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São Paulo – SP
Maio de 2011
Metodologicamente, destacamos a intensificação do debate sobre todos os aspectos
da criação musical hodierna e de sua percepção, confrontada a procedimentos
anteriores, como um modo de penetração imprescindível na totalidade da obra,
visando ao seu processo objetivo, das relações estruturais e subjetivo, da relação
entre intenção e significação, revelando os liames diretos ou contraditórios – e até a
sua impossibilidade de revelação – do percurso que vai do ato criador ao objeto
criado.
(Fernando Cerqueira)
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Sumario:
1. Introdução.................................................................................................................4
2. Justificativa...............................................................................................................8
3. Objetivos.................................................................................................................17
4. Metodologia............................................................................................................17
5. Discussão e resultados............................................................................................18
5.1. Sobre a construção do pensamento musical da modernidade.........................18
5.2. Algumas questões sobre o processo de “desumanização” da música.............29
5.3. Considerações sobre o pensamento composicional em suportes eletrônicos..31
5.4. Reflexões sobre a dimensão pragmática da comunicação musical.................37
5.5. Algumas breves observações sobre a Fenomenologia da Percepção..............42
5.6. Algumas breves observações sobre a Estética da Formatividade...................45
5.7. Algumas breves observações sobre a Pragmática da Comunicação...............47
5.8. Algumas breves observações sobre a Estética da Recepção...........................48
6. Bibliografia............................................................................................................52
7. Atividades desenvolvidas durante o Pós-Doutorado.............................................56
8. Textos publicados durante o Pós-Doutorado.........................................................57
9. Anexos: cópia dos certificados e dos textos publicados........................................58
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1. Introdução:
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nossos dias. É o ideal da música pura, forjado no ambiente racionalista-positivista do
século XIX, que vai costurar, do ponto de vista teórico, uma tradição musical que
remonta à Bach e alcança os nossos dias.
Somando-se a isso, no âmbito dessa tradição, a partir do entendimento acerca do
modo específico de racionalidade ocidental desenvolvido por Max Weber, a
expressão da estética musical só tem relevância nos termos de uma experiência
desmistificadora do mundo, alicerçada no ideal de uma racionalidade autônoma e
autorreferencializada, que estende os procedimentos próprios do método científico à
todas as áreas da ação humana.
No ensaio Os Fundamentos Racionais E Sociológicos Da Música, Weber descreve
o processo através do qual a música ocidental autonomizou-se de suas origens rituais,
para se tornar, no contexto da modernidade ocidental, um modo de experiência
desmistificadora do mundo. No referido ensaio, Weber distingue a tradição da música
ocidental das outras tradições musicais do mundo. O destaque dado à música
ocidental se justifica em razão de seu modo singular de racionalidade: autônoma e de
natureza intramusical (autorreferencializada). Nessa linha de pensamento, a música
das outras tradições (não ocidentais) é percebida nos termos de uma racionalidade de
natureza extramusical, portanto, não autônoma e, dessa forma, incapazes de suscitar
uma experiência desmistificadora de mundo.
No âmbito da música, o que possibilitou, segundo Weber, o surgimento dessa
racionalidade autônoma de natureza intramusical, foi o desenvolvimento da moderna
notação ocidental. Em suas palavras, “caso se pergunte pelas condições específicas do
desenvolvimento da música ocidental, então trata-se antes de mais nada, da invenção
da nossa moderna notação musical” (1995, p. 119). Na esteira dessas reflexões, pode-
se inferir que o modo singular de racionalidade da música ocidental, alicerça-se na
lógica – implícita – de sua notação. Explica-se: a moderna notação ocidental,
redutível ao eixo cartesiano de coordenadas, ao operar por abstração e generalização,
possibilita o desenvolvimento dessa racionalidade de natureza ‘intramusical’. A título
de exemplo, observamos que operações simples como a relativização dos valores de
tempo e a permutação das alturas – fundamentais para o surgimento do pensamento
polifônico, da elaboração harmônica, bem como de todo posterior desenvolvimento
da música ocidental – são impensáveis sem o desenvolvimento da moderna notação
ocidental. No entanto, a ênfase na partitura (ou seja, nas operações possíveis e
suscitadas pela notação), enquanto principal parâmetro para o desenvolvimento de um
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pensamento musical/composicional, tende a fazer desaparecer (ou a esconder) do
processo de criação a dimensão sensível da experiência composicional.
No exercício da música eletroacústica, quando, entre outras coisas, a partitura
torna-se desnecessária, tais questões assumem uma outra dimensão. Aqui, destacam-
se dois pontos:
- A notação tradicional, enquanto uma forma abstrata de representação
cartesiana, ao trabalhar, quase que exclusivamente, com os parâmetros altura e
duração do som, está longe de alcançar a complexidade do fenômeno sonoro
total.
- Os modelos de análise musical, focados apenas no texto da partitura, não
possibilitam reflexões que se desenvolvam a partir da escuta ou fruição
estética da música.
Como já foi sugerido, a nota escrita norteia o processo de composição a partir de
uma lógica que lhe é própria. O caráter abstrato da nota escrita condiciona e informa o
momento da composição a uma ordem mais de natureza intelectual e cognitiva que
propriamente estética. Daí a emergência de uma racionalidade intramusical –
autônoma – e do desenvolvimento de várias musicologias enquanto ciências da
música. Algo que, no extremo, conduz a um certo entendimento da música em que as
criações musicais são percebidas como obras de grande rigor intelectual, exercícios de
lógica dedutiva, produtos de uma inteligência puramente abstrata, que sempre
atropela a subjetividade de seus autores.
Como bem observou Pierre Schaeffer, “as idéias musicais são prisioneiras, mais do
que se possa acreditar, da aparelhagem musical – exatamente como as idéias
científicas são prisioneiras dos seus dispositivos experimentais” (Schaeffer, 1993,
p.30). Até meados do século XX, a ‘aparelhagem musical’ dominante reduzia-se à
nota musical escrita que, na perspectiva de Schaeffer representava (ou se preferir,
representa) o “arquétipo do objeto musical, fundamento de toda notação, elemento de
toda estrutura melódica e rítmica” (Schaeffer, 1993, p.30).
A poética da música eletroacústica, ao trabalhar sobre suportes interativos, que
possibilitam o trabalho diretamente sobre o som, oferece as condições para um
ambiente de composição, diverso do trabalho sobre partitura. Trabalhar diretamente
sobre o som, ao invés de trabalhar sobre sua representação cartesiana (a nota escrita),
é trabalhar diretamente sobre a matéria estética (ou se preferir, estésica) da música.
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Tudo isso implica na possibilidade (e na necessidade) de se fundamentar o
momento da composição, no âmbito do que poderíamos chamar fato musical total, ou
seja, no domínio da composição e performance e, ao mesmo tempo, da escuta, o que
significa nortear e pensar todo o processo (de composição, performance e escuta) a
partir do próprio gesto da composição, e não a partir de parâmetros existentes a
priori.
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2. Justificativa:
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Classicamente pode-se dizer que os estudos musicológicos se subdividem em quatro áreas: o que,
tradicionalmente, se conhece como Musicologia, que se ocupa, na maior parte das vezes, com as
músicas dos séculos XVIII e XIX (o interesse pelas músicas medieval e renascentista é, relativamente,
recente; o interesse pela música contemporânea é quase inexistente); a Etnomusicologia que, em linhas
gerais, estuda as práticas músicas tradicionais, não ocidentais; o campo da Teoria Musical e, por fim, o
campo da Análise (com um grande numero de trabalhos dedicados, em particular, à música
contemporânea).
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crítica formalista que norteia toda teoria e pensamento composicional. Neste ponto, o
trânsito intenso que se verifica entre o campo da ‘Análise’ e o da ‘Teoria’ os
transforma em áreas sobrepostas e sem fronteiras. A Teoria alicerça-se no que é
apresentado pela Análise, é informada por esta e vice-versa.
Fazendo-se um breve levantamento, os principais modelos de análise musical
utilizados na prática musicológica são os seguintes:
- A teoria da harmonia tonal de Henrich Schenker;
- A abordagem proposta por Arnold Schoenberg da harmonia, da forma e do motivo;
- A análise do tema e do motivo desenvolvida por Rudolph Réti.
- A “Set-Theory”, ou teoria dos conjuntos, de Allen Forte e Milton Babbitt, para a
análise das músicas atonais.
- A análise rítmica e melódica proposta por Leonard Meyer;
- O “Musical Critcism” de Joseph Kerman, Charles Rosen, Anthony Newcomp e Leo
Treitler;
- A semiologia da música de Jean-Jacques Nattiez e Nicholas Ruwet.
- As várias propostas de análise por computador;
- A teoria generativa de Fred Lerdahl e Ray Jackendorff, desenvolvida a partir dos
escritos do lingüista Noam Chomsky;
- As análises desenvolvidas para o estudo das músicas de tradição oral.
O que se observa, ao se aproximar de tais modelos de análise, é que, apesar da
aparente diversidade, quando se considera, em sentido amplo, a orientação
epistemológica de cada um deles, constata-se que as diferenças não são tão grandes
assim. Pode-se dizer que, entre eles, todos (talvez porque alicerçados em um mesmo
entendimento da música) pressupõem um certo modo de se relacionar com a música
que é comum, ou seja, todos partem de uma postura analítica stricto sensu: dividir um
problema em tantas partes quantas forem necessárias para melhor resolvê-lo.
Tal postura alimenta um certo modo de ‘escuta’, voltada apenas para a estrutura
interna da partitura. Com isso, o objetivo do analista limita-se a identificar as
características imanentes ao texto da partitura. Nos termos desse entendimento, a
música se define por sua escritura, se confunde com a partitura, se reduz ao texto,
fazendo uma analogia, mapa e território ficam embaralhados. Questões exteriores
relativas ao processo composicional, ao ouvinte, ou ao contexto social que cerca o
compositor ou o ouvinte, não interessam ao analista, para este, tudo que importa está
na partitura. Sobre isso, abrindo um parêntese, para fundamentar melhor essa
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discussão, levantaremos algumas considerações com base em reflexões de John
Dewey e Gilles Deleuze.
