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Fontoura Rev SOCERJ.

2007;20(4):309-312
Etnografia na Saúde julho/agosto 309
Pedagogia Médica

Pedagogia
A Etnografia na Saúde: tecendo perspectivas interdisciplinares
Médica
Ethnography in Healthcare: interdisciplinary prospects

Helena Amaral da Fontoura

Resumo Abstract
O presente trabalho traz uma reflexão sobre as possibilidades The main purpose of this paper is to reflect on the possibilities
da etnografia como metodologia de pesquisa, aliada offered by ethnography as a research methodology,
à noção de interdisciplinaridade, de contribuir para associated with the notion of interdisciplinarity, in order
aprimorar as práticas em saúde oferecidas à população to contribute to the enhancement of healthcare practices
pelos profissionais que escolhem trabalhar nesse campo provided by professionals who chose to work in a field
tão desafiador que é o de lidar com as dificuldades as challenging as that dealing with human weaknesses
humanas e buscar uma superação de dores e doenças. and the quest to surmount pain and disease.

Palavras-chave: Etnografia em saúde, Keywords: Ethnography in health, Interdisciplinarity,


Interdisciplinaridade, Educação e saúde Health and education

Introdução
priorizadas pelo Estado. A história de conquistas no
âmbito das políticas públicas sociais, em sua maioria,
Este trabalho tem como proposta ampliar a é aquela que é imposta coletivamente ao Estado, pela
possibilidade de pensar e discutir questões relativas mobilização de grupos organizados da sociedade civil.
à pesquisa em saúde, proporcionando uma reflexão
que permita a elaboração de valores próprios a partir Novas abordagens estão sendo discutidas com o intuito
de pensamento crítico e de atitudes responsáveis. de redimensionar o papel dos profissionais de saúde e
Sabe-se que é urgente a necessidade de desenvolver de suas relações com a população. Nenhuma forma de
a proposta de um trabalho sistemático, responsável e conhecimento se basta em si mesma, ou seja, há que se
coerente, que tenha como meta primeira apontar para buscar uma nova postura em que diferentes saberes
a formação e a capacitação dos que atuam na área da se articulem num movimento de construção de um
saúde em todos os âmbitos. saber coletivo, onde o diálogo entre o conhecimento
científico e o senso comum seja, de fato, privilegiado.
Profissionais bem formados são capazes de viver Esse processo pode se dar a partir da valorização
em sociedade de forma solidária e responsável, da ação dialógica que ocorre nos processos de
de construir e transformar as condições que lhe aprendizagem, aqui entendida em seu sentido amplo;
sejam adversas à sua condição humana. Defende- ou seja, é na troca e no diálogo que se desenvolvem
se a autonomia, o respeito, a liberdade humana e a as melhores condições para uma real aprendizagem.
possibilidade do crescimento pessoal em todas as
idades. Sabe-se, também, que as ações pelas quais se A promoção da saúde se expressa através da
lutam não necessariamente se traduzem em demandas educação, da adoção de estilos de vida saudáveis,

Faculdade de Formação de Professores – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Correspondência: helenafontoura@gmail.com
Helena Amaral da Fontoura | Faculdade de Formação de Professores | Rua Dr.Francisco Portela,1470 - Patronato - São Gonçalo (RJ),Brasil | 24435-005
Recebido em: 28/03/2007 | Aceito em: 28/06/2007
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do desenvolvimento de aptidões e capacidades basicamente, o significado das ações humanas, muito


individuais. Dentre as ações de natureza eminentemente mais do que sua aparência. Traz a prática de dar conta
protetoras da saúde, encontram-se as medidas de dos passos na tomada de decisões, o que é visto como
vigilância epidemiológica (identificação e registro parte importante do processo de pesquisa.
da ocorrência de doenças), vacinações, saneamento
básico, vigilância sanitária de alimentos, do meio Segundo Minayo5, qualquer investigação social deve
ambiente e de medicamentos, adequação do ambiente contemplar os aspectos qualitativos, na medida em
de trabalho e aconselhamentos específicos como que lida com pessoas, seus valores, suas histórias e
os de cunho genético ou sexual. Protege-se a saúde experiências de vida. O foco da pesquisa é, muitas vezes,
realizando exames médicos e odontológicos periódicos, complexo, contraditório, inacabado e em permanente
conhecendo o estado de saúde da comunidade e transformação. Schraiber6 enfatiza os aspectos positivos
desencadeando oportunamente as medidas dirigidas do uso de pesquisa qualitativa em saúde no sentido de
à prevenção e ao controle de agravos à saúde. As se explorar a subjetividade como forma de construção
medidas curativas e assistenciais, voltadas para a de conhecimento, encaminhando para o resgate
recuperação da saúde, constituem tão somente um de muitas dimensões da ação social, respeitando
dos aspectos da questão. o processo de sua constituição como um todo.

