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CONRAD EDITORA DO BRASIL LTDA.


CONSELHO EDITORIAL
Cristiane Monti
Rogério de Campos
GERENTE DE PRODUTO
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CONRAD LIVROS
DIRETOR EDITORIAL
Rogério de Campos
COORDENADOR EDITORIAL E DE COMUNICAÇÃO
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COORDENADORA DE PRODUÇÃO
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DIREITOS INTERNACIONAIS
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REVISORES DE TEXTO
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EDITOR DE ARTE
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ASSISTENTES DE ARTE
Ana Solt, Jonathan Yamakami,
Marcos R. Sacchi, Nei Oliveira e Vitor Novais
0 MITO DAS NAÇÕ ES
A invenção do nacionalism o

Patrick J. Geary

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CONUD
LIVROS
Copyright© 2002 Fischer Taschenbuch Verlag
in der S. Fischer Verlag GmbH, Frankfurt am Main
Copyright desta edição © 2005 by Conrad Editora do Brasil Ltda.

TíTULO ORIGINAL Europaische Võlker im frühen Mittelalter.


Zur Legende vom Werden der Nationen

CAPA Ana Solt


TRADUÇÃO Fábio Pinto
PREPARAÇÃO Elaine Regina de Oliveira
EDIÇÃO Alexandre Boide
D1AGRAMAÇÃO Ana Solt
PRODUÇÃO GRÁFICA Alexandre Monti (Gerente),
Alberto Gonçalves Veiga, André Braga e
Ricardo A. Nascimento
CTI Alexandre Cardoso da Silva e Ednilson Moraes
GRÁFICA Cromosete

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Geary, Patrick]. , 1948-


0 Mito das Naçóes: a invenção do nacionalismo/ Patrick J.
Geary [tradução Fábio Pinto] -- São Paulo: Conrad Editora do
Brasil, 2005.

Título original: Europaischc Volker im frühen Mittelalter.


Bibliografia.
ISBN 85-7616-120-6

1. Europa - Relaçóes étnicas - História 2. Europa - Relaçóes


raciais 3. Imigrantes - Europa 4. Nacionalismo - Europa -
História - Século 19 5. Roma - Fronteiras - História 6. Roma -
História - Invasão dos bárbaros 7. Xenofobia - Europa 1. Título

05-6726 CDD-305.80094

Índices para catálogo sistemático:


1. Europa : Relações érnicas : História : Sociologia
305.80094
2. Nacionalismo étnico : Europa : História : Sociologia
305.80094

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DEDICATÓRIA
~

Para Jean Airiau e Jim Usdan, amigos e leitores dedicados


que entendem a importância do passado para o presente,
assim como a diferença entre os dois.
SUMÁRIO
~

AGRADECIMENTOS . . ... .. . .. .. ... ..... . .. . . . . .. 09

Introdução
A CRISE DA IDENTIDADE EUROPÉIA . .. ... . . . ... . . 11

Capítulo 1
UMA PAISAGEM ENVENENADA: ETNICIDADE E
NACIONALISMO NO SÉCULO XIX ... . . . .. . . . ... .. 27

Capítulo 2
POVOS IMAGINADOS NA ANTIGÜIDADE . . . .. ... .. 57

Capítulo 3
BÁRBAROS E OUTROS ROMANOS . . . . . . . . . . . . . . . . 81

Capítulo 4
NOVOS BÁRBAROS , NOVOS ROMANOS . . ...... . .. 113

Capítulo 5
OS ÚLTIMOS BÁRBAROS? ..... . . .. . .. . . .. . ...... . 141

Capítulo 6
A RESPEITO DOS NOVOS POVOS EUROPEUS .. .. .. 177

SUGESTÕES DE LEITURAS COMPLEMENTARES . . .. . 203

1NDICE REMISSIVO . ... . . .... . . . . ... . . . . .. .. ... 207


Capítulo 5
~

OS ÚLTIMOS BÁRBAROS?

Ao longo do século VI, a criação de novos reinos no território do


.1ntigo Império Romano transformou não só a natureza dos povos
que deram seus nomes a essas unidades políticas regionais, como
1ambém a dos "novos" bárbaros que migraram para as regiões fron-
1ciriças abandonadas por esses grupos. Neste capítulo, discutiremos
como o estabelecimento desses bárbaros na Gália, na Itália, na Es-
panha, nos Bálcãs e até mesmo na Britânia tornaram incertos os
1imites entre os romanos e os bárbaros, quando não os suprimiram

totalmente.

Fusão nos reinos ocidentais

A Itália lombarda

A Itália lombarda nasceu em meio a confusão e violência. A guerra


sangrenta entre bizantinos e ostrogodos exauriu a península, dei-
xando-a vulnerável. Em 568, o rei Alboino, que dizia (baseado em
quê, nunca saberemos) descender da família real dos Gauti, con-
duziu à Itália um exército heterogêneo formado por romanos pro-
vincianos da Panônia, suevos, sármatas, hérulos, búlgaros, gépidas,
saxões e turíngios. Entre eles havia arianos, cristãos ortodoxos e pro-
vavelmente alguns ainda pagãos. Esses grupos tinham seus próprios
142 ~ O M i to d as Na ç ões

líderes, membros de dás ilustres ou reais, invejosos uns dos outros e


do rei lombardo. Não se tratava de um exército federado se estabe-
lecendo em uma província romana sob o comando do imperador,
mas de uma conquista sangrenta e brutal. A violência foi exacerba-
da por sua natureza descentralizada, especialmente após a morte de
Alboino (provocada por sua mulher), quando os duques começaram
a estabelecer ducados autónomos pela Itália. Esses foram barrados
nas entradas de Roma e de Nápoles pelo comandante romano (ou
bizantino) de Ravena, enquanto os exércitos burgúndio e franco
- após as desastrosas incursões lombardas na Borgonha - conquis-
taram os vales piemonteses de Aosta e de Susa e os separaram da
Itália lombarda.
Em seus novos ducados, os lombardos (que provavelmente repre-
sentavam entre 5% e 8% da população dos territórios que haviam
ocupado) não deixaram cargos políticos para os remanescentes da
elite romana que haviam sobrevivido à reconquista bizantina. Um
habitante da parte oeste dos Alpes, contemporâneo da ocupação
lombarda, relata que Clefi, sucessor de Alboino, "matou muitos da
aristocracia e das classes intermediárias". 1 De modo semelhante,
Paulo Diácono, historiador do século VIII, baseando-se em um tex-
to do final do século VI, escreve que "[Clefi] matou muitos romanos
poderosos, e outros ele expulsou". 2 Após a morte de Clefi, Paulo
continua:
Naqueles dias, muitos nobres romanos foram mortos por ga-
nância. Os que sobraram foram divididos entre os "hóspedes" e
feitos tributários, de modo que teriam que pagar um terço de suas
safras aos lombardos. 3

1. Marius Aventicus, a. 573 MGH (Monumenta Germaniae Historica, N. T.) AA 11,238.


2. Historia Langobardorum 2, 31.
3. Historia Langobardorum 2, 32.
Capítulo 5: Os último s b á rb a r os? .,... 14 3

Essas passagens parecem indicar que, durante a conquista, mui-


tos proprietários de terras romanos foram mortos ou exilados, pos-
sivelmente em regiões que ainda eram controladas pelo Império.
Suas terras provavelmente foram confiscadas e retidas como terras
reais ou ducais, ou então redistribuídas entre os lombardos. Os ou-
tros proprietários foram forçados a pagar o tributo exorbitante de
um terço de seus rendimentos aos seus conquistadores, ou seja, aos
duques e ao rei.
Medidas como essa claramente subordinavam os remanescen-
tes da elite romana aos seus conquistadores lombardos. Entretanto,
apesar dos tributos exorbitantes, eles não foram rebaixados à escra-
vidão ou à servidão. A pequena elite militar lombarda dificilmente
desejaria extinguir toda a classe romana abastada, mesmo que isso
fosse possível. Era muito mais vantajoso conservar a maioria dela
como contribuinte.
A vida da elite italiana remanescente sob a autoridade dos lom-
bardos devia ser difícil, mas não muito pior do que a dos que con-
tinuavam sob a proteção do governador bizantino, que conservara
partes importantes da costa italiana e da região central, entre Roma
e Ravena. Na verdade, a vida na Itália lombarda devia ser melhor
do que na Itália "romana". O papa Gregório o Grande reclama, no
final do século VI, que os proprietários de terras da Córsega tenta-
vam fugir para a Itália lombarda em vez de fugir dela, e que indiví-
duos de todas as classes pareciam às vezes mais inclinados a viver
sob o domínio dos lombardos do que sob a implacável pressão dos
agentes do fisco. 4 Enfim a população romana que havia sobrevivi-
do aos cercos e ataques das primeiras décadas aparentemente havia
encontrado seu lugar na nova ordem lombarda. Com o tempo (não
sabemos exatamente quanto), as sociedades lombarda e romana se
fundiram.
4. Para informações sob re as várias fo ntes q ue sugerem a atração exerci da pe los lom bardos sobre,
pelo menos, algun s elementos da sociedade ita liana, ver Wickham, Early Medieval ltaly, p. 67.
14 4 -e O Mit o d as N açõe s