A reflexão sobre a arte no pensamento de John Dewey pressupõe uma continuidade
entre os momentos da produção e da recepção. Para Dewey, referindo-se ao momento
da recepção nos termos de um padecer, a arte une as relações de fazer e padecer em
sua forma, a energia de ida e de vinda que possibilita que uma experiência seja uma
experiência. O fazer é artístico, quando as qualidades da natureza do resultado
percebido no processo de criação controlam a produção. A ação de produzir, quando
conduzida pela intenção de produzir alguma coisa gozada na experiência imediata do
perceber, faz emergir qualidades que uma atividade não controlada ou espontânea não
possui. O artista, em seu processo de trabalho, incorpora a si próprio a atitude daquilo
que percebe (Dewey, 1980, p. 99).
Esta correspondência e continuidade, entre os momentos da produção e da
recepção, se estende à fruição artística. A dinâmica que envolve ‘produção’ e
‘recepção’ no processo de formação da obra de arte é a mesma do processo de
fruição. Observa Dewey que é mais difícil para o fruidor entender a relação íntima
envolvida entre o fazer e o padecer, somos inclinados a acreditar que o fruidor apenas
absorve aquilo que se encontra numa forma acabada, no entanto, o processo de
fruição envolve atividades comparáveis e similares às da criação. Não se deve
confundir receptividade com passividade, trata-se de um processo que ocorre a partir
de vários atos de resposta que vão se acumulando, voltados para uma culminância
objetiva (Dewey, 1980, p.104).
Ao salientar que receptividade não se confunde com passividade, Dewey toca em
um ponto fundamental. Quando o momento da recepção se reduz a um momento de
pura contemplação ou passividade, então, a experiência estética não se completa. Para
que esta seja completa, o momento da recepção precisa consistir de uma série de atos
que vão se acumulando na direção da integralização da experiência. Nos termos de
Luigi Pareyson, “receptividade que se prolonga em atividade”, visto que “receber” e
“desenvolver” reúnem-se em um único gesto no momento da fruição. Uma dinâmica
que, ao se fundar na “adoção do ritmo do objeto”, não apenas atualiza uma
“ressonância do objeto em mim”, como também revela uma sintonia com o mesmo,
quando o agir se dispõe a receber e o falar se dispõe a ouvir, ou seja, a atividade
ocorre em função da receptividade (Pareyson, 1993, p.59). Quando isso não acontece,
então o momento da recepção, nos termos de Dewey, não passa de reconhecimento.
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Sobre recepção e reconhecimento, considera ele que a diferença entre os dois é
imensa. O reconhecimento, em suas palavras, é uma ‘percepção detida’ anterior à
oportunidade e possibilidade de um livre desenvolvimento. É verdade que no
reconhecimento se encontra o princípio de um ato de percepção, no entanto, no
âmbito desse princípio, desse começo, não é possível o desenvolvimento de uma
percepção completa e plena da coisa reconhecida. É percepção detida na medida em
que está a serviço de qualquer outro propósito. Como em um estereótipo, no
reconhecimento recaímos sobre um esquema anteriormente formado. O
reconhecimento implica um esquema previamente formado. Aqui é suficiente
atualizar o objeto presente segundo tal esquema como se estivéssemos diante de um
padrão reconhecido. A percepção é mais complexa, se sobrepõe e substitui o mero
reconhecimento. Na percepção a consciência emerge com mais força, torna-se mais
presente e vivida, opera um ato de atividade reconstrutora. Este ato envolve a
cooperação e coordenação de todos os elemento motores, ainda implícitos e não
exteriorizados, do mesmo modo que envolve à coordenação e cooperação do
somatório de todas as idéias acumuladas que possam contribuir para que o novo
quadro em formação se complete. O mero reconhecimento não é suficiente para
despertar uma consciência forte e vívida. Não existe resistência suficiente entre o
antigo e o novo, que possibilite a consciência da experiência que é tida. Nas palavras
de Dewey, “até um cão que ladra e move alegremente a cauda ao ver seu dono está
mais plenamente vivo ao receber seu amigo do que um ser humano que se contenta
com o simples reconhecimento” (Dewey, 1980, p. 102).
A análise musical – enquanto uma forma de ‘percepção detida’ da música – é algo
que não ultrapassa o limiar do reconhecimento. Os modelos de análise musical que
trabalham a partir da afirmação absoluta do texto da partitura, do pressuposto de sua
auto-suficiência, ao considerar que o sentido que importa é tão-somente o que advém
de sua organização interna – sempre anterior a qualquer experiência –, ao focar e não
ultrapassar as invariantes estruturais do texto da partitura, etc., o ponto de chegada
desses modelos de análise musical nunca será mais do que o reconhecimento de um
padrão estabelecido de antemão. A estrutura da partitura, aquilo passível de ser
mensurado ou quantificado, é a única coisa a ser descrita – reconhecida, reapresentada
– pelo analista. No contexto de tal compreensão teórica, a música propriamente dita
jamais poderia ser fruída, circunstância em que, necessariamente, interfeririam os
elementos sem freio da experiência, irredutíveis a qualquer forma de stásis. Acontece
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que estes, os elementos sem freio da experiência, no contexto da postura analítica,
devem ser evitados, para que a análise musical se realize como uma “ciência”. No
âmbito dessas questões, consideramos a necessidade de se mudar o foco do texto da
partitura, enquanto estrutura imutável, para a dinâmica – caosmótica – da experiência
estética. Não podemos esquecer que a compreensão da música não existe fora de seu
acontecimento, de sua situação pragmática, onde a escuta – sempre informada por
uma cooperação que envolve todos os elementos de forma dinâmica – atualiza uma
experiência estética em sua totalidade. É nesse contexto que, recorrendo a Gilles
Deleuze, gostaríamos de apresentar as noções de diferença e repetição, onde a análise
musical, enquanto “percepção detida”, irá aparecer como um modo de “repetição do
mesmo”.
O problema da diferença e repetição é algo que Deleuze tomou emprestado de
Friedrich Nietzsche, mais precisamente da idéia do “eterno retorno”. Na dinâmica do
eterno retorno, o ser não se opõe ao devir, a identidade não se opõe à diferença. Tais
oposições emergem na filosofia da representação – inaugurada por Platão – quando
considera que o devir deve ser reabsorvido no ser, que o múltiplo deve ser submetido
à unidade e a diferença à identidade.
Na leitura que Deleuze faz de Nietzsche, há uma relação muito íntima, intrínseca,
entre o ser e o devir. Mas isso não quer dizer que é o ser, enquanto portador de uma
identidade, que retorna. Na dinâmica do eterno retorno não é o mesmo – fundado em
uma identidade – que retorna, ao contrário, é sempre o diverso, o múltiplo, o
diferente. Como sugere Foucault comentando a leitura que Deleuze faz de Nietzsche,
“o ser é o revir da diferença sem que haja diferença na maneira de dizer o ser”
(Focault apud Machado, 1990, p. 86).
Comentando sobre tais questões, observa Roberto Machado que a idéia do ‘eterno
retorno’ representa o ápice do antiplatonismo de Nietzsche, bem como de sua critica à
filosofia da representação que busca a superação do mesmo e do semelhante, em
favor do que difere, ou do mesmo que difere, do mesmo produzido pela diferença, ou
pela vontade de potencia. Situando-o na esteira de uma tradição que remonta à Duns
Scot e Espinosa, Deleuze reconhece em Nietzsche o momento mais alto da ontologia
através de uma leitura do ‘eterno retorno’ como “o ser unívoco que se diz da diferença
ou, ainda mais fundamentalmente, da interpretação de que no eterno retorno o ser
unívoco não apenas é pensado, mas efetivamente realizado” (Machado, 1990, p. 95).
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É a noção de eterno retorno – compreendida nos termos de um antiplatonismo e de
uma crítica à filosofia da representação – que alimenta a idéia da repetição como algo
que não se opõe à diferença, mas à representação. A repetição – enquanto movimento
livre de qualquer mediação – é algo percebido no singular, ao passo que a
representação – sempre mediada – é algo da ordem do genérico, do universal, do
abstrato. Nesses termos a repetição é única e, em razão dessa singularidade, ela nunca
retorna como um mesmo, a repetição de uma nota musical, por exemplo, nunca será
igual à primeira. O retorno do mesmo – possível apenas num plano abstrato – supõe
uma seleção prévia de alguns elementos, um processo de mediação que,
necessariamente, arranca da repetição sua singularidade, dessa forma, sua lógica não é
mais a da repetição propriamente dita – compreendida no âmbito concreto de uma
singularidade – mas a da representação – alicerçada na mediação e abstração das
singularidades. Ocorre que a representação opera relacionando conceito e objeto: em
sua lógica o conceito – ou representação – é algo que emerge a partir dos traços gerais
e semelhantes entre os objetos. Não há outro modo de representar a não ser a partir da
promoção do que é genérico e da abstração do que é singular, o re de representação
significa a repetição do que é semelhante, ou seja, significa a repetição do mesmo, nos
termos de Deleuze, “o prefixo RE, na palavra representação, significa a forma
conceitual do idêntico que subordina as diferenças” (Deleuze, 1988, p. 106). É no
âmbito dessas questões que a repetição – definida nos termos de sua singularidade –
não se opõe à diferença, mas sim à representação. Segundo Deleuze, o mundo
afirmado da diferença é escamoteado pela representação. A representação só
reconhece um centro, uma única e fugidia perspectiva e, desse modo, possui uma
falsa profundidade, mesmo porque, ela não move nem mobiliza nada, mas apenas
mediatiza tudo. De outro modo, o movimento supõe uma enorme pluralidade de
centros, perspectivas superpostas, pontos de vista imbricados, coexistência de
momentos que desmontam, em sua essência, a representação (Deleuze, 1988, p.106).
Ao refletir a cerca da noção de diferença, gostaríamos de aproximar Dewey de
Deleuze, e sugerir que o que o primeiro chama de experiência, o segundo chama de
diferença, melhor dizendo, a experiência, nos termos em que é compreendida por
Dewey, é a situação que possibilitaria – ou configuraria – o retorno do diferente,
como este é apresentado por Deleuze.
