De onde, mesmo (e sobretudo) em paises subdesenvolvides, a redescoberta da politica como séenica e ética de governo, altamente competente e responsével. ‘As reflexes reunidas na segunda parte do livro, aparente- mente contraditérias, sfo ne verdade substancialmente dialé- ticas. A participaso popular no exereicio das funcdes pablicas ¢ apresentada como élemento indispensdvel 20 permanente con- ‘role dos agentes estatais, de modo a impedic @ natural tendén- ‘cia 2 loucura de todo poder. Mas, por outro lado, a racional io zaglo das polticas estatais € vista como instrumento necessé forma de plena realizacao Uma complementaridade dos opostos aparece, também, de modo semelbante, nos ensaios da terceita patte, dedicados & seguranga. Nao hé verdadeira democracia sem seguranca po- paler, como bem viram os constituintes revolucionétios fren ceses de 1793. Mas_a_transformacio_desse_valor-meio_em valor-fim_acarreta_2 imediata_supressdo das liberdades © 0 desaperecimento da convivéncia democratica Interrogando-se sobre a finalidade da associacto politica, Aristételes néo hesitou em responder que eta a felicidade geral, essa idéia simples que a civilizacéo do Ocidente iria esconder, com vergonha e desprezo, nos séculos seguintes. Em seu lugar, contra 0 mais profundo impulso da natureza humana, entro- nnizamos @ gléria, a riqueza ¢ até mesmo a negecéo desta vida, ‘em preparagdo para o Além. ‘Mas a felicidade — in escondé-lo — é um bem rarfssimo. Fiel a0 seu génio “realista”, o estagirita admite que é, afinal, no simples intuito de viver o menos mal_possfvel que os homens se-zefinem_e pecmanccem em sociedade. & sinal de que a vida presenta, em si mesma, um velor ético, € “algo de moralmente louvavel”, diz ele. “Vé-se, aliés, a maioria dos homens suportar muitos sofrimentos em seu amor apaixonado pela vida, como se esta contivesse em si uma certa serenidade e uma certa docura, pela sua propria natureza.” (Politica, 1278 b, 15-30) Se a organizacio politica , de fato, a principal conc social para o viver feliz, a democracia aparece, em nossos dias, INTRODUCAO 1 como © critério supremo de melhor organizacSo politica, Mas sua adogao oficial, nas cattas constitucionais, nao significa sua incorporacio definitiva & vida social. Montesquiew advertiu, com lucidez, que cada regime politico, para vigorar com esta- bilidade, exige uma educago preparaidrie especifica do povo. Possam as idéies aqui expostas contribuir, ainda que mini mamente, como preparacéo 20 desafio da vide democrética brasileira, no limiar do novo século. PRIMEIRA PARTE O DiREITO A DIGNIDADE “A dignidade do ser huwmano & inviolavel. Respeitd-la e protege-la € dever de todos os poderes pilblicos.” (Constituiglo da Reptblice Federal Alef, art. 1.°) Liberdades formais e liberdades reais* A distingio entre liberdades formais ¢ liberdedes reais ou smatoriais tem sido uma constante do pensamento politico, des- de 0 século passado. Reduzida & sta expresso mais simples, la diz respeito a0 fato de que toda ame site de dites viduais 1a Constituicgo, tanto os civis — como o direto de propriedade privada, ¢ cirelto 1 Mberdede de lo- comogao, & liberdade de express4o do pensamento, & liberdade de exercicio profissional — quento os politicas — dircito de Yotat ¢ ser volado — supiicm. para sua_existéncia efetiva 0 concurso de precondigées econdmicas e sociais bem definidas: alimentacdo, sade, instrugdo, rendimentos minimos garantidos.. Onde faltem, largamente, essas exigéncias preliminares, aque- les direitos constituira um Iuxo do qual apenas usufruem os beati possidentes. Dessa tese fundamental costumam ser extraidas certas pro- posigces politicas. Dizse, assim, que a primeira tarefa do Estado consiste justamente em assogurar a todos as liberdades * Reprodugdo parcial de tese apresentada pelo autor & VIIE Conferén- cia Nacional ds Ordem dos Advogados do Brasil, realizade em Manans, fem maio de 1980. 6 PARA VIVER A DEMOCRACIA reais de contetido econémico e social, vindo a seguir as liber- dades individuais, naturalmente, por acréscimo. Outros ainda, como sabido, propugnam, pela via revolucionéria, a tomada do Estado pela camada populacional privada de riqueza ¢ poder, suprimindo-se para todos as liberdades individuais du- rante um certo periode ditatorial, até o advento de um regime inteiramente novo na Hist6ria, em que “o livre desenvolvimen- to de cada um € a condiclo do livre desenvolvimento de todos”, Essa disting&o teGrica acabou, afinal, penetrando nos textos constitucionais. A partir da Constituigao mexicana de 1917 — anterior & propria Revolucio Russa — reconhece-se, ao lado das liberdades individuais proclamadas no movimento de in- dependéncia dos Estados Unidos ¢ nas declaragdes revolucio- arias francesas de fins do século XVIII, o dever juridico de se garantirem, 2 todos, condigdes econdmicas e sociais de uma vida digna. © objetivo da presente comunicacéo é duplo. Em ptimeito lugar, ensaiar uma revisto critica da distin¢0 entre liberdades reais e liberdades formais, tendo em viste alguns dados funda- mentais do presente histérico. Em segundo lugar, refletir sobre 0 caso brasileiro, & luz dessa reviséo critica, esbocando algumas sugesties de ordem prética Para tanto. porém, é preciso pertir, preliminarmente, de uma _da_origem filosSfica_das_idéies que Genealogia da distingdo entre liberdades formais ¢ Hiberdades reais As origens da distincao — que chega as raias de auténtica antinomia — remontam, como se sabe, & primeira fase do pen: samento_de Karl Marx, ditigido mais & erftica_da ideologie ‘bunguesa do que aos mecanismos de exploracdo econOmica cepitalismo. Por isso mesmo, a influéncia da filosofia alema ainda é, af, bem vistvel. A oposicio entre forma ¢ matéria, tal como a tomou Marx, -asmonta_a_Kent. Para este, a matéria (Stoff) € 0 dado ime- diato da sensagi0, sempre ordenado por uma forma (Form), LIBERDADES FORMAIS E LIBERDADES REAIS 17 que so as leis imanentes do entendimento (Verstand), produ- toras das categorias. No campo da filosofia moral,! Kent postula que os prinefpios préticos, isto €, proposicdes que comportam uma determinacao _ ‘geral da vontade, s6. se tornam leis. no sentido ético) quando a.condigae de sua aplicacao é objetiva, ou seja, vélida para a vontade.de_qualquer ser racional. Ore, etea condicio dhjetiva ste sua aplicacdo — contrariamente a0 que susteniave ope Caso contrario, isto €, tendo um fundamento meramente em- pirico, s6 poderia haver muiximas, que sé0 principios préticos de indole subjetiva, vélidos to-sé para o proprio sujeito que ‘os adota. Em consegiiéncia, os principios préticos que sup6em um ‘objeto ou matéria da faculdade de desejar, como determinante da vontade, so empiricos ¢ nfo podem