O conjunto de documentos sobre a população romana do rei n<1


lombardo do século VII é bastante limitado. No entanto, foml·~
arqueológicas e textos raros sugerem que de fato houve uma fusão.
Primeiro os diferentes grupos que tinham participado das invasõe,
formaram uma nova identidade lombarda. Então esses "novos" lom
bardos e seus vizinhos romanos (a maioria) se amalgamaram.
Inicialmente a lei era um dos meios mais importantes para :1
formação do povo lombardo. A partir da metade do século VII, OH
guerreiros bárbaros de diferentes origens tiveram que se submeter :)
lei lombarda, a menos que fossem autorizados pelo rei a seguir um
sistema legal alternativo. 5 Certamente a identidade legal lombard :1
não era determinada pelo sangue, mas pelo decreto real. Sob a pres-
são da corte, que buscava estabelecer uma unidade, os documentos
que faziam referência à variedade de grupos que formavam o exérci-
to lombardo desapareceram em favor de uma identidade lombarda
simplificada, lado a lado com a dos romanos. Mas essa dicotomia
também começou a se desintegrar. Aos poucos os lombardos foram
adotando o vestuário, a cerâmica e outros elementos da cultura ro-
mana. Além disso, embora as evidências sejam indiretas, casamen-
tos entre membros dos dois grupos (de todas as classes) começaram
a ser realizados. O indício mais evidente da adoção da cultura roma-
na pelos lombardos é o uso que faziam das cidades. Todos os duques
estabelecidos no reino (35 de acordo com Paulo Diácono) haviam
adotado cidades romanas como base.6
Por volta da década de 700, quando os documentos escritos co-
meçaram a reaparecer na Itália, a fusão já estava bastante avançada.
As famílias davam nomes lombardos e romanos a seus filhos. Algu-
mas inclusive, como na tradição germânica, criavam nomes híbri-

5. Rothari 367, MGH LL 4. Ver Brigitte Pohl-Resl, "Legal Practice and Ethnic ldentity in Lombard lta ly",
em Pohl, Strategies ofDistinction: The Construction ofEthriic Communities, 300-800, Leiden, 1998,
p.209.
6. Historia Langobardorum 2, 32.
Ca pítulo 5 : O s último s bá rba ros? - 145

tio.~por aglutinação, como nos casos de "Daviprand" e "Paulipert".7


1 >s sistemas legais romano e lombardo também se entrelaçavam.
~ leis lombardas, escritas sob o comando de vários reis entre as
1 lí· ·adas de 650 e 750, vigoravam paralelamente às leis romanas e

11•v ·lavam uma certa influência dessas, especialmente pelo fato de


11•rc m sido escritas. As leis relativas à posse de terras continuavam
1•11do as romanas, enquanto um dos dois códigos, dependendo das
, ,. ·unstâncias, poderia ser aplicado à questão da herança.
Por volta do início do século VIII, a lei lombarda já era válida
p.tra todos. Um dos artigos do código do rei Liutprando deixa isso
1 l,1ro:

No caso dos escribas, decretamos que aqueles que preparam


as escrituras devem escrevê-las de acordo com a lei dos lombardos
- que é bem conhecida e acessível a todos - ou com a dos romanos;
eles não devem agir de outra forma que não seja a que está prevista
nessas leis, nem mesmo elaborar documentos contrários à lei dos
lombardos ou à dos romanos. 8

O édito segue afirmando que, caso houvesse consenso entre as


partes, estas poderiam abrir mão de ambos os códigos e resolver a
questão pessoalmente, da forma que lhes conviesse. Entretanto, em
1:1sos relacionados à herança, os documentos deveriam ser prepa-
r,1dos de acordo com a lei. Alguns interpretaram essa última frase
1 omo "os envolvidos deveriam seguir sua própria lei com rigor ape-

nas quando os casos envolviam a questão da herança". 9 Podemos


d i'f.er que se trata de uma interpretação forçada . O texto denota
.,penas que, em casos de herança, os escribas tinham que preparar
os documentos "de acordo com a lei", fosse a dos romanos ou a dos
lombardos. Naturalmente um acordo particular entre duas partes

/ . Wickham, Early Medieval ltaly, p. 68-69.


li. Li utprando, 91 , Bluhme (Ed.), MGH LL 4. Traduzido por Katherine Fischer Drew, The Lombard Laws,
Fi ladélfia, 1973, p. 183-184. Ver também Pohl-Resl, "Legal Practice and Ethnic ldentity", p. 209-210.
'l. Pohl-Resl, "Legal Practice and Ethnic ldentity", p. 209.
14 6 -<,, O Mi to da s Nações

seria inadequado, já que em tais circunstâncias poderia haver outros


envolvidos, ou seja, herdeiros em potencial, que poderiam não con-
cordar com o acordo. O artigo não estabelecia que os testadores não
poderiam escolher entre os dois códigos. A lei havia se tornado um
recurso; não era mais uma questão de sangue, de nascimento.
As escrituras relativas à transferência de propriedades fundiárias
revelam que a escolha da lei variava até mesmo entre indivíduos
de uma mesma família. Dois casos analisados por Brigitte Pohl-
Resl demonstram essa prática. De acordo com uma escritura de 767,
um grupo havia feito uma doação à abadessa de San Salvatore, em
Brescia. A escritura não faz distinção legal entre os doadores, e o
fato de todos serem donos da propriedade doada sugere que eram
parentes. Entretanto um deles, e apenas um, que por acaso tinha o
nome latino de Benenatus ("bem-nascido"), deixava a observação
ao lado de sua assinatura de que deveria receber uma "retribuição",
ou launegild, "de acordo com a lei lombarda". 10 Aparentemente Be-
nenatus havia sido o único da família a optar pela lei lombarda,
oferecida a todos pelo rei Liutprando. Em 758, uma mulher que
tinha o bom nome lombarda de Gunderada, mas que era explici-
tamente designada como "mulher romana" (Romana mulier), doou
ou vendeu parte de uma propriedade com o consentimento de seu
marido. Para uma ação regida pela lei lombarda, o consentimento
do marido era normal e apropriado, mas, para a lei romana, seria
supérfluo. Independentemente do significado exato da designação
"mulher romana", ela e seu marido estavam agindo de acordo com
o sistema legal lombarda. Aparentemente, ou Gunderada não estava
mais seguindo a lei romana, ou sua romanidade pouco importava
no contexto legal. 11 Esses exemplos seguramente sugerem que, por
volta do século VIII, o uso de uma ou outra lei revelava muito pau-

10.Pohl- Resl, "Lega l Practice an d Eth nic ldent ity", p. 210.


11.lbid.
Capí t u lo 5: Os último s bá rbar o s? .,.... 147

co a respeito do que poderíamos chamar de identidade "étnica" dos


proprietários de terras na Itália.
A fusão relativamente tranqüila dos romanos com os lombardos
rnlvez tenha sido facilitada pela natureza heterogénea dos invasores,
por seu governo descentralizado e por suas identidades religiosas
analogamente combinadas. Em meados do século VI, uma comis-
são descreveu para o imperador Justiniano os lombardos como or-
wdoxos. Na época em que invadiu a Itália, o exército lombardo era
formado por cristãos ortodoxos, pagãos e arianos.12 Aparentemente
Alboino era ariano, ou pelo menos um pagão que simpatizava com o
arianismo, embora sua primeira mulher - Chlotsuinda, filha do rei
í'ranco Clotário - fosse uma cristã ortodoxa. Seus sucessores eram
arianos ou ortodoxos, e uma parcela considerável da população lom-
barda manteve sua fé pagã até o final do século VI. Com exceção do
rei Autari (584-590), que tentou impedir que os lombardos se con-
vertessem ao cristianismo ortodoxo, nenhum dos outros reis tentou
efetivamente estabelecer uma religião única para o seu povo. Já os
duques podiam apenas apoiar ou se opor a práticas religiosas especí-
f-i.cas, ou então simplesmente ignorá-las. Por volta do final do século
VII, os reis lombardos e supostamente a maior parte da população
já haviam aderido à fé ortodoxa da maioria da população da Itália,
sem grande drama ou conflitos.
No entanto, a fusão dos romanos com os lombardos não impli-
cava a perda da identidade lombarda. Ao contrário: independen-
temente das origens biológicas dos habitantes da península, ou de
se seus ancestrais terem ou não chegado à Itália com Alboino, por
volta do século VIII a elite social se reconhecia como lombarda.
Apenas os lombardos tinham acesso ao poder e às riquezas, mas isso
não significa que os romanos haviam se subordinado aos lombardos,
mas sim que haviam se tornado lombardos. Os significados dos dois
termos variavam de forma complexa.
12. Stephen C. Fanning, "Lombard Arianism Reconsidered", Speculum 56, 1981: 241 -258.
14 8 -<> O Mi to da s Na çõ e s

A identidade lombarda se baseava na tradição da elite militar - o


grupo original que havia penetrado no reino -, independentemente
da realidade da época. Ser um lombardo era, pelo menos em teoria,
ser um guerreiro livre e um proprietário. Essa era a imagem apre-
sentada nas Leis Lombardas do século VIII. No código do rei Liut-
prando (712-744), o soldado (em latim, exercita/is; em lombardo
latinizado, arimannus) era o homem livre arquetípico. 13 Na época
do rei Astolfo (749-756), seu sucessor, essa identidade foi sutilmente
invertida. Ser um homem de posses era ser um guerreiro:
Que o homem dono de sete mansões tenha sua cota de malha e
outros equipamentos militares, e que tenha cavalos e outros arma-
mentos. Da mesma forma, aqueles que não têm mansões, mas que
têm 40 iugera de terra, devem ter um cavalo, um escudo e uma
lança ...

