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EUROPA-AMÉRICA JEAN-JACQUES

EMÍLIO ROUSSEAU
EUROPA-AMÉRICA

Grandes Obras
«P�a o meu Emílio, se teve simprlCl"dade e bom-senso durante
CJ
a sua mfância, tenho a certeza de que tera_ alma e sensibilidade du-

��DTIJJ©
r .
cante a sua J·uventude,· po que a verdade dos sentimentos depende
.
mUlto da justeza das ideias.»
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Neste segundo voluine de Emz'/." Rousseau debruça-se sobre a
brusca mutação da puberdad �s r _a entrad� na idade da razão
e das paixões. Com o romanc � J �
e �mho e Sophle, fala-nos do últi-
mo acto da J·uventude ·· o amadureomento i sentrmental,
· o interesse
·
das viagens na formação do jovem e, fmalmente, o contrato de ca-
sarnento.
.

.
d�
A arte e a energia reveladas em E '/." tornam-no um livro para
todas as épocas e gerações de educa r .

ISBN 972-1-02988-2

5 601072 555242
JEAN-JACQUES ROUSSEAU

E MIL IO

Volume II

Publicaçoes Europa-Amêrica
Título original: Émile ou de l'éducation

Tradução de Pilar Delvaulx


Tradução portuguesa© de P. E. A., 1990

Capa: estúdios P. E. A.

Direitos reservados por


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Editor: Francisco Lyon de Castro

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, L.DA


ApartadoS
2726 MEM MARTINS CODEX
PORTUGAL

Edição n.º 155524/5063

Execução técnica:
Gráfica Europam, L.da,
Mira-Sintra- Mem Martins

Depósito legal n.' 3551s/90


LIVRO IV
Como é rápida a nossa passagem por este mundo! A primeira
quarta parte da nossa vida passa-se antes de termos tido tempo
para lhe conhecer a utilização; a derradeira quarta parte decorre
depois de termos deixado de a desfrutar. Para começar, não sabe­
mos viver; pouco depois, já não o podemos fazer, e, durante o inter­
valo que separa estas duas extremidades inúteis, as três quartas
partes do tempo que nos restam são dispendidas em sono, em tra­
balho, em dor, em constrangimento, em mágoas de todas as espé­
cies. A vida é curta, menos pelo pouco tempo que dura que por não
dispormos do tempo suficiente para a apreciar. Embora o momen­
to da morte esteja afastado do do nascimento, a vida é sempre ex­
cessivamente curta quando esse espaço é mal preenchido..
Nascemos, por assim dizer, por duas vezes: a primeira para
existir, e a outra para viver; uma para a espécie e a outra para o
sexo. Aqueles que consideram a mulher como um homem imperfei­
to, certamente se enganam: mas a analogia exterior dá-lhes razão.
Até à idade núbil, as crianças de ambos os sexos não apresentam
nada que, aparentemente, estabeleça uma distinção entre elas; o
mesmo rosto, o mesmo aspecto, a mesma tez, a mesma voz, tudo é
igual: as raparigas são crianças, os rapazes são crianças; em­
prega-se a mesma palavra, para designar seres semelhantes. Os
machos nos quais se impede o desenvolvimento ulterior do sexo
conservam essa conformidade durante toda a sua vida; serão sem­
pre grandes crianças, e as mulheres, não perdendo essa mesma
conformidade, parecem, em muitos pontos,nunca ser outra coisa.
Mas,normalmente,o homemnão é feito para permanecer sem­
pre na infância. Emerge dela no momento prescrito pela natureza:
e esse momento de crise, embora bastante curto, tem influências
duradoiras.
Assim como os mugidos do mar precedem a tempestade com
muita antecedência, essa tempestuosa revolução também se
anuncia pelo murmúrio das paixões nascentes; uma fermentação
abafada avisa da aproximação do perigo. Uma modificação do ca­
rácter, frequentes irritações, uma constante agitação do espírito
tornam a criança quase indisciplinável. Torna-se surda à voz que
a amansava; é um leão enervado; desconhece o seu guia, já não
quer ser governada.
Aos indícios morais de um carácter que se altera acrescentam­
-se modificações sensíveis no rosto. A sua fisionomia desenvolve-
-se e adquire um carácter; o raro e suave algodão que cresce na
parte inferior das suas faces torna-se escuro e adquire consistên- 7
cia. A voz modifica-se ou, antes, ela deixa de poder controlá-la: já
não é criança nem homem e não pode emitir os sons deste nem os
daquela. Os seus olhos, esses órgãos da alma-que até agora ain­
da não tinham dito nada -encontram uma linguagem e uma ex­
pressão; ficam animados por um novo brilho, e a sua expressão,
mais viva, apesar de ainda ter uma santa inocência, já deixou de
ter a sua primeira imbecilidade: ela bem compreende que podem
dizer de mais; começa a saber abaixá-los e a corar; torna-se sen­
sível, antes mesmo de saber o que sente; sente-se inquieta,sem ter
motivos para isso. Tudo isto pode demorar muito a vir, e deixar­
-vos ainda tempo suficiente: mas, se a sua vivacidade se tornar ex­
cessivamente impaciente, se o seu arrebatamento se transformar
em furor, se- de um momento para o outro - ela se irritar ou se
enternecer, se chorar sem razão, se-perto dos objectos que se co­
meçam a tornar perigosos para ela -o seu pulso se acelerar e o seu
olhar apresentar mais brilho, se a mão de uma mulher que se pou­
sa por cima da sua a fizer estremecer, se se perturbar ou sentir ti­
midez, quando está ao lado dela, Ulisses, ó sensato Ulisses, tem
cuidado: os odres que com tanto cuidado fechaste estão abertos; os
ventos já se desencadearam; agora nãoabandones o leme,nem por
um momento, ou tudo estará perdido.
Este é o segundo nascimento, a que me referi; é neste momen­
to que o homem realmente nasce para a vida e passa a conhecer tu­
do quanto é humano. Até agora,os nossos cuidados não passaram
de brincadeiras de crianças; só a partir de agora se revestirão de
uma verdadeira importância. Esta época, em que costumam aca­
bar as educações vulgares, é exactamente aquela em que a nossa
deverá ter início; mas, para bem expor este novo plano, voltemos
a observar o estado das coisas que lhe dizem respeito.
As nossas paixões são os principais instrumentos da nossa
conservação: por conseguinte, serão tão vãos quanto ridículos os
esforços que se fizeram para as destruir; seria como pretender
controlar a natureza, ou como pretender reformar a obra de Deus.
Se Deus dissesse ao homem que destruísse as paixões que lhe dá,
seria como se Deus quisesse e não quisesse ao mesmo tempo; se­
ria como se se contradissesse. Mas ele nuncadeu esta ordem insen­
sata e nada de semelhante está escrito no coração humano; e o que
Deus quer que um homem faça não lho manda dizer por outro ho­
mem, diz-lho ele próprio, inscreve-o no fundo do seu coração.
Ora, para mim, aqueleque pretendesse impedirqueas paixões
nascessem seria quase tão louco como o que as pretendesse
destruir; e aqueles que, até aqui, tenham podido acreditar que tem
sido essa a minha intenção, certamente me compreendAram mui­
to mai.
Mas seria raciocinar bem se -lá porque está na natureza do
homem ter paixões - daí se concluísse que todas as paixões que
8 sentimos em nós e que observamos nos outros são naturais? A sua
fonte é natural, isso é verdade; mas foi alimentada por mil regatos
desconhecidos; é um grande rio cujo caudal engrossa incessante­
mente e no qual seria muito difícil encontrar algumas gotas das
suas primeiras águas. As nossas paixões naturais são muito limi­
tadas; são os instrumentos da nossa liberdade, tendem a conser­
var-nos. Todas as que nos subjugam e nos destroem vêm-nos de
alhures; não é a natureza que no-las dá: somos nós que delas nos
apropriamos, em prejuízo dela.
A origem das nossas paixões, a origem e o princípio de todas as
outras, a única que nasce com o homem e que o acompanha duran­
te toda a sua vida, é o amor por si mesmo: paixão primitiva, ina­
ta, anterior a qualquer outra e de que - num determinado senti­
do - as outras apenas constituem modificações. Neste contexto,
podemos dizer que todas elas são naturais. Mas a m aioria dessas
modificações têm causas desconhecidas sem as quais nunca se te­
riam dado; e essas mesmas modificações, longe de serem boas pa­
ra nós, são-nos prejudiciais; modificam o primeiro objecto e vão
contra o seu princípio: e é quando o homem se encontra fora da na­
tureza que se põe em contradição consigo mesmo.
O amor por si próprio é sempre aconselhável, sempre em
conformidade com a ordem. Como cada um está especialmente en­
carregado da sua própria conservação; o primeiro e o mais impor­
tante dos seus cuidados é, e deve ser, velar incessantemente por
ela: e como o poderia fazer, se por ela não experimentasse o m aior
interesse?
Por conseguinte, para que nos conservemos é preciso que nos
amemos a nós mesmos, que nos amemos mais do que a qualquer
outra coisa; e, como consequência imediata do mesmo sentimento,
amamos o que nos conserva. Todas as crianças se afeiçoam às suas
nutrizes: Rómulo deve ter-se afeiçoado à loba que o amamentou.
De início, essa afeição é unicamente maquinal. O que favorece o
bem-estar de um indivíduo atrai-o; o que o incomada repugna-o:
isso não é mais do que um instinto cego. O que transforma esse ins­
tinto em sentimento, a afeição em amor, a aversão em ódio, é a in­
tenção manifesta de nos prejudicar ou de nos ser útil. Ninguém se
apaixona pelos seres insensíveis que se limitam a seguir o impul­
so que se lhes dá; mas aqueles de cuja disposição interior, de cuja
vontade esperamos o bem ou o mal, aqueles que vemos agir li­
vremente a nosso favor ou contra nós, inspiram-nos sentimentos
semelhantes aos que nos são evidenciados: o que nos serve, pro­
curamo-lo; mas o que nos quer servir, amamo-lo. Fugimos do que
nos foge; mas odiamos o que nos quer fazer mal.
O primeiro sentimento de urna criança é o amor por si própria;
e o segundo -que provém do primeiro - é o amor por aqueles com
quem vive; porque, no estado de fraqueza em que se encontra, só
conhece as pessoas através dos cuidados e da assistência que es­
tas lhe prestam. De início, a afeição que experimenta pela nutriz 9
e pela governanta não é mais do que um hábito. Proeura-as porque
necessita delas e se sente bem tratada por elas; é mais um reco­
nhecimento que um sentimento de afecto. Precisa de muito tempo
para compreender que, além de lhe serem úteis, elas também de­
sejam ajudá-la; e é então que começa a amá-las.
Por conseguinte, uma criança está naturalmente inclinada pa­
ra a benevolência, porque vê que tudo quanto se aproxima dela é
para a assistir, e porque, dessa observação, adquire um hábito fa­
vorável para a sua espécie; mas, à medida que vai alargando as
suas relações, as suas necessidades, as suas dependências activas
ou passivas, o sentimento das suas relações com outrém desperta
e produz o dos deveres e das preferências. Então, a criança torna­
-se imperiosa, invejosa, hipócrita, vingativa. Se for vergada à obe­
diência - como não vê a utilidade do que se lhe ordena -, atribui
isso ao capricho, à intenção de a atormentarem, e revolta-se. Se se
habitua a que lhe obedeçam, logo que qualquer coisa lhe resiste vê
nisso uma rebelião, uma intenção de lhe resistir; dá pancadas na
cadeira ou na mesa, se pensa que alguma delas lhe desobedeceu.
O amor por nós mesmos, que só a nós diz respeito, sente-se satis­
feito quando as nossas verdadeiras necessidades ficam satisfeitas;
mas o amor-próprio - que se pretende comparar com ele - nun­
ca se sente satisfeito nem o poderia estar, porque esse sentimen­
to, que nos leva a preferirmo-nos aos outros, também exige que os
outros nos prefiram a eles próprios; ora isso é impossível. Eis co­
mo as paixões suaves e afectuosas têm origem no amor por si pró­
prio, e como as paixões de ódio e de ira provêm do amor-próprio.
Assim, o que torna o homem essencialmente bom é o facto de ter
poucas necessidades e de pouco se comparar com os outros; o que
o torna essencialmente mau é ter muitas necessidades e preo­
cupar-se muito com a opinião. Sobre este-princípio, é fácil ver co­
mo se podem dirigir - para o betp. ou para o m al - todas as pai­
xões das crianças e dos homens. E verdade que, como não podem
viver sempre sós, dificilmente poderão viver sempre bons: e esta
dificuldade aumentará, necessariamente, com o alargamento das
suas relações; e é nisso, sobretudo, que os perigos da sociedade nos
tornam a arte e os cuidados mais indispensáveis para prevenir ­
no coração humano - a depravação originada pelas suas novas ne­
cessidades.
O estudo que convém ao homem é o das suas relações. Enquan­
to só se conhece através do seu ar físico, deve estudar-se através
das suas relações com as coisas: é o que faz durante a sua infância;
quando começa a sentir o seu ser moral, deve estudar-se através
das suas relações com os homens; é o que deverá fazer durante to ­
da a sua vida, começando no momento a que acabámos de chegar.
Logo que o homem sente a necessidade de uma companheira,
deixa de ser um ente isolado, o seu coração deixa de estar só. To­
JO das as suas relações com a sua espécie, todos os afectos da sua al-
ma nascem com ela. Em breve, a sua primeira paixão fará fermen­
tar as outras.
A tendência do instinto é indeterminada. Um sexo sente-se
atraído pelo outro: eis o movimento da natureza. A escolha, as pre­
ferências, o afecto pessoal são obra do saber, dos preconceitos, do
hábito: precisamos de tempo e de saber para sermos capazes de
amor: só se ama depois de se ter ajuizado; só se prefere depois de
se ter comparado. Estes discernimentos efectuam-se sem que de­
mos por eles; mas nem por isso deixam de ser reais. Digam o que
disserem, o verdadeiro amor sempre será venerado pelos homens:
pois, embora os seus entusiasmos nos percam, embora não exclua
qualidades odiosas do coração daquele que o experimenta, e embo­
ra também as produza, nem por isso deixa de traduzir qualidades
que são estimáveis, sem as quais se ficaria na incapacidade de o
sentir. Esta escolha que colocamos em oposição à razão vem-nos
dele. Costuma dizer-se que o amor é cego, porque ele tem melhor
vista que nós, e porque vê conexões que nós não podemos descobrir.
Para quem não fizer ideia nenhuma do que é o mérito e a beleza,
todas as mulheres serão igualmente boas, e a primeira que apare­
cer será sempre considerada como a mais amável: m uito longe de
provir da natureza, o amor é a regra e o freio das suas tendências;
é graças a ele que, exceptuando o objecto amado, um sexo deixa de
ter algum sentido para o outro.
Pretende-se sempre obter a mesma preferência que se conce­
de; o amor deve ser recíproco. Para se conseguir ser amado, é pre­
ciso ser-se amável; para se ser preferido, é preciso ser-se mais
amável que outro, mais amável que todos os outros, pelo menos aos
olhos do objecto amado. Daí, os primeiros olhares sobre os nossos
semelhantes; daí, as primeiras comparações com eles, daí a emu­
lação, as rivalidades, o ciúme. Um coração penetrado de um sen­
timento que transborda gosta de se expandir: da necessidade de
uma amada, em breve nasce a de um amigo. Aquele que experi­
menta a doçura de ser amado quereria sê-lo por todos, e todos não
poderiam pretender ser preferidos, sem que houvesse muitos des­
contentes. Com o amor e a amizade, nascem as desavenças, a an­
tipatia, o ódio. Do seio de tantas paixões diferentes, vejo a opinião
que, para si mesma, erige um trono firme, e os estúpidos mortais,
sujeitos ao seu domínio, basearam a sua existência nos juízos de
outrém .
Alargai estas ideias, e vereis onde o nosso amor-próprio adqui­
riu a forma que consideramos natural e como - deixando de ser
um sentimento absoluto -o amor-próprio passa a ser orgulho n!).s
gran des almas, vaidade na s pequenas, em todas se alimentando>'
constantemente, à custa do próximo. A espécie destas paixões,
como não tem o seu germe nos corações das crianças, não pode nas­
cer esporadicamente; somos nós que lá o depomos, e sempre que ele
cria raízes nesses coraçõezinhos, a culpa é nossa; mas já isso não 1 1
acontece ao coração do jovem: seja o que for que fizermos, elas
nascerão no seu coração, mesmo que não o queiramos. Por conse­
guinte, chegou o momento de mudar de método ..
Comecemos por algumas reflexões importantes sobre o estado
crítico de que passaremos a tratar. A passagem da infância para
a puberdade não é tão determinada pela natureza que não possa
variar nos indivíduos, consoante os temperamentos, e, nos povos,
consoante os seus climas. Toda a gente conhece as distinções que,
sobre esse assunto, foram observadas entre os países quentes e os
países frios, e todos sabem que os temperamentos ardentes se for­
mam m ais cedo que os outros: mas é possível que se enganem
quanto às causas disso e que, muitas vezes, atribuam ao físico o
que deve ser atribuído ao moral; é este um dos mais frequentes
abusos da filosofia do nosso século. As instruções da natureza são
tardias e lentas; as dos homens são quase sempre prematuras.No
primeiro caso, os sentidos despertam a imaginação; no segundo, a
imaginação desperta os sentidos; dá-lhes uma actividade precoce
que não pode deixar de enervar, de começar por enfraquecer os
indivíduos, e, com a continuação, a espécie. Uma observação mais
geral e mais segura que a do efeito dos climas é a de que a puberda­
de e o império do sexo é sempre mais precoce nos povos instruídos
e organizados que nos povos ignorantes e bárbaros1• As crianças
têm uma sagacidade especial para destrinçar, através de todos os
trejeitos da decência, os maus costumes que ela encobre. A lingua­
gem refinada que se lhes dita, as lições de honestidade que se lhes
dão, o véu do mistério que se finge estender diante dos seus olhos,

1 «Nas cidades», diz M. Buffon, -.e entre as pessoas ricas, as crianças


- acostumadas a alimentos abundantes e suculentos-atingem mais ce­
do esse estado; nas regiões rurais, e entre a população pobre, as crianças
são mais atrasadas, porque são mal e pouco alimentadas; precisam de
mais dois ou três anos.» (Hist. nat., t. IV, p. 238, in-12). Admito a obser­
vação, mas não a explicação, pois, nas regiões onde os camponeses se ali­
mentam muito bem e comem muito -comono Valais, e até mesmo em cer­
tos cantões montanhosos da Itália, como o Frioul - a idade da puberda­
de, para ambos os sexos, também é mais atrasada que nas cidades, onde,
para satisfazer a vaidade, é muito frequente comer-se com uma extrema
parcimónia, e em que a maior parte das pessoas vive, como o diz o provér­
bio, «com vestes de veludo e barriga de farelo». Nessas montanhas, as pes­
soas ficam admiradas quando vêem rapazes fortes, como homens feitos,
ainda terem a voz esganiçada e o rosto imberbe, e ao verem rapari�as cres­
cidas - aliás muito formadas - não evidenciarem nenhum indíciO perió­
dico do seu sexo. Esta diferença parece-me dever-se unicamente ao fac­
to de que, na simplicidade dos seus costumes, a sua imaginação, que du­
rante mais tempo se conserva serena e calma - leva o sangue a fermen-
12 tar mais tarde, e torna o seu temperamento menos precoce.
tudo isso são aguilhões que espicaçam a sua curiosidade. Pela ma­
neira como se procede, a verdade é que tudo quanto se faz, fingindo
escondê-lo delas só serve para que o vejam; e, de todas as coisas
que se lhes ensinam, é dessa que elas tiram mais proveito.
Consultai a experiência e compreendereis até que ponto esse
método insensato acelera o trabalho da natureza e arruína o
temperamento. É esta uma das principais causas que fazem dege­
nerar as raças, nas cidades. Os jovens, precocemente esgotados, fi­
cam atarracados, fracos, disformes, envelhecem em vez de crescer,
como a vinha que ao ver-se obrigada a dar frutos na Primavera en­
langp.esce e morre antes de chegar o Outono.
E preciso ter-se vivido entre povos grosseiros e simples para
saber até que idade uma ingénu,a ignorância pode prolongar, entre
eles, a inocência das crianças. E um espectáculo simultaneamen­
te enternecedor e ridículo, o de se verem jovens de ambos os sexos
-entregues à segurança dos seus corações - prolongarem, du­
rante a flor da idade e da beleza, os jogos inocentes da infância, e
mostrarem, através das suas familiaridades, a pureza dos seus
prazeres. Quando, finalmente, essa amável juventude se casa, os
dois esposos, dando-se mutuamente as primícias das suas pes­
soas, são mais queridos um ao outro; quantidades de crianças, sãs
e robustas, tornam-se a prova de uma união que nada altera, e o
fruto da sageza dos seus primeiros anos.
Se a idade em que o homem adquire a consciência do seu sexo
se diferencia tanto pelo efeito da educação como pelo efeito da
natureza, daí se segue que é possível acelerar e atrasar essa ida­
de, segundo a maneira como se educarem as crianças; e se o corpo
adquire ou perde consistência, consoante se atrasa ou se acelera
esse processo, também se segue que, quanto mais nos aplicamos a
atrasá-lo, mais força e vigor um jovem adquire. Por enquanto só
me estou a referir aos efeitos puramente físicos: em breve se verá
que ainda há outros.
Destas reflexões, tiro a solução para o assunto tão frequente­
mente discutido, sobre se convém, ou não, começar a esclarecer as
crianças, logo de pequenas, sobre os objectos da sua curiosidade, ou
se é preferível distraí-las com modestos enganos. Penso que não
se deve fazer nem uma nem a outra coisa. Em primeiro lugar,
porque se adqqiriram essa curiosidade foi certamente por alguma
coisa a ter provocado. De modo que se deve cuidar para que a não
tenham.
Em segundo lugar, porque perguntas a que não se é obrigado
a responder não exigem que se engane aquele que as faz: mais va-
le impor-lhe silêncio que dizer-lhe mentiras. A criança sentir-se-
-á pouco surpreendida com essa lei, se se tiver tido o cuidado de a
sujeitar sempre a ela, também para coisas indiferentes. Enfim, se
se tomar o partido de lhe responder, que isso seja feito com a maior
das simplicidades, sem mistérios, sem embaraços, sem sorrir. E 13
muito menos perigoso satisfazer a curiosidade da criança que ex­
citá-la.
Que as vossas respostas sejam sempre breves, decididas, da­
das com gravidade e sem hesitações. Excusado será acrescentar
que devem ser verdadeiras. Não se pode ensinar às crianças o peri­
go de mentir aos homens, sem sentir, por parte dos homens, o pe­
rigo - ainda maior -de mentir às crianças. Uma única mentira
que o pupilo apanhasse na boca do governante arruinaria para
sempre todo o fruto da educação.
O que melhor conviria às crianças talvez fosse uma ignorância
absoluta sobre certos assuntos; mas que lhes sejam ensinadas
muito cedo_ todas as coisas que não se lhes podem ocultar indefini­
damente. E preciso, ou que a sua curiosidade não desperte de mo­
do nenhum, ou que ela se satisfaça antes da idade em que poderá
ser perigosa. Neste caso,o vosso comportamento em relação ao vos­
so pupilo depende muito da sua situação particular, das pessoas
que o rodeiam, das circunstâncias em que se prevê que ele se po­
derá vir a encontrar, etc. Neste assunto, importa não deixar nada
ao acaso; e se não tendes a certeza de poder deixá-lo ignorar -até
aos seus 16 anos - a diferença que há entre os sexos, tende o cui­
dado de lha explicardes antes dos 10.
Não gosto nada de que,diante das crianças, se fale uma lingua­
gem rebuscada, nem de que se façam grandes desvios - de que
elas se apercebem - para evitar designar as coisas pelos seus
nomes.
Nesses assuntos, os bons costumes têm sempre muita simpli­
cidade; mas as imaginações conspurcadas pelo vício tornam o ou­
vido delicado,e forçam a refinar constantemente as expressões. Os
termos grosseiros não têm consequências; são as ideias lascivas
que devem ser afastadas.
Embora, na espécie humana, o pudor seja natural, natural­
mente as crianças não têm nenhum. O pudor só aparece com o
conhecimento do mal: e como é possível que crianças que não têm,
nem devem ter, esse conhecimento, experimentem o sentimento
que é o seu efeito?
Dar-lhes lições de pudor e de honestidade é ensinar-lhes que
há coisas vergonhosas e desonestas, é dar-lhes um desejo secreto
de conhecer essas coisas. Mais cedo ou mais tarde,elas acabam por
saber o que querem, e a primeira faísca que lhes atingir a ima­
ginação acelerará, certamente, o esbraseamento dos sentidos.
Quem cora já é culpado; a verdadeira inocência não tem vergonha
de nada.
AJS crianças não têm os mesmos desejos que os adultos; mas,
como eles, expostas à sujidade que fere os sentidos, é possível que,
só por esse facto, recebam as mesmas lições de decoro. Segui o es­
pírito da natureza que, colocando nos mesmos lugares os órgãos
14 dos prazeres secretos e os das necessidades repugnantes, nos ins-
pira os mesmos cuidados nas várias idades, ora por uma ideia ora
por outra; ao homem, pela modéstia; à criança, pela higiene.
'
Só conheço uma boa maneira para conseguir que a criança
conserve a sua inocência: é que todos os que com ela vivem a res­
peitem e a amem. Se assim não for, toda a discrição que se quer
mostrar diante dela acabará por ser desmentida, mais cedo ou
mais tarde; um sorriso, uma piscadela de olho, um gesto que ela
surpreenda,diz-lhe tudo o que se pretendeu esconder-lhe; basta­
-lhe, para o descobrir, ver que lho quiseram ocultar. A delicadeza
da linguagem e das expressões que, entre elas, empregam as pes­
soas educadas, supondo conhecimentos que a criança não deve ter,
é absolutamente deslocada, para ela; mas, quando verdadeira­
mente se aprecia a sua simplicidade, facilmente se utiliza, ao fa­
lar-lhe, a dos termos que lhe convém. Há uma certa ingenuidade
de linguagem que fica bem e agrada à inocência: eis o verdadeiro
tom que desvia uma criança de uma perigosa curiosidade. Falan­
do--lhe simplesmente, a respeito de tudo, não se lhe deixa pensar
que ainda haja mais alguma coisa a dizer-lhe. Aliando às palavras
grosseiras as ideias desagradáveis que elas evocam, abafa-se a
primeira faísca da imaginação: não se lhe proíbe pronunciar essas
palavras e ter essas ideias; mas inspira-se-lhe, sem que ela se
aperceba disso, repugnância por elas. E quantos embaraços essa
liberdade inocente não poupa àqueles que, extraindo--a do próprio
coração,dizem sempre as palavras que convém, e as dizem sempre
como as sentiram!
Como se fazem os filhos? Pergunta embaraçosa que, com toda
a naturalidade, vem à boca das crianças e que, consoante a respos­
ta-indiscreta ou prudente -que se lhes dá,decide, por vezes, dos
seus costumes e da sua saúde, durante toda a sua vida. A manei­
ra mais breve que uma mãe imagina para se desembaraçar dela,
sem enganar o filho, é mandando--o calar. Isso seria bom, se a
criança estivesse habituada há muito tempo a ser mandada calar
quando se trata de perguntas indiferentes e se não suspeitasse d�
algum mistério nesse novo tom. Mas raramente ela ficar por aí. E
um segredo das pessoas casadas, continuará a mãe; os meninos
pequenos não devem fazer essas perguntas. Eis o que serve perfei­
tamente para evitar à mãe o embaraço de ter de responder: mas
convém que ela fique a saber que, irritado com esse ar desdenho­
so, o rapazinho não descansará enquanto não conseguir saber o se­
gredo das pessoas casadas, e não demorará muito a sabê-lo.
Que me seja permitido transmitir-vos uma resposta muito
diferente que ouvi dar para a mesma pergunta, e que me chocou
bastante, tanto mais que foi dada por uma mulher tão modesta nos
seus discursos como nos seus modos, mas que, quando era preciso,
sabia muito bem espezinhar-pelo bem do seu filho e pela virtude
- o falso receio da,s críticas e os vãos propósitos das pessoas ridí­
culas.Não haviamuito tempo que a criança emitira,com as urinas, 15
pira os mesmos cuidados nas várias idades, ora por uma ideia ora
. por outra; ao homem, pela modéstia; à criança, pela higiene.
Só conheço uma boa maneira para conseguir que a criança
conserve a sua inocência: é que todos os que com ela vivem a res­
peitem e a amem. Se assim não for, toda a discrição que se quer
mostrar diante dela acabará por ser desmentida, mais cedo ou
mais tarde; um sorriso, uma piscadela de olho, um gesto que ela
surpreenda, diz-lhe tudo o que se pretendeu esconder-lhe; basta­
-lhe, para o descobrir, ver que lho quiseram ocultar. A delicadeza
da linguagem e das expressões que, entre elas, empregam as pes­
soas educadas, supondo conhecimentos que a criança não deve ter,
é absolutamente deslocada, para ela; mas, quando verdadeira­
mente se aprecia a sua simplicidade, facilmente se utiliza, ao fa­
lar-lhe, a dos termos que lhe convém. Há uma certa ingenuidade
de linguagem que fica bem e agrada à inocência: eis o verdadeiro
tom que desvia uma criança de uma perigosa curiosidade. Falan­
do-lhe simplesmente, a respeito de tudo, não se lhe deixa pensar
que ainda haja mais alguma coisa a dizer-lhe. Aliando às palavras
grosseiras as ideias desagradáveis que elas evocam, abafa-se a
primeira faísca da imaginação: não se lhe proíbe pronunciar essas
palavras e ter essas ideias; mas inspira-se--lhe, sem que ela se
aperceba disso, repugnância por elas. E quantos embaraços essa
liberdade inocente não poupa àqueles que, extraindo-a do próprio
coração, dizem sempre as palavras que convém, e as dizem sempre
como as sentiram!
Como se fazem os filhos? Pergunta embaraçosa que, com toda
a naturalidade, vem à boca das crianças e que, consoante a respos­
ta -indiscreta ou prudente-que se lhes dá, decide, por vezes, dos
seus costumes e da sua saúde, durante toda a sua vida. A manei­
ra mais breve que uma mãe imagina para se desembaraçar dela,
sem enganar o filho, é mandando-o calar. Isso seria bom, se a
criança estivesse habituada há muito tempo a ser mandada calar
quando se trata de perguntas indiferentes e se não suspeitasse dE}
algum mistério nesse novo tom. Mas raramente ela ficar por aí. E
um segredo das pessoas casadas, continuará a mãe; os meninos
pequenos não devem fazer essas perguntas. Eis o que serve perfei­
tamente para evitar à mãe o embaraço de ter de responder: mas
convém que ela fique a saber que, irritado com esse ar desdenho­
so, o rapazinho não descansará enquanto não conseguir saber o se­
gredo das pessoas casadas, e não demorará muito a sabê-lo.
Que me seja permitido transmitir-vos uma resposta muito
diferente que ouvi dar para a mesma pergunta, e que me chocou
bastante, tanto mais quefoi dada por umamulhertão modesta nos
seus discursos como nos seus modos, mas que, quando era preciso,
sabia muito bem espezinhar-pelo bem do seu filho e pela virtude
-o falso receio da.s críticas e os vãos propósitos das pessoas ridí­
culas. Não havia muito tempo que a criança emitira, com as urinas, 15
seu aluno; e é unicamente nesse momento que ela o põe em esta­
do de tirar proveito - sem perigo - das lições que lhe dá. Eis o
princípio: o pormenor das regras não é da minha responsabilida­
de; e os meios que proponho, com vista a outros assuntos, também
servem de exemplo para este.
Se quereis introduzir a ordem e as regras nas paixões nascen­
tes, prolongai o tempo durante o qual elas se desenvolvem, para
que elas se possam ir ordenando, à medida que forem nascendo.
Nesse caso, não é o homem que as põe em ordem, mas a própria
natureza; a única coisa que tereis de fazer é permitir-lhe que or­
ganize o seu próprio trabalho. Se o vosso pupilo estivesse só, não
tereís nada a fazer; mas tudo quanto o rodeia exacerba a sua ima­
ginação. A torrente dos preconceitos arrasta,-Q: para o reter, é ne­
cessário empurrá-lo em sentido contrário. E indispensável que o
sentimento acorrente a imaginação e que a razão faça calar a opi­
nião dos homens. A fonte de todas as paixões é a sensibilidade; e
a imaginação determina o seu desenvolvimento. Todos os seres
que sentem essas relações devem considerar-se afectados, quan­
do elas se alteram e imaginam -ou crêem imaginar - relações
que sejam mais convenientes para a sua natureza. São os erros da
imaginação que transformam em vícios as paixões de todos os se­
res limitados, mesmo as dos anjos,se é que estes as têm; porque se­
ria necessário que eles conhecessem a natureza de todos os seres,
para saberem quais as relações que mais convêm à sua.
Eis, pois, o resumo de toda a sageza humana, na u tilização das
paixões: 1. º -sentir as verdadeiras conexões do homem, tanto em
relação à espécie como em relação ao indivíduo; 2.º - ordenar to­
das as afecções da alma, consoante essas conexões.
Mas o homem será capaz de ordenar as suas afecções consoan­
te tais ou tais conexões?
Certamente que sim, desde o momento em que tem a possibi­
lidade de dirigir a sua imaginação para este ou para aquele objec­
to, ou de lhe dar este ou aquele hábito. De resto, aqui, trata-se me­
nos daquilo que um homem pode fazer sobre si mesmo que do efei­
to que podemos exercer sobre o nosso pupilo, através da escolha
das circunstâncias em que o colocamos. Expor os meios próprios
para o manter naordemda natureza é o mesmo que explicar deque
maneira ele poderá sair dela.
Enquanto a sua sensibilidade se mantiver limitada ao seu in­
divíduo, não há nada de moral nas suas acções; é só quando ela se
co.meça a espraiar para fora dele que ele começa por contrair os
sentimentos e, seguidamente, as noções do bem e do mal que o tor­
nam verdadeiramente homem c parte integ rante da sua espécie.
Por conseguinte, é neste primeiro ponto que devemos começar por
fixar as nossas observações.
Elas são difíceis, pois, para as fazermos, precisamos de re­
chaçar os exemplos que temos diante dos nossos olhos e procurar 17.

L.B.524-2
aqueles em que os sucessivos desenvolvimentos se processam se­
gundo a ordem da natureza.
Uma criança amoldada, polida, civilizada, que só espera pela
oportunidade de pôr em prática as instruções que precocemente
recebeu, nunca se engana quanto ao momento em que essa opor­
tunidade se lhe apresenta. Longe de esperar por ela, precipita-a,
dá ao seu sangue uma fermentação precoce e sabe qual deverá ser
o objecto dos seus desejos,muito tempo antes de os experimentar.
Não é a natureza que a excita,é a criança quem a força: aquela não
tem mais nada para lhe ensinar,fazendo-a adulta, pois ela já o era
pelo pensamento, muito tempo antes de o ser efectivamente.
O verdadeiro andamento da natureza é mais gradual e mais
lento. Pouco a pouco, o sangue inflama-se, os espíritos elaboram­
-se, o temperamento forma-se. O operário avisado que dirige a fá­
brica tem o cuidado de aperfeiçoar todos os instrumentos antes de
os utilizar: uma prolongada preocupação precede os primeiros de­
sejos, uma prolongada ignorância ilude-os; deseja-se, mas não se
sabe o quê. O sangue fermenta e agita-se; uma superabundância
de vida procura espraiar-se para o exterior. O olhar anima-se e
percorre os outros seres, comeca-se a sentir interesse por aqueles
que nos rodeiam, começa-se a sentir que não somos feitos para vi­
ver sós: é deste modo que o coração se abre para os afectos huma­
nos e se torna capaz de afeição.
O primeiro sentimento de que o jovem bem educado é capaz,
não é o amor, é a amizade. O primeiro acto da sua imaginação nas­
cente é ensinar-lhe que ele tem semelhantes,e a espécie afecta-o
antes do sexo. Eis, por conseguinte,mais uma vantagem que a pro­
longada inocência oferece: aproveitar a sensibilidade nascente pa­
ra lançar no coração do jovem adolescente as primeiras sementes
da humanidade: vantagem essa que é tanto mais preciosa quanto
é certo que se trata do único momento da vida em que os mesmos
cuidados podem obter um verdadeiro êxito.
Sempre constatei que os jovens que, muito cedo, foram cor­
rompidos, e que se dedicavam exclusivamente às mulheres e ao
deboche, eram desumanos e cruéis; que o ímpeto do seu tempera­
mento os tornava impacientes, vingativos, furiosos; que a sua
imaginação,absorvida por um único objecto,se desinteressava de
todos os outros; que não conheciam nem a piedade nem a miseri­
córdia; que seriam capazes de sacrificar o próprio pai, a própria
mãe, o universo inteiro, ao mais ínfimo dos seus prazeres. Pelo
contrário,um jovem educado numa feliz simplicidade sente-se im­
pelido, pelos primeiros movimentos da natureza, para as paixões
ternas e afectuosas: o seu cor ação comp assivo comove-se com as
mágoas dos seus semelhantes; estremece de satisfação quando re­
vê o seu companheiro, os seus braços sabem abraçar com carinho,
os seus olhos sabem verter lágrimas de compaixão; é sensível à ver-
18 gonha de desagradar, ao remorso de ter ofendido. Quando o ardor
de um sangue que se inflama o torna vivo, arrebatado,colérico,um
momento depois mostra toda a bondade do seu coração na efusão
do seu arrependimento; chora, geme sobre o ferimento que fez; es­
taria disposto a dar o seu sangue em troca daquele que fez verter;
todo o seu arrebatamento se apaga, todo o seu orgulho se humilha
perante o sentimento da sua falta. Se é ele próprio que se sente
ofendido: no auge da sua fúria, uma explicação ou palavra de
desculpa desarma-o; põe. tão boa vontade a perdoar os erros dos
outros como a reparar os seus. A adolescência não é a idade da
vingança nem do ódio; é a idade da comiseração, da clemência, da
generosidade. Sim - declaro-o e não receio ser desmentido pela
experiência -, um jovem, filho de uma família honesta e que, até
aos 20 anos, conservou a sua inocência, quando chega a essa ida­
de mostra-se o mais generoso, o melhor, o mais amante e o mais
amável dos homens. Nunca vos disseram nada que se assemelhe
a isto; não duvido; os vossos filósofos, educados em toda a corrup­
ção gos colégios, não têm a obrigação de o saber.
E a fraqueza do homem que o torna sociável; são as nossas mi­
sérias comuns que levam os nossos corações a interessar-se pela
humanidade: não lhe deveríamos nada, se não fôssemos homens.
Todos os afectos são indícios de insuficiência: se cada um de nós
não tivesse necessidade dos outros, nunca pensaria em unir-se a
eles. Assim, da nossa própria enfermidade,nasce a nossa frágil fe­
licidade. Um ser verdadeiramente feliz é um ser solitário; só Deus
goza de uma felicidade absoluta; mas qual de nós faz uma ideia do
que isso seja? Se algum ser imperfeito se pudesse bastar a si mes­
mo, de que desfrutaria ele, na nossa opinião? Estaria só, seria mi­
serável. Não posso acreditar que aquele que não precisa de nada
possa amar alguma coisa: não acredito que aquele que não ama na­
da se possa sentir feliz.
Daí se segue que nos apegamos aos nossos semelhantes menos
pelo sentimento dos seus prazeres que pelo das suas mágoas; por­
que nelas vemos muito melhor a identidade da nossa natureza e as
garantias da sua dedicação por nós. Se as nossas necessidades
comuns nos unem por interesse,as nossas misérias comuns unem­
-nos por afecto. O aspecto de um homem feliz inspira aos outros
menos amor que inveja; facilmente estariam dispostos a acusá-lo
de usurpar um direito que não tem, construindo-se uma felicida-
de para uso exclusivo; e o amor-próprio também sofre, fazendo­
-nos sentir que esse homem não tem necessidade nenhuma de nós.
Mas quem é que não se condói de um infeliz que vê a sofrer? Quem
é que não estaria disposto a livrá-lo dos seus males se, para isso,
bastasse um desejo? A imaginação mais facilmente nos coloca n o
lugar do miserável que no do homem feliz; sentimos que um des­
ses estados nos impressiona mais que o outro. A piedade é doce,
porque,pondo-nos no lugar daquele que sofre,nos faz sentir o pra­
zer de não sofrer como ele. A inveja é amarga, porque o aspecto de 19
um homem feliz, longe de pôr o invejoso no seu lugar, lhe dá a
amargura de nele não se encontrar. Parece que um nos isenta dos
males de que sofre, e que o outro nos retira os bens de que desfruta.
Quereis, pois, excitar e alimentar, no coração de um jovem, os
primeiros movimentos da sensibilidade nascente e dirigir o seu ca­
rácter para a caridade e para a bondade? Não deixeis germinar
nele o orgulho, a vaidade ou a inveja, com a enganadora imagem
da felicidade dos homens; não comeceis por expor aos seus olhos a
pompa das cortes, o fausto dos palácios, o atractivo dos espectá­
culos; não o leveis aos círculos, às brilhantes assembleias, não lhe
mostreis o exterior da grande sociedade antes de o terdes posto em
estado de a avaliar pelo que ela representa. Mostrar-lhe o mundo
antes de ele conhecer os homens não é formá-lo, é corrompê-lo;
não é instruí-lo, é enganá-lo.
Naturalmente, os homens não são nem reis, nem grandes, nem
cortesãos, nem ricos; todos nasceram nus e pobres, todos eles sujei­
tos às misérias da vida,aos desgostos,às doenças, às necessidades,
às dores de todas as espécies; enfim, todos eles estão condenados
à morte. Eis o que é verdadeiramente próprio do homem; eis aquilo
de que nenhum mortal pode escapar. Começai,pois, por estudar­
da natureza humana - o que mais inseparável é dela, o que me­
lhor constitui a humanidade.
Aos 16 anos, o adolescente sabe o que é sofrer; porque ele pró­
prio já sofreu; mas mal sabe que outros seres também sofrem; vê­
-lo sem o sentir não é sabê-lo, e - como já cem vezes afirmei -,
pois a criança não imagina o que os outros sentem, quanto a ma­
les só conhece os seus: mas, quando o primeiro desenvolvimento
dos sentidos acende nela a centelha da imaginação, começa a sen­
tir-se nos seus semelhantes,� comover-se com os seus queixumes
e a sofrer com as suas dores. E então que o triste quadro da huma­
nidade sofredora deverá levar até ao seu coração a primeira com­
paixão que ela experimenta.
Se esse momento não é fácil de notar nos vossos filhos, a quem
atribuís a culpa? Ensinais-lhes tão precocemente a fingir o senti­
mento, ensinais-lhes tão precocemente a sua linguagem, que, fa­
lando sempre no mesmo tom, eles aprenderam as lições que lhes
destes contra vós mesmos, e não vos deixam nenhum meio de
distinguir quando - deixando de fingir -eles começam a sentir
o que dizem. Mas observai o meu Emílio; até à idade a que o condu­
zi, nunca sentiu nem mentiu. Enquanto não soube o que era gostar
de alguém,nunca disse a nenhuma pessoa: «Gosto de vós»; ninguém
lhe ensinou o comportamento.que deveria ter quando entrasse no
quarto de seu pai, de sua mãe ou do seu governante quando algum
deles estivesse doente; ninguém lhe ensinou a arte de aparentar a
tristeza que não sente. Nunca fingiu chorar a morte de ninguém;
porque não sabe o que significa morrer. A mesma insensibilidade
20 que tem no coração tem-na nas suas maneiras. Indiferente a tu-
do quanto não seja a sua própria pessoa - como todas as crian­
ças -, não se interessa por ninguém; tudo quanto o distingue das
outras crianças é o não querer fingir que se interessa por alguém
e o não ser falso como elas.
Emílio, como pouco reflectiu sobre os seres sensíveis, só mui­
to tarde virá a saber o que é sofrer e morrer. Os queixumes e os gri­
tos começarão a agitar as suas entranhas; o aspecto do sangue que
se derrama fá-lo-á desviar o olhar; as convulsões de um animal
que expira provocarão nele não sei que espécie de angústia, antes
de ele saber a que se devem esses novos sentimentos. Se tivesse
continuado a ser estúpido e bárbaro, não os experimentaria; se fos­
se mais instruído, saberia a sua causa: já comparou demasiadas
ideias para não sentir nada, mas não as bastantes para compreen­
der o que sente.
Deste modo nasce a piedade, primeiro sentimentorelativo que
toca o coração humano, segundo a ordem da natureza. Para se tor­
nar sensível e compassiva, é necessário que a criança saiba que
existem seres semelhantes a ela, que sofrem o que ela sofreu, que
sentem as dores que ela sentiu e outras de que ela deve fazer uma
ideia, por poder vir a senti-las também. Efectivamente, como nos
poderíamos deixar comover piedosamente se não fosse transpor­
tando-nos para além de nós mesmos e identificando-nos com o
animal sofredor, abandonando, por assim dizer, o nosso próprio ser
para integrarmos o seu? Só sofremos aquilo que consideramos que
ele sofre; não é em nós, mas nele, que sofremos. Assim, só nos tor­
namos sensíveis quando a nossa imaginação se anima e começa a
transportar-nos para além de nós.
Para excitar e alimentar essa sensibilidade nascente, para a
dirigir ou deixar seguir o seu caminho natural, outra coisa não po­
deremos fazer que não seja apresentar ao jovem objectos sobre os
quais se possa exercer a força expansiva do seu coração, que o di­
latem, que o expandam por sobre todos os outros seres, que o levem
a ver-se exterior a si mesmo, em toda a parte; ter o cuidado de
apartar dele os objectos que o oprimem, o concentram e retesam a
mola do seu eu humano; isto é, por outros termos, exacerbar nele
a bondade, a humanidade, a comiseração, a caridade, todas as pai­
xões atraentes e doces que agradam naturalmente aos homens, e
impedir o nascimento da inveja, da cobiça, do ódio, de todas as pai­
xões repugnantes e cruéis que tornam, por assim dizer, a sensibi­
lidade não apenas nula mas negativa, e que provocam o tormento
daquele que as experimenta.
Creio poder resumir todas as reflexões precedentes em duas ou
três máximas precis a,, clara::; e fácei:s de compreender.

21
PRIMEIRA MÁXIMA

O coração humano, não tem a possibilidade de se colocar no


lugar das pessoas que são mais felizes do que nós,
mas unicamente no daquelas que mais lástima merecem.

Se se puderem encontrar algumas excepções a esta máxima,


elas serão mais aparentes que reais. Assim, ninguém se põe no lu­
gardo rico ou do grande a quese afeiçoa; mesmo aquelequese afei­
çoa sinceramente a ele não faz mais do que apropriar-se de uma
parte do seu bem-estar. Por vezes, ama-lo, nas suas desgraças;
mas, enquanto ele prosperar, só será verdadeiramente seu amigo
aquele que não se deixa enganar pelas aparências, e que o lamen­
ta mais que o inveja, apesar da sua prosperidade.
Sentimo-nos atingidos pela felicidade de certos estados, como
por exemplo o da vida campestre e pastoral. O encanto de ver es­
sa simpática gente feliz não é envenenado pela inveja; interessa­
mo-nos verdadeiramente por ela. E porquê? Porque sentimos que
temos a possibilidade de descer a esse estado de paz e de inocên­
cia e de desfrutar da mesma felicidade; é um recurso que apenas
dá ideias agradáveis, já que basta desejar desfrutá-las para o po­
der fazer. E sempre gratificante conhecermos os nossos recursos,
contemplarmos o nosso próprio bem, mesmo quando não o quere­
mos utilizar.
Daí se segue que, para insuflar a humanidade num jovem, em
vez de o levar a admirar o brilhante destino dos outros, é necessá­
rio apresentar-lho pelos seus aspectos tristes; é preciso que ele
acabe por receá-lo. Então, por uma consequência evidente, ele ver­
-se-á obrigado a tentar abrir o seu próprio caminho até à felicida­
de, sem seguir o de ninguém.

SEGUNDA MÁXIMA

Nos outros, só lamentamos os males


de que não nos cremos isentos.

<<Non ignara mali, miseris succurrere disco.»


Não conheço nada que seja mais belo, mais profundo, mais
comovedor, mais verdadeiro, que este verso.
Por, que será que os reis são impiedosos para com os seus vas­
salos? E que esperam nunca ser h�mens. Por que será que os ricos
são tão duros para com os pobres? E porque não receiam vir a estar
na situação deles. Por gue será que a nobreza sente um desprezo
tão grande pelo povo? E porque um nobre nunca será plebeu. Por
que será que os Turços são, geralmente, mais humanos, mais hos-
22 pitaleiros que nós?E porque, no seu governo -absolutamente ar-
bitrário -,como a grandeza e a fortuna dos particulares é sempre
precária e vacilante, não consideram o abaixamento e a miséria
como um estado de que se possam considerar isentos1; amanhã,ca­
da um pode vir a ser o que hoje é aquele que ajuda. Esta reflexão,
que se vê constantemente nos romances orientais,empresta à sua
leitura algo de enternecedor que não tem nada da afectação da nos­
sa moral ressequida.
Por conseguinte, nunca habitueis o vosso pupilo a considerar,
do alto da sua glória, as tristezas dos infortunados, os trabalhos
dos miseráveis; e não espereis ensiná-lo a lastimá-los, se lhos
mostrardes como lhe sendo alheios. Fazei-lhe compreender que o
destino desses infelizes poderá ser o seu, que todos os seus males
se encontram debaixo dos seus pés,que mil acontecimentos impre­
vistos e inevitáveis o podem mergulhar neles,de um momento pa­
ra o outro. Ensinai-o a não contar nem com o seu nome,nem com
a sua saúde,nem com as suas riquezas; mostrai-lhe todas as vicis­
situdes da fortuna; dai-lhe sempre exemplos, cada vez mais fre­
quentes, de pessoas que - de uma categoria mais elevada que a
sua - caíram abaixo da desses infelizes; quer tenha sido por sua
causa ou não, não é isso o que interessa; será que ele sabe o que é
uma causa? Nunca vos precipiteis para não transtornardes a or­
dem dos seus conhecimentos e esclarecei-o unicamente através
das luzes que estiverem ao seu alcance: ele não precisa de ser
muito sabedor para sentir que toda a prudência humana não lhe
poderá dizer se daqui a uma hora estará vivo ou morto; se as do­
res nefríticas não o farão ranger os dentes antes do cair da noite;
se dentro de um mês estará rico ou pobre,se dentro de um ano não
estará a remar nas galeras de Argel,sob as ordens de um chicote.
Sobretudo, não lhe digais tudo isto friamente, como se lhe ensi­
násseis o catecismo; que ele veja,que ele sinta as calamidades hu­
manas; sacudi, amedrontai a sua imaginação com os perigos que
constantemente rodeiam todos os homens; que ele veja,em seu re­
dor,todos esses abismos,e que,ouvindo-vos descrevê-los,se agar­
re a vós, receando cair neles. «Torná-lo-emos tímido e poltrão!»,
direis. Veremos,com a continuação; mas no que refere ao momen­
to presente, comecemos por torná-lo humano; é sobretudo isso o
que nos interessa.

1 Isto parece estar a mudar um pouco, actualmente: as situações


parecem estar a ficar mais fixas, e os homens estão a tornar-se mais duros. 23
TERCEIRA MÁXIMA

A piedade que sentimos pela desgraça alheia não se mede


pela extensão dessa desgraça, mas pelo sentimento
que emprestamos àqueles que a suportam.

Só lamentamos um desgraçado na medida em que conside­


ramos que ele tem motivos para se queixar. O sentimento físico dos
nossos males é mais limitado do que parece; mas é através da
memória que nos faz sentir a sua continuidade, através da ima­
ginação que os estende para o futuro, que eles nos tornam verda­
deiramente lamentáveis. Eis, penso eu, uma das causas que nos
endurecem mais perante os males dos animais que perante os dos
homens, embora a sensibilidade comum também nos devesse iden­
tificar com eles. Ninguém lastima um cavalo de carroceiro, na sua
cavalariça, porque ninguém imagina que enquanto come o seu fe­
no ele esteja a pensar na pancada que recebeu e nos cansaços que
o esperam. Também ninguém lastima um carneiro que está a pas­
tar, embora se saiba que em breve será degolado, porque se ima­
gina que ele não pode prever o seu destino. Por extensão, é assim
que nos tornamos duros quanto ao destino dos homens; e os ricos
consolam-se do mal que fazem aos pobres, supondü-{)s estúpidos
ao ponto de não sentirem nada. Geralmente, avalia-se o valor que
cada um atribui à f�licidade dos seus semelhantes pelo caso que
parece fazer deles. E natural que pouco nos importemos com a fe­
licidade das pessoas que desprezamos. Por conseguinte, não vos
surpreen deis quando ouvirdes os políticos falarem do povo com
tanto desdém, ou se a maioria dos filósofos pretende apresentar o
'
homem tão mau.
É o povo que compõe o género humano; o que não é povo repre­
senta tão pouca coisa que nem vale a pena tomá-lo em linha de con­
ta. O homem é sempre o mesmo, em todos os estados: se assim é,
os estados mais numerosos são os que mais respeito merecem. Pe­
rante aquele que pensa, todas as distinções civis desaparecem : vê
as mesmas paixões e os mesmos sentimentos, tanto no grosseirão
como no homem ilustre; só distingue a respectiva linguagem, um
colorido mais ou menos afectado; e se alguma diferença essencial
os distingue, será em prejuízo dos mais desprovidos. O povo mos­
tra-se tal e qual é, e não é amável: mas é necessário que as pessoas
do mundo se disfarcem; se se mostrassem tais como são, horrori­
zar-nos-iam.
Há - também dizem os nossos sages - a mesma dose de feli­
cidade e de infelicidade, em todos os estados. Esta máxima é tão fu­
nesta quanto insustentável; pois, se todos são igualmente felizes,
que necessidade terei eu de me incomodar por alguém? Que cada
um fique como está: que o escravo seja maltratado, que o enfermo
24 sofra, que o pedinte morra; não ganharão nada se mudarem de es-
tado. Fazem a enumeração dos males do rico e mostram a futilida­
de dos seus vãos prazeres; que sofisma tão grosseiro! Os males do
rico não provêm do seu estado, mas unicamente dele próprio, por
abusar dele. Mesmo que fosse mais infeliz que o pobre, não mere­
ceria ser lamentado, porque todos os seus males são obra sua, e
porque a sua felicidade depende apenas dele próprio. Mas o sofri­
mento do miserável vem-lhe das coisas, da severidade do destino
que se encarniça contra ele. Não existe nenhum hábito que lhe pos­
sa retirar a sensação física do cansaço, do esgotamento, da fome:
nem o bom espírito nem a sageza podem fazer alguma coisa para
o isentar dos males do seu estado. Que ganhará Epicteto, mesmo
que possa prever que o amo lhe vai partir uma perna? Consegui­
rá que ele lha parta menos? Temn, além do seu mal, o mal da pre­
vidência. Mesmo que o povo fosse tão sensato quanto o supomos es­
túpido, que outra coisa poderia ser, além do que é? Que outra coi­
sa poderia fazer, além da que faz? Estudai as pessoas dessa clas­
se e vereis que, com uma outra linguagem, têm tanto espírito e
mais bom-senso que vós. Por conseguinte, respeitai a vossa espé­
cie; lembrai-vos de que ela se compõe essencialmente da colecção
dos povos; de que, mesmo que todos os reis e todos os filósofos fos­
sem retirados dela, ninguém se aperceberia disso, e que as coisas
não correriam pior. Em resumo, ensinai ao vosso pupilo a amar
todos os homens, mesmo aqueles que os desprezam; procedei de
modo a que ele não se coloque em nenhuma classe, mas que se re­
conheça em todas elas; diante dele,falai do género humano com ca­
rinho, até mesmo com piedade, mas nunca com desprezo. Homem,
não desonres o homem!
É por estes caminhos e outros semelhantes - muito diferen­
tes daqueles que já estão traçados -que convém penetrar no cora­
ção de um jovem adolescente, para nele despertar os primeiros
sentimentos da natureza, o desenvolver e o espraiar por sobre os
seus semelhantes; acrescento que importa misturar a esses senti­
mentos o mínimo possível de interesse pessoal; sobretudo, nada de
vaidade, nada de emulação, nada de glória, nenhum desses senti­
mentos que nos obrigam a compararmo-nos aos outros; pois essas
comparações nunca se efectuam sem uma impressão de ódio con­
tra aqueles que nos disputam a preferência, mesmo que só seja na
nossa própria estima. E, nesse caso, será preciso que fechemos os
olhos ou que nos irritemos, que sejamos maus ou tolos: tratemos de
evitar essa alternativa. «Essas paixões tão perigosas nascerão
mais tarde ou mais cedo», dizem-me, «mesmo que o não queira­
mos>>. Não o nego: cada coisa a seu tempo e no seu lugar; apenas di­
go que não devemos ajudá-las a nascer.
Eis o espírito do método que nos devemos aconselhar. Aqui, os
exemplos e os pormenores são inúteis, porque é neste momento
que tem início a divisão quase infinita dos caracteres e porque ca-
da exemplo que eu apresentasse talvez não conviesse nem a um 25
único, em cada cem mil. É também nessa idade que começa, para
o hábil mestre, a verdadeira função do observador e do filósofo que
conhece a arte de sondar os corações, trabalhando para os trans­
formar. Enquanto o jovem ainda não pensa em fingir e ainda não
aprendeu a fazê-lo, a cada objecto que se lhe apresenta, vê-se, pe­
lo seu ar, pelo seu olhar, pela sua atitude, a impressão que recebe
dele: vêem-se -no seu rosto -todosos movimentos dasua alma;
à força de as espiar, consegue-se prevê-los, e, finalmente, dirigi­
-los.
Geralmente, nota-se que o sangue, os ferimentos, os gritos, os
gemidos, o aparelho das operações dolorosas, e tudo o que dá aos
sentidos razões para sofrer, é o que mais cedo e mais geralmente
surpreende todos os homens. A ideia de destruição - como é mais
complexa - não surpreende do mesmo modo; a imagem da morte
atinge-os mais tarde e de uma maneira mais ténue, porque
ninguém tem a experiência de morrer: é preciso ter visto cadáveres
para experimentar as angústias dos agonizantes. Mas, logo que es­
sa imagem se tenha formado definitivamente no nosso espírito,
não existe espectáculo mais terrível aos nossos olhos, seja por
causa da ideia de destruição total que ela então nos dá através dos
sentidos, ou seja porque - sabendo que esse momento é inevitá­
vel para todos os homens - nos sentimos mais vivamente afecta­
dos por uma situação à qual temos a certeza de não poder escapar.
Estas diversas impressões têm as suas modificações e os seus
graus, que dependem do carácter particular de cada indivíduo e
dos seus hábitos anteriores; mas são universais, e nenhum está
completamente isento delas. Há-as mais tardias e menos gerais,
que são mais próprias das almas sensíveis; são aquelas que se re­
cebem das dores morais, das dores internas, das aflições, das sau­
dades, da tristeza. Há pessoas que só se podem sentir comovidas
com gritos e com choros; os prolongados e abafados gemidos de um
coração oprimido pela desgraça nunca lhes arrancaram um suspi­
ro; nunca o aspecto de uma atitude abatida, de um rosto pálido e
fechado, de um olhar apagado e que já nem consegue chorar, as
conseguiu comover, porque, para elas, os males da alma não são
nada; ficam julgadas: a delas não sente; dessas pessoas, não espe­
reis nada mais que inflexível rigor, dureza e crueldade. Poderão
ser íntegras e justas, mas nunca serão clementes, nem generosas,
nem piedosas. Digo que poderão ser justas, se é que um homem o
pode ser quando não é misericordioso.
Mas não vos apresseis a julgar os jovens consoante esta regra,
sobretudo aqueles que, tendo sido educados como devem sê-lo, não
fazem ideia nenhuma das penas morais que nunca e xp e r imen­
taram, porque -repit�r-0 -eles só podem lamentar os males que
conhecem; e essa aparente insensibilidade, que só se deve à igno­
rância, em breve se transforma em compaixão, quando começam
26 a sentir que, na vida humana, há mil dores que eles não conhecem.
Para o meu Emílio, se teve simplicidade e bom senso durante a sua
infância, tenho a certeza de que terá alma e sensibilidade duran­
te a sua juventude; porque a verdade dos sentimentos depende
muito da justeza das ideias.
1\{as por que motivo voltar a falar disso, agora? Não duvido de
que mais de um leitor me censurará o ter-me esquecido das mi­
nhas primeiras resoluções e da promessa de constante felicidade
que eu fizera ao meu pupilo. Os desgraçados, os moribundos, es­
pectáculos de dor e de miséria! Que felicidade, que gozo, para um
jovem coração que desabrocha para a vida! O seu triste preceptor,
que lhe destinava uma educação tão doce, só o faz nascer para so­
frer. Eis o que dirão: que me importa? Prometi que o faria feliz e
não que ele ficasse com o aspecto de o ser. Será culpa minha se ­
sempre enganados pela aparência -vós a tomais pela realidade?
Consideremos dois jovens que terminam a sua primeira edu­
cação e entram no mundo por duas portas directamente opostas.
Um deles sobe imediatamente ao Olimpo e ele é recebido pela mais
brilhante sociedade; é levado à corte, frequenta os grandes, os ri­
cos, as mulheres bonitas. Suponho-o festejado em toda a parte, e
não examino o efeito que esse acolhimento tem sobre a sua razão;
suponho que ela resiste a tudo isso. Os prazeres voam ao seu en­
contro, todos os dias se sente distraído com novos objectos; a todos
se entrega com um interesse que vos seduz. Vede-lo atento, em­
penhado, curioso; a sua primeira admiração surpreende-vos; con­
siderai-lo contente: mas olhai para o estado da sua alma; creis que
ele desfruta; eu, eu creio que ele sofre.
O que avista ele, logo que abre os olhos? Quantidades de pre­
tensos bens que não conhecia e de que a maior parte - que só du­
rante um momento se mantém ao seu alcance - parece sóse mos­
trar a ele para lhe dar o desgosto de dela se ver privado. Se passeia
dentro de um palácio, vereis - pela sua curiosidade inquieta -
que se pergunta a si mesmo por que motivo a sua casa paterna não
é assim.
Todas as suas perguntas vos dizem que ele se compara cons­
tantemente ao dono dessa casa e que, nessa comparação, tudo
quanto vê e o mortifica aguça a sua vaidade, revoltando-a. Se en­
contra um jovem mais bem trajado que ele, vejo-o que resmunga,
secretamente, contra a avareza de seus pais. Se está mais bem tra­
jado que outro, tem a dor de constatar que essoutro lhe é superior
pelo nascimento ou pelo espírito, e todos os dourados das suas ves-
tes ficam humilhados perante umas simples vestes de pano. Se é
o único a brilhar numa assembleia, eleva-se nas pontas dos pés,
para que o v ejam me l ho r ; quem é que não tem uma disposição
secreta para rebaixar o ar de soberba e de futilidade de um jovem
tolo? Em breve, tudo se reúune como que de concerto; os olhares
inquietadores de um homem grave, as palavras irónicas de um
cáustico não tardam a atingi-lo; e mesmo que só um homem o des- 27
denhasse, o desprezo desse homem envenenaria imediatamente
os aplausos de todos os outros.
Demos-lhe tudo, proporcionemos-lhe os prazeres, o mérito;
que ele seja belo, cheio de espírito, amável: será apreciado pelas
mulheres; mas, perseguindo-o antes de ele as amar, torná-lo-ão
mais louco que apaixonado; obterá grandes sucessos: mas não terá
nem transportes nem paixão para os apreciar. Como os seus de­
sejos serão sempre prevenidos, nunca terão a possibilidade de
nascer, e, por entre os seus prazeres, ele só experimentará o abor­
recimento e a incomodidade: sente-se farto e enojado do sexo que
foi feito para tornar o seu feliz, mesmo antes de o ter conhecido; e,
se continuar a frequentá-lo, será apenas por vaidade; e mesmo que
se ligue a ele por um verdadeiro gosto, não será o único jovem, o
único brilhante, o único amável, e nem sempre encontrará nas
suas amadas prodígios de fidelidade.
Não digo nada a respeito das arrelias, das traições, das perfí­
dias, dos arrependimentos de todos os géneros, inseparáveis de
uma vida dessas. A experiência do m undo enoja-nos dele, todos o
sabemos; refiro-me apenas aos aborrecimentos que se ligam à pri­
meira ilusão.
Que contraste para aquele que - até agora metido no círculo
da sua família e dos seus amigos, sempre foi tratado como objecto
único de todas as atenções-se vê bruscamente introduzido numa
sociedade em que tão pouco valor se lhe atribui; que se encontra
como perdido, num mundo desconhecido, ele que dura,nte tanto
tempo foi o centro do seu! Quantas afrontas, quantas humilhações
tem de suportar, enquanto não perde -entre os desconhecidos ­
os preconceitos da sua importância, adquiridos e alimentados pe­
los seus familiares! Quando criança, todas as vontades lhe eram
feitas, todos se empenhavam em satisfazer-lhas: chegado a rapaz,
tem de ceder a toda a gente; caso não o faça e conserve os seus an­
tigos modos, quantas e severas lições o farão cair em si! O hábito
de obter facilmente os objectos dos seus desejos leva-o a mui to de­
sejar e faz-lhe sentir contínuas privações. Tudo o que lhe agrada
o tenta; tudo quanto os outros têm, desejaria ter: tudo cobiça, a to­
dos inveja, desejaria dominar em toda a parte; a vaidade rói-o, o
ímpeto dos desejos desordenados inflama o seu jovem coração; o
ciúme e o ódio despertam com eles; todas as paixões devoradoras
fazem irrupção, por sua vez; ele leva essa agitação para o tumul­
to do m undo; trá-la de volta consigo, todas as noites; regressa a ca­
sa desgostoso de si mesmo e dos outros; adormecer cheio de mil
vãos projectos, perturbado por mil fantasias, e o seu orgulho até
nos sonhos lhe descreve os quiméricos bens cujo desejo o atormen­
ta e que nunca possuirá. Eis o vosso pupilo! Vejamos o meu.
Se o primeiro espectáculo com que depara é um objecto de tris­
teza, a sua primeira reacção é um sentimento de prazer. Vendo de
28 quantos males está isento, sente-se mais feliz do que supunha.
Compartilha das tristezas dos seus semelhantes; mas esse movi­
mento é voluntário e ligeiro. Desfruta simultaneamente da pieda­
de que sente pelos m ales alheios e da felicidade que o livra deles;
sente-se nesse estado de força que nos expande para além de nós
e nos leva a transportar alhures a actividade que é supérflua pa­
rao nosso bem-estar. Para lamentar o mal alheio, certamente que
é preciso conhecê-lo, mas não é in dispentável senti-lo. Quando se
sofreu, ou quando se receia sofrer, lamenta-se aqueles que sofrem;
mas aquele que sofre só se lamenta a si mesmo. Ora, como todos es­
tão sujeitos às misérias da vida, cada um apenas pode dispensar
aos outros a sensibilidade de que no momento presente não tem
precisão para si mesmo e, daí se segue que a comiseração deve ser ·
um sentimento muito suave, pois depõe em nosso favor, e que, pe­
lo contrário, um homem duro é sempre infeliz, pois o estado do seu
coração não lhe deixa nenhum excesso de sensibilidade que lee
possp. dedicar às penas de outrém.
E exagerado o hábito que temos de avaliar a felicidade dos ou­
tros pelas suas aparências: supomo-la onde ela menos se encon­
tra; procuramo-la onde ela não poderia estar: a alegria não é um
verdadeiro indício dela. Muitas vezes, um homem alegre não é
mais que um infortunado que procura iludir os outros e atordoar­
-se a si mesmo: Essas pessoas tão risonhas, tão bem-dispostas, tão
serenas num círculo, estão quase todas tristes e resmungonas
quando se encontram em suas casas, e são os criados que pagam
as favas das distracções que eles proporcionam aos seus conheci­
dos. O verdadeiro contentamento não é nem alegre nem folgazão;
ciosos de um sentimeht.o tão doce, os que o experimentam apre­
ciam-no, saboreiam-no, receiam que ele se desvaneça. Um ho­
mem verdadeiramente feliz pouco fala e não ri; aconchega, por as­
sim dizer, a felicidade em volta do seu coração. Os jogos ruidosos,
a alegria turbulenta, só servem para esconder os desgostos e o
aborrecimento. Mas a melancolia é amiga da volúpia: a compaixão
e as lágrimas acompanham as mais doces sensações, e a própria
alegria em excesso arranca mais choros que gritos.
Embora, de início, a multiplicidade e a variedade dos diverti­
mentos pareçam contribuir para a felicidade, embora a uniformi­
dade de uma vida monótona comece por parecer aborrecida, depois
de uma melhor observação, descobre-se, pelo contrário, que o mais
doce hábito da alma consiste numa moderação de fruiçã<' que pou­
cas oportunidades deixa ao desejo e ao aborrecimento. A inquieta­
ção dos desejos produz a curiosidade, a inconstância: o vácuo dos
prazeres turbulentos produz o aborrecimento. Nunca ninguém se
aborrecerá do seu estado, se não conhecer outro maís agradável.
De todos os homens que existem no mundo, os selvagens são os me­
nos curiosos e os menos aborrecidos; tudo lhes é indiferente: não
desfrutam das coisas mas de si mesmos; passam a vida a não fa-
zer nada e nunca se aborrecem. 29
O homem do mundo está todo na sua máscara. Como quase
nunca está em si mesmo, desconhece--se completamente e sente­
-se incomodado quando tem de se encarar. Para ele, o que real­
mente é não tem importância; o que lhe importa é o que parece ser.
Não posso impedir-me de imaginar-no rosto do jovem de que
acabei de falar -um não sei quê de impertinência, de denguice,
de afectação,que desagrada,que desagrada às pessoas sinceras,e,
no do meu, uma fisionomia interessante e simples, que expressa o
contentamento,a verdadeira serenidade da alma,que inspira a es­
tima, a confiança, e que parece só esperar mostras de amizade pa­
ra distribuir a sua por todos quantos se aproximam dele. Crê-se
que a fisionomia não é mais do que um simples desenvolvimento
de traços inicialmente marcados pela natureza. Cá por mim, penso
que, além desse desenvolvimento, os traços do rosto de um homem
se formam insensivelmente e adquirem uma fisionomia pela im­
pressão frequente e costumada de certas afecções da alma. Essas
afecções ficam marcadas no rosto, nada é mais certo; e quando se
transformam em hábitos, devem-lhe deixar impressões duráveis.
Eis como eu concebo que a fisionomia anuncia o carácter, e que,por
vezes,seja possível julgar um pela outra,sem arranjar explicações
misteriosas que pressupõem conhecimentos que não temos .

T Tma criança experimenta apenas duas impressões bem mar­


cadas: a aib&iR e a mágoa: ou ri ou chora; os estados intermédios
não representam nada para ela; passa incessantemente de um
desses estados ao outro. Esta contínua alternância impede que
eles imprimam no seu rosto alguma marca constante e que ele
adquira uma fisionomia: mas na idade em que, tendo-se tornado
mais sensível, ela se sente mais vivamentl;l ou mais constante­
mente afectada, as impressões mais profundas deixam marcas
mais difíceis de apagar; e do estado habitual da alma resulta um
conjunto de traços que o tempo torna indeléveis. Todavia,não é ra­
ro ver homens mudarem de fisionomia, em várias idades. Vi vá­
rios,neste caso; e, naqueles que pude bem observar e seguir,sem­
pre me apercebi de que as suas habituais paixões também tinham
mudado. Esta única observação, bem confirmada, parecer-me-ia
decisiva,e não se encontra deslocada num tratado de educação em
que importa aprender a avaliar os sentimentos da alma através
dos sinais exteriores.
Ignoro se- por não ter aprendido a imitar modos convencio­
nais e a fingir sentimentos que não tem- o meu jovem será me­
nos amável; mas não é disso que aqui se trata: sei apenas que ele
será mais amante e custa-me muito acreditar que aquele que só
a si mesmo ama consiga disfarçar suficientemente esse sentimen­
to, a fim de agradar tanto como aquele que retira, da sua afeição
pelos outros,um novo sentimento de felicidade. Mas,quanto a este
sentimento, creio já ter dito o suficiente para guiar, neste assun�
30 to, um leitor razoável, e para mostrar que não me contradisse.
Por conseguinte, volto ao meu método e afirmo: quando a idade
crítica se aproxima, oferecei aos jovens espectáculos que os mode­
rem, e nunca espectáculos que os excitem; iludi a sua imaginação
nascente com objectos que, longe de inflamarem os seus sentidos,
lhes reprimam a actividade. Afastai-os das grandes cidades, onde
o vestuário e a imodéstia das mulheres instigam e predispõem pa­
ra as lições da natureza, onde tudo apresenta aos seus olhos pra­
zeres que eles só devem conhecer quando os souberem escolher.
Levai-os novamente para as suas primitivas casas, onde a simpli­
cidade campestre permite que as paixões próprias da sua idade se
desenvolvam mais lentamente; ou, no caso de o seu gosto pelas ar­
tes os prender ainda à cidade, preveni...:Os, através desse mesmo
gosto, contra uma perigosa ociosidade. Escolhei cautelosamente
as suas companhias, as suas ocupações, os seus prazeres: mostrai­
-lhe unicamente quadros enternecedores, mas modestos, que os
comovam sem os seduzirem, e que alimentem a sua sensibilidade
sem comoverem os seus sentidos. Lembrai-vos igualmente de que,
por toda a parte, há alguns excessos a recear, e de que as paixões
imoderadas fazem sempre pior que o que se pretende evitar. Não
se trata de transformar o vossopupilo num enfermeiro, num irmão
de caridade, de afligir os seus olhares com contínuos objectos de
tristezas e de sofrimentos, de o levar de enfermo a enfermo, de hos­
pital para hospital e da Greve1 às prisões; o que importa é impres­
sioná-lo, e não endurecê-lo, em relação às misérias humanas.
Quando se assiste frequentemente a esses espectáculos, deixa-se
de lhes sentir as impressões; o hábito acostuma a tudo; deixamos
de imaginar aquilo que vemos com excessiva frequência: ora, só a
imaginação nos pode fazer sentir os males de outrém; é assim que,
com o hábito de ver morrer e sofrer, os padres e os médicos se tor­
nam desapiedados. Por conseguinte, que o vosso pupilo conheça a
vida do homem e as misérias dos seus semelhantes; mas que não
assista com excessiva frequência a esses casos. Um único exemplo
bem escolhido, e mostrado num dia apropriado, fornecer-lhe-á um
mês de enternecimento e de reflexões. Não será tanto o que ele ti­
ver visto, mas o que ele pensar sobre o que viu, que determinará
o juízo que fizer de cada caso; e a impressão durável que recebe de
um objecto é-lhe menos inspirada pelo próprio obj�cto que pelo
ponto de vista sob o qual é levado a recordá-lo. E assim que,
doseando os exemplos, as lições, as imagens, embotareis o agui­
lhão dos sentidos e iludireis a natureza seguindo as suas próprias
directivas.
À medida que ele for adquirindo algumas luzes, escolhei ideias

1 La place de Greve = Praça de Paris, à beira do Sena, onde tinham


lugar as execuções. Nela se erigiu o actual Hôtel de Ville da cidade. 31
que se relacionem com elas; à medida que os seus desejos se in­
flamam, escolhei imagens próprias para os reprimir. Um velhomi­
litar, que se distinguiu não só pelos seus costumes como pela sua
coragem, contou-me que, durante a sua primeira juventude, seu
pai -homem de bom senso, mas muito devoto - vendo que o seu
temperamento o impelia para as mulheres, não se poupou a ne­
nhum esforço para o deter; mas, finalmente, como, apesar de todos
os seus esforços, o sentisse prestes a escapar-lhe, lembrou-se de
o levar a visitar um hospital de sifilíticos; e, sem o prevenir de na­
da, fê-lo entrar numa sala onde uma quantidade desses infelizes,
suportanto um tratamento horroroso, expiava a desordem que os
expusera a essa doença. Ao ver esse horrível espectáculo -que re­
voltava simultaneamente todos os sentidos - o jovem quase per­
deu os sentidos. <<Anda, miserável debochado», disse-lhe então o
pai, veementemente, <<Obedece à vil tendência que te impele; e,
dentro de pouco tempo, sentir-te-ás muito feliz se fores admitido
nesta sala, onde, vítima dos mais infames sofrimentos, obrigarás
teu pai a pedir a Deus que te faça morrer.>>
Estas poucas palavras, acrescentadas ao enérgico espectácu­
lo que estava a chocar o jovem, provocaram nele uma impressão
que nunca mais se apagou. Condenado, pelo seu estado, a passar
a juventude nas guarnições, preferiu suportar todas as troças dos
seus camaradas a imitar a sua libertinagem. <<iz-me homem>>,
confiou-me ele, <<e tive as minhas fraquezas; mas, até hoje, nunca
pude ver uma mulher pública sem experimentar uma impressão
de horror.>> Mestre, poucos discursos; mas ensinai a escolher os I u­
gares, os momentos, as pessoas; além disso, dai todas as vossas li­
ções com exemplos e podereis ficar com a certeza do seu efeito.
O papel desempenhado pela infância é pouca coisa: o mal que
nela penetra não é irremediável; e o bem que nela se inscreve po­
de vir mais tarde. Mas já o mesmo não acontece na primeira ida­
de em que o homem começa verdadeiramente a viver. Essa idade
nunca dura tempo que chegue para a utilização que dela se deve­
ria fazer, e a sua importância exige uma constante atenção: eis por
que insisto sobre a arte de a prolongar. Um dos melhores precei­
tos da boa cultura é retardar tudo, tanto quanto possível. Fazei que
os progressos sejam lentos e seguros; impedi que o adolescente se
torne homem no momento em que não lhe seja preciso fazer nada
para o ser. Enquanto o corpo cresce, os espíritos destinados para
dar bálsamo ao sangue e força às fibras vão-se formando e ela­
borando. Se os obrigais a seguir um curso diferente, e se o que é
destinado ao aperfeiçoamento de um indivíduo servir para a for­
mação de outro, ambos ficarão num estado de fraqueza, e a obra da
natureza será imperfeita. Por seu lado, as operações do espírito
ressentem-se dessa alteração; e a alma, tão débil como o corpo, tem
apenas funções fracas e elanguescentes. Membros grossos e robus-
32 tos não fazem nem a coragem nem o génio; e concebo que a força
da alma não seja acompanhada pela do corpo, sobretudo quando os
órgãos da comUnicação das duas substâncias estão maldispostos.
Mas, mesmo que estejam dispostos convenientemente, agirão
sempre de uma maneira fraca, se apenas tiverem como princípio
um órgão esgotado, empobrecido e desprovido dessa substância
que dá força e folga a todas as peças da máquina. Geralmente,
encontra-se mais vigor de alma nos homens cuja infância foi
preservada de uma corrupção prematura que na daqueles cuja
desordem começou com o poder de a ela se entregar; e esta é, sem
dúvida, uma das razões por que os povos que têm bons costumes
conseguem superar, em bom senso e em coragem, os povos que os
não têm. Estes brilham unicamente por não sei que pequenas
qualidades rarefeitas, a que dão o nome de espírito, sagacidade, fi­
nura; mas essas grandes e nobres funções de sageza e de razão, que
distinguem e honram o homem através de belas acções, de virtu­
des, de cuidados verdadeiramente úteis, raramente se encontram
noutros que não os primeiros.
Os mestres queixam-se de que o fogo dessa idade torna a ju­
ventude indisciplinada, e constato-o: mas a culpa n ão será deles?
Desde o momento em que permitiram que esse fogo abrisse ca­
minho através dos sentidos, não sabem que não lhe podem traçar
outro? Os longos e tíbios sermões de um pedante conseguirão apa­
gar no espírito do pupilo a imagem dos prazeres que ele concebeu?
Afastarão do seu coração os desejos que o atormentam? Arrefece­
rão o ardor de um temperamento cuja utilização ele conhece?Não
se irá irritar com os obstáculos que se opõem à única felicidade que
pode imaginar? E, na dura lei que lhe prescrevem sem consegui­
rem que ele a compreenda, que verá ele, a não ser o capricho e o ódio
de um homem que se esforça por atormentá-lo? Será de estranhar
que se revolte e que, por sua vez, também odeie o mestre?
Compreendo que, mostrando-se condescendente, se consiga
ser mais bem suportado e conservar uma aparente autoridade.
Mas não compreendo para que serve a autoridade que se conserva
sobre o pupilo, unicamente fomentando os vícios que ela deveria
reprimir; é como se, para acalmar um cavalo fogoso, o cavaleiro o
obrigasse a atirar-se para um precipício.
Longe de ser um obstáculo para a educação, esse fogo do ado­
lescente serve para que ela se complete e se consuma; é ele que vos
dá um poder sobre o coração do jovem, quando este deixa de ser me­
nos forte que vós. Os seus primeiros afectos são as rédeas com as
quais podereis dirigir todos os seus movimentús: era livre e vejo-o
subjugado. Enquanto não amava nada, dependia apenas dele mes­
mo e das suas necessidades; a partir do momento em que começa
a amar, fica dependente dos seus afectos. Deste modo se formam
os primeiros elos que o unem à sua espécie. Dirigindo para ela a sua
sensibilidade nascente, não imagineis que esta começará por
abranger todos os homens, e que essa expressão de género h uma- 33

L. B. S24 - 3
no signifique alguma coisa paraela. Não,essa sensibilidade come­
çará por se limitar aos seus semelhantes; e os seus semelhantes
não serão pessoas que ele não conhece, mas aquelas com as quais
tem ligações, aquelas que o hábito lhe tornou caras ou necessárias,
aquelas que, evidentemente, ele vê que têm maneiras de pensar e
de sentir iguais às dele, aquelas que ele vê expostas às mesmas pe­
nas que ele já experimentou, em resumo, aquelas para as quais a
identidade de natureza, mais manifestada, lhe dá uma maior dis­
posição para amar. Só depois de ter cultivado o seu natural de mil
maneiras, depois de muitas reflexões sobre os seus próprios sen­
timentos e sobre os que observar nos outros, ele poderá conseguir
generalizar as suas noções individuais sob a ideia abstracta de
humanidade, e juntar - às suas afeições particulares - as que o
podem identificar com a sua espécie.
Ao tornar-se capaz de afecto, torna-se sensível ao dos outros1
e, por isso mesmo, atento aos sinais desse afecto. Vedes que novo
domínio ireis adquirir sobre ele? Quantas correntes pusestes em
volta do seu coração, sem que ele desse por isso! ? O que ele não irá
sentir, quando - ao abrir os olhos sobre si mesmo - vir o que fi­
zestes por ele; quando se puder com parar aos outros jovens da sua
idade e comparar-vos com os outros governantes! Digo quando e­
le vir, mas não lho digais; se lho disserdes, ele não o poderá ver. Se
exigirdes dele obediência - em retribuição dos cuidados que lhe
prodigalizastes -imaginará que o enganastes: para consigo mes­
mo, dirá que, fingindo ser-lhe prestável desinteressadamente, o
pretendestes carregar com uma dívida e acorrentá-lo através de
um contrato em que ele não consentiu. Será em vão que acrescen­
tareis que o que dele exigis é unicamente para seu bem: exigis, no
fim de contas, e exigis em virtude do que fizestes sem o seu consen­
timento. Quando um infeliz recebe o dinheiro que se finge dar-lhe,
e se encontra comprometido mesmo sem o saber, dizeis que isso é
uma injustiça: não sereis ainda mais injusto quando pedis ao vos­
so pupilo que vos pague os cuidados que ele não vos pediu?
A ingratidão seria mais rara se os benefícios usurários fossem
menos conhecidos. Gostamos daquilo que nos faz bem; é um sen­
timento tão natural! A ingratidão não está no coração do homem,
mas o interesse sim: há menos obrigados ingratos que benfeitores
interessados. Se me quereis vender os vossos dons, eu discutirei o
seu preço; mas, se fingis que mos dais para, em seguida, mos fazer-

1 O afecto pode dispensar a retribuição; a amizade nunca. Ela é uma


troca, um contrato como outro qualquer; mas é o mais santo de todos .A pa­
lavra amigo não tem nenhuma outra que a defina, além de si mesma. To­
do o homem que não for amigo do seu amigo é, sem dúvida nenhuma, um
velhaco; pois só retribuindo ou fingindo que se retribui a amizade se con-
34 segue obtê-la.
des pagar ao preço que vos convém, praticais uma fraude: é o se­
rem gratuitos que os torna inestimáveis. O coração só recebe leis
de si mesmo; ao pretendermos acorrentá-lo, afastamo-lo; acorren­
tarrio-lo, se o deixarmos livre.
Quando o pescador lança o isco à água, o peixe vem e anda à sua
volta, sem desconfiança; mas quando,preso no anzol que estava es­
condido por debaixo do isco, ele sente puxar a linha, debate-se e
quer fugir. O pescador é o benfeitor? O peixe é ingrato. Algumavez
se viu que um homem esquecido pelo seu benfeitor o esqueça? Pelo
contrário, fala sempre dele com prazer, não o recorda sem enter­
necimento: se tiver a oportunidade de, através de qualquer servi­
ço inesperado que lhe possa prestar, lhe mostrar que se lembra dos
que dele recebeu, com que satisfação interior satisfará a sua gra­
tidão!? Com que doce alegria se dará a reconhecer! Com que entu­
siasmo lhe dirá: «Chegou a minha vez!» Eis verdadeiramente a voz
da natureza; nunca um verdadeiro acto benfazejo fez um ingrato.
Por conseguinte, se o reconhecimento é um sentimento natu­
ral, e se vós não destruirdes o seu efeito cometendo um erro,podeis
ter a certeza de que - desde o momento em que não lhes tiverdes
atribuído um preço -, começando a estimar-lhe o valor, o vosso
pupilo ficará sensível aos vossos cuidados, e que, no seu coração,
eles vos darão uma autoridade que nada poderá destruir. Mas,
antes de vos terdes assegurado desta vantagem, evitai perdê-la fa­
zendo-vos valer perante ele. Gabar-lhe os serviços que lhe prestais
é tornar-lhos insuportáveis; esquecê-los é fazer-lhos lembrar.
Até ao momento em que o devereis tratar como um homem, que
nunca se fale do que ele vos deve mas unicamente do que se deve
a si próprio. Para o tornardes dócil,dai-lhe toda a liberdade; escon­
dei-vos, para que ele vos procure; elevai a sua alma até ao nobre
sentimento da gratidão, falando-lhe sempre do seu interesse. Não
quis que lhe dissessem que o que se faz por ele é pelo seu bem, an­
tes que ele tivessse idade para o compreender; nesse discurso, ele
apenas teria desejado a vossa dependência, e ter-vos-ia conside­
rado unicamente como seu criado. Mas, agora,quando ele começa
a sentir o que é amar, também sente o doce elo que pode unir um
homem ao que ele ama; e, no zelo com que constantemente vos
ocupais dele, deixa de ver a dedicação de um escravo para só ver
o afecto de um amigo. Ora, não há nada que tenha tanto peso so­
bre o coração humano como a voz da amizade bem reconh�cida;
porque se sabe que ela só nos fala no nosso próprio interesse. E pos­
sível crer-se que um amigo se engana, mas não que ele nos quei­
ra enganar. Por vezes, resiste-se aos seus conselhos, mas nunca
eles são desprezados.
Falemos, finalmente, da ordem moral: acabamos de dar um
segundo passo de homem. Se aqui fosse o lugar próprio para isso,
tentaria mostrar como dos primeiros movimentos do coração se
elevam as primeiras vozes da consciência, e como as primeiras no- 35
ções do bem e do mal nascem dos sentimentos de amor e de ódio:
demonstraria quejustiça e bondade não são unicamente duas pa­
lavras abstractas, puros seres morais, foramados pelo entendi­
mento, mas sim verdadeiras afecções da alma iluminada pela ra­
zão, que não são mais do que um progresso ordenado das nossas
afecções primitivas; que, unicamente pela razão, independente­
mente da consciência, não se pode estabelecer nenhuma lei natu­
ral; e que todo o direito da natureza não passa de uma quimera, se
não for baseado numa necessidade natural do coração humano1•
Mas, aqui, parece-me que não tenho de fazer tratados de metafísi­
ca ou de moral nem de dar cursos de nenhuma espécie de m atéria;
basta-me m arcar a ordem e o progresso dos nossos sentimentos e
dos nossos conhecimentos, em relação à nossa constituição. Talvez
haj a outros que se encarreguem de demonstrar o que eu me limi­
to a apontar.
Como, até agora, o meu Emílio só tem olhado para si mesmo,
o primeiro olhar que lança sobre os seus semelhantes leva-o a com­
parar-se com eles; e o primeiro sentimento que essa comparação
excita nele é o desejo de ocupar o primeiro lugar. Eis o ponto em que
o amor por si mesmo se transforma em amor-próprio, e em que
começam a nascer todas as paixões relacionadas com essa. Mas,
para decidir se as paixões que dominarão no seu carácter serão hu­
m anas e doces ou cruéis e malfazejas, se serão paixões de benevo­
lência e de comiseração ou de inveja e de cobiça, é preciso saber em
que lugar ele se sentirá quando entre os h omens, e quais os géne­
ros de obstáculos que poderá querer vencer para alcançar aquele
que quer ocupar.

1 O próprio preceito de proceder para com os outros do modo como


queremos que procedam para connosco tem como verdadeiros fundamen­
tos a consciência e o sentimento; pois, sendo eu, qual é o verdadeiro mo­
tivo que tenho para agir como se fosse outro, sobretudo quando estou mo·
ralmente convencido de que nunca me virei a encontrar na mesma situa­
ção? E quem me garantirá que -·obedecendo fielmente a esta máxima ­
obterei que procedam do mesmo modo em relação a mim? O mau tira van·
tagens da probidade do justo e da sua própria injustiça; convém-lhe bas­
tante que todos sejamjustos, excepto ele. Seja o que for que disserem, es­
se acordo não é muito vantajoso para as pessoas de bem. Mas quando a for­
ça de uma alma comunicativa me indentifica com o meu semelhante, e eu
me sinto, por assim dizer, nele, é para não sofrer que desejo que ele não
sofra; interesso-me por ele por amor por mim, e a razão deste preceito es­
tá na própria natureza que me inspira o desejo do meu bem-estar, sej a on­
de for que eu me sinta a existir. De onde concluo que não é verdade que os
preceitos da lei natural se baseiem unicamente na razão: têm uma base
mais sólida e mais segura. O amor pelos homens, derivado do amor por si
mesmo, é o princípio da justiça humana. O resumo de toda a moral é da­
3 6 do no Evangelho, pelo da lei.
Para o dirigir nesta busca, depois de lhe ter mostrado os
homens pelos acidentes comuns à espécie, agora é preciso mos­
trar-lhos pelas suas diferenças. Aqui, entra em cena a medida da
desigualdade natural e civil e a descrição de toda a ordem social.
E preciso estudar a sociedade através dos homens, e os homens
através da sociedade: aqueles que quiserem tratar separadamen­
te da política e da moral nunca compreenderão nada, nem de uma
nem da outra. Começando por observar as relações primitivas,
vê-se como os homens se devem sentir afectados por elas, e as
paixões a que elas dão origem; vê-se que, reciprocamente, é pelo
progressq das paixões que essas relações se multiplicam e se es­
treitam. E menos a forca dos braços que a moderação dos corações,
o que torna os homens independentes e livres. Aquele que deseja
pouca coisa afeiçoa-se a pouca gente; mas, confundindo sempre os
nossos fúteis desejos com as nossas necessidades físicas, aqueles
que fizeram destas últimas os fundamentos da sociedade humana
têm sempre tomado os efeitos pelas causas e não fizeram mais do
que baralhar todos os seus raciocínios.
No estado natural, há uma verdadeira e indestrutível igual­
dade de facto, porque nesse estado é impossível que a única dife­
rença de um homem para outro seja suficientemente grande para
tornar um dependente do seu semelhante. No estado civil há uma
igualdade de direito que é quimérica e vã, porque os meios des­
tinados para a manter servem para a destruir, e porque a força
pública - que apoia o mais forte, para oprimir o fraco - quebra
a espécie de equilíbrio em que a ntureza os colocara1 • Desta primei­
ra contradição, derivam todas as que se observam na ordem civil,
entre a aparência e a realidade. A quantidade será sempre sacrifi­
cada ao pequeno número, e o interesse público ao interesse parti­
cular; estes nomes especiosos de justiça e de subordinação servirão
sempre de instrumentos para a violência e de armas para a iniqui­
dade: daí se segue que as várias ordens que se pretendem úteis aos
outros só são efectivamente úteis a si mesmas, à custa dos outros;
por aí, deveremos julgar da consideração que lhes é devida,
consoante a justiça e a razão. Resta saber se a categoria que se atri­
buíram a si mesmas é mais favorável para a felicidade daqueles
que a ocupam, para saber qual o juízo que cada um de nós deverá
fazer sobre o seu próprio destino. Eis, agora, o estudo que nos in­
teressa; mas, para bem o fazer, é necessário começar por conhecer
o coração humano.
Se apenas se tratasse de mostrar aos jovens o homem pela sua
máscara, não seria preciso fazê-lo, porque eles o poderiam ver

1 O espírito universal das leis de todos os países é favorecer sempre


o forte contra o fraco, e aquele que possui contra aquele que não tem na-
da: este inconveniente é inevitável e não tem excepção. 37
constantemente; mas, como a máscara não é o homem e como con­
vém que o seu verniz não os seduza quando lhes descrevemos os ho­
mens, descrevei-lhos tais como eles são, não para que eles os
odeiel]l mas para que os lamentem e não se queiram parecer com
eles. E este, na minha opinião, o sentimento mais corrente que o
homem pode ter da sua espécie.
Em vista disso, importa que enveredemos por um caminho
oposto àquele que até agora temos seguido, e que instruamos o jo­
vem, não com a sua experiência mas com a de outra pessoa. Se os
homens o enganarem, ele odiá-los-á; mas se, respeitado por eles,
os vê enganarem-se mutuamente, terá piedade deles. «Ü espec­
táculo do mundo>>, dizia Pitágoras, «parece-se com o dos jogos
olímpicos: há os que instalam uma barraca e só pensam no seu pro­
veito, e os que fazem os esforços e procuram alcançar a glória; ain­
da há aqueles que se contentam em ver os jogos, e esses não são os
piores.
Considero que se devem escolher as frequentações de um jo­
vem, de tal modo que ele pense bem dos que vivem com ele; e que
se lhe deve ensinar tão bem a conhecer o mundo que ele pense mal
de tudo quanto nele se faz. Que ele saiba que o homem é natural­
mente bom, que o sinta, que julgue o seu próximo por si mesmo;
mas que também veja como a sociedade deprava e perverte os ho­
mens; que encontre nos preconceitos deles a origem de todos os ví­
cios; que seja impelido a estimar cada indivíduo por si, mas que
despreze a multidão; quevejaque todos os homens trazem mais ou
menos a mesma máscara, mas que também saiba que há rostos
mai� belos que as máscaras que os cobrem.
E preciso confessar que esse método tem os seus inconvenien­
tes e não é fácil de praticar; pois, se o jovem se tornar observador
quando ainda é excessivamente novo, se o exercitardes a espiar, de
muito perto, as acções de outrém, torná-l�is maldizente e satí­
rico, decisivo e com propensão para ajuizar; experimentará um
prazer odioso em procurar sinistras interpretações para tudo, em
não ver o bem mesmo naquilo que é bem. Pelo menos, acostumar­
-se-á ao espectáculo do vício e a ver os maus sem horror, como nos
acostumamos a ver os infelizes sem sentir piedade. Em breve a
perversidade geral lhe servirá menos de lição que de desculpa: di­
rá, para consigo mesmo, que se o homem é assim, ele não deverá
desejar ser diferente.
Se o quereis instruir por princípio e dar-lhe a conhecer -com
a natureza do coração humano -a aplicação das causas externas
que transformam as nossas tendências em vícios, ao transpor­
tá-lo, assim, bruscame nte , dos objectos sensíveis para os objectos
intelectuais, tereis de utilizar uma metafísica que ele não se encon­
tra em estado de compreender; recaireis no inconveniente - até
agora tão cuidadosamente evitado - de lhe dar lições que se pa-
38 recem com lições, de substituir, no seu espírito, a experiência e a
autoridade do mestre pela sua própria experiência e pelo progres­
so da sua razão.
Para abater simultaneamente estes dois obstáculos e para
colocar o coração humano ao seu alcance, sem me arriscar a es­
tragar o seu, gostaria de lhe mostrar os homens, de longe, de lhos
mostrar noutras épocas ou noutros lugares, e de maneira que ele
visse a cena sem nunca nela poder tomar parte. Eis o momento da
História; será através dela que ele lerá nos corações sem as lições
da Filosofia; será através dela que ele os verá, simples espectador,
sem interesse nem paixão, como se fosse o seu juiz, e não como seu
cúmplice nem como seu acusador.
Para conhecer os homens, é preciso vê-los agir. No mundo,
ouvimo-los falar; mostrarh os seus discursos e escondem as suas
acções: mas, na História, elas são desvendadas e julgamo-los pe­
lo que fizeram. Mesmo os seus propósitos ajudam a apreciá-los;
pois, comparando o que fazem com o que dizem, vê-se o que são e
o que querem parecer:. quanto mais se disfarçam, mais bem os fi­
camos a conhecer.
Infelizmente, este estudo contém 9s seus perigos, os seus in­
convenientes de mais de uma espécie. E difícil colocarmo-nos num
ponto de vista de onde possamos ajuizar dos nossos semelhantes,
com equidade. Um dos grande vícios da História é descrever os
homens muito mais frequentemente pelos seus maus lados que
pelos bons; como ela só é interessante pelas revoluções, pelas
catástrofes, desde o momento em que um povo se desenvolve e
prospera na calma de um governo pacífico, não nos fala dele; só
começa a considerá-lo importante quando, já não podendo bas­
tar-se a si próprio, este se mete nos assuntos dos seus vizinhos ou
deixa os vizinhos meterem-se nos seus; só o ilustra quando ele já
está no seu declínio: todas as nossas Histórias começam por onde
deveriam ter acabado. Temos muito exactamente a dos povos que
se destroem; o que nos falta é a dos povos que se desenvolvem; são
bastante felizes e bastante sages para que ela nada tenha a dizer
sobre eles; e, efectivamente, vemos, mesmo actualmente, que os
governos que melhor se conduzem são aqueles de que menos se fa­
la. Por conseguinte, só sabemos o mal; o bem quase não é referido.
Só os maus são célebres; os bons são esquecidos ou ridicularizados:
e eis como a História, assim como a Filosofia, calunia constante­
mente o género humano.
Além disso, há uma grande diferença entre os factos narrados
pela História e os mesmos factos, tais como se passaram: mudam
de forma, na cabeça do historiador, moldam-se aos seus inte­
resses, adquirem a cor dos seus preconceitos. Quem é que sabe
transportar o leitor para o local exacto da cena, para ele assistir a
um espectáculo que lá se tenha passado? A ignorância ou a par­
cialidade disfarçam tudo. Sem alterar um traço histórico, unica­
mente ampliando ou reduzindo circunstâncias que a ele·se ligam, 39
quantos aspectos diferentes se lhe podem dar! Colocai o mesmo
objecto em vários pontos diferentes, que ele mal parecerá ser o
mesmo; ora, a única coisa que mudou foi o olho do espectador. Para
honrar a verdade, bastará contar-me um facto verdadeiro fazen­
do-mo ver diferentemente do que ele aconteceu? Quantas vezes
uma árvore a mais, ou a menos, um rochedo à direita, ou à esquer­
da, um turbilhão de pó levantado pelo vento decidiram o resulta­
do de um combate sem que ninguém se tivesse apercebido disso!
Mas isso impedirá que o historiador vos diga a causa da derrota e
da vitória, com tanta certeza como se tivesse assistido a tudo? Ora,
que me importam os factos por si mesmos, quando a razão deles
permanece desconhecida para mim? E que lições poderei retirar de
um acontecimento cujas causas ignoro? O historiador cita-me
uma, mas é imaginada por ele; e a própria crítica, de que tanto se
fala, não passa de uma arte de fazer conjecturas, da arte de esco­
lher, entre várias mentiras, a que mais se parece com a verdade.
Nunca lestes Cleópatra, ou Cassandra, ou qualquer outrolivro
do mesmo género? O autor escolhe um caso conhecido; depois,
adaptando-o às suas ideias, ornamentando-o com pormenores da
sua invenção, com personagens que nunca existiram e com retra­
tos im aginários, acumula ficções sobre ficções, para tornar a lei tu­
ra interessante. Não vejo grande diferença entre esses romances
e as vossas histórias, a não ser que o romancista se entrega mais
à sua imaginação, e que o historiador se submete mais à de outrém:
a isso acrescentarei, se quiserdes, que o primeiro se propõe um ob­
jecto moral, bom ou mau, com que o outro pouco se preocupa.
Dir-me-ão que a fidelidade da História interessa menos que
a verdade dos costumes e dos caracteres; que, contanto que o cora­
ção humano esteja bem descrito, pouco interessa se os aconteci­
meu tos são, ou não, fielmente contados: «porque, no fim de contas»,
acrescentam, «que nos importam os factos que acontecerem há
dois mil anos?» Têm razão, se os personagens forem bem descritos;
mas se a maioria deles só traduzir o modelo que está na imagina­
ção do historiador, não será cair no inconveniente que se preten­
dia evitar e ceder à autoridade dos escritores o que se quer retirar
à do mestre? Se o meu pupilo só tiver de ver quadros de fantasia,
prefiro que estes sejam traçados pela minha mão que por outra
mão qualquer; pelo menos, ser-lhe-ão mais apropriados.
Para um jovem, as piores histórias são aquelas que ajuízam.
Os factos! Os factos! E que seja ele a ajuizar; é dessa maneira que
aprende a conhecer os homens. Se a opinião do autor o guia cons­
tantemente, ele limita-se a ver pelos olhos de outrém; e, se esses
olhos lhe faltarem, deixa de ver seja o que for.
Não me refiro aqui à História moderna, não só porque ela já
não tem fisionomia e porque os nossos homens se parecem todos
uns com os outros, mas porque os nossos historiadores - unica-
40 mente preocupados em brilhar -se limitam a fazer retratos mui-
to coloridos que, muitas vezes, não representam nada1• Em geral,
os antigos fazem menos retratos, põem menos espírito e mais sen­
so nos seus j uízos; mas, entre eles, ainda há uma grande escolha
a fazer e não se deve começar por escolher os mais judiciosos, mas
os mais simples. Eu não seria capaz de pôr nas m ãos de um jovem
livros de Políbio ou de Salústio; Tácito é o livro dos velhos; osjovens
não o podem compreender: é preciso aprender a ver, nas acções hu­
m anas, os primeiros traços do coração do homem, antes de desejar
sondar as suas profundezas; é preciso saber ler muito bem nos
factos, para poder ler nas máximas. A filosofia em m áximas só con­
vém à experiência. Ajuventude não deve generalizar nada: toda a
sua instrução deve ser feita segun do regras especiais.
Tucídides é, ao que me parece, o verdadeiro modelo dos histo­
riadores. Transmite os factos, sem osjulgar; mas nãoomite nenhu­
ma circunstânciaque seja própria para nos deixar fazer o nossojuí­
zo pessoal. Coloca tudo quanto conta sob os olhos do leitor; longe
de se interpor entre os acontecimentos e os leitores, esquiva-se.
Deixamos de crer que estamos a ler: supomos que estamos a ver.
Infelizmente, fala-nos sempre de guerra, e, em todos os seus rela­
tos, quase só vemos a coisa menos instrutiva do mundo, isto é, os
combates. A Retirada dos Dez Mil e Os Comentários de César
contêm mais ou menos a mesma sageza e o mesmo defeito. O bom
Heródoto, sem retratos, sem máximas, mas razoável, mas ingé­
nuo, cheio de pormenores dignos de interesse e que agradam, tal­
vez fosse o melhor dos historiadores, se - muitas vezes - esses
mesmos pormenores não degenerassem em simplicidades pueris,
mais próprias para estragar o gosto da juventude que para a
formar: já é preciso um certo discernimento para o ler. Por agora,
nada digo sobre Tito-Lívio: falarei dele mais tarde; mas ele é po­
lítico, é enfático, é tudo o que não convém para essa idade.
Em geral, a História é defeituosa, porque só regista aconteci­
mentos sensíveis e marcados, que se podem fixar por nomes, por
lugares, por datas; mas as causas lentas e progressjvas desses
acontecimentos mantêm-se sempre desconhecidas. E frequente
que, numa batalha ganha ou perdida, se encontre a razão de uma
revolução que, mesmo antes dessa batalha, j á se tornara inevi­
tável. A guerra não faz mais que relatar acontecimentos já de­
terminados por causas morais que os historiadores raramente são
capazes de ver.
O espírito filosófico virou para este lado as reflexões de vários
escritores deste século; mas duvido de que a verdade ganhe
alguma coisa com o seu trabalho. Como todos eles se deixaram

1 Vede Dávila, Guicciardini, Strada, Solis, Maquiavel e, porvezes,


o próprio de Thou; Vertor é quase o único que sabia descrever sem fazer
retratos. 41
apoderar pelo furor dos sistemas, nenhum deles procura ver as coi­
sas como elas são, e apresenta-as unicamente da maneira que
melhor se adapta ao seu sistema.
Acrescentai, a todas estas reflexões, que a História mostra
muito mais as acções que os homens, porque só «apanha» estes em
determinados momentos, nas suas vestes de parada; só expõe o
homem público que se arranjou para ser notado: não o descreve
dentro de sua casa, nem no seu gabinete, nem no seio da sua famí­
lia, nem entre os seus amigos; apenas no-lo mostra quando ele re­
presenta: o que ela descreve são mais as vestes que o homem.
Gostaria muito mais da leitura das vidas íntimas, para iniciar
o estudo do coração humano; porque, nesse caso, por mais que o
homem se esquive, o historiador persegue-o por toda a parte; não
lhe deixa um momento de descanso, nenhum cantinho onde se es­
conder a evitar o olhar penetrante do espectador; e é quando um
deles crê estar mais bemescondido que o outro melhor o dá a conhe­
cer. «Aqueles••, diz Montaigne, «que escrevem biografias, que se de­
dicam mais aos conselhos que aos acontecimentos, mais ao que
parte do interior que ao que chega ao exterior, são os que me
agradam mais: eis por que, em todas as coisas, Plutarco é o meu
prefçrido.»
E verdade que o carácter dos homens agrupados ou o dos po­
vos é muito diferente do carácter do homem em particular, e que
seria conhecer muito mal o coração humano não o observar tam­
bém quando se encontra no meio da multidão; mas também é ver­
dade que se deve começar por estudar o homem para ajuizar dos
homens, e que quem conhecesse perfeitamente as tendências de
cada indivíduo poderia prever todos os seus esforços combinados
no coração do povo.
Neste caso, ainda é preciso recorrer aos antigos, pelas razões
que já citei, e, além disso, porque como todos os pormenores fami­
liares e vis - mas verdadeiros e característicos - estão banidos
do estilo moderno, os autores descrevem os homens na vida priva­
da do mesmo modo que na cena do mundo. A decência, não menos
severa nos escritos que nas acções, já não permite dizer em públi­
co o que permite que em público se faça; e como só é possível mos­
trar os homens a representar, não os conhecemos melhor pelos li­
vros que pelas nossas peças de teatro. Por mais que se descrevam
e redescrevam as vidas dos reis, nunca mais teremos Suetónios1•
Plutarco distingue-se por esses mesmos pormenores em que já
não nos atrevemos a entrar. Tem uma graça inimitável, para

1 Um único dos nossos historiadores, que imitou Tácito nas grandes


linhas, se atreveu a imitar Suetónio e, por vezes, a transcrever Comines
nas pequenas; e, mesmo isso - que aumenta o valor do seu livro -, fez
42 que, entre nós, ele fosse criticado.
descrever os grandes homens nas pequenas coisas; e escolhe tão a
propósito os seus traços que, frequentemente, uma palavra, um
sorriso ou um gesto são-lhe suficientes para caracterizar o seu he­
rói. Com uma frase agradável, Aníbal tranquiliza o seu exército as­
sustado e fá-lo avançar, rindo, para a batalha que travou com a
Itália; Agésilas, a cavalo num pau, faz-me gostar do vencedor do
grande rei; César, atravessando uma pobre aldeia e conversando
com os seus amigos, descobre - sem querer :- o traidor que dizia
só pretender ser o igual de Pompeu; Alexandre engole um medica­
mento, sem dizer uma única palavra: é o rnais belo momento da sua
vida; Aristides escreve o seu próprio nome numa concha, e justifi­
ca, desse modo, o seu cognome; Filofemo, depois de tirar o manto,
corta madeira na cozinha do seu anfitrião. Eis a verdadeira arte de
pintar. A fisionomia não se mostra nos grandes traços, nem o ca­
rácter nas grandes acções; é nas ninharias que o natural se reve­
la. As coisas públicas ou são excessivamente comuns ou excessiva­
mente afectadas, e é quase unicamente por estas que a dignidade
moderna permite que os nossos autores se interessem.
Um dos maiores homens do século passado foi, incontestavel­
mente, o senhor de Turenne. Houve quem tivesse tido a coragem
de tornar a sua vida interessante com pequenos pormenores que
o dão a conhecer e o fazem ser amado; mas quantos se tiveram de
suprimir, que nos teriam permitido melhor o conhecer e apreciar!?
Limitar-m�i a citar um, em cujaorigemme posso fiar, e quePlu­
tarco não teria deixado de omitir, mas que Ramsai nunca se teria
privado de escrever, se dele tivessem tido conhecimento.
Num dia muito quente de Verão, o visconde de Turenne, com
o seu casaquinho branco e o boné, põe-se à janela da sua antecf!­
mara: é visto por um dos seus criados, que, enganado por aquelas
vestes, o toma por um ajudante de cozinha com o qual tinha inti­
midade. Aproxima-se - pé ante pé - pelas costas do visconde, e,
com uma mão que não era leve, aplica-lhe uma grande palmada
nas nádegas.
O homem atingido vira-se imediatamente. O criado, tremen­
te, vê o rosto do seu amo. Cai de joelhos, completamente desvaira­
do: «Monsenhor, pensei que fosse George.» «Mas, mesmo que tives­
se sido George;>, exclama Turenne, <<não precisavas de bater com
tanta forçai>> E então isto que não vos atreveis a contar, miserá­
veis? Continuai, pois, a não ter naturalidade, a não ter entranhas;
temperai, endurecei os vossos corações de ferro, na vossa vil decên­
cia; tornai-vos desprezíveis com a vossa pretensa dignidade. Mas
tu, jovem que lês estas linhas, e que te sentiste compadecido com
· toda a doçura de almaque elas mostram, logo no primeiromomen­
to, lê também as mesquinhices desse homem, desde que se trata­
va do seu nascimento e do seu nome. Pensa que era o mesmo Tu­
renne que afectava ceder, em tudo, o passo ao seu sobrinho, a fim
de que todos vissem que essa criança era o chefe de uma casa so- 43
berana. Compara estes contrastes, ama a natureza, despreza a
opinião, e conhece o homem.
Há bem poucas pessoas capazes de conceder os efeitos que
leituras assim dirigidas podem exercer no espírito completamente
inocente de um jovem. Desde a nossa infância mergulhados nos
livros, acostumados a ler sem pensar, o que lemos atinge-nos tanto
menos quanto - como já transportamos em nós mesmos as
paixões e os preconceitos que enchem a História e as vidas dos
homens -tudoo que eles fazem nos parece natural, porque nos en­
contramos fora da natureza, e porque julgamos os outros por nós.
Mas imaginem o que se poderá passar com um jovem que foi edu­
cado consoante as minhas máximas - como, por exemplo, o meu
Emílio -e para o qual dezoito anos de assíduos cuidados não tive­
ram outro objectivo que não fosse o de conservar um juízo íntegro
e um coração puro; imaginem-no ao levantar do pano, lançando
pela primeira vez a vista sobre a cena do mundo, ou antes, coloca­
do atrás dos bastidores, vendo os actores enfiarem e despirem as
suas vestes, e contando as cordas e as polés com que o grosseiro
prestígio engana os olhos dos espectadores: muito depressa, à sua
primeira surpresa sucederão os movimentos de vergonha e de
desdém pela sua espécie; sentir-se-á indignado por ver o género
humano iludir-se a si mesmo desse modo e aviltar-se nessesjogos
de crianças; sentir-se-á afligido ao ver os seus semelhantes dila­
cerarem-se uns aos outros por sonhos, e transformarem-se em
animais ferozes por não se saberem contentar com ser homens.
Certamente, com as disposições naturais do pupilo -por me­
nos prudência e escolha que o mestre ponha nas suas leituras, por
menos que ele o coloque na via das reflexões que deve retirar de­
las-, esse exercício será, para ele, um curso de filosofia prática,
certamente melhor e mais bem compreendido que todas as vãs
especulações com que se baralham os espíritos dos jovens, nas
nossas escolas. Quando, depois de ter seguido os romanescos
projectos de Pirro, Cíneas lhe pergunta qual o verdadeiro bem que
lhe proporcionará a conquista do mundo, bens de que ele não po­
de desfrutar imediatamente sem precisar de passar por tantos tor­
mentos, nisso apenas vemos um bom dito de espírito. Mas, para
Emílio, essa pergunta representará uma reflexão muito sage, que
ele teria sido o primeiro a fazer, e que nunca se apagará do seu es­
pírito, porque neste não encontrará nenhum preconceito contrário
que impeça essa impressão. A seguir - quando tiver lido a vida
desse insensato e vir que todos os seus grandes projectos tiveram
como resultado deixar-se matar pela mão de uma mulher - em
vez de admirar esse pretenso heroísmo, o que verá ele em todas as
proezas de um tão grande capitão, a não ser todos os passos que ele
deu para ir buscar essa maldita telha que deveria pôr fim à sua vi­
da e aos seus projectos, com uma morte desonrosa?
44 Nem todos os conquistadores foram assassinados; nem todos
os usurpadores falharam nos seus empreendimentos; muitos deles
parecerão felizes aos espíritos prevenidos com as opiniões vulga­
res: mas aquele que, sem se importar com as aparências, só ava­
lia a felicidade dos homens pelo estado dos respectivos corações,
verá as suas misérias nos seus próprios sucessos; verá os seus de­
sejos e as suas preocupações torturantes alastrarem e crescerem
com a sua fortuna; vê-los-á perder fôlego avançando, sem nunca
atingirem os seus fins, vê-los-á semelhantes a esses viajantes
inexperientes que, penetrando pela primeira vez nos Alpes, pensam
atravessá-los a cada montanha, e que, quando chegam ao cume de
uma, vêem, desanimados, outras montanhas mais altas na sua
frente.
Após ter submetido os seus concidadãos e destruído os seus ri­
vais, Augusto governou durante quarenta anos o m aior império
que jamais existiu: mas todo esse imenso poder não o impedia de
bater com a cabeça nas paredes e de atordoar com gritos todo o seu
imenso palácio, pedindo a Varus que lhe devolvesse as suas legiões
exterminadas. Mesmo que tivesse vencido todos os seus inimigos,
de que lhe teriam servido os seus vãos triunfos, pois problemas de
todos os géneros surgiam constantemente em seu redor, que os
seus mais queridos amigos atentavam contra a sua vida e que ele
se via reduzido a chorar a morte ou a desonra de todos os que lhe
eram mais queridos? O infeliz quis governar o mundo, mas nem
sequer sabia governar a sua própria casa! Quais foram as conse­
quências dessa negligência? Viu morrer, na flor da idade, o seu
sobrinho, o seu filho adoptivo, o seu genro; o próprio neto viu-se
obrigado a comer o enxergão em que dormia para poder prolongar,
durante mais algumas horas, a sua vida miserável; sua filha e sua
neta, depois de o terem coberto com a sua infâmia, morreram: uma
de miséria e de fome, numa ilha deserta, e a outra na prisão, atin­
gida por um archeiro. Finalmente, ele próprio, último membro da
sua desgraçada família, ficou reduzido, pela própria mulher, a só
deixar como descendente um monstro que lhe sucedesse. Tal foi o
destino des;;e dono do mundo tão celebrado pela sua glória e pela
sua sorte. E-me impossível acreditar que, de entre aqueles que
lhas admiram, haja um único que estej a disposto a adquiri-las, se
para isso tiver de pagar o mesmo preço.
Escolhi o exemplo da ambição; mas o jogo de todas as paixões
humanas apresentam lições semelhantes a todos os que preten­
dem estudar a História para se conhecerem e tornarem sages, à
custa dos mortos. Aproxima-se o tempo em que a vida de António
constituirá, para o jovem, uma instrução m ais aceitável que a de
Augusto. Durante os próximos estudos, Emílio não se reconhece-
rá nos estranhos objectos que se lhe apresentarão diante dos olhos;
m as, de antemão, saberá afastar a ilusão das paixões, antes mes­
mo de elas terem nascido; e, considerando que, em todas as épocas,
elas cegaram os homens, estará prevenido da forma como o pode- 45
riam cegar a si mesmo, se jamais se viesse a entregar a alguma de­
las1. Bem sei que estas lições não são apropriadas para ele; talvez,
em última análise, serão tardias,insuficientes: mas recordai-vos
de que não são as que pretendi retirar deste estudo. Ao iniciá-lo,
tinha outro objectivo em mente; e certamente que, se esse objecti­
vo nãofor completamente atingido,a culpa será apenas do mestre.
Considerai que logo que o amor-próprio se encontra desenvol­
vido, o eu relativo se põe constantemente em jogo e que o jovem
nunca mais observa os outros sem pensar em si mesmo e compa­
rar-se a eles. Por conseguinte, o importante é saber a categoria em
que ele se colocará em relação aos outros, depois de os ter exami­
nado. Pela maneira como se ensina a História aos jovens, vejo que
eles se vão transformando, por assim dizer, em todos os persona­
gens que vêem, e que os mestres se esforçam por torná-los, ora Cí­
cero,ora Trajano, ora Alexandre; que os desencorajam quando eles
voltam a ser eles mesmos,que criam, em todos, o desgosto de se­
rem apenas o que são. Este método tem certas vantagens que não
critico; mas,quanto ao meu Emílio,se ele alguma vez chegar a es­
se estado - de preferir ser outro que não ele próprio, quer essou­
tro seja Sócrates ou Catão -, considerarei tudo como perdido:
aquele que começa a sentir-se estranho a si mesmo rapidamente
se esquece de quem é.
Aqueles que melhor conhecem os homens não são os filósofos,
pois só os vêem através dos convencionalismos da Filosofia; e não
conheço nenhum estado em que se tenham tantos. Um selvagem
julga-nos de uma maneira mais sã que um filósofo; este sente os
seus vícios, indigna-se com os nossos, e diz para consigo mesmo:
«Todos nós somos maus••; o outro observa-nos sem se perturbar, e
diz: «Sois loucos.» E tem razão, pois ninguém faz o mal por mal. O
meu pupilo é esse selvagem, com uma única diferença: é que
Emílio,como já reflectiu mais,como já comparou mais ideias,como
já viu os nossos erros de mais perto, está mais atento a si próprio
e só ajuíza do que conhece.
São as nossas paixões que nos irritam contra as dos outros; é
o nosso próprio interesse que nos leva a odiar os maus; se estes não
nos fizessem nenhum mal, sentiríamos por eles mais piedade que
ódio. O mal que os maus nos fazem leva-nos a esquecer o mal que
se fazem a si mesmos. Perdoar-lhes-íamos com mais facilidade os
seus vícios se pudéssemos saber quanto os seus próprios corações
os castigam. Sentimos a ofensa e não vemos o castigo; as vantagens

1 É sempre o preconceito que fomenta, nos nossos corações, a impe­


tuosidade das paixões. Aquele que apenas vê o que existe e que só consi­
dera o que conhece não se apaixona. Os erros dos nossos critérios dão ori­
gem ao ardor de todos os nossos desejos. (Nota encontrada no manuscri-
46 to autógrafo.)
são aparentes, o sofrimento é interior. Aquele que crê gozar do fru­
to dos seus vícios não se sente menos atormentado do que se o não
tivesse conseguido; o objecto muda mas a inquietação é a mesma;
por mais que evidenciem a sua fortuna e escondam o seu coração,
o seu comportamento demostra-o, mesmo sem que o queiram :
mas, para nos apercebermos disso, é preciso que não tenhamos um
coração semelhante.
As paixões que nos dividem seduzem-nos; as que chocam os
nossos interesses revoltam-nos, e, por uma inconsequência que
nos vem delas, criticamos nos outros o que desej aríamos imitar. A
aversão e a ilusão são inevitáveis, quando somos obrigados a su­
portar, por parte de outrém, o m al que faríamos se estivéssemos no
lugar dessa pessoa.
Então, que seria preciso para bem observar os homens? Um
grande interesse em conhecê-los, uma grande imparcialidade ao
julgá-los, um coração bastante sensível para conceber todas as
paixões humanas e suficientemente calmo para não as experi­
mentar. Se, durante a nossa vida, há um momento favorável para
efectuar esse estudo, ele é, sem dúvida, aquele que escolhi para
Emílio: mais cedo, eles ter-lhe-iam sido desconhecidos; mais
tarde, ele assemelhar-se-lhes-ia. A opinião cujo jogo ele observa
ainda não adquiriu nenhum domínio sobre,si; as paixões cujo efei­
to sente ainda não lhe agitaram o coração. E homem, interessa-se
pelos seus semelhantes. Ora, certamente que, se os julgar bem,
não desejará estar no lugar de nenhum deles; pois, como a causa
de todos os tormentos que eles ressentem, reside em preconceitos
que ele não tem, sente-se tranquilo. Para ele, tudo quanto deseja
está ao seu alcance. De quem deveria ele depender, pois se basta
a si mesmo e está livre de preconceitos? Possui braços, tem saúde1,
moderação, poucas necessidades e possibilidades de as satisfazer.
Criado na mais absoluta liberdade, o maior mal que poderia ima­
ginar é a servidão. Lastima esses infelizes reis, escravos de tudo
quanto lhes obedece; lamenta esses falsos sages, amarrados à sua
vã reputação; condói-se desses ricaços idiotas, mártires do próprio
fausto; com padece-se desses voluptuosos de parada que dedicam
a vida inteira ao aborrecimento, para se darem ares de sentir pra­
zer. Apiedar-se-ia do inimigo que lhe fizesse mal, porque, nas
maldades que ele lhe fizesse, veria a sua miséria. Diria para con­
sigo mesmo: «Ao sentir a necessidade de me fazer mal, esse homem
faz depender o seu destino do meu.»
Mais um passo, e atingimos a nossa meta. O amor-próprio é

