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SERGIO PAULO ROUANET

SERGIO PAULO
Dom Casmurro
alegorista
ROUANET é diplomata,
ensaísta e autor de, entre
outros, As Razões do
Iluminismo (Companhia
das Letras).

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ão são muito comuns, fora da história da ciência, as “revoluções
de Copérnico”. Kant foi autor de uma delas, mas a filosofia crítica
é estreitamente aparentada à ciência natural. Razão de sobra
para admiramos a façanha de Helen Caldwell, que conseguiu,
em 1960, fazer uma “revolução de Copérnico” numa área pouco
sujeita a cataclismos dessa natureza: a crítica literária. Como se
sabe, ela defendeu, em O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, a
tese escandalosa de que Capitu era inocente do adultério que lhe
fora imputado por Dom Casmurro. Segundo ela, o narrador, Bento
Santiago, não tinha nenhuma credibilidade, porque era movido
pelo ciúme, e advogava em causa própria, tentando demonstrar, com
base em indícios arbitrários, a culpabilidade de sua namorada de
infância. Assim como a revolução astronômica colocara o Sol, e não a
Terra, como centro do sistema solar, a revolução crítica provocada pela
autora americana tirou Capitu do banco dos réus, pondo Bentinho em
seu lugar1.
É certo que não era a primeira vez que se lançava em dúvida a
integridade de Dom Casmurro como narrador. No mesmo ano do apa-
recimento do romance, em 1900, José Veríssimo teve a intuição de que
Dom Casmurro escrevera “com amor e com ódio, o que pode torná-lo
suspeito”2. Em sua biografia de Machado, publicada originalmente em
1936, Lucia Miguel Pereira já se atrevera a escrever que “a dúvida nasce
no espírito do leitor, sem que o autor diga nada. E, aliás, ele passa todo
o livro sem dizer nada. Capitu teve um filho parecido com o amigo do
marido; mas também ela apresentava uma estranha semelhança com a 1 Helen Caldwell, The Brazilian
Othelo of Machado de Assis,
Los Angeles, University of Cali-
mãe de sua amiga Sancha”3. E no mesmo ano de 1960 em que Caldwell fornia, 1960.

publicava seu livro, Gondin da Fonseca lembra que não foi Capitu quem 2 José Veríssimo, “Um Irmão de
Brás Cubas”, in Machado de
abandonou Bentinho, e continua: “[…] nem o abandona, nem talvez Assis – Roteiro da Consagra-
ção, Rio de Janeiro, Editora
da UERJ, 2003.
o tenha traído. Ele é que infere a traição da parecença de Ezequiel com
3 Lucia Miguel Pereira, Machado
Escobar – acentuando, todavia, que as feições da moça lembravam as de Assis, São Paulo, Edusp,
1988.
da mãe de Sancha... Eram semelhantes, não existindo, contudo, entre 4 Gondin da Fonseca, Machado
de Assis e o Hipopótamo, Rio
ambas, sombra de parentesco lícito ou ilícito”4. de Janeiro, Fulgor, 1960.

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Não importa: a questão da culpa de Capitu, ou, como prefere dizer José Dias,
Capitu só passou a ocupar o centro da olhos de cigana oblíqua e dissimulada; as
reflexão teórica e do interesse dos leitores manobras de sedução sexual por parte de
depois do livro de Caldwell. Houve reações Capitu, como quando ela oferece os lábios
indignadas, como a de Otto Lara Rezende e a Bentinho, durante a cena do penteado; a
a de Dalton Trevisan, para as quais absolver maneira maquiavélica pela qual ela enfrenta
Capitu configurava um novo ato de traição, a ameaça de perder o namorado – não pela
agora não mais contra Bentinho, mas contra oposição direta, mas aliciando para sua
o próprio Machado de Assis, que não deixara causa o antigo inimigo, José Dias, e acon-
dúvidas quanto à realidade do adultério. E selhando Bentinho a ir por enquanto para
houve reações de aprovação, tão numerosas o seminário, enquanto ela agiria junto ao
que hoje em dia há quase um consenso espírito influenciável de Dona Glória; seu
em torno da inocência de Capitu – pelo amor ao dinheiro e às jóias, evidenciado
menos um consenso de público. Atual- pela admiração que passou a sentir por
mente é tão difícil encontrar leitores (e César quando soube que ele tinha dado a
sobretudo leitoras) convencidas da culpa uma senhora uma pérola no valor de seis
de Capitu como há meio século descobrir milhões de sestércios; e seu interesse pelos
quem a considerasse inocente. A versão “peraltas da vizinhança”, que passeavam a
da inocência de Capitu, ou pelo menos da cavalo em frente da sua janela.
culpa de Bentinho, predomina também Vamos agora ao segundo grupo: as
no cinema. No filme Capitu, dirigido por “provas” do adultério.