fornecer leis préticas (dirigidas & vontade). Pelo fato de que o principio material de determinagdo s6 pode ser conhecido empiricamente pelo sujei- to, é impossivel transformé-lo em lei; pois esta, sendo objetiva, abarca, em todos os casos e para todos os seres racionais, 0 mesmo principio determinante da vontade. Se um ser racional deve conceber as suas méximas como leis préticas universais, conclui Kant, ele s6 pode concebé-las como principios que de- terminam a vontade, no pela matéria mas simplesmente pela forma. Repropondo a questo sob forma problematica, Kant se per- gunta, uma vez admitida a cxisténcia de uma vontade livre, qual seria a lei capaz de determinéla, necessariamente. E res ponde, observando que se a matéria da lei pratica s6 pode ser dada empiricamente, e se a vontade livre, enquanto indepen- dente das condigdes empiricas (ou seja, das condicSes que per- ‘tencem ao mundo dos sentidos), deve no entanto poder ser determinada, € preciso que uma vontade livre encontre, inde- pendentemente da matéria da lei, mas sempre na prépria lei, ‘um ptinefpio de determinaggo. Ora, além da matéria, o que hé 1. Tomames como exposigio de moral kantiona a Critica da Rasdo Prética, editada em 1788, trés anos apse Fundamentos da Metafsica dos Costumes, caja primeira parte 6 conssgrada a doutrina do Direito. 8 PARA VIVER A DEMOCRACIA ‘na lei € a sua forma. Por conseguinte, a forma legislativa € 0 ‘nico elemento capaz de fornecer um principio de determina- cdo da vontade livre. A vontade concebida como independente das condicées empiricas, portanto como yontade pura, deter- minada pela simples forma da lei, é a condicéo suprema da moralidade. E neste sentido que se deve entender a célebre “lei funda- mental da razdo pura prética”: “age de tel modo que a méxima da tua yontade possa sempre valer, ao mesmo tempo, como. principio dé_ume_legislacdo universal”. Com efeito, sendo a motivagao empirica ligada ao conteddo da norma ¢, como tal, a um principio meramente subjetivo, ela nao poderé nunca constituir a razo de sua validade universal. Nem mesmo a felicidade pode ser erigida em principio de- terminante da yontade, para o reconhecimento de uma lei éti universal. Kant expressa af, em forma filoséfica, um dos tragos mais salientes da morel protestante. Sem diivida, tinha ele pre: sente ao espirito a idéia proclamada pouco antes come yerdade. auto-evidente, na DeclaracZo de Independéncia dos Estados Unidos, de que todos os homens so dotados pelo Criador de um certo mimero de direitos inalienéveis, entre os quais the pursuit of happiness; ¢ “que para assegurar esses direitos, os governos so instituidos entre os homens, tirando seus poderes justos do consentimento dos governados; e que toda vez que uma forma de governo se torna destrutiva dessas finalidades, ‘h4 um direito do povo de alteré-la ou aboli-la, instituindo um governo novo, que se fundamente nesses principios e organize seus poderes da forma que parega a todos mais adequada para a realizagdo de sua Seguranca ¢ Felicidade”. Mas essas verda- des “auto-evidentes” nao pareciam muito difundidas na civi- lizagdo européia do século XVIII, admitindo-se que Seint-Just tinha rezio eo exclamar, em plena Convention Nationale, que le bonheur est une idée neuve en Europe. Kent, porém, nio se deixe minimamente convencer pot essa retérica. Para ele, o principio da felicidade pode, quando mui- to, fornecer méximes, mes nenhuma delas terd condigdes de se alcar ao nivel de lei da vontade, mesmo considerando-se a chamada felicidade geral. Pois se o conhecimento desta dltima repousa, afinal, sobre puros dados de experiéncia, € se 0 jufzo LIBERDADES FORMAIS F LIBERDADES REAIS 19 de cada sujeito sobre esse ponto depende de sua opinido, que € essencialmente mutavel, poder-se-, sem duvida, tirar regres gerais do prinefpio da felicidade, mas nunca regras universais, isto 6, regras que sio néo apenas freqllentemente exatas, mas sempre € necessariamente vélidas. E bem verdade, reconhece Kant, que dessa distingio entre © principio da felicidade ¢ o principio da moralidade nao se segue uma oposigao entre eles. Mas & justamente nesse tempe- ramento trazido a0 caréter um tanto abrupto de sua critica ao principio da felicidade que o grande filésofo de Koenigsberg, rovela, indisfarsavelmente, a mentalldade clfasion do Darevts protestants, que Max Weber apontou como Tator genético do capitalismo. A razio pura prética, escreveu Kant, néo impoe uma rendncia a toda pretensdo & felicidade, mas apenas que, em se tratando de dever, nao seja ela tomada em consideracao. “Pode mesmo ser um dever, em certas circunstincias, cuidar de sua felicidade: de um lado, porque a felicidade (& qual se ligam a habilidade, a satide. a riqueza) fornece os meios para ‘cumprir 0 dever; de outro lado, porque # privacdo da felicidade (por exemplo, a pobreza) traz consigo as tentagdes de violar 0 dever”. al kan area, pol nas uma dik se cls mat alt -meng une opis xe entre matéria © forma, O “material” (stofflich), com as cono-] tacdes de empitico e subjetivo, € sempre desvalorizado em relago ao formal, isto é, o abstrato e universal J Nao € dificil reconhecer nesse pensamento algumas caracte- risticas contrétias & mentalidede contermporanes, caracteristicas essas, de resto, contra as quais Marx divigiré algumas de suas criticas mais contundentes. Assim 6, em primeiro lugar, desse primado do homem abstrato ¢ universal, néo situado cultural- mente, 0 reino do individuo sem hist6ria nem espago geogré fico. Foi contra esse abstracionismo conceitual, to caracteris- _ tico dos pensadores europeus do século XVITI em particular, que investiu desde logo a jovem Marx, fundada no bistoricism ‘hegeliano. Mas por uma ironia da Histéria, justamente, essa critica radical acabou sendo superada — no sentido dislético — pelo naturalismo abstrato e universal do mito comunista. 