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EUROPA-AMÉRICA JEAN-JACQUES
EMÍLIO ROUSSEAU
EUROPA-AMÉRICA
Grandes Obras
«P�a o meu Emílio, se teve simprlCl"dade e bom-senso durante
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a sua mfância, tenho a certeza de que tera_ alma e sensibilidade du-
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cante a sua J·uventude,· po que a verdade dos sentimentos depende
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Neste segundo voluine de Emz'/." Rousseau debruça-se sobre a
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das viagens na formação do jovem e, fmalmente, o contrato de ca-
sarnento.
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A arte e a energia reveladas em E '/." tornam-no um livro para
todas as épocas e gerações de educa r .
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ISBN 972-1-02988-2
5 601072 555242
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
E MIL IO
Volume II
Publicaçoes Europa-Amêrica
Título original: Émile ou de l'éducation
Capa: estúdios P. E. A.
Execução técnica:
Gráfica Europam, L.da,
Mira-Sintra- Mem Martins
L.B.524-2
aqueles em que os sucessivos desenvolvimentos se processam se
gundo a ordem da natureza.
Uma criança amoldada, polida, civilizada, que só espera pela
oportunidade de pôr em prática as instruções que precocemente
recebeu, nunca se engana quanto ao momento em que essa opor
tunidade se lhe apresenta. Longe de esperar por ela, precipita-a,
dá ao seu sangue uma fermentação precoce e sabe qual deverá ser
o objecto dos seus desejos,muito tempo antes de os experimentar.
Não é a natureza que a excita,é a criança quem a força: aquela não
tem mais nada para lhe ensinar,fazendo-a adulta, pois ela já o era
pelo pensamento, muito tempo antes de o ser efectivamente.
O verdadeiro andamento da natureza é mais gradual e mais
lento. Pouco a pouco, o sangue inflama-se, os espíritos elaboram
-se, o temperamento forma-se. O operário avisado que dirige a fá
brica tem o cuidado de aperfeiçoar todos os instrumentos antes de
os utilizar: uma prolongada preocupação precede os primeiros de
sejos, uma prolongada ignorância ilude-os; deseja-se, mas não se
sabe o quê. O sangue fermenta e agita-se; uma superabundância
de vida procura espraiar-se para o exterior. O olhar anima-se e
percorre os outros seres, comeca-se a sentir interesse por aqueles
que nos rodeiam, começa-se a sentir que não somos feitos para vi
ver sós: é deste modo que o coração se abre para os afectos huma
nos e se torna capaz de afeição.
O primeiro sentimento de que o jovem bem educado é capaz,
não é o amor, é a amizade. O primeiro acto da sua imaginação nas
cente é ensinar-lhe que ele tem semelhantes,e a espécie afecta-o
antes do sexo. Eis, por conseguinte,mais uma vantagem que a pro
longada inocência oferece: aproveitar a sensibilidade nascente pa
ra lançar no coração do jovem adolescente as primeiras sementes
da humanidade: vantagem essa que é tanto mais preciosa quanto
é certo que se trata do único momento da vida em que os mesmos
cuidados podem obter um verdadeiro êxito.