Paulo Cezar Saraceni, com roteiro de Paulo Certa noite, já casado, Bentinho está dan-
Emilio Salles Gomes, toda a carga é posta do a Capitu uma aula de astronomia, ela se
no ciúme doentio de Bentinho5. distrai, e confessa que estava pensando num
Mas os críticos estão chegando à con- pedido que fizera a Escobar, o de trocar uma
clusão de que a questão é insolúvel. Pois pequena soma em libras esterlinas. Escobar
se por um lado Dom Casmurro só dá pro- tinha atendido ao pedido, e estivera na casa,
vas circunstanciais contra sua mulher, por pouco antes, trazendo-lhe as libras.
outro lado a fragilidade desses indícios Outra prova: quando crianças, tinham
não exclui a possibilidade de que apesar ouvido o pregão de um preto vendedor de
de tudo as suspeitas de infidelidade tenham cocadas. Os namoradinhos tinham jurado
fundamento. não se esquecer da toada e das palavras,
Em que se baseia o libelo de Dom mas uma dia, já casados, Bento se refere
Casmurro contra Capitu? Ele a acusa de ao assunto, e Capitu confessa que tinha se
ter cometido adultério com seu colega de esquecido do pregão. Na ótica de Bento,
seminário Ezequiel de Sousa Escobar, e o esquecimento de Capitu estava ligado
prova essa acusação (a) remontando ao às palavras do pregão, que falava de uma
passado, para mostrar que a Capitu menina menina sem vintém. Assim, o ressentimen-
tinha características físicas e morais que to de Bento é sobredeterminado: ele está
a predispunham para a sexualidade, para renovando contra Capitu a velha acusação
5 Em entrevista de 29 de janeiro a dissimulação, para a hipocrisia, para o de que ela se casara por interesse, e acu-
de 2008, a escritora Lygia cálculo, e (b) vasculhando o presente, para sando-a de perjúrio, acusação grave, pois
Fagundes Telles, mulher de
Paulo Emilio, disse que ao ler encontrar indícios capazes de provar que a nada garante que o perjúrio não atingiria
Dom Casmurro pela primeira
vez achou que Capitu era uma predisposição infantil para a traição tinha também os votos conjugais.
santa, e Bentinho um histérico; se tornado real na Capitu adulta. Nova prova: certa noite, Bentinho vai
depois mudou completamente
de opinião e achou que Capitu Todos os episódios contados no primeiro sozinho ao teatro, porque Capitu disse que
traíra Bentinho, sim, e que o
filho não era dele. Instada
grupo têm como função mostrar que a Capitu estava indisposta, mas volta antes de termi-
por Paulo Emilio a suspender menina “estava dentro da outra, como a fruta nar a peça, e encontra Escobar no corredor
seu julgamento, como queria
Machado, ela respondeu “Não dentro da casca” (Dom Casmurro, capítulo da casa. Tinha vindo para entregar-lhe uns
posso suspender, esse homem 148). Pertencem a esse grupo, entre outras, embargos de terceiros. Capitu confessa que
é um doido, coitada dessa
mulher!”. as famosas alusões aos olhos de ressaca de tivera apenas uma pequena dor de cabeça,

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praia, nos dias de ressaca” (Dom Casmurro,
capítulo 32). Impressiona-se com a refle-
xão de José Dias de que ela tinha olhos de
cigana oblíqua e dissimulada. Agora ela
não era mais a sereia, era a cigana, como
Carmen, pertencente a essa raça nômade,
vadia, como ele classificaria mais tarde o
filho Ezequiel – vadio, sim, mas no bom
sentido (Dom Casmurro, capítulo 110). Vê
na inteligência prática com que ela tenta
remover os obstáculos ao seu casamento
com Bentinho uma prova do seu espírito
interesseiro. Ela quer se casar por ambição
social, e não por amor. Uma observação de
mas exagerara seu sofrimento para não pri- José Dias sobre “um peralta da vizinhança”
var Bentinho do prazer de ir ao teatro. faz Bentinho desconfiar da fidelidade de Ca-
Outra: Dona Glória passa a tratar com pitu, sem se dar conta de que o comentário
frieza tanto Capitu como Ezequiel, o que vinha de alguém notoriamente adverso à
sugere que sua intuição materna a fizera filha de Pádua. A passagem de um cavaleiro
antever a verdade. diante da janela de Capitu confirma as suas
Vem a tragédia da morte de Escobar. suspeitas. As “curiosidades” de Capitu, que
O velório fornece mais uma prova: Capitu incluem seu desejo de aprender latim e de se
chora, o que seria talvez natural, mas olha informar sobre a história romana, são vistas
o defunto com os mesmos olhos de ressaca com desconfiança, e sua admiração pela
com que olhara Bentinho adolescente, o que generosidade de César reforça a imagem
prova que ela não estava chorando apenas de interesseira da menina.