Sem dúvida, a melhoria das condições de vida A abordagem etnográfica proposta por Erickson 7
e de saúde não é automática nem está garantida se define como possibilitando a análise dos eventos
pelo passar do tempo, assim como o progresso e o do ponto de vista dos atores sociais. Segundo ele, a
desenvolvimento não trazem, necessariamente, em seu etnografia, como método de investigação científica,
bojo, a saúde e a longevidade. A compreensão ampla traz, em si, um potencial desvelador das atitudes,
dos fatores intervenientes e dos compromissos políticos interesses, crenças e valores, pela perspectiva
necessários são exigências para sua efetivação. Nesse dos sujeitos envolvidos no processo, tanto os que
cenário, a pesquisa pode cumprir papel destacado. pesquisam como os pesquisados.

A partir da VIII Conferência Nacional de Saúde1, de Ainda nessa perspectiva, o autor afirma que esta
1986, conquistou-se uma conceituação mais abrangente abordagem de pesquisa se refere a questões de
e democrática de saúde, vista como “a resultante das contexto e não é meramente uma descrição de
condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio procedimentos. A concepção teórica que define o
ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, principal eixo de interesse em um estudo desse
acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde”. tipo é bem diferente das concepções dualistas que
pretendem explicar fenômenos por exclusão. Sendo
Entretanto, o modelo assistencial ainda predomina uma perspectiva construtivista, considera todos os
nos atuais serviços de saúde, com ênfase na atenção aspectos de um problema como intrinsecamente
médica curativa, na medicalização abusiva. E, quando ligados, interdependentes e relacionados aos produtos.
se fala em participação popular, isso ocorre por uma Portanto, não se trata de definir técnicas e aplicá-las,
necessidade dos serviços de saúde em se aliar com mas sim desenvolver um método de investigação que
a comunidade em busca de apoio, em momentos se alimenta da própria investigação, enriquecendo-a e
pontuais, como por exemplo, no controle de certas ampliando-a enquanto é enriquecido e ampliado por ela.
epidemias.
A abordagem etnográfica caracteriza-se, então,
Na realidade, todas as experiências dos sujeitos que fundamentalmente, pela observação sistemática das
tenham reflexos sobre suas práticas de promoção situações reais no local onde os fenômenos acontecem,
e proteção da saúde serão, de fato, aprendizagens possibilitando uma revisão contínua face aos dados
positivas, até porque não se trata apenas de informar coletados e também facilitando o desenvolvimento
ou de persuadir, mas de fornecer elementos que os de novos caminhos. Erickson8 afirma que, na pesquisa
capacitem para a ação. A investigação social enquanto etnográfica, a coleta de dados e a análise dos mesmos
processo de produção e enquanto produto é, ao são mutuamente constitutivas; por isso, as diferentes
mesmo tempo, uma objetivação da realidade e uma perspectivas que alimentam a análise etnográfica
objetivação do investigador que se torna também necessitam ser discutidas, bem como os processos de
produto de sua própria produção. observação e a criação de registros de dados sobre os
quais o relato se baseia. Este autor defende a idéia de
Para Spradley2,3, a principal tarefa da etnografia é se estudar o discurso no contexto onde ele ocorre, em
aprender/ensinar outras formas de perceber, outros vez de se criar situações experimentais falsas. Chama
pontos de vista, descrevê-los e refletir sobre suas também a atenção para a importância de se analisar o
possibilidades na construção do conhecimento. De contexto social e suas dimensões. Em outro trabalho,
acordo com Haguette4, este tipo de pesquisa procura, Erickson9 ressalta que a pesquisa etnográfica, por sua
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natureza interpretativa, é intrinsecamente democrática fragmentada por uma concepção de unidade nas
e constitui-se num deliberado envolvimento do pessoas e em seus fazeres.
pesquisador no local da pesquisa, o qual observa com
especial atenção, as questões que os atores formulam Tanto o ponto de partida como o de chegada estão na
em sua rotina. ação; através do diálogo interdisciplinar, a identidade
se fortalece ao mesmo tempo em que o todo se torna
Para Peirano10, uma pesquisa como a etnográfica não harmônico e significativo. Para que isso aconteça tem-se
pode ser apenas ensinada como uma técnica; ela se que reconhecer a o caráter provisório do conhecimento,
desenvolve na medida em que o pesquisador vai se questionar as posições assumidas e os procedimentos
imbricando no campo, vai se relacionando com os adotados, criar movimentos de articulação entre
sujeitos e construindo um processo reflexivo sobre saberes e práticas, buscar convergências, trabalhar de
suas vivências e impressões. Nesse momento fica forma cooperativa e reflexiva.
mais fácil fazer analogias: não parece a descrição
de um percurso de inserção no campo de trabalho Profissionais de saúde, trabalhando nessa perspectiva,
de um profissional de saúde? Não é isso o que se tornando-se sujeitos de sua ação, engajam-se em um
faz? Entra-se em um campo de trabalho para o processo de investigação, re-descoberta, construção
qual se recebeu ensino teórico, mas do qual se tem coletiva do conhecimento e podem vir a reconhecer
pouca ou nenhuma experiência e há necessidade a indivisibilidade do saber. Ao compartilhar idéias,
de se aproximar, observar, anotar, avaliar, registrar, ações e reflexões, cada participante é ao mesmo tempo
comparar, concluir, refazer percursos, aprender dos ‘ “ator” e “autor” do processo. A prática interdisciplinar
informantes’, colegas de trabalho, preceptores, enfim, nos envolve no processo de aprender a aprender.
fazer do ambiente de inserção um campo de pesquisa
etnográfica da prática. Uma postura interdisciplinar propicia o enfrentamento
de tensões, a superação das dicotomias, tradicionais em
Um caminho que se aponta como possibilitador de um mundo mecanicista, em busca do unitas – multiplex
conciliações entre a etnografia na qual se acredita de que fala Morin13. Este autor chama a atenção para
- aquela que possibilita ao profissional desvelar sua o cuidado que se deve ter com as disjunções que se
prática para si mesmo -, e as práticas em saúde que tende a fazer por se ter uma visão linear do mundo
possam melhorar as condições de vida da população, e seu funcionamento. Sua principal contribuição, a
é desenvolver uma atitude interdisciplinar. noção de complexidade, traz para reflexão a dimensão
de totalidade ao mesmo tempo em que aponta para o
Segundo Fazenda11, “perceber-se interdisciplinar é o que é específico e para as relações não-lineares entre
primeiro movimento em direção a um fazer interdisciplinar esses aspectos.
e a um pensar interdisciplinar”. Com essa afirmação,
a autora pretende ressaltar que nenhuma forma de Assim, a interdisciplinaridade caracteriza-se como um
conhecimento se basta em si mesma, ou seja, há que se campo aberto para que, de uma prática fragmentada
buscar uma nova postura em que diferentes saberes se por especialidades, possa-se estabelecer novas
articulem num movimento de construção de um saber competências e habilidades através de uma postura
coletivo, onde o diálogo entre o conhecimento científico pautada em uma visão holística do conhecimento e uma
e o senso comum seja, de fato, privilegiado. porta aberta para os processos transdisciplinares.