1 Penso não ser ousadia minha incluir a saúde e a boa constituição


no número das vantagens adquiridas através da sua educação, ou antes,
no número dos dons da natureza que a educação que ele recebeu lhe con-
servou. 47
um instrumento útil, mas perigoso; é frequente ferir a mão que o
utiliza, e raramente faz bem sem mal. Ao considerar a sua catego­
ria na espécie humana, e vendo a boa posição que nela ocupa,
Emílio sentir-s�á tentado a honrar a sua razão com o trabalho da
vossa e a atribuir ao seu mérito o efeito da sua felicidade. Dirá pa­
ra consigo mesmo: «Sou sage, e os homens são loucos.>> Lastiman­
do-os, desprezá-los-á; felicitando-se, estimar-se-á ainda mais;
�' sentindo-se mais feliz que eles, crer-se-á mais digno de o ser.
E esse o erro que mais se deve temer, por ser o mais difícil de des­
truir. Se continuasse nessa disposição, pouco teria ganho com os
nossos cuidados: cá por mim, se tivesse de escolher, não sei se não
preferiria a ilusão dos preconceitos à do orgulho.
Os grandes homens não têm ilusões sobre a sua superioridade;
vêem-na, sentem-na, mas nem por isso deixam de ser modestos.
Quanto mais a têm, mais se apercebem de tudo quanto lhes falta.
Sentem-se menos orgulhosos da sua superioridade sobre nós que
humilhados pelo sentimento da sua miséria; e, nos bens exclusivos
que possuem, a sua sensatez impede-os de se sentirem vaidosos de
um dom que não se fizeram a si mesmos. O homem de bem pode
sentir-se orgulhoso da sua virtude, porque ela lhe pertence; mas
o homem de espírito, de que poderia orgulhar-se? Que foi que fez
Racine, para não ser Pradon? Que foi que fez Boileau, para não ser
Cotin?
Aqui, ainda se trata de outra coisa. Mantenhamo-nos sempre
na ordem com um. No meu pupilo, não supus nem um génio trans­
cendente, nem um entendimento reduzido. Escolhi--o entre os es­
píritos vulgares, para demonstrar o que a educação pode fazer de
um homem. Todos os casos raros são excepções. Portanto, quando
- como consequência dos meus cuidados - Emílio prefere a sua
m aneira de ser, de ver, de sentir, à dos outros homens, acho que ele
tem razão; mas quando, por isso mesmo, ele supõe ser de uma na­
tureza mais excelente e ter nascido com mais sorte que eles, está
enganado; é preciso desenganá-lo, ou antes, evitar esse engano,
receando que não seja já tarde de mais para o fazer desaparecer.
Exceptuando a vaidade, não há loucura nenhuma de que um
homem que não esteja louco se não possa curar; aquela, só a expe­
riência pode corrigir, se é que há alguma m aneira de a corrigir; pe­
lo menos, podemos impedi-la de se desenvolver, quando começa.
Por conseguinte, não percais o vosso tempo com belos raciocínios,
a fim de provar ao adolescente que ele é um homem como os outros
e que está sujeito às mesmas fraquezas que os seus semelhantes.
Fazei-lho sentir, pois se o não fizerdes ele nunca o virá a saber.
Ainda um caso que constitui uma excepção às minhas próprias re­
gras: é o facto de expor voluntariamente o meu pupilo a todos os
acidentes que lhe possam provar que ele não é mais sage que nós.
A aventura do bateleiro bem se poderia repetir de mil maneiras di-
48 ferentes, que eu sempre permitiria que os aduladores se aprovei-
tas sem dele; se alguns estouvados o arrastassem para uma extra­
vagância, dexá-lo-ia correr o risco que ela comportasse; se alguns
malvados o burlassem ao jogo, eu não interferiria para o impedir
de ser ludibriado1 ; deixaria que o incensassem, que o depenassem,
que o despoj assem; e se, depois de lhe terem tirado tudo, se puses­
sem a troçar dele, eu ainda lhes agradeceria, na presença dele, pe­
las lições que lhe tinham dado. As únicas armadilhas de que o
protegeria cuidadosamente seriam as das cortesãs. Os únicos sa­
crifícios que faria por ele seria compartilhar todos os perigos que
lhe permitisse correr e todas as afrontas que lhe deixasse receber.
Suportaria tudo isso em silêncio, sem queixume, sem censuras,
sem nunca lhe falar no caso, e tende a certeza de que, com esta
constante discrição, tudo quanto ele visse que sofri por sua causa
impressionaria mais o seu coração que tudo quanto ele próprio ti­
vesse sofrido.
Aqui, não posso deixar de falar da falsa dignidade dos go­
vernantes que, para tolamente se mostrarem sages, rebaixam os
pupilos, parecem sempre tratá-los como crianças, e querem cons­
tantemente distinguir--se deles em tudo quanto lhes mandam fa­
zer. Em vez de atrofiar, desse modo, as suas jovens coragens, não
vos poupeis a esforços para lhes elevardes a alma; fazei deles vos­
sos iguais, a fim de que eles o venham a ser; e, se eles ainda não se
podem elevar até vós, descei até eles sem pudor, sem escrúpulos.
Pensai que a vossa honra já não está em vós mas no vosso pupilo;
compartilhai os seus erros, a fim de o corrigirdes; carregai com a
sua vergonha, para a apagar; imitai esse corajoso romano que, ao
ver o seu exército fugir e não podendo reagrupá-lo, se pôs a correr,
à frente dos seus soldados, gritando: «Eles não estão a fugir, mas
a seguir o seu comandante.» Isso desonrou-{)? Pelo contrário: sacri­
ficando assim a sua glória, aumentou-a. A força do dever, a bele­
za da virtude levam-nos, mesmo sem querermos, a modificar os

1 Aliás, o nosso pupilo raramente cairá nessa armadilha, pois está


rodeado por tantas distrações que nunca se aborreceu e mal sabe para que
serve o dinheiro. Como os dois motores que se utilizam para dirigir as
crianças são o interesse e a vaidade, são esses mesmos motores que as cor­
tesãs e os escroques empregam para, mais tarde, se apoderarem delas.
Quando vedes como se lhes excita a cobiça com prémios e recompensas,
quando assistis aos aplausos que recebem, aos 10 anos, num acto públi­
co do colégio, bem podeis imaginar de que maneira, quando tiverem 20,
l}les farão perder a bolsa num jogo de cartas, e a saúde num lugar mau.
E quase sempre certo que o aluno mais sabichão da turma se tornará no
mais jogador e debochado. Ora, os meios que não foram utilizados duran­
te a infãncia não têm o mesmo impacte durante ajuventude. Mas, a esse
respeito, é preciso não esquecer que a minha máxima constante é ver sem­
pre a coisa pelo pior lado. Começo por procurar evitar o vício; em seguida,
suponho-o, para lhe dar remédio. 49

L. B.S24 - 4
nossos preconceitos insensatos. Se, no desempenho das minhas
funçõesjunto de Emílio, alguém me pregasse um bofetão, longe de
me vingar desse bofetão, iria gabar-me, por toda a parte, de o ter
recebido; e duvido de que h aja, neste mundo, um homem suficien­
temente viP para não me respeitar ainda mais por isso.
Isto não quer dizer que o pupilo deva supor que o mestre tem
ideias tão limitadas como as suas e que se deixa seduzir com a mes­
m a facilidade. Essa opinião é boa para uma criança que, não saben­
do ver nada e não sabendo fazer comparações, considera toda a
gente por si própria e só concede a sua confiança àqueles que são
capazes de, efectivamente, se porem ao seu nível. Mas um jovem
com a idade de Emílio, e tão sensato como ele, já não é tão tolo que
acredite nisso e não seria aconselhável que acreditasse. A confiança
que ele deve ter no seu governante é de uma espécie completa­
mente diferente: deve basear-se na autoridade da razão, na su­
perioridade dos conhecimentos, nas vantagens que o jovem tem a
capacidade de conhecer e cuja utilidade compreende. Uma longa
experiência já o convenceu de que é amado pelo seu guia; que es­
se guia é um homem sage, esclarecido, que, desejando a sua felici­
dade, sabe o que lha pode proporcionar. Deve saber que, no seu pró­
prio interesse, tem toda a conveniência em prestar atenção aos
seus conselhos. Ora, se o mestre se deixasse enganar como o discí­
pulo, perderia o direito de dele exigir deferência e de lhe dar lições.
O discípulo também não deve pensar que, propositadamente, o
mestre o deixa cair em embustes e se aproveita da sua simplicida­
de para o fazer cair em armadilhas. Então, que será conveniente
fazer para evitar, simultaneamente, estes dois inconvenientes? O
que há de melhor e de m ais natural: ser simples e sincero, como ele;
avisá-lo dos perigos a que se expõe; mostrar-lhos claramente, sen­
sivelmente, mas sem exageros, sem má disposição, sem pretensões
pedantescas, sobretudo sem lhe dar os conselhos como se fossem
ordens, até que eles o sej am, e que esse tom imperioso seja abso­
lutamente necessário. Mesmo assim, ele continua a obstinar-se?
Nesse caso, não lhe digais mais nada; deixai-o em liberdade,
segui-o, imitai-o, e tudo isso alegremente, francamente; entregai­
-vos, diverti-vos, tanto quanto ele, se possível. Se as consequên­
cias se mostrarem excessivamente fortes, estais lá para as aparar;
entretanto, testemunha da vossa previdência e da vossa compla­
cência, como o jovem se deverá sentir impressionado com uma e
compadecido com a outra! Todos os seus erros são outros tantos
elos que ele vos fornece para o reterdes, se disso houver necessida­
de. Ora, onde se vê a m aior arte do mestre é na m aneira de provo­
car as ocasiões e de dirigir as exortações de modo a que saiba, de

1
50 Estava enganado, descobri um: é M. Formey.
antemão, quando o jovem cederá e quando ele se obstinará, a fim
de o rodear com as lições da experiência, mas sem nunca o expor
a exagerados perigos.
Avisai-o dos seus erros, antes que ele os cometa: mas, depois
de ele os ter cometido, não lhos censurais; apenas conseguiríeis ir­
ritar e aumentar o seu amor-próprio. Uma lição que revolta não dá
proveito. Não conheço nada mais tolo que esta frase: <<Eu bem vos
tinha prevenido.» O melhor sistema para conseguir que ele se lem­
bre do que lhe foi dito é parecer tê-lo esquecido. Pelo contrário,
quando o virdes envergonhado por não ter acreditado no que lhe
dissestes, apagai carinhosamente essa humilhação, com palavras
amigas. Certamente que ele se afeiçoará a vós, quando vir que vos
sacrificais por ele e que, em vez de o espezinhardes completamen­
te, o consolais. Mas se ao seu desgosto acrescentardes censuras
acabará por odiar-vos e decidirá nunca mais dar ouvidos às vos­
sas palavras, como para vos provar que não tem a mesma opinião
que vós sobre a importância dos vossos conselhos.
A maneira como o consolardes também pode constituir, para
ele, uma lição bastante mais útil, se ele não desconfiar da vossa in­
tenção. Se, por exemplo, lhe disserdes que há milhares de jovens
que cometem os mesmos erros, ele sentir-se-á desconcertado;
corrigi-lo-eis, parecendo estar a lastimá-lo; pois, para aquele que
supõe valer mais que os outros homens, é muito doloroso consolar­
-se com o seu exemplo: é reconhecer que o máximo a que pode pre­
tender é afirmar que eles não valem mais que ele.
A idade dos erros é a das fábulas. Censurando o culpado sob
uma máscara desconhecida, instrui-se-lo sem o ofender; e então
ele compreende que o apólogo não é uma mentira, através da ver­
dade que lhe foi aplicada. A criança que nunca foi enganada com
lisonjas não compreende nada da fábula que examinei; mas o
estouvado que acaba de ser enganado por um lisonjeador com­
preende perfeitamente que o corvo não passava de um tolo. Assim,
com um facto fixa uma máxima; e, através da fábula, a experiência
que ele rapidamente teria esquecido fica gravada no seu entendi­
mento. Não há conhecimento moral que não se possa adquirir pe­
la experiência: de outrém ou nossa. No caso de essa experiência ser
perigosa, em vez de a fazermos podemos aprendê-la com uma da
História. Quando a experiência não tem consequências, é conve­
niente que o jovem seja exposto a ela; depois, através do apólogo,
redigem-se, como máximas, os casos particulares que lhe são
conhecidos.
No entanto, não pretendo dizer que essas máximas devam ser
desenvolvidas ou enunciadas. Não há nada que seja tão inútil, tão
mal compreendido, como a moral pela qual termina a m aioria das
fábulas. Como se essa moral não estivesse ou não devesse ter sido
compreendida durante a leitura da própria fábula, de modo a
torná-la sensível ao leitor! Porquê se acrescenta sempre essa 51
moralidade no fim, tirando ao leitor o prazer de a encontrar por si
próprio? O talento de instruir consiste em fazer que o discípulo
sinta prazer em receber a instrução. Ora, para que ele tenha esse
prazer, é necessário que o seu espírito não permaneça de tal mo­
do passivo a tudo quanto lhe dizeis, que não tenha,absolutamen­
te nenhum esforço a fazer para vos compreender. E preciso que o
amor-próprio do mestre deixe sempre algumas possibilidades ao
do pupilo; é necessário que este possa pensar: «Concebo, com­
preendo, actuo, instruo-me>>. Uma das coisas que tornam enfado­
nho o Pantalon1 da comédia italiana é a preocupação que ele tem
de explicar, aos espectadores, algumas banalidades que todos
estão fartos de ouvir. Não pretel)do que um governante seja Pan­
talon e muito menos um autor. E sempre necessário que nos com­
preendam; mas não é indispensável dizer sempre tudo: aquele que
. diz tudo diz poucas coisas, porque, por fim, ninguém lhe presta
atenção. O que significam esses quatro versos que La Fontaine
acrescenta à fábula da rã que incha? Terá receio de que não o te­
nham compreendido? Tem alguma necessidade, esse grande pin­
tor, de escrever o respectivo nome por debaixo de cada objecto que
descreve? Longe de, por esse meio, generalizar a sua moralidade,
especifica-a, restringe-a, de certo modo, aos exemplos citados, e
impede que a apliquem a outros. Gostaria de que, antes de pôr as
fábulas deste autor inimitável entre as mãos de um jovem, se lhes
retirassem todas essas conclusões com as quais ele se dá ao traba­
lho de explicar o que acaba de dizer tão clara quanto agradavel­
mente. Se o vosso pupilo só compreende a fábula com o auxílio da
explicação, podeis ter a certeza de que mesmo assim não a com­
preenderá.
Seria ainda conveniente dar a essas fábulas uma ordem mais
didáctica e mais em conformidade com os progressos dos sentimen­
tos e das luzes dojovem adolescente. Poderá imaginar-se algo me­
nos razoável que seguir exactamente a ordem numérica do livro,
sem atender à necessidade nem à oportunidade? Primeiro o corvo,
depois a cigarra2, a seguir a rã, as duas mulas, etc. Ainda não con­
segui digerir essa das duas mulas, porque me recordo de ter visto
uma criança - educada para a finança e à qual recordavam
constantemente a profissão que teria de desempenhar- ler essa
fábula, decorá-la, recitá-la centenas de vezes, sem nunca se sen­
tir inspirada para fazer uma objecção contra a profissão para que
a tinham destinado. Não só nunca vi crianças fazerem nenhuma
aplicação sólida das fábulas que decoravam como também nunca

1 Personagem da comédia italiana; veste umas calças compridas


que acabaram por adquirir este nome. (N. da T.)
2 Aqui, ainda teremos de aplicar a correcção de M. Formey. Começa
52 pela cigarra, a seguir é o corvo, etc.
vi ninguém que se interessasse por lhes dar a ideia de fazer essa
aplicação. O pretexto deste estudo é a instrução moral; mas o ver­
dadeiro objectivo da mãe e da criança é apenas o de distrair um au­
ditório de convidados com a recitação dessas fábulas; por isso, à
medida que vai crescendo, a criança esquece-as todas, desde que
já não se trate de as recitar mas de tirar partido delas. Mais uma
vez vos digo que só os homens se podem instruir com as fábulas; e,
para Emílio, eis chegado o tempo de começar.
Indicarei, de passagem - porque também não quero explicar
tudo - os caminhos que desviam do bom, a fim de que se aprenda
a evitá-los. Creio que, seguindo pelo que indiquei, o vosso pupilo
adquirirá o conhecimento dos homens e de si mesmo com o menor
esforçó possível; que o colocareis na possibilidade de contemplar os
jogos da fortuna sem invejar o destino dos seus favoritos e de se
sentir satisfeito consigo próprio sem se supor mais sage que os ou­
tros. Também já começastes a torná-lo actor para que saiba ser es­
pectador: é preciso terminar; pois da plateia vêem-se os objectos,
tais como eles parecem ser, enquanto do palco os vemos tais como
são. Para tudo abarcar, é necessário colocar-se no próprio local; é
preciso aproximarmo-nos, para vermos os pormenores. Mas a que
propósito um jovem terá de se meter nos negócios do mundo? Que
direito tem ele de ser iniciado nesses tenebrosos mistérios? Intri­
gas de prazer limitam os interesses da sua idade; e ele ainda só dis­
põe de si mesmo: é como se não dispusesse de nada. O homem é a
mais vil das mercadorias, e, de entre os nossos importantes direi­
tos de propriedades, o da pessoa é sempre o mais pequeno de todos.
Quando vejo que, na idade da maior actividade, se limitam os
jovens a estudos puramente especulativos, e que, depois, sem a mí­
nima experiência, eles são bruscamente lançados no mundo e nos
negócios, parece-me que não se choca menos a razão que a natu­
reza, e não me sinto surpreendido de que tão poucas pessoas se sai­
bam conduzir. Por que bizarrice nos ensinam tantas coisas inúteis,
considerando que a arte de agir não tem interesse? Pretendem for­
mar-nos para a sociedade e instruem-nos como se cada um de nós
devesse passar o resto da sua vida a pensar sozinho, na sua célu-
la, ou a tratar de assuntos sem importância com pessoas indiferen­
tes. Credes educar os vossos filhos para a vida, ensinando-lhes
certas contorsões do corpo e certas fórmulas de palavreado que na-
da significam . Eu também eduquei o meu Emílio para a vida; por­
que o ensinei a viver consigo mesmo, e, mais ainda, a saber ganhar
o seu pão. Mas isso não é suficiente. Para viver no mundo, é pre­
ciso saber tratar com os homens, é preciso conhecer os instrumen­
tos que nos dão poder sobre e les ; é necessário calcular a acção e a
reacção do interesse particular na sociedade civil e prever os acon­
tecimentos, tão acertadamente que raramente nos enganemos nos
nossos empreendimentos, ou que, pelo menos, sempre saibamos
escolher os melhores meios para vencer. As leis não permitem que 53
os jovens façam os seus próprios negócios ou que disponham dos
seus próprios bens: mas de que lhe serviriam estas precauções, se,
até à idade prescrita, eles não pudessem adquirir nenhuma expe­
riência? Nada teriam ganho enquanto esperavam e, certamente,
estariam tão inexperientes aos 25 anos como aos 15. Não há dúvi­
das de que é preciso impedir que um jovem, cego pela sua ignorân­
cia, ou enganado pelas suas paixões, se prejudique a si mesmo; mas
em todas as idades é permitido ser benfazejo, em todas as idades
se pode proteger, sob a direcção de um homem sensato, os infelizes
que só precisam de apoio.
As nutrizes, as mães afeiçoam-se às crianças através dos cui­
dados que lhes dispensam; o exercício das virtudes sociais coloca
no fundo dos corações o amor pela humanidade; é praticando o bem
que nos tornamos bons; não conheço prática mais garantida.
Ocupai o vosso pupilo com todas as boas acções que estão ao seu al­
c�nce; que o interesse pelos indigentes seja sempre o seu; que ele
não os auxilie unicamente com a sua bolsa mas também com os
seus cuidados; que ele sirva, que os proteja, que lhes cansagre a sua
pessoa e o seu tempo; que se transforme no seu homem de negócios:
durante toda a sua vida nunca terá a oportunidade de desempe­
nhar uma profissão mais nobre. Quantos oprimidos, que nunca
ninguém teria escutado, obterão justiça, quando ele a pedir para
eles com essa intrépida firmeza que dá o exercício da virtude!
Quando ele forçar as portas dos grandes e dos ricos, quando ele for,
se necessário, até aos pés do trono para fazer ouvir a voz dos
desgraçados, aos quais todas as portas estão fechadas devido à sua
miséria, e que o receio de serem punidos pelos males que lhes são
feitos até os impede de ousarem apresentar queixa!
Mas iremos fazer de Emílio um cavaleiro andante, um justicei­
ro, um paladino? Irá ele imiscuir-se nos negócios públicos, mos­
trar-se o sage e o defensor das leis junto dos grandes, dos magis­
trados, do príncipe, desempenhar o papel de solicitador junto de
juízes e de advogados, nos tribunais? A esse respeito, nada sei. Os
nomes insignificantes e ridículos em nada modificam a natureza
das coisas. Fará tudo quanto sabe ser útil e bom. Nãofarámaisna­
da, e sabe que nada é bom e útil para ele, se forem coisas que não
convêm à sua idade; sabe que o seu primeiro dever é em relação a
si mesmo; que os jovens devem desconfiar de si mesmos, ser
circunspectos no seu comportamento, respeitadores perante as
pessoas mais velhas, deferentes e discretos quando falam sem as­
sunto, modestos nas coisas indiferentes, mas ousados no bem-fa­
zer e corajosos para dizerem a verdade. Assim eram esses ilustres
Romanos que, antes de serem admitidos nos cargos, passavam a
juventude a perseguir o crime e a defender a inocência;sem outro
interesse além do de se instruírem servindo a justiça e protegen­
do os bons costumes.
54 Emílio não gosta nem do barulho nem das brigas, não apenas
entre os homens1 como também entre os animais. Nunca incitou
dois cães um contra o outro; nunca fez que um gato fosse persegui­
do por um cão. Este espírito de paz é um efeito da educação que re­
cebeu, que, não tendo fomentado o amor-próprio e a alta opinião
de si mesmo, o desviou de procurar prazeres na dominação e na
infelicidade dos outros. Sofre quando vê sofrer; é um sentimento
natural. O que leva um jovem a endurecer o seu coração e a sen­
tir prazer em ver atormentar um ser sensível, é uma irrupção de
vaidade que o leva a considerar-se como isento dos mesmos sofri­
mentos, devido à sua sageza ou à sua superioridade. Aquele que
àdquiriu essa ideia sobre si próprio nunca caírá no vício que é a sua
obra. Por conseguinte, Emílio gosta da paz. A imagem da felicida­
de agrada-lhe, e quando pode contribuir para a produzir é mais
uma maneira que tem de a compartilhar. Não suponho que ao ver
infelizes ele sinta por eles unicamente essa piedade estéril e cruel
que se contenta em lastimar os males que pode curar. Em breve,
as suas boas acções lhe dão um conhecimento que, com um coração
m ais endurecido, ele nunca teria adquirido, ou que teria adquirido
muito mais tarde. Se vê reinar a discórdia entre os seus compa­
nheiros, procura reconciliá-los; se vê aflitos, informa-se do moti­
vo das suas aflições; se vê homens o diarem-se, d es eja conhecer a
causa dessa inimizade; se vê um oprimido a gemer por causa dos
vexames que lhe fizeram o poderoso e o rico, procura saber de que

1 Mas, se alguém o provocar, como se comportará ele? Respondo que


nunca terá disputas, que nunca se prestará ao ponto de as ter. «Mas en­
fim», continuarão a perguntar-me, «quem é que está livre de apanhar um
bofetão ou de ser desmentido por um bruto, por um ébrio ou por um atre­
vido malandro que, para ter o prazer de matar um homem, começa por de­
sonrá-lo?» Isso já é outra coisa; é preciso que nem a honra dos cidadãos
nem as suas vidas estejam à mercê de um bruto, de um ébrio ou de um ma­
landro atrevido; e não é mais possível evitar tal acidente que evitar a que­
da de uma telha. Um bofetão e um desmentido, recebidos e suportados,
têm efeitos civis que nenhuma sageza pode prevenir e de que nenhum tri·
bunal pode vingar o ofendido. Nisso, a insuficiência das leis dá-lhe a sua
independência; e ele passa a ser o único magistrado, o único juiz entre o
ofensor e ele próprio; é o único intérprete e administra a lei natural; tem
direito a justiça e só ele pode prestá-la a si mesmo; não há nenhum gover­
no no mundo que seja tão insensato que o pretenda punir por o ter feito.
Não pretendo dizer que ele se deve bater; isso é uma extravagância; digo
apenas que ele tem direito à justiça e que é o único que a pode dispensar.
Sem tantos vãos decretos contra os duelos, se eu fosse soberano, garanto
que nunca haveria nem bofetões nem desmentidos dados nos meus Esta­
dos, e isso através de um meio muito simples em que os tribunais não in­
terviriam. Seja como for, num caso destes Emílio sabe a justiça a que tem
direito e o exemplo que deve à segurança das pessoas de honra. Não é pos­
sível, ao homem mais seguro, impedir que o insultem; mas depende dele
impedir que se gabem durante muito tempo de o terem insultado. 55
manobras s � cob!em esses �exames; e, no interesse que sente por
todos esses mfehzes, os mews para acabar com os seus sofrimen­
tos que nunca lhe são indiferentes. Que teremos então de fazer pa­
ra tirar partido destas disposições, de uma maneira que convenha
à sua idade? Dirigir os seus cuidados, os seus conhecimentos' e uti-
lizar o seu zelo para os aumentar.
Não me canso de repetir: ensinai os jovens com acções, mais
que com discursos; não permitais que, nos livros, aprendam coisas
que lhe possam ser ensinadas pela experiência. Que projecto esse
tão extravagante, de os ensinar a falar sem terem nada para dizer;
de crer fazer-lhes sentir, nas carteiras de um colégio, a energia da
linguagem das paixões e toda a força da arte de persuadir sem in­
teresse nenhum em persuadir ninguém, seja do que for! Todos os
preceitos da retórica parecem não ser mais que simples palavrea­
do, para quem não vê que proveito pode retirar da sua utilização.
Que interesse tem, para um estudante, saber o que fez Aníbal pa­
ra convencer o seu exército a transpor os Alpes? Se, em vez dessas
magníficas arengas, lhe disserdes como deve proceder para conse­
guir que o seu prefeito lhe dê férias, podeis ter a certeza de que
prestará mais atenção às vossas regras.
Se eu pretendesse ensinar a retórica a um jovem em que todas
as paixões já estivessem desenvolvidas, apresentar-lhe-ia constan­
temente assuntos que lisonjeassem as suas paixões, e examinaria,
com ele, a linguagem que ele deveria empregar com os outros ho­
mens, para os levar a favorecer os seus desejos. Mas o meu Emílio
não se encontra numa situação tão vantajosa quanto à arte orató­
ria; limitado quase ao necessário físico, tem menos necessidade
dos outros que os outros dele; e, como nada lhes tem a pedir para
si próprio, aquilo de ele pretende persuadi-los não o afecta o sufi­
ciente para o empolgar de uma maneira excessiva. Daí se segue
que, geralmente, ele precisa de utilizar um a linguagem simples e
pouco figurativa.
Geralmente, sfiz directamente o que pretende e unicamente
para ser ouvido. E pouco sentencioso, porque não aprendeu a ge­
neralizar as suas ideias: tem poucas imagens, porque raramente
se entusiasma.
No entanto, isto não quer dizer que seja fleumático e frio; nem
a sua idade, nem os seus costumes, nem os seus gostos lho permi­
tem: no ardor da adolescência, os espíritos vivificadores, retidos e
concentrados no seu sangue, transportam para o seu jovem cora­
ção um calor que brilha nos seus olhares, que se sente nos seus dis­
cursos, que se vê nas suas acções. A sua linguagem adquiriu uma
entonação e, por vezes, alguma veemência. O nobre sentimento
que o inspira dá-lhe força e elevação: penetrado pelo terno amor
que sente pela humanidade, transmite, quando fala, os movimen­
tos da sua alma; a sua generosa candura tem um não-sei-quê de
56 mais encantador que a artificiosa eloquência dos outros; ou talvez
ele seja o único verdadeiramente eloquente, pois lhe basta mostrar
o que sente para o comunicar aos que os escutam.
Quanto mais penso nisso, mais me convenço de que, deste mo­
do - praticando as boas acções e retirando dos nossos sucessos ou
dos nossos insucessos reflexões sobre as suas causas -há poucos
conhecimentos úteis que não se possam cultivar no espírito de um
jovem, e de que, além de todo o verdadeiro saber que se pode ad­
quirir nos colégios, ele também poderá adquirir uma ciência, ain­
da mais importante, que consiste na aplicação dessa aquisição aos
costumes da vida. Não é possível que, interessando-se tanto pelos
seus semelhantes, ele não aprenda, desde muito cedo, a pesar e a
avaliar as acções destes, os seus gostos, os se
. us prazeres, e a atri­
buir - na generalidade - um valor mais justo a tudo quanto pos­
sa contribuir para facilitar ou prejudicar a felicidade dos homens,
que o que atribuiriam aqueles que, não se interessando por
ninguém, nunca fazem nada pelos outros. Aqueles que só se
preocupam com os seus próprios assuntos apaixonam-se excessi­
vamente para poderemjulgar as coisas com imparcialidade. Rela­
cionando tudo com eles próprios, e regulando pelo seu único inte­
resse as ideias do bem e do mal, enchem os seus espíritos. com mil
preconceitos ndículos, e, em tudo quanto pode retirar-lhes a mí­
nima vantagem, vêem imediatamente o desmoronamento de todo
o universo.
Estendamos o amor-próprio aos outros seres, transformá-lo­
--emos em virtude, enão há nenhum coração humano em que esta
virtude não tenha uma raiz. Quanto menos directamente o objec­
to dos nossos cuidados está ligado a nós, menos a ilusão do in teres­
se pessoal é de recear; quanto mais se generaliza este interesse,
mais ele se torna imparcial; e, em nós, o amor pelo género huma­
no não é mais do que o amor pela justiça. Desejamos, pois, que
Emílio ame a verdade, desejamos que ele a conheça; nos negócios,
mantanhamo-lo sempre afastado de si mesmo. Quanto mais os
seus cuidados se consagrarem à felicidade dos outros, mais escla­
recidos e sages serão, e mais acertadamente ele poderá distinguir
o bem do mal; mas não suportemos nunca, nele, uma preferência
cega, baseada unicamente em aceitações de pessoas ou em injus­
tas prevenções. Por que motivos haveria ele de prejudicar um pa­
ra ajudar outro? Pouco lhe importa a quem ca:be um maior quinhão
de felicidade, contanto que concorra para a maior felicidade de
todos: é esse o principal interesse do sage, depois do interesse pró­
prio; pois cada um é parte da sua espécie e não de outro indivíduo.
Para obstar a que a piedade degenere em fraqueza, será pois
necessário generalizá-la e estendê--la por todo o género humano.
E então, só nos entregamos a ela quando ele está de acordo com a
justiça, porque, de todas as virtudes, �justiça é a que mais concor-
re para o bem comum dos homens. E necessário, por razão, por
amor por nós, ter piedade da nossa espécie, ainda mais que do nos- 57
so próximo; e a piedade pelos m aus é uma grande crueldade para
com os homens.
Quanto ao resto, é preciso lembrar-se de que todos estes meios,
com os quais lanço o meu pupilo para fora de si mesmo, têm sem­
pre uma relação directa com ele, pois não só lhe dão um gozo inte­
rior como também -tornando-o benfazejo em proveito dos outros
- trabalho para a sua própria instrução.
Comecei por fornecer os meios, e agora mostro os seus efeitos.
Que grandes projectos vejo organizarem-se, pouco a pouco, na sua
cabeça! Que sentimentos sublimes abafam, no seu coração, o ger­
me das míseras paixões! Que nitidez de judiciário, que justeza de
raciocínio vejo formarem-se nele, derivados das suas tendências
cultivadas, da experiência que concentra os votos de uma grande
alma no estreito limite dos possíveis e faz que um homem superior
aos outros -nãoos podendo elevar à suamedida- saiba abaixar­
-se até eles! Os verdadeiros princípios do justo, os verdadeiros mo­
delos do belo, todas as relações morais dos seres, todas as ideias da
ordem, ficam gravados no seu entendimento; ele vê o lugar de ca­
da coisa e a causa que dele a afasta: vê o que pode fazer o bem e o
que o impede. Sem ter experimentado as paixões humanas, conhe­
ce as suas ilusões e o seu jogo.
Prossigo, atraído pela força das coisas, mas sem me impor so­
bre osjuízos dos leitores. Há muito tempo que eles me vêem no país
das quimeras; eu, cá por mim, continuo a vê-los no país dos pre­
conceitos. Afastando-me tanto das opiniões vulgares, não deixo de
as ter presentes no meu espírito: examino-as, medito-as, não para
as seguir nem para fugir delas, mas para as pesar na balança do
raciocínio. Instruído pela experiência, todas as vezes que este me
força a afastar-me delas tenho a certeza de que não me imitarão:
sei que, obstinando-se a só imaginar possível o que vêem, conside­
rarão o jovem que descrevo como um ser imaginário e fantástico,
porque ele difere daqueles com os quais o comparam, sem sequer
pensarem que é realmente preciso que ele seja diferente, pois,
educado de uma maneira absolutamente diferente, afectado por
sentimentos completamente opostos, instruído de outra maneira,
seria muito mais surpreendente que se assemelhasse a eles e não
fosse como o suponho. Não é o homem do homem: é o homem da na­
tureza. Com certeza que lhes deve parecer muito estranho.
Ao começar este trabalho, eu não supunha nada que todos não
pudessem observar do mesmo modo que eu, porque há um ponto
comum, a saber, o nascimento do homem do qual todos nós des­
cendemos: mas quanto mais avançamos - eu, para cultivar a
natureza, e vós para a depravardes -mais nos afastamos uns dos
outros. Aos 6 anos, o meu pupilo pouco diferia dos vossos, que vós
ainda não havíeis tido tempo de desfigurar; actualmente, eles não
têm mais nada em comum; e a ideia do homem feito, de que ele se
58 aproxima, deverá mostrá-lo sob uma forma completamente dife-
rente, se eu não tiver perdido todo o fruto dos meus cuidados. A
quantidade de adquiridos talvez seja a mesma, de ambas as
partes; mas as coisas adquiridas não se parecem em nada. Admi­
rais-vos porencontrar, num deles, sentimentos sublimesde queos
outros não têm o mais ínfimo germe; mas considerai também que
os vossos já todos são filósofos e teólogos, antes mesmo de que
Emílio saiba o que é a Filosofia e que tenha ouvido falar de Deus.
Por conseguinte, se me viessem dizer: «Nada do que supondes
existe; os jovens não são feitos assim; têm esta ou aquela paixão;
fazem isto ou aquilo••, seria como se me viessem dizer que uma pe­
reira nunca foi uma grande árvore, porque só vemos pereiras anãs
nos nossos jardins.
Peço a esses juízes, tão dispostos a criticar, que compreendam
que também sei - e tão bem como eles - aquilo que dizem, que,
provavelmente, reflecti nisso muito mais do que eles, e que, não
tendo interesse nenhum em convencê-los do que afirmo, tenho, pe­
lo menos, o direito de exigir que se dêem ao trabalho de procurar
os pontos em que me engano. Que examinem bem a constituição do
homem, que sigam os primeiros desenvolvimentos do coração em
tal ou tal circunstância, a fim de verem quanto um indivíduo pode
diferir de outro só por causa da educação que recebeu; que, em
seguida, comparem a que eu dou aos efeitos que lhe atribuo; e que
digam em que foi que raciocinei mal: então, não poderei contestar
nada.
O que me torna mais afirmativo e, penso, mais desculpável por
sê-lo, é que em vez de me entregar ao espírito de sistema, empre­
go o menos possível o raciocínio e só me,fio na observação. Não me
baseio no que imaginei, mas no que vi. E verdade que não encerrei
as minhas experiências no interior das muralhas de uma cidade
nem numa só classe de pessoas; mas, após ter comparado tantas
·classes e tantos povos quantos os que pude ver numa vida passada
a observá-los, pus de lado, como artificial, aquilo que era peculiar
de um povo e não de outro, de um Estado e n ão de outro, e só
observei como pertencentes incontestavelmente ao homem, o que
era comum a todos, em qualquer idade, em qualquer classe, e fos­
se em que nação fosse.
Ora, se, segundo este sistema, vós acompanhais, desde a sua
infância, um jovem que não recebeu uma educação especial, e que
apreciará o menos possível a autoridade e a opinião de outrém, com
qual deles - de entre o meu pupilo e os vossos - pensais que ele
se parecerá mais? Eis, ao que me parece, a questão que deve serre­
solvida para saber se me enganei.
Nao é facilmente que o homem começa a pensar; mas desde o
momento em que começa a fazê-lo nunca mais se detêm. Quem já
pensou uma vez pensará sempre, e o entendimento, desde que es­
teja habituado à reflexão, nunca mais se pode conservar em repou-
so. Por conseguinte, poder-se-ia pensar que a pratico em excesso 59
ou insuficientemente, que o espírito humano não está natu­
ralmente tão disposto a abrir-se, e que depois de lhe ter dado fa­
cilidades que ele não tem, o mantenho durante demasiado tampo
inscrito num círculo de ideias que ele deveria ter franqueado.
Mas começai por considerar que, desejando formar o homem
da natureza, nem por isso se trata de fazer dele um selvagem e de
o relegar para o fundo dos bosques; mas que, introduzindo no tur­
bilhão social, basta que ele não se deixe arrastar pelas paixões nem
pelas opiniões dos homens; que ele veja com os seus olhos, que ele
sinta com o seu coração; que nenhuma autoridade o governe, além
da da sua própria razão. Nessa posição, é evidente que a multipli­
cidade de objectos que o chocam, os frequentes sentimentos que o
afectam, os diversos sistemas para provir às suas necessidades
reais, devem fornecer-lhe muitas ideias que ele nunca teria tido,
ou que teria adquirido mais lentamente. O progresso natural do
espírito encontra-se acelerado, mas não invertido. O mesmo ho­
mem que deve ficar estúpido nas florestas deverá tornar-se razoá­
vel e sensato nas cidades, quando lá for simples espectador. Nada
é mais propício para dar a sageza do que as loucuras a que se as­
siste sem nelas tomar parte; e mesmo aquele que toma parte ne­
las também se instrui, contanto que não se deixe enganar por eles
e que não tenha de suportar os erros daqueles que as fazem.
Considerai também que, limitados pelas nossas faculdades às
coisas sensíveis, mal compreendemos as coisas abstractas da Fi­
losofia e as ideias puramente intelectuais. Para lá chegar, seria
necessário ou desligarmo-nos do corpo a que estamos tão firme­
mente ligados, ou efectuar, de assunto em assunto, um progresso
gradual e lento,.ou, então, franquear rapidamente, e quase de um
salto, toda a distância a percorrer, com um passo de gigante de que
a infância não é capaz, e para o qual é preciso, mesmo para os ho­
mens, muitas etapas feitas especialmente para eles. A primeira
ideia abstracta é a primeira dessas etapas; mas tenho muitas di­
ficuldades para imaginar a maneira como elas seriam determina­
das.
O Ser incompreensível que tudo abrange, que dá o movimen­
to ao mundo e forma todo o sistema dos seres, não é visível aos nos­
sos olhos nem palpável às nossas mãos; escapa a todos os nossos
sentidos: a obra mostra-o, mas o obreiro conserva-se invisível.
Não é trabalho fácil reconhecer que ele existe, e, quando chegamos
a essa conclusão, quando nos perguntamos a nós próprios: <<Quem
é ele? Onde está ele?••, o nosso espírito confunde-se, baralha-se, e
ficamos sem saber o que pensar.
Locke quer que se comece pelo estudo dos espíritos, e que, em
seguida, se passe ao dos corpos. Esse método é o da superstição, dos
preconceitos, do erro: não é o da razão, nem o da nature,za bem
ordenada; é pôr uma venda nos olhos para aprender a ver. E neces-
60 sário ter-se estudado os corpos durante muito tempo para adqui-
rir uma verdadeira noção dos espíritos, e suspeitar que eles exis­
tem. A ordem inversa só serve para estabelecer o materialismo.
Já que os nossos sentidos são os primeiros instrumentos dos
nossos conhecimentos, os seres corporais e sensíveis são os únicos
de que tenhamos imediatamente uma ideia. Esta palavra espíri­
to não faz sentido nenhum para quem ainda não tenha filosofado.
Um espírito não passa de um corpo, para o povo e para as crianças.
Não é verdade que imaginam espíritos que gritam, que falam, que
batem, que fazem barulho? Ora, confessar-me-ão que espíritos
que têm braços e línguas se parecem muito com corpos. Eis a ra­
zão por que todos os povos do mundo, sem exceptuar os Judeus,
imaginaram deuses corporais. Nós mesmos, com os nossos termos
de Espírito, Trindade, Pessoas, somos, na maioria, antropomorfis­
tas. Reconheço que nos ensinam a dizer que Deus está em toda a
parte: mas nós também acreditamos que o ar está em toda a parte,
pelo menos na nossa atmosfera; e a palavra espírito, na sua origem,
significa apenas sopro e vento. Desde o momento que se h abituam
as pessoas a dizer palavras sem as compreender, depois é fácil le­
vá-las a dizer tudo o que se quer.
O sentimento da nossa acção sobre os outros corpos deve ter
começado por nos levar a acreditar que, quando eles agiam sobre
nós, o faziam de uma maneira semelhante àquela com que agimos
sobre eles. Assim, o homem começou por animar todos os seres cuja
acção sentia. Sabendo-se menos forte que a maioria desses seres
- por não conhecer os limites dos seus poderes-, supô-la ilimita­
da, transformou-<>s em deuses logo que os transformou em corpos.
Durante as primeiras eras, os homens, que tudo temiam, não vi­
riam nada morto na natureza. Neles, a ideia de matéria não foi me­
nos lenta a formar-se que a de espírito, pois essa primeira ideia é,
por si mesma, uma abstracção. E, assim, encheram o universo com
deuses sensíveis. Os astros, os ventos, as montanhas, os rios, as ár­
vores, as cidades, as próprias casas, tudo tinha uma alma, um
deus, uma vida próprios. Os bonecos de Labão, os amuletos dos
Negros, todos os trabalhos da natureza e dos homens foram as pri­
meiras divindades dos mortais; o politeísmo foi a sua primeira re­
ligião, a idolatria o seu primeiro culto. Só puderam reconhecer um
Deus único, quando, generalizando cada vez mais as suas ideias, _
se viram em estado de retroceder até uma primeira causa, de
reunir o sistema total dos seres sob uma única ideia, e de dar um
sentido à palavra substância, que, no fundo, é a maior das abs­
tracções. Por conseguinte, todas as crianças que acreditam em
Deus são necessariamente idólatras, ou, pelo menos, antropomor­
fistas; e, quando a imaginação viu Deus, é muito raro que o enten­
dimento o conceba. Eis precisamente o erro a que conduz a ordem
de Locke.
Tendo atingido, não sei como, a ideia abstracta da substância,
vê-se que, para admitir uma substância única, seria necessário 61
supor a existência de qualidades incompatíveis que se excluíssem
mutuamente, tais como o pensamento e a extensão, sendo uma
delas essencialmente divisível e excluindo a outra toda e qual­
quer possibilidade de divisão. Aliás, concebe-se que o pensamen­
to - ou, se preferem, o sentimento - é uma qualidade primitiva
e inseparável da substância a que pertence; que o mesmo se dá com
a extensão, em relacão à sua substância. Dai se conclui que os se­
res que perdem uma destas qualidades perdem a substância a que
ela pertence, e que, por conseguinte, a morte não é mais do que uma
separação de substâncias, e que os seres em que essas duas qua­
lidades se encontram reunidas são compostos de duas substâncias
às quais essas duas qualidades pertencem.
Ora, considerai a distância que ainda há entre a noção das
duas substâncias e a da natureza divina; entre a ideia incompreen­
sível da acção da nossa alma sobre o nosso corpo e a ideia da acção
de Deus sobre todos os seres. As ideias de criação, de aniquilamen­
to, de ubiquidade, de eternidade, de todo-poderio, a dos atributos
divinos, todas estas ideias que é dado a tão poucos homens ver tão
confusas e tão obscuras como verdadeiramente o são, e que não
têm nada de obscuro para o povo -porque ele não compreende na­
da disso -, como se apresentarão elas em toda a sua força, isto é,
com todo o seu mistério, a jovens espíritos que ainda estão ocupa­
dos com as primeiras operações dos sentidos e que só concebem
aquilo em que podem tocar? E em vão que os abismos do infinito se
mantêm abertos em redor de nós; uma criança não compreende
isso o bastante para se sentir assustada; os seus olhos, excessiva­
mente fracos, não lhe conseguem avaliar a profundeza. Tudo é in­
finito para as crianças; não são capazes de pôr limites a nada; não
porque queiram exagerar as medidas, mas porque o seu entendi­
mento é limitado. Até já notei que elas situam o infinito menos
além que aquém das dimensões que lhes são conhecidas. Avalia­
rão as dimensões de um espaço imenso muito mais pelos seus pés
que pelos seus olhos; para elas, esse espaço não será m ais exten­
sodo que aquilo que poderão ver, mas irá atém aislonge do quelhes
é possível caminhar. Quando se lhes fala do poder de Deus, elas
consideram-no quase tão forte como os seus pais. Em todas as coi­
sas, sendo o seu conhecimento a medida dos possíveis, consideram
sempre tudo quanto se lhes diz menos importante do que aquilo
que sabem. São estes os raciocínios naturais da ignorância e dafra­
quezade espírito. Ajax teria receado medir-se contraAquiles, mas
desafia Júpiter para o combate, porque conhece Aquiles e não
conhece Júpiter. Um camponês suíço que se supunha o mais rico
dos homens e a quem se esforçavam por explicar o que era um rei,
perguntava com altivez se um rei poderia ter cem vacas na mon­
tanha.
Faço ideia da quantidade de leitores que se sentirão surpreen-
62 didos por me verem seguir toda a primeira idade do meu pupilo
sem lhe falar de religião. Aos 15 anos, ele não sabia se tinha uma
alma, e talvez aos 18 anos não seja o momento apropriado para lho
dizer; pois, se lho disserem mais cedo do que convém, corre o ris­
co de nunca o vir a saber.
Se eu tivesse de pintar a estupidez irritante, pintaria um
pedante a ensinar o catecismo a crianças; se eu pretendesse en­
louquecer uma criança, obrigá-la-ia a explicar o que diz quando
recita o seu catecismo.
Objectar-me-ão que, como a m aioria dos dogmas do cristianis­
mo são mistérios, esperar que o espírito humano seja capaz de os
conceber, não é de esperar que a criança seja homem, é esperar que
o homem deixe de o ser.
A isso, começo por responder que há mistérios que o homem
não só está na impossibilidade de conceber como de crer, e que não
vejo o que se ganha em ensiná-los às crianças, a não ser ensiná-las
a mentir muito cedo. E ainda digo que, para admitir os mistérios,
é necessário compreender, pelo menos, que eles são incompreensí­
veis; e as crianças nem sequer são capazes desta concepção. Para
a idade em que tudo é mistério, não existem mistérios propriamen­
te ditos.
É preciso crer em Deus para obter a salvação. Este dogma mal
compreendido é o princípio da intolerância sanguinária e a causa
de todas essas vãs instruções que acenam o golpe mortal à razão
humana, habituando-a a satisfazer--se com palavras. E certo que
não se deve perder um momento, para poder merecer a salvação
eterna: mas se, para a obter, basta repetir certas palavras, não ve­
jo o que nos impede de povoar o céu com pardais e melros, e não só
com as crianças.
A obrigação de crer supõe essa possibilidade. O filósofo que não
crê comete um erro, porque utiliza mal o raciocínio que cultivou e
se encontra na possibilidade de compreender as verdades que ne­
ga. Mas a criança que professa a religião cristã, em que crê? No que
compreende; e compreende tão mal o que lhe mandam repetir que
se lhe disserdes o contrário também estará disposta a acredi­
tar-vos.
A fé das crianças e de muitos homens é um assunto de geogra­
fia. Serão mais recompensados os que nasceram em Roma que os
que nasceram na Meca? A um diz--se que Maomé é o profeta de
Deus; a outro, diz-se que Maomé é um velhaco, e ele diz que
Maomé é um velhaco. Cada um deles teria afirmado o que afirma
o outro, se tivessem trocado de local de nascimento. Será possível
partir de duas disposições tão parecidas para enviar um para o Pa­
raísoeooutro para o Inferno? Quando uma criança diz que crê em
Deus, não é em Deus que ela crê, mas em Pedro ou em Tiago, que
lhe dizem que existe qualquer coisa que se chama Deus; e ela acre­
dita, como Eurípedes:
63
O Júpiter! car de toi rien rinon
Je ne connais seulement que le nom 1•

Estamos convencidos de que nenhuma das crianças que mor­


rem antes de atingirem a idade da razão será privada da felicida­
de eterna; os católicos pensam da mesma maneira de todas as
crianças que receberam o baptismo, mesmo se nunca ouviram fa­
lar de Deus. Por conseguinte, há casos em que se pode ser salvo sem
acreditar em Deus, e esses casos têm lugar, ou bem durante a in­
fância ou bem no estado de demência, quando o espírito humano
está impossibilitado de efectuar as operações necessárias para re­
conhecer a Divindade. Aqui, a diferença que vejo entre vós e eu é
que vós pretendeis que, aos 7 anos, as crianças já têm essa capa­
cidade, e que eu não concebo que elas a tenham nem sequer aos 15.
Que eu esteja enganado ou tenha razão, não se trata aqui de um
artigo de fé, mas de uma simples observação de história natural.
Baseando-se no mesmo princípio, é evidente que um homem
que chega à velhice sem acreditar em Deus não será por isso pri­
vado da sua presença na outra vida, caso a sua cegueira não tenha
sido voluntária; e digo que nem sempre o é. Vós concordais com is­
to, quando se trata de insensatos que uma doença priva das suas
faculdades espirituais, mas não da sua qualidade de homem, nem,
por conseguinte, do direito às benfeitorias do seu Criador. Então,
por que não pensar do mesmo modo a respeito daqueles que, afas­
tados desde a mais tenra infância de toda a espécie de sociedade,
levaram uma vida absolutamente selvagem, privada das luzes que
só se adquirem no comércio com os homens2? Porque, evidente­
mente, é impossível que tal selvagem possa alguma vez elevar as
suas reflexões até ao conhecimento do verdadeiro Deus. A razão
diz-nos que um homem só é punível pelas faltas cometidas volun­
tariamente, e que uma ignorância invencível não lhe poderia ser
imputada como crime. Daí se segue que, perante ajustiça eterna,
todos os homens que cressem, se tivessem os conhecimentos ne­
cessários, seriam considerados como crentes, e que não haverá in­
crédulos castigados a não ser aqueles cujo coração se fecha para a
verdade.
Evitemos anunciar a verdade àqueles que não se encontram
em estado de a compreender, pois isso seria substituir um erro por

1 PLUTARCO, Traité de l'Amour, tradução de Amyot. Era assim que


começava a tragédia de Menalipes; mas os clamores do povo de Atenas
obrigaram Euripedes a modificar essa introdução.
2 Sobre o estado natural do espírito humano e a respeito da lentidão
dos seus progressos, vede a primeira parte do Discurso sobre a desigual-
64 dade.
outro. Valeria mais não fazer nenhuma ideia sobre a Divindade
:"que ter sobre ela ideias baixas, fantásticas, injuriosas, indignas
dela; é menos mal não a conhecer que ultrajá-la. «Preferiria>>, diz
o bom Plutarco, «que se acreditasse que não existe nenhum Plu­
tarco no mundo, a que se dissesse que Plutarco é injusto, invejoso,
ciumento, e tão tirano que exige mais que o que permite fazer.»
O grande mal das imagens disformes da Divindade que se im­
primem no espírito das crianças é que estas as conservam duran­
te todas as suas vidas, e que, quando adultas, não concebem outro
Deus que não seja o das crianças. Na Suíça, vi uma boa e piedosa
mãe de família tão convencida desta máxima que, durante a pri­
meira idade do seu filho, não lhe quis ensinar a religião, receando
que, satisfeito com essa instrução grosseira, ele negligenciasse
uma melhor quando atingisse a idade da razão. Essa criança só
ouvia falar de Deus com recolhimento e reverência; e, quando que­
ria ser ela a falar, impunham-lhe silêncio, como se se tratasse de
um assunto excessivamente sublime e demasiado grande para ela.
Esta reserva excitava a sua curiosidade, e o seu amor-próprio as­
pirava pelo momento de conhecer esse mistério que lhe escondiam
tão cuidadosamente. Quanto menos lhe falavam de Deus, menos
suportavam que ele falasse dele, e m ais ela se interessava pelo
assunto: aquela criança via Deus por toda a parte. E o que eu re­
cearia desse ar de mistério indiscretamente afectado seria que,
excitando excessivamente a imaginação de um adolescente, se
viesse a alterar o seu juízo e que se fizesse dele um fanático, em vez
de um crente.
Mas não receemos nada de semelhante para o meu Emílio, que,
recusando constantementeprestar atenção a tudo quanto estáaci­
ma da sua compreensão, escuta com a mais profunda indiferença
as coisas que não compreende. Há tantas a respeito das quais ele
se habituou a dizer: «<sso está acima das minhas possibilidades>>,
que mais uma não o atrapalharia; e, quando ele se começa a
preocupar com essas questões importantes, não é por ter ouvido fa­
lar delas, mas porque o progresso n atural do seu entendimento
conduz as suas indagações para esse assunto.
Já vimos por que caminho o espírito humano cultivado se apro­
xima destes mistérios; e reconheço que, no próprio seio da socieda­
de, ele os atinge naturalmente, mas numa idade mais avançada.
Todavia, como na mesma sociedade há causas inevitáveis através
das quais o progresso de entendimento se acelera, se n ão se acele­
rasse da mesma maneira o progresso das luzes que servem parare­
gular estas paixões, seria então que se sairia realmente da ordem
· da n atureza, e que o equilíbrio se desfaria. Quando não se tem a
possibilidade de moderar um desenvolvimento exageradamente
rápido, é preciso dirigir, com a mesma rapidez, aqueles que lhe de­
vem corresponder, de forma a que a ordem não seja invertida, e
aquilo que deve avançar junto não seja separado, e que o homem 65

L.B.S24-S
-todo inteiro em todos os momen tos da sua vida - não chegue a
um determinado ponto através de uma das suas faculdades e a ou- ·

tro através das outras.


Aqui, vejo que se levanta uma grande dificuldade! Dificulda­
de tanto maior quanto ela consiste menos nas coisas que na pusi­
lanimidade daqueles que não se atrevem a resolvê-la. Pelo menos,
comecemos por ousar propô-la. Uma criança deve ser educada na
religião de seu pai: provam-lhe sempre, de uma maneira muito
convincente, que essa religião - seja ela qual for - é a única
verdadeira: que todas as outras não passam de extravagâncias e
absurdidade. Neste ponto, a força dos argumentos depende abso­
lutamente do país em que eles são propostos. Que um turco - que
considera o cristianismo tão ridículo em Çonstantinopla - vá ver
o que se pensa do maometismo, em Paris! E, sobretudo, em matéria
de religião, que a opinião triunfa. Mas nós, que pretendemos sa­
cudir o seu jugo em todas as coisas, nós que nada queremos conce­
der à autoridade - nós que nada queremos ensinar ao nosso
Emílio que ele não possa aprender por si próprio, em todos os
países -, em que religião o iremos educar? Em que seita ins­
creveremos o homem da natureza? A resposta é muito simples,
parece-me; não o inscreveremos nem nesta nem naquela, mas
colocá-lo-em os em estado de escolher aquela para a qual a melhor
utilização da sua razão o deverá conduzir.

Incedo per ignes


Su ppositos cineri doloso.

Pouco importa: até aqui, o zelo e a boa-fé serviram-me de pru­


dência: espero que esses abonadores não me abandonem, em caso
de necessidade. Leitores, não receeis, da minha parte, precauções
indignas de um amigo da verdade: nunca esquecerei a minha di­
visa; mas tenho todo o direito de desconfiar dos meus raciocínios.
Em vez de aqui vos dizer, por minha própria vontade, o que penso,
dir-vos-ei o que pensava um homem que valia mais que eu.
Garanto a verdade dos factos que vos vão ser relatados; eles acon­
teceram ao autor do papel que passo a transcrever: cabe-vos, a vós,
ver se é possível tirar dele algumas reflexões úteis sobre o assunto
de que se trata. Não vos proponho, como regra, nem o sentimento
de outrém nem o meu; proporciono-vos a possibilidade de exami­
nar.

«Faz agora trinta anos que, numa cidade da Itália, um jovem


expatriado se via reduzido àmais extrema miséria.Nasceranuma
família de calvinistas; mas, em consequência de uma estouvanice,
acabou por se encontrar na situação de fugitivo e sem meios de
subsistência, num país estrangeiro; então, mudou de religião pa-
66 ra poder ganhar o seu pão. Nessa cidade, havia um hospício para
os prosélitos, que o admitiu. Durante um debate instrutivo, de­
ram-lhe dúvidas que ele nunca tivera e ensinaram-lhe o mal que
ele ignorava: ouviu novos dogmas e viu costumes ainda m ais no­
vos; viu-os e quase foi vítima deles. Quis fugir, mas fecharam-no;
queixou-se, e puniram-nopelos seusqueixumes: à mercê dos seus
tiranos, passou a ser tratado como um criminoso, por não ter queri­
do ceder ao crime. Que aqueles que sabem como a primeira expe­
riência da violência e da injustiça irrita um jovem coração inocen­
te façam uma ideia do estado em que se encontrava o seu. Dos seus
olhos, corriam lágrimas de raiva, e a indignação sufocava-o: im­
plorava ao Céu e aos homens, confiava-se a toda a gente, mas nin­
guém lhe dava ouvidos. Via unicamente vis lacaios submetidos ao
infame que o ultrajava, ou cúmplices do mesmo crime que troça­
vam da sua resistência e o incitavam para que os imitasse. Esta­
ria perdido se não tivesse sido um honesto eclesiástico que foi rio
hospício tratar de um certo assunto e que ele conseguiu consultar
secretamente. O eclesiástico era pobre e precisava de toda a gen­
te:mas viu que o oprimido ainda tinha mais necessidade dele e não
hesitou em facilitar a sua evasão, arriscando-se a arranjar um pe­
rigoso inimigo.
»Tendo escapado do vício para regressar à indigência, o jovem
debatia-se - mas sem êxito - contra o seu destino: durante um
momento, supôs tê-lo vencido. Quando sentiu o primeiro indício de
sorte, esqueceu os seus desgostos e o seu protector. Em breve se viu
punido por essa ingratidão: todas as suas esperanças se desvane­
ceram; embora a suajuventude o favorecesse, as suas ideias roma­
nescas estragavam tudo. Não possuindo nem suficientes talentos
nem bastante arte para poder enveredar por um caminho fácil, não
sabendo ser nem modesto nem maldoso, pretendeu tantas coisas
que não conseguiu alcançar nenhuma. Recaído na sua primitiva
miséria, sem pão, sem asilo, prestes a morrer de fome, voltou a lem­
brar-se do seu benfeitor.
»Volta a procurá-lo, encontra-o e é bem recebido: ao vê-lo, o
eclesiástico recorda-se de uma boa acção que praticara; uma
recordação dessas alegra sempre a alma. Esse homem era natu­
ralmente humano, benevolente; sentia os sofrimentos dos outros
como se fossem seus, e o bem-estar não lhe endurecera o coração;
enfim, as lições da sageza e uma virtude esclarecida tinham forta­
lecido a sua bondade natural. Acolhe o jovem, arranja-lhe um alo­
jamento e recomenda-o aos hospedeiros; compartilha com ele o
pouco que tem, que mal chega para dois. Ainda faz mais: instrói­
-o, consola-o, ensina-lhe a difícil arte de suportar pacientemen­
te a adversidade. Homens de preconceitos, seria de um sacerdote.
seria na Itália que tereís esperado tudo isso?
»Esse honesto eclesiástico era um pobre vigário saboiano, que
uma aventura da juventude colocara em más relações com o seu
bispo e que atravessara as montanhas para procurar os recursos 67
que lhe faltavam no seu país. Era um homem de espírito e letra­
do; e, com uma figura interessante, encontrara protectores que o
tinham colocado em casa de um ministro, para educar o seu filho.
Ele preferia a pobreza à dependência, e ignorava como se com­
portar perante os grandes. Não permaneceu muito tempo na casa
deste; ao deixá-lo, não perdeu a sua estima, e, como vivia comedi­
damente e era amado por toda a gente, esperava voltar a entrar
nas boas graças do seu bispo e dele obter alguma pequena paróquia
nas montanhas, para lá passar o resto da sua vida. Era esse o úl­
timo desejo da sua ambição.
»Sentia uma inclinação natural pelo jovem fugitivo, e isso le­
vou-o a examiná-lo cuidadosamente. Constatou que a má sorte já
lhe murchara o coração, que o opróbio e o desprezo tinham abati­
do a sua coragem, e que o seu orgulho - transformado em amar­
go despeito - só lhe mostrava, na injustiça e na dureza dos ho­
mens, o vício da sua natureza e a quimera da virtude. Vira que a
religião só serve de máscara para o interesse, e o culto sagrado de
salvaguarda para a hipocrisia; vira, na subtileza das vãs discus­
sões, o paraíso e o inferno oferecidos como prémios a trocadilhos;
vira a sublime e primitiva ideia da Divindade desfigurada pelas
fantasiosas imaginações dos homens; em considerando que para
crer em Deus seria necessário renunciar ao entendimento que se
recebera dele, considerou com o mesmo desdém os nossos ridícu­
los devaneios e o objecto ao qual os aplicamos. Sem nada saber do
que é, sem nada imaginar sobre a generação das coisas, mergulhou
na sua estúpida ignorância com um profundo desprezo por todos
aqueles que pensavam saber mais que ele.
>>O esquecimento da religião- seja ela qual for - conduz ao
esquecimento dos deveres do homem. Esse progresso já estava
mais de metade efectuado, no coração do libertino. Contudo, não
era uma criança mal nascida; mas a incredulidade e a miséria, ten­
do abafado, pouco a pouço, o seu natural, arrastavam-no rapida­
mente para a sua perda, e só lhe preparavam os costumes de um
pedinte e a moral de um ateu .
O mal, quase inevitável, não estava completamente consu­
mado. O jovem tinha conhecimentos e a sua educação não fora ne­
gligenciada. Encontrava-se nessa idade feliz em que o sangue em
fermentação começa a aquecer a alma sem a sujeitar ao furor dos
sentidos. A dele ainda estava pura. Uma vergonha nativa, um ca­
rácter tímido compensavam o seu embaraço e prolongavam, para
ele, essa época em que vós conservais o vosso aluno com tantos cui­
dados. O odioso exemplo de uma depravação brutal e de um vício
sem encanto, longe de animarem a sua imaginação, tinham-na
atrofíado. Durante muito tempo, o nojo substituiu, nele, a virtude,
para conservar a sua inocência; esta só poderia sucumbir a mais
doces seduções.
68 »0 eclesiástico apercebeu-se do perigo e dos recursos. As difi-
culdades não o desanimaram: a sua obra agradava-lhe; resolveu
levá-la até ao cabo e devolder à virtude a vítima que arrancara à
infâmia. Estudou bem a maneira de executar o seu projecto: a bele­
za do motivo animava a sua coragem e inspirava-lhe meios dignos
do seu zelo. Fosse qualfosse o resultado, tinha a certeza de não per­
der o seu tempo. Consegue-se sempre o que se pretende, quando
só se quer fazer o bem. Começou por conseguir conquistar a con­
fiança do prosélito, não lhe vendendo as suas benfeitorias, não se
tornando importuno, não lhe fazendo sermões, colocand<rSe sem­
pre ao seu alcance, fazendo-se pequeno para se igualar a ele. Era,
parece-me, um espectáculo bastante comovedor, ver um homem
grave tornar-se o camarada de um garoto e a virtude prestar-se
ao tom do desregramento, para dele triunfar com maior certeza.
Quando o estouvado lhe ia fazer as suas loucas confidências, e de­
sabafar com ele, o sacerdote escutava-o, punha-o à vontade; sem
aprovar o mal, interessava-se por tudo: nunca uma indiscreta
censura vinha interromper a tagarelice do jovem e oprimir-lhe o
coração; o prazer com que se supunha escutado aumentava o que
ele experimentava ao contar tudo. Assim se efectuou a sua confis­
são geral, sem que ele tivesse tido a intenção de confessar fosse o
que fosse.
»Depois de bem ter estudado os seus sentimentos e o seu ca­
rácter, o sacerdote compreendeu claramente que, embora não
fosse ignorante para a idade que tinha, ele se esquecera de tudo
quanto importava saber, e que o opróbio a que o reduzira a sua si­
tuação abafara nele toda a verdadeira noção do bem e do mal. Há
um grau de embrutecimento que retira a vida à alma; e a voz in­
terior não consegue fazer-se ouvir por aquele que só pensa em ali­
mentar-se. Para proteger ojovem infortunado dessa morte moral
de que tão perto estava, começou por despertar o seu amor-próprio
e a estima por si mesmo: fazia-lhe ver um futuro mais feliz na boa
utilização dos seus talentos; reanimava, no seu coração, um ardor
generoso através das belas acções de outros; levando-o a admirar
aqueles que as tinham praticado, dava-lhe o desejo de praticar
acções semelhantes. Para o afastar insensivelmente da sua vida
ociosa e vagabunda, pedia-lhe que fizesse resumos de livros esco­
lhidos; e, fingindo ter necessidade desses resumos, alimentava ne­
le o nobre sentimento da gratidão. Instruía-o directamente com
esses livros; levava-o a retomar uma boa opinião de si mesmo pa­
ra que não se supusesse um ser inútil para tudo quanto fosse o
bem, e para nunca mais desejar tornar-se desprezível aos seus
próprios olhos.
>>Uma bagatela dar-vos-á uma ideia da arte que esse homem
benfazejo empregava para elevar insensivelmente o coração do
seu discípulo acima da baixeza, sem parecer interessar-se pela
sua instrução. O eclesiástico tinha uma probidade tão bem reco­
nhecida e um discernimento tão seguro, que muitas pessoas pre- 69
feriram fazer passar as suas esmolas pelas suas mãos que pelas
dos ricos curas das cidades. Um dia que lhe tinham entregado
algum dinheiro para distribuir pelos pobres, o jovem teve - a tí­
tulo de pobre - a covardia de lhe pedir algum. 'Não!', respondeu
o eclesiástico, 'somos irmãos, pertenceis-me, e não posso tocar nes­
te depósito para meu uso pessoal.' E, a seguir, do seu próprio di­
nheiro, deu-lhe a quantia que o jovem lhe pedira. Lições deste gé­
nero raramente se perdem no coração dos jovens que não estão
completamente corrompidos.
,Já estou cansado de falar na terceira pessoa; e é uma precau­
ção absolutamente inútil; pois vos compreendestes certamente,
caro concidadão, que esse infeliz fugitivo era eu próprio: creio-me
bastante afastado das desordens da minha juventude para poder
ousar confessá-las, e a mão que me salvou bem merece que, à custa
de um pouco de vergonha, eu preste, pelo menos, alguma honra aos
seus bons ofícios.
Ȇ que mais me impressionava era ver, na vida privada do meu
digno mestre, a virtude sem hipocrisia, a humanidade sem fraque­
za, discursos sempre directos e simples, além de um comportamen­
to sempre de conformidade com esses discursos. Não o via interes­
sado em saber se aqueles que ele auxiliava iam às vésperas, se se
confessavam com frequência, se jejuavam nos dias indicados pela
Igreja, se comiam magro, nem em impor-lhes outras condições se­
melhantes, sem as quais, mesmo que se morra de miséria, não se
pode esperar nenhuma assistência dos devotos.
»Encorajado pelas suas observações, longe de exibir aos seus
olhos o zelo afectado de um recém-convertido, não lhe escondia as
minhas maneiras de ver as coisas, e não via que ele se escandali­
zasse com isso. Algumas vezes, poderia ter-me dito a mim mesmo:
'Ele desculpa a minha indiferença pelo culto que abracei, em favor
daque também vê em mim pelo culto emque nasci; sabeque o meu
desdém não é um caso de preferência.' Mas que deveria eu pensar
quando, por vezes, o ouvia aprovar os dogmas contrários aos da
Igreja romana e parecer apreciar mediocremente todas as ceri­
mónias desta?
Tê-lo-ia criado protestante disfarçado, se o tivesse visto me­
nos fiel a esses mesmos ritos de que tão pouco caso parecia fazer;
mas, sabendo que ele desempenhava, sem testemunhas, os seus
deveres de sacerdote tão pontualmente como perante os olhares do
público, acabei por não saber o que pensar dessas contradições.
Além do pequeno defeito que outrora lhe merecera a reprovação
dos seus superiores e de que n ão s<> corrigira completamente, a sua
vida era exemplar, os seus costumes eram irrepreensíveis, os seus
discursos honestos e judiciosos. Vivendo com ele na maior intimi­
dade, eu aprendia a respeitá-lo, cada vez mais; e, como tantas bon­
dades me tinham conquistado completamente o coração, esperava
70 com uma curiosa inquietação o momento em que saberia o princí·
pio sobre o qual ele baseava a uniformidade de uma vida tão sin­
gular.
»Esse momento levou tempo a chegar. Antes de se abrir com o
seu discípulo, esforçou-se por fazer germinar as sementes de ra­
zão e de bondade que ele lhe lançava na alma. O que, em mim, era
mais difícil de destruir, consistia numa orgulhosa misantropia,
numa certa amargura contra os ricos e os felizes do mundo, como
se tivessem conseguido tudo isso à minha custa, e que a sua pre­
tensa felicidade me tivesse sido roubada a mim. A louca vaidade
de juventude, que escoiceia contra a humilhação, só me incutia
esse sentimento de cólera, e o amor-próprio - que o meu mentor
tentava despertar em mim -, levando-me à vaidade, tornava os
homens ainda mais vis aos meus olhos, e apenas conseguia acres­
centar o desprezo ao ódio que por eles sentia.
»Sem combater directamente esse orgulho, ele impediu-o de se
transformar em dureza de alma; e sem me retirar a estima por
mim mesmo, tornou-a menos desdenhosa para com o meu pró­
ximo. Afastando sempre a vã aparência e mostrando-me os verda­
deiros males que ela encobre, ensinava-me a deplorar os erros dos
seus semelhantes, a apiedar-me das suas misérias e a lastimá-los
mais que a invejá-los. Cheio de compaixão pelas fraquezas huma­
nas - graças ao profundo sentimento das suas -, por toda a par­
te via homens que eram vítimas dos seus próprios vícios e dos dos
outros; via os pobres gemerem sob o jugo dos ricos, e os ricos sob o
jugo dos preconceitos. 'Crede-me', dizia ele, 'as nossas ilusões, em
vez de nos esconderem os nossos males, aumentam-nos, dando um
valor àquilo que o não tem, e tornando-nos sensíveis a mil falsas
privações que, sem elas, não sentiríamos. A paz da alma consiste
no desprezo por tudo quanto a pode perturbar: o homem que mais
caso faz da vida é aquele que menos sabe tirar partido dela, e
aquele que mais avidamente aspira à felicidade é sempre o mais
infeliz.'
,,'Ai, que tristes imagens!', exclamava eu, com amargura: 'Se
nos devemos recusar a tudo, para que nascemos? E se devemos
desprezar a própria felicidade, quem é que pode ser feliz?' 'Eu
sou-o!', respondeu um dia o sacerdote, num tom que me espantou.
'Feliz, vós!? Tão pouco afortunado, tão pobre, exilado, perseguido,
achais que sois feliz? E que fizestes para o ser?' 'Meu filho', respon­
deu ele, 'posso dizer-vo-lo.'
»Então, fez-me compreenderque, após ter recebido as minhas
confissões, desejava fazer-me as suas. 'Desabafarei no vosso seio',
dissê êlê, abraçan do-me, 'todos os sentimentos do meu coração.
Ver-me-eis, se não tal como sou, pelo menos tal como eu me vejo
a mim mesmo. Depois de terdes ouvido a minha completa profis­
são de fé, quando bem conhecerdes o estado da minha alma, sabe­
reis por que razão me considero feliz, e - se pensardes como eu -
o que tendes a fazer para o ser. Mas estas confissões não se fazem 71
num instante; é preciso muito tempo para vos expor tudo quanto
penso sobre o destino do homem e sobre o verdadeiro valor da vi­
da: escolhamos uma hora e um local confortável para nos entregar­
mos tranquilamente a essa conversa.'
>>Mostrei-me impaciente por ouvi-lo. A conversa ficou m arca­
da para a manhã do dia seguinte. Estávamos no Verão, levantámo­
-nos ao nascer do Sol. Ele conduziu-me para fora da cidade, para
. o alto de uma grande colina, no sopé da qual passava o Pó, cujo cur­
so se via através das férteis margens que banha; ao longe, a imen-
sa cadeia dos Alpes coroava a paisagem; os raios do sol-nascente
já iluminavam as planícies, e, projectando sobre os campos as suas
longas sombras, as árvores, os outeiros e as casas enriqueciam com
mil variedades de luz o mais belo quadro que possa ser visto pelos
olhos humanos. Ter-se-ia dito que a natureza exibia aos nossos
olhos toda a sua magnificência, para oferecer o texto à nossa con­
versa. Foi ali que, depois de, em silêncio, ter contemplado demora­
damente esses objectos, o homem de paz me falou desta maneira:>>

PROFISSÃO DE FÉ DO VIGÁRIO SABOIANO

Meu filho, não espereis de mim nem sábios discursos nem ra­
ciocínios profundos. Não sou um grande filósofo e pouco interes­
sado estou em sê-lo. Mas, por vezes, tenho bom-senso, e amo sem­
pre a verdade. Não pretendo argumentar convosco, nem sequer
tentar convencer-vos; basta-me expor-vos o que penso na simpli­
cidade do meu coração. Consultai o vosso, durante o meu discur­
so; é tudo quanto vos peço. Se estou enganado, é de boa-fé; isso é
quanto basta para que o meu erro não me seja imputado como um
crime: se vos enganásseis da mesma maneira, pouco mal haveria
nisso. Se penso bem, a razão é-nos comum, e temos o mesmo inte­
resse em escutá-la; por que não haveríeis de pensar como eu?
Nasei camponês e pobre, destinado - pela minha condição ­
a cultivar a terra; mas acharam mais bonito que eu aprendesse a
ganhar o meu pão na profissão de sacerdote, e encontraram a ma­
neira de me pagar os estudos. Realmente, nem os meus pais nem
eu pensávamos procurar nela o que era bom, verdadeiro, útil, mas
unicamente o que era preciso saber para ser ordenado. Aprendi o
que aeh aram que devia aprender, disse o que quiseram que disses­
se, fiz os votos que me ditaram, e ordenaram-me padre. Mas não
tardei a sentir que, obrigando-me a não ser homem, prometera
mais do que podia cumprir.
Dizem-nos que a consciência é a obra dos preconceitos; contu­
do, sei por experiência própria que ela se obstina a seguir a ordem
72 da natureza, contra todas as leis dos homens. Bem nos podem proi-
mesmo: «Amo a verdade, procuro-a e não consigo reconhecê-la;
que ma mostrem e agarro-me a ela� por que motivo se esquiva ela
ao interesse de um coração feito para a adorar?»
Embora tenha muitas vezes experimentado males maiores,
nunca levei uma vida tão constantemente desagradável como nes­
sa época de perturbações e de ansiedade, em que, errando, cons­
tantemente, de dúvida em dúvida, das minhas longas meditações
apenas recolhia incerteza, obscuridade, contradições sobre a cau­
sa do meu ser e sobre a regra dos meus deveres.
Como é possível ser-se simultaneamente céptico, por sistema,
e de boa-fé? Nunca o poderei compreender. Esses filósofos, ou bem
não existem ou então são os mais infelizes de todos os homens. A
dúvida sobre as coisas que nos importa conhecer é um estado de­
masiado violento para o espírito humano: não lhe pode resistir du­
rantemuito tempo; mesmosem querer, acaba porterde decidir, de
uma ou de outra maneira, e prefere ficar no engano a nada crer.
O que redobrava a minha confusão era o facto de que, tendo
nascido numa Igreja que tudo decide, que não autoriza nenhuma
dúvida, um único ponto rejeitado obrigava-me a rej eitar todos os
outros, e de que a impossibilidade de admitir tantas decisões ab­
surdas também me impedia de admitir aquelas que o não eram. Di­
zendo-me: «Crede em tudo!», impediam-me de crer fosse no que
fosse, e eu já nem sabia onde me deter.
Consultei os filósofos, folheei os seus livros, examinei as suas
diversas opiniões; achei-os todos orgulhosos, afirmativos, dog­
máticos ---'- mesmo no seu pretenso cepticismo -, não ignorando
nada, não demonstrando nada, troçando uns dos outros; e esse
ponto, que é comum a todos eles, pareceu-me ser o único em que
todos concordavam. Triunfantes quando atacam, não têm vigor
quando se defendem. Se examinais as suas razões, só as têm pa­
ra destruir; se contais os seus caminhos, cada um está limitado ao
seu; só se põem de acordo para discutir; prestar-lhes ouvidos não
era o meio de me livrar da minha incerteza.
Compreendi que a insuficiência do espírito humano é a pri­
meira causa dessa prodigiosa diversidade de sentimentos, e que o
orgulho é a segunda. Nós não temos amedida dessa imensa máqui­
na, não podemos calcular as suas proporções; não lhe conhecemos
nem as primeiras leis nem a causa final; ignoramo-nos a nós mes­
mos; não conhecemos nem a nossa natureza nem o nosso princípio
activo; mal sabemos se o homem é um ser simples ou composto:
mistérios impenetráveis rodeiam-nos por todos os lados; pairam
porcim a da região sensível; paraos compreendermos, supomos ter
inteligência, e apenas temos imaginação. Cada um de nós abre ­
através desse mundo imaginário - um caminho que supõe ser o
bom; nenhum de nós pode saber se o caminho que abriu conduz ao
objectivo que tem em mente. Porém, queremos compreender tudo,
74 tudo conhecer. A única coisa que não conseguimos é ignorar o que
bir isto ou aquilo, que o remorso nos censura sempre ligeiramen­
te o que a natureza bem ordenada nos permite, e, com muito mais
razão, o que ela nos prescreve. Ó bom-jovem, ela ainda nada dis­
se aos vossos sentidos: vivei muito tempo na condição feliz em que
a voz dela é a inocência. Lembrai-vos de que a ofendemos muito
m ais quando a prevenimos que quando a combatemos; é preciso
começar por aprender a resistir, para saber quando podemos ceder
sem cometer crime.
Desde muito jovem, sempre considerei o casamento como a
mais importante e a mais santa instituição da natureza. Tendo­
-me retirado o direito de me submeter a ela, resolvi não a profanar;
porque, apesar dos estudos, tendo sempre vivido uma vida unifor­
me e simples, conservara no meu espírito toda a luminosidade das
luzes primitivas: as máximas do m undo não as tinham escurecido,
e a minha pobreza afastava-me das tentações que ditam os sofis­
mas do vício.
Estaresoluçãofoi precisamente o queme perdeu : o meurespei­
to pelo leito de outrém deixou as minhas faltas a descoberto. Foi
preciso expiar o escândalo: detido, interdito, expulso, fui muito
mais a vítima dos meus escrúpulos que da minha incontinência; e,
pelas censuras que acompanharam a minha desgraça, tive mo­
tivos para compreender que, muitas vezes, basta agravar a falta
para escapar ao castigo.
Poucas experiências deste género levam até longe um espíri­
to que reflecte. Vendo, pelas minhas tristes observações, inverti­
das as ideias que eu tinha do que era justo, honesto, e de todos os
deveres do homem, cada dia ia perdendo alguma das opiniões que
recebera; asqueme restavamjá não eram suficientes para, no seu
conjunto, formarem um corpo que se pudesse suster por si mesmo,
e, pouco a pouco, senti que, no meu espírito, a evidência dos prin­
cípios se obscurecia, até que, finalmente, reduzido a já não saber
o que pensar, cheguei ao mesmo ponto em que vos encontrais; com
a diferença de que a minha incredulidade -fruto serôdio de uma
idade mais madura - se formara com mais dificuldade, e deveria
ser mais difícil de destruir.
Encontrava-me nessas disposições de incerteza e de dúvida
que Descartes exige para a busca da verdade. Este estado, pouco
feito para durar, é inquietante e penoso; só o interesse pelo vício ou
a preguiça da alma nos permitem estagnar nele. O meu coração
não estava suficientemente corrupto para me sentir bem nesse es­
tado; e não há nada que melhor conserve o hábito da reflexão que
sentir-se mais satisfeito consigo próprio que com a sua fortuna.
Meditava, pois, na triste sorte dos mortais que flutuavam
sobre este oceano de opiniões humanas, sem leme, sem bússola, e
entregues às suas paixões tempestuosas, sem outro guia que não
fosse um piloto inexperiente que desconhece a sua rota, e que não
sabe, nem de onde vem nem para aonde vai. Dizia, para comigo 73
não conseguimos saber. Preferimos entregar-nos ao acaso, e crer
naquilo que não existe, a reconhecer que nenhum de nós pode com­
preender o que é. Pequena parte de um grande todo cujos limites
não alcançamos, e cujo autor entrega às nossas loucas discussões,
somos suficientemente vãos para pretender decidir o que é esse to­
do, e o que nós próprios somos, em relação a ele.
Mesmo que os filósofos tivessem a possibilidade de descobrir a
verdade, qual, de entre eles, se interessaria por ela? Cada um de­
les sabe muito bem que o seu sistema não tem mais fundamentos
que os dos outros; mas sustenta-o, porque é seu. Não houve um
único que, tendo chegado a distinguir o verdadeiro e o falso, não ti­
vesse preferido a mentira que encontrou à verdade descoberta por
outro. Onde se encontra o filósofo que, para defender a sua glória,
não enganaria cientemente o género humano? Onde se encontra
aquele que, no âmago do seu coração, tem outro propósito que não
seja o de se distinguir? Contanto que se eleve acima do vulgar, con­
tanto que apague o brilho dos seus concorrentes, que mais deseja
ele? O essencial é pensar diferentemente dos outros. Para os cren­
tes, é um ateu; para os ateus, seria um crente.
O primeiro fruto que retirei destas reflexões foi o de aprender
a limitar as minhas pesquisas ao que me interessava imediata­
mente, a permanecer numa profunda ignorância quanto ao resto,
e a só me preocupar, até à dúvida, com as coisas que me interessa­
va saber.
Também compreendi que, longe de me livrar das minhas inú­
teis dúvidas, os filósofos só conseguiriam multiplicar as que me
atormentavam e não resolveriam nenhuma. Por conseguinte, es­
colhi outro guia e disse para comigo mesmo: «Consultemos a luz in­
terior, ela desorientar-me-á menos que eles, ou, pelo menos, o
meu engano será só meu, e depravar-me-ei menos seguindo as mi­
nhas próprias ilusões que entregando-me às mentiras deles.»
Depois, voltando a considerar no meu espírito as várias opi­
niões que me tinham sucessivamente influenciado desde o meu
nascimento, vi que, embora nenhuma delas fosse bastante eviden­
te para produzir imediatamente a convicção, todas tinham vários
graus de verosimilhança, e que o assentimento interior se presta­
va ou se recusava a elas, em diversas medidas. Feita esta primei­
ra observação, e comparando entre si todas estas diferentes ideias
no silêncio dos preconceitos, cheguei à conclusão de que a primei­
ra e a mais comum era também a mais simples e a mais razoável,
e que, para reunir todos os sufrágios, só lhe faltava ter sido propos­
ta <>m último lugar. Imaginai todos os vossos filósofos, antigos e
modernos, tendo começado por esgotar os seus bizarros sistemas
de força, de probabilidades de fatalidade, de necessidade, de
átomos, de mundo animado, de matéria viva, de materialismo de
toda a espécie, e, depois deles todos, o ilustre Clarke esclarecendo
o mundo, anunciando finalmente o Ser dos seres e o dispensador 75
das coisas: com que universal admiração, com que aplauso unâni­
me não teria sido recebido esse novo sistema, tão grande, tão con­
solante, tão sublime, tão próprio para elevar a alma, para dar uma
base à virtude, e, simultaneamente, tão evidente, tão luminoso,
tão simples, e, ao que me parece, não apresentando menos coisas
incompreensíveis para o espírito humano que as absurdidades que
ele encontra em qualquer outro sistema! E eu dizia para comigo
mesmo: «As objecções insolúveis são comuns a todos, porque o es­
pírito do homem é excessivamente limitado para as poder resolver;
por conseguinte, nada provam contra nenhum filósofo em especial:
mas que diferença entre as provas directas! O único que tudo expli­
ca não deverá ser preferido, quando não apresenta mais dificulda­
de que os outros?
Transportanto, pois, em mim, o amor da verdade como única
filosofia, e, como único método, uma regra fácil e simples que me
dispensa da vã subtileza dos argumentos, retomo, sobre essa re­
gra, o exame dos conhecimentos que me interessam, resolvido a
admitir como evidentes todas aquelas às quais, na sinceridade do
meu coração, eu não poderei recusar o meu consentimento, como
verdadeiras todas aquelas que me paerecerem ter uma ligação ne­
cessária com essas primeiras, e decidido a deixar todas as outras
na incerteza, sem as rejeitar nem admitir, e sem me atormentar
para as esclarecer, quando elas não conduzem a nada que possa re­
velar-se útil na prática.
Mas quem sou eu? Que direito tenho de julgar as coisas? E que
determina os meus juízos? Se eles são provocados, forçados pelas
impressões que recebo, é em vão que me canso nessas buscas, e elas
não terão lugar, ou far-se-ão por si mesmas, sem que eu me preo­
cupe em dirigi-las. Portanto, é necessário começar por virar os
meus olhares para mim mesmo, a fim de conhecer o instrumento
de que me quero servir, e de saber até que ponto me poderei fiar na
sua utilização.
Existo e possuo sentidos que me afectam. Eis a primeira
verdade que se me patenteia e com a qual sou forçado a concordar.
Terei um sentimento próprio da minha existência, ou só a sinto
através das sensações que experimento? Eis a minha primeira dú­
vida, que, por agora, me é impossível resolver. Pois, estando cons­
tantemente afectado por sensações -ou imediatas ou recordadas
-, como poderei saber se o sentimento do eu é alguma coisa exte­
rior às minhas próprias sensações e pode ser independente delas?
As minhas sensações passam-se em mim, pois fazem-me sen­
tir a minha existência; mas a sua causa é-me desconhecida, pois
elas afectam-me, e porque não depende de mim provocá-las ou fa­
zê-las desaparecer. Por conseguinte, concebo nitidamente que a
minha sensação-que está em mim -e a sua causa ou o seu objec­
to - que é exterior a mim - não são a mesma coisa.
76 Assim, não só eu existo como também existem outros seres, a
saber, os objectos das minhas sensações; e mesmo que esses
objectos não passassem de ideias, não deixaria de ser verdade que
essas ideias não são eu.
Ora, a tudo quanto sinto exterior a mim e que age sobre os
meus sentidos, chamo-lhe matéria; e a todas as porções de m até­
ria que concebo reunidas em seres individuais, chamo-lhes corpos.
Assim, todas as discussões dos idealistas e dos materialistas não
significam nada para mim: as distinções que eles estabelecem so­
bre a aparência e a realidade dos corpos são quimeras.
Eis-me, pois, já tão convencido da existência do universo como
da minha. A seguir, reflicto sobre os objectos das minhas sensa�
ções; e, encontrando em mim a faculdade de as comparar, sinto-me
dotado de uma força activa que ignorava possuir.
Aperceber é sentir; comparar é julgar; julgar e sentir não são
a mesma coisa. Através da sensação, os objectos apresentam-se-
. -me separados, isolados, tais como se encontram na natureza;
através da comparação, mexo-lhes, transporto-os, por assim
dizer, coloco-os um sobre o outro, para me pronunciar sobre a sua
diferença ou sobre a sua semelhança, e, geralmente, sobre todas as
relações que existem entre eles. A meu ver, a faculdade distintiva
do ser activo ou inteligente é a de poder dar um sentido a esta
palavra é. Em vão procuro, no ser puramente sensitivo, essa força
inteligente que sobrepõe e que, depois, decide: não a conseguiria
encontrar na sua natureza. Esse ser passivo sentirá cada objecto
separadamente, ou mesmo sentirá o objecto total formado pelos
dois; mas, como não dispõe de nenhuma força para os colocar um
sobre o outro, nunca os comparará: não os julgará.
Ver simultaneamente dois objectos não é ver as relações que há
entre eles nem ajuizar das suas diferenças; avistar vários objectos
separados uns dos outros não é determinar o seu número. Posso
ter, no mesmo momento, a ideia de um grande pau e de um pau pe­
queno, sem os comparar, sem ajuizar que um é mais pequeno que
o outro, como também posso ver simultaneamente a minha mão in­
teira, sem contar os meus dedos1 • Estas ideias comparativas,
m aior, mais pequeno, assim como as ideias numéricas de um, de
dois, etc., não são certamente sensações, embora o meu espírito só
as produza no momento das minhas sensações. Dizem-nos que o
ser sensitivo distingue as sensações, umas das outras, pelas dife­
renças que elas têm entre si; ora, isto exige uma explicação: quan­
do as sensações são diferentes, o ser sensitivo distingue-as porque
as sente independentes umas das outras. Se assim não fosse, como

1 Os relatos de M. de la Condamine falam-nos de um povo que só sa­


bia contar até três. No entanto, os homens que compunham esse povo, co­
mo tinham mãos, viam muitas vezes os seus dedos sem saberem contar até
cinco. 77
lhe seria possível, numa sensação simultânea, distinguir dois
objectos iguais? Seria necessário que ele confundisse esses dois
objectos e os considerasse como sendoo mesmo, sobretudo num sis­
tema em que se pretende que as sensações representativas da
grandeza não se encontram entendidas.
Quando as duas sensações a comparar são experimentadas, a
sua impressãofica marcada, cada objecto é sentido, os dois são sen­
tidos, mas não é por isso que a sua relação fica sentida. Se a apre­
ciação dessa relação não passasse de uma sensação e me provies­
se unicamente do objecto, os meus juízos nunca me enganariam,
pois nunca é falso que eu sinta o que sinto.
Então por que que é que eu me engano sobre a relação desses
dois paus, sobretudo se eles não estãoparalelos?Por quemotivo di­
go, por exemplo, que o pequeno tem a terça parte do comprimen­
to do grande, quando o seu comprimento é efectivamente a quar­
ta parte do maior? Por que é que a imagem, que é a sensa_ção, não
está em conformidade com o seu modelo, que é o objecto? E porque
sou activo quando julgo, porque a operação que compara está er­
rada, e porque o meu entendimento, que ajuíza das relações, mis­
tura os seus erros com a verdade das sensações que só mostram os
objectos.
Acrescentai a isto uma reflexão que vos impressionará, tenho
a certeza, quando pensardes nela; é que, se o nosso papel fosse pu­
ramente passivo na utilização dos nossos sentidos, não haveria en­
tre eles nenhuma comunicação; ser-nos-ia impossível saber que
o corpo em que tocamos e o objecto que vemos são a mesma coisa.
Ou nunca sentiríamos nada que fosse exterior a nós, ou haveria,
para nós, cinco substâncias sensíveis, de cuja identidade não tería­
mos a possibilidade de nos apercebermos.
Dêem o nome que quiserem a esta força do meu espírito que
aproxima e compara as minhas sensações; chamem-lhe atenção,
reflexão, o que quiserem; mas a verdade é que ela está em mim e
não nas coisas, que sou unicamente eu quem a produz, embora só
a produza no momento em que os objectos exercem umaim pressão
sobre mim. Sem ser dono de sentir ou de não sentir, sou-o de exa­
minar mais ou menos aquilo que sinto.
Portanto, não sou apenas um ser sensitivo e passivo, mas um
ser activo e inteligente, e, diga a Filosofia o que disser, atrev�me
a pretender a honra de pensar. Sei unicamente que a verdade está
nas coisas e não no meu espírito que as julga, e que quanto menos
eu pretender insinuar as minhas ideias nos juízos que delas faço,
mais garantias tenho de me aproximar da verdade: assim, a regra
que tenho de me entregar ao sentimento mais que à razão é con­
firmada pela própria razão.
Tend�me - por assim dizer - assegurado de mim mesmo,
ponh�me a olhar para as coisas que me são exteriores, e conside-
78 r�me com uma espécie de estremecimento, lançado, perdido nes-
te vasto universo, e como afogado na imensidade dos seres, sem na­
da saber do que eles são, nem entre si, nem em relação a mim. Es­
tudo-os, observo-os; e o primeiro objecto que se me oferece para os
poder comparar é a minha própria pessoa.
Tudo quanto apercebo através dos sentidos é matéria, e dedu­
zo todas as propriedades essenciais da matéria das qualidades
sensíveis que me fazem apercebê-la, e que são inseparáveis dela.
Ora a vejo em movimento, ora em repouso1: de onde infiro que nem
o repouso nem o movimento lhe são essenciais; mas o movimento,
como é uma acção, é o efeito de uma causa cujo repouso é apenas
a ausência. Portanto, quando nada actua sobre a matéria, ela não
se move1 e, justamente porque é indiferente ao repouso e ao movi­
mento, o seu estado natural é o de se manter em repouso.
Apercebo-me, nos corpos, de duas espécies de movimentos, a
saber: o movimento comunicado e o movimento espontâneo ou vo­
luntário. No primeiro, a causa motriz é estranha ao corpo movido,
e, no segundo, ela está nele. Daí não concluirei que o movimento
de um relógio, por exemplo, seja espontâneo; porque, se nada
alheio à mola agisse sobre ele, ele não teria tendência para avan­
çar e não puxaria os pesos. Pela mesma razão, também não conce­
derei a espontaneidade aos fluidos, nem ao próprio fogo que produz
a sua fluidez2•
Perguntar-me-eis se os movimentos dos animais são espontâ­
neos; dir-vos-ei que não sei, mas que a analogia conduz à afirma­
tiva. Perguntar-me-eis também como foi que eu soube que havia
movimentos espontâneos: responder-vos-ei que o sei porque os
sinto. Quando quero mover o meu braço, movo-o, sem que esse mo­
vimento tenha outra causa imediata além da minha vontade. Se­
ria em vão que raciocinariam para destruir este meu sentimento,
pois ele é mais forte que qualquer evidência; seria o mesmo que
pretender provar-me que não existo.
Se não houvesse nenhuma espontaneidade nas acções dos ho­
mens, nem em nada do que se faz na Terra, sentir-nos-íamos mui­
to mais embaraçados para imaginar a primeira causa de qualquer
movimento. Por mim, sinto-me tão persuadido de que o estado

1
Esse repouso é, por assim dizer, relativo; mas, como observamos o
mais e o menos no movimento, concebemos muito nitidamente um dos dois
termos extremos, que é o repouso, e concebemo-lo tão bem que nos senti­
mos tentatos a considerar como absoluto o repouso que só é relativo. Ora,
não é verdade que o movimento seja a essência da matéria, se ela pode ser
concebida em repouso.
1
Os químicos consideram o flogisto - ou o elemento do fogo - co­
mo esparso, imóvel e estagnante nos mistos de que faz parte, até que cau­
sas alheias o soltem, o reúnam, o ponham em movimento e o transformem
em fogo. 79
natural da matéria é o repouso e de que, por si própria, não possui
nenhuma força para agir, que, vendo um corpo em movimento,
penso imediatamente ou que se trata de um corpo animado ou que
esse movimento lhe foi comunicado. O meu espírito recusa-se a
aceitar a ideia de que a matéria não organizada se possa mover por
si própria, ou produzir qualquer acção.
No entanto, este universo visível é matéria, esparsa e morta1 ,
que no seu todo não tem nada da união nem da organização do sen­
timento comum das partes de um corpo animado, pois é certo que
nós, que somos partes, não nos sentimos, de modo nenhum, no to­
do. Esse mesmo universo está em movimento, e, nos seus movi­
mentos regrados, uniformes, submetidos a leis constantes, não há
nada dessa liberdade que se evidencia nos movimentos espontâ­
neos do homem e dos animais. Por conseguinte, o homem não é um
grande animal que se mova por si mesmo; por conseguinte, nos
seus movimentos há alguma causa que lhe é alheia, causaessa que
ignoro; mas a persuasão interior torna-me essa causa de tal mo­
do sensível, que não posso ver rolar o sol sem imaginar uma força
que o impele, e que, se a terra executa um movimento de rotação,
creio sentir uma mão que a faz girar.
Se é necessário admitir leis gerais cujas relações essenciais
com a matéria eu desconheço, em que é que isso me avança? Essas
leis, como não são seres reais, como não são substâncias, têm, por
conseguinte, algum outro fundamento que me é desconhecido. A
experiência e a observação deram-nos a conhecer as leis do movi­
mento; essas leis determinam os efeitos sem mostrarem as causas;
não são suficientes para explicar o sistema domundo e o andamen­
to do universo. Com dados, Descartes fechava o céu e a terra; mas
não pôde dar o primeiro impulso a esses dados, nem pôr em jogo a
sua força centrífuga sem o auxílio de um movimento de rotação.
Newton descobriu a lei da atracção; mas a atracção, por si só, em
breve reduziria o universo a uma massa imóvel: a essa lei teve de
se acrescentar uma força projectara, para fazer descrever curvas
aos corpos celestes. Que Descartes nos diga qual foi a lei física que
fez rodar os seus turbilhões; que Newton nos mostre a mão que lan­
çou os planetas para a tangente das suas órbitas.
As primeiras causas do movimento não se encontram na ma­
téria; esta limita-se a receber o movimento e a comunicá-lo, sem
o produzir. Quanto mais observo a acção e a reacção das forças da
natureza, agindo umas sobre as outras, mais me convenço de que,

1 Fiz todos os esforços que pude para imaginar uma molécula viva,
sem o conseguir. A ideia da matéria que sente sem ter sentidos parece-me
ininteligível e contraditória. Para adoptar ou rejeitar esta ideia, seria
preciso começar por compreendê-la, e confesso que não tenho essa felici-
80 dade.
de efeitos em efeitos, é sempre preciso remontar a alguma vonta­
de, como causa primeira; porque supor um progresso infinito de
causas é o mesmo que não supor causa nenhuma. Em resumo, to­
do o movimento que não é produzido por outro só pode provir de um
acto espontâneo, voluntário; os corpos inanimados só agem atra­
vés do movimento, e não há verdadeira acção sem vontade. Eis o
meu primeiro princípio. Creio, portanto, que existe uma vontade
que faz mover o universo e anima a natureza. Eis o meu primeiro
dogma, ou o meu primeiro·artigo de fé.
Como é possível que uma vontade produza uma acção física e
corporal? Ignoro-o, mas sinto, em mim mesmo, que ela a produz.
Quando quero agir, ajo; quando quero mover o meu corpo, o meu
corpo move-se; mas que um corpo inanimado e em repouso se
comece a mover por si mesmo ou produza o movimento, isso é in­
compreensível e não tem exemplo. A vontade é-me conhecida atra­
vés dos seus actos, não pela sua natureza. Conheço essa'vontade
como causa motriz; mas conceber a matéria produtora do movi­
mento é conceber claramente um efeito sem causa, é não conceber
absolutamente nada.
Não me é mais fácil conceber de que maneira a minha vontade
movimenta o meu corpo que conceber com o as sensações que tenho
afectam a minha alma. Nem sequer sei por que foi que um destes
mistérios pareceu mais explicável que o outro. Quanto a mim, se­
ja quando estou passivo ou quando estou activo, o sistema de união
qas duas substâncias parece-me absolutamente incompreensível.
E muito estranho que se parta dessa própria incompreensibilida­
de para confundir as duas substâncias, como se operações de na­
turezas tão diferentes'se explicassem melhor num só assunto que
em dois.
O dogma que acabo de estabelecer é obscuro, é verdade; mas,
enfim, oferece um sentido, e não contém nada que repugne à razão
nem à observação: poder-se-á dizer a mesma coisa do materialis­
mo? Não é evidente que se o movimento fosse essencial à matéria,
seria inseparável dela, permaneceria nela sempre com a mesma
intensidade, sempre idêntico em cada porção dela, seria incomuni­
cável, não poderia aumentar nem diminuir, e nem sequer se
poderia conceber a matéria em repouso? Quando me dizem que o
movimento não lhe é essencial, mas necessário, pretendem iludir­
-me com palavras que seriam mais fáceis de refutar se tivessem
um pouco mais de sentido. Pois, ou o movimento da matéria lhe
vem dela mesma, e, nesse caso, é-lhe essencial, ou, se lhe vem de
uma causa alheia, só é necessário à matéria na medida em que a
causa motriz actuasobre e la; penetramos na primeira dificuldade.
As ideias gerais e abstractas são a fonte dos maiores enganos
dos homens; nunca o calão da Metafísica conduziu à descoberta de
nenhuma verdade: só encheu a Filosofia de absurdidades de que
temos vergonha, quando as vemos despojadas das suas palavras 81

L. B.S24-6
de efeitos em efeitos, é sempre preciso remontar a alguma vonta­
de, como causa primeira; porque supor um progresso infinito de
causas é o mesmo que não supor causa nenhuma. Em resumo, to­
doo movimento que não é produzidopor outro só pode provir de um
acto espontâneo, voluntário; os corpos inanimados só agem atra­
vés do movimento, e não há verdadeira acção sem vontade. Eis o
meu primeiro princípio. Creio, portanto, que existe uma vontade
que faz mover o universo e anima a natureza. Eis o meu primeiro
dogma, ou o meu primeiro-artigo de fé.
Como é possível que uma vontade produza uma acção física e
corporal? Ignoro-o, mas sinto, em mim mesmo, que ela a produz.
Quando quero agir, ajo; quando quero mover o meu corpo, o meu
corpo move-se; mas que um corpo inanimado e em repouso se
comece a mover por si mesmo ou produza o movimento, isso é in­
compreensível e não tem exemplo. A vontade é-me conhecida atra­
vés dos seus actos, não pela sua natureza. Conheço essa·vontade
como causa motriz; mas conceber a matéria produtora do movi­
mento é conceber claramente um efeito sem causa, é não conceber
absolutamente nada.
Não me é mais fácil conceber de que maneira a minha vontade
movimenta omeu corpo que conceber como as sensações que tenho
afectam a minha alma. Nem sequer sei por que foi que um destes
mistérios pareceu mais explicável que o outro. Quanto a mim, se­
ja quando estou passivo ou quando estou activo, o sistema de união
qas duas substâncias parece-me absolutamente incompreensível.
E muito estranho que se parta dessa própria incompreensibilida­
de para confundir as duas substâncias, como se operações de na­
turezas tão diferentes· se explicassem melhor num só assunto que
em dois.
O dogma que acabo de estabelecer é obscuro, é verdade; mas,
enfim, oferece um sentido, e não contém nada que repugne à razão
nem à observação: poder-se-á dizer a mesma coisa do materialis­
mo? Não é evidente que se o movimento fosse essencial à matéria,
seria inseparável dela, permaneceria nela sempre com a mesma
intensidade, sempre idêntico em cada porção dela, seriaincomuni­
cável, não poderia aumentar nem diminuir, e nem sequer se
poderia conceber a matéria em repouso? Quando me dizem que o
movimento não lhe é essencial, mas necessário, pretendem iludir­
-me com palavras que seriam mais fáceis de refutar se tivessem
um pouco mais de sentido. Pois, ou o movimento da matéria lhe
vem dela mesma, e, nesse caso, é-lhe essencial, ou, se lhe vem de
uma causa alheia, só é necessário à matéria na medida em que a
causa motriz actua sobre ela: penetramos na primeira dificuldade.
As ideias gerais e abstractas são a fonte dos maiores enganos
dos homens; nunca o calão da Metafísica conduziu à descoberta de
nenhuma verdade: só encheu a Filosofia de absurdidades de que
temos vergonha, quando as vemos despojadas das suas palavras 81

L.B. 524 - 6
dência através da qual os seres que o compõem se prestam um au­
XI1io mútuo. Considero-me como um homem que, pela primeira
vez, visse um relógio aberto, e que não deixaria de admirar a obra,
embora não soubesse como utilizar a máquina e não tivesse visto
o mostrador. «Não sei», diria ele, «para que serve tudo isto; mas
vejo que cada peça é feita para as outras; admiro o trabalho do
obreiro, no pormenor da sua obra, e tenho a certeza absoluta de que
todas estas rodas que assim andam, de concerto, tem uma finali­
dade comum que me é impossível compreender.
Comparemos os fins particulares, os meios, as relações ordena­
das de toda a espécie, e depois escutemos o sentimento interior;
qual o espírito são que se pode recusar ao seu testemunho? A que
olhos não prevenidos a ordem sensível do universo não anuncia
uma inteligência suprema? E quantos sofismas não será preciso
acumular para não ver a harmonia dos seres e o admirável concur­
so de cada peça, para a conservação das outras? Digam-me tudo
o que quiserem sobre as combinações e as possibilidades; de que
vos serve reduzir-me ao silêncio, se não conseguis conduzir-me à
persuasão? E de que maneira me retirareis o sentimento involun­
tário que,mesmo sem eu o querer, vos desmente sempre? Seos cor­
pos organizados se combinaram fortuitamente, de mil maneiras
diferentes, antes de adquirir formas constantes; se, de início, se
formaram corpos sem bocas, pés sem cabeças, mãos sem braços, ór­
gãos imperfeitos de todas as espécies e que pareceram por não se .
poderem conservar, por que motivo nunca vimos essas informes
tentativas? Por que foi que a natureza acabou por se ditar leis a
que, de início, não estava sujeita? Não me devo sentir surpreen­
dido quando uma coisa acontece, se ela é possível e quando a difi­
culdade do acontecimento é compensada pela quantidade das ma­
nifestações; de acordo. Mas, se me viessem dizer que alguns carac­
teres de tipografia, lançados ao acaso, deram, como resultado, a
Eneida, toda ordenada, desde o princípio até ao fim, não me daria
ao trabalho de fazer um passo para ir verificar a mentira. Esque-.
ceis-vos - dir-me-ão - da quantidade das manifestações. Mas,
dessas manifestações, quantas devo supor, para tornar a combi­
nação verosímil? Cá por mim - que apenas vejo uma - posso
apostar o infinito contra um em como o seu produto não é efeito do
acaso. Acrescentai que combinações e possibilidades nunca darão
mais que produtos da mesma natureza que os elementos combina­
dos, que a organização e a vida não resultarão de uma ideia de áto­
mos, e que um químico que combine mistos nunca conseguirá que
eles sintam e pensem, no seu tubo de ensaio1•

1
Quem acreditaria- se disso não tivesse a prova- que a extrava­
gância humana pudesse ser levada a esse ponto? Amatus Lusitanus asse­
gurava ter visto, dentro de um copo, um homenzinho com a altura de um 83
Foi com surpresa, e quase com escândalo, que li Nieuwentit.
Como foi possível que esse homem tenha pretendido fazer um li­
vro sobre as maravilhas da natureza, que patenteiam a sageza do
seu autor? Mesmo que fizesse um livro que fosse tão grande como
o mundo, não teria esgotado o seu assunto; e, desde o momento em
que se pretende entrar em pormenores, a maior maravilha escapa,
que é a harmonia e o acordo que há em tudo. A geração dos corpos
vivos e organizados é, só por si, o abismo do espírito humano; a
barreira intransponível que a natureza colocou entre as diversas
espécies, a fim de que elas não se misturassem, mostra as suas in­
tenções com a maior evidência. Não se contentou em estabelecer a
ordem como também tomou medidas certas para que nada a pu­
desse perturbar.
Não há um ser no universo que não possamos - sob um de­
terminado ponto de vista -considerar como o centro comum de to­
dos os outros, em redor do qual eles estão todos ordenados, de ma­
neira que são todos reciprocamente fins e meios, uns em relação
aos outros. O espírito confunde-se e perde-se nessa infinidade de
relações, de entre as quais nem uma única está perdida entre a
multidão das outras. Quantas absurdas suposições para deduzir
toda esta harmonia do cego mecanismo da matéria fortuitamente
posta em movimento! Aqueles que negam a unidade de intenção
que se manifesta nas relações de todas as partes desse grande to­
do, bem podem encobrir os seus galimatias de abstracções, de coor­
denações, de princípios gerais, de termos emblemáticos; seja o que
for que fizerem, é-me impossível conceber um sistema de seres tão
constantemente ordenados sem conceber uma inteligência que os
ordena. Não depende de mim acreditar que a matéria passiva e
morta pôde produzir seres vivos e sensíveis, que uma fatalidade ce­
ga pôde produzir seres inteligentes, que aquilo que não pensa ti­
vesse podido produzir seres que pensam.
Portanto, creio que o mundo é governado por uma vontade po­
derosa e sage; vejo-o, ou antes, sinto-o, e isso interessa-me saber.
Mas esse mundo é eterno ou foi criado? Haverá um princípio úni­
co das coisas? Haverá dois ou vários? E de que natu_reza são? Não
sei absolutamente nada, e isso não me importa. A medida que
esses conhecimentos se forem tornando interessantes para mim,

polegar, que Julius Camillus - como outro Prometeu - fabricara, atra­


vés da ciência alquimista. Paracelso, de Natura rerum, ensina a maneira
de produzir esses h omenzinhos e sustenta que os pigmeus, os faunas, os
sátiras e as ninfas foram engendrados através da química. Efectivamen­
te, não vejo que outra coisa se possa fazer - para estab elecer a possibili­
dade da existência desses seres - a não ser acreditar que a matéria orgâ­
nica resiste ao calor do fogo, e que as suas moléculas se podem conservar
84 vivas, num forno.
esforçar-me-ei por adquiri-los; até lá, renuncio a perguntas ocio­
sas que podem inquietar o meu amor-próprio, mas que são inúteis
para o meu comportamento e superiores à minha razão.
Não vos esqueceis de que eu não estou a ensinar o meu senti­
mento, mas a expô-lo. Que a matéria seja eterna ou criada, que ela
tenha um princípio passivo ou que não tenha nenhum, a verdade
é que o todo é um e anuncia uma inteligência única; pois não ve­
jo nada que não esteja ordenado no mesmo sistema, e que não con­
corra para o mesmo fim, a saber a conservação do todo na ordem
estabelecida. A esse ser que quer e que pode, a esse ser activo por
si mesmo, a esse ser, enfim, seja ele qual for, que move o univer­
so e ordena todas as coisas, chamo-lhe Deus. Junto a esse nome as
ideias de inteligência, de poderio, de vontade- que reuni -e a de
bondade que delas é uma consequência necessária; mas nem por
isso conheço me lho o ser a que dei esse,nome; ele esquiva-se, tanto
aos meus sentidos como ao meu entendimento; quanto mais pen­
so nele, mais confundido me sinto; tenho a certeza absoluta de que
ele existe, e de que existe por si mesmo: sei que a minha existên­
cia está subordinada à sua e que todas as coisas que conheço se en­
contram exactamente no mesmo caso. Vejo Deus por toda a parte,
nas suas obras; sinto-o em mim, vejo que me envolve; mas quan­
do o quero contemplar, quando pretendo saber onde está, o que ele
é, qual é a sua substância, ele escapa-me e o meu espírito pertur­
bado deixa de ver seja o que for.
Com penetrado da minha insuficiência, nunca raciocinarei so­
bre a natureza de Deus, sem que a isso me veja forçado pelo sen­
timento das suas relações comigo. Esses raciocínios são sempre te­
merários; só tremente, um homem sage se deve entregar a eles, e
com a certeza de que não feito para os aprofundar: pois, o que há
de mais injurioso para a Divindade não é o facto de não se pensar
nela, mas o de a pensar erradamente.
Após ter descoberto aqueles dos seus atributos pelos quais
concebo a minha existência, regresso a mim e procuro saber que
classe ocupo na ordem das coisas que ela governa e que posso exa­
minar. Encontro-me incontestavelmente na primeira, pela minha
espécie; pois, pela minha vontade e pelos instrumentos que estão
em meu poder para a poder executar, tenho mais força para agir
sobre todos os corpos que me rodeiam, ou para me prestar ou me
esquivar, como me aprouver, à sua acção, que algum deles tem
para agir sobre mim, contra a minha vontade, unicamente pela
impulsão física; e, pela minha inteligência, sou o único que tenha
inspecção sobre o todo. Que outro ser, cá em baixo, a não ser o ho­
mem, é capaz de observar todos os outros, medir, calcular, prever
os seus movimentos, os seus efeitos, e atingir, por assim dizer, o
sentimento da existência com um ao da sua existência individual?
O que há de tão ridículo em pensar que tudo foi feito para mim,
quando sou o único que sabe tudo atribuir a ele? 85
Porconseguinte, é verdade que o homem é o rei da terra que ha­
bita; não só porque domestica todos os animais, não só porque dis­
põe dos elementos com a sua indústria como também porque é o
único ser sobre a terra que sabe deles dispor, e, pela contemplação,
até se apropria dos astros embora deles não se possa aproximar.
Que me mostrem outro animal, na terra, que saiba utilizar o fogo
e que saiba admirar o sol. O quê! Posso observar, conhecer os se­
res e as relações que há entre eles, posso sentir o que é a ordem, a
beleza, a virtude; posso contemplar o universo, elevar-me pela
mão que me governa; posso amar o bem, fazê-lo; e comparar­
-me-ia aos animais!? Alma abjecta, é a tua triste filosofia que te
torna sensível a eles: ou antes, pretendes, em vão, aviltar-te, o teu
génio depõe contra os teus princípios, o teu coração benfazejo
desmente a tua doutrina, e o próprio abuso das tuas faculdades
prova a sua excelência, mesmo sem o quereres.
Cá por mim, que não tenho nenhum sistema a defender, que
sou um homem simples e sincero, que não me sinto arrastado pe­
lo furor de nenhum partido e que não aspiro à honra de ser chefe
de seita, satisfeito com o lugar em que Deus me colocou, nada ve­
jo, depois dele, de melhor que a minha espécie; e, se tivesse de es­
colher o meu lugar na ordem dos seres, que mais poderia escolher
que não fosse o ser homem?
Esta reflexão orgulha-me menos do que me comove; porque es­
te estado não é escolha minha, e não se devia ao mérito de um ser
que ainda nem sequer existia. Ser-me-á possível ver-me, assim,
distinguido, sem me felicitar por bem ocupar este posto honroso,
e sem abençoar a mão que nele me colocou? Do meu primeiro re­
gresso a mim mesmo, nasce, no meu coração, um sentimento de
gratidão e de louvor pelo autor da minha espécie, e, desse senti­
mento, a minha primeira homenagem à Divindade benfazeja. Ado­
ro o poder supremo e comovo-me quando vejo as suas benfeitorias.
Não tenho. necessidade de que me ensinem esse culto, ele é-me di­
tado pela própria natureza. Não será uma consequência natural do
amor por si próprio, honrar o que nos protege, e amar o que nos
ama?
Mas depois, quando, pretendendo conhecer o meu lugar indivi­
dual na minha espécie, eu considero as várias classes e os homens
que as ocupam, em que me torno? Que espectáculo! Onde está a or­
dem que eu tinha reservado? O quadro da natureza só me apresen­
tava harmonia e proporções, enquanto o do género humano só me
apresenta confusão e desordem! O concerto reina entre os elemen­
tos, e os homens encontrªm-se no caos! Os animais estão f�lizes,
só o seu rei é miserável! O sageza, onde estão as tuas leis? O Pro­
vidência, é deste modo que governas o mundo? Ser benfazejo, em
que se tornou o teu poder? Vejo o mal na terra.
Acreditaríeis, meu bom amigo, que destas tristes reflexões e
86 destas contradições aparentes, se formaram, no meu espírito, as
sublimes ideias da alma, que até esse momento não tinham resul­
tado das minhas buscas? Ao meditar sobre a natureza do homem,
cri descobrir nela dois princípios distintos: um que elevava ao es­
tudo das verdades eternas, ao amor pelajustiça e pelo belo moral,
às regiões do mundo intelectual cuja contemplação faz as delícias
do sage, e outro que o rebaixava a si mesmo, o sujeitava ao impé­
rio dos sentidos, às paixões que são os seus ministros, e que com
eles contrariava tudo quanto lhe inspirava o sentimento do primei­
ro. Sentindo--me arrastado, combatido por esses dois movimentos
opostos, dizia, para comigo mesmo: «Não, o homem não é uno: que­
ro e não quero, sinto--me simultaneamente escravo e livre; vejo o
bem, amo--o, e pratico o mal; sou activo quando dou ouvidos à ra­
zão, passivo quando as minhas paixões me arrastam; e o meu pior
tormento, quando sucumbo, é sentir que podia ter resistido>>.
Jovem, escutai-me com confiança, sempre serei de boa-fé. Se
a consciência é obra dos preconceitos, não tenho razão, certamen­
te, e não há moral demonstrada; mas se preferir-se a tudo é uma
tendência natural do homem, e se, no entanto; o primeiro senti­
mento dajustiça é inato no coração humano, que aquele que faz do
homem um ser simples faça desaparecer essas contradições, e eu
passarei a só reconhecer um a substância .