2 PARA VIVER A DEMOCRACIA Além disso, a moral kantiana manifesta um desprezo com- pleto pela eficiéncia, pelo valor da ie como regia de .sondista tice: e isso justamente no limiar da civilizagao pro- dutivista, que Saint-Simon anunciou como evangelho terreno, € que Marx e Engels — como, aliés, todos 0s positivisies do séoulo_passado — exallaram. Pode-se, mesmo, dizer que 0 antiutilitarismo Kantiano, jé 20 nascer, punha-se em choque com a intexpretagao tecnicista do “progresso”, explicitada na Enciclopédia, uma das obras centrais do século XVIII europeu, Finalmente, a moral de Kant € essencialmente racionalista, concebendo o homem, acima de tudo, como animal rationale, @ procurando telegar a trevas exteriores do universo ético to- dos os sentimentos, paixdes, emogdes e devancios; ou seja, a maior parte da motivacao das agées humanas. Ora, esse racio- nalismo, tio proprio de uma certa tradicio protestante, © que formou a mais sélide matriz cultural do capitalismo, parece hoje fundamente abalado. Nesse particular, 0 marxismo néo se coloca em oposigao frontal & moral Kantiana, pois embora criticando severamente o farisafsmo dessa concepgao abstrata, Marx © Engels, como homens do seu tempo, pagaram um pe- sado tributo ao espirito cientificista. Pode-se dizer que 0 itra- cionslismo contempordneo, ao revolucionar a concepedo ética do homem comum, esté minendo as bases culturais tanto do capitalismo quanto do marxismo. © advento do chamado idealismo aleméo — subjetivo com Fichte, objetivo com Schelling e absoluto com Hegel, segundo 8 epitetos usuais — nfo superou esse abstrecionismo da mora Kantiana, esse valorizacio de forma em relacdo & matéria, Ao contrério, reforgou-a, Vale recordar, nesse particular, que 0 proprio Kant batizou 2 sua concepcao epistemolégica, segundo @ qual tempo ¢ espago nao so coisas em si, mas formas sen siveis de nossa intuigio das coisas, como “idealismo transcen- dental”; em oposicéo 20 “idealismo empfrico”, que declera duvidosa ou indemonstrével 2 existéncia dos objetos no espego. Na segunda edicdo da Critica de Rezo Pura, porém, preferia significativamente caractetizat a sua concepc&0 como idealismno formal ¢ a outra como idealismo material. Q anticlimax dese formalismo ebstrato, travestido em idea Jismo_absoluto, aparece na critica. social marxista LIBERDADES FORMAIS E LIBERDADES REAIS 21 A dentincia do caréter farisaico da moral burguesa ¢ do direito burgués € feita por Marx logo em seus primeiros eser tos, tomando como alvo 0 pensamento de Hegel sobre o Estado. A critica marxiste inverte, nitic a relagio de val ire os bindmios da flosofia Kantiana: 0 formel ¢ desvalorizado ‘em rel ‘bstrato em relacéo 20 empirico ou terial, conereto. A moral burguesa € acuseda de impostura, 20 pro- curar esconder, com a exaltacdo dos valores da forma, de absiracio ou do elemento objetivo, o estado de exploracio € miséria da realidade histérica, as injustigas concretas face as abstracées legais, a falsa objetividade des relagGes econdmicas fundadas no valor de troca como institucionalizacao da domi- nag do homem sobre o homer. abstracio formal cexemplo, © jegel) Marx observa que ““o conietido concreto ¢ as detertinagdes reais (do Estado, em Hegel) apresentam-se como formais; a definigéo inteiramente abstrata, formal, apresentase como 0 contetido concreto. A esséncia das caracterfsticas determinantes do Es- tado no € 0 fato de elas serem caracteristicas determinantes 2 Servirso-nos, para consulta, do texto de K. Marx ce 1843-1844 Zur Krik der Hegelschen Rechtsphiiosophie, na eligio de Grundlinien der Philosophie des Rechis, de Hegel, por Helmut Reichelt (Uistein Buch, Frankfurt, Berlim e Viena), 1972. 3, "Que 0 Estado seja 0 interesse universal enquanto tal, por isso, @ ‘manvtencSo dos interesses partieulares como substincia (desse interesse universel) constitu 1.°) sua realidade absirata ou sua substancialidade, ras cla € 2.°) sua necossidade, ne medids om que sla so divide, segundo cs diferentes aspectos conceituais de sua atividade, os quais, através, dessa subetancialidade, io, do mesmo modo, determinagdes’efetivas, firmes, de poderes; 3°) mas essa substancialidade & justamente, 0 Espirito que se conhece © se quer, tal como se desenvolveu através da forma da cultura (‘diese Substantialitt ist aber der als durch die Form er Bildung hindurchgegangne sfch wissende und wollende Geist’). Eis por que o Estado sabe o que quer e sebe-o em sua universalidade, come colsa pensada (als Cedackies). Ele age © opera em funcio de objetivos conssientes, de principios conhecidos e segundo leis que 10 txistem apenas em si, mas pars a conscigncia; e, do mesmo modo, no feaeo em que suas agdes s relacionem com circunstincias e stuagGes d terminadas, ele age de acordo com a consciéncia que tem desses datlos.” 2 PARA VIVER A DEMOCRACIA LIBERDADES FORMAIS E LIBERDADES REAIS 23 do Estado, mas o de eles poderem ser vistas em sua forma mais abstrata, como determinagdes légico-metafisicas”. E con- clui: “O verdadeiro interesse de Hegel nfo € a filosofia do direito, mas a l6gica. A tarefa da filosofia néo 6 fazer com que © pensamento se encarne em determinacSes politicas, mas vo- latilizar as determinagdes poltticas existentes em idéias abstia- tas. © objeto da filosofia nao é a légice das coisas, mas as coises da légica, A légica ndo fornece prova do Estado, mas © Estado fornece a prova da I6gica’”. Em outra passagem de sua critica a Hegel, comentando lon- gamente 0 § 301 da mesma obra observa Marx: “A liberdade subjetiva € puramente formal para Hegel, pois ele se recusa a considerar « liberdade objetiva como a realizacio, a efetivacéo da liberdade subjetiva (muito embora seja, obviamente, impor- tante que a acdo livre se execute livremente, que a liberdade nao atue como uma espécie de instinto natural inconscionte da sociedade), Pelo faio de haver atribuido 0 contetdo zeal ou presumido da liberdade a um titular mistico (mystisehen Triger — 0 Estado), 0 sujeito efetivo da liberdade tem um sentido formal”. Na verdade, prossegue Marx, “nos Estados modernos, tal como na ‘Filosofia do Direito’ de Hegel, a realidade cons- ciente, verdadeita, do interesse geral € meramente formal; em outras palavras, somente o que & formal constitui assunto de efetivo interesse geral. Hegel néo deve ser censurado pelo fato de descrever o Estado moderno como ele é, mas por identificar (© que existe com a esséncia do Estado. Que o racional seja real € contratiado pela reelidade irracional que, em todos os pon: tes, €@ opeto do que ese sentence ame efinna 0 oposta lo que ela 6”. A critica do abstracionismo na sociedade burguesa foi uma cnstante na obra de Marx. Mas enguanto na primeira fase de seu pensamento a preocupacdo é a desmistificacdo do universo politic, na etapa desradeire 0 Engulode_ visto. focalize,_pre- EO clomento estamentl (die stondoche Elemen) carcteisase Delo ato dee or ast de intro url nfo vim a ein apenas fa np (ch arth sondern ah ath, io 4 sonscnca pica enguantofotaldade empice, dat opines © pensamentos da multidéo (vem a existir).” = fferencialmente, as relagdes econdmicas. Assim como 0 desdo- ‘ramento da liberdade cm formal e real representa uma ilusdo perversa, assim também a duplicagéo do valor econémico em valor de uso e valor de troca exprime a propria estrutura do processo de exploragdo econémica. A liberdade formal — sbs- trata e universal — € 0 simbolo da elienagéo politica da classe dominada em proveito da classe dominante; enquanto a obje- ago da coisa em mereadoria, a transformacao do valor de uuso em valor de troea, pelo processo de diviséo do trabalho, corresponde & alienaggo econémica do trabalhador — que © verdadeito criador de valor — em proveito do capitalista ‘Num pequeno estudo sobre “a forma do valor”, escrito du- ante a impressio do primeiro volume de O Capital ¢ a seguir refundido numa das secgSes do capitulo 1.