a morte do amigo, mas a do amante. As provas do adultério, no segundo
Depois vem a prova definitiva: a seme- grupo, são igualmente inconsistentes. De
lhança do filho Ezequiel com Escobar, prova novo, Bento atribui significações extrava-
tão forte, que diante dela Capitu renuncia gantes a ações que podem ser explicadas
a defender-se, o que para Dom Casmurro de um modo perfeitamente inocente. A
equivalia a uma confissão explícita. distração de Capitu com a lição de astro-
O leitor experiente de hoje percebe a nomia é compreensível. Sua preocupação
fragilidade de todas essas provas. com as dez libras prova, no máximo, que
Quanto à redescoberta do passado, Dom a moça tinha uma tendência à economia. A
Casmurro não é nenhum Proust. Ele não tem presença ocasional de Escobar na casa não
credenciais para ser um memorialista confiá- tinha em si nada de estranhável, porque os
vel. Não poderá, por mais que cite Goethe dois casais se freqüentavam quase diaria-
– “aí vindes outra vez, inquietas sombras” mente, e também Bento podia aparecer na
(Dom Casmurro, capítulo 2) –, reencontrar casa de Escobar sem que este tivesse sido
esses personagens de sua adolescência. Mo- avisado. A frieza de Dona Glória pode se
vido pelo ciúme, o falso memorialista não dever a uma cisma do filho mimado, ou a
poderá chegar ao passado autêntico, atando uma crise de ciúme da mãe diante da feli-
“as duas pontas da vida” (Dom Casmurro, cidade do filho. E é verdade que o acaso
capítulo 2). Suas reminiscências são distor- pode produzir semelhanças inexplicáveis
cidas pelo ressentimento e pelo desejo de entre duas pessoas.
vingança. Atribui a motivações subalternas Acontece que a tese da inocência não se
os gestos e palavras mais inocentes. Vê no baseia apenas na fragilidade das alegações
olhar apaixonado de Capitu um “fluido mis- de Dom Casmurro, mas num depoimento
terioso e enérgico, uma força que arrastava totalmente inesperado: o do próprio Dom
para dentro, como a vaga que se retira da Casmurro. Ele testemunha contra si mes-

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mo, multiplicando avisos para que o leitor
desprevenido não caia nas ciladas que ele
armou ao longo do texto.
Ele deixa claro, desde o início, que não
é um narrador confiável, porque começa
por uma mentira. Ele diz que “casmurro”,
apelido pelo qual veio a ser conhecido na
velhice, não devia ser tomado no sentido
do dicionário, e sim no sentido que lhe deu
o vulgo, significando pessoa calada, metida
consigo. Ora, o sentido do dicionário – pes-
soa teimosa, cabeçuda – é o que melhor se
ajusta à personalidade de Bento. Ele mente,
distanciando-se dessa acepção, para que não
o suspeitem de ter sido irracional em seu Ezequiel adulto volta para visitar o pai,
comportamento com Capitu, fechando-se, anos depois, põe-se a contemplar o busto
obstinadamente, a argumentos que demons- de Massinissa pintado na parede, cena
trassem a inocência da mulher. ambígua que deixa em suspenso a questão
Em seguida, ele mente ao dizer que não da culpa: seria para enfatizar a inocência
entende a razão pela qual ao centro das pa- da mãe e com isso a legitimidade de sua
redes da casa de Matacavalos, reproduzida filiação, ou o contrário?
na casa do Engenho Novo, havia quatro Como se isso não bastasse, o narrador
medalhões: o de César, o de Augusto, o de se autodesqualifica como memorialista.