Notareis que, por esta palavra substância, entendo, em geral,


o ser dotado de alguma qualidade primitiva, abstracção feita de to­
das as modificações particulares ou secundárias. Por conseguinte,
embora todas as qualidades primitivas que nos são conhecidas se
possam encontrar reunidas num mesmo ser, só se deve admitir
uma única substância; mas se algumas substâncias há que se ex­
cluem mutuamente, elas são tantas quantas as exclusões que se
podem fazer. Reflectireis sobre isto; por mim, só preciso - apesar
do que Locke diz - de conhecer a matéria como extensa e divisí­
vel, para ter a certeza de que ela não pode pensar; e mesmo que um
filósofo me venha dizer que as árvores sentem e que as rochas pen­
sam1 , bem me pode embaraçar com os seus subtis argumentos, que

1 Parece-me que, longe de dizer que os rochedos pensam, a Filoso-


fia moderna descobriu, pelo contrário, que os homens não pensam. Já só
reconhece seres sensitivos na natureza; e a única diferença que encontra
entre um homem e uma pedra é que o homeJll é um ser sensitivo que tem
sensações, e a pedra um ser sensitivo que não as tem. Mas, se é verdade
que toda a matéria sente, como conceberia eu a unidade sensitiva ou o eu
individual? Seria em cada molécula de matéria ou em corpos agregativos?
Colocarei igualmente esta unidade nos fluidos e nos sólidos� nos mistos e
nos elementos? <<Na Natureza, apenas há indivíduos!», dizem! Mas quais
são esse� indivíduos? Esta pedra é um indivíduo ou um agregado de indi­
víduos? E um único ser sensitivo, ou contém, nela, tantos seres sensitivos
quantos os grãos de areia? Se cada átomo elementar é um ser sensitivo,
como conceberei essa íntima comunicação através da qual um se sente no 87
só conseguirei ver, nele, um sofista de má-fé, que prefere dar o sen­
timento às pedras que conceder uma alma ao homem.
Imaginemos um surdo que nega a existência dos sons, porque
estes nunca lhe feriram os ouvidos. Ponho-lhe debaixo dos olhos
um instrumento de cordas cujo uníssono faço tocar através de
outro instrumento escondido; o surdo vê estremecer a corda; di­
go-lhe: «E o som que faz isso.» «Não é verdade!>>, responde ele. «A
causa do estremecimento da corda está nela própria; é uma quali­
dade comum a todos os corpos, a de estremecerem dessa maneira.»
«Mostrai-me, então», recomeço, «esse estremecimento nos outros
corpos, ou, pelo menos, a sua causa nesta corda.>> «Não o posso
fazer», replica o surdo; <<e, como não concebo a maneira de fazer
estremecer esta corda, por que motivo iria explicar isso com os vos­
sos sons, de que não faço a mínima ideia? Seria explicar um facto
obscuro por causa ainda mais obscura. Ou vós tornais os vossos
sons sensíveis para mim, ou digo que eles não existem.>>
Quanto mais reflicto sobre o pensamento e sobre a natureza do
espírito humano, mais me convenço de que o raciocínio dos mate­
rialistas se parece com o deste surdo. São surdos, efectivamente,
à voz interior que lhes grita num tom que é difícil ignorar: «Uma
máquina não pensa, não há movimento nem figura que produza a
reflexão: em ti, há algo que procura quebrar os elos que o compri­
mem; o espaço não é a tua medida, o universo inteiro não é suficien­
temente grande para ti: os teus sentimentos, os teus desejos, a tua
inquietação, o teu próprio orgulho, têm outro princípio que não es­
se corpo estreito em que te sentes amarrado.
Nenhum ser material é activo por si mesmo, e eu sou-o. Por
mais que me digam que isso não é verdade, sinto-o, e esse sen­
timento que me fala é mais forte que a razão que o combate. Possuo
um corpo sobre o qual os outros agem e que age sobre eles; esta
acção recíproca não é duvidosa; mas a minha vontade é indepen­
dente dos meus sentidos; consinto ou resisto, sucumbo ou saio ven­
cedor, e sinto perfeitamente, em mim mesmo, quando faço o que

outro, de modo a que os seus dois eu se confundam num? A atracção po­


de se r uma lei da natureza cujo mistério nos é desconhecido; mas, pelo me­
nos, concebemos que a atracção, actuando consoante as massas, nada tem
de incompatível com a extensão e a indivisibilidade. Concebeis a mesma
coisa sob re o sentimento? As partes sensíveis são extensas, mas o ser sen­
sitivo é invisível e uno; não se divide, é inteiro ou nulo; por conseguinte,
o ser sensitivo não é um corpo. Não sei como o entendem os nossos mate­
rialistas, mas parece-me que as mesmas dificuldades que os levaram a re­
jeitar o pensamento lhes deveriam também fazer rej eitar o sentimento; e
não vej o por que motivo, após terem dado o primeiro passo, não dariam o
seguinte; o que lhes custaria isso? E, como têm a certeza de que não pen-
88 sam, como se atrevem a afi rmar que sentem?
desejei fazer ou quando me limito a ceder às minhas paixões. Te­
nho sempre o poder de querer, não a força de executar. Quando me
entrego às tentações, ajo segundo a impulsão dos objectos exter­
nos. Quando me censuro por essa fraqueza, escuto apenas a minha
vontade; sou escravo através dos meus vícios, e livre através dos
meus remorsos; o sentimento da minha liberdade só se apaga em
mim quando me depravo, e quando, finalmente, impeço a voz da al­
ma de se elevar contra a lei dos corpos.
Só conheço a vontade através do sentimento da minha, e o en­
tendimento, não o conheço melhor. Quando me perguntam qual é
a causa que determina a minha vontade, pergunto qual é a causa
que determina a minha decisão: pois é evidente que essas duas
causas não fazem mais de uma; e se se compreende bem que o ho­
mem é activo nas suas decisões, que o seu entendimento não é mais
do que o poder de comparar e de apreciar, ver-se-á que o seu or­
gulho é um poder semelhante, ou derivado dele; escolhe o bom da
mesma maneira quejulgou o verdadeiro; sejulga mal, es,colhe mal.
Qual é, então, a causa que determina a sua vontade? E o f?eu ra­
ciocínio. E qual é a causa que determina o seu raciocínio? E a sua
faculdade inteligente, é o seu poder dejulgar; a causa determinan­
te está nele próprio. Para além disto, não compreendo mais nada.
Sem dúvida que não tenho a liberdade de não querer o meu pró­
prio bem, não tenho a liberdade de desejar o meu mal; mas a mi­
nha liberdade consiste exactamente nisto, de eu só poder querer o
que me convém, ou o que pareça convir-me, sem que nada -alheio
a mim -o determine. Disto, poderá depreender-se que não sou do­
no de mim mesmo, porque sou incapaz de ser outro?
O princípio de qualquer acção reside na vontade de um ser li­
vre; não nos seria possível remontar para além disto. Não é a pa­
lavra liberdade que não significa nada, é a palavra necessidade.
Supor um acto ·qualquer, qualquer efeito que não deriva de um
princípio activo, é, na verdade, supor efeitos sem causa, é cair num
círculo vicioso. Ou não há nenhuma primeira impulsão, ou todas
as primeiras impulsões são desprovidas de uma causa anterior, e
não há nenhuma verdadeira vontade sem liberdade. Por conse­
guinte, o homem é livre nas suas acções, e, como tal, está anima­
do por uma substância imaterial: este é o meu terceiro artigo de fé.
Conhecendo estes três primeiros, facilmente podereis deduzir to­
dos os outros, sem que eu precise de continuar a contá-los.
Se o homem é activo e livre, age por sua própria vontade; tu-
do quanto ele faz livremente não entra no sistema ordenado da
Providência, e não lhe pode ser imputado. Ele não deseja o rnai que
o homem faz, abusando da liberdade que ela lhe dá; mas não o im­
pede de o fazer, seja porque, da parte de um ser tão fraco, esse mal
não tenha qualquer importância aos seus olhos, ou seja porque não
o pôde impedir de o fazer sem incomodar a sua liberdade, fazendo
um mal ainda maior que seria o de degradar a sua natureza. Ela 89
desejei fazer ou quando me limito a ceder às minhas paixões. Te­
nho sempre o poder de querer, não a força de executar. Quando me
entrego às tentações, ajo segundo a impulsão dos objectos exter­
nos. Quando me censuro por essa fraqueza, escuto apenas a minha
vontade; sou escravo através dos meus vícios, e livre através dos
meus remorsos; o sentimento da minha liberdade só se apaga em
mim quando me depravo, e quando, finalmente, impeço a voz da al­
ma de se elevar contra a lei dos corpos.
Só conheço a vontade através do sentimento da minha, e o en­
tendimento, não o conheço melhor. Quando me perguntam qual é
a causa que determina a minha vontade, pergunto qual é a causa
que determina a minha decisão: pois é evidente que essas duas
causas não fazem mais de uma; e se se compreende bem que o ho­
mem é activo nas suas decisões, que o seu entendimento não é mais
do que o poder de comparar e de apreciar, ver-se-á que o seu or­
gulho é um poder semelhante, ou derivado dele; escolhe o bom da
mesma maneira quejulgou o verdadeiro; sejulga mal, es,colhe mal.
Qual é, então, a causa que determina a sua vontade? E o !]eu ra­
ciocínio. E qual é a causa que determina o seu raciocínio? E a sua
faculdade inteligente, é o seu poder dejulgar; a causa determinan­
te está nele próprio. Para além disto, não compreendo mais nada.
Sem dúvida que não tenho a liberdade de não querer o meu pró­
prio bem, não tenho a liberdade de desejar o meu mal; mas a mi­
nha liberdade consiste exactamente nisto, de eu só poder querer o
que me convém, ou o que pareça convir-me, sem que nada -alheio
a mim -o determine. Disto, poderá depreender-se que não sou do­
no de mim mesmo, porque sou incapaz de ser outro?
O princípio de qualquer acção reside na vontade de um ser li­
vre; não nos seria possível remontar para· além disto. Não é a pa­
lavra liberdade que não significa nada, é a palavra necessidade.
Supor um acto·qualquer, qualquer efeito que não deriva de um
princípio activo, é, na verdade, supor efeitos sem causa, é cair num
círculo vicioso. Ou não há nenhuma primeira impulsão, ou todas
as primeiras impulsões são desprovidas de uma causa anterior, e
não há nenhuma verdadeira vontade sem liberdade. Por conse­
guinte, o homem é livre nas suas acções, e, como tal, está anima­
do por uma substância imaterial: este é o meu terceiro artigo de fé.
Conhecendo estes três primeiros, facilmente podereis deduzir to­
dos os outros, sem que eu precise de continuar a contá-los.
Se o homem é activo e livre, age por sua própria vontade; tu-
do quanto ele faz livremente não entra no sistema ordenado da
Providência, e não lhe pode ser imputado. Ele não deseja o mal que
o homem faz, abusando da liberdade que ela lhe dá; mas não o im­
pede de o fazer, seja porque, da parte de um ser tão fraco, esse mal
não tenha qualquer importância aos seus olhos, ou seja porque não
o pôde impedir de o fazer sem incomodar a sua liberdade, fazendo
um mal ainda maior que seria o de degradar a sua natureza. Ela 89
tanto um como o outro te vêm de ti. O mal geral só se pode encon­
trarna desordem, e vejo, no sistema do mundo, uma ordem que não
se pode desmentir. O mal particular só está no sentimento do ser
que sofre; e esse sentimento o homem não o recebeu da natureza,
deu-o a si mesmo. A dor pouca influência tem sobre alguém que,
tendo reflectido pouco, não possui nem recordação nem previdên­
cia. Retirai os nossos funestos progressos, retirai os nossos erros
e os nossos vícios, retirai a obra do homem, e tudo ficará bem.
Onde tudo se encontra bem, nada é injusto. Ajustiça é insepa­
rável da bondade; ora, a bondade é o efeito necessário de um poder
sem limites e do amor por si mesmo, essencial a todo o ser que se
sente. Aquele que tudo pode expande, por assim dizer, a sua exis­
tência com a dos outros seres. Produzir e conservar são os actos
perpétuos do poder; ele não age sobre o que não existe; Deus não
é o Deus dos mortos: não poderia ser destruidor e mau sem se pre­
judicar a si mesmo. Aquele que tudo pode só pode querer o que é
bem1• Portanto, o ser soberanamente poderoso também deve ser
soberanamentejusto: de outra forma, contradir-se-ia a si próprio;
porque o amor pela ordem que a produz chama-se bondade, e o
amor pela ordem que o conserva chama-sejustiça.
Diz-se que Deus não deve nada às suas criaturas. Creio que ele
lhes deve tudo quanto lhes prometeu quando lhes deu o ser. Ora,
é prometer-lhes um bem, dar-lhes essa ideia e fazer-lhes sentir
essa necessidade. Quanto mais me interiorizo, mais me consulto,
e mais leio essas palavras escritas na minha alma:<<Sêjusto, e serás
feliz.» No entanto, nada se passa assim, se considerarmos o estado
presente das coisas; o mau prospera, e o justo permanece oprimi­
do. Vede, também, quanta indignação se acende em nós, quando
essa espera é frustrada! A consciência eleva-se e resmunga contra
o seu autor; lança-lhe, gemendo: «Enganaste-me!»
Enganei-te, temerário! E qu�m to disse? A tua alma sente-se
aniquilada? Deixaste de existir? O Brutus, ó meu filho! Não profa­
nes a tua nobre vida, pondo-lhe fim; não abandones a tua esperan-
. ça e a tua glória, com o teu corpo, nos campos de Philipes. Por que
dizes <<a virtude não é nada», quando vais gozar da primavera da
tua? Pensas que vais morrer; mas não! Vais viver, e será então que
te darei tudo quanto te prometi.
Pelos murmúrios dos impacientes mortais, dir-se-ia que Deus
lhes deve a recompensa antes do mérito, e que não é obrigado a pa­
gar-lhes a virtude, de antemão. Oh! Comecemos por ser bons, e, a
seguir, seremos felizes. Não exijamos o prémio antes da vitória,

1 Quando os antigos chamavam, ao Deus supremo, optimus maxi­


mus, diziam uma grande verdade; mas, dizendo maximus optimus, teriam
falado com mais exactidão, pois a sua bondade provém do seu poder; ele
·

é bom porque é grande. 91


nem o salário antes do trabalho acabado. «Não é na liça••, dizia Plu­
tarco, «que os vencedores dos nossosjogos sagrados são coroados,
mas depois de a terem percorrido.>>
Se a alma é imaterial, pode sobreviver ao corpo; e se ela lhe so­
brevive, a Providência estájustificada. Mesmo que eu não tivesse
outra prova da imaterialidade da alma - a não ser o triunfo do
mau e a opressão do justo neste mundo -, isso bastaria para me
impedir de duvidar dela. Uma dissonância tão chocante na har­
monia universal levar-me-ia a procurar resolvê-la: diria, para
comigo mesmo: «Tudo não acaba para nós, com a vida, tudo volta
à ordem, com a morte.>> Na verdade, teria o embaraço de me per­
guntar onde está o homem, se tudo quanto ele tinha de sensível fos­
se destruído. Esta questão já não é uma dificuldade para mim,
pois, como durante toda a minha vida corporal só me apercebi das
coisas através dos meus sentidos, o que não lhes está submetido es­
capa-me. Quando a união do corpo e da alma se rompe, concebo
que um se possa dissolver e o outro conservar-se. Por que motivo
a destruição de um provocaria a destruição do outro? Pelo contrá­
rio, sendo de naturezas tão diferentes, eles estavam, através da
sua união, num estado violento; e, quando essa união cessa, voltam
ambos para o seu estado natural: a substância activa e vivarecupe­
ra toda a força que empregava para mover a substância passiva e
morta. Infelizmente - sinto-o bem através dos meus vícios -, o
homem só vive uma metade de si mesmo, durante a sua vida; e a
vida da alma só começa depois da morte do corpo.
Mas que vida é essa? E a alma, será que, pela sua natureza, ela
é imortal? O meu acanhado entendimento não concebe nada sem
limites: tudo quanto designam por infinito ultrapassa a minha
compreensão. O que posso afirm ar, negar? Que raciocínios posso
fazer sobre o que não posso imaginar? Creio que a alma sobrevive
ao corpo o suficiente para a conservação da ordem: quem sabe se
é o suficiente para durar sempre? No entanto, concebo como o cor­
po se desgasta e se destrói, pela divisão das partes: mas não pos­
so conceber uma destruição semelhante do ser pensante; e, não
imaginando como ele pode morrer, presumo que não morre. Pois se
esta presunção me consola e não tem nada de desarrazoado, por
que motivos recearia eu entregar-me a ela?
Sinto a minha alma, conheço-a através do sentimento e do
pen.samento e sei que ela existe, emhora não saiba qual é a sua es­
sência; não posso raciocinar sobre ideias que não tenho. O que sei
bem é que a identidade do eu só se prolonga pela memória, e que,
para ser realmente o mesmo, preciso de me lembrar de ter sido.
Ora, depois da minha morte, não me poderei lembrar do que fui du­
rante a minha vida, como também não me poderei lembrar do que
senti e, por conseguinte, do que fiz; e não tenho dúvidas de que es­
sa recordação faça, um dia, a felicidade dos bons e o tormento dos
92 maus. Aqui, neste mundo, mil paixões ardentes absorvem o senti-
mento interior e iludem os remorsos. As humilhações e as des­
graças que o exercício da virtude atraem impedem de sentir todos
os encantos desta. Mas quando - libertos das ilusões que o corpo
e os sentidos nos dão - gozarmos da contemplação do Ser Supre­
mo e das verdades eternas de que ele é a fonte, quando a beleza da
ordem atingir todos os poderes da nossa alma e estivermos unica­
mente ocupados a comparar o que fizemos com o que deveríamos
ter feito, será então que a voz da consciência retomará a sua força
e o seu império, será então que a pura volúpia que tem origem no
contentamento de si mesmo, e o amargo remorso de se ter aviltra­
do, distinguirão, através de sentimentos inesgotáveis, o destino
que cada um de nós se terá preparado. Não me pergunteis, meu
bom amigo, se há outras fontes de felicidade e de dores; ignoro-o;
já são bastantes as que imagino para me consolar desta vida e le­
var-me a esperar por outra. Não quero com isto dizer que os bons
serão recompensados; pois que outro bem poderia esperar um ser
excelente que não fosse o de existir consoante a sua natureza? Mas
digo que serão felizes, porque o seu autor, o autor de toda ajusti­
ça, tendo-os feito sensíveis, não os fez para sofrer; e porque, não
tendo abusado da liberdade que tinha na Terra, não enganaram o
seu destino por sua própria culpa: no entanto, sofreram nesta vi­
da e serão indemnizados na outra. Este sentimento baseia-se me­
nos no mérito do homem que na noção de bondade que me parece
inseparável da essência divina. Limito-me a supor as leis da or­
dem que observo, e um Deus fiel a si mesmo1 •
Não me pergunteis também se os tormentos dos maus serão
eternos; continuo a ignorá-lo e não tenho a vã curiosidade de es­
clarecer questões inúteis. Que me importa o que acontecerá aos
maus? Sinto pouco interesse pela sorte que os espera. No entanto,
custa-me acreditar que sejam condenados a tormentos infindá­
veis. Se a suprema justiça se vinga, vinga-se nesta vida. Vós e os
vossos erros - ó nações! - sois os seus ministros. Ela emprega os
males que fazeis para punir os crimes que os mereceram. E nos
vossos corações insaciáveis, roídos de inveja, de avareza e de ambi­
ção, no seio das vossas falsas prosperidades que as paixões vinga­
doras punem os vossos crimes. Que necessidade há de ir procurar

1 Non pas por nous, non pas por nous, Seigneur,


Mais pour ton nom, mais pour ton propre honneur,
O Dieu! Fais-nos revivre!

Nao para nós, nao para nós, Senhor,


llfas para o teu nome, mas para a tua própria glória,
O Deus! faz-nos reviver!)

(Salmos, 1 1 5.) 93
o inferno na outra vida? Ele já se encontra nesta, no coração dos
maus.
Onde cessam as nossas necessidades perecedouras, onde ter­
minam os nossos desejos insensatos, também devem acabar as
nossas paixões e os nossos crimes. De que perversidade de espíri­
tos puros seriam eles susceptíveis? Não tendo necessidade de na­
da, por que motivo seriam maus? Se, desprovidos dos nossos gros­
seiros sentidos, toda a sua felicidade residisse na contemplação
dos seres, só poderiam desejar o bem; e quem deixa de ser mau po­
derá ser eternamente miserável? Eis aquilo em que me sinto ten­
tado � acreditar, sem me dar ao trabalho de decidir se é assim ou
não. O Ser clemente e bom! Sejam quais forem os teus decretos,
adoro-os; se castigas os maus, aniquilo a minha fracarazão peran­
te a tua justiça. Mas se os remorsos desses infortunados se devem
apagar com o tempo, se os seus males tiverem um fim, e se, um dia,
a mesma paz nos espera, a todos, louvo-te por isso. O mau não é
meu irmão? Quantas vezes me senti tentado a proceder como ele!
Que, libertado da sua miséria, ele também perca a malícia que a
acompanha; queele sejatãofeliz comoeu: longe de exacerbar a mi­
nha inveja, a sua felicidade só aumentará a minha.
Foi assim - contemplando Deus nas suas obras, e estu­
<ia.., .J .._� através dos seus atributOs que me interessava-conhecer
- que consegui estender e desenvolver, pouco a pouco, a ideia ­
inicialmente imperfeita e limitada - que tinha desse ser imenso.
Mas, ao tornar-se mais nobre e maior, esta idei,a também passou
a ser desproporcionada para a razão humana. A medida que, em
espírito, me aproximo da luz eterna, o seu fulgor encandeia-me,
perturba-me, e vej o-me forçado a abandonar todas as noções ter­
restres que me ajudavam a imaginá-la. Deus já não é corporal e
sensível; a suprema Inteligência que governa o mundo já não é o
próprio mundo: em vão, elevo e fatigo o meu espírito, a conceber a
sua essência. Quando penso que é ela que dá a vida e a actividade
à substânciaviva e activa que rege os corpos animados; quando ou­
ço dizer que a minha alma é espiritual e que Deus é um espírito,
indigno-me contra esse aviltàmento da essência divina; como se
Deus e a minha alma fossem da mesma natureza; como se Deus
não fosse o único ser absoluto, o único verdadeiramente activo,
sentindo, pensando, querendo por si próprio, e do qual recebemos
o pensamento, o sentimento, a actividade, a vontade, a liberdade
e o ser! Só somos livres porque ele quer que o sejamos, e a substân­
cia inexplicável é, para as nossas almas, o que as nossas almas são
para o nosso corpo. Se ele criou a matéria, os corpos, os espíritos,
o mundo, não sei. A ideia de criação confunde-me e ultrapassa a
minha compreensão: creio nela, tanto quanto a posso conceber;
mas sei que ele formou o universo e tudo quanto existe, que ele fez
tudo, que tudo ordenou. Deus é eterno, certamente; mas o meu es-
94 pírito poderá abarcar a ideia da eternidade? Para quê utilizar pa-
lavras cujo sentido não conheço? O que concebo é que ele existe
antes das coisas, que existirá enquanto elas subsistirem, e que
continuará a existir mesmo depois disso, se tudo devesse, um dia,
acabar. Que um ser que eu não concebo dê a existência a outros se­
res, isso só é obscuro e incompreensível; mas que o ser e o nada se
convertam, por si mesmos, um no outro, é uma contradição palpá­
vel, é uma nítida absurdidade.
Deus é inteligente; mas de que maneira o é? O homem é inteli­
gente quando raciocina, e a suprema Inteligência não precisa de
raciocinar; para ela, não há premissas nem consequências, nem se­
quer há proposição: é puramente intuitiva, vê igualmente tudo o
que é e tudo o que pode ser; para ela, todas as verdades são a penas
uma ideia, como todos os lugares um único ponto, e todos os tempos
um só momento. O poder humano actua através de meios, o poder
divino actua por si mesmo. Deus pode porque quer; a sua vontade
faz o seu poder. Deus é bom, nada é mais manifesto: mas a bonda­
de, no homem, é o amor pelo seu próximo, e a bondade de Deus é
o amor pela ordem; pois é pela ordem que ele conserva o que exis­
te, e liga cada parte como o todo. Deus éjusto; estou convencido dis­
so, é uma consequência da sua bondade; a injustiça dos homens é
obra destes e não dele; a desordem moral, que, aos olhos dos filó­
sofos, depõe contra a Providência, nãofaz mais do que demonstrá­
-la, aos meus. Mas a justiça do homem é dar a cada um o que lhe
pertence, e ajustiça de Deus é pedir contas, a todos nós, do que nos
deu.
Se consigo descobrir, sucessivamente, esses atributos de que
não tenho nenhuma ideia absoluta, é através de consequências for­
çadas, é através da boa utilização da minha razão; mas afirmcr<>s
sem os compreender, e, no fundo, isso é não afirmar nada. Por mais
que me diga: «Deus é assim, sint<r<>, provo-mo», nem por isso con­
cebo melhor de qúe maneira Deus pode ser assim.
Enfim, quanto mais me esforço por contemplar a sua essência
infinita, menos a concebo; mas ela é, e isso basta-me; quanto
menos a concebo, mais a adoro. Humilho-me e digo-lhe: <<Ser dos
seres, sou porque és; é elevar-me à minha origem, meditar in­
cessantemente em ti. A utilização mais digna da minha razão é
aniquilar-me perante ti: sentir-me oprimido pela tua grandeza é
o êxtase do meu espírito, é o encanto da minha fraqueza.»
Depois de, assim - da impressão dos objectos sensíveis e do
sentimento interior que me leva a ajuizar das causas consoante as
minhas luzes naturais -, ter deduzido as principais verdades que
me interessava conhecer, resta-me procurar as máximas que de­
las devo retirar, para o meu próprio comportamento, e saber quais
as regras que me devo prescrever para desempenhar o meu destino
na terra, segundo a intenção daquele que nela me colocou. Seguin-
do sempre o meu método, não retiro essas regras dos princípios de
uma alta filosofia, mas encontr<r<>s no fundo do meu coração, es- 95
critas pela natureza, em caracteres indeléveis. Só me resta consul­
tar-me sobre ó que pretendo fazer: tudo quanto sinto ser bem é
bem, tudo quanto sinto ser mal é mal: o melhor de todos os casuís­
tas é a consciência; e só quando se discute com ela se tem recurso
às subtilidades do raciocínio. O rnais importante de todos os cuida­
dos é o que devemos ter por nós mesmos: contudo, quantas vezes
a voz interior nos diz que, ao fazermos o nosso bem à custa de ou­
trém, fazemos mal! Supomos seguir o impulso da natureza, e resis­
timos-lhe; escutando o que ela diz aos nossos sentidos, despreza­
mos o que ela diz aos nossos corações; o ser activo obedece, o ser
passivo comanda. A consciência é a voz da alma; as paixões são a
voz do corpo. Será de admirar que, muitas vezes, essas duas lin­
guagens se contradigam? E, nesse caso, qual delas deveremos es­
cutar? Demasiadas vezes, a razão engana-nos; por isso, adquiri­
mos o direito de a recusar; mas a consciência nunca engana; ela é
o verdadeiro guia do homem: ela é, para a alma, o que o instinto é
para o corpo1; quem a segue obedece à natureza e não receia extra­
vi ar-se.

1 A Filosofia modema, que só admite o que explica, não admite es­


ta obscura faculdade que se chama instinto, que parece conduzir os ani­
mais - sem nenhum conhecimento adquirido - para alguma finalidade.
O instinto, segundo um dos nossos mais sages filósofos (Condillac), não é
mais do que um hábito privado de reflexão, mas adquirido reflectindo; e,
pelo modo como ele explica esse progresso, deve concluir-se que �s crian­
ças reflectem mais que os homens; paradoxo que, por ser bastante estra­
nho, merece ser examinado. Sem pretender entrar nessa discussão, per­
gunto que nome deverei dar ao afinco com que o meu cão persegue as tou­
peiras que não come, à paciência com que as espera - por vezes, duran­
te horas seguidas -e à habilidade com que as apanha, as tira da terra no
momento em que estão a escavar, e as mata imediatamente, para as aban­
danar ali, sem que nunca ninguém o tivesse ensinado a fazer essa caçada
ou lhe tivesse dito que ali havia toupeiras. Também pergunto - e isto é
mais importante-por que foi que, na primeira vez que ameacei esse mes­
mo cão, ele se atirou ao chão, de costas, com as patas encolhidas, numa ati­
tude suplicante e a mais indicada para me enternecer; postura na qual ele
não teria permanecido se, não me tendo comovido, eu lhe tivesse batido
quando ele estava assim deitado. Qual! O meu cão, quando ainda era mui­
to pequenino, quase acabado de nascer,já adquirira essas ideias morais?
Já sabia o que era a clemência e a generosidade? Que conhecimentos
adquiridos poderia ele ter para esperar apaziguar-me, entregando-se,
desse modo, à minha mercê? Todos os cães do mundo fazem mais ou menos
a mesma coisa, em casos idênticos, e o que acabo de relatar todos o podem
verificar. Que os filósofos - que tão desdenhosamente rejeitam o instin­
to - se dignem explicar este facto, unicamente através das sensações e
dos conhecimentos que elas nos fazem adquirir; que o expliquem de uma
maneira satisfatória para todos os homens sensatos; se assim o fizerem,
96 nada mais terei a dizer e deixarei de falar de instinto.
«Este ponto é importante», prosseguiu o meu benfeitor, vendo
que eu me preparava para o interromper, «Sede paciente e permi­
ti-me esclarecer-vos mais apuradamente.»
Toda a moralidade das nossas acções reside no juízo que faze­
mos delas. Se é verdade que o bem é bem, ele deve encontrar-se no
fundo dos nossos corações como nas nossas obras, e o prémio mais
importante que ajustiça nos proporciona é sentirmos que o prati­
camos. Se a bondade moral estiver em conformidade com a nossa
natureza, o homem só poderá ter um espírito são e ser bem cons­
tituído, na medida em que for bom. Se o não está, e se o homem é
naturalmente mau, não poderá deixar de sê-lo sem se corromper
e, nele, a bondade não é mais do que um vício contrário à natureza.
Feito para fazer mal aos seus semelhantes -como o lobo para de­
golar a sua presa -, um homem seria um animal tão depravado
quanto um lobo compadecido; e só a virtude nos deixaria remorsos.
Regressemos a nós próprios, meu jovem amigo! Vejamos -to­
do e qualquer interesse pessoal posto de parte - aonde as nossas
inclinações nos conduzem. Qual o espectáculo que mais nos agra­
da: o dos tormentos ou o da felicidade de outrém? O que é que nos
é mais agradável de fazer e nos deixa uma impressão mais agra­
dável depois de o termos feito: um acto benfazejo ou UIIJ. acto de
maldade? Por quem vos jnteressais, nos vossos teatros? E nos cri­
mes que sentis prazer? E pelos seus autores, punidos, que verteis
lágrimas? <<Tudo nos é indiferente>•, dizem eles, «a não ser o nosso
próprio interesse>•; e, inversamente, as doçuras da amizade, da hu­
manidade, consolam-nos nas nossas penas; e, mesmo nos nossos
prazeres, estaríamos demasiadamente sós, sentir-nos-íamos ex­
cessivamente miseráveis, se não tivéssemoscom quem os compar­
tilhar.
Se nada há de moral no coração do homem, então de onde lhe
vêm esses transportes de admiração pelos actos heróicos, esses
transportes de amor pelas grandes almas? Esse entusiasmo pela
virtude, que relação tem com o nosso interesse pessoal? Por que
motivo preferiria eu ser C atão que dilacera as próprias entranhas,
que ser César triunfante? Retirai dos nossos corações esse amor
pelo belo, e tereis retirado deles todo o encanto da vida. Aquele
cujas vis paixões lhe atrofiaram, na alma, esses sentimentos deli­
ciosos; aquele que, pormuito se concentrarem si mesmo, acaba por
só se amar a si próprio, deixa de ter transportes, e o seu coração,
gelado, deixa de palpitar de alegria; um suave enternecimento não
lhe humedece nunca os olhos; não goza de nada; o infeliz deixa de
sentir, deixa de viver; já está morto.
Mas, seja qual for o número de maus sobre a terra, há poucas
dessas almas cadavéricas tornadas insensíveis - excepto no que
lhes diz respeito - a tudo quanto é justo e bom. A iniquidade só
agrada enquanto dela se tira proveito; em todas as outras coisas,
desej a-se que o inocente seja protegido. Assiste-se, numa rua, ou 97

L. B. 5 24 - 7
num caminho, a algum acto de violência e de injustiça; imediata­
mente, um sentimento de cólera e de indignação se eleva no fun­
do do nosso coração, e leva-nos a tomar a defesa do oprimido: mas
um dever mais poderoso nos retém: é que as leis não nos dão o di­
reito de proteger a inocência. Pelo contrário, se assistimos a algum
acto de clemência ou de generosidade, quanta admiração, quanto
amor ele nos inspira! Quem é que não diz, para consigo mesmo:
«Gostaria de ter feito a mesma coisa!»? Claro que pouco nos impor­
ta que - há dois mil anos - um homem tenha sido mau ou justo;
contudo, o mesmo interesse nos afecta quando lemos a História an­
tiga, como se tudo isso se tivesse passado na época em que vivemos.
Que me importam a mim os crimes de Catilina? Receio ser sua ví­
tima? Então, por que será que sinto, por ele, o mesmo horror que
sentiria se elefossemeu contemporâneo? Odiamos os maus, não só
porque nos fazem mal como porque são maus. Não só desej amos
ser felizes como também desejamos a felicidade dos outros; e essa
felicidade, quando não é à custa da nossa, aumenta-a. Enfim, mes­
mo sem querermos, sentimos piedade pelos infortunados; quando
somos testemunhas dos seus desgostos, sofremos por causa deles.
Os mais perversos dos homens não poderiam perder completa­
mente essa tendência; muitas vezes, ela coloca-os em contradição
consigo mesmos. O ladrão que despoja os transeuntes é capaz de
cobrir a nudez do pobre; e o mais feroz assassino ampara um ho­
mem que está prestes a perder os sentidos.
Fala-se do grito dos remorsos, que, secretamente, castiga os
crimes encobertos e tantas vezes os coloca em evidência. Oh! Qual
de nós nunca ouviu essa voz importuna? Fala-se por experiência;
e desej ar-se-ia abafar esse sentimento tirânico que tantos tor­
mentos nos causa. Obedeçamos à natureza, veremos com que do­
çura ela reina, e que encanto encontramos - depois de lhe termos
prestado ouvidos - ao tornar-mo-nosbonsjuízes de nós mesmos.
O mau receia-se a si próprio e foge de si mesmo; alegra-se, sain­
do para fora de si; lança em sua volta olhares inquietos e procura
um objecto que o distraia; sem a sátira amarga, sem a ironia insul­
tante, sentir-se-ia sempre triste; o riso forçado é o seu único pra­
zer. Pelo contrário, a serenidade do justo é interior; o seu riso não
é de malícia, mas de alegria; transporta, em si mesmo, a fonte de­
la; sente-se tão alegre quando está só como quando está rodeado
de gente; o seu contentamento não lhe vem dos que se lhe aproxi­
mam; comunica-se-lhes.
Lançai os olhos sobre todas as nações do mundo, lede a História
de cada uma delas. Por entre tantos cultos desumanos e bizarros,
por entre essa prodigiosa diversidade de costumes e de caracteres,
encontrareis em todas elas as mesmas ideias de justiça e de ho­
nestidade, em todas, as mesmas noções do bem e do mal. O anti­
go paganismo gerou deuses abomináveis que, neste mundo, teriam
98 sido punidos como celerados, e que, como imagem da felicidade su-
prema, só ofereciam malvadezas a cometer e paixões a saciar. E o
vício, armado de uma autoridade sagrada, descia em vão da mo­
rada eterna, porque o instinto moral o rejeitava do coração dos
humanos. Enquanto se celebravam os deboches de Júpiter, admi­
rava-se a continência de Xenocrata; a casta Lucrécia adorava a
impudica Vénus; o intrépido Romano oferecia sacrifícios ao Medo;
invocava o deus que mutilara seu pai e morria, sem queixume, pe­
la mão do seu. As mais desprezíveis divindades foram servidas pe­
los maiores homens. A santa voz da natureza, mais forte que a dos
deuses, fazia-se respeitar nesta terra, e parecia relegar, para o
céu, o crime e os seus culpados.
Existe, portanto, no fundo das almas, um princípio inato de
justiça e de virtude, sobre o qual, apesar das nossas próprias má­
ximas, julgamos as nossas acções e as dos outros, como boas ou
más; e é a esse princípio que eu dou o nome de consciência.
Mas, ao citar esta palavra, ouço elevar-se, de todos os lados, o
clamor dos pretensos sages: «Erros da infância, preconceitos da
educação!» clamam eles, em uníssono. «Não há nada no espírito
humano, além do que nele se introduz pela experiência, e nós só
ajuizamos das ideias adquiridas.>> E fazem mais: esse acordo evi­
dente e universal, de todas as nações, atrevem-se a rejeitá-lo; e,
contra a vibrante uniformidade do julgamento dos homens, vão
buscar, nas trevas, algum exempio obscuro e que só eles conhecem;
como se todas as inclinações da natureza ficassem aniquiladas pe­
la depravação de um povo, e que, desde que houvessem monstros,
a espécie passasse a não ser nada. Mas de que servem, para o cép­
tico Montaigne, os tormentos por que ele passa para desenterrar,
num canto do mundo, um costume oposto às noções da justiça? De
que lhe serve dar aos viajantes mais suspeitos a autoridade que ele
recusa aos escritores mais célebres? Alguns costumes bizarros e
incertos, fundamentados em causas locais que nos são desconhe­
cidas, conseguirão destruir a indução geral retirada do concurso de
todo� os povos, opostos em tudo o resto, e de acordo num único pon­
to? O Montaigne! Tu que te gabas de franqueza e de verdade, sê
sincero e verdadeiro, tanto quanto um filósofo o pode ser, e diz-me
se existe algum país nesta terra em que seja crime conservar a sua
fé, ser clemente, benfazejo, generoso; onde o homem de bem seja
desprezível e o pérfido venerado. .
Diz-se que cada um concorre para o bem público, em seu pró­
prio interesse. Mas, a que se deve que o justo o faça em �eu prejuí-
zo? O que é deixar-sem atarpeloseu próprio interesse? E certo que
não há ninguém que não aja pelo seu bem; mas se existe um bem
moral que devemos considerar, só se poderão explicar, pelo próprio
interesse, as acções dos maus. Até é de acreditar que não se tenta-
rá ir mais longe. Seria excessivamente abominável, uma Filosofia
em que as pessoas se sentissem embaraçadas com as acções virtuo­
sas; em que nelas apenas vissem intenções vis e motivos sem vir- 99
tude; em que se vissem forçadas a aviltar Sócrates e a caluniar
Régulus. Se alguma vez doutrinas destas conseguissem germinar
entre nós, a voz da natureza, assim como a da razão, elevar-se­
-iam incessantemente contra elas, e nunca permitiriam a nenhum
dos seus partidários ter a desculpa de estar de boa-fé.
A minha intenção não é de entrar, aqui, em discussões meta­
físicas que ultrapassam a minha competência e a vossa, e que, no
fim, não conduzem a nada. Já vos disse que não queria filosofar
convosco mas apenas auxiliar-vos para que pudésseis consultar o
vosso coração. Mesmo que todos os filósofos provem que estou en­
ganado, se sentirdes que tenho razão, ficarei satisfeito.
Para isso, basta conseguir que compreendeis que existe uma
diferença entre as nossas ideias adquiridas e os nossos sentimen­
tos naturais; pois sentimos antes de conhecer; e, assim como não
aprendemos a querer o nosso bem e a evitar o nosso mal, mas re­
cebemos essa vontade da natureza, também o amor pelo bom e o
ódio pelo mau são, em nós, n aturais como o amor que sentimos.
Embora todas as nossas ideias nos venham do exterior, os sen­
timentos que as apreciam encontram-se no nosso interior, e é
unicamente através deles que conhecemos a conveniência ou a in­
conveniência que existe entre nós e as coisas que devemos respei­
tar ou evitar.
Para nós, existir é sentir; a nossa sensibilidade é, incontesta­
velmente, anterior à nossa inteligência, e tivemos sentimentos,
antes de termos começado a ter ideias1 • Seja qual for a causa do
nosso ser, ela encarregou-se da nossa conservação dando-nos os
sentimentos que convêm à nossa natureza; e ninguém poderia
negar que esses, pelo menos, são inatos: no que se refere ao indi­
víduo, são o amor por si próprio, o receio da dor, o horror pela morte,
o desejo do bem-estar. Mas se o homem tem uma natureza sociá­
vel - facto de que não podem restar dúvidas - ou, pelo menos, se
esforça por se tornar sociável, só o poderá ser através de outros sen­
timentos inatos, relativos à sua espécie; pois, mesmo consideran­
do apenas a necessidade física, esta deve certamente dispersar os
homens, em vez de os reunir. Ora, é do sistema moral, formado por
essa dupla relação consigo mesmo e com os seus semelhantes, que
nasce a impulsão da consciência. Conhecer o bem não significa

Sob determinados pontos de vista, as ideias são sentimentos e os


sentimentos ideias. Ambos os nomes convêm a qualquer percepção que
nos ocupa e ao seu obj ecto, assim como a nós próprios, que por eles somos
afectados: só a ordem dessa afecção determina o nome que melhor lhe con·
vém. Quando, inicialmente ocupado com o objecto, só pensamos em nós
por reflexão, trata-se de uma ideia; pelo contrário, quando a impressão re­
cebida excita a nossa primeira atenção e só por reflexão pensamos no ob­
100 jecto que a causa, trata-se de um sentimento.
amá-lo: o homem não tem- dele- o conhecimento inato; mas lo­
go que a sua razão lho dá a conhecer, a sua consciência leva-o a
amá-lo: e é esse sentimento que é inato.
Por conseguinte, meu amigo, não creio que seja impossível
explicar, pelas consequências da nossa natureza, o princípio ime­
diato da consciência, independente da própria razão. E, mesmo
que isso fosse impossível, não seria necessário: pois, como aqueles
que negam esse princípio - admitido e reconhecido por todo o
género humano - não conseguem provar que ele não.existe, con­
tentando-se em afirmá-lo, ao afirmarmos que ele existe, a nossa
afirmação está tão bem fundamentada quanto a deles, e, além dis­
so, temos o testemunho interior e a voz da consciência que teste­
munha por si mesma. Se as primeiras luzes desse conceito nos
ofuscam e começam por confundir os objectos perante o nosso
olhar, esperemos que os nossos fracos olhos se voltem a abrir, se
reforcem; e, em breve, voltaremos a ver esses mesmos objectos ilu­
minados pelas luzes da razão, tais como a natureza começara por
no-los mostrar: ou, antes, sejamos mais simples e menos vãos; li­
mitemo-nos aos primeiros sentimentos que encontramos em nós
mesmos, pois é sempre a eles que o estudo nos conduz quando não
nos extravia.
Consciência! Consciência! Instinto divino, voz imortal e celes­
te; guia seguro de um ser ignorante e limitado, mas inteligente e
livre; juiz infalível do bem e do mal, que tornas o homem seme­
lhante a Deus, és tu que fazes a excelência da sua natureza e a mo­
ralidade das suas acções; sem ti, nada sinto em mim que me ele­
ve acima dos animais, a não ser o triste privilégio de me perder, de
erro em erro, im pélido por um entendimento sem regras e por uma
razão sem princípios.
Graças aos Céus, eis-nos livres de todo esse assustador apare­
lho de Filosofia: podemos ser homens sem ser sábios; dispensados
de consumir as nossas vidas no estudo da moral, temos a facilida­
de de possuir um guia seguro, por entre esse dédalo imenso das opi­
niões humanas. Mas não basta que esse guia exista, é necessário
saber reconhecê-lo e segui-lo. Se ele fala a todos os cqrações, por
que haverá tão poucos que lhe prestam ouvidos? Ora! E porque ele
nos fala a linguagem da natureza, que tudo nos levou a esquecer.
A consciência é tímida, ama o isolamento e a paz; o mundo e o ruí­
do aterrorizam-na: os preconceitos a que lhe atribuem a origem
são os seus mais cruéis inimigos; perante eles, ela foge ou cala-se:
aquelas vozes ruidosas abafam a sua e impedem-na de se fazer ou­
vir; o f�natismo atreve-se a desfigurá-la e a ditar o crime, em seu
nome. A força de ser repelida, ela cansa-se: deixa de nos falar, dei­
xa de nos responder; e, depois de tantos aviltamentos que lhe são
feitos, é tão difícil fazê-la regressar como foi expulsá-la.
Quantas vezes me senti desanimado, nas minhas buscas, com
a frieza que sentia dentro de mim! Quantas vezes a tristeza e o 101
aborrecimento, vertendo o seu veneno sobre as minhas primeiras
meditações, mas tornaram insuportáveis? O meu coração árido só
dedicava um zelo fraco e tíbio ao amor pela verdade. Dizia para co­
migo mesmo: «Para quê atormentar-me à procura do que não exis­
te? O bem moral não passa de uma quimera; as únicas coisas boas
são os prazeres dos sentidos.» Ai! Uma vez que se perdeu o gosto
pelos prazeres da alma, como é difícil recuperá-lo! E muito mais
difícil é adquiri-lo, quando nunca se o sentiu! Se existisse um
homem suficientemente miserável que nunca, em toda a sua vida,
tivesse feito nada cuja recordação lhe provocasse um certo conten­
tamento por si próprio e o levasse a sentir-se satisfeito por ter vi­
vido, esse homem nunca seria capaz de se conhecer; e, como não
sentiria o género de bondade que conviria à sua natureza, perma­
neceria forçosamente mau e sentir-se-ia eternamente infeliz.
Mas creis que exista, neste mundo, um único homem que seja su­
ficientemente depravado para nunca ter entregue o seu coração à
tentação de bem fazer? Essa tentação é tão natural e tão doce, que
se torna impossível resistir-lhe constantemente; e a recordação do
prazer que uma vez tenha produzido é bastante para a fazer re­
cordar constantemente. Infelizmente, ela começa por ser difícil de
satisfazer; todos nós temos mil motivos para nos recusarmos à
tendência do nosso coração; a falsa prudência cinge-nos dentro dos
limites doeu humano; são necessários mil esforços de coragem pa­
ra ousar franqueá-los. Sentir prazer em fazer obem é o prémio por
ter procedido bem, e esse prémio só o conseguimos depois de o ter­
mosmerecido. Nadaé mais amável que a virtude;mas é preciso go­
zar dela para a considerar assim. Quando a pretendemos abraçar
- como o Proteu da fábula-, ela começa por se mostrar sob mil
formas assustadoras, e, finalmente, só se mostra sob o seu verda­
deiro aspecto àqueles que não desistiram .
Constantemente combatido pelos meus sentimentos naturais
que pugnavam pelo interesse comum, e pela minha razão que con­
siderava tudo em relação a mim, teria flutuado durante toda a mi­
nha vida nessa contínua alternativa, fazendo o mal, amando o
bem, e sempre em contradição comigo mesmo, se novas luzes não
tivessem vindo iluminar o meu coração, se a verdade, que fixou as
minhas opiniões, não tivesse vindo assegurar o meu comporta­
mento e n ão me tivesse posto de acordo comigo mesmo. Por mais
que queiramos estabelecer a virtude unicamente pela razão, que
base sólida lhe poderemos dar? A verdade -dizem eles - é o amor
pela ordem . Mas, nesse caso, em mim, esse amor pode e deve ser
mais forte que o que sinto pelo meu bem--estar? Que eles me for­
neçam uma razão clara e suficiente para o preferir. No fundo, o seu
pretenso princípio não passa de um jogo de palavras; porque eu, eu
também digo que o vício é ó amor pela ordem, tomado num sentido
diferente. Há sempre alguma ordem moral onde há sentimento e
102 inteligência. A diferença está em que o bom se ordena em relação
ao todo e que o mau ordena o todo em relação a si mesmo e se con­
sidera como o centro de todas as coisas, enquanto o outro mede o
seu raio e se mantém na circunferência. Então, fica ordenado em
relação ao centro comum, que é Deus, e em relação a todos os
círculos concêntricos, que são as criaturas. Se a Divindade não
exis�e, só o mau raciocina e o bom não passa de um insensato.
O meu filho, só desejo que possais um dia vir a sentir de que
peso nos vemos aliviados, quando, depois de termos esgotado a
vaidade das opiniões humanas e provado a amargura das paixões,
encontramos, finalmente - e tão perto de nós - o caminho da sa­
geza, o prémio pelos trabalhos desta vida, e a fonte da felicidade de
que chegámos a desesperar! Todos os deveres da lei natural, que
a injustiça dos homens quase apagou do meu coração, voltam a evi­
denciar-se em nome da eterna justiça que mo impõe e que mos vê
desempenhar.
Já só sinto em mim a obra e o instrumento do grande Ser que
quer o bem, que o faz, que fará o meu com a concordância das mi­
nhas vontades às suas e pelo bom emprego da minha liberdade:
aquiesço à ordem que ele estabelece, com a certeza de, um dia, vir
a gozar dessa mesma ordem e de nela encontrar a minha felicida­
de; pois, que felicidade mais doce há que a de se sentir ordenado
num sistema em que tudo é bem? Entregue à dor, suporto-a com
paciência, pensando que ela é passageira e que vem de um corpo
que não me pertence. Se pratico uma boa acção sem testemunho,
sei que ela é vista, e tomo como uma promessa para a outra vida,
do meu comportamento nesta. Suportando uma injustiça, digo­
-me a mim mesmo: «Ü Ser justo que tudo governa não seixará de
me recompensar por isto>>, e as necessidades do meu corpo, as mi­
sérias da minha vida tornam-me m ais suportável a ideia da mor­
te. Serão menos os elos que terei de romper, quando tiver de aban­
donar tudo.
Por que é que a minha alma está submetida aos meus sentidos
e acorrentada a este corpo que a oprime e a subjuga? Não sei: te-
rei penetrado os desígnios de Deus? Mas posso, sem temeridade,
formar modestas conjecturas. Digo, para comigo mesmo: «Se o es­
pírito do homem tivesse ficado livre e puro, que mérito teria ele em
amar e seguir a ordem que visse estabelecida e que n ão teria inte­
resse nenhum em perturbar? Seria feliz, isso é verdade; mas à sua
felicidade faltaria o grau mais sublime, a glória da virtude e o bom
testemunho desi mesmo; seria apenas comoos anjos ; e certamente
que o homem virtuoso será mais do que estes.>> Unida a um corpo
mortal através de elos tão poderosos quanto incompreensíveis, o
cuida.do com a. conservação desse corpq incita a alma a relacionar
tudo com ele, e atribui-lhe um interesse oposto à ordem geral, que,
no entanto, ela é capaz de ver e de amar; é então que a boa utili­
zação da sua liberdade se torn a simultaneamente o mérito e a
recompensa, e que, conservando-se na sua primeira vontade e 103
combatendo as suas paixões terrestres, ela prepara, para si mes­
ma, uma felicidade inalterável.
Mesmo se, no estado de abatimento em que nos encontramos,
durante esta vida, todas as nossas principais inclinações são legí­
timas; mesmo se todos os vícios provêm de nós, por que motivo nos
queixamos de ser subjugados por eles? Por que motivo censuramos
ao autor das coisas os males que fazemos e os inimigos que arma­
mos contra nós próprios? Oh! Não poupemos o homem; ele será
sempre bom sem dificuldade, e sempre feliz sem remorsos. Os cul­
pados que se dizem forçados ao crime são tão mentirosos quanto
maus; como é possível que não vejam que a fraqueza de que se quei­
xam é a sua própria obra; que a sua primeira depravação provém
da sua vontade; que, à força de quererem ceder às suas tentações,
acabam por ceder-lhes sem dar por isso, e as tornam irresistíveis?
É verdade que deixa de depender deles serem maus e fracos, mas
dependeu deles o terem-se tornado assim. Ai! Como nos seria fá­
cil permanecer donos de nós mesmos e das nossas paixões, mesmo
durante esta vida, se -quando os nossos hábitos ainda não estão
adquiridos-, quando o nosso espírito se começa a abrir, soubésse­
mos ocupá-lo com os objectos que ele deve conhecer para apreciar
aqueles que não conhece; se quiséssemos, sinceramente, esclare­
cer-nos- não para brilhar aos olhos dos outros, mas para sermos
sages e bons segundo a nossa natureza- para nos tornarmos fe­
lizes, praticando os nossos deveres! Este estudo parece-nos enfa­
donho e difícil, porque só o fazemos depois de estarmos corrompi­
dos pelo vício, já entregues às nossas paixões. Fixamos os nossos
juízos e a nossa estima, antes de conhecer o bem e o mal; e, depois,
ajustando tudo a essa falsa medida, não sabemos dar o seu justo
valor a nada.
Há uma idade em que o coração, ainda livre, mas ardente,
inquieto, ávido da felicidade que não conhece, a procura com uma
curiosa incerteza, e que, enganado pelos sentidos, acaba por se fi­
xar sobre a sua falsa imagem, crê tê-la encontrado onde ela não se
encontra. Para mim essas ilusões duraram demasiado tempo. In­
felizmente, conheci-as tarde de mais e não as consegui destruir
completamente: durarão tanto quanto este corpo mortal que as
causa. Pelo menos, por mais que me seduzam não me enganam; sei
o que são; seguindo-as, desprezo-as; longe de nelas ver o objecto
da minha felicidade, considero-as como obstáculos a ela. Aspiro
pelo momento em que, liberto do embaraço do corpo, serei eu sem
contradição, sem partilha, e só necessitarei de mim para ser feliz;
entretanto, já o sou nesta vida, porque considero como insignifi­
cante todos os males, porque a considero como quase alheia ao meu
ser, e porque todo o verdadeiro bem que dela posso retirar depen­
de de mim.
Para, de antemão, me elevar- tanto quanto possível- a es­
104 se estado de felicidade, de força e de liberdade, exercito-me nas su-
blimes contemplações. Medito na ordem do universo, não para o
explicar por inúteis sistemas, mas para o admirar constantemen­
te, para adorar o sage autor que nela se faz sentir. Converso com
ele, todas as minhas faculdades se deixam penetrar pela sua divi­
na essência; comovo-me com os seus favores, bendigo-o pelos seus
dons; mas nada lhe peço. Que lhe poderia pedir? Que, por mim, mo­
dificasse o curso das coisas, que fizesse milagres para mim? Eu
que, acima de tudo, devo amar a ordem estabelecida pela sua sa­
geza e conservada pela sua providência, poderia desejar que essa
ordem fosse perturbada por mim? Não, esse pedido temerário mais
mereceria ser punido que satisfeito. Também não lhe peço o poder
de proceder bem: para que lhe pedir o que ele me deu? Não me deu
ele a consciência para amar o bem, a razão para o conhecer, a li­
berdade para o escolher? Se pratico o mal, não tenho desculpas;
faço-o porque quero: pedir-lhe que modifique a minha vontade é
pedir-lhe o que ele me pede; é querer que ele faça o meu trabalho,
recebendo eu o salário, não estar satisfeito com o meu estado é dei­
xar de querer ser homem, é desejar outra coisa do que aquilo que
é, é querer a desordem e o mal. Fonte de justiça e de verdade, Deus
clemente e bom! Na minha confiança em ti, o supremo desejo do
meu coração é que a tua vontade seja feita. Juntando-lhe a minha,
faço o que o que tu fazes, aquiesço à tua bondade; creio comparti­
lhar, antecipadamente, a suprema felicidade que é o prémio disso.
Na justa desconfiança por mim mesmo, a única coisa que lhe
peço-ou antes, que espero da sua justiça-é que remedeie o meu
erro quando eume extravio e se esse erro é perigoso para mim. Em­
bora seja de boa-fé, não me considero infalível: talvez as minha
opiniões que me parecem mais verdadeiras sejam falsas; pois, qual
é o homem que não crê nas suas? E quantos homens estão de acor­
do em tudo? Da ilusão que me engana, mesmo que venha de mim,
é só ele que me pode curar. Fiz o que pude.para conhecer a verda­
de; mas a sua fonte está excessivamente elevada: quando asforças
me faltam para ir mais além, de que poderei ser culpado? E a ela
que compete aproximar-se.

O bom sacerdote falara com veemência; estava comovido, e eu


também. Parecia-me ouvir o divino Orfeu cantar os primeiros hi­
nos, ensinando aos homens o culto dos deuses. No entanto, já tinha
montes de objecções a fazer-lhe: não lhe fiz nem sequer uma,
porque elas eram menos sóliqas que embaraçosas, e porque a
persuasão estava do lado dele. A medida que ele me ia falando se­
gundo a sua consciência, a minha parecia-me confirmar o que ele
dissera.
«Os sentimentos que acabais de me expor», disse-lhe eu, «pa­
recem-me mais originais pelo que me confessais ignorar que pelo
que me dizeis saber. Neles, quase vejo o teísmo ou a religião natu- 1 05
ral, que os cristãos afectam confundir com o ateísmo ou irreligião,
que é uma doutrina directamente oposta. Mas, no actual estado da
minha fé, precisarei mais de elevar-me que de descer, para adop­
tar as vossas opiniões; e, não sendo tão sage como vós, parece-me
difícil atingir precisamente o ponto em que vos encontrais. Paz:a,
pelo menos, ser tão sincero como vós, preciso de me consultar. E o
sentimento interior que me deve conduzir ao vosso exemplo; e vós
mesmos me ensinastes que, depois de lhe termos imposto silêncio
durante muito tempo, voltar a adquiri-lo não é coisa que se faça
num momento. Levo os vossos discursos no meu coração, preciso
de meditá-los. Se, depois de me ter bem consultado, me sentir tão
convencido quanto vós, sereis o meu último apóstolo e eu serei o
vosso prosélito até à morte. Porém, continuai a instruir-me, pois
só me dissestes metade do que devo saber. Falai-me da revelação,
das escrituras, desses dogmas obscuros sobre os quais tenho erra­
do desde a minha infância, sem os poder conceber nem crer, e sem
os saber admitir nem rejeitar.»
«Sim, meu filho», exclamou ele, abraçando-me, «dir-vos-ei
tudo quanto penso; não desejo abrir-vos apenas metade do meu
coração: mas o interesse que acabais de expressar era-me neces­
sário para eu me sentir autorizado a falar-vos sem reserva. Até
agora , ainda não vos disse nada que não me parecesse poder
ser-vos útil e de que eu próprio não estivesse intimamente per­
suadido. Mas o exame que me resta fazer é muito diferente; nele
vejo unicamente embaraço, mist,ério, obscuridade; apenas me
inspira incerteza e desconfiança. E tremente que me determino a
fazê-lo; mas prefiro falar-vos das minhas dúvidas e não vos ex­
pressar a minha opinião. Se os vossos sentimentos fossem mais es­
táveis, parece-me que não vos exporia os meus; mas, no estado em
que vejo que vos encontrais, só podereis encontrar vantagens se
pensardes como eu1• Quanto ao resto, atribuí aos meus discursos
apenas a autoridade da razão; ignoro se estou enganado. Por vezes,
quando se discute, é difícil não tomar o tom afirmativo; mas, ago­
ra, lembrai-vos de que todas as minhas afirmações são apenas ra­
zões para duvidar. Procurai vós mesmos a verdade: por meu lado,
prometo-vos apenas boa-fé. ,!
Na minha exposição, vistes apenas a religião natural: é mui­
to estranho que seja precisa outra. O que foi que me levou a conhe­
cer essa necessidade? De que poderei ser culpado servindo Deus
segundo as luzes que ele dá ao meu espírito e consoante os senti­
mentos que.ele inspira ao meu coração? Que pureza de moral, que
dogma útil para o homem e honroso para o seu autor poderei reti­
rar de uma doutrina passiva, que não po55a retirar do bom uso das

1 Eis, parece-me, o que o bom saeerdote poderia dizer, actualmen-


106 te, ao público.
minhas faculdades, sem necessidade daquela? Mostrai-me o que
se pode acrescentar- para a glória de Deus, para o bem da socie­
dade e para meu próprio bem -aos deveres da lei natural, e a que
virtude dareis origem com um novo culto, que não seja uma conse­
quência do meu. As maiores ideias sobre a Divindade chegam-nos
unicamente através da razão. Vede o espectáculo que a natureza
nos oferece, escutai a voz interior. Deus já não disse tudo aos nos­
sos olhos, à nossa consciência, ao nosso entendimento? Que mais
nos poderão dizer os homens? As suas revelações só degradam
Deus, atribuindo-lhe paixões humanas. Longe de esclarecerem as
noções sobre o grande Ser, vejo que os dogmas particulares as ba­
ralham; que, longe de as enobrecerem, as aviltam; que aos misté­
rios inconcebíveis que o envolvem, eles acrescentam contradições
absurdas; que tornam o homem orgulhoso, intolerante, cruel; que
em vez de estabelecerem a paz sobre a terra, lhe trazem o ferro e
o fogo. Pergunto-me paraque serve tudo isso, e não encontro a res­
posta. Nisso, só vejo os crimes dos homens e as misérias do géne­
ro humano.
Dizem-me que seria preciso haver uma revelação, para que os
homens ficassem a saber a maneira como Deus quer ser servido;
para justificar essa declaração, invoca-se a diversidade dos cultos
bizarros que se instituíram, e não se vê que essa mesma diversi­
dade vem da fantasia das revelações. Desde que os povos começa­
ram a pretender que Deus lhes falasse, cada um o fez falar à sua
moda e lhe atribuiu as palavras que quis. Se se tivessem limitado
a escutar o que Deus diz ao coração do homem, haveria apenas uma
religião na terra.
Era preciso um culto uniforme; nesse ponto, estou de acordo:
mas isso era assim tão importante que necessitasse de todo o
aparelho da força divina para o estabelecer? Não confundamos o
cerimonial da religião com a religião. O culto que Deus p�de é o do
coração; e esse, quando é sincero, é sempre uniforme. E possuir
uma vaidade muito louca imaginar que Deus se interessa muito
pela forma das vestes do sacerdote, pela ordem das palavras que
ele pronuncia, pelos gestos que ele faz no altar e por todas as suas
genuflexões. Ora, meu amigo, por mais alto que sejais, estareis
sempre suficientemente perto do chão. Deus quer ser adorado em
espírito e em verdade: este dever é o de todas as religiões, de todos
os países, de todos os homens. Quanto ao culto exterior, se deve ser
uniforme para a manutenção da ordem, bem sabeis que esta de­
pende unicamente da polícia; náo é necessária nenhuma revelação
para a manter.
Mas as minhas reflexões não começaram por aqui. Influen­
ciado pelos preconceitos da educação e por esse perigoso amor­
-próprio que quer sempre elevar o homem acima da sua esfera,
incapaz de elevar as minhas fracas concepções até ao grande Ser,
esforçava-me por o abaixar até mim. Comparava as relações infi- 107
nitamente afastadas que ele pôs entre a sua natureza e a minha.
Desejava comunicações mais imediatas, instruções mais espe­
ciais; e, não satisfeito por fazer Deus igual ao homem, para eu pró­
prio vir a ser privilegiado entre os meus semelhantes, queria luzes
sobrenaturais; queria um culto exclusivo; queria que Deus me
dissesse o que não dissera a outros, ou que outros não tivessem
entendido como eu. Considerando o ponto a que chegara como o
ponto comum de onde partiam todos os crentes para chegarem a
um culto mais esclarecido, nos dogmas da religião natural apenas
encontrava os elementos de todas as religiões. Considerava essa
diversidade de seitas que reinam sobre a terra e que, mutuamen­
te, se acusam de mentira e 9-e erro; perguntava:«Qual será a boa?»
Cada um me respondia: «E a minha!••; cada um dizia: «Só eu e os
meus partidários conhecemos a verdade; todos os outros estão en­
ganados.» <<E como sabeis que a vossa seita é a boa?>> «Porque Deus
o disse1.» «E quem vos diz que Deus o disse?» «0 meu pastor, que
o sabe bem. O meu pastor recomenda-me que creia nisto e é o que
faço: garante-me que todos aqueles que dizem coisas diferentes
mentem, e, por isso, eu não lhes presto ouvidos.»
Ora esta! , pensei eu, a verdade não é una? E, aquilo que, para
mim, é verdade, pode ser mentira para vós? Se o método daquele
que segue pelo bom caminho e o do que se extravia é o mesmo, que
mérito e que culpa tem um, mais que o outro? A escolha deles é um
efeito do acaso; imputar-lha como crime é uma iniquidade, é re­
compensar ou punir por ter nascido nesta ou naquela região. Ou­
sar afirmar que Deus nos julga assim é ultrapassar a sua justiça.
Ou todas as religiões são boas e agradáveis a Deus, ou, se há
alguma que ele tenha prescrito aos homens e por cuj<? desconheci-

«Todos», afirma um bom e sage sacerdote, «dizem que a conhe­


ceram e que nela crêem (e todos utilizam esta mesma linguagem), não
através dos homens, nem de nenhuma criatura, mas através de Deus.
»Mas, para dizer a verdade, sem nada exaltar nem dissimular, as
coisas não se passam assim; são - digam o que disserem - conservadas
por mãos e meios humanos ; como principal prova disso, a maneira como
as religiões foram recebidas no mundo e continuam a sê-lo, todos os dias,
pelos particulares: a nação, a região, o lugar, é que dá a religião: crê-se na­
quela que é seguida no lugar em que se nasceu e se foi criado: somos cir­
cuncidados, baptizados, judeus, maometanos, cristãos, antes mesmo de
sabermos que somos homens: a religião, não somos nós que a escolhemos;
disso testemunha, depois, a vida e os costumes que tão mal se ajustam à
religião: a prova é que, em ocasiões humanas e bastante insignificantes,
procede-se contra as regras da sua religião.», CHARRON, De la Sagesse, liv.
II, cap. V, p. 257, edit. Bordéus, 1601.
Temos muitos motivos para crer que a sincera profissão de fé do
virtuoso teológico de Condom não teria diferido muito da do vigário sa-
108 boiano.
mento ele os castigue, é porque lhes deu sinais certos e manifestos
para ser distinguida e conhecida como a única verdadeira. Esses
sinais são de todos os tempos e de todos os lugares, igualmente sen­
síveis a todos os homens, grandes e pequenos, sábios e ignorantes,
Europeus, Indianos, Africanos, Selvagens. Se houvesse uma reli­
gião na terra fora da qual só houvessem tormentos eternos, e se em
qualquer parte do mundo um único mortal de boa-fé não se sen­
tisse tocado pela sua evidência, o Deus dessa religião seria o mais
iníquo e o mais cruel dos tiranos.
Será que procuramos sinceramente a verdade? Não abandone­
mos nada ao direito do n�scimento nem à autoridade dos pais e dos
pastores, mas apelemos para o exame da consciência e da razão,
tudo quanto eles nos ensinaram desde a nossa infância. Eles bem
me podem gritar: «Submete a tua razão!>> O mesmo me poderia di­
zer aquele que me engana: preciso de razões para submeter a mi­
nha razão.
Toda a teologia que posso adquirir por mim mesmo, através da

observação do universo, e pela boa utilizaç o das minhas faculda­
des, limita-se ao que vos acabo de explicar.'Para saber mais, pre­
ciso de recorrer a meios extraordinários. Esses meios nunca pode­
riam ser a autoridade dos homens; porque, como nenhum homem
é de outra espécie que eu, tudo quanto um homem conhece natu­
ralmente, também eu o posso conhecer, e um outro homem pode
enganar-se, tanto como eu: se creio no que ele diz, não é porque ele
mo diz, mas porque mo prova. Por conseguinte, o testemunho dos
homens é, no fundo, o da minha própria razão, e não acrescenta na­
da aos meios naturais que Deus me deu para conhecer a verdade.
Apóstolo da verdade, que me tendes então a dizer de que eq não
possa ser juiz? O próprio Deus falou: escutai a sua revelação. E ou­
tra coisa. Deus falou! Eis, sem dúvida nenhuma, uma frase impor­
tante. E a quem falou ele? Falou aos homens. Então, porque será
que não ouvi nada? Ele encarregou outros homens de vos transmi­
tirem a sua palavra. Compreendo! Serão homens que me virão di­
zer o que Deus disse. Preferia ter ouvido o próprio Deus; isso não
lhe teria custado nada e eu encontrar-me-ia ao abrigo da sedução.
Ele protege-vos disso, manifestando a missão dos seus enviados.
De que maneira? Através de prodígios. E onde estão esses prodí­
gios? Nos livros. E quem fez esses livros? Alguns homens. E quem
viu esses prodígios? Homens que os garantem. Ora! Sempre teste­
munhos humanos! Sempre homens que me transmitem o que ou­
tros homens lhes transmitiram! Quantos homens, entre Deus e eu!
Mesmo assim, vejamos, examinemos, comparemos, verifiquemos.
Ai! Se Deus me tivesse dispensado de todo este trabalho, tê-lo-ia
eu servido com menos dedicação?
Considerai, meu amigo, o terrível debate em que me vejo
metido; a imensa erudição de que preciso para remontar às mais
remotas épocas, para examinar, pesar, confrontar as profecias, as 109
revelações, os factos, todos os monumentos de fé propostos em to­
das as regiões do mundo, para lhes determinar a época, os lugares,
os autores, as ocasiões! Quanta justeza de crítica me é necessária
para estabelecer a distinção entre as peças autênticas e as peças
supostas; para comparar as objecções com as respostas, as traduções
com os originais; para ajuizar da imparcialidade dos testemunhos,
do seu bom senso, das suas luzes; para saber se não suprimiram
nada, se nada acrescentaram, se nada transpuseram, mudaram,
falsificaram; para anotar as contradições que permanecem, para
avaliar o valor do silêncio dos adversários, a respeito dos factos ale­
gados contra eles; se tiverem conhecimento dessas alegações; se fi­
zeram suficiente caso delas para se dignarem responder-lhes; se
os livros eram suficientemente comuns para que os nossos lhes
chegassem às mãos; sea nossa boa-fé foi bastante para aceitarmos
os deles, entre nós, e para neles deixarmos as suas mais fortes
objecções, tais como eles as tinham feito.
Depois de ter reconhecido como incontestáveis todos esses mo­
numentos, é necessário passar às provas dos respectivos autores;
é indispensável conhecer as leis dos destinos, as probabilidades
eventuais, para saber qual é a predição que não se pode cumprir
sem milagre; o génio das línguas originais, para distinguir o que
é predição nessas línguas, e o que não passa de figura oratória;
quais os factos que estão na ordem da natureza e quais os que não
o estão; para poder dizer até que ponto um homem pode fascinar
os olhos dos simples, ou mesmo surpreender as pessoas esclareci­
das; procurar saber de que espécie deve ser um prodígio, e de que
autenticidade se deve revestir não só para ser acreditado, mas pa­
ra que sejam puníveis os que dele duvidem; comparar as provas
dos verdadeiros e dos falsos prodígios e determinar as regras cer­
tas para os discernir; declarar, finalmente, porque é que Deus es­
colhe- para atestar a sua palavra -meios que, por si mesmos,
têm umà tão grande necessidade de atestação, como se ele pouco
se importasse com a credulidade dos homens, e, intencionalmen­
te, quisesse evitar os verdadeiros meios de os persuadir.
Suponhamos que a majestade divina se digne abaixar-se o
suficiente para fazer de um homem o órgão das suas vontades sa­
gradas; será razoável, será justo exigir que todo o género humano
obedeça à voz desse ministro, sem que ele lho tenha sido apresen­
tado como tal? Haverá alguma equidade, ao dar-lhe, como únicas
credenciais, apenas alguns sinais particulares feitos diante de
poucas e obscuras pessoas, e de que todos os outros homens nun­
ca saberão nada, a não ser pelo que ouvirem dizer? Em todos os paí­
ses do mundo, se se considerassem como verdadeiros todos os pro­
dígios que o povo e os simples dizem ter visto, cada seita seria a boa;
haveria mais prodígios que acontecimentos naturais; e o maior de
todos os milagres seria qu,e, onde houvesse fanáticos perseguidos,
110 não houvesse milagres. E a ordem inalterável da natureza que
melhor mostra a mão que a governa; se houvesse muitas excep­
ções, eu deixaria de saber o que pensar; e, no que me diz respeito,
creio demasiado em Deus para acreditar em tantos milagres tão
pouco dignos dele.
Se houver um homem que nos venha falar desta maneira:
«Mortais, anuncio-vos a vontade do Altíssimo; reconhecei, ao ou­
vir-me, aquele que me envia; ordeno ao Sol que modifique o seu
movimento, às estrelas que se dispersem de outra maneira, às
montanhas que se aplanem, às ondas que se elevem, à Terra que
adquira um aspecto diferente». Vendo essas maravilhas, quem não
reconhecerá imediatamente o senhor da natureza!? Ela não obede­
ce aos impostores: os milagres destes fazem-se em encruzilhadas,
em desertos, em quartos; e é aí que eles enganam um pequeno nú­
mero de espectadores que, de antemão, está disposto a acreditar
em tudo. Quem se atreverá a dizer-me quantos testemunhos
oculares são precisos para tornar um prodígio digno de fé? Se os
vossos milagres-feitos para provar !i vossa doutrina-precisam
de ser provados, para que servem? E como se não tivessem sido
feitos.
Por fim, resta-nos o mais importante, na doutrina anunciada;
pois, como aqueles que dizem que Deus fez milagres, aqui, na Ter­
ra, pretendem que, por vezes, o diabo os imita com os prodígios
mais bem atestados, não estamos mais avançados que antes; e, se
é verdade que os magos de Faraó ousavam- mesmo na presença
de Moisés- fazer os mesmos sinais que este fazia por ordem ex­
pressa de Deus, por que foi que, na sua ausência, eles não preten­
deram-com os mesmos pretextos-a mesma autoridade? Assim,
pois, após ter provado a doutrina pelo milagre, é necessário provar
o milagre pela doutrina1, para não confundir a obra do Demónio
com a obra de Deus. Que pensais deste dialelo?

1 Isto é formal em mil passagens da Escritura e, entre outras, no


Deuteronómio, capítulo xm, onde se diz que, se um profeta que anuncie
deuses desconhecidos confirmar os seus discursos com prodígios e o que
ele disser acontecer, longe de se lhe guardar qualquer respeito, deve-se
condená-lo à morte. Por conseguinte, quando os pagãos condenavam à
morte os apóstolos que lhes anunciavam um deus desconhecido, provan-
do a sua missão com predições e milagres, não vejo o que se lhes teria po-
dido objectar de consistente que eles não pudessem imediatamente retor•
quir contra nós. Ora, num caso destes, que fazer? Uma única coisa: regres-
sar ao raciocínio e abandonar os milagres. Mais teria valido não recorrer
a eles. Trata-5e do mais simples bom senso, que só pode ser obscurecido
através de distinções, pelo menos muito subtis. Subtilidades no cristianis-
mo! Mas, então, Jesus Cristo fez mal em prometer o reino dos Céus aos
simples; fez, então, mal, ao começar o mais belo dos seus discursos felici­
tando os pobres de espírito, se é realmente necessário tanto espírito para
compreender a sua doutrina e para aprender a crer nele. Quando me pro- III
Esta doutrina, vinda de Deus, deve revestir-se do sagrado ca­
rácter da Divindade; não só deve esclarecer as ideias confusas que
o raciocínio traça no nosso espírito como também nos deve propor
um culto, uma moral e máximas convenientes para os atributos
pelos quais nós concebemos a sua essência. Portanto, se ela só nos
ensinasse ideias absurdas e sem razão, se ela só nos inspirasse sen­
timentos de aversão pelos nossos semelhantes e de receio por nós
mesmos, se ela nos descrevesse um Deus colérico, ciumento, vin­
gador, parcial, odiando os homens, um Deus da guerra e dos com­
bates, sempre disposto a destruir e a fulminar, sempre a falar de
tormentos, de penas, e gabando-se de punir até os inocentes, o meu
coração não se deixaria atrair por esse Deus terrível e eu abster­
-me-ia de abandonar a religião natural para abraçar essa; pois
bem vedes que seria necessário fazer uma opção. «O vosso Deus
não é o nosso!>>, diria eu aos seus sectários. Aquele que começa por
escolher um único povo e proscrever o resto do género humano não
é o pai comum dos homens; aquele que destina ao suplício eterno
ao maior número das suas criaturas não é o Deus clemente e bom
que a minha razão me indicou.
Com respeito aos dogmas, ela diz-me que eles devem ser cla­
ros, luminosos, convincentes pela sua evidência. Se a religião na­
tural é insuficiente, isso deve-se à obscuridade que ela deixa nas
grandes verdades que nos ensina: é à revelação que compete ensi­
nar-nos essas verdades- de uma maneira sensível ao espírito do
homem -colocá-las ao seu alcance, fazer-lhas compreender, a
fim de que ele acredite nelas. A fé garante-se e firma-se através
do entendimento; a melhor de todas as religiões é, infalivelmente,
a mais explícita: aquele que enche de mistérios e de contradições
o culto que me prega, com essa maneira de agir ensina-me a des­
confiar dele. O Deus que eu adoro não é um Deus das trevas, não
me dotou de um entendimento para me interditar o servir-me de­
le: dizer-me que submeta a minha razão é ultrajar o seu autor. O
ministro da verdade não tiraniza a minha razão: esclarece-a.
Deixámos de lado toda a autoridade humana; e, sem ela, eu não
poderia conceber que um homem conseguisse convencer outro,
pregando-lhe uma doutrina desarrazoada. Ponhamos, durante
um momento, esses dois homens a discutir, e vejamos o que eles se
poderão dizer, um ao outro, com essa linguagem afectada vulgar
os dois partidos.

vardes que me devo submeter, tudo correrá bem: mas, para mo provardes,
ponde-vos ao meu alcance: medi os vossos raciocínios pela capacidade de
um pobre espírito, caso contrário deixo de reconhecer, em vós, o verdadei­
ro discípulo do vosso.mestre, pois não é a sua doutrina que me estais a
112 anunciar.
O INSPIRADO

A razão diz-vos que o todo é maior que a sua parte; mas eu afir­
mo-vos, da parte de Deus, que é a parte que é maior que o todo.

O ARRAZOADOR

E quem sois vós para vos atreverdes a dizer-me que Deus se


contradiz?E em quem deveria eu preferir acreditar: nele, que pela
razão me ensina as verdades eternas, ou em vós, que me anunciais
uma absurdidade, afirmando que foi dita por ele?

O INSPIRADO

Em mim, pois a minha instrução é mais positiva; e vou provar­


vos, irresistivelmente, que é ele quem me envia.

O ARRAZOADOR

O quê? Ireis provar-me que é Deus que vos envia depor contra
ele próprio? E de que género vão ser as vossas provas, para me
convencerem de que é mais verosímil que Deus mé fale através da
vossa boca que através do entendimento que me deu?

O INSPIRADO

O entendimento que ele vos deu! Homem insignificante e vão!


Como se fôsseis vós o primeiro ímpio que se perde na sua razão cor­
rompida pelo pecado!

O ARRAZOADOR

Homem de Deus, também não seríeis o primeiro velhaco que


mostra a sua arrogância para provar a sua missão.

O INSPIRADO

O quê!? Os filósofos também proferem injúrias!?

O ARRAZOADOR

Por vezes, quando os santos lhes dão esse exemplo.

O INSPIRADO

Oh! Eu tenho o direito de as proferir, porque falo em nome de


Deus. 113

L.B.S24-8
O ARRAZOADOR

Seria conveniente que mostrásseis os vossos títulos, antes de


vos servirdes dos vossos privilégios.

O INSPIRADO

Os meus títulos são autênticos, a Terra e os Céus deporão em


meu favor. Segui atentamente os meus raciocínios, peço-vos.

O ARRAZOADOR

Os vossos raciocínios! Nem penseis nisso. Dizer-me que a mi­


nha razão me engana, não será refutar o que ela me possa ter di­
to sobre vós? Aquele que pode recusar a razão deve convencer sem
se servir dela. Porque, suponhamos que, raciocinando, me tenhais
convencido: como poderei saber se não foi a minha razão corrom­
pida pelo pecado que me levou a aquiescer ao que me dissestes?
Aliás, que prova, que demonstração podereis empregar que seja
mais convincente que o axioma que ela pretende destruir? E tão fá­
cil acreditar que um bom silogismo é uma mentira como acreditar
que a parte é maior que o todo.

O INSPIRADO

Há uma grande diferença! As minhas provas não têm réplica:


são de ordem sobrenatural.

O ARRAZOADOR

Sobrenatural!? O que significa essa palavra? Não a com­


preendo.

O INSPIRADO

Modificações na ordem da natureza, profecias, milagres, pro­


dígios de todas as espécies.

O ARRAZOADOR

Prodígios! Milagres! Nunca vi nada disso.

O INSPIRADO

Outros os viram, por vós. Milhares de testemunhas ... o teste-


114 munho dos povos...
O ARRAZOADOR

O testemunho dos povos é de uma ordem sobrenatural?

O INSPIRADO

Não; mas, quando unânime, é incontestável.

O ARRAZOADOR

Não há nada que seja mais incontestável que os princípios da


razão, e não se pode autorizar só por ela ser testemunhada pelos
homens. Mais uma vez, vejamos quais são as provas naturais, pois
a atestação do género humano não tem qualquer valor.

O INSPIRADO

Ó coração empedernido! A graça não vos atinge.

O ARRAZOADOR

Isso não é culpa minha; porque, segundo o que dissestes, é


necessário ter alguma vez recebido a graça para saber pedi-la.
Começai, pois, a falar-me em nome dela.

O INSPIRADO

Ora! É o que estou a fazer e vós não me escutais. Mas que di­
zeis das profecias?

O ARRAZOADOR

Em primeiro lugar, digo que ouvi tantas profecias quantos os


milagres a que assisti. Além disso, ainda digo que nenhuma pro­
fecia seria capaz de me influenciar.

O INSPIRADO

Satélite do demónio! E por que é que as profecias não vos po­


dem influenciar?

O ARRAZOADOR

Porque, para que o pudessem, seriam necessárias três coisas


cuja simultaneidade é impossível: que eu tivesse sido testemunha
da profecia, que eu tivesse sido testemunha do acontecimento e 115
que me fosse demonstrado que não foi por acaso que esse aconte­
cimento não se pôde combinar com a profecia; pois, mesmo que ela
fosse mais precisa, mais clara, mais luminosa que um axioma de
geometria, como a clareza de uma predição feita ao acaso n ão tor­
na a sua realização impossível, essa realização, quando se dá, não
prova estritamente nada a favor daquele que a predisse.
Vede, pois, a que se reduzem as vossas pretensas provas sobre­
naturais, os vossos milagres, as vossas profecias: a acreditar em
tudo isso só por outrém o ter dito e a submeter à autoridade dos ho­
mens ea autoridade de Deus, que me fala à razão. Se as verdades
eternas que o meu espírito concebe pudessem sofrer qualquer
abalo, deixaria de haver, para mim, qualquer espécie de certeza;
e, longe de acreditar que me falais em nome de Deus, nem sequer
ficaria com a certeza de que ele existe.>>

Como vedes, as dificuldades são muitas meu filho; e isto não é


tudo. Entre tantas religiões diferentes que se proscrevem e se ex­
cluem mutuamente, há uma única que é boa, se é que alguma o é.
Para a reconhecer não basta examinar uma, é necessário exami­
ná-las todas; e, seja em que matéria for, não se deve condenar sem
compreender; é preciso comparar as objecções com as provas; é
preciso saber o que cada uma opõe às outras, qual é a resposta.
Quanto m ais demonstrado nos parece um sentimento, mais nos
devemos esforçar por compreender aquilo em que tantos homens
se baseiam para o não considerarem como tal. Seria necessário ser­
m os m uito simples para crermos que basta ouvir os doutoresdeca­
da partido para conhecermos as razões do partido contrário. On­
de estão os teólogos que pretendem ser de boa-fé? Onde se encon­
tram aqueles que, para refutarem as razões dos seus adversários,
não começam por enfraquecê-las? Cada um brilha, no seú partido:
mas aquele que, perante os do seu partido, se sente todo orgulhoso
com as suas provas, seria considerado como uma personagem mui­
to tola - com essas mesmas provas - entre as pessoas de outro
partido. Pretendeis instruir com livros; quanta erudição é preciso
adquirir! Quantas línguas é necessário aprender! Quantas biblio­
tecas é indispensável folhear! Que imensa literatura se deve fazer!

1 Plutarco relata que -entre outros paradoxos bizarros- os par­


tidários do estoicismo sustentavam que, num julgamento contraditório,
era inútil ouvir as duas partes. Pois- diziam eles -, ou a primeira pro­
vou o que diz, ou não o provou: se o provou, tudo fica dito, e a parte con­
trária deve "er condenada; se não o provou, não têm razão, e deve ser de­
negada. Acho que o método de todos aqueles que admitem uma revelação
exclusiva se assemelha muito à desses estóicos. Desde o momento em que
alguém pretende ter razão, para se poder escolher entre tantos partidos
116 é necessário escutá-los, a todos; caso contrário, é-se injusto.
Quem me guiará na escolha? Dificilmente se encontrariam, num
país, os melhores livros do partido contrário, e, ainda menos, os de
todos os partidos: mesmo se fosse possível encontrá-los, eles se­
riam rapidamente refutados. O ausente nunca tem razão, e, ex­
pressas com o desprezo, más razões ditas com firmeza facilmente
suplantam as boas. De resto - e com muita frequência - nada é
mais enganador que os livros, e nada transmite menos fielmente
os sentimentos daqueles que os escreveram. Quando quiseste ajui­
zar da fé católica, segundo o livro de Bossuet, encontraste-vos
muito afastado dela, após terdes vivido entre nós. Vistes que a dou­
trina com a qual se responde aos protestantes não é a mesma que
a que se ensina ao povo, e que o livro de Bossuet não tem nada de
comum com as instruções para a prédica. Para bem ajuizar de uma
religião, é preciso não a estudar nos livros dos seus sectários: é in­
dispensável aprendê-la entre eles; o que é muito diferente. Cada
uma tem as suas tradições, o seu sentido, os seus costumes, os seus
·

preconceitos, que constituem o espírito do seu credo, e que é pre­


ciso compreender, para poder ajuizar.
Quantos grandes povos imprimem livros e não lêem os nossos!
Como poderão eles ajuizar das nossas opiniões? E comojulgaremos
nós as deles? Troçamos deles, eles desprezam-nos, e, se se virem
ridicularizados pelos nossos viajantes, basta-lhes, para nos com­
pensar, viajarem por entre nós. Em que país não se encontram
pessoas sensatas, pessoas de boa-fé, pessoas honestas, amigas da
verdade, que, para a professarem, só procuram conhecê-la? En­
tretanto, cada um a encontra no seu culto, e considera absurdos os
cultos das outras nações: por conseguinte, ou bem esses cultos es­
trangeiros não são assim tão extravagantes como nos parecem, ou
então a razão que encontramos nos nossos não prova nada.
Na Europa, temos três religiosos principais. Uma delas admi­
te uma única revelação, a outra admite duas, e a terceira admite
três. Cada uma delas detesta e maldiz as outras, acusa-as de ce­
gueira, de severidade, de obstinação, de mentira. Qual é o homem
imparcial que se atreverá a julgá-las, se não tiver começado por
bem pensar as sua sprovas, bem escutado as suas razões? A que só
admite uma revelação é a m ais antiga e parece ser a mais certa;
aquela que admite três é a mais recente, e parece ser a mais con­
sequente; a outram a que admite duas e rejeita a terceira, é pos­
sível que seja a melhor; mas não restam dúvidas de que todos os
preconceitos estão contra ela: a inconsequência salta à vista.
Nas três revelações, os livros sagrados são escritos em língua
que os povos que as seguem não conhecem. Os judeus já não com­
preendem o hebreu, os cristãos já não sabem nem o hebreu nem o
grego; ne!ll os Turcos nem os Persas compreendem o árabe; e os
próprios Arabes modernos não falam a língua de Maomé. Não vos
parece seresta umamaneiramuitosimplesde instruir os homens:
falar-lhes sempre numa língua que eles não compreendem? Tra- 117
duz--se esses livros, dir-me-ão. Que boa resposta! Quem me
garantirá que esses livros tenham sido fielmente traduzidos, ou
mesmo, que seja possível que o estejam? E, pois que Deus se dá ao
trabalho de falar aos homens, para que precisará ele de intérpre­
tes?
Nunca poderei conceber como possível que aquilo que todos os
homens têm a obrigação de saber estej a contido em livros, e que
aquele que não está ao alcance desses livros nem das pessoas que
os compreendem possa ser punido por uma ignorância involuntá­
ria. Sempre livros! Que mania! Como a Europa está cheia de livros,
os Europeus consideram-nos indispensáveis, sem pensar que, nas
três quartas partes da terra, ninguém ainda os viu. Não é verda­
de que todos os livros foram escritos por homens? Então, como é
possível que o homem precise deles para conhecer os seus deveres?
E que meios utilizou para os conhecer, antes de esses livros terem
sido feitos? Ou ele aprenderá os seus deveres por si próprio, ou es­
tá dispensado de os saber.
Os nossos católicos atribuem muita importância à autoridade
da Igreja; mas o quê que ganham com isso, se, para estabelecerem
essa autoridade precisam de tantas provas quantas as de que pre­
cisam as outras seitas, para estabelecerem directamente as suas
doutrinas? A Igreja decide que a Igreja tem o direito de decidir .Não
vos parece uma autoridade bem provada? Se não a acatardes, es­
tareis em todas as nossas discussões.
Conheceis muitos cristãos que se tenham dado ao incómodo de
examinar cuidadosamente o que o judaísmo alega contra eles? Se
alguns se aperceberam levemente disso, foi nos livros dos cristãos.
Que boa maneira de se instruir sobre as razões dos seus adversá­
rios! Mas que fazer? Se, entre nós, alguém se atrevesse a publicar
livros em que se favorecesse abertamente o judaísmo, castigaría­
mos o autor, o editor, o livreiro1• Esta regra é cómoda e garantida,
para ter sempre razão. Há prazer em contradizer pessoas que não
se atrevem a falar.
Entre nós, aqueles que têm relações com Judeus não são nada
bem vistos. Os infelizes sentem-no bem, pela nossa discrição; a
tirania que se exerce sobre eles torna-os receosos; sabem quão
pouco a injustiça e a crueldade pesam à caridade cristã: que se
poderiam atrever a dizer-nos, sem se exporem a que lhes chamás-

1 De entre mil factos conhecidos, eis um que não precisa de comen­


tários: no século XVI, os teólogos católicos, tendo condenado à fogueira to­
dos os livros dos Judeus-sem distinção-, o ilustre e sábio Reuchlin, con­
sultado sobre esse caso, criou-se problemas que quase o perderam, unica­
mente por ter sido da opinião de que se poderiam conservar os livros ju­
deus que nada faziam contra o cristianismo e que tratavam de matérias
118 que eram indiferentes à religião.
semos blasfemos? A cobiça dá-nos zelo, e eles são demasiado ricos
para não terem razão. Os mais sábios, os mais esclarecidos, são
sempre os mais circunspectos. Convertereis qualquer miserável,
pago para caluniar a própria seita; fareis falar alguns vis adelos,
que cederão para vos lisonjear; triunfareis da sua ignorância ou da
sua covardia, enquanto que os seus doutores sorrirão, em silêncio,
da vossa inépsia. Mas credes que, nos lugares onde eles de senti­
riam em segurança, conseguiríeis tão facilmente que eles se com­
portassem da mesma m aneira. Na Sorbonne, é claro como a água
que as predições do Messias se referem a Jesus Cristo. Entre os ra­
hinos de Amesterdão, também é claro como a água que elas não
têm nada a ver com ele. Nunca me convencerei de ter bem com­
preendido as razões dos Judeus, para que n ão tenham um Estado
livre, nem escolas, nem universidades, onde possam discutir sem
se arriscarem. Só então poderíamos saber o que eles têm a dizer.
Em Constantinopla, os Turcos explicam as suas razões, e nós
não nos atrevemos a dizer as nossas; lá, é a nossa vez de nos rebai­
xarmos. Se os Turcos exigem de nós, por Maomé -no qual não cre­
mos -, o mesmo respeito que nós exigimos dos Judeus, por Jesus
Cristo - no qual eles não crêem -, estarão os Turcos a proceder
mal? Somos nós que temos razão? Sobre que princípio justo resol­
veremos esta questão?
Nas duas terças partes do género humano não se incluem nem
Judeus, nem maometanos, nem cristãos; e quantos milhões de
homens nunca ouviram falar de Moisés, de Jesus Cristo, ou de
Maomé!? Há os que negam isso; dizem que os nossos missionários
percorrem q mundo todo. Isso é fácil de dizer. Mas irão eles ao
coração da Africa ainda desconhecida e onde, até agora, nenhum
Europeu penetrou? Irão à Tartária mediterrânica, a seguir, a ca­
valo, as hordas nómadas de que nunca nenhum estrangeiro se
aproxim a, e que, não só nunca ouviram falar do papa como nem se­
quer sabem da existência do grande Lama? Vão aos continentes
imensos da América, onde nações inteiras ainda não sabem que os
povos de outro mundo puseram os pés no seu? Vão ao Japão, de on­
de as suas m anobras os fizeram expulsar para sempre e onde os
seus predecessores só são conhecidos pelas novas gerações como
intrigantes matreiros, vindos com um zelo hipócrita, para suave­
mel)te se apoderarem do império? Vão aos serralhos dos príncipes
da Asia, para anunciar o Evangelho a milhares de pobres escra­
vas? Que fizeram as mulheres dessa região dom undo, para que ne­
nhum missionário tenha a possibilidade de lhes pregar a fé? Irão
todas elas para o infermo, por terem estado reclusas?
Mesmo que fosse verdade que o Evangelho é anunciado por to­
da a terra, o que se ganharia com isso? Na véspera do dia em que
o primeiro missionário chegou a um país, certamente que morreu
alguém que não o chegou a ouvir. Ora, dizei-m e o quefaremos des-
se alguém . Mesmo que, em todo o universo, só houvesse um homem 119
ao qual nunca tivesse sido pregada a doutrina de Jesus Cristo, a
objecção seria a mesma, tanto por esse único homem como pela
quarta parte do género humano.
Quando os ministros do Evangelho começaram a falar aos
povos afastados, que lhes disseram eles que se pudesse razoavel­
mente admitir, só pelas suas palavras, e que não exigiss a mais
exacta verificação? Vós anunciais-meum Deus que nasceu e mor­
reu há dois mil anos, na outra extremidade do mundo, numa pe­
quena aldeia que desconheço, e dizeis-me que todos aqueles que
não tiverem acreditado nesse mistério serão danados. Ora aí estão
coisas demasiado estranhas para que possam ser acreditadas tão
depressa, só pela palavra de um homem que eu não conheço! Por­
que foi que o vosso Deus fez que os acontecimentos que me queria
obrigar a conhecer se passassem tão longe de mim? Será um crime
ignorar o que se passa nos antípodas? Poderei eu adivinhar que
houve, noutro hemisfério, um povo hebreu e uma cidade de Jeru­
salém? O mesmo seria obrigar-me a saber o que se passa na lua.
Vós vindes -pelo que me dizeis - dar-me essa nova; mas porque
não viestes dá-la ao meu pai? Ou, porquê que danais esse bom an­
cião, por ele nunca ter sabido nada disso? Deverá ele ser eterna­
mente punido por causa da vossa negligência, ele que era tão bom,
tão benfazejo, e que apenas procurava conhecer a verdade? Sede de
boa-fé, e, em seguida, ponde-vos no meu lugar: Vede se eu devo,
apenas pelas vossas declarações, acreditar em todas as coisas
incríveis que me dizeis e conciliar tantas injustiças com o Deus
justo que me anunciais. Deixai-me, por favor, ir ver esse país lon­
gínquo onde se operaram tantas maravilhas de que aqui nunca
ninguém ouviu falar, deixai que eu vá saber por que foi que os ha­
bitantes dessa Jerusalém trataram Deus como um criminoso. Pe­
lo que me dissésteis, eles não o reconheceram como Deus. Então,
o que farei eu, eu que só por vós ouvi falar dele? Acrescentais que
eles foram punidos, dispersos, oprimidos, subjugados, que ne­
nhum deles se voltou a aproximar dessa cidade. Certamente que
mereceram tudo isso; mas os que lá habitam hoje, que dizem eles
do decidido dos seus predecessores? Negam-no, também não reco­
nhecem Deus como deus. Nesse caso, mais valia ter lá deixado os
filhos dos outros.
Mas, então! Nessa mesma cidade onde Deus morreu, nem os
antigos habitantes nem os novos, nunca o reconheceram, e vós que­
reis que eu o reconheça, eu que nasci dois mil anos depois, a duas
mil léguas de lá!? Não vedes que, para dar fé a esse livro- que di­
zeis ser sagrado, e que não compreendo -preciso de saber, por ou­
tras pessoas que não vós, quando e por quem ele foi feito, de que
m aneira foi conservado, como chegou ás vossas mãos, o que dizem,
no país- para defenderem as suas razões -aqueles que o rejei­
tam, embora saibam tão bem quanto vós tudo quanto me contais?
120 Certamente compreendereis que é necessário que eu vá à Europa,
à Ásia, à Palestina, examinar tudo por mim mesmo: só se eu fos­
se louco vos daria ouvidos antes de o fazer.
Não só este discurso me parece razoável, como também penso
que todo o homem sensato deve - num casos destes - falar des­
te modo e mandar passear o missionário que, antes da verificação
das provas, pretende despachar-se a instruí-lo e a baptizá-lo.
Ora, sustento que nãohá nenhuma revelaçãocontra a qual asmes­
mas objecções não tenham tanta e ainda mais força que contra o
cristianismo. Daí se segue que, se há apenas uma religião verda­
deira, e que, se todos os homens são obrigados a segui-la, sob pe­
na de danação, é preciso passar a nossa vida a estudá-las todas, a
aprofundá-las, a compará-las, a percorrer os países onde elas
estão estabelecidas. Ninguém está isento do primeiro dever do
homem, ninguém tem o direito de se fiar na opinião de outrém. O
artífice que vive apenas do seu trabalho, o lavrador que não sabe
ler, a rapariga delicada e tímida, o enfermo que mal se pode le­
vantar da cama, todos, sem excepção, devem estudar, meditar, dis­
cutir, viajar, percorrer o mundo: deixará de haver povos fixos e es­
táveis; a terra inteira cobrir-se-á de peregrinos viajando com
grandes dificuldades, para, com prolongadas canseiras, verifica­
rem, examinarem, por si próprios, os diversos cultos que são segui­
dos nesses países. E então, adeus aos ofícios, às artes, ás ciências
humanas, e a todas as ocupações civis: deixará de poder haver ou­
tro estudo além do da religião: com grandes dificuldades, aquele
que tiver desfrutado da saúde mais robusta, melhor empregado o
seu tempo, mais utilizado a sua razão, vivido mais anos, acabará
por saber, quando chegar à velhice, com o que deve contar; e já se­
rá muito, se, antes de morrer, chegar a saber em que religião de­
veria ter vivido.
Quereis suavizar este método e oferecer a mínima resistência
à autoridade dos homens? Se assim fizerdes, devolvei-lhes, ins­
tantaneamente tudo; e se o filho de um cristão faz bem em seguir
- sem um exame profundo e imparcial - a religião de seu pai, por
que motivo o filho de um turco faria mal em seguir a religião do
seu? Desafio todos os intolerantes a - a esta pergunta - darem
uma resposta que satisfaça um homem sensato.
Incitados por estas razões, alguns preferem fazer Deus injusto
e punir os inocentes pelo pecado de seus pais, a terem de renunciar
ao seu bárbaro dogma. Os outros lá se salvam, enviando, obse­
quiosamente, um · anjo instruir aqueles qu,e, numa ignorância
invencível, teriam vivido moralmente bem. E uma bela invenção,
esse anjo! Não satisfeitos com o sujeitar-nos às suas máquinas,
colocam o próprio Deus na necessidade de as utilizar.
Vede, meu filho, a que absurdidade conduzem o orgulho e a
intolerância, quando cada um pretende saber a verdade e crê ter
razão, por si, contra o resto da espécie humana. Tomo como teste-
m unha esse Deus de paz - que adoro e que vos anuncio - quan- 121
do vos afirmo que todas as minhas investigações foram sinceras;
mas, vendo que elas não tinham, que nunca teriam, sucesso, e que
me afundava num oceano sem margens, retrocedi e voltei a abra­
çar a minha fé com as minhas primitivas noções. Nunca puide
acreditar que Deus me ordenasse - sob pena de ir para o inferno
- que fosse sábio. Por isso, fechei todos os ljvros. Apenas um ficou
aberto a todos os olhares: é o da natureza. E nesse grande e subli­
me livro que aprendo a servir e a adorar o seu divino autor. Nin­
guém é desculpável por não o ler, porque ele fala a todos os homens,
numa linguagem inteligível para todos os espíritos. Mesmo que eu
tivesse nascido numa ilha deserta, mesmo que nunca tivesse vis­
to outro homem além de mim próprio, mesmo que nunca tivesse
aprendido o que aconteceu outrora num cantinho do mundo; des­
de o momento em que exercito a minha razão, que a cultivo, que
utilizo bem as faculdades imediatas que Deus me dá, aprenderei,
por mim mesmo, a conhecê-lo, a amá-lo, a amar as suas obras, a
desejaro bem queele deseja, e a cumprir- paralhe agradar-to­
dos os meus deveres nesta terra. Que mais me pode ensinar todo
o saber dos homens?
Com respeito à revelação, se eu soubesse arrazoar melhor, ou
se fosse mais instruído, talvez sentisse a sua verdade, a sua utili­
dade para aqueles que têm a felicidade de a reconhecer; mas se ve­
jo, em seu favor, provas que não posso combater, também vejo ­
contra ela - objecções que não consigo resolver. Há tantas razões
sólidas a favor e contra, que, não sabendo a que me determinar,
não a admito nem a rejeito; rejeito unicamente a obrigação de a re­
conhecer, porque essa pretensa obrigação é incompatível com a
justiça de Deus, e porque, longe de, com ela, retirar os obstáculos
à salvação, tê-los-ia multiplicado, tê-los-ia tornado insuperá­
veis, para a mariora do género humano. A não ser nesse ponto,
mantenho-me numa dúvida respeitosa, em relação a esse assun­
to. Não tenho a presunção de me crer infalível. Outros homens po­
dem ter resolvido o que me parece enigmático; raciocino para mim
e não para eles; não os censuro nem os imito: o ajuizamento deles
pode ser melhor que o meu; mas não é culpa minha se não tenho
o mesmo.
Também vos confesso que a majestade das Escrituras me as­
sombra, que a santidade do Evangelho fala ao meu coração. Vede
os livros dos filósofos, com toda a sua pompa; como são pequenos,
comparados com esse! Como é possível que um livro, simulta­
neamente tão sublime e tão simples, seja obra dos homens? Será
possível que aquele cuja vida relata seja apenas um homem? Se­
rá esse o tom de um entusiasta ou o de um ambicioso sectário? Que
doçura, que pureza, nos seus costumes! Que graça comovedora,
nos seus ensinamentos! Que elevação, nas suas máximas! Que pro­
funda sageza, nos seus discursos! Que presença de espírito, que fi­
122 nura e que justeza, nas respostas que dá! Quanto domínio, sobre
as suas paixões! Onde se encontra o homem, onde está o sage que
é capaz de agir, sofrer e morrer, sem fraqueza e sem ostentação?
Quando Platão descreve o seu Justo imaginário, coberto por todo
o opróbio do crime e - merecedor de todos os prémios da virtude,
descreve, traço por traço, Jesus Cristo: a semelhança é tão mani­
festa, que todos os Padres a sentiram, e que não é possível enga­
narmo-nos. Que preconceitos, que cegueira não será preciso ter
para ousar comparar o filho do Sofronisco com o filho de Maria?
Que diferença, entre um e outro! Sócrates, morrendo sem dor, sem
ignomínia, facilmente conservou, até ao fim, a sua personagem ; e
se essa morte tão fácil não tivesse honrado a sua vida, duvidar-sa­
-ia de que Sócrates - com todo o seu espírito - tivesse sido mais
doqueum sofista. Ele inventou- dizem - amoral; antes dele, ou­
trosjá a tinham posto em prática: limitou-se a relatar o que outros
tinham feito, e nada mais fez do que transformar em lições os
exemplos que citou. Aristides fora justo, antes de Sócrates ter ex­
plicado o que era a justiça; Leónidas já morrera pelo seu país, an­
tes de Sócrates ter declarado que amar a pátria era um dever; Es­
parta j á era sóbria, muito antes de Sócrates ter louvado a sobrie­
dade; antes de ele ter definido a virtude, os homens virtuosos abun­
davam, na Grécia. Mas, Jesus, como poderá ele ter adquirido, en­
tre os seus, essa moral tão elevada e tão pura de que foi o único a
dar lições e exemplo1? Do seio do mais furioso fanatismo, fez-se ou­
vir a mais elevada sageza; e a simplicidade das mais heróicas vir­
tudes honrou o mais vil de todos os povos. A morte de Sócrates, fi­
losofando calmamente com os seus amigos, é a mais suave que se
possa desejar; a de Jesus, expirando por entre tormentos, injuria­
do, escarnecido, amaldiçoado por um povo inteiro, é a mais horrí­
vel que se possa temer. Sócrates, ao beber o conteúdo envenenado
da taça, abençoa aquele que lha oferece e que chora; Jeus, por en­
tre um suplício horrível, ora pelos seus carrascos encarniçados.
Sim, se a vida e a morte de Sócrates foram as de um sage, a vida
e a morte de Jesus foram as de um Deus. Iremos dizer que a his­
tória do Evangelho foi completamente inventada? Meu amigo, não
é assim que se inventa; e os feitos de Sócrates, de que ninguém du­
vida, estão menos atestados que os de Jesus Cristo. No fundo, é re­
cuar a dificuldade sem a destruir; seria mais difícil de conceber que
vários homens, de comum acordo, tivessem fabricado esse livro, do
que imaginar um único que tenha fornecido o assunto para ele.
Nunca os autoresjudeus teriam encontrado nem esse tom nem es­
sa moral; e o Evangelho tem caracteres de verdade tão grandes, tão
evidentes, tão perfeitamente inimitáveis, que o seu inventor seria

1 Vede, no «Discurso na montanha», o paralelo que ele próprio faz en-


tre a moral de Moisés e a sua. (Mateus, cap. v, ver. pp. 21 e segs.) 123
ainda mais surpreendente que o seu herói. Com tudo isto, esse
mesmo Evangelho está cheio de coisas incríveis, de coisas que
repugnam à razão, e que é impossível, a todos os homens sensatos,
conceber ou admitir. Que fazer, no meio de todas essas contra­
dições? Ser sempre modesto e circunspecto, meu :qiho; respeitar,
em silêncio, o que não poderíamos rejeitar, nem compreemder, e
humilharmo-nos perante o grande Ser, o único que conhece a ver­
dade.
Eis o cepticismo involuntário onde fiquei mergulhado; mas es­
te cepticismo não me é, de modo nenhum, penoso, porque não
abrange os pontos essenciais para prática, e porque estou muito
decidido sobre os princípios de todos os meus deveres. Sirvo Deus,
na simplicidade do meu coração: só procuro saber o que interessa
ao meu comportamento. Quanto aos dogmas que não têm influên­
cia, nem sobre as acções nem sobre a moral, mas com que tantas
pessoas se atormentam, não me preocupo com eles. Observo todas
as religiões particulares como outras tantas instituições saiu tares
que, em cada país, prescrevem uma maneira uniforme de honrar
Deus através de um culto público, e que podem ter as suas razões
no clima, no governo, no génio do povo, ou em qualquer outra cau­
sa local que torna uma preferível à outra, consoante os tempos e os
lugares. Creio que todas elas são boas, quando se dedicam a ser­
vir Deus convenientemente. O culto essencial é o do coração. Deus
não lhe rejeita a homenagem, quando vê que ele é sincero, seja qual
for a forma por que ele lhe for oferecido. Apelado para a religião que
professo no seio da Igreja, nela desempenho - com toda a exacti­
dão possível - os cuidados que me são prescritos, e a minha cons­
ciência censurar-me-ia se eu os negligenciasse voluntariamente,
fosse em que ponto fosse.
Depois de um prolongamento interdito, bem sabeis que obtive
- graças ao senhor de Mellarede - a autoriz ação de retomar as
minhas funções, para me ajudar a viver. Outrora, eu dizia a mis­
sa com a leviandade com que, com o hábito, se fazem as coisas mais
sérias, quando as fazemos muitas vezes. Desde que adquiri os
meus novos princípios, celebro-a com mais veneração: penetro­
-me da majestade do Ser Supremo, da sua presença, da insuficiên­
cia do espírito humano, que tão mal concebe o que se refere ao seu
autor. Pensando que lhe transmito os votos do povo, sob uma for­
ma prescrita, sigo cuidadosamente todos os ritos; recito atenta­
mente, aplico-me a nunca omitir nem a mais pequena palavra
nem a mais ínfima cerimónia: quando me aproximo do momento
da consagração, recolho-me para a fazer com todas as disposições
que a Igreja e a grandeza do sacramento exigem; esforço-me por
aniquilar a minha razão perante a suprema inteligência; digo, pa_­
ra comigo mesmo: «Quem és tu, para medir o Poder infinito?» E
com respeito que pronuncio as palavras sacramentais, e dou ao seu
124 efeito toda a fé de que sou capaz. Seja qual for esse mistério incon-
cebível, não receio que no dia do Julgamento Final possa ser puni­
do por alguma vez o ter profanado no meu coração.
Honrado pelo mistério sagrado - embora na categoria mais
baixa - nunca farei n ada que me torne indigno de lhe desempe­
nhar os sublimes deveres. Sempre pregarei a virtude aos homens,
sempre os exortarei a fazer o bem; e, tanto quanto puder, dar-lhes­
-ei o exemplo. Não estará no meu poder tornar-lhes a religião
amável; não dependerá de mim fortalecer a sua fé nos dogmas ver­
dadeiramente úteis e em que todos os homens são obrigados a crer:
mas Deus permita queeu nuncalhes pregueo dogm a da intolerân­
cia; que eu nunca os incite a detestar o próximo, a dizer, a outros
homens: «Sereis danados!>) . Se eu estivesse numa categoria su­
perior, esta reserva poderia arranjar-me sarilhos; mas sou dema­
siado insignificante para poder recear muito, e não conseguiria
descer mais abaixo do que já estou. Seja o que for que acontecer,
nunca blasfemarei contra ajustiça divina, e não mentirei contra o
Espírito Santo.
Durante muito tempo, ambicionei a honra de ser cura; ainda a
ambiciono, mas já deixei de a esperar. Meu bom amigo, não vejo na­
da tão belo como ser cura. Um bom cura é um ministro de bonda­
de, assim como um bom m agistrado é um ministro de justiça. Um
cura nunca tem nada de mal a fazer; se nem sempre pode fazer o
bem por si mesmo, está sempre no seu posto quando por ele é so­
licitado, e, muitas vezes, obtém-no, quando se sabe fazer respei­
tar. Oh, se alguma vez eu pudesse vir a ter, nas montanhas, algum
curato de boa gente para servir! Sentir-me-ia feliz, pois tenho a
impressão de que faria a felicidade dos meus paroquianos. Não os
tornaria ricos, mas compartilharia a pobreza deles; limpá-los-ia
da ignomínia e do desprezo, mais insuportáveis que a indigência.
Levá-los-ei a amar a concórdia e a igualdade, que muitas vezes re­
chaçam a miséria e a ajudam sempre a suportar. Quando vissem
que, em nada, eu era melhor do que eles, e que, apesar disso, vivia
contente, a prenderiam a consolar-se do seu destino e a viver con­
tentes como eu. Nos meus ensinamentos, dedicar-me-ia menos ao
espírito da Igreja que ao espírito do Evangelho, onde o dogma é
simples e a moral sublime, onde se vêem poucas práticas religio­
sas e muitas obras de caridade. Antes de lhes ensinar o que se de­
ve fazer, esforçar-me-ia sempre por fazê-lo eu mesmo, a fim de

1 O dever de seguir e de amar a religião do seu país não �e estende


aos dogmas contrários à boa moral, tais como o da intolerância. E esse hor­
rível dogma que arma os homens, uns contra os outros, e os torna, a todos,
inimigos do género humano. A distinção entre a tolerância civil e a tole­
rância teológica é pueril e vã. Essas duas tolerâncias são inseparáveis, e
não é possível admitir uma sem a outra. Os próprios anjos não viveriam
em paz com os homens, que considerariam como os inimigos de Deus. 125
que eles vissem bem que tudo quanto lhes digo, é porque o penso.
Se tivesse protestantes na minha vizinhança, ou n a minha paró­
quia, não os distinguiria dos meus verdadeiros paroquianos, em
tudo quanto diz respeito à caridade cristã; levá-los-ia todos,
igualmente, a amar-me entre si, a considerar-se como irmãos, a
respeitar todas as religiões, e a viver em paz, cada um com a sua.
Penso que pedirmos a alguém que renuncie àquela em que nasceu,
é pedir-lhe que proceda mal, e, por conseguinte, é estarmos a pra­
ticar o mal nós mesmos. Enquanto esperamos maiores esclareci­
mentos, m antenhamos a ordem pública; em todos os países, res­
peitem os as leis, não perturbemos o culto que elas prescrevem; não
incitemos os cidadãos à desobediência, pois não sabemos, de certe­
za, se é um bem para eles trocar as opiniões que têm por outras, e
sabemos, sem dúvida nenhuma, que é um mal desobedecer às leis.
Acabo, meu jovem amigo, de vos recitar verbalmente a minha
profissão de fé, tal como Deus a lê no meu coração: sois o primeiro
a quem o tenha feito; talvez sejais o único a quem a farei, em toda
a minha vida. Enquanto se conserva alguma boa crença no cora­
ção dos homens, não convém perturbar as almas pacíficas, nem
alarmar a fé dos simples, com dificuldades que eles não podem re­
solver e que os inquietassem sem os esclarecerem . Mas, quando tu­
do é abalado, deve conservar-se o tronco mesmo que se tenham se
sacrificar os r amos. As consciências agitadas, hesitantes, quase
extintas, e no estado em que vi a vossa, precisam de ser enrijeci­
das e despertadas; e, para as restabelecer na base das verdades
eternas, é necessário acabar de arrancar os pilares flutuantes aos
quais elas ainda pensam apoiar-se.
Estais na idade crítica em que o espírito se abre para a certe­
za, em que o coração adquire a sua forma e o seu carácter, e em que
se fica determinado para toda a vida, seja para o bem ou para o mal.
Mais tarde, a substância está endurecida e as novas impressões já
não deixam marca. Jovem, recebei na vossa alma, ainda flexível,
o selo da verdade. Se eu estivesse mais seguro de mim mesmo, te­
ria empregado, para convosco, um tom dogmático e decisivo: mas
sou homem, ignorante, sujeito ao erro; que poderia ter feito? Abri­
-vos o meu coração, sem reserva; o que considero como verdadei­
ro, dei-vo-lo como tal; dei-vos as minhas dúvidas como dúvidas,
as minhas opiniões como opiniões; expliquei-vos as minhas razões
para duvidar e para crer. Agora, compete-vos a vós julgar: levas­
tes tempo; essa precaução é sensata e leva-me a pensar bem de
vós. Começai por pôr a vossa consciência em estado de desejar ser
esclarecida. Sede sincero convosco próprio. Dos meus sentimentos,
apropriai-vos daquilo que vos tenha persuadido, rejeitai o resto.
Ainda não estais suficientemente depravado pelo vício para vos
arriscardes a fazer uma má escolha. Propor-vos-ia que conver­
sássemos sobre isso, entre nós; mas desde o momento em que se
126 começa uma discussão, os ânimos inflamam-se; a vaidade, a obs-
tinação entram em acção, pois que não conseguimos esclarecer,
com a troca de ideias, nem a nós mesmos nem os outros. No que me
diz respeito, só depois de muitos anos de meditação tomei o meu
partido: conservo-me nele; a minha consciência sente-se tranqui­
la, o meu coração está satisfeito. Se eu quisesse recomeçar um no­
vo exame dos meus sentimentos, n ão o faria sem o mais puro amor
pela verdade; e o meu espírito, já menos activo, também se encon­
traria menos apto para a conhecer. Ficarei como estou, receando
que, insensivelmente, o gosto pela contemplação - tornando-se
uma paixão ociosa - me entorpeça para o exercício dos meus de­
veres, e também porque receio recair no meu primeiro pirronismo,
sem encontrar forças para sair dele. Já vivi m ais de metade da
minha vida; já só me resta o tempo de que preciso para tirar pro­
veito da que me resta e para apagar os meus erros, com as minhas
virtudes. Se me engano, é sem o querer. Aquele que lê no fundo do
meu coração bem sabe que não gosto da minha cegueira. Na impos­
sibilidade em que me encontro de dela sair pelas minhas próprias
luzes, o único meio que me resta para não permanecer nela é levar
uma vida boa; e, se das próprias pedras, Deus pode suscitar filhos
a Abraão, todos os homens têm o direito de esperar ser esclareci­
dos, quando se tornam dignos disso.
Se as minhas reflexões que vos impelem a pensar como eu, e se ·
tivermos a mesma profissão de fé, eis o conselho que vos dou: Não
volteis a expor a vossa vida às tentações da miséria e do desespe­
ro; deixar de a arrastar com ignomínia, à mercê dos estranhos, e
deixai de comer o vil pão da esmola. Regressai à vossa pátria, re­
tomai a religião dos vossos pais, segui-la na sinceridade do vosso
coração, e nunca m ais a deixeis: ela é muito simples e muito san­
ta; de entre todas as religiões que há neste mundo, considero-a co­
mo aquela cuja moral é a mais pura e que mais sati!;!faz a razão.
Quanto às despesas para a viagem, não vos preocupes com isso, tu­
do se resolverá. Não receeis também a desagradável vergonha de
um regresso humilhante; deve-se corar por cometer uma falta,
mas não por repará-la. Ainda vos encontrais na idade em que tu­
do se perdoa, mas em que já não se peca impunemente. Quando
quiserdes escutar a vossa consciência, mil obstáculos vãos desapa­
recerão, ao som a sua voz. Sentireis que, na incerteza em que nos
encontramos, é uma presunção imperdoável professar uma reli­
gião diferente daquela em que nascemos, e uma falsidade não pra­
ticar sinceramente a que professamos. Se nos extraviarmos, per­
demos uma boa desculpa no tribunal do Juiz Soberano. Não lhe se­
rá mais fácil perdoar o erro em que fomos criados que aquele que
nos atrevemos a escolher por nossa própria vontade?
Meu filho, mantende a vossa alma em estado de sempre desejar
que exista um Deus, e nunca duvidareis dele. Além disso, seja qual
for o partido que vierdes a tomar, lembrai-vos de que os verdadei-
ros deveres da religião são independentes das instituições dos ho- 127
mens; que um coração justo é o verdadeiro templo da Divindade;
que em todos os países e em todas as seitas, amar Deus acima de
tudo e o seu próximo como a si mesmo, é o resumo da Lei; que n ão
existe nenhuma religião que dispense dos deveres da moral; que
não existem deveres verdadeiramente essenciais a não ser esses;
que o culto interior é o primeiro desses deveres, e que sem a fé não
existe nenhuma verdadeira virtude.
Evitai aqueles que, sob o pretexto de explicarem a natureza, se­
meiam nos corações dos homens doutrinas desolantes, e cujo cep­
ticismo aparente é cem vezes mais afirmativo e mais dogmático
que o tom decidido dos seus adversários. Sob o altivo pretexto de
que só eles estão esclarecidos, que só eles são verdadeiros, de boa­
-fé, submetem-nos imperiosamente às suas decisões categóricas,
e pretendem dar-nos, como verdadeiros princípios das coisas, os
ininteligíveis sistemas que construíram nas suas imaginações. De
resto, abatendo, destruindo, espezinhando tudo o que os homens
respeitam, retiram aos aflitos a derradeira consolação para a sua
miséria, aos poderosos e aos ricos o único freio das suas paixões; ar­
rancam, do fundo dos corações, o remorso pelo crime, a esperança
da virtude, e ainda se gabam de ser os benfeitores do género huma­
no. «Jamais», dizem eles, «a verdade é nociva para os homens».
Também penso como eles; e, na minha opinião, isso é uma grande
prova de que o que eles ensinam não é a verdade1 •

1 Os dois partidos atacam-se reciprocamente, com tantos sofismas


que seria um empreendimento imenso e temerário pretender referi-los to­
dos; j á é muito citar alguns, à medida que eles se forem apresentando. Um
dos mais familiares ao partido ftlosófico é opor um povo que se supõe ter
bons filósofos a um povo de maus cristãos: como se um povo de verdadei­
ros filósofos fõsse mais fácil de fazer que um povo de verdadeiros cristãos!
Não sei se, entre os indivíduos, um é mais fácil de encontrar que o outro;
mas sei muito bem que, desde que se trata de povos, devemos supor que
há os que abusam da filosofia sem religião, como os nossos abusam da re­
ligião sem filosofia; e isso parece-me modificar muito o aspecto da ques­
tão.
Bayle provou, e muito bem, que o fanatismo é mais pernicioso que o
ateísmo, e isso é inconstestável; mas o que ele não se lembrou de dizer ­
e que não é menos verdade- é que o fanatismo, embora sanguinário e
cruel, não deixa de ser uma paixão grande e forte, que eleva o coração do
homem, que o leva a desprezar a morte, e que basta dirigi-lo melhor pa­
ra dele retirar as mais sublimes virtudes: contanto que a irreligião, e, em
geral, o espírito arrazoador e filosófico, agarra à vida, efemina, avilta as
almas, concentra todas as paixões na baixeza do interesse pessoal, na &b­
jecção do eu humano, e, desse modo, destrói, quase silenciosamente, os
verdadeiros fundamentos de qualquer sociedade; pois o que os interesses
pessoais têm em comum é tão pouca coisa que nunca conseguirá destruir
o que eles têm de contrário.
128 Se o ateísmo não leva a verter o sangue dos homens, é menos por amor
Bom jovem, sede sincero e verdadeiro, sem orgulho; sabei ser
ignorante: não vos enganareis a vós nem aos outros . Se alguma vez
os vossos talentos cultivados vos colocarem numa situação de
poderdes falar aos homens, falai-lhes sempre segundo a vossa
consciência, sem vos preocupardes em saber se eles vos aplaudirão
ou não. O abuso do saber produz a incredulidade. Todos os sábios
desdenham o sentimento vulgar; cada um deseja ter um que seja
só dele. A orgulhosa Filosofia conduz ao fanatismo. Evitai esses ex­
tremos; conservai-vos sempre firme, no caminho da verdade, ou do
que vos parecerá sê-lo, na simplicidade do vosso coração, sem nun­
ca vos desviardes dela, nem por vaidade nem por fraqueza. Ousai
confessar Deus diante dos filósofos; ousai pregàr a humanidade
aos intolerantes. Talvez sejais o único do vosso partido; mas con­
tribuireis com um testemunho que vos dispensará dos dos homens.
Que eles vos amem ou vos odeiem, que eles leiam ou desprezem os
vossos escritos, pouco importa. Dizei o que é verdade, fazei o que
é bem ; o que interessa é desempenhar os seus deveres na terra; e
é esquecendo-nos de nós mesmos que trabalhamos para nós. Meu
filho, o interesse pessoal engana-nos; só a esperança do justo não
engana.

pela paz que por indiferença pelo bem: desde o momento em que tudo cor­
ra bem, nada mais importa ao pretenso sage, contanto que possa estar em
repouso no seu gabinete. Os seus princípios não fazem matar os homens,
mas impedem-nos de nascer, destruindo os costumes que os multiplicam,
afastando-os da sua espécie, reduzindo todas as suas afeições a um secre­
to egoísmo, tão funesto para a população como para a virtude.Aindiferen­
ça filosófica assemelha-se à tranquilidade do Estado sob o despotismo; é
a tranquilidade da morte: é mais destruidora que a própria guerra.
Assim, o fanatismo, embora seja mais funesto nos seus efeitos imedia­
tos que aquilo a que actualmente se chama o espírito filosófico, é-o mui­
to menos, nas suas consequências. Aliás, é fácil expor belas máximas nos
livros; mas o que importa é saber se elas condizem com a doutrina, se elas
derivam necessariamente dela; e é isso que, até agora, não tem parecido
claro. Ainda falta saber se a Filosofia, bem instalada e sentada no trono,
comandaria bem à gloríola, ao interesse, à ambição, às pequenas paixões
do homem, e se ela praticaria essa humanidade tão doce que nos gaba com
a pena na mão.
Através dos princípios, a Filosofia não pode fazer nenhum bem que a
religião não faça mais perfeitamente; e a religião faz muito que a Filoso­
fia não conseguiria fazer.
Através da prática, é outra coisa; mas, mesmo assim, examinemos.
Não há nenhum homem que siga completamente a sua religião, quando
tem alguma: isto é verdade; a maior parte deles pouca tem e não a segue:
isto também é verdade; mas, enfim, há alguns que têm uma religião e que
a seguem, pelo menos em parte; e é indubitável que motivos religiosos os
impedem, muitas vezes, de praticar o mal, e obtêm deles virtudes, acções
louváveis, que nunca teriam tido lugar sem esses motivos.
Que um monge negue ter recebido um depósito; o que se depreende 129