Como vimos, para Dewey, o pensamento é algo que brota da experiência, um
acontecimento decorrente de uma situação em condição de conflito e resistência. Sob
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tal situação, retomando as palavras de Dewey, “aspectos e elementos do eu e do
mundo implicados nessa interação qualificam a experiência com emoções e idéias, de
maneira tal que emerge a intenção consciente”. Ocorre que com freqüência a
experiência que se vive é incompleta, “as coisas são experienciadas, mas não de modo
tal que se componham em uma experiência”. Isso acontece porque há distração e
dispersão, com isso, o fosso entre o que desejamos e o que alcançamos permanece, o
que observamos e o que pensamos não se irmanam, dessa forma, “começamos e logo
nos detemos, não porque a experiência haja alcançado o fim em vista do que foi
iniciada, mas por causa de interrupções estranhas, ou por qualquer letargia interna”
(Dewey, 1980, p. 90). Para Dewey, só há experiência de fato quando o material
experienciado segue seu curso – sem desvios – até sua realização completa.
Para Deleuze, a experiência da diferença é crucial “toda vez que nos encontramos
diante de ou em uma limitação, diante de ou em uma oposição, devemos perguntar o
que tal situação supõe”. Isso, segundo ele, supõe um certo formigamento, um
pluralismo de diferenças não domadas, selvagens e livres, “um espaço e um tempo
propriamente diferenciais, originais, que persistem através das simplificações do
limite e da oposição” (Deleuze, 1988, p. 97).
Retomando a questão da incompletude da experiência referida por Dewey, nos
termos de Deleuze, poder-se-ia dizer, é o que leva a uma indiferença, ou melhor, é o
que não passa de indiferença. Esta possui dois aspectos: o primeiro é o de um “abismo
indiferenciado”, de um “nada negro”, um “animal indeterminado”; o segundo é o de
um “nada branco”, de uma “superfície tornada calma em que flutuam determinações
não-ligadas, como membros esparsos, cabeças sem pescoço, braços sem ombro, olhos
sem fronte” (Deleuze, 1988, p 63). Aqui, não apenas o indeterminado é totalmente
indiferente, como também as determinações flutuantes são igualmente indiferentes
umas em relação às outras. A experiência incompleta – ou indiferença – não permite o
retorno do diferente, só o retorno do mesmo.
Nos termos de Dewey, a experiência em seu sentido vital, só se define nas
situações em que podemos determinar que “aquela foi uma experiência”. A unidade
da experiência, quando se distingue – ou quando se determina – como um
acontecimento notável, lhe confere seu nome. Assim, em relação a um prato num
restaurante, por exemplo, se este se distingue como “uma lembrança memorável do
que pode ser a comida”, podemos então determinar que “aquela foi uma experiência”.
Ora, segundo Deleuze, “a diferença é este estado em que se pode falar d’A
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determinação”. Observa ainda que “a diferença é este estado de determinação como
distinção unilateral. Da diferença, portanto, é preciso dizer que ela é estabelecida ou
que ela se estabelece, como na expressão ‘estabelecer a diferença’.” (Deleuze 1988,
p.63 a 64).
Voltando a Dewey, ele salienta que “uma experiência de pensamento tem sua
qualidade estética própria (…), nenhuma atividade intelectual será um acontecimento
integral (uma experiência), a menos que seja integralizada pela mencionada
qualidade. Sem ela o pensar é inconclusivo.” (Dewey, 1980, p. 91). Para concluir, o
estético, de forma alguma, pode ser separado ou ignorado da experiência intelectual,
esta para ser completa deverá apresentar cunho estético. “O que distingue uma
experiência como estética é a conversão das resistências e das tensões, das excitações
que em si próprias são tentações para a dispersão, em um movimento dirigido para um
término inclusivo e satisfatório” (Dewey, 1980, p.99). Como vimos, com Deleuze a
diferença emerge com a determinação, essa determinação é algo que se dá com – o
que Dewey chama – a “qualificação da experiência”. Esse é, a nosso ver, o ponto de
intersecção entre os dois autores. Ora, atualizar as relações que qualificam a
experiência com emoções e idéias é pensar, pensamento esse, nunca é demais
salientar, que brota do âmbito da dimensão estética da experiência.
Fechando o parêntese anteriormente aberto e retornando a Joseph Kerman, observa
ele que a grande deficiência dos analistas é a miopia. O enfoque concentrado e
limitado às relações internas da obra (isto é, da partitura) é, em última instância,
subversivo, no que se refere a qualquer visão razoável da música, enquanto fenômeno
complexo que é. A estrutura autônoma da música é apenas um, entre vários outros,
dos elementos que contribuem para sua importância, e está longe de ser suficiente
para seu significado total. Considera Kerman que essa obstinada preocupação com a
estrutura, vem acompanhada da negligência com outros aspectos vitais, não apenas
em relação a toda complexidade histórica na qual a obra está inserida, mas também
negligência a tudo o que torna a música afetiva, tocante, emotiva e expressiva
(Kerman, p. 93 a 94, 1987).
Como já foi colocado na introdução, a poética da música eletroacústica possibilita
um outro ambiente de composição, ambiente esse de grande imersão sensorial.
Trabalhar com o som, e não com sua representação cartesiana (a nota escrita), faz
emergir uma série de questões estéticas que não podem e não devem mais ser
ignoradas. Fazendo coro com Susan Sontag, concluímos que “o que importa agora é
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recuperarmos os sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais (...).
Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte” (Sontag, 1997,
p.23). Tudo isso conduz à necessidade de um empreendimento em um quadro teórico
de referências que possibilite, ao musicólogo ou pesquisador, ir muito além das
relações internas ao texto da partitura.
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3. Objetivos
Geral:
• apresentar uma compreensão do fenômeno da composição musical em
meios eletrônicos a partir de suas especificidades e características próprias.
Específicos:
• Apresentar as limitações e lacunas dos modelos de análise que se limitam
ao texto da partitura.
• Apresentar um quadro teórico de referências a partir do qual uma
compreensão do processo de composição em meios eletrônicos torna-se
possível.
• Apresentar um quadro teórico de referências a partir do qual uma
compreensão das produções musicais em meios eletrônicos torna-se
possível.
4. Metodologia
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5. Discussão e resultados
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Para Weber, uma ação para ser racional precisa cumprir duas condições: primeiro,
é racional toda ação orientada para um objetivo formulado com clareza, ou ainda,
orientada para um conjunto de valores, igualmente formulado com clareza e
consistência lógica. Segundo, é também racional toda ação em que os meios
escolhidos para se atingir determinado objetivo são os mais adequados.
No sistema de Weber, quando um ato pode ser descrito com base nos cânones da
lógica, dos procedimentos da ciência ou do comportamento econômico bem sucedido,
ele pode ser considerado como racional; em outras palavras, quando um ato em suas
intenções, se volta para um objetivo concreto e está, no que diz respeito aos meios
para a consecução desse objetivo, em total concordância com o conhecimento dos
fatos e a compreensão teórica, ele é racional. Ou seja, todas as vezes em que a escolha
de um objetivo e a escolha dos meios para que se atinja esse objetivo satisfazem esses
critérios, então um ato é plenamente racional. No entanto, quando os objetivos finais
de um ato são aceitos por razões de tradição, e os meios (que, em razão disso, não são,
necessariamente, ineficazes) também, alicerçam-se na tradição, teremos o
comportamento de um tipo que tem sido o modo dominante e mais freqüente na maior
parte das sociedades de todos os tempos. Poder-se-ia falar aqui de um comportamento
ainda racional, mas de um tipo de racionalidade exterior, administrada de fora, dessa
forma, desprovida de uma legalidade própria e carente de autonomia. Por fim, os atos
podem ser motivados por afetos ou paixões. Este gênero de comportamento – quando
os meios e os fins derivam de emoções – está no extremo oposto ao do ato
intencionalmente racional (MacRae, 1988, p.73).
Está separação, entre o modo específico de racionalidade da sociedade ocidental e o
das outras, é muito presente no pensamento de Weber e atravessa todos os aspectos da
cultura estudados por ele. Na introdução de A Ética Protestante E O Espírito Do
Capitalismo escreve:
No estudo de qualquer problema da história universal, um filho da moderna civilização
européia sempre estará sujeito à indagação de qual a combinação de fatores a que se
pode atribuir o fato de na Civilização Ocidental, e somente na Civilização Ocidental,
haverem aparecido fenômenos dotados (como queremos crer) de um desenvolvimento
universal em seu valor e significado (...). Apenas no Ocidente existe a “ciência” num
estado de desenvolvimento que atualmente reconhecemos como “válido” (Weber, 2001,
p. 9).
Mais adiante, reportando-se à arte como um todo, mas, mais precisamente à
música, escreve o seguinte:
O mesmo ocorre com a arte (...). Música racional – tanto o contraponto como a harmonia
–, a formação da sonoridade na base de três tríades com o terceiro harmônico; nossa
cromática e inarmônica interpretadas não em termos de espaço, mas desde o
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renascimento, de harmonia; nossa orquestra com seu quarteto de cordas como núcleo e
com a organização do conjunto de instrumentos de sopro; nosso acompanhamento de
graves; nosso sistema de notação (que possibilitou inicialmente a composição e o uso de
nossos instrumentos, e depois sua própria sobrevivência); nossas sonatas, sinfonias,
óperas e os instrumentos básicos que lhes serve de meio de expressão: o órgão, o piano, o
violino só existiram no ocidente, se bem que a música figurativa, a poesia tonal, a
alteração de tons e a dissonância tenham existido como meios de expressão em várias
tradições musicais (Weber, 2001, p. 10).
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Retornando ao tema do desencantamento, o que abre caminho para uma sociedade
racional, orientada em escala crescente, pelos componentes da pura racionalidade, é o
processo de ultrapassagem de um mundo social “encantado” – próprio das sociedades
tradicionais – para o mundo “desencantado” da modernidade ocidental. No âmbito
das sociedades tradicionais, por exemplo, ações orientadas por um saber técnico e
ações justificadas na magia, por vezes, se confundem. Arte, técnica, ciência e religião
funcionam sob a mesma lógica. Com o processo de desencantamento, todas as ações –
antes orientadas a partir de um mesmo sistema complexo de signos – começam a se
separar e a se diferenciar.