Nero e o de Massinissa. Ora, a seqüência do Ele diz ter memória fraca, comparável “a
livro mostra claramente que como membro alguém que tivesse vivido por hospedarias,
da classe dirigente brasileira ele se identi- sem guardar delas nem caras nem nomes,
ficava com os três primeiros personagens, e somente raras circunstâncias”. Por isso o
todos imperadores romanos, e que sabia livro está cheio de lacunas, segundo o hábito
muito bem o significado de Massinissa, rei do narrador, que costuma evocar em suas
númida, aliado de Roma durante uma das leituras tudo o que não está nelas. Fechado o
guerras púnicas. Massinissa era casado com livro, quantas idéias finas lhe acodem então!
a cartaginesa Sofonisbe, inimiga de Roma. “Os generais sacam das espadas que tinham
Massinissa a convence a envenenar-se, ficado na bainha, e os clarins soltam as no-
por razões que variam segundo a versão. tas que dormiam no metal, e tudo marcha
Segundo uma delas, Sofonisbe é inocente, com uma alma imprevista. É que tudo se
mas mata-se para preservar sua integridade, acha fora de um livro falho, leitor amigo.
nem traindo Cartago nem se insurgindo Assim preencho as lacunas alheias... assim
contra Roma. Segundo outra versão, So- também podes preencher as minhas” (Dom
fonisbe teria participado de uma cerimônia Casmurro, capítulo 59).
em honra do general romano Cipião, e por Não é só por causa das falhas de memória
isso era culpada enquanto cartaginesa, ex- do narrador que o relato tem que ser visto
piando sua culpa com o veneno. Nos dois com desconfiança, mas por um impedimento
casos, segundo uma fina análise da Marta mais grave, ligado aos próprios limites do
de Senna6, o narrador estava aludindo desde entendimento humano. Para Bento, com
as primeiras páginas ao destino de Capitu. efeito, a verdade absoluta não pode ser
Se a primeira hipótese fosse verdadeira, alcançada. É o que ele diz a propósito da
Capitu era tão inocente quanto Sofonisbe teoria de um velho maestro, que compara
6 Marta de Senna, “Strategies e Desdêmona. Pela segunda hipótese, era a vida a uma ópera. Bento a aceita, não por
of Deceit”, in The Author as
Plagiarist – the Case of Ma- culpada, e merecia, se não a morte – foi ser verdadeira, mas por ser verossímil, e a
chado de Assis, University Ezequiel que quase morreu envenenado –, verossimilhança “é muita vez toda a ver-
of Massachusetts Dartmouth,
2005. pelo menos o repúdio e o exílio. Quando dade” (Dom Casmurro, capítulo 10). Por

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exemplo, não se pode saber se de fato Capitu mostra a Bentinho, ainda seminarista, o
era culpada, mas isso não importa: num retrato de sua finada esposa, e pergunta se
mundo em que as aparências são decisivas, não a achava parecida com Capitu. Antes de
basta que a acusação seja verossímil. examinar o retrato, Bentinho foi responden-
O narrador chega ao extremo de dar do que sim. Gurgel afirmou que de fato as
argumentos para os que querem fazer carga feições, a testa e os olhos eram semelhantes,
contra Bentinho. Assim, ele insinua que e concluiu: “na vida há dessas semelhanças
seu ciúme mórbido, desde a infância, fora inexplicáveis” (Dom Casmurro, capítulo
um fator responsável pela tragédia. Por 83). Outro argumento é que Ezequiel gos-
exemplo, nosso jovem herói imagina que tava de fazer imitações. Com isso, ficar
sua namorada tivesse trocado beijos com o parecendo com Escobar não tinha nada de
cavaleiro que passara em frente da janela de mais, porque também ficava parecido com
Capitu, e sente ímpetos de atirar-se “pelo as outras pessoas que imitava. “Imita prima
portão fora, descer o resto da ladeira, correr, Justina, imita José Dias”, diz Bento, “já lhe
chegar à casa do Pádua, agarrar Capitu e in- achei até um jeito dos pés de Escobar e dos
timar-lhe que confessasse quantos, quantos, olhos” (Dom Casmurro, capítulo 112). A
quantos já lhe dera o peralta da vizinhança” observação é repetida por José Dias: “Tem
(Dom Casmurro, capítulo 62). Mais tarde o muita graça. A mim, quando ele copia os
ciúme do jovem Otelo se torna quase homi- meus gestos, parece-me que sou eu mesmo,
cida, pelo menos na imaginação. A vontade pequenino. Outro dia, chegou a fazer um
que tinha era agredir Capitu, “cravar-lhe gesto de Dona Glória, tão bem que ela lhe
as unhas no pescoço, enterrá-las bem, até deu um beijo em paga” (Dom Casmurro,
ver-lhe sair a vida com o sangue...” (Dom capítulo 116).