° dessa obra,’,Mare ddenuncia o processo de inversio, préprio da légica hegeliens, consis 0 sujeito no predicado ¢ vice-versa. "Essa inversao”, diz ele, “em que o sensitivo-conereto aparece apenas como uma hipéstase do abstrato-universal, ao invés de abstrato-universal ser uma propriedade do conereto, caracte- riza a expressao de valor. AO mesmo tempo, & essa inversio que dificulta a compreensio da expresso de valor. Se digo: 0 direito romano ¢ 0 direito alemao so, ambos, sistemas de Bieito, afftmo o Sbvio. Mas se digo? Direifo, enquanto abstr ‘Glo, € realizado no direito romano e no direito alemao, que S40 sistemas juridicos concretos, entio a relacdo € mistica’ Marx emprega, propositalmente, 0 vocabulério religioso, pore que, a seu ver, esse processo de inversio légica nada mais é do que o produto intelectual do fendmeno de alienagao, tipico da mentalidade religiosa. Nesse mesmo capitulo 1° de O Ca pital, discorendo sobre caréter feiticista da mercadoria, no universo capitalista, declara: “O_ mundo religioso nao € senfo ‘o reflex do mundo real. Uma sociedade em que @ produto do trabalho toma, geralmente, a forma de mercadoria, ¢ onde, por conseguinte, a relacio mais geral ontre os produtores consiste em comparér os valores de seus produtos, ¢, sob esse invélucro_ 5. Sem termos tido acesso ao original alemo, louvamo-ncs em eitesfo feite por Lucio Collett, em Karl Marx Early Writings, inteoduséo, Penguin Books, 1° ed, reestampa, 1977, p. 39. cy PARA VIVER A DEMOCRACIA comparar uns aos outtos seus trabalhos particulares a titulo de trabalho humano igual, uma tal sociedade encontra no ctistianismo, com_o seu culto do homem abstrato, ¢ sobre tude_nos seus tipos buigueses — protestantismo, defamo, etc. 2-complemento religioso mais curial”’. A critica marxista a0 processo de abstragio, na sociedade burguesa, deve ser comparada, como veremos com mais vagar adiante, @ censura de alguns pensadores politicos ao abstra- ionismo dos revolucionétios franceses de 1789. Mas enquanto em Marx o sentido da critica era a dentincia da exploragio de classes dentro da sociedade civil, Burke ¢ Tocqueville, por exemplo, acusavam, no gosto geométrico das abstragtes, 0 to- talitarisio estatal nascente. Seja como for, a dentincia das abstractes do pensamento burgués corresponde, na critica marxista, & revelagao dos dua- Jismos infra-estrutura © superestrutura, de um lado, Estedo ¢ sociedade civil, de outro. “Néo discutais conosco”, declara desdenhosamente 0 Manifesto Comunista, “enquanto aplicar- des & aboligao de propriedade burguesa 0 critério de vossas nogdes burguesas de liberdade, culture, direito, etc. Vosees prOprias idéias decorrem do regime burgués de produgdo e de Propriedade burguesa, assim como vosso diteito ndo passa da ‘vontade de vossa classe erigida em lei, vontade cujo contesdo € determinado pelas condigdes materiais de vossa existéncia como classe”. Em qualquer circunstancia, como resfirmou Marx na critica 20 programa do Partido Operario Alemao (progra- mas aprovados nos congressos de Gotha e Erfuert), “‘o direito nao pode nunca elevarse acima do estado ccondmice da sptie- dade @'do grau de civilizacéo cue The corresponde”” E a razo disso estd no fato de que o Estado néo existe Per se, como realidade pneumitica, pairando acima da socie- dade civil, mas ¢ simples reflexo desta. “A abstrago do Estado enguanto tal”, observa Marx em sua critica & filosofia do di- reito de Hegel, “é uma caracteristica priméria do mundo mo- derno, porque a abstragao da vida privada é uma caracteristica priméria da era moderna. A abstragdo do Estado politico € um produto moderno. “Na Idade Média”, prossegue, “havia servos, propriedade feudal, corporagies de olicios, corporagdes esco. lésticas, etc. Ou seja, na Idade Média a propriedade, o comér- LIBERDADES FORMAIS E LIBERDADES REAIS. 25 cio, a sociedade e 0 homem eramn politicos; 0 contedido material do Estado era definido pela sua forma; cada esfere da atividade privada tinha um caréter politico, ou era uma esfera politi ca (...). Na Idade Média, @ constituigio politica ere a consti- tuiggo da propriedade privada, mas unicamente porque a constituicso da propriedade privada era uma constituig40 po- Iitica. Na Idade Média, a vida do povo era idéntice & vida do Estado. O homem era o verdadciro principio do Estado, mas um homem ndorivre. Daf haver uma democracia da ndo-liber- dade, 2 alienacio perfeita (die durchgefuehrte Entfremdung) A abstrata antitese reflexa disto € a caracteristica do mundo moderno. A Idade Média foi uma era de real dualismo; 0 mundo moderno & uma era de abstrato dualismo”. Na verdade, @ abstragdo da vida privada, na era moderna, resulta do fato de que © homem est separado do homem na sociedade civil. E essa separacio & bem marcada pela institu fo dos chamados direitos individueis. Em suas reflexdes sobre 2 “questio judaica’,* Marx previsa 0 sentido da sua rejeica0 das liberdades pablicas, tal como consagrades no direito po- sitivo. Bruno Bauer havia concitado os judeus @ abandonar os seus ““privilégios de f6”, a fim de poderem receber, em troca, 08 direitos humanos universais. Marx volte, pois, 0 gume de sua critica para essa nogo de direitos do homem e do cidadio, Comega lembrando que os direitos do cidadio diferem dos direitos do homem, em soa sentido universal, porque 0s “meiros sio direitos de participacdo politica, ou de interven ‘na esfera estatal; enquanto os segundos so apansgio de todos os homens, enquanto tals, independentemente de seu statis Hideo Ma eises Homers abstatos, que deren dor cdaiabe, ‘sdo, na verdade, os componentes da sociedade civil individual- mente considerados; ou seja, os direitos do homem separado dos outros homens, os direitos do homem egoista, 6, Infelizmente, nfo tivemos acesto so texto alemio, Citamos, da edi- co inglesa das obras de joventade de Marx, Early Writings (The Peli- can Marx Library, ed. Quintin Hoare, New Left Review, Penguin Books), Londres, 1977 26 PARA VIVER A DEMOCRACIA Tal fato é bem marcado pela concepodo de liberdade que se encontra nos textos revolucionétios franceses: © poder de fazertudo aquilo que n&o preiudica os direitos de outrem. Nao se trata, portanto, de um direito associative, mas de uma bar reira, uma separagdo entre um homem e outro, cuja aplicacao prética mais conspfcua é a propriedade privads. © mesmo se diga da seguranga, Esta representa o supremo