Desse modo, a racionalização é um processo através do qual as mais variadas
linhas de ação ganham significação e legitimação próprias. Com isso, não é
exatamente o mundo como um todo que se racionaliza, mas as várias linhas de ação.
“Há uma lógica intrínseca que comanda o encadeamento dos significados em cada
uma dessas linhas. Há nos termos weberianos, uma ‘legalidade própria’ a cada qual”
(Conhn, 1995, p.13). É essa legalidade própria que assegura a separação entre as
diversas linhas de ação, “ao conferir aos significados que nelas ocorrem os conteúdos
que as tornaram, por exemplo, jurídicas e não econômicas, religiosas e não políticas”
(Conhn, 1995, p.13). O que caracteriza o mundo moderno, portanto, é esse processo
de departamentalização do conhecimento, tornado possível com o desencantamento
do mundo.
No que diz respeito ao processo de racionalização da esfera estética, Weber, no
texto Rejeições Religioso do Mundo e Suas Direções, escreve o seguinte:
A religiosidade mágica está numa relação muito íntima com a esfera estética. Desde seu
início, a religião tem sido uma fonte inesgotável de oportunidades de criação artística, de
um lado, e de estilização pela tradicionalização, de outro. Isso se evidencia em vários
objetos e processos: ídolos, ícones, e outros artefatos religiosos; na padronização das
formas comprovadas magicamente, o que constitui um primeiro passo na superação do
naturalismo por uma fixação de ‘estilo’; na música, como meio de êxtase, exorcismo, ou
mágica apotropaica; em feiticeiros que eram cantores e dançarinos mágicos; em relações
de tom comprovadas magicamente e portanto padronizadas (…). A sublimação da ética
religiosa e a busca de salvação, por um lado, e a evolução da lógica inerente da arte, por
outro, tenderam a formar uma relação cada vez mais tensa (…). A relação entre a ética
religiosa e a arte continuará harmoniosa no que diz respeito à arte, e enquanto o artista
criador considera seu trabalho resultado seja do carisma ou da ‘habilidade’
(originalmente mágica), seja do jogo espontâneo (…).O desenvolvimento do
intelectualismo e da racionalidade da vida modifica essa situação. Nessas condições, a
arte torna-se um cosmo de valores independentes, percebidos de forma cada vez mais
consciente, que existe por si mesmos. A arte assume a função de salvação neste mundo,
não importa como isto possa ser interpretado. Proporciona uma salvação das rotinas da
vida cotidiana, e especialmente das crescentes pressões do racionalismo teórico e prático.
(Weber, 1997, p.173 a 174).
21
Identificamos dois momentos distintos na citação acima, o primeiro refere-se à
correspondência entre arte e religião: a arte – compreendida como uma espécie de
ferramenta da religião – apenas atualiza, confirma e reitera os princípios religiosos. O
segundo, diz respeito ao processo de emancipação da arte, quando esta conquista
valores próprios – autonomizados dos valores religiosos – na dinâmica específica e
própria de seu processo de criação.
A arte, ao se descolar da religião, cria uma situação de tensão: a arte autônoma
não depende mais da legitimação que antes lhe dava a religião, esta legalidade passa a
ser instituída pela própria arte, é construída internamente, no âmbito da dinâmica da
operosidade específica e singular da arte. Portanto, a arte verdadeiramente autônoma é
aquela que possui uma legalidade própria instituída de dentro do próprio ato de
criação artístico. É a lógica específica – única – do operar artístico que possibilita à
arte emergir enquanto esfera autônoma e singular.
Como já foi visto, não é o mundo todo que se racionaliza, mas as diversas
linhas de ação, autonomizadas das representações míticas e religiosas, em esferas
distintas de conhecimento. Sobre isso, se faz necessário acrescentar que, no
pensamento de Weber, o processo de racionalização – através do qual se intensifica o
crescimento dos componentes da racionalidade na compreensão da realidade – pode
ser estudado em dois níveis: o primeiro diz respeito à diferenciação das várias linhas
de ação que surgiram com a modernidade; o segundo refere-se à lógica interna e a
operosidade específica de cada uma das linhas de ação, ou seja, remete-nos à
racionalidade intrínseca de cada linha, ao modo como cada uma delas institui-se e
emerge como “legalidade própria”. É no âmbito de tais questões que podemos
entender a idéia de uma racionalidade intramusical.
Weber parte do pressuposto de que há dois tipos de música: a ocidental e as
outras. O que particulariza a música ocidental da música de outras tradições é o seu
modo singular de elaboração, fundado no domínio de uma racionalidade autônoma –
descolada de suas origens e funções rituais. Como observa Leopoldo Waizbort numa
reflexão sobre o texto de Weber:
A racionalização do sistema sonoro (…) pode operar basicamente de dois modos: como
uma racionalização extramusical ou como uma racionalização intramusical. A
racionalização extramusical mostra-se claramente na criação e utilização de intervalos
obtidos de modo arbitrário, e Weber detecta essa tendência em variadas músicas do
Oriente, formulando a hipótese – que se encaixa perfeitamente em seu pensamento – de
que a música ocidental permaneceu num nível inferior de racionalização (num grau
menor e numa direção diferente) justamente por racionalizar seu material sonoro de
modo extramusical, ou ao menos de racionalizá-lo desse modo em grande parte (…). Em
22
contraste e oposição à racionalização extramusical – digamos, típica do oriente –, Weber
vai apontar a racionalização intramusical como aquele traço específico da música
ocidental. Racionalização intramusical, “a partir de dentro” do sistema sonoro, significa
temperamento: “temperada é, em sentido amplo, toda escala na qual o princípio da
distância é levado a efeito de tal modo que a pureza dos intervalos é relativisada com o
fim de compensar a contradição dos distintos ‘círculos’ de intervalos entre si, mediante a
redução a distâncias sonoras só aproximadamente justas (Waizbort, p 44, 1995).
2
Nos termos de Weber: “temperada é, em sentido mais amplo, toda escala na qual o princípio da distância é
levado a efeito de tal modo que a pureza dos intervalos é relativizada, com o fim de compensar a contradição dos
distintos ’círculos’ de intervalos entre si, mediante a redução a distâncias sonoras apenas aproximadamente justas.
Sua forma-limite mais radical é aquela que toma por base um intervalo – naturalmente a oitava, que por seu lado
não suporta nenhuma espécie de pureza apenas relativa – e simplesmente o decompõe em distâncias sonoras de
mesma grandeza” (Weber, 1995, p130).
23
As notações de caráter – aproximadamente – ideogramático de outras tradições, ao
operar por analogia e semelhança, não permitem o grau de abstração das operações
possíveis com a notação – simbólica, discreta, não contínua – da tradição ocidental.
Na esteira dessas questões Pierre Boulez aponta três razões para a superioridade da
notação simbólica: faz uso de uma simbólica proporcional; opera a partir de estruturas
cerebrais mais refinadas – rejeita aproximações grosseiras; por último, favorece a
noção totalizante de tempo musical, apreendida apenas a partir de valores discretos
(Boulez, 1992, p.112).
O pensamento musical da modernidade surge de dentro desse cenário. Sobre o
trânsito entre o ambiente da modernidade e o pensamento musical comprometido com
o ideal de uma racionalidade autônoma, Weber escreve o seguinte:
No que diz respeito à teoria enquanto tal, nada é na verdade tão palpável quanto o fato de
que ela quase sempre vem a reboque dos fatos do desenvolvimento musical. Mas nem
por isso ela foi menos influente, e sua influência também não agiu de modo algum
apenas no invólucro [Wagschale] do que já existia na prática, embora seja verdade que
ela muitas vezes tenha imposto à música artística limites que persistem de forma
duradoura. A moderna harmonia de acordes certamente pertencia à música prática desde
muito antes que Rameau e os Enciclopedistas lhe dessem uma base teórica (ainda pouco
perfeita). Mas foi muito fecundo para a música prática que isto tenha ocorrido,
exatamente da mesma forma como os esforços de racionalização dos teóricos medievais
o foi para o desenvolvimento da polivocalidade já existente também seu [sua]
intervenção. As relações entre a ratio musical e a vida musical pertencem às relações
variadas de tensão historicamente mais importantes da música. (Weber, 1995, p. 134 a
135).
Não se pode deixar de observar o nexo entre a “ratio musical” e a “vida musical”,
ambos os termos estão entrelaçados, verifica-se aqui um jogo forte de
correspondências muito semelhante ao que ocorre entre a “ética protestante” e o
“espírito do capitalismo”. Como Weber sugere, trata-se de uma “individualidade
histórica”, ou seja, “um complexo de nexos na efetividade histórica que nós
encadeamos conceitualmente em um todo sob o ponto de vista de sua significação
cultural” (Weber apud Waizbort, 1995, p.46). Com isso, o significado cultural da
moderna música ocidental está – nos termos dessa sociologia da música – imbricado
no processo do “moderno racionalismo ocidental”.
Theodor W. Adorno desenvolve suas reflexões acerca da totalidade musical,
também, a partir do pressuposto dos modos intramusical e extramusical de
racionalidade. No pensamento de Adorno, totalidade intramusical é aquela alicerçada
na objetividade de seus próprios materiais, ou seja, que se articula e se desenvolve a
partir de uma lógica interna a esses materiais, e é isso que dá unidade à obra.
24
Cada obra de arte estabelece, por assim dizer, programaticamente a sua unidade. O que
passou pelo espírito define-se como ‘uno’ contra a má naturalidade do contigente e do
caótico. A unidade é mais do que simplesmente formal: graças a ela a obra de arte
subtraem-se à dissociação mortal. A unidade das obras de arte constitui a sua cesura
relativamente ao mito (...). A unidade emerge dos seus próprios elementos, do múltiplo;
elas não extirpam o mito, mas atenuam-no (Adorno, 1988, p.211).
25
O tema da delicada relação entre música e sociedade, é trabalhado por Adorno –
também na esteira de Weber – em sua Introdução à Sociologia da Música:
A relação entre as obras de arte e a sociedade é comparável à mônada de Leibniz.