L. B. 524- 9
Copiei este escrito, não como um catecismo dos sentimentos
que devem ser seguidos em matéria de religião, mas como um
exemplo da m aneira como se pode arrazoar com o seu pupilo, para
não nos afastarmos do método que tratei de estabelecer. Enquan­
to não se dá nada à autoridade dos homens, nem aos preconceitos
do país em que se nasceu, as únicas luzes da razão não podem, na
instituição da natureza, levar-nos mais longe que a religião natu­
ral; e é a isso que eu me limito, com o meu Emílio. Se ele tiver de
adoptar outra, deixo de ter o direito de ser seu guia para esse as­
sunto; só ele a pode escolher.
Trabalhamos de concerto com a natureza, e, enquanto ela for­
ma o homem físico, nós tratamos de formar o homem moral; mas
os nossos progressos não são idênticos. Já o corpo está robusto e
forte, ainda a alma está lânguida e fraca; e seja o que for que a ar­
t,e humana possa fazer, o temperamento precede sempre a razão.
E a reter um e a excitar a outra que, até agora, temos dedicado to­
dos os nossos cuidados, a fim de que o homem seja sempre uno, tan-

daí, se não é que um tolo lho confiara? Se Pascal tivesse negado um, isso
provaria que Pascal era um hipócrita, e mais nada. Mas um monge!... As
pessoas que fazem da religião um tráfico serão aquelas que a têm? Todos
os crimes que se praticam entre o clero, como alhures, não provam que a
religião seja inútil, mas que são poucas as pessoas que têm religião.
E incontestável que os nossos Governos modernos devem ao cristia­
nismo a sua mais sólida autoridade e a sua menor frequência de revolu­
ções; o cristianismo tornou-os menos sanguinários: isso prova-se pelos
factos, comparando-os aos antigos governos. A religião, melhor conheci­
da, afastando o fanatismo, deu mais suavidade aos costumes cristãos. Es­
sa mudança não é, de modo nenhum, a obra das letras; porque nem porto­
da a parte onde elas brilharam a humanidade foi mais respeitada; as
crueldades dos Atenienses, dos Egípcios, dos imperadores de Roma, dos
Chineses, confirmam-no. Quantas obras de misericórdia se devem ao
Evangelho! Quantas restituições, quantas reparações, a confissão não le­
va a fazer, entre os católicos!? Entre nós, quantas reconciliações e esmo­
las não se operam, ao aproximar-se o tempo da comunhão!? Como os usur­
padores se tornavam menos ávidos, durante ojubileu dos Hebreus! Quan­
tas misérias não prevenia ele! A fraternidade legal unia toda a nação: não
se via um mendigo, entre eles. Também não se vêem mendigos, na Tur­
quia, onde as instituições piedosas são inúmeras; esse povo é hospitalei­
ro, por princípio de religião, mesmo em relação aos inimigos do seu culto.
Segundo Chardin, «OS maometanos dizem que, depois do exame que
se seguirá à ressurreição universal, todos os corpos terão de atravessar
uma ponte chamadaPoul-Serrho, que passa porei ma do fogo eterno, pon­
te que pode ser considerada - dizem eles -como o terceiro e derradeiro
exame e o verdadeiro julgamento final, porque é nela que se separarão os
bons dos maus ... etc.
»Os Persas», prossegue Chardin, «sentem-se muito impressionados
130 com essa ponte; e quando alguém é vítima de uma injustiça que, de ne-
to quanto possível. Desenvolvendo o natural, iludimos a sua sen­
sibilidade n ascente; regulámo-la cultivando a razão. Os objectos
intelectuais moderavam a impressão dos objectos sensíveis. Re­
montando ao princípio das coisas, subtraímo-la ao império dos
sentidos; era simples elevar-se do estudo da natureza até à inqui­
rição do seu autor.
Quando chegámos a esse ponto, quanta influência já adquiri­
mos sobre o nosso pupilo! Quantos novos meios possuímos para lhe
falar ao coração! E só então que ele compreende o seu verdadeiro
interesse em ser bom, em praticar o bem longe da vista dos ho­
mens, e sem a isso ser forçado pelas leis, em ser justo entre Deus
e ele, em cumprir o seu dever - mesmo à custa da sua vida -, e
em transportar no seu coração a virtude, não só pelo amor pela or­
dem - à qual todos preferem sempre o amor por si mesmos-, mas
por amor ao autor do seu ser, amor que se confunde com esse amor
por si mesmo, para finalmente gozar da felicidade durável que o re­
pouso de uma boa consciência e a contemplação desse Ser Supre­
mo lhe prometem na outra vida, após ter bem utilizado esta. Fora
disso, só vejo injustiça, hipocrisia e mentira, entre os homens. O in­
teresse pessoal, que, na concorrência, é superior a todas as outras

nhum modo nem em nenhum momento, pode vir a ser reparada, a sua úni­
ca consolação é dizer ao que lha fez: Pois bem! Pelo Deus uivo, pagar--ma­
-ás a dobrar, no último dia; não passaráspelo Poul-Serrho sem primeiro
me terespedido desculpa!Agarrar--me-ei à aba do teu casaco e lançar-me­
-ei às tuas pernas. Vi muitas pessoas eminentes, e de todas as profissões,
que, receando que alguém lhes fizesse isso durante a passagem dessa te­
mível ponte, imploravam, àqueles que delas tinham razões de queixa, que
lhes perdoassem: isso aconteceu-me mais de cem vezes, a mim próprio.
Pessoas de qualidade, que me tinham levado a efectuar, por importunida­
de, diligências diferentes das que eu teria desejado, abordavam-me ao ca­
bo de um determinado tempo que elas consideravam suficiente para o des­
gosto me ter passado, e diziam-me: Peço-'le, halal becon antchifra, isto é,
devolve--me esse caso lícito oujusto. Algumas até me chegaram a fazer pre­
sentes e prestaram-me serviços, a fim de que lhes perdoasse declarando­
-lhes que o fazia de boa vontade: de tudo isto, a única causa é essa cren­
ça de que não se passará pela ponte do Inferno antes de se ter pago, até ao
derradeiro cêntimo, àqueles que se oprimiu.», (Tomo VII, in 12, p. 50).
Poderia eu supor que a ideia dessa ponte que tantas iniquidades re­
para, nunca as impede? Se se tirasse essa ideia aos Persas, persuadindo­
-os de que não há nem Poul-Serrho, nem nada que se lhe pareça, onde os
oprimidos seriam vingados dos seus tiranos, depois da morte, não é evi­
dente que isso os poria muito à vontade e os dispensaria do cuidado de se
desculparem perante esses infelizes? Por conseguinte, é falso que essa
doutrina sej a nociva; porque, se o fosse, não seria a verdade.
Filósofo, as tuas leis morais são muito belas; mas, por favor, mostra­
-me a respectiva sanção. Pára, durante um momento, de percorrer os
campos, e diz-me nitidamente o que colocas em lugar do Poul-Serrho. 131
coisas, ensina cada um a ornamentar o vício com a máscara da
virtude. Que todos os outros homens façam o meu bem à custa do
deles; que tudo se refira só a mim; que toda a espécie humana
morra, se for preciso, na dor e na miséria, para me poupar um mo­
mento de dor ou de fome: é esta a linguagem interior de todo o in­
crédulo que raciocina. Sim, ampará-lo--ei durante toda a minha
vida, aquele que se tenhadito, no seu coração: «Deus não existe, e
quem diz o contrário é um mentiroso ou um insensato».
Leitor, por mais que me esforce, bem sinto que, nem vós nem
eu, nunca conseguiremos ver o meu Emílio sob o mesmo aspecto;
vós imaginai-lo sempre parecido com os vossosjovens, estouvado,
petulante, volúvel, correndo de festa para festa, de divertimento
para divertimento, sem nunca se poder fixar em nada. Troçareis de
mim, ao verdes que, de um jovem ardente, faço um contemplativo,
um filósofo, um verdadeiro teólogo, inteligenmte, impetuoso, fo­
goso, na época mais efervescente da sua vida. Dir-vos-ei: «Esse so­
nhador prossegue na sua quimera; apresentando-nos um pupilo
educado por ele, não só o forma, como também o cria, tirando-o do
seu cérebro; e, supondo obedecer sempre à natureza, afasta--se de­
la constantemente» . Eu, comparando o meu pupilo com os vossos,
dificilmente vejo o que eles podem ter em comum. Alimentado tão
diferen temente, é quase um milagre se se lhes parecer, seja no que
for. Como passou a sua infância na liberdade de que eles só des­
frutam quando atingem a juventude, quando atinge a juventude
começa a obedecer à regra a que eles foram submetidos durante a
infância: essa regra torna--se o flagelo deles, h orroriza4>s, nela só
vêem a prolongação da tirania dos mestres; crêem só p oder sair da
infància sacudindo toda a espécie dejugo1 ; e, então consolam--se da
prolongada opressão em que foram mantidos, como um prisionei­
ro que, liberto dos seus grilhões, estende, agita, e flecte os seus
·

membros.
Emílio, pelo contrário, sente--se orgulhoso por se fazer homem
e por se sujeitar ao jugo da razão nascente; o seu corpo, já forma­
do, não tem necessidade dos mesmos movimentos, e começa a de­
ter-se por si próprio, enquanto o seu espírito, meio desenvolvido,
procura, por sua vez, desenvolver--se. Assim, enquanto, para uns,
a idade da razão apenas é a idade da liberdade, para o outro, ela
passa a ser a idade do arrazoamento.
Quereis saber quem - entre eles e Emílio - é mais forte nis­
so, pela ordem da natureza? Considerai as diferenças naqueles que

1 Não há ninguém que considere a infância com tanto desprezo como


aqueles que dela emergem, assim como não há nenhum país onde as clas­
ses sejam conservadas com mais afectação que aqueles onde a desigual­
dade não é grande, e onde cada um receia sempre ser confundido com o seu
132 inferior.
estão mais ou menos afastados dela: observai os jovens campone­
ses, e vede se são tão petulantes como os vossos. «Durante a infân­
cia, selvagens - diz o senhor Le Beau -, vemo-los sempre acti­
vos e constantemente entretidos em diversosjogos que lhes agitam
os corpos; mas, mal atingem a idade da adolescência, tornam-se
sossegados, sonhado_res; passam a distrair-se apenas com jogos
sérios ou de azar1». A medida que vai crescendo, Emílio, que foi
criado em toda a liberdade, como os filhos dos camponeses, deve
mudar e deter-se, como eles. A única diferença está em que, em vez
de agir unicamente para brincar ou para se alimentar, ele tem, nos
seus trabalhos e nos seus jogos, aprendido a pensar. Por conse­
guinte, chegado a essa fase através desse caminho, encontra-se
perfeitamente disposto para a que lhe passo a fazer viver: os objec­
tos de reflexão que lhe apresento exacerbam a sua curiosidade,
porque são belos por si mesmos, porque são novos para ele, e
porque se encontra em estado de os compreender. Pelo contrário,
maçados, fartos das vossas enfadonhas lições, das vossas prolon­
gadas prelecções de moral, dos vossos eternos catecismos, como é
que os vossos jovens não se recusariam à aplicação de espírito que
lhes tornastes triste, aos pesados preceitos com que n ão cessastes
de os oprimir, às meditações sobre o autor do seu ser, que transfor­
mastes no inimigo dos seus prazeres? Por tudo isso, só conceberam
aversão, repugnância, aborrecimento; a opressão tornou-os
enfastiados dessas coisas: qual o meio para conseguir que el�s se
entreguem a elas, quando começam a dispor de si mesmos?. E ne­
cessário apresentar-lhes assuntos novos, para lhes agradar, não
precisam de ouvir mais nada do que se diz às crianças. O mesmo
se passa com o meu pupilo; quando se torna homem, falo-lhe como
a um homem e só lhe digo coisas novas; é precisamente porque elas
aborrecem os outros que lhe devem agradar.
Eis como o faço ganhar o dobro do tempo, atrasando, em pro­
veito da razão, o progre�so da natureza. Mas, terei efectivamente
atrasado esse progresso? Não; tudo quanto fiz foi impedir que a
imaginação o acelerasse; contrabalancei, com lições de outra espé­
cie, lições precoces que ojovem recebe de alhures. Enquanto a tor­
rente das nossas instituições o arrasta, atraí-lo em sentido opos­
to, com outras instituições, não é retirá-lo do seu lugar, é mantê­
-lo nele.
Por fim, chega o verdadeiro momento da natureza, é necessá­
rio que chegue. Pois é preciso que o homem morra, é preciso que ele
se reproduza, a fim de que a espécie perdure e de que a ordem do
mundo seja conservada. Quando, através dos indícios de que falei,
pressentirdes o momento crítico, abandonai imediatamente, e pa-

1 Aventures du sieur C. le Beau, avocat au parlement, t. II, p. 70. 133


ra sempre, o tom que empregais em relação a el�. Ainda é o vosso
pupilo, mas já deixou de ser o vosso discípulo. E o vosso amigo, é
um homem, passai a tratá-lo como tal.
O quê!? Deverei abdicar da minha autoridade, no momento em
que mais necessidade dela tenho? Deverei abandonar o adulto a si
mesmo, no momento em que ele menos se sabe conduzir, e em que
faz os maiores desatinos? Deverei renunciar aos meus çlireitos,
quando ele mais necessidade tem que eu me sirva deles? E só ago­
ra que eles começam, para ele. Até agora, só conseguíeis obter as
coisas pela força ou pela astúcia; a autoridade, a lei do dever eram­
-lhe desconhecidas: era necessário obrigá-lo ou enganá-lo, para o
levardes a obedecer-vos. Mas bem vedes com quantos grilhões
acorrebtastes o seu coração. A razão, a amizade, o reconhecimen­
to, mil afectos, falam-lhe num tom que não o pode deixar indife­
rente: o vício ainda não o tornou surdo à sua voz . Por enquanto, só
é sensível às paixões da natureza. A mais importante delas todas
- que é o amor por si mesmo - entrega-vo-lo; o hábito também
vo-lo entrega. Se um arrebatamento momentâneo vo-lo arranca,
em breve, o arrependimento vo-lo trará; o sentimento que o une a
vós é o único que permanece; todos os outros passam e se apagam
mutuamente. Não permitais que ele se corrompa e vêe-lo--eis sem­
pre dócil; só começa a ser rebelde quando já está pervertido.
Confesso que, se, chocado com os seus desejos nascentes, fôs­
seis totalmente considerar como crimes as novas necessidade que
se fazem sentir nele, não seríeis escutado durante muito tempo;
mas, logo que deixardes de seguir o meu método, não vos garanto
nada. Lembrai-vos sempre de que sois o minstro da natureza;
nunca sereis o seu inimigo.
Mas que partido tomar? Nesta altura, trata-se apenas da
alternativa, entre favorecer as suas tendências ou combatêe-las,
entre ser o seu tirano ou o seu companheiro; e cada uma delas po­
de ter consequências tão perigosas, que é preciso saber escolher
muito bem.
O melhor sistema que se apresenta para resolver esta dificul­
dade é casá-lo rapidamente; é esse, incontestavelmente, o expe­
diente mais seguro e o mais natural. No entanto, não sei se será o
melhor, ou o mais útil. Mais adiante vos explicarei as minhas ra­
zões; contudo, penso que convém casar os jovens quando atingem
a idade núbil. Mas, para eles, essa idade chega antes do tempo; fo­
mos nós que a tornámos precoce; deveremos prolongá-la até à ma­
turidade.
Se só fosse necessário prestar atenção às inclinações e seguir
as indicações, isso ""'ria muito fácil: ma.. há tantas contradições en­
tre os direitos da natureza e as nossas leis soei as, que, para as con­
ciliar, é necessário enviezar e tergiversar constantemente: é pre­
ciso empregar muita arte, para impedir o homem social de ser com­
134 pletamente artificial.
Sobre as razões que aqui ficam expostas, considero que, atra­
vés dos meios que citei, e de outros semelhantes, se pode prolon­
gar - pelo menos até aos 20 anos __.:. a ignorância dos desejos e a
pureza dos sentidos: isto é tão verdade que, entre os Germanos, um
jovem que perdesse a sua virgindade antes dessa idade ficava di­
famado: e os autores atribuem - com razão - à continência a que
esses povos se submeteram, durante a sua juventude, o vigor da
sua çonstituição e a quantidade de filhos que têm.
E possível prolongar muito mais essa época, e, até ainda há
bem poucos séculos, nada era mais comum, na própria França. En­
tre outros exemplos conhecidos, o pai de Montaigne, homem não
menos escrupuloso e verdadeiro que forte e bem constituído,jura­
va ter-se casado quando ainda virgem, aos trinta e três anos, de­
pois de ter servido durante muito tempo nas guerras da Itália; e,
nos escritos do filho, podemqs ver a boa disposição que o pai conser�
vava, com mais de 60 anos. E certo que a opinião contrária se preo­
cupa mais com os nossos costumes e com os nossos preconceitos
que com o conhecimento�da espécie em geral.
Posso, pois, deixar de lado o exemplo da nossa juven tu de; n ão
prova nada para queles que não foram educados como ela. Consi­
derando que, sobre esse assunto, a natureza não tem nenhum mo­
mento fixo que se não possa avançar ou atrasar, creio que, sem me
afastar da sua lei, poderei supor que, pelos meus cuidados, Emílio
conservará, até a essa idade, a sua primitiva inocência, e vejo es­
sa feliz época prestes a terminar. Rodeado de perigos sempre cres­
centes, acabará por me escapar, na primeira oportunidade, por
mais que eu faça para o reter; e essa oportunidade não tardará a
surgir. Seguirá o cego instinto dos sentidos; posso apostar mil con­
tra um em que se perderá. Reflecti suficientemente sobre os cos­
tumes dos homens para não poder deixar de me aperceber da in­
fluência invencível desse primeiro momento sobre o resto da sua
vida. Se eu dissimular e fingir nada ver, ele prevalecer-se-á da mi­
nha fraqueza; crendo enganar-me, desprezar-me-á e eu serei o
cúmplice da sua perda. Se tentar retê-lo, será tarde de mais, já não
me dará ouvidos; torno--me incómodo para ele, ocioso, insuportá­
vel; não tardará a desembaraçar-se de mim. Por conseguinte, só
me resta um partido razoável a tomar; é o de o tornar responsável
pelas suas próprias acções, de o garantir, pelo menos, contra as
surpresas do erro, e de lhe revelar abertamente os perigos que oro­
deiam. Até agora, detinha-o pela sua ignorância; a partir deste
momento, será através dos esclarecimentos que o deverei reter.
Estes novos ensinamentos são importantes, e convém retomar
as coisas de mais alto. Eis chegado o momento d<:> lh<> pr<:>star, por
assim dizer, as minhas contas; de lhe mostrar o emprego do seu
tempo e o do meu; de lhe declarar o que ele é e o que eu sou; o que
fiz e o que ele fez ; o que nos devemos, um ao outro; todas as suas
relações morais, todos os compromissos que ele contraiu, todos 135
aqueles que foram contraídos com ele, a que ponto chegou no
progresso das suas faculdades, que caminho lhe resta percorrer, as
dificuldades que nele encontrará, os meios de vencer essas dificul­
dades; em que o posso ainda ajudar; em quê que, a partir de ago­
ra, só ele se poderá ajudar a si próprio, enfim, o ponto crítico em que
se encontra, os novos perigos que o espreitam, e todas as razões só­
lidas que devem levá-los a vigiar...,;e
; atentamente si mesmo, antes
de prestar ouvidos aos seus desejos nascentes.
Lembrai-vos de que, para conduzirdes um adulto, precisais de
fazer exactamente o contrário de tudo quanto fizestes para educar
uma criança. Nunca hesiteis em instruí-lo desses perigosos mis­
térios que durante tanto tempo e com tanto cuidado lhe encobris­
tes. Já que chegou o momento em que ele precisa de os conhecer,
o importante é que n ão os venha a conhecer através de outro ou de
si próprio, mas unicamente por vós; pois, daqui em diante, ele te­
rá de se forçar a combater, e para evitar surpresas, é indispensá­
vel que ele conheça o seu inimigo.
Quando vemos jovens que são conhecedores destas matérias,
sem compreendermos como as vierem a conhecer, podenos ter a
certeza de que não as aprenderam impunemente. Essa instrução
indiscreta, não podendo ter um objecto honesto, emporcalha, pelo
menos, a imaginação daqueles que a recebem e predispõe--nos pa­
r a os vícios daqueles que a prodigam. E não é tudo; os criados in­
sinuam-se, deste modo, no espiríto de uma criança, conquistam a
sua confiança levam-na a considerar o seu governante como um
personagem triste e enfadonho; e um dos assuntos preferidos dos
seus secretos colóquios é dizer mal dele. Quando o pupilo chega a
esse ponto, o mestre pode retirar-se, não lhe resta nada de útil a
fazer.
Mas, porque é que a criança escolhe confidentes particulares?
Sempre por causa da tirania daqueles que a governam. Por que se
esconderia deles, se não se sentisse forçada � esconder-se? Por que
se queixaria deles, se não tivessem nenhum motivo para queixas?
O natural é que eles sejam os seus primeiros confidentes; nota-se
isso, no interesse com que eles vão dizer-lhes o que pensam, por­
que crêem só o ter pensando em parte, enquanto não lhes tiverem
revelado todo. Sabei que, se a criança não recear, da vossa parte,
nem sermão nem reprimenda, dir-vos-á sempre tudo, e que nin­
guém se atreverá a confiar-lhe coisas que vós não possais saber,
quando se tiver a certeza de que ela não vos esconde nada.
O que mais me leva a contar com o meu sistema, é que, seguin­
do os seus efeitos o mais exactamente que me é possível, não vis­
lumbro nenhuma situação na vida do meu pupilo que não deixe,
dele, uma imagem agradável. No próprio momento em que os fu­
rores do temperamento o avassalam , e em que, revoltado contra a
mão que o detêm, ele se debate e começa a escapar-me, nas suas
136 agitações, nos seus acessos de raiva, ainda vejo a sua primeira sim-
plicidade; o seu coração, tão puro como o seu corpo, não conhece
nem o disfarce nem o vício, nem as censuras nem o desprezo o tor­
naram covarde; nunca o vil receio o ensinou a ser hipócrita. Tem
toda a indiscrição da inocência; é ingénuo sem escrúpulos; ainda
não sabe para que serve enganar. Não se dá um movimento na sua
alma sem que a sua boca ou os seus olhos o digam ; e, muitas vezes,
sei, antes dele, os sentimentos que lhe vão na alma.
Enquanto ele continuar a abrir-me, assim, livremente, a sua
alma, e a sentir prazer em dizer-me o que sente, nada tenho a re­
cear, o perigo ainda não se aproximou; mas, se ele se começar a
mostrar mais tímido, mais reservado, se me aperceber, nas suas
conversas, dos primeiros sintomas da vergonha, é sinal de que o
instinto já se está a desenvolver, que já a noção do mal nela pene­
trou, e não há um momento a perder; se não me apresso a instruí­
-lo, em breve ele será instruído por outros, sem eu o saber.
Mais de um leitor, embora adoptando as minhas ideias, pen­
sará que, neste caso, se poderá tratar apenas de uma conversa
iniciada com o jovem, como que por acaso, e que com ela se resol­
ve tudo. Ai! Mas não é assim que o coração humano se governa! O
que se diz não significa nada, se o momento de o dizer não tiver sido
preparado. Antes de semear, é preciso lavrar a terra: a semente da
virtude dificilmente germina; são necessários muitos aprestos pa­
ra conseguir que ela crie raízes. Uma das coisas que tornam as pré­
dicas mais inúteis é elas serem feitas indiferentemente, a toda a
gente, sem discernimento e sem escolha. Como é possível crer que
o mesmo sermão convenha a tantos auditores, tão diversamente
preparados, de espíritos, de disposições, de idades, de sexos, de es­
tados e de opiniões tão diferentes? Talvez nem sequer haja dois a
quem tudo quanto se diz aos outros possa convir; e as nossas afec­
ções têm tão pouca constância, que talvez não haja dois momentos
na vida de cada homem, em que o mesmo discurso exerça, sobre ele,
a mesma impressão. Dizei-me se, quando os sentidos alienados in­
flamam o entendimento e tiranizam a vontade, é o momento pro­
pício para escutar as graves lições da sageza. Por conseguinte,
nunca faleis de coisas sérias aos jovens - mesmo quando estes j á
atingiram a idade da razão- sem o s terdes previamente colocado
em estado de compreender o que lhes direis. A maioria dos discur­
sos perdidos são-no muito mais por culpa dos mestres que pela dos
discípulos. O pedante e o professor dizem, mais ou menos, as mes­
mas coisas: mas, o primeiro di-las a propósito de tudo; o segundo
só as diz quando tem a certeza do seu efeito.
Como um sonâmbulo, que, durante o seu sono, passeia à beira
de um precipício, para o qual cairia se fosse subitamente acordado,
assim, o meu Emílio, durante o seu sono da ignorância, escapa a
perigos que não vê: se eu o despertar bruscamente, está perdido.
Comecemos por afastá-lo do precipício, e, em seguida, desperte-
mo-lo, para lho mostrarmos, de longe. 137
A leitura, a solidão, a ociosidade, a vida mole e sedentária, o
comércio das mulheres e dos jovens: eis os caminhos perigosos de
percorrer, p.a sua idade, e que o mantêm incessantemente à beira
do perigo. E através de outros objectos sensíveis que eu distraio os
seus sentidos; é traçando um outro itinerário aos espíritos que os
desvio daqueles que se preparavam para percorrer; é exercitando
o seu corpo, com trabalhos duros, que detenho a actividade da ima­
ginação que o arrasta. Quanto os braços trabalham muito, a ima­
ginação descansa; quando o corpo está muito cansado, o coração
não se abrasa. A precaução mais rápida e mais fácil é a de o arran­
car ao perigo local. Começo por levá-lo para longe das cidades, pa­
ra longe dos objectos capazes de o tentar. Mas isso não basta; em
que deserto, em que selvagem abrigo poderá ele escapar às ima­
gens que o perseguem? De nada serve afastar os objectos perigo­
sos, se não se afastar também a sua recordação; se não consigo des­
ligá-lo de tudo, se não o consigo distrair de si mesmo, então, mais
valia tê-lo deixado onde estava.
Emílio conhece um ofício, mas, neste caso, esse ofício não é o
nosso recurso; gosta e percebe da agricultura, mas a agricultura
não nos basta: as ocupações queele conhece tornam-se um hábito;
entregando-se a elas, sente-se como se não estivesse a fazer nada;
pensa em coisas completamente diferentes; a cabeça e os braços
trabalham separadamente. Precisa de uma nova ocupação, cuja
novidade lhe desperte o interesse, que o obrigue a fazer esforços,
que lhe agrade, que o leve a aplicar-se, que o exercite, de uma
ocupação pela qual se apaixone e à qual se entregue totalmente.
Ora, a única que me parece reunir todas essas condições é a caça.
Se alguma vez a caça é um prazer inocente, se ela alguma vez con­
veio ao homem, é neste momento que se deve recorrer a ela. Emílio
possui tudo quanto é preciso para a praticar com mestria; é robus­
to, hábil, paciente, infatigável. Infalivelmente, adquirirá gosto por
este exercício; nele em pregará todo o ardor da sua idade; nela per­
derá - pelo menos, durante um certo tempo - as perigosas incli­
nações que têm origem na moleza. A caça endurece o coração as­
sim como o corpo; habitua ao sangue, à crueldade. Considera-se
Diana como inimiga do amor; e a alegoria é muito justa: os lango­
res do amor só nascem num doce repouso; um violento exercício
abafa os sentimentos ternos. Nos bosques, nos locais campestres,
o amante, o caçador, encontram-se tão diferentemente afectados
que, dos mesmos objectos, constroem imagens completamente
diferentes. As frescas sombras, as matas, os doces refúgios do
primeiro não são, para o segundo, mais do que pastos, abrigos,
coutadas; onde só ouve flautas, rouxinóis, cantos de aves, o outro
imagina as buzinas de caça e os ladridos dos cães; o primeiro só
imagina dríades e ninfas: o outro, picadores, matilhas e cavalos.
Passeai pelo campo com essas duas espécies de homens: pela dife-
138 rença das conversas que tiveram, em breve compreendereis que,
para eles, a terra não apresenta o mesmo aspecto, e que as suas
ideias são tão diferentes como a escolha dos respectivos prazeres.
Compreendo que esses gostos se possam reunir e que, final­
mente, se arranje tempo para tudo. Mas as paixões da juventude
não se partilham desse modo: dai-lhe uma única ocupação de que
ela goste, e, em breve, tudo o resto será esquecido. A variedade dos
desejos provém da dos conhecimentos, e os primeiros prazeres que
se conhecem são, durante muito tempo, os únicos que se procuram.
Não pretendo que Emílio passe toda a sua juventude a matar ani­
mais, e nem sequer pretendo justificar completamente esta feroz
paixão; basta-me que ela seja Stfficiente para suspender uma pai­
xão m ais perigosa, para que ele me possa ouvir, de sangue-frio, fa­
lar dela, e que me dê tempo para a descrever sem o excitar.
Na vida humana, há épocas que são feitas para nunca serem
esquecidas. Para Emílio, a da instrução de que falo será uma de­
las; deverá influir em todo o resto da sua vida. Tratemos pois, de
a gravar na suamemória, deform a a queelase torne indelével. Um
dos erros da nossa idade é em pregar a razão excessivamente nua,
como se os homens fossem apenas espíritos. Negligenciando a lín­
guagem dos sinais que falam à imaginação perdeu-se a linguagem
m ais enérgica. A impressão que a palavra deixa é sempre fraca, e
fala-semuito melhor ao coração através dos olhos que através dos
ouvidos. Pretendendo tudo atribuir ao raciocínio, reduzimos os
nossos preceitos a palavras: nada pusemos nas acções. A razão, só
por si, não é activa; por vezes, retém, mas raramente excita, e nun­
ca conseguiu nada de grande. Arrazoarconstantemente é a mania
dos espíritos tacanhos. As almas fortes utilizam uma linguagem
mui to diferente; é com essa linguagem que se persuade e que se faz
agir.
Faço notar que, nos tempos modernos, j á não se deixam
influenciar uns pelos outros - a não ser pela força e pelo interes­
se-contantoqueos antigos agiam muito mais pela persusão, pe­
los afectos da alma, porque n ão negligenciavem a linguagem dos
sinais. Todas as convenções se passavam com solenidade, para que
permanecessem mais invioláveis: antes de a força ter sido estabe­
lecida, os deuses eram os magistrados do género humano; era dian­
te deles que os particulares efectuavam os seus tratados, as suas
alianças, pronunciavam as suas promessas; a face da terra era o
livro onde se conservavam os seus arquivos. Rochedos, árvores,
montes de pedras consagrados por esses actos e tornados respei­
táveis para os homens bárbaros, eram os folhetos desse livro, cons­
tantemente aberto.
O poço do juramento, o poço do vivo e do vidente, o velho car­
valho de Mambré, o monte de pedras do testemunho; eis quais
eram os monumentos grosseiros, mas augustos, da santidade dos
contratos; ninguém teria ousado atentar a esses monumentos,
com uma mão sacn1ega; e a fé dos homens estava mais segura pe- 139
la garantia dessas testemunhas mudas, que o está hoj e por todo o
rigor das leis.
No Governo, o augusto aparato do poder real impressionava os
povos. Marcas de dignidade, um trono, um ceptro, um manto de
púrpura, uma coroa, uma faixa, eram para eles, coisas sagradas.
Esses sinais respeitados tornavam-lhes venerável o homem que
com eles estava ornamentado: sem soldados, sem ameaças, bas­
tava-lhe falar para ser obedecido. Agora, que se pretende abolir
esses sinais 1, o que acontece? Que a majestade real se apaga em
todos os corações, que os reis já não se conseguem fazer obedecer
sem a força dos exércitos, e que o respeito pelos sujeitos de deve ao
receio do castigo. Os reis já não se dão ao trbalho de usar as suas
coroas, nem as grandes marcas das suas dignidades; mas precisam
de ter cem mil braços, sempre preparados para fazerem executar
as suas ordens. Embora talvez isso lhes pareça mais belo, é fácil
apercebermo-nos de que, com a continuação, essa troca não lhes
dará proveito nenhum.
O que os antigos conseguiram com a eloquência é prodigioso;
mas essa eloquência não consistia unicamente em belos discursos
bem arranjados; e nunca ela obteve mais efeito do que quando o
orador falava pouco. O que se preten dia dizer com mais ênfase, não
se dizia com palavras mas com sinais; não se dizia, mostrava-se.
O objecto que se expõe à vista abala a imaginação, excita a curio­
sidade, conserve o espírito na espectativa do que vai ouvir: e, em
muitos casos, esse objecto é o bastante para tudo dizer. Trasíbulo
e Traquínio cortando cabeças de papoilas, Alexandre aplicando o
seu selo na boca do seu favorito, Diógenes andando à frente de Ze­
não, não fal avam mais bem que se tivessem feito prolongados dis­
cursos? Que troca de palavras poderia tão bem ter traduzido as
mesmas ideias? Dário, que invadira a Citia com o seu exército, re­
cebe da parte do rei dos Citas, um pássaro, um rã, um rato e cin­
co flechas. O embaixador entrega o presente e volta para trás, sem
dizer uma palavra. Nos tempos que correm, esse homem teria si­
do considerado como louco. Essa terrível alocução foi compreendi-

O clero romano conservou-os muito habilmente, e, a seu exemplo,


algumas repúblicas, entre outras a de Veneza. Assim, o governo venezia­
no, apesar da queda doEstado, ainda desfruta - sob o aparato da sua an­
tiga majestade- de todo o afecto, de toda a adoração do povo; e, depois do
papa, ornado com a sua ti ara, talvez não haja nem rei nem potentado, nem
nenhum homem no mundo, qu<> s<>ja tão respeitado como o doge de Veneza,
sem poder, sem autoridade, mas tornado sagrado através da sua pompa,
e coberto - sob o seu corno ducal - com uma coifa de mulher. Essa ceri­
mónia do Bucentauro, que tanto faz rir os tolos, levaria toda a população
de Veneza a verter o seu sangue para a conservação do seu tirânico go-
140 verno.
da e Dário apressou-se a regressar ao seu país, o mais depressa
que pôde. Substituí esses sinais por uma missiva; quanto mais
ameaçadora ela fosse, menos amedrontaria; não teria sido mais do
que uma anfarronice de que Dário se teria rido.
Quanta atenção os Romanos prestavam à linguagem dos si­
nais! Roupagens diferentes, consoante as idades, consoante as
condições; togas, mantos grosseiros, togas franjadas de púrpura,
contas de metal, laticlavos, cadeiras dos bispos, lictores, fasees,
machados, coroas de ouro, ervas, folhas, ovações, triunfos: para
eles, tudo era aparato, representação, cerimónia, e tudo impressio­
nava os corações dos cidadãos. O Estado decidia que o povo se reu­
niria em determinado local e em nenhum outro; que visse ou não
visse o Capitólio; que ficasse, ou não, virado para o lado do Sena­
do; que deliberasse neste ou naquele dia de preferência. Os acusa­
dos mudavam de trajes, os candidatos também ; os guerreiros não
se gabavam dos seus feitos, limitavam-se a mostra os seus erimen­
tos. Aquando da morte de César, imagino um dos nossos oradores
-pretendendo comover o povo- esgotar todos os lugares comuns
da arte para fazer uma patética descrição dos seus erimentos do
seu sangue, do seu carácter: António, embora eloquente, não diz
nada disso; manda trazer o corpo. Que retórica!
Mas esta digressão aasta-me, insensivelmente, do meu assun­
to, assim como o azem muitas outras, e os meus desvios são exces­
sivamente requentes para se poderem prolongar sem se tornarem
intoleráveis: por conseguinte, volto ao que estava a dizer.
Nunca arrazoeis secamente, com ajuventude. Revesti a razão
de um corpo, se quereis que ela lhe seja sensível. Fazei passar pe­
lo coração a linguagem do espírito, a ifm de que ele se aça com­
preender. Repito-o, os argumentos frios podem determinar as nos­
sas opiniões, mas não as nossas acções; fazem-nos crer e não agir;
demostra-se o que se deve pensar e não o que se deve fazer. Se isso
é verdade para todos os homens, com mais razões o é para os
jovens, ainda envolvidos nos seus sentidos, e que só pensam quan­
to imaginam.
Por conseguinte, terei o cuidado de evitar - mesmo após as
preparações a que me reeri - entrar bruscamente no quarto de
Emílio e de lhe fazer sentenciosamente um discurso sobre o assun-
to de que o quero instruir. Começarei por impressionar a sua ima­
ginação; escolherie o momento, o local, os objectos mais favoráveis
para a impressão que pretendo fazer; chamarei, por assim dizer,
toda a natureza como testemunha das nossas conversas; invocarei
o testemunho do Ser eterno, de que ela é a obra, para a verdade dos
meus discursos; tomá-lo-ei como árbitro, entre Emílio e eu; mar­
carei o lugar onde estamos, os rochedos, os bosques, as montanhas
que nos rodeiam, como monumentos dos compromissos, dele e
meus; porei nos meus olhos, na minha entonação, no meu gesto, o
entusiasmo e o ardor que lhe pretendo inspirar. Só depois disso, lhe 141
falarei e ele me escutará, enternecer-me-ei e ele ficará comovido.
Compenetrando-me da santidade dos meus deveres, tornarei
mais respeitáveis os seus; animarei a força do raciocínio com
imagens e figuras ; não serei dmorado e diuso em máximas, mas
abundante em sentimentos que tensbordam ; a minha razão ser�
grave e sentenciosa, mas o meu coração nunca dirá o bastante. E
então que, mostrando-lhe tudo quanto fiz por ele, o recordarei
como tendo-ofeito pormimmesmo, e ele verá, na minha terna afei­
ção, a razão de todos os meus cuidados. Que surpresa, que agita­
ção lhe proporcionarei, em mudando bruscamente de linguagem !
Em vez de lhe atrofiar a alma - falando-lhe sempre do seu pró­
prio interesse - será só do meu que lhe passarei a falar, e ainda
o enternecerei mais; inflamarei o seu jovem coração com todos os
sentimentos de amizade, de generosidade, de reconhecimento, a
que de origem e que são tão doces de alimentar. Apertá-lo-ei de
encontro ao meu seio, vertendo sobre ele lágrimas de enterneci­
mento; dir-lhe-ei: «Tu és o meu bem, meu filho, a minha obra; é da
tua felicidade que espero a minha; se frustrares as minhas es­
perancas, roubas-me vinte �nos da minha vida, e fazes a infelici­
dade dos meus filhos dias>>. E desta maneira que nos conseguimos
fazer escutar por um jovem, e qu e gravam os , no fundo do seu cora­
ção, a recordação do que lhe dizemos.
Até agora, procurei dar exem pios da maneira como um gover­
nante deve instruir o seu pupilo nas ocasiões difíceis. Tentei fazer
a mesma coisa, nesta; mas, após muitas tentativas, renuncio a lea,
convencido como estou de que a língua francesa é demasiado pre­
ciosa para poder suportar, num livro, a ingenuidade das primeiras
instruções sobre determinados assuntos.
Diz-se que a língua francesa é a mais casta de todas as línguas;
no meu entender, ela é a mais obscena: pois parece-me que a cas­
tidade de uma língua n ão consiste em evitar cuidadosamente as
frases desonestas, mas em não as ter. Efectivamente, para as
evitar, é preciso pensar nelas; e não existe nenhuma em que seja
difícil falar puramente, em todos os sentidos, além da francesa. O
leitor, sempre mais hábil para descobrir sentidos obscenos que o
autor para os afastar, escandaliza-se e sente-se chocado com tu­
do. Como seria possível que o que passa por ouvidos impuros não
contraísse a sua sujidade? Pelo contrário, um povo com bons cos­
tumes tem termos apropriados para cada coisa; e esses termos sã9
sempre honestos, porque são sempre utilizados honestamente. E
impossível imaginar linguagem mais modesta que a da Bíblia, pre­
cisamente porque, nela, tudo é dito com ingenuidade. Para tornar
indecentes as mesmas coisas, basta traduzi-las para a língua
francesa. O que devo dizer ao meu Emílio não terá bada que não
seja honesto e casto, para os seus ouvidos; mas, para sentir a mes­
ma coisa com a leitura, seria preciso ter um coração puro como o
142 seu. Chego mesmo a pensar que algumas reflexões sobre a verda�
deira pureza do discurso e sobre a falsa delicadeza do vício po­
deriam ocupar um lugar útil nas conversas de moral a que este
assunto nops conduz; pois que, ao aprender a linguagem da hones­
tidade, ele também deve aprender o da decêndia, e é realmente in­
dispensável que ele saiba por que motivo essas duas linguagens
são diferentes. Seja como for, digo que, em vez dos vãos preceitos
com que se enchem - antes de tempo - os ouvidos da juventude,
e de que ela troça na idade em que eles seriam apropriados, que se
espere, se se prepare o momento de se fazer ouvir; que, então, se
lhe expliquem as leis da natureza em toda a sua verdade; que se
lhe faça ver as sanções dessas mesmas leis nos males físicos e mo­
rais, que a sua infração atrai sobre os culpados; que falando-lhe
desse inconcebível mistério da geração, se acrescente à ideia da
atracção que o autor da natureza dá a esse acto a da afeição exclu­
siva que o torna delicioso, a dos deveres de fidelidade, de pudor,
que a envolvem e que redobram o seu encanto completanto o seu
objecto; que descrevendo-lhe o casamento, não unicamente como
a mais doce das sociedades, mas como o mais inviolável e o mais
santo de todos os contratos, se lhe diga decididamente todas as
razões que tornam um nó, tão sagrado, respeitável a todos os ho­
mens, e que cobrem de ódio e de maldição todo aquele que se atreve
a manchar a sua pureza; que se lhe mostre um quadro chocante e
real dos horrores do deboche, do seu estúpido embrutecimento, do
declive insensível pelo qual uma primeira desordem conduz a
todas, arrastando, assim, todos aqueles que a ela se entregam,
para a sua própria perda; que, digo eu, lhe mostremos, com evidên­
cia, como do gosto pela castidade dependem a saúde, a força, a cora­
gem, as virtudes, o próprio amor, e todos os verdadeiros bens do ho­
mem; garanto que, então tornar-lhe-em os essa mesma castidade
desejável e querida, e encontraremos o seu espírito dócil aos meios
que lhe daremos para a conservar: pois que, desde o momento em
que ela é conservada, respeitamo-la; só a desprezamos depois de
a termos perdido.
Não é verdade que a inclinação para o mal seja indomável, e
que a não possamos vencer antes de ter adquirido o hábito de a ela
sucumbir. Aurélio Victor afirma que vários homens, transporta­
dosde amor, compraram voluntariamente, pagandocom a própria
vida, uma noite com Cleópatra; e esse sacrifício não é impossível
à embriaguês da paixão. Mas supunhamos que o homem mais
furioso, e que menos comanda os seus sentidos, tenha visto o apa­
relho do suplício, certo de morrer nele quinze minutos depois; a
partir desse momento, não só esse homem se tornará superior às
tentações como não precisará de fazer grandes esforços para lhes
resistir: em breve, a horrenda imagem que as acompanhara des,­
viá-lo-á delas; e, sempre rechaçadas, elas deixarão de insistir. E
unicamente a tibieza da nossa vontade que faz a nossa fraqueza;
e sentimo-nos sempre fortes para fazer o que realmente deseja- 143
mos; volenti nihil difficile. Oh! Se detestássemos o vício, tanto
quanto amamos a vida, abster-nos-íamos tão facilmente de um
crime agradável como de um veneno mortal num manjar delicioso.
Como é possível que não se veja que, se todas as lições que se
dão a um jovem, sobre este assunto, não obtêm nenhum resultado,
é porque não são adaptadas para a sua idade, e porque, em cada
idade, o importante é revestir a razão com formas que a levem a ser
amada? Falai-lhe com gravidade, quando é necessário; mas que o
que lhe disserdes tenha sempre um interesse que o force a escutar­
-vos. Não combateis os seus desejos com sequidão; não abafeis a
sua imaginação: dirigia-a, para evitar que ela crie monstros. Fa­
lai-lhe do amor, das mulheres, dos prazeres; procedei de modo a
que ele encontre, nas vossas conversas, um encanto que lisongeia
o seujovem coração; não vos poupeis a esforços para vos tornardes
o seu confidente: só a esse título sereis verdadeiramente seu mes­
tre. A partir daí, deixai de recear que os vossos discursos o aborre­
çam; ele far-vos-á falar mais do que desejais.
Não duvido, nem por um instante, de que, se, a respeito destas
máximas, eu soube tomar todas as precauções necessárias para di­
zer ao meu Emílio coisas convenientes à conjuntura a que o pro­
gresso dos anos o transportou, ele não vá, por si próprio, ao ponto
a que o quero conduzir, que ele não se coloque solicitamente sob a
minha salvaguarda, e que ele não me diga - com todo o ardor d�
sua idade, atemorizado com os perigos de que se vê rodeado -: «Ü
meu amigo, meu protector, meu mestre, retomai a autoridade que
pretendeis depor no momento em que mais preciso que a conser­
veis; até agora, tinhei-la tido, por causa da minha fraqueza; a par­
tir deste momento, tê-la-eis por minha vontade, e, para mim, ele
ainda será mais sagrada. Protegei-me de todos os inimigos que me
cercam, e especialmente daqueles que trago comigo, e que me
atraiçoam ; velai pela vossa obra, a fim de que ela permaneça dig­
na de vós. Quero obedecer às vossas leis, continuo a querê-lo, é a
minha vontade constante: se alguma vez vos desobedecer, será
sem querer: tornai-me livre protegendo--m e das minhas paixões
que me violentam ; impedi-me de ser o seu escravo, e obrigai-me
a ser dono de mim mesmo, obedecendo, não aos meus sentidos mas
à m inha razão.
Quando tiverdes conseguido que o vosso pupilo chegue a estes
ponto (e, se ele lá não chegar, terá sido por vossa culpa), evitai
irritar-vos facilmente com ele, para que - se alguma vez o vosso
domínio lhe parecer excessivamente desagradável - ele não se
sinta no dire_ito de a ele se substrair, acusando--vos de o terdes sur­
preendido. E neste momento que a reserva e a gravidade virão a
propósito; e esse tom impressioná-lo--á muito mais, se for essa a
primeira vez que o tereis tomado com ele.
Então, dir-lhes-ei: «Jovem, tendes facilidade em tomar
144 compromissos dificeis; seria conveniente que começásseis por
conhecê-los, para terdes o direito de os tomar: ignorais o furor com
que os sentidos arrastam os jovens como vós para o abismo dos ví­
cios, com a atracção do prazer. Não possuís uma alma abjecta, bem
o sei; nunca violareis a vossa fé; mas quantas vezes vos arrepende­
reis de a terdes entregado! Quantas vezes amaldiçoareis aquele
que vos ama, quando, para vos salvar dos males que vos ameaçam,
ele se vir obrigado a dilacerar-vos o coração? Tal como Ulisses,
que, atraído pelo canto das Sereias e seduzido pela atracção dos
prazeres, pedia aos seus homens que o desamarrassem, querereis
cortar os elos que vos incomodam; importunar-me-eis com os vos­
sos queixumes; censurar-me-eis a minha tirania, quando eu, com
a maior ternura, me ocupar de vós; sÇi pensando em tornar-vos fe­
liz, atrairei s'obre mim o vosso ódio. O meu Emílio, não suportarei
nunca a dor de te ser odioso; mesmo a tua felicidade é cara de mais,
por esse preço. Bom jovem, pois não vedes que obrigando-vos a
obedecer-me, m.e obrigais a guiar-vos, a esquecer-me de mim pa­
ra me dedicar a vós, a não escutar nem os vossos lamentos, nem as
vossas censuras, a combater incessantemente os vossos desejos e
os meus? Impondes-me umjugo mais pesado que o vosso. Antes de
nos submetermos a eles, consultemos as nossas forças; levai o tem­
po de que precisardes, dai-me tempo para pensar, e sabei que o
mais demorado a prometer é sempre o mais fiel a cumprir.
Sabei também que quanto mais exigente vos mostrardes no
compromisso, mais facilitareis o seu cumprimento. Importa que o
jovem saiba que promete muito, mas que vós prometeis ainda
mais. Quando chegar o momento, e que ele tiver, por assim dizer,
assinado o contrato, mudai então de linguagem, ponde tanta do­
çura na vossa autoridade quanta a severidade que lhe anuncias­
tes. Dir-lhe-eis: «Meu jovem amigo, tendes falta de experiência,
mas arranjei-me para que a razão não vos faltasse. Encontrais­
-vos em estado de ver, por toda a parte, os motivos do meu compor­
tamento; para isso, basta esperar que vos sintais de sangue-frio.
Começai sempre por obedecer, e, a seguir, pedi-me contas das
ordens que vos dei; estarei preparado para vo-las apresentar, lo­
go que estiverdes em estado de me compreender, e nunca recearei
tomar-vos como árbitro, entre nós dois. Prometeis ser dócil, e eu
prometo só utilizar essa docilidade para vos tornar o mais feliz dos
homens. Tenho, como garante da minha promessa, o destino de
que desfrutastes até agora. Encontrai alguém da vossa idade que
tenha passado uma vida tão agradável quanto a vossa, e não vos
prometo mais nada.
Após o estabelecimento da minha autoridade, o primeiro cui­
d,.do que terei será a de afastar a neces,idade de a utilizar. Não me
pouparei a nenhum esforço para me introduzir, cada vez mais, na
sua confiança, para me tornar cada vez mais o confidente do seu
coração e o árbitro dos seus prazeres. Longe de combater as ten­
dências da sua idade, consultá-las-ei, para me tornar senhor de- 145

L. 8. 524 - 1 0
las; penetrarei nas suas vistas para as dirigir; não lhe procurarei,
à custa da presente, uma felicidade futura. Não pretendo que ele
seja feliz só uma vez, mas sempre, se for possível.
Aqueles que querem dirigir a juventude com sageza, para a
garantirem contra as armadilhas dos sentidos, inspiram-lhe o
horror pelo amor, e quase que se dispõem a considerar como um
crime, se, nessa idade, ela pensa nele; como se o amor tivesse sido
feito para os velhos! Todas essas lições enganosas que o coração
desmente não conseguem persuadir. O jovem, guiado por um ins­
tinto mais seguro, ri secretamente das tristes máximas a que fin­
ge aquiescer, e só espera pela oportunidade de demonstrar que eles
são vãs. Tudo isso é contra a natureza. Seguindo por uma direcção
oposta, atingirei, com mais certeza, o mesmo alvo. Não recearei li­
songear, nele, o doce sentimento de que se sente ávido; descrever­
-lho-ai como a suprema felicidade da vida, porque, verdadeira­
mente, ele assim é; ao descrever-lho, quero que ele se lhe entregue;
fazendo--lhe sentir o encanto que a união dos corações acrescenta
à atracção dos sentidos, desgostá-lo-ai da libertinagem, e torná­
-lo-ei sage, levando--o a apaixonar-se.
Como é preciso ser-se limitado para só ver, nos desejos nascen­
tes de um jovem, um obstáculo para as ligações da razão! Eu, eu
considero isso o verdadeiro sistema de o tornar dócil para essa§!
mesmas lições. Só as paixões conseguem dominar as paixões. E
através do seu império que se deve combater a sua tirania, e é sem­
pre da própria natureza que deveremos retirar os instrumentos
próprios para a dirigir.
Emílio não é feito para viver sempre solitário; membro da so­
ciedade, ele deve cumprir os seus deveres. Feito para viver com os
homens, precisa de os conhecer. Tem uma ideia do homem, em ge­
ral; resta-lhe conhecer os indivíduos. Sabe o que se faz no mundo:
falta-lhe ver como se vive nele. Chegou o momento de lhe mostrar
o exterior desse grande palco cujos jogos ocultos ele já conhece; dei­
xará de experimentar, por ele, a estúpida admiração de um jovem
estouvado, mas terá o discernimento de um espírito recto e justo.
As suas paixões poderão iludi-lo, certamente; quando é que elas
não iludem aqueles que a elas se entregam? Mas, pelo menos, não
será enganado pelas dos outros. Se as vir, vê-las-á com o olhar do
sage, sem ser arrastado pelos seus exemplos nem seduzido pelos
seus preconceitos.
Assim como há uma idade que é própria para o estudo das ciên­
cias, há outra para bem compreender os costumes do mundo.
Aquele que aprende esses costumes quandojovem de mais, segue­
-<>s durante toda-a sua vida, sem preferência, sem reflexão, e, em­
bora com aptidões, sem nunca saber exactamente o que faz . Mas
aquele que os aprende e que lhes compreende as razões, segue-os
com mais discernimento, e, por conseguinte, com maisjusteza e in­
146 dulgência. Entregai-me uma criança de doze anos que não saiba
absolutamente nada, e, quando ela chegar aos quinze, entregar­
-vo-la�i tão sabedora como aquele que instruístes desde a mais
tenra idade: a única diferença será que, enquanto que o saber do
vosso só estará na sua memória, o do meu estará no seu entendi­
mento. Domesmomodo, introduzi, na sociedade, umjovem de vin­
te anos; bem dirigido, dentro de um ano ele será mais amável e
mais judiciosamente polido que aquele que lá terá vivido desde a
sua infância; porque o primeiro, sendo capaz de compreender as
razões de todos os procedimentos relativos à idade, ao estado e ao
sexo - que constituem esses costumes - pode traduzi-los em
princípios e adptá-los aos casos não previstos ; contanto que o se­
gundo, tendo apenas a sua rotina como regra, sente-se embaraça­
do logo que tem de sair dela.
Todas as meninas francesas são educadas em conventos, até
que as casem. Alguém se aperceberá de que, em consequência dis­
so, elas sintam dificuldades para se adaptarem a essas novas ma­
neiras que lhes são tão desconhecidas? E deverão criticar-se as
mulheres de Paris, por terem um ar desajeitado, acanhado, e por
ignorarem os usos do mundo, quando neles não foram educadas
desde a infância? Esse preconceito vem das próprias pessoas do
mundo, que, como não conhecem nada que seja mais importante
que essa pequena ciência, imaginam - erradamente - que não
deve ser ensinada cedo de mais.
É verdade que também não se deve esperar muito para a en­
sinar. Quem tenha passado toda a sua juventude longe da alta ro­
da, passa o resto da sua vida a viver nela com um ar acanhado e
constrangido, tem propósitos sempre fora de propósito, maneiras
desajeitadas e sem graças, que não desaparecem com o hábito de
nela viver, e que só conseguem adquirir um novo aspecto ridículo,
pelo esforço que fazem para se livrar delas. Cada espécie de ins­
trução tem a sua época própria, que é preciso conhecer, e os seus
perigos, que se devem evitar. E sobretudo para esta que eles se
reúnem ; mas, para o proteger, também não exponho a ela o meu
pupilo, sem ter tomado todas as precauções.
Quando o meu método preenche, com o mesmo objecto, todos
os intentos, e quando, eludindo um inconv�niente, ele previne,ou­
tro, concluo que é bom e que tenho razão. E o que creio ver no que
ele, aqui, me sugere. Se pretender ser austero e seco com o meu pu­
pilo, perderei a sua confiança, e, em breve, ele esconder-se-á de
mim. Se seu quiser ser complacente, fácil, ou fechar os olhos, de
que lhe serve estar sob a minha protecção? Com isso, não farei mais
que autorizar a sua desordem e aliviar a sua consciência, à custa
da minha. Se o introduzo no mundo - com a única finalidade de
o instruir - ele instruir�se-á mais do que eu quero. Se o mante­
nho afastado dele até ao fim, o que terá ele aprendido comigo? Tal­
vez tudo, excepto a arte mais necessária ao homem e ao cidadão,
que é a de saber viver com os seus semelhantes. Se eu atribuir a es- 147
tes cuidados uma utilidade muito remota, ela não servirá de nada,
para ele que só se preocupa com o presente. Se me contentar em for­
necer-lhe distracções, que bem lhe faço? Ele amodorra-se e não
aprende nada.
Nada disso. Só o meu expediente é que provê a tudo. «Ü teu
coração», digo ao jovem, «precisa de uma companheira; tratemos
de procurar a que te convém : talvez não a encontremos facilmen­
te, porque o verdadeiro mérito é sempre raro; mas não nos preci­
pitemos nem percamos a esperança. Certamente que há uma e
acabaremos por encontrá-la, ou, pelo menos, encontraremos a que
m ais se pareça com ela.» Com um projecto tão lisonjeiro para ele,
introduzo-o na sociedade. Que mais'preciso dizer-lhe? Não vedes
que fiz tudo?
Descrevendo-lhe a prometida que lhe destino, bem podeis pen­
sar que me saberei fazer escutar, que saberei tornar-lhe agradá­
vel e queridas as qualidades que ele deve amar, que saberei dispôr
todos os seus sentimentos para o que ele deve procurar ou evitar.
Seria preciso que eu fosse o mais desajeitado dos homens, se não
conseguisse que ele se se apaixonasse antecipadamente, sem
saber por quem. Pouco importa que o objecto que lhe descreverei
seja imaginário; basta que o desgosto daqueles que o poderiam
tentar, basta que ele encontre, por toda a parte, pontos de compa­
ração que o levam a preferir a sua quimera aos verdadeiros obj ec­
tos que lhe atrairão a atenção: e o que é verdadeiro amor, em si
mesmo, a não ser quimera, mentira, ilusãq? Ama-se muito mais a
im agem que se constrói que o objecto ao qual se ela aplica. Se se
visse, tal e qual ele é, o objecto que se ama, deixaria de haver amor,
neste mundo. Quando se deixa de amar, a pessoa que se amava
continua a ser a mesma que antes, mas não a vemos da mesma
maneira; o véu do prestígio cai e o amor desvanece-se. Ora, forne­
cendo o objecto imaginário, sou senhor de fazer comparações, e
facilmente impeço a ilusão dos objectos reais.
Isto não significa que eu queira que se engane um jovem, des­
crevendo-lhe um modelo de perfeição que não pode existir; mas es­
colherei de tal modo os defeitos da sua prometida, que eles lhe con­
virão, que eles lhe agradarão e lhe servirão para corrigir os seus.
também não quero que lhe mintam, afirmando enganosamente
que o objecto que lhe foi descrito não existe; mas se ele se compraz
com a imagem, em breve lhe desejará um original. Do desejo à su­
posição, o trajecto é fácil; bastam algumas descrições hábeis que,
sob traços mais sensíveis, darão a esse objecto imaginário um
grande ar de veracidade. Gostaria até de lhe dar um nome: diria,
rindo: «Chamemos Sophie à vossa futura prometida: Sophie é um
nome de bom augúrio: mesmo que aquel a que escolherdes não o
tenha, pelo menos será digna de o usar; poderemos dar-lhe essa
honra, de antemão». Depois de todos estes pormenores, se, sem
148 afirmardes, sem negardes, arranjardes pretextos, as suas suspei-
tas transformar-se-ão em certeza; convencer-se-á de que não lhe
quereis revelar o segredo da esposa que lhe é destinada, e de que
só a verá quando vier o momento oportuno. Se ele chegar a esse
ponto, e se tiverdes bem escolhido os traços que é preciso descre­
ver-lhe, o resto é fácil; podeis expô-lo na sociedade, quase sem pe­
rigo: protegei-o unicamente dos seus sentidos, que o seu coração
está em segurança.
Mas, quer ele personifique ou não o modelo que eu soube tor­
nar-lhe amável, esse modelo - se tiver sido bem feito - não o le­
vará a interessar-se menos por tudo quando se lhe assemelha, e
a afastar-se de tudo quanto não se lhe parece, como se fosse um
verdadeiro objecto. Que vantagem, para preservar o seu coração
dos perigos aos quais a sua pessoa deve ser exposta, para reprimir
os seus sentidos através da sua imaginação, e, sobretudo, para o
arrancar a essas doadoras de educação que a fazem pagar tão cara,
e só formam um jovem para a cortesia retirando-lhe toda a hones­
tidade! Sophie é tão modesta! Com que olho verá ele esses avanços?
Sophie á tão simples! Como apreciará ele os ares delas? Há uma
distância exageradamente grande entre as suas ideias e as suas
observações , para que estas consigam alguma vez ser perigosas
para ele.
Todos aqueles que falam da educação das crianças seguem os
mesmos preconceitos e as mesmas máximas, porque observam
mal e reflectem ainda mais mal. Não é nem pelo temperamento,
nem pelos sentidos que começa o desregramento da juventude, é
pela opinião. Se aqui tratássemos dos rapazes que são educados
em colégios e das meninas que são educadas nos conventos, eu de­
monstraria que isso é verdade, mesmo em relação a estas; porque,
de entre as primeiras lições que recebem uns e outras, as únicas
que darão fruto, são as do vício; e não é a natureza que os corrom­
pe, é o exemplo. Mas abandonemos os pensionistas dos colégios e
dos conventos aos seusmaus costumes; estesnunca terãoremédio.
Refiro-me unicamente à educação doméstica. Tomai, como exemplo,
um jovem honestamente educado em casa de seu pai, na província,
e observai-o no momento em que ele chega a Paris, ou em que ele
entra na sociedade; vereis que pensa bem das coisas honestas e que
tem a vontade tão são como a razão; vereis que sente desprezo pe­
lo vício e horror pelo deboche; só de ouvir a palavra prostituta, ve­
reis nos seus olhos o escândalo da inocência. Afirmo que não há um
único que seja capaz de se decidir a entrar, sozinho, nas tristes ca­
sas dessas infelizes, mesmo que saiba para que servem e sinta es­
sa necessidade.
Daí a s<>is meses, considerai o mesmo jovem; não o reconhe­
cereis, propósitos livres, m áximas inconvenientes, ares indepen­
dentes, levariam a tomá-lo por outro homem, se os gracejos que
formula sobre a sua primeira simplicidade, a vergonha que mos-
tra sentir quando lha recordam, não mostrassem que se trata do 149
mesmo jovem, que cora por ter sido o que foi . Oh! Como se formou,
em tão pouco tempo! De onde lhe vem uma mudança tão grande e
tão brusca? Do progresso do temperamento? O seu temperamen­
to não teria feito o mesmo progresso na casa parterna? E, certa­
mento que, lá, ele não teria adquirido esse tom, nem aprendido es­
sas máximas . Dos primeiros prazeres dos sentidos? Pelo contrário:
quando um jovem se começa a entregar a eles, torna-se receoso, in­
quieto; evita-se a luz do dia e o ruído. As primeiras voluptuosida­
des são sempre misteriosas, o pudor tempera-as e esconde-as: a
primeira amante não toma um jovem descarado mas tímido.
Completamente absorvido num estado tão novo para ele, o jovem
recolhe-se para o saborear, e receia constantemente perdê-lo. Se
é ruidoso, é porque não é voluptuoso nem terno; se se gaba dele, é
porque ainda não gozou.
Só outras maneiras de pensar podem ter produzido esses efei­
tos. O seu coração continua a ser o mesmo, mas as suas opiniões
mudaram. Os eus sentimentos, mais lentos a alterarem-se, aca­
barão por se modificar, graças a elas; e só então ele estará verda­
deiramente corrompido. Mal entra na sociedade, recebe dela uma
segunda educação, completamente oposta à primeira, através da
qual aprende a desprezar o que respeitava e a respeitar o que des­
prezava: levam-no a considerar as lições que recebeu de seus pais
e dos seus mestres como uma gíria pendatesca, e os deveres que
eles lhe pregaram como uma moral pueri que se deve desdenhar
quando se é adulto. l'or honra, crê-se obrigado a modificar o seu
comportamento; torna-se empreendedor sem desejos e fátuo por
falsa vergonha. Troça dos bons costumes antes de ter tomado gos­
to pelos maus, e gaba-se de deboche, sem saber ser debochado.
Nunca olvidarei o que me disse um jovem oficial dos guardas suí­
ços, que se irritava com os ruidosos prazeres dos seus camaradas,
e que não se atrevia a recusar-se a eles, receando quetoçassem de­
le: «Exercito-me nisso», dizia ele, «como a tomar rapé, apesar da
minha repugnância: o gosto virá com o hábito; não devemos ser
eternamente crianças».
Assim, pois, é muito menos da sensualidade que da vaidade
que se deve preservar o jovem que entra no mundo: ele cede mais
ás tendências dos outros que às suas, e o amor-próprio faz mais li­
bertinos que o amor.
Posto isto, pergunto se, na terra inteira há algum que esteja
mais bem armado que o meu Emílio, contra tudo quando pode ata­
car os seus costumes, os seus sentimentos, os seus princípios; se há
algum que esteja mais em estado de resistir à corrente. Pois, con­
tra que sedução não""' êncontra ele em estado de defesa? Se os seus
desejos o arrastam para o sexo, nele não encontra o que procura,
e o seu coração preocupado retém-no. Se os seus sentidos o agitam
e o impelem, onde poderá ele satisfazê-los? O horror pelo adulté-
150 rio e pelo deboche afasta-<> tanto das mulheres públicas como das
mulheres casadas, e é sempre por um desses estados que começam
as desor.dens da juventude. Uma menina para casar pode ser co­
quete; mas não será descarada, não se lançará à cara de um jovem
que a pode desposar se a crê honesta; aliás, ela terá alguém para
a vigiar. Pelo seu lado, Emílio não estará completamente entregue
a si mesmo; ambos terão, pelo menos, como vigilantes, o receio e o
pudor, inseparáveis dos primeiros desejos; não passarão, brus­
camente, ás m aiores familiaridades, e não disporão do tempo ne­
cessário para percorrerem todas as etapas que a elas levam, sem
obstáculos. Para proceder diferentemente, será preciso que ele já
tenha visto o exemplo dos seus companheiros, que com eles tenha
aprendido a troçar da sua reserva, a tornar-se tão insolente como
eles. Mas, haverá algum homem, no mundo, que seja menos imi­
tador que Emílio? Que homem se deixa menos levar pelo tom bre­
jeiro que aquele que não tem nenhum preconceito e nada sabe dar
aos outros? Trabalhei vinte anos, para o armar contra os trocistas:
precisarão de muito mais tempo para o conseguirem enganar; por­
que, aos seus olhos, o ridículo não é mais que a razão dos tolos, e
nada torna mais insensível ao escárnio que estar acima da opinião.
Em vez de gracejos, ele precisa de razões; e, enquanto assim pen-
sar, não receio que jovens loucos mo depravem; tenho, do meu la-
do, a consciência e a verdade. Se for preciso que o preconceito se
acrescente a isso, uma dedicação que durou vinte anos também
tem algum peso: nunca conseguirão convencê-lo de que o aborre-
ci com vãs lições; e, num coração recto e sensível, a voz de um ami-
go fiel e sincero saberá apagar os gritos de vinte sedutores. Como,
nesse caso, só se tratará de lhe mostrar que eles o enganam, e que,
fingindo tratá-lo como um homem, eles o tratam verdadeiramen-
te como uma criança, mostrar-me-ei sempre simples, mas grave
e explícito nos meus raciocínios, a fim de que ele sinta que sou eu
que o trato como um homem. Dir-lhe-ei: «Bem vedes que só o vos-
so interesse- que também é o meu - dita os meus discursos; não
posso ter nenhui_m outro. Mas porque é que esses jovens vos que­
rem persuadir? E porque vos querem seduzir: não vos amam, não
estão minimamente interessados em vós; o seu único motivo é um
secreto despeito por verem que valeis mais do que eles; pretendem
rebaixar-vos à sua pequena medida, e quando vos criticam por vo!>
ceixardes governar é para poderem governar-vos eles próprios. E
possível que acrediteis que teríeis alguma coisa a ganhar com esaa
mudança? A sageza deles será, assim, tão superior, e a sua recen-
te amizade será mais firme que a minha dedicação? Para atribuir
qualquer valor às suas ironias, seria preciso poder atribuir algum
à sua autoridade; e que experiência têm eles para elevar as suas
m áximas mais alto que as nossas? Não fizeram mais do que imi-
tar outros estouvados, e, por sua vez, também querem ser imita-
dos. Para se colocarem acima dos supostos preconceitos de seus
pais, sujeitam-se aos dos seus companheiros. Não vejo o que ga- 151
nham com isso: mas vejo que, com esse comportamento, perdem,
certamente, duas grandes vantagens: a do afecto paterno, cujos
conselhos são ternos e sinceros, e a da experiência, que permite jul­
gar o que se conhece; pois que os pais já foram crianças e as crian­
ças ainda não foram pais.
«Mas crei-los sinceros, pelo menos nas suas loucas m áximas?
nem sequer isso, caro Emílio; enganam-se para vos enganarem ;
não estão de acordo consigo mesmo: os seus corações desmentem­
-nos constantemente, e, muitas vezes, as suas bocas contradizem-
-nos. Qualquer, de entre eles, que troça de tudo quanto é honesto,
sentir-se--i a desesperado se sua mulher pensasse como ele. Outro
incluirá, nessa indiferença pelos costumes, até os da mulher que
ainda não tem, ou, para cúmulo da infâmia, os da mulher que já
tem. Mas ide mais longe: falai-lhe de sua m ãe, e vede se ele acei­
taráde bom grado passar porserum filho adúltero e o filho deuma
mulher de m á vida, para desonrar o nome de uma família, para
roubar o seu património ao herdeiro natural; enfim, se ele deixa­
rá, impunemente, que lhe chamem bastardo. Qual, de entre eles,
desejará que se devolva a sua filha a desonra com que ele cobre a
de outrém? Não há nem um deles que não seja capaz até de aten­
tar à vossa própria vida, se, na prática, adoptásseis, P5lra com ele,
todos os princípios que se esforçam por vos inculcar. E assim que
acabam por demonstrar a sua inconsequência, e que se com preen­
de que nenhum crê no que diz. Eis algumas razões, querido Emílio:
pesai as deles - se é que eles as têm - e comparai. Se eu quises­
se utilizar - como eles -o desprezo e o escárnio, vê-los-íeis su­
portar o ridículo, talvez tanto e até m ais que eu. Mas não receioum
exame sério. O triunfo dos escarnecedores pouco dura; � verdade
permanece e o riso insensato deles deixa de se ouvir.••
Não podeis imaginar como possível que, aos 20 anos, Emílio se­
ja tão dócil. Como as nossas ideias são diferentes! Eu não concebo
como ele pode ter sido aos dez; pois que autoridade tinha eu sobre
ele, nessa idade? Foram-me necessários quinze anos de desvelos,
para conseguir obter esta influência sobre ele. Nessa altura, não
o educava: preparava--o para ser educado. Agora, é--o bastante pa­
ra ser dócil; reconhece a voz da amizade e sabe obedecer à razão.
É verdade que lhe deixo a aparência da independência, mas nun­
ca ele esteve mais dependente de mim, pois que está porque o quer
estar. Enquanto não me consegui tornar senhor da sua vontade,
fui--o da sua pessoa; nunca me separei dele. Agora, deixo--o, por ve­
zes, entregue a si mesmo, porque continuo a governá-lo. Ao deixá­
-lo, abraço--o e digo--lhe, num tom seguro: «Emílio, confio--te ao
meu amigo; entrego--te ao seu honesto coração; é ele que me pres­
tará contas de ti.»
Não é de um momento para o çutro que se conseguem corrom­
per afectos sãos que não sofreram nenhuma alteração precedente,
152 ou que se apagam princípios directamente criados com as primei-
ras luzes da razão. Se, durante a minha ausência, alguma modifi­
cação neles se opera, nunca é suficientemente duradoura, e nun­
ca será capaz de passar tão despercebida aos meus olhos, que eu
não me aperceba do perigo antes do mal, e que não esteja a tempo
de lhe trazer remédio. Assim como ninguém se deprava brusca­
mente, também não é de um momento para o outro que se apren­
de a dissimular; e se jamais houve algum homem que não tivesse
jeito para esta arte, é Emílio, que, durante toda a sua vida, nun­
ca teve uma oportunidade de dela se servir.
Através destes cuidados e de outros semelhantes, creio-o tão
bem protegido dos objectos desconhecidos e das máximas vulgares,
que preferiria vê-lo no meio da pior sociedade de Paris que sozinho
no seu quarto ou num parque, entregue a toda a inquietação da: sua
idade. Por mais bem que procedamos, de todos os inimigos que po­
dem atacar um jovem, o mais perigoso e o único que não podemos
afastar, é ele próprio; no entanto, esse inimigo só é perigoso por
nossa culpa; pois-como já mil vezes o disse -é unicamente pe­
la imaginação que os sentidos despertam. A sua necessidade não
é propriamente uma necessidade física: não é verdade que seja
uma verdadeira necessidade. Se nunca um objecto lascivo se
tivesse mostrado aos nossos olhos, se nunca uma ideia desonesta
tivesse aflorado ao nosso espírito, talvez que essa pretensa neces­
sidade não se tivesse feito sentir aos nossos sentidos; e teríamos
permanecido castos, sem tentações, sem esforço e sem mérito. Não
se sabe que fermentações surdas certas situações e certos espectá·
culos excitam no sangue da juventude, sem que ela própria seja ca­
paz de compreender a causa dessa primeira inquietação, que não
é fácil de acalmar, e que nãotarda em voltar. Cá por mim, quanto
mais reflicto nessa importante crise e nas suas causas-próximas,
ou remotas-,mais me convenço de queum solitário,educado num
deserto,sem livros, sem instrução e sem mulheres,ali moreria vir­
gem, fosse qual fosse a idade que tivesse atingido.
Mas, aqui, não se trata de um selvagem dessa espécie. Quan­
do se educa um homem, por entre os seus semelhantes e para a so­
ciedade, é impossível-e nem sequer é aconselhável-alimentá­
-lo sempre com essa salutar ignorância; e o que de pior há para a
sageza é ser meio-sábio. A recordação dos objectos que nos interes­
saram e as ideias que adquirimos seguem-nos até ao nosso retiro,
povoam-no, mesmo que o não queiramos, com imagens mais se­
dutoras que os próprios objectos,e tornam a solidão tão funesta pa­
ra aquele que para lá os leva quanto ela é útil para aquele que ne­
la se mantém sempre só.
Tendepoiscuidado comojoveme ele poderá defender-se de tu­
do o resto; mas é a vós que compete defende-lo de si próprio. Não
o deixeis só, nem de dia nem de noite, dormi, pelo menos, no seu
quarto: que ele só se vá deitar quando estiver a cair de sono e que
se levante da cama logo que desperta. Desconfiai do instinto, se 153
não continuardes a proceder assim: ele é bom, enquanto age só;
torna-se suspeito desde que se mistura com as instituições dos
homens; não é necessário destrui-lo: é preciso regulá-lo; e isso
talvez seja mais difícil que destrui-lo. Seria muito perigoso que ele
ensinasse ao vosso pupilo a iludir os seus sentidos e a suprir as
ocasiões de os satisfazer: se ele alguma vez conhecer esse perigo­
so suplemento, está perdido. A partir daí, terá sempre o coração e
o corpo enervados; transportará até ao túmulo os tristes efeitos
desse hábito, o mais funesto a que um homem possa estar sujeito.
Certamente que, ainda seria preferível... Se os furores de um tem­
peramento ardente se tornam irredutíveis, meu caro Emílio, las­
timo-te; mas não hesitarei nem um momento; não, não suportarei
que a finalidade da natureza seja iludida. Se for preciso que um ti­
rano te subjugue, prefiro entregar-te àquele de que te posso livrar:
seja o que for que acontecer, livrar-te-ei mais facilmente das mu­
lheres que de ti mesmo.
Até aos 20 anos, o corpo, em crescimento, precisa de toda a sua
substância: nesse momento, a continência está na ordem da na­
tureza, e só se falta a ela à custa da sua constituição. A partir dos
vinte anos a continência é um dever de moral; é importante, para
aprender a dominar-se a si próprio, a permanecer senhor dos seus
apetites. Mas os deveres morais têm as suas modificações, as suas
excepções, as suas regras. Quando a fraqueza humana torna uma
alternativa inevitável, dos dois males demos a preferência ao
menor; seja como for, mais vale cometer uma falta que contrair um
vício.
Lembrai-vos de que, agora, não é do meu pupilo que estou a fa­
lar, mas do vosso. As suas paixões, que deixastes fermentar, sub­
jugam-vos: cedei-lhes, pois, abertamente, e sem disfarçar a sua
vitória. Se lha souberdes mostrar no que ela tem de verdade, ele
sentir-se-á menos orgulhoso que envergonh ado, e tereis adquiri­
do o direito de o guiar durante o seu desvario, para, pelo menos, lhe
fazerdes evitar os precipícios. Importa que o pupilo não faça nada
que o governante nãosaiba e não queira, nem sequer o que é mal.
E é cem vezes preferível que o governante aprove uma falta e se
engane a que seja enganado pelo seu pupilo e que a falta seja come­
tida sem que ele o saiba. Quem crê ter de fechar os olhos sobre al­
guma coisa, em breve se vê forçado a fechá-los sobre tudo: o primei­
ro abuso que é tolerado traz outro; e essa cadeia tem como resul­
tado o derrube de toda a ordem e o desprezo por todas as leis.
Um outro erro que já combati, mas que nunca abandonará os
espíritos tacanhos, é aectar constantemente a dignidade magis­
tral e pretender passar por um homem perfeito, no espírito do seu
pupilo. Esse método é despropositado. Como é possível que eles
não vejam que, pretendendo reforçar a sua autoridade, a destroem;
que, para conseguirem fazer que dizem sej a ouvido, é necessário
154 colocar-se no lugar daqueles a quem se dirigem, e que é preciso ser
homem para saber falar ao coração humano? Todas essas pessoas
perfeitas não influenciam nem persuadem: pensa-se sempre que,
para elas, é muito fácil combater paixões que não experimentam.
Mostrai as vossas fraquezas ao vosso pupilo, se pretendeis curá-lo
das que ele tem; que ele assista, em vós, aos mesmos combates que
lee trava, e que não possa dizer, como os outros: «Esses velhotes,
despeitados porjá não seremjovens, querem tratar osjovens como
se estes fossem velhotes: e, porque todos os seus desejos estão ex­
tintos, consideram os nossos como crimes.»
Montaigne relata que, um dia, perguntou, ao senhor de Lan­
gey, quantas vezes nas suas negociações com a Alemanha ele se
embriagara, ao serviço do rei. Tenho muita vontade de perguntar,
ao governante de certojovem, quantas vezes entrou num lugar mal
afamado, ao serviço do seu pupilo. Quantas vezes? Engano-me. Se
a primeira não retira, para sempre, ao libertino, o desejo de lá vol­
tar, se dele não sai com o arrependimento e a vergonha, se não vai
verter no vosso seio torrentes de lágrimas, abandonai-o imediata­
mente; ou ele não é mais do que um monstro, ou vós não passais de
um imbecil; nunca lhe servireis de nada. Mas deixemos estes ex­
pedientes extremos, tãotristes quanto perigosos, e que em nada se
relacionam com a nossa educação.
Quantas precauções se devem tomar com um j ovem de bom
nascimento, antes de o expor ao escândalo dos costumes do século!
Essas precauções são penosas, ll}as indispensáveis; é a negligên­
cia neste assunto que perde toda a juventude; é pela desordem da
primeira idade que os homens degeneram, e que os vemos torna­
rem-se no que, actualmente, são. Vis e covardes nos seus próprios
vícios, têm pequeninas almas, porque os seus corpos usados oram
corrompidos muito cedo; mal lhes resta vida suiciente para se mo­
verem. Os seus subtis pensamentos m arcam espíritos sem estoo;
são incapazes de sentimentos grandes e nobres; nãotêm, nem
simplicidade nem vigor; abjectos em todas as coisas, e vilmente
m aldosos, só são vãos, tratantes, falsos; nem sequer têm suficien­
te coragem para serem ilustres celerados. Tais são os desprezíveis
homens que a devassidão dajuventudeforma: se, entre eles, se en­
contrasse um único que soubesse sertemperante e sóbrio, que sou­
besse no meio deles - preservar o seu coração, o seu sangue e os
seus costumes, do contágio do exemplo, aos trinta anos esmagaria
todos esses insectos e tornar-se-ia seu senhor com menos dificul­
dades que as que teve para não deixar de ser o seu.
Por pouco que o nascimento e a fortuna tenham feito por
Emílio, ele seria esse homem, se quisesse sê-lo: mas desprezá-los ­
-ia de mais, para se dignar dominá-los. Vejamo-lo, agora, entre
eles, entrando na sociedade, não para nela brilhar, mas para a
conhecer e para nela encontrar uma companheira digna dele.
Pouco importará a categoria com que ele tenha nascido, porque
seja qual for a sociedade em que fizer o seudebute, a sua entrada 155
será sim pies e apagada: Deus não permita que ele tenha a infelici­
dade de nela brilhar! As qualidades que impressionam à primeira
vista não são as que ele tem ; não as tem nem as quer ter. Atribui
pouquíssimo valor aos julgamentos dos homens e menos ainda aos
seus preconceitos; além disso, nãoestá interessado em que o esti­
mem antes de o conhecerem. A sua maneira de se apresentar não
é nem modesta nem pretenciosa: é natural e franca; nãoconhece
embaraço nem fingimento e, no meio de um grupode pessoas, por­
ta-se da mesma m aneira que se estivesse só e sem testemunhas.
Será, por isso, grosseiro, desdenhoso, desatento para com os ou­
tros? Exactamente o contrário; se, quando só, nãoconsidera os ou­
tros homens como não valendo nada, por que motivo eles nãohave­
riam de contar para ele, vivendo entre eles? Não os prefere a si
mesmo, pelas suas maneiras, porque nãoos prefere a si mesmo, no
seu coração; mas também não lhes demostra uma indiferença que
está muito longe de sentir; embora não empregue as fórmulas de
cortesia, emprega as da humanidade. Nãogosta de ver ninguém
sofrer; não oferecerá o seu lugar a outro, por afectação, mas ce­
der-lho-á de boa vontade, por bondade, se, vendo-o esquecido,
pensa que esse esquecimento o mortifica; porque, ao meu jovem,
custar-lhe-á menos permanecer de pé voluntariamente que ver o
outro ficar de pé, pela força das circunstâncias.
Embora, geralmente, Emílio não estime os homens, não se
mostrará desdenhoso para com eles, porque os lastima e se compa­
dece deles. Não lhes podendo proporcionar o gosto pelos verdadei­
ros bens, deixa-lhes os bens da opinião com que eles se contentam,
receando que, retirando-lhos sem interesse nenhum, os torne
mais infleizes do que já eram. Por conseguinte, não é nem alterca­
dor nem contrariante; também não é complacente nem lisonjea­
dor; diz a sua opinião sem combater a de ninguém, porque ama a
liberdade acima de tudo, e porque a franqueza é um dos seus mais
belos direitos.
Fala pouco, porque não está interessado em que se ocupem de­
le, e, pelo mesmo motivo, só diz coisas úteis: se assim não fosse, o
quê que o levaria a falar? Emílio é excessivamente instruído para
poder ser tagarela. A grande lábia vem necessariamente, ou da
pretensão à espirituosidade- de que falarei a seguir -ou do valor
que se atribui a bagatelas, em que, tolamente, se crê que os outros
estão tão interessados como nós. Aquele que conhece um número
suficiente de coisas, e que sabe dar a cada uma o seu justo valor,
nunca fala de mais; pois também sabe apreciar a atenção que se lhe
presta e o interesse que os seus discursos podem merecer. Geral­
mente, as pessoas que poucç sabem falam muito, e as pessoas que
sabem muito falam pouco. E natural que um ignorante considere
importante tudo quanto sabe, e o diga a toda a gente. Mas um ho­
mem instruído não mostra facilmente o seu repertório; teria coisas
156 de mais a dizer, e vê ainda mais coisas a dizer depois dele: cala-se.
Longe de chocar as m aneiras dos outros, Emílio adopta-as de
boa vontade, não para parecer instruído dos co!3tumes nem para
afectar os ares de um homem cortês, mas, pelo contrário, para que
não o notem, para evitar dar nas vistas; e nunca se sente tanto à
sua vontade como quando ninguém lhe presta atenção.
Embora entre na sociedade, ignora absolutamente os costu­
mes dela; mas nem por isso se sente tímido e receoso; se se esqui­
va, não é porque se sinta embaraçado, é porque p ara bem ver é pre­
ciso não ser visto; pois que o que pensam dele não o interessa na­
da, e o ridículo não lhe mete medo nenhum. Daí se segue que, es­
tando sempre calmo e de sangue-frio, não se perturba com uma
vergonha que não tem razão de ser. Quer olhem para ele ou não,
faz sempre, o mais bem que sabe, tudo quanto faz ; e, sempre me­
tido consigo mesmo, para bem observar os oturos, àprende as suas
maneiras com uma facilidade que os escravos da opinião não con­
seguem ter. Pode-se dizer que ele adquire os hábitos do mundo
precisamente porque pouco caso faz dele.
No entanto, não vos enganeis a respeito do seu comportamen­
to, e não o compareis com a dos vossos jovens agradáveis; é firme,
e não pretencioso; as suas m aneiras são livres e não desdenhosas:
o ar insolente só os escravos o têm, a independência não tem afec­
tação. Nunca vi nenhum homem que tivesse o orgulho na alma
mostrá-lo no seu comportamento: essa afectação é muito mais pró­
pria das almas vis e vãs, que só podem impor-se dessa m aneira. Li,
num livro, que, um dia, o famoso Marcel, vendo entrar um es­
trangeiro no seu salão, lhe perguntou de que país era: «Sou inglês>>,
respondeu o estrangeiro. «Vós, Inglês!>>, exclamou o bailarino; «Se­
ríeis dessa ilha onde os cidadãos tomam parte na administração
pública e são uma porção do soberano poder1 !? Não, caro senhor;
essa cabeça baixa, esse olhar tímido, essa maneira de andar hesi­
tante, só me indicam o escravo intitulado de um eleitor».
Não sei se essa conclusão demonstra um grande conhecimen­
to da verdadeira relação que existe entre o carácter de um homem
e a sua aparência. Cá por mim - que não tenho a honra de ser
m estre de danca -, teria pensado exactamente o contrário. Teria
dito: «Este Inglês não é um cortesão, nunca ouvi dizer que os cor­
tesãos andassem de cabeça baixa e com passo hesitante: um ho-

1
Como se houvesse cidadãos que não fossem membros da cidade e
que, como tais, não fizessem parte na autoridade soberana! Mas os Fran­
ceses, tendo achado bem usurpar esse respeitável nome de ddadão -ou­
trora devido aos membros das cidades gaulesas -desnaturaram-lhe o
significado, ao ponto de não se perceber mais nada. Um homem que aca­
ba de me escrever muitos disparates contralaNouvelle Héloise ornamen­
tou a sua assinatura com o título de cidadão de Paimboeuf, e convenceu-
-se de que me tinha feito uma excelente f acécia. 157
mem que se mostra tímido em casa de um dançarino pode não o ser
na Câmara dos Comuns». Certamente que esse senhor Marcel con­
sidera todos os seus compatriotas como Romanos.
Quando se ama deseja-se ser amado. Emílio ama os homens,
e, por conseguinte, quer agradar-lhes. Com muitos mais motivos,
deseja agradar às mulheres; a sua idade, os seus costumes, o seu
projecto, tudo concorre para, nele, alimentar esse desejQ. Digo os
seus costumes, pois que eles têm muita importância nisso; os ho­
mens que'os possuem são os verdadeiros adoradores das mulheres.
Não têm, como os outros, um não sei quê de galantaria; mas têm
um interesse mais sincero, mais terno, e que parte do coração. De
entre cem mil debochados, eu seria capaz de distinguir - ao lado
de uma mulher - o único homem que tivesse costumes e que do­
minasse a natureza. Imaginai como deve ser Emílio, com um tem­
paramento absolutamente novo, e tantas razões para lhe resistir!
Quando ao lado delas, creio que, por vezes, se sentirá tímido e
embaraçado; mas certamente que esse embaraço não lhes desa­
gradará, e as menos brejeiras não deixarão de dele desfrutar e de
o aumentar. De resto, o seu interesse mudará sensivelmente de
forma, consoante os estados. Mostrar-se-á mais modesto e mais
respeitador para as mulheres, mais animado e mais terno para as
JOVc ' nqsadoiras. Nunca se esquece do objecto das suas buscas e
...

é sempre às que lho recordam que ele dedica mais atenção.


Ninguém será mais respeitador, sob todos os aspectos razoá­
veis, de tudo quanto respeita à ordem da natureza, e mesmo à boa
ordem da sociedade; mas os primeiros serão sempre preferidos aos
outros; e respeitará mais um particular mais velho que ele que um
m agistrado da sua idade. Por conseguinte, sendo sempre um dos
mais jovens, nas sociedades onde se encontrará, será sempre um
dos mais modestos, não pela vaidade de parecer humilde, mas por
um sentimento natural e baseado na razão. Não terá um imper­
tinente saber-viver de um jovem fátuo, que, para divertir a com­
panhia, fala mais alto que os sages e corta a palavra aos antigos;
por sua parte, não dará azo à resposta que um gentil-homem ido­
so deu a Luís XV, depois de este lhe ter perguntado que século ele
preferia, se o seu oueste: «Majestade, passei a minha juventude a
respeitar os velhos, e vejo-me obrigado a passar a minha velhice
a respeitar as criancas».
Tendo uma alma terna e sensível - mas não avaliando nada
pelas regras que a opinião estabeleceu -embora goste de agradar
aos outros, preocupar-se-á pocuo em ser considerado por eles. Daí
se segue que será mais afectuoso que polido, q ue nunca se dará
ares nem se mostrará pretencioso, e que se sentirá mais sensibi­
lizado com uma carícia que com mil elogios. Pelas mesmas razões,
não negligenciará nem as suas maneiras nem o seu comporta­
mento; poderá mesmo apresentar-se com algum requinte, na sua
158 maneira de vestir, não para parecer um homem de gosto, mas p a-
ra tornar a sua figura agradável; não recorrerá ao quadro doura­
do, e nunca a insígnia da riqueza manchará o seu trajo.
Como se vê, nada disto exige, da minha parte, uma exibição de
preceitos, e é apenas um efeito da sua primeira educação. Envol­
vem-se num grande mistério os costumes da sociedade; como se,
na idade em que se começa a frequentá-la, não adquiríssemos
esses costumes naturalmente, e como senãofosse num coração ho­
nesto que se devessem procurar as suas primeiras leis! A verdadei­
ra cortesia consiste em mostrar benevolência para com os homens;
evidencia-se facilmente, naquele que a tem; é aquele que a não
tem que precisa de imitar, com arte, as suas aparências.
«Ü mais nefasto efeito da cortesia normal é ensinar a arte de
não precisar das virtudes que ela imita. Se, na educação, nos ins­
piram a humanidade e o hábito de fazer o bem, teremos a cortesia,
ou correr à falsidade.
«Em vez de sermos artificiosos para agradar, bastar-nos-á
sermos bons; em vez de sermos hipócritas para lisongear as fra­
quezas dos outros, bastar-nos-á sermos indulgentes.
«Aqueles para com quem usarmos de tais procedimentos, não
se sentirão nem enobrecidos nem corrompidos; sentir-se-ão ape­
nas reconhecidos, e tornar-se-ão melhores.
Parece-me que, se há alguma educação que deva produzir a
espécie de cortesia que, aqui, exige M. Duelos, é aquela cujo plano
tenho traçado.
No entanto, concordo em que, só com máximas tão diferentes,
Emílio não será como toda a gente; e Deus permita que nunca o
seja! Mas naquilo que o diferenciar dos outros, não será nem abor­
recido nem ridículo: a diferença será sensível, sem por isso ser in­
cómoda. Emílio será, se assim o quiserdes, um amável desconhe­
cido: Formar-se-á. Com a continuação, todos se h abituarão aos
seus modos; e, yendo que ele não os modifica, também lhos perdoa­
rão, dizendo: E o feitio dele.
Não será festejado como um homem amável, mas amá-Io-ão
sem saberem por quê; ninugém gabará o seu espírito, mas de boa
vontade o tomarão como árbitro entre as pessoas de espírito; o seu
será claro e limitado; terá o sentido recto e a apreciação sã. Como
nunca persegue as novas ideias, não poderia pretender ter espíri-
to. Dei-lhe a entender que todas as ideias saiutares e verdadeira­
mente úteis para os homens foram as primeiras a ser conhecidas,
que, desde os tempos imemoriais, constituem os únicos verdadei-
ros elos da sociedade, e que, aos espíritos transcendentes, só res-
ta distinguir-se com ideias perniciosas e funestas para o género
humano. Essa maneira de se fazer admirar não lhe interessa: sa-
be onde deve encontrar a felicidade da sua vida, e em que medida
pode contribuir para a felicidade dos outros. A esfera dos seus
conhecimentos não se estende para além do que é proveitoso. O seu
caminho é estreito e bem definido; como não se sente tentado a dei- 159
xá-lo, fica confundido com aqueles que o seguem; não quer, nem
perder-se nem brilhar. Emílio é um homem de bom senso, e não
pertende ser outra coisa: por mais que se pretenda injuriá-lo com
esse título, ele sentir-se-á sempre honrado com ele.
Embora o desejo de agradar já não o deixe completamente in­
diferente à opinião dos outros, só considerará - dessa opinião ­
aquilo que se refira directamente à sua pessoa, sem se preocupar
com as apreciações arbitrárias que, como lei, apenas têm a moda
ou os preconceitos. Terá o orgulho de querer bem fazer tudo quan­
to faz, e mesmo de o querer fazer melhor do que os outros: na cor­
rida, quererá ser o mais rápido; na luta, o mais forte; no trabalho,
o mais competente; nos jogos de precisão, o mais hábil; mas pouco
se interessará pelas vantagens que não estiverem bem expressas
por si mesmas, e que precisam de ser constatadas pela apreciação
de outrém, como, por exemplo, ter m ais espírito que outro, falar
mais bem, ser mais sabedor, etc;; ainda menos pelas que não dizem
respeito à própria pessoa, como, por exemplo, pertencer a uma fa­
mília mais nobre, ser considerado m ais rico, mais merecedor de
crédito, mais respeitado, impor-se aos outros por um fausto m aior.
Amando os homens porque eles são os seus semelhantes,
amará especialmente aqueles que m ais se lhe parecem, porque se
sentirá bom; e, avaliando dessa semelhança através da conformi­
dade de gostos nas coisas morais, em tudo o que diz respeito ao bom
carácter, sentir-se-á muito satisfeito em ser aprovado. Não pen­
sará exactamente: «Alegro-me porque aprovam o que fiz de bem;
alegro-me porque as pessoas que me respeitam se respeitam:
enquanto pensarem desta maneira tão sã, será belo obter a sua es­
tima>>.
Estudando os homens pelos seus costumes na sociedade, como
anteriormente os estudava através das suas paixões na História,
terá frequentes oportunidades de reflectir sobre o que agrada ou
o que magoa o coração humano. Ei-lo a filosofar sobre os princípios
·

do gosto; e eis o estudo que lhe convém, durante essa época.


Quanto mais longe vamos procurar as definições do gosto, mais
nos desorientamos: o gosto não é mais do que a faculdade de ajuizar
do que agrada ou desagrada ao maior número. Se daí nos desviar­
mos, deixamos de saber o que ele é. Isto não significa que haj a m ais
pessoas com gosto que outras; pois que, embora a m aioria avalieju­
diciosamente cada objecto, há poucos homens que ajuízem como
ela, sobre todos eles; e, embora o concurso dos gostos mais genera­
lizados constitua o bom gosto, há poucas pessoas de gosto, assim
como há poucas pessoas belas, embora a reunião dos traços m ais
comvns faça a beleza.
E preciso notar que, aqui, não se trata daquilo de que se gosta
porque nos é útil nem do que se detesta porque nos incomoda. O
gosto só se exerce sobre as coisas indiferentes ou, quando muito,
160 que tenham um interesse de divertimento, e não sobre as que es-
tão relacionadas com as nossas necesidades: para avaliar estas,
não é indispensável o gosto: o apetite basta. Eis o que torna tão di­
fíceis, e - ao que parece - tão arbitrárias, as puras decisões do
gosto; pois que, posto de parte o instinto que o determina, deixam­
-se de ver os motivos das suas decisões. Ainda é preciso distinguir
as suas leis nas coisas morais e as suas leis nas coisas físicas. Nes•
tas, os princípios do gosto parecem absolutamente inexplicáveis.
\ Mas importa observar que há uma parte de moral em tudo quan­
j to se relaciona com a imitação!: assim se explicam as belezas que
parecem físicas mas que, realmente, não o são. Acrescentarei que
o gosto tem regras locais que, em mil coisas, o tornam dependente
dos climas, dos costumes, dos governos, das coisas de instituição;
que existem outros que dependem da idade, do sexo, do carácter,
e que é por isso que não devem ser discutidos.
O gosto é n atural a todos os homens, mas estes não o têm to­
dos na mesma medida; ele não se desenvolve em todos da mesma
m aneira, e, em todos, está sujeito a alterar-se por causas diversas.
A medida do gosto que se pode ter depende da sensibilidade que se
recebeu; a sua cultura e a sua forma dependem das sociedades em
que se viveu. Primeiramente, é preciso viver nas sociedades nume­
rosas, para poder estabelecer muitas comparações. Em segundo
lugar, é preciso sociedades de distracção e de ociosidade; porque,
nas de negócios, a regra não é o prazer mas o interesse. Em tercei­
ro lugar, são precisas sociedades em que a desigualdade não seja
excessivamente grande, em que a tirania da opinião esteja mode­
rada, e onde reine mais a volúpia que a vaidade; pois que, caso con­
trário, a moda abafa o gosto; e deixa-se de procurar o que agrada
para só se procurar o que distingue.
Neste último caso, deixa de ser verdade que o bom gosto seja
o da maioria. Porquê? Porqueo objecto muda. Então, a m aioria dei­
xa de ter opinião própria, passa a só julgar pela opinião daqueles
que crê mais esclarecidos que ela; aprova, não o que considera bem,
mas o que eles aprovaram. Em todas as ocasiões, fazei com que ca­
da homem tenha o seu próprio sentimento; e aquele que, por si só,
é mais agradável, terá sempre a maioria dos sufrágios.
Nos seus trabalhos, tudo quanto os homens fazem de belo é por
imitação. Todos os verdadeiros modelos do gosto estão na nature­
za. Quanto mais nos afastamos do mestre, mais os nossos quadros
ficam desfigurados. E então tiramos os nossos modelos dos objec­
tos que amamos; e o belo de fantasia, sujeito ao capricho e à auto­
ridade, passa a não ser mais do que aquilo que agrada aos que nos
guiam.

1 Isto está demonstrado num Essai sur ['origine des Zangues (Ensaio
sobre a origem das línguas), que encontrarão numa compilação dos meus
escritos. 161

L. B. 524-11
Aqueles que nos guiam são os artistas, os grandes, os ricos; e
o que os guia é o seu interesse ou a sua vaidade. Os últimos, para
ostentarem as suas riquezas, e os primeiros, para tirarem provei­
to disso, porfiam na procura de novos meios de despesa. Através
disso, o grande luxo estabelece o seu império e faz amar o que é di­
fícil e dispendioso; então, o pretenso belo, longe de imitar a natu­
reza, só o consegue ser à força de a contrariar. Eis como o luxo e o
mau gosto são inseparáveis. Em toda a parte em que o gosto for dis­
penqioso, também é falso.
E sobretudo, no comércio dos dois sexos que o gosto, bom ou
m au, adquire a sua forma; a sua cultura é um efeito necessário do
objecto desta sociedade. Mas, quando a facilidade de desfrutar
amorna o desejo de agradar, o gosto deve degenerar; e é essa, ao
que me parece, outra razão das mais sensíveis, por que o gosto es­
tá ligado aos bons costumes.
Consultai o gosto das mulheres nas coisas fisicas e que depen­
dem da avaliação dos sentidos; o dos homens, nas coisas morais e
que dependem mais do entendimento. Enquanto as mulheres fo­
rem o que devem ser, limitar-se-ão às coisas da sua competência,
e ajuizarão sempre bem; mas, desde que se começaram a estabe­
lecer como árbitros da literatura, desde que comecaram a ajuizar
dos livros e a escrevê-los com todo o entusiasmo, já não conhecem
mais nada. Os autores que consultam as sábias sobre os seus tra­
balhos podem ter sempre a certeza de que são mal aconselhados :
os galantes que as consultam sobre as m aneiras de vestir andam
sempre ridiculamente trajados. Em breve, terei a oportunidade de
falar dos verdadeiros talentos desse sexo, da m aneira de os culti­
var, e das coisas sobre as quais as suas opiniões poderão ser escuta­
das.
Eis as considerações elementares que determinarei como prin­
cípios, arrazoando com o meu Emílio, sobre uma m atéria que, na
circunstância em que ele se encontra e na busca que o ocupa, não
lhe é indiferente. E a quem deveria ela ser indiferente? O conhe­
cimento do que pode ser agradável ou desagradável aos homens
não é unicamente necessário àquele que precisa deles, mas tam­
bém àquele que pretende agradar-lhes para os servir; e a arte de
escrever não passa de um estudo ocioso, quando é utilizada para
fazer ouvir a verdade.
Se, para cultivar o gosto do meu pupilo, eu tivesse de escolher
entre países onde esta cultura ainda não nasceu e outros onde ela
já tivesse degenerado, seguiria a ordem retrógada; começaria por
fazê--l o visitaros últimos e tertninaria pelos primeiros . A razão pa­
ra esta escolha está em que o gosto se corrompe por uma delicade­
za excessiva que torna sensível a coisas que a maioria dos homens
não vê; essa delicadeza conduz ao espírito de discussão; pois que,
quanto mais se subtilizam os objectos, mais eles se multiplicam:
162 essa subtilidade torna o tacto mais delicado e menos uniforme.
Formam-se, então, tantos gostos quantas as pessoas que há. Nas
discussões sobre a preferência, a Filosofia e as luzes estendem-se;
e é desse modo que se aprende a pensar. Ai; observações finas só po­
dem serffeitas por pessoas muito relacionadas, tendo em conside­
ração que elas atingem, depois, todas as outras, e que as pessoas
pouco habituadas às sociedades numerosas esgotam nelas a sua
atenção sobre os grandes traços. Talvez, que presentemente, não
haj a um lugar policiado na terra em que o gosto geral sej a mais
mau que em Paris. No entanto, é nesta capital que o bom gosto se
cultiva; e editam-se poucos livros estimados na Europa cujo autor
não se tenha formado em paris. Aqueles que pensam que basta ler
os livros que lá se fazem enganam-se: aprende-se muito m ais nas
conversas dos autores que nos seus livros;� os próprios autores não
são aqueles com quem mais se aprende. E o espírito das socieda­
des que desenvolve uma cabeca que pensa e que transporta a vis­
ta tão longe quanto ela pode ir. Se tendes uma centelha de génio,
ide passar um ano em Paris; em breve, sereis tudo quanto podereis
ser, 9u nunca chegareis a ser nada.
E possível aprender a pensar nos lugares onde o mau gosto im­
pera; mas é preciso não pensar como aqueles que têm esse mau gos­
to, e é mui to difícil evitar que isso,aconteça, quando se convive com
eles durante demasiado tempo. E preciso aperfeiçoar, através de­
les, o instrumento que ajuíza, evitando utilizá-lo como eles. Não
me atreverei a polir o ajuizamento de Emílio, ao ponto de o alterar;
e, quando ele tiver o tacto bastante ino para sentir e comparar os
diversos gostos dos homens, será sobre objectos mais simples que
o levarie a fixar o seu.
Ainda o farei de mais longe, para lhe conservar um gosto pu­
ro e são. No tumulto da dissipação, arranjarei maneira de com ele
ter conversas úteis; e, dirigindo-as sempre para objectos que lhe
agradem, terei o cuidado de lhos tornar tão interessantes quanto
instrutivos .
Eis o momento da leitura e dos livros agradáveis; eis chegado
o tempo de lhe ensinar a fazer a análise do discurso, f.le o tornar
sensível a todas as belezas da eloquência e da dicção. E pouca coi­
sa aprender as línguas, só por si; a sua utiliz ação não é tão impor­
tante quanto s� pensa; mas o estudo das línguas conduz ao da gra­
m ática geral. E necessário aprender o latim, p ara bem conhecer o
francês; é preciso estudar e comparar um e outro, para compreen­
der as regras da arte de falar.
De resto, há uma certa simplicidade de gosto que vai direi ta ao
coração e que só se encontra nos escritos dos antigos. Na eloquên-
cia, na poesia, em toda a espécie de literatura, ele encontrá-las-á
-como na História-abundantes em coisas, e simples de julgar.
Os nossos autores, pelo contrário, dizem pouco e pronunciam
muito. Dar-nos constantemente a sua opinião como lei não é a ma­
neira de formar a nossa. A diferença entre os dóis gostos faz-se 163
sentir em todos os monumentos e até sobre os túmulos. Os nossos
estão cobertos de elogios; nos dos antigos, liam-se feitos.

Sta. viator; heroem calcas.

Se tivesse encontrado esteepitáfio num monumento antigo, te­


ria imediatamente adivinhado que ele era moderno; pois que não
há nada tão vulgar como os heróis, entre nós; mas, entre os antigos,
eles eram raros. Em vez de dizerem que um homem era um herói,
teriam relatado o que ele havia feito para o ser. Comparai o herói
desse epitáfio com o do efeminado Sardanaplo:

J'ai bâti Tarse etAnchiale en un jour,


et maintenant je suis mort.
(Num só dia, erigi Tarso eAnchiale,
e agora estou morto.)

Qual delas diz mais, na vossa opinião? O nosso estilo lapidário,


com a sua presunção, só serve para inspirar anões. Os antigos mos­
travam os homens ao natural, e via-se que eram homens. Xeno­
fonte, honrando a memória de alguns guerreiros mortos à traição
durante a retirada dos dez !lli l: Ils moururent, irréprochables dans
la guerre et dans l'amitié1• E tudo: mas, neste elogio tão breve e tão­
simples, considerai o que enchia o coração do autor. Maldito seja
aquele que não ache isto encantador!
No desfiladeiro das Termópilas, liam-se estas palavras, gra­
vadas numa placa de m ármore:

Passant, va dire à Sparte que nous sommes morts ici


pour obéir à ses saintes lois.
(Viajante, vai dizer a Esparta que morremos aqui
para obedecer às suas santas leis.)