Sempre constatei que os jovens que, muito cedo, foram cor
rompidos, e que se dedicavam exclusivamente às mulheres e ao
deboche, eram desumanos e cruéis; que o ímpeto do seu tempera
mento os tornava impacientes, vingativos, furiosos; que a sua
imaginação,absorvida por um único objecto,se desinteressava de
todos os outros; que não conheciam nem a piedade nem a miseri
córdia; que seriam capazes de sacrificar o próprio pai, a própria
mãe, o universo inteiro, ao mais ínfimo dos seus prazeres. Pelo
contrário,um jovem educado numa feliz simplicidade sente-se im
pelido, pelos primeiros movimentos da natureza, para as paixões
ternas e afectuosas: o seu cor ação comp assivo comove-se com as
mágoas dos seus semelhantes; estremece de satisfação quando re
vê o seu companheiro, os seus braços sabem abraçar com carinho,
os seus olhos sabem verter lágrimas de compaixão; é sensível à ver-
18 gonha de desagradar, ao remorso de ter ofendido. Quando o ardor
de um sangue que se inflama o torna vivo, arrebatado,colérico,um
momento depois mostra toda a bondade do seu coração na efusão
do seu arrependimento; chora, geme sobre o ferimento que fez; es
taria disposto a dar o seu sangue em troca daquele que fez verter;
todo o seu arrebatamento se apaga, todo o seu orgulho se humilha
perante o sentimento da sua falta. Se é ele próprio que se sente
ofendido: no auge da sua fúria, uma explicação ou palavra de
desculpa desarma-o; põe. tão boa vontade a perdoar os erros dos
outros como a reparar os seus. A adolescência não é a idade da
vingança nem do ódio; é a idade da comiseração, da clemência, da
generosidade. Sim - declaro-o e não receio ser desmentido pela
experiência -, um jovem, filho de uma família honesta e que, até
aos 20 anos, conservou a sua inocência, quando chega a essa ida
de mostra-se o mais generoso, o melhor, o mais amante e o mais
amável dos homens. Nunca vos disseram nada que se assemelhe
a isto; não duvido; os vossos filósofos, educados em toda a corrup
ção gos colégios, não têm a obrigação de o saber.
E a fraqueza do homem que o torna sociável; são as nossas mi
sérias comuns que levam os nossos corações a interessar-se pela
humanidade: não lhe deveríamos nada, se não fôssemos homens.
Todos os afectos são indícios de insuficiência: se cada um de nós
não tivesse necessidade dos outros, nunca pensaria em unir-se a
eles. Assim, da nossa própria enfermidade,nasce a nossa frágil fe
licidade. Um ser verdadeiramente feliz é um ser solitário; só Deus
goza de uma felicidade absoluta; mas qual de nós faz uma ideia do
que isso seja? Se algum ser imperfeito se pudesse bastar a si mes
mo, de que desfrutaria ele, na nossa opinião? Estaria só, seria mi
serável. Não posso acreditar que aquele que não precisa de nada
possa amar alguma coisa: não acredito que aquele que não ama na
da se possa sentir feliz.
Daí se segue que nos apegamos aos nossos semelhantes menos
pelo sentimento dos seus prazeres que pelo das suas mágoas; por
que nelas vemos muito melhor a identidade da nossa natureza e as
garantias da sua dedicação por nós. Se as nossas necessidades
comuns nos unem por interesse,as nossas misérias comuns unem
-nos por afecto. O aspecto de um homem feliz inspira aos outros
menos amor que inveja; facilmente estariam dispostos a acusá-lo
de usurpar um direito que não tem, construindo-se uma felicida-
de para uso exclusivo; e o amor-próprio também sofre, fazendo
-nos sentir que esse homem não tem necessidade nenhuma de nós.
Mas quem é que não se condói de um infeliz que vê a sofrer? Quem
é que não estaria disposto a livrá-lo dos seus males se, para isso,
bastasse um desejo? A imaginação mais facilmente nos coloca n o
lugar do miserável que no do homem feliz; sentimos que um des
ses estados nos impressiona mais que o outro. A piedade é doce,
porque,pondo-nos no lugar daquele que sofre,nos faz sentir o pra
zer de não sofrer como ele. A inveja é amarga, porque o aspecto de 19
um homem feliz, longe de pôr o invejoso no seu lugar, lhe dá a
amargura de nele não se encontrar. Parece que um nos isenta dos
males de que sofre, e que o outro nos retira os bens de que desfruta.
Quereis, pois, excitar e alimentar, no coração de um jovem, os
primeiros movimentos da sensibilidade nascente e dirigir o seu ca
rácter para a caridade e para a bondade? Não deixeis germinar
nele o orgulho, a vaidade ou a inveja, com a enganadora imagem
da felicidade dos homens; não comeceis por expor aos seus olhos a
pompa das cortes, o fausto dos palácios, o atractivo dos espectá
culos; não o leveis aos círculos, às brilhantes assembleias, não lhe
mostreis o exterior da grande sociedade antes de o terdes posto em
estado de a avaliar pelo que ela representa. Mostrar-lhe o mundo
antes de ele conhecer os homens não é formá-lo, é corrompê-lo;
não é instruí-lo, é enganá-lo.