Desprovidas de janela – isto é, não conscientes da sociedade e, de qualquer maneira, não
acompanhadas, de maneira constante e necessária, dessa consciência –, as obras de arte
(sobretudo as musicais, que se encontram amplamente distanciadas dos conceitos)
representam a sociedade. A música, podemos imaginar, fá-lo tanto mais profundamente
quanto menos aponta na direção da sociedade (Adorno, apud Jay, 1988, p. 120 a 121).
26
refletindo-se sobre ela, mas sim na obscura interioridade da própria obra” (Adorno,
1974, p. 38).
A música “verdadeira” (revolucionária e emancipatória) – como, por exemplo, a
música de Beethoven e Schoemberg no contexto em que foram produzidas – é criada
no exercício de uma técnica – fundada em um modo autônomo de racionalidade –
que, necessariamente, deve estar em consonância com a lógica do progresso histórico
no qual está inserida. Poder-se-ia dizer que, é porque falta à música a consciência da
realidade representada por ela que a sua representação é verdadeira: a sua verdade
está na pureza – na autonomia – de seu modo de articulação e desenvolvimento, não
contaminado de fora por nenhuma ideologia. Com isso, a sua verdade
(comprometimento com a história) é a sua integridade (totalidade), que é a sua
intramusicalidade (pureza), que é o mesmo que sua autonomia
(autorreferencialidade), fundada na sua abstração (notação simbólica), possível
somente na ausência da consciência de uma realidade exterior, mas que,
contraditoriamente, ela acompanha e representa.
Enquanto esfera autônoma, operacionalizada a partir da objetividade e domínio de
seus próprios materiais, ela mantém o distanciamento necessário para a construção do
re da re-presentação. Sendo esfera autônoma, ocupada apenas com os parâmetros
intramusicais, a música não significa, o significado é de natureza extramusical. Sendo
assim, a música é apenas um modo de escritura. Enquanto escritura, ela é a
representação da estrutura dinâmica de um processo de conhecimento aprendido em
sua abstração. Portanto, enquanto “totalidade revelada de modo dinâmico (Adorno,
1988, p.209), é a mimese de um modo de articulação compreensiva, ou seja, a música
informa um modo de compreensão. É esse o modo da música ser escritura da história:
dizendo gestualmente um modo de pensar – historicizado a partir da aceitação ou
recusa dos materiais tais quais estes se encontram no estado presente das técnicas de
composição, isto é, na dinâmica da intramusicalidade. Em síntese, a música e a
realidade histórico-social coincidem de modo peculiar:
A música como tal não somente carece de conteúdo univocamente concreto, mas,
além disso, quanto mais a música purifica suas leis formais e confia nelas, mas
se fecha a representação manifesta da sociedade dentro da qual tem seu território
reservado. (...) O conteúdo social da verdadeira música está garantido, não pelo
ouvido, mas tão somente pelo conhecimento dos diversos elementos e de sua
configuração. (...) O isolamento da nova música radical não deriva de seu
conteúdo associal, mas de seu conteúdo social, pois mediante sua única
qualidade, e com tão maior vigor quanto mais puramente a deixa transparecer,
27
indica a desordem social, ao invés de volatilizá-la no engano de uma humanidade
entendida como já realizada. Já não é ideológica. Nisto coincide, por sua
segregação, com uma grande mudança social (Adorno, 1974, p.104-105).
Em virtude da autonomia da música em relação ao mundo social ter sido dado como
obvia durante pelo menos um século, e, em função também dos requisitos técnicos
exigidos pelas análises musicais serem tão distintos e severos, há uma suposta ou
imputada auto-suficiência musicológica, que é agora muito menos justificável do que
jamais foi (Said, 1992, p. 73).
Para finalizar essa parte, pode-se dizer que, a compreensão da música, como
aparece em Weber e Adorno, sintetiza e representa (com algumas variações), toda a
tradição da música ocidental como ela é pensada sob o ponto de vista técnico e
teórico. No entanto, nunca é demais observar, muito antes de Weber e Adorno, esse
processo (que desencadeou o desenvolvimento desse modo particular de compreensão
da música) pode ser rastreado na tradição da filosofia, da estética e da musicologia,
em obras como, o Compêndio Musical de Descartes, o Dicionário de Música de
Rousseau, em textos de Kant, Rameau, Leibniz, Schlegel, Hoffmann, Hanslick (entre
outros).
28
5.2 Algumas questões sobre o processo de “desumanização” da música
Recapitulando o que já foi dito, a ênfase na estrutura interna da música é algo que
nos remete à idéia de sua autonomia e, conseqüentemente, à noção de uma
racionalidade intramusical, o que vai possibilitar o surgimento do conceito de “música
pura”, análogo ao de “arte pela arte”, no entanto, reiteramos, não existe, de fato,
música pura, toda música é permeável às “impurezas” humanas e só se desenvolve no
domínio de uma heteronomia musical, não no de uma autonomia. José Ortega y
Gasset, em A Desumanização da Arte, pensando, não especificamente sobre a música,
mas sobre a arte em geral, toca nessas questões. Seu ponto de partida é a
antipopularidade da arte de vanguarda do início do século XX.
Convém distinguir o que não é popular do que é impopular. O estilo que inova demora
certo tempo para conquistar a popularidade; não é popular, mas tampouco é impopular.
(…) A questão não é que a obra jovem não agrade à maioria do público e sim à minoria.
O que acontece é que a maioria, a massa, não a entende. (…) O característico da nova
arte, “do ponto de vista sociológico”, é que ela divide o público nestas duas classes de
homens: os que a entendem e os que não a entendem. Isto implica em que uns possuem
um órgão de compreensão, negado portanto aos outros; em que são duas variedades
diferentes da espécie humana. A nova arte, pelo visto, não é para todo mundo, como a
romântica, e sim vai desde logo dirigida a uma minoria especialmente dotada. (Ortega y
Gasset, 1991, p. 21 a 23).
29
apenas para uma seleta platéia capaz de compreende-la. Para Babbitt, o compositor
não precisa e não deve se preocupar com quem ouvirá sua música, caso contrário,
poderá perder o poder de inovar livremente, pois estará preso às limitações do ouvinte
médio, incapaz de compreender as inovações técnicas de seu trabalho de composição,
a preocupação com o ouvinte, portanto, condicionaria o trabalho do compositor ao
que pode ser facilmente apreendido, e, como conseqüência, isso representaria a morte
da inovação.
É preciso esclarecer que a proposta de Babbitt revela, talvez, certo ressentimento à
resistência de sua época à sua música. No entanto, tal posicionamento não deixa de
ser representativo de um projeto teórico-musical, onde “a teoria de composição é
valorizada primordialmente pelo que possibilita ao teórico fazer enquanto teórico de
música nova, e só secundariamente pelo que lhe diz, ou a qualquer outra pessoa,
acerca da música já composta” (Kerman, 1987, p.125).
A conseqüência do distanciamento da arte nova em relação aos aspectos da vida é,
segundo Ortega y Gasset, a desumanização da arte. Forçando uma aproximação entre
Ortega y Gasset e Max Weber, é possível enxergar um paralelo – ou analogia – entre
a idéia da “desumanização da arte” e o processo que leva ao “desencantamento do
mundo”. Como vimos, o processo de desencantamento do mundo ocorre a partir do
desenraizamento da experiência cotidiana. Em síntese, esse desenraizamento se torna
possível a partir da nova experiência de tempo e espaço abstratos, inaugurada pela
modernidade. Com isso, a compreensão do mundo, norteada por um novo modo de se
administrar o tempo e o espaço, fragmenta-se em esferas autônomas e racionaliza-se.
Fechando o círculo, todo esse processo só se torna possível à custa de um
distanciamento dos fatos da vida ordinária (promovido pelos novos modos de nos
relacionarmos com tempo e espaço), a partir do qual a dimensão subjetiva parece
perder o seu valor. Ora, o pano de fundo a partir do qual Ortega y Gasset
problematiza o processo de desumanização da arte, diz respeito ao distanciamento dos
fatos da vida ordinária.
Se a nova arte não é inteligível para todo mundo, isso quer dizer que os seus recursos não
são os genericamente humanos. (…) Para a maioria das pessoas, o prazer estético não é
uma atitude espiritual diversa em essência da que habitualmente adota no resto da sua
vida. (…) Definitivamente, o objeto de que a arte se ocupa, o que serve de termo à sua
atenção e com ela às demais potências, é o mesmo que na experiência cotidiana: figuras e
paixões humanas. E denominará arte ao conjunto de meios pelos quais lhes é
proporcionado esse contato com coisas humanas interessantes (Ortega y Gasset, 1991, p.
25 a 26).
30
Quando o processo de purificação da arte aumenta – quando a ênfase nos elementos
exclusivamente estruturais da partitura faz crescer o fosso em relação às referências
humanas – a obra, aos poucos, parece deixar de fazer sentido. Isso acontece em dois
momentos, primeiro, ao não se deixar recortar de um horizonte de expectativas
propriamente humano e histórico, ao perseguir uma autonomia que se funda no
distanciamento dos fatos da vida ordinária, a arte, que se quer pura, no extremo desse
ideal, perde seu lugar no sistema da cultura, torna-se estrangeira. Segundo, essa arte
deixa o homem, o fruidor, sem papel, ao valorizar sua autonomia – construída na
objetificação dos materiais sonoros (autorreferencializados) –, exclui do homem
qualquer forma de intervenção. Funcionando como uma espécie de mônada sem
janelas, exclui – ou, se preferir, ignora – o momento da fruição, a experiência estética
propriamente dita.
Embora seja impossível uma arte pura, não há dúvida alguma de que cabe uma tendência
à purificação da arte. Essa tendência levará a uma eliminação progressiva dos elementos
humanos, demasiadamente humanos, que dominavam na produção romântica e
naturalista. E, nesse processo, chegar-se-á a um ponto em que o conteúdo humano da
obra será tão escasso que quase não se verá. Então teremos um objeto que só pode ser
percebido por quem possua esse dom peculiar da sensibilidade artística. Seria uma arte
para artistas, e não para a massa de homens; será uma arte de casta, e não demótica.