Vê-se bem que não foi a Academia das inscrições que compôs
esta.
Estarei muito iludido, se o meu pupilo, que tão pouca impor­
tância atribui às palavras, não dedicar toda a sua atenção a estas
diferenças, e se elas n ão o influenciarem sobre a escolha das suas
leitu:ças. Influenciado pela m áscula eloquêncil! de Demóstenes, di­
rá: «E um orador••; mas, ao ler Cícero, dirá: «E um advogado».
Em geral, Emílio sentirá mais gosto pelos livros antigos que
pelos nossos; pela única razão de que, como foram o5 primeiro,, o5
antigos encontram-se mais perto da natureza e o seu génio é-lhes

164 1 Morreram, irrepreensíveis, tanto na guerra como na amizade.


mais próprio. Fosse o que fosse que tivessem podido dizer Ma
Motte e o abade Terrasson, não há nenhum verdadeiro progresso
da razão, na espécie humana, porque tudo quanto se ganha de um
lado se perde do outro; porque todos os espíritos partem sempre do
mesmo ponto, e porque o tempo que se emprega para saber o que
outros pensaram, como está perdido para aprendermos nós mes­
mos a pensar, temos m ais luzes adquiridas e menos vigor de espí­
rito. Os nossos espíritos são como os nossos braços, habituadas a
fazer tudo com ferramentas e nada por si sós. Fontenelle dizia que
toda essa discussão sobre os antigos e os modernos se reduzia a sa­
ber se as árvores de outrora eram maiores que as de hoje. Se a agri­
cultura tivesse mudado, esta pergunta não seria impertinente.
Depois de, assim, o ter levado a remontar às origens da pura
literatura, mostro-lhe também os esgotos nos reservatórios dos
modernos compiladores: jornais, traduções, dicionários; ele I anca
uma vista de olhos sobre tudo isso, e deixa-o para nunca mais lá
voltar. Para o contentar, faço-lhe ouvir a tagarelice das acade­
mias; faço-lhe notar que cada um daqueles que as compõem vale
sempre mais quando está só que quando está com o grupo: daí, ele
próprio retirará a consequência da utilidade desses belos estabe­
lecimentos.
Levo--o aos espectáculos, para que ele estude, não os costumes
mas o gosto; pois que é sobretudo aí que ele se mostra àqueles que
sabem reflectir. «Deixai os preceitos e a moral>>; dir-lhe-ei; «não é
aqui que deveis aprendê-los. O teatro não é feito para a verdade;
é feito para lisongear, para divertir os homens; não há nenhuma
escola onde tão bem se aprenda a arte de lhes agradar e de interes­
sar o coração humano. O estudo do teatro conduz ao da poesia; am­
bos têm exactamente o mesmo objecto>>. Se ele tiver uma centelha
de gosto por ela, com que prazer cultivará as línguas dos poetas, o
grego, o latim, o italiano! Para ele, esses estudos constituirão di­
vertimentos sem constrangimento, e isso só lhos pode facilitar;
ser-lhe-ão deliciosos, numa idade e em circunstâncias em que o
coração se interessa, com tanto prazer, por todos os géneros de be­
leza feitos para o interessarem . Imaginai, de um lado, o meu
Emílio, e, do outro, um descarado que foi educado num colégio, len­
do o quarto livro da Eneida, ou Tibulle, ou o Banquete, de Platão:
que diferenca! De que maneira o coraçjio de um se sente comovido
com o que nem sequer afecta o outro! O bom jovem! Pára, suspen­
de a tua leitura, vejo-te excessivamente comovido; gosto de ver que
a linguagem do amor te agrada, mas não que ela te desoriente; sê
homem sensível, mas sê homem sage. Se só fores um dos dois, não
és nada. De resto, que ele tenha êxito ou não nas línguas mortas,
nas belas-letras ou na poesia, pouco me importa. Não valerá me­
nos, se não souber nada disso, e não é de todas essas brincadeiras
que se trata, na sua educação.
A minha principal intenção, ao ensinar-lhe a sentir e a amar 165
o belo em todos os géneros, é nele fixar as suas afeições e os seus
gostos, impedir que os seus apetites naturais se alterem, e que ele
venha, um dia, a procurar na sua riqueza, os meios de ser feliz pois
que os deve encontrar mais perto de si. Noutra parte dos meus
escritos, disse que o gosto não passava da arte de se conhecer em
pequeninas coisas, e isso é miuto verdadeiro; m as, pois que é de um
tecido de pequeninas coisas que depende o prazer da vida, tais cui­
dados não são indiferentes; é através deles que aprendemos a en­
chê-la com os bens postos ao nosso alcance, em toda a verdade que
eles possam ter para nós. Com isto não me refiro aos bens morais
que dão a boa disposição à alma, mas unicamente a tudo quanto há
de sensualidade, de verdadeira voluptuosidade, deixando de par­
te os preconceitos e a opinião.
Para mais bem desenvolver a minha ideia, permiti-me que,
durante um momento, deixe Emílio, cujo coração puro e são já não
pode servir de regra a ninguém, e que procure, em mim mesmo, um
exemplo mais sensível e mais aproximado dos costumes do leitor.
Há estados que parecem mudar a natureza, e modificar - pa­
ra melhores ou para piores - os homens que a enchem. Um pol­
trão torna-se valente ao entrar no regimento de Navarra. Não é
apenas na vida militar que se adquire o espírito de corpo, e nem
sempre é em bem que os seus efeitos se fazem sentir. Pensei cem
vezes, e com p avor, que se tivesse actualmente a infelicidade de de- .
sempenhar certo cargo que sei, em certos países, amanhã seria,
quase inevitavelmente, tirano, concessionário, destruidor do povo,
nocivo ao príncipe, inimigo de toda a humanidade, de toda a equi­
dade, de todas as espécies de virtudes.
Da mesma m aneira, se fosse rico, teria feito tudo para me
tornar assim; por conseguinte, seria insolente e vil, sensível e deli­
cado só em relação a mim, impiedoso e duro para toda a gente,
espectador desdenhoso das misérias da populaça, pois que não de­
signaria de outra maneira os indigentes - para fazer esquecer
que, outrora, pertenci à sua classe. Enfim, faria da minha fortuna
o instrumento dos meus prazeres que seriam a minha única ocu­
pação; e até nisso seria como todos os outros.
Mas no que creio que diferiria miuto deles, é que seria mais
sensual e voluptuoso que orgulhoso e vão, e que me entregaria
mais ao luxo de nada fazer que ao luxo de ostentação. Sentiria até
uma certa vergonha em ostentar excessivamente a minha rique­
za, e creria sempre ver o invejoso que esmagaria com o meu faus­
to, a dizer ao ouvido dos seus vizinhos: Eis um tratante que receia
muito não ser conhecido como tal.
Da imensa profusão de bens que cobr<>m a. l:êrra., procuraria. o
que me é mais agradável e de que mais bem me posso apropriar.
Para isso, a primeira utilização da minha riqueza seria de comprar
o lazer e a liberdade, a que acrescentaria a saúde, se ela estives­
166 se à venda; mas como ela só se compra com a temperança, e que,
na vida, não há verdadeiro prazer sem a saúde, seria temperante
por sensualidade.
Permaneceria sempre tão perto da naturez a quanto possível,
para deleitar os sentidos que dela recebi, convencido de que quan­
to mais naturalidade ela pusesse nos meus prazeres, mais realida­
de eu encontraria neles. Na escolha dos objectos de imitação, tomá­
-la-ia sempre como modelo; nos meus apetites; dar-lhe-ia a pre­
ferência; nos meus gostos, consultá-la-ia sempre; nas iguarias
quereria sempre aquelas cujo melhor tempero ela fizesse e que
passam pelo menor número possível de mãos, para chegarem às
nossas mesas. Preveniria as falsificações da fraude, iria ao encon­
tro do prazer. A minha tola e groseira goludice não enriqueceria
um despenseiro; não me venderia, a peso de ouro, peixe por peixe;
a minha mesa não estaria aparatosamente coberta de m agníficas
imundícies e cadáveres de animais; prodigariaa minha própria
pena para satisfazer a minha sensualidade, porque, então, essa
pena torna-se num verdadeiro prazer e aumenta aquele que se
espera. Se quisesse saborear uma iguaria do fim do mundo, prefe­
riria, comoApicius, ir buscá-la a mandá-la vir, porque as iguarias
mais deliciosas têm sempre falta de um tempero que nãovem com
elas e que nenhum cozinheiro lhes põe, que é o ar do clima que os
produziu.
Pela mesma razão, não imitaria aqueles que, só se encontran­
do bem onde não estão, põem sempre as estações do ano em contra­
dição consigo mesmas e os climas em contradição com as estações;
que, procurando o Verão no Inverno, e o Inverno no Verão, vão apa­
nhar frio na Itália e calor no Norte, sem pensarem que crendo fu­
gir ao rigor das estações, o encontram nos lugares onde as pessoas
ainda não aprenderam a prevenir-se contra elas. Eu, eu ficaria no
meu lugar, ou tomaria a direcção diametralmente oposta: quere­
ria retirar, de uma estação, tudo quanto ela oferece de agradável,
e de um clima tudo quanto ele tem de especial. Teria uma diver­
sidade de prazeres e de hábitos que em nada se pareceriam, e que
estariam sempre na natureza; iria passar o Verão em Nápoles e o
Inverno em Petersburgo; ora respirando um suave zéfiro, semi-re­
clinado nas frescas grutas de Tarento; ora na iluminação de um
país de gelo, sem fôlego, e cansado dos prazeres do baile.
Quereria, no serviço da minha mesa, na decoração da minha
casa, imitar com ornamentos muito simples a variedade das esta­
ções, e retirar de cada uma dçlas as suas delícias, sem me anteci­
par para as que a seguiriam. E penoso e nada agradável perturbar
assim a ordem da natureza, arrancar-lhe produções involuntárias
que ela dá contrariada na sua m aldição, e que, não possuindo nem
qualidade nem sabor, não podem nem alimentar o estômago nem
agradar ao palato. Nada é mais insípido que os produtos tempo­
rãos; é à custa de grandes despesas que certo ricaço de Paris, com
os seus fornos e as suas estufas quentes, consegue ter na sua me- 167
sa, durante todo o ano, legumes sem sabor e frutos que não valem
nada. Se eu tivesse cerejas quando gela, e melões ambarados no pi­
no do Inverno, com que prazer os saborearia, quando o meu_pala­
to não precisasse de ser humedecido nem refrescado? Duurante os
ardores da canícula, a pesada castanha ser-me--i a miuto agradá­
vel? Preferi-la-ia saída da panela, à groselha, aos morangos e aos
frutos desalterantes que são oferecidos pela terra, sem tantos es­
forços? Durante o mês de Janeiro, cobrir o manto da sua lareira
com vegetações forcadas, com flores pálidas e sem aroma, é menos
enfeitar o Inverno que desguarnecer a Primavera: é privar-se do
prazer de ir aos bosques colher as primeiras violetas, de espiar o
primeiro broto, e de exclamar, num acesso de alegria: «Mortais,
não estais abandonados, a natureza ainda vive!»
Para ser bem servido, teria poucos criados: istojá foi dito, e con­
vém voltar a dizê-lo. Um burguês obtém um serviço melhor do seu
único lacaio que um duque dos dez senhores que o rodeiam. Por
cem vezes pensei que, tendo à mesa o meu copo ao meu lado, bebo
no momento que m e agrada; contanto que, se tivesse um grandees­
tadão, seria necessário que vinte pessoas repetissem: «Servir de
beber!>>, antes de poder saciar a minha sede. Tudo quando se faz
por intermédio de outrém fica m al feito, seja como for que o fi­
zerem. Não enviaria nenhum criado às lojas; iria eu próprio; iria,
para que os meus criados não começassem por tratar com os comer­
ciantes antes de mim, para escolher com mais certeza, e pagar me­
nos caro; iria para fazer um exercício agradável, para ter uma ideia
do que se faz fora da minha casa; isso distrai e, por vezes, instrui;
enfim, iria por ir, sempre é alguma coisa. O aborrecimento começa
com uma vida excessivamente sedentária; quando saímos muito,
aborrecemo-nos pouco. Um porteiro e lacaios são maus intérpre­
tes; não desej aria ter sempre essas pessoas entre mim e o resto do
mundo, nem andar sempre com o espalhafato de uma carruagem,
como se receasse ser abordado. Os cavalos de um homem que se
serve das suas pernas estão sempre preparados; se estão cansados
ou doentes, ele sabe--o, antes de quem quer que seja; e não receia
ver-se obrigado a ficar em casa, com esse pretexto, quàndo o seu
cocheiro quer ter um pouco de folga; durante o caminho, mil obs­
táculos não o obrigam a consumir-se de impaciência, nem a ficar
parado no momento em que quereria voar. Enfim, se ninguém
nunca nos serve tão bem como nós mesmos -quer sejamos mais
poderosos que Alexandre ou mais ricos que Cresus - só se devem
receber, dos outros, os serviços que nós próprios não podemos fa­
zer.
Não desejaria viver num palácio; porque, nesse palácio, só ocu­
paria um quarto; todas as salas comuns não pertenceriam a nin­
guém, e o quarto de cada um dos meus criados ser-me-ia tão des­
conhecido como o dos meus vizinhos. Os Orientais, embora miuto
168 voluptuosos, estão todos alojados e mobilados muito simplesmen-
te. Consideram a vida como uma viagem, e a sua casa como uma
locanda. essa razão é pouco aceite entre nós, os ricos, que nos
arranjamos para viver sempre: mas eu teria uma diferente que
produziria o mesmo efeito. Parecer�me-ia que estabelecer-me
com tanto aparato num lugar seria afastar-me de todos os outros,
e encarcerar-me, por assim dizer, no meu palácio. O mundo é um
palácio bastante belo; não é verdade que tudo pertence ao rico,
quando ele quer fruir? Ubi bene, ibi patria; é essa a sua divisa; os
seus Lares são os lugares onde o dinheiro tudo pode, o seu país é
por toda a parte onde possa passar o seu cofre-forte -como o era
para Philippe, que se apropriava de todas as praças-fortes onde
pudesse entrar uma mula carregada de prata. Por que razão se cir­
cunscrever entre muros e portas, para nunca de lá sair? Se uma
epidemia, uma guerra, uma revolta me faz sair de um lugar, vou
para outro, e lá encontro o meu palácio, chegado antes de mim. Pa­
ra que ter a preocupação de construir um para meu uso, se, em to­
do o universo, os constroem para mim? Para que havia de, tão
apressado em viver, preparar tão antecipadamente os gozos de que
posso desfrutar desde hoje? Ninguém conseguiria preparar-se um
destino agradável se se pusesse constantemente em contradição
consigo próprio. Era assim que Em pédocles censurava os de Agri­
gento, por acumularem os prazeres como se nãotivessem mais de
um dia a viver e por construirem como se nunca devessem morrer.
Aliás, de que me serve uma h abitação tão vasta, tendo tão
pouco com que a povoar, e ainda menos com que a encher? Os meus
móveis seriam simples como os meus gostos; não possuiria nem
galeria nem biblioteca, sobretudo se gostasse da leitura e perce­
besse de quadros. Porque, nesse caso, saberia que tais colecções
nunca são completas, e que o defeito daquilo que lhes falta dá mais
desgosto que não ter nada. Nisto, a abundância faz a miséria: não
há um coleccionador que não a tenha experimentado. Quando se
percebe do assunto, não se deve fazer nenhuma colecção; não se
tem um gabinete para mostrar aos outros, quando sabemos servir­
-nos dele para nós-mesmos.
Ojogo não é um divertimento de homem rico, é o recurso de um
ocioso; e os meus prazeres ocupar.:..me-iam demasiado, não me dei­
xando tempo poara tão mal ser utilizado. Não soujogador - sen-
do solitário e pobre- a n ãoser, por vezes, de xadrez, e isso j á é de
mais. Se fosse rico, ainda jogaria menos, e unicamente um jogo
muito inocente, para não ver descontentes, nem me sentir des­
contente. O interesse pelo jogo, como tem falta de motivos na opu­
lência, só se pode transformar em furor num espírito mal construí-
do. Os proveitos que um h om<'>mrico pode fazer no jogo são sempre
menos sensíveis que as perdas; e como, com a continuação, a prá-
tica dos jogos moderados usa o benefício, e, em geral, leva mais a
perdas que a ganhos, nãoé possível- raciocinando bem - afei­
çoar-se a uma distracção onde os riscos de toda a espécie estão con- 169
tra nós. Aquele que alimenta a sua vaidade com as preferências da
fortuna, pode procurá-las em objectos muito mais interessantes,
e essas preferências não se notam menos no mais inocente dos jo­
gos que nos mais ousados. O gosto pelo jogo, fruto da avareza e do
tédio, só toma raízes num espírito e num coração vazios; e tenho a
impressão de que terei suficiente sentimento e conhecimentos pa­
ra poder viver sem esse suplemento. Raramente se vêem pensado­
res gostarem muito do jogo, que suspende esse hábito, ou o dirige
para combinações áridas; assim, um dos bens -e talvez o único ­
que tenha produzido o gosto pelas ciências, é o de abrandar um
pouco essa paixão sórdida: preferir-se-á tentar demonstrar a
utilidade do jogo que entregar-se a ele. Eu, cá por mim, comba­
tê-lo-ia entre os jogadores, e sentiria m ais prazer a troçar deles
vendo-os perder, que a ganhar-lhes o dinheiro que tivessem.
Seria o mesmo, tanto na minha vida privada como na minha
vida na sociedade. Desejaria que a minha fortuna espalhasse o
bem-estar por toda a parte, e nunca fizesse sentir desigualdade.
O aparato dos adornos é incómodo, sob mil aspectos. Para conser­
var, entre os homens, toda a liberdade possível, desejaria andar
vestido de forma a que, entre todas as condições, parecesse estar
no meu lugar, e que não me distinguissem em nenhuma; para que,
sem afectação, sem nada modificar na minha pessoa, eu fizesse
parte do povo na taberna e boa companhia no Palácio-Real. Fican­
do, desse modo, mais senhor do meu comportamento, colocaria
sempre ao meu alcance os prazeres de todas as condições. Há - di­
zem - mulheres que fecham a sua porta aos pounhos bordados, e
só recebem pessoas com rendas; por conseguinte, iria passar o dia
noutro lugar; mas se essas mulheres fossem jovens e bonitas, eu
poderia, por vezes, vestir-me de rendas para lá passar, quando
muito, a noite.
O único elo das minhas sociedades seria a inclinação mútua, a
conformidade de gostos, a conveniência dos caracteres; entregar­
-me-ia a isso como homem, e não como rico; nunca suportaria que
o seu encanto fosse envenenado por interesse. Se a minha opulên­
cia me tivesse deixado alguma humanidade, estenderia ao longe os
meus serviços e as minhas benfeitorias; mas desejaria ter, em mi­
nha volta, uma sociedade e não uma corte, amigos e não protegi­
dos; não seria o patrão dos meus convidados, mas o seu anfitrião.
A independência e a igualdade deixariam às minhas ligações toda
a candura da benevolência; e onde nem o dever nem o interesse não
penetrassem, o prazer e a amizade seriam os únicos a ditar as suas
leis.
Não se compra nem o seu amigo nem a sua amante. É fácil ter
mulheres, com dinheiro; mas também é o meio de nunca ser o
amante de nenhuma. Longe de estar à venda, o amor morre in­
falivelmente, quando misturado com o dinheiro. Aquele que paga
170 -mesmo que seja o mais amável dos homens-não pode ser ama-
do durante muito tempo. Em breve, começará a pagar para outro,
ou, por outras pal avras, esse outro começará a ser pago com o seu
dinheiro; e, nessa dupla ligação, formada pelo interesse, pelo de­
boche, sem amor, sem honra, sem verdadeiro prazer, a mulher ávi­
da, infiel e miserável, tratada pelo vil que recebe como ela trata o
tolo que dá, fica desobrigada, em relação a ambos. Seria agradável
ser liberal em relação a ambos. Seria agradável ser liberal em re­
lação ao que se ama, se isso não constituísse um mercado. Só co­
nheço uma m aneira de satisfazer essa tendência com a sua amn­
te, sem envenenar o amor: é dar-lhe tudo e, em seguida, deixar-se
alimentar por ela. Falta saber onde se encontra a mulher com a
qual este procedimento nãoseria extravagante.
Aquele que dizia: «Possuo Lai:s sem que ela me possua» dizia
uma frase sem espírito. A possessão que não é recíproca não é na­
da: é, quando muito, a possessão do sexo, mas não a do indivíduo.
Ora, onde a moral do amor não existe, para que se preocupar tan­
to com o resto? Nada é mais fácil de encontrar. Nesse assunto, um
almocreve está mais perto da felicidade que um milionário.
Oh! Se se pudessem desenvolver bastante as inconsequências
do vício, como - depois de ele ter conseguido alcancar no que de­
sejou -o acharíamos diferente do que esperávamos! Para quê, es­
sa bárbara avidez de corromper a inocência, de transformar numa
vítima um objectojovem que se deveria ter protegido e que, depois
desse primeiro passo, se arrasta inexoravelmente para um abismo
de miséria de que só sairá depois de morto? Brutalidade, vaidade,
tolice, erro e nada mais. Mesmo esse prazer não é da natureza; é
da opinião, e da opinião mais vil, pois que implica o desprezo por
si mesmo. Aquele que se sente o mais vil dos homens receia ser
comparado com qualquer outro e é o primeiro a querer passar por
ser menos odioso. Vede se os mais ávidos desse acepipe imaginá­
rio alguma vez são jovens amáveis, dignos de agradar, e que teriam
mais desculpa se se mostrassem dificeis!?Não: com aparência, mé­
rito e sentimentos, receia-se pouco a experiência da sua amante;
num ajusta confiança, diz-se-lhe: «Tu conheces os prazeres, pouco
importa; o meu coração promete-te alguns que nunca experimen­
taste>>.
Mas um velho sátira, desgastado pelo deboche, sem consenti­
mento, sem delicadeza, sem atenções, sem nenhuma espécie de ho­
nestidade, incapaz, indigno de agradar a nenhuma das mulheres
que conhecem homens amáveis, crê suprir a tudo isso, em relação
a uma j ovem inocente, utilizando a sua experiência, e dando-lhe
a primeira emoção dos sentidos. A sua última esperanca é a de
agradar, graças à novidade; é aí que reside, incontestavelmente, o
secreto motivo dessa fantasia; mas engana-se: o horor que comete
não está menos na natureza que os desejos que desej aria excitar.
Também se engana na sua louca pretensão: essa mesma nature-
za encarrega-se de lhe reivindicar os seus direitos: toda e qualquer 171
rapariga que se vende, já se entregou ; e tendo-se entregue àque­
le que escolheu, fez a comparação que ele receia. Por conseguinte,
compra um prazer imaginário, e nem por isso é menos detestado.
Cá por mim, por mais que a riqueza me modificasse, há um
ponto em que nunca mudaria. Se não me restarem nem costumes
nem virtude, restar-me--á, pelo menos, algum gosto, algum senso,
alguma delicadeza; e isso evitar-me-- á utilizar a minha fortuna
disparatadamente, a perseguir quimeras, a esgotar a minha bol­
sa e a minha vida, a deixar-me atraiçoar e escarnecer por algumas
crianças. Se fosse jovem, procuraria os prazeres da juventude; e,
desej ando-os em toda a sua sensualidade, não os procuraria como
homem rico. Ser permanecesse tal como sou, seria outra coisa; li­
mitar-me--i a prudentemente aos prazeres da minha idade; toma­
ria os gostos de que posso foz ar, e reprimiria aqueles que só fariam
o meu9 suplício. Não iria oferecer a minha barba grisalha aos des­
déns irónicos das raparigasjovens; não suportaria ver as minhas
repugnantes carícias provocar-lhes náuseas, fornecer-lhes, à mi­
nha custa, as descrições mais ridículas, descrevendo os abjectos
prazeres do velho m acaco, de m aneira e vingarem--se de os terem
suportado. Se hábitos mal combatidos tivessem transform ado os
meus antigos desejos em necessidades, satisfá-los-ia talvez, mas
com vergonha, corando de mim mesmo. Retiraria a paixão da
necessidade, adaptar-me--i a o mais bem que me fosse possível, e
ficaria por aí: não faria da minha fraqueza uma ocupação e dese­
jaria, sobretudo, ter uma só testemunha. A vida humana tem ou­
tros prazeres, quando esses lhe faltam ; perseguindo inutilmente
aqueles que nos fogem, ainda perdemos aqueles que nos ficaram.
Mudemos de gostos com os anos, não devemos deslocar as idades,
assim como não devemos deslocar as estações do ano: é preciso
ser-se si próprio, em todos os momentos, e não lutar contra a na­
tureza: esses vãos esforços desgastam a vida e impedem-nos de a
viver.
O povo não se aborrece nunca, porque tem uma vida activa; os
seus divertimentos não são variados e são raros; muitos dias de
canseira fazem-no saborear com delícias alguns dias de festa.
Uma alternância de prolongados trabalhos e de breves momentos
de lazer serve-lhe de tempero para os prazeres da sua condição.
Para os ricos, o seu gran de flagelo é o aborrecimento; no meio de
tantos divertimentos tão dispendiosamente obtidos, no meio de
tantas pessoas que lhes pretendem agradar, o aborrecimento con­
som--eos e mata-os; passam a vida a fugir-lhe e a ser atingidos por
ele: estão sobrecarregados com o seu peso insuportável: as mu­
lheres, sobretudo, que j á não se sabem entreter nem divertir, são
devoradas por ele, chamando-lhe «vapores>>;· para elas, ele trans­
forma-se numa doenca horrível que, por vezes, lhes faz perder a
razão, e, finalmente, a vida. Cá por mim, não conheço destino mais
172 horrível que o de uma bonita mulher de Paris, depois do agradá-
vel jovem que se liga a ela, e que, vivendo também como uma mu­
lher ociosa, se aasta assim duplamente do seu estado, e ao qual a
vaidade de ser homem de sucessos, faz suportar a languidez dos
dias mais tristes que jamais uma criatura humana tenha vivido.
As mostras de boa educação, as modas, os costumes que deri­
vam do luxo e do bom ar, restringem o curso da vida na mais en­
fadonha uniformidade. O prazer que se pretende evidenciar aos
olhos dos outrosjá ninguém o experimenta: não se o sente, nem em
si mesmo nem neles1• O ridículo, que a opinião receia acima de tu­
do, está sempre ao seu lado, para a tiranizar e punir. Só se é ridí­
culo através de determinadas formas: aquele que sabe variar as
sas situações e os seus prazeres apaga, hoje, a impressão de ontem;
no espírito dos homens, é como se fosse nulo; mas desfruta, pois en­
trega-se completamente a cada hora e a cada coisa. A minha cons­
tante forma de viver seria essa ; em cada situ ação que vivesse, só
me ocuparia dela e de nenhuma outra, viveria cada dia por si
mesmo, como que independente da véspera e do dia seguinte. Co­
mo seria povo entre o povo, seria camponês no campo; e, quando fa­
lasse de agricultura, o camponês não troçaria de mim. Não me fa­
ria construir uma cidade no campo, nem mandaria instalar, nos
confins de uma província, as Tulherias diante do meu apartamen­
to. Na encosta de alguma colina agradável, cheia de sombra, teria
uma casinha rústica, uma casa branca com contraventos verdes;
e, embora um telhado de colmo seja o melhor em todas as estações,
preferiria a telha à triste ardósia, porque ela tem o ar mais asseado
e alegre que o colmo, porque no meu país é só assim que se cobrem
as casas e proque isso me recordaria um pouco o feliz tempo da
minha juventude. Como corte, teria animais domésticos, e, como
cavalariça, um estábulo com vacas, para ter lacticínios, de que
gosto miuto. teria uma horta como jardim, e, como parque, um be­
lo pomar semelhante àquele de que, a seguir, falarei. Os frutos, à
discrição dos passeantes, não seriam nem contados nem colhidos
pelo meu jardineiro; e a minha avara magnificiência não ostenta­
ria aos olhares soberbas latadas nas quais mal se ousasse tocar.
Ora, essa pequena prodigalidade seria pouco dispendiosa, porque
eu teria escolhido o meu abrigo numa província afastada, onde se

1
Duas mulheres da sociedade, para se darem ares de se divertirem
muito, decidem nunca se deitarem antes das cinco horas da manhã. Du­
rante os rigores do Inverno, os seus criados passam a noite na rua, a es­
perar por elas, lutando com muitas dificuldades para não ficarem gelados.
Uma noite, ou, para melhor dizer, uma manhã, entra-se nos aposentos de
uma dessas duas pessoas tão divertidas que deixam correr as horas sem
as contar: encontram-se exactamente sozinhas, a dormir, cada uma na
sua poltrona.
173
vê pouco dinheiro e muitos géneros alimentícios, e onde reinam a
abundância e a pobreza.
Ali, eu reuniria uma sociedade, mais escolhi dá que numerosa,
de amigos que gostassem do prazer e que o soubessem apreciar, de
mulheres que pudessem deixar as suas poltronas e prestar-se aos
jogos campestres, a pegar, de quando em quando - em vez de no
tear e nas cartas - na linh a de pesca, nas varinhas enviscadas pa­
ra apanhar pássaros, no ancinho das mulheres que põem o feno a
secar, e nas cestas dos vindimadores. Ali, todos os ares da cidade
seriam esquecidos, e, tendo passado a ser aldeões na aldeia, encon­
trar-nos-íamos entregues a muitas e variadas distracções que, ca­
da tarde, apenas nos criariam o embaraço da escolha para os do dia
seguinte. O exercício e a vida activa formar-nos-iam um novo es­
tômago e novos gostos. Todas as nossas refeições seriam festins,
onde a abundância dos alimentos seria mais apreciada que a sua
delicadeza. A alegria, os trabalhos rústicos, os jogos folgazões, são
os melhores cozinheiros do mundo, e as refeições finas são muito
ridículas para pessoas que trabalham desde o nascer do sol. O ser­
viço não teria mais ordem que elegância: a sala de j antar seria em
toda a parte, no j ardim, numa barca, à sombra de uma árvore; por
vezes ao longe, ao pé de uma fonte de águas límpidas, sobre a er­
va verdejante e fresca, por debaixo de maciços de amieiros e de ave­
leiras; uma longa procissão de alegres convivas trtansportaria, a
cantar, os pratos do festim; teríamos a relva como mesa e como
cadeira; as bordas da fonte serviriam de aparador'e a sobremesa
estaria suspensa nas árvores. Os pratos seriam servidos indiscri­
minadamente, o apetite dispensaria cerimónias; cada um, prefe­
rindo-se abertamente a qualquer outro, acharia bem que cada um
dos outros se prefrisse a si mesmo: desta familiaridade cordial e
moderada, nasceria, sem grosseirice, sem hipocrisia, com toda a
naturalidade, uma intimidade prazenteira, cem vezes mais encan­
tadora que a cortesia, e mais feita para unir os corações . Não ha­
veria nenhum lacaio importuno para espiar os nossos discursos, e
criticar, em voz baixa o nosso comportamento, contando o que
comíamos com um olhar ávido, divertindo-se a fazer-nos esperar
para nos dar de beber, e resmungando por o almoço ser tão demo­
rado. Seríamos os nossos próprios criados, cada um seria servido
por todos; o tempo passaria sem que déssemos por ele; a refeição
seria o repouso e duraria tanto quanto o calor do dia. Se perto de
nós passasse algum camponês, de regresso ao trabalho, com os
seus instrumentos ombro, eu alegrar-lhe-ia o coração com alguns
bons ditos e alguns goles de bom vinho, que o ajudariam a supor­
tar mais alegremente a sua miséria: e também teria o prazer de
sentir as minhas entranhas levemente comovidas e de me dizer,
em segredo: «Continuo a ser homem>>.
Se alguma festa campestre reunisse oshabitantes do lugar, eu
1 74 seria dos primeiros a lá chegar, com os meus companheiros; se al-
guns casamentos - mais abençoados pelo céu que os das ci­
dades - tivessem lugar na minha vizinhança, saber-se-ia que
aprecio a alegria, e seria convidado. Levaria a essa boa gente al­
guns dons sim pies como ela, que contribuiriam para a festa; e, em
troca, encontraria bens de um preço inestimável, bens tão pouco
conhecidos pelos meus iguais: a franqueza e a verdadeira satisfa­
ção. Jantaria alegremente, na extremidade dak sua longa mesa;
faria coro com o refrão de uma antiga canção rústica, e dançaria na
sua granja, com mais entusiasmo que no baile da Opera. ,
«Até aqui, tudo está perfeito>>; dir-me-ão, «mas a caça? E pos­
sível imaginar esta no campo sem caçar? Compreendo-vos: não
pretendia mais que uma quinta, e fazia mal. Suponho-me rico, por
conseguinte, preciso de prazeres exclusivos, de prazeres destrui­
dores: eis outros prazeres completamente diferentes. Preciso de
terras, de bosques, de guardas, de contribuições, das honras se­
nhoriais, sobretudo de inceso e de água benta.
Muito bem! Mas essa terra terá vizinhos ciosos dos seus direi­
tos e desejosos de usurpar os dos outros; os nossos guardas discu­
tirão, e tal vez que os senhores também : eis ai tercações, discussões,
ódios, processos, pelo menos: isso já não é muito agradável. Os
meus vassalos não verão com nenhum prazer que os seus trigais
sejam roídos pelas minhas lebres e que as suas favas sejam comi­
das pelos meus javalis; cada um deles, como não se atreve a m atar
o inimigo que destrói o seu trabalho, pretenderá, pelo menos, ex­
pulsá-lo do seu campo; depois de terem passado o dia a cultivar as
suas terras, será necessário que passem a noite a guardá-las, te­
rão m astins, tambores, buzinas, campinhas: com todo esse ruído,
perturbarão o meu sono. Mesmo sem querer, terei de pensar na mi­
séria dessa pobre gente, e não poderei deixar de ma censurar. Se
tivesse a honra de ser príncipe, nada disso me afectaria, de modo
nenh um; mas eu, novo rico, ainda terei o coração um pouco plebeu.
E não é tudo; a abundância da caca tentará os cacadores; em
breve, terei caçadores furtivos para castigar; precisarei de prisões,
de carcereiros, de archeiros, de galeras; tudo isso me parece bas­
tante crel. As mulheres desses infelizes virão postar-se à minha
porta e importunar-me com os seus choros, ou bem será necessá­
rio correr com elas, maltratá-las. Por seu lado, aqueles que não
tiverem caçado furtivamente, e cuja colheita a minha caca terá
comido, virão queixar-se: uns serão punidos por terem morto a
caça, os outros ficarão arruinados por não a terem matado: que
triste alternativa! Por todos os lados, só verei casos de miséria, e
ouvirei queixumes: isso deve perturbar m uito, ao que me parece,
o prazer de massacrar, à sua vontade, perdizes e lebres quase de­
baixo dos nossos pés.
Se quereis separar os prazeres das penas que eles causam, re­
tirai-lhes a exclusividade: quanto mais os deixardes comuns aos
homens mais os apreciareis sempre puros. Por conseguinte, não 1 75
farei tudo quanto acabo de dizer; mas, sem mudar de gostos, se­
guirei aquele que suponho ser o menos prejudicial. Estabelecerei
a minha habitação campestre numa região onde a caca seja livre
para toda a gente, e onde eu possa ter esse divertimento sem
problemas. A caça será mais rara; mas será necessária mais arte
p ara a procurar e sentir-se-á mais prazer em atingi-la. Lembrar­
-me-ei sempre do entusiasmo que meu pai experimentava quando
via voar a primeira perdiz, e dos transportes de alegria com que ele
encontrava a lebre que procurara durante todo o dia. Sim, m ante­
nho que, só com o seu cão, carregado com a sua espingarda, a sua
bolsa de caca, o seu equipamento, a ksuà pequenina presa, ele re­
gressava ao fim da tarde, estafado e arranhado pelas silvas, mais
s atisfeito com o seu dia que todos os vossos cacadores amaneira­
dos, que, em cima de um bom cavalo, seguidos porvinte espingar­
das carregadas, nãofazem mais do que disparar e m ater em sua
volta, sem arte sem glória, e quase sem exercício. Mas o prazer não
é menor, e o inconveniente é nulo, quando não se têm terras para
guardar, nem caçador furtivo para punir, nem desgraçado para
atormentar: eis, portanto, uma sólida razão para a minha prefe­
rência. Seja o que for que fizerem, não se pode atormentar indefi­
nidamente os homens, sem se receber também algum incómodo; e
as repetidas m aldições do povo, mais cedo ou mais tarde, tornam
a caça amarga.
Mais uma vez, os prazeres exclusivos são a morte do prazer. As
verdadeiras distracções são as que se compartilham com o povo:
aquelas que pretendemos ser os únicos a ter, já não as temos. Se
os muros que eu m andar erigir em volta do meu parque me tornam
esse enclausuramento triste, só consegui, com miuto dispêndio,
perder o prazer dos passeios; eis-me forcado a ir procurá-lo mais
longe. O demónio da propriedade infecta tudo aquilo em que toca.
Umrico quer ser o patrão por toda a parte e só se sente bem onde
não o é: ve-se constantemente obrigado a fugir de si mesmo. Cá por
mim, e a esse respeito, farei, na minha riqueza, o que fiz durante
a minha pobreza. Actualmente mais rico do bem dos outros que
nunca poderia ser do meu, apodero-me de tudo o que me convém,
na minha vizinhança: não há conquistador mais determinado que
eu; mais que os próprios príncipes; acomodo-me, indistintamente,
a todos os terrenos abertos que me agradam; atribuo-lhes nomes;
de um, faço o meu p arque, do outro, o meu terraço; e eis-me seu
proprietário; a partir desse momento, passeio neles impunemen­
te; visito-os frequentemente, p ara conservar a minha possessão;
desgasto, tanto quanto quero, o solo, à força de andar por cima de­
le; e nunca me convencerão de que o titular dos bens de que me
aproprio retira mais utilização do dinheiro que eles lhe produzem
que o que eu retiro do seu terreno. E se me quiserem vexar abrin­
do fossos, elevando sebes, pouco me importa; ponho o meuparque
176 às costas e vou colocá-lo noutro lugar; os lugares não faltam, na vi-
zinhança, e, durante muito tempo, poderei pilhar os meus vizinhos
antes de ter falta de abrigo.
Eis um exemplo do verdadeiro gosto que se pode ter na escolha
das distracções agradáveis: eis o espírito em que se desfruta; o res­
to não passa de ilusão, de quimera, de tola vaidade. Aquele que se
afastar destas regras, por mais rico que seja, comerá o seu ouro em
estrume e nunca conhecerá o valor da vida.
Objectar-me-ão, certamente, que tais distracções estão ao
alcance de todos os homens e que não é preciso ser-se rico para as
experimentar. Era precisamente aí que eu queria chegar. Temos
prazer quando o queremos ter: é só a opinião que torna tudo difí­
cil, que afugenta a felicidade, à nossafrente; e é cem vezes mais fá­
cil ser fleiz que parece-lo. O homem de gosto e verdadeiramente
sensual não precisa de riquezas; basta-lhe ser livre e senhor de si
mesmo. Aquele que goza de boa saúde e que nãotem falta do ne­
cessário, se souber arrancar do seucoração os bens da opinião, é
bastante rico; é a aurea mediocritas de Horáio. Gente com cofres­
-fortes, procurai, pois, outro emprego para a vossa opulencia, pois
que para o prazer ela não serve de nada. Emílio não saberá todas
estas coisas mais bem que eu; mas, como tem o coração m ais pu­
ro e mais são, senti-las-á ainda mais bem, e todas as suas obser­
vações na sociedade não farão mais do que confirmá-lo.
Enquanto o tempoassim passa, continuamos a procurar So­
phie, e não a encontramos. Era bom que nãoa encontrássemos mui­
to depressa, e só a procurámos onde eu tinha a certeza absoluta de
que ela não estava1 •
Enfim, o momento aproxima-se; é tempo de a procurar real­
mente, para evitar que lhe apareça uma que ele confunda com ela,
e que só tarde de mais se aperceba do seu engano. Adeus, pois, Pa­
ris, cidade célebre, cidade ruidosa, de fumos e de lama, onde asmu­
lhers deixaram de crer na honra e os homens na virtude. Adeus,
Paris: nós procuramos o amor, a felicidade, a inocência; nunca nos
esqueceremos de ti.

1 Mulierem fortem quis inveniet? Procul et de ultimis finibuspretium


ejus. 177

L.B.524 - 12
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LIVRO V
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Eis-nos chegados ao último acto da juventude, mas ainda não
estamos no fi m .
Não é bom que o homem esteja só. Emílio é homem e promete­
mos-lhe uma companheira: é preciso dar-lha. Essa companheira
é Sophie. Onde vive ela? Onde a encontraremos? Para a encontrar­
mos, é preciso que saibamos onde está. Comecemos por ter uma
ideia do que ela é, e, em seguida, poderemos melhor julgar dos lu­
gares onde ela habita; e, mesmo assim, quando a escontrarmos, tu­
do não ficará resolvido. <<Pois o nosso jovem gentil-homem», diz
Locke, <<está preparado para se casar, chegou o momento de o dei­
xarmos junto da sua prometida.» E assim, acaba a sua obra. Para
mim, que não tenho a honra de educar um gentil-homem, não m e
atreverei a seguir essas instruções d e Locke.

SOPIDE OU A MULHER

Sophie deve ser mulher, assim como Emílio é um homem, isto


é, deve possuir tudo o que convém à constituição da sua espécie e
do seu sexo, para desempenhar o seu papel, tanto de ordem física
como moral. Comecemos, pois, por examinar as afinidades e as di­
ferenças entre o seu sexo e o nosso.
Em tudo quanto não diz respeito ao ·sexo, a mulher é homem:
possui os mesmos órgãos, as mesmas necessidades, as mesmas fa­
culdades; a m áquina está construída d a mesma maneira, as peças
que a constituem são as mesmas, o funcionamento de uma é igual
ao da outra, e a sua aparência é semelhante; e, seja qual for o as­
pedo sob o qual as considerarmos, a única diferença que existe en­
tre� elas é o sexo.
Em tudo quanto se relaciona com o sexo, a mulher e o homem
têm, sob todos os pontos de vista, analogias e diferenças: a dificul­
dade em compará-las provém da de determinar, nas respectivas
constituições, aquilo que é próprio do sexo e o que o não é. Através
da. anatomia comparada - e mesmo só pela observação - en­
contramos entre eles algumas diferenças gerais que parecem não
depender do sexo; no entanto, dependem dele, mas através de li­
gai:Ões que não nos encontramos em estado de compreender: não
sabemos até que ponto essas ligações se podem estender; a única
coisa que sabemos com certeza é que tudo quanto têm em comum 181
é da espécie, e que tudo quanto têm de diferente é do sexo. Sob es­
te duplo ponto de vista, encontramos entre eles tantas afinidades
e tantas oposições, que talvez seja uma das m aravilhas que a na­
tureza fez, ter fabricado dois seres tão parecidos constituindo-<>s
tão diferentemente.
Essas analogias e essas diferenças devem ter influência sobre
o moral de cada um; esta consequência é sensível, confirmada pela
experiência, e mostra a inutilidade das discussões sobre a prefe­
rência ou a igualdade dos sexos: como se cada um deles, obedecen­
do às finalidades da natureza consoante o seu destino particular,
não fosse mais perfeito nisso do que se se parecesse mais com o ou­
tro! No que têm de comum, são iguais; no que têm de diferente, não
são comparáveis. Uma mulher perfeita e um homem perfeito não
devem parecer-se, nem no espírito nem no rosto, e a perfeição n ão
é susceptível de mais e de menos.
Na união dos sexos, cada um deles concorre igualmente p ara o
objectivo comum, mas não da mesma m aneira. Desta diversidade
nasce a primeira diferença determinada entre as analogias morais
de um e de outro. Enquanto um deve ser activo e forte, o outro de­
ve ser passivo e fraco: é indispensável que um queira e possa, e bas­
ta que o outro resista pouco.
Estabelecido este princípio, segue-se que a mulher foi especial­
mente criada para agradar ao homem. Se, por sua vez, o homem
lhe deve agradar, essa necessidade é menos directa: o seu mérito
está no seu domínio; agrada pela única razão de ser forte. Não é es­
ta a lei do amor, estou de acordo; mas é a da natureza, anterior ao
próprio amor.
Se a mulher é feita para agradar e para ser subjugada, deve
tornar-se agradável ao homem, em vez de o provocar; a violência
dela reside nos seus encantos: é por eles que ela o deverá obrigar
a encontrar a sua força e a utiliz á-la. A arte mais garantida p ara
animar essa força é torná-la necessária, pela resistência. Então,
o amor-próprio junta-se ao desejo, e um triunfa da vitória que o
outro lhe faz obter. Daí nascem o ataque e a defesa, a audácia de
um sexo e a timidez do outro, enfim a modéstia e o pudor com que
a natureza armou o fraco para subjugar o forte.
Quem é capaz de pensar que ela tenha prescrito, indiferente­
mente, os mesmos avanços a uns e aos outros, e que o primeiro a
formar desejos também deve ser o primeiro a evidenciá-los? Que
entendimento tão estranhamente depravado! Tendo o empreendi­
mento consequências tão diferentes para os dois sexos, pare­
cer-vos-ia natural que ambos tivessem a mesma audácia para se
entregar a ele? Como é possível que não se veja que, com uma tal
desigualdade entre as paradas de cada um, se a reserva não impu­
sesse a um a moderação que a natureza impõe ao outro, em breve
resultaria a degradação de ambos, e que o género humano perece­
182 ria pelos sistemas estabelecidos para o conservar? Com a facilida-
de que as mulheres têm para comover os homens, e para desper­
tar, no fundo dos seus corações, os restos de um temperamento
quase extinto, se, na terra, houvesse deplorável país onde a filoso­
fia tivesse introduzido esse uso - sobretudo nas regiões quentes,
onde nascem mais mulheres que homens -, tiranizados, eles aca­
bariam por ser vítimas delas e seriam todos arrastados para a mor­
te, sem nunca se poderem defender.
Se as temeas dos animais não têm o mesmo pudor, qual é o re­
sultado? Terão elas, como as mulheres, desejos ilimitados aos
quais esse pudor serve de freio? Para elas, o desejo só vem por ne­
cessidade; satisfeita a necessidade, o desejo cessa;já não repudiam
o m acho por fingimento1 mas porque já não precisam dele: fazem
exactamente o contrário do que fazia a filha de Augusto; deixam de
receber passageiros, logo que o carregamento do navio está com­
pleto. Mesmo quando estão livres, as suas épocas de boa vontade
são breves e rapidamente terminadas; o instinto impele-as e esse
mesmo instinto detém-nas. Nas mulheres, onde se encontrará o
suplemento desse instinto negativo, quando lhes retirardes o pu­
dor? Esperar que elas deixem de se preocupar com os homens é es­
perar que eles nunca mais sirvam para nada.
O Ser Supremo quis, em tudo, fazer honra à espécie humana;
dando ao homem inclinações desmedidas, dá-lhe, simultanea­
mente, a lei que as regula, a fim de que ele seja livre e se coman­
de a si mesmo; en tragando-se a paixões imoderadas, acrescenta a
razão a essas paixões para as poder governar; entregando a mu­
lher a desejos ilimitados, ele junta a esses desejos o pudor, para os
conter. Além disso, ainda dá uma recompensa actual à boa utiliza­
ção das suas facu l dades, a saber, o gosto que se tem nas coisas ho­
nestas, quando se faz delas a regra das acções que se praticam . Tu­
do isto bem vale, ao que me parece, o instinto dos animais.
Por conseguinte, quer a fêmea do homem compartilhe ou não
dos seus desejos, quer ela esteja ou não disposta a satisfazê-los, a
sua reacção é resistir-lhe e defender-se, mas nem sempre com a
mesma força, nem, por conseguinte, com o mesmo sucesso. Para
que o atacante seja vitorioso, é necessário que o atacado o permi­
ta ou o ordene; pois, de quantos meios hábeis não dispõe ele para
forçar o agressor a utilizar a força! O mais livre e o m ais doce de to­
dos os actos não admite verdadeira violência, a natureza e a razão
opõem-se a isso: a natureza, provendo o m ais fraco com a força ne­
cessária para resistir quando quer; a razão, porque uma verdadei­
ra violência é não unicamente o mais brutal de todos os actos co-

1 Já tive a oportunidade de observar que as recusas afectadas e as


negaças são comuns a quase todas as lemeas - mesmo às dos animais -
, ainda que estejam completamente dispostas a render-se; é preciso nun-
ca ter observado esse manejo para não concordar com o que digo. 183
m o o mais contrário à sua finalidade: seja porque, desse modo, o ho­
mem declara a guerra à sua companheira e a autoriza a defender
a sua pessoa e a sua liberdade, mesmo à custa da vida do agressor,
ou porque só a mulher é capaz de julgar o estado em que se encon­
tra, e porque um filho não teria pai se qualquer homem pudesse
usurpar os seus direitos.
Eis, pois, uma terceiraconsequência da constituição dos sexos:
e é que, aparentemente, o mais forte deve ser o senhor, mas que,
efectivamente, depende do mais fraco; e isso, não por um frívolo
costume de galantaria, nem por uma orgulhosa generosidade de
protector, mas por uma invariável lei da natureza, que, dando à
mulher mais facilidade para excitar os desejos que ao homem pa­
ra os satisfazer, faz depender os deste - sejam quais forem os que
possa ter-da vontade dela, e o obriga, por sua vez, a agradar-lhe
para obter que ela consinta em deixá-lo ser o mais forte. Então, na
sua vitória, o que de mais doce existe para o homem é não saber se
foi a fraqueza que cedeu à força, ou se foi a vontade que se rendeu;
e a astúcia habitual da mulher é deixar sempre essa dúvida perma­
necer entre ela e ele. Nisto, o espírito das mulheres corresponde
perfeitamente à sua constituição; longe de corarem da sua fraque­
za, glorificam-ria: os seus tenros músculos não têm resistência:
afectam não ter forças para levantar os mais levas fardos; teriam
vergonha de se mostrar fortes. E porquê? Não é apenas para pare­
cerem delicadas, é por uma precaução mais hábil: preparam, an­
tecipadamente, as desculpas e o direito de serem fracas, se isso
lhes vier a convir.
O progresso dos conhecimentos adquiridos pelos nossos vícios
modificou muito, neste ponto, as antigas opiniões que nos governa­
vam e já pouco se fala de violências, desde que elas passaram a ser
tão pouco necessárias e que os homens deixaram de acreditar
nelas1; contanto que, nas antiguidades gregas e judias, elas são
muito mais frequentes, porque essas mesmas opiniões funda­
mentavam-se na simplicidade da natureza, e só a experiência da
libertinagem as pode desenraizar. Se, hoje em dia, se citam menos
actos de violência, não é certamente por os homens se terem tor­
nado mais temperantes, mas porque são menos crédulos e porque
uma queixa desse género, que outrora teria persuadido povos sim­
pies, nos dias que correm não faria mais do que provocar os risos
dos trocistas; ganha-se mais ficando calado. NoDeuteronómo, há
uma lei que condenava uma rapariga violenta da a ser punida com

1 É possível haver uma tal desproporção de idades e de forças, que


se opere um verdadeiro acto de violência; mas, aqui, como tratamos does­
tado relativo dos sexos segundo a ordem da natureza, incluo-os a ambos
184 na analogia comum que constitui este estado.
o sedutor, se o delito tivesse sido cometido n a cidade; mas, se tives­
se sido cometido no campo ou em lugares afastados, só o homem era
castigado. Porque, diz a lei, a rapariga gritou e não foi ouvida. Es­
ta interpretação benevolente ensiava as raparigas a não se deixa­
rem surpreender em lugares frequentados.
O efeito destas diversidades de opiniões sobre os costumes é
sensível. A galantaria moderna é consequência disso. Os homens,
considerando que os seus prazeres dependiam - mais do que ti­
nham pensado - da vontade do belo-sexo, cativaram essa vonta­
de com deferências que lhes foram bem retribuídas.
Vede como o físico nos conduz, insensivelmente, ao moral; e co­
mo, da grosseira união dos sexos, nascem, pouco a pouco, as mais
doces leis do amor. O império das mulheres não é delas por os ho­
mens assim o terem querido, mas porque assim o quer a natureza:
era delas, antes de elas o parecerem ter. Esse mesmo Hércules, que
creu fazerviolência às cinquenta filhas de Thespius, foi, mesmo as­
sim, obrigado a fiar ao lado de Omphale; e o forte Sansão não era
tão forte como Dalila. Esse império pertence às mulheres, e não
lhes pode ser retirado, mesmo quando elas abusam dele: se lhes
fosse possível perdê-lo, há muito que o teriam perdido.
Não há nenhuma paridade entre os dois sexos, quanto à conse­
quência do sexo. O macho só é macho em certos momentos, en­
quanto a :femea é :femea durante toda a sua vida, ou, pelo menos,
durante toda a sua juventude; tudo lhe recorda, constantemente,
o seu sexo, e, para bem desempenhar as funções que a este incum­
bem, é-lhe necessária uma constituição que lhe seja propícia. Pre­
cisa de ser cautelosa durante a gravidez; precisa de descanso, após
o parto; precisa de uma vida mole e sedentária para amamentar os
seus filhos; precisa, para os educar, de paciência, de doçura, de ze­
lo, de um afecto que nada consiga abrandar; serve de elo de liga­
ção entre eles e o pai, só ela o leva a amá-los e lhe dá a confiança
de poder ch amar-lhes seus. Quanta ternura e desvelo não lhe são
necessários para conservar toda a família unida! E, enfim, tudo is­
so não devem ser virtudes, mas gostos, sem os quais a espécie hu­
mana em breve se extinguiria.
A rigidez dos deveres relativos aos dois sexos não é, nem pode
ser, a mesma. Quando, a esse respeito, a mulher se queixa da in­
justa desigualdade que o homem estabelece entre eles, não têm ra­
zão; essa desigualdade não é uma instituição humana, ou, pelo me­
nos, não é obra de preconceitos, mas da razão: é àquele dos dois que
a natureza encarregou do depósito dos filhos que compete prestar
contas ao outro. Certamente, n.ão é permitido a ninguém violar a
sua fé, e todos os maridos infiéis que privam a mulher da única
compensação para os austeros deveres do seu sexo é um homem in­
justo e bárbaro; mas a mulher infiel faz mais: dissolve a família e
quebra todos os elos da natureza; dando ao homem filhos que não
são dele, atraiçoa uns e outros, acrescenta a perfídia à infidelida- 185
de. Tenho dificuldades em conceber qual a desordem e qual o cri­
me que não é uma consequência disso. Se há um estado horrível no
mundo, é o de um desgraçado pai que, sem confiança na mulher,
não ousa entregar-se aos doces sentimentos do seu coração, que
duvida, ao beijar o seu filho, se está a beijar o filho de outro, a
testemunha da sua desonra, o usurpador do bem dos seus próprios
filhos. Neste caso, o que é a família, se não uma sociedade de ini­
migos secretos que uma mulher culpada arma, um contra o outro,
forçando-os a fingir amar-se mutuamente?
Por conseguinte, não interessa unicamente que a mulher seja
fiel, mas que o m arido também a considere como tal, assim como
os seus parentes e toda a gente; importa que ela seja modesta,
atenta, reservada e que evidencie, tanto perante os outros como pe­
rante a sua própria consciência, a prova da sua virtude. Enfiin, se
é importante que um pai ame os seus filhos, também importa que
estime a mãe destes. São estas as razões que também colocam a
aparência no número dos deveres das mulheres, e lhes tornam a
honra e a reputação não menos indispensáveis que a castidade.
Destes princípios deriva - com a diferença moral dos sexos - um
novo motivo de dever e de conveniência, que prescreve, especial­
mente às mulheres, a m ais escrupulosa atenção para a suamanei­
ra de se comportar, para os seus modos, para a sua m aneira de ser.
Sustentar vagamente que os dois sexos são iguais, e que os seus de­
veres são os mesmos, é perder tempo com declarações vãs, é n ão di­
zer nada enquanto não houver resposta para isto.
Não será uma m aneira deraciocionar bastante sólida, citar ex­
cepções como resposta a leis gerais também bem fundamentadas?
«As mulheres>>, dizeis, «nem sempre têm filhos!» Não, mas o seu
destino é tê-los. Pois então! Só porque no universo há uma cente­
n a de grandescidades ondeas mulheres-vivendo licenciosamen­
te - fazem poucos filhos, pretendeis que o estado das mulheres é
ter poucos!? E o que seria das nossas cidades, se, nos campos afas­
tados onde vivem mais simplesmente e são mais castas, as mulhe­
res não reparassem a esterilidade das damas? Em quantas provín­
cias as mulheres que não tiveram mais de quatro ou cinco filhos
passam por pouco fecundas1? Enfim, que esta ou aquela mulher te­
nha poucos filho, que importância tem isso? O estado da mulher
deixará, por essa razão, de ser o de m ãe? E não é pelas leis gerais
que a n atureza e os costumes devem prover a estes estado? Mes-

1 Se não fosse isso, a espécie desapareceria necessariamente: p ara


que ela se conserve, para tudo compensar, é necessário que cada mulher
tenha mais ou menos quatro filhos: pois de entre as crianças que nascem,
perto da metade morre antes de que as mães possam ter outras, e as duas
que restam são imprescindíveis para representar o pai e a mãe. Vede se
186 as cidades vos podem fornecer essa população toda!
mo que, entre cada gravidez, pudesse ter intervalos de repouso, tão
longos quanto são de supor, uma mulher poderia mudar assim,
bruscamente e alternadamente, a sua m aneira de viver, sem pe­
rigo e sem risco? Seria ela hoje nutriz e amanhã guerreira? Muda­
ria de temperamento, e de gostos, como um camaleão muda de cor?
Passaria, bruscamente, da sombra da clausura e dos cuidados
domésticos, para as injúrias do ar, para os trabalhos, para as can­
seiras e perigos da guerra? Seria, ora medrosa1 , ora corajosa, ora
delicada e ora robusta? Se os jovens, educados em Paris, têm difi­
culdades em suportar o ofício das armas, mulheres que nunca
afrontaram o sol e que mal podem andar podê-lo-iam suportar,
após cinquenta anos de moleza? Começariam com essa profissão
na idade em que os homens a deixam?
Há países onde as mulheres dão à luz quase sem sofrimento e
alimentam os filhos quase sem desvelos; de acordo: mas, nesses
mesmos países, os homens andam seminus durante todo o ano,
m atam animais ferozes, pegam numa canoa como se fosse um a mo­
chila, fazem caçadas de setecentas e oitocentas léguas, dormem ao
ar livre, deitados na terra, suportam cansaços incríveis, e passam
vários dias sem comer. Quando as mulheres se tornam robustas,
os homens ainda o são mais; se os homens enfraquecem, as mulhe­
res ainda enfraquecem mais; quando os dois termos mudam da
mesma m aneira, a diferença continua a ser a mesma.
Platão, na sua República, atribui às mulheres os mesmos
exercícios que aos homens; não duvido. Tendo afastado do seu
governo as famílias particulares, e já não sabendo o que fazer das
mulheres, viu-se forçado a transformá-las em homens. Esse belo
génio tinha tudo organizado, tudo previsto: ia ao encontro de uma
objecção que talvez ninguém tivesse pensado fazer-lhe; mas res­
pondeu mal à que lhe fizeram. Não me refiro a essa pretensa comu­
nidade de mulheres, tantas vezes censurada, o que prova que
aqueles que lha censuraram nunca o leram; refiro-me, sim, a es­
sa promiscuidade civil que, por toda a parte, confunde os dois se­
xos nos mesmos em pregos, nos mesmos trabalhos, e que não pode
deixar de engendrar os mais intoleráveis abusos; refiro-me a es­
sa subversão dos mais doces sentimentos da natureza, imolados a
um sentimento artificial que só pode subsistir através deles: como
se não fosse indispensável um motivo rural, para formar elos con­
vencionais! Como se o amor que se tem pelos seus familiares não
fosse o princípio daquele que se deve ao Estado! Como se não fos­
se pela pequena pátria- que é da família -que o coração se ape­
ga à grande! Como se não fosse o bom filho, o bom marido, o bom
pai, que fizessem o bom cidadão!

1 A timidez das mulheres também é um instinto da natureza, para


as proteger do duplo perigo que correm durante a mesma. 187
Desde o momento em que fica demonstrado que o homem e a
mulher não são, nem devem ser, constituídos da mesma m aneira,
nem de carácter nem de temperamento, segu�e que não devem
receber a mesma educação. Obedecendo às direcções da natureza,
devem agir de concerto, mas não devem fazer as mesmas coisas; a
finalidade dos trabalhos é corou, mas os trabalhos são diferentes,
e, por conseguinte, também os gostos que os dirigem. Depois de ter
tratado de formar o homem natural, e para não deixar o nosso tra­
balho imperfeito, vejamos como se deve formar a mulher que con­
vém a esse homem.
Se quereis ser sempre bem guiado, segui sempre as indicações
da natureza. Tudo o que caracteriza o sexo deve ser respeitado co­
mo estabelecido por ela. Dizeis constantemente: «As mulheres têm
este e aquele defeito que nós não temos.» O vosso orgulho engana­
-vos; seriam defeitos, para vós: mas, para elas, são qualidades; tu­
do correria menos bem se elas os não tivessem. Impedi esses pre­
tensos defeitos de degenerar, mas não vos atreveis a destruí-los!>>
Pelo seu lado, as mulheres não param de clamar que nós as edu­
camos para serem vãs e coquettes, que as distraímos constante­
mente com infantilidades para mais facilmente continuarmos a
ser os seus senhores; acusam-nos dos defeitos que nós lhe critica­
mos. Que loucura! E desde quando são os homens que se encarre­
gam da educação das raparigas? Quem é que impede as m ães de
as educarem como lhes apraz? Não têm colégios: que grande des­
graça! Ora! Deus permitisse que também não os houvesse para os
rapazes! Estes seriam educados com mais honestidade. Alguém
obriga as vossas filhas a perder tempo com frioleiras? Alguém as
obriga a p assar a metade da sua vida a pensar em vestidos, como
vós? Alguém vos impede de as instruir e de as m andar instruir, à
vossa vontade? Será culpa nossa se elas nos agradam quando são
belas, se os seus trejeitos nos seduzem, se a arte que elas aprendem
convosco nos atrai e nos lisonjeia, se gostamos de as ver vestidas
com gosto, se as deixamos afiar, à sua vontade, as armas com que
nos subjugarão? Ora! Tomai o partido de as educardes como se fos­
sem homens; eles consentirão nisso, de boa vontade. Quanto mais
elas se quiserem parecer com eles, menos os governarão, e, nessa
altura, é que eles serão verdadeiramente os senhores.
Todas as faculdades comuns aos dois sexos não estãoigualmen­
te repartidas entre ele; mas, consideradas no seu todo, compen­
sam-se. A mulher vale mais como mulher e menos como homem ;
por toda a parte onde faz valer os seus direitos, tem a vantagem;
por toda a parte onde quer usurpar os nossos, fica abaixo de nós.
Não se pode responder a esta verdade geral só com excepções;
constante maneira de argumentar dos galantes partidários dobe­
lo sexo.
Cultivar, nas mulheres, as qualidades do homem, e descuidar
188 as que lhe são próprias, é, pois, trabalhar visivelmente em prejuí-
zo delas. As manhosas apercebem-se bem disso, não se deixam en­
ganar; tratando de usurpar as nossas vantagens, não abandonam
as suas; mas daí se segue que, como não podem bem utilizar umas
e outras - porque elas são incompatíveis - não só ficam abaixo
do seu alcance sem se colocarem ao nosso, perdem a metade do seu
valor. Crede-me, mãe judiciosa, não transformeis a vossa filha
num bom homem, como para dar um entendimento à natureza; fa­
zei dela uma mulher honesta, e tende a certeza de que isso valerá
muito mais para ela e para nós.
Isto quer dizer que ela deverá ser educada na ignorância de to­
das as coisas, e limitada unicamente aos trabalhos da casa? Que
o homem fará, da sua companheira, a sua criada? Que, ao seu la­
do, se privará dela, do m aior encanto da sociedade? Que, para
melhor ser servido por elá, a impedirá de ter sentimentos, de ter
conhecimentos? Que fará dela um verdadeiro autómato?Não, cer­
tamente que não; assim não o decidiu a natureza, que dá às mulhe­
res um espírito tão agradável e tão desprendido; pelo contrário, ela
quer que as mulheres pensem, que elas ajuízem, que elas amem,
que elas conheçam , que elas cultivem o seu espírito como a sua fi­
gura; são essas as armas que ela lhes dá para suprir a força que lhe
faz falta e para dirigir a nossa. Precisam de aprender muitas coi­
sas, mas apenas aquelas que lhes convém saber.
Seja porque considero o destino particular do sexo, ou porque
observo as suas inclinações ou porque conto os seus deveres, tudo
concorre da mesma maneira para me indicar a forma de educação
que lhe convém. A mulher e o homem são feitos um para o outro,
mas a sua mútua dependência não é idêntica: os homens de­
pendem das mulheres através dos seus desejos; as mulheres
dependem dos homens, tanto pelos seus desejos como pelas suas
necessidades; nós subsistiríamos mais facilmente sem elas que
elas sem nós. Para que elas tenham o necessário, para que vivam
no seu estado, é preciso que lho permitamos, que lho queiramos
permitir, que as consideremos dignas disso; elas dependem dos
nossos sentimentos, do valor que atribuímos aos seus méritos, do
caso que fazemos dos seus encantos e das suas virtudes. Pela pró­
pria lei da natureza, as mulheres -tanto por elas como pelos seus
filhos - estão à mercê das opiniões dos homens: não basta que se-
jam estimáveis, é preciso que sejam estimadas; não lhes b asta se-
rem belas: é preciso que agradem; não lhes basta serem sensatas:
é preciso que sejam reconhecidas como tais; a honra delas não re-
side unicamente no seu comportamento, mas na sua reputação, e
não é possível que aquela que consente em passar por infâme pos-
sa alguma vez vir a ser honesta. O homem, comportando-se bem,
só depende de si mesmo e pode desafiar a opinião pública; mas a
mulher, quando se comporta bem, só cumpriu metade do seu de-
ver, e o que pensam dela não lhes interessa menos que o que ela
efectivamente é. Daí se segue que o sistema da sua educação de- 189
verá ser, a este respeito, oposto ao da nossa: a opinião é o túmulo
da virtude entre os homens, e o seu trono entre as mulheres.
Da boa constituição das m ães, começa por depender a dos fi­
lhos; dos cuidados das mulheres depende a primeira educação dos
homens; das mulheres, ainda dependem os seus costumes, as suas
paixões, os seus gostos, os seus prazeres, até mesmo a sua felicida­
de. Assim, toda a educação das mulheres deve ser em relação aos
homens. Agradar-lhes, ser-lhe úteis, fazer-se amar e honrar por
eles, educá-los quando jovens, tratá-los quando adultos, acon­
selhá-los, consolá-los, tornar-lhes a vida agradável e doce: eis os
deveres das mulheres, em todos os tempos, e o que lhes deve ser
ensinado, desde a sua infância. Enquanto não se seguir este prin­
cípío, afastar-nos-em os do objectivo, e todos os preceitos que lhe
forem dados não servirão de nada, nem para a sua felicidade, nem
para a nossa.
Mas, embora todas as mulheres queiram agradar aos homens
e o devam desejar, há uma grande diferença entre querer agradar
ao homem de mérito, ao homem verdadeiramente amável, e que­
rer agradar a esses pequeninos agradáveis que desonram o seu se­
xo e o sexo que imitam. Nem a natureza nem a razão podem levar
a mulher a amar, nos homens, o que se lhe assemelha; e também
não é adquirindo as suas maneiras que deve procurar fazer-se
amar por eles.
Por isso, quando- abandonando o tom modesto e grave do seu
sexo - elas adoptam os ares estouvanados, longe de seguirem a
sua vocação, renunciam a ela; retiram-se, a si próprias, os direi­
tos que pensam usurpar. «Se fôssemos dif�rentes», dizem elas,
«não agradaríamos aos homens.•• Mentem. E preciso ser louca pa­
ra amar os loucos; o desejo de atrair essas pessoas mostra o gosto
daquela que a ele se entrega. Se não houvessem homens frívolos,
ela apressar-se-ia a fazê-los; e as frivolidades deles são muito
mais obra sua que as suas deles. A mulher que ama os verdadei­
ros homens, e que pretende agradar-lhes, escolhe os meios que se
ajustam ao seu intento. A mulher é coquette por natureza; mas a
sua coquetterie muda de forma e de objecto consoante as suas vis­
tas; regulemos essas vistas pelas da natureza, e a mulher terá a
educação que lhe convém.
As rapariguinhas, quase que desde a nascença, gostam de se
enfeitar: não satisfeitas por serem bonitas, querem que as consi­
derem como tal: vê-se, nos arzinhos que tomam, que já sentem es­
sa preocupação; e ainda mal chegaram ao estado de compreender
o que se lhe diz, já podem ser governadas falando-lhes do que se
pode pensar delas. Já o mesmo motivo, indiscretamente invocado
para os rapazinhos, não exerce sobre eles o mesmo domínio. Con­
tanto que sejam independentes e que se possam divertir, pouco se
importam com o que se pensa deles. Só com o andar do tempo e com
190 muitos trabalhos se consegue sujeitá-los à mesma lei.
Seja com quem for que asraparigas aprendam esta primeira li­
ção, ela é muito boa. Pois que o corpo nasce, por assim dizer, antes
da alma, a primeira cultura deve ser a do corpo: esta ordem é
comum aos dois sexos. Mas o objecto desta cultura é diferente; pa­
ra um, esse objecto é o desenvolvimento das forças, enquanto, pa­
ra o outro, é o dos atractivos: não que essas qualidades devam ser
exclusivas de cada sexo: apenas a ordem é invertida; para as mu­
lheres, é necessária muita força para fazerem tudo quanto fazem,
com graça; é preciso bastante habilidade aos homens, para faze­
rem, com facilidade, tudo o que fazem.
Pela extrema moleza das mulheres, começa a dos homens. As
mulheres não devem ser robustas como eles, mas por eles, para que
os homens que nascerem delas também o sejam. Nisto, os conven­
tos, onde os pensionistas recebem uma alimentação grosseira, mas
se divertem mui to, com corridas, jogos ao ar livre e nos jardins, são
preferíveis aos da casa paterna, onde uma rapariga, delicadamen­
te alimentada, sempre elogiada ou reprimendada, sempre senta­
da sob os olhares de sua m ãe, num quarto bem fechado, não se atre­
vendo a levantar-se, nem a andar, nem a falar, nem a respirar, e
não tem nem um momento de liberdade para brincar, saltar, cor­
rer, gritar, entregar-se à petulância natural da sua idade: sempre,
ou o perigoso relaxamento ou a severidade mal compreendida;
nunca nada consoante a razão. Eis como se arruína o corpo e o cora­
ção da juventude.
As raparigas de Esparta exercitavam-se, como os rapazes, nos
jogos militares; não para irem à guerra, mas para, um dia, gerarem
ilhos capazes de lhe suportar as canseiras. Não é isso o que eu apro­
vo: para dar soldados ao Estado, não é necessário que as mães te­
nham andado com o mosquete e feito o exercício à prussiana; mas
acho que, em geral, a educação grega estava bem organizada, nes­
se sentido. As jovens apareciam muitas vezes em público: não mis­
turadas com os rapazes, mas agrupadas entre elas. Quase não ha­
via uma festa, um sacrifício, uma cerimónia, onde n ão se vissem
grupos de filhas dos cidadãos mais importantes, coroadas de flo­
res, vasos, oferendas, e apresentando aos sentidos depravados dos
Gregos um espectáculo encantador e feito para contrabalançar o
m au efeito da sua indecente ginástica. Fosse qual fosse a im­
pressão que esse costume provocasse nos corações dos homens, a
verdade é que servia perfeitamente para dar ao sexo uma boa cons­
tituição durante a juventude, através de exercícios agradáveis,
moderados, salutares, e para afinar e formar o seu gosto pelo per­
pétuo desejo de-agradar, sem nunca abandonarem os seus costu­
mes.
Logo que essas jovens se casavam, deixavam de aparecer em
público; fechadas nas suas casas, limitavam as suas actividades às
lides da casa e às suas famílias. E essa a maneira de viver que a na­
tureza e a razão prescrevem ao sexo. A verdade é que, dessas mães, 191
nasciam os homens mais sãos, os mais robustos, os mais bem fei­
tos da terra; e, apesar da m á fam a de algumas ilhas, consta que,
de entre todos os povos do mundo -sem exceptuar os próprios Ro­
m anos - não se cita outro onde as mulheres tenham sido simul­
taneamente tão sages, tão amáveis, e melhor tenham conciliado os
costumes com a beleza, além da antiga Grécia.
Sabe-se que as roupagens largas que não incomodam o corpo
contribuíam muito para lhes conservar, a ambos os sexos, essas be­
las proporções que se observam nas suas estátuas, e que ainda ho­
je servem de modelo para a arte, quando a natureza desfigurada
deixou de lhas fornecer, entre nós. De todos esses entraves góticos,
dessas multidões de ligaduras que apertam por todos os lados os
nossos membros, ele não utilizavam nenhum. As mulheres gregas
ignoravam a utilização desses espartilhos com baleias com as
quais as nossas deformam a cintura, em vez de a marcarem. Não
posso acreditar que esse abuso-que, na Inglaterra, é levado a um
extremo inconcebível - não acabe por fazer degenerar a espécie;
e até afirmo que o objecto de agrado que com isso se pretende é de
mau gosto. Não é nada agradável ver uma mulher cortada ao meio,
como uma vespa; isso choca a vista e faz sofrer a imaginação. A gra­
cilidade da cintura tem, como o resto do corpo, as suas proporções,
a sua medida, que, ultrapassada, é certamente um defeito: esse de­
feito até seria chocante, considerado na nudez: como poderia ser
belo, por debaixo do vestido?
Não me atrevo a procurar compreender as razões por que as
mulheres se obstinam em andar couraçadas dessa maneira; um
seio que descai, um ventre que engorda, etc., isso é bastante feio­
concordo - numa pessoa de 20 anos: mas já não choca numa mu­
lher de 30; e, como, mesmo que não o queiramos, é preciso sermos
sempre o que agrada à natureza, e queo olhardo homem nãose dei­
xa enganar, esses defeitos são menos desagradáveis em todas as
idades que a tola afectação de uma rapariguínha de 40 anos.
Tudo quanto incomoda e constrange a natureza é de mau gos­
to; isso é tão verdade para as roupas que cobrem o corpo como pa­
ra os ornamentos do espírito.
A vida, a saúde, a razão, o bem-estar, devem passar antes de
tudo; a graça n ão se consegue sem o bem-estar; a fragilidade não
é a languidez e não é preciso andar incomoda para agradar. Inspi­
ra-se a piedade, quando se sofre; mas o prazer e o desejo procuram
a frescura da saúde.
As crianças de ambos os sexos têm muitas brincadeiras comuns,
e assim deve ser; não se passa a mesma coisa quando são adultos?
Também têm gostos próprios que os distinguem. Os rapazes pro­
curam o movimento e o ruído: tambores, piões, pequenas carrua­
gens; as raparigas gostam mais do que dá nas vistas e serve para
enfeitar: espelhos, jóias, trapos, sobretudo bonecas: a boneca é o di-
192 vertimento especial desse sexo: eis, bem evidenciado, o seu gosto
detenninado pelo seu destino. O físico de arte de agradar está nos
trajes: é tudo quanto as crianças podem cultivar, dessa arte.
Observai uma rapariguinha que passa o dia em volta da sua bo­
neca, a mudar-lhe constantemente de roupa, vestindo-a e despin­
do-a, centenas de vezes, procurando constantemente novas com­
binações de ornamentos, bem ou mal combinados, pouco importa;
os dedos têm falta de jeito, o gosto ainda não está formado, mas j á
s e v ê a sua tendência; nesta eterna ocupação, o tempo passa sem
ela dar por isso; as horas passaram, ela nem o sabe; até se esque­
ce das refeições, tem mais fome de adereços que de al_imento.
«Mas», direis, «ela enfeita a boneca e não a sua pessoa.>> E verda­
de: vê a sua boneca e não se vê a si mesma, nada pode fazer para
si própria, não está fonnada, não tem talento nem força, ainda não
é nada, está toda na sua boneca, nela põe toda a sua coquetterie.
Não a deixará indeinidamente na boneca: espera pelo momento
em que a boneca será ela própria.
Eis, por conseguinte, u:tp primeiro gosto bem m arcado: basta­
-vos segui-lo e regulá-lo. E evidente que a rapariguinha deseja­
ria saber enfeitar a sua boneca, fazer-lhe os laços nas m angas, pôr­
-lhe o chaile, o falbalá, a renda; em tudo isso, fazem-na depender
tão severamente do prazer de outrém que, para ela, seria muito
mais cómodo fazer depender tudo da sua habilidade. Deste modo
se m anifesta a razão para as primeiras lições que se lhe dão: não
são tarefas que se lhe prescrevem, são bondades que se têm p ara
com ela. E, efectivamente, quase todas as rapariguinhas sentem
repugnância por aprender com o maior prazer. De antemão, ima­
ginam-se crescidas, e pensam, com satisfação, que, um dia, esses
talentos poderão servir-lhes para se enfeitarem.
Desde que este primeiro caminho fica traçado, é fácil enveredar
por ele: a costura, o bordado, a renda, vêm por si mesmas. A tape­
çaria não lhes agrada tanto: os móveis estão muito longe da sua
imaginação, não lhes dizem directamente respeito, estão sujeitos
a outras opiniões. A tapeçaria é a distração das mulheres; rapari­
gas jovens nunca se interessarão muito por ela.
Estes progressos voluntários estender-se-ão facilmente até ao
desenho, pois esta arte não é indiferente à de se vestir com gosto:
mas não quereria que a aplicassem à paisagem nem, ainda menos,
ao rosto. Folhas, frutos, flores, drapeados, tudo quanto possa ser­
vir para dar um aspecto elegante aos vestidos, e para fazer um pa­
drão para bordado quando não se encontra nenhum que agrade, is­
so basta-lhes. Geralmente, se é pouco importante para os homens
limitarem os séus estudos aos conhecimentos do costume, isso im­
porta ainda mais às mulheres, porque a sua vida, embora menos
laboriosa, sendo ou devendo ser mais assídua nas suas tarefas e
m ais entremeada de cuidados diversos, não lhes pennite entregar­
-se, por prazer, a nenhum talento em prejuízo dos seus deveres.
Apesar do que dizem os desenvoltos, o bom senso é tão natural 193

L. B. S24 - l3
num sexo como no outro. Em geral, as raparigas são mais dóceis
que os rapazes, e até se deve empregar com elas mais autoridade,
como explicarei mais adiante; mas daí não se segue que devemos
exigir delas sej a o que for cuja utilidade elas não possam com­
preender; a arte das mãos consiste em lha demonstrar em tudo
quanto lhes prescrevem, e isso é tanto mais fácil quanto é certo
que, nas raparigas, a inteligência é mais precoce que nos rapazes.
Esta regra exclui do seu sexo, assim como do nosso, não apenas to­
dos os estudos inúteis que não conduzem a nada de bom e que não
tornam sequer mais agradáveis aos outros aqueles que os fizeram,
mas também todos aqueles cuja utilidade não é da sua idade, e que
a criança não pode prever num futuro remoto. Se não quero que se
insista com um rapaz para que ele aprenda a ler, com mais razão
não quero que se forcem as raparigas a fazê-lo, antes de se lhes ex­
plicar p ara que serve a leitura. E, na m aneira como geralmente se
lhes mostra essa utilidade, segue-se muito mais a sua própria
ideia que a delas. Afinal, que necessidade tem uma raparigas de
saber ler tão cedo? Irá ter, brevemente, uma casa a gorvernar?
Poucas são aquelas que não só utilizam mas que também abusam
dessa ciência fatal; e todas elas são suficientemente curiosas pa­
ra não precisarem de ser forçadas a aprendê-la, desde que tenham
a oportunidade e a ocasião para o fazer. Talvez fosse preferível que,
antes de tudo o m ais, aprendessem a fazer contas; pois não há na­
da que ofereça uma utilidade mais sensível em todas as idades, que
exija uma utilização mais prolongada, e que tão bem sirva para
evitar cometer erros, como as cootas. Se a rapariguinha só recebes­
se as cerejas do seu lanche através de uma operação aritmética, ga­
ranto-vos que aprenderia a calcular muito depressa.
Conheço uma rapariga que aprendeu mais depressa a escrever
que a ler, e que começou a escrever com a agulha antes de saber es­
crever com a pena. De entre todas as letras, a primeira que quis es­
crever foi o O. Fazia constantemente O grandes e pequenos, O de
todos os tamanhos, O, uns dentro dos outros, e sempre traçados ao
contrário. Infelizmente, um dia em que estava ocupada com esse
útil exercício, viu-se num espelho; e achando que essa atitude
constrangida lhe dava m au aspecto, fez como Minerva: deitou fo­
ra a pena e nunca mais quis fazer O. Seu irmão não gostava mais
que ela, da escrita; mas o que o contrariava era o incómodo e não
o ar que ela lhe dava. Arranjou-se outro pretexto para a levar no­
vamente à escrita; a rapariguinha era delicada e frívola, não acei­
tava que a sua roupa servisse para as suas irmãs; era marcada pe­
la mãe e esta deixou de querer fazê-lo; foi preciso que ela própria
a m arcasse: bem se pode im aginar o resto do progresso.
Justificai sempre as tarefas que impondes às rapariguinhas,
mas não deixeis de lhas impor. A ociosidade e a indocilidade são os
dois defeitos mais perigosos p ara elas e cuj a cura é mais difícil, de-
194 pois de contraídos. As raparigas devem ser vigilantes e laboriosas;
e isso não é quanto baste: devem ser menstruadas bastante cedo.
Esta contrariedade - se acaso o for para elas - é inseparável do
seu sexo; se alguma vez dela se livram será para sofrer outras mais
cruéis. Durante toda a sua vida estarão sujeitas a um inçómodo
mais contínuo e mais severo, que é o das boas-maneiras. E preci­
so começar por exercitá-las nas contrariedades, a fim de que estas
nunca venham a ser sacrifícios, para elas; por habituá-las a domi­
nar todas as suas fantasias, para as submeter à vontade de
outrém. Quando elas querem trabalhar constantemente, é conve­
niente obrigá-las, de vez em quando, a não fazerem nada. A dis­
sipação, a frivolidade, a inconstância, são os defeitos que nascem
facilmente dos seus primeiros gostos corruptos e sempre satisfei­
tos. Para prevenir esse abuso, ensin ai-as sobretudo a dominar-se.
Nos nossos insensatos costumes, a vida da mulher honesta é um
perpétuo combate contra si mesma; é justo que esse sexo compar­
tilhe o castigo dos m ales que nos causou.
Impedi que as raparigas se aborreçam nas suas ocupações e
que se apaixonem pelos seus divertimentos, como sempre aconte­
ce nas educações vulgares, onde se põe - como diz Fenelon - to­
do o aborrecimento num lado e todo o prazer no outro. O mais gra­
ve de todos esses inconvinientes não se fará sentir, se as regras pre­
cedentes tiverem sido respeitadas, a não ser quando as pessoas
que estiverem na sua companhia lhes desagradem. Uma rapa­
riguinha que ame sua mãe ou a sua amiga, trabalhará durante
todo o dia ao seu lado, sem se aborrecer; só a tagarelice a compensa­
rá de todo o seu esforço. Mas, se aquela que a governa lhe é insu­
portável, con�iderará com o mesmo desgosto tudo quanto ela fizer
diante de si . E muito difícil que aquelas que não se sentem bem ao
lado de suas m ães nem ao lado de ninguém, possam vir, um dia, a
virar para bem; mas, para ajuizar dos seus verdadeiros sentimen­
tos, é preciso observá-las, e não se fiar no que dizem; porque são
lisonjeadoras, dissimuladas, e muito cedo aprendem a aparentar
sentimentos que não experimentam . Também não se deve obrigá­
-las a amar a própria mãe; a afeição não vem por dever, não é pa­
ra isso que serve a autoridade. A dedicação, os desvelos, o próprio
hábito, farão que a mãe seja amada pela filha, se não fizer nada pa­
ra provocar o seu ódio. A própria submissão em que ela a mantém,
longe de enfraquecer esse afecto, só o poderá aumentar, porque co­
mo a dependência é um estado natural das mulheres, as raparigas
sentem-se feitas para obedecer.
Pela única razão de que têm, ou devem ter, pouca liberdade,
levam ao exagero aquela que se lhes dá; exageradas em tudo, en­
tregam-se aos jogos com mais entusiasmo que os rapazes: é o se­
gundo dos inconvinientes de que acabei de falar. Esse entusiasmo
deve ser moderado; pois é a causa de vários vícios particulares às
mulheres, como, por exemplo, o capricho da predilecção, através do
qual uma mulher se deixa transportar, hoje em dia, por um deter- 195
minado objecto que amanhã deixa de lhe interessar. A inconstân­
cia dos gostos é-lhes tão funesta como o seu excesso, e ambos têm
a mesma origem . Não lhes retireis a alegria, os riscos, o barulho,
as brincadeiras; mas impedi que elas se saciem de um para se de­
dicarem a outro; não suporteis - nem que seja durante um único
momento da sua vida - que elas deixem de sentir o freio. Habi­
tuai-as a ver-se interrompidas no meio das suas brincadeiras e
obrigadas a dedicar-se a outras tarefas, sem resmunguices. Nis­
to, o hábito também é o suficiente, pois não faz mais que secundar
a natureza.
O resultado desta contínua opressão é uma docilidade de que
as mulheres têm precisão durante a sua vida, porque nunca dei­
xam de estar submetidas, ou a um homem, ou à opinião dos ho­
mens, e porque nunca lhes é permitido colocar-se acima dessas
opiniões. A primeira e a mais importante qualidade de uma mu­
lher é a doçura: feita para obedecer a um ser tão imperfeito como
o homem -frequentemente tão cheio de vícios e sempre tão cheio
de defeitos -, muito cedo ela deverá aprender a suportar mesmo
a injustiça e os erros de um m arido, sem se queixar; não é para ele,
mas para ela, que deve ser doce. A amargura e a obstinação das
mulheres nunca conseguem m ais do que agravar os seus males e
os m aus procedimentos dos m aridos; estes sentem que não é com
essas armas que elas os devem vencer. O céu não as fez insinuan­
tes e persuasivas para se tornarem rabujentas; não as fez fracas
para se mostrarem imperiosas; não lhes deu uma voz tão doce pa­
ra proferirem injúrias; não lhes fez traços tão delicados para que
elas os desfigurassem num acesso de cólera. Quando se zangam,
são capazes de tudo: em muitos casos, têm razões de queixa, mas
procedem sempre mal, quando ralham. Cada um deve m anter o
tom do seu sexo; um m arido excessivamente brando pode tornar
uma mulher impertinente; mas- a não ser que o homem seja um
monstro - a doçura de uma mulher acalma-o, e, mais cedo ou
mais tarde, triunfa dele.
Que as raparigas sejam sempre submissas, mas que as m ães
não sejam sempre inexoráveis. Para tornar uma jovem dócil, não
é necessário torná-la infeliz; para a tornar modesta, não é preci­
so embrutecê-la; pelo contrário, não acharia mal que, por vezes,
lhe permitissem empregar um pouco de dissimulação, não para
evitar a punição da sua desobidiência, mas para se eximir a obe­
decer. Não se trata de lhe tornar a dependência penosa, basta fa­
zer-lha sentir. A manha é um talento natural ao sexo; e, persua­
dido de que todas as tendências n aturai s são boas e rectas em si
mesmas, a minha opinião é de que essa deve ser cultivada, tal co­
mo as outras: trata-se apenas de evitar que seja usada abusiva­
mente.
Sobre a oportunidade desta observação, dirijo-me a todos os
196 observadores de boa-fé. Não pretendo que, a este respeito, se ex a-
minem as mulheres, por si próprias: os nossos incómodos precei­
tos podem forçá-las a aguçar o espírito. Quero que se examinem as
raparigas, as rapariguinhas, que, por assim dizer, acabaram de
nascer: que sejam comparadas com os rapazinhos da mesma ida­
de; e, se, ao lado delas, estes não parecerem pesados, estouvados
e estúpidos, é evidente que estou enganado. Permiti-me citar um
único exemplo, retirado da mais pura ingenuidade infantil.
Há muito o hábito de proibir as crianças de pedirem seja o que
for, quando estão à mesa; porque se pensa que a maneira mais
conveniente de as educar é sobrecarregá-las com preceitos inú­
teis: como se um bocadinho disto ou daquilo não fosse facilmente
concedido ou recusado1, sem a necessidade de fazer morrer cons­
tantemente uma pobre criança, vítima de uma cobiça aguçada pe­
la esperança. Todos conhecem a habilidade de um rapazinho sub­
metido a essa lei, e que, tendo sido esquecido à mesa, se lembrou
de pedir o sal, etc. Não digo que o podiam ter repreendido por ter
pedido directamente sal e indirectamente a carne; a omissão fora
tão cruel, que, mesmo que ele tivesse infringido abertamente a lei
e tivesse francamente declarado que estava com fome, não posso
acreditar que o castigassem. Mas eis como se arranjou-na minha
presença - uma menininha de 6 anos, num caso muito mais di­
fícil; pois, além de lhe ser rigorosamente proibido pedir alguma
coisa, directa ou indirectamente, a desobediência não teria sido
desculpada, porque já comera de todos os pratos, excepto de um
único, que se tinham esquecido de lhe servir e que ela cobiçava
muito.
Ora, para conseguir que esse esquecimento fosse reparado sem
que a pudessem acusar de desobediência, fez apontando com o de­
do, a revista de todos os pratos, dizendo em voz alta, à medida que
apontava para eles: «Comi disto, comi disto»; mas afectou tão visi­
velmente passar sem dizer nada por aquele de que não comera, que
alguém que se apercebeu disso lhe disse: «E disto, corrtestes?»<<Oh!
Não!>>, respondeu em voz baixa e pequenina glutona, baixando os
olhos; comparai: este truque é uma astúcia de rapariga; o outro foi
um ardil de rapaz.
Ora isto é bem, e nenhuma lei geral é má. Estejeito particular
concedido ao sexo é um a indeminização muitojusta, pelaforçaque
ele tem a menos; sem isso, a mulher não seria a companheira do ho­
mem, seria a sua escrava: é através desta superioridade de talen­
to que ela se mantém sua igual e que o governa, obedecendo-lhe.
A mulher tem tudo contra ela: os nossos defeitos, a sua timidez, a

1 Uma criança só se torna importuna quando vê vantagens em sê-lo;


mas nunca pedirá duas vezes a mesma coisa, se a primeira resposta for
sempre irrevogável. 197
sua fraqueza; a seu favor só tem a sua astúcia e a sua beleza. Não
será justo que cultive tanto uma como a outra? Mas a beleza não
é geral: desaparece através de mil acidentes, passa com os anos; o
hábito destrói-lhe o efeito. Só no espírito reside o verdadeiro recur­
so do sexo: não esse tolo espírito a que o mundo atribui tanto va­
lor, e que para mais nada serve do que para tornar a vida feliz; mas
o espírito do seu estado, a arte de tirar parti do do nosso, e de se pre­
valer com as nossas próprias vantagens. Ninguém imagina como
essa arte das mulheres nos é útil a nós próprios, quanto encanto
ela acrescenta à sociedade dos dois sexos, de que m aneira ela ser­
ve para reprimir a petulância das crianças, quantos m aridos bru­
tais retém, de que maneira ela conserva a harmonia nos casais
que, sem isso, viveriam na discórdia. As mulheres artificiosas e
más abusam dela, bem sei; mas de que é que o vício não abusaria?
Não destruamos os instrumentos da felicidade, só porque - às ve­
zes - os m aus os utilizam, só para fazer o mal.
Pode brilhar-se pelos adornos, mas só se agrada pela pessoa. As
nossas belas roupagens não nos revelam tal como somos; muitas
vezes, desguarnecem, por serem tão rebuscadas, e, frequentemen­
te, aqueles que as usam são os que menos se notam. A educação das
raparigas é, sob esse ponto de vista, completamente inversa. Pro­
metem-se-lhes adornos como recompensa, incute-se-lhes o gos­
to pelos enfeites mais bonitos: «Como ela está bela!», diz-se-lhes
quando elas estão mui to enfeitadas. E, pelo contrário, dever-se-ia
levá-las a compreender que um excesso de adornos só serve para
esconder defeitos, e que o verdadeiro triunfo da beleza é brilhar por
si mesma. O amor pelas modas é de m au gosto, porque os rostos não
mudam com elas, e porque, como a figura continua a ser a mesma,
o que lhe fica bem uma vez fica-lhe sempre bem.
Se eu visse uma jovem a pavonear-se nos seus enfeites, sentir­
-me-ia preocupado com a sua figura assim disfarçada e com o que
os outros pudessem pensar; diria: «Todos esses enfeites ornamen­
tam-na excessivament�, é pena: credes que ela pudesse aguentar
enfeites mais simples? E suficiente bela para poder passar sem is­
to ou sem aquilo?>> Talvez, então, ela seja a primeira a pedir que lhe
retirem esse adorno, e que a julguem: é caso para a aplaudir, se
possível. Nunca a louvaria tanto como quando ela estivesse vesti­
da com o vestido mais simples. Quando ela só considerar os orna­
mentos como um suplemento para as graças de pessoa e como uma
confissão táctica de que precisa de auxílio para agradar, não se
sentirá satisfeita com os seus enfeites: sentir-se-á humilhada; e,

1 As mulheres que têm a pele suficientemente branca para poderem


dispensar as rendas fariam muita inveja às outras se não as usassem. São
quase sempre as pessoas feias que incutem as modas a que as belas fazem
198 a tolice de se sujeitar.
se, mais ornamentada que de costume ela ouvir alguém dizer-lhe:
<<Como ela está bela!>>, corará de despeito.
No entanto, há figuras que precisam de ornamentos; mas não
há nenhuma que exija ornamentos dispendiosos. Os ornamentos
ruinosos são a vaidade da categoria e não da pessoa, dependem
apenas do preconceito. A verdadeira coquetaria é, por vezes, re­
buscada, mas nunca é aparatosa; e Juno vestia-se mais soberba­
mente que Vénus. <<Não a podendo fazer bela, fazei--la rica>>, dizia
Apelle a um pintor que pintava Helena muito sobrecarregada com
ornamentos. Também já notei que os enfeites mais espalhafatosos
denunciavem, na m aioria das vezes, mulheres feias; não é possí­
vel ter uma vaidade mais desajeitada. Daí a uma jovem que tenha
gosto e que despreze a moda, fitas, gaze, musselina e flores; sem
diamantes, sem enfeites nem rendas1, vestir-se-á de uma m anei­
ra que a tornará cem vezes mais encantadora que se tivesse usa­
do todos os brilhantes trapos de Duchapt.
Como aquilo que é bem é sempre bem, e como é preciso estar
sempre o melhor possível, as mulheres que são conhecedoras de
adornos escolhem sempre os bons, e limitam-se a eles; e, como não
os mudam todos os dias, andam com eles menos preocupadas que
aquelas que nunca sabem o que escolher. O verdadeiro cuidado
com os ornamentos exige poucos vestidos. As jovens raramente
têm vestidos de aparato; o trabalho, as lições, preenchem os seus
dias; porém , exceptuando o carm im, costumam apresentar-se com
tanto esmero como as damas, e, muitas vezes, com mais bom gos­
to que algumas delas.
O abuso dos enfeites não é o que se pensa: provém muito mais
do aborrecimento que da vaidade. Uma mulher que leva seis horas
a enfeitar-se não ignora que não consegue apresentar-se mais
bem que uma que só levou meia-hora para o fazer; mas essa demo­
ra é uma maneira de ocupar a aborrecida lentidão do tempo, e va­
le mais distrair-se consigo mesma que aborrecer-se com tudo.
Sem os adornos, como ocuparia a sua vida, desde o meio dia até às
nove horas da noite? Reunindo mulheres em sua volta, é diverti­
do impacientá-las, e isso já é alguma coisa; evitam-se os tête-à-tê­
te com um marido que só se vê a essa hora, e isso ainda é mais im­
portante; e, depois, vêm as vendedoras, os adelos, os senhorinhos,
os pequenos autores, os versos, as canções, as brochuras: sem os
preparativos para se vestir, nunca conseguiriam ter tantas dis­
tracções. O único e verdadeiro proveito que se tira disso é o pretex­
to de se exibir um pouco mais do que quando se está vestida; mas
esse pretexto de se exibir um pouco mais do que quando se está ves­
tida; mas esse proveito talvez não seja tão grande quanto se pen­
sa, e as mulheres que tanto se preocupam com os enfeites não ga­
nham tanto com isso quanto estariam dispostas a afirmar. Dai,
sem escrúpulos, uma educação de mulher às mulheres, fazei que
elas saibam cuidar da sua casa e da sua família: a grande toilette 199
desaparecerá por si mesma, e elas passarão a apresentar-se ves­
tidas com m ais bom gosto.
A principal coisa que as jovens notam, à medida que vão cres­
cendo, é que todos esses enfeites estranhos não lhes bastam, se elas
não tiverem os seus enfeites próprios. Não é possível oferecer-se
a belez a a si próprio e não é tão cedo que se adquire a coquetterie;
mas já é possível procurar dar um aspecto agradável aos seus ges­
tos, uma entoação sedutora à sua voz, compor o seu aspecto, andar
com elegância, tomar atitudes graciosas e procurar, de todos os
modos, realçar os seus atributos. A voz ganha em volume, afirma­
-se e aquire timbre; os braços desenvolvem-se, o andar torna-se
mais seguro, e elas apercebem-se de que, seja de que maneira for
estiverem vestidas, há uma arte de atrair as atenções. A partir daí,
já não se trata unicamente de agulha e de habilidade: novos talen­
tos se apresentam e já demostram a sua utilidade.
Sei que as instituições severas querem que não se ensine às ra­
parigas nem o canto, nem a dança, nem nenhuma das artes agra­
dáveis. Isso parece-me ridículo: e então, a quem querem que elas
sejam ensinadas? Aos rapazes? A quem é preferível ensinar esses
talentos: aos homens ou às mulheres? A ninguém, responderão
elas; as canções profanas também são crimes; a dança é uma inven­
ção do demónio, e uma rapariga deve ter, como única distracção,
o seu trabalho e a oração. Eis bem estranhas distracções p ara uma
criança de 10 anos! Cá por mim, receio muito que todas essas pe­
queninas santas que são forçadas a passar a sua infância a orar a
Deus p assem a sua juventude dedicadas a outra coisa completa­
mente diferente, e que - depois de casadas- reparem da melhor
m aneira que puderem, o tempo que pensam ter perdido enquan­
to solteiras. Considero que é preciso ter em vista o que convém à
sua idade, assim como ao seu sexo; que uma rapariga jovem n ão de­
ve viver como a sua avó; que deve ter animação, ser agradável,
brincalhona, cantar, dançar tanto quanto queira e desfrutar de to­
das os prazeres inocentes, próprios da sua idade; nunca chegará
tarde de mais o tempo de se mostrar sensata e de adoptar um com­
portamento mais grave.
Mas a necessidade dessa mudança será real? Não será, uma
vez mais, um fruto dos nossos preconceitos? Sujeitando as mulhe­
res honestas unicamente a tristes deveres, baniu-se do casamen­
to tudo quanto o podia tornar agradável para os homens. Será de
admirar que a taciturnidade que eles vêem reinar em suas casas
os afaste delas, ou que se sintam tão poucp tentados a tomar um
estado que lhes parece tão desagradável? A custa de exagerar to­
dos os deveres, o cristianismo torna-as impraticáveis e inutéis; à
custa de interditar às mulheres o canto, a dança e todos os diver­
mentos da sociedade, elas tornam-se enfadonhas, resmungonas,
insuportáveis nas suas casas. Não existe nenhuma religião em que
200 o casamento seja submetido a deveres tão severos, e nenhuma em
que um compromisso tão santo seja tão desprezado. Tanto se fez
para impedir as mulheres se serem amáveis, que se se conseguiu
que os maridos se tornassem indiferentes. Isso não deveria acon­
tecer; compreendo muito bem: mas digo que isso devia ser assim,
porque, enfim, os cristãos são homens. Cá por mim, desejaria que
uma jovem inglesa cultivasse os talentos agradáveis para agradar
ao marido que viesse a ter, com tanto afinco como uma jovem
Albanesa que os cultiva para o harém de lspahan. «Üs maridos»,
dir-me-ão, «não se interessam muito por esses talentos.>> Real­
mente, acredito nisso,quando esses talentos -longe de serem uti­
lizados para lhes agradar - só servem de isco para atrair para
suas casas jovens impudentes que os desonram. Mas não credes
que uma mulher amável e sage, ornamentada com semelhantes
talentos, e que os consagrasse ao prazer do seu marido, não au­
mentaria com isso a felicidade da sua vida, e não o impediria ­
quando ele sai do seu gabinete com a cabeça esgotada -de ir pro­
curar recreações fora de sua casa?Nunca ninguém viu famílias fe­
lizes; assim reunidas, em que cada um sabe contribuir com a sua
parte para as distracções com uns? Que me digam se a confiança e
a familiaridade que nelas reina, se a inocência e a doçura dos pra­
zeres que nela se desfruta não compensa bem o que os prazeres pú­
blicos têm de mais ensurdecedor!
Exagerou-se muito ao reduzir a artes os talentos agradáveis;
generalizaram-nos muito; de tudo fizeram máxima e preceito, e
tornou-se muito aborrecido para as jovens aquilo que, para elas,
só deveria ser divertimento e brincadeiras folionas. Não posso con­
ceber nada mais ridículo que um velho professor de dança ou de
canto, abordar, com um ar carrancudo,jovens pessoas que só que­
rem rir, e tomar - para lhes ensinar a sua frívola ciência - um
tom mais pedantesco e mais magistral que o que se tomaria para
lhes ensinar o catecismo. Será que a arte de cantar depende da mú­
sica escrita? Será que não é possível tornar a sua própria vos fle­
xível e afinada, aprender a cantar com gosto, mesmo a fazer-se
acompanhar, sem conhecer uma única nota de música? Será que
o mesmo género de canto não convém a todas as vozes? Será que
o mesmo método não convém a todos os espíritos? Nunca me con­
seguirão convencer de que as mesmas atitudes, os mesmos passos,
os mesmos movimentos,os mesmos gestos, as mesmas dançascon­
venham tanto a uma pequenina morena viva e picante como a uma
grande e bela loura, de olhar lânguido. Por isso, quando vejo um
mestre de dança dar exactamente, a todas, as mesmas lições, pen­
so: «Este homem obedece à sua rotina, mas não sabe nada da sua
arte�>')
Pergunta-se se, para as raparigas, convêm mais os mestres ou
as mestras. Não sei: gostaria muito de que elas não precisassem
nem de uns nem de outras,que elas aprendessem livremente o que
tanta tendência têm para a prender, e que não víssemos, constan- 201
temente, a errar pelas nossas cidade, tantos bailarinos enfeitados.
Tenho uma certa dificuldade em acreditar que o comércio dessas
pessoas não seja mais nocivo às raparigas que o aproveitamento
das suas lições, e que a maneira que têm de falar não dê às suas
alunas o primeiro gosto pelas frivolidades - para eles tão impor­
tantes - de que, a exemplo deles, elas não tardarão a fazer a sua
única ocupação.
Nas artes cujo objecto é unicamente o recreio, tudo pode servir
de mestre para as jovens pessoas: o pai, a mãe, o irmão, a irmã, as
amigas, as governantas, o espelho, e, sobretudo, o seu próprio gos­
to. Não coo vém propor-lhes as lições: é preciso que elas as peçam;
não se deve transformar uma recompensa numa tarefa; e é espe­
cialmente neste género de estudos que o primeiro êxito é o desejo
de obter sucesso neles. De resto, se é absolutamente necessário que
elas recebam lições em regra, não decidirei do sexo daqueles que
lhas devem dar. Não sei se é indispensável que um mestre de dança
pegue na mão delicada e branca de uma aluna, que lhe faça
encurtar a saia, olhar para cima, abrir os braços, avançar um seio
palpitante; mas sei perfeitamente que, por nada deste mundo, de­
sejaria ser esse mestre.
Através da habilidade e dos talentos, forma-se o gosto; através
do gosto, o espírito abre-se insensivelmente para as ideias do be­
lo em todos os géneros,, e, finalmente para as noções morais que
eom ele se relacionam. E talvez essa uma das razões por que o sen­
timento da decência e da honestidade se insinua mais cedo nas ra­
parigas que nos rapazes; pois que, para crer que esse sentimento
precoce seja obra das governantas, seria preciso estar muito mal
instruído sobre a natureza do espírito h umano. O talento de saber
falar ocupa o primeiro lugar, na arte de agradar; é só através de­
le que se podem acresc�ntar novos encantos àqueles cujo hábito
acostuma os sentidos. E o espírito que não só vivifica o corpo mas
que, de uma certa maneira, o renova; é pela sucessão das ideias e
dos sentimentos que ele anima e varia a fisionomia; e é pelos dis­
cursos que ele inspira que a atenção, mantida suspensa, cons«;lrva
durante muito tempo o mesmo interesse pelo mesmo objecto. E, ao
que me parece, por todas estas razões que as mesmas jovens adqui­
rem tão depressa uma agradável maneira de falar, que sabem
acentuar os seus propósitos mesmo antes de os sentirem, e que os
homens se divertem tão cedo a escutá-las, antes mesmo de que
elas os possam compreender; eles espiam o primeiro momento des­
sa inteligência para, assim, penetrarem no do sentimento.
As mulheres têm a língua flexível; começam a falar mais"cedo,
com mais facilidade e mais agradavelmente que os homens. Tam­
bém são acusadas de falar mais que eles: assim deve ser, e eu de
boa vontade transformaria essa censura em elogio; nelas, tanto a
boca como os olhos têm a mesma actividade, e pela mesma razão.
202 O homem diz aquilo que sabe, e a mulher diz o que agrada; para
falar, o primeiro precisa de ter conhecimentos e a segunda gosto;
um deve ter, como objecto principal, coisas úteis, enquanto que a
outra coisas agradáveis. Os seus discursos não devem ter formas
comuns, a não ser as da verdade.
Por conseguinte, não se deve impedir a tagarelice das rapari­
gas, nem a dos rapazes, com esta severa interrogação: Para que
serve isso? mas com esta outra - para a qual não é mais fácil en­
contrar resposta: Que efeito isso faria? Durante primeira idade,
quando, não sabendo ainda distinguir o bem e o mal, elas não são
os árbitros de ninguém, deve impor-se-lhes, como lei, dizer sem­
pre coisas agradáveis às pessoas a quem falam; e o que torna mais
difícil a prática desta regra é que ela está constantemente subor­
dinada à primeira, que é de nunca mentir.
Ainda vejo nisso bastantes outras dificuldades, mas são para
uma idade mais avançada. Quanto ao presente, as jovens só pre­
cisam, para dizer a verdade, de a dizer sem grosseirice; e, como na­
turalmente essa grosseirice lhes repugna, a educação facilmente
as ensina a evitá-la. Geralmente, noto, no comércio do mundo, que
a cortesia dos homens é mais oficiosa e que a das mulheres é mais
acariciadora. Esta diferença não depende de nenhum preconceito:
é natural. O homem parece estar mais empenhado em servir, e a
mulher em agradar. Daí se segue que, seja qual for o carácter das
mulheres, a sua cortesia é menos falsa que a nossa; ela não faz se
não alargar o seu instinto mais importante; mas quando um ho­
mem finge sentir-se mais interessado pelo meu interesse que pe­
lo seu, tenho a certeza de que está a mentir -seja como for que ele
tenha expressado essa hipocrisia. Por conseguinte, nada custa às
mulheres serem corteses, nem, por conseguinte, às raparigas
aprenderem a tornar-se tais. A primeira lição é a natureza que a
dá; a arte limita-se a segui-la e a determinar -consoante os nos­
sos costumes -sob que forma ela se deve evidenciar. Com respei­
to à cortesia entre elas, isso já é outro assunto; põem nisso um ar
tão forçado e atenções tão frias que, incomodando-se reciproca­
mente, não se esforçam muito para disfarçar o seu embaraço, e pa­
recem sinceras quando mentem não procurando disfarçá-lo. Con­
tudo, por vezes, as jovens estabelecem amizades mais francas. Na
sua idade, a boa disposição substitui a bondade natural; e, satis­
feitas consigo mesmas, sentem-se satisfeitas com toda a gente.
Também é constante que se beijam com mais boa vontade e se aca­
riciam com mais graça quando estão diante de homens, orgulhosas
por aguçarem impunemente a sua cobiça com a imagem dos favo­
res que sabem fazer-lhes invejãr.
Se não se deve permitir aos jovens que façam perguntas in­
discretas, com muito mais razão se devem pr:oibi-las às rapárigas
cuja curiosidade satisfeita ou mal eludida gera consequências
muito diferentes, porque têm, como sabemos, uma grande pene­
tração para pressentir os mistérios que se lhe escondem e uma 203
grande arte para os descobrir. Mas, sem suportar as suas interro­
gações, gostaria que elas fossem muito interrogadas, que se fizes­
se tudo para as levar a falar, que fossem impacientadas, para se
deixarem ir a falar mais à vontade, para se tornarem vivas na res­
posta, para lhes descontrair o espírito e a língua, na medida em que
fosse possível fazê-lo sem perigo. Quando dirigidas com arte, es­
sas conversas -que sempre provocam a boa disposição -consti­
tuiriam um divertimento encantador para essa ideia, e poderiam
levar aos corações inocentes dessas jovens as primeiras e, quiçá, as
mais úteis lições de moral que elas alguma vez pudessem vir a re­
ceber durante toda a sua vida, dizendo-lhes -a respeito da atrac­
ção do prazer e da vaidade-a que qualidades os homens atribuem
verdadeiramente a sua estima, e em que consiste a glória e a feli­
cidade de uma mulher honesta.
É fácil compreender que se os rapázinhos não se encontram em
estado de formar uma verdadeira ideia sobre religião, com muito
mais razões a mesma ideia se encontra acima da compreensão das
raparigas: é por isso mesmo que eu preferiria que as raparigas
começassem mais cedo a ouvir falar da religião; porque, se for pre­
ciso esperar que elas se encontrem em estado de discutir metodi­
camente esses assuntos-profundos, corre-se o risco de nunca se
lhes chegar a falar disso. A razão das mulheres é uma razão prá­
tica que as leva a encontrar muito habilmente os meios para atin­
gir uma finalidade conhecida, mas que não lhes permite encontrar
essa finalidade. A relação social do sexos é admirável. Dessa socie­
dade resulta uma pessoa moral de que a mulher constitui o olho e
o homem o braço, mas dependendo de tal modo um do outro que é
pelo homem que a mulher sabe o que é preciso ver, e pela mulher
que o homem aprende o que é preciso fazer. Se a mulher pudesse
remontar aos princípios, tão bem como o homem, e se o homem ti­
vesse, tão bem como ela, o espírito dos pormenores, sempre inde­
pendentes um do outro, eles viveriam numa eterna discórdia, e a
sua sociedade não poderia subsistir. Mas, na harmonia que reina
entre eles, tudo tende para a finalidade comum; não se sabe qual
dos dois está mais empenhado nisso; cada um segue a impulsão do
outr_o; cada um obedece, e ambos comandam.
E justamente porque o comportamento da mulher está subme­
tido à opinião pública que a sua crença está submetida à autorida­
de. Cada rapariga deve ter a religião de sua mãe, e cada mulher a
de seu marido. Mesmo que essa religião seja falsa, a docilidade que
submete a mãe e a família à ordem da natureza, apaga, perante
Deus, o pecado do erro. Como não têm a possibilidade de serem ár­
bitros, devem acatar as decisões dos pais e dos maridos, tal como
a da Igreja.
Como não podem deduzir, por si mesmas, a regra da sua boa-fé,
as mulheres não lhe podem atribuir, como limites, as da evidência
204 e da razão; mas deixando-se convencer por mil incitamentos des-
conhecidos, encontram-se sempre para além ou para aquém da
verdade. Sempre exageradas, todas elas são ou libertinas ou devo­
tas; não se vê nenhuma que saiba reunir a sageza com a piedade.
A origem domalnãose encontra unicamente no carácter arrebata­
do do seu sexo, mas também na autoridade mal dirigida do nosso:
a libertinagem dos costumes leva-a a desprezar, o receio do .arre­
pendimento torna-a tirânica, e eis porque a encontramos sempre
colocada num extremo ou no outro.
Como a autoridade deve decidir da religião das mulheres, não
se trata tanto de lhes explicar as razões que se têm para crer co­
mo de lhes expor nitidamente aquilo em que se crê: porque a fé que
se sente por ideias obscuras é a primeira fonte do fanatismo, e por­
que a que se exige para coisas absurdas conduz à loucura ou à in­
credulidade. Não sei ao que mais impelem os nossos catecismos: se
a ser ímpio ou a ser fanático; mas sei perfeitamente que eles for­
mam necessariamente, ou um ou outro.
Em primeiro lugar, para ensinardes a religião às meninas, não
lha mostrais nunca como um objecto de tristeza e de embaraço,
nunca como uma tarefa ou como um dever; por conseguinte, nun­
ca as obrigueis a aprender de cor nada que se relacione com esse
estudo, nem sequer as orações. Contentai-vos em recitar regu­
larmente as vossas, diante delas, sem no entanto as forçardes a as­
sistir a esse acto. Escolhei-as breves, segundo o ensinamento de
Jesus Cristo. Fazei-las sempre com o recolhimento e o respeito
convenientes; lembrai-vos de que, tendo pedido ao Ser Supremo a
sua atenção, para vos escutar, tendes a obrigação de prestar aten­
ção ao que lhe ides dizer.
Não é tão importante que as raparigas conheçam tão cedo a sua
religião, como que elas a saibam bem, e, sobretudo, que a amem.
Quando lha tornais difícil, quando lhes descreveis Deus sempre
zangado com elas, quando lhe impondes - em nome dele - mil
obrigações penosas que elas nunca vos vêem cumprir, que poderão
elas pensar, se não que saber o seu catecismo e orar a Deus são os
deveres das raparigas novas - e desejarem crescer depressa pa­
ra ficarem, como vós, isentas de toda essa sujeição? O exemplo! O
exemplo! Sem isso, nunca se consegue nada, das crianças.
Quando lhes explicais os artigos da fé, que isso seja feito em for­
ma de instrução directa, e não através de perguntas e respostas.
Elas devem sempre responder o que pensam, e não o que lhes foi
ditado. Todas as respostas do catecismo são a contrasenso: é o alu­
no que instrui o mestre; até chegam a ser mentiras, na boca das
crianças, pois que estas explicam o que não compreendem e afir­
mam o que não se encontram em estado de crer. Entre os homens
mais inteligentes, que me mostrem aqueles que não mentem quan­
do recitam o catecismo.
A primeira pergunta que vejo no nosso é esta: Quem vos criou
e pôs no mundo? A isso, a rapariguinha-como crê que foi sua mãe, 205
responde, sem hesitar, que foi Deus. A única coisa que nisso vê, é
que a uma pergunta que não compreende bem, está a dar uma res­
posta que não compreende de maneira nenhuma.
Gostaria que um homem que conhecesse bem o desenvolvi­
mento do espírito das crianças se dispusesse a fazer, para elas, um
catecismo. Talvez fosse o livro mais útil que alguma vez se tives­
se escrito, e, na minha opinião, isso não seria o que menos honra
faria ao seu autor. O que é certo é que, se o livro fosse bom, não se
pareceria, em nada, com os nossos.
Um tal catecismo só será bom quando, apenas pelas perguntas,
a criança puder construir as respostas, por si própria, sem as ter
aprendido; é evidente que, por vezes, se verá na necessidade de,
por seu lado, interrogar. Para mais bem fazer compreender o que
pretendo dizer, seria necessário uma espécie de modelo, e bem sin­
to o que me faz falta, para o traçar. No entanto, tentarei dar uma
pequena ideia dele.
Imagino, então, que, para irmos à primeira pergunta do nosso
catecismo, seria preciso que este começasse mais ou menos assim:

ACRIADA

Lembrais-vos do tempo em que vossa mãe era menina?

ACRIANÇA

Não, minha criada. .

ACRIADA

Como é possível que não vos lembreis, vós que tão boa memó­
ria tendes?

ACRIANÇA

É porque ainda não vivia.

ACRIADA

Então, não vivestes sempre?

ACRIANÇA

Não.

ACRIADA

206 Vivereis sempre?


ACRIANÇA

Sim.

ACRIADA

Sois jovem ou velha?

ACRIANÇA

Sou jovem.

ACRIADA

E a senhora vossa avó, é jovem ou velha?

ACRIANÇA

É velha.
ACRIADA

Já foi jovem?

ACRIANÇA

Sim.

ACRIADA

Porquê que já não o é?

ACRIANÇA

Porque envelheceu.

ACRIADA

Envelhecereis como ela?

ACRIANÇA

1 Se, em todas as passagens onde pus não sei, a criança responde de


outra maneira, é preciso desconfiar dessa resposta e obrigá-la a explicá-
-la muito bem. 207
ACRIADA

Onde estão os vossos vestidos do ano passado?


_
ACRIANÇA

Foram desmanchados.

ACRIADA

E porque foi que os desmancharam?

ACRIANÇA

Porque estavam pequenos de mais para mim.

ACRIADA

E porquê que estavam pequenos demais para vós?

ACRIANÇA

Porque cresci.

ACRIADA

Continuareis a crescer?

A CRIANÇA

Sim.

ACRIADA

E em que se tornam as meninas crescidas?

ACRIANÇA

Tornam-se mulheres.

ACRIADA

E em que se tornam as mulheres?

ACRIANÇA

208 Tornam-se mães.


ACRIADA

E, em que se tornam as mães?

ACRIANÇA

Tornam-se velhas.

ACRIADA

Então, vireis a ser velha?

ACRIANÇA

Quando for mãe.

ACRIADA

E o que acontece às pessoas velhas?

ACRIANÇA

Não sei.

A CRIADA

O que aconteceu ao vosso avô?

ACRIANÇA

Morreu1•

ACRIADA

E por que foi que ele morreu?

1 A criança dirá isso porque o ouviu dizer; mas é necessário verificar


se ela tem alguma verdadeira ideia da mo:rte, pois- contrariamente ao
que se julga -essa ideia não é assim tão sim pies nem se encontra tão fa­
cilmente ao alcance do entendimento das crianças. Pode ver-se, no peque­
no poema de Abel, um exemplo da maneira como se lha deve dar. Essa en­
cantadora obra respira uma deliciosa simplicidade de que não podemos
deixar de nos alimentar, para conversar com as crianças. 209

L.B.524-14
ACRIANÇA

Porque já era velho.

ACRIADA

Então, o que acontece às pessoas velhas?

ACRIANÇA

Morrem.

ACRIADA

E vós, quando fordes velha, quando...

ACRIANÇA

Oh! Minha criada, não quero morrer.

ACRIADA

Minha menina, ninguém quer morrer, e toda a gente morre.

ACRIANÇA

O quê! A minha mãe também tem de morrer?

ACRIADA

Como toda a gente. As mulheres envelhecem como os homens,


e a velhice conduz à morte.

ACRIANÇA

O que se deve fazer para envelhecer muito tarde?

ACRIADA

Viver com sageza, enquanto se é jovem!

ACRIANÇA

Minha criada, serei sempre sage!

210
ACRIADA

Tanto melhor para vós. Mas, enfim, creis que vivereis sempre?

ACRIANÇA

Quando estiver muito velha, muito velha...

ACRIADA

Então?

ACRIANÇA

Enfim, quando se é tão velha, dizeis que é preciso morrer.

ACRIADA

Então, chegareis a morrer?

ACRIANÇA

Infelizmente, sim!

ACRIADA

Quem vivia antes de vós?

ACRIANÇA

O meu pai e a minha mãe.

ACRIADA

Quem vivia antes deles?

A CRIANÇA

Os pais e as mães deles.

ACRIADA

Quem viverá, depois de vós?

ACRIANÇA

Os meus filhos. 211


ACRIADA

Quem viverá, depois deles?

ACRIANÇA

Os filhos deles, etc.

Seguindo por este caminho, e através de induções sensíveis, en­


contra-se um começo e um fim para a raça humana, como para to­
das as coisas, isto é, um pai e uma mãe que não tiveram pai nem
mãe, e crianças que nunca terão filhos1•
Só depois de uma longa série de perguntas deste género é que
a primeira pergunta do catecismo está suficientemente prepara­
da. Mas, daí até à segunda resposta -que, por assim dizer, é a de­
finição da essência divina - que grande distância a percorrer!
Quando ficará preenchido esse intervalo? Deus é um espírito! E o
que é um espírito? Irei embarcar o de uma criança obscura meta­
física de que os próprios homens têm tanta dificuldade para se li­
bertar? Não é a uma rapariguinha que compete encontrar a res­
posta para esta pergunta; quando muito, é a ela que cabe fazer a
pergunta. Nesse caso, responder-lhe-ia, simplesmente: «Pergun­
tais-me o que é Deus; isso não é fácil de explicar: não podemos ou­
vir, nem ver, nem tocar em Deus; conhecemo-lo apenas através
das suas obras. Para poderdes julgar o que ele é, esperai, até sa­
herdes o que ele fez.>>
Embora todos os nossos dogmas sejam d!J. mesma verdade, nem
por isso têm todos a mesma importância. E completamente indi­
ferente, para a glória de Deus, que nós a conheçamos em todas as
coisas; mas, à sociedade humana, e a cada um dos seus membros,
importa que cada homem conheça e cumpra os deveres que a lei de
Deus lhe impõe, em relação a si mesmo e ao seu próximo. Eis o que
constantemente nos devemos ensinar, uns aos outros, e eis sobre­
tudo o que os pais e as mães tem a obrigação de ensinar aos seus
filhos. Que uma virgem seja a mãe do seu Criador, que ela tenha
dado Deus à luz, ou apenas um homem a quem Deus se uniu; que
a substância do pai e do filho seja a mesma, ou seja apenas seme­
lhante; que o esírito proceda de um dos dois que são o mesmo ou dos
dois conjuntamente, não vejo como a resolução destas perguntas
-aparentemente essenciais -possa ser mais importante para a

1 A ideia da eternidade não se poderia aplicar à gerações humanas


com o consentimento do espírito. Qualquer sucessão numérica reduzida a
212 acto é incompatível com essa ideia.
espécie humana que saber em que dia da Lua é preciso celebrar a
Páscoa, se é preciso rezar o terço, jejuar, comer magro, falar latim
ou francês na igreja, ornamentar as paredes com imagens, dizer ou
ouvir a missa, e não ter uma mulher sua. Que, a este respeito, cada
um pense como lhe aprouver: ignoro em quê que isso pode in teres­
sar os outros; quanto a mim, isso não me interessa absolutamen­
te nada. Mas o que importa, para mim e para todos os meus seme­
lhantes, é que cada um saiba que existe um árbitro do destino dos
humanos, de que todos nós somos filhos, que nos prescreve a todos
que sejamos justos, que nos amemos uns11os outros, que sejamos
benfazejos e misericordiosos, que cumpramos os nossos com­
promissos para com todos, mesmo para com os nossos inimigos e
os dele; que a aparente felicidade desta vida não é nada; que, de­
pois dela, haverá outra, na qual esse Ser Supremo será o remune­
rador dos bons e julgará os maus. Esses dogmas, e os outros dog­
mas semelhantes, são os que importa ensinar à juventude, e de que
se devem persuadir todos os cidadãos. Aquele que os combate me­
rece ser punido, certamente; é o perturbador da ordem e o inimi­
go da sociedade. Aquele que os despreza e nos quer submeter às
suas opiniões particulares, chega ao mesmo ponto por uni caminho
oposto; para estabelecer a ordem à sua maneira, perturba a paz; no
seu temerário orgulho, torna-se o intérprete da Divindade, exige,
em seu nome, as homenagens e o respeito dos homens, pretende­
-se Deus, tanto quanto lhe é possível, em lugar do verdadeiro
Deus: deveria ser punido como sacrílego, se ninguém o punisse co­
mo intolerante.
Esqueci, pois, todos estes dogmas misteriosas-que, para nós,
não são mais que palavras sem ideias -, todas essas doutrinas bi­
zarras cujo inútil estudo serve de virtude àqueles que a ele se en­
tregam, e mais lhes serve para os tornar loucos que bons. Conser­
vai sempre os vossos filhos no círculo estreito dos dogmas que se
referem à moral. Convencei-os de que, para nós, não há nenhum
saber que nos seja útil, a não ser aquele que nos ensina a fazer bem.
Não torneis as vossas filhas teólogas e argumentadoras; ensinai­
-lhes, das coisas do céu, só o que é útil para a sageza humana; ha­
bituai-as a sentirem-se sempre diante dos olhos de Deus, a tê-lo
como testemunha das suas acções, dos seus pensamentos, das suas
virtudes, dos seus prazeres, e a praticar o bem sem ostentação, por­
que ele o ama; a suportar o mal sem queixumes, porque ele com­
pensá-las-á; enfim, a ser, durante todos os dias da sua vida, o que
elas irão desejar ter sido, quando comparecerem perante ele. Eis
a verdadeira religião, eis a única que não é susceptível n<>m d<>
abusos, nem de impiedade, nem de fanatismo. Que se preguem,
tanto quanto se queira, religiões mais sublimes; cá por mim, não
reconheço outra que não esta.
De resto, é conveniente observar que, para os jovens, até à ida-
de em que a razão se ilumina e em que o sentimento nascente faz 213
falar a consciência, o que é bom ou o que é mal depende do que as
pessoas com quem vivem tiverem dito que é. O que se lhes ordena
é bem, o que se lhes proíbe é mal, não precisam de saber mais: por
aí se vê quanta importância tem-mais para as raparigas que pa­
ra os rapazes- a escolha das pessoas que se aproximam delas e
que adquirem alguma autoridade sobre elas. Por fim, chega o mo­
mento em que começam a julgar as coisas, pela sua própria opi­
nião; e, é chegada a hora de modificar o plano da sua educação.
Talvez tenha dito de mais, até aqui. A que reduziremos as mu­
lheres, se só lhes dermdS, como lei, os preconceitos públicos? Não
rebaixemos a esse ponto o sexo que nos governa e que nos honra
quando não o aviltámos. Para tqda a espécie humana, existe uma
regra que é anterior à opinião. E à inflexível direcção dessa regra
que se devem sujeitar todas as outras: ela julga o próprio precon­
ceito: e é só na medida em que a estima dos homens está de acor­
do com ela, que essa estima deve ter autoridade, para nós.
Essa regra é o sentimento interior. Não irei repetir o que já aqui
ficou dito, a esse respeito; basta-me fazer notar que, se essas duas
regras não concorrem para a educação das mulheres, esta será
sempre defeituosa. O sentimento sem a opinião não dará essa de­
licadeza de alma que ornamenta os bons costumes com o respeito
da sociedade; e a opinião sem o sentimento só conseguirá fazer mu­
lheres velhacas e desonestas, que substituem a virtude pela apa­
rência.
Por conseguinte, importa que elas cultivem uma faculdade que
sirva de árbitro entre os dois guias, que não permita que a
consciência se desoriente, e que endireite os erros do preconceito.
Essa faculdade é a razão. Mas, ao som desta palavra, quantas in­
terrogações surgem! As mulheres serão capazes de um raciocínio
sólido? Importa que o cultivem? Cultivá-lo--ão com êxito? Essacul­
tura será útil para as funções que lhes são impostas? Será compa­
tível com a simplicidade que lhes convém?
As várias maneiras de encarar e de resolver estas questões le­
vam a que -dando nos excessos contrários -uns limitem a mu­
lher a coser e a fiar, em sua casa, com as criadas, e, deste modo fa­
çam dela a principal criada do senhor; outros, não satisfeitos por
verem os seus direitos garantidos, ainda as levam a usurpar os
nossos; pois que permitir-lhes que se coloquem acima de nós, nas
qualidades que são próprias do seu sexo, e torná-las nossas iguais
em tudo o resto, que outra coisa não é que transportar para a mu­
lher a primazia que a natureza confere ao marido?
A razão que leva o homem ao conhecimento dos seus deveres
não é muito complicada; a razão que leva a mulher ao conhecimen­
to dos seus ainda é mais simples. A obediência e a fidelidade que
ela deve ao marido, a ternura e os cuidados que deve aos filhos, são
consequências tão naturais e tão sensíveis da sua condição, que ela
214 não pode, sem má-fé, recusar o seu consentimento ao sentimento
interior que a dirige, nem ignorar o dever numa tendência que ain­
da não está alterada.
Eu não censuraria indistintamente que uma mulher ficasse li­
mitada unicamente aos trabalhos do seu sexo, e que a deixassem
numa profunda ignorância sobre tudo o resto; mas, para isso, se­
ria preciso costumes públicos muito simples, muito são ou uma
maneira de viver muito retirada. Nas grandes cidades, e entre os
homens corruptos, essa mulher seria muito facilmente seduzida;
em muitas ocasiões, a sua virtude dependeria apenas no acaso.
Neste século de filósofos, ela precisa de ter uma que possa pôr à
prova; é necessário que saiba, de antemão, o que lhe podem dizer
e o que deve pensar do que lhe disserem.
Aliás, submetida à opinião dos homens, ela deve merecer a sua
estima; precisa, sobretudo, de obter a de seu marido; não deve li­
mitar-se a conseguir que ele ame a sua pessoa, mas levá-lo a apro­
var o seu comportamento; deve justificar, perante o público, a es­
colha que fez, e proceder de modo a que o marido seja honrado com
a honra que se presta à mulher. Ora, como fará ela para conseguir
tudo isso, se ignora as nossas instituições, se nada sabe dos nossos
costumes, das nossas maneiras, se não conhece nem a origem das
opiniões humanas, nem as paixões que as determinam? Desde o
momento em que ela fique a depender, simultaneamente, da sua
própria consciência e das opiniões dos outros, é preciso que aprenda
a comparar essas duas regras, a conciliá-las e a só preferir a
primeira, quando elas estão em oposição. Torna-se juiz dos seus
juízes, decide quando se deve submeter a eles e quando os deve re­
cusar. Antes de rejeitar ou de admitir os seus preconceitos, pesa­
-os; aprende a remontar à sua origem, a preveni-los, a torná-los
favoráveis para si mesma; tem o cuidado de nunca dar azo à cen­
sura quando o seu dever lhe permite evitá-la. Nada disto se pode
conseguir sem cultivar o seu espírito e a sua razão.
Volto sempre ao princípio, e ele fornece-me a solução para to-
das as minhas dificuldades. Observo aquilo que é, procuro-lhe a
causa, e acabo por perceber que o que é bem é bem. Entro em ca-
sas abertas cujo dono e dona fazem conjuntamente as honras. Am-
bos receberam a mesma educação, ambos são igualmente corteses,
ambos estão igualmente providos de espírito, ambos estão anima-
dos pelo mesmo desejo de bem receber os seus convidados, e de ver
cada um sair de sua casa satisfeito com eles. O marido não se poupa
a nenhum esforço para estar atento a tudo: vai, vem, dá a volta e
desfaz-se em atenções; desejaria ser todo atenção. A mulher per­
manece no seu lugar; em seu redor, reune-se um pequeno grupo
de pessoas que parece esconder-lhe o resto dos convidados; no en­
tanto, não se passa nada que ela não veja, não sai ninguém a quem
ela não tenha falado; não omitiu nada do que podia interessar a to-
da a gente; não falou com ninguém a quem não tenha dito coisas
agradáveis; e, sem minimamente perturbar a ordem, o menos im- 215
portante dos convidados não é menos bem tratado que o mais im­
portante. A refeição está servida, todos se põem à mesa: o marido,
sabedor das pessoas que se entendem bem entre elas, colocá-las-á
consoante o que sabe; a mulher, sem nada saber disso, não se en­
ganará; já terá lido, nos olhares, no comportamento, todas as con­
veniências, e cada um se encontrará colocado como desejava estar.
Não preciso que ninguém é esquecido, no serviço. O dono da casa,
dando uma volta à mesa, terá podido não se esquecer de ninguém;
mas a mulher adivinha o que é olhado com prazer e oferece-vo-lo;
falando ao seu vixinho, tem os olhos na outra extremidade da me­
sa; descobre aquele que não come porque não tem fome, e aquele
que não ousa servir-se ou pedir que o sirvam, porque é desajeita­
doou tímido. Levantando-se da mesa, cada um está convencido de
que ela só se preocupou com a sua pessoa; ninguém pensa que ela
tenha tido tempo para comer de um único prato; mas a verdade é
que ela comeu mais do que ninguém.
Depois de todos teres saído, fala-se do que se passou. O mari­
do conta o que lhe disseram, do que falaram e o que fizeram aque­
les com os quais conversou. Se nem sempre é sobre esse ponto que
a mulher é mais exacta, em contrapartida ela viu o que se disse bai­
xinho, na extremidade da sala; sabe o que um tal pensou, a que se
devia determinado propósito ou determinado gesto; ninguém fez o
mais mínimo movimento expressivo para o qual ela não encontras­
se imediatamente a interpretação, e quase sempre de conformida­
de com a verdade.
O mesmo tacto que exceler uma mulher do mundo na arte de
receber em sua casa, faz exceler uma coquete na arte de entreter
vários pretendentes. O manejo da coqueteria exige um discerni­
mento ainda mais apurado que o da cortesia: pois que, desde que
uma mulher bem educada se mostre cortês para toda a gente, com­
porta-se sempre bem; mas a coquete, muito depressa perderia o
seu império, se se mostrasse dessa uniformidade desajeitada;
desejando agradar à todos os seus pretendentes, afastá-los-ia a
todos. Na sociedade, as maneiras que se adoptam para todos os ho­
mens não deixam de agradar a todos eles; desde o momento em que
se é bem tratado, ninguém se preocupa muito com as preferências;
mas, em amor, um favor que não seja exclusivo é uma injúria. Um
homem sensível preferiria cem vezes ser o único maltratado que
ver-se acariciado com todos os outros; e o que de pior lhe pode acon­
tecer é não ser distinguido. Por conseguinte, para uma mulher que
queira conservar vários pretendentes é-lhe indispensável conven­
cer cada um deles de que é o preferido, e que o persuada disso dian­
te de todos os outros, a quem ela faz o mesmo jogo, diante dele.
Se quereis ver uma pessoa atrapalhada, colocai um homem en­
tre duas mulheres com as quais ele mantenha ligações secretas, e,
depois, observai a triste figura que ele faz. Colocai no mesmo ca-
216 so uma mulher, entre dois homens, e certamente que o que vereis
não será mais raro; ficareis maravilhada com a arte com que ela
dará troco a ambos, e levará cada um a rir do outro. Ora, se essa
mulher lhes testem unhasse a mesma confiança, a ambos, e tomas­
se, com ambos, as mesmas familiaridades, como seria possível que
eles se deixassem enganar, nem que fosse por um instante? Tra­
tando-os da mesma maneira, também não mostraria que ambos
têm os mesmos direitos sobre ela? Oh! Como ela se sabe desemba­
raçar muito mais bem do que isso! Longe de os tratar da mesma
maneira, afecta tratá-los de maneira diferente; tão bem se arran­
ja, que aquele que ela lisonjeia crê que é por ternura e que aque­
le que ela maltrata crê que é por despeito. Assim, cada um deles,
contente com a parte que lhe toca, vê-a sempre ocupada consigo,
enquanto que, efectivamente, ela só se ocupa de si mesma.
No desejo geral de agradar, a coquetaria sugere métodos seme­
lhantes: os caprichos só conseguiriam afastar, se não fossem sabia­
mente doseados; e é dispensando-os com arte que ela reforça as
correntes com que prende os seus escravos.

Usa ogn'arte de la donna, onde sia colto


Nella sua rete alcun novello amante;
Ne con tutti, ne sempre un stesso volto
Serba; ma cambia a tempo atto e semblante.
(Emprega toda a sua arte, a mulher
Em cuja rede tenha apanhado um novo amante;
Nem sempre mostra a mesma cara a todos:
Mas muda, consoante a conveniência, o gesto e o semblante.