conceito social da sociedade civil, e se encarna nas forgas policiais. Como disse @ Constitui¢éo francesa de 1793, '‘a seguranga consiste na protesdo concedida 2 cada um dos seus membros, para a 10 de sua pessoa, seus direitos e sua propriedade”, “A finalidade de toda associacio politica”, proclamou_a Deslatagdo_ dos Direftos do Homem e do Cidadao de 1791, "8 a conservagao dos direitos naturais ¢ imprescritiveis do ho mem”. No_entanio, observou Marx, a prética revoluclondria francesa « mm flagrante conttadigao com esse principio. Assim, enquanto a seguranga foi erigida ao nivel de dircito fundamental do homem, a violagio da correspondéncia privada foi posta, abertamente, na ordem do dia, Enquento a garantia la “llimitada Tiberdade de imprensa’” é uma conseqiéncia da Tiberdade inciviual, na realidad fo la Intcnamente desta da, sob 0 pretexto de que “a liberdade de imprensa nio deve set admitida quando compromete a liberdade publica’. “ significa”, diz Marx, “que o direito & liberdade cessa de exi {80 logo entre em conflito com a vida politica, enquanto, too- ricamente, a vida politica hhomem, dos direitos do homem individual; garantia essa que deve ser abandonada tio logo conirarie o seu obj esses direitos do homem”. Assim, “a revolugéo pol ”” (e nesse porto — acres- centamos nés, seguindo o pensamento marxista — aboliu a caracteristica mais marcante da sociedade medieval). “Ela dis- solyeu a sociedade civil nos seus elementos componentes mais simples”. Quer isto dizer, prossegue Marx, que “a perfeicgo do idealismo estatal foi, a0 mesmo tempo, a perfei¢go do ma- ‘erialismo da sociedade civil. A abolicdo do jugo politico fot, 20 mesmo tempo, a abolico dos vinculos que haviam contido © espirito egoista da sociedade civil. A emancipacio politica foi, igualmente, a emancipagao da sociedade civil da esfera LIBERDADES FORMAIS E LIBERDADES REAIS 27 politica, (emancipacio) da propria aperéncia de um contetido universal”. Compreende-se, por af, que “o homer no foi libertado da religido, mas recebeu a liberdade de 1 ibertado da proptiedede, mas teesbeu a lberdade d& et propria. ‘Nao {oj libertado do egofsmo comercial — recebeu a liberdade de comereiar. A constituigdo do Estado politico © a dissolugao da sociedade civil em individuos independentes que sio ligados ela lei, da mesma forma que os homens dos estamentos € corporagdes exam ligados por privilégios — consumowse num 5 ¢ mesmo ato. Mas © homem, enquanto membro da sociedade civil, aparece, inevitavelmente, como apolifico, como homem naturel. (...) © homem efetivo € aceito unicamente sob 2 forma do individuo egoisia, enquanto o verdadeiro homem apenas sob a forma do cidadéo absirato”. Como superar esse situacdo? “Somente ¢ real. reassumir_em si mesmo o cidadéo_abstrato_e, enquanio individuo, tiver se tornado mero representante de sua espécie See mre ey ig ele eal aie a ‘empirica, no seu trabalho individual ¢ nas suas rela- ges individuals; somente quando o homem tiver reconhecid eorganizado as suas forces propres como forcas 50 modo que a forca social jf nio soja separada dele sob & for tle forga. politica, somente entéo completerse-é i humana.” do cidadao representam uma dupla separacao. Os direitos po- ‘ou direitos do cidado correspondem a uma particfpagio eileia estatal, cslera essa distinta e mesmo separada de Quanto ersais™ do homem, eles se apresentam como. individuos, néo_ como, direitos resl- inserto_em_seu_meio.vital,.que € 2 3s hipoteses. portanto, estamos diante de Para que © homem seja realmente livre, & preciso superar essa dupla dissociacdo, entre a esfera politica e a esfera social, de um lado; entre homem e homem, de outro, isto é, a préprie divisdo da sociedade em classes. i | 28 PARA VIVER A DEMOCRACIA (Bis ai, em suas linhes essenciais, 2 reflexio marxista sobre '2 questo que tomou, logo apés, nos contlitos politicos, 0 ca- rater de verdadeiro slogan: a contradigéo entre as liberdades formais ou “burguesas” e as liberdades reais ou socialistas. |B sobre essa propalada contradico, no mais auténtico espitito [do século XIX, que se deve agora refletir criticamente, em {fungio de dados © problemas que © nosso século explicitou. Revisio critica de uma tese critica A experiéneia de quase 150 anos de histéria politica, jé do apenas ocidental mas universal, desde que a contradicao marxista & ideologia liberal foi inicialmente elaborada, induz- nos a formular alguns problemas, fundados em dados de fato facilmente verificavei Comecemos por estes éltimos. Vivemos hoje, provavelmente, o apogeu da civilizacdi dutivista, “que os_idedlogos socialistas do ‘principio do século XIX_anunciaram_com fervor. Esse novo tipo de civilizacao apresenta caracteristicas inteirament® originals, 8 luz da His téria, Extrinsecamente, em primeiro lugar, por sera primeira : do verdadeiramente universal. (ntrinsecamente, porque 9 valor social supremo, 20 qual todos os demais se subordi- nam, € 0 trabalho industrial, a atividede de producto organi- zada de bens e prestacto de servicos. Sem duvide, o objetivo ultimo pareve ser, ainda ¢ sempre, o poder sobre a natureza ¢ 98 homens, ¢ néo o luxo, o prazer ou a dissipacko. Mas agora, esse onipoténcia, segundo se acredita, obtém-se néo pelo culto i080, 0 esplendor de acbes herdicas, o labor cientifico me todicamente conduzido, a pura forge militar ou a criacéo artis: tica ©, sim, pela produedo industrial. Quando Marx debuxou, em tintas fortes, a fixagdo capitalista do burgués — “agente fandtico da acumulagéo, ele forga os homens, sem trégua nem pordéo, a produzit para produzir, e os empurra assim, instin- tivamente, a desenvolver as poténcias produtivas e as condi es materiais que sdo as tinicas a formar a base de uma soci dade nova ¢ superior” — estava descrevendo a caracteristica fundamental dessa nova fase hist6rica, cuja superioridade em LIBERDADES FORMAIS E LIBERDADES REAIS. 