(Ortega y Gasset, 1991, p. 29).
Com isso, na visão de Ortega y Gasset, uma obra de arte onde não se encontra
vestígios de extrato da vida, corre o risco de se tornar incompreensível, pelo menos
para os não especialistas.
Do que foi apresentado, o que interessa para esse trabalho é a consciência de que o
projeto de uma música pura – subjacente aos modelos de análise musical oficiais –
ignora o momento da experiência estética.
O texto de Ortega y Gasset, no contexto em que foi escrito – o do surgimento das
vanguardas do início do século XX – possui um certo traço reacionário, sobretudo
quando se concorda que as referidas vanguardas possuíam um conteúdo
revolucionário. No entanto, algumas reflexões ali apresentadas, quando transportadas
para os nossos dias, ganham atualidade.
31
âmbito da música, em particular, dos processos composicionais, observa-se uma
restituição da dimensão sensível4 (sem prejuízo para a dimensão intelectiva) em
práticas e modos de uso da música alicerçadas em uma dinâmica de natureza
sensorial, quando somos orientados, poder-se-ia dizer, por uma lógica da sensação,
necessariamente fundada no compromisso com a dimensão sensível da experiência.
Algo que contrasta profundamente com a orientação positivista que norteia a prática e
o pensamento da musicologia mais ortodoxa, que privilegia os parâmetros
quantitativos e mensuráveis.
Retomando o que já foi mencionado na introdução, a tecnologia digital possibilita
uma paridade entre produtor e receptor. O momento da elaboração e o momento da
performance se confundem, desaparece a distância entre o compositor e o intérprete.
Mais do que isso, desaparece, também, a distancia entre o compositor e o fruidor, a
audição-elaboradora de natureza intelectual não se separa da audição-fruidora de
natureza sensorial, aqui, as dimensões intelectiva e sensível estão imbricadas, não se
separam, uma é informada pela outra, uma remete à outra. No âmbito desse processo
observa-se outras formas de elaboração musical, a organização do pensamento
composicional baliza-se por parâmetros que são desconhecidos (ou ignorados) pela
musicologia mais tradicional, trata-se de uma dinâmica que muito se aproxima
daquela estudada por Claude Lévi-Strauss em O Pensamento Selvagem.
Lévi-Strauss, no referido livro, divide a humanidade em dois grandes grupos: a dos
bricoleurs e a dos engenheiros ou construtores. Estes, organizam seu ambiente a partir
de coisas fabricadas mediante uma técnica e com base em um projeto; aqueles (os
bricoleurs) apenas recolhem o que encontram na natureza, dando às coisas finalidade
e significado de modo imediato, sem a mediação de um projeto. No momento
bricoleur tudo se funda e termina na espontaneidade do gesto empírico. No momento
construtor tudo se alicerça na objetividade e realização de um projeto. Segundo Lévi-
Strauss:
O bricoleur está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas porém, ao
contrário do engenheiro, não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias primas e
de utensílios concebidos e procurados na medida de seu projeto: seu universo
instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com os "meios-
limites", isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante
heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do
momento nem com nenhum projeto particular mas é o resultado contingente de todas as
4
A dimensão sensível da experiência é ignorada pela tradição musicológica de orientação positivista,
que pensa a música apenas a partir da relações internas do texto da partitura, ou seja, desenvolve-se
exclusivamente no âmbito da dimensão intelectiva.
32
oportunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo
com os resíduos de construções e destruições anteriores (Lévi-Strauss, 1997, p.32-33).
33
remetem ao todo da vida, ou seja, a lógica a partir da qual constroem e representam
sua realidade não é discriminante nem departamentalizadora, pelo contrário, poder-se-
ia dizer que é uma lógica de tipo fusional. Como observa Milton Santos, nas
sociedades tradicionais "o acontecer é balizado pelo lugar" (Santos, 1994, p.38), o
fluxo dos acontecimentos está preso ao lugar, o cotidiano é fundado em atividades
localizadas. É a modernidade que, ao promover a experiência de tempo e espaço
abstratos, autônomos em relação aos fluxos da localidade, torna possível os processos
de desterritorialização e, com isso, a instituição das esferas de conhecimento
autônomas – deslocadas – do fluxo da vida. A razão balizada pela lógica do lugar é
substituída por uma razão norteada pela produção, e isso só é possível ao final de um
processo onde a lógica da produção é atualizada e legitimada a partir de um processo
de abstração das experiências de tempo e espaço.
Se o ambiente da modernidade ocidental é construído com base em representações
abstratas, possível a partir das experiências de tempo e espaço abstratos, para as
sociedades orais, tempo e espaço coincidem sob lógica do lugar. No domínio da
oralidade, o vocábulo é investido de certo poder de ação pela sua qualidade sonora,
preso à irreversibilidade do tempo. Em outras palavras, o enunciado está totalmente
comprometido com as circunstâncias de sua enunciação, o enunciado se dá no modo
de sua enunciação. Cada enunciado está sempre singularizado pelas circunstâncias da
enunciação que o envolve. Desde que esta (a enunciação) ocorre no âmbito de uma
irreversibilidade temporal, a sua repetição não ocorre, não havendo repetição, não há
espaço para a reflexividade, mas apenas para o fático. Sendo a fala localizada,
personalizada, não há lugar para a idéia de universalidade – o universal é abstrato. A
esse respeito, Daniel Bougnoux observa que, "onde o saber permanece situacional, o
universal não emerge. Os homens permanecem entre si, especularmente. Entendamo-
nos: sem a mediação simbólica de um corpo de ciências ou razões objetivas,
transcendentais à sua relação" (Bougnoux, 1994, p.96). Não há, também,
objetividade, a noção de objeto é devedora da dicotomia entre sujeito e objeto, no
regime da oralidade o que importa é a relação entre sujeitos, e a objetividade anularia
a dinâmica da intersubjetividade. Além disso, o processo de objetificação – ou de
conceitualização, que é, também, de abstração – necessita do estático enquadramento
da perspectiva. A intersubjetividade, por outro lado, é fundada no jogo dinâmico da
relação entre sujeitos. Desde que desconhece a dicotomia entre sujeito e objeto, a
verdade oral é de natureza intersubjetiva, desse modo não trabalha com o dissenso –
34
separando, contando, discriminando –, mas com o consenso. Em outras palavras, a
verdade oral não é referencial, não remete a nenhum objeto, é constituída pelo acerto
de conta das partes, no calor de uma relação entre sujeitos que se seduzem
mutuamente.
É preciso observar que as questões referentes ao pensamento bricoleur não estão
limitadas às sociedades de tradição oral, sobretudo quando consideramos que:
O homem ‘nu’, tal como ele é estudado e descrito pelos laboratórios de psicologia
cognitiva, sem suas tecnologias intelectuais nem o auxílio de seus semelhantes, recorre
espontaneamente a um pensamento de tipo oral, centrado sobre situações e modelos
concretos. O ‘pensamento lógico’ corresponde a um estrato cultural recente ligado ao
alfabeto e ao tipo de aprendizagem (escolar) que corresponde a ele (Lévy, 1993, p.93).
35
Para o referido autor, este saber dionisíaco alicerça-se em uma vitalidade
subterrânea irredutível às habituais analises racionalistas. No domínio dessa
vitalidade é fundamental uma atitude ou compromisso que coloque em ação um modo
de pensamento que se reconcilie com o todo da vida, dito de outro modo, é necessário
uma filosofia da vida. Não se pretende aqui sugerir um retorno, no sentido de um
retrocesso, a uma situação, digamos, bricoleur, própria às culturas de tradição oral. O
que se observa é o fato de que o ambiente da contemporaneidade favorece a
compreensão de que o intelecto e a sensibilidade são inseparáveis. Entendemos que o
modelo racionalista, com sua ambição cientificista de dominar o mundo, é incapaz de
perceber, apreender e atualizar o aspecto denso e fusional da experiência vivida.
A esquize do racionalismo não fornece senão uma épura do homem e do mundo. Produz
um esquema que apresenta características importantes mas ao qual falta o essencial: a
vida. Não que falte eficácia - os desempenhos da modernidade estão aí para prová-lo -
mas deixa de ser satisfatório a partir do momento em que se assiste, de diversas
maneiras, ao élam vital renascente (Maffesoli, 1998, p.31).
A partir disso, sugere Maffesoli, é preciso encontrar um modos operandi que atue
no âmbito de uma fruição pensante, ou, talvez, de uma fruição acompanhada de
consciência capaz de aliar o inteligível ao sensível, onde a função cognitiva esteja
comprometida e ligada à dimensão estética.
No terreno da estética, propriamente dito, esse modos operandi, referido por
Maffesoli a uma fruição pensante, caracteriza-se por uma dinâmica, que acreditamos,
se aproxima do pensamento bricoleur. Estamos nos referindo aqui ao um certo padrão
de sensibilidade, que, alguns autores, denominam de pós-moderno. Enquanto
fenômeno estético da contemporaneidade, a poética pós-moderna, apesar de complexa
e resistente a definições, apresenta alguns traços estilísticos que podemos reconhecer
como característicos. Observa Richard Shusterman que:
Entre essas características podemos citar em particular: a tendência mais para uma
apropriação reciclada do que para uma criação original única, a mistura eclética de
estilos, a adesão entusiástica à nova tecnologia e à cultura de massa, o desafio das noções
modernistas de autonomia estética e pureza artística, e a ênfase colocada sobre a
localização espacial e temporal mais do que sobre o universal ou o eterno (Shusterman,
1998, p.145).
36
fundamentada na dimensão sensorial da experiência. Se se argumenta que no âmbito
desse processo as escolhas já estão dadas, porque já foram anteriormente planejadas,
os resultados, ao contrário, são completamente imprevisíveis, balizados, poder-se-ia
dizer, por uma lógica em devir.
Para concluir, gostaríamos de propor que, o pensamento bricoleur, enquanto
informado por uma lógica em devir, inscreve-se no domínio de um método ou via
pragmática, quando o sentido da realidade só emerge na perspectiva (ou no jogo) dos
parceiros em relação.