A que se deve esta arte, se não a observações finas e contínuas


que a levam a .ver, constantemente, o que se passa nos corações dos
homens, e que a levam a pôr, em cada movimento secreto de que
se apercebe, a força necessária para o suspender ou acelerar? Ora,
essa arte aprende-se? Não! Nasce com as mulheres; todas elas a
têm, e nunca os homens a tiveram ao mesmo nível. A presença de
espírito, a penetração, as observações finas são a ciência das mu­
lheres; a habilidade para a utilizar é o seu talento.
Eis o que é, e viu-se por que motivo isso deve ser. «As mulhe-
res são falsas», dizem-nos. Tornam-se falsas. O dom que lhes é
próprio é a habilidade e não a falsidade: nas verdadeiras tendên-
cias do seu sexo, mesmo quando mentem, não são falsas. Porque
consultais a sua boca, quando não é ela que deve falar? Consultai
os seus olhos, a sua tez, a sua respiração, o seu ar receoso, a sua mo-
le resistência: eis a linguagem que a natureza lhe dá para vos res­
ponder. A boca diz sempre não, e deve dizê-lo; mas a entoação que
ela põe nessa palavra, nem sempre é a mesma, e essa entoação não
sabe mentir. A mulher não terá as mesmas necessidades que o ho­
mem, embora não tenha o direito de as evidenciar? O seu destino
seria excessivamente cruel, se, mesmo para os seus desejos legíti- 217
mos, ela não dispusesse de uma linguagem equivalente à que não
se atreve a falar. Será necessário que o seu pudor a faça infeliz?
Não terá necessidade de uma arte de comunicar as suas inclina­
ções sem as descobrir? De quanta habilidade não precisa ela, pa­
ra conseguir que lhe furtem o que anseia por conceder!? Como não
haveria de estar interessada em aprender como atingir o coração
de um homem, sem parecer interessar-se por ele!? Que discurso
encantador, não é verdade, a maçã de Galateia e a sua desajeita­
da fuga! O que é necessário que ela acrescente a isso? Irá dizer ao
pastor que a persegue por entre os salgueiros, que, se foge, é para
o atrair a ela? Mentiria, se dissesse isso; porque, nesse caso, dei­
xaria de o atrair. Quanto mais reservada é uma mulher, mais ar­
te precisa de u tilizar, mesmo para com o marido. Sim, sustento que
conservando a coquetaria nos seus limites, ela se torna modesta e
sincera, faz-se dela uma lei da honestidade.
«A virtude é una>>, como m)J.ito bem dizia um dos meus adver­
sários; não se pode decompor para admitir uma parte e rejeitar a
outra. Quando se ama, ama-se com toda a sua integridade; e re­
cusa-se o coração quando se pode, e sempre a sua boca aos senti­
mentos que não se devem ter. A verdade moral não é o que é, mas
aquilo que é bem; o que é mal não deveria ser, e não deve ser con­
fessado, sobretudo quando essa confissão provoca um efeito que,
sem isso, não teria havido. Se eu me sentisse tentado a roubar, e
se, dizendo-o, tentasse outro para ser meu cúmplice, o ter-lhe
declarado a minha tentação não teria siso sucumbir a ela? Porque
dizeis que o pudor faz as mulheres falsas? As que mais o perdem
podem ser, quanto ao resto, tão sinceras como as outras? Nada
disso; são mil vezes mais falsas. Só se atinge esse ponto de de­
pravação à custa de vícios, que se conservam todos, e que só reinam
para servir a intriga e a mentira1• Pelo contrário, aquelas que ain­
da têm vergonha, que não se orgulham dos seus erros, que sabem
encobrir os seus desejos àqueles que lhos inspiram, aquelas cujas
confissões eles arrancam com maiores dificuldades, são as mais
verdadeiras, as mais sinceras, as mais constantes em todos os seus

1 Bem sei que quando, sobre um determinado ponto, as mulheres


tomaram, abertamente, o seu partido, pretendem fazer-se valer dessa
franqueza e juram que, a não ser isso, não há nada estimável que não se
encontre nelas; mas também sei muito bem que nunca conseguiram con­
vencer disso ninguém, a não ser os tolos. Tendo retirado o principal freio
do seu sexo, que resta que as retenha? E de que honra farão elas caso, de­
pois de terem renunciado à que lhes é própria? Depois de, uma vez, terem
dado largas às suas paixões, não têm interesse nenhum em resistir-lhe:
«Nec femina, amissa pudicitia, alia abnuerit.» Nunca nenhum autor
conheceu melhor o coração humano dos dois sexos que aquele que disse
218 isto.
compromissos, e, geralmente, aquelas em cuja palavra mais pode­
mos confiar.
Que eu saiba, só a Mademoiselle de l'Enclos pode ser citada
como excepção a estas observações . Por isso, até chegou a ser con­
siderada como um prodígio. Desprezando as virtudes do seu sexo,
conservara - ao que se diz - as do nosso: gaba-se a sua franque­
za, a sua rectidão, a segurança do seu comércio, a su� fidelidade na
amizade; enfim, para terminar a descrição da sua glória, diz-se
que se tornou homem. Ainda bem! Mas, com toda essa elevada re­
putação, não teria querido a amizade dessehomem, nem para mim
nem para a minha amada.
Tudo isso não é tão fora de propósito como parece. Vejo para on­
de tendem as máximas da Filosofia moderna, ridicularizando o pu­
dor do sexo e a sua pretensa falsidade; e vejo que o efeito mais ga­
rantido dessa Filosofia será retirar às mulheres do nosso século o
pouco de honra que ainda lhes resta.
Creio que, destas considerações, se pode depreender, na sua ge­
neralidade, a espécie de cultura que convém ao espírito das mulhe­
res, e os objectos para que os quais se devem virar as suas reflexões,
desde a juventude.
Como já disse, os deveres do seu sexo são mais fáceis de ver que
de cumprir. A primeira coisa que devem aprender é a amá-los,
pela consideração das suas vantagens; é a única maneira de lhos
tornar fáceis. Cada estado e cada idade tem os seus deveres. Mui­
to depressa se conhecem os seus, contanto que eles agradem. Hon­
rai o vosso estado de mulher, e - seja em que categoria for que o
Céu vos tenha colocado-sereis sempre uma mulher de bem. O es­
sencial é ser o que a natureza nos fez; sereis sempre mais que o que
os homens querem que sejais.
A procura das verdades abstractas e especulativas, dos princí­
pios, dos axiomas nas ciências, de tudo quanto tende para genera­
lizar as ideias, não é da competência das mulheres; todos os seus
estudos se devem dedicar à prática; é a elas que compete a aplica-
ção dos princípios que o homem encontrou, e é a elas que compe-
te fazer as observações que levam o homem ao estabelecimento dos
princípios. Todas as reflexões das mulheres sobre assuntos que
não digam directamente respeito aos seus deveres, devem tender
para o estudo dos homens ou para os conhecimentos gerais que, co-
mo único objecto, têm o gosto; porque, no que se refere às obras de
génio, estas ultrapassam as suas possibilidades; também não pos­
suem bastante justeza e atenção para serem bem sucedidas nas
ciências exactas, e, quanto aos conhecimentos físicos, é aquele dos
dois que se mostra o mais activo, o mais intrépido, que vê mais
objectos; é àquele que mais força tem e que mais a emprega, que
compete ajuizar das relações dos seres sensíveis e das leis da na­
tureza. A mulher, que é fraca e que não vê nada do que se passa no
exterior, aprecia e ajuíza dos motivos que pode pôr em prática pa- 219
ra compensar a sua fraqueza; e esses motivos são as paixões do
homem. A mecânica dela é mais forte que a nossa, todas as suas
alavancas abalarão o coração h umano. Tudo quanto o seu sexo não
pode fazer por si mesmo, e que lhe é necessário ou agradável, é pre­
ciso que ela tenha a arte de conseguir levar-nos a querê--lo; por is­
so, é indispensável que ela estude, a fundo, o espírito do homem,
não o espírito do homem em geral, mas o espírito dos homens que
a rodeiam, o espírito d<;>s homens aos quais está submetida, seja pe­
la lei ou pela opinião. E preciso que ela aprenda a penetrar os seus
sentimentos através dos Sf?US discursos, das suas acções, dos seus
olhares, dos seus gestos. E necessário que, através dos seus dis­
cursos, das suas acções, dos seus olhares, dos seus gestos; ela lhes
saiba inspirar os sentimentos que pretende, sem sequer parecer
pensar nisso. Talvez que eles filosofem mais bem que ela, sobre o
coração humano;,mas ela saberá ler, mais bem que eles, no cora­
ção dos homens. E às mulheres que compete encontrar, por assim
dizer, a moral experimental, e a transformá-la, para nós, em sis­
tema. A mulher possui mais espírito, e o homem mais génio; a mu­
lher observa, e o homem raciocina: desse concurso resultam o es­
clarecimento mais claro e a ciência mais completa que, por si mes­
mo, o espírito humano possa adquirir; em resumo, o mais seguro
conhecimento de si e dos outros, que esteja ao alcance da nossa es­
pécie. E eis como a arte pode tender constantemente para aperfei­
çoar o instrumento fornecido pela natureza.
O mundo é o livro das mulheres: se elas o lêem mal, a culpa é
delas; ou, então, têm alguma paixão que as cega. Porém, a verda­
deira mãe de família, longe de ser uma mulher do mundo, não vi­
ve menos reclusa, em sua casa, que a religiosa no seu claustro. por
isso, seria conveniente fazer, pelas jovens que se casam, o que se
faz ou deveria fazer por aquelas que entram para os conventos:
mostrar-lhes os prazeres que abandonam, antes de lhes permitir
que renunciem a eles, para evitar que a falsa imagem desses pra­
zeres que lhes são desconhecidos possa um dia vir a extraviar os
seus corações e a perturbar a felicidade do seu retiro. Em França,
as jovens vivem em conventos e as mulheres vivem no mundo.
Entre os antigos, fazia-se absolutamente o inverso: as jovens apa­
reciam - como já contei - em muitos jogos e festas públicas; as
mulheres viviam retiradas. Esse costume era mais razoável e con­
servava mais bem os costumes. Para as raparigas casadoiras, é
permitida uma certa coquetaria; divertir-se é o que mais lhes
agrada. As mulheres têm outras preocupações em suas casas, e já
não precisam de procurar maridos; mas não se conformariam com
essa reforma, e, infelizmente, são elas que dão o tom. Mães, pelo
menos, fazei das vossas filhas as vossas companheiras. Dai-lhes
um senso recto e uma alma honesta, e, depois, não lhes escondais
nada que uma alma casta possa ver. O baile, os festins, os jogos e
220 até mesmo o teatro, tudo o que -apesar de mal visto - faz o en-
canto de uma imprudente juventude, pode ser visto, sem perigo,
por olhos sãos. Quanto mais bem elas virem esses ruidosos praze­
res, mais depressa se enfastiarão deles.
Estou a ou vir os clamores que se elevam contra mim. Qual a ra­
pariga que resiste a esse perigoso exemplo? Mal vêem o mundo,
que a cabeça lhes começa a andar à rodl}, a todas elas; não há nem
sequer uma que o queira abandonar! E possível que assim seja:
mas, antes de lhe oferecerdes essa imagem enganadora, prepa­
raste-las para a verem sem emoção? Anunciastes-lhes conve­
nientemente os objectos que ela representa? Descrevestes-lhos
tais como eles são? Armaste-las bem contra as ilusões da vaidade?
Introduzistes nos seus jovens corações o gosto pelos verdadeiros
prazeres que não se conseguem encontrar nesse tumulto? Que pre­
cauções, que medidas tomastes para as preservardes do falso gos­
to que as desorienta? Em vez de, nos seus espíritos, criar oposições
ao império dos preconceitos públicos, alimentaste-los; impeliste-las
para que amassem, de antemão, todos os frívolos divertimentos
que elas descobrem. Levai-as a apreciá-los mais, entregando-se
a eles. A jovem que entra no mundo não tem outra governanta
além de sua mãe, muitas vezes mais louca que ela, e que não lhe
pode apresentar os objectos de uma maneira diferente daquele
como os vê. O seu exemplo, muito mais forte que a própria razão,
justifica-a aos seus próprios olhos, e a autoridade da mãe é, para
a filha, uma desculpa sem réplica. Quando pretendo que uma mãe
introduza sua filha na sociedade, suponho que é capaz de lha fazer
ver tal como é.
O mal ainda começa mais cedo. Os conventes são verdadeiras
escolas de coquetaria -não dessa coquetaria honesta de que falei,
mas da que procuz todos os erros das mulheres e faz as mais extra­
vagantes amantezinhas. Ao deixá-lo para entrar directamente
nas sociedades ruidosas há jovens que se sentem imediatamente
à vontade. Foram educadas para viver nela; será de admirar que
nela se encontrem bem? Não direi o que vou dizer sem receio de
confundir um preconceito com uma observação; mas parece-me
que, em geral, nos países protestantes, há mais união entre a fa­
mília, que as esposas são mais dignas e que as mães são mais de­
dicadas que nos países católicos; e, se isso é verdade, não se pode
pôr em dúvida de que essa diferenca se deve, em parte, à educação
que as jovens recebem nos conventos.
Para apreciar a vida pacífica e doméstica, é preciso conhecê-la;
é nécessário ter-lhe sentido as doçuras desde a infância. Só na ca­
sa paterna se toma gosto pela sua própria casa, e toda a mulher que
não foi educada por sua mãe não gostará de educar 05 5eus filhos.
Infelizmente, já não há educação privada, nas grandes cidades.
Nelas, a sociedade é tão diversas e está tão misturada que deixa de
haver abrigo para o retiro, e que, mesmo quando se fica dentro de
sua própria casa, se está em público. Com esse hábito de viver com 221
toda a gente, deixa-se de ter família; mal se conhecem os paren­
tes: consideram-se como desconhecidos; e a simplicidade dos cos­
tumes domésticos extin,gue-se com a doce familiaridade que lhe
emprestava o encanto. E assim que, com o leite,se toma o gosto pe­
los prazeres do século e pelas máximas que nele se vêem reinar.
Impõe-se às raparigas um embaraço aparente,para mais facil­
mente encontrarem tolos que as desposem pela sua compostura.
Mas observai, durante um momento, essas jovens: sob um aspec­
to constrangido, elas mal sabem disfarçar a cobiça que as devora,
e já nos seus olhares se pode ler o ardente desejo de imitar suas
mães. O que cobiçam não é um marido, mas a licença do casamen­
to. Que necessidade se tem de um marido, com tantos recursos pa­
ra poder passar sem ele? Mas tem-se necessidade de um marido,
para cobrir esses recursos1• Têm a modéstia estampada no rosto e
a libertinagem no fundo dos seus corações: mesmo essa falsa mo­
déstia é o sinal disso; só a afectam para se poderem desembaraçar
dela mais depressa. Mulheres de Paris e de Londres, perdoai-mo,
suplico-vos. Nenhum país exlui os milagres; mas, cá por mim, não
conheço nenhum; e se uma única de entre vós tem a alma verda­
deiramente honesta, então não compreendo nada das vossas ins­
tituições.
��<1 'IS estas diversas educações entregam igualmente as jovens
ao gosto pelos _prazeres do mundo e às paixões que muito depressa
nascem desse gosto. Nas grandes cidades, a depravação começa
com a vida; e, nas pequenas, começa com a razão. Jovens pro­
vinciais, ensinadas a desprezar a benéfica simplicidade dos seus
costumes, apressam-se a vir para Paris, a fim de compartilhar da
corrupção das nossas; os vícios, ornamentados com o belo nome de
talentos, são o único objecto da sua viagem; e, ao chegarem, enver­
gonhadas por se encontrarem tão longe da nobre licença das mu­
lheres daqui, não tardam a merecer ser também da capital. Onde
tem início o mal, na vossa opinião? Nos lugares para onde ele é pro­
jectado, ou naqueles onde ele é praticado?
. Não quero que, da província, uma mãe sensata traga a sua fi­
lha a Paris, para lhe mostrar esses quadros tão perniciosos para
outras; mas digo que, se isso acontecesse, ou essa jovem está a ser
mal educada ou esses quadros serão pouco perigosos para ela. Com
algum gosto, algum senso e algum amor pelas coisas honestas, não
são considerados tão atraentes como o são para aqueles que se dei­
xam encantar poreles. Notam-se,emParis,as jovens levianas que

1 O comportamento do homem, durante a sua juventude, era uma


das quatro coisas que o sage não conseguia compreender; a quinta era a
imprudência da mulher adúltera. aQuae comedit, et tergens os suum dicit:
222 Non sum operata malum.» Proverbes, XXX, 20.
querem, a toda a pressa, adquirir o tom da cidade e viverem à mo­
da durante seis meses, para se fazerem apupar durante o resto das
suas vidas; mas quem é que se apercebe daquelas que, desgosta­
das com todo esse bulício, regressam à sua província, satisfeitas
com o seu destino, depois de o terem comparado com o que é inve­
jado pelas outras? Quantas jovens vi eu - trazidas à capital por
maridos complacentes e decididos a fixarem-se aqui - que os
levavam a desistir disso e a regressar às suas terras mais satis­
feitas do que quado tinham vindo e que diziam, ternamente, na
véspera da sua partida: «Ai! Regressemos para a nossa cabana! Vi­
ve-se nela mais feliz que nos palácios de aqui!» Não se sabe quan­
tas boas pessoas ainda há que não dobraram o joelho perante o ído­
lo e que desprezam o seu culto insensato. Só as loucas são espalha­
fatosas; as mulheres sages não fazem sensação.
Ora, se, apesar dos preconceitos universais e da má educação
que as jovens recebem, muitas delas ainda conservam um bom en-
so inabalável, o que acontecerá se esse bom senso for alimentado
por instruções convenientes, ou, para mais bem dizer, se não tiver
sido alterado por instruções viciosas? Pois que tudo consiste sem-
pre em conservar ou restabelecer os sentimentos naturais. Não se
trata de, para isso, aborrecer as raparigas com as vossas longas
preleções, nem de lhes recitar as vossas secas moralidades. As mo­
ralidades para os dois sexos são a morte de toda a boa educação. Li­
ções tristes só servem para levar a detestar, tanto aqueles que as
dispensam como tudo quanto dizem. Quando se fala às jovens, não
se trata, de modo nenhum, de as assustar com os deveres que lhes
competem, nem de agravar o jugo que lhes foi imposto pela natu­
reza. Explicando-lhes esses deveres, sede precisas e falei clara­
mente; não as deixes crer que se fica mal disposta quando se os
cumpre; nada de ares zangados, nada de resmunguices. Tudo o que
deve passar pelo coração deve sair dele para fora; o seu catecismo
de moral também deve ser tão breve e tão claro como o seu catecis-
mo de religião mas não tão grave. Fazei-lhes ver, nos mesmos de­
veres, a origem dos seus prazeres e o fundamento dos seus direi-
tos. Será assim tão difícil amar para ser amada, tornar-se amável
para ser feliz, ser estimável para ser obedecida, honrar-se para se
fazer honrar? Como esses direitos são belos! Como são respeitavá­
veis! Como são queridos ao coração do homem, quando a mulher os
sabe fazer valer! Não se deve esperar pelos anos nem pela velhice
para desfrutar deles. O império da mulher começa com as suas
virtudes; mal os seus atractivos se desenvolvem, já ela reina pela
doçura do seu carácter e torna a sua modéstia imponente. Qual o
homem insensível e bárbaro que não suaviza o seu orgulho e não
escolhe maneiras mais atentas quando se encontra ao lado de uma
jovem de dezasseis anos, amável e sage, que fala pouco, que escu-
ta, que põe decência na sua maneira de estar e honestidade nos
seus propósitos, cuja beleza não faz esquecer nem o seu sexo nem 223
a sua juventude, que sabe interessar pela sua própria timidez, e
merecer o respeito que tem por toda a gente?
Estes testemunhos,embora exteriores,não são frívolos; não se
, fundamentam unicamente na atracção dos sentidos; derivam des­
se sentimento íntimo que todos nós temos, de que as mulheres são
os juízes naturais dos homes. Quem é que deseja ser desprezado
pelas mulheres? Ninguém no mundo, nem sequer aquele que já
não os quer amar. E a mim, que lhes digo verdades tão duras, créis
que a sua opinião me seja indiferente? Não. Para mim, os seus su­
frágios são mais valiosos que os vossos,leitores,muitas vezes mais
mulheres que elas. Mesmo desprezando os seus costumes, quero
prestar homenagem à sua justiça: pouco me importa que elas me
odeiem, se as forço a estimar-me.
Quão grandes coisas se poderiam fazer com esse poder, se se
soubesse utilizá-lo! Maldito o século em que as mulheres perdem
o seu asc�n dente e em que os seus juízos deixam de interessar os
homens! E o derradeiro degrau da depravação. Todos os povos que
tiveram costumes respeitaram as mulheres. Vede Esparta, vede os
Germanos, vede Roma, sede da glória e da virtude, se é que algu­
ma vez elas tiveram alguma, nesta terra. Era lá que as mulheres
homenageavam as proezas dos grandes generais, que choravam
publicamente os pais da pátria, que os seus votos ou os seus lutos
eram consagrados como o mais solene sentimento da comunidade.
Todas as grandes revoluções ali viram mulheres: foi graças a uma
mulher, que Roma adquiriu a liberdade; foi devido a uma mulher,
que os plebeus conseguiram o consulado; deve-se a uma mulher,
o fim da tirania dos decenviros; graças às mulheres,Roma, que es­
tava a ser assediada, foi salva das mãos de um proscrito. France­
ses Galantes, que teríeis dito ao verdes passar essa procissão tão
ridícula para os vossos olhares trocistas? Tê-la-íeis acompanha­
do com os vossos apupos. Como é diferente o olhar com que vemos
os mesmos objectos! E talvez que todos nós tenhamos razão. For­
mai esse cortejo com belas damas francesas, não imagino outro
mais indecente: mas componde-o com Romanas, tereis todos os
olhares dos Volscos e o coração de Coriolano.
Ainda direi mais: sustento que a virtude náo é menos favorá­
vel para o amor que para todos os outrosdireitos da natureza,e que
a autoridade das amantes não ganha menos com ela que a das mu­
lheres e a das mães. Não existe verdadeiro amor sem entusiasmo,
e não há entusiasmo sem um objecto de perfeição, real ou quimé­
rico, mas sempre existente na imaginação. Com que se exaltarão
os amantes para os quais essa perfeição deicou de ter algum valor
e que,no que amam,só vêem o objecto do prazer dos sentidos? Não.
Não é assim que a alma se incendeia e se entrega a esses sublimes
transportes que fazem o delírio dos amantes e o encanto dasua pai­
xão. No amor, tudo é ilusão, reconheço; mas o que é real são os sen-
224 timentos com que ele nos anima para o verdadeiro belo que nos faz
amar. Esse belo não se encontra no objecto que se ama: é o resulta­
do dos nossos erros. Ora! Que importa? Deixa-se, por isso, de sa­
crificar os seus baixos sentimentos a esse modelo imaginário? Pe­
netra-se menos o seu coração com as virtudes que se atribuem
àquilo queele ama? Desligamo-nos menos da baixeza doeu huma­
no? Onde se encontra o verdadeiro amante que não esteja dispos­
to a imolar a sua vida à sua amada? E onde está a paixão sensual
e gro�seira, num homem que quer morrer? Troçamos dos paladi­
nos? E porque eles conhecem o amor, e que nós só jpa conhecemos
o deboche. Quando essas máximas romanescas se começaram a
tornar ridículas, isso deveu-se menos à razão que aos maus costu­
mes.
Seja qual for o século em que se viver, as relações naturais não
mudam, a conveniência,ou a inconveniência que delas resulta é a
mesma, os preconceitos, sob o vão nome de razão, só mudam na
aparência. Sempre será grande e belo reinar sobre si mesmo,mes­
mo que seja para obedecer a opiniões fantásticas; e os verdadeiros
motivos de honra falarão sempre ao coração de uma jovem sage
que saberá procurar, no seu estado, a felicidade da sua vida. A cas­
tidade deve ser, sobretudo, uma virtude deliciosa, para uma bela
mulher que tem elevação de alma. Enquanto vê toda a terra aos
seus pés, triunfa de tudo e de si mesma: no seu coração, eleva, pa­
ra si mesma, um trono a que tudo vem prestar homenagem; os sen­
timentos -ternos ou invejosos, mas sempre respeitadores -dos
dois sexos,a estima universal e a sua própria estima,pagam-lhe
constantemente, em tributo de glória, os combates de alguns ins­
tantes. As privações são passageiras,mas o prémio delas é perma­
nente. Que gozo, para um alma nobre, o orgulho da virtude unida
à beleza! Imaginai uma heroína de romance: ela desfrutará das vo­
lúpias mais deliciosas que as Lais e as Cleópatras; e quando já não
for bela, a sua glória e os seus prazeres permanecerão com ela; só
ela saberá desfrutar do passado.
Quanto maiores e mais penosos forem os deveres, mais as ra­
zões em que eles estiverem fundamentados devem ser sensíveis e
fortes. Existe uma certa linguagem devota com que -a respeito
dos mais graves assuntos - se enchem ou ouvidos das jovens sem
se conseguir a persuasão. Dessa linguagem excessivamente des­
proporcionada para as suas ideias, e do pouco caso que, secreta­
mente, dela fazem as jovens,nasce a facilidade para ceder às suas
inclinações,porque não têm razões para lhes resistirem,retiradas
das próprias coisas. Uma rapariga educada de uma maneira sage
e piedosa estará, certamente, muito bem armada contra as tenta­
ções; mas aquela cujo coração e ouvidos são unicamente alimenta-
dos com a linguagem da devoção, tornam-se, infalivelmente, pre-
sas do primeiro sedutor habilidoso que lhe faz a corte. Nunca uma
rapariga jovem e bela desprezarã o seu corpo,nunca se afligirá sin­
ceramente com os grandes pecados que a sua beleza levar a come- 225

L.B.524 - 15
ter; nunca chorará sinceramente, e perante Deus, por ser um ob­
jecto de cobiça, nunca se convencerá de que o mais doce sentimen­
to do coração seja uma invenção de Satanás. Fornecei-lhe outras
razões, porque essas não penetrarão nela. Ainda será pior se se
criar -comoé costume -contradição nas suas ideias, e se, depois
de a ter humilhado aviltando o seu corpo e os seus encantos com a
sujidade do pecado, lhe fizerem, respeitar -como se fosse o tem­
plo de Jesus Cristo -esse mesmo corpo que lhe tornaram tão des­
prezível. As ideias excessivamente sublimes e excessivamente vis
também são insuficientes e não se podem associar: é preciso uma
razão que esteja ao alcance do sexo e da idade. A consideração do
dever só tem alguma força na medida, em que se lhe acrescentam
motivos que nos levam a cumpri-lo.

Quae quia non liceat non facit, illa facit.

Ninguém pensaria que é Ovídio que tem uma opinião tão se­
vera.
Quereis, pois, inspirar, às jovens, o amor pelos bons costumes?
Sem cosntantemente lhes dizerdes: <<Sede sages!», esforçai-vos
por se-lo; fazei-lhes sentir todo o valor da sageza, e conseguireis
que elas a amem. Não basta sentir esse interesse para mais tarde,
no futuro; mostrai-lho no momento presente, nas relações da sua
idade, no carácter dos seus pretendentes. Descrevei-lhes o homem
de bem, o homem de mérito; ensinai-as a reconhece-lo, a amá-lo
para elas; provai-lhes que amigas, esposas ou amantes, só esse ho­
mem s pode tornar feliz. Inspirai a virtúde através da razão; fazei­
-lhes sentir que o império do seu sexo e todas as suas vantagens
não dependem apenas do seu bom comportamento e dos seus cos­
tumes, mas também dos costumes dos homens; que elas têm pou­
co poder sobre as almas vis e baixas, e que não se pode servir a sua
amada se não se souber servir a virtude. Convencei-vos de que, en­
tão, descrevendo-lhes os costumes dos nossos dias, lhes inspira­
reis uma sincera repugnância; mostrando-lhes pessoas na moda,
levá-las--ei a desprezá-las; só lhes inspirareis desdém pelas má­
ximas dessa gente, aversão pelos seus sentimentos, desprezo pe­
las suas vãs galantarias; criareis nelas uma ambição mais nobre:
a de reinar sobre alamas grandes e fortes, a das mulheres de espar­
ta, que era de comandar os homens. Uma mulher corajosa, impú­
dente, intrigante, que só consegue atrair os seus pretendentes com
a coquetaria e conservá-los através dos seus favores, leva-<>s a
obedecer-lhe como lacaios, nas coisas servis e vulgares: nas coisas
importantes e graves, não tem qualquer autoridade sobre eles.
Mas a mulher que é simultaneamente honesta, amável e sage, a
que força os sues a respeitarem-na, a que é reservada e modesta,
aquela, em resumo, que conserva o amor pela estima, envia-nos,
226 com uma só palavra, ao fim do mundo, ao combate, à glória, à , mor-
te, aonde quiser. Esse império é belo, ao que me parece, e vale bem
a pena de ser comprado.
Eis em que espírito Sophie foi educada, com mais desvelo que
dificuldade, e mais segundo o seu gosto que contrariand�. Diga­
mos agora uma palavra sobre a sua pessoa, segundo a descrição
que dela fiz a Emílio, e de conformidade com a ideia que ele tem da
esposa que o poderá tornar feliz.
Nunca insistirei de mais em que ponho de parte os prodígios.
Emílio não é nenhum deles e Sophie também não o é. Emílio é ho­
mem e Sophie é mulher; eis toda a sua glória. Na confusão de se­
xos que reina entre nós, quase que é um prodígio ser-se do seu.
Sophie é bem nascida, tem uma bondade natural; tem o cora­
ção muito sensível, e, por vezes, essa extrema sensibilidade dá-lhe
uma actividade de imaginação difícil de moderar. Tem um espíri­
to menos justo que penetrante, um humor agradável, uma fisiono­
mia que promete uma alama e que não engana; é possível abrodá­
-la com indiferença, mas não deixá-la sem emoção. Outras há que
têm boas qualidades que lhe faltam; outras há que têm mais desen­
volvidas as que ela possui; mas nenhuma tem as qualidades mais
bem harmonizadas para ormar um bom carácter. Sabe tirar par­
tido dos seus próprios defeitos; e, se fosse mais perfeita agradaria
muito menos.
Sophie não é bela; mas, a seu lado, os homens esquecem as mu­
lheres belas e as mulheres belas ficam descontentes de si mesmas.
À primeira vista, quase que nem parece bonita; mas, quanto mais
se olha para ela, mais bela aparece; ganl}a onde tantas outras per­
dem; e o que ela ganha já não o perde. E possível terem-se olhos
mais belos, ter-se uma boca mais bonita, uma figura mais impo­
nente; mas não se poderia ter cintura mais bem marcada, tez mais
bela, mão mais branca, pé mais pequenino, olhar mais doce, fisio­
nomia mais comovedora. Sem deslumbrar ela interessa; encanta,
e não se saberia dizer porquê.
Sophie gosta de enfeitar-se e percebe do assunto; sua mãe não

1 Brantôme diz que, no tempo de Francisco I, uma jovem cujo aman­


te era tagarela lhe impôs um silêncio absoluto e ilimitado; durante dois
anos completos, ele respeitou-o tão fielmente, que todos julgavam que ti­
vesse emudecido por doença. Um dia, em plena assembleia, a amante ­
que, nessa época em que o amor se fazia em segredo, não era conhecida co­
mo tal - gabou-se de o poder curar imediatamente, e fê-lo com uma só
palavra: Falai. Não vos parece que há algo de grande e de heróico nesse
amor? Que mais poderia ter feito a filosofia de Pitágoras, com todo o seu
fausto? Isto não nos leva a imaginar uma divindade dando a um mortal,
com uma única palavra, o órgão da fala? Hoje em dia, qual é a mulher que
pode contar com tal silêncio durante um único dia, mesmo que o compre
com tudo quanto possa oferecer? 227
quer outra camareira; tem muito gosto para se vestir bem; mas de­
testa os vestidos ricos; nos seus, vê-se sempre a simplicidade uni­
da à elegância; não lhe agrada o que brilha mas o que fica bem. Ig­
nora quais as cores queestãona moda, mas sabe muito bem as que
a favorecem. Não há nenhuma jovem que pareça andar vestida
com menos rebuscamento e cuja compostura seja mais bem estu­
dada; nem sequer uma peça da sua toillette foi escolhida ao acaso,
e a arte não se evidencia em nenhuma delas. Aparentemente, os
seus adereços são muito modestos; mas, efectivamente, são mui­
to coquetes; não ostenta os seus encantos; cobre-os; e, ao cobri-los,
sabe faze-lo de modo a que sejam imaginados. Ao ve-la, diz-se:
«Eis uma rapariga modesta e sage»; mas, mal se está ao seu lado,
os olhos e o coração percorrem toda a sua pessoa, sem que seja pos­
sível retirá-los dela, e dir-se-ia que todas essas roupas e atavios,
tão simples, só foram escolhidos para ser retirados, peça por peça,
através da imaginação.
Sophie tem talentos naturais; sente-os, e não os desleixou:
mas, como não teve a possibilidade de pôr muita arte na sua cul­
tura, contentou-se em exercitar a sua bela voz a cantar com afina­
ção e gosto; os seus pezinhos a andar agilmente, facilmente, com
graciosidade; a fazer a reverência nas situações mais diversas,
sem dificuldade e com elegância. De resto, o único mestre de canto
que teve foi seu pai, e a única mestra de dança sua mãe; e um or­
ganista seu vizinho deu-lhe algumas lições de cravo, para acom­
panhamento, que, depois, ela cultivou sozinha. De início, ela ape­
nas pretendia fazer aparecer a sua mão mais branca, sobre essas
teclas negras; depois, achou que o som agudo e seco do cravo tor­
nava mais doce o som da sua voz; pouco a pouco, foi-se tornando
sensível à harmonia; enfim, à medida que foi crescendo, começou
a sentir os encantos da expressão, e a amar a música por si mes­
ma. Mas trata-se mais de um gosto que de um talento; ela é inca­
paz de decifrar um som, vendo uma nota.
O que Sophie melhor sabe fazer -e que lhe foi ensinado com
o maior empenho - são os trabalhos do seu sexo, mesmo aqueles
em que muitas não pensam, como, por exemplo, cortar e coser os
seus próprios vestidos. Não há trabalho de agulha que ela não sai­
ba fazer e que não faça com prazer; mas o que ela prefere a todos
é a renda, porque não há outro que em preste uma atitude tão agra­
dável, e em que os dedos se exerçam com mais graça e ligeireza.
Também se aplicou a todos os pormenores da casa. Sabe de cozinha
e de copa; sabe os preços dos alimentos; conhece-lhes as qualida­
des; sabe perfeitamente fazer as contas; serve de mordomo a sua
mãe. Feita para, um dia, vir a ser mãe de família, ao governar a ca­
sa paterna aprende a governar a sua; pode suprir às funções dos
criados, e fá-lo sempre de boa vontade. Nunca se sabe ordenar bem
aquilo que não se sabe fazer: é o motivo que sua mãe invoca para
228 a ocupar dessa maneira. Quanto a Sophie, ela não vai tão longe; o
seu primeiro dever é o de filha, e, actualmente, é o único que pen­
sa cumprir. O seu único intento é servir sua mãe e aliviá-la de uma
parte dos seus cuidados. No entanto, a verdade é que não os faz to­
dos com o mesmo prazer. Por exemplo, embora seja gulosa, não
gosta de cozinhar; os pormenores têm algo que a desgosta; nunca
encontra bastante asseio, nesse trabalho. Nesse ponto, é de uma
delicadeza extrema; e essa delicadeza, levada ao excesso, tornou­
-se sobre o fogão, a sujar os seus punhos. Por essa mesma razão,
nunca quis ocupar-se do jardim. A terra parece-lhe suja; quando
vê estrume, crê sentir-lhe o cheiro.
Esse defeito, ela deve-o às lições de sua mãe: segundo esta, en­
tre os deveres da mulher, um dos mais importantes é o asseio; de­
ver especial, indispensável, imposto pela natureza. Não existe, no
mundo, objecto mais repugnante que uma mulher porca, e o ma­
rido que dela se desgosta não pode ser censurado. Tanto pregou es­
se dever a sua filha, desde a infância desta, exigiu tanto asseio na
sua pessoa -tanto para as suas roupas como para os seus aposen­
tos, para o seu trabalho, para a limpeza do seu corpo -que todas
essas atenções, tornadas hábito, ocupam uma grande parte do seu
tempo e ainda presidem à outra; de modo que, fazer bem o que ela
faz é o segundo dos seus cuidados; o primeiro é sempre o de fazer
tudo com asseio.
Porém, tudo isto não degenerou em vã afectação nem em mo­
leza; os refinamentos do luxo não têm nada a ver com isso. Nos seus
aposentos nunca entrou mais que água simples; não conhece ou­
tro perfume que não seja o das flores, e nunca seu marido respira­
rá perfume mais agradável que o do seu hálito. Enfim, o cuidado
que ela dedica ao exterior não a leva a esquecer que deve a sua vi­
da e o seu tempo a cuidados mais nobres; ignora, ou desdenha, es­
sa excessiva limpeza do corpo que suja a alma: Sophie é muito mais
que asseada, é pura.
Disse que Sophie era gulosa. Era-o, naturalmente: mas tor­
nou-se sóbria por hábito, e agora é-o por virtude. Não se passa com
as raparigas o mesmo que com os rapazes, que, até um determina­
do ponto, podem ser governados pela gulodice. Essa tendência não
deixa de ter consequências para o sexo; é demasiado perigoso per­
mitir-lha. Durante a sua infância, a pequena Sophie, ao entrar so­
zinha no gabinete de sua mãe, nunca saía dele com as mãos vazias,
e não era de uma fidelidade a toda a prova, nem a respeito'dos ca­
ramelos nem dos chocolates. Sua mãe surpreendeu-a, ralhou-lhe,
castigou-a, obrigou-a a jejuar. Por fim, conseguiu persuadi-la de
que os caramelos e os chocolates estragavam os dentes e de que, se
com�ss� muitos, ficaria com a cintura grossa. Assim, Sophie cor­
rigiu-se; à medida que foi crescendo, adquiriu outros gostos que a
desviaram dessa baixa sensualidade. Tanto nas mulheres como
nos homens, desde o momento em que o coração se anima, a gulo-
dice deixa de ser um vício dominante. Sophie conservou o gosto 229
próprio do seu sexo; gosta dos lacticínios e dos doces; gosta dos bo­
los e das sobremesas, mas pouco da carne; nunca provou nem vi­
nho nem licores fortes; além disso, come tudo com muita modera­
ção; o seu sexo, menos laborioso que o nosso, tem menos necessi­
dade de reparação. Em todas as coisas, gosta do que é bom e sabe
apreciá-lo; também se sabe contentar com o que o não é , sem que
essa privação seja, para ela, um sacrifício.
Sophie tem um espírito agradável sem ser brilhante, e sólido
sem ser profundo; um espírito de que não se diz nada, porque nun­
ca se lhe encontra nem mais nem menos do que cada um possui.
Tem sempre aquele que agrada às pessoas que lhe falam, embora
não seja muito floreado, segundo a ideia que fazemos da cultura do
espírito das mulheres; porque o seu não se formou pela leitura,
mas unicamente através das conversas com seu pai e sua mãe,
através das suas próprias reflexões e das observações que ela fez
sobre as poucas pessoas que viu. Sophie tem uma alegria natural,
e, durante a sua infância, até chegava a ser estouvada; mas, a pou­
co e pouco, sua mãe conseguiu reprimir-lhe esses ares evaporados,
para evitar que, em breve, um mudança demasiado brusca ins­
truísse do momento que a tornara necessária. Por conseguinte,
passou a ser modesta e reservada, mesmo antes de chegar o mo­
mento de o ser; e, agora que esse momento chegou, é-lhe mais fá­
cil conservar o tom qqe adquiriu, que adoptá-lo sem indicar a ra­
zão dessa mudança. E um espectáculo agradável vê-la, por vezes
devido a um hábito remanescente -entregar-se a vivacidades da
infância, e, depois, bruscamente, voltar a mostrar-se reservada,
calar-se, abaixar os olhos e corar: é preciso que o termo intermé­
dio entre as duas idades permaneça um pouco em ambas.
Sophie é de uma sensibilidade excessivamente grande para po­
der manter uma perfeita igualdade de humor; mas tem demasia­
da doçur,a para que essa sensibilidade possa ser imp�rtuna para os
outros. E unicamente a ela que isso prejudica. Basta que se diga
uma única palavra que a magoe: não amua, mas sente o coração do­
rido; trata de fugir, para ir chorar. Se, no meio dos seus choros, seu
pai ou sua mãe a chamam e lhe dizem nem que seja uma única pa­
lavra, ela vem imediatamente brincar e rir, limpando cuidadosa­
mente os olhos e esforçando-se por abafar os soluços.
Também não está completamente isenta de caprichos: o seu
temperamento, talvez um pouco excessivo, degenera em revolta, e,
então, pode descontrolar-se. Mas deixai-lhe tempo para voltar a
si, e a sua maneira de fazer esquecer o seu mau comportamento
quase que lhe fará um mérito. Se a castigam, mostra-se dócil e
submissa, e vê-se que a sua vergonha não deriva tanto do castigo
quanto da falta que cometeu. Mesmo que se lhe diga nada, ela nun­
ca deixa de a reparar, por sua própria iniciativa, mas com tanta
sinceridade e com tão bons modos que não é possível gaurdar-lhe
230 rancor. Seria capaz de beijar o chão, diante do mais humilde dos
criados, sem que esse rebaixamento lhe custasse o mínimo sacri­
fício; e logo que se vê perdoada, a sua alegria e as suas carícias mos­
tram de quanto peso o seu bom coração se sente aliviado. Numa pa­
lavra, suporta pacientemente os erros dos outros, e, de boa vonta­
de, repara os seus. Tal é o natural amável do seu sexo, antes de o
termos estragado. A mulher foi feita para ceder ao homem e até pa­
ra suportar a sua injustiça. Nunca conseguireis reduzir os jovens
ao mesmo estado; o sentimento interior eleva-se e revolta-se, den­
tro deles, contra a injustiça; a natureza não os fez para a tolerarem:

Gravem
Pelidae stomachum cedere nescii.

Sophie tem religião, mas a religião razoável e simples, com pou­


cos dogmas e ainda menos práticas de devoção; ou antes, como não
conhece outra prática essencial além da da moral, dedica toda a
sua vida a servir Deus, praticando o bem. Em todas as instruções
que seus pais lhe deram a esse respeito, habituaram-na a uma
submissão respeitadora, dizendo-lhe sempre: «Minha filha, esses
conhecimentos não são próprios para a vossa idade; o vosso mari­
do instruir-vos--á, quando chegar o momento apropriado». Além
disto, em vez de prolongados discursos de piedade, contentam-se
em pregar-lhe o seu exemplo, e esse exemplo está gravadono cora­
ção dela.
Sophie ama a virtude; esse amor tornou-se a sua paixão domi­
nante. Ama-a, porque não há nada tão belo como a virtude; ama­
-a, porque a virtude faz a glória da mulher e porque uma mulher
virtuosa lhe parece quase igual aos anjos; ama-a como sendo o úni­
co caminho que conduz à verdadeira felicidade, e porque só vê mi­
séria, abandono, infelicidade, opróbio, ignomínia, na vida de uma
mulher desonesta; enfim, ama-a porque ela é estimável para o seu
respeitável pai e para a sua terna e digna mãe: não satisfeitos por
se sentirem felizes com a sua própria virtude, também querem se­
-lo com a dela, e, para ela, a coisa que mais felicidade lhe dá é a es­
perança de fazer a deles. Todos esses sentimentos lhe inspiram um
entusiasmo que lhe eleva a alma e conserva todas as suas peque­
ninas tendências subjugadas por uma paixão tão nobre. Sophie se­
rá casta e honesta até ao seu derradeiro suspiro; jurou-o a si mes­
ma, no fundo da sua alma, e fe-Io numa época em que já sentia
quanto um juramen to desses é difícil de cumprir; jurou-o quando
deveria ter revogado esse juramento, se os seus sentidos estives­
sem feitos para a dominar.
Sophie não tem a felicidade de ser uma amável francesa, &ia
por temperamento e coquette por vaidade, preferindo brilhar a
agradar, procurando o divertimento e não o prazer. Só a necessi­
dade de amar a devora, vem distrair e perturbar o seu coração, du­
rante as festas; perdeu a sua antiga alegria; os jogos divertidos já 231
não a interessam; longe de recear o aborrecimento da solidão, pro­
cura-a; mergulhada nela, pensa naquele que lha tornará doce: to­
dos os indiferentes a impotunam; não precisa de uma coração, mas
de um homem que a ame; prefere agradar a um único homem ho­
nesto, e agradar-lhe sempre, que elevar, em seu favor, o clamor da
moda, que dura um dia e que, no dia seguinte, se transforma em
apupos.
Nas mulheres, o juízo forma-se mais cedo que nos homens; co­
mo, quase desde a sua infância, vivem sempre na defensiva e car­
regam um depósito diícil de guardar, o bem e o mal são-lhes neces­
sariamente conhecidos mais cedo. Sophie, que é precoce em tudo
-porque o seu temperamento a leva a se-lo -também tem o seu
juízo formado mais cedo que as outras raparigas da sua idade. Nis­
so, não há nada de muito extraordinário; a maturidade não é pa­
ra todas a mesma, ao mesmo tempo.
Sophie está instruída dos deveres e dos direitos do seu sexo e
do nosso. Conhece os defeitos dos homens e os vícios das mulheres;
também conhece as qualidades, as virtudes opostas, e imprimiu­
-as todas no fundo do seu coração. Não se pode fazer uma ideia
mais elevada da mulher honesta, que a que ela concebeu, e essa
ideia não a atemoriza; mas pensa, com mais complacência, no ho­
nesto homem, no homem de mérito; sente que foi feita para esse ho­
mem, que é digna dele, que lhe pode retribuir a felicidade que de­
le receberá; sente que o reconhecerá facilmente; trata-se apenas
de o encontrar.
As mulheres são os árbitros naturais do mérito dos homens,
como eles o são do mérito das mulheres: este é o seu recíproco di­
reito; e nem eles nem elas o ignoram. Sophie conhece esse direito
e utiliza--o; mas fá-lo com a modéstia que convém à sua juventu­
de, à sua inexperiência, ao seu estado; só julga de coisas que se en­
contram ao seu alcance, e só faz esse juízo quando isso serve para
desenvolver alguma máxima útil. Quando fala dos ausentes fá-lo
com a maior circunspecção, sobretudo quando se trata de mulhe­
res. Pensa que o que as torna maldizentes e satíricas é o falarem
do seu sexo: enquanto se limitam a falar do nosso são justas. Por­
tanto, Sophie limita-se a isso. Quanto às mulheres, só fala delas
para dizer o bem que sabe: é uma homenagem que crê dever ao seu
sexo; e, quanto àqueles de quem não tem nenhum bem a dizer, não
diz nada, e isso compreende-se.
Sophie tem pouca prática do mundo; mas é amável, atenciosa,
e graciosa, em tudo quanto faz. Um natural feliz serve-a mais bem
que muita arte. Possui uma certa cortesia natural que nada tem
a ver com as fórmulas, que não está sujeita às modas, que não va­
ria com elas, que não faz nada por hábito, mas que nasce de um ver­
dadeiro desejo de agradar, e que agrada. Não conhece os cumpri­
mentos triviais, e não inventa outros mais rebuscados; não diz que
232 está muito grata, que lhe fazem muita honra, que não se dêem ao
incómodo, etc. Ainda menos se preocupa em dizer frases bonitas.
A uma atenção, a uma cortesia estabelecida, ela corresponde com
uma reverência ou .com um simples Agradeço-vos; mas esta frase,
vinda da sua boca, vale bem outra. Para um verdadeiro serviço,
deixa falar o seu coração, e não é um louvor que ele encontra pa­
ra dizer. Nunca suportou que os costumes franceses a sujeitassem
ao jugo dos modos afectados, como a de pousar a mão - ao passar
de uma sala para outra - sobre um braço sexagenário que ela te­
ria grande vontade de amparar. Quando um galante afectado lhe
oferece esse impertinente serviço, ela deixa esse braço na escada
e, em dois saltos, lança-se para a sala, dizendo que não é coxa.
Efectivamente, embora não seja alta,nunca quis usar saltos altos;
tem pés suficientemente pequenos, para os poder dispensar.
Não é apenas perante as mulheres que ela se mantém em silên­
cio e respeitadora, mas também perante os homens casados ou
muito mais velhos do que ela; se alguma vez aceitar algum lugar
acima deles, será por obidiência; e, logo que lhe for possível, volta­
rá para o seu, abaixo do deles; porque sabe que os direitos da ida­
de passam antes dos do sexo, porque têm, a seu favor, o preconcei­
to da sageza, que deve ser honrada acima de tudo.
Com os jovens da sua idade, é outra coisa; precisa de usar um
tom diferente, para se lhes impor, e sabe adoptá-lo sem abando­
nar o ar modesto que lhe convém. Se eles próprios forem modestos
e reservados, manterá com eles a amável familiariedade da ju­
ventude; as suas conversas, cheias de inocência, serão brincalho­
nas mas decentes; se se tornam sérias, ela quer que sejam úteis; se
degeneram em tolices, ela põe-lhe fim muito depressa, pois des­
preza sobretudo a linguagem da galantaria, como muito ofensora
para o seu sexo. Bem sabe que o homem que procura não utiliza es­
sa linguagem, e nunca é de boa vontade que aceita, de outro, aqui­
lo que não convém àquele cujo carácter está impresso no fundo do
seu coração.
A elevada opinião que tem dos direitos do seu sexo, o orgulho
de alma que lhe dá a pureza dos seus sentimentos, essa energia da
virtude que ela sente dentro de si e que a torna respeitável aos seus
próprios olhos, leva-a a escutar com indignação os propósitos
adocicados com que a pretendem distrair. Não os recebe com uma
cólera aparente, mas com um irónico aplauso que desconcerta, ou
com um tom frio que ninguém espera. Que um belo Febo lhe diga
amabilidades, a elogie com espírito pelo seu, pela sua beleza, pelas
suas graças, pelo o valor da felicidade de lhe agradar, ela é rapa­
riga para o interromper, dizendo-lhe, com cortesia: «Senhor, re-
cPio bPm sah<>r todas essas coisas mais bem que vós; se não temos
nada de mais interessante a dizer-nos, creio que podemos dar
como terminada a nossa conversa». Acompanhar estas palavras
com uma grande reverência, e, em seguida, encontrar-se a vinte
passos dele, para ela é assunto de um momento. Perguntai aos vos- 233
sos agradáveis se lhes é fácil manter, durante muito tempo, a sua
tagarelice com um espírito tão arisco como o seu.
No entanto, isso não significa que não goste mito de ser elogia­
da; mas é preciso que isso seja feito sinceramente, que ela possa
acreditar que, efectivamente, se pensa o bem que se lhe diz. Para
mostrar sentir o seu mérito é preciso começar por evidenciar ter
algum. Uma homenagem baseada na estima pode lisonjear o seu
coração orgulhoso; mas todos os galanteios falsos são sempre re­
chaçados; Sophie não é feita para exercitar os pequenos talentos de
um néscio.
Aos 15 anos, com uma tão grande maturidade de apreciação, e,
a todos os títulos, formada como uma jovem de 20, Sophie não se­
rá tratada como uma criança, por seus pais. Mal apercebam, nela,
a primeira inquietação da juventude, apressar-se-ão a preveni­
-la, antes que ela faça progressos; far-lhe-ão os seus discursos ter­
nos e sensatos. Os discursos ternos e sensatos são próprios para a
sua idade e para o seu carácter. Se esse carácter é tal como eu o
imagino, por que razão seu pai não lhe falaria desta maneira:

<<Sophie, eis-vos uma rapariga crescida, e não é para o ser in­


definidamente que isso acontece. Desejamos que sejais feliz; é por
nós que o desejamos, porque a nossa felicidadt;l depende da vossa.
A felicidade de uma rapariga honesta consiste em fazer a de um
homem honesto: por conseguinte, é necessário pensar em casar­
-vos; é preciso pensar nisso muito cedo, porque do casamento de­
pende o destino da vida, e nunca se tem tempo de mais para pen­
sar nisso.
Não há nada mais difícil que a escolha de um bom marido, a não
ser, talvez, a de uma boa esposa. Sophie, sereis essa mulher rara,
sereis a glória da nossa vida e a felicidade dos nossos velhos dias;
mas, seja qual for o mérito de que estais provida, na terra não fal­
tam homens que estão mais bem providos dele que vós. Não há um
único que não se devesse sentir honrado se vos obtivesse, e há mui­
tos que vos honrariam ainda mais. No número destes, trata-se de
encontrar um que vos convenha, que o conheçais, e que vos façais
conhecer por ele.
A maior felicidade do casamento depende de tan�as conveniên­
cias, que é uma loucura pretender reuni-las todas. E preciso come­
car por se assegurar das mais importantes: quando as outras tam­
bém se encontram, só podem ser úteis; quando faltam, passa-se
sem elas. A felicidade perfeita não existe neste mundo; mas a
maior das infelicidades, e aquela que sempre se pode -
evitar, é a de
ser infeliz por sua própria causa.
Existem conveniências naturais, há as da instituição, e há as
que só dependem da opinião. Os pais são juízes das duas últimas
espécies, só os filhos o são da primeira. Nos casamentos que se efec-
234 tuam pela autoridade dos pais, estes regulam-se unicamente pe-
las conveniências da instituição e da opinião: não são as pessoas
que casam, são as condições e os bens; mas tudo isso pode mudar;
só as pessoas permanecem sempre, transportam-se sempre consi­
go mesmas; apesar da fortuna, é só através das relações pessoais
que um casamento pode ser feliz ou infeliz.
«Vossa mãe era de condição, eu era rico; eis as únicas conside­
rações que levaram os nossos pais a unir-nos. Perdi os meus bens,
ela perdeu o seu nome: esquecida pela família, hoje em dia de que
lhe serve ter nascido numa família nobre? Durante os nossos de­
sastres, a união dos nossos corações consolou-nos de tudo; a con­
formidade dos nossos gostos levou-nos a escolher este retiro; aqui
vivemos felizes, na pobreza, somos tudo, um para o outro. Sophie
é o nosso tesouro comum; abençoámos o céu por no-lo ter dadoe nos
ter tirado tudo o resto. Vede, minha filha, aonde nos conduziu a
Providência: as conveniências que nos levaram ao casamento de­
sapareceram; só somos felizes graças àquelas a que ninguém deu
importância.
«E aos esposos que compete harmonizar-se. A tendência natu­
ral deve ser o seu principal elo; os seus olhos, os seus corações de­
vem ser os seus principais guias; pois, estando reunidos, o seu
principal dever é de se amarem; e, porque amar, ou não amar, não
depende unicamente de nós mesmos, esse dever implica necessa­
riame_nte outro que é o de começar por se amarem, antes de se uni­
rem. E esse o direito da natureza, que nada pode revogar: aqueles
que a contrariam com tantas leis civis preocupam-se mais com a
ordem aparente que com a felicidade do casamento e os costumes
dos cidadãos. Bem vedes, minha Sophie, que não vos pregamos
uma moral difícil. Ela só pretende tornar-vos senhora de vós
mesma, para que possamos confiar em vós, na escolha do vosso es­
poso.
Depois de vos ter explicado as nossas razões para vos deixar­
mos uma completa liderdade, é justo falar-vos também das vossas,
para as poderdes utilizar com sageza. Minha filha, sois boa e razoá­
vel, tendes rectidão e piedade, possuís os talentos que convêm a
mulheres honestas, e não sois desprovida de encantos; mas tam­
bém sois pobre; tendes os bens mais estimáveis, e faltavam-vos
aqueles que são mais apreciados. Por conseguinte, aspirai só àqui­
lo que podereis obter e regulai a vossa ambição, não pelos vossos
juízos ou pelos nossos, mas pela opinião dos homens. Se apenas se
tratasse de uma questão de igualdade de mérito, ignoro a que de­
veria limitar as vossas esperanças; mas não as eleveis acima da
vossa fortuna, e não vos esqueçais de que ela está na categoria
mais ínfima.. Embora s<>ja c<>rto que um homem digno de vós não
considerará essa desigualdade como um obstáculo, devereis então
fazer o que ele não fará: Sophie deverá imitar sua mãe, e só entrar
numa família que se honra com ela. Não vivestes a nossa opulên-
cia: nascestes durante a nossa pobreza; tornaste-la doce para nós 235
e compartilhai-la sem sacrifício. Crede-me,Sophie,não procureis
bens por cuja privação nós bendizemos o céu; só experimentámos
a felicidade depois de termos perdido a riqueza.
Sois demasiado amável para não agradardes a ninguém, e a
vossa pobreza não é tal que um homem honesto se possa sentir
afastado de vós. Sereis requestada, e podeis sê-lo por pessoas que
não vos merecerão. Se se mostrassem a vós tais como são,saberíeis
pesar o que valem; todo o seu fausto nãovos impressionaria duran­
te muito tempo; mas, embora o vosso discernimento seja bom e que
vos conheçais em mérito, tendes falta de experiência e ignorais até
que ponto os homens podem disfarçar. Um patife astuto pode es­
tudar os vossos gostos para vos seduzir e aparentar, perante vós,
virtudes que não tem. E conseguiria perder-vos,Sophie,antes que
vós vos tivésseis apercebido da sua falsidade: só conheceríeis o vos­
so erro para chorar sobre ele. O mais perigoso de todos os ardis, e
o único que a razão não pode evitar, é o dos sentidos; se jamais ten­
des a infelicidade de nele cair,só vereis ilusões e quimeras, os vos­
sos olhos estarão fascinados, o vosso juízo ficará perturbado, a vos­
sa vontade desaparecerá, e amareis o vosso próprio erro; e,mesmo
que vos encontrásseis em estado de o conhecer, não desejaríeis dei­
xá-lo. Minha filha, é à razão de Sophie que vos entrego; não vos
confio à tendência do seu coração; mas, logo que ameis, entregai a
vossa mãe o cuidado. de vós.
«Proponho-vos um acordo que vos teste,munhe a nossa estima
e restabeleça, entre nós, a ordem natural. E costume os pais esco­
lherem o esposo para a filha, e só a consultarem para salvar as apa­
rências; entre nós, faremos exactamente o contrário: escolhereis e
nós seremos consultados. Servi-vos do vosso espírito, Sophie; uti­
lizai-o livremente e com bom senso. O esposo que vos convém de­
ve ser escolhido por vós e não por nós. Mas é a nós que compete ajui­
zar se não vos enganais sobre as conveniências, e se, sem o saber­
des, não estais a fazer aquilo que não quereis. O nascimento, os
bens, a categoria, a opinião, não influenciarão, de modo nenhum,
as nossas razões. Escolhei um homem honesto cuja pessoa vos
agrade e cujo carácter vos convenha: seja ele qual for,aceitamo-lo
como nosso genro. Os seus bens serão sempre bastantes, se ele ti­
ver braços, bons costumes, e amar a sua família. A sua categoria
será sempre suficientemente ilustre, se ele a enobrecer pela virtu­
de. Mesmo que toda a terra nos censurasse, que importância isso
teria para nós? Não procuramos a aprovação pública, a vossa feli­
cidade basta-nos.»

Leitores, ignoro que efeito faria um discurso dês SéS sobrê as jo­
vens educadas à vossa maneira. Quanto a Sophie, é possível que
ela não lhe responda com palavras; o pudor e a comoção não lhe
permitiriam expressar-se livremente; mas tenho a certeza abso-
236 luta de que ele permanecerá gravado no seu coração, para o resto
da sua vida, e de que, se é possível contar com alguma solução hu­
mana, é sobre a que a levará a ser digna da estima dos seus pais.
Vejamos o caso pelo pior aspecto, e demos-lhe um tempera­
mento ardente que lhe torne penosa uma longa espera; garanto
que o seu discernimento, os seus conhecimentos, o seu gosto, a sua
delicadeza, e, sobretudo, os sentimentos com que o seu coração foi
alimentado durante a sua infância, oporão, à impetuosidade dos
seus sentidos, um contrapeso que lhe bastará para os dominar, ou,
pelo menos, para lhes resistir durante muito tempo. Preferiria
morrer mártir, no seu estado, que afligir seus pais, casando com
homem sem mérito, e expondo-se à infelicidade de um casamen­
to mal harmonizado. A própria liberdade que recebeu só consegue
dar-lhe uma nova elevação de alma e torná-la mais exigente pa­
ra a escolha do seu senhor. Com o temperamento de uma Italiana
e a sensibilidade de uma Inglesa, ela possui - para conter o seu
coração e os seus sentidos - o orgulho de uma Espanhola, que,
mesmo quando procura um amante, não encontra facilmente
aquele que considera digno dela.
Nem a toda a gente é dado sentir a força que o amor pelas coi­
sas honestas pode dar à alma, nem a que se pode encontrar em si
mesmo, quando se deseja sinceramente ser virtuoso. Há pessoas
para as quais tudo quanto é grande parece quimérico, e que, na sua
baixa e vil razão nunca virão a saber quanto pode - sobre as pai­
xões humanas - a própria loucura da virtude. A essas pessoas, só
se deve falar por exem pios: só têm a perder, se se obstinarem a ne­
gá-los. Se eu lhes dissesse que Sophie não é um ser imaginário, que
só o seu nome é uma invenção minha, que a sua educação, os seus
costumes, o seu carácter, a sua própria figura existiram realmen­
te, e que a sua memória ainda inspira lágrimas a uma honesta fa­
mília, é certo que não me acreditariam; mas, enfim, que poderei eu
perder, se continuar a contar a história de uma jovem tão pareci­
da com Sophie que esta história poderia ter sido a sua, sem que nin­
guém se pudesse sentir surpreendido? Quer a creiam verdadeira
ou não, pouco importa: terei, se quiserdes, contado ficções; mas
nem por isso deixarei de explicar o meu método, e de atingir os
meus fins.
A jovem pessoa provida do temperamento que acabo de atri­
buir a Sophie, tinha, aliás, como ela, todos os atributos que lhe po­
deriam ter feito merecer esse nome, e é por isso que lho deixo. Após
o discursso que acabo de relatar, seu pai e sua mãe-pensando que
os partidos não se viriam oferecer na aldeia onde habitavam, en­
viaram-na passar um Inverno na cidade. em casa d<> uma tia que,
secretamente, instruíram da finalidade dessa viagem; pois que a
orgulhosa Sophie levava, no fundo do seu coração, o nobre orgulho
de saber tirunfar de si mesma; e, fosse qual fosse a necessidade que
tivesse de um marido, teria preferido morrer solteira que resolver-
-se a procurá-lo. 237
Para obedecer aos intentos dos pais, a tia apresentou-a nas ca­
sas, levou-a a festas, a reuniões, fê-la conhecer pessoas -ou, an­
tes, fez que a vissem -porque Sophie pouco se interessava por to­
do esse bulício. No entanto, constatou-se que ela não fugia dos jo­
vens de aspecto agradável que pareciam decentes e modestos. Ape­
sar da sua reserva, tinha uma certa arte para os atrair, que bas­
tante se parecia com a coquetaria; mas, depois de ter conversado
com eles duas ou três vezes, desinteressava-se. Em breve, a esse
ar de autoridade que parecia aceitar as homenagens, ela substi­
tuía um comportamento mais humilde e uma cortesia mais repul­
siva. Sempre atenta a si própria, já não lhes dava a oportunidade
de lhe prestarem o mais ínfimo serviço: era dizer que não queria
ser a sua amada.
Nunca os corações sensíveis apreciaram os prazeres ruidosos
-vã e estéril felicidade das pessoas que não sentem nada e que se
convencem de que atordoar as suas vidas é desfrutar delas. Não
encontrando o que procurava, e desesperando de o encontrar des­
sa maneira, Sophie fartou-se da cidade. Amava ternamente seus
pais, nada a compensava da ausência deles, nada conseguia fazer­
-lhos esquecer; voltou para a casa paterna, muito antes de ter ter­
minado o prazo fixado para o seu regresso.
Mal recomeçara as suas funções em casa dos pais, estes nota­
ram que, conservando o mesmo comportamento, ela mudara de
humor. Tinha distracções, mostrava-se impaciente, andava tris­
te e sonhadora, escondia-se para chorar. De início, pensou-se que
amava e que se envergonhava disso: falaram-lhe, ela negou. Ga­
rantiu não ter conhecido ninguém que lhe pudesse atingir o cora­
ção - e Sophie não mentia.
No entanto, a sua languidez continuava a aumentar, e a sua
saúde começava a ressentir-se disso. A sua mãe, preocupada com
essa modificação, acabou por decidir conhecer-lhe a causa. Falou­
-lhe a sós, e utilizou essa linguagem insinuante e essas carícias in­
vencíveis que só a ternura materna sabe utilizar. «Minha filha, tu,
que transportei no meu ventre e que, constantemente, trago no
meu coração, verte os segredos do teu no seu de tua mãe: Então,
que segredos são esses que uma mãe não os possa conhecer? Quem
é que lamenta as tuas penas, quem é que as compartilha, quem é
que as quer aliviar, se não teu pai e eu? Ai! Minha filha, queres que
eu morra da tua dor, sem a conhecer?»
Em vez de esconder os seus desgostos a sua mãe, a jovem até
estava satisfeita por tê-la como consoladora e confidente; mas o
pudor impedia-a de falar e a sua modéstia não encontrava lingua­
gem para descrever um estado tão pouco digno dela como a emo­
ção que perturbava os seus sentidos. Por fim, tendo a sua vergonha
servido de início para a máe, esta conseguiu arrancar-lhe a humi­
lhante confissão. Em vez de a afligir com justas reprimendas, con­
238 solou-a, lastimou-a, chorou por ela; era demasiado sensata para
lhe fazer ver um crime num mal que só a sua virtude tornava tão
cruel. Mas, por que suportar, sem necessidade, um mal cujo remé­
dio era tão dócil e tão legítimo? Por que não usava ela da liberda­
de que lhe tinham dado? Porque não aceitava um marido? Por que
não escolhia um? Não saberia ela que o seu destino dependia de si
própria, e que, fosse qual fosse a sua escolha, seria confirmada por
seus pais, pois que ela não poderia escolher um homem que não fos­
se honesto? Tinham-na enviado à cidade e ela não quisera lá ficar;
tinham-se apresentado vários partidos, e ela recusara--Ds a todos.
Por que esperava ela, então? O que queria? Que contradição inex­
plicável!
A resposta era simples. Se apenas se tratasse de um recurso pa­
ra a juventude, a escolha brevemente se faria; mas um senhor pa­
ra toda a vida não é assim tão fácil de escolher; e, como essas duas
escolhas não se podem separar, é preciso esperar, e, muitas vezes,
perder a sua juventude, antes de ter encontrado o homem com
quem se quer passar a sua vida; Era esse o caso de Sophie: preci­
sava de um amante, mas esse amante teria de ser seu marido; e,
quanto ao coração de que o seu precisava, um era tão difícil de en­
contrar como o outro. Todos esses jovens tão brilhantes só tinham,
em relação a ela, a conveniência da idade: mas as outras faltavam­
-lhes sempre; o seu espírito superficial, a sua vaidade, a sua lin­
guagem, os seus costumes desregrados, as suas frívolas imitações,
levavam-na a sentir repugnância por eles. Ela procurava um ho­
mem e apenas ecnontrava macacos; procurava uma alma e não en­
contrava nenhuma.
«Como sou infeliz!>>, dizia ela a sua mãe; «preciso de amar, e não
vejo nada quem e agrade. O meu coração repudia todos aqueles que
atraem os meus sentidos. Não vejo um que não excite os meus de­
sejos, nem um qye os não reprima; um gosto sem estima não pode
durar. Ai! Não é esse o homem que convém à vossa Sophie! O seu
encantador modelo está excessivamente colocado acima de tudo,
na alma dela. Ela só a ele pode amar, só a ele pode fazer feliz, e só
com ele poderá ser feliz. Prefere consumir-se e combater constan­
temente, prefere morrer infeliz e livre, que desesperada ao lado de
um homem que não ame e que tornaria infeliz; mais vale não vier,
que viver para sofrer.>>
Impressionada com essas singularidades, sua mãe achou-as
demasiado bizarras para nelas não suspeitar algum mistério. So­
phie não era nem preciosa nem ridícula. Como seria possível que
essa delicadeza levada ao excesso lhe pudesse convir, a ela, a quem
tanto se ensinara, durante a sua infância, como a acomodar-se às
pessoas com que tinha de viver e a fazer de necessidade virtude?
Esse modelo de homem amável de que ela estava tão enamorada,
e de que falava sempre nas suas conversas, levou sua mãe a pen-
sar que esse capricho tinha outro fundamento qualquer que ela
ainda ignorava, e que Sophie não dissera tudo. A infeliz, sobrecar- 239
regada com o seu secreto desgosto, só procurava desabafar. Sua
mãe insiste, ela hesita; por fim rende-se, e, saíndo sem dizer na­
da, volta um momento depois, com um livro na mãe: «Lastimai a
vossa infeliz filha, pois que a sua tristeza não tem remédio e os seus
choros não podem cessar. Quereis saber a causa disso: pois bem!
E i-la!», diz ela, lançando o livro para cima da mesa. A mãe pega no
livro e abre-o: era Les aventures de Télémaque1 • Começa por não
compreender nada desse enigma; depois de muito perguntar e de
receber respostas embaraçadas, compreende, finalmente-� com
uma surpresa fácil de imaginar - que sua filha é a rival de Euca­
ris.
Sophie amava Telémaco, e amava-o com uma paixão de que
nada a poderia curar. Logo que seu pai e sua mãe conheceram a sua
mania, riram dela e convenceram-se de que lha poderiam fazer
perder, através da razão. Enganavam-se: a razão não estava toda
do seu lado; Sophie também tinha a sua e sabia fazê-la valer.
Quantas vezes os reduziu ao silêncio, utilizando contra eles os seus
próprios argumentos, mostrandO-lhes que eles tinham sido os pró­
prios a fazer todo o mal, que não a tinham formado para um homem
do seu século; que, necessariamente, ela teria de adoptar as manei­
ras de pensar de seu marido, ou fazê-lo adoptar as suas; que eles
lhe tinham tornado o primeiro sistema impossível pela forma como
a tinham educado, e que o outro era precisamente o que ela pro­
curava. «Dai-me••, dizia ela, «um homem imbuído das minhas má­
ximas, ou que eu possa imbuí-lo delas, e desposo-o; mas, até lá,
porque me ralhais? Lastimai-me. Sou feliz e não louca. O cor,ação
dependeda vontade?Nãofoi o meu próprio paique mo disse? E cul­
pa minha, se amo o que não existe? Não sou uma visionária; não
quero um príncipe, não procuro Telémaco, sei que ele não passa de
uma ficção: procuro um homem que se pareça com ele. E porque é
que esse homem não pode existir, pois que eu existo, eu, que sin­
to o meu coração tão semelhante ao dele? Não, não desonremos as­
sim a humanidade; não pensemos que um homem amável e virtuo­
so seja apneas uma quimera. Ele existe, vive, talvez me procure;
procura uma alma que o saiba amar. Mas quem é ele? Onde está?
Ignoro-o: não é nenhum daquele� que eu vi; certamente que não
será nenhum daqueles que verei. O minha mãe! Porque me tornas­
tes a virtude tão amável? Se só a ela posso amar, a culpa é menos
minha que vossa!>>
Prosseguirei neste relato até à sua catástrofe? Direi os prolon­
gados debates que a precederam? Descreverei uma mãe impacien­
tada, transformando em severidade as suas primeiras carícias?

1 As aventuras de Telémaco, romance de Fénelon, escrito para a edu-


240 cação do seu discípulo, o duque de Borgonha (1699). (N. da T.)
Mostrarei um pai irritado, esquecendo os seus anteriores com pro­
missas e tratando como uma louca a mais virtuosa das filhas? Des­
creverei, finalmente, a infortunada, ainda mais apegada à sua qui­
mera pela perseguição de que é alvo, avançando a passos lentos pa­
ra a morte, e descendo para o túmulo no momento que todos crêm
conduzi-la ao altar? Não, afasto esses objectos funestos. Não tenho
necessidade de ir tão longe para mostrar - com um exemplo,
bastante impressionante, ao que me parece -que, apesar dos pre­
conceitos que nascem dos costumes do século, o entusiasmo pelo
honesto e pelo belo não é mais alheio às mulheres que aos homens,
e que não há nada que, sob a direcção da natureza, não se possa ob­
ter, tanto dela como de nós.
Aqui, obrigam�me a parar, para me perguntarem se é a natu­
reza que nos prescreve tanto sofrimento para reprimir desejos
imoderados. Respondo que não, mas que também não é a nature­
za que nos dá tantos desejos imoderados. Ora, tudo o que não é ela
é contra ela: já demostrei isso, mil vezes.
Devolvamos a sua Sophie ao nosso Emílio: ressuscitemos essa
amável jovem para lhe dar uma imaginação menos viva e um des­
tino mais feliz. Queria descrever uma mulher vulgar; mas, à for­
ça de lhe elevar a alma, perturbei a sua razão; desorientei-me a
mim mesmo. Voltemos atrás. Sophie só tem um bom natural nu­
ma alma normal; tudo quanto tem a mais, que das outras mulhe­
res é o efeito da educação que recebeu.
Ao escrever este livro, propus-me dizer tudo quanto se podia
fazer, deixando a cada um a escolha - dentro do que está ao seu
alcance-daquilo que eu possa ter dito de bem. Logo de início, pen­
sei formar, desde criança, a companheira de Emílio, e educá-los
um para o outro, e um com o outro. Mas, pensando mais bem, achei
que todos esses arranjos excessivamente prematuros seriam mal
compreendidos, e que era absurdo destinar duas crianças a uni­
rem-se, antes de poder saber se essa união estava na ordem da na­
tureza, e se elas teriam, entre si, as afinidades convenientes para
a formar. Não se deve confundir o que é natural no estado selva­
gem com o que é natural no estado civil. No primeiro estado, todas
as mulheres convêm a todos os homens, porque tanto eles como
elas ainda só têm a forma primitiva e comum; no segundo, como ca­
da carácter foi educado segundo as instituições sociais, e como ca­
da espírito recebeu a sua forma própria e determinada, não apenas
da educação mas também do concurso -bem ou mal ordenado ­
do natural e da educação, já só os podemos conciliar apresentan­
do-os um ao outro, para ver se se convêm sob todos os pontos de vis­
ta, ou para fazerem , pelo menos, a escolha que oferece o maior n ú­
mero dessas afinidades.
O mal está em que, desenvolvendo os caracteres, o estado social
faz uma distinção entre as categorias, e que, se uma dessas duas
categorias é semelhante à outra, quanto maior for a diferença que 241

L. B. 524 - 16
se notar entre elas, mais se confundem os caracteres. Daí, os casa­
mentos incôngruos e todas as desordens que deles derivam; daí se
deduz - por uma consequência evidente - que quanto mais nos
afastamos da igualdade, mais os sentimentos naturais se alteram;
quanto maior for o intervalo entre os grandes e os pequenos, mais
o elo conjugal se afrouxa; quanto mais ricos e pobres houverem,
menos pais e maridos haverá. O senhor, assim como o escravo, dei­
xam de ter família, cada um deles vê apenas o seu estado.
Se quereis prevenir os abusos e fazer casamentos felizes, aba­
fai os preconceitos, esquecei as instituições humanas, e consultai
a natureza. Não unis pessoas que só se convêm numa dada condi­
ção, e que deixarão de se convir quando essa condição vier a mu­
dar; mas uni aquelas que se convêm em todas as condições que se
encontrem, seja qual for o país que habitam, seja em que catego­
ria for que possam cair. Não digo que as afinidades convencionais
sejam indiferentes no casamento; mas afirmo que a influência das
afinidades naturais é tão importante que chega a ser a única que
decide do destino da vida, e que quando há tal conveniência de gos­
tos, de humores, de sentimentos, de caracteres, isso deveria impe­
lir um pai sage -nem que fosse príncipe, monarca - a dar, sem
hesitar, ao seu filho, a jovem com a qual ele tivesse todas essas con­
veniências, mesmo que ela viesse de uma família desonesta, mes­
mo que ela fosse a filha do carrasco.
Sim, sustento que -mesmo que todas as desgraças imaginá­
veis se venham a abater sobre dois esposos bem unidos -estes go­
zarão de uma felicidade mais verdadeira, chorando juntos, que a
que desfrutariam com todos os prazeres da Terra, envenenados pe­
la desunião dos corações.
Por isso, em vez de, desde a sua infância, ter destinado uma es­
posa para o meu Emílio, esperei até conhecer a que lhe convêm.
Não sou eu que lhe dou esse destino: é a natureza; tudo quanto me
compete fazer é encontrar a escolha que ela fez. Que me compete,
digq, a mim, e não ao pai; pois que, confiando-me o seu filho, ceden­
do-me o seu lugar, substituiu o seu direito pelo meu; sou eu o ver­
dadeiro pai de Emílio, fui eu quem fez dele um homem. Teria re­
cusado educá-lo, se não tivesse tido o direito de o casar a seu agra­
do, isto é, ao meu. Só o prazer de fazer feliz pode pagar o trabalho
que se tem para colocar um homem em estado de o ser.
Mas também não deveis pensar também que -para encontrar
a esposa de Emílio - eu me tenha esquecido de o colocar na obri­
gação de a procurar. Esta pretensa busca não pa�sa de um pretex­
to para o levar a conhecer as mulheres, a fim de que ele aprecie o
valor daquela que lhe convém . Há já muito tempo que Sophie foi
encontrada; talvez até que Emílio a tenha visto; mas só a reconhe­
cerá quando chegar o momento oportuno.
Embora a igualdade de situações não seja indispensável para
242 o casamento, quando essa igualdade se reune às outras conveniên-
cias, dá-lhes um novo valor; não se contrabalança com nenhuma,
mas faz a balança pender para um lado, quando tudo é igual.
Um homem - a menos que seja monarca - não pode procurar
esposa em todos os estados; porque os preconceitos que não tiver,
encontrá-los-á nos outros; e mesmo que determinada jovem lhe
conviesse, ele não a obteria, por causa disso. Há, por conseguinte,
máximas de prudêncià que devem limitar as buscas de um pai ju­
dicioso. Não deverá pretender dar ao seu pupilo uma categoria aci­
ma da sua, pois que isso não depende dele. Mesmo que o pudesse,
não o deveria fazer: que importa a categoria ao jovem, pelo menos
ao meu? E, no entanto, subindo, eleexpõe--se a mil verdadeirosma­
lesque sentirá durante toda a sua vida.Afirmo mesmo queele não
deverá querer compensar bens de diferentes naturezas -como a
nobreza e o dinheiro -, porque o valor de cada um deles confere ao
outro é menor que as alterações que recebe; porque, além disso,
nunca se está de acordo com a avaliação comum; e, finalmente, por­
que a preferência que cada um dá à sua categoria predispõe para
a discórdia entre as duas famílias e -muitas vezes-entreos dois
esposos.
Para a ordem do casamento, ainda há uma grande diferença de
situações, se é que o homem que se alia acima ou abaixo dele. O pri­
meiro cá só é absolutamente contrário à razão; o segundo já está
mais em conformidade com ela. Sendo através do chefe que a famí­
lia se liga à sociedade, é a condição desse chefe que regra o da fa­
mília inteira. Quando ele contrai aliança com uma mulher de ca­
tegoria inferior, não desce, e eleva sua esposa; pelo contrário,
quando desposa uma mulher de uma categoria social superior à
sua, abaixa-a sem se elevar. Assim, no primeiro caso, há bem sem
mal; e, no segundo, mal sem bem. Além disso, está na ordem da na­
tureza que a mulher deve obedecer ao homem. Por conseguinte,
quando ele a escolhe numa categoria inferior, a ordem natural e a
ordem civil estão em conformidade, e tudo corre bem. Mas, qaun­
do, pelo contrário, faz uma aliança com uma mulher de categoria
superior à sua, o homem coloca-se na alternativa de magoar o seu
direito ou o seu reconhecimento, e de ser ingrato ou desprezado.
Então, a mulher, pretendendo a autoridade, torna-se o tirano do
seu chefe; e o senhor, transformado em escravo, sente-se como a
mais ridícula e a mais miserável das criaturas. Tais como os infe­
lizes favoritos que os reis da Ásia honram e atormentam com a sua
aliança, e que -ao que se diz -para se deitarem com as suas mu­
lheres, só se atrevem a entrar na cama pelo fundo.
Estou preparado para que mui to leitores, lembrando-se de que
eu atribuo à mulh er um talento natural para governar o homem,
me acusem de contradição, neste ponto: no entanto, estarão enga­
nados. Há uma grande diferença entre arrogar-se o direito de co­
mandar e governar aquele que manda. O império da mulher é um
império de doçura, de habilidade e de complacências; as suas or- 243
dens são carícias; as suas ameaças são choros. Em casa, deve rei­
nar como um ministro no Estado, fazendo-se ordenar aquilo que
deseja fazer. Neste sentido, é constante que os casais mais felizes
são aqueles em que a mulher tem mais autoridade: mas quando ela
ignora a voz do chefe, quando ela usurpar os seus direitos e ser ela
a comandar, dessa desordem nunca resulta nada que não seja mi­
séria, escândalo e desonra.
Resta a escolha entre a suas iguais e as suas inferiores; e creio
que ainda resta alguma restrição a fazer para estas últimas; por­
que é muito difícil encontrar, entre a ralé do povo, uma esposa ca­
paz de fazer a felicidade de um homem honesto: não porque se se­
ja mais vicioso nas classes mais baixas que nas mais altas, mas
porque se tem pouca ideia do que é belo e honesto, e porque a in­
justiça dos outros estados faz ver, a este, a justiça nos seus próprios
vícios.
Naturalmente, o homem não pensa. Pensar é uma arte que ele
aprende como todas as outras, e até com mais dificuldade. Só co­
nheço - para os dois sexos - duas classes realmente distintas:
uma delas é a das pessoas que pensam; a outra é a das pessoas que
não pensam; e esta diferença deve-se quase unicamente à educa­
ção. Um homem da primeira destas duas categorias não se deve
aliar a uma pessoa da outra; porque o maior encanto da socieda­
de falta à sua, quando, tendo uma esposa, ele se vê reduzido a pen­
sar sozinho. As pessoas que passam exactamente toda a sua vida
a trabalhar para viver não pensam em mais nada, a não ser no pró­
prio trabalho ou no seu interesse, e todo o seu espírito parece re­
sidir nas extremidades dos seus braços. Essa ignorância não pre­
judica nem a probidade nem os costumes; muitas vezes até lhes
serve; muitas vezes, ganah-se com os seus deveres, à força de ne­
les reflectir, e acaba-se por pôr uma linguagem no lugar das coi­
sas. A consciência é o mais esclarecido dos filósofos: não é preciso
conhecer os Offices de Cícero, para se ser homem de bem; e a mu­
lher do mundo, por mais honesta que seja, talvez seja a que menos
sabe o que a honestidade é. Mas não deixa de ser verdade que um
espírito cultivado é o suficiente para tornar o seu comércio agra­
dável; e, para um pai de família que gosta de estar em sua casa, é
uma coisa muito triste ver-se obrigado a fechar-se em si mesmo,
e não se poder fazer compreender por ninguém.
Aliás, como é que uma mulher que não tenha o hábito de reflec­
tir educará os filhos? Como conseguirá discernir o que lhes con­
vém? De que maneira os poderá dispor para as virtudes que não co­
nhece, para o mérito de que não faz ideia nenhuma? Só saberá aca­
riciá-los ou ameaçá-los, torná-los insolentes ou receosos; fará de­
les macacos afectados ou desonestos estouvados, mas nunca nem
bons espíritos nem crianças amáveis.
Não convém, pois, a um homem que tenha educação, desposar
244 uma mulher que a não tenha, nem, por conseguinte, casar com
uma que pertença a uma categoria que a não tenha. Mas eu pre­
feriria cem vezes uma jovem simples e grosseiramente educada a
uma rapariga instruída e de belo espírito, que viria estabelecer, na
minha casa, um tribunal de literatura de que ela seria a presiden­
te. Uma mulher de belo espírito é o flagelo do marido, dos filhos,
dos amigos, dos criados, de toda a gente. Da sublime elevação do
seu belo génio, desdenha todos os seus deveres de mulher, e come­
ça sempre por se fazer homem, à maneira de mademoiselle de l'En­
clos. Fora de casa, é sempre ridícula e muito justamente criticada,
porque é impossível não o ser quando se sai do seu estado e que não
se é feito para aquele que se tomar.
Todas essas mulheres de grandes talentos nunca impressio­
nam mais do que os tolos. Sabe-se sempre qual é o artista ou o ami­
go que segura na pena ou no pincel, quando elas trabalham; sabe­
-se qual é o discreto homem de letras que, em segredo, lhes dita os
seus oráculos. Toda essa charlatanice é indigna de uma mulher ho­
nesta. E mesmo que tivesse verdadeiros talentos, a sua pretensão
aviltá-los-ia. A sua dignidade é manter-se ignorada; a sua glória
reside na estima do seu marido: os seus prazeres consistem na fe­
licidade da família. Leitores, dirijo-me a vós própios, sede de boa
fé: o que vos inspira mais boa opinião e vos faz abordar com mais
respeito uma mulher, quando entrais na sua sala: vê-la ocupada
com os trabalhos do seu sexo, com as tarefas da casa, rodeada das
roupas dos filhos, ou encontrá-la a escrever versos sobre a sua toi­
lette, rodeada de brochuras de todas as espécies e de pequeninos
bilhetes pintados de todas as cores? Toda a jovem letrada conser­
var-se-á solteira durante toda a sua vida, enquanto só houver ho­
mens sensatos neste mundo.

Quaeris cur nolim te ducere, Galla? diserta es.

Depois destas considerações, vem a do rosto; é a primeira que


impressiona e a derradeira que se deve fazer, e ainda é preciso ter
alguma importância. A grande beleza parece-me mais de evitar
que de procurar, para o casamento. A beleza desgasta-se muito de­
pressa, pela possessão; ao cabo de seis semanas, já nãovale nada
para o possuidor, mas os seus perigos duram tanto quanto ela. A
menos que uma bela mulher seja um anjo, o seu marido é o mais
infleiz dos homens; e mesmo que fosse um anjo, como poderia ela
impedir que ele estivesse constantemente rodeado por inimigos?
Se a extrema fealdade nãofosse repugnante, preferi-la-ia à extre­
ma beleza: pois que, em pouco tempo, tanto uma como a outra ten­
do passado a ser nulas para o marido, a beleza torna-se um incon­
veniente e a fealdade uma vantagem. Mas a fealdade que produz
a repugnância é a maior das desgraças: esse sentimento, longe de
se desvanecer, aumenta constantemente e transforma-se em ódio. 245
É um inferno, um casamento desses; mais valeria estarem mortos
·

que assim unidos.


Desejai, em tudo, a mediocridade, sem exceptuar a da própria
beleza. Um rosto agradável e acolhedor, que não inspira o amor,
mas a benevolência, é o que se deve preferir; não é prejudicial pa­
ra o marido e só tem vantagens para o proveito comum: as graças
não se desgastam, como a beleza; têm a sua própria vida, renovam­
-se constantemente, e ao cabo de trinta anos de casamento, uma
mulher honesta, com graças, agrada tanto ao marido como no pri­
meiro dia em que ele a viu.
Foram estas as reflexões que me determinaram na escolha de
Sophie. Discípula da natureza - assim como Emílio - ela foi,
mais do que nenhuma outra, feita para ele; será a mulher do ho­
mem. Pelo nascimento e pelo mérito, será sua igual; pela fortuna,
sua inferior. Não encanta à primeira vista, mas cada dia agrada
mais. O seu maior encanto actua gradualmente; só se descobre na
intimidade do comércio; e seu marido senti-lo-á, mais que qual­
quer outra pessoa no mundo. A sua educação não é nem brilhan­
te nem desleixada; tem gosto sem estudos, talento sem arte, pon­
deração sem conhecimentos. O seu espírito não sabe, mas está cul­
tivado para aprender: é como uma terra bem preparada que só es­
pera pela semente para poder render. Nunca leu outros livros que
não fossem Barreme e Telémaco, que, por acaso, lhe chegaram às
mãos; mas será que uma jovem capaz de se apaixonar por Teléma­
co terá um coração sem sentimento e um espírito sem delicadeza?
A amável ignorância! Feliz daquele que está destinados a instruí­
-lo! Ela não será a mestra de seu marido, mas suas discípuls; lon­
ge de o querer sujeitar aos seus gostos, adoptará os seus. Para ele,
terá mais valor que se fosse sábia; terá o prazer de lhe ensinar tu­
do. Enfim, é chegado o momento em que se devem encontrar; tra­
balhemos para que esse encontro se dê.
Deixamos Paris, tristes e sonhadores. Esse lugar de bulício não
é o nosso mundo. Emílio lança um olhar de desdém para essa gran­
de cidade, e diz, com despeito: «Quantos dias perdidos em vãs bus­
cas! Não é ali que se encontra a esposa do meu coração! Meu ami­
go, vós bem o sabíeis, mas o meu tempo não vos interessa e os meus
males pouco vos ffazem sofrer>>. Olho fixamente para ele, e digo­
-lhe, sem me perturbar: «Emílio, credes no que dizeis?» Imediata­
mente, ele a9raça-me, confuso, e aperta-me nos seus braços, sem
responder. E sempre a resposta que dá, quando nãotem razão.
Eis-nos pelos campos - verdadeiros cavaleiros anadantes;
não como aqueles que procuram as aventuras, porque, pelo contrá­
rio, fu gimos delas, ao deixar Paris; mas imitamos bastante o
seuandar errático e desigual, ora apressando o passo, ora avançan­
do devagar. Tanto seguimos a minha prática que acabaremos por
nos habituar a ela; e não imagino nenhum leitor que nos possa su-
246 por adormecidos numa boa sege de posta, bem fechada, avançan-
do sem nada ver, sem nada observar, tornando para nós infrutíe­
ro o intervalo entre a partida e a chegada, e, na velocidade do nos­
so andamento, perdendo tempo para o poupar.
Os homens dizem que a vida é curta, e vejo que tudo azem pa­
ra que ela o seja. Não sabendo como a empregar, queixam-se dara­
pidez do tempo e vejo que - a seu gosto -ele decorre com uma ex­
cessiva lentidão. Sempre compenetrados com o objecto que lhes in­
teressa, vêm com custo o intervalo que os separa dele: um quere­
ria estar no amanhã, o outro no mês que vem, o outro a dez anos
de lá; ninguém quer viver o dia a dia; ninguém está satisfeito com
a hora presente, todos a acham demasiado lenta a passar. Quan­
do se queixam de que o tempo passa depressa de mais, mentem; de
boa vontade pagariam o poder de o acelerar; de boa vontade empre­
gariam a sua ortuna para consumir a sua vida inteira; e talvez não
haja nenhum que não estivesse disposto a reduzir os seus anos a
pouquíssimas horas, se tivesse a possibilidade de retirar - con­
soante o seu aborrecimento - as que o separassem do momento
desejado. Há o que passa a metade da sua vida a ir de Paris a Ver­
salhes, de Versalhes a Paris, da cidade para o campo, do campo pa­
ra a cidade, e de um bairro para outro, que icaria muito embara­
çado com as suas horas, se não tivesse o segredo de as perder des­
sa maneira, e que se afasta expresamente dos seus negócios para
perder tempo a ir procurá-los: crê ganhar o tempo que neles gas­
ta a mais, e de que - de outro modo - não saberia que fazer; ou
então, pelo contrário, corre por correr, e vem de posta sem outro ob­
jecto que regressar da mesma maneira. Mortais, quando deixareis
de caluniar a natureza? Por que vos queixais de que a vida é cur­
ta, pois que ela ainda não o é bastante, a vosso gosto? Se houver um
único de entre vós que saiba pôr bastante temperança nos seus de­
sejos para nunca desejar que o tempo passe, esse nunca a conside­
rará demasiado curta; viver e desfrutar serão, para ele, a mesma
coisa; e, mesmo que morresse jovem, morreria saciado de dias.
Mesmo que o meu método tivesseapenas essa vantagem, só por
isso seria necessário preferi-lo a qualquer outro. Não eduquei o
meu Emílio para desejar ou para esperar, mas para desfrutar; e
quando ele transporta os seus desejos para além do presente, não
o az com um ardor tão impetuoso que lhe permita importunar-se
com a lentidão do tempo. Não desfrutará unicamente do prazer de
desejar, como também do de ir ao objecto que deseja; e as suas pai­
xões são de tal modo moderadas que ele está sempre mais onde es­
tá que onde estará.
Por conseguinte, não viajamos como correios mas como viajan-
tes. Não pensamo" unicamente no5 dois termos, mas no intervalo
que os separa. Para nós, a própria viagem é um prazer. Não a faze-
mos tristemente sentados, e como que encarcerados, numa peque-
na gaiola bem echada. Não viajamos na moleza e no repouso das
mulheres. Não evitamos nem o ar livre, nem a vista dos objectos 247
que nos rodeiam, nem a comodidade de os contemplar à nossa von­
tade, quando nos apraz. Emílio nunca tinha entrado numa chese
de posta, e não corre de posta quando nãotem pressa. Mas o que po­
deria alguma vez levar Emílio a apressar-se? Uma única coisa:
desfrutar da vida. Acrescentarei também, praticar o bem, quando
pode? Não, porque isso, em si mesmo, é desfrutar da vida.
Não imagino uma maneira mais agradável de viajar que a de
fazê-lo a cavalo: é a de viajar a pé. Parto quando quero, páro quan­
do quero, faço tanto ou tão pouco exercício quanto o que desejo fa­
zer. Observo a paisagem; viro para a direita oupara a esquerda;
examino tudo o que me agrada; detenho-me em todos os pontos em
que há vistas. Encontro um rio, sigo ao longo dele; uma mata es­
pessa, meto-me por entre as suas sombras; uma gruta visito-a;
uma mina ao ar livre, examino os minérios. Em toda a parte em que
me sinto bem, deixo-me ficar. No momento em que me aborreço,
vou-me embora. Não preciso de enveredar por caminhos já trilha­
dos, por estradas cómodas; passo por toda a parte por onde um ho­
mem possa passar; vejo tudo quanto um homem pode ver; e, como
só dependo de mim, desfruto de toda a liberdade de que um homem
pode fruir. Se o mau tempo me detém, e que o aborrecimento me
invade, então tomo os cavalos. Se me sinto cansado ... Mas Emílio
não se cansa; é robusto; e porque se haveria de cansar? Não está
com pressa. Se se detém, como se poderia aborrecer? Por toda a
parte, transporta consigo com que se distrair. Entra em casa de um
mestre e trabalha; exercita os seus braços enquanto repousa os
seus pés.
Viajar a pé é viajar como Tales, Platão e Pitágoras. Custa-me
compreender como é possível que um filósoo se decida a viajar de
outra maneira, e eximir-se ao exame das riquezas que pisa e que
a terra exibe aos seus olhos. Quem é que, se amar um pouco a agri­
cultura, não deseja conhecer as produções particulares do clima
das regiões que atravessa, e a maneira de as cultivar? Quem é que,
tendo um pouco de gosto pela História N aturai, se pode resolver a
pssar por um terreno sem o examinar, por um rochedo sem o picar,
por montanhas sem plantar árvores, por pedras sem procurar fós­
seis? Os vossos filósofos de andar por casa estudam a História Na­
turai nos seus gabinetes; usam enfeites ridículos; sabem nomes e
não fazem ideia nenhuma da natureza. Mas o gabinete de Emílio
é mais rico que o dos reis: esse gabinete é a terra inteira. Cada coi­
sa está no seu lugar: o naturalista que cuida delas arrumou tudo
numa bela ordem: Daubeton não faria mais bem.
Quantos prazeresvariados se experimentam, com esta agradá­
vel maneira de viajar! Além da saúde que se fortalece, há o humor
que se alegra. Sempre reparei que os que viajavam em belos coches
confortáveis, pareciam lânguidos, tristonhos, indispostos, aborre­
cidos; e que os que viajavam a pé iam sempre alegres e satisfeitos
248 com tudo. Como o coração ri, ao aproximar:...s . e do abrigo! Com que
prazer se vai para a mesa! Que bom sono se dorme numa cama du­
ra! Quando só se pensa em chegar, pode-se viajar em chese de pos­
ta; mas quando se quer viajar, deve-se fazê-lo a pé.
Se, antes de termos percorrido cinquenta léguas da maneira
que imagino, Sophie nãotiver sido esquecida, é preciso que eu se­
ja muito desajeitado ouque Emílio seja muito pouco curioso; pois,
que com tantos conhecimentos elementares, é difícil que ele não se
sinta tentado a adquirir mais. Só se é curioso na medida em que se
está a ser instruído; ele sabe precisamente o bastante para dese­
jar aprender.
Entretanto, um objecto atrai outro e continuamos a avançar.
Determinei, para a nossa primeira etapa, um termo afastado: o
pretexto para isso é fácil; saindo de Paris, é preciso ir procurar uma
mulher ao longe.
Um dia qualquer, depois de nos termos extraviado mais que de
costume, nos vales, nas montanhas onde não se avista nenhum ca­
minho, não conseguimos encontrar o nosso. Pouco nos importa: to­
dos os caminhos são bons, desde o momento em que possamos che­
gar ao nosso destino: mas também é preciso chegar a algum lado,
quando se está com fome. Felizmente, encontramos um camponês
que nos conduz à sua cabana; comemos com grande apetite, o seu
frugal almoço. Vendo-nos tão cansados, tãoe sfomeados, ele diz­
-nos: «Se Deus vos tivesse dirigido para o outro lado da colina, te­
ríeis sido mais bem recebidos... teríeis encontrado uma casa de
paz ... pessoas tão caridosas ... pessoas tãoboas!... Não têm um cora­
ção melhor que o meu, mas são mais ricas, embora digam que o
eram muito mais, outrora ... Mas vivem na miséria, graças a Deus;
e toda a região compartilha do�que lhes ficou.>>
Ao ouvir falar de boas pessoas, o coração de Emílio alegra-se.
«Meu amigo••, diz-me ele, olhando para mim, «dirijamo-nos a es­
sa casa cujos donos são abençoados pelos seus vizinhos: gostaria
muito de conhecer essa gente; talvez que eles também gostassem
muito de nos ver. Tenho a certeza de que nos receberão bem: se fo­
rem dos nossos, nós seremos dos deles.
Depois de o camponês nos ter indicado onde se encontrava a ca­
sa, partimos, erramos pelos bosques, uma grande chuvada sur­
preende-nos pelo caminho e atrasa-nos sem nos deter. Por fim, lá
nos voltamos a orientare, ao fim da tarde, chegamos à casa que nos
oidesignada. Na povoação que a rodeia, essa única casa, embora
simples, tem uma certa aparência. Apresentamo-nos, pedimos
hospitalidade. Conduzem-nos ao dono da casa; este interroga­
-nos, mas com cortesia: sem lhe dizermos o objecto da nossa via­
gem, dizemos o do nosso desvio. Ele conservou, da sua antiga opu­
lência, a facilidade de conhecer a condição das pessoas, pelas suas
maneiras; aquele que viveu no grande mundo raramente se enga­
na a esse respeito: com esse passaporte, somos admitidos.
Mostram-nos um quarto bastante pequeno, mas asseado e con- 249
fartável; acendem-nos a lareira,encontramos roupa de cama, ves­
tuário,tudo quanto precisamos. «Ora esta!>•,exclama Emílio, mui­
to surpreendido, «dir-se-ia que estavam à nossa espera! Como o
camponês tinha razão! Que atenções! Que bondade! Que previdên­
cia! E por desconhecidos! Parece-me estar no tempo de Homero».
«Sede sensível a tudo isto», digo-lhe, «mas não vos sintais sur­
preendido; em todos osJugares onde os estrangeiros são raros,são
bem recebidos: nada torna mais hospitaleiro que o não ter frequen­
temente a oportunidade de o ser: é a afluência de hóspedes que des­
trói a hospitalidade. No tempo de Homero, pouco se viajava, e os
viajantes eram bem recebidos em toda a parte. Talvez tenhamos
sido os únicos viajantes que aqui tenham aparecido durante todo
o ano». «Pouco importa», responde ele, «não deixa de ser um elogio
saber passar sem hóspedes e recebe-los sempre bem.
Depois de nos termos secado e vestido convenientemente, va­
mos ao encontro do dono da casa; ele apresenta-nos sua mulher;
esta recebe-nos,não só com cortesia mas também com bondade. A
honra dos seus olhares vai para Emílio. Uma mãe, no caso em que
ele se encontra, raramente vê sem inquietação - ou, pelo menos,
sem curiosidade - encontrar em sua casa um homem dessa ida­
de.
O jantar é servido mais cedo, por nossa causa. Quando entra­
mos na sala de jantar, vemos a mesa posta com cinco lugares: sen­
tamo-nos, fica um lugar fazio. Entra uma jovem, faz uma grande
reverência e senta-se modestamente, sem dizer uma palavra.
Emílio, ocupado a saciar a sua fome ou a responder a perguntas,
cumprimenta-a, fala e come. O principal objecto da sua viagem es­
tá tão longe dos seus pensamentos quanto ele se crê ainda afasta­
do do seutermo. O assunto da conversa dirige-se para o caso dos
viajantes que se perdem. <<Senhor», diz-lhe o dono da casa, <<pare­
ceis-me um jovem amável e sge; e isso leva-me a pensar que che­
gastes aqui -o vosso governante e vós -cans�dos e encha:.;cados,
como Telémaco e Mentor, à ilha de Calipso». <<E verdade», respon­
de Emílio, <<que aqui encontrámos a hospitalidade de Calipso». O
seu Mentor acrescenta: <<E os encantos de Eucaria». Mas Emílio co­
nhece a Odisseia e não leu Telémaco: não sabe quem é Ê ucaria.
Quanto à jovem, vejo-a corar até ás orelhas, pôr os olhos no pra­
to, e mal se atrever a respirar. A mãe, que se apercebe do seu em­
baraço,faz um sinal ao pai, e este muda de conversa. falando da so­
lidão em que vivem, dirige insensivelmente a conversa para o re­
lato dos acontecimentos que o confinaram nela; as desgraças da
sua vida, a constância de sua esposa, as consolações que encontra­
ram na .sua união, a vida doce e pacífica que levam no seu retiro,
e, sempre sem dizer uma palavra sobre a jovem; tudoisso constitue
uma narração agradável e comovedora que não se pode ouvir sem
interesse. Emílio, comovido, enternecido, deixa de comer para
250 prestar atenção ao que lhe é dito. Enfim, no ponto em que o mais
honesto dos homens fala, com mais prazer, da dedicação da mais
digna das mulheres, o jovem viajante, fora de si, aperta numa mão
a mão do marido, em que pegou, e, com a outra, pega na da mulher,
inclina-se sobre ela e, transportado, rega-a com as suas lágrimas.
A ingénua vivacidade do jovem impressiona toda a gente; mas a jo­
vem, mais sensível que todos a essa marca de bondade, crê ver Te­
lémaco afectado pelas infelicidades de Filoctetes. Disfarcadamen­
te, pousa os olhos nele, para mais bem examinar o seu rosto; nele
não encontra nada que desminta a comparação. O seu à-vontade
não evidencia arrogância; os seus modos são vivos, sem estouvani­
ce; a sua sensibilidade torna-lhe o olhar mais doce, a sua fisiono­
mia mais interessante: vendo-o chorar, a jovem está quase a mis­
turar as suas lágrimas às dele. Num tãobelo pretexto, um secreto
pudor retém-na: já se censura as lágrimas prestes a escaparem­
-se-lhe dos olhos, como se fosse mal vertê-las pela sua própria fa­
mília.
A mãe- que desde o início do jantar não deixou de a vigiar­
vê o seu constrangimento, e alivia-a disso, enviando-a fazer uma
comissão. Um minuto depois, a jovem volta, mas tão mal recom­
posta que a sua emoção é notada por todos. A mãe diz-lhe, com do­
çura: «Sophie, sossegai; então? Nunca deixareis de chorar pelas in­
felicidades dos vossos pais? Vós, que os consolais delas, não lhes se­
jais mais sensível que eles próprios.>>
Ao ouvir esse nome deSophie, teríeis visto Emílio estremecer.
Impressionado por um nome tão querido, desperta em sobressal­
to, e lança um olhar ávido sobre aquela que se atreve a usá-lo. So­
phie, ó Sophie! Sois vós que o meu coração procura? Sois vós que
o meu coração ama? Observa-a, contempla-a com uma espécie de
receio e de desconfiança. Não vê exactamente o rosto que imagina­
ra; não sabe se aquele que vê vale mais ou menos. Estuda cada um
dos seus traços, espia cada um dos seus movimentos, cada um dos
seus gestos; para tudo, encontra mil interpretações confusas; da­
ria a metade da sua vida para que ela se decidisse a pronunciar
uma só palavra. Olha para mim, inquieto e perturbado; os seus
olhos fazem-me simultaneamente cem pertuntas e cem censuras.
A cada olhar que me lanca, parece dizer-me: <<Guiai-me, enquan­
to ainda é tmepo; se o meu coração se entregar e se enganar, nun­
ca me conseguirei recompor.
Emílio é o homem do mundo que menos sabe dissimular. Como
disseimularia ele, na maior perturbação da sua vida, entre quatro
espectadores que o observam, e dos quais o aparentemente mais
distraído é, efectivamente, o que está mais atento? A sua comoção
não escapa aos olhares penetrantes de Sophie; os dele, de resto,
instroem-na de que é ela o objecto dessa comoção: compreende que
essa perturbação ainda não é amor; mas, que importância isso
tem? Ele ocupa-se dela, e isso é quanto basta: sentir-se-ia muito
infeliz se ele se ocupasse dela impunemente. 251
As mães têm olhos como as filhas, e, ainda por cima, experiên­
cia. A mãe de Sophie sorri do sucesso dos nossos projectos. Lê nos
corações dos dois jovens: vê que chegou o momento de fixar o do jo­
vem Telémaco; leva a filha a falar. A filha, com uma doçura natu­
ral, responde-lhe num tom tímido que mais efeito produz. Ao ou­
vir o primeiro som dessa voz, Emílio sente-se rendido; é ela a So­
phie, já não duvida. Mesmo que o nosso o não fosse, já seria tarde
de Il}ais para voltar atrás.
E então que os encantos dessa rapariga fascinante penetram,
em torrente, no seu coração, e que ele começa a engolir, a longos
tragos, o veneno co ela o embriaga. Deixa de falar, deixa de respon­
der; só vê Sophie; só ouve Sophie: se ela diz uma palavra, ele abre
a boca; se ela baixa os olhos, ele baixa os seus; se a vê suspirar, sus­
pira: é a alma deSophie que parece animá-lo. Como a dele mudou,
em tão escassos instantes! Já não é Sophie que treme, é Emílio.
Adeus, liberdade, ingenuidade, sinceridade. Confuso, embaraça­
do, receoso, já não se atreve a olhar em sua volta, receando ver que
o observam. Envergonhado por se deixar interpretar, desejaria
tornar-se invisível para todos, a fim de poder saciar a vontade que
tem de a contemplar sem ser observado. Sophie, pelo contrário,
tranquiliza-se ao ver o receio de Emílio; percebe---se do seu triun­
fo, desfruta dele.

No'l mostra giá, ben che in suo cor ne rida.


(Não o manifesta, embora o seu coração exulte.