Casmurro, capítulo 75). Morto Escobar, O ineditismo dessa mistura, no mesmo
Bento tem um impulso semelhante, agora texto, de acusação e de exoneração, é tão
dirigido contra o traidor: “atirar à rua caixão, desconcertante, que nos sentimos tentados
defunto e tudo” (Dom Casmurro, capítulo a procurar no texto outra voz, além da voz
124). No final, o narrador chega a um passo de Dom Casmurro. Seria a voz do autor,
de reconhecer que a causa do drama talvez Machado de Assis. O leitor seria o desti-
fosse o seu ciúme. Citando Jesus, filho de natário das duas. A acusação tendenciosa
Sirach, ele recomenda a futuros Bentinhos: viria de Dom Casmurro. Os sinais de alerta
“Não tenhas ciúme de tua mulher, para que viriam de Machado de Assis.
ela não se meta a enganar-te com a malí- Mas creio que essa solução banalizaria
cia que aprender de ti” (Dom Casmurro, o romance. Só existe uma intenção, a de
capítulo 148). Machado de Assis. Ele queria produzir um
Como se recorda, Dom Casmurro censu- texto híbrido, libelo e defesa ao mesmo
ra Capitu por não se lembrar do juramento tempo. E só existe um texto, o assinado por
feito pelos dois namorados de não esquecer o Bento Santiago, e não um cruzamento de
pregão do vendedor de cocadas. Mas Bento dois textos. É seguindo a intenção autoral
confessa ao leitor que ele próprio se esque- de Machado de Assis que Dom Casmurro
cera disso, e só pôde avivar suas recordações produz uma obra que contém num só texto
depois de ter consultado o papel em que o texto e o avesso do texto.
estavam anotadas tanto a melodia como as Podemos captar a natureza desse texto
palavras. A má-fé de Dom Casmurro tinha recorrendo a várias analogias.
sido óbvia mas também foi óbvio seu desejo Há uma analogia judicial. O texto é o
de reabilitar-se, reconhecendo o erro. apresentado por uma testemunha da acu-
O narrador vai mais longe ainda. Ele sação. O bom juiz sabe que muitas vezes
fornece argumentos para esvaziar o princi- o depoimento é minado por contradições
pal indício do adultério: a semelhança entre internas. Cabe-lhe descobrir essas contra-
Ezequiel e Escobar. Um desses argumentos dições, com a finalidade última de pôr a
é o acaso. Assim, Gurgel, pai de Sancha, testemunha em contradição consigo mesma.

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Esse magistrado ideal é parente do leitor é dada pelo conceito de forma shandiana7.
ideal. Deve ser adestrado na arte de descobrir Como Memórias Póstumas de Brás Cubas,
trilhas discursivas latentes, subjacentes ao Dom Casmurro é um romance shandiano,
discurso manifesto, de escutar o que não é isto é, adota uma forma caracterizada (a)
dito, ou não é dito de modo direto, de sur- pela hipertrofia da subjetividade, (b) pela
preender gestos que desmintam a fala. digressividade e pela fragmentação, (c)
Há também analogias psicanalíticas. pelos paradoxos temporais, e (d) pela inter-
Primeiro, as formações de compromisso, penetração do riso e da melancolia. Dessas
como o sintoma e o lapso, condensam num características, a mais decisiva é a hiper-
só objeto psíquico duas tendências opos- trofia da subjetividade. Ela se manifesta na
tas. Segundo, o conceito de ambivalência soberania do capricho, no constante rodízio
exprime a confluência de amor e ódio de posições e perspectivas. O sujeito da
pela mesma pessoa. Terceiro, um texto de narrativa shandiana é um tirano, que con-
reminiscências pode conter lembranças duz sua narrativa a seu bel-prazer, dizendo
conscientes, remanejadas para se torna- apenas o que quer, e como quer. Ou seja, ele
rem publicamente aceitáveis, e outras, de é seletivo do ponto de vista do conteúdo,
sentido oposto, suprimidas pela censura. omitindo todos os pormenores que considera
Quarto, a fala do analisando é uma col- inconvenientes, e arbitrário do ponto de vista
cha de retalhos, composta de afirmações da forma, pois assume todas as liberdades no
e negações entrecruzadas. A denegação, modo de estruturar sua narrativa – fazendo
Verneigung, é um não que significa sim. A digressões intermináveis, distorcendo a
Bejahung, afirmação, pode ser uma forma cronologia, parodiando autores e gêneros,
insincera de concordar com a interpreta- alternando à vontade o tom melancólico e
ção do analista, e nesse caso é um sim que o humorístico.