Como vimos, é o compromisso com o ideal de uma estrutura autônoma que torna
os analistas míopes para a riqueza de toda heteronomia musical, algo que só será
percebido na perspectiva de uma pragmática musical, onde a continuidade entre a
experiência estética e os fatos da vida ordinária não é esquecida.
Em síntese, o trabalho do analista, comprometido com a idéia de uma música
autônoma, é procurar os elementos constantes que caracterizam e revelam a estrutura
da música, isto é, a identificação das invariantes estruturais. A esse respeito, Gilles
Deleuze e Félix Guattari, problematizando sobre a lingüística, observam o seguinte:
A questão das invariantes estruturais - e a própria idéia de estrutura é inseparável de tais
invariantes, atômicas ou relacionais - é essencial para a lingüística. É sob essa condição
que a lingüística pode reivindicar para si uma pura cientificidade, nada a não ser
ciência..., a salvo de qualquer fator supostamente exterior ou pragmático. (Deleuze,
Gauttari, p. 34, 1995).
37
invariantes estruturais, imanentes ao texto da partitura, porque as questões relativas a
uma pragmática musical – ao acontecimento da música – escapam ao método
científico: o método pede distanciamento, uma pragmática pressupõe envolvimento.
O que os referidos autores observam, no que diz respeito a uma ênfase da dimensão
pragmática – ou, se preferir, ao destaque das esferas do "performativo" e do
"ilocutório" – é a emergência de três importantes conseqüências:
38
jogo de diferença e repetição, sempre fundado nas circunstâncias da enunciação. "A
lingüística não é nada fora da pragmática (...) que define a efetuação da linguagem e o
uso dos elementos da língua" (Deleuze, Guattari, p.26, 1995). Parafraseando Deleuze
e Gauttari, poderíamos dizer que: uma compreensão da música não existe
independente de seu acontecimento – de sua situação pragmática – de onde também
se verifica um jogo de diferença e repetição, que atualiza, permanentemente, o seu
uso e o seu sentido – fundados na situação e no modo em que a música é fruída.
As questões relativas à pragmática são inseparáveis das questões relativas ao estilo.
A compreensão da dimensão pragmática depende da apreensão do estilo e vice-versa:
O que denominamos um estilo, que pode ser a coisa mais natural do mundo, é
precisamente o procedimento de uma variação contínua. Ora, dentre todos os dualismos
instaurados pela lingüística, existem poucos menos fundados do que aquele que separa a
lingüística da estilística: sendo um estilo não uma criação psicológica individual, mas um
agenciamento de enunciação, não será possível impedi-lo de fazer uma língua dentro de
uma língua (Deleuze, Guattari, p.41, 1995).
39
segredo de cada um’. Diferença qualitativa que na interpretação deleuzeana não pode ser
reduzida a uma diferença empírica: é uma diferença interna absoluta. Só arte cria um
verdadeiro pensamento diferencial (Machado, 1990, p.176 a 177).
Tendo observado isso, podemos dizer que a obra dos compositores não é apenas o
encadeamento de sons numa determinada estrutura. Por outro lado, o estilo não é,
simplesmente, o resultado de uma vontade estética, como observa Alfonso Quintás:
"Os estilos (...) são o resultado da confluência de diversos elementos – estéticos,
éticos, religiosos, econômicos, políticos e sociais – que dão lugar a uma determinada
concepção da existência e a uma atitude vital correlativa" (Quintás, p. 156, 1993).
Enquanto jogo, a arte revela um modo de estar no mundo, de reagir às resistências que
o mundo impõe, de responder ao chamado dos valores da cultura e da tradição, enfim,
de ver e de viver o mundo. Neste sentido, é legítimo pensar que as obras dos
compositores encarnam um mundo particular: o mundo de Bach, o mundo de Mozart,
de Chopin, etc (Quintás, p. 77, 1993). Desde quando foi atualizada na dinâmica de um
jogo, a arte não pode, ou não deveria, ser percebida nos termos de uma estrutura que
se revela a partir de suas constantes. Enquanto atualização de uma condição
existencial, a arte é um mundo a ser habitado, experienciado, vivido, e, enquanto tal, é
abertura de possibilidades transformadoras – irredutíveis a um modelo estático de
estrutura.
O ato de compor pressupõe uma postura de abertura e disponibilidade para a vida,
melhor dizendo, abertura e disponibilidade para misturar o seu próprio âmbito de vida
40
com o âmbito de outras realidades. Aqui, autonomia e heteronomia coincidem, poder-
se-ia dizer que conspiram em favor do jogo criativo:
Essa atividade lúdica instaura vida espiritual, une o homem às realidades do meio
ambiente com formas relevantes de unidade, põe-se na presença delas, porque supera a
divisão entre o campo do interior e o do exterior (...). A abertura à realidade sob o
impulso desta atitude concede ao homem liberdade interior, liberdade para a criatividade
(...). Este modo elevado de liberdade (...) permite vincular de modo fecundo no homem a
autonomia e a heteronomia, o poder de se governar por leis próprias, elaboradas em sua
interioridade, e a necessidade de se orientar por critérios e normas recebidos em princípio
'de fora' (Quintás, p. 78, 1993).
41
valores da tradição estética a qual pertence, e as resistências do mundo – valores
sociais, políticos, etc – que o cerca.
Não podemos deixar de observar que, o resultado desse encontro entre o
compositor e as realidades que o circunda, não pode ser reduzido a um mero
subjetivismo: o mundo impenetrável do compositor. Trata-se de uma entidade
relacional, de um 'entre', que por ser desse modo, possibilita a participação dos outros.
É nestes termos que a 'escuta' – na condição de experiência estética da música – pode
ser percebida no âmbito de uma pragmática, que se dá na lógica de uma participação
ontológica.
Trazendo tais questões para o terreno do pensamento composicional, tudo isso
implica na necessidade de se pensar a composição no âmbito do fato musical total, ou
seja, não apenas nos termos dos processos intelectivos, mas também, no domínio dos
processos de performance, fruição e escuta, isto é, nos termos do acontecimento
propriamente da música, o que faz emergir a necessidade de um quadro teórico de
referencias que contemple todos esses pontos. Considerando isso, levando-se em
conta as conseqüências e os desdobramentos implicados, identificamos quatro
possibilidades ou campos teóricos de reflexão:
- Pensar o processo de composição no âmbito de uma fenomenologia da
percepção musical;
- Pensar o trabalho do compositor na perspectiva da estética da formatividade;
- Refletir sobre a dinâmica da composição nos termos de uma pragmática da
comunicação musical;
- Trabalhar na perspectiva de uma estética da recepção musical.
42
Em Merleau-Ponty, a experiência corporal é originária, é só no âmbito dessa
experiência que a unidade fundamental do mundo, enquanto mundo sensível, emerge.
É só no domínio da experiência corporal – do corpo vivido – que se constitui o modo
como estamos no mundo, tanto doando, quanto ganhando significação. Em suas
palavras:
Não é o sujeito epistemológico que efetua a síntese, é o corpo, quando sai de sua
dispersão, se ordena, se dirige por todos os meios para um termo único de seu
movimento, e quando, pelo fenômeno da sinergia, uma intenção única se concebe nele.
Nós só retiramos a síntese do corpo objetivo para atribuí-la ao corpo fenomenal, quer
dizer, ao corpo enquanto ele projeta em torno de si um certo “meio”, enquanto suas
partes se conhecem dinamicamente umas às outras, e seus receptores se dispõe de
maneira a tornar possível, por sua sinergia a percepção do objeto. Dizendo que essa
intencionalidade não é um pensamento, queremos dizer que ela não se efetua na
transparência de uma consciência, e que ela toma por adquirido todo o saber latente que
meu corpo tem de si mesmo (Merleau-Ponty, 1994, p.312).
43
De forma resumida, a noção de Quiasma se refere a um certo entrelaçamento ou
entrecruzamento de duas ou mais linhas, entrelaçamento esse que, segundo Merleau-
Ponty, faz emergir questões acerca dos limites entre o corpo e o mundo.
O corpo interposto não é propriamente coisa, matéria intersticial, tecido conjuntivo, mas
sensível para si, o que quer dizer não este absurdo: cor que se vê, superfície que se
apalpa, mas este paradoxo [?]: conjunto de cores e superfícies habitadas por um tato, uma
visão portanto, sensível exemplar, que capacita a quem o habita e o sente de sentir tudo o
que de fora se assemelha, de sorte que, preso no tecido das coisas, o atrai inteiramente, o
incorpora e, pelo mesmo movimento, comunica às coisas sobre as quais se fecha, essa
identidade sem superposição, essa diferença sem contradição, essa distância do interior e
do exterior, que constituem seu segredo natal. O corpo nos une às coisas por sua própria
ontogênese, soldando um a outro os dois esboços de que é feito, seus dois lábios: a massa
sensível que ele é e a massa do sensível de onde nasce por segregação, e à qual, como
vidente, permanece aberto (Merleau-Ponty, 1992, p. 132).
Nessa perspectiva, o corpo humano, tal qual uma folha de papel, é percebido como
uma entidade de duas faces:
Dizemos, assim, que nosso corpo, como uma folha de papel, é um ser de duas faces, de
um lado, coisa entre as coisas e, de outro, aquilo que as vê e toca; dizemos, porque é
evidente, que nele reúne essas duas propriedades, e sua dupla pertença à ordem do
“objeto” e à ordem do “sujeito” nos revela entre as duas ordens relações muito
inesperadas (Merleau-Ponty, 1992, p. 133).
Com efeito, ao mesmo tempo, tocamos o mundo e somos tocados por ele, sentimos
o mundo e, ao mesmo tempo, somos percebidos como uma presença em meio a todas
as coisas visíveis e invisíveis do mundo. Nessa dinâmica interligação ou conexão
entre as coisas dos mundos subjetivo e objetivo, emerge o mundo perceptivo relativo
àquele que percebe. O corpo, portanto, na condição de mais um entre os objeto do
mundo, é responsável pela origem do mundo objetivo, mas também, enquanto objeto
que age sobre receptores, traz à tona a consciência sobre si mesmo, como escreve
Merleau-Ponty, “meu corpo como coisa visível está contido no grande espetáculo.