Naturalmente, os homens não são nem reis, nem grandes, nem
cortesãos, nem ricos; todos nasceram nus e pobres, todos eles sujei
tos às misérias da vida,aos desgostos,às doenças, às necessidades,
às dores de todas as espécies; enfim, todos eles estão condenados
à morte. Eis o que é verdadeiramente próprio do homem; eis aquilo
de que nenhum mortal pode escapar. Começai,pois, por estudar
da natureza humana - o que mais inseparável é dela, o que me
lhor constitui a humanidade.
Aos 16 anos, o adolescente sabe o que é sofrer; porque ele pró
prio já sofreu; mas mal sabe que outros seres também sofrem; vê
-lo sem o sentir não é sabê-lo, e - como já cem vezes afirmei -,
pois a criança não imagina o que os outros sentem, quanto a ma
les só conhece os seus: mas, quando o primeiro desenvolvimento
dos sentidos acende nela a centelha da imaginação, começa a sen
tir-se nos seus semelhantes,� comover-se com os seus queixumes
e a sofrer com as suas dores. E então que o triste quadro da huma
nidade sofredora deverá levar até ao seu coração a primeira com
paixão que ela experimenta.
Se esse momento não é fácil de notar nos vossos filhos, a quem
atribuís a culpa? Ensinais-lhes tão precocemente a fingir o senti
mento, ensinais-lhes tão precocemente a sua linguagem, que, fa
lando sempre no mesmo tom, eles aprenderam as lições que lhes
destes contra vós mesmos, e não vos deixam nenhum meio de
distinguir quando - deixando de fingir -eles começam a sentir
o que dizem. Mas observai o meu Emílio; até à idade a que o condu
zi, nunca sentiu nem mentiu. Enquanto não soube o que era gostar
de alguém,nunca disse a nenhuma pessoa: «Gosto de vós»; ninguém
lhe ensinou o comportamento.que deveria ter quando entrasse no
quarto de seu pai, de sua mãe ou do seu governante quando algum
deles estivesse doente; ninguém lhe ensinou a arte de aparentar a
tristeza que não sente. Nunca fingiu chorar a morte de ninguém;
porque não sabe o que significa morrer. A mesma insensibilidade
20 que tem no coração tem-na nas suas maneiras. Indiferente a tu-
do quanto não seja a sua própria pessoa - como todas as crian
ças -, não se interessa por ninguém; tudo quanto o distingue das
outras crianças é o não querer fingir que se interessa por alguém
e o não ser falso como elas.
Emílio, como pouco reflectiu sobre os seres sensíveis, só mui
to tarde virá a saber o que é sofrer e morrer. Os queixumes e os gri
tos começarão a agitar as suas entranhas; o aspecto do sangue que
se derrama fá-lo-á desviar o olhar; as convulsões de um animal
que expira provocarão nele não sei que espécie de angústia, antes
de ele saber a que se devem esses novos sentimentos. Se tivesse
continuado a ser estúpido e bárbaro, não os experimentaria; se fos
se mais instruído, saberia a sua causa: já comparou demasiadas
ideias para não sentir nada, mas não as bastantes para compreen
der o que sente.
Deste modo nasce a piedade, primeiro sentimentorelativo que
toca o coração humano, segundo a ordem da natureza. Para se tor
nar sensível e compassiva, é necessário que a criança saiba que
existem seres semelhantes a ela, que sofrem o que ela sofreu, que
sentem as dores que ela sentiu e outras de que ela deve fazer uma
ideia, por poder vir a senti-las também. Efectivamente, como nos
poderíamos deixar comover piedosamente se não fosse transpor
tando-nos para além de nós mesmos e identificando-nos com o
animal sofredor, abandonando, por assim dizer, o nosso próprio ser
para integrarmos o seu? Só sofremos aquilo que consideramos que
ele sofre; não é em nós, mas nele, que sofremos. Assim, só nos tor
namos sensíveis quando a nossa imaginação se anima e começa a
transportar-nos para além de nós.