significa não. Esses exemplos fornecem Bastaria a figura do narrador shandiano
quatro chaves para compreender o texto de para dar conta das contradições internas do
Dom Casmurro. Em primeiro lugar, o texto texto de Dom Casmurro. Elas se devem ao
é uma formação de compromisso entre a fato de que esse narrador tirânico por um
vontade de ser verídico e a de dissimular a lado é capcioso, pois engana o leitor e só
verdade. Em segundo lugar, foi produzido diz o que lhe interessa dizer, e por outro
pela ambivalência afetiva com relação a lado é volúvel, mudando de opinião a todo
Capitu. Como percebera José Veríssimo, instante, o que pode levá-lo a negar sem
Bentinho odeia Capitu (sentimento domi- qualquer inibição o que havia afirmado
nante) e ainda a ama (sentimento residual). minutos antes.
O ódio acusa, o amor absolve. Em terceiro Mas creio que poderíamos ir mais fundo
lugar, as passagens que justificavam Capitu se examinássemos uma hipótese que abor-
e acusavam Bento foram suprimidas pelo dei em Riso e Melancolia. Segundo essa
recalque – são as lacunas de que fala Dom hipótese, a forma shandiana tem origem
Casmurro no capítulo 59 –, mas, como em remota no barroco, e a autoridade absoluta
todo recalque, subsistem algumas dentre as assumida pelo narrador shandiano deriva de
representações censuradas. Em quarto lugar, duas figuras do período barroco, o príncipe
se Bentinho fosse contar sua história a um e o alegorista. O príncipe pode se permitir
terapeuta moderno, diria provavelmente tudo, porque na era do absolutismo sua alta
que tinha sido traído por Capitu (Bejahung) linhagem o isenta de obedecer à lei comum.
e encontraria meios de dizer o contrário Daí a freqüência do tirano, na literatura
(Verneigung) na mesma frase ou na frase barroca. Em sua esfera, o alegorista é tão
seguinte. onipotente quanto o príncipe. Ele é um
Mas todas essas analogias são extra- autocrata, cujo poder vem da sabedoria
literárias. Creio que há uma explicação obtida através da ruminação, do Grübeln.
7 Sergio Paulo Rouanet, Riso e especificamente literária para captar a O alegorista domina o mundo por meio
Melancolia, São Paulo, Com-
panhia das Letras, 2007. hibridez do texto de Dom Casmurro. Ela das significações, e o príncipe por meio

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do aparelho do Estado. O alegorista tem lhanças e correspondências entre objetos,
o poder de fazer qualquer coisa significar tanto do mundo físico como do social. Como
qualquer outra. Cada criatura, cada objeto, lembra Foucault, a Renascença codificou
podem ser privados de sua vida própria pelo as várias figuras da semelhança, entre as
alegorista, tornam-se coisas mortas, vazias, quais a simpatia, “que não se contenta de
que o alegorista preenche com significações ser uma das formas do semelhante, e tem
arbitrárias. O olhar do alegorista é o de Me- o perigoso poder de assimilar, de tornar as
dusa, que mineraliza a vida, convertendo-a coisas idênticas umas às outras, mesclá-las,
em objeto de saber, sua mão é a de Midas, fazê-las desaparecer em sua individualida-
que alegoriza o que toca, transformando de, e portanto torná-las estranhas ao que
tudo em tudo8. eram”10. Foi exatamente o que aconteceu
Reconhecemos nessa descrição, em com Ezequiel por culpa do “perigoso po-
parte, o narrador de Dom Casmurro. der” assumido por Dom Casmurro: o me-
Quando resolve escrever suas memórias, nino desapareceu em sua individualidade,
não é mais o menino que vivia à sombra de transformando-se em “filho de homem”,
Dona Glória, e sim é um proprietário rico, expressão com que o profeta Ezequiel é
representante típico da classe dominante, interpelado na Bíblia, isto é, o menino
no Brasil patriarcal. Conseqüentemente, deixou de ser uma pessoa de carne e osso
tem tudo para ser um perfeito soberano para tornar-se suporte de uma alegoria da
shandiano. Como tal, ele pode permitir-se filiação ilegítima. De passagem, observe-se
tudo, na vida real e em sua narrativa. É por que Machado de Assis desde muito cedo teve
isso que ele é Dom – é um dominus9, senhor, consciência dos perigos da semelhança. No
tanto no sentido profano, pois possui um conto “Identidade” a semelhança entre um
patrimônio de fazer inveja a um parvenu faraó e um escriba leva a uma substituição
como Escobar, como no sentido religioso, de pessoas e à morte do faraó11.