29 relacdo as que a precederam s6 pode ser admitida, sem con- testagies, em sentido dialétic. do desaparecimento do Estado, que Marx ace o Sspirits elles, de Tiehie"-e, sobretids, de Saint-Simon® e que jé pinguém hoje leva a ‘erio, punbase do com 0 aniincio dessa cWvilizagio Tidus trial. Pois, a partir de certa fase do processo de acumulacao de < mento das unidades empresariais, a evo- jnelutavel_consiste em colocar os. instrumentos publics de_poder (0 orgamento, a educacdo, 6 forcas armadas) a. ser. -vigo da produsio. Mais ainda: a continuagao do processo leve,] {fatelmente, 20 estabelecimento do Estado empreséio, O regime} da propriedade, nesse ponio, como adiante se verd, importa! pouco 2 yento do poder empresarial tornou manifesta 2 ne- cessidade de se aperleigoarem os mecanismos d¢ defésa contra os al S86. “Mas quem os aperfeicoaria? Ou, em terms. politicos, quem daria forca as reivindicacdes dos que se submetem ao poder émpresariel? A primeira ¢ natutal idéia, entre os juristas, foi — e continua sendo — a de recorrer a0 Estado, como se se ttatasse de meros conflitos privados. A ingpela_desse recurso, hoje, salta aos olhos de todos. Em pri- 7.0 Esaio", escreves le, “como toda jrstiuggo humana, que Simple meio (insio ese ce deve svn sob eres conden, 2 fader tin seclodade peri), encaminbase pare o sea propio deapared meno: a finaldade de todo goverso & tomar supeflo 0 governs” Ertarbdins "0 Estado (nitric) dove a sia xitncla 2 duguadade dove despareter to mmo tempo que es desgualdade™ (Ueber tle Bestimmung des Gelehron, ct. por G. Viasbos, "L'Bat et TEcono- tre dane FOcurre du Jeune Fish” in Revue Inernatonae Hise Poltigue ef Consiaionnlle, n° 4, Pats, 1988, pp. 259-20) 5. & importncn decsiva ds idfins de C. H, de Stine Simon na Tela de grands cores de pena Go eel past — come 6 pesitvsma eo marniamo ~— ada no fol sufiintemente posta em foto, No ciso do marsismo, & flaca taintsimoniana. exeteeuse por intermatio de Logwig von Wesihalen, togro de Marx de. Gans Seu profesor em Berlin; de Moses Hess, fornalsa no. Rlchsche Zetung: também do pocla Heinrich Help, que moron logos anos fm aris. e fo1 amigo tetino de Mark, toéos eles admiradores de Set Soo j | | | | | . / | | P= 30 PARA VIVER A DEMOCRACIA meiro lugar, porque 0 titular desse poder é, sempre mais dire- tamente, 0 proprio Estado. Em todos os paises nio-socialistas, © setor estatal da economia tende a crescer, néo a encolher. Ademais, porque o estan wurocrdtico passou_a_partilhar Bigamenie (inds gue & icacoes ndo-privatisias, como ‘© nacionalismo ou a seguranca nacional) 0 ideério capitalista de acumulacéo de poder empresarial. Ele nio precisa se fazer de rogado para atender a pretensGes dos empresarios priva- dos, de utilizacéo dos servigos pablicos para sustentagio de suas empresas, _ Tudo isso conduz. & verificagio de outro dado de fato, que & a inadequagio do tradicional modelo juridico de propriedade, para explicar a evolucao do poder empresarial. Nao se trata apenas, como nas sociedades pré-industriais, de discipliner 0 conflito de pretensdes sobre 2 titularidade de bens de mera fruisio, isto é, a sua pertingncia (“propriedade”, afinal, signi- fica o que € préprio de alguém; portanto, exclusivo de qual- quer pretensio alheia). Trata-se, isto sim, de disciplinar 0 exer- civio do poder sobre outros homens, ou @ potencialidade de influéncia sobre 0 meio natural, implicados na utilizacao de bens de producdo. Ora, como Marx_agudamente previra? 0 _ crescimento das unidades de producao engendrou, pelo mece- nnismo juridico des sociedades por a ociagao. 2 “propriedade estética” e a “propried: Z ‘Means descreveram 0 fendmeno nos Estados Unidos, logo apés a grande crise de 1929, em livro justamente famoso.” © que se poderia acrescentar hoje de realmente novo, aos dados dessa célebre pesquisa, € que a “oligarquia que se autoperpetue”, represeniada pelos administradores ndo-acionistas das grandes corporations (situaeao, a rigor, pouco conkecide, fora dos gran- des paises industrializados), sofre a concorréncia crescente dos tecnoctatas estatais, que exercem o chamado “controle externo!” sobre 05 principais complexos empresariais privados. Em sic iuacSeslimite, que tendem 2 se generalizar, a Jocalizagéo do poder ou, se se qi ja_soberania empresarial, pas 9. O Capital, tivo UH, cap. XV, sesso IV. 10. The Modern Corporaiion and Private Property, ed, revista, Nova York, 1967. PH ech LIBERDADES FORMAIS E LIBERDADES REAIS 31 acionista_ ntrolador (tal como a define, entre n6s, a vigente lel de sociedades por acées, art, 116) para o funcionsrio go- Yernamental ou o direior da empresa piblica que aprova pro- jetos incentivados, lib entos preferenciais, autoriza importagSes com isencs téria, comanda fuses ou incot- ‘poragSes contra a legislacdo antitruste ¢ dispensa e concorrén-_ ‘sia_puublica_em. obras. consideradas prioritéries. © fato é que a lei suprema de acumulapio de capital (Acumulai, acumulai: cis a Lei ¢ os Profetas!”, escarnecia Marx) obedece a uma lgica da concentragao de poder, que ‘tua tanto no universo capitalista quanto no socialista. Foi um funesto engano do marxismo acreditar que essa acumulacdo capitalista estivesse indissoluvelmente ligada & burguesia © que © seu desenvolvimento interno conduziria inelutavelmente & supressio do Estado. O que se viu, em todos 0s quadrantes do mundo, foi exatamente © contrério. Podese mesmo dizer que se a Idade Média conheceu estruturas politicas dissolvidas na sociedade civil, como Marx observou com razfo, e se 0 Estado liberal do século XIX vivia confinado numa esfera separada da sociedade civil, o Estado contemporaneo tende a0 totalit: rismo, a reducdo da sociedade civil & situagéo de massa_de manobra do ap: estatal, no spice de sua dominacio. Para essa centralizago do poder burcerdtico, muito contri- buiu a dialética revolugao-reacao, desencadeada furiosamente com a Reyolugio Francesa. “Todas 2s revolugdes_politicas Iese no 18 Brumério de Luiz Napoledo, “66 fizeram aperfei- oar essa maquina (0 Fstado), em lugar de quebrésla. Os par- ‘ides, que Iutaram alternativamente pelo poder consideraram 2 sconquista.desse imenso edificio. do Estado como @ principal pptesa do vencedor”. £ verdade: todos os partidos ¢ movimen- ‘os politicos no liberais, dos ultre-revolucionétios aos ultra- reaciondrios. E os priprios movimentos ou partidos Jiberais, quando se dispdem a decidir pela forca 2 Juta politica — como foi o caso da Unio Democrética Nacional, entre nés, em 1964 —, acabam aderindo & légica estatalista, © partido comunista ou os diferentes partidos comunistas néo eseaparam a essa lei de ferro. No_prépri_pensamento ‘marxista, nota-se uma revisio fundamental, a partir da guerra civil de 1870 em Paris. As andlises. realistas cedem lugar. & aa aan 3 PARA VIVER A DEMOCRACIA utopia libertétia, © crftico das “liberdades formais” adota uma visio inteiramente abstrata de Histéria, em que o mito preva- Jece, como erma “Tei natural” de evolucto das forgas produti rismo demidrgico se_afirma, defi- itivamente, contra 0 materialismo hist6rico ‘Tocqueville j4 denunciara,..com_sua_ habitual clarividéncia, Acapacidade de conquista ede destruicéo. do abstrativismo “revoluoiondio. E justamente graces as idéias abstratas que 0 milo. revolycionério transpoe fronteiras e se estende a todos os povos.e. todas. as regides, independentemente das diferencas de meio cultural e de tradicéo hist6rica." Por isso mesmo, 0 gtan- de agente revoluciondrio, contrariamente 20 que proclemave Marx, néo € 0 proletétio — esse antiintelectual —, mas 0 homem de idéias, que prefere « reconstruc imaginativa do mundo, longe da “‘teimosia dos fatos”, & aceitagio do risco que enyolve todas as Itberdades.