Para excitar e alimentar essa sensibilidade nascente, para a
dirigir ou deixar seguir o seu caminho natural, outra coisa não po
deremos fazer que não seja apresentar ao jovem objectos sobre os
quais se possa exercer a força expansiva do seu coração, que o di
latem, que o expandam por sobre todos os outros seres, que o levem
a ver-se exterior a si mesmo, em toda a parte; ter o cuidado de
apartar dele os objectos que o oprimem, o concentram e retesam a
mola do seu eu humano; isto é, por outros termos, exacerbar nele
a bondade, a humanidade, a comiseração, a caridade, todas as pai
xões atraentes e doces que agradam naturalmente aos homens, e
impedir o nascimento da inveja, da cobiça, do ódio, de todas as pai
xões repugnantes e cruéis que tornam, por assim dizer, a sensibi
lidade não apenas nula mas negativa, e que provocam o tormento
daquele que as experimenta.
Creio poder resumir todas as reflexões precedentes em duas ou
três máximas precis a,, clara::; e fácei:s de compreender.
21
PRIMEIRA MÁXIMA
SEGUNDA MÁXIMA
L. B. S24 - 3
no signifique alguma coisa paraela. Não,essa sensibilidade come
çará por se limitar aos seus semelhantes; e os seus semelhantes
não serão pessoas que ele não conhece, mas aquelas com as quais
tem ligações, aquelas que o hábito lhe tornou caras ou necessárias,
aquelas que, evidentemente, ele vê que têm maneiras de pensar e
de sentir iguais às dele, aquelas que ele vê expostas às mesmas pe
nas que ele já experimentou, em resumo, aquelas para as quais a
identidade de natureza, mais manifestada, lhe dá uma maior dis
posição para amar. Só depois de ter cultivado o seu natural de mil
maneiras, depois de muitas reflexões sobre os seus próprios sen
timentos e sobre os que observar nos outros, ele poderá conseguir
generalizar as suas noções individuais sob a ideia abstracta de
humanidade, e juntar - às suas afeições particulares - as que o
podem identificar com a sua espécie.
Ao tornar-se capaz de afecto, torna-se sensível ao dos outros1
e, por isso mesmo, atento aos sinais desse afecto. Vedes que novo
domínio ireis adquirir sobre ele? Quantas correntes pusestes em
volta do seu coração, sem que ele desse por isso! ? O que ele não irá
sentir, quando - ao abrir os olhos sobre si mesmo - vir o que fi
zestes por ele; quando se puder com parar aos outros jovens da sua
idade e comparar-vos com os outros governantes! Digo quando e
le vir, mas não lho digais; se lho disserdes, ele não o poderá ver. Se
exigirdes dele obediência - em retribuição dos cuidados que lhe
prodigalizastes -imaginará que o enganastes: para consigo mes
mo, dirá que, fingindo ser-lhe prestável desinteressadamente, o
pretendestes carregar com uma dívida e acorrentá-lo através de
um contrato em que ele não consentiu. Será em vão que acrescen
tareis que o que dele exigis é unicamente para seu bem: exigis, no
fim de contas, e exigis em virtude do que fizestes sem o seu consen
timento. Quando um infeliz recebe o dinheiro que se finge dar-lhe,
e se encontra comprometido mesmo sem o saber, dizeis que isso é
uma injustiça: não sereis ainda mais injusto quando pedis ao vos
so pupilo que vos pague os cuidados que ele não vos pediu?
A ingratidão seria mais rara se os benefícios usurários fossem
menos conhecidos. Gostamos daquilo que nos faz bem; é um sen
timento tão natural! A ingratidão não está no coração do homem,
mas o interesse sim: há menos obrigados ingratos que benfeitores
interessados. Se me quereis vender os vossos dons, eu discutirei o
seu preço; mas, se fingis que mos dais para, em seguida, mos fazer-
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nossos preconceitos insensatos. Se, no desempenho das minhas
funçõesjunto de Emílio, alguém me pregasse um bofetão, longe de
me vingar desse bofetão, iria gabar-me, por toda a parte, de o ter
recebido; e duvido de que h aja, neste mundo, um homem suficien
temente viP para não me respeitar ainda mais por isso.