A respeito dos mercadores e dos que possuem riquezas em di-


nheiro: que os maiores e mais poderosos tenham suas cotas de ma-
lha e cavalos, escudos e lanças; seus seguidores devem ter cavalos,
escudos e lanças; quanto àqueles que são seus inferiores, que te-
nham suas aljavas com arco e flechas. 14

Em outras palavras, se uma pessoa era suficientemente rica, devia


se equipar como um lombarda, não importando sua ascendência.
E os "romanos"? Eles ainda aparecem no código de Astolfo,
não como descendentes da população nativa da Itália, nem mesmo
como os seguidores da lei romana, mas como os habitantes do terri-

13. Wickham, Early Medieval ltaly, p. 72-73. Wickham se baseia nos dados e na análise de Giovanni
Tabacco, "Dai possessori dell'età carolíngia agl i esceritali dell'età longobarda" Studi medievali
x.1, 1969: 221-268. Porém Tabacco não acredita que a assimilação já estivesse tão avançada. Mais
recentemente, em seu Struggle for Power in Medieval ftaly: Structures of Politica/ Rufe, Cambridge,
1989, ele admite que "talvez seja possível que, pelo fim do século VII, quando a conversão
dos lombardos ao catolicismo já estava praticamente concluída, a convivência entre eles e os
romanos remanescentes da classe dos proprietários de terras em um mesmo meio social tenha
levado alguns romanos a aceitar a tradição jurídica do povo dominante ... ". Entretanto Tabacco
continua duvidando de que tenha ocorrido uma "assimilação substancial legal e militar da
popu lação romana livre pelos lombardos". (96-97)
14. Edictus Langabardorum, Aistulfi Leges, 2, 3. Para uma tradução, ver Katherine Fischer Drew, trad.
The Lombard Laws, p. 228.
Capítulo 5 : Os últimos bárbaro s? .,... 149

tório italiano controlado pela autoridade imperial, fosse diretamente


através de Ravena ou pelo papa. A lei proibia que os comerciantes
negociassem com "um romano" sem a permissão real. Entre as ri-
gorosas punições para essa infração, havia a de raspar a cabeça do
infrator e obrigá-lo a sair pelas ruas gritando: "desta forma sofrerão
aqueles que negociam com os romanos sem a permissão real quando
estamos em guerra contra eles". 15 Claramente os que são designados
como "romanos" nesse caso não são os habitantes do reino lombar-
do - cujos ricos comerciantes e mercadores eram então considerados
lombardos -, e sim os "estrangeiros" da parte do território italiano
que ainda era controlada por Constantinopla. De modo semelhan-
te, os textos dos procedimentos jurídicos do século VIII se referem
ao "tempo dos romanos" como um passado remoto, anterior à con-
quista da Itália pelos lombardos. 16 Uma nova etnogênese lombarda,
da qual toda a elite proprietária de terras pôde participar, havia sido
levada a cabo, enquanto o termo romanus se tornava uma designa-
ção territorial e política, intimamente ligada ao poder do Estado
bizantino.

A Espanha visigótica

O reino gótico criado na Gália entre 418 e 419 seguiu o modelo


de aliança federativa que vimos no capítulo anterior. Durante os
primeiros 50 anos, os soberanos góticos agiram de acordo com a
tradição dos federados romanos. Os godos, cuja população tem sido
imprecisamente estimada entre 80 mil e 200 mil pessoas, nunca
passaram de uma minúscula minoria em seu reino. Inicialmente
estabeleceram-se na Gália, nos arredores de Toulouse, capital do
reino, e sua ocupação ao sul dos Pirineus se limitava a algumas uni-
dades militares. Os romanos, muito mais numerosos, continuavam

15. Edictus Langobardorum, Aistulfi Leges, 4. Ver Drew, The Lombard Laws, p. 228-229.
16. Codice Diplomatico Longobardo, Luigi Schiaparelli (Ed.), 1, Roma, 1929, 17, p. 48 e 20, p. 81.
150 ---x,, O Mito das Nações

a viver tranqüilamente de acordo com suas leis, instituições e tr:1


dições. Esse modelo foi desintegrado apenas em 466, quando o rl'i
Eurico desfez o tratado com o Império e conquistou efetivamen1 1•
regiões do sul da Gália, a leste, e da Espanha, ao sul. Essa mudan<;,1
de conduta foi uma conseqüência tanto da decadente situação po
lítica na Gália e na Itália .como de um novo programa ideológi o
dos godos. Por volta de 460, as autoridades militar e política prati
camente não existiam no Ocidente, e Eurico nada mais fez do qm•
ocupar o vácuo de poder deixado pelos romanos.
O programa expansionista gótico gerou uma reação feroz po1•
parte da população nativa, especialmente na Auvérnia e ao sul dos
Pirineus, na Tarragona e em todo o vale do Ebro. O conflito nã
era apenas entre romanos e godos: em algumas regiões, os godos
haviam substituído comandantes romanos. Porém os grandes pro-
prietários de terras locais lideravam a resistência com o apoio de
seus próprios contingentes e de seus aliados bárbaros. O combate foi
brutal, principalmente no Ebro, já que os interesses locais estavam
sendo ameaçados não só pelo fim do pacto entre godos e romanos
como também pela crescente imigração gótica que havia começado
na década de 490.
Contudo, apesar do forte atrito entre os godos e a população sub-
jugada, uma cooperação efetiva começou a se formar entre as duas
partes. O rei Alarico II (484-507) liderou a tentativa de acordo.
Alarico abordou duas questões cruciais para os galo-romanos de
seu reino. A primeira delas era a necessidade de uma estrutura legal
para seus súditos. As relações entre godos e romanos provavelmente
eram regidas pelo código estabelecido por Eurico, pai de Alarico,
válido para todos os habitantes do reino gótico.17 Mas em que leis
seriam baseadas as transações entre os romanos? Alarico resolveu o
problema ao publicar uma versão atualizada e abreviada do Código

17. Wolf Liebeschuetz, "Citzen Status and Law", em Pohl (Ed .), Strategies ofDistinction, p. 141-143.
Capítulo 5: Os últimos bárbaro s7 .,- 151

I1odosiano, o código legal básico dos romanos desde sua promulga-


1

~ -to, em 438. O sumário, conhecido como Breviário de Alarico, era


11m código sancionado pela corte para seus súditos, apropriado para

.1.~ situações mais básicas da vida no reino visigodo.

A segunda questão era a dificuldade criada pelas fronteiras das


dioceses da Igreja, que, estabelecidas antes do fim do domínio im-
perial, não mais correspondiam às divisões geopolíticas do sul da
( ;{tlia entre francos, burgúndios e godos. Em 506, Alarico, apesar
de ser ariano, organizou o Concílio de Agde para reassegurar a hie-
rarquia ortodoxa e resolver os problemas causados pelas novas reali-
dades políticas do início do século VI.
C om essas medidas, Alarico conquistou a confiança dos proprie-
tários de terras galo-romanos de seu reino. Até mesmo os bispos
ortodoxos se revelaram leais a ele. Por volta de 507, um importante
contingente de romanos, sob o comando do filho de um dos mais
veementes líderes antigóticos da geração anterior, combateu o fran-
co Clóvis em Vouillé ao lado do rei gótico.
No entanto, Alarico perdeu a batalha e sua vida em Vouillé, e
com ele se extinguiram o reino gótico de Toulouse e a possibili-
dade de uma rápida reaproximação entre godos e romanos. À me-
dida que os sobreviventes do desastre, com suas famílias e servos,
atravessavam os Pirineus em direção à região central da Espanha,
o reformulado reino gótico assumia um ar ainda mais desolado e
hostil. A Espanha para a qual o exército derrotado transferia seu rei-
no era uma unidade administrativa romana culturalmente variada.
Além da maioria de hispano-~omanos, havia grupos significativos
de gregos, sírios, africanos e judeus que viviam, em sua maioria,
em cidades portuárias como Tarragona, Tortosa, Elche, Cartagena
e Narbonne, capital da estreita faixa litorânea entre os Pirineus e
o Ródano, ainda sob o domínio dos godos. Além disso, os suevos
continuavam governando a Galiza, e havia comunidades nativas in-
tactas após séculos de uma ocupação romana simbólica, incluindo
152 --<> O Mi t o das Naçõe s

a dos bascos no norte e ainda outras na Orospeda e na Cantáb, 1.,


Nessas regiões rústicas e economicamente isoladas, a romanitas li ,1
via significado pouco mais do que uma presença militar intermit ·11
te, e o paganismo continuava bastante popular no século VII. N.1
localidades em que as tradições romanas tinham mais força, co11111
no vale do Ebro, os visigodos já haviam enfrentado fortes oposiç H
durante o período da geração anterior. O derrotado exército góti 1,,
que havia batido em retirada pelos Pirineus em 507, teria pela fren1 1
um trabalho monumental se quisesse dar alguma unidade à penfn
sula Ibérica.
O estabelecimento do reino visigodo na região central da Esp:i
nha pode ser compreendido como o fim da migração gótica. No
século VI, os godos se preocuparam em consolidar sua posição n:1
Espanha, apesar de terem que manter o modus vivendi com a eliu·
romana proprietária de terras, estabelecida anteriormente por Eu-
rico e Alarico. Ao mesmo tempo, tentavam isolar sua identidade,
proibindo casamentos entre bárbaros e romanos e preservando su:i
fé ariana.
Um dos elementos do Código Teodosiano que haviam sido adap-
tados e incluídos no Breviário de Alarico era justamente a proibi-
ção desses casamentos. No Código Teodosiano, a principal meta da
proibição era evitar conspirações entre pr~vincianos romanos e seus
parentes bárbaros. 18 A proibição no Breviário, formulada de modo
ainda mais veemente, talvez não tivesse a intenção de incluir os go-
dos entre os barbari: provavelmente o verdadeiro objetivo era impe-
dir que francos e romanos se casassem, o que poderia ser prejudicial
para os visigodos. 19 Outros possíveis objetivos: a proteção da amea-
çada identidade gótica (lembremos que os godos viviam em meio a

18. Liebeschuetz, "Citizen Status and Law", p. 139-140; para detalhes, ver Hagith Sivan, "The
Appropriation of Roman Law in Barbarian Hands: Roman-Barbarian Marriage in Visigothic Gaul
and Spain", em Pohl (Ed.), Strategies af Distinction, p. 189-203.
19. Sivan, "The Appropriation ofRoman Law", p. 195-199.
Capítulo 5: Os últimos bárbaros7 .,,._ 153