* 11. “Toutes tes révolutions civiles ot politiques ont eu une patric et sy sont renfermées. La Révolution Frangaise n'a pat eu de terrtoire pro- pre: dien plus, son effet a eté deftacer em quelque sorte de la carte foutes Tes anciennes frontiéres. On la vue tapprocher ou diviser lee hhommes en dépit des lols, des traditions, des caractéres, de Ia langue, rendant parfois enaemis des compauiotes, et fréres des étrangers; ot plut6t elle a formé, aurdessus de toutes Tes natlonalités particuligres, June pairie intetectuele commune dont les homates de toutes les nations ont mur devenir eitoyens, (...) La Révolution Francaise a opéré, par rapport & ce monde, précisement de la méme manitre que les révolutions religieuses agissent en vue de Tautre; elle a considéré le citoyen dune fagon abstaite, en Aehors de toutes’ es sociétes pacticuligres, do mime que les religions consid@rent homme en général, indépendamment du pays ot di temes. Fle n'a pas recherché seulement guel était le droit particulier du eitayen francais, mais quels étaient les devoirs et len droits. généraax des hommes en matitre politique.” (L’Ancien Régime et la Révolution, listo I, cap. 3). Serd preciso acrescentar que a forsa de propagngao universal de Revoluglo Russa resuliou dessa mesine abstragdo radical Semelhante aos grandes movimentos teligiosos? 12, “Quand on étudie Thistoite de notre révolution, on voit qu'elle = G16 menée précisément dans le méme esprit quia fait éerire tant de livres abstiaits sur Ie gouvernement, Méme attrait pour les théories ‘générales, les systémes complets de lésislation et Vexacte symétrie dans les lois; meme mépris des faits existants; méme confiance cans la LIBERDADES FORMAIS E LIBERDADES REAIS. 33. Cothe-se dai a grande contradicao entre as liberdades indi- viduais.e as liberdades sociais e econémicas, ilogicamente apre- sentadas como dupla espécie do mesmo género. A diferenga essencial entre umas ¢ outras, no entanto, € manifesta. ‘berdades individuais sio sempre resfsténcias a0 poder, qual- quer que seja 2 forma por este afetada: estatal ou privado, taajoritério_ovl ditatorial, econémico ou politico, religioso ow ideoldgico. Os verdadeiros direitos individuais visam 2 garantir 2} pessoa humana um espaco vital minimo, contra as interfe- réncias do “outro”. So, sem divide, “estacas demercatSrias”, como disse ironicamente Marx, ¢ nfo podem deixar de sé-lo, 20 contrério do que ele acreditava, enquanto se admitir que 2 sociedade ndo se reduz ao interesse de uma s6 classe, de uma 86 raca ou de um 36 grupo religioso. J4 as liberdades sociais ou econémicas so reivindicagées de melhores condiges de vida, slo exigéncias de um fazer ou re- formar, que 6 se concretizam coletivamente. Aqui no se pro- cura preservar uma situaco vital considerada como valiosa, thre; mm soot de ova, de Pngénleux et du agweas dns le insitaions; més envie de refae 8 le fos In consuton tout eae vant les rgles de a lpius of apes tn plan enue, led de chorcher h Pamenger dans ts parton” (Ide oro Ty 8p. 1) em outro pais do mesmo sapitlo sirens Toequevile como 4 fata de ibwrdade consi lima pronto so nadcalamo secon “Ln conde mie de es ssivin ter peeparae & potter le theories aévérales ot abarnies co mate de governement 1 sy confer Sreaglement, Dans Telignement presque infin ou Us viraeat ce in pratique, socine exprence ne venat tempter. es adeurs det etch cen ne er avetisit des obvacls que ier fais) canis Youriea apporter tun reformes meme les phe Geass wavaiee male ie dr ess gui accompagnent toujours ls revlutons Tes plas ncraniea aes present tine pein carTabemce comple de tute liber polique iit que le monde des aoe ne lest it pas seulement mal conn, tins ive ls wy failent en Gt ne povvset tie voir ce que duties y aise. Us manqaiet done de cote insracion supercells que in wie une sot re ere bolt de tout ce qu 8 a donnent h ceux memes qi sy melt ie toi gouetroment, Hs devnent ald. beucoup pis hardt dha ss roves, hs amour des seals ude Sines plus contempturs dein eagane anigne et lar confats encore dant Tear raion indiviotle que csla ne ap vow commincneat che es fies Seve de fvrs spc tr Je pois” peer” 34 PARA VIVER A DEMOCRACIA ‘as criar situagSes vitals novas. Mas, tratando-se de exigéncias de reforma ou reconstrugio das condicdes de vida, que 35 se concretizam coletivamente, quem hé de ser o agente coletivo de tais reformas, fore do Estado? Esse o dilema, O proce de centralizacio do poder burocrético, iniciado no Ocidente moderno pela burguesia, como observou Marx, encontro con- siderdvel reforgo ¢ aceleracto nos paises socialistes ¢ também reeiro Mundo desenvolvimentista..O- velo Marx de 1870, revolucionario eético, acabou contestando o jovem critico apai xonad ais”, pois foi. sobretudo gracas ao fotmalismo de wma igualdade juridica sem conteddo que as re- vvolugses modernas criaram essa “superficie lisa” da sociedade «civil, sem_privilégios estamentais nem foros locais, facilitando ‘enormemente 0 exercicio do poder burocrético.” © que se desvenda, afinal, nesse debate entre “liberdades formais” ¢ “liberdades reais” & um auténtico processo dialético 1. A este respeito, Tocqueville lembra o texto de uma das cartas que Mitabeau escreveu secretamente 2 Luis XVI, menos de um ano epés © inicio da Revolugiio: “Comparez Ie nouvel état des choses avec ancien régime; cest TA que naissent les consolations et les espérances. Une partie des actes de Tassemblée nationale, et cest la plus conside: rable, est éridemment favorable au gouvernement monarchique. Nest-ce done fien que <'étre sans parlement, sans pays d'état, sens comps de clergé, de privlégiée, de noblesss? ['dée de ne former qu'une seule flasse' de citoyens surait plu a Richelieu: cette surface égale facilite Fexerciee du pouvoit, Plusieurs rémnes @'un gouvernement absolu auraient pas fait autant que cette seule année de Révolution pour Yautorité royale” (L’dncien Régime et la Révoluton, livro I, cap. 11) Evidentemente, 0 Bourbon, que s6 foi considerado “déspota” por um esses contratensos tipicamente revolucionétios, era a titima pessoa capaz de compreender a grande verdade dessas considerasées. ‘Trinta anos apés, SaincSimon viria exortas, ainda em vio, mais uum Bourbon, 0 decrépito Lais XVIII, 2 assumir outro aspecto funda- mental 60 Estado moderna: “Le plas grand service que la royauté Duisse rendre 2 la nation, dans Tes circonstances actuelles, est celui de fe constituer elle-méme en dictature chargée d'anéantir le régime Todal et chéolozique et détablir Te régime scientifique et industisl ... Le Roi