pois é filho de um milagre, já que nasceu Voltando à alegoria, se John Gledson tem
vivo graças à intervenção divina, e tem o razão, o dom alegórico de Dom Casmurro
divino inscrito em seu próprio nome – ele se estende a si mesmo e aos fatos históricos:
é Bento, e São Tiago. Bento seria a alegoria do império (ou de
Mas ele é, sobretudo, um alegorista. Dom Pedro II) e a guerra da Criméia seria
No sentido etimológico, alegoria deriva de a alegoria da Guerra do Paraguai12.
allos, outro, e de agoreuein, falar na ágora, Mas por que Dom Casmurro produz o
usar uma linguagem pública. “Alegoria”, que chamei o “avesso do texto”, incrimi-
literalmente, significa falar de uma coisa nando, mas também exculpando? É que se o
para dizer outra. É o que faz Dom Casmur- shandismo tem suas raízes no autoritarismo
ro, em sua obsessão de incriminar Capitu. barroco, é também a subversão do autori-
Tudo para ele se transforma em indício, tarismo. Em seu funcionamento concreto
8 Ver Walter Benjamin, Origem
em alegoria da traição. O mundo inteiro se no interior do romance shandiano, as duas do Drama Barroco Alemão,
converte em material alegorizável. Os olhos figuras da soberania barroca perdem parte tradução e apresentação de
Sergio Paulo Rouanet.
de ressaca de Capitu são alegorias do amor de sua majestade. O poder de mando de
9 Helen Caldwell, Machado de
que leva à morte. Seu espírito lógico, em Bento Santiago está fadado a desaparecer Assis, Berkeley/Los Angeles/
contraste com a irracionalidade de Benti- com o ocaso do regime patriarcal que ele London, University of California
Press, 1970, pp. 142 e segs.
nho, é uma alegoria da ambição social. A encarnava. O alegorista perde sua vocação
10 Michel Foucault, Les Mots et
facilidade de Escobar de fazer contas de de representante exclusivo da autoridade, e les Choses, Paris, Gallimard,
1966, p. 39.
cabeça é uma alegoria do espírito mercantil, tende até a mudar de lado. Ele amplia suas
11 Machado de Assis, “Identida-
baixamente interesseiro. E a semelhança de buscas, e encontra sinais que apontam na de”, in Relíquias de Casa Velha,
Ezequiel com Escobar é naturalmente uma direção oposta. Chamando Dona Glória Rio de Janeiro, Jackson, 1957,
vol. I.
alegoria da infidelidade. de “beata! carola! papa-missas!” (Dom
12 John Gledson, Machado de
Esta última é a face mais interessante de Casmurro, capítulo 18), Capitu coloca-se Assis – Impostura e Realismo,
Dom Casmurro como alegorista, porque o claramente contra o obscurantismo religio- tradução de Fernando Py, São
Paulo, Companhia das Letras,
próprio da alegoria é buscar ou criar seme- so, e transforma-se de certo modo numa 2005.