111 na população mais numerosa havia duas gerações) e a proteção dos


ti r ·itos dos romanos, já que o casamento, até certo ponto forçado,
111tre um godo poderoso e uma herdeira romana era um meio óbvio
dr os godos se apropriarem das terras dos romanos. Qualquer que
11,sse o motivo original, após a fuga dos visigodos para a Espanha
1 proibição adquiriu um novo significado em um novo contexto,
', l·ndo entendida como uma forma de evitar casamentos entre godos
1• romanos, uma tentativa de manter a elite militar gótica separada

da massa romana. A proibição vigorou durante 50 anos. A liderança


1 ·ligiosa hispano-romana, que tinha proibido casamentos entre ca-
tólicos ortodoxos e arianos, também tinha em mente a preservação
de sua identidade.
O arianismo constituía o segundo elemento da identidade gó-
1ica. Ao longo do século VI, a forte identidade ariana dos godos

isolava-os da população ortodoxa romana e propiciava intrigas por


parte dos bizantinos, ou romanos do Oriente. Entretanto a lideran-
ça gótica considerava essas barreiras culturais essenciais e optou por
fixa r novos limites. Há evidências arqueológicas do início do século
VI, por exemplo, que sugerem que os godos começaram a se vestir
(ou pelo menos a vestir seus defuntos) de uma forma que os distin-
guia de seus vizinhos romanos. 20
Não podemos determinar até que ponto essas tentativas de pre-
servação da identidade gótica foram efetivas. Certamente houve
casamentos entre romanos e godos, assim como algumas conver-
sões. Além disso, embora os romanos gozassem de seus direitos à
propriedade, continuavam de fora da esfera do poder político, o que
deve ter estimulado tentativas ambiciosas de mudança de identida-
de. Como observou um historiador, essas medidas tinham como
meta a conservação da distinção entre godos e romanos, "mas as
leis góticas não definiam o que constituía um indivíduo godo". 21

20. Liebeschuetz, "Citizen Status and Law", p. 149.


21. Liebeschuetz, "Citizen Status and Law", p. 141.
154 --., O Mito da s Naç õ e s

Provavelmente os reis góticos podiam decidir quem era e quem não


era um godo, e uma flexibilidade na definição devia ser necessária
para manter o controle do exército gótico sobre o vasto reino. Sem
dúvida, enquanto os godos continuassem sendo uma elite militar
isolada e pequena, seu controle sobre a Espanha seria bastante limi-
tado. Por volta da metade do século, a monarquia penou com assas-
sinatos, intrigas e movimentos separatistas. Os rebeldes chegaram a
pedir a intervenção do imperador Justiniano, e assim os bizantinos
ocuparam as regiões litorâneas do sudeste da península, ameaçando
iniciar uma reconquista, que seria tão sangrenta como a que havia
destruído a Itália dos ostrogodos.
Entretanto, por volta das décadas de 570 e 580, todos os me-
canismos que separavam os godos dos romanos começaram a ruir.
O enérgico rei Leovigildo (569-586) fortaleceu e expandiu a auto-
ridade real por toda a Espanha. Liquidou as revoltas em Córdoba
e em Orense, dominou províncias distantes, como a Cantábria e as
Astúrias, e até certo ponto pacificou os bascos. Leovigildo fez de
Toledo capital permanente, numa época em que os outros soberanos
bárbaros ainda governavam de modo itinerante, sem uma base fixa
para a corte. Entre 584 e 585, derrotou o reino suevo da Galiza e o
incorporou. Levando adiante seu projeto de centralização, começou
a derrubar as tradicionais barreiras que separavam seus súditos. Re-
vogou a proibição da aliança matrimonial entre indivíduos de grupos
diferentes, considerada então um obstáculo para a união entre go-
dos e romanos. Seu verdadeiro objetivo provavelmente era encorajar
os casamentos entre católicos e arianos. Como a legislação da Igreja
Católica proibia essa prática, essas uniões só seriam possíveis caso os
católicos ignorassem as leis de sua igreja. Posteriormente Leovigildo
tentou estimular a conversão dos católicos ao cristianismo gótico.
Para isso, organizou um sínodo em Toledo que modificou a doutri-
na ariana, fazendo com que essa passasse a aceitar a paridade entre
o Pai e o Filho (mas não entre Eles e o Espírito) e deixasse de exigir
Ca p ít u lo 5: Os último s bár b aro s? - 155

um segundo batismo para a conversão. Claramente o rei tentava


d iminuir os obstáculos para que os romanos se tornassem godos. 22
. A tentativa de Leovigildo fracassou por causa da forte resistência
por parte dos bispos ortodoxos. Seu filho Hermenegildo descobriu
um meio mais efetivo de consolidação. Durante uma revolta con-
tra seu pai, converteu-se ao catolicismo, esperando ao que parece
conquistar o apoio da maioria católica. Embora a revolta de Herme-
negildo tenha resultado em seu exílio, e mais tarde em sua morte,
Recaredo, seu irmão, seguiu o mesmo caminho após a morte de seu
pai. Converteu-se ao catolicismo em 587 e liderou a rápida conver-
são dos bispos arianos remanescentes e de toda a Igreja no Concílio
de Toledo, em 589. Segundo o próprio Recaredo, sua meta era nada
menos que a criação de uma nova sociedade unitária - a "sociedade
dos seguidores de Cristo, que transcendia a tradicional dicotomia
godo-romana". 23
A conversão dos godos destruiu as barreiras que impediam a as-
similação sociocultural. Se a língua gótica ainda estava sendo usada
fora da liturgia ariana (bastante improvável no século VII), desa-
pareceu rapidamente. O vestuário e a cultura material dos godos e
dos romanos, que havia muito eram praticamente indistinguíveis,
unificaram-se. 24 Os últimos vestígios da coexistência de sistemas
legais distintos desapareceram entre 643 e 644, quando o rei Chin-
dasvinto promulgou um código único para todos os habitantes do
reino. 25
Embora as distinções entre godos e romanos tivessem se desin-
tegrado, a identidade gótica permaneceu. Entretanto, assim como o
termo lombardo na Itália havia se tornado uma designação de classe

22. Reger Collins, Early Medieval Europe, Nova York, 1991, p. 145.
23. P. D. King, Law and Society in the Visigothic King dom , Cambridge, 1972, p . 132.
24. Dietrich Claude, " Remarks abo ut Visigoths and Hispa no-Ro mans in t he Seventh Century", citando a
obra de Volker Bierbrauer e o utras, em Poh l (Ed.), Stra tegies of Distinction, p. 11 9, _n ota 23.
25. King, Law and Society, p. 18.
156 -e O M i to das Nações

social e nível econômico, ser identificado como um indivíduo de


ascendência gótica na Espanha significava pouco mais do que ser
tido como uma pessoa ilustre, de sangue nobre. O que realmen-
te importava era a riqueza, o poder, a identificação com o reino, e
não a ancestralidade. Os reis, de acordo com um cânone do Sexto
Concílio de Toledo, realizado em 638, deveriam ser "da gens góti-
ca e possuir caráter meritório". Mas isso significava apenas que os
francos ou aquitanenses não poderiam reinar. 26 O rei Ervígio, que
assumiu o trono em 680, era filho de um romano que havia sido exi-
lado pelo Império Bizantino. Embora não fosse "etnicamente" um
godo, era reconhecido como tal por ter nascido no reino visigótico.
Além disso, podia alegar ascendência nobre, já que seu pai havia se
casado com uma parente do rei Chindasvinto, satisfazendo assim às
exigências do concílio. Ser um "godo" significava ser um membro
da elite do reino visigótico.
A hierarquia católica apoiou veementemente essa perspectiva e os
reis góticos que a sustentavam. O programa da unificação da socie-
dade sob o catolicismo era conduzido pelos concílios de Toledo, sen-
do que 16 deles foram realizados entre 589 e 702. Contudo, embora
a conversão facilitasse a unificação dos godos e romanos, o fato de
os "romanos" da península nunca terem constituído uma população
cultural e religiosamente unificada não havia sido levado em conta.
Durante as décadas de governo ariano, houve uma simplificação
da composição heterogênea da população. Primeiro os suevos, vân-
dalos, alanos e outros grupos arianos se fundiram em um único
populus gothorum, enquanto gregos, sírios, norte-africanos e outros
grupos ortodoxos da Espanha foram compelidos para o populus ro-
manorum. Quando o rei gótico abandonou o a~ianismo, esses dois
"povos" puderam se unir. Porém esse processo deixou de fora uma
parcela importante da população romana da Espanha: os judeus.