O conceito de interdisciplinaridade pode apresentar O chamado saber técnico que os profissionais de saúde
mais de um significado, mas traz a idéia de uma atitude constroem, muitas vezes restringe o acesso e fecha
de busca de uma comunhão de pensamentos, em a possibilidade de se perceber o pesquisado como
oposição à aglutinação de idéias, a uma justaposição o “outro”, nas suas dimensões sociais e culturais.
de conteúdos. Defende-se a idéia de um processo Magnani14 enfatiza a necessidade de aproximação
acima de tudo dinâmico, que promova uma integração com a etnografia e o cuidando para não reduzi-la
e que se desenvolva de forma dialógica. ou confundi-la com uma técnica. Diz que ela vai
possibilitar novas leituras sobre a realidade, revelando
Fazenda 12 caracteriza a interdisciplinaridade a lógica e os desdobramentos de fatos inicialmente
como uma intensa troca entre especialistas que percebidos como fragmentados e sem lógica.
buscam a integração das disciplinas em um mesmo
projeto, veiculando a idéia de reciprocidade, de Diante do exposto, pode-se perceber que a etnografia,
mutualidade, reforçando uma produção de sentidos aliada a uma perspectiva interdisciplinar, permite
co-compartilhada. A interação produz terreno fértil ao compreender a dinâmica das relações sociais nas
diálogo entre os envolvidos. A interdisciplinaridade sociedades contemporâneas e as dinâmicas que regem
depende, assim, de uma mudança de atitude em as atuações. Entrar nessa dinâmica é sujeitar-se a correr
relação ao conhecimento e a troca de uma concepção riscos e ter que construir novas ferramentas para a
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compreensão dos objetos de pesquisa e/ou dos fazeres Construir uma sociedade de qualidade, ter um
profissionais. compromisso com um projeto social amplo envolve
muitas questões como: melhores salários, melhores
Com base nessa concepção, tem-se a possibilidade condições de trabalho, mais tempo para investir no
de reunir diferentes elementos que fazem parte do aprimoramento profissional, dignificação da profissão
processo de pesquisa como, por exemplo, articular o do profissional de saúde. Dar a voz a quem faz, ouvir
conhecimento comum com o conhecimento científico, quem tem o que dizer, trabalhar junto com, é este
vincular a prática da vida cotidiana com a realidade o papel do pesquisador comprometido com uma
social e vincular, permanentemente, a prática e a teoria. mudança de qualidade na saúde pública para todos.