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alegoria do Iluminismo13. Bentinho passa a se o adultério ocorreu, mas que Machado de
ser a alegoria do capitalismo periférico do Assis nos deixa livres para acreditar tanto na
Brasil, moderno em sua fachada e arcaico culpa como no inocência de Capitu. Posto
em sua composição social. na posição de juiz, o leitor imparcial não
E bem, e o resto? O resto não é saber pode condenar Capitu, porque as provas de
se Capitu menina estava dentro da outra, Dom Casmurro não provam nada, e porque
como a fruta está dentro da casca. O resto o próprio acusador fornece elementos para
é saber se o consenso atual em torno da pôr em dúvida a culpabilidade de sua mu-
“indecidibilidade” da questão do adultério lher. Mas não pode tampouco inocentá-la,
tira importância à mudança de paradigma porque as provas foram rebatidas com base
introduzida por Helen Caldwell em 1960. em meras conjeturas, e porque o próprio
Creio que não. Sua grande contribuição narrador, acumulando indícios de ser in-
não foi ter inocentado Capitu, e sim ter le- confiável, tirou a credibilidade até do que
vantado suspeitas com relação à boa-fé do ele diz em favor da acusada. O resultado
narrador. O depoimento de Dom Casmurro justo, do ponto de vista judicial, seria a
é sempre tendencioso, quer quando acusa, absolvição por falta de provas. Do ponto
quer quando exonera. Sua preocupação não de vista literário, o livro é uma obra aber-
é expor a verdade, mas convencer o leitor ta, no sentido de Umberto Eco, uma obra
seja da culpa de Capitu, justificando com ambígua, que deixa ao leitor a liberdade de
isso sua brutalidade com a suposta adúltera aceitar qualquer das versões, ao contrário
e o suposto filho adulterino, seja da eventual dos adultérios perfeitamente explícitos do
inocência da mulher, ganhando com isso a romance realista, como os que foram con-
aprovação da parte mais ilustrada do seu sumados em Madame Bovary, de Flaubert,
público. Por isso o princípio fundamental do Anna Karenina, de Tolstói, Effi Briest, de
texto não deveria ser o ciúme, e sim a dúvida. Theodor Fontane, e Primo Basílio, de Eça
O leitor deve partilhar a atitude do narrador, de Queirós.
num capítulo que ele intitula “Dúvidas sobre Nessa ambivalência, Machado criou
Dúvidas” (Dom Casmurro, capítulo 115). Já uma obra muito mais enigmática que todos
se observou que a tragédia shakespeariana os romances de amor e de traição da ficção
relevante para a compreensão do livro não realista ou naturalista. À sua moda, ele
deveria ser Otelo, mas Hamlet14. também fez um romance realista, e nisso
É sob o signo da dúvida que o livro Gledson tem toda razão. O realismo, em
deve ser lido. Não há mais cumplicidade Dom Casmurro, está na intenção autoral,
com o narrador, nenhum pacto com o leitor, no projeto de Machado de descrever com
como havia no tempo de Machado. Agora toda a verdade possível as engrenagens
as armadilhas inventadas para seduzir o da alma e da sociedade. Mas ele confiou
leitor, cooptando-o para que ele dê crédito a execução desse projeto a um narrador
a uma versão unilateral dos fatos, perde- shandiano, mais qualificado que qualquer
ram sua eficácia. O leitor se distancia de narrador realista convencional para usar
Dom Casmurro, em vez de ser capturado em sua tarefa uma forma adequada a seu
por sua retórica. O equivalente dramático objeto. Essa forma é a shandiana. É uma
desse distanciamento seria uma relação forma sinuosa, cheia de meios-tons, de
com a tragédia que não fosse regida pela ziguezagues, de desvios, e por isso mesmo
mimese aristotélica, que supõe uma identi- apta, por sua estrutura não-linear, a captar
13 A afirmação de que na primeira
parte do livro Capitu representa ficação com a ação, e sim pela Verfremdung tanto a ambigüidade psicológica de uma
o campo das Luzes é de Roberto
Schwarz, em: Duas Meninas,
brechtiana, que se funda, ao contrário, na Circe infinitamente sedutora, cujos olhos
São Paulo, Companhia das desidentificação. de ressaca significam a vida e a morte
Letras, 1997, p. 14.
E a suma das sumas, ou o resto dos restos, ao mesmo tempo, quanto a ambigüidade
14 Helder Macedo, “Entre o Lusco
e o Fusco”, apud Marta de não é que a primeira amiga de Bentinho e social de um país que pretendia aceder à
Senna, O Olhar Oblíquo do seu maior amigo se tivessem unido para modernidade mas não conseguia livrar-se
Bruxo, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1998, p. 94. enganá-lo, porque nunca saberemos ao certo do regime de trabalho escravo.

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