26. Concilium toletanum 6, 17, p. 244-245 . Ver Claude, "Remarks about Visigoths and Hispano -
Romans in the Seventh Century", p. 127--129.
Capítulo 5. Os últimos bárbarosl .,- 15 7

Ao longo do século VI, os judeus foram perdendo sua identidade


romana, enquanto o cristianismo ortodoxo se vinculava cada vez
mais à romanitas. Desse modo, os judeus foram forçados a formar
sua própria identidade isoladamente, o que os transformou em um
povo desprezado e perseguido por seus vizinhos católicos. A cres-
cente marginalização dos judeus em uma sociedade definida por
uma identidade cristã unificada também ocorreu em território im-
perial. No Império Bizantino, de modo semelhante, à medida que o
cristianismo se vinculava ao Estado, os judeus passavam a ser cada
vez mais marginalizados e perseguidos. No reino visigodo, a mar-
ginalização e a perseguição aos judeus foram ainda mais severas do
que em Constantinopla.
Após a conversão dos godos, as distinções entre esses bárbaros
e os romanos desapareceram, e a alteridade dos judeus se tornou
ainda mais evidente e perturbadora para os reis cristãos. A Espanha
visigótica então elaborou as mais precoces e tenebrosas leis contra
eles, compelindo-os a entrar para a societas fidelium.
Houve uma pressão avassaladora sobre os judeus, incluindo ba-
tismos forçados e castigos brutais. O deslocamento dos judeus em
viagens passou a ser limitado e supervisionado pelo clero. A adesão
às leis judaicas relativas à alimentação, à circuncisão e ao proselitis-
mo judajco passaram a ser punidos com açoitamentos, escalpamen-
tos, mutilações e o confisco de propriedades. Porém, apesar dessa
pressão para que eles se convertessem, até mesmo os judeus converti-
dos, de acordo com a legislação real, eram considerados inimigos do
cristianismo. Por fim, o rei Ervígio ordenou a escravização de todos
os judeus, convertidos ou não. 27
A veemência com que os reis, apoiados pelo clero - incluindo
Julião de Toledo, que era de origem judaica-, buscavam eliminar os
judeus contrastava categoricamente com a capacidade que tinham

27. King, Lawand Society, pp. 130-144.


158 - O Mito das Na ç õ es

de levar a cabo as medidas cruéis que decretavam. A população con 11 ,


um todo não parecia compartilhar desse ódio cáustico, e freqüc11
temente a própria estridência da legislação revelava a falta de apoi( 1
a essas medidas. Mas a determinação dos governantes de erradi ;11
esse "novo" povo, que suas diretrizes políticas haviam criado, deix 11
um legado terrível na Espanha, onde essa preocupação fanática co111
a pureza do sangue ressurgiria na Idade Moderna.

A identidade franca até o século VIII

Ao norte do rio Loire, nos séculos VI e VII, houve um processo


semelhante, com a maioria da população adotando a identidade d
uma minoria reinante. Nesse mundo, longe dos centros culturais ·
políticos do império, o processo foi mais rápido e efetivo do que em
outros lugares. A conversão de Clóvis - fosse uma medida calcula-
da para conquistar o apoio dos galo-romanos contra os visigodos,
uma afronta igualmente calculada à hegemonia dos ostrogodos, ou
até mesmo uma decisão pessoal de um rei guerreiro em busca da
mais efetiva das divindades - certamente facilitou a rápida fusão
dos francos com os romanos. Do mesmo modo, os filhos e netos de
Clóvis expandiram sua hegemonia em direção ao leste, sem grandes
problemas nem tensões religiosas ou étnicas.
Essa assimilação não implicou o desaparecimento das noções de
identidade correlativas do reino. As identidades regionais, eviden-
tes no século V, que se baseavam no orgulho das populações por
suas respectivas civitates, tiveram continuidade no mundo franco. O
golpe de Estado dos francos em nada diminuiu esse regionalismo,
embora o estabelecimento do regnum francorum ampliasse a possi-
bilidade da formação de novas identidades e vínculos de lealdade.
Clóvis e seus sucessores incorporaram as divisões administrativas
das civitates romanas e estabeleceram suas capitais nos velhos centros
administrativos do império. Assim as mesmas civitates continuaram
Cap ítulo 5: O s último s b árb ar o s? .,.._ 159

r ndo o foco do orgulho e das identidades regionais, exatamente


1 orno no final da Idade Antiga, com as elites locais - formadas pe-
los descendentes dos antigos aristocratas provincianos e pelos novos
,1gcntes do rei franco - intimamente vinculadas às suas cidades. A
organização militar merovíngia reforçava esse regionalismo, já que
,1s tropas eram reunidas de acordo com as localidades. Além dis-
,o, ela também prolongava outras formas de identidade do final do
1mpério Romano, especialmente as das unidades militares bárbaras
·stabelecidas pela Gália. No século VII, esses pequenos assentamen-
1os militares ainda conservavam sua identidade específica. Dessa
fo rma, havia os saxões de Bayeux, os taifalos de Poitou, os chamava-
ri de Langres, os scoti de Besançon e os suevos de Courtrai. 28
O reino de Clóvis não era o reino dos francos, mas apenas um
dos muitos que existiam. Enquanto Clóvis e seus descendentes in-
corporavam os reinos francos rivais e outros reinos vizinhos a leste
e ao sul, aprendiam a lidar com as identidades regionais, mesmo
com seus seguidores em posições de poder. Ao longo do século VI,
três reinos francos emergiram: o reino da Nêustria, região central
que abrangia Soissons, Paris, Tours e Rouen, e na qual os francos
haviam emergido para defender e então substituir a autoridade im-
perial; o da Austrásia, que incluía regiões a leste do Reno, assim
como Champagne, Reims e posteriormente Metz; e o da Borgonha,
que abrangia o antigo reino dos burgúndios ao longo do Ródano e
boa parte da Gália até Orléans, sua capital.
O território entre o Loire e o Reno continuou constituindo o
centro do poder franco. Nessa região, as elites rapidamente se re-
conheceram como francas, independentemente de suas ascendên-
cias ou vínculos militares. Em meados do século VI, até mesmo os
descendentes da família de Remígio de Reims, o bispo romano que
havia batizado Clóvis, tinham nomes francos e se reconheciam e
28. Eugen Ewig, "Volkstum und Volksbewulltsein im Frankenreich des 7. Jahrhunderts", em Eugen
Ewig, Spiitantikes und friinkisches Gal/ien, Hartmut Atsma (Ed.), vol.1, Munique, 1976, p. 234.
160 - O Mito das Nações

eram reconhecidos como tais. As elites da Nêustria e da Austd~i .i


se consideravam um único povo, e até os conflitos mais violento·
entre elas eram vistos como guerras civis, e não como guerras en t 11
povos. A população era governada por uma lei territorial, a chamad.1
Lei Sálica. Partes dessa lei foram escritas pela primeira vez no iní ín
do século VI.2 9 As versões escritas da lei, originalmente destinada~
aos seguidores de Clóvis, foram reformuladas e ampliadas por um:1
série de soberanos francos ao longo do século seguinte. Na segun
da metade do século VII, a Lei Sálica geralmente era tida como :1
lei dos que viviam na parte ocidental do reino franco, ou seja, na
Nêustria.
NaAustrásia, os éditos reais e o direito consuetudinário termina-
ram resultando no Código Ripuário. A versão final da Lex Ribuaritt
é um texto carolíngio revisado por Carlos Magno, e alguns susten-
tam que o código completo data apenas do final do século VIII. 30
Entretanto o texto revela influências do Código Burgúndio e da Lei
Sálica, e dá a entender que havia uma lei ripuária não escrita além
do Código propriamente dito. Tudo isso sugere que algum tipo de
código legal havia sido criado para o reino austrásio, provavelmente
no início do século VII, como parte da crescente regionalização do
mundo franco.
Além das fronteiras do Loire e do Reno, a organização político-
militar dos francos criou novas identidades regionais, baseadas, em
parte, nas tradições bárbaras e romanas das aristocracias locais, ge-
rando também novas entidades políticas e sociais. Em regiões como
a Borgonha e a Aquitânia, antigas tradições legais e estruturas so-
ciais foram adaptadas ao novo sistema franco. Em outros lugares, os
francos impuseram seus códigos legais e governantes.

29. lan Wood, TheMerovingian Kingdoms 450-751, Harlow, 1994, p. 108-114. ·


30. Patrick Wormald, "Lex Scripta and Verbum Regis: Legislation and Germanic Kingship from Euroic
to Cnut", em P. H. Sawyer e 1. N. Wood (eds.), Early Medieval Kingship, Leeds, 1977, p. 108.
Ca p ítul o 5 : Os ú lt im os b á rb a ros? .,.... 16 1

A conquista do reino burgúndio transformou a região em um


s116-reino franco, sem com isso eliminar sua aristocracia ou suas
1rad ições legais preexistentes. Essa região do alto Ródano havia sido

governada por um exército bárbaro heterogêneo - estabelecido na


região do Jura por volta de 443, sob o comando do romano Aécio
que havia penetrado nas regiões de Viena e de Lyon nas últimas
décadas do século V. Em 517, o rei burgúndio Sigismundo promul-
gou um código legal, o Liber Constitutionum, elaborado a partir de
uma combinação de éditos reais anteriores, dos costumes burgún-
d ios e da lei comum romana. 31 Uma das principais metas do código
era regular as relações entre os bárbaros e os romanos do reino, mas
também havia leis romanas adaptadas para questões concernentes
apenas aos romanos. Dessa forma, o código considerava todos os
não romanos como um único "povo", e foi ao mesmo tempo uma
evidência e um agente da etnogênese dos burgúndios. 32 Na época de
sua compilação, o populus noster ("nosso povo") referido por Sigis-
mundo eram os habitantes do reino, fossem romanos ou bárbaros.
Os conquistadores francos incorporaram o reino burgúndio a
um reino mais amplo, que abrangia a maior parte da região ao redor
de Orléans. Contudo respeitaram as tradições sociais e legais dos
burgúndios, deixando-as intactas ao longo dos séculos VI, VII e
V III. Uma rixa entre um tesoureiro merovíngio e um couteiro, por
exemplo, quando levada à Justiça em Chalon-sur-Saône, antiga ca-
pital burgúndia, foi resolvida de acordo com a lei burgúndia relativa
aos duelos. 33 Ao longo dos séculos VII e VIII, a aristocracia local
manteve com zelo um sentimento identitário burgúndio, preserva-
do em sua singular tradição legal.

