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São Paulo e suas redes penitenciárias1

Rafael Godoi2, setembro de 2010.

Grandeza e precariedade

O sistema penitenciário brasileiro carrega em si duas grandes marcas: a da grandeza e a da


precariedade. Grandeza porque confina quase meio milhão de pessoas no final da primeira
década do século XXI, número que foi alcançado muito rapidamente, no decorrer dos últimos
anos – em 1988, a população de presos no Brasil não passava de 89.000 pessoas; no final de
2009 já somava mais de 470.000. O estado de São Paulo é um dos maiores propulsores dessa
explosão demográfico-carcerária: em 1986, o estado mais rico do país confinava pouco menos
de 25.000 pessoas; em 2009, já eram mais de 160.000, quase 35% do total nacional. Esses
dados colocam o Brasil como detentor da quarta maior população carcerária do mundo – atrás
dos EUA, Rússia e China – e o estado de São Paulo como uma verdadeira “potência carcerária”
global, com um sistema penitenciário maior que o de qualquer país europeu.

Esses números foram alcançados através de uma constante política de expansão de vagas.
Entre 1997 e 2006 – sempre sob a gestão de governos do PSDB – mais de uma centena de
instituições prisionais foram construídas em São Paulo, principalmente no interior do território
estadual. A justificativa para tamanha expansão é sempre virtuosa: a diminuição da
superlotação, a melhoria das condições de cumprimento de pena, o aumento da segurança da
população. Porém, acompanhando a trajetória histórica do sistema prisional paulista, observa-
se que a superlotação nunca foi sequer amenizada, e as condições de cumprimento de pena
sempre foram por demais precárias. Cada prisão inaugurada foi logo superlotada, de modo
que o déficit de vagas nunca chegou perto de ser equacionado, mesmo com tamanho
investimento. Na verdade, muito antes de o PSDB existir essa já era a tônica regular do
desenvolvimento das instituições prisionais paulistas: se vagas em novas prisões são criadas,
nunca será para amenizar o sofrimento dos detentos que já cumprem pena, mas para
submeter mais pessoas a essa mesma penúria – sempre em nome da segurança da população.
Os mesmos argumentos e “fracassos” acompanham a criação da Casa de Correção de São
Paulo, na década de 1850, da Penitenciária do Estado, em 1920, da Casa de Detenção, entre
1950 e 1960, e o recente e massivo programa de expansão de vagas capitaneado pelo PSDB.
Assim, se a grandeza é uma marca relativamente recente do sistema prisional, o mesmo não
pode ser dito quanto a sua precariedade, que sempre o acompanhou desde as antigas cadeias
públicas dedicadas a escravos fugidos, mulheres suspeitas, loucos, mendigos e marginalizados
diversos.

Fracasso?

Mas engana-se duplamente quem pensa que essa precariedade representa um verdadeiro
fracasso das instituições prisionais e de seus gestores, ela é mais o segredo de sua “eficácia”.
Por um lado, ela visa preservar a função de punir exemplarmente e dissuadir as pessoas de

1
Artigo publicado em http://desinformemonos.org/
2
Mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Fez especialização em
Investigação Etnográfica, Teoria Antropológica e Relações Interculturais na Universidade Autônoma de
Barcelona.
cometerem crimes. Se o funcionamento das prisões paulistas seguisse integralmente as
convenções internacionais de direitos humanos que os governantes assinam, elas,
seguramente, seriam mais atratativas do que muitos bairros periférico pobres da região
metropolitana. Assim, para que alguém descarte a hipótese de cometer um crime num estado
como São Paulo é preciso que a ameça da prisão seja mais intimidadora e opressiva do que as
péssimas condições de vida que já submetem essa pessoa em “liberdade”. Por outro lado, a
prisão precarizada funciona como uma “escola técnica” que professionaliza um criminoso, que
o torna acessível e útil para a operacionalização dos diversos negócios escusos que compõem a
renda das elites mais ilustradas. É através da prisão que os mais poderosos historicamente
puderam recrutar “trabalhadores” para suas redes de prostituição, para operacionalizar o
tráfico internacional de drogas, armas, órgãos, pessoas, para fazer “queimas de arquivo” ou se
livrar definitivamente de seus desafetos.

Sobrevivendo no Inferno

A crescente população carcerária e aqueles mais vinculados a ela – seus familiares e amigos –
foram forjando suas próprias estratégias de sobrevivência nesse contexto de adversidade
perpétua. Um elemento que, junto com a precariedade e a violência, acompanha a história do
sistema prisional paulista é o “jumbo”: o pacote de alimentos, roupas, artigos de higiene e
cigarros, levados periodicamente pelos familiares aos presos, e fundamentais para a garantia
de um mínimo de condições de vida no interior da prisão. A importância da proximidade da
família do preso, portanto, supera o papel ressocializador correntemente destacado; a sua
relação com o sistema prisional é ainda mais orgânica, porque garantidora, através do
“jumbo”, de uma vida material minimamente digna no interior da prisão.