deviendsa le premier des industrels, de mime quil e été le premier des hommes darmes de son royaume”. Melbor ainda, como se desco. bra neste século, se o rei-Estado se transforma no primeiro industrial a nacio, sem perder 0 monopétio da forge militar vida social LIBERDADES FORMAIS F LIBERDADES REAIS 35 hegeliano, em que a negacdo das primeiras pelas segundes esté a conduzirnes, necessariamente, & busca de uma superacéo. E esta ditima parece advir de dois movimentos complementa- res: de um lado, a revitalizacio das Iiberdades individuals e, de outro, » realizagio nfio-burocrética das, de A revitalizacio das liberdedes individuais encontra sua ra de ser no fato de que elas jé néo visam apenas, como dantes, & protecdo das minorias, mas também & tutela da maioria face a centralizagao do poder politico ¢ econdmico. E 0 caso para- digmtico da defesa do consumidor e, também, o de preset vvacdo do equilibrio ecolégico, problemas virtualmente desco- hecidos numa fase histérica anterior 8 da producéo industrial em massa. Deperamos, agora, populacSes inteiras em estado inerme diante das poténcias produtivistas e militaristas que empolgaram o aparelho estatal. Os antigos remédios juridicos de protecdo as liberdades individuais, como 0 habeas-corpus © © mandado de segurange, ¢ a tradicional concepeio do efeito relativo da coisa julgade j& néo servem para a defesa desses novos interesses. No tocante as liberdades de coniesido positivo, as de oriar ou reconstruir situagdes sociais, © movimento de superacdo do atual impasse terd que buscar a constituicéo de uma esfera do social, entre os extremos do “ptiblico”, entendido como sind- nimo de estatal, e o “privado”, no sentido de interesses mera mente particulares. Marx tinha razo de criticar o romantismo hegeliano a respeito dos antigos estamentos de sociedede prus- siana; mas a verdade € que 0 igualitarismo socialista deixou a sociedade civil muito mais indefese perante 0 Estado, do que, as classes pobres diante das ricas, na época da monarquia auto crética. Hoje, tudo o que puder revitalizar os grandes centros de interesse, dentro da soviedade civil, como os sindicatos, as associacées, es prépries organizacies de_planificacio volvimento regional, para a gestéo e reorganizacto cgletiva da bem-vindo, Por outro lado, a critica ao formalismo juridico deve ser entendida em seus justos termos. © que sé deve. atecar, na verdade, & a concepedo formal da_justiga, segundo a qual o justo se confunde com o legal, © a ordem (entendida como auséiccia de reivindicagSes) €0 supremo valor da convivéncia £desen-, 36 PARA VIVER A DEMOCRACIA humane. Mas é preciso nfo esquecer que todo direito, em certo sentido, & formal; gue ele nade mais deve ser, sob 0 aspecto valorativo, que a tealizagao formal da justica, a sua realizagao segundo certos meios © regras conhecides da comunidade. A rogularidade formal, de resto, € sempre uma garantia diante do Poder, porgue representa, em si mesma, uma limitaggo do arbifrio, Basta lembrar o principio da tipicidads em diteito penal ¢ em direito zributétio, ¢ © due process of law, graves a0 qual a jurisprudéncia norte-americana tem feito avancar progtessivamente 0 sentido de igualdade juridica na vida sécio- econémica, A experiéncia universal, nos tiltimos trinta anos, af est para nos demonstrat que o sentido das chamadas liberdades reais passou a sex, no século XX, ngo a substituicao do Estado pela “livre associagio de trabathadores”, como profetizaram os so- cialistas, mesmo os “cientificos”, mas, bem 20 contrétio, a realizagio, por obra exclusiva do Estado, de novas condigces de vide, sociais ¢ econdmicas. Para tanto, argiituse, € indis- pensével o abandono dos tradicionais processos de controle da ago estatal, posto que tais remédios ou processes constituem um resquicio de individualismo, andrquico ou reacionério. Mas @ indagagio que se pie hoje, insistentemente, no corse so das masses, é bem esta: o abandono das liberdades pes- soais, diante do Poder benfazejo, constitui realmente o penhor de uma realizacéo mais completa da justiga econdmica e social? Conte Montaigne, em certo passo dos Ensaios, 0 episédio da apresentagdo & corte de Carlos IX, reunida para a circunstén- cia em Rouen, de trés indios brasileiros, trazidos da “Franga Antértica” por Villegaignon, O rei falowlhes durante longo tempo. Depois, eles puderam ver 0 modo de vida dos civilize dos, a sua pompa e a forma de uma bela cidade, todas coisas que thes eram absolutamenie novas. Alguém teve, entZo, a idéie de thes perguntar 0 que achavam de mais admivével em tudo aquilo. Empregando uma cutiosa mancira de chamar os homens “metade”, uns dos outros, os fndios disseram, relata “Montaigne, “que havia, entre nds, homens repletos e saciados 37 LIBERDADES FORMAIS E LIBERDADES REAIS. de todas as comodidades, enquanto as suas metades mendiga- yam as portas, descarnados de fome e pobreza; © achavam estranho que essas metades to indigentes podiam softer uma ‘al injustiga, sem se Jancar @ garganta dos outros ou deitar fogo as suas casas”. A estraneidade dos direitos humanos na América Latina: razGes e soluc6es 1 nto. pacifico, para todos os_conhecedores da_histéria lotino-americana, que os direitos humanos nunca fizeram parte 6 nosso patriménio. cultural, mas sempre elemento estranho, na. tule socinin,Qais as vazies determinants dese estaneida de © como enfrenté-la? Proponho-me, nestas linhas, alinhavar alguns elementos de resposia a tais indagecées, na esperanca de que eles possam ser desenvolvidos & retificados pelos doutes, Antes de enfrentat importante tema, porém, principiemos pela definigéo bésica, Que se deve entender, precisamente, por freitos humay tradiedo terminolégica anglo-saxénica) ou jem_(na_consagtada designasao francesa)? Em meu entendimento, eles apresentam duas caracteristicas essen. ciais, Trata-se, em primeiro lugar, de direitos comuns a todos ‘0s homens, independentemente de sua raca, sexo, conviegio ideol6gica, f religiosa ou condi¢ao social. Ademais, indepen: deres Pitblicos. A ESTRANEIDADE DOS DIREITOS HUMANOS. 39 A primeira das caracteristicas apontadas néo significa a re- dugdo dos direitos humanos & antiga categoria dos direitos individuais, mas certamente os distingue dos direitos préprios de determinada classe ou grupo social, € que se nao encontram fem outras classes ou grupos. Esses direitos proprios de alguns sio privilégios, no sentido técnico da palavra (lex privata) eles excluem ou privam os ndortitulares. Podese, pois, que 08 direitos humanos sio_ptiblicos ¢ nao_privades, no_sen romano original de tais adjetivos: sfo direitos pertence: a todos ¢ néo a certos individuos em parti

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