31. Patrick Amory. "Meaning and Purpose of Ethnic Terminology in Burgundian Laws", Early Medieval
Europe, 2, 1993: 1-28.
32. lan Wood, "Ethnicity and the Ethnogenesis ofthe Burgundians", em Herwig Wolfram e Walter
Pohl (Eds.), Typen der Ethnogenese unter besonderer Berücksichtigung der Bayern, vol. 1, Viena, 1990,
p. 55-69.
33. Gregório de Tours, Libri Historiarum X, 1O; Wood, "Ethnicity", p. 55.
162 ---e O Mito das Nações

Essa regionalização foi ainda mais marcante nas regiões conquis-


tadas a leste do Reno, como na Alamannia, na Turíngia e na Bavie-
ra. Os merovíngios governavam essas regiões por meio de duques
- comandantes regionais de origem franca - instalados pela força
de suas tropas, mas mantidos por vínculos de parentesco e de patro-
nato com as aristocracias locais. Esses ducados não eram formados
apenas por povos preexistentes do período das migrações: eles eram
criações dos francos, que moldavam, dividiam e reconstituíam os
elementos regionais, estabelecendo novos principados.
Ao sul do Loire, na Aquitânia e na Provença, os governadores
francos tendiam a "se tornar nativos", vinculando-se às identidades
das famílias aristocratas regionais. Assim os chefões locais estabele-
ciam alianças poderosas e, enquanto juravam lealdade a longínquos
reis francos, tratavam de tirar proveito da situação. A lei romana,
fosse pelo Código Teodosiano ou por suas formas abreviadas, como
o Breviário de Alarico, estabelecia uma lei territorial uniforme para
todos, e os condes e duques (na Provença, os patrícios) desenvolviam
poderosas identidades regionais. Processos semelhantes ocorreram
em regiões a leste do Reno, como na Alamannia, na Turíngia e prin-
cipalmente na Baviera, onde os agentes francos eram rapidamente
incorporados às aristocracias locais. Certamente havia atritos e, en-
quanto as autoridades centrais estavam ocupadas resolvendo os pro-
blemas do reino, poderosos movimentos separatistas estabeleciam
principados virtualmente autônomos. Entretanto esses movimentos
eram aristocráticos, estabelecidos por alianças entre oficiais francos
rebelados e autoridades locais, e dificilmente envolviam algum tipo
de sentimento nacionalista ou étnico.
A criação de poderosas identidades regionais - cada uma delas
com sua própria lei e sua própria aristocracia, mas todas ortodoxas
e ligadas ao poder central franco --:- acarretou umá transformação
fundamental na forma como a terminologia étnica havia sido usada
durante séculos. Nos séculos IV e V, a sociedade era basicamente
Capítulo 5: Os ú ltimo s bárbaro s? .,.._ 16 3

dividida em romanos e bárbaros, uma perspectiva dicotômica do


mundo aceita por ambos os grupos, assim como por indivíduos cuja
própria vida revelava a falta de correspondência entre essa classi-
ficação simplista e a realidade. Embora na Antigüidade clássica o
termo bárbaro fosse depreciativo, os exércitos federados do final da
Antigüidade aceitavam o termo e o consideravam uma designação
neutra, ou até mesmo positiva, de sua identidade não romana, uma
identidade coletiva muito mais estável do que a miríade de nomes
"tribais" que geralmente eram vinculados a suas famílias e seus exér-
citos. Por volta do início do século VII, essa distinção não significa-
va mais nada. A cidadania romana era insignificante. As populações
regionais eram divididas de acordo com a classe social - e não de
acordo com a língua, com os costumes ou com a lei. Toda a socieda-
de, com exceção da minoria judaica, estava unida por uma única fé.
Assim o termo barbarus começou a adquirir um novo significado,
passando a ser usado para designar os estrangeiros e, cada vez mais,
os estrangeiros pagãos.
Na biografia de Columbano, escrita no primeiro quarto do sé-
culo VII, o termo barbari podia designar os alamanos pagãos ou
os lombardos arianos, mas nunca os francos ou os burgúndios.34
Q uando o termo barbari era usado para designar cristãos, como no
livro dos milagres de santo Austregésilo, do século VIII, no qual o
termo é aplicado ao exército franco de Pepino I, essa designação é
claramente um comentário depreciativo a respeito de inimigos vio-
lentos que, apesar de cristãos, agiam como pagãos.
Com o desaparecimento dos bárbaros no Império, os romanos
também deixaram de existir. Pode-se dizer que esse fato ocorreu
ainda mais rapidamente. Gregório de Tours, historiador do século
VI, comumente visto como um representante da aristocracia galo-
romana, nunca usava o termo para designar a si mesmo, sua família

34. Ewig, "Volkstum und VolksbewuBtsein", p. 251.


164 ...,. O Mito d as Naçõ es

ou os que considerava como seus iguais. Em vez disso, recorria à eti-


queta regional que vigorava desde o século III, ou se referia à classe
senatorial. Não há romanos na história de Gregório. 35 Em outras
fontes francas, a designação é usada com mais liberdade, especial-
mente nas descrições convencionais das origens das famílias, que
serviam de introduções à biografia dos santos. 36 Por volta do século
VIII, o termo se tornou uma designação regional, geralmente restri-
ta aos aquitanenses, no oeste, e aos habitantes da Récia, nos Alpes.
Por fim, em meados do século IX, o termo romanus passou a ser
usado no reino franco da mesma forma que no reino lombardo: para
designar os indivíduos da cidade de Roma. Na parte ocidental do
Império Romano, não mais havia romanos ou bárbaros.

O novo mundo bárbaro

O vácuo de poder deixado pela integração dos lombardos e outros


povos ao Império durante os séculos V e VI foi rapidamente preen-
chido por novas sociedades: a leste e ao norte do Reno, pelos saxões,
na região do baixo Danúbio, pelos ávaros e eslavos. Esses "novos"
bárbaros restabeleceram a bipolaridade que havia se desintegrado
no território imperial, mas o fizeram de um modo muito diferente
e mais duradouro.
Desses novos povos, os saxões eram os que mais se assemelha-
vam aos seus predecessores, os francos e alamanos. Piratas saxões
da costa do mar do Norte pilhavam o Império desde o século III,
e unidades saxônicas haviam servido ao exército romano durante
muito tempo. No século V, um bando de saxões apareceu na Gália,
comandado por Odoacro, supostamente o mesmo rei bárbaro que

35. Walter Goffart, "Foreigners in t he History of Gregory ofTours", em Walter Goffart, Rome's Foi/
and After, Londres, 1989, p. 275-291; e Patrick J. Geary, "Ethn ic ldentity As a Situationa l Construct
in the Early Middle Ages", Mitteilungen der anthropologischen Gesellschaft in Wien, vai. 113, 1983:
15-26.
36. Ewig, "Volkstum und Volksbewufltsein", p. 247-248.
Capítulo 5. Os últ i mo s bárbaro s? .,- 165

mais tarde governaria a Itália. 37 Como os francos e os alamanos,


não constituíam um povo "antigo", mas bandos descentralizados
que operavam de modo independente. O nome "saxão", que muitos
acredita~ ser derivado de sax, uma espada curta de um gume, não
sugere uma identidade consistente. Eles não eram, de forma nenhu-
ma, os únicos guerreiros que usavam essa arma, que provavelmente
era de origem huna, e não saxônica. 38
Na Britânia, alguns dos federados saxões, recrutados pelos gru-
pos locais para defender a ilha após a retirada das tropas romanas
no início do século V, passaram a dominar o lado leste da província.
Gradualmente - associados a outros saxões oportunistas, anglos,
juros, francos e frísios do continente - esses bandos guerreiros cons-
tituíram pequenos principados, enfrentando (e ocasionalmente se
aliando a) principados britano-romanos igualmente instáveis. Esses
saxões, que eram pagãos, tornaram-se cristãos ao longo do século VIL
Eles foram convertidos pelos missionários romanos, pelos monges ir-
landeses e pelo trabalho pacífico dos cristãos nativos, que, como os ro-
manos da Itália lombarda, da Espanha e da Gália, fundiram-se com
seus conquistadores para formar uma nova sociedade.39
Os saxões do continente mantiveram sua organização descen-
tralizada e sua identidade pagã. Ao longo dos séculos VI e VII, eles
aparentemente tiveram uma relação com o mundo franco notavel-
mente análoga à relação que os francos haviam tido com o Impé-
rio Romano dois séculos antes. Os francos consideravam os saxões
um povo dependente, já que eram obrigados a fornecer gado como
tributo e defender o território franco dos vênedos, que habitavam
regiões ainda mais distantes. Por vezes, os reis merovíngios organi-

37. Gregório de Tours, li, 18.


38. Pohl, "Telling the Difference: Signs of Ethnic ldeníity", p. 37.
39. Henry Mayr-Harting, The Coming of Christionity to Anglo-Saxon England, 3. ed., Avon, 1991. Para
uma abordagem do papel da população naÜva na conversão, ver Patrick Sims-Williams, Religion
and Literature i[I Weste,n Englând, 600-800, Cambridge, 1990, cap. 3, "Pagan ism and Christianity",
p. 54-86.
166 - O Mito das Nações

zavam expedições punitivas contra os saxões, semelhantes às orga-


nizadas pelo imperador Juliano contra os francos e alamanos. Em
outras ocasiões, os saxões se uniam aos francos em campanhas mili-
tares, como quando formaram uma coalizão contra o duque franco
Carlos Manel, no início do século VIII. 40 Os saxões provavelmente
viam a si mesmos e sua relação com os francos de uma forma bem
diferente. Durante o reinado do rei franco Carlos Magno, no final
do século VIII, eles mantiveram uma independência bravia, suas
próprias tradições e sua religião.
Se os saxões tomaram o lugar dos francos e dos alamanos na
Europa Ocidental, os ávaros assumiram o papel dos godos e dos
hunos no leste. Essa confederação das estepes, fugindo da expansão
turcomana na região central da Ásia, apareceu na bacia dos Cárpa-
tos em 567 e, entre 558 e 559, enviou um emissário ao imperador
Justiniano, propondo lutar contra os inimigos do Império em troca
de subsídios anuais. 41 Eles se assemelhavam em muitos aspectos sig-
nificativos a outros povos das estepes que surgiram na Europa no
primeiro milênio. 42 Esses nômades, que viviam em comunidades
pastoris, desenvolveram técnicas de sobrevivência altamente espe-
cializadas, que lhes permitiam viver em regiões praticamente inabi-
táveis. Como se deslocavam centenas de quilômetros em migrações
sazonais, tiveram que desenvolver formas complexas de organização
e comunicação. Assim os imperativos do meio geraram formas ca-
racterísticas de organização sociopolítica. Mobilidade, flexibilidade
e eficiência da cavalaria .eram essenciais para a sobrevivência, as-
sim como a formação de alianças com grupos semelhantes, estabe-
lecendo rapidamente imensos impérios. Já tratamos dessa questão
quando abordamos o efêmero império dos hunos de Átila. Porém os