Não modificou as suas maneiras; mas, apesar desse ar modes­


to e desse olhar baixo, o seu temo coração palpita de alegria, e diz­
-lhe que encontrou Telémaco.
Agora, ao começar a contar-vos a história excessivamente in­
génua e talvez demasiado simples dos seus amores inocentes, ireis
considerar esses pormenores como um jogo fr1volo, e estareis en­
ganados. Não se atribui bastante importância à influência que po­
de vir a ter a primeira ligação de um homem com uma mulher, no
decorrer da vida de cada um deles. Não se concebe que uma primei­
ra impressão, tão viva como a do amor, ou a da inclinação que to­
ma o seu lugar, possa ter efeitos duradoiros cujo encantamento não
se nota com o andar dos anos, mas que não cessam de agir até à
morte. Nos tratados de educação, dão-nos grandes discursos, inú­
teis e pedantescos, sobre os quiméricos deveres dos filhos, e nun­
ca nos dizem nem sequer uma palavra sobre a parte mais impor­
tante e mais dificil de toda a educação, a saber, a crise que serve
de passagem da infância para o estado de homem. Se, de alguma
maneira, consegui tornar estes ensaios úteis, será sobretudo, por
muito me ter debruçado sobre eles ao longo desta parte essencial
-omitida por todos os outros- e por não me ter deixado afastar
252 deste empreendimento por falsas delicadezas, nem deixado assus-
tar com dificuldades linguísticas. Se disse o que se deve fazer, dis­
�e o que tinha a dizer: pouco me importa ter escrito um romance.
E um romance, o da natureza humana. Se só neste livro ele se en­
contra explicado, será culpa minha? Deveria ser a história da mi­
nha espécie? Sois vós mesmos- que a depravais- que transfor­
mais o meu livro num romance.
Uma outra consideração, que reforça a primeira, é que, neste
caso, não se trata de um jovem que, desde a sua infância, tenha si­
do entregue ao receio, à cobiça, à inveja, ao orgulho, e a todas as
paixões que servem de instrumento ás educações comuns; trata-se
de um jovem que, aqui, experimenta não só seu primeiro amor, co­
mo a primeira paixão de toda a espécie; que, desta paixão- tal­
vez a única que ele venha a experimentar durante toda a sua vi­
da- depende a derradeira forma que deve adquirir o seu carác­
ter. As suas maneiras de pensar, os seus sentimentos, os seus gos­
tos, fixados por uma paixão durável, vão adquirir uma consistên­
cia que não lhes permitirá mais alterarem-se.
E fácil de compreender que, depois de um serão desses, nem
Emílio nem eu tenhamos passado a noite inteira a dormir. Mas en­
tão!? A de um nome deverá exercer tanto poder sobre um homem
sage?Só haverá umaSophie no mundo?Terão todas elas almas se­
melhantes, as que usam o mesmo nome? Todas as que ele encon­
trará serão a sua? Será ele louco por se apaixonar assim por uma
desconhecida a quem nunca falou? Esperai, jovem, examinai, ob­
servai. Ainda não sabeis em casa de quem estais; e, ao ouvir-vos,
poder-se-ia crer que já estais em vossa própria casa.
Não é o momento para as lições, e estas não são feitas para
serem ouvidas. Só conseguem dar ao jovem um novo interesse por
Sophie, através do desejo de justificar a sua inclinação. Essa ana­
logia de nomes, esse encontro que se crê fortuito, a minha própria
reserva, só conseguem exarcebar a sua vivacidade: já Sophie lhe
parece tão estimável que ele crê impossível que eu não a venha a
estimar também.
De manhã, tenho a certeza de que, em vez de no seu velho fa­
tp de viagem, Emílio tratará de se apresentar mais bem cuidado.
E o que ele faz; mas eu rio-me da facilidade com ele utiliza as rou­
pas da casa. Penetro no seu pensamento; nele vejo, com prazer, que
procura- preparando-se para restituições, trocas- estabelecer
uma espécie de correspondência que lhe permita devolve-los e re­
gressar àquela casa.
Por outro lado, também esperava encontrar Sophie mais arre­
bicada na sua apresentação: enganei-me. Essa vulgar coquetaria
é boa para aquelas que só pretendem agradar_ A do verdadeiro
amor é mais refinada, tem pretensões muito diferentes. Sophie es­
tá vestida com mais simplicidade, ainda, que na véspera, e mesmo
com mais negligência, embora com um asseio sempre escrupuloso.
Só vejo coquetaria, nessa negligência, porque nela descubro afec- 253
tação. Sophie sabe perfeitamente que uma apresentação mais re­
bu�cada é �ma de�laração;mas não se sabe que uma apresentação
mais de�leixada e outra; mostra que não se contenta em agradar
pelo traJe e pelos ornamentos, que também pretende agradar pe­
la pessoa que se é. Ora! Que importa a um apaixonado a maneira
�omo.a amada e� !á yest�da, contanto que ele veja, quer que ele os
Imagme. O que Ja vm nao lhe bastou para poder adivinhar o res­
to?
É c:er que, durante as nossas conversas dessa noite, Sophie e
sua mae tambem _ não ficaram caladas; houve confissões arranca­
das, instruções dadas. No dia seguinte, reunimo-nos todos bem
preparados. Ainda não az doze horas que os nossos jovens se �iram
pela primeira vez;ainda não troc�ram uma única palavra, mas já
se nota que se entendem. A maneira como se abordam não é fami­
liar;ele mostra-se embaraçado, tímido;não se falam;de olhos bai­
xos, parecem evitar-se, e isso é um indício de inteligência entre
eles;evitam-se, mas de comum acordo;já experimentam a neces­
sidade do mistério, antes mesmo de se terem falado. Ao partir, pe­
dimos autorização para vir, nós mesmos, trazer o que levamos. A
boca de Emílio pede essa autorização ao pai, à mãe, enquanto que
os seus olhos impacientes, virados para a filha, lha pedem com
muito mais insistência. Sophie não diz nada, não faz nenhum si­
nal, parece nada ver, nada ouvir;mas cora;e esse rubor é uma res­
posta ainda mais clara que a de seus pais.
Autorizam-nos a voltar sem nos convidarem a ficar. Esse com­
portamento é o que convém;oferece-se a sua mesa a viajantes que
procuram abrigo, masnão é decenteque um amante durma em ca­
sa da sua amada.
Mal saímos dessa querida casa, Emílio deseja que nos estabe­
leçamos na sua vizinhança: a cabana mais próxima já lhe parece
afastada de mais; desejaria dormir nos fossos do castelo. «Jovem
estouvado!», digo-lhe, com um ar de pena. «Então, já a paixão vos
cega!? Já deixastes de ver as conveniências e a razão! Desgraçado!
Credes amar e quereis desonrar a vossa amante! O que se dirá de­
la, quando se souber que um jo'-:"em que saí de sua casa dorme nas
vizinhanças? Amai-la, dizeis! E, e!) tão, a vós, que compete fazer­
-lhe perder a sua boa reputação? E esse o preço com que preten­
deis pagar a hospitalidade que seus pais vos concederam!? Estais
disposto a fazer o opróbio daquela de quem esperais a vossa felici­
dade?» «Ora! que importa••, responde ele com vivacidade, «OS vãos
discursos dos homens e as suas injustas suspeitas? Não fostes vós
que me ensinastes a não fazer caso deles? Quem, mais bem do que
eu, sabe quanto honroSophie, quanto a desejo respeitar? A minha
dedicação não fará a vergonha dela, fará a sua glória, será digan
dela. Se o meu coração e os meus desvelos lhe prestarem, por to­
da a parte, a homenagem que ela merece, em que a posso ultrajar?>>
254 «Caro Emílio>>, respondo-lhe, abaraçando-o, <<pensais por vós:
aprendei a pensar nela. Não compareis a honra de um sexo à do ou­
tro: os seus princípios são totalmente diferentes. Esses princípios
são igualmente sólidos e razoáveis, porque derivam, igualmente,
da natureza, e porque a mesma virtude que vos leva a desprezar
- naquilo que vos diz respeito - os discursos dos homens, vos
obriga a respeitá-los pela vossa amada. A vossa honra está só em
vós, e a dela depende de outrém. Não lhe atribuir importância se­
ria ferir a vossa, e vós não cumpris a obrigação que para convosco
tendes, se fordes a causa de que não lhe prestem a que lhe é devi­
da.>>
A seguir, explicando-lhe as razões destas diferenças, levo-o a
compreender quanta injustiça haveria em querer considerá-las
sem valor. Quem oi que lhe disse que ele será o esposo de Sophie,
dela, cujos sentimentos ele ignora; dela, cujo coração- ou cujos
pais-talvez tenham compromissos anteriores, que ele desconhe­
ce, e que talvez não tenha, consigo uma única das conveniências
que podem fazer um casamento eliz? Ignorará ele que, para uma
rapariga, qualquer escândalo é uma nódoa indelével, que mesmo
o casamento com aquele que ama não consegue apagar/ Eantão!
Qual é o homem sensível que deseja perder aquela que ama? Qual
é o homem honesto que quer fazer chorar, para sempre, a uma des­
graçada, a infelicidade de lhe ter agradado?
O jovem, assustado com as consequências que o aço encarar, e
sempre excessivo nas suas ideias, crê nunca poder estar bastante
afastado de casa de Sophie: acelera o passo, para mais rapidamen­
te se afastar dela; olha em nossa volta, para ver se não estamos a
ser escutados; sacriicaria mil vezes a sua felicidade pela honra da­
quela que ama; preferiria q,unca mais a voltar a ver que causar-lhe
o mais ínfimo desagrado. E este o primeiro ru to dos cuidados que
lhe dispensei desde a sua juventude, para lhe formar um coração
que soubesse amar.
Trata-se, pois de encontrar uma casa afastada, mas ao nosso
alcance. Procuramos, informamo-nos: dizem-nos que, a duas
grandes léguas dali, há uma cidade; procuraremos alojar-nos ne­
la, de preferência a faze-lo nas aJdeias mais próximas onde a nos­
sa estada se tornaria suspeita. E ali que, finalmente, chega o no­
vo apaixonado, cheio de amor, de esperança, de alegria e, sobretu­
do, de bons sentimentos; e eis de que maneira, dirigindo pouco a
pouco a sua paixão nascente para aquilo que é bom e honesto, dis­
ponho insensivelmente todos os seus sentimentos a seguirem o
mesmo hábito.
Aproximo-me do fim da minha carreira; já a antevejo, de longe.
Tod as as gr andes dificuldades foram vencidas, todos os grandes
obstáculos ultrapassados;já não me resta nada de penoso a fazer,
excepto não estragar a minha obra apressando-me a consumi-la.
Na incerteza da vida humana, evitemos sobretudo a falsa prudên-
cia de sacrificar o presente ao futuro; é, em muitos casos, imolar 255
aquilo que é ao que nunca será. Tornemos o homem feliz em todas
as idades, para evitar que, depois de tantos cuidados, ele venha a
morrer antes de o ser. Ora, se há uma época para se fruir da vida,
ela é, certamente, no fim da adolescência, quando o homem no
meio do seu trajecto, vê de mais longe os dois termos que lhe fa�em
sentir a brevidade dela. Se a imprudente juventude se engana não
é naquilo que quer desfrutar, mas em querer procurar o goz� on­
de ele não se encontra, e porque, preparando-se um futuro mise­
rável, nem sequer sabe fruir do momento presente.
Considerai o meu Emílio, depois de ter completado os seus vin­
te anos, bem formado, bem constituído- tanto de espírito como de
corpo-forte, são, desembaraçado, industrioso, robusto, cheio de
bom senso, de razão, de bondade, de humanidade, tendo bons cos­
tumes, gosto, amando o belo, praticando o bem, liberto do jugo da
opinião, mas submetido à lei da sageza, e dócil à voz da amizade;
possuindo todos os talentos úteis e vários talentos agradáveis,
atribuindo pouco interesse às riquezas, transpostando os seu re­
cursos nas extremidades dos seus braços, e não receando vir a ter
falta de pão, seja o que for que acontecer.
Ei-lo, agora. embriagado por uma paixão nascente, e o coração
abrindo-se para os primeiros fogos do amor; as suas doces ilusões
constroem-lhe um novo universo de delícias e de gozo; ama um ob­
jecto amável, e ainda mais amável pelo seu carácter que pela sua
pessoa; tem esperanças, espera por uma retribuição que sente que
merece.
Foi da afinidade dos corações, foi do concurso dos sentimentos
honestos, que se formou a sua primeira inclinação: essa inclinação
deve ser durável. Ele entrega-se com confiança- mesmo com a
razão -ao mais encantador delírio, sem receio, sem hesitação,
sem arrependimento, sem outra inquietação que não seja aquela
de que o sentimento da felicidade é inseparável. Que poderá faltar
à sua? Vede, procurai, imaginai o que ainda lhe falta, e que se pos­
sa conciliar com o que ele já tem. Ele reune todosos bens que se po­
dem obter simultaneamente; só se lhe pode acrescentar algum, à
custa de outro; sente-se feliz, tanto quanto um homem o pode ser.
Iria eu, neste momento, abreviar um destino tão doce? Iria eu per­
turbar uma volúpia tão pura? Ai! O verdadeiro valor da vida resi­
de na felicidade que ele experimenta. Que lhe poderia eu fazer que
valesse o que lhe teria retirado? Mesmo levando a sua felicidade ao
cúmulo, destruiria o maior encanto dela. Essa felicidade suprema
é cem vezes mais doce de esperar que de obter; desrutamo� mais
bem dela quando a esperamos que quando dela gozamos. O bom
Emílio, ama e sê amado! Goza, durantemuitotempo, antesdepos­
suires; goza simultaneamente o amor e a inocência; constrói o teu
paraíso nesta terra, enquanto esperas pelo outro; não abreviarei,
de modo nenhum, esta feli época da tua vida; prolong,!'lrei, para ti,
256 o encantamento, mais que o que for possível. Mas, ai! E preciso que
ele termine, e que dure sempre, na tua memória, e para que nun­
ca te arrependas por o ter experimentado.
Emílio não se esquece de que temos restituições a fazer. Logo
que estas estão prontas, montamos a cavalo e partimos a galope;
desta vez, ao partir, ele queria estar chegado. Quando o coração se
abre para as paixões, abre-se para o aborrecimento da vida. Se não
perdi o meu tempo, ele não passará toda a sua vida assim.
Infelizmente, o caminho está muito cortado e a região é difícil.
Perdemo-nos; ele é o primeiro a dar-se conta disso, e, sem se im­
pacientar, sem se queixar, dedica toda a sua atenção a procurar o
caminho; erra durante muito tempo, antes de se conseguir orien­
tar, e, sempre com a mesma calma. Isso, para vós, não é nada; mas
é muito para mim, que conheço o seu natural impulsivo; nisso, ve­
jo o fruto dos cuidados que, desde a sua infância, lhe dediquei pa­
ra o endurecer contra os golpes da necessidade.
Por fim, chegamos. A recepção que nos fazem é muito mais sim­
pies e agradável que da primeira vez; já somos velhos conhecidos.
Emílio e Sophie cumprimentam-se, um pouco embaraçados, e con­
tinuam sem trocar uma só palavra: que poderiam dizer-se, na nos­
sa presença? A conversa que precisam de ter não necessita de tes­
temunhas. Passeamos pelo jardim: esse hardim, tem, como cantei­
ro, uma horta muito extensa; como parque, um pomar coberto de
grandes e belas árvores frutíferas, de todas as espécies, e que é
atravessado, em todos os sentidos, por lindos regatos e canteiros
cheios de flores. «Que belo sítio!», exclama Emílio, cheio do seu Ho­
mero e sempre entusiasmado; «Creio estar a ver o jardim de Alci­
noo••. A jovem desejaria saber o que éAlcinoo, e a mãe faz a pergun­
ta. «Alcinoo», explico-lhe, «foi um rei de Corcira, cujo jardim­
descrito pot Homero -é criticado pelas pessoas de gosto, por o
acharem simples de mais e ornamentado de menos1. Esse Alcinoo

1 <<Saindo do palácio, chegamos a um vasto jardim de duzentos ares,


cercado e murado todo em redor, plantado com grandes árvores floridas,
p roduzindo peras, maçãs, romãs e outras das mais belas espécies, figuei­
ras de doces frutos, oliveiras verdejantes. Nunca, em nenhum momento do
ano, essas árvores deixam de dar fruto: de Inverno e de Verão, o suave há­
lito do vento do oeste faz nascer uns e amadurecer outros. Vê-se a pera e
a maçã envelhecerem e secarem nas árvores, o figo na figueira, e o cacho
de uvas na cepa. A vinha inesgotável não pára de lhe trazer novas uvas;
cozem-se e, com umas, faz-se marmelada, ao sol, numa eira, enquanto se
vindimam outras, deixando na planta aquelas que ainda estão em flor, em
agraço, ou que começam a escurecer. Numa das extremidades, dois qua·
drados, bem cultivados e cobertos de flores durante todo o ano, estão or­
namentados com duas fontes, uma das quais distribui água portado o jar­
dim, enquanto a outra, depois de ter atravessado o palácio, é conduzida a
um edificio elevado na cidade, para dessedentar os cidadãos.» 257

).-. B. 524-17
tinha uma filha amável, que, na véspera de o seu pai dar hospita­
lidade a um estrangeiro, pensou que em breve teria um marido>>.
Sophie, interdita, cora, baixa os olhos, morde a língua; é impossí­
vel imaginar uma tal confusão. O pai, que se diverte a aumentá­
-la, toma a palavra, e diz que ajovem princesa ia pessoalmente la­
var a roupa no rio. «Credes>>, prosseguiu ele «que ela teria desde­
nhado tocar nos guardanapos sujos, dizendo que cheiravam a res­
tos de comida?» Sophie, que se sente atingida, esquece a sua timi­
dez natural e desculpa-se com vivacidade. Que seu pai sabe mui­
to bem que todas as pequenas peças de roupa não teriam tido ou­
tra lavadeira que ela, se lho tivessem permitido1; que ainda teria
feito mais, e com parzer, se lho tivessem ordenado. Enquanto diz
isso tudo, lança-me olhares, de soslaio, com uma inquietação de
que não posso deixar de rir, lendo no seu coração ingénuo os receios
que a levam a falar. Seu pai tem a crueldade de fazer realçar es­
sa atrapalhação, perguntando-lhe, num tom irónico, a que propó­
sito ela fala por si mesma, e o que é que pensa ter em comum com
a filha de Alcinoo. Envergonhada e trémula, ela não se atreve a res­
pirar, nem a olhar para ninguém. Jovem encantadora! Já não é
preciso fingir: eis-vos declarada, mesmo sem o terdes querido.
Muito depressa essa pequena cena é esquecida, ou parece sê­
-lo. Felizmente para Sophie, Emílio foi o único que não se aperce­
beu de nada. O passeio continua, e os nossos jovens, que tinham co­
meçado por andar ao nosso lado, têm dificuldade em acompanhar
a lentidão dos nossos passos; insensivelmente, passa-mos adian­
te, e acabam por se acostar; vemo-los bastante longe, à nossa fren­
te. Sophie parece atenta e grave; Emílio fala e gesticula com ani­
mação : não nos parece que a conversa os aborreça. Ao cabo de uma
longa hora, regressamos; chamamo-los eles voltam para trás,
mas, por sua vez, lentamente, e vê-se que fazem render o tempo.
Enfim, bruscamente a conversa deles acaba antes de as suas vozes
chegarem ao nosso alcance, e apressam o passo para se nos reuni­
rem. Emílio aproxima-se com um ar aberto e carinhoso; os olhos
brilham-lhe, de alegria; no entanto, dirige-os com um pouco de in­
quietação para a mãe de Sophie, para ver a recepção que ela fará
à filhas. Esta não tem, nem de longe, um ar muito desinteressado;
ao aproximar-se, parece muito confusa por se ver a sós com o jo­
vem, ela que tantas vezes esteve com outros sem se sentir emba-

É esta a descrição do jardim real de Alcinoo, no sétimo l ivro da Odis­


seia;jardim no qual, para vergonha desse velho sonhador de Homero e dos
princípios do seu tempo, não se vêem nem espaldares nem estátuas, nem
cascatas nem relvados.
1 Confesso que me sinto um tanto ou quanto reconhecido à mãe de
Sophie, por não lhe ter permitido que estragasse, no sabão, mãos tão do­
258 ces como as que ela tem, e que Emílio tantas vezes deverá beijar.
raçada, e sem que alguém alguma vez tivesse achado isso mal.
Apressa-se a chegar perto de sua mãe, um pouco ofegante, dizen­
do algumas palavras que não significam grande coisa, como que
para ter o ar de ali estar há já muito tempo.
Na serenidade que se estampa nos rostos dessas amáveis
crianças, vê-se que a conversa que tiveram aliviou os seus cora­
ções de um grande peso. Nem por isso se mostram menos reserva­
dos, um para o outro; mas a sua reserva é menos embaraçada; vem
apenas do respeito de Emílio, da modéstia de Sophie, e da hones­
tidade de ambos, Emílio atreve-se a dizer-lhe algumas palavras,
por vezes ela ousa responder-lhe, mas nunca abre a boca para o fa­
zer sem primeiro lançar um olhar a sua mãe. Nela, a mudança que
parece mais sensível, diz-me respeito a mim: testemunha-me
uma consideração mais solícita, olha-me com interesse, fala-me
afectuosamente, está atenta ao que me pode agradar; vejo que me
honra com a sua estima, e que não lhe é indiferente obter a minha.
Compreendo que Emílio lhe falou de mim; dir-se-ia que já combi­
naram conquistar-me para a sua causa: no entanto, não se trata
nada disso, e a própria Sophie não se conquista tão depressa. Tal­
vez venha a ser mais preciso o meu favor junto dela, que o dela jun­
to de mim. Par encantador! . . . Ao pensar que o coração sensível do
meu jovem amigo me fez entrar, em grande parte, na sua primei­
ra conversa com a sua amada, desfruto do fruto dos meus traba­
lhos; a sua amizade pagou-me tudo.
As visitas repetem-se. As conversas entre os nossos jovens tor­
nam-se mais frequentes. Emílio, embriagado de amor, crê atingir
a sua felicidade. Porém não obtém confissão formal de Sophie: ela
escuta-o e não lhe diz nada. Emílio conhece toda a sua modéstia;
tanta discrição surpreende-o pouco; sente que não é mal visto por
ela; sabe que são os pais que casam os filhosl; supõe que Sophie es­
pera uma ordem de seus pais, pede-lhe autorização para a solici­
tar; ela não se opõe. Ele fala-me no assunto; falo em seu nome,
mesmo na sua presença. Que surpresa ele experimenta quando
vem a saber que Sophie depende de si mesmo, e que, para o fazer
feliz, basta-lhe desejá-lo! Começa a não compreender o seu com­
portamento. A sua confiança diminui. Alarma-se, vê-se menos
avançado do que supunha, e é então que o amor mais terno empre­
ga a sua linguagem mais enternecedora para a flectir.
Emílio não é capaz de adivinhar o que o prejudica: se não lho
disserem, nunca o saberá; e Sophie é demasiado orgulhosa para
lho dizer. As dificuldades que a detêm levariall) outra a precipitar-
-se. Não se esqueceu das lições de seus pais. E pobre, Emílio é ri-
co, ela bem o sabe_ Como ele precisa de se fazer estimar por ela! De
quanto mérito não precisa para fazer desaparecer essa desigual­
dade! Mas, como iria ele pensar nesses obstáculos? Será que
Emílio sabe que é rico? Alguma vez se dignou informar-se disso?
Graças a Deus, não tem necessidade nenhuma de o ser, sabe ser 259
benfeitor sem isso. O bem que faz, retira-o do seu coração e não d�
sua bolsa. Dá, aos pobres, o seu tempo, os seus cuidados, as sua!
afecções, a sua pessoa; e, na avaliação das suas benfeitorias, ma:
se atreve a dar alguma valor ao dinheiro que distribui pelos indi·
gentes.
Não sabendo de onde lhe vem essa desgraça, atribui-a à sua
própria culpa: pois, quem se atreveria a acusar de capricho o ob­
jecto das suas adorações? A humilhação do amor próprio aumen­
ta o seu desgosto por ver o seu amor repudiado. Já não se aproxi­
ma de Sophie com essa amável confiança de um coração que se sen­
te digno do dela; mostra-se receoso e trémulo, quando está na sua
presença. Desistiu de a impressionar pela ternura, procura fazê­
-la ceder pela piedade. Por vezes, a sua paciência esgota-se, o des­
peito está prestes a suceder-lhe. Sophie parece pressentir os seus
arrebatamentos, e olha para ele. Só com esse olhar, desarma-o e
intimida-o: ele está mais submisso que antes.
Perturbado com essa resistência obstinada e com esse silêncio
invencível, derrama as mágoas do seu coração no do seu amigo. Ne­
le desabafa os sofrimentos desse coração entristecido; implora a
sua assistência e os seus conselhos. «Que mistério impenetrável!
Ela interessa-se por mim, disso não posso ter dúvidas: em vez de
a evitar, alegra.:..Se com a minha presença; quando chego, mostra­
-se alegre, e triste quando partol recebe as minhas atenções com
bondade; os meus serviços parecem agradar-lhe; digna-se dar­
-me opiniões, por vezes, mesmo, ordens. Porém, rejeita as minhas
solicitações, as minhas preces. Se me atrevo a falar da união, im­
põe-me autoritariamente silêncio; e, se acrescento uma palavra,
afasta-se imediatamente de mim. Por que estranha razão quer ela
que eu lhe pertença sem querer ouvir falar de me vir a pertencer?
Vós, que ela respeita, vós que ela ama e a quem não se atreverá a
fazer calar, levai-a a falar; servi o vosso amigo, corai a vossa obra;
não permitais que os vossos cuidados sejam funestos para o vosso
pupilo: ai! o que ele convosco aprendeu fará a sua miséria, se não
completardes a sua felicidade!
Falo a Sophie, e, com pouca dificuldade, arranco-lhe um segre­
do que já conhecia antes de ela mo confiar. Com mais dificuldade,
obtenho dela a autorização de o revelar a Emílio; desde que a ob­
tenho, utilizo-a. Essa explicação mergulha-o num espanto de que
não consegue sair: não é capaz de conceber o que escudos, a mais
ou a menos, podem fazer ao carácter e ao mérito. Quando consigo
levá-lo a compreender a influência que eles têm nos preconceitos,
põe-se a rir, e, num transporte de alegria, quer partir imediata­
mente, para ir rasgar tudo, deitar tudo fora, renunciar a tudo, pa­
ra ter a honra de ser tão pobre como Sophie, e regressar digno de
ser seu esposo. .
«Ü quê!?», digo-lhe, detenho-o, e, por minha vez, rindo da sua
260 impetuosidade, «Essa jovem cabeça nunca amadurecerá? E, de-
pois de terdes filosofado durante toda a vossa vida, nunca apren­
dereis a raciocinar? Como vos é possível não ver que, seguindo o
vosso insensato projec�o, iríeis piorar a vossa situação e tornar So­
phie mais intratável? E uma pequena vantagem, possuir mais al­
guns bens que ela; seria uma muito grande sacrificar-lhes todos;
e, se o seu orgulho não se pode decidir a aceitar de vós a vossa prin­
cipal obrigação, como se decidirá a aceitar-vos a outra? Se ela não
pode suportar que um marido lhe possa dizer que a enriqueceu, se­
rá capaz de bem suportar qu� ele a censure por io ter feito empo­
brecer só para lhe agradar? O infeliz! Evitai que ela vos suspeite
de ter feito esse projecto. Tornai-vos, pelo contrário, económico e
diligente, por amor dela, para evitar que lea vos acuse de querer
obtê-la por garbo, e de lhe quererdes sacrificar voluntariamente
o que perdeis por negligência.
Credes que, no fundo, os grandes bens lhe inspirem receio e que
as suas oposições se devam precisamente às vossas riquezas? Não,
caro Emílio; elas têm uma causa mais sólida e mais grave, no efei­
to que essas riquezas produzem na alma do seu possuidor; sabe
que os bens da fortuna são sempre preferidos a tudo, por aqueles
que os possuem. Para todos os ricos, o ouro tem mais valor que o
mérito. Na com unidade do dinheiro e dos serviços, eles acham sem­
pre que estes nunca compensam aquele, e que ainda se lhes deve
alguma coisa, depois de se ter passado a vida a servi-los comendo
o seu pão. Que tereis, então, de fazer- ó Emílio! - para lhe reti­
rar os seus receios? Fazei que ela vos conheça bem; isso não se con­
segue um dia. Mostrai-lhe os tesouros da vossa alma nobre, com
que podeis redimir aqueles que tendes a infelicidade de possuir.
Com muita constância e tempo, superai a sua resistência; com sen­
timentos grandes e generosos, forçai-a a olvidar as vossas rique­
zas. Amai-a, servi-a, servi os seus respeitáveis pais. Provai-lhe
que essas atenções não são o efeito de uma paixão louca e passa­
geira, mas de princípios que estão indelevelmente gravados no
fundo do vosso coração. Honrai dignamente o mérito ultrajado pe­
la fortuna; és o único sistema para o reconciliar com o mérito que
ela favoreceu.»
Não é difícil imaginar os transportes de alegria que este discur­
so provoca no jovem, quanta confiança e esperança ele lhe devol­
ve, quanto o seu honesto coração se felicita por ter de fazer- a fim
de agradar a Sophie- tudo quanto faria por sua própria vontade,
se Sophie não existisse, ou se não estivesse apaixonado por ela. Por
pouco que tenhais compreendido o seu carácter, qual de vós não se­
rá capaz de imaginar o seu comportamento, nesta ocasião?
Eis-me, pois, o confidente dos meus dois bons jovens e o media­
neiro dos seus amores! Que bela ocupação para urp. governante!
Tão bela que, durante toda a minha vida, nunca fiz nada que tan-
to me elevasse aos meus próprios olhos e me fizesse sentir tão sa­
tisfeito comigo mesmo. De resto, essa função não deixa de ter os 261
seus aspectos agradáveis: não sou mal recebido naquela casa; con·
fiam-me o cuidado de manter os meus dois apaixonados na ordem
Emílio, sempre com receio de desagradar, nunca se mostrou tão
dócil. A jovem cumula-me de cumprimentos que não me iludem,
e de que só aceito a parte que me cabe. E assim que ela se compen­
sa, indirectamente, do respeito em que mantém Emílio. Através de
mim, faz-lhe mil ternas carícias, que nunca lhe faria a ele, mesmo
que isso a matasse; e ele, que sabe que não quero prejudicar os seus
interesses, sente-se encantado com o bom entendimento que vê
reinar entre nós. Consola-me, quando, durante o passeio, ela re­
cusa o seu braço e lhe prefere o meu: afasta-se, sem uma queixa,
apertando-me a mão e dizendo-me em voz baixa e com o olhar:
«Amigo, falai por mim.>> Segue-nos, interessado, com o olhar; ten­
taler nos nossos sentimentos, observando os nossos rostos, e inter­
pretar os nossos discursos, através dos nossos gestos; sabe que na­
da do que se diz entre nós lhe é indiferente. Boa Sophie, como o vos­
so coração sincero se sente à vontade, quando, sem serdes ouvida
por Telémaco, podeis conversar com o seu Mentor! Com que amá­
vel franqueza lhe permitis ler, nesse terno coração, tudo quanto se
passa nele! Com que prazer lhe mostrais toda a vossa estima pe­
lo seu pupilo! Com que ingenuidade enternecedora o deixais adi­
vinhar os sentimentos mais doces! Com que fingida cólera recha­
çais o importuno, quando a impaciência o força a interromper-vos!
Com que encantador despeito lhe censurais a sua indiscrição,
quando ele vos vem impedir de dizer bem dele, de o ouvir dizer, e
de retirar sempre das minhas respostas alguma nova razão para
o amardes!
Tendo chegado ao ponto de se fazer considerar como um aman­
te declarado, Emílio faz valer todos os seus direitos; fala, insiste,
solicita, importuna. Que o tratem com dureza, que o maltratem,
pouco lhe importa, contanto que o escutem. Por fim, obtém, não
sem dificuldades, que, por seu lado, Sophie aceite abertamente
exercer sobre ele a autoridade de uma amante, que lhes prescre­
va o que ele deve fazer, que ordene em vez de pedir, que aceite em
vez de agradecer, que decida da frequência e da duração das suas
visitas, que o proíba de vir antes de tal dia e de permanecer depois
de tal hora. Tudo isso não é feito a brincar, mas muito seriamen­
te; e, embora ela dificilmente tenha aceitado esses direitos, agora
usa deles com um rigor que, muitas vezes, leva o pobre Emílio a ar­
repender-se de lhos ter dado. Mas, seja o que for que ela lhe orde­
ne, ele não replica; e, muitas vezes, partindo para obedecer, olha­
-me com os olhos cheios de alegria, que me dizem: «Como vedes, ela
tomou possessão de mim». Entretanto, a orgulhosa observa-{) de
soslaio, e sorri secretamente do orgulho do seu escravo.
Albano e Rafael, emprestai-me o pincel da volúpia! Divino Mil­
ton, ensina a minha pena grosseira a descrever os prazeres do
262 amor e da inocência! Mas não! Ocultai as vossas artes enganado-
ras, perante a santa verdade da natureza. Tende unicamente co­
rações sensíveis, almas honestas; depois, deixai a vossa imagina­
ção à vontade, sobre os transportes de doisjovens amantes que, sob
os olhares de seus pais e dos seus guias, se entregam, sem se per­
turbarem, à doce ilusão que os alegra, e que, na embriaguês dos de­
sejos, avançando lentamente para o termo, enfeitam, com flores e
grinaldas, o feliz elo que os deverá reunir até ao túmulo. Tantas
imagens encantadoras chegam a embriagar-me a mim próprio;
reuno-as sem ordem e sem seguimento; o delírio que elas me cau­
sam impede-me de as ligar entre si. Oh! Quem é que, tendo um co­
ração, não é capaz de saber compor, para si mesmo, esse quadro de­
licioso das diversas situações do pai, da mãe, da filha, do governan­
te, do pupilo, e do concurso de uns e de outros para a união do par
mais encantador, cuja felicidade será obra do seu amor e da sua
virtude?
É agora que, verdadeiramente interessado em agradar, Emílio
compreende o valor dos talentos agradáveis que se deu a si mesmo.
Sophie gosta de cantar, ele canta com ela; ainda faz mais, ensina­
-lhe a Música. Ela é viva e airosa, gosta de saltar, ele dança com
ela; transforma os seus saltos em passos, aperfeiçoa-a. Essas li­
ções são encantadoras, a alegria brincalhona anima-as, suaviza o
tímido respeito do amor: é permitido, a um amante, dar lições com
volúpia; é permitido ser o mestre da sua amante.
Na casa, há um velho cravo todo escangalhado; Emílio compõe­
-no e afina-o; é fabricante de instrumentos de música, é violeiro
assim como marceneiro; a sua máxima sempre foi de fazer, sem a
ajuda de ninguém, tudo quanto pode ser ele próprio a fazer. A ca­
sa está situada num local pitoresco: ele retratou-a em pintura, sob
diferentes ângulos, nos quais muitas vezes Sophiepôs a mão, e com
que ela ornamenta o gabinete de seu pai. Os quadros não são
dourados e não precisam de o ser. Vendo desenhar Emílio, imitan­
do-o, ela aperfeiçoa-se graças ao seu exemplo; cultiva todos os ta­
lentos, e o seu encanto embeleza-os a todos. Seu pai e sua mãe re­
cordam a sua antiga opulência, quando voltam a ver brilhar, em
seu redor, as belas-artes- que eram as únicas que a tornava que­
rida a ambos; o amor ornamentou toda a sua casa; só graças a ele,
nela reinam-sem despesas e sem dificuldades- os mesmos pra­
zeres que, outrora, eles só conseguiam reunir com muito dinheiro
e aborrecimentos.
Assim como o idólatra enriquece, com os tesouros que estima,
o objecto do seu culto, o amante-por mais perfeição que veja na
sua amada - quer constantemente acrescentar-lhe novos or­
namentos. Ela não precisa deles para agradar; mas é ele que tem
necessidade de a ornamentar: é uma nova homenagem que crê
prestar-lhe, é um novo interesse que acrescenta ao parzer de a
contemplar. Parece-lhe que nada de belo está no lugar que lhe
convém, quando não ornamenta a suprema beleza. E um espectá- 263
culo simultaneamente enternecedor e rídiculo, ver Emílio empe­
nhado em ensinar a Sophie tudo quanto ele próprio sabe, sem se
preocupar em saber se o que lhe pretende ensinar lhe agrada ou lhe
interessa. Fala-lhe de tudo, explica-lhe tudo, com um empenho
pueril; crê que basta dizer-lhe as coisas e que ela as compreende
imediatamente; imagina, de antemão, o prazer que experimenta­
rá quando puder discorrer, filosofar com ela; considera como inú­
til todo o adquirido que não pode expor aos seus olhos; quase que
cora, quando se apercebe de que sabe coisas que ela ignora.
Ei-lo, pois, a dar-lhe lições de Filosofia, de Física, de Matemá­
tica, de História, em resumo, de tudo! Sophie presta-se, com pra­
zer, ao seu zelo, e esforçava-se por aproveitar. Quando ele conse­
gue obter a autorização de lhe dar as lições de joelhos, diante de­
le, como se sente satisfeito! Crê avistar o céu aberto. Porém, essa
situação-mais incómoda para a aluna que para o mestre- não
é a que mais se presta para a instrução; porque, nessa posição, não
se sabe o que fazer dos olhos para evitar aqueles que os perseguem,
e, quando eles se encontram, a lição não fica mais bem ensinada.
A arte de pensar não é ignorada pelas mulheres; mas elas de­
veriam limitar-se a aflorar as ciências de raciocínio. Sophie com­
preende tudo e não retém grande coisa. Os maiores progressoes
que faz são em Moral e nas coisas do gosto; quanto à Física, só con­
segue reter algumas ideias sobre as leis gerais e o sistema do m un­
do. Por vezes, durante os seus passeios, contemplando as maravi­
lhas da natureza, os seus corações inocentes e puros ousam elevar­
-se até ao seu autor: não receiam a sua presença, expandem-se
conjuntamemte, perante ele.
O quê! Dois amantes na flor da idade empregam o tempo em
queestãosósparafalarde religião! ?Perdem o tempo a recitar o seu
catecismo! ? De que serve aviltar o que é sublime? Sim, certamen�
te, é o que eles dizem na ilusão que os encanta: vêem-se perfeitos,
amam-se, conversam, entusiasmados, sobre aquilo que dá um va­
lor à virtude. Os sacrifícios que lhe fazem tornam-lhe cara. Nos
transportes que é preciso dominar, vertem, por vezes, lágrimas
mais puras que o orvalho do céu; e essas doces lágrimas fazem o en­
cantamento das suas vidas: encontram-se no mais encantador de­
lírio que alguma vez possam ter experimentado almas humanas.
As próprias privações aumentam a sua felicidade e honram-nos
aos seus próprios olhos, com os seus sacrifícios. Homens sensuais,
corpos sem alma, eles conhecerão um dia os vossos prazeres; mas,
durante toda a sua vida, terão saudades do tempo em que se recu­
savam a eles!
Apesar desse bom entendimento, não deuixa de, por vezes, ha­
ver dissentímentos, e até mesmo zangas; a amante não deixa de ter
caprichos e o amante não está livre de arrebatamentos; mas essas
pequenas tempestades depressa passam e só reforçam a sua
264 união; a própria experiência ensina Emílio a não as recear tanto;
as vantagens que adquire com as reconciliações são sempre mais
importantes que a nocividade das zangas. O fruto da primeira le­
vou-a a esperar o mesmo das outras: enganou-se; mas, enfim, se
ele nem sempre obtém um proveito tão sensível sempre ganhas em
ver confirmado, por Sophie, o sincero interesse que ela tem pelo
seu coração. Quer-se então saber qual é esse proveito? Consinto
em dizê-lo, tanto mais que este exemplo me dará a oportunidade
de expor uma máxima muito útil e de combater uma muito funes­
ta.
Emílio ama; por conseguinte, não é temerário; e ainda mais
bem se concebe que a imperiosa Sophie não seja rapariga para lhe
permitir familiaridades. Como a sageza tem o seu termo em todas
as coisas, poderia ser mais facilmente considerada como demasia­
do dura que como excessivamente indulgente; e, por vezes, o seu
próprio pai receia que o seu extremo orgulho degenere em altivez.
Nas conversas mais secretas, Emílio não se atreveria a solicitar o
mais ínfimo favor, nem sequer a mostrar que aspira a ele; e, duran­
te o passeio, quando ela aceita apoiar-se ao seu braço, favor que
não permite transformar em direito, por vezes ele mal se atreve a
apertar esse braço de encontro ao seu peito. No encontro, após uma
prolongada sujeição, ousa beijar furtivamente o seu vestid o; e, por
várias vezes, teve a sorte de o poder fazer sem que ela parecesse
aperceber-se disso. Um dia, quando ele pretende tomar, mais
abertamente, essa liberdade, Sophie decide considerá-la muito
mal. Emílio insiste, ela irrita-se, o despeito dita-lhe algumas pa­
lavras desagradáveis; Emílio não as ouve sem replicar: passam o
resto do dia amuados e separam-se muito desgostosos, um com o
outro.
Sophie sente-se embaraçada. S,ua mãe é a sua confidente; co­
mo lhe esconderia o seu desgosto? E a sua primeira zanga; e uma
zanga de uma hora é tão importante! Arrepende-se da falta que co­
meteu: sua mãe permite-lhe repará-la, seu pai ordena-lho.
No dia seguinte, Emílio, preocupado, volta mais cedo que de
costume. Sophie está no gabinete de sua mãe; seu pai também.
Emílio entra, com ar respeitoso mas triste. Mal o pai e a mãe o aca­
bam de cumprimentar, Sophie vira-se para ele e, estend�ndo-lhe
a mão, pergunta-lhe, num tom acariciador, como está. E eviden-
te que essa bela mão só se estende assim para ser beijada: ele pe-
ga nela mas não a beija. Sophie, um tanto ou quanto envergonha-
da, retira-a com um ar tão sereno quanto possível. Emílio, que não
está habituado às maneiras das mulheres e que não sabe para que
serve o capricho, não o esquece facilmente e não se aplaca facil­
men te. O pai de Sophie, vendo-a embaraçada, ainda a desconcer-
ta mais, com ironias. A pobre rapariga, confusa, humilhada, já não
sabe o que faz, e daria tudo quanto tem para se atrever a chorar.
Quanto mais se constrange, mais o seu coração se enche de lágri­
mas: por fim, uma escapa-se-lhe, de todas quantas ela tem para 265
verter. Emílio vê essa lágrima, precipita-se aos seus pés, pega-lhe
na mão, beija-lhe repetidas vezes, com emoção. «Üra esta, senhor
é bom de mais!», diz o pai, soltando uma gargalhada; «Eu mos­
trar-me-ia menos indulgente para todas essas loucas, e puniria a
boca que me tivesse ofendido!» Emílio, afoitado por esse discurso,
vira um olhar suplicante para a mãe, e, crendo ver um sinal de con­
sentimento, aproxima-se, trémulo, do rosto de Sophie, que vira a
cabeça, e que, para salvar a boca, expõe uma face cor-de-rosa. O
indiscreto não se contenta com isso; resiste-se-lhe fracamente.
Que beijo, se não tivesse sido dado sob os olhares de uma mãe! Se­
vera, Sophie, tende cuidado convosco; pedir-vos-ão muitas vezes
a autorização para beijar o vosso vestido, na condição de que, por
vezes, a recuseis.
Depois deste exemplar castigo, o pai sai do quarto, com o pre­
texto de negócios a tratar; a mãe mandar sair Sophie, sob um pre­
texto qualquer, e, depois, dirigindo-se a Emílio, diz-lhe, num tom
grave:

Senhor, creio que um jovem tão bem nascido como vós, que tem
sentimentos e costumes, não desejaria retribuir com a desonra de
uma família a amizade que esta lhe testemunha. Não sou nem in­
tratável nem afectada; sei o que se deve consentir à juventude es­
touvada; e o que suportei diante de mim bem vo-lo prova. Consul­
tai o vosso amigo sobre os vossos deveres; ele vos explicará a dife­
rença que existe entre osjogos que a presença de um pai e de uma
mãe autoriza e as liberdades que se tomam longe delas, abusando
da sua confiança e transformando em armadilhas os mesmos favo­
res que, debaixo dos seus olhares, são apenas inocentes. Ele dir­
-vos-á, senhor, que o único erro que a minha filha cometeu em re­
lação a vós foi o de não ter visto, logo na primeira vez, o que nun­
ca deveria consentir; ele dir-vos-á que tudo quando se recebe co­
mo favor passa a sê-lo, e que é indigno de um homem de honra abu­
sar da simplicidade de uma jovem, para, em segredo, usurpar as
mesmas liberdades que ela pode admitir em presença de toda a
gente. Pois bem se sabe o que as boas maneiras toleram, em públi­
co; mas ignora-se onde se detém -na sombra do mistério- aque­
le que se erige como único árbitro das suas fantasias>>.

Após esta merecida reprimenda, muito, mais dirigida a mim


que ao meu pupilo, essa sage mãe deixa-nos, e deixa-me na admi­
ração da sua excepcional prudência, que considera sem importân­
cia que, na sua frente, beijem a boca de sua filha, mas que se as­
susta quando pensa que alguém possa pretender beijar o seu ves­
tido quando está a sós com ela. Reflectindo na loucura das nossas
máximas, que sempre sacrificam à decência a verdadeira honesti­
dade, compreendo porque a linguagem é tanto mais casta quanto
266 mais corruptos estão os corações, e porque é que os comportamen-
mentos são tanto mais convenientes quanto mais desonestos são
aqueles que os têm.
Por essa ocasião, incutindo no coração de Emílio, deveres que
lhe deveria ter ensiando mais cedo, veio-me uma nova reflexão,
que talvez constitua a maior homenagem a Sophie, mas que, no en­
tanto, não comunico ao seu amante; é quese torna evidente quees­
se pretenso orgulho que lhe censuram não mais é que uma precau­
ção muito sensata para se precaver de si mesma. Tendo a infelici­
dade de se sentir um temperamento combustível, receia a primei­
ra centelha, e afasta-a, da melhor maneira que pode. Não é por or­
gulho que se mostra severa, é por humildade. Exerce, sobre Emílio,
o domínio que receia não ter sobre Sophie; serve-se de um para
combater o outro. Se se sentisse mais confiante, seria muito menos
severa. Exceptuando este ponto, qual é a rapariga no mundo que
seja mais fácil e mais doce que ela? Quem é que suporta mais pa­
cientemente uma ofensa? Quem é que mais receia ofender outrém?
Quem é que tem menos pretensões de todos os géneros? Além da
virtude? E nem sequer é da sua virtude que ela se sente orgulho­
sa, só o é para a conservar; e, quando, sem correr nenhum risco, se
pode entregar à inclinação do seu coração, até acaricia o seu aman­
te. Mas a sua discreta mãe não explica todos esses pormenores a
·seu pai; os homens não devem saber tudo.
Em vez de se orgulhar da sua conquista, Sophie até se tornou
mais afável e menos exigente para toda a gente, excepto talvez pa­
ra o único que produziu essa mudança. O sentimento da indepen­
dência não enche o seu nobre coração. Ela triunfa com modéstia de
uma vitória que lhe custa a sua liberdade. Tem um comportamen­
to menos livre e a maneira de falar mais tímida, desde que não con­
segue ouvir a palavra «amante» sem corar; mas o contentamento
transpira através do �eu embaraço, e essa mesma vergonha não é
um mau sentimento. E sobretudo em relação aos outros jovens que
a mudança do seu comportamento se tornou mais sensível. Desde
que deixou de os recear, a extrema reserva que lhes mostrava
abrándou muito. Decidida na sua escolha, não tem escrúpulos em
mostrar-se graciosa aos indiferentes; menos exigente sobre o seu
mérito - desde que deixou se de interessar por isso- acha-os
sempre suficientemente amáveis, como pessoas que nunca lhe se­
rão nada.
Se o verdadeiro amor pudesse servir-se da coquetaria, até me
convenceria de que vejo alguns indícios dela no modo como ela se
comporta com eles, na presença do seu amante. Dir-se-ia que, não
satisfeita com a ardente paixão com que o abrasa através de uma
deliciosa mistura de reserva e de caricia, ela não se irnporta de exa­
cerbar essa mesma paixão com um pouco de inquietação; dir-se-
-ia que, distraindo intencionalmente os seus jovens convidados,
destina aos tormentos de Emílio as graças de uma boa disposição
quenão se atreve a tercom ele: mas Sophie é excessivamente aten- 267
ciosa, excessivamente bondosa, excessivamente judiciosa, para,
de facto, o conseguir atormentar. Para temperar esse perigoso es­
timulante, o amor e a honestidade servem-lhe de prudência: ela
sabe alarmá-lo e sossegá-lo, precisamente quando é necessário; e,
embora, por vezes, o inquieto, nunca o entristece. Perdoemos as in­
quietações que ela dá ao que ama, porque isso se deve ao receio que
sempre tem de que ele não esteja bastante cativado.
Mas qual será o efeito que esses pequenos manejos têm sobre
Emílio? Sente ciúmes? Não os sente? E o que se deve examinar:
pois que tais digressões também fazem parte do objecto do meu li­
vro e pouco me afastam do meu assunto.
Precedentemente, expliquei de que maneira-nas coisas que
só dependem da opinião- essa paixão se ontroduz no coração do
homem. Mas, em amor, a coisa é diferente; neste caso, o ciúme pa­
rece estar tão perto da natureza, que se tem muita dificuldade em
acreditar que não provenha dela; e o próprio exemplo dos animais,
em que vários são ciumentos �té ao furor, parece estabelecer o sen­
timentooposto, sem réplica. E a opinião dos homens que ensina os
galos a despedaçarem-se, e os touros a baterem-se até à morte?
A aversão por tudo quanto perturba e contraria os nossos pra­
zeres é um movimento natural, isso é incontestável. Até a um cer­
to ponto, o desejo de possuir exclusivamente o que nos agrada tam­
bém se encontra no mesmo caso. Mas quando esse desejo, tomado
paixão, se transforma em furor ou numa fantasia suspicaz e des­
gostosa, então já é outra coisa; essa paixão pode ser natural ou não;
é preciso fazer a distinção.
O exemplo tirado dos animais foi examinado no Discurso sobre
a desigualdade; e, agora que volto a reflectir nele, esse exame pa­
rece-me suficientemente sólido para me atrever a aconselhá-lo
aos meus leitores. Acrescentarei unicamente-às diferenças que
efectuei nesse escrito-que o ciúme que provém da natureza de­
pende muito da força do sexo, e que, quando essa força é, ou pare­
ce ser, ilimitada, esse ciúme atinge o seu cúmulo; porque, então, o
macho, comparando os seus direitos com as suas necessidades,
nunca consegue ver outro macho sem o considerar como um con­
corrente importuno. Nessas mesmas espécies, as fêmeas-sujei­
tando-se sempre ao primeiro que aparece-só pertencem aos ma­
chos pelo direito de conquista, e provocam, entre eles, prolongados
combates.
Pelo contrário, nas espécies em que um se une com uma, em que
o acasalamento produz uma espécie de elo moral, uma espécie de
casamento, a fêmea- submetendo-se por sua livre vontade ao
macho a que se entregou -costume recusar-se aos outros machos;
e o macho, tendo esse afecto preferencial como garantia da sua fi­
delidade, inquieta-se menos com a presença de outros machos e vi­
ve mais pacificamente com eles. Nessas espécies, o macho compar­
268 tilha, com a fêmea, os cuidados a ter com os filhotes; e, por uma des-
sas leis da natureza que não podemos constatar sem enterneci­
mento, parece que a lemea retribui ao macho a dedicação que ele
mostra pelos filhos.
Ora, se considerarmos a espécie humana na sua simplicidade
primitiva, é fácil de ver-pela força limitada do macho e pela tem­
perança dos seus desejos - que a natureza o destinou a contentar­
-se com uma única lemea; o que é confirmado pela igualdade nu­
mérica dos indivíduos de ambos os sexos, pelo menos nas nossas re­
giões; igualdade essa que não se observa, nem de longe, nas espé­
cies em que a maior força dos machos reune várias :iemeas a um
único. E embora o homem não choque como os pombos e - como
também não tem mamas para aleitar - se encontre, desse ponto
de vista, na classe dos quadrúpeles, as crianças permanecem du­
rante tanto tempo rastejantes e fracas, que, tanto a m ãe como elas,
dificilmente dispensariam a dedicação do pai e os cuidados que são
o seu efeito.
Por conseguinte, todas as observações concorrem para provar
que o furor ciumento dos machos -nalgumas espécies de animais
- não serve para explicar o dos homens; e a própria excepção das
regiões meridionais, onde a poligamia está estabelecida, só serve
para mais bem confirmar desde o princípio, pois que é da plurida­
de das mulheres que vem a tirânica precaução dos maridos, e por­
que o sentimento da sua própria fraqueza leva o homem a recor­
rer à opressão para eludir as leis da natureza.
Entre nós, em que essas mesmas leis -menos eludidas, sob es­
se ponto de vista - o são num sentido oposto e mais odioso, o ciú­
me tem mais a sua razão de ser nas paixões sociais que no instin­
to primitivo. Na maioria das ligações galantes, o amante sente
muito mais ódio pelos seus rivais que amor pelasua amante; sere­
ceia não ser o único preferido, isso é o efeito desse amor-próprio cu­
ja origem já mostrei, e, nele, a vaidade sofre muito mais que o
amor. Aliás, as nossas desazadas instituições tornaram as mulhe­
res tão dissimuladas1, e tanto despertaram os seus apetites, que
mal se pode confiar na sua fidelidade - por mais bem que ela es­
teja provada; além disso, elas já não podem marcar preferências
sem que os amantes se sintam inquietos com o receio dos concor­
rentes.
Quando se trata do verdadeiro amor, o caso é diferente. No es­
crito já citado, mostrei que esse sentimento não era tão natural
como se pensa; e que há uma grande diferença entre o doce hábi-

1 A espécie de dissimulação a que aqui me refiro é contrária à que


lhes convém e que elas receberam da natureza; uma consiste em dissimu­
lar os sentimentos que têm, e a outra em aparentar os que não têm. To­
das as mulheres do mundo passam a sua vida a fazer um mérito da sua
pretensa sensibilidade, embora só se amem a si mesmas. 269
to que leva o homem a afeiçoar-se à sua companheira, e esse en­
tusiasmo desenfreado que embriaga com os quiméricos atractivos
de um objecto que o leva a deixar de o ver como ele é. Essa paixão,
que exige exclusividade e preferências, só se diferencia da vaida­
de, em que esta- tudo exigindo e nada concedendo- é sempre iní­
qua; contanto que o amor, dando tanto quanto exige, é, por si mes­
m o, um sentimento cheio de equidade. Aliás, quanto mais exigen­
te se mostra, mais crédulo é; a mesma ilusão que o causa torna-o
fácil de persuadir. Se o amor é inquieto, a estima é confiante; e nun­
ca o maor sem estima existiu num coração honesto, porque só se
amam, naquele que se ama, as qualidades que nos agradam.
Depois de tudo isto ter ficado bem esclarecido, pode-se afirmar
-sem receio de engano- de que espécie de ciúme Emílio será ca­
paz; pois que, logo que esta paixão introduz um germe no coração
humano, a sua forma é unicamente determinada pela educação.
Emílio apaixonado e ciumento não se mostrará colérico nem
desconfiado, mas delicado, sensível e receoso; sentir-se-á mais
alarmado que irritado; dedicar-se-á muito mais a conquistar a
sua amada que a ameaçar o seu rival; afastá-lo-á- se o puder fa­
zer - como um obstáculo; mas sem o odiar como a um inimigo; se
o odiasse, isso não seria para lhe disputar o coração a que preten­
de, mas pelo verdadeiro perigo a que se veria exposto, de o perder;
o seu injusto orgulho não se sentiria tolamente ofendido por al­
guém ousar fazer-lhe a concorrência; compreendendo que o direi­
to de preferência se fundamenta unicamente no mérito, e de que
a honra reside no sucesso, redobraria os seus esforços para se tor­
nar amável, e, provavelmente, consegui-lo-ia. A generosa Sophie,
avivando o seu amor com alguns alarmes, saberia regulá-los, com­
pensá-lo; e os concorrentes, que só eram suportados para o pôr à
prova, em breve seriam afastados. ,
Mas, para aonde me sinto insensivelmente arrastado? O Emílio,
o que é feito de ti? Poderei reconhecer, em ti, o meu pupilo? Como
estás abatido! Onde se encontra essejovem tão austeramente for­
mado, que desafiava os rigores das estações, que entregava o seu
corpo aos mais rudes trabalhos e a sua alma às únicas leis da sage­
za? Que era inacessível aos preconceitos, às paixões; que só ama­
va a verdade, que só cedia à razão, e que não se interessava por na­
da a não ser por si próprio? Agora, amolecido numa vida ociosa, dei­
xa-se governar por mulheres; os divertimentos delas são as suas
ocupações; as suas vontades são as suas leis; uma jovem é o árbi­
tro do seu destino; rasteja e verga-se, perante ela: o grave Emílio
é o brinquedo de uma criança!
Assim se efectua a mudança das cenas da vida: cada idade tem
a sua energia que a faz mover-se; mas o homem continua a ser o
mesmo. Aos dez anos, é governado por bolos, aos vinte por uma
amante, aos trinta pelos prazeres, aos quarenta pela ambição, aos
270 cinquenta pela avareza: a que idade só persegue a sageza? Feliz
daquele que a ela é conduzido, mesmo sem dar por isso! Que impor­
ta o guia de que se sirva, contanto que este o conduza até ao fim?
Os heróis, os próprios sages, pagaram esse tributo à fraqueza hu­
mana; e um homem cujos dedos tenham utilizado fusos nem por is­
so deixa de ser um grande homem.
Se quereis prolongar, pela vida inteira, o efeito de uma boa edu­
cação, prolongai - durante a juventude - os bons hábitos da in­
fância; e, quando o vosso pupilo for aquilo que deve ser, fazei que
ele seja o mesmo em todas as idad�s. Eis o derradeiro retoque que
vos resta imprimir à vossa obra. E sobretudo por isso que impor­
ta deixar um governante aos h onien s jovens; porque, a não ser por
isso, pouco se deve recear que eles não saibam fazer o amor sem ele.
O que engana os educadores e, sobretudo, os pais, é que eles estão
convencidos de que uma maneira de viver exclui outra, e que logo
que se atinge a idade adulta é preciso renunciar a tudo quanto se
fazia quando se era criança. Se assim fosse, para que serviria cui­
dar da infância, pois que o bom ou o mau que se faria dela desapa­
receria com ela, e que, adquirindo maneiras de viver completa­
mente diferentes, adquirir-se-iam necessariamente outras ma­
neiras de pensar?
Assim como só as grandes doenças deixam cicatrizes na memó­
ria também só as grandes paixões as imprimem nos costumes. Em­
hora os nossos gostos e as nossas tendências se modifiquem, essa
mudança - por vezes, bastante brusca- é suavizada pelos hábi­
tos. Na sucessão das nossas tendências, como num bom estabele­
cimento de coloridos, o artista hábil deve tornar as passagens im­
perceptíveis, confundir e misturar as cores, e, para que nenhum
destoe, estender várias tonalidades sobre o seu trabalho. Estare­
gra está confirmada pela experiência; as pessoas imoderadas mu­
dam todos os dias de afecções, de gostos, de sentimentos e a única
constância que têm é o hábito de mudar; mas o homem regrado vol­
ta sempre às suas antigas práticas, e nem sequer na sua velhice
perde o gosto pelos prazeres que experimentava quando criança.
Se procederdes de tal modo que, ao passarem para uma nova
idade, os jovens não desprezam a que a precedeu, que, contraindo
novos hábitos, não abandonem os antigos, e que gostem sempre de
fazer o que é bem - sem se preocuparem com a época em que co­
meçaram - só nesse caso tereis salvo a vossa obra e podereis ter
a certeza dela até ao fim dos seus dias; porque a revolução que m ais
de deve temer é a da idade sobre a qual velais actualmente. Como
sempre se guardam recordações dela, depois de passada, dificil­
mente se perdem os gostos que nela se conservaram ; contanto que,
quando estes são interrompidos, nunca mais se recuperam .
A maior parte dos hábitos que credes ter feito contrair às crian-
ças e aos jovens não são verdadeiros hábitos, pois que só os adqui­
riram forçados a fazê--lo, e porque, seguindo-{)s mesmo sem o que­
rerem, só esperavam pela ocasião de se poderem livrar deles. Não 271
é com o hábito de viver na prisão que se adquire o gosto de lá es­
tar; nesse caso, o hábito, em vez de diminuir a aversão, aumenta­
-a. O mesmo não se passa com Emílio, que -já que, durante to­
da a sua infância, tudo o que fez foi voluntariamente e com prazer
- depois de ser homem, continuando a agir da mesma maneira,
não faz mais do que acrescentar o império do hábito às doçuras da
liberdade. A vida activa, o trabalho com os braços, o exercício, o mo­
vimento, tornaram-se-lhe tão necessários, que não poderia re­
nunciar a eles sem sofrer. Reduzi-lo, bruscamente, a uma vida de
moleza e sedentária, seria encarcerá-lo, acorrentá-lo, mantê-lo
num estado violento e de opressão; não tenho dúvidas de que o seu
humor e a sua saúde seriam igualmente afectados. Mal respira à
sua vontade, num quarto bem fech ado; precisa de ar livre, de mo­
vimento, de cansaço. Mesmo quando está aos pés de Sophie, não
consegue impedir-se de, por vezes, olhar para os campos, pelo can­
to do olho, e de desejar percorrê-los com ela. Contudo, ali fica,
quando deve ficar; mas sente-se inquieto, agitado; parece debater­
-se; fica ali porque está aguilhoado. Eis, então, direis vós, as neces­
sidades que eu lhe criei, as submissões que lhe imprime: e tudo is­
so é verdade; sujeitei-o ao estado de homem.
Emílio ama Sophie; mas quais foram os primeiros encantos que
o prenderam? A sensibilidade, a virtude, o amor pelas coisas ho­
nestas. Amando esse amor na sua amante, tê-lo-ia perdido para
si mesmo? Por seu lado, a que valores Sophie prestou atenção? Aos
de todos os sentimentos que são naturais do coração do seu aman­
te: a estima dos verdadeiros bens, a frugalidade, a simplicidade, o
generoso desinteresse, o desdém pelo fausto e pelas riquezas.
Emílio já tinha essas virtudes, antes de o amor lhas ter imposto.
Então, em que foi que Emílio mudou verdadeiramente? Possui no­
vos motivos para ser ele mesmo; é o único ponto em que seja dife­
rente do que era.
Não creio que -ao ler este livro com alguma atenção - alguém
possa crer que todas as circunstâncias da situação em que ele se
encontra se tenham assim reunido em sua volta, por acaso. Será
por acaso que, fornecendo as cidades tantas jovens amáveis, a que
lhe agrada se encontra num retiro afastado? Terá sido por acaso
que ele a encontrou? Será por acaso que eles se agradam um ao ou­
tro? Será por acaso que não podem viver no mesmo lugar? Será por
acaso que ele só encontrou onde se alojar, numa cidade tão longe
de sua casa? Será por acaso que ele a vê tão raramente, e que é obri­
gado a pagar com tantas canseiras o prazer de, por vezes, a ver?
«Ele está a efiminar-se», dizeis. Está a enrijar, pelo contrário; é
preciso que seja tão robusto quanto o fiz, para resistir às canseiras
que Sophie o leva a suportar.
Vive a duas grandes léguas de sua casa. Essa distência é o fo­
le da forja; é com ele que eu tempero os traços do amor. Se eles vi-
272 vessem lado a lado, ou se ele pudesse ir vê-la confortavelmente
sentado numa boa carruagem, amá-la-ia à sua vontade, amá-la­
-ia como Parisiense. Leandro teria querido morrer por Hero, se o
m ar não o tivesse separado dela? Leitor, poupai-me palavras; se
sois feito para me compreender, acompanhareis bastante bem as
minhas regras, nos meus pormenores.
As primeiras vezes que fomos visitar Sophie, íamos a cavalo,
p ara chegarmos mais depressa. Achámos esse expediente cómodo,
e, na quinta vez, ainda fomos a cavalo. Estavam à nossa espera; a
mais de meia légua da casa, avistamos pessoas no caminho. Emílio
observa, o coração palpita-lhe com mais força; aproxima-se, reco­
nhece Sophie, apeia-se precipitadamente, corre, voa, está aos pés
da amável família. Emílio gosta de bons cavalos; o seu é vivo, sen­
te-se livre, escapa-se pelos campos fora: persigo-o, dificilmente
me consigo aproximar dele, trago-o de volta. Infelizmente, Sophie
tem medo de cavalos, não ouso aproximar-me dela. Emílio não dá
por nada; mas Sophie avisa-o, ao ouvido, do trabalho que deu ao
seu amigo. Emílio acorre, todo envergonhado, pega nos cavalos,
deixa-;-se ficar para trás: é justo que cada um tenha os seus traba­
lhos. E o primeiro a partir, para se desembaraçar das nossas mon­
tadas. Assim, deixando Sophie para trás, já não considera o cava­
lo como um transporte tão cómodo.
Para a viagem segu inte Emílio já não quer cavalos. «Porquê?»,
,

pergunto-lhe, «Basta-nos levar um lacaio para tomar conta de­


les••. «Oh! diz ele «iremos assim sobrecarregar a respeitável fam�­
lia? Bem vedes que ela quer alimentar tudo, homens e cavalos••· «E
verdade», respondo, «que eles têm a nobre hospitalidade de indi­
gência.
Os ricos, avarentos no seu fausto, só aloj am os seus amigos;
mas os pobres também alojam os cavalos dos seus amigos». «Vamos
a pé», diz ele, «não tendes coragem para isso, vós que compartilhais
de tão boa vonatde os cansativos prazeres do vosso filho?» «De boa
vontade», respondo imediatamente; «e a verdade é que o amor, pe­
lo que me parece, não deseja ser feito com tanto estrépito.»
Ao aproximarmo-nos, encontramos a mãe e a filha, ainda mais
longe que da primeira vez. Emílio está banhado em suor: uma mãe
querida digna-se passar um lenço pelas suas faces : seria preciso
que houvesse muito cavalos no mundo, para que nos sentíssemos
tentados a utilizá-los!
Noentanto, torna-se muito cruel o nunca podermos passarum
serão j untos. O Verão está a acabar, os dias começam a diminuir.
Sej a o que for que digamos, nunca nos permitem regressar de noi­
te; e, se não viermos logo pela manhã, quase que só temos tempo
para ir e voltar. Depois de muito nos lamentar e de se preocupar
por nossa causa, a mãe acaba por pensar que, embora não nos pos­
sa alojar decentemente em sua casa, é possível encontrar-nos um
abrigo na aldeia, para, por vezes, lá passarmos a noite. Ao ouvir is-
so, Emílio bate palmas, vibrante de alegria; e Sophie, sem dar por 273

L. B.S24 - 18
sentado numa boa carruagem, amá-la-ia à sua vontade, amá-la­
-ia como Parisiense. Leandro teria querido morrer por Hero, se o
mar não o tivesse separado dela? Leitor, poupai-me palavras; se
sois feito para me compreender, acompanhareis bastante bem as
minhas regras, nos meus pormenores.
As primeiras vezes que fomos visitar Sophie, íamos a cavalo,
para chegarmos mais depressa. Achámos esse expediente cómodo,
e, na quinta vez, ainda fomos a cavalo. Estavam à nossa espera; a
mais demeia légua da casa, avistamos pessoas no caminho. Emílio
observa, o coração palpita-lhe com mais força; aproxima-se, reco­
nhece Sophie, apeia-se precipitadamente, corre, voa, está aos pés
da amável família. Emílio gosta de bons cavalos; o seu é vivo, sen­
te-se livre, escapa-se pelos campos fora: persigo-o, dificilmente
me consigo aproximar dele, trago-o de volta. Infelizmente, Sophie
tem medo de cavalos, não ouso aproximar-me dela. Emílio não dá
por nada; mas Sophie avisa-o, ao ouvido, do trabalho que deu ao
seu amigo. Emílio acorre, todo envergonhado, pega nos cavalos,
deixa-se ficar para trás: é justo que cada um tenha os seus traba­
lhos. É o primeiro a partir, para se desembaraçar das nossas mon­
tadas. Assim, deixando Sophie para trás, j á não considera o cava-
·

lo como um transporte tão cómodo.


Para a viagem seguinte, Emílio já não quer cavalos. «Porquê?»,
pergunto-lhe, «Basta-nos levar um lacaio para tomar conta de­
les». «Oh! diz ele «iremos assim sobrecarregar a respeitável famí;
lia? Bem vedes que ela quer alimentar tudo, homens e cavalos>>. «E
verdade>>, respondo, «que eles têm a nobre hospitalidade de indi­
gência.
Os ricos, avarentos no seu fausto, só alojam os seus amigos;
mas os pobrestambém alojam os cavalos dos seus amigos». «Vamos
a pé••, diz ele, «não tendes coragem para isso, vós que compartilhais
de tão boa vonatde os cansativos prazeres do vosso filho?>> «De boa
vontade>>, respondo imediatamente; «e a verdade é que o amor, pe­
lo que me parece, não desej a ser feito com tanto estrépito.>>
Ao aproximarmo-nos, encontramos a mãe e a filha, ainda mais
longe que da primeira vez. Emílio está banhado em suor: uma mãe
querida digna-se passar um lenço pelas suas faces: seria preciso
que houvesse muito cavalos no mundo, para que nos sentissem os
tentados a utilizá-los!
No entanto, torna-semuito cruel o nunca podermos passarum
serãoj untos. O Verão, está a acabar, os dias começam a diminuir.
Seja o que for que digamos, nunca nos permitem regressar de noi­
te; e, se não viermos logo pela manhã, quase que só temos tempo
para ir e voltar. Depois de muito nos lamentar e de se preocupar
por n�ssa causa, a mãe acaba por pensar que, embora não nos pos­
sa aloJar decentemente em sua casa, é possível encontrar-nos um
abrigo na aldeia, para, por vezes, lá passarmos a noite. Ao ouvir is-
so, Emílio bate palmas, vibrante de alegria; e Sophie, sem dar por 273

L. 8.524 - 18
ros, deliciosos, mas menos reais que imaginários, avivam o seu
amor sem efeminar o seu coração.
Os dias em que a não vê, não os passa ocioso e sedentário. Nes­
ses dias, ainda é Emílio: não está nada transformado. Na maior
parte das vezes, percorre os campos das redondezas, prossegue a
sua História Natural; observa, examina os terrenos, as suas pro­
duções, as suas culturas; compara os trabalhos que vê fazer com os
que conhece; procura as razões das diferenças: quando crê que ou­
tros métodos são preferíveis aos do lugar, ensina-os aos cultivado­
res; se propõe uma charrua com uma forma mais adequada, man­
da-a fazer pelo::: seus desenhos: se encontra uma mina de marga,
ensina-lhes a utilização dela, que é desconhecida na região; mui­
to frequentemente, ele próprio põe mãos à obra; os cultivadores fi­
cam espantados, quando o vêem manejar as suas alfaias com mais
habilidade que eles próprios, traçar trilhos mais profundos e mais
direitos que os seus, semear com mais uniformidade, preparar as
terras em declive com mais inteligência que eles. Não troçam de­
le como troçariam de um bem-falante da agricultura: vêem que ele
a conhece, efectivamente. Em resumo, ele estende o seu zelo e os
seus cuidados a tudo quanto é de utilidade essencial e geral; e nem
se limita a isso: visita as casas dos camponeses, informa-se do seu
estado, das suas famílias, do número dos seus filhos, da quantida­
de de terras que possuem da natureza dos seus produtos, da sua
venda, das suas faculdades, dos seus encargos, das suas dívidas,
etc. Dá pouco dinheiro, sabendo que, para o dia a dia, ele é mal em­
pregado, mas dirige ele próprio a sua utilização, e torna-a útil,
apesar das suas reservas. Fornece-lhes operários, e, mui tas vezes,
ele próprio lhes paga as jornas pelos trabalhos de que eles tinham
necessidade. A um, manda endireitar, ou pôr um telhado na sua
cabana meia-derrubada; a outro, manda desbravar a sua terra,
abandonada por falta de meios; a outro, oferece uma vaca, um ca­
valo, gado de toda a espécie, para substituir o que perdeu; dois vi­
zinhos estão quase em litígio: fala com eles, consegue reconciliá­
-los; um camponês adoece, manda-o tratar, trata-o ele próprio1;
outro, sente-se vexado por um vizinho poderoso: ele protege-o e re­
comenda-o; se vê dois jovens pobres que se amam, ajuda-os para
o casamento; uma boa mulher perdeu o filho querido, ele vai visi­
tá-la, consola-a, não sai logo que entra; não desdenha os indigen-

1 Tratar de um camponês doente não é purgá-lo, dar-lhe remédios,


enviar-lhe um cirurgião. Não é de nada disso que tem neceRsidada assa po­
bre gente quando está doente: é de alimentação melhor e mais abundan­
te. Jejuai, vós, quando tendes febre; mas quando os vossos camponeses a
têm, dai-lhes carne e vinho; quase todas as doenças se devem à miséria
e ao cansaço: a sua melhor tisana está na vossa cave, o seu único apoticá-
rio deve ser o vosso carniceiro. 275
tes, não tem pressa de se afastar dos infelizes, come muitas vezes
as suas refeições em casa dos camponeses que ajuda; também as
aceita em casa daqueles que não precisam dele; tornando-se o ben­
feitor de uns e o amigo de outros, nunca deixa de ser seu igual. En­
fim, com a sua pessoa,faz sempretanto bem como com o seu dinhei­
ro.
Por vezes, dirige os seus passeios para os lados da casa onde es­
tá a sua felicidade: poderia esperar ver Sophie sem ela dar por is­
so vê-la dar o seu passeio, sem ser visto; mas Emílio tem sempre
um comportamento franco, não sabe nem quer eludir nada. Possui
essa amável delicadeza que lisonjeia e alimenta o amor próprio
com o bom testemunho de si mesmo. Respeita rigorosamente o seu
degredo, e nunca se aproxima o bastante para receber do acaso o
que só pretende receber de Sophie. Em contrapartida, deambula
com prazer pelas cercanias, procurando as pegadas da sua aman­
te, enternecendo-se com as dificuldades que ela teve e com as cor­
ridas que ela aceitou fazer com ele, por complacência. Na véspera
dos dias em que a deve ver, irá a alguma quinta vizinha, a fim de
ordenar uma colação para o dia seguinte. O passeio dirige-se pa­
ra esse lugar, como que por acaso; entra-se e como que por acaso;
encontram-se frutos, bolos, doces. A gulosa Sophie não fica insen­
sível a essas atenções, e de boa vontade faz honras à nossa previ­
dência; pois que tenho sempre a minha parte, nos seus elogios,
mesmo que não tenha contribuído, com nada, para o cuidado que
lhe agrada: é um subtileza de menina pequena, para se sentir me­
nos embaraçada agradecendo. O pai e eu comemos bolos e bebemos
vinho: mas Emílio é o companheiro das mulheres, sempre à espe­
ra de poder roubar algum prato de doce onde a colher de Sophie te­
nha mergulhado.
A propósito de bolos, falo a Emílio das suas antigas corridas.
Todos querem saber que corridas doram essas; explico e todos
riem; perguntam-lhe se ainda sabe correr. «Melhor que nunca!>>
responde ele; «sentir-me-ia muito aborrecido se o tivesse esque­
cido». No grupo, está alguém que gostaria de o ver correr e que não
se atreve a dizer-lho; outra pessoa encarrega-se de lhe fazer essa
proposta; ele aceita: chamam-se dois ou três da vizinhança; colo­
cam-se todos juntos, escolhe-se um prémio, e, para mim bem imi­
tar os antigos jogos, coloca-se um bolo em cima da meta. Todos se
preparam; o pai dá o sinal de partida, batendo palmas. O ágil
Emílio fende o are chega à meta, no momento em que os meus três
pesadões começam a correr. Emílio recebe o prémio, entregue por
Sophie, e, não menos generoso que Eneias, dá presentes a todos os
vencidos.
No entusiasmo daquela vitória, Sophie atreve-se a desafiJ{ar
o vencedor, e gaba-se de correr tão depressa como ele; e, ao prin­
cípio, enquanto se prepara para a corrida, arregaçando a saia do
276 vestido de ambos os lados, e que-mais interessada em exibir uma
perna fina aos olhos de Emílio que de o vencer nesse combate -ve­
rifica se as saias estão bastantes encurtadas, ele diz umas pala­
vras ao ouvido da mãe; esta sorri e faz um sinal de aprovação. En­
tão, ele vai pôr-se ao lado da sua concorrente; e, mal é dado o si­
nal de partida, vêmo--l a partir como um pássaro.
As mulheres não foram feitas para correr; quando fogem, é pa­
ra serem apanhadas. A corrida não é a única coisa que elas façam
desajeitadamente, mas é a única que fazem contra vontade: os
seus cotovelos, atirados para trás e colados ao corpo, emprestam­
-lhes uma atitude ridícula, e os saltos altos sobre os quais estão
empoleiradas fazem-nas parecer gafanhotos que desejassem cor­
rer sem saltar.
Emílio, que não pode imaginar que Sophie corra mais bem que
qualquer outra mulher, não se digna sair do seu lugar, e vê-a par­
tir com um risinho trocista. Mas Sophie é ágil e usa saltos baixos;
não precisa de artíficios para parecer ter o pé pequeno; toma a
dianteira com uma tal rapidez, que, para atingir essa novaAtalen­
te, elejá precisa de correr velozmente, quando a vê tão longe, à sua
frente. Parte, pois, por sua vez, semelhante a águia que mergulha
sobre a sua presa; persegue-a, aproxima-se dela, acaba por apa­
nhá-la, toda ofegante, passa ligeiramente o seu braço esquerdo em
volta dela, levanta-a como a uma pena, e, apertando de encontro
ao coração esse doce fardo, termina a corrida, fazendo--a chegar à
meta primeiro, e, depois, gritando A vitória é de Sophie!, põe um
joelho no chão, diante dela e reconhece-se vencido.
A estas diversas ocupações, junta-se a do oficio que aprende­
mos. Pelo menos um dia por semana, e todos aqueles em que o mau
tempo não nos permite ir para os campos, vamos - Emílio e eu -
trabalhar em casa de um mestre. Não trabalhamos só para pas­
sar o nosso tempo, como pessoas acima dessa condição, mas seria­
mente e como verdadeiros operários. Tendo visto visitar-nos, o pai
de Sophie encontra-nos entregues ao trabalho, e não deixa de
transmitir, com admiração - à mulher e à filha -o que viu. «Ide
ver>>, diz ele, <<esse jovem na oficina, e então me direis se ele despre­
za a condição do pobre!>> Bem se pode imaginar com que prazer So­
phie ouve esse discurso! Volta-se a falar do assunto, ela gostaria
de o surpreender durante o trabalho. Interrogam-me, como se de
nada disso se tratasse; e, depois de se terem assegurado de um dos
dias em que lá vamos trabalhar, a mãe e a filha metem-se numa
caleche, e vão à cidade nesse mesmo dia.
Ao entrar na oficina, Sophie avista, lá ao fundo, um jovem em
jaleca, com o cabelo negligentemente apanhado, e tão entretido
com o que está a fazer que não a vê: ela pára e faz sinal a sua mãe.
Emílio, com um escopro numa mão e um maço na outra, termina
um encaixe; depois, serra uma tábua e coloca uma parte dela em
cima do suporte, para o polir. Este espectáculo não faz Sophie rir;
impressiona-a, é respeitável. Mulher, honra o teu chefe; é ele 277
quem trabalha para ti, que ganha o teu pão, que te alimenta: eis
o homem.
Enquanto elas o observam atentamente, avisto-as, puxo pela
m anga de Emílio; ele vira-se; vê-as, desembaraça-se das suas fer­
ramentas e corre para elas, com um grito de alegria. Depois de se
ter entregado aos seus primeiros transportes, fá-las sentar e vol­
ta para o seu trabalho. Mas Sophie não pode permanecer sentada;
levanta-se com vivacidade, percorre a oficina, examina as ferra­
mentas, passa a mão pelo polido das tábuas, apanha algumas apa­
ras que estão no chão, olha para as nossas mãos, e depois diz que
gosta desse ofício, porque é asseado. A tolinha até tenta imitar
Emile. Com a sua branca e débil mão, empurra uma plaina por ci­
ma da tábua; a ferramenta desliza mas não aplaina nada. Creio
ver o Amor nos ares, a rir e a esvoaçar; creio ouvi-lo lançar gritos
de alegria, e dizer: Hércules está vingado!
Entretanto, a mãe interroga o mestre. «Senhor, quanto pagais
a esses rapazes?>> «Minha Senhora, pago vinte soldos por dia, a ca­
da um, e dou-lhes de comer; mas aquelejovem, se quisesse, ganha­
ria muito mais, porque é o melhor artífice da região.» «Vinte soldos
por dia, e ainda lhe dais de comer!» diz a mãe, olhando para nós,
enternecida. «Minha senhora, é exactamente assim.» Volta a dizer
o mestre. Ouvindo estas palavras, ela corre para Emílio, abraça-o,
aperta-o de encontro ao seu seio, verte lágrimas sobre ele, e não
consegue fazer outra coisa que repetir, por várias vezes: «Meu fi­
lho! O meu filho!.»
Após terem passado algum tempo a conversar connosco, mas
sem nos impedirem de trabalhar: «Vamo-nos embora», diz a mãe
à filha; «está a fazer-se tarde, não nos devemos atrasar. «Depois,
aproximando-se de Emílio, dá-lhe uma pancadinha na face, di­
zendo-lhe: «Pois bem, bom artífice, não desejais vir connosco? «Ele
declara-lhe, com muita tristeza: «Estou contratado, perguntai ao
mestre.» Percunta-se ao mestre se nos pode dispensar; mas este
reponde que não. «Tenho» diz ele, «Um trabalho urgente para aca­
bar, que deve ser entregue depois de amanhã. Contado com estes
senhores, recusei artífices que se vierem oferecer; se estes me fal­
tarem, já não sei aonde ir buscar outros, e não poderei entregar o
trabalho no dia prometido.» A mãe cala-se; espera que Emílio di­
ga alguma coisa. Este baixa a cabeça e não diz nada. «Senhor», diz­
-lhe ela, um pouco surpreendida com esse silência «não tendes na­
da a acrescentar a isto?» Emílio olha ternamente para a jovem e
responde apenas com estas palavras: «Bem vedes que é preciso que
eu fique.» Ouvindo isto, as damas vão-se embora e deixam-nos.
Emílio, que as acom p anhou até à porta, segue-se com o olhar, até
as perder de vista, e volta a pôr-se ao trabalho, sem dizer nada.
Durante o caminho do regresso, a mãe, despeitada, fala à filha
da estranheza desse procedimento! «Ü quê!» diz ela, «era-lhe as-
278 sim tão difícil contentar o mestre sem se ver obrigado a ficar? E es-
sejovem tão pródigo, que gasta o dinheiro sem necessidade, já não
o consegue arranjar nos momentos que convêm? «Mãe••, responde
Sophie, «Deus permita que Emílio dê sempre tanto valor ao dinhei­
ro, que não o utilize para quebrar um compromisso pessoal, para
violar a de outrém ! Bem sei que ele de boa vontade compensaria o
mestre pelo leve prejuízo que a sua ausência lhe causasse; mas, se
assim fizesse, sujeitaria a sua alma às riquezas, habituar-se-ia a
colocá-las acima dos seus deveres e a crer que se pode dispensar
de tudo, contanto que pague. Emílio tem outras maneiras de pen­
sar, e espero que, por minha causa, não as venha a modificar. Cre­
des que não lhe tenha custado mui to ficar? Mãe, não vos deixeis en­
ganar, foi por mim que ele ficou; bem o vi, nos olhos dele.
Não é que Sophie seja indulgente para com os verdadeiros des­
velos do amor; pelo contrário, é imperiosa, exigente; preferiria não
ser amada que se-lo moderadamente. Possui o nobre orgulho do
mérito que se reconhece, que se estima e que quer ser respeitado
como se respeita. Desdenharia um coração que não compreendes­
se todo o valor do seu, que não a amasse pelas suas virtudes, tan­
to e até mais que pelos seus encantos; um coração que não lhe pre­
ferisse o seu próprio dever e que não a preferisse a todas as coisas.
Nunca quis amante que conhecesse outra lei que não a sua; quer
reinar sobre um homem que não tenha modificado. Foi assim que,
depois de ter aviltado os companheiros de Ulisses, Circe os desde­
nhou, e se entregou unicamente a ele, porque não o conseguira fa­
zer mudar.
Mas, além deste direito inviolável e sagrado, Sophie, ex­
cessivamente ciosa de todos os que tem, observa o escrúpulo com
que Emílio os respeita, com que zelo ele cumpre as suas vontades,
com que arte as adivinha, com que pontualidade chega no momen­
to prescrito; não quer, nem que ele se atrase nem que chegue
adiantado; quer que ele seja exacto. Antecipar-se é preferir-se a
ela; atrasar-se é negligenciá-la. Negligenciar Sophie! Isso não
aconteceria duas vezes. A injusta suspeita de uma quase que dei­
tou tudo a perder; mas Sophie é justa e sabe bem reparar os seus
erros.
Uma tarde, somos esperados; Emílio recebeu essa ordem . Par-
tem ao nosso encontro; não aparecemos. O que será feito deles?
Que desgraça lhes terá acontecido?Não vem ninguém da parte de-
les? Passam o serão à nossa espera. A pobre Sophie imagina-nos
mortos; desola-se, atormenta-se; chora durante toda a noite. Ora,
nessa mesma noite, enviam um mensageiro para se informar do
que nos aconteceu, e que deverá regressar no dia seguinte, pela
m anhã, com notícias nossas. O mensageiro chega, acompanhado
por outro, que nós enviáramos e que apresenta as nossas descul-
pas oralmente e garante que estamos bem. Um momento depois,
chegamos nós. Então, a cena muda; Sophie enxuga as suas lágri­
mas, ou, se verte algumas, são de raiva. O seu coração altivo não 279
se satisfez com o saber que estávamos bem: Emílio estava vivo, e
fez-se esperar inutilmente.
Quando chegamos, ela diz que vai para o seu quarto. Querem
que ela iqúe na sala; é preciso que ique: mas, tomando logo o seu
partido, ela aecta um ar sereno e contente que enganaria outros.
Seu pai vem ao nosso encontro e diz: «Mantivestes os vossos ami­
gos preocupados; há aqui pessoas que não vo-lo perdoarão com aci­
lidade». Quem, meu pai?», pergunta Sophie, com o sorriso mais
gracioso que pode aectar. «Que vos importa!», responde o pai, «des­
de o momento em que não se trata de vós?» Sophie não responde;
pousa os olhos no trabalho que está a fazer. A mãe recebe-nos com
um ar grave e composto. Embaraçado, Emílio não se atreve a alar
a Sophie. Ela é a primeira a falar-lhe, pergunta-lhe como está,
convida-o a sentar-se, e disfarça tão bem que o pobrejovem - que
ainda nada compreende da linguagem das paixões violentas - se
deixásse iludir por esse sangue-frio, e s e sente quase irritado.
Para o tirar do engano, pego namão de Sophie, e inclino-me pa­
ra pousar nela os meus lábios, como- por vezes - tenho feito: ela
retira-a bruscamente, com uma palavra de Senhor tão estranha­
mente pronunciada, que esse movimento involuntário a revela
imediatamente aos olhos de Emílio. ,
A próprio Sophie, vendo que se traiu, contrange-se menos. O
seu aparente sangue-frio dá lugar a um desprezo irónico. Respon­
de a tudo quanto lhe dizem com monossílabos pronunciados com
uma voz lenta e pouco firme, como se receasse nela deixar trans­
parecer, de mais, o acento da sua indignação. Emílio, meio-mor­
to de pavor, olha para ela, dolorosamente, e esorça-se para conse­
guir levá-la a dirigir os seus olhos para os seus, a fim de neles ler
os seus verdàdeiros sentimentos. Sophie, mais irritada com a sua
confiança, lança-lhe um olhar que lhe retira a vontade de lhe so­
licitar um segundo. Emílio, surpreendido e tremente, já não ousa
-felizmente paraele- nem alar-lhe nem olhar para ela, pois que
- como não se sente culpado de nada - sabe que, se tivesse con-
seguido suportar a sua cólera ela nunca lho perdoaria.
Vendo, então, que é a minha vez, e que chegou o momento das
explicações, aproximo-me novamente de Sophie. Volto a pegar­
-lhe na mão que ela já não retira, pois que está prestes a sentir-se
mal. Digo-lhe, com doçura: «Querida Sophie, sentimo-nos muito
infelizes; mas vós, que sois razoável e justa, não nos julgareis sem
primeiro nos terdes ouvido: escutai-nos». Ela não responde nada,
e eu digo-lhe o seguinte:
Partimos ontem, às quatro horas; estáva-nos recomendado
chegar aqui às sete, e nós levamos sempre mais tempo que o que
nos é necessário, para descansarmos quando nos aproximamos da­
qui. Já tínhamos percorrido as três quartas partes do caminho,
quando algum aslamentos dolorososnos chegaram aos ouvidos;vi­
280 nham de um vale entre as colinas, a alguma distância de nós. Acor-
remos aos gritos: encontrámos um infeliz camponês que, tenho re­
gressado da cidade, a cavalo, e um pouco embriagado, caíra da sua
montada, tão pesadamente que partira um perna. Gritámos, cha­
mamos por agente, pedimos socorros; ninguém respondeu; tentá­
mos pôr o ferido em cima do cavalo, mas não o conseguimos; ao
mais leve movimento, o infeliz sentia dores atrozes. tomámos o
partido de atar o cavalo a uma árvore, no bosque, um pouco afas­
tado; depois, fazendo uma espécie de maca com os nossos braços,
colocámos o ferido em cima dela e transportámo-lo, o mais deva­
gar que nos foi possível, e orientando-nos pelas indicações traça­
das na estrada, para chegar a sua casa. O trajecto foi longo; tive­
mos de descansar por várias vezes. Por fim, chegámos, estafados;
reconhecemos, com uma amarga surpresa, que já conhecíamos a
casa, e que esse infeliz que transportáramos com tantos trabalhos,
era o mesmo que tão cordialmente nos recebera no dia da nossa pri­
meira vinda aqui. Na perturbação em que nos encontrávamos to­
dos, não nos tínhamos reconhecido até a esse momento.
O homem tinha apenas dois filhinhos. Prestes a dar-lhe o ter­
ceiro, sua mulher sofreu uma tão grande comoção ao ve-lo chegar
naquele estado, que começou a sentir dores agudas e deu à luz pou­
cas horas depois. Que fazer, nesse caso, numa cabana afastada de
tudo, onde não se podia contar com qualquer socorro? Emílio deci­
diu ir buscar o cavalo que tínhamos deixado no bosque, montou ne­
le e correu, a galope, para ir á cidade buscar um cirurgião. Deu o
cavalo ao cirurgião; e, não tendo conseguido encontrar rapidamen­
te uma enfermeira, regressou a pé, com um criado -depois de vos
ter expedido uma carta urgente - enquanto que, embaraçado co­
mo o podeis supor, entre um homem com a perna partida e uma
mulher em trabalho de parto, eu preparava, naquela casa, tudo
quanto pude prever vir a ser necessário para socorrer o marido e
a mulher.
«Não vos descrevei pormenorizadamente o resto; não é disso
que agora se trata. Eram duas horas depois da meia-noite quan­
do pudemos ter um momento de descanso. Enfim, antes do nascer
do dia, chegámos ao nosso abrigo, aqui, na povoação, onde ficámos
à espera da hora do vosso despertar, para vos virmos prestas con­
tas do nosso atraso».

Calo-me, sem acrescentar mais nada. Mas, antes de que al­


guém fale, Emílio aproxima-se da sua amada, levanta a voz e diz­
-lhe, com mais firmeza que a que eu seria capaz de esperar: «So­
phie, sois o árbitro do meu destino, bem o sabeis. Podeis fazer-me
morrer de desgosto; mas não esperais fazer-me esquecer os direi­
tos da humanidade: para mim, eles são mais sagrados que os vos­
sos, e nunca renunciarei a eles por vós.»
Sophie, ouvindo estas palavras, em vez de responder levanta-
-se, passa-lhe um braço em volta do pescoço, beija-o na face; de- 281
pois, estendendo-lhe a mão com uma graciosidade inimitável, diz­
-lhe: «Sê, quando o quiseres, meu esposo e o meu senhor; esforçar-
-me--ei por merecer essa felicidade.»
Mal o acabou de beijar, que o pai, encantado, bate palmas, gri­
tando bis, bis; e Sophie, sem se fazer rogar, dá-lhe mais dois bei­
jos, na outra face; mas, quase no mesmo instante, assustada com
tudo quanto acaba de fazer, corre para os braços de sua mãe e es­
conde, nesse seio m aternal, o seu rosto corado de vergonha.
Não descrevei a alegria de todos: é fácil imaginá-la. Depois do
almoço, Sophie pergunta se é preciso andar muito, para ir ver es­
ses pobres doentes . Sophie desej a-o e é uma boa obra. Lá vamos:
encontramo-los cada um em sua cama; Emílio mandara levar-lhes
um a cama: vemos que, em sua volta, há pessoas para os ajudarem:
Emílio provera a tudo. Mas, a não ser isso, ambos se encontram no
meio de tanta desordem, que tanto sofrem porca usa dela como pe­
lo seu estado. Sophie pede um aventual da mulher e instala-a con­
fortavelmente na sua cama; a seguir, faz a mesma coisa ao homem;
a sua mão, suave e leve, sabe procurar tudo o que incomoda a acon­
chega mais confortavelmente os seus membros doridos. Ambosj á
s e sentem aliviados s ó pela s u a presença; dir-se-ia que ela adivi­
nha tudo o que os incomoda. Essa rapariga tão delicada não se sen­
te incomodada nem com a sujidade nem com o mau cheiro, e sabe
fazer desaparecer uma e outro, sem pôr ninguém à obra, e sem
atormentar os doentes. Ela, que sempre vemos tão modesta e ­
por vezes - tão desdenhosa, ela que, por nada deste mundo, teria
tocado, com as pontas dos dedos, na cama de um homem, vira o cor­
po do ferido e muda-lhe as roupas, sem repugância nenhuma, ins­
tala-o numa posição mais cómoda, para nela se poder manter du­
rante mais tempo. O zelo da caridade vale bem a modéstia; o que
ela faz, fá-lo tão facilmente e com tanto jeito, que ele se sente ali­
viado sem quase se ter apercebido de quelhe tocaram. A mulher e
o marido abençoam, de conc�rto, a amáveljovem que os serve, que
os lastima, que os consola. E um anjo do céu que Deus lhes envia:
tem o aspecto e a amabilidade dele, a sua doçura e a sua bondade.
Emílio, enternecido, contempla-a sem dizer nada. Homem, ama a
tua companheira. Deus dá-ta para te consolar das tuas penas, pa­
ra te aliviar n as tuas dores: eis a mulher.
Manda-se baptizaro recém-nascido. Os dois amantes apresen­
tam-no, ao baptismo, enquanto que, no fundo dos seus corações,
ardem de desejos por poderem fazer o mesmo, por outros. Aspiram
a que chegue o momento desejado; crêem te-lo atingido: todos os
escrúpulos de Sophie desapareceram, mas os meus aparecem. Eles
ainda não se encontram onde pensam: é preciso que ambos espe­
ram pela sua vez.
Uma manhã, após dois dias que passaram sem se ver, entro no
quarto de Emílio, com uma carta na mão, e digo-lhe, olhando fixa­
282 mente para ele: «Que faríeis que vos dissessem que Sophie mor-
reu?» Ele solta um grande grito, levanta-se, bate com as mãos, e,
sem pronunciar uma única palavra, olha para mim, desvairado.
«Respondei, pois!>>, continuo eu, com a mesma tranquilidade. En­
tão, irritado com o meu sangue-frio, ele aproxima-se, com os olhos
faiscantes de cólera; e, detendo-se numa atitude quase ameaçado­
ra: «Ü que faria? . . . não tenho a mais pequena ideia; mas o que sei,
é que nunca mais voltaria a querer ver aquele que m o tivesse anun­
ciado.» «Calmai-vos,» respondo-lhe, sorrindo, «ela está viva, de
perfeita saúde, pensa em vós, e espera-nos esta tarde. Mas vamos
dar uma volta e conversemos.»
A paixão que o preocupa já não lhe permite entregar-se, como
antigamente, a conversas de puro raciocínio: é necessário interes­
sá-lo, através dessa mesma paixão, para que preste atenção às mi­
nhas lições. Foi o que fiz, com este terrível preâmbulo; agora, te­
nho a certeza de quu me escutará:

É preciso ser feliz, querido Emílio: é a finalidade de todos os se­


res sensíveis; foi o primeiro desejo que em nós imprimiu a nature­
za, e é o único que nunca nos abandona. Mas onde se encontra a fe­
licidade? Quem o sabe? Todos a procuram e nenhum a encontra.
gasta-se a vida a persegui-la e morre-se sem a ter alcançado. Meu
jovem amigo, quando, depois de nasceres, te tomei nos meus bra­
ços e invoquei o Ser Supremo, como testemunha do compromisso
que me atrevi a tomar, dedicando os meus dias à felicidade dos
teus, saberia a que me comprometia? Não: sabia unicamente que,
se te tornasse felis, também o seria. Fazendo, por ti, essa útil bus­
ca, tornava-a comum a nós dois.
«Enquanto ignoramos o gue devemos fazer, a sageza consiste
em permanecer na inacção. E, de todas as máximas, aquela de que
o homem mais necessidade tem, e aquela que ele mais dificulda­
de tem para seguir. Procurar a felicidade sem saber onde ela se en­
contra, é expor-se a afastar-se dela, é correr tantos riscos opostos
quantos os caminhos que há para nos perdermos. Mas nem toda a
gente consegue ficar inactiva. Na inquietação em que nos mergu­
lha o anseio pelo bem--estar, preerimos enganar-nos a nós pró­
prios, correndo atrás dele, que nada fazer para o procurar: e, uma
vez que saímos do lugar onde o podemos conhecer, nunca mais sa­
bemos lá voltar.
Com a mesma ignorância, tentei evitar o mesmo engano. En­
carregando-me da tua educação, decidi não dar um passo inútil e
impedir que tu o desses. Conservei-me na estrada da natureza, es­
perando que ela me indicasse a da elicidade. Por acaso, era a mes­
ma, e, «em o saber, eu seguira-a.
«Sê a minha testemunha, sê o meu juiz; nunca te recusarei co-
mo tal. Os teus primeiros anos não foram sacrificados aos que se
lhes deviam seguir; desfrutaste de todos os bens que a natureza te
deu. Dos males a que ela te sujeitou e de que te pude livrar, só en- 283
contraste aqueles que poderiam enrijecer-te para combater os ou­
tros. Nunca suportaste nenhum que não te tivesse servido para
evitar um maior. Não conheceste nem o ódio nem a escravidão. Li­
vre e satisfeito, permaneceste justo e bom, pois que a dor e o vício
são inseparáveis, e o homem só se torna mau quando é ineliz. Pos­
sa a recordação da tua infância prolongar-se até aos teus velhos
dias! Não receio que o teu coração a recorde sem dar algumas ben­
çãos á mão que a governou.
Quando atingiste a idade da razão, protegi-te da opinião dos
homens; quando o teu coração se tornou sensível, preservei-te do
império das paixões. Se tivesse podido prolongar essa calma inte­
rior até ao im da tua vida, teria posto a minha obra em seguran­
ça, e tu serias sempre eliz, tanto quanto um homem o pode ser;
mas, querido Emílio, embora tenha mergulhado a tua alma no Es­
tige, não consegui torná-la completamente invulnerável; surge
agora um novo inimigo que ainda não aprendeste a vencer, e de que
não te pude salvar. Esse inimigo és tu mesmo. A natureza e a for­
tuna tinham-te deixado livre. Podias suportar a miséria; sabias
suportar as dores do corpo: as da alma eram-te desconhecidas; não
te interessavas por nada que não fosse a condição humana: e, ago­
ra, estás dependente de todos os elos que criaste; aprendendo a de­
sejar, tornaste-te escravo dos teus desejos. Sem que nada mude
em ti, sem que nada te magoe, sem que nada atinja o teu ser, quan­
tas dores podem atacar a tua alma! Quantas dores podes sentir
sem estares doente! Quantas mortes podes suportar, sem morrer!
Uma mentira, uma alta, uma dúvida, podemconduzir-te ao deses­
pero.
«No teatro, vias os heróis, entregues a dores extremas, azerem
ressoar no palco os seus gritos insensatos, aligirem-se como mu­
lheres, chorar como crianças, e, desse modo, merecerem os aplau­
sos do público. Recorda-te do escânda-lo que te causavam essas
lamentações, esses gritos, esses queixumes, em homens de quem
só se deviam esperar actos de constância e de firmeza. «Ü quê», ex­
clamavas, todo indignado, «são esses os exemplos que nos dão pa­
ra seguir, os modelos que nos oferecem para imitar! Receia-se que
o homem não seja bastante pequeno, bastante infeliz, bastante
fraco, e ainda se vem incensar a sua fraqueza, sob a falsa imagem
da virtude?>> Meujovem amigo, passa a ser mais in dulgente em re­
lação ao que vês no palco: eis-te transformado num dos seus he­
róis.
Sabes sofrer e morrer: sabes suportar a lei da necessidade, nos
males físicos; mas ainda não impuseste leis aos apetites do teu co­
ração; e é das nossas afeições, muito mais que das nos sas necessi­
dade, que emana a perturbação da nossa vida. Os nossos prazeres
são extensos, a nossa força é quase nula. Pelos seus anseios, o ho­
mem apega-se a mil coisas, e, por si mesmi, não se apega a nada,
284 nem sequer à sua própria vida; quanto maior é o número dos seus
interesses, mais se multiplicam as suas penas. Tudo passa, sobre
a terra: tudo quanto amamos nos fugirá, mais cedo ou mais tarde;
e nós agarramo-nos a essas coisas, como se elas devessem durar
eternamente. Quanta apreensão experimentaste só com a suspei­
ta de que Sophie tinha morrido! Pensaste, então, que ela viveria
sempre? Nunca morre ninguém, na idade dela? Ela tem de morrer,
meu querido filho, e talvez antes de ti. Quem sabe se, neste preci­
so momento, ainda estará viva? A natureza só te sujeitara a uma
única morte, tu sujeitas-te a uma segunda; eis-te na situação de
morrer duas vezes.
Assim submetido ás tuas paixões desregradas, como merece­
rás ser lastimado! Sempre privações, sempre perdas, sempre sus­
tos; nem sequer desrutarás do que te será deixado. O receio de tu­
do perder, impedir-te--á de possuir seja o que for; por teres queri­
do seguir apenas as tuas paixões, nunca as poderás satisazer. Pro­
curarás sempre o descanso, ele ugirá sempre à tua frente; sentir­
-te-ás miserável, e tornar-te--ás mau. E como conseguirias não o
ser, tendo como única lei os teus desejos desefreados? Se não podes
suportar privações involuntárias, como poderás impor-tas volun­
tariamente? Como poderás sacrificar a tendência ao dever e resis­
tir ao teu coração para escutar a tua razão? Tu, que já não queres
ver aquele que te der a notícia da morte da tua amada, como pode­
rias olhar para aquele que ta quisesse roubar, viva, aquele que se
atrevesse a dizer-te: «Ela esté morta para ti, a virtude separa-te
dela?» Se é preciso viver com ela, seja o que for que acontecer, quer
Sophie estaj a casada ou não, que tu sejas livre ou não, que ela te
ame ou te odeie, que ta concedam ou que ta recusem, pouco impor­
ta, tu quere-la, é preciso que a possuas, custe o que custar. Diz­
-me, então, qual o crime que detém aquele que só aceita, como leis,
os desejos do seu coração, e que não sabe resistir a nada do que de­
seja?
«Meu filho, não há felicidade sem coragem, nem viirtude sem
combate. A palavra virtude vem da palavra força: a força é a base
de todas as virtudes. A virtude só pertence a um ser que seja fra­
co pela sua natureza e forte pela sua vontade; é apenas nisso que
consiste o mérito do homem justo; e, embora digamos que Deus é
bom, não dizemos que ele é virtuoso, porque ele não precisa de fa­
zer esforços para bem agir. Para te explicar essa palavra tão pro­
fana, esperei que te encontrasses em estado de me compreender.
Enquanto a virtude não custa nada a praticar, pouca necessidade
se tem de a conhecer. essa necessidade revela-se quando as pai­
xões despertam: já se revelou, para ti.
Ao educar-te em toda a simplicidade da natureza, em vez de te
pregar deveres penosos, preservei-te dos vícios que tornam peno-
sos esses deveres; iz-te considerar a mentira menos odiosa que
inútil; ensinei-te menos a dar a cada um o que lhe pertence que a
preocupar-te unicamente com aquilo que é teu; fiz-te mais bom 285
que virtuoso. Mas aquele que só é bom só pode continuar a sê-lo en­
quanto nisso tiver prazer: a bondade quebra-se e perece, sob o im­
pacto das paixões humanas; o homem que é apenas bom só é bom
para si mesmo. ,
Então, o que é o homem virtuoso? E aquele que sabe vencer os
seus aectos; porque, então, obedece à sua razão, e nada o consegue
desviar dela. Até agora, só eras livre na aparência; tinhas apenas
a liberdade precária de um escravo a quem não se ordenou nada.
A partir deste momento sê efectivamente livre: aprende a tornar­
-te o teu próprio senhor; comanda o teu coração, ó Emílio, e serás
virtuoso.
Eis, pois, outra aprendizagem a fazer, e essa aprendizagem é
mais penosa que a primeira: porque a natureza livra-nos dos ma­
les que nos impõe ou ensina-nos a suportá-los; mas nada nos diz
quanto àqueles que nos Vêm de nós; entrega-nos a nós mesmos;
permite-nos que, vítimas das nossas paixões, sucumbamos às nos­
sas vãs dores, e, ainda por cima, que nos gloriiquemos com os cho­
ros ge que deveríamos corar.
E esta a priemeira paixão. Talvez seja a única digna de ti. Se
a sabes controlar como homem, ela será a derradeira; subjugarás
todas as outras, e só obedecerás à da virtude.
l;'.,t.a paixão não é criminosa, bem o sei; é tão pura como as al­
mas que a experimentam. A honestidade formou-a, a inocência
alimentou-a. Felizes amantes! Os encantos da virtude só aumen­
tam, para vós, os do amor; e o doce elo que vos espera não é menos
o prémio da vossa sageza que o do vosso afecto. Mas, diz-me, ho­
mem sincero, se essa paixão tão pura, não te subjugou?Não te dei­
xaste escravizar por ela?E, se amanhã, ela deixasse de ser inocen­
te, abafá-la-ias amanhã mesmo? E, chegado o momento de expe­
rimentares as tuas forças; já será tarde de mais, quando for pre­
ciso empregá-las.
Essas perigosas experiências devem fazer-se longe de perigo.
Ninguém se exercita para o combate, quando se encontra em fren­
te do inimigo; ninguém se prepara para ele, antes da guerra; todos
se apresentam para ela, já preparados.
E um erro estabelecer distinções entre as paixões permitidas e
as proibidas, para se entregar às primeiras e se recusar ás outras.
Todas elas são boas, quando as podemos dominar; todas elas são
más, quando nos deixamos subjugar por elas. O que nos é proibi­
do pela natureza é estender os nossos interesses mais longe qua as
nossas orcas: o que nos é proibido pela razão é desejar o que não po­
demos obter; o que nos é proibido pela consciência não é o sermos
tentados, mas o deixarmo-nos vencer pelas tentações. Não depen­
de de nós o ter, ou o não ter paixões; mas depende de nós dirigi-las.
Todos os sentimentos que dominamos são legítimos; todos os que
nos dominam dão criminosos. Um homem não tem culpa de amar
286 a mulher de outro, se conservar essa paixão infeliz sujeita à lei do
dever: mas é culpado de amar a sua própria mulher, se chegar ao
ponto de tudo imolar ao seu amor.
«Não esperes que eu te dê longos preceitos de moral; tenho um
único a dar-te, e esse inclui todos os outros. Sê homem; retira o teu
coração para dentro dos limites da tua condição. Estuda e conhe­
-ce esses limites; por mais estreitos que sejam, ninguém se sente in­
feliz se neles se confinar; só se é infeliz quando se pretende ultra­
passá-los, quando, nos seus desejos insensatos, se inscreve, na ca­
tegoria dos possíveis, aquilo que o não é; quando se esquece o seu
estado de homem para criar estados imaginários, dos quais sem­
pre se volta a cair no seu. Os únicos bens cuja privação é penosa são
aqueles a que se crê ter direito. A evidente impossibilidade de os
obter desliga-nos deles; os desejos sem esperança nunca atormen­
tam. Um mendigo não se sente atormentado pelo desejo de ser rei;
um rei só deseja ser deus quando crê já não ser homem.
As ilusões do orgulho são a fonte dos nossos maiores males;
mas, contemplando a miséria humana, o sage torna-se sempre
moderado; conserva-se no seu lugar, não se agita para sair dele;
não utiliza inutilmente as suas forças para desfrutar do que não
pode conservar; e, utilizando-as todas para bem conservar o que
tem, fica, efectivamente, mais poderoso e mais rico de tudo quan­
to deseja a menos que nós. Ser mortal e perecedoiro, iria eu formar
nós eternos nesta terr, ond� tudo muda, onde tudo passa, e de on­
de amanhã desaparecerá? O Emílio, ó meu filho! Perdendo-te, que
me ficaria de mim mesmo? E, no entanto, é preciso que eu apren­
da a perder-te: pois, quem sabe quando me serás tirado?
«Queres, então, viver feliz e sage: então, prende o teu coração
unicamente à belza que não perece: que a tua condição limite os
teus desejos, que os teus deveres passem antes das tuas inclina­
ções: estende a lei da necessidade ás coisas morais; aprende a per-
der tudo quanto te possa ser retirado; aprende a tudo abandonar,
quando a virtude o ordena, a colocar-te acima dos acontecimentos,
a desligar o teu coração sem que eles o dilacerem, a ser corajoso na
adversidade - a fim de nunca seres miserável - a ser firme no teu
dever, a fim de nunca seres miserável - a ser firme no teu dever,
a fim de nunca seres criminoso. Só assim te sentirás feliz apesar
da fortuna, e sage apesar das paixões. So assim te encontrarás, na
própria possessão dos bens frágeis, uma voluptuosidade que nada
poderá perturbar; possui-los-ás sem que eles te possuam, e sen­
tirás que o homem, a quem tudo escapa, só desfruta do que sabe
perder. Não terás - isso é verdade as dores que são o seu fruto. Ga­
nharás mui to com essa troca; porque essas dores são frequentes e
reais, e esses prazeres são raros e vãos. Vencedor de tantas opi­
niões enganadoras, também o serás daquele que tanto valor atri-
bui à tua vida. Viverás a tua sem perturbação e terminá-la-ás sem
pavor; desligar-te-ás dela, como de todas as coisas. Que outros,
horrorizados, pensem - quando a deixam - que deixam de e xis- 287
tir; instruído do seu nada, crerás começar. A morte é o fim da vi­
da do mau e o início da do justo».

Emílio escuta-me com uma atenção em que se mistura a in­


quietação. Ouvindo o preâmbulo, receia alguma conclusão sinis­
tra. Pressente que, ao mostrar-lhe a necessidade de exercitar a
força da alma, eu pretendo submetê-lo a esse duro exercício; e tal
como um ferido que estremece quando vê o cirurgião aproximar­
-se, já crê sentir sobre a sua ferida a mão dolorosa, mas salutar,
que a impede de se corromper.
Ouvidos, perturbado, impaciente por saber aonde quero che­
gar, em vez de responder, interroga-me, mas com receio. «Ü que é
preciso fazer? pergunta-me, quase a tremer e sem se atrever a le­
vantar os olhos. «Ü que é preciso gazer», respondo--lhe, num tom
firme, «é deixar Sophie.» «Que dizeis?» exclama ele, impetuosa­
mente. «Deixar Sophie! Deixá-la, enganá-la, ser um traidor, um
velhaco, um perjuro!...» «Ü quê!>> continuo, interrompendo--o, «é co­
migo que Emílio receia merecer tais nomes?>> «Não••, continua ele,
com a mesma impetuosidade, «nem convosco nem com nenhum ou­
tro; saberei, mesmo sem vós, conservar a vossa obra; saberei não
os merecer!»
Já esperava por essa primeira fúria; deixo-a passar, sem me
perturbar. Se eu não tivesse a moderação que lhe prego, como lha
poderia pregar? Emílio conhece-me demasiado bem para me crer
capaz de lhe exigir alguma coisa que não seja bem, e também sa­
be que faria mal se deixasse Sophie, no sentido que atribui à pa­
lavra «deixar>>. Por isso espera pela minha explicação. Então, con­
tinuo o meu discurso:
«Credes, meu caro Emílio, que um homem - seja qual for a si­
tuação em que se encontre - se possa sentir mais feliz do que vós
sois, desde há três meses? Se o credes, desenganai-vos. Antes de
provar os prazeres da vida, já lhe bebestes toda a felicidade. Não
existe nada acima do que já sentistes. A felicidade dos sentidos é
passageira; o estado habitual do coração perde sempre alguma coi­
sa com ela. Desfrutastes mais, pela esperança, do que aquilo que,
na realidade, podereis vir a desfrutar. A imaginação, que orna­
menta o que se deseja, desaparece com a possessão. Além do úni­
co ser que existe por si mesmo, só é belo o que não existe. Se esse
estado tivesse podido durar sempre, teríeis conhecido a felicidade
suprema. Mas tudo o que se relaciona com o homem se ressente da
sua caducidade. Tudo tem um fim, tudo é passageiro, na vida hu­
mana: e, mesmo que o estado que nos torna felizes durasse eterna­
mente, o hábito de dele desfrutarfár-nos-ia perder o gostoporele.
Embora nada se modifique exteriormente, o coração muda; a feli­
cidade deixa-nos, ou deixamo--l a nós.
288 «Ü tempo que não medíeis ia passando, durante o vosso delírio.
O Verão está a acabar, o Inverno aproxima-se. E, mesmo que pu­
déssemos continuar com os nossos pa�seios durante uma estação
tão agreste, nunca o suportaríamos. E preciso, mesmo que o não
queiramos, mudar de maneira de viver; esta não pode continuar.
Vejo, no vosso olhar impaciente, que essa dificuldade não vos em­
baraça: a confissão de Sophie e os vossos próprios desejos sugerem
um sistema fácil para evitar a neve e não precisarmos mais de fa­
zer viagens para a irmos ver. O expediente é cómodo, não restam
dúvidas: mas, chegada a Primavera, a neve derrete e o casamen­
to permanece: é preciso pensar para todas as estações.
Quereis desposar Sophie, e nem sequer faz cinco meses que a
conheceis! Quereis desposá-la, não porque ela vos convenha, mas
porque ela vos agrada; como se o amor não se enganasse nunca, so­
bre as conveniências, e como se aqueles que começam por se amar
nunca acabassem por se odiar! Ela é virtuosa, bem o sei; mas isso
será o suficiente? E suficiente ser-se honesto para se convir? Não
é a sua virtude que eu ponho em dúvida, mas o seu carácter. O de
uma mulher revela-se num dia? Sabeis quantas situações é pre­
ciso tê-la visto para conhecer profundamente o seu humor? Qua­
tro meses de afecto, serão o bastante para garantir toda a vossa vi­
da? Talvez que dois meses de ausência vos consigam fazê-la esque­
cer; talvez haja outro que só espera pelo vosso afastamento para
vos apagar do seu coração; talvez que, quando regressardes, a en­
contreis tão indiferente quanto a encontrastes sensível, até agora.
Os sentimentos não dependem dos princípios; ela pode continuar
a ser mui to h onesta, e deixar de vos amar. Será constante e fiel; in­
clino-me para pensar que será assim; mas quem vos garante que
continuará a amar-vos? E quem lhe garante, a ela, que continua­
reis a amá-la, se não tiverdes posto à prova os vossos sentimentos?
Esperareis, para tirardes essa provam que ela vos tome inútil? Es­
perareis, para nos conhecerdes, até ao momento em que não sereis
capaz de vos afastardes dela?
«Sophie ainda nem sequer tem dezoito anos; vós mal acabastes
de completar os vinte e dois; essa idade é a do amor, mas não a do
casamento. Que pai e que mãe de família! Ora! Para saberdes edu­
car os vossos filhos, esperai, pelo menos, até deixardes de ser crian­
ças. Sabeis a quantas jovens os cansaços da gravidez - suporta­
dos antes da idade que convém - enfraqueceram a constituição,
arruinaram a saúde, abreviaram a vida? Sabeis quantas crianças
ficaram lânguidas e fracas, por não terem sido alimentadas por um
corpo suficientemente formado? Quando a mãe e o filho crescem ao
mesmo tempo, e que a substância necessáriapara o crescimento de
cada um deles 5e partilha, nem ela nem ele recebem o que a natu­
reza lhes destinava: como é possível que ambos não sofram com is­
so? Ou bem eu conheço Emílio muito mal, ou bem ele preferirá ter,
mais tarde, uma mulher e filhos robustos, que satisfazer a sua im-
paciência à custa das suas vidas e da sua saúde. 289

L. B. 524 - 19
«Falemos de vós. Aos aspirardes aos estados de esposo e de pai,
já lhes meditaste bem os deveres? Tornando-vos chefe de família,
passareis a ser membro do Estado. E o que é ser membro do Esta­
do? Sabei-lo? Estudastes os vosso deveres de homem, mas conhe­
ceis os de cidadão? Sabeis o que é governo, leis, pátria? Sabeis a que
preço vos é permitido viver, e por que deveis morrer? Credes ter
aprendido tudo, e ainda não sabeis nada. Antes de ocupardes um
lugar na ordem civil, aprendei a conhecê-la e a saber qual a cate­
goria que vos convém.
«Emílio, é preciso deixar Sophie: não digo que a deveis abando­
nar; se fosseis capaz de o fazer, ela poder-se-ia considerar muito
afortunada por não vos ter desposado: é preciso deixá-la, para re­
gressar dign<;> dela. Não sejais bastante frívolo para crerdes que já
a mereceis. O, quanto vos falta ainda fazer! Vinde desempenhar
essa nobre tarefa; vinde aprender a suportar a ausência; vinde me­
recer o prémio da fidelidade, a fim de que, quando regressardes,
vos possais honrar de alguma coisa perante ela, e pedir a sua m ão,
não como um favor, mas como uma recompensa.»

Ainda não habituado a lutar contra si mesmo, ainda não acos­


tumado a desejar uma coisa e a querer outra, o jovem não se ren­
de; resiste, discute. Porque se haveria ele de esquivar à felicidade
que o espera? Não seria o mesmo que desdenhar a mão que lhe foi
oferecida, se se recusasse a aceitá-la? Que necessidade há de se
afastar dela para se instruir do que deve saber? E, mesmo que is­
so fosse necessário, porque não lhe haveria de deixar, nos nós in­
dissolúveis, a garantia do seu regresso? Desde o momento em que
se converta em seu esposo, está disposto a seguir-me; desde que
estejam unidos, deixa-a sem receios ... «Unjr-vos, para vos sepa­
rardes, meu caro Emílio, que contradição! E belo que um amante
possa viver sem a sua amada; mas um marido nunca deve deixar
a mulher, sem necessidade. Para curar os vossos escrúpulos, vejo
que as vossas dilações devem ser involuntárias: é preciso que pos­
sais dizer, a Sophie, que a deixais contra vossa vontade. Pois bem!
Que assim seja, e, pois que não obedeceis à razão, reconhecei um
outro senhor. Não vos esquecestes do compromisso que tomastes
para comigo. Emílio, é preciso deixar Sophie; sou eu que o quero!
Ao ouvir estas palavras, ela baixa a cabeça, cala-se, sonha
durante uns momentos, e, depois, olhando-me com firmeza, per­
gunta-me: «Quando partimos?» «Daqui a oito dias», respondo; «é
preciso preparar Sophie para essa partida. As mulheres são mais
fracas que nós, devemos ter deferências para com elas; e, como es­
ta ausência não é um dever, nem para nem para vós, é-lhe permi­
tido suportá-la com menos coragem .»
Sinto-me muito tentado a prolongar, até à separação dos meus
290 jovens, o relato dos seus amores; mas, há já muito tempo que es-
tou a abusar da indulgêpcia dos leitores; abreviemos, para acabar
de uma vez por todas. Emílio ousará apresentar, diante da sua
amada, a mesma firmeza que acaba de mostrar ao seu amigo? Por
mim, creio que sim; é exactamente da verdade do seu amor que ele
deve retirar essa firmeza. Sentir-se-ia menos confuso perante ela,
se não lhe custasse tanto deixá-la; deixá-la-ia sentindo--se culpa­
do, e esse papel é sempre embaraçoso para um coração honesto:
mas quanto mais lhe custar esse sacrifício, mais honrado ele será
considerado por aquel a que lho torna penoso. Ele não receia que
ela se deixe enganar,sobre o motivo que o determina. Parece dizer­
-lhe, a cada olhar: «0 Sophie! Lê no meu coração, e sê--me fiel; não
tens um amante sem virtude.>>
Por seu lado, a fiel Sophie esforça-se por suportar com digni­
dade o golpe imprevisto que a atinge. Faz os possíveis por parecer
insensível; mas, como não tem - como Emílio - a honra do com­
bate e da vitória, a sua firmeza tem menos em que se apoiar. Cho­
ra, chega mesmo a gemer, sem querer, e o pavor de vir a ser esque­
cida, amarga a dor da separação. Não é diante do seu amante que
ela chora, não é a ele que mostra os seus pavores; preferiria sufo­
car que deixar escapar um suspiro, na presença dele: sou eu quem
recebe os seus queixumes, quem vê as suas lágrimas, quem ela
afecta tomar como confidente. As mulheres são astutas e sabem
dissimular: quanto mais resmunga, secretamente, contra a minha
tirania, mais interessada se mostra em lisongear-me; sente que o
seu segredo está nas minhas mãos.
Consolo--a, tranquilizo--a, responsabilizo--me pelo seu amante,
ou antes, pelo seu esposo; que ela se lhe mantenha tão fiel quan­
to ele o será, e, dentro de dois anos, será seu esposo, juro--lhe. Ela
estima-me o suficiente para acreditar que não a pretendo enga­
nar. Responsabilizo--me por cada um deles, em relação ao outro. Os
seus corações, a sua virtude, a minha probidade, a confiança de
seus pais, tudo isso os tranquiliza. Mas de que serve a razão, con­
tra a fraqueza? Separam-se como se nunca mais se pudessem vol­
tar a ver.
É então que Sophie se lembra das saudades de Eucaria e se vê,
realmente, no lugar dela. Não permitamos que, durante a ausên­
cia, esses fantásticos amores despertem. «Sophie», digo--lhe, um
dia, «fazei uma troca de livros, com Emílio. Dai-lhe o vosso Telé­
maco, para que ele aprenda a parecer--se com esse herói; e que ele
vos dê le Spectateur, cuj a leitura vos agrada. Nele, escutai os de­
veres das mulheres honestas, e pensai que dentro de dois anos, es­
ses deveres serão os vossos>>. Essa troca a ambos, e transmite-lhes
confiança. Enfim, chega o tri:ote dia, é preci:so :separar-se.
O digno pai de Sophie - com o qual combinei tudo - abraça­
-me, quando lhe apresento as minhas despedidas; depois, puxan­
do--me para o lado, diz-me as seguintes palavras - num tom gra­
vee com uma entoação um pouco insistente: «Fiz tudo paravos con- 291
tentar; sabia que estava a tratar com um homem de honra. resta­
-me uma única coisa a dizer-vos: Lembrai-vos de que o vosso pu­
pilo assinou o seu contrato de casamento na boca da minha filha».
Que diferença, no comportamento de cada um dos amantes!
Emílio, impetuoso, ardente, agitado, fora de si, lança gritos, verte
torrentes de lágrimas sobre as mãos do pai, da mãe, da filha; abra­
ça, a chorar, todos os criados da casa, e repete i1 vezes as esmas coi­
sas, numa atrapalhação que daria motivos para rir, noutro mo­
mento que não esse. Sophie, morna, pálida, com o olhar sombrio,
permanece quieta, não diz nada, não chora, não vê ninguém, nem
sequer Emílio. Por mais que ele lhe pegue nas mãos, que a abra­
ce, ela permanece imóvel, insensível às suas lágrimas, às suas ca­
ríci ás, a tudo quanto ele faz; para ela, j á se foi embora. Quão ais co­
movedor é esse objecto, que os importunos queixumes e as estre­
pitosas penas do seu amante! Ele apercebe-se disso, sente-o, sen­
te-se incomodadíssimo: é com dificuldade que o consigo levar coi­
go; se o deixasse ficar mais um momento, deixaria de querer par­
tir. Sinto-me encantado por ele levar consigo essa triste imagem.
Se alguma vez se vir a sentir tentado a esquecer o que deve a So­
phie, fazendo-lha recordar tal como a viu no momento da sua par­
tida, será preciso que ele tenha o coração muto alienado, para que
eu não o volte a levar para junto dela.