A mobilização de recursos privados e exteriores para a viabilização de uma vida prisional


menos sofrível também assumiu historicamente o aspecto da corrupção. Vale lembrar que a
precariedade do sistema prisional não se reduz às péssimas condições de vida dos detentos,
mas afeta também a vida de seus funcionários, criando o ambiente propício para um punjante
comércio de bens políticos variados. Num ambiente de absoluta precariedade, uma visita
“extra”, um jumbo “extra”, uma visita íntima, um banho de sol adicional, uma consulta médica,
uma transferência de cela, de pavilhão, de presídio se convertem em valiosas mercadorias, das
quais certos funcionários podem retirar algum lucro e alguns presos podem amenizar o
sofrimento vivido.

Saídas?

É sobre esse solo de estratégias e práticas históricas que acompanham a trajetória do sistema
prisional paulista que se deve inserir o problema do desenvolvimento das facções prisionais.
Em primeiro lugar, uma maior coordenação das diversas atividades inerentes à população
carcerária (sejam elas legais ou ilegais), a instauração de um código de conduta, de
mecanismos autônomos de resolução de conflitos (internos e externos) acabam por promover
melhores condições de vida em meio a precariedade. São muitos os relatos que testumunham
a recente diminuição das mortes e conflitos no interior do sistema prisional, não obstante o
continuado aumento da população carcerária. Em segundo lugar, o extrapolamento da facção
para fora, sua marcante incidência em mercados legais e ilegais, sua notável capacidade de
mobilização de recursos, acabam por desonerar a rede de familiares e amigos de presos que
(seja pelo “jumbo”, seja pela corrpução) tinham significativa parcela de suas parcas rendas
drenada pelo sistema penitenciário. E mais, não só pode desonerar essas redes, como passar a
apoiá-las, direcionando recursos para alguns de seus pontos mais vulneráveis. Porém, a
“saída” da precariedade através da estruturação da facção também tem seus custos e ônus
para os presos, principalmente, no que diz respeito a um maior compromisso com os
“negócios do crime” (a principal fonte de recursos dessa rede), implicando numa sempre
presente possibilidade de prolongamento da pena, ou de breve e amargo retorno para os
pavilhões precarizados do sistema prisional, ou mesmo da morte precoce.

Sobre a mesma precariedade constitutiva, e ao lado das redes já citadas, outras duas redes
sociais se estruturam, visando minimizar, com os recursos que dispõem e mobilizam, o
sofrimento de seus integrantes presos. A primeira é a rede de religiosos evangélicos, os
“crentes”, que vivem um cotidiano à parte dentro dos presídios, integralmente dedicado ao
louvor religioso. Nos últimos anos, a conversão se consolidou como uma das únicas vias de
saída da “vida do crime” legitimadas pela população carcerária paulista. Convertendo-se, um
preso desobriga-se de suas pendências com o “crime” e adentra em espaços de convivência,
redes de sociabilidade e apoio totalmente diversos. Porém uma suspeita sempre recai sobre os
recém-convertidos, a suspeita da falsa conversão, da conversão utilitária, da fuga, da covardia,
do esconderijo, que Dexter canta em “8º Anjo”. Suspeita que é permanentemente colocada a
prova, pelos “crentes” e pelos outros, através de uma observação estrita do comportamento
do recém-convertido.

A outra rede é propriamente a do rap, do hip hop, da literatura, da arte, da “cultura”. Essa
rede, ainda que menos densa e mais fraca em termos econômicos, tem um enorme potencial
de amenizar o sofrimento daquele que vive na prisão sempre precária. Trata-se de uma rede
que também pode “salvar”, que também pode romper o círculo vicioso cadeia-crime(-morte),
sem a desvantagem de inspirar suspeitas. Em termos materiais seus aportes são restritos, suas
debilidades são supridas pelas múltiplas conexões que estabelece e pelo respeito que inspira
nas demais redes que compõem o universo prisional. Sua principal força reside no nível da
subjetividade, da constituição de sujeitos diferenciados, exemplares, admiráveis, não só por
fazer reverberar por todo o mundo a precariedade das instituições prisionais paulistas, mas
por fazê-lo de forma contudente, apaixonada, lúcida, crítica, e principalmente, desde dentro.
No começo do século XXI, cada cela recém-construída é o potencial “escritório” de um poeta
ou romancista, o “estúdio” de músicos e desenhistas. A estruturação dessa rede está em curso,
o peso político, simbólico e econômico que assumirá no futuro próximo não está dado de
antemão. Cabe a quem a tece dizer (ou cantar) a extensão e força de seus fios.

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