40. Wood, The Meroving ian Kingdoms, p. 163-1 64.


41. Pohl, Die Awaren. Ein Steppenvolk in M itteleuropa 567-822 n. Ch. , Munique, 1988, p. 18-19.
42. Pohl, "The Ro le ofth e Steppe Peo pl es in East ern and Central Eu ro pe in th e First Millennium A.D.",
em Origins ofCentral Europe, Przemyslaw Urba nczyk (Ed .) (Wa rsaw, 1997), p. 65-78.
Capítulo 5: Os últimos bárbaros7 .,.... 167

ávaros, ao contrário de seus predecessores, foram capazes de formar


um reino - que durou dois séculos e meio - relativamente centrali-
zado, institucionalizado e rnultiétnico, na vitória e na derrota, entre
Bizâncio e os reinos ocidentais remanescentes.
Os ávaros realizaram essa façanha porque conseguiram estabele-
cer urna hegemonia sobre os diferentes povos da fronteira balcânica
do império, monopolizando o nome "ávaro" de modo extraordi-
nário. Durante cerca de 20 anos, Bajan, rei ou khagan dos ávaros,
combateu os utiguri, os antae, os gépidas e os eslavos, até estabelecer
urna grande confederação rnultiétnica. Após a retirada dos lornbar-
dos, Bajan firmou sua autoridade na Panônia. Em 582, conquistou
Sirrniurn,43 antiga capital ilíria. Seus filhos se sentiram fortes o su-
ficiente para desafiar a própria Constantinopla: em 626, um grande
exército, formado por cavaleiros ávaros e navios eslavos, promoveu
um ataque à cidade em sincronia com aliados persas. O cerco durou
pouco mais do que urna semana, e os ávaros foram derrotados. Ta-
manha catástrofe poderia sem dúvida significar o fim da hegemonia
ávara. De fato, alguns dos grupos subjugados tentaram se desgarrar
após o desastre, mas o núcleo, apesar de reduzido, permaneceu fir-
me. Um século mais tarde, cavaleiros ávaros invadiram a Baviera e a
Itália, até que finalmente se depararam com urna força superior, re-
presentada pela figura de Carlos Magno. Ele penetrou no centro do
reino ávaro, atual Hungria, destruindo a confederação rnultiétnica.
Em um período de apenas urna geração, sem a necessidade de urna
grande batalha, os ávaros desapareceram da história.
A confederação ávara foi desintegrada sem deixar mais do que
ricos túmulos no leste da Áustria e na Hungria, mas teve um papel
fundamental na criação do fenôrneno mais importante e duradouro
do Leste Europeu: a rápida e completa eslavização dessa parte do
continente e da Europa Central.

43 . Atual Sremska Mitrovica, na Sérvia e Montenegro. (N . T.)


168 -,, O Mito d as Nações

Entre os séculos V e VII, as regiões a leste da vasta área que havia


muito era chamada de Germânia, assim como as províncias impe-
riais dos Bálcãs e do mar Negro, do Báltico ao Mediterrâneo, passa-
ram a ser controladas pelos eslavos. Essa transformação ocorreu sem
grande alarde, sem histórias de reis poderosos como Átila, Teodorico
ou Clóvis, sem migrações heróicas nem batalhas desesperadas. Foi
um processo que não deixou evidências escritas dos próprios eslavos,
e sua dinâmica interna foi ainda menos notada e compreendida pe-
los cronistas bizantinos e latinos do que a etnogênese germânica no
Leste Europeu. Apesar disso, os efeitos da eslavização foram muito
mais profundos.
Na Europa Ocidental, as tropas bárbaras federadas incorpora-
ram os sistemas de governo, a religião e os assentamentos dos roma-
nos, e terminaram se tornando inteiramente romanas, mesmo tendo
modificado completamente o significado desse termo. Os migrantes
eslavos não adotaram o sistema de tributação, a agricultura, a or-
ganização social ou o sistema político dos romanos. A organização
eslava não se baseava nos modelos imperiais, e seus líderes raramen-
te dependiam do ouro romano para obter sucesso. Sendo assim, a
eslavização foi muito mais efetiva do que as ocupações dos godos,
dos francos ou dos saxões. Quase tudo a respeito dos antigos eslavos
- suas origens, suas estruturas políticas e sociais, seu tremendo su-
cesso - tem sido um grande enigma.
Há muito que os acadêmicos debatem a respeito da "região origi-
nal" dos eslavos. Esse debate sobre a origem dos eslavos é provavel-
mente tão insignificante quanto o debate sobre a origem dos outros
povos bárbaros, já que eles foram formados pela fusão dos povos
que as fontes romanas chamam de citas ou sármatas com as popu-
lações germânicas das regiões a leste do Elba, deixadas para trás pe-
las elites militares germânicas que haviam se deslocado em direção
ao Império. Ultimamente os acadêmicos têm sustentado de modo
convincente que o ·"nascimento" dos eslavos ocorreu ao longo da
Capítulo 5: Os últimos bárbaros7 e--- 169

fronteira bizantina, sob as pressões militar e econômica do Império,


assim como, séculos antes, havia ocorrido com os francos e alama-
nos ao longo do Reno.44 Entretanto a cultura eslava era muito mais
ligada à terra e à agricultura do que a dos movediços exércitos fran-
co e alamano, que acabaram se tornando federados romanos e, por
fim, conquistadores. Com seus arados leves, agricultura de pequena
escala e pequenas unidades sociais com organizações distintas, os
eslavos não chegavam apenas como exércitos cobradores de tributos,
mas também como fazendeiros que cultivavam as terras que con-
quistavam.
Mas com certeza eles também eram conquistadores. Suas ocupa-
ções eram lentas, porém violentas. Após suas conquistas, incorpora-
vam as populações nativas às suas estruturas sociais e lingüísticas.
Contudo a expansão eslava era descoordenada e radicalmente des-
centralizada. Até a Baixa Idade Média, a língua e a cultura material
eslavas apresentavam uma notável unidade em todo o Leste Euro-
peu, que se contrapunha radicalmente à total falta de centraliza-
ção política. Procópio, historiador bizantino do século VI, descreve
como eles "não são governados por um único homem, mas vivem há
muito sob uma democracia, e conseqüentemente todas as questões
relacionadas ao bem-estar do povo, sejam boas ou ruins, são discuti-
das com a população". 45 Essa descentralização talvez fosse o segredo
do sucesso dos eslavos: como não tinham reis ou grandes líderes, os
bizantinos não tinham a quem subornar, derrotar ou obrigar a servir
ao império, não encontrando meios de destruí-los ou incorporá-los ao
sistema imperial.
No século VII, guerreiros-colonizadores eslavos cruzaram o Da-
núbio e gradualmente foram ocupando os Bálcãs. A cronologia dos

44. Sobre as origens dos eslavos, ver especialmente Pohl, DieAwaren, p. 94-128, e Florin Curta,
The Making of the 5/avs: History and Archeology of the Lower Danube Region, ca. 500-700 AD,
Cambridge, 2001.
45. Procópio, História das Guerras VII, xiv, 22.
170 -<> O Mito das Nações

fatos é incerta, e não poderia ser diferente: o processo foi tão des-
centralizado e fluido que dificilmente poderia ser cronologicamente
determinado ou documentado. As contra-ofensivas bizantinas não
puderam interromper o processo, que já estava em um estágio bas-
tante avançado. As conquistas eslavas, ao contrário das germânicas
de dois séculos antes, não significavam apenas a transferência da
renda tributária: alguns soldados capturados conseguiam fugir, ou
então eram incorporados à classe camponesa, mas os eslavos geral-
mente os matavam ou cobravam resgate. Nessa sociedade de solda-
dos-fazendeiros, não havia opções.
A organização hierárquica em larga escala dos grupos eslavos foi
estabelecida por estruturas de comando externas. Os líderes podiam
ser germânicos ou centro-asiáticos, e seu modelo de etnogênese pos-
sibilitava uma maior concentração de poder e uma subordinação
mais efetiva de indivíduos e grupos. Os ávaros foram fundamentais
nesse processo.
A eslavização de um amplo grupo que habitava entre o Elba e
o baixo Danúbio já estava bem avançada quando os ávaros chega-
ram. A ocupação ávara pode ter aumentado a pressão eslava na fron-
teira bizantina, já que bandos eslavos fugiram desse novo império
das estepes. Isso talvez explique as primeiras invasões da península
Balcânica pelos eslavos na segunda metade do século VI, que logo
seriam seguidas por exércitos eslavos sob o comando dos ávaros.
Outros grupos foram definitivamente incorporados ao reino ávaro.
Os ávaros se apropriaram dos quartéis de inverno dos eslavos domi-
nados, exigindo cavalos, suprimentos e mulheres, de acordo com as
necessidades. Em tempos de guerra, utilizavam os eslavos em sua
infantaria e, durante o cerco de Constantinopla, utilizaram-nos em
sua esquadra. Contudo eles tratavam algumas comunidades eslavas
com certa reserva, presenteando seus líderes em troca de tropas e
apoio. Os cronistas bizantinos descreveram os eslavos como vítimas
da opressão dos ávaros. Já os cronistas ocidentais consideraram os
Capítulo 5: Os últimos bárbaros? .,- 17 1