Mas meu corpo vidente subtende este corpo visível e todos os visíveis com ele. Há
recíproca inserção e entrelaçamento de um no outro” (Merleau-Ponty, 1992, p. 135).
No âmbito dessa matriz compreensiva, que é como apresentamos e entendemos a
Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, onde muitas das questões acerca da
dinâmica envolvida no processo de composição ganham sentido, gostaríamos de
introduzir a Estética da Formatividade de Luigi Pareyson.
44
5.6 Algumas observações sobre a Estética da Formatividade
A estética não é parte da filosofia, mas a filosofia inteira concentrada sobre os problemas
da beleza e da arte e, em segundo lugar, as questões concretas da estética pelo fato de
serem particulares não deixam em absoluto de ser filosóficas e não ficam devendo em
nada, quanto a dificuldades, às questões mais gerais, empenhadas como estão em mais
uma imediata e peremptória verificabilidade das soluções propostas (Pareyson, 1993, p.
17)
Desse modo, a teoria da formatividade, apesar de centrar a arte como objeto de sua
reflexão, aplica-se ao todo da vida, isto é, à toda forma de ação humana, não se
limitando exclusivamente à produção artística. Para Pareyson, qualquer atividade
humana encerra um processo formativo, o alcance desse processo abrange desde as
atividades formativas propriamente ditas – como o processo de formação de uma obra
de arte –, até as atividades de interpretação, não menos sujeitas às leis da
formatividade. Em um ensaio sobre a estética de Pareyson, Umberto Eco desenvolve
tal questão:
Toda vida humana é para Pareyson, invenção, produção de formas; toda a atividade
humana, tanto no campo moral como no do pensamento e da arte, origina formas,
criações orgânicas e perfeitas, dotadas de compreensibilidade e autonomia próprias (Eco,
1986, p. 17)
Toda operação humana é sempre ou especulativa ou prática ou formativa mas, seja qual
for a sua especificação, é sempre ao mesmo tempo tanto pensamento como moralidade e
formatividade. Uma operação não se determina a não ser especificando uma atividade
entre outras, mas não pode fazê-lo a não ser concentrando-se em si todas as outras
simultaneamente. Em toda operação existe, ao mesmo tempo, especificação de uma
atividade e concentração de todas as atividades: esta é a estrutura do operar em que
45
especificação e concentração das atividades vão pari passu, de tal sorte que uma não
pode andar sem a outra (Pareyson, 1993, p.26)
Este fazer que enquanto faz inventa ao mesmo tempo o modo de fazer, encerra
um movimento de grande dinâmica, que se exerce a partir da tensão, ou, se preferir,
do diálogo entre dois pólos: de um lado, a matéria sobre a qual a obra vai ser formada,
uma materialidade que reclama um modo particular de intervenção, um modo de
operar específico que põe limites, mas, também, possibilidades e, dessa forma,
imprime suas marcas no processo. De outro lado, a espiritualidade do artista, sua
história pessoal, seus preconceitos, suas habilidades aprendidas da tradição a qual faz
parte, em suma, toda sua espiritualidade – sua história de vida –, que da mesma forma
que a materialidade, também, inscreve suas marcas no processo. Como observa
Pareyson:
46
A interpretação é justamente isto: mútua implicação de receptividade e atividade. Com
efeito, a atividade desencadeada para interpretar é a adoção do ritmo do objeto. A
interpretação por um lado é a ressonância do objeto em mim, ou seja, receptividade que
se prolonga em atividade, dado que recebo e ao mesmo tempo desenvolvo; e, por outro
lado, é sintonia com o objeto: um agir que se dispõe a receber, um fazer falar para
escutar, atividade em vista de uma receptividade (Pareyson, 1993, p.175).
47
Em primeiro lugar: "o sentido do objeto pragmático é determinado por seu
posicionamento num contexto e, em particular por sua força de contextualização"
(Parret, 1997, p.12). Diferente, portanto, da orientação de base racionalista que pensa
o sentido como algo imanente e autônomo. Considera-se aqui, o caráter heterônomo e
dinâmico do objeto pragmático e de seu contexto - "não são entidades autônomas e
estáveis: elas só existem por meio de uma interdependência dinâmica" (Parret, 1997,
p.12).
Em segundo lugar: é preciso observar que "o objeto pragmático é trabalhado de
fora a fora pela racionalidade" (Parret, 1997, p.13). Não se trata da racionalidade pura
e abstrata da ciência, que se pretende autônoma em relação ao sensório e às paixões.
Trata-se de um logos que inclui o pathos, dito de outro modo, como sugere Parret,
trata-se de uma razoabilidade, aquilo que Maffesoli chama de fruição pensante.
Em terceiro lugar: "o sentido pragmático só existe no nível dos mecanismos de
compreensão" (Parret, 1997, p.13). O que se observa é que as estéticas de inspiração
racionalista privilegiam o momento da produção em detrimento do momento da
recepção. No âmbito da pragmática isso é invertido. Considera-se aqui o fato de que
um artista, um compositor, por exemplo, antes de fazer parte de uma comunidade de
compositores (produtores) que dominam uma técnica, legitimada por certos
pressupostos teóricos, faz parte de uma comunidade de ouvintes, onde a aplicação de
sua técnica – porque recortada de um horizonte de expectativas comum a todos desta
comunidade – faz sentido e poderá, assim, ser compreendida.
48
Pode-se dizer que, no estudo das obras literárias, considerando o contexto teórico
da época, Jauss opera um pequena revolução copernicana: seu interesse recai sobre a
recepção das obras e não sobre a produção. Entre outras coisas, a ênfase na recepção
pressupõe uma revalorização do prazer estético. Para Jauss, o significado de uma obra
de arte não emerge sem que ela tenha sido vivenciada na dimensão sensível da
experiência, e isso inclui a presença do prazer durante todo o processo, considera ele
que, na dinâmica da experiência estética não há conhecimento sem prazer, nem prazer
sem conhecimento.
Tais questões leva-o a formular um par de conceitos interdependentes e
fundamentais para o desenvolvimento de suas reflexões seguintes, são eles a ‘fruição
compreensiva’ e a ‘compreensão fruidora’. De forma simplificada, só podemos gostar
do que entendemos e compreender o que apreciamos.
A ênfase no prazer revela uma preocupação com a dimensão comunicacional da
obra de arte, já que é no âmbito do prazer estético que se revela a natureza
comunicativa de uma obra de arte.
Para Jauss, o desprestígio do prazer estético determina a rejeição da arte por inteiro,
conduta implícita em teorias que se recusam a aceitar a validade da experiência do leitor
ou que a discriminam encarando-a tão somente como efeito da indústria cultural e dos
produtos destinados ao consumo (Zilberman, 1989, p. 53).
É preciso observar que o oponente mais direto de Jauss, no que se refere a essas
questões, é Theodor W. Adorno. Em linhas gerais, nos termos da estética da
negatividade de Adorno, a dimensão (ou vocação) comunicativa da obra de arte
revela, não apenas a sua tendência para a massificação, como também, por conta
disso, o seu comprometimento com os valores da classe dominante que uma arte
verdadeiramente revolucionária deveria combater.
Ao recusar (ou negar) a função comunicativa da obra de arte, Adorno está, na
verdade, zelando por sua autonomia, pois considera que uma arte não autônoma,
necessariamente, degenera em ideologia, quando é alimentada pelos valores que vêm
de fora. A arte verdadeiramente emancipadora, nestes termos, deve ser livre de
qualquer influência externa, operando exclusivamente a partir de suas relações
internas. Por conta disso, Adorno tende a valorizar apenas o experimentalismo, um
exemplo disso é a grande importância que ele confere à fase atonal pré-dodecafônica
da música de Arnold Schoenberg. No entanto, a fase dodecafônica de Schoenberg já
não é celebrada por Adorno, porque, entende ele, que o dodecafonismo (contaminado
de ideologia) reflete a mecânica da ‘razão administrada’ – legitimadora da ideologia
49
burguesa – denunciada por ele e por Max Horkheimer em A Dialética do
Esclarecimento.
Retomando Jauss, é preciso observar que ele, no que diz respeito às vanguardas ou
à arte experimental, não é um conservador. Muito pelo contrário, podemos dizer que
sua recusa para com a literatura de massa, bem como para com os produtos da cultura
midiática, o aproxima de Adorno. O que ele não aceita é a idéia de que a arte de
vanguarda ou experimental não deseje se comunicar com o público, ou ainda, que o
público não sinta – ou não possa sentir – prazer diante de obras contemporâneas
originais. Postura oposta, portanto, à de Babbitt (quando se considera a sua defesa do
compositor como especialista, de uma música feita por músicos e para músicos
apenas), exemplo de um projeto teórico-musical que se volta para dentro, “para o
refúgio privado da oficina do compositor”, onde “a teoria de composição é valorizada
primordialmente pelo que possibilita ao teórico fazer enquanto compositor de música
nova, e só secundariamente pelo que lhe diz, ou a qualquer outra pessoa, acerca da
música já composta” (Kerman, 1987, p.125). Sobre isso, em relação a Jauss, escreve
Regina Zilberman:
Como foi visto, o ponto de partida para as reflexões de Jauss é a recepção, ou seja,
a experiência estética. Esta, por sua vez, reúne três momentos complementares e
simultâneos, são eles: a poiesis, a aisthesis e a kathasis. Nas palavras de Jauss:
50
emancipando-o de seu lugar comum. A fronteira entre estes três momentos parece não
ser muito rígida:
Dado os limites desse relatório, não sobra espaço aqui para uma apresentação das
categorias metodológicas desenvolvidas por Jauss em sua Estética da Recepção. O
que gostaríamos de destacar e reiterar é o compromisso é o compromisso de uma
teoria que se desenvolve a partir do prazer da experiência estética, como ele mesmo
reforça, “em todas as relações entre as funções, a comunicação literária só conserva o
caráter de experiência estética enquanto a atividade da poiesis, da aisthesis ou da
kathasis mantiver o caráter de prazer (Jauss, 1979, p. 82).
Um modelo de análise musical fundado no compromisso com o prazer da
experiência estética ainda está para ser desenvolvido. Acreditamos que as discussões
levantadas pela Estética da Recepção podem representar um bom começo.
51
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