Quando se está estudando um assunto, não há ponto


final de chegada, apenas conquistas parciais. O Referências
processo está sempre em construção, o que determina
os limites é a capacidade de investigação e a certeza 1. Ministério da Saúde (MS). 8ª Conferência Nacional de
da dinâmica ao fazer ciência, sem reduzi-la a simples Saúde: relatório final. Brasília: Ministério da Saúde; 1986.
experiência. O produto é sempre temporário, 2. Spradley JP. The ethnographic interview. New York: Holt,
resultante dos vários momentos da pesquisa, mas sua Rinehart and Winston; 1979.
compreensão não pode ser apenas contemplativa, deve 3. Spradley JP. Participant observation. New York: Holt,
incluir os sujeitos envolvidos, suas questões e suas Rinehart and Winston; 1980.
contribuições. Pesquisando, revelam-se as práticas, as 4. Haguette TMF. Metodologias qualitativas na Sociologia.
crenças, os pensamentos e constrói-se conhecimento. Petrópolis: Vozes; 1987.
5. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa
É importante que o profissional de saúde se dê conta qualitativa em saúde. São Paulo: HUCITEC; 1993.
de seu papel, que se conscientize de que é um elemento 6. Schraiber LB. Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões
fundamental para o sucesso da busca pela saúde, e metodológicas do relato oral e produção de narrativas
o fator decisivo para possibilitar a superação, pelos em estudo sobre a profissão médica. Rev Saúde Pública.
pacientes, de seus problemas. Se forem marginalizados 1995;29(1):63-74.
dos processos de discussão e da elaboração de 7. Erickson F. Ethnographic microanalysis of interaction.
projetos, ter-se-á sempre resistência às mudanças. In: LeCompte MD, Millroy WL, Preissle J (eds). The
A razão porque muitas mudanças potencialmente Handbook of qualitative research in education. New
benéficas não se concretizam é justamente porque são York: Academic Press; 1992:201-25.
propostas de fora para dentro ou de cima para baixo, 8. Erickson F. Ethnographic description. In: Norbert HV,
não se produzindo como resultado da experiência dos Dittmar N, Mattheir KJ (eds). Sociolinguistics. Berlin:
envolvidos no processo. Walter de Gruyter; 1988:1081-1095.
9. Erickson F. Qualitative methods in research on teaching.
Um dos caminhos que se vê como possível para a In: Wittrock MC (ed). Handbook of research on teaching.
otimização de um processo de reflexão sobre práticas New York: Macmillan; 1986:119-61.
em saúde é o de promover situações de pesquisa onde 10. Peirano M. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume-
os profissionais sejam chamados a refletir sobre sua Dumará; 1992.
prática, não por uma imposição burocrática, mas sim 11. Fazenda IC. Interdisciplinaridade: um projeto em
como um desenrolar de uma proposta de envolvimento parceria. São Paulo: Loyola; 1993.
e responsabilização por um desempenho profissional 12. Fazenda IC (org). Práticas interdisciplinares na escola.
mais satisfatório para eles e para os pacientes, e São Paulo: Cortez; 1991.
mais condizente com as necessidades do país. Ao se 13. Morin E. Ciência com consciência. Lisboa: Publicações
pensar na melhoria da saúde como um todo se tem Europa-América; 1982.
que pensar em pesquisar as práticas que estão sendo 14. Magnani JGC. De perto e de dentro: nota para
desenvolvidas pelos profissionais da área, mas de um uma etnografia urbana. Rev Bras Ciências Sociais.
modo que eles possam contribuir nesta reflexão e que 2002;17(49):11-29.
esta possa alimentar sua prática.

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