dois "povos" como aliados. Provavelmente as duas perspectivas es-


tavam corretas.
As estruturas militar e política dos ávaros estabeleceram o con-
texto da etnogênese de alguns grupos eslavos específicos. Na primei-
ra metade do século VII, provavelmente sob influência do malsuce-
dido ataque a Constantinopla em 626, muitos grupos da periferia
do reino ávaro se rebelaram, estabelecendo unidades políticas autô-
nomas entre os francos, a oeste, e Bizâncio, a leste.
Na região que provavelmente correspondia à atual República
Checa, Sarno, um franco, organizou com muito sucesso um grupo
de eslavos de origens distintas que havia se rebelado contra os áva-
ros. De acordo com uma fonte ocidental, os eslavos o elegeram rei,
e então ele governou um reino eslavo durante mais de 30 anos. 46 A
separação dos eslavos de Sarno da confederação ávara, que se seguiu
à tentativa malsucedida dos ávaros de conquistar Constantinopla,
foi provavelmente apenas uma de várias revoltas contra o khagan
derrotado.
Os vários grupos que no século X eram conhecidos como croa-
tas e sérvios provavelmente foram formados nesse mesmo período,
durante a crise do reino ávaro. É impossível destrinchar completa-
mente a história antiga dos croatas, que é quase inteiramente basea-
da na crônica do imperador bizantino Constantino Porfirogêneto
(905-959). 47 Constantino escreveu um tratado destinado aos seus
sucessores sobre como administrar o Império, dando especial aten-
ção aos seus vizinhos eslavos. Para isso, baseou-se no conhecimento
de sua época e em documentos seculares (atualmente desaparecidos)
dos arquivos imperiais, mas não podemos saber até que ponto sua
crônica corresponde aos fatos. Constantino se refere a dois grupos
de croatas, o dos croatas "brancos", estabelecido próximo aos fran-
cos, e o dos croatas da Dalmácia. Ele elabora uma genealogia mí-

46. Fredegarius, 4, 48; Poh l, DieAwai-en, pp. 256-261.


47. Constantino Porfirogêneto, De Administrando lmperio, caps. 29 e 30.
172 -G O Mit o das Naçõe s

tica: os croatas habitavam "além da Baviera", mas uma família de


cinco irmãos e duas irmãs se separou deles e conduziu seu povo até
a Dalmácia, onde derrotaram os ávaros e então se subdividiram em
diferentes grupos. Na verdade, o termo "croata" era usado em várias
partes da periferia do antigo reino ávaro, incluindo as regiões das
atuais Alemanha, República Checa, Áustria, Morávia, Eslovênia,
Grécia e da própria Croácia. As tentativas de atribuir algum tipo de
unidade étnica a esses grupos, às vezes antedatando a chegada dos
ávaros, falharam.
Certamente o termo "croata" não aparece em nenhum docu-
mento de antes da segunda metade do século IX como designação
de povo ou tribo. O termo provavelmente designava, a princípio,
uma camada social ou um posto regional no reino do khagan. 48 Isso
explica como esse termo, que não é eslavo, pôde designar um "povo"
eslavo sem a preexistência de um povo croata não eslavo, e também
como os "croatas" surgiram em regiões distintas do reino ávaro sem
que precisemos supor grandes migrações ou uma família de irmãos.
Provavelmente, ao longo dos séculos VIII e IX, esses grupos sepa-
ratistas do reino ávaro, identificados como "croatas" por suas lide-
ranças ou organizações, formaram unidades políticas distintas com
identidades étnicas inventadas e genealogias fantasiosas.
Assim como pressupõe a existência de um povo conhecido como
croatas "brancos", o qual relaciona aos croatas da Dalmácia, Cons-
tantino também escreve sobre os sérvios "brancos", que segundo ele
habitavam um território além dos hunos, que fazia fronteira com o
reino franco e com a Croácia Branca.49 Mais uma vez ele relata uma
lenda genealógica: dois irmãos, liderando metade do povo, solici-
tam proteção ao imperador Heráclio, que então assenta os sérvios

48. Poh l, Die Awaren, p. 266.


49. Para um resumo do relato tradicional, ver John Fine, The Early Balkans: A Criticai Survey fro m the
Sixth to the Late Twelfth Century, Ann Arbor, 1983, p. 52-53.
Capítulo 5: Os ú l timos bárbaros? .,... 173

na província de Salonica. 50 Posteriormente eles decidem retornar à


terra pátria e, quando pedem permissão ao comandante Heráclio
em Belgrado, ganham um território, que corresponde à atual Sérvia.
D e acordo com essa lenda, os sérvios também surgem no período da
derrota ávara em Constantinopla. Além disso, ela também explica
a presença dos sérvios em regiões distintas do reino ávaro e justifica
o surgimento de um novo "povo" nos Bálcãs que possui um nome
não eslavo. Embora essa lenda possa ser questionada por falta de
evidências históricas, podemos compreendê-la como parte do rápi-
do processo descentralizador que desintegrou o reino ávaro após sua
derrota.
Os búlgaros tiveram origem semelhante. Os romanos haviam
encontrado povos com esse nome nos arredores do mar Negro desde
o século V Os búlgaros, assim como os grupos cujos nomes termi-
navam em -guri, como os kutriguri, onoguri e oguri, pertenciam,
na perspectiva dos romanos, aos hunos, ou seja, aos guerreiros das
estepes centro-asiáticas. No entanto, após a derrota de 626, os que
se rebelavam contra o khagan eram geralmente chamados de búlga-
ros. Novamente, assim como no caso dos croatas, a diversidade dos
búlgaros é explicada por uma lenda: cinco irmãos, filhos de Kuvrat,
dos onoguri, rebelaram-se contra os ávaros em 630 e unificaram os
búlgaros nos arredores do mar Negro. Ao mesmo tempo, refugia-
dos búlgaros, após uma revolta malsucedida na parte ocidental do
reino, fugiram para a Baviera, onde foram bem recebidos pelo rei
franco Dagoberto, mas, depois de terem se dispersado para o in-
verno, foram atacados e assassinados a mando do rei. 51 No período
da geração seguinte, Kuver, .um líder búlgaro, revoltou-se contra os
ávaros e liderou um grupo heterogêneo de descendentes de prisio-
neiros romanos que haviam sido assentados no reino ávaro, ao sul de
50. Provín cia situada no terri tório da Grécia at ual. (N. T.)
51. Fredegarius, 4, 72.
174 -,,, O Mito das Nações

Salonica, 50 anos antes. 52 Possivelmente os nomes "kuvrat", "kuver"


e "croata", no século VII, designavam apenas títulos e, somente com
o tempo, passaram a ser usados para designar indivíduos ou povos.
De qualquer modo, nenhum desses grupos - o reino de Sarno, os
croatas ou os búlgaros de Kuver - existia antes das revoltas contra o
rei ávaro. Eles foram formados durante essas revoltas, e organizados
de acordo com as instituições e princípios de seus dominadores.
Ao longo dos séculos seguintes, esses grupos, cujos nomes não
eslavos provinham de títulos ávaros, desenvolveram-se a partir de
unidades políticas criadas em oposição ao domínio ávaro, transfor-
mando-se em "povos", embora seus mitos genealógicos explicassem
suas origens mais em termos étnicos do que em termos de organi-
zação política.
Assim, por volta do início do século VIII, as populações das
regiões do antigo Império Romano eram caracterizadas mais por
identidades políticas do que por identidades étnicas. Para os povos
mais significativos, descritos nas raras fontes históricas do período,
sua identificação com um reino geograficamente definido determi-
nava como seriam designados e, em maior escala, como definiriam
a si mesmos. Naturalmente essa terminologia provinha de séculos
anteriores, embora as realidades sociais que a designavam já esti-
vessem bastante alteradas. Os francos formavam as elites no reino
franco; os lombardos, no norte da Itália; e os godos, até a conquista
da península Ibérica pelos exércitos berberes e árabes em 711, na
Espanha. Os habitantes livres dos reinos britânicos eram saxões.
Já os habitantes das regiões da Itália controladas pelo papa ou pelo
Império Bizantino, assim como os da Gália ao sul do Loire, eram
romanos. As identidades regionais, como sempre, continuavam pe-
sando bastante. Os soberanos francos comandavam turíngios, báva-
ros, frísios e alamanos, embora essas fossem designações relativas às
províncias, e não tribais.

52. Miracles of St. Demetrius, li, 5.


Capítulo 5: Os últim o s bár b a ros? .,.... 175

Por trás dessas unidades políticas estáveis, o mundo ainda se as-


semelhava ao do século V Os saxões - termo usado para designar
vários povos germânicos pagãos que não apresentavam uma unidade
política - habitavam as regiões fronteiriças do norte do reino franco,
enquanto o vasto império multiétnico dos ávaros, a leste dos fran-
cos, estendia-se de Bizâncio ao Ocidente, gerando "novos" povos,
como os croatas, os sérvios e os búlgaros. Esses grupos - os saxões,
os ávaros e suas crias - eram os novos bárbaros, os únicos bárbaros
que ainda restavam na Europa, assim como os únicos romanos eram
os habitantes de Roma.

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