DAS VIAGENS

Pergunta-se se é conveniente que os jovens viagem e h á mui­


tas controvérsias sobre esse assunto. Apresentando a questão de
outra maneira, e perguntando se é conveniente que os homens te­
nham viaj ado, talvez não houvessem tantas discussões.
O abuso dos livros dá cabo da ciência. Crendo saber o que se leu,
crê-se estar dispensado de o aprender. Um excesso de leitura só
serve para fazer ignorantes presunçosos. De entre todos os sécu­
los de literatura, não houve um único em que se lesse tanto como
neste, e nenhum em que se fosse menos sabedor; de todos os paí­
ses da Europa, nãohá nenhum onde se imprimam tanta s histórias
e narrativas de viagens, como a França, e nenhum onde se conhe­
ça menos o génioe os costumes da das outras nações! Tantos livros
levam-nos a negligenciar o livro do mundo; ou, se ainda o lemos,
cada um lê sempre o mesmo folheto. Se a frase Pode-se ser Persa?
Mefosse descodnhecida, adivinharia-ao ouvir dizê--la-que ela
vem do país em que os preconceitos nacionais são os mais dominan­
tes, e do sexo que mais os propaga.
Um Parisiense crê conhecer os homens, as só conhece os Fran-
292 ceses; na sua cidade, sempre cheia de estrangeiros, considera ca-
da um destes como um fen6r!J.eno extraordinário que não tem o seu
igual no resto do universo. E preciso ter-se observado de perto os
burgueses dessa grande cidade, é preciso ter-se vivido entre eles,
para acreditar que, com tanto espírito, se possa ser tão estúpido.
O que há de bizarro é que cada um deles leu -talvez dez vezes ­
a descrição do país de que um só habitante o irá maravilhar tan­
to.
É exagerado pretender coordenar os preconceitos dos autores
com os nossos, para obter a verdade. Passei a minha vida a ler nar­
rativas de viagens, e nunca encontrei duas que me tivessem deixa­
do a mesma ideia do mesmo povo. Comparando o pouco que podia
observar com o que tinha lido, acabei por ab andonar os viajantes
e deplorar o tempo que desperdiçara para me instruir com a sua
leitura, bastante convencido de que, quanto às observações de to­
das as espécies, não devem ser lidas, mas vistas. No caso dos livros,
elas até poderiam ser verdadeiras, se todos os viajantes fossem sin­
ceros, se só dissessem o que tinham visto ou o que pensavam, e se
não dissimulassem a verdade com as falsas cores que ela adquire
aos nossos olhos. O que não será, quando ainda é preciso descobri­
-la, através das suas mentiras e da sua m á-fé?
Deixemos, pois, o recurso dos livros que vos aconselham para
aqueles que foram feitos para se contentarem com a sua leitura.
Ela é boa, assim como a arte de Raimmy.ndo Lúlio1, para aprender
a bacharelar sobre o que se não sabe. E bom para ensinar os Pla­
tãos de quinze anos a filosofar nos grupoE!, e para instruir uma so­
ciedade com os costumes do Egipto e das lndias, sobre a fé de Paul
Lucas ou de Tavernier.
Considero como uma máxima incontestável que aquele que só
viu um povo, em vez de conhecer os homens, só conhece as pessoas
com quem viveu. Eis, pois, mais uma maneira de apresentar ames­
ma pergunta sobre as viagens: <<Basta qué um homem bem educa­
do conheça os seus compatriotas, ou é importante que conheça os
homens em geral?» Neste caso, não há mais motivos para discus­
sões nem dúvidas. Vede como a solução de uma questão difícil de­
pende, por vezes, da maneira de a expressar.
Mas, para estudar os homens, será preciso percorrer o mundo
inteiro? Será necessário ir ao Japão observar os Europeus? Para
conhecer a espécie, será preciso conhecer todos os indivíduos? Não;
há homens que se parecem tanto, que não merece a pena estudá­
-los separadamente. Quando se viram dez Franceses, é como se se

1 (O Iluminado) (1 235-1325), escritor e alquimista espanhol, que


escreveu A Grande Arte, um dos livros mais curiosos da escolástica. ln Di­
cionário Prático Ilustrado, (Lello, 1986, p. 1769). (N. da T.)
2 Tavernier, Jean-Baptiste (1 605-1689), viajante francês que escre-
veu relatos das viagens que fez à Pérsia, à Turquia e à India. (N. da T.) 293
tivessem visto dois. Embora o mesmo se não possa dizer dos Ingle­
ses e de mais alguns povos, a verdade é que cada nação tem o seu
carácter próprio e específico, que se conhecer por indução, e não pe­
la observação de um único dos seus membros, mas de vários.Aque­
le que comparou dez povos conhece os homens, como aquele que viu
dez Franceses conhece os Franceses.
Para nos instruirmos, não nos basta percorrer os países; é pre­
ciso saber viajar. Para observar, é precido ter olhos, e dirigi-los pa­
ra os objecto que se quer conhecer. Há muitas pessoas a quem as
viagens ainda instroem menos que os livros, proque ignoram a ar­
te de pensar, porque, na leitura, o seu espírito é menos guiado pe­
lo autor, e porque, nas suas viagens, não sabem ver nada por si
mesmos. Outras há que não aprendem nada, porque não querem
aprender. O seu objecto é tão diferente que aquele que vêem não
os impressiona; é uma grande coincidência, ver-se exactamente
aquilo que não nos interessa ver. De entre todos os povos do mun­
do, o Francês é o que mais viaj a; mas, imbuído dos seus costumes,
confunde tudo quanto não se assemelha aos dele. Há Franceses em
todas as partes do mundo. Não há país onde se encontrem mais
pessoas que tenh am viaj ado, a não ser a França. Mesmo assim, de
entre todos os povos da Europa, aquele que mais os vê menos bem
os conhece.
O inglês também viaja; mas de outra maneira; é necessárioque
esses dois povos façam tudo de uma maneira completamente opos­
ta. A nobreza inglesa viaja, a nobreza francesa não viaja; o povo .
francês viaja; o povo inglês não viaja. Esta diferença parece-me
honrosa para o último. Os Franceses têm quase sempre algum in­
tuito interesseiro, quando viajam; mas os Ingleses não vão procu­
rar fortuna nas outras nações, a não ser através do comércioe com
as mãos cheias; quando viajam, é para gastar dinheiro, não para
viver de indústrias: são excessivamente orgulhosos para irem ras­
tej ar para fora do seu país. Isso também leva a que se instruam
mais num país estrangeiro, que os Franceses, que têm um objec­
tivo mui to diferente na cabeça. Porém, os Ingleses também têm os
seus preconceitos nacionais, têm mesmo mais do que os outros po­
vos; mas esses preconceitos estão menos ligados à ignorância que
à paixão. O Inglês tem os preconceitos do orgulho, e o Francês os
da vaidade.
Como os povos menos cultivados são, geralmente, os mais sa­
ges, os que viajam menos viajam mais bem; porque, estando me­
nos avançados que nós nas nossas buscas frívolas, e menos ocupa­
dos com os objectos da nossa vã curiosidade, prestam toda a sua
atenção ao que é verdadeiramente útil. Pelo que sei, só os Espa­
nhóis viajam dessa maneira. Enquanto um Francês corre a visitar
os artistas de um país, que um Inglês lhes paga para que desenhem
algum camafeu, e que um Alemão leva o s"'u album a casa de to-
294 dos os sábios, o Espanhol estuda, silenciosamente, o governo, os
costumes, a polícia, e é o único dos quatro que, ao regressar ao seu
país, traz consigo alguma observação que pode ser útil à sua pá­
tria.
Os antigos viajavam pouco, escreviam poucos livros; no entan­
to, vê-se, por aqueles que nos deixaram, que se observavam mais
bem do que nós os nossos contemporâneos. Sem remontar aos es­
critos de Homero - o único poeta que nos transporta ao país que
descreve-não se pode recusar a Heródoto a honra de, na sua His­
tória, e, embora ela se componha mais de narrações que de refle­
xões, ter descrito os costumes dos povos mais bem que os nossos
historiadores que carregam os seus livros com retratos e caracte­
res. Tácito descreveu mais bem os Germanos do sev tempo, do que
qualquer Alemão descreveu os Alemães actuais. E incontestável
que aqueles que são versados na História Antiga conhecem m ais
bem os Gregos, os Cartagineses, os Romanos, os Gauleses e os Per­
sas, que qualquer povo actual os seus vizinhos.
Também é preciso confessar que os caracteres originais dos po­
vos, apagando-se de dia para diª, se tornam, por essa mesma ra­
zão, mais difíceis de especificar. A medida que as raças se vão cru­
zando e que os povos se vão confundindo, desaparecem, pouco a
pouco, essas diferenças nacionais que, outrora, nos saltavam à
imediatamente vista. Antigamente, cada nação permanecia mais
fechada em si mesma; existiam menos meios de comunicação, fa­
ziam-se menos viagens, havia menos interesses comuns ou opos­
tos, menos ligações políticas e civis, entre os povos, não havia tan­
tos enredos reais chamados negociações, nem tantos embaixado­
res ordinários ou residindo permanentemente; as grandes navega­
ções eram esporádicas; havia pouco comércio com os países longín­
quos; e o pouco que havia era feito pelo próprio príncipe - que pa­
ra isso utilizava estrangeiros - ou por pessoas desprezadas, que
não davam o tom a ninguém e não uniam as naçõ�s. Actualmen­
te, há cem vezes mais ligações entre a Europa e a Asia, que outro­
ra, entre a Gália e a Espanha; a Europa, só por si, estava mais di­
vidida que a terra inteira o está hoje.
A isso, acrescentai que os povos antigos, na maior parte dos ca­
sos, se consideravam, como autóctones, ou originários dos territó­
rios onde viviam, pois os ocupavam desde havia suficiente tempo
para terem perdido a memória dos séculos recuados em que os seus
antepassados neles se tinham estabelecido; o clima e o tempo j á
imprimira, nos seus corpos, impressões duráveis: contanto que,
entre nós - depois das invasões dos Romanos - as recentes emi­
grações dos bárbaros misturaram tudo, transtornaram tudo. Os
Franceses d<> hoj<>já não são como aqu<>les grandes corpos louros
e brancos de outrora; os Gregos já não são esses belos homens fei­
tos para servir de modelos à arte; o próprio rosto dos Romanos mu­
dou de carácter, assim como o seu natural; os Persas, originários
da Tartária, estão a perder a sua primitiva fealdade - de dia pa- 295
ra dia -, graças à mistura de sangue circassiano; os Eur�peus j á
não são nem Gauleses, nem Germanos nem Iberos nem Alobrogos;
todos eles são Citas, diversamente degenerados quanto ao aspec­
to e ainda mais quanto aos costumes.
Eis por que razão as antigas distinções entre as raças, as qua­
lidades do ar e da terra marcavam mais fortemente que hoje, de po­
vo para povo, os temperamentos, os rostos, os costumes, os carac­
teres; e a actual incostância europeia não deixa a nenhuma causa
natural o tempo suficiente para imprimir as suas marcas, nos lu­
gares onde as florestas abatidas, os pântanos dessecados, a terra
mais uniformente cultivada- embora muito mais mal - n ão per­
mite, mesmo do ponto de vista físico, que haja a mesma diferença,
de região para região e de país para país.
Talvez que, com semelhantes reflexões, se passasse a ridicula­
rizar menos Heródoto, Ctésias e Plínio, por terem representado os
habitantes de diversos países com traços originais e com as dife­
renças marcadas que já não lhes encontramos. Seria preciso vol­
tar a encontrar os mesmos homens, para reconhecer neles os mes­
mos rosto; seria preciso que nada os tivesse modificado, para que
tivessem permanecido como eram. Se pudéssemos considerar, si­
multaneamente, todos os homens que existiram, alguém pode du­
vidar de que os encontrássemos mais variados, de século para sé­
culo_, que hoje, de nação para nação?
Amedida que as observações se tornam mais difíceis, fazem-se
com mais desleixo e mais mal; é essa outra das razões para o pou­
co êxito das nossas buscas, na História Natural do género huma­
no. A instrução que se adquire com as viagens depende do objecto
que nos leva il empreendê-las. Quando esse objecto é um sistema
de filosofia, o viajante nunca vê nada além do que pretende ver;
quando esse objecto é o interesse, absorve toda a atenção dos que
a ele se entregam. O comércio e as artes, que misturam e confun­
dem os povos, também os impedem de se estudar. Quando vêm a
saber o proveito que podem retirar, uns dos outros, que mais pre­
cisam de saber?
É útil, para o homem, conhecer todos os lugares onde se pode
viver, a fim de poder escolher aqueles em que se pode viver m ais
comodamente. Se cada um se bastasse a si próprio, só lhe interes­
saria conhecer a extensão do país que o pode alimentar. O selva­
gem que não precisa de ninguém e que não cobiça nada no mundo,
não conhece, nem procura conhecer outros países, além do seu.
Quando, para subsistir, se vê forçado a mudar de lugar, evita os
que são habitados pelos homens; só quer viver com os animais e
não precisa deles para se alimentar. Mas para nós, que temos ne­
cessidade da vida civil, e que já não podemos deixar de comer ho­
mens, o interesse de cada um está a frequentar os países onde se
encontram mais homen§l para devorar. Eis porque tudo aflui a Ro­
296 ma, a Paris, a Londres. E sempre nas capitais que o sangue huma-
no se vende mais barato. Assim, só se conhecem os grandes povos,
e os grandes povos assemelham-se todos.
Temos, pelo que dizem, sábios que viajam para se instruirem ;
os sábios viajam por interesse, como os outros. Os Platão, os Pitá­
goras já não se encontram; ou se ainda os há, estão muito afasta­
dos de nós. Os nossos sábios só viajam por ordem da corte; são en­
viados, com as despesas pagas, recebem emolumentos para verem
este ou aquele objecto que, certamente, não é um objecto moral. De­
vem dedicar todo o seu tempo a esse único objecto; são pessoas ex­
cessivamente honestas para roubarem o seu dinheiro. Se, seja em
que país for, há curiosos que viajam à sua própria custa, nunca é
para estudar os homens: é para os instruir. Não é de ciência que
eles precisam, mas de ostentação. Como podiam aprender, com es­
sas viagens, a livrar-se do jugo da opinião? Se as efectuam, é por
ela.
Existe uma grande diferença entre viajar para conhecer novas
terras e viajar para conhecer outros povos. O primeiro objecto é
sempre o dos curiosos; o outro, para eles, é apenas acessório. De­
veria ser absolutamente o contrário, para aquele que quer filoso­
far. A criança observa as coisas, enquanto espera poder observar
os homens. O homem deve começar por observar os seus semelhan­
tes, e, a seguir, observar as coisas, se tiver tempo para isso.
Por conseguinte, é raciocinar mal, quando se conclui que as via­
gens são inúteis, só porque viajamos mal. Mas, reconhecida a uti­
lidade das viagens, seguir-se-á que elas convenham a toda a gen­
te? Muito longe disso! Só convêm, pelo contrário, a pouquíssimas
pessoas; só convêm aos homens suficientemente seguros de si mes­
mos, para escutarem as lições do erro sem se deixarem seduzir, e
para verem o exemplo do vício sem se deixarem arrastar para ele.
As viagens arrastam o natural para a sua queda e acabam por tor­
nar o homem bom ou mau. Aquele que regressa - depois de ter
percorrido o mundo - é, a partir desse momento, o que passará a
ser durante toda a sua vida: regressam mais maus que bons, por­
que é mais frequente que partam os que se sentem inclinados pa­
ra o mal que os que se inclinam para o bem. Os jovens, quando mal
educados e mal dirigidos, contraem todos os vícios dos povos que
frequentam durante as suas viagens e nem sequer uma das virtu­
des que se podem encontrar entre esses vícios; mas aqueles que fo­
ram bem nascidos, aqueles cujo bom natural foi cultivado e que
viajam com o verdadeiro propósito de se instruir, todos eles regres­
sam melhores e mais sages do que quando tinham partido. E as­
sim que o meu Emílio irá viajar: assim viajara esse jovem - dig­
nodeurn século rnelhor -cujornéritotoda a E uropa admirou, que
morreu pela sua pátria, quando estava na flor da idade -mas que
merecia viver - e cujo túmulo, ornamentado unicamente com as
suas virtudes, esperava, para ser homenageado, que uma mão es-
trangeira o cobrisse com sementes de flores. 297
Tudo quanto se faz por razão deve ter as suas regras. As via­
gens, quando consideradas como uma parte da educação, devem
obedecer às suas. Viaj ar por viajar é errar, ser vagabundo; viajar
para se instruir também é um objecto muito vago: a instrução que
não tem uma finalidade determinada não é nada. Gostaria de in­
cutir no jovem um interesse sensível por se instruir, e, se esse in­
teresse, bem escolhido, também fixaria a natureza da instrução.
Isto ainda é a continuação do método que pretendi praticar.
Ora, depois de se ter comparado - pelas suas afinidades fisi­
cas - com os outros seres, e pelas suas analogias morais - com os
outros homens -, resta-lhe considerar-se através das relações ci­
vis que tem com os seus concidadãos. Para isso, é preciso que co­
mece por estudar a natureza do governo em geral, das diversas for­
mas de governo, e, finalmente, o governo particular sob o qual nas­
ceu, para saber se lhe convém viver nele; pois que, por um direito
que nada pode revogar, ao tornar-se maior de idade e senhor de si
mesmo, cada homem também tem o direito de renunciar ao contra-
. to que o liga à comunidade, abandonando o país em que ela está es­
tabelecida. Só pela vivência que ali tem, depois de atingir a idade
da razão, é que pode confirmar tacitamente o compromisso que os
seus antepassados tomaram. Adquire o direito de renunciar à sua
pátria, como à sucessão de seu ái; como o lugar do nascimento é um
dom da natureza, cede-se uma parte do seu, quando se renuncia
a ele. Através do direito rigoroso, cada homem permanece livre, à
sua responsabilidade, seja onde for que nasça, a menos que se sub­
meta voluntariamente às leis, para adquirir o direito de ser prote­
gido por elas.
Portanto, dir-lhe-ia, mais ou menos: «Até agora, tendes vivi­
do sob a minha direcção: não vos encontráveis em estado de vos go­
vernardes sozinho. Mas estais a aproximar-vos da idade em que
as leis, deixando-vos a disposição do vosso bem, vos tornam senhor
da vossa pessoa. Ireis encontrar-vos só, na sociedade, dependen­
te de tudo, mesmo do vosso património. Tendes em vista uma po­
sição social; essa ideia é louvável, é um dos deveres do homem;
mas, antes de vos casardes, precisais de saber que homem quereis
ser, em que desejais empregar a vossa vida, que medidas quereis
tomar para assegurar o pão, a vós e à vossa família; pois que, em­
hora não se deva fazer de uma tal preocupação o seu principal ob­
jectivo, é, no entanto, necessário pensar nele. Quereis colocar-vos
na dependência dos homens que desprezais? Quereis estabelecer
a vossa fortuna e fixar o vosso estado através de relações civis que
vos porão constantemente à discrição de outrém, e vos obrigarão
- para escapar aos tratantes - a tornar-vos vós mesmo tratan­
te?»
A esse respeito, descrever-lhe-ei todos os sistemas possíveis
para fazer valer o seu bem, seja no comércio, seja nos transportes
298 comerciais, seja na finança; mostrar-lhe-ei que não há nenhum
que não lhe faça correr riscos, que não o coloque numa situação pre­
cária e dependente e que não o obrigue a regular os seus costumes,
os seus sentimentos, o seu comportamento, pelo exemplo e pelos
preconceitos de outrém .
«Há, dir-lh-ei», outra maneira de empregar o seu tempo e a sua
pessoa: é a de se pôr ao serviÇo, isto é, de se alistar por um salário
mínimo, para ir matar pessoas que não nos fizeram mal nenhum.
Essa prois são é muito estimada pelos homens, e eles fazem um ca­
so extraordinário daqueles que só servem para isso. Ainda por ci­
ma, longe se vos poderdes dispensar dos outros recursos, ela ain­
da vo-los torna mais necessários; pois que a honr� desse ofício,
também implica a ruina dos que a ele se dedicam. E verdade que
nem todos se arruinam; insensivelmente, a moda está a ser de se
enriquecer nele, como nos outros; mas duvido que - explidando­
-vos como procedem os que o conseguem - vos sintais interessa­
do em imitá-los.
«Sabei ainda que, nesse mesmo ofício,já não se trata nem de co­
ragem nem de valor, a não ser, talvez,junto das mulheres; que, pe­
lo contrário, o mais rastejante, o mais vil, o mais servil, é sempre
o mais respeitado: que, se tiverdes a pretensão de o desempenhar
o mais bem que puderdes, sereis desprezado, odiado, talvez demi­
tido, ou, pelo menos, oprimido por injustiças e suplantado por to­
dos os vossos camaradas, por terdes feito o vosso serviço nas trin­
cheiras, enquanto eles o faziam nos seus gabinetes.»
Não se pode duvidar de que nenhum desses ofícios poderá agra­
dar a Emílio. «Üra!••, dir-me-á, <<terei, por acaso, esquecido os jo­
gos da minha inância? Terei perdido os meus braços As minhas or­
ças estarão esgotadas? Já não serei capaz de trabalhar? Que me
importam todos os vossos belos empregos e todas as tolas opiniões
dos homens? Não conheço outra glória que não seja a de ser bena­
zejo e justo; não conheço outra elicidade que não seja a de viver in­
dependente, com o que amo, e adquirindo todos os dias apetite e
saúde, graças ao meu trabalho. Todos essas dificuldades de que me
falais não me impressionam. Não quero, como meu único bem,
mais do que um pedaço de terra, em qualquer parte do mundo. Em­
pregarei toda a minha avareza a valorizá-la, e viverei sem preo­
cupações. Sophie e o meu campo, e sentir-me-ei rico.••
Sim, meu amigo, é bastante, para a felicidade do sage, ter uma
mulher e um pedaço de terra que lhe pertençam; mas esses tesou­
ros, embora modestos, não são tão vulgares como pensais. O mais
raro já o encontrastes; falemos do outro.
Um terreno que seja vosso, caro Emílio! E, em que lugar o es­
colhereis? Em q ue canto da terra podereis dizer: <<Aqui, sou o meu
próprio dono e o do terreno que me pertence••? Conhecem-se os lu­
gares em que é fácil tornar-se rico; mas quem sabe em que luga-
res é possível prescindir de o ser? Quem sabe onde se pode viver in­
dependente e livre, sem ter necessidade de fazer mal a ninguém e 299
sem recear que lhofaçam? Credesqueo país onde sej a sempreper­
mitido ser-se um homem h onesto é assim tão fácil de encontrar?
Se há algum sistema legítimo e seguro de subsistir sem intrigas,
sem dependência, é, concordo, o de viver do trabalho das suas
mãos, cultivando a sua própria terra: mas, onde se encontra o Es­
tado onde se possa dizer: «A Terra que piso é minha>>? Antes de es­
colherdes essa abençoada terra, assegurai-vos bem de que nela
ireis encontrar a paz que pcourais; vede se um governo violento, se
uma religião perseguidora, se costumes perversos não vos irão per­
turbar. Ponde-vos ao abrigo dos excessivos impostos que devora­
riam o fruto dos vossos trabalhos, dos processos intermináveis que
consumiriam as vossas reservas. Procedei de modo a que- viven­
do como um justo -não tenhais de fazer a corte a intendentes, aos
seus substitutos, ajuízes, a sacerdotes, a poderosos vizinhos, a ve­
lhacos de todas as espécies, sempredispostos a atormentar-vos, se
os negligenciásseis. Ponde-vos, sobretudo, ao abrigo dos vexames
dos grandes e dos ricos; lembrai-vos de que, por toda a parte, as
terras deles podem ter limites comuns com a vinha de Naboth. Se
a vossa inflei cidade quiser que um homem numa boa posição com­
pre ou construa uma casa ao lado da vossa cabana, podereis ter a
garantia de que ele não conseguirá arranjar meios para, sob que
pretexto for, invadir a vossa herança para se enriquecer, ou de que
não vereis - talvez já no dia seguinte - todos os vossos recursos
absorvidos pela abertura de uma ampla e longa estrada? Mas, se
conservastes crédito para eludirtodos esses inconvenientes, então
também vale a pena conservar as vossas riquezas, porque elas não
vos custarão mais a guardar. A riqueza e o crédito apoiam-se mu­
tuamente; um sustenta-se sempre mal, sem o outro.
Tenho mais experiêncía que vós, caro Emílio; vejo mais bem a
dificuldade do vosso projecto. No entanto, ele é belo, é honesto, tor­
nar-vos-ia feliz, efectivamente: esforcemo-nos por executá-lo.
Tenho uma proposta a fazer-vos: consagremos os dois anos que te­
mos à nossa frente, até ao vosso regresso, para procurar um abri­
go na Europa, onde possais viver feliz, com a vossa família, ao abri­
go de todos os perigos que acabo de vos citar. Se o conseguirmos,
tereis encontrado a verdadeira felicidade inutilmente procurada
por tantos outros, e não podereis deplorar o tempo que gastastes.
Se não o conseguirmos, ficareis curado de uma quimera; consolar­
-vos-eis de uma infelicidade, inevitáve e submeter-vos-eis à lei
da necessidade.
Não sei se todos os meus leitores podem imaginar até aonde nos
irá conduzir esta busca, assim proposta; mas eu tenho a certeza de
que, se, ao regressarmos dessas viagens - iniciadas e prossegui­
das com esse objectivo -, Emílio não estiver conhecedor de todas
as matérias de governo, de costumes públicos e de máximas de Es­
tado, de todos os géneros, será preciso que cada um de nós seja mui-
300 to desprovido: um, de inteligência, e, o outro, de entendimento.
O direito político ainda está por nascer, e é de presumir que
nunca virá ao mundo. Grócio, o mestre de todos os nossos sábios so­
bre este assunto, não passa de uma criança, e, o que ainda é pior,
deuma crianca de má-fé. Quando ouço pôr Grócio nas nuvens e co­
brir Hobbes de execração, a percebo-me de quantos são os homens
sensatos que lêem e compreendem esses dois autores. A verdade
é que os seus princípios são extrem amente parecidos;só as expres­
sões diferem. Também diferem em que o método de Hobbes se ba­
seia em sofismas e o de Grócio em poetas;quanto ao resto, têm tu­
do em comum .
O único moderno que poderia ter criado essa grande e inútil
ciência seria i ilustre Montesquieu. Mas ele não se interessou em
tratar dos princípios do direito político;contentou-se em tratar do
direito positivo dos governos estabelecidos: e não há nada no mun­
do que seja tão diferente como esses dois estudos.
Porém, aquele que pretende julgar samente os governos, tais,
como eles existem, vê-se obrigado a estudá-los juntos: é preciso
saber o que deve ser para bem poder ajuizar do que é. A maior di­
ficuldade com que se depara, ao pretender esclarecer estas impor-·

tantes m atérias, é conseguir interessar um particular a discuti­


-las e a responder a estas duas perguntas: «Que me importa?» e:
«Que possofazer?»Nósco!ocámos o nossoEmíliona situação de sa­
ber responder a ambas.
A segunda dificuldade vem dos preconceitos da infância, das
máximas com que sefoi alimentado, sobretudo da parcialidade dos
autores que, fal ando sempre da verdade com que não se preocu­
pam, só pensam no seu interesse de que nunca falam. Ora, o povo
não concede nem cadeiras, nem pensões, nem lugares nas acade­
mias: imagine-se como os seus direitos serão estabelecidos pores­
sagente! Procedi de modo a queessa dificuldade também fosse nu­
la, para Emílio. Ele mal sabe o que quer dizer governo; a única coi­
sa que lhe interessa é encontrar o melhor; o seu projecto não é o de
escrever livros; e, se alguma vez os vier a escrever, não será para
fazer a sua corte aos poderes, mas para estabelecer os direitos da
humanidade.
Resta uma terceira dificuldade, mais especiosa que sólida, e
que não pretendo nem resolver nem propor: basta-me que ela não
prejudique o meu zelo; é certo que, em estudos desta espécie, são
menos necessários grandes talentos que um sincero amor pela jus­
tiça e um verdadeiro respeito pela verdade. Portanto, se as maté­
rias de governo podem ser equitativamente tratadas, eis, parece­
-me, chegado o momento de o fazer: ou agora ou nunca.
Antes de observar, é preciso estabelecer regras para as suas ob­
servações: é preciso estabelecer uma escala para nela marcar as
medidas que se tomam. Os nossos princípios de direito político são
essa escala; as nossas medidas são as leis políticas de cada país.
Os nossos elementos serão claros, simples, colhidos directa- 301
mente da natureza das coisas. Formar-se-ão questões que serão
discutidas entre nós e que só convertiremos em princípios quando
estiverem suficientemente resolvidas.
Por exemplo, começando por remontar ao estado da natureza,
examinaremos se os homens nascem escravos ou livres, associados
ou independentes; se se reunem voluntariamente ou apenas quan­
do a isso são levados pela força; se alguma vez a força que os reu­
niu pôde constituir um direito permanente, pelo qual essa forca
anterior obriga, mesmo quando ultrapassada pro outra, de m anei­
ra que, desde a força do rei Nenrod -que, pelo que se diz, lhe sub­
meteu os primeiros povos-todas as outras forças que destruíram
aquela se tenham tornado iníquas e usurpadoras, e que deixe de
haver reis legítimos, a não ser os descendentes de Nenrod ou os que
tenham adquirido esse direito; ou bem se essa primeira forca ten­
do cessado, a forca que se lhe sucede a obriga, por sua vez, e des­
trói a obrigação da outra, de modo a que só se seja obrigado a obe­
decer na medida em que é forçado a isso, e que se fique dispensa­
do de o fazer quando se pode opôr resistência: direito que, ao que
parece, não acrescentaria grande coisa à força, e não passaria de
um jogo de palavras.
Examinaremos se não é possível afirmar que todas as doenças
que temos nos são enviadas por Deus, e se, devido a isso, pode ser
considerado como um crime fazer apelo a um médico.
Também examinaremos se, em boa consciência, somos obriga­
dos a entregar a nossa bolsa a um salteador que no-la pede, num
grande caminho, mesmo se a podemos ocultar da vista dele; por­
que, enfim, a pistola que ele empunha também é um poder.
Se, neste caso, a palavra <<poder>>, significa outra coisa que um
poder legítimo, e, por conseguinte, submetida, às leis de que reti­
ra a sua existência.
Supondo que se rejeita esse direito de força, e que se admite o
da natureza, ou o da autoridade paterna-como princípio das so­
ciedades procuraremos conhecer a medida dessa autoridade, de
quemaneira sefundamenta na natureza, se tem outra razão de ser
além da da utilidade, do filho, da sua fraqueza e do amor natural
que o pai tem por ele; se, a fraqueza do filho terminada, e a sua ra­
zão amadurecida, este não passaria a ser o único juiz natural do
que convém à sua conservação, por conseguinte, senhor de si mes­
mo, e independente de qualquer outro homem, mesmo de seu pai;
pois temos mais a certeza ·do amor do filho por si mesmo que do
amor do pai pelo filho.
Se, depois da morte do pai, os filhos são obrigados a obedecer
ao mais velho de entre eles ou a qualquer outra pessoa que não
tenha por eles o afecto natural de um pai; e se, de raça para raça,
haverá sempre um chefe único, a que toda a família seja obrigada
a obedecer. Em caso afirm ativo, procurar-se-ia saber de que mo­
302 do a autoridade poderia ser partilhada, e com que direito haveria
- para a terra inteira - mais do que um chefe, a governar o gé­
nero humano.
Partindo do princípio de que os povos se tenham formado por
escolha própria, distinguiremos, então, o direito do facto;e deseja­
remos saber se, estanc;lo assim submetida aos seus irmãos, tios ou
parentes - não porque a isso seja obrigada, mas porque assim o
quis - essa espécie de sociedade não fará parte da associação li­
vre e voluntária.
Em seguida, passando ao direito da escravatura, examinare­
mos se um homem se pode legitimamente a,Iienar a outro, sem res­
trições, sem reservas, sem nenhuma espécie de condição; isto é, se
ele pode renunciar à sua pessoa, à sua vida, à sua razão, ao seu eu,
a toda a moralidade nas suas acções, e, em resumo, deixar de exis­
tir antes de morrer, apesar da natureza que o encarrega imedia­
tamente da sua própria conservação, e apesar da sua consciência
e da sua razão que lhe prescrevem o que deve fazer e aquilo de que
se deve abster.
Supondo que haja alguma reserva, alguma restrição, no acto
da escravatura, discutiremos para saber se esse acto não passa,
então,a ser um verdadeiro contrato, no qual cada contraente, não
tendo, nessa qualidade, nenhum superior comum1, continua a ser
o seu próprio juiz, para julgar das condições do contrato, e, se as­
sim for, desejaremos saber se ambos estão livres de o contrair, e se
algum deles terá a possibilidade de o quebrar, se se estimar
lesado.
Porque, se um escravo não se pode alienar ao seu senhor, sem
reserva, como pode um povo alienar-se, sem reserva, ao seu che­
fe? E, se o escravó continua a ter o direito de ajuizar se o contra­
to é respeitado pelo seu senhor, porque é que o povo não pode ajui­
zar da maneira como o contrato é respeitado pelo seu chefe?·
Forçados, pois, a retroceder, e considerando o sentido dessa pa­
lavra colectiva de «povo••, procuraremos saber se, para o estabele­
cer, não será preciso um contrato - pelo menos tácito - anterior
àquele que supomos.
Pois que, antes de se eleger um rei, o povo é um povo; e o que
foi que o fez povo se não o contrato social? O contrato social é, pois,
a bse de toda a sociedade civil, e é na natureza desse acto que se de­
ve procurar a da sociedade que ele forma.
Procuraremos saber qual é o teor desse contrato, e se ele não po­
de ser enunciado, mais ou menos, por esta fórmula: «Cada um de
nós põe em comum os seus bens, a sua pessoa, a sua vida, e toda

1
Se tivessem algum árbitro, esse superior comum só poderia ser o
soberano; e, então, o direito de escravatura, fundamentado no direito do
soberano, não seria o princípio dele. 303
a sua força, sob a suprema direcção da vontade geral, e considera­
remos cada membro como parte indivisível do todo>>.
Suposto isto, e para definir os termos de que precisamos, nota­
remos que em vez da pessoa particular de cada contratante, esse
acto de associação produz um corpo moral e colectivo, composto por
tantos membros quantas as vozes que a assembleia tem . Geral­
mente, essa pessoa pública adquire o nome de corpo político, a que
os seus membros chamam: Estado- quando é passivo; soberano
- quando é activo;poder-quando comparado com os seus seme­
lhantes. Quantos aos seus membros; quando colectivamente, são
designados pela palavra povo; por cidadãos, quando considerados
como membros da cidade; ou participantes da autoridade sob era­
na, e sujeitos, como submetidos à mesma autoridade.
Notamos que esse acto de associação implica um compromisso
recíproco, entre o público e os particulares, e que cada indivíduo,
contratando por assim dizer consigo mesmo, se encontra compro­
metido sob um duplo aspecto, a saber, como membro do soberano
em relação aos particulares, e como membro do Estado, em relação
ao soberano.
Ainda notaremos que, como ninguém é obrigado a respeitar os
compromissos que só tomou consigo mesmo, a deliberação pública
que pode obrigar todos os sujeitos para com o soberano-devido
aos vários aspectos sob os quais cada um é encarado- não pode
obrigar o Estado para consigo mesmo. Daí se depreende que não
há, nem pode h aver, outra lei fundamental propriamente dita que
não seja o pacto social. O que não significa que o corpo político não
possa, em determinados casos, comprometer-se em relação a ou­
trém; pois que, em relação ao estrangeiro, considera-se como um
ser simples, um indivíduo.
As duas partes contraentes, a saber, cada particular e o públi­
co, não tendo nenhum superior comum que possa ser árbitrio das
suas desavenças, examinaremos se cada uma delas tem o direito
de quebrar o contrato quando lhe convém, isto é, o direito de o de­
nunciar unilateralmente, quando se crê lesada.
Para esclarecer esta questão, observamos que, segundo o pac­
to social e como o soberano só pode agir por vontades comuns e ge­
rais, os seus actos também só podem ter objectos gerais e comuns;
daí se segue que um particular não poderia ser lesado directamen­
te pelo soberano sem que todos eles o fossem, o que não é possível,
pois que seria querer fazer-se mal a si mesmo. Assim, o contrato
social nunca tem necessidade de outro garante que não seja a for­
ça pública, porque a lesão nunca pode vir se não dos particulares;
e, nesse caso, eles não ficam livres do seu compromisso, mas puni­
dos por o terem violado.
Para bem resolver todas as questões semelhantes a estas, te­
remos a precaução de nos lembrarmos, todos os dias, de que o pac-
304 to social é de uma natureza particular e própria só dele, porque o
povo só conta consigo mesmo, isto é, o povo em corpo como sobera­
no, com os particulares como sujeitos: condição essa que constitui
todo o artifício e o jogo do aparelho político, e que é a única que
torna legítimos, razoáveis e sem perigo, os compromissos que, sem
isso, seriam absurdos, tirânicos e ficariam sujeitos aos maiores
abusos.
Como os particulares só estão submetidos ao soberano, e, como
a autoridade soberana outra coisa não é que a vontade geral, ve­
remos como cada homem, obedecendo ao soberano, só se obedece
a si mesmo, e como se é mais livre no pacto social que no estado de
natureza.
Depois de termos feito a comparação entre a liberdade natural
e a liberdade civil, quanto às pessoas, faremos, quanto aos bens, a
do direito de propriedade com o direito de soberania, a do domínio
particular com o domínio eminente. Se é sobre o direito de proprie­
dade que se baseia a autoridade soberana, esse direito é o que ela
mais deve respeitar;para ela, é inviolável e sagrado, na medida em
que continua a ser um direito particular e individual. A partir do
momento em que é considerado como comum a todos os cidadãos,
fica submetido à vontade geral, e essa vontade pode destrui-lo. As­
sim, o soberano não tem o direito de tocar no bem de um particu­
lar, nem no de vários; mas pode, legitimamente, apoderar-se do
bem de todos-como se fez em Esparta, no tempo de Licurgo, en ­
quanto que a abolição das dívidas, feita por Solon, foi um acto ile­
gítimo.
Pois que só a vontade geral obriga os sujeitos, procuraremos
ver como se manifesta essa vontade, a que sinais se pode ter a cer­
teza de a reconhecer, o que é uma lei, e quais são os verdadeiros ca­
racteres da lei. Este assunto é absolutamente novo: ainda é preci­
so estabelecer a definição da lei.
Desde o momento em que o povo considera, em particular, um
ou vários dos seus membros, fica dividido. Forma-se, entre o todo
e a sua parte, uma relação constituída por dois seres separados, de
que a parte éc um, e em que o todo-menos essa parte-é outro.
Mas o todo menos uma parte não é o todo; enquanto essa relação
existir, deixa de haver um todo, para h aver duas partes desiguais.
Pelo contrário, quando todo o povo estatui sobre todo o povo, só
se considera a si mesmo, e se se formar uma relação, será a do ob­
jecto inteiro sob um ponto de vista para o objecto inteiro sob outro
ponto de vista, sem nenhuma divisão. Então, o objecto sobre o qual
se estatu i é geral, e a vontade que estatui também é geral. Exami­
nemos, para ver se haverá outra espécie de acto que possa mere­
cer o nome de lei_
Se o soberano só pode falar pelas leis, e se a lei apenas pode ter
um objecto geral e igualmente relativo a todos os membros do Es­
tado, segue-se que o soberano nunca tem o direito de estatuir so-
bre um objecto particular; e como, para a conservação do Estado, 305

L. B. 524-20
importa que também se decida das coisas particulares, procurare­
mos saber como isso pode ser feito.
Os actos do soberano só podem ser actos de vontade geral, ou
seja, leis;em seguida, é preciso que hajam actos determinantes, ac­
tos de força ou de governo, para a observação dessas mesmas leis;
e esses actos, pelo contrário, só podem ter objectos particulares.
Assim, o acto pelo qual o soberano estatui que se elegerá ufm che­
fe é uma lei, e o acto pelo qual se elege esse chefe em observação da
lei, é apenas um acto de governo.
Eis, pois, um terceiro aspecto sob o qual o povo reunido pode ser
considerado, ou como magistrado ou como executor da lei que ele
decretou, como soberano1•
Examinaremos se é possível que o povo se despoje do seu direi­
to de soberania para com ele revestir um homem ou mais;pois que
como o acto da eleição não é uma lei, e como, nesse acto, o povo não
é soberano, não se im agina como seria possível que, nesse caso, ele
pudesse transferir um direito que nãotem.
Como a essência da soberania consiste na vontade geral, tam­
bém nãose vê como é possível garantir que uma vontade particu­
lar esteja sempre de acordo com essa vontade geral. E mui to mais
presumível que ela lhe seja sempre oposta; porque o interesse pri­
vado tende sempre para as preferências, e o interesse público pa­
ra a igualdade; e, mesmo que esse acordo fosse possível, b astaria
que não fosse necessário, nem in destrutível, para que o direito so­
berano não pudesse resultar dele.
Procuraremos saber se, sem violar o pacto social, os chefes do
povo- seja sob que nome tenham sido eleitos- alguma vez po­
dem ser outra coisa que os oficiais do povo, aos quais este ordena
quefaçam executar as leis; se esses chefes não lhe devem prestar
contas da sua administração, e se não estão submetidos, eles pró­
prios, às leis que estão encarregados de fazer respeitar.
Se o povo não puder alienar o seu direito supremo, poderá con­
fiá-lo a outrém, durante um certo tempo? Se não se puder dar um
governante, poderá atribuir-se representantes? Esta questão é
importante e merece ser discutida.
Se o povo não puder tem nem soberano nem representantes,
examinemos de que m aneira ele poderá decretar as suas prórpias
leis. Se deverá ter muitas leis;se as deverá modificar com frequên­
cia; se é fácil, para um grande povo ser o seu próprio legislador;

1 Estas questões e proposições foram, na sua maioria, extraídas do


Traité du Contrat social (Tratado do Contrato Social), que foi extraído de
um trabalho mais completo, empreendido sem consultar as minhas forças,
e abandonado há muito tempo. O pequeno tratado que dele extraí, e cujo
306 sumário está aqui expresso, será publicado à parte.
Se o povo romano não era um grande povo;
Se é conveniente que haja grandes povos.

Das precedentes considerações, segue-se que, n.o E stado, há


um corpo intermediário entre os sujeitos e o soberano; e que esse
corpo in terme;diário-formado por um ou mais membros-está
encarregado da administração pública, da execução das leis, e da
conservação da liberdade civil e política.
Os membros desse corpo chamam-se magistrados ou reis, isto
é, governadores. O corpo inteiro, considerado pelos homens que o
compõem, chama-se príncipe, e, quando considerado pela sua
acção, chama-se governo.
Se considerarmos a acção do corpo inteiro agindo sobre si mes­
mo, isto é, a relação do todo para com o todo, ou do soberano p ara
com o Estado, poderemos comparar essa relação com o que há en­
tre os extremos de uma proporção continua, cujo governo represen­
ta o meio termo. O m aigstrado recebe do soberano as ordens que
dá ao povo; e, tudo compensado, o seu produto ou a sua potência
eleva-se ao mesmo grau que o produto ou a potência dos cidadãos
que, por um lado, são sujeitas, e que, por outro, são soberanos. Não
se poderia alterar nenhum destes três termos sem destruir a pro­
porção. Se o soberano quer governar, ou se o príncipe quer legislar,
ou se o sujeito se recusa a obedecer, a desordem sucede-se à ordem,
e o Estado, dissolvido, cai no despotismo ou na anarquia.
Suponhamos que o Estado se compõe de dez mil cidadãos. O so­
berano só pode ser considerado colectivamente e em corpo; masca­
da particular tem, como sujeito, uma existência individual e inde­
pendente. Assim, o soberano está para o sujeito como dez mil pa­
ra um; quer dizer que cada membro do Estado só tem, por sua par­
te, a décima-milésima parte· da autoridade governante, embora
lhe esteja completamente submetido. Se o povo se compõe de cem
mil homens, o estado dos sujeitos não se modifica e cada um deles
tem sempre todo o império das leis, enquanto que o seusufrágio, re­
duzido a um centésimo-milésimo, tem dez vezes menos influência
na sua redação. Assim, embora o sujeito continue a ser um, a sua
dependência em relação ao soberano aumenta na proporção do nú­
mero dos cidadãos. Daí se segue que quanto maior se tornar o es­
tado, mais a liberdade dos cidadãos diminui.
Ora, quanto menos as vontades particulares corresponderem
à vontade geral-isto é, quanto menos os costumes corresponde­
rem às leis-maior se deverá tornar a força repressora. Por outro
lado, como a grandeza do Estado dá oas depositários da autorida­
de pública mais tentações e mais meios para abusar delas, quan­
to mais forca tiver o governo, para conter o povo, mais força deve­
rá o soberano ter, por seu lado, a fim de conter o governo.
Desta dupla relação, segue-se que a proporção continua que há
entre a força do soberano, a do príncipe e a do povo não é uma ideia 307
arbitrária, mas uma consequência da natureza do Estado. Ainda
se segue que um dos extremos, a saber, o povo, sendo fixo, todas as
vezes que a razão dupla aumenta ou diminui, a razão simples au­
menta ou diminue por sua vez; o que não se consegue sem que o
meio termo também mude, tantas vezes quantas as que essas ra­
zões mudaram.
De onde podemos deduzir esta consequência: não existe nenhu­
ma constituição de governo que seja única e absoluta; mas devem
haver tantos governos de natureza diferente quantos os Estados
diferentes em grandeza.
Se, quanto mais numeroso é o povo menosos costumes estão de
acordo com as leis, examinaremos se, por uma relação bastante
evidente, não se poderá também dizer que quanto m ais numerosos
são os magistrados, mais fraco é o governo.
Para esclarecer esta máxima, distinguiremos, na pessoa de ca­
da magistrado, três vontades essencialmente diferentes: em pri­
meiro lugar, a vontade própria do indivíduo- que só tende para
a sua vantagem particular;em segundo lugar, a vontade comum
do magistrado, que diz unicamente respeito ao proveito do prínci­
pe - vontade a que poderemos ch amar «Vontade de corpo», que é
geral em relação ao governo e particular em rleação ao Estado de
que o governo faz parte; em terceiro lugar, a vontade do povo oua
vontade soberana-que é geral, tanto em relação ao Estado con­
siderado como o todo, como em relação ao governo, considerado co­
mo uma parte do todo. Numa legislação perfeita, a vontade parti­
cular e individual deve ser quase nula; a vontade de corpo, próprio
ao governo, m uito subordinada; e, por conseguinte, a vontade ge­
ral e soberana é a regra de todas as outras. Pelo contrário, segun­
do a ordem natural, essas diversas vontades tornam-se mais ac­
tivas, à medida que se concentram; a vontade geral é sempre a
m ais fraca, a vontade de corpo vem em segundo lugar, e a vonta­
de particular é preferida a tudo; de modo que cada um é, em pri­
meiro lugar, si mesmo, em segundo, magistrado, e, só no fim cida­
dão: graduação que é directamente oposta à que exige a ordem so­
cial.
Posto isto, suporemos o governo nas mãos de um único homem .
Eis a vontade particular e a vontade de corpo perfeitamente reu­
nidas, e, por conseguinte, esta no grau de intensidade m ais eleva­
do que pode atingir. Ora, como é desse grau que depende a utiliza­
ção da força, e como a forca absoluta do governo-sendo sempre
a do povo- não varia, segue-se que o mais activo dos governos é
o de um só.
Façamos o contrário e reunamos o governo com a autoridade
suprema, façamos do soberano príncipe, e, de cada cidadão, um
magistrado: neste caso, a vontade de copro, perfeitamente confun­
dida com a vontade geral, nãoserá m ais activa que ela, e deixará
308 a vontade particular em toda a sua força. Assim, o governo, sem-
pre com a mesma força absoluta, estará no seu minimum de acti­
vidade.
Estas regras são incontestáveis, e outras considerações servem
para as confirmar. Vê-se, por exemplo, que os magistrados são
mais activos no respectivo corpo que o cidadão no seu, e que, por
conseguinte, a vontade particular tem mui to mais influência. Por­
que cada magistrado está quase sempre encarregado de alguma
função particular do governo, contanto que cada cidadão, conside­
rado separadamente, não exerce nenhuma função da soberania.
Aliás, quanto mais o Estado se expande mais a sua força real au­
menta, embora esse aumento não se produza em proporção à sua
extensão: mas, se o Estado continuar a ser o mesmo, os m agistra­
dos bem se podem multiplicar, porque o governo não adquire uma
m aior forca real, por ser depositário da força do Estado, que supo­
mos sempre igual. Assim, através desta pluralidade, a actividade
do governo dominui sem que a sua força possa aumentar.
Depois de termos visto que o governo se relaxa, à medida que
os magistrados se multiplicam, e que, quanto mais numeroso é o
povo, mais a força repressora do governo tem de aumentar, pode­
mos concluir quea relação entre os magistrados e o governo deve
ser inversa à que existe entre os sujeitos e o soberano ; isto é, que
quanto mais o Estado se engrandece, mais o governo se deve res­
tringir, de tal modo que o número de chefes diminua proporcional­
mente ao aumento da população.
Para, a seguir, se fixar essa diversidade de formas sob denomi­
nações mais precisas, notaremos, em primeiro lugar, que o sobera­
no pode comekter o depósito do governo a todo o povo ou à maioria
dele, de modo a que hajam mais cidadãos m agistrados que cida­
dãos sim pies particulares. Dá-se o nome de democracia a essa for­
m ar de governo.
Ou bem ele pode restringir o governo entregando as suas ré­
deas a um número menor, de modo a que hajam mais cidadãos sim­
ples que m agistrados; e estaform a de governo tem o nome dearis­
tocracia.
Enfim, ele pode concentrar todo o governo entre as mãos de um
magistrado único. Essa terceira forma é a mais comum, e chama­
-se monarquia, ou governo real.
Notaremos que todas essas formas - ou, pelo menos, as duas
primeiras- são susceptíveis de mais e de menos, e têm também
uma grande latitude. Porque a democracia pode abranger todo o
povo, ou limitar-se à metade dele. Por seu lado, a aristocracia po­
de, da metade do povo, limitar-se indeterminadamente, até aos
números mais pequenos.A própria realeza admite, por vezes, uma
partilh a - seja entre o pai e o filho, entre dois irmãos, ou de qual­
quer outra maneira. Em Esparta, h avia sempre dois reis, e, no im­
pério romano, chegámos a ver oito imperadores simultaneamente,
sem que se pudesse dizer que o império estava dividido. Há um 309
ponto em que cada forma de governo se confunde com a seguinte·
e, sob três denominações específicas, o governo pode realment�
apresentar-se sob tantas formas quantos os cidadãos que o Esta­
do tiver.
Ainda há mais: como cada um desses governos tem a possibi­
.
hdade de, sob certos aspectos, se subdividir em diversas partes
umas administradas de uma maneira e outras de outra dessa �
três formas combinadas poderá resultar uma multiplicid ade de
formas mistas, cada uma das quais será multiplicável por todas as
formas simples.
Em todas as épocas, discutiu-se muito sobre a melhor forma de
governo, sem considerar que cada uma é a melhor em determina­
dos casos, e a pior, noutros. Na nossa opinião, se, nos diferentes Es­
tados, o número dos magistrados' deve ser inverso ao dos cidadãos,
achamos que, em geral, o governo democrático convém aos peque­
nos J_!;stados, a aristocracia aos médios, e a monarquia aos grandes.
E pela continuação destes estudos que conseguiremos conhe­
cer quais os deveres e os direitos dos cidadãos, e se estes podem ser
separados, uns dos outros; o que é a pátria, em que ela consiste pre­
cisamente, e através de que indícios cada um pode saber se tem , ou
não, uma pátria.
Após assim termos analisado, uma por uma, cada espécie de so­
ciedade civil, compará-las-emos para ver as diversas analogias
que há entre elas: umas grandes, outras pequenas; umas fortes,
outras ligeiras; atacando-se, ofendendo-se, entre-destruindo-se;
e, nessa acção e reacção contínuas, fazendo mais infelizes e custan­
do a vida a mais homens que se todos eles tivessem conservado a
sua primitiva liberdade. Examinaremos se não se fez de mais ou
de menos, na instituição social; se os indivíduos, quando submeti­
dos às leis e aos homens, enquanto que as sociedades conservam
entre elas a independência da natureza, não ficam expostos aos de­
feitos dos dois Estados, sem deles receberem as vantagens, e se não
valeria mais que não houvesse nenhuma sociedade civil no mun­
do, a que hajam várias. Não será esse Estado misto que participa
em ambos e não assegura nem um nem o outro, per quem neutrum
licet nec tanquam in helio p aratum esse, nec tanquam in pace se­
curum? Não será essa associação parcial e imperfeita que produz
a tirania e a guerra? E a tirania e a guerra não serão os m aiores fla­
gelos da humanidade?
Examinaremos, por fim, a espécie de remédios que se procura­
ram para esses inconvenientes, através das ligas e confederações,
e que, deixando cada Estado ser seu senhor no interior, o armam

1
Recordar-se-ão que, aqui, só pretendo referir-me a magistrados
supremos ou chefes de nação, os outros sendo apenas seus substitutos em
310 tal ou tal parte.
exteriormente contra todos os agressores injustos. Procuraremos
saber como se pode estabelecer uma boa associação federativa, o
que a pode tornar durável, e até que ponto é possível estender o di­
reito da confederação sem prejudicar o da soberania.
O abade de Sain-Pierre propusera uma associação de todos os
Estados da Europa, para conservar entre eles uma paz perpétua.
Essa associação seria praticável? E, supondo que fosse estabeleci­
da, seria de presumir que durasse1? Estes estudos conduzem-nos
directamente a todas as questões de direito público que podem
completar o esclarecimento das do direito político.
Enfim, exporemos os verdadeiros princípios do direito da guer­
ra, e examinaremos porquê que Grócio e os outros só nos deram fal­
sos motivos.
Não me sentiria surpreendido se, no meio de todos os nossos ra­
ciocínios, o meu jovem- que tem bom senso-me dissesse, inter­
rompendo-me: «Dir-se-ia que construímos o nosso edifício com
m adeira, e não com homen§, de tal modo alinhamos, exactamen­
te, cada peca com a régua!» E verdade, meu amigo; mas pensai que
o direito não se verga às paixões dos homens, e que, entre nós, se
tratava de estabelecer os verdadeiros princípios do direito políti­
co. Agora, que as nossas fundações estão assentes, vinde examinar
o que os homens construíram por cima delas, e vereis belas coisas!
Então, convenço-o a ler Telémaco e a seguir o seu caminho; pro­
curamos a feliz Salente e o bom ldomeneu, que se tornou sage à
custa de infelicidades. Prosseguindo, encontramos muito de Pro­
tesilau e nada de Filocles. Adrasto, também se encontra. Mas dei­
xemos os leitores im aginar as nossas viagens, ou fazê-las por nós,
com um Telémaco na mão; e não lhes sugiramos aplicações afliti­
vas que o próprio autor evitar ou faz, mesmo contra sua vontade.
De resto, como Emílio não é rei e eu não sou deus, não sofremos
muito por não podermos imitar Telémaco e Mentor, no bem que
eles faziam aos homens: ninguém, mais bem do que nós, se sabe
conservar no seu lugar, e menos deseja sair dele. Sabemos que a
todos é atribuída a mesma tarefa; que aquele que ama o bem com
todo o seu coração, e o pratica com todo o seu poder, a desempe­
nhou. Sabemos que o Telémaco e Mentor são quimeras. Emílio não
viaja como homem ocioso, e pratica mais bem que se fosse prínci­
pe. Se fôssemos reis, não seríamos mais benfazejos. Se fossemos
reis e benfazejos, praticaríamos, se o saber, mil males reais, por
um bem aparente que creríamos fazer. Se fossemos reis e sages, o
primeiro bem que desejaríamos fazer, a nós próprios e aos outros,
seria abdicar da realeza e voltar a ser o que somos.
Já expliquei o que toma as viajens infrutosas para toda a gen-
te. O que ainda as tornam mais infrutosas para os jovens, é a ma­
neira como lhas levam a fazer. Os governantes, mais interessados
com a sua distracção que com a sua instrução, transportam-nos de
cidade para cidade, de palácio para palácio, de círculo para círcu- 311
lo; ou, quando são sábios e homens de letras, obrigam-nos a cor­
rer de biblioteca para biblioteca, a visitar os antiquários, a admi­
rar velhos m onumentos, a transcrever antigas inscrições. Em ca­
da país, interessam-se por um século diferente: é como se se inte­
ressassem por um país diferente; de m aneira que, depois de, com
grandes despesas, terem percorrido a Europa, entregues às frivo­
lidades ou ao aborrecimento, regressam sem nada terem visto do
que lhes poderia ter interessado, nem nada aprendido que lhes
possa ser útil.
Todas as capitais se parecem , todos os povos se encontram mis­
turados dentro delas, todos os costumes se confundem, dentro dos
seus muros. Para mim, Paris e Londres são a mesma cidade. Os
seus habitantes têm alguns preconceitos diferentes, mas não me­
nos que os outros, e todas as suas máximas práticas são as mes­
mas. Sabe-se que espécies de homens se devem reunir nas cortes;
sabe-se que costumes a aglomeração do povo e a desigualdade das
fortunas deve produzir, por toda a parte. Quando me falam de uma
cidade em que vivem cem mil almas, sei, de antemão, de que ma­
neira se lá vive. Além disso, o que poderia vir a sabe sobre os luga­
res, pão merece a pena qu eeu vá até lá, para o ficar a conhecer.
E nas províncias recuadas, onde há menos movimento, menos
comércio, onde os estrangeiros aparecem mais raramente, cujos
habitantes se deslocam menos, mudando menos de fortuna e de es­
tado, que se deve ir estudar o génio e os costumes de uma nação.
Olhai, passando pela capital; mas ide observar o país ao longe. Os
Franceses não estão em Paris, estão na Turena; os Ingleses são
mais Ingleses em Mércia que em Long.res, e os Espanhóis mais Es­
panhóis na Galiza que em Madrid. E a essas grandes distâncias
que um povo se caracteriza e se mostra tal como é, sem misturas;
é aí que os bons e os maus efeitos do goverpo se fazem mais bem
sentir, como na extremidade de um raio maior a medida dos arcos
é mais exacta.
As relações necessárias entre os costumes e o governo foram
tão bem espostas no livro L'Esprit des Lois (0 Espírito das Leis),
que o que de mais bem se pode fazer é recorrer a essa obra para as
estudar. Mas, em geral, há duas regras fáceis e simples, para ajui­
zar da bondade relativa dos governos. Uma é observar a população:
em todos os países que se despovoam, o Estado pende para a sua
ruína; e o país que se povoa mais, mesmo que seja o mais pobre, é
infalivelmente o mais bem governado1•
Mas, para isso, é necessário que essa popul ação seja um efeito
natural do governo e dos costumes; porque, se ela se tiver feito por
colónias, ou por outras vias acidentais e passageiras, então estas
provariam o mal com o remédio. Quando Augusto decretou as leis

1
312 Só conheço uma excepção a esta regra, é a China.
contra q celibato, essas leis já mostravam o declínio do império ro­
mano. E preciso que a bondade do governo leve os cidadãos a ca­
sar-se, e que não sejam as leis a obrigá-los a isso;não se deve con­
siderar o que é obtido pela força -porque a lei que combate a cons­
tituição elude-se e torna-se vã-mas o que se faz pela influência
dos costumes e pela inclinação natural do governo; porque esses
meios sãoos únicos que têm um efeito constante.Apolítica do aba­
de de Saint-Pierre era sempre de procurar um pequeno remédio
para cada mal particular, em vez de remontar à sua origem comum
e ver que só se poderiam curar se o fossem todos ao mesmo tempo.
Não significa que se deve tratar separadamente cada úlcera que
aparece no corpo do doente;mas é preciso depurar a m assa do san­
gue que as produz. Diz-se que, na Inglaterra, há prémios para a
agricultura;nãopretendo saber m ais: isso sóme prova queelanão
reluzirá durante ainda m uito tempo.
A segunda m arca da relativa bondade do governo e das leis
também se depreende da população, mas de outra maneira, isto é,
da maneira como ela está distribuída e não da sua quantidade.
Dois Estados igualmente grandes e com o mesmo número de ho­
mens podem ter forças muito desiguais;e o mais poseroso dos dois
é sempre aquele cujos habitantes estão maisuniformemente espa­
lhados pelo território; aquele que não tem cidades, tão grandes e
que, por conseguinte, menos brilha, vencerá sempre o outro. São
as grandes cidades que arruínam um Estado e fazem a sua fraque­
za: a riqueza que produzem é uma riqueza aparente e ilusória; é·
muito difnheiro e pouco efeito. Diz-se que, para o rei da França, a
cidade de Paris vale tanto como uma província; mas creio que ela
lhe custa várias; que é sob mais de um aspecto que Paris é alimen­
tada pelas províncias, e que a maior parte dos rendimentos destas
de verte nessa cidade e nela permaneçe, sem nunca regressarem
ao povo nem chegarem às mãos do rei. E inconcebível que, neste sé­
culo de calculistas, não haja nenhum que saiba ver que a França
seria muito m ais poderosa se Paris fosse destruída. Não só o povo
mal distribuído não é vantajoso para o Estado, como ainda é m ais
ruinoso para este que o próprio despovoamento do p aís, pois que a
despovoação só dá um produto nulo, enquanto que o consumo mal
compreendido dá um produto negativo. Quando ouço um Francês
e um Inglês-muito orgulhosos da grandeza das suas capitais­
discutir para saber se é Paris ou Londres que tem m ais habitan­
tes, para mim, é como se discutissem sobre qual dos dois povos tem
a honra de estar a ser mais mal governado.
Estudai um povo, no exterior das suas grandes cidades: só as­
sim o podereis conhecer. Não significa nada, o ver a forma aparen­
te de um governo, mascarada pelo aparelho da administração e pe­
la linguagem dos administradores, se não se estudar também a
sua natreza, através dos efeitos que ele produz no povo e em todos
os graus da administração. Como toda a diferença se encontra dis- 313
tribuída entre esses diferentes graus, só quandoos conhecemosto­
dos a podemos discernir. Num país desses, é pelas manobras dos
subdelegados que se começa a perceber o espírito do ministério;
noutro, é preciso ver como se elegem os membros do parlamento,
para ajuizar se realmente a nação é livre; sej a em que país for, é
impossível que, quem não tenha visto m ais do que as cidades, co­
nheça o governo, dado que o espírito nunca é o mesmo para a cida­
de e para o campo. Ora, é o campo que faz o país, e é com o povo do
campo que se faz a nação. .
Esse estudo dos diferentes povos, efectuado nas suas provín­
cias afastadas e na simplicidade do seu génio original, autoriza
uma observação geral muito favorável para a minha epígrafe, e
muito consoladora para o coração humano: é que todas as nações,
quando estudadas deste modo, parecem valer muito mais; quan­
to m ais se aproximam da natureza, mais a bondade domin a no seu
carácter; só quando se encerram nas cidades, qua·.1do se alteram
à custa de muita cultura, que elas se depravam, e transformam,
em vícios agradáveis e perniciosos, alguns defeitos mais grosseiros
que m alfazejos.
Desta observação, resulta uma nova vantagem para a manei­
ra de viajar que eu proponho, e é que os jovens, detendo-se duran­
te pouco tempo nas grandes cidades onde reina uma horrível cor­
rupção, ficam menos espostos a contraí-la, e conservam, entre os
homens mais simples, e nas sociedades menos numerosoas, um en­
tendimento mais segro, um gosto mais são, costumes mais hones­
tos. Mas, de qualquer modo, nãotenho de recear esse contágio pa­
ra o meu Emílio; porque ele possui tudo de quanto precisa para se
precaver dele. De entre todas as precauções que para isso tomei,
considero miuto valioso o afecto que ele conserva no seu coração.
Já não se sabe até que ponto o verd adeiro amor pode influir nas
inclinações dos jovens, porque-não o conhecimento mais bem do
que eles- os que as governam desviam-nos dele. Por c�nseguin­
te, é preciso que um jovem ame ou que fique debochado. E fácil en­
ganar, com as aparências. Citar-me-ão mil jovens que- pelo que
dizem - vivem muito castamente, sem amor; mas que me citem
um homem feito, um verdadeiro homem, que afirme ter passado
assim toda a sua juventude, e que sej a de boa-fé. Em todas as vir­
tudes, em todos os deveres, só se procura a aparência; eu, eu pro­
curo a realidade, e estou muito enganado se, para a conseguir, há
outros meios além dos que exponho.
A ideia de conseguir que Emílio se apaixonasse antes de o le­
var a viajar não é da minha invenção. Eis o que ma sugeriu.
Encontrava-me em Veneza, em casa do governante de um jo­
vem Inglês. Estávamos no Inverno e instalámo-nos em frente da
lareira. O governante recebe as suas cartas pelo correio. Lê-as, e,
em seguida, volta a ler uma delas, mas em voz alta, ao seu pupi­
314 lo. Estava escrita em inglês: não compreendi nada; mas, durante
a leitura, vejo o jovem rasgar uns muito belos punhos de renda que
trazia, e lançá-los para o lume, um após outro, o m ais discreta­
mente que pôde, a fim de que não nos apercebessem os disso. Sur­
preendido com esse capricho, olho para ele e creio ver-lhe uma
grande emoção no rosto; mas os sinais exteriores das paixões, em­
hora muito semelhantes em todos os homens, têm diferenças na­
cionais sobre as quais é fácil enganarmo-nos. Os povos têm lingua­
gens diversas sobre os rostos, assim como na boca. Espero pelo fim
da leitura, e, depois, mostrando ao governante os punhos nus do
seu pupilo- que, no entanto, ele escondia o mais bem que podia
- disse-lhe: «Pode-se saber o que isso significa?>>
O governante, vendo o que se tinha passado, pôs-se a rir e abra­
çou o seu pupilo com um ar de satisfação; e.., após ter obtido o seu
consentimento, deu-me a explicação que eu desejava.
«Os punhos», disse-me ele, «que M. John acaba de rasgar são
um presente que uma dama desta cidade lhe fez, não há muito tem­
po. Ora sabei que M. John está prometido, no seu país, a uma jovem
menina, pela qual experimenta um grande amor, e que ainda me­
rece mais. Esta carta foi-me escrita pela mãe da sua amada, e vou­
-vos traduzir a passagem que provocou o estrago de que fostes tes­
temunha.

«Lucy não larga os punhos de Lorde John. Miss Betty Roldham,


que ontem veio passar a tarde com ela, quis, à viva força, ajudá-la
a fazer a renda. Esta manhã, tendo sabido que Lucy se levantara
m ais cedo que de costume, desejei saber o que ela estava a fazer,
e encontrei-a ocupada a desmanchar tudo quanto Miss Bettyfize­
ra ontem . Não quer que, no seu presente, haja um único ponto da­
do por outra mão que não a sua.»

Quando, um momento depois, Jhon nos deixou sós, enquanto


ia pôr outros punhos, e eu disse ao seu governante: «Tendes um pu­
pilo com um excelente natural; mas, dizei-me a verdade: a carta
da mãe de Miss Lucy não foi combinada? Não foi um expediente
vosso, contra a dama que lhe ofereceu os punhos?» «Não», disse ele,
«tudo isto é verdade; não dediquei assim tanta arte aos meus cui­
d ados; dediquei-lhes simplicidade, zelo, e Deus abençoou o meu
trabalho».
A atitude daquele jovem não se desvaneceu da minha memó­
ria: não era de molde a não produzir efeito na cabeça de um sonha­
dorcomoeu.
Chegou o momento de terminar. Levemos Lorde John a miss
Lucy, isto é, Emílio a Sophie. Ele vai com um coração menos ten­
ro que à partida, com um espírito mais esclarecido, e leva para o
seu país a vantagem de ter conhecido os governos através dos seus 315
vícios, e os povos através de todas as suas virtudes. Cheguei mes­
mo a conseguir que, em cada nação que visitámos, se ligasse com
algum homem de mérito, através de um tratado de hospitalidade
à maneira dos antigos, e não me sentiria contrariado que ele cul­
tivasse essas relações com um comércio de cartas. Além de que is­
so lhe pode vir a ser útil, e de que é sempre agradável ter corres­
pondências nos países afastados, é uma excelente precaução con­
tra o império dos preconceitos n acionais, que, atacando-nos du­
rante toda a nossa vida, mais cedo ou mais tarde acabam por ad­
quirir algum domínio sobre nós. Para lhes retirar essa influência,
nada é mais conveniente que o comércio desinteressado entre pes­
soas sensatas que se estimam, e que, não tendo esses preconceitos
e combatendo-os com os seus, nos fornecem os meios para opor
constai) temente, uns contra os outros, e de, assim, nos proteger de
todos. E muito diferente comerciar com estrangeiros que vivem no
nosso país e com os que vivem nos seus. No primeiro caso, eles mos­
tram sempre, pelo país em que vivem, uma deferência que os leva
a dissimular o que pensam dele, ou que os leva a pensar dele favo­
ravelmente, enquanto nele vivem; quando regressam aos seus, cri­
ticam-no e têm razão. Gostaria muito que o estrangeiro que eu
possa vir a consultar tivesse visto o meu pais; mas só lhe pergun­
taria o que pensa dele quando o encontrasse no seu.

Depois de termos passado quase dois anos a percorrer alguns


dos grandes Estados da Europa e um muito maior número de pe­
quenos; depois de termos aprendido as duas ou três principias lín­
guas que são utilizadas; depois de nesses países termos visto o que
verdadeiramente têm de curioso, tanto em HistóriaN aturai, como
em governos, como em artes ou em homens, Emílio, devorado de
impaciência, avisa-me de que o nosso prazo está a findar. Então,
digo-lhe: «Pois bem, meu amigo! Recordai-vos do principal objec­
to das nossas viagens; vistes, observastes: qual é, finalmente, o re­
sultado das vossas observações? Que conclusões tirastes?» Ou eu
me enganei muito com o meu método, ou ele deverá responder-me,
mais ou menos assim:

«Que conclusões tirei? Que devo permanecer tal como me fizes­


tes ser, e não acrescentar voluntariamente nenhum outro grilhão
àqueleque a naturez a e asleis me impuseram. Quantomais obser­
vo a obra dos homens nas suas instituições, mais me apercebo de
que, pretendendo ser independentes, se fazem escravos, e de que
dissipam a sua própria liberdade com vãos esforços para a assegu­
rarem. Para não ceder à impetuosidade das coisas, criam mil vín­
culos; depois, quando querem dar um passo, sentem-se impedidos
316 de o fazer, e ficam surpreendidos por se verem apegados a tudo. Pa-
rece-me que, para nos tornarmos livres, não precisamos de fazer
nenhum esforço; basta não querermos deixar de o ser. Fostes vós,
ó meu mestre, que me fizestes livre, ensinando-me a ceder à ne­
cessidade. Que ela venha quando lhe aprouver, deixar-me-ei le­
var de boa vontade; e como não a quero combater, não me apego a
nada que me possa reter. Durante as nossas viagens, procurei ver
se havia algum pedaço de terra que pudesse ser completamente
meu; mas qual é o lugar, entre os homens, onde não se depende
mais das suas paixões? Tudo bem examinado, considerei que o
meu próprio desejo era contraditório; porque, mesmo que não me
apegasse a mais nada, sentir-me-ia, pelo menos, apegado à terra
onde me teria fixado; a minha vida ficaria presa a essa terra como
a das dríades estava às suas árvores; cheguei à conclu�ão de que
domínio e liberdade são duas coisas incompatíveis, e de que só po­
dia ser dono de uma cabana se deixasse de o ser de mim próprio.

Hoc erat in votis: modus agri non ita magnus.

«Recordo-me de que os meus bens foram a causa dos nossos es­


tudos. Vós prováveis, com argumentos muito sólidos, que eu não
· podia conservar, simultaneamente, a minha riqueza e a minha li­
berdade;mas quando queríeis que eufosse simultaneamente livre
e sem necessidades, desejáveis duas coisas incompatíveis, pois que
eu não poderia livrar-me da dependência dos homens sem voltar
a entregar-me à da natureza. Que farei, então, com a fortuna que
os meus pais me deixaram? Começarei por não estar dependente
dela; desatarei todos os elos que a ela me amarram . Se ma deixa­
rem, conservá-la--ei . Mas não me atormentarei para a reter e per­
m anecerei firme, no meu lugar. Rico ou pobre, serei livre. E não o
serei unicamente em determinado país ou em determinada região:
sê-lo-ei em toda a terra. Para mim, todas as correntes da opinião
estão quebradas; só conheço as de necessidade. Aprendi a supor­
tá-las, desde que nasci, e suportá-las--ei até à morte, porque sou
homem; e porque não haveria de poder suportá-las sendo livre,
pois que sendo escravo teria de as suportar, e, além delas, as da es­
cravatura?
«Que me importa a minha condição na terra? Que me importa,
onde esteja? Em toda a parte em que haja homens, estou junto dos
meus irmãos; em toda a parte onde os não houver, estou em minha
casa. Contando que possa permanecer independente e rico, tenho
bens para viver, e viverei.
Se os meus bens me dominarem, abandoná-los--ei sem sacrífi­
cio; t.mho braços para trabalhar, e viverei. Se os meus braços me
vierem afaltar, viverei se me alimentarem, morrerei se me aban­
donarem; de qualquer maneira, morrerei, mesmo que não m e
abandonem; porque não é uma pena exlusiva d a pobreza, mas uma
lei da natureza. Seja qual for o momento em que a morte chegar, 317
desafio-a: nunca me surpreenderá a fazer preparativos para vi­
ver; e nunca me impedirá de ter vivido.
«Eis, meu pai, a conclusão a que cheguei. Se estivesse livre de
paixões, sentir-me-ia---'n omeu estado de homem- independen­
te como Deus; pois que, só desejando o que é, nunca precisaria de
lutar contra o destino. Pelo menos, só arrasto um grilhão, é o úni­
co que arrastarei durante toda a minha vida, e posso vangloriar­
-me dele. Vinde, pois, dai-me Sophie, e sentir-me-ei livre.>>

Querido Emílio, sinto-memuito satisfeito por ouvir sair da tua


boca discursos de homem, e por neles ver os sentimentos do teu co­
ração. Esse arrebatado desinteresse não me desagrada, na tua ida­
de. Diminuirá de intensidade quando tiveres filhos, e, nessa altu­
ra, serás precisamente o que deve ser um bom pai de família e um
homem sage. Antes de iniciares as tuas viagens, já eu sabia qual
o efeito que elas produziriam em ti; sabia que, observando de per­
to as nossas instituiçqes, desistirias de nelas depositar a confian­
ça qui! não merecem. E em vão que se aspira à liberdade, sob a sal­
vaguarda das leis. Leis! Onde é que as há e onde é que elas são res­
peitadas? Por toda a parte, só viste reinar, sob essa designação, o
interesse particular e as paixões dos homens. Mas as leis eternas
da natureza e da ordem existem . Servem de lei positiva, para o sa­
ge;foram inscritas no fundo do seu coração, pela consciência e pe­
la razão; é a essas que o homem se deve submeter, para ser livre;
e só é escravo aquele que faz mal, porque sempre o faz ormtràfeito.
A liberdade não se encontra em nenhuma forma de governo, está
no coração do homem livre; e ele transporta-a consigo, para toda
a parte. O homeín vil transporta, para toda a parte, a servidão. Um
seria escravo em Genebra, e o outro livre em Paris.
«Se eu te falasse dos deveres do cidadão, talvez me perguntas­
ses onde está a pátria, e, perguntando-me, pensarias ter-me con­
fundido. Contudo, estarias enganado, querio Emílio; pois que
quem n ão tem uma pátria, tem, pelo menos, um país. Há sempre
um governo e simulacros de leis sob as quais viveu em paz. Se o con­
trato social não foi observado, que importa, desde que o interesse
particular o tenha protegido como teria feito a vontade geral, se a
violência pública o preservou das violências particulares, se o mal
que viu fazer lhe fez amar o que é bem, e se as nossas próprias ins­
tituiçÇ>es o levaram a conhecer e a odiar as suas próprias iniquida­
des? O Emílio! Onde está o homem de bem que não deva nada ao
seu país? Seja ele qual for, deve-lhe tudo o que de m ais precioso
existe para o homem: a moralidade das suas acções e o amor pela
virtude. Nascido no fundo de um bosque, teria vivido mais feliz e
m ais livre; m as, não tendo nada a combater para seguir as suas in­
clinações, teria sido bom sem mérito, não teria sido virtuoso, e ago­
ra pode sê-lo, apesar das suas paixões. Só a aparência da ordem o
318 leva a conhecê-la e a amá-la. O bem público, que só serve de pre-
texto paraos outros, é, só para ele, ummotivoreal.Aprende a com­
bater-se, a vencer-se, a sacrificar o seu interesse ao interesse co­
mum. Não é verdade que não retire nenhum proveito das leis: elas
dão-lhe a coragem de ser justo, mesmo entre os maus. Não é ver­
dade que elas não o tenham tornado livre: ensinaram-lhe a reinar
sobre si mesmo.
«Por isso, não digais: « Que me importa onde estou?» Importa­
-te estar onde possas desempenhar todos os teus deveres; e um
desses deveres é o apego pelo lugar em que nascestes. Os teus com­
patriotas protegeram-te enquanto eras criança, deves amá-los
quando te tornas homem. Deves viver entre eles, ou, pelo menos,
num lugar onde lhes possas ser útil, tanto quanto possível, e onde
eles saibam ir buscar-te se alguma vez precisarem de ti. Há cir­
cunstâncias em que um homem pode ser mais útil aos seus conci­
dadãos fora da sua pátria que se vivesse no seio dela. Nesse caso,
só deve escutar o seu zelo e suportar o seu exílio, sem queixume;
esse mesmo exílio é um dos seus deveres. Mas tu, bom Emílio, a
quem ninguém impõe esses dolorosos sacrifícios, tu que não to­
maste o encargo de dizer a verdade aos homens, vai viver entre
eles, cultiva a sua amizade num agradável comércio, sê o seu ben­
feitor, o seu modelo: o teu exemplo ser-lhes-á mais útil que todos
os nossos livros, e o bem que eles te virem praticar iompressioná­
-los-á mais que todos os nossos vãos discursos.
Não te exorto para que vás viver nas grandes cidades; pelo con­
trário, um dos exemplos que os bons devem dar aos outros é o da
vida patriarcal e campestre, a primitiva vida do homem, a mais
tranquila a mais natural e a mais agradável para quem não tenha
o coração corrupto. Feliz, meu jovem amigo, o país onde não é pre­
ciso ir procurar a paz num deserto! Mas onde está esse país? Um
homem benfazejo satisfaz mal a sua inclinação no meio das cida­
des, onde quase que não encontra quem dedicar o seu zelo, a não
ser intrigantes ou tratantes. O acolhimento que nelas se faz aos
madraços que lá vão procurar fortuna, só serve para acabar de de­
vastar o país, que, pelo contrário deveria ser repovoado à custa das
cidades. Todos os homens que se retiram da grande sociedade são
úteis, precisamente porque se retiram dela, pois que todos os seus
vícios lhe vêm por ser tão numerosa. Também são úteis quando po­
dem levar para os lugares desertos da vida a cultura e o amor pe­
lo seu primitivo estado. Enterneço-me quando penso em quantas
benfeitorias Emílio e Sophie poderão espalhar em seu redor -
quando viverem no seu simples retiro- como poderão vivificar o
campo e reanimar o fraco zelo do infeliz aldeão. Já imagino o po­
vo a multiplicar-sê, os campos a serem fertilizados, a terra a ad­
quirir um novo aspecto, a multitude e a abundância a transforma­
rem os trabalhos em festas, os brados de alegria e as bençãos a ele­
varem-se de entre os jovens rústicos, em volta do amável casal que
os terá reanimado. Considera-se como uma quimera a idade do oi- 319
r�, e ela contin_uará a ser uma quimera, para quem tenha o cora­
ça? e o gosto dissolutos. Nem sequer é verdade que o lamentem,
pms que esses lamentos são sempre vãos. Que seria então preciso,
para a fazer renascer? Uma única coisa, mas impossível: amá-la .
Par�ce já estar a r�nascer, em yolta da casa de Sophie; não fa­
.
reis m ais do que termmar, em conJunto, o que os seus dignos pais
começaram. Mas, querido Emílio, que uma vida tão doce não te ti­
re o gosto pelos deveres penosos, se alguma vez eles te forem im­
postos: recorda-te de que os Romanos passavam da charrua ao
consulado. Se o príncipe ou o Estado te chamarem para o serviço
da pátria, abandona tudo, para ires desempenhar, no posto que te
designarem, a honrosa função de cidadão. Se considerardes que es­
sa função é excessivamente dispendiosa, tens uma maneira hones­
ta e garantida para te livrares dela: é a de a desempenhar com in­
tegridade bastante paraque não ta deixam durante muito tempo.
No entanto, não receis que te designem para um cargo desses: en­
quanto houver homens deste século, não será a ti qye escolherão
para servir o Estado.»

Como poderei descrever o regresso de Emílio para junto de So­


phie e o fim dos seus amores, ou antes, o início do amor conjugal que
os une! Amor baseado na estima que dura tanto como a vida, nas
virtudes que não se desvanecem com a beleza, nas afinidades dos
caracteres que tornam o comércio amável e que, durante a velhi­
ce, prolongam o encanto da primeira união. Mas todos esses por­
menores poderiam agradar sem serem úteis; e, até agora, quanto
a pormenores agradáveis só me permiti aqueles cuja utilidade su­
pus ver. Iria abandonar esta regra no fim do meu trabalho? Não,
também sinto que a minha pena está cansada. Demasiado fraco
p ara obras de tão longa duração, abandonaria esta se ela já não es­
tivesse tão avançada; para não a deixar imperfeita, convém que a
termine.
Por fim , vejo chegar o mais encantador dos dias de Emílio, e o
mais feliz dos meus; vejo os meus cuidados coroados, e começo a
apreciar-lhes o fruto. O digno casal une-se por um elo indissolú­
vel; as suas bocas pronunciam, e seus os corações confirmam, as
promessas que não serão vãs: são esposos. Regressando do templo,
deixam-se conduzir; não sabem para onde estão, nem para onde
vão, nem o que se passa em sua volta. Não ouvem nada, respondem
apenas}rases confusas, os seus olhares perturbados não vêm mais
nada. O delírio! O fraqueza humana! O sentimento da felicidade
esmaga o homem, ele não é bastante forte para o suportar.
Há bem poucas pessoas que saibam, no dia do casamento, fa­
lar de uma maneira convincente aos novos esposos. A morna de­
cência de uns e os gracejos de outros parecem-me igualmente des-
320 locados. Preferiria que permitissem a esses jovens corações con-
centrarem--se em si mesmos e entregarem-se a uma agitação que
não deixa de ter encanto, a que os distraíssem tão cruelmente pa­
ra os entristecer com uma falsa circunspecção, ou para os embara­
çar com gracejos de mau gosto que-mesmo que os pudessem di­
vertir noutra ocasião qualquer-lhes parecem certamente impor­
tunos, num dia como esse.
Vej o os meus dois jovens, na doce languidez que os perturba,
não prestarem ouvidos a nada do que lhes é dito. Eu, eu que que­
ro que se desfrute de todos os dias da vida, permitiria que eles per­
dessem um dia tão precioso? Não; quero que o apreciem, que o sa­
boreim, que ele tenha, para eles, as suas volúpias. Arranco-os à
multidão indiscreta que os incomda, e, afastando-nos um pouco,
faço-os voltar a si mesmos, falando-lhes das suas vidas. Não é uni­
camente aos seus ouvidos que quero falar, é aos seus corações; e
não ignoro qual é o único assunto que lhes pode interessar, nesse
dia.
«Meus filhos», digo-lhes, pegando-lhes nas mãos «há três anos
que vi nascer essa chama viva e pura que hoje faz a vossa felicida­
de. Ela tem aumentado constantemente; vejo, nos vossos olhos,
que atingiu o máximo grau de intensidade; a partir de agora, só po­
derá diminuir». Leitores, n ão estais a ver os transportes, os arrre­
batamentos, os protestos de Emílio, o ar desdenhoso com que So­
phie retira a sua mão da minha, e os seus olhares que se prometem
m utuamente adorar-se até ao seu último suspiro? Permito-lhes
isso tudo, e, em seguida prossigo.
«Pensei frequentemente que, se fosse possível prolongar a fe­
licidade do amor que se experimenta no casamento, se conseguiria
o paraíso na terra. Mas, até hoje, isso nunca se viu. Porém, se a coi­
sa não é completamente im possível, vós sóis muito dignos -tan­
toum como o outro- de dar um exemplo quenão recebestes denin­
guém, e que poucos esposos saberão seguir. Quereis, meus filhos,
que eu vos ensine um sistema que im aginei para isso, e que creio
ser o único possível?»
Olham um para o outro, sorridentes, e troçam da minha sim­
plicidade. Emílio abrradece-me francamente a minha receita, di­
zendo-me estar convencido de que Sophie tem uma melhor, e que,
quanto a ele, esse é, quanto lhe basta. Sophie aprova e parece tão
confiante quanto ele. Contudo, através do seu ar de ironia, creio
ver um pouco de curiosidade. Observo Emílio; os seus olhos ardeu­
tes devoram os encantos de sua esposa; é a única coisa de que se
sente curioso, e todos os meus propósitos lhe são indiferentes. Por
meu lado, so1Tio, dizendo para comigo mesmo: «Em breve sah<>r<>i
tornar-te atento».
A diferença quase im perceptível desses movimentos secretos
confirma uma, que é bem característica nos dois sexos, e muito
oposta aos preconceitos recebidos; é que, geralmente, os homens
são menos constantes que as mulheres, e abon-ecem-se-mais de- 321

L. B. S24 - 21
pressa que elas - do amor feliz. A mulher, de longe, pressente a
inconstãncia do homem, e inquieta-se com isso1 ; é o que também
a torna mais ciumenta. Quando ele começa a amornar, ela, vendo­
-se forçada a dedicar-lhe, para o conservar, todas as atenções que
ele outrora empregou, para lhe agradar, chora, chega a humilhar­
-se, e raramente obtém o mesmo sucesso: a dedicação e os desve­
los atraem os corações, mas não os recuperam . Insisto em dar a mi­
nha receita contra o esfriamento do amor durante o casamento.
«É simples e fácil>>, recomeço; «É continuarem a ser amantes,
depois de serem esposos.» «Efectivamente>>, diz Emílio, rindo-se
desse segredo», isso não será difícil para nós>>. «Será mais penoso
p ara vós que o que pensais. Dai-me, peço-vos, tempo para me ex­
plicar:
«Üs nós, quando se apertam muito, partem-se. Eis o que acon­
tece ao do casamento, quando se lhe quer imprimir mais força que
a que ele deve ter. A fidelidade que ele impõe a ambos os esposos
é o m ais santo de todos os direitos; mas o poder que ele dá a cada
um deles, sobre o outro, é exagerado.A obrigação e o amor dão-se
na], e o prazer não se encomenda. Não coreis, Sophie! E não pen­
seis em fugir. Deusbem sabe q�e não pretendo ofender a vossa mo­
déstia! Mas trata-se do futuro das vossas vidas . Por um tão impor­
tante objecto, suportai, entre um esposo e um pai, discursos que
não suportaríeis ouvir de outras pessoas.
Não é tanto a possessão como a sujeição o que sacia; e conser­
va-se um interesse mais duradoiro por uma mulher mantida que
por esposa. Como se podem transformar num dever as m ais t�rnas
carícias, e num direito os mais doces testemunhos do amor? E o de­
sejo mútuo que estabelece o direito, a na tureza não conhece outro.
A lei pode limitar esse direito, mas não o saberia fazer aumentar.
A volúpia é tão doce, por si só! Deverá ecigir, da triste obrigação,
a força que não pode retirar dos seus próprios atractivos? Não,
meus filhos, no casamento, os corações estão ligados, mas os cor­
pos não ficam dominados. Deveis-vos fidelidade, não complacên­
cia. Cada um de vós só pode pertencer ao outro, mas cada um de vós
só deve ser do outro na medida em que isso lhe agrada.
«Se é pois verdade, caro Emílio, que queríeis ser o amante de
vossa m ulher, que ela seja sempre senhora vossa e de si mesma; se-

1 Em França, as mulheres são as primeiras a afastarem-se dos ma­


ridos; e assim deve ser, porque, tendo pouco temperamento, e só queren­
do homenagens, quando o marido deix a de as satisfazer deixam de se preo­
cupar com ele. Pelo contrário, nos outros países é o marido que se desliga
primeiro; isso também deve ser porque as mulheres, fiéis mas indiscretas
-importunando-os cornos seus desejos -os desgostam delas. Estas ver­
dades gerais podem sofrer muitas excepções; mas, actualmente, creio que
322 são verdades gerais.
de amantes felizes, mas respeitadores; obtendo tudo do amor sem
nada exigirdes ao dever, e que, para vós, os mais pequenos favores
nuaca sejam direitos, mas graças. Sei que o pudor impede as con­
fissões formais e pede para ser vencido; mas, com delicadeza e ver­
dadeiro amor, será possível que o amante se engane sobre a von­
tade secreta?
Será que a pode ignorar quando o coração e o olhar concedem
e que a boca finge recusar? Que cada um dod dois -sempre senhor
da sua pessoa e das suas carícias-conserve o direito de não as dis­
pensar ao outro, se isso não for da sua vontade. Não vos esqueçais
de que, mesmo no casamento, o prazer só é legítimo quando o de­
sejo é compartilhado. Não receais, meus filhos, que esta lei vos
mantenha afastados; pelo contrário, ela tornar-vos-á, a ambos,
mais atentos para vos agradardes recipocramente, e prevenirá a
saciedade. Limitados unicamente um ao outro, a natureza e o amor
aproximar-vos-ão o suficiente.»
Ouvindo estes propósitos e outros semelhantes, Emílio z anga­
-se, protesta; Sophie, envergonhada, põe o leque diante dos olhos
e não diz nada. O mais descontente dos dois talvez não seja aque­
le que mais se queixa. Insisto, impiedosamente: faço corar Emílio,
pela sua falta de delicadeza; garanto-lhe que, pelo seu lado, Sophie
respeitará o tratado.
Obrigo-a falar; como podem imaginar, ela não ousa desmentir­
-me. Emílio, inquieto, consulta o olhar da sua jovem esposa; vê-o,
através do seu embaraço, cheio de uma perturbação voluptuosa
que o tranquiliza contra o risco da confiança. Cai aos pés dela, bei­
ja com emoção a mão que ela lhe estende, e jura que, além da fide­
lidade prometida, renuncia a qualquer outro direito sobre ela.
«Sê», diz-lhe ele, «querida esposa, o árbitro dos meus prazeres, co­
mo já o és dos meus dias e do meu destino. Mesmo que a tua cruel­
dade me venha a custar a vida, devolvo-te os meus direitos mais
queridos. Não quero dever nada à tua complacência, quero receber
tudo do teu coração.»
Bom Emílio, sossega: Sophie é demasiado generosa para te dei­
xar p10rrer, vítima da tua generosidade.
A tarde, preparado para os deixar, digo-lhes, no tom mais gra­
ve que me é possível: «Lembrai-vos de que sois livres, e de que não
se trata, no vosso caso, de deveres de esposos: crede-me, nada de
falsas deferências.
Emílio, queres vir comigo? Sophie autoriza-to.>> Emílio, furio­
so, desejaria bater-me. «E vós, Sophie, o que dizeis? Deverei levá­
-lo com igo?, A m<mtirosa, toda corada, dirá que sim. Encantado­
ra e doce mentira, que vale mais que a verdade!
No dia seguinte . . . A imagem da felicidade já não deleita os ho­
mens: a corrupção do vício não depravou mais o sue gosto que os
seus corações. Já não sabem sentir o que é enternecedor nem ver
o que é amável. 323
Vós que, para descreverdes a volúpia, imaginais sempre felizes
amantes mergulhados no seio das delícias, quão imperfeitas ain­
da estão as vossas imagens! Tendes apenas a metade mais grossei­
ra. Os mais doces atractivos da volúpia não se encontram nela.
Qual de vós nunca viu dois jovens esposos, unidos sob felizes aus­
pícios, saindo do leito nupcial e transportando simultaneamente
- nos seus olhares enlalguescentes e castos - a embriaguês dos
doces prazeres que acabam de experimentar, a amável segurança
da inocência, e a certez a - nesse momento tão encantadora - de
passarem juntos o resto dos seus idas? Eis o objecto mais delicio­
so que possa ser oferecido ao coração do homem; eis a verdadeira
imagem de volúpia; viste-la cem vezes, sem a reconhecerdes; os
vossos corações em pederni.dos já não são feitos para amar. Sophie,
feliz e tranquila, p assa o dia nos braços da sua terna mãe; é um re­
pouso muito doce de sentir, após ter passado a noite nos de seu es­
poso.
Dois dias depois, já me apercebo de alguma modificação na ce­
na. Emílio pretende mostrar-se um pouco descontente; mas atra­
vés dessa afectação, noto um interesse tão terno, e mesmo tanta
submissão, que não prevejo nada de desagradável .
Quanto a Sophie, mostra-se m ais alegre que no dia anterior;
vejo o seu olhar luzir com um ar satisfeito; mostra-se encantado­
ra para com Emílio; quase que lhe faz negaças que já não o deixam
despeitado.
Essas modificações são pouco sensíveis; mas não deixo de me
aperceber delas; fico preocupado, interrogo Emílio, em particular;
sou informado de que, para grande pena sua - e apesar de todas
as suas instâncias - esteve quase decidido a ir dormir para outra
cama, na noite precedente.Aimperiosa apressou-se a usar do seu
direito.
Temos uma conversa de esclarecimento: Emílio queixa-se
amargamente, Sophie graceja; mas, por fim, vendo--o prestes a
zangar-se seriamente, lança-lhe um olhar impregnado demeigui­
ce e de amor, e, apertando-me a mão, pronuncia uma só palavra
-mas num tom que atinge a alma: O ingrato! Emílio é tão tolo que
não compreende o que isso significa. Eu compreençlo; afasto
Emílio, e falo com Sophie, à parte.
«Compreendo», digo-lhe «a razão para esse capricho. Não é
possível ter mais delicadeza nem utilizá-la mais fora de propósi­
to. Querida Sophie, tranquilizai-vos; foi um homem que vos dei,
não receeis considerá-lo como tal: tivestes as primícias da sua ju­
ventude; ele não a prodigou a ningu�m, conservá-la-á durante
muit9 tempo, só para vós.
«E preciso, minha querida filha, que vos explique as minhas in­
tenções na conversa que tivemos os três, anteontem. Talvez que só
tenhais visto nela uma arte d!l esquivar os vossos prazeres para os
324 tornardes mais duradoiros. O Sophie! Ela teve outro objecto mais
digno dos meus cuidados. Tornando-se vosso esposo, Emílio tor­
nou-se vosso chefe; é a vós que comepte obedecer, assim o decre­
tou a natureza.
No entanto, quando a mulher se parece com Sophie, é bom que
o homem seja dirigido por ela; continua a ser a lei da natureza; e
é para vos dar tanta autoridade sobre o seu coração quanta a que
o seu sexo lhe dá sobre a vossa pessoa, que vos fiz o árbitro dos seus
prazeres.
Isso obrigar-vos-á a privações penosas; mas reinareis sobre
ele, se souberdes reinar sobre vós mesma; e o que já se passou mos­
tra-me kque essa parte tão difícil não está acima da vossa cora­
gem .
Reinareis durante muito tempo, através d o amor, se tornardes
os vossos favores raros e preciosos, se os souberdes fazer valer. Se
quereis ver o vosso marido constantemente aos vossos pés, man­
tende-<> sempre a uma certa distância da vossa pessoa. Mas, na
vossa severidade, ponde a modéstia e não o capricho; que ele vos
veja reservada, e não caprichosa; evitai que, ao reprimir o seu
amor o leveis a duvidar do vosso.
Fazei-vos amar pelos vossos favores e respeitar pelas vossas
recusas; que ele respeite a castidade de sua esposa sem ter de se
queixar da sua frieza.
«E assim, minha filha, que ele vos entregará a sua confiança,
que dará ouvidos às vossas opiniões, que vos consultará nos seus
negócios, e que não tomará nenhuma decisão sem primeiro ter de­
liberado convosco. E assim que poderies chamá-lo à razão, quan­
do ele se desorientar, fazê-lo regressar através de uma carinhosa
persuasão, tornar-vos amável para vos tornardes útil, empregar
a coquetaria para os interesses da virtude, e o amor em proveito da
razão.
«Mesmo assim, não vos convenceis de que esta arte vos pode­
rá servir sempre. Por mais precauções que se tomem, o gozo des­
gasta os prazeres, e o amor antes de todos os outros. Mas quando
o amor durou muito tempo, umdoce hábito preenche-lhe o vazio,
e a atracção da confiança sucede-se aos transportes da paixão. Os
filhosformam, entre aquelesquelhes deram avida,um elo nãome­
nos doce e, muitas vezes, m aisforte que o próprio amor; Quando
deixardes de ser a amante de Emílio, sereis sua mulher e sua ami­
ga; sereis a mãe dos seus filhos.
Então, em vez da vossa primeira reserva, estabelecei entre vós
a m aior intimidade; nada de camas separadas, nada de recusas,
nada de caprichos. Tornai-vos de tal modo a sua metade, que ele
não possa passar sem vós, e que, desde que de vós se afasta, se sin­
ta longe de si mesmo.
Vós, que tão bem fizestes reinar os encantos da vida domésti­
ca na casa paterna, fazei-as reinar também na vossa. O homem
que se sente bem em sua casa ama a sua mulher. Lembrai-vos de 325
que se o vosso esposo se sente feliz em sua casa, sereis uma mulher
feliz.
Quanto ao momento presente, não sejais tão severa para com
o vosso amante; ele mereceu mais complacência; ofender-se-ia
com os vossos alarmes; não poupeis tanto a sua saúde à custa da
sua feliCidade, e gozai da vossa. Não se deve esperar pelo desgos­
to nem contrariar o desejo; não se deve recusar só por recusar, mas
para fazer valer o que se concede.»

Depois, reunindo-os, digo - diante dela - aojovem esposo: «É


preciso que saibais suportar o jugo que vos impusestes. Fazei por
merecer que ele vos seja fácil da suportar. Sobretudo, sacrificai às
graças, e não imagineis tornar-vos mais agradável, amuando. A
paz não é difícil de fazer, e cada um de vós facilmente compreen­
de quais são as condições.>> O tratado assina-se com um beijo. De­
pois, digo ao meu pupilo: «Querido Emílio, durante toda a sua vi­
da, um homem tem precisão de conselhos e de guia. Fiz tudo quan­
to pude para, até agora, cumprir esse dever para convosco; aqui
termina a minha longa tarefa e começa a de outro. Hoje abdico da
autoridade que me confiastes, mas eis-me sempre vosso gover­
nante.
Pouco a pouco, o primeiro delírio acalma-se e deixa-lhes des­
frutar em paz os encantos do seu novo estado. Felizes amantes!
Dignos esposos! Para honrar as suas virtudes, para descrever a
sua felicidade, seria necessário escrever a h istória da sua sua vi­
da. Quantas vezes, contemplando, neles, a minha obra, me sinto
invadido por um enlevo que faz palpitar o meu coração! Quantas
vezes junto as suas mãos às minhas bendizendo a Providência e
soltando profundos suspiros! Quantos beijos deposito sobre essas
duas mãos que se apertam! Com quantas lágrimas de alegria eles
sentem que eu as rego! por sua vez, entercecem-se, comparti­
lhando dos meus transportes. Os seus rspeitáveis pais voltam a
desfrutar da sua juventude na de seus filhos; recomeçam, por as­
sim dizer, a viver neles, ou antes, pela primeira vez, conhecem o va­
lor da vida: amaldiçoam as suas antigas riquezas que os impedi­
ram de, nessa idade, desfrutar de um destino tão encantador. Se
a felicidade existe na terra, é no abrigo onde vivemos que deve ser
procurada.
Passaram-se alguns meses; uma manhã, vejo Emílio entrar no
meuquarto e ouço-o dizer-me, enquanto me abraça: «Meu mestre,
felicitai o vosso filho, porque ele espera ter, em breve, a honra de
ser pai. Oh! Quantos cuidados irão ser im postos ao nosso zelo, e co­
mo iremos precisar de vós! Deus não permita que vos deixe dcuar
o filho, depois de terdes educado o pai . Deus não permita que um
dever tão sagrado e tão doce tenha de ser desempenhado por ou-
326 troque não eu, mesmo que tivesse de escolher o que escolheram pa-
ra mim! Mas continuai a ser o mestre dos jvoens senhores. Acon­
selhai-nos, governai-nos, seremos dóceis: enquanto viver, sempre
precisarei de vós. Preciso de vós, mais do que nunca, agora que as
minhas funções de homem começam . Desempenhastes as vossas:
ensinai-me a imitar-vos; e repousai-vos: é tempo de o fazerdes.
Colecção "Livros de Bolso Europa-Amêrica ··

1 -Esteiros. Soeiro Pereira Gomes 41 - Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma


2 -O Músico Cego, VJadimiro Korolenko Mulher, Stefan Zweig
3 -Frei Lufs de Sousa, Almeida Garrett 42 - Morte Dum Caixeiro- Viajante,
4 -A Oeste nada de Novo, Arthur Miller
Erich Maria Remarque 43 - A Rua do Gato Que Pesca,
5 - A MissOo, Ferreira de Castro Yolanda Fõldes
6 - Mar Morto, Jorge Amado 44 - OS Fidalgos da Casa Mourisca,
7 - A Um Deus Desconhecido, Júlio Dinis
John Steinbeck 45 - A Ponte, Manfred Gregor
8 - O Valente Soldado Ch veik, 46 - A Noite Roxa,
Jaroslav Hasek Urbano Tavares Rodrigues
. 9 - A Cidade do Sossego e O Capote, 47 - Melodia Interrompida, Boris Pasternak
Nicolau Gogol 48 - Nana, Emílio Zola
lO - O Monte dos Ventos Uivantes, 49 - Utopia, Thomas More
Emily Bront� 50 - Engrenagem, Soeiro Pereira Gomes
I I - Gaibéus, Alves Redol 51 - A Religiosa, Diderot
12 - Cartas do Meu Moinho, 52 - Noites Brancas, Fédor Dostoievski
Alphonse Daudet 53 - O «Barão)) e Outros Contos,
13 - O Médico e o Monstro, R. Stevenson Branquinho da Fonseca
14 - O Homem e o Rio. William Faulkner 54 - z. Vassilis Vassilikos
15 - Sementes de Violência, Evan Hunter 55 - Os Autos das Barcas, Gil Vicente
1 6 - O Retrato de Ricardina, 56 - Os Sequestrados de A/tona,
Camilo Castelo Branco Jean-Paul Sartre
1 7 - Serões da Prov/ncia, Júlio Dinis 57 - Iracema, José de Alencar
18 - As Desencantadas, Pierre Loti 58 - A Morgadinha dos. Canaviais,
19 - Domingo à tarde, Fernando Namora Júlio Dinis
20 - Germinal, Emílio Zola 59 - Tartarin nos Alpes, Alphonse Daudet
21 - Manhã Submersa, Vergílio Ferreira 60 - O Balio de Leça, Arnaldo Gama
22 --Bei-Ami, Guy de Maupassant 61 - Elogio da Loucura, Erasmo
23 - Morreram pela Pátria, Mikail ChOlokov 62 - O Chapéus de Três Bicos,
24 - O Prfncipe, Nicolau Maquiavel Pedro Antonio de Alarcón
25 - As Mãos Sujas, Jean-Paul Sartre 63 - Cândido, Voltaire
26 - Viagens na Minha Terra, 64 - A Mulher de Trinta Anos,
Almeida Garrett Honoré de Balzac
27 - O Eleito, Thomas Mano 65 - Os Cavalos também Se Abatem,
28 - O Grande Meaulnes, Alain-Fournier Horace McCoy
29 - O Pregador, Erskine Caldwell 66 - O Lobo do Mar, Jack London
30 - Polikuchka, Leão Tolstoi 67 - A Casa de Bernardo Alba,
31 - Gente de Hems6. August Strindberg Federico García !..orca
32 - Filha de Labilo, Tomás da Fonseca 68 - O Satfricon, Petrónio
33 - Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, 69 - A Filha do Regicida,
Alexandre Soljenitsin Camilo Castelo Branco
34 - A Ciociara, Alberto Moravia 70 - Guerra e Paz (vol. I), Leão Tolstoi
35 - Os Homens e os Outros. Elio Vittotini 71 - Guerra e Paz (vol. II), Leão Tolstoi
36 - O Fogo e as Cinzas. Manuel da Fonseca 72 - O Denunciante, Liam O'Flaherty
37 - Albergue Nocturno, Máximo Gorki 73 - A Mde, Máximo Gorki
38 - Revolta na «Bounty)), Sir John Barrow 74 - Uma Vida, Guy de Maupassant
39 - Recordações da Casa dos Mortos, 75 - Helena, Machado de Assis
Fédor Dostoievski 76 - Escola de Mulheres e Dom João, Moliêre
40 - O Autómato, Alberto Moravia 77 - Anátema, Camilo Castelo Branco
78 - O Sol de Cobre, André Kedros 132 - Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia
·

79 - Pescador de Islândia, Pierre Loti Mllr.quez


80 - A Cela da Morte, Caryl Chessman 133 .::: A Náusea, Jean-Paul Sartre
81 - Memórias Dum Sargento de Mi/feias, 134 - A Ponte do Rio Kwai, Pierre Bnule
Manuel António de Almeida 135 - As «Jóias>> Indiscretas, Diderot
82 - Um Herói do Nosso Tempo, Lermontov 136 - Os Deuses Têm Sede, Anatole France
83 - Spartacus, Howard Fast I 37 - O Processo, Franz Kafka
84 - A Arte de Amar, Ovidio 138 - Este É o Bom Governo de Portugal,
85 - O Sonho, Emilio Zola Tomás Pinto Brandão .
86 - Contos, Hans Christian Andersen I 39 - Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse,
87 - As Viagens de Gu/liver, Jonathan Swift Vicente Blasco lbáfiez
88 - O Deserto do Amor. François Mauriac 140 - Discurso sobre a Origem e Fundamentos
89 - O Apelo da Selva, Jack London da Desigualdade entre os Homens,
90 - Cartas Portuguesas. Jean-Jacques Rousseau
Soror Mariana Alcoforado I 4 I - Vinho e Pão, lgnazio Silone
91 - Duelo ao Sol, Niven Busch 142 - O Bisturi, Horace McCoy
92 - Paulo e Virgfnia, 143 - As A venturas de Huckleberry Finn,
Bernardin de Saint-Pierre Mark Twain
93 - As Pupilas do Senhor Reitor, Júlio Dinis 144 - A Filha do Arcediago,
94 - Tarass Bulba, Nicolau Gogol Camilo Castelo Branco
95 - O Contrato Social, 145 - As Leprosas, Henry de Montherlant
Jean-Jacques Rousseau 146 - História de Uma Revolução,
96 - O Pão da Mentira, Horace McCoy Fernão Lopes
97 - Lolita, Vladimir Nabokov 147 - Chamado do Mar, James Amado
98 - Noivas de Ninguém, 148 - O Arco de Sant'Ana, Almeida Garrett
Henry de Montherlant 149 - Discurso do Método, Descartes
99 - Quo Vadis?, Henryk Sienkiewicz !50 - A Montanha Morta da Vida,
100 - Constantino, Guardador de Vacas e de Michel Bernanos
Sonhos, Alves Redol 1 5 1 - Fanny Hil - Memórias Duma Prostituta,
10 I - A Lei, Roger Vailland John Cleland
102 - O Exorcista, William Peter Blatty 152 - A Pérola, John Steinbeck
103 - Os Conquistadores, André Malraux 153 - O Anticristo, Friedrich Nietzsche
I 04 - Tristão e Isolda 154 - Uma Famf/ia Inglesa, Júlio Dinis
105 - Kama Sutra, Vatsyayana 15S - Amor Numa Rua Escura, Irwin Shaw
I 06 - Sonetos. Camões 156 - A Besta Humana, Emílio Zola
107 - A Princesa de C/eves, 157 - O Obelisco Negro,
Madame de La Fayette Erich Maria Remarque
108 - Robinson Crusoé, Daniel Defoe 158 - Tratado da Polftica, Aristóteles
109 - Sátiras Sociais, Gil Vicente 159 - A Cabana, Vicente Blasco Ibáfiez
1 10 - O Drama de Joi1o Barois, 160 - América, Franz Kafka
Roger Martin du Gard 161 - Mulherezinhas, Louisa May Alcott
1 1 I - O Nó de Vfbaras, François Mauriac 162 - Alice no Pafs das Maravilhas,
1 1 2 - A Estepe, Tchekhov Lewis Carroll
1 1 3 - O Gavião Louco, Jean Carriere 1 63 - A Dama das Camélias,
1 1 4 - A Metamorfose, Franz Kafka Alexandre Dumas-Filho
l i S - Orgulho e Preconceito, Jane Austen 164 - A Face da Justiça, Caryl Chessman
1 1 6 - Piedade para as Mulheres; 165 - Romeu e Julieta, Shakespeare
Henry de Montherlant 166 - Esplendores e Misérias das Cortesi1s - I,
1 1 7 - O Guarani. José de Alencar Balzac
1 1 8 - A República, Platão 167 - Esplendores e Misérias das Cortesi1s - II,
1 1 9 - O Barbeiro de Sevilha, Beaumarchais Balzac
120 - Grandes Esperanças, Charles Dickens 168 - O Banquete, Platão
121 - O Amor do Soldado, Jorge Amado 169 - Tempo para Amar e Tempo para Morrer,
122 - Menina e Moça, Bernardim Ribeiro Erich Maria Remarque
123 - A Letra Escarlate, Nathaniel Hawthorne 170 - A Famf/ia Bef/amy, John Hawkesworth
124 - A Grande Muralha da China, 171 - A Famflia Bef/amy - II. Segredos de
Franz Kafka Famflia, John Hawkesworth
125 - Uma Noite em Lisboa, 172 - A Famflia Beflamy - lll. Os Novos
Erich Maria Remarque Tempos, Mollie Hardwick
126 - A Pequena Fadei/e, George Sand 173 - A Famflia Bef/amy - IV. A Guerra para
127 - O Macaco Louco, A. S. Gyõrgyi Acabar com as Guerras, Mollie Hardwick
I 28 - As Bodas de Ffgaro, Beaumarchais 174 - A Famf/ia Beliamy - V. A Danca Conti­
129 - O Jgrdim Perfufflado, Xeque Nefzaui nua, Michael Hardwick
130 - O Demónio do Bem, 175 - A Famflia Bef/amy - VI. Fins e Princf­
Henry de Montherlant pios, Michael Hardwick
1 3 1 - Dez Dias Que Abalaram o Mundo, 176 - A Ilha dos Pinguins, Anatole France
John Reed 177 - A Escrava Isaura, Bernardo Guimarães
178 - Morte em Veneza, Thomas Mann 226 - Doze Casamentos Felizes,
179 - Assim Falou Zaratustra, Camilo Castelo Branco
Friedrich Nietzsche 227 - Os Lusfadas, Luís de Camões
180 - Pensamentos, Pascal 228 - Os Canhães de Navarone,
1 8 1 - Alice do Outro Lado do Espelho, Alistair MacLean
Lewis Carroll 229 - Os Maias, Eça de Queirós
182 - O Dia Cinzento e Outros Contos, 230 - Histórias Extraordinárias - I,
Mário Dionísio Edgar Allan Poe
183 - O Moinho à Beira do Rio - I , 231 - Novelas do Minho - I,
George Eliot Camilo Castelo Branco
184 - O Moinho à Beira do Rio - II, 232 - Lendas e Narrativas - II,
George Eliot Alexandre Herculano
185 - Bela de Dia, Joseph Kessel 233 - A Ilha Misteriosa - I. Os Náufragos do
186 - Alcorão - Parte I Ar, Júlio Verne
187 - Alcorão - Pane II 234 - As Minas de SalomlkJ (de Rider Haggard),
188 - A Vida Amorosa de Mo// Flanders, Eça de Queirós
Daniel Defoe 235 - Eurico, o Presbftero,
189 - Lord Jim, Joseph Conrad Alexandre Herculano
190 - De Angola à Contracosta - I, 236 - O O/timo Dia Dum Condenado,
Hermenegildo Capelo e Roberto lvens Vítor Hugo
191 - De A ngola à Contracosta - II, 237 - O Livro de Cesário Verde
Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens 238 - O Pafs das Uvas, Fialho de Almeida
192 - O Canto e as Armas, Manuel Alegre 239 - A Honra Perdida de Katharina Blum,
193 - O Castelo, Kafka Heinrich Bõll
194 - As A venturas de Tom Sawyer, 240 - Coração, Cabeça e Estômago,
Mark Twain Camilo Castelo Branco
195 - Os Infortúnios da Virtude, 241 -. Folhas Caldas, Almeida Garrett
Marquês de Sade 242 - A Ilha Misteriosa - II. O Abandonado,
196 - Madame Bovary, Gustave Flaubert Júlio Verne
197 - O Inferno, Dante Alighieri 243 - O Crime do Padre Amaro,
198 - A venturas de Pinóquio, Collodi Eça de Queirós
199 - West Side Story (<.:Amor sem Barreiras), 244 - Os Meus Amores, Trindade Coelho
Irving Shulman 245 - Contra Mar e Vento, Teixeira de Sousa
200 - Praça da Cançilo, Manuel Alegre 246 - Mães e Filhas - I, Evan Hunter
201 - A Ingénua Libertina, Colette 247 - A Velhice do Padre Eterno,
202 - Ana Karenina - I, Leão Tolstoi Guerra Junqueiro
203 - Ana Karenina - II, Leão Tolstoi 248 - A Rellquia, Eça de Queirós
204 - 20 000 Léguas Submarinas, Júlio Verne 249 - A Brasileira de Prazins,
205 - Os Carros do Inferno, Sven Hassel Camilo Castelo Branco
206 - A Vagabunda, Colette 250 - Mães e Filhas - II, Evan Hunter
207 - Dois Anos de Férias. Júlio Verne 251 - O Primo Basf/io, Eça de Queirós
208 - O Zero e o Infinito, Arthur Koestler 252 - Amor de Perdição,
209 - Moby Dick - A Baleia Branca - I , Camilo Castelo Branco
Herman Melville 253 - Só, António Nobre
210 - Moby Dick - A Baleia Branca - II, 254 - A Ilha Misteriosa - III. O Segredo da
Herman -Melville Ilha, Júlio Verne
21 1 - Dona Bárbara, Rómulo Gallegos 255 - Diálogos III, Platão
212 - O Macaco Nu, Desmond Morris 256 - A Correspondência de Fradique Mendes,
213 - Catecismo Positivista, Augusto Comte Eça de Queirós
214 - A vieiras. Alves Redol 257 -A Harpa do Crente,
215 - Viagem ao Centro da Terra, Júlio Verne Alexandre Herculano
2 1 6 - Como Eu Atravessei a África - I, 258 - Eusébio Macário,
Serpa Pinto Camilo Castelo Branco
217 - Como Eu Atravessei a África - II, 259 - Até à Eternidade - I, James Jones
Serpa Pinto 260 - Odisseia, Homero
2 1 8 - A Queda Dum Anjo, 261 - O Conde de Abranhos, Eça de Queirós
Camilo Castelo Branco 262 - A Corja, Camilo Castelo Branco
2 1 9 - A Cidade e as Serras, Eça de Queirós 263 - Até à Eternidade - II, James Jones
220 - O Natal do Sr. Scrooge e Os Sinos de 264 - O Boba, Alexandre Herculano
Ano Novo, Charles Dickens 265 - Campo de Flores - I, João de Deus
221 - Lendas e Narrativas, 266 - Novelas do Minho - II,
Alexandre Herculano Camilo Castelo Branco
222 - O Mandarhn, Eya de Queirós 267 - o Regimenco da Morte, sven Hassel
223 - Cinco Semanas em Balão, Júlio Verne 268 - O Raio Verde, Júlio Verne
224 - Contos, Eça de Queirós 269 - Os Pescadores, Raul Brandão
225 - A Ilustre Casa de Ramires, 270 - A Cartuxa de Pllrma - I, Stendhal
Eça de Queirós
271 - Contos Populares Portugueses, 3 1 7 - Os Upanishades
Antologia 3 1 8 - Portugal Contemporâneo - 11,
272 - Dicionário de Milagres, Eça de Queirós Oliveira Martins
273 - A Cartuxa de Parma - II, Stendhal 3 1 9 - Miguel Strogoff ( 1 . ' parte), Júlio Yerne
274 - O Oitimo Voo da Arca de Noé, 320 - Decâmeron - II, Giovani Bocaccio
Chas Carner 321 - Os Sãos e os Loucos, - I, James Jones
275 - Hist6ria Trágico-Marftima - I, 322 - Miguel Strogoff (2.' parte), Júlio Yerne
Bernardo Gomes de Brito 323 - História de Portugal - II,
276 - A Tulipa Negra, Alexandre Dumas Oliveira Martins
277 - A Felicidade ni1o Se Compra, 324 - A Tragédia da Rua das Flores,
Hans Hellmut Kirst Eça de Queirós
278 - História Trágico-Mar/timo - II, 325 - Os Sãos e os Loucos - II, James Jones
Bernardo Gomes Brito 326 - Mistérios de Lisboa - I,
279 - Histórias Extraordinárias - II, Camilo Castelo Branco
Edgar Allan Poe 327 - Os Analectos, Confúcio
280 - Robur, o Conquistador. Júlio Verne 328 - Sonetos, Bocage
281 - Alves & C. •, Eça de Queirós 329 - Mistérios de Lisboa - 11,
282 - Deus Dorme em Masúria, Camilo Castelo Branco
Hans Hellmut Kirst 330 - Da Guerra, Carl von Clausewitz
283 - Campo de Flores - II, João de Deus 331 - Vidas Secas, Graciliano Ramos
284 - Sonetos, Florbela Espanca 332 - Mistérios de Lisboa - lll,
285 - Uma Vez não Basta, Jacqueline Susann Camilo Castelo Branco
286 - Amor de Salvação, 333 - História da Origem e Estabelecimento da
Camilo Castelo Branco Inquisição em Portugal - I ,
287 - ln i/lo Tempore, Trindade Coelho Alexandre Herculano
288 - Os Possessos - I, Dostoievski 334 - Destroços de Guerra - I, James Jones
289 - Os Possessos - II, Dostoievski 335 - História da Origem e Estabelecimento da
290 - Os Possessos - III, Dostoievski Inquisiçdo em Portugal - II,
291 - A Capital, Eça de Queirós Alexandre Herculano
292 - A Mulher Fatal, Camilo Castelo Branco 336 - São Bernardo, Graciliano Ramos
293 - O Senhor do Mundo, Júlio Verne 337 - Destroços de Guerra - II, James Jones
294 - As Viagens de Marco Pólo 338 - Uma Cidade Flutuante. Júlio Verne
295 - O Conde de Monte-Cristo - I, 339 - História da Origem e Estabelecimento da
Alexandre Dumas Inquisição em Portugal - lll,
296 - A Freira no Subterrdneo, Alexandre Herculano
Camilo Castelo Branco 340 - Ilhéu de Contenda. Teixeira de Sousa
297 - O Conde de Monte-Cristo - II, 341 - Os Simples, Guerra Junqueiro
Alexandre Dumas 342 - Livro Negro de Padre Dinis - I,
298 - Um Conto de Duas Cidades, Camilo Castelo Branco
Charles Dickens 343 - Morte aos Franceses.
299 - Sonetos Completos. Antero de Quental C. S. Forester
300 - O Monge de Cister - I, 344 - Livro Negro de Padre Dinis - II,
Alexandre Herculano Camilo Castelo Branco
301 - Ensaio sobre o Principio da População. 345 - Memórias do Cárcere - I,
Thomas R. Malthus Graciliano Ramos
302 - Oliver Twist. Charles Dickens 346 - Contos Irónicos, Heinrich Bõll
303 - O Livro (A Blblia) 347 - Contos, Fialho de Almeida
304 - Sensibilidade e Bom Senso, Jane Austen 348 - PeregrinaÇão - I ,
305 - Noites de Lamego. Fernão Mendes Pinto
Camilo Castelo Branco 349 - Peregrinação - II,
306 - A li/ada, Homero ·- Fernão Mendes Pinto
307 - A Volta ao Mundo em 80 Dias, 350 - Memórias do Cárcere - II,
Júlio Verne Graciliano Ramos
308 - O Monge de Cister - II, 351 - Barranco de Cegos, Alves Recto!
Alexandre Herculano 352 - O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de
309 - Decâmeron - I, Giovanni Boccaccio La Mancha - I, Cervantes
310 - A Eneida, Virgílio 35 3 - O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de
3 1 1 - Verdes Anos, Colette La Mancha - II, Cervantes
312 - Hamlet. Shakespeare 354 - Capitdes da Areia, Jorge Amado
3 1 3 - Portugal Contemporâneo - I, 355 - Os Miseráveis - I, Vítor Hugo
Oliveira Martins 356 - Os Miseráveis - II, Vítor Hugo
3 1 4 - O Amante de Lady Chatterley, 357 - O Canto do Carrasco - I,
D. H. Lawrence Norman Mailcr
3 1 5 - História de Portugal - I, 358 - Memórias do Cárcere - I,
Oliveira Martins Camilo Castelo Branco
3 1 6 - O Conde de Monte-Cristo - III, 359 - O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de
Alexandre Dumas La Mancha - III, Cervantes
360 - Memórias do Cárcere - II, 408 - O Rouxinol e a Rosa, Oscar Wilde
Camilo Castelo Branco 409 - Fábulas, Esopo
361 - Os Miseráveis - III, Vítor Hugo 410 - Rainha Africana, C. S. Forester
362 - Adeus, Califórnia, Alístair MacLean 411 - Angústia, Graciliano Ramos
363 - Os Miseráveis - IV, Vítor Hugo 412 - A Doença Infantil do Comunismo, Lenine
364 - Os Miseráveis - V, Vítor Hugo 413 - Os Cavalheiros do 16 de .fulho, Ken Fol-
365 - Psicologia dos Multidões, lett e René Louis Maurice
Gustave Le Bon 414 - Infância, Graciliano Ramos
366 - O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de 415 - O Rapto de Um Presidente, Alístair Mac­
La Mancha - IV, Cervantes Lean
367 - A Arte da Guerra, Sun Tzu 416 - Nossa Senhora de Paris - I, Vítor Hugo
368 - Viagens e Aventuras do Capitão Hatte­ 417 - Naquele A legre Mês de Maio - I, James
ras - I, Júlio Verne Jones
369 - O Canto do Carrasco - II, 418 - Nossa Senhora de Paris - II, Vítor Hugo
Norman Mailer 419 - Naquele Alegre Mês de Maio - II , James
370 - E!cllio Perturbado. JoQ.es
Urbano Tavares Rodrigues 420 - Obra Poética, Mário de Sá-Carneiro
371 - A Mantilha de Beatriz, Pinheiro Chagas 421 - Em Busca do Tempo Perdido - II, À
372 - Viagens e A venturas do Capitão Hatte­ Sombra das .!avens em Flor. Marcel
ras - I I , Júlio Verne Proust
373 - Amar e Matar, Jean Genet 422 - A ConfiSSão de Lúcio, Mário de Sá-Carneiro
374 - Elói ou Romance Numa Cabeça, 423 - Da Terra à Lua, Júlio Verne
João Gaspar Simões 424 - Ivanhoe, Sir Walter Scott
375 - Contos ou Histórias dos Templos Idos, 425 - À Volta da Lua, Júlio Veme
Charles Perrault 426 - Céu em Fogo, Mário de Sá-Carneiro
376 - Filhos e Amantes - I, D. H. Lawrence 427 - As Pombos São Vermelhas,
377 - Últimas Páginas, Eça de Queirós Urbano Tavares Rodrigues
378 - Ventos de Guerra - I, Herman Wouk 428 - Em Busca do Tempo Perdido - III, O
379 - Cão Velho entre Flores, Baptista-Bastos Lado de Guermantes - I, Marcel Proust
380 - Rei Lear, Shakespeare 429 - Otelo, Shakespeare
381 - Filhos e Amantes - II, D. H. Lawrence 430 - O Hdticeiro de Oz. L. Frank Baum
382 - Ventos de Guerra - II, Herman Wouk 431 - Históritr t:/Q Litei-atura Portuguesa - I -
383 - As Mil e Uma Noites - I Idade Médià, Teófilo Braga
384 - As Mil e Uma Noites - II 432 - Santa Claus, Joan D. Vinge
385 - O Canhão, C. S. Forester 433 - Os Goonies, James Kahn
386 - Técnica do Golpe de Estado, 434 - Em Busca do Tempo Perdido - IV, O
Curzio Malaparte Lado de Guermantes - II, Marcel Proust
387 - História da Civilização Ibérica, 435 - Mensagem. Fernando Pessoa
Oliveira Martins 436 - Poesia - I, Fernando Pessoa
388 - As Mil e Uma Noites - III 437 - Poesia - I I , Fernando Pessoa
389 - Apólogos, Adivinhações e Epigramas, 438 - Poesia - III, Fernando Pessoa
Bocage 439 - Poemas de Alberto Caeiro, Fernando Pessoa
390 - Caetés, Graciliano Ramos 440 - Odes de Ricardo Reis, Fernando Pessoa
391 - Contos, José Régio 441 - Poesia de Á lvaro de Campos. Fernando
392 - As Mil e Uma Noites - IV Pessoa
393 - Cancioneiro Alegre de Poetas Portugueses 442 - História da Literatura Portuguesa - II -
e Brasileiros - I , Camilo Castelo Branco Renascença, Teófilo de Braga
394 - Blow Up e Outras Histórias, 443 - Yentl, Isaac Bashevis Singer
Julio Cortázar 444 - Em Busca do Tempo Perdido - V, Sado­
395 - Fábulas, Curvo Semedo ma e Gomorra, Marcel Proust
396 - As Mil e Uma Noites - V 445 - História da Literatura Portuguesa - III -
397 - Cancioneiro Alegre de Poetas Portugueses SeiscentiStas, Teõfilo Braga
e Brasileiros - II, Camilo Castelo Branco 446 - O Corcunda ou o Pequeno Parisiense,
398 - Os Três Mosqueteiros - I, Paul Féval
Alexandre Dumas 447 - Morte na Fórmula Um, Alistair Maclean
399 - Um Perigoso Entardecer, James Jones 448 - O Cavaleiro de Lagardire, Paul Féval
400 - As Mil e Uma Noites - VI 449 - Em Busca do Tempo Perdido - VI, Mar-
401 - Os Três Mosqueteiros - II, cel Proust
Alexandre Dumas 450 - Chantagem Mortlfera, Alistair MacLean
402 - Kaputt, Curzio Malaparte 45 1 - História da Literatura Portuguesa - IV -
403 - Diálogos I V - Sofista - Política - Fi- Os Á rcades, Teófilo Braga
lebo - Timeu - Crítias, Platão 452 - Os Velhos Marinheiros ou o Capitão de
404 - Pátria, Guerra Junqueiro Longo Curso. Jorge Amado
405 - Rio da Morte, Alistair MacLean 453 - Chora Terra Bem Amada, Alan Paton
406 - Em Busca· do Tempo Perdido - I, 454 - Em Busca do Tempo Perdido - VII, A
Do Lado de Swann, Marcel Proust Fugitiva, Marcel Proust
407 - Os Três Mosqueteiros - I I I , 455 - Caravanas - I, James A. Michener
Alexandre Dumas
456 - H IStória da Literatura Portuguesa - V. O 490 - O Zoo Humano, Desmond Morris
Romantismo, Teófilo Braga 491 - Carta de Pêro Vaz de Caminha a EI-Rei
457 - Caravanas - II, James A. Michener D. Manuel Sobre o Achamento do Brasil,
458 - Sermões, Padre António Vieira Estudo introdutório e notas de Maria Pau­
459 - Horizonte Perdido, James Hilton la Caetano e Neves Águas
460 - HIStória da Literatura Portuguesa - VI, 492 - Coração Solitário Caçador - Carson
AS' Modernas Ideias na Literatura Portu­ McCullers
guesa, Teófilo Braga 493 - Uma Campanha Alegre - I, Eça de Quei­
461 - Não Matem a Cotovia, Harper Lee rós
462 - História da Literatura Portuguesa - VII. 494 - Uma Campanha Alegre - II, Eça de
As Modernas Ideias na Literatura Portu­ Queirós
guesa, Teófilo Braga 495 - 'JUdo Tem um Preço - Hans Hellmut
463 - Notícia da Cidade Silvestre, Lídia Jorge Kirst
464 - Em Busca do Tempo Perdido - VIII, O 496 - Viamorolência - Urbano Tavares Rodri­
Tempo Redescoberta, Marcel Proust gues
465 - Motim em Julho, Erskine Cald\j'ell 497 - Os Revoltados do Caine, Herman Wouk
466 - Escritos fntimos, Cartas e Páginas Auto­ 498 - O Cavaleiro de Maison·Rouge - I, Ale­
-biográficas, Fernando Pessoa xandre Dumas
467 - Textos de Intervenção Social e Cultural - 499 - O Cavaleiro de Maison-Rouge - II, Ale-
A Fia;ão dos Heterónimos, Fernando Pes­ xandre Dumas
soa 500 - Casa da Malta, Fernando Namora
468 - livro do Desassossego, por Bernardo Soa­ 501 - Porgy e Bess, DuBose Heyward
res - I Parte, Fernando Pessoa 502 - «Ciepsidra>> e Poemas Dispersos, Camilo
469 - Livro do Desassossego, por Bernardo Soa­ Pessanha
res - II Parte, Fernando Pessoa 503 - OJntos, Crónicas, Cartas Escolhidas e
470 - Ficção e Teatro - O Banqueiro Anar­ Textos de Temática Chinesa, Camilo Pes­
quista, Novelas Polidárias, O Marinheiro sanha
e Outros. Fernando Pessoa. 504 - Tanta Gente, Mariana, Maria Judite de
471 - A Procura da Verdade Oculta - Textos Carvalho
Filosóficos e Esotéricos, Fernando Pessoa 505 - A Cidade e os Cães, Mario Vargas Llosa
472 - Portugal, Sebastianismo e Quinto Impé­ 506 - O Mercador de Veneza, William Shakes-
rio, Fernando Pessoa peare
473 - Páginas de Pensamento Político - I, 507 - Um Homem, Oriana Fallaci
!910-1919, Fernando Pessoa 508 - Prosas Bárbaras, Eça de Queirós
474 - Páginas de Pensamento Político - ll, 509 - Dias Lamacentos, Urbano Tavares Ro­
!925-1935, Fernando Pessoa drigues
475 - Páginas Sobre Literatura e Estética, Fer- 5!0 - O Centauro, John Updike
nando Pessoa 5 I J - O Mistério da Estrada de Sintra, Eça de
476 - Adeus, Mr. Chips, James Hilton Queirós
477 - Ecce Homo, Nietzsche 512 - Exodus, Leon Uris
478 - Rapazes e Raparigas, William Saroyan 513 - A Amante Inglesa, Marguerite Duras
479 - Os Filhos da Capitão Grant - I, Júlio 514 - Primeiro Amor. Turgenev
Verne 515 - O Castelo dos Cárpatos, Júlio Verne
480 - Os Filhos do Capitão Grant - II, Júlio 516 - Don Comi/lo e o Seu Pequeno Mundo,
Verne Giovannino Guareshi
481 - Os Filhos do Capitão Grant - III, Júlio 517 - O Segredo de Wühelm Storitz, Júlio Verne
Verne 518 - Ligações Perigosas, Choderlos de Laclos
482 - O Covil, Franz Kafka 519 - A Ilha do Tesouro, Robert Louis Steven-
483 - Pigmalião, Bernard Shaw son
484 - Soyonara, James A. Michener 520 - Don Camillo e o Seu Rebanho, Giovan­
485 - Rocambole - A Herança Misteriosa - I, nino Guareschi
Ponson du Terrail 52! - O Garden Party, Katherine Mansfield
486 - Rocambole - A Herança Misteriosa - 522 - O Camarada Don Comi/lo, Giovannino
ll, Ponson du Terrail • Guareschi
487 - Hora Di Bai, Manuel Ferreira 52� - Emflio - I, Jean· Jacques Rousseau
488 - Rocambole - O Clube dos Valetes de Co­ 524 - Emílio· - II, Jean-Jacques Rousseau
pas - !II, Ponson du Terrail 525 - O Homem DisjQJ'Çado, Fernando Namora
489 - A Cidadela, A. J. Cronin

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