Isto não quer dizer que o pupilo deva supor que o mestre tem
ideias tão limitadas como as suas e que se deixa seduzir com a mes
m a facilidade. Essa opinião é boa para uma criança que, não saben
do ver nada e não sabendo fazer comparações, considera toda a
gente por si própria e só concede a sua confiança àqueles que são
capazes de, efectivamente, se porem ao seu nível. Mas um jovem
com a idade de Emílio, e tão sensato como ele, já não é tão tolo que
acredite nisso e não seria aconselhável que acreditasse. A confiança
que ele deve ter no seu governante é de uma espécie completa
mente diferente: deve basear-se na autoridade da razão, na su
perioridade dos conhecimentos, nas vantagens que o jovem tem a
capacidade de conhecer e cuja utilidade compreende. Uma longa
experiência já o convenceu de que é amado pelo seu guia; que es
se guia é um homem sage, esclarecido, que, desejando a sua felici
dade, sabe o que lha pode proporcionar. Deve saber que, no seu pró
prio interesse, tem toda a conveniência em prestar atenção aos
seus conselhos. Ora, se o mestre se deixasse enganar como o discí
pulo, perderia o direito de dele exigir deferência e de lhe dar lições.
O discípulo também não deve pensar que, propositadamente, o
mestre o deixa cair em embustes e se aproveita da sua simplicida
de para o fazer cair em armadilhas. Então, que será conveniente
fazer para evitar, simultaneamente, estes dois inconvenientes? O
que há de melhor e de m ais natural: ser simples e sincero, como ele;
avisá-lo dos perigos a que se expõe; mostrar-lhos claramente, sen
sivelmente, mas sem exageros, sem má disposição, sem pretensões
pedantescas, sobretudo sem lhe dar os conselhos como se fossem
ordens, até que eles o sej am, e que esse tom imperioso seja abso
lutamente necessário. Mesmo assim, ele continua a obstinar-se?
Nesse caso, não lhe digais mais nada; deixai-o em liberdade,
segui-o, imitai-o, e tudo isso alegremente, francamente; entregai
-vos, diverti-vos, tanto quanto ele, se possível. Se as consequên
cias se mostrarem excessivamente fortes, estais lá para as aparar;
entretanto, testemunha da vossa previdência e da vossa compla
cência, como o jovem se deverá sentir impressionado com uma e
compadecido com a outra! Todos os seus erros são outros tantos
elos que ele vos fornece para o reterdes, se disso houver necessida
de. Ora, onde se vê a m aior arte do mestre é na m aneira de provo
car as ocasiões e de dirigir as exortações de modo a que saiba, de
1
50 Estava enganado, descobri um: é M. Formey.
antemão, quando o jovem cederá e quando ele se obstinará, a fim
de o rodear com as lições da experiência, mas sem nunca o expor
a exagerados perigos.
Avisai-o dos seus erros, antes que ele os cometa: mas, depois
de ele os ter cometido, não lhos censurais; apenas conseguiríeis ir
ritar e aumentar o seu amor-próprio. Uma lição que revolta não dá
proveito. Não conheço nada mais tolo que esta frase: <<Eu bem vos
tinha prevenido.» O melhor sistema para conseguir que ele se lem
bre do que lhe foi dito é parecer tê-lo esquecido. Pelo contrário,
quando o virdes envergonhado por não ter acreditado no que lhe
dissestes, apagai carinhosamente essa humilhação, com palavras
amigas. Certamente que ele se afeiçoará a vós, quando vir que vos
sacrificais por ele e que, em vez de o espezinhardes completamen
te, o consolais. Mas se ao seu desgosto acrescentardes censuras
acabará por odiar-vos e decidirá nunca mais dar ouvidos às vos
sas palavras, como para vos provar que não tem a mesma opinião
que vós sobre a importância dos vossos conselhos.
A maneira como o consolardes também pode constituir, para
ele, uma lição bastante mais útil, se ele não desconfiar da vossa in
tenção. Se, por exemplo, lhe disserdes que há milhares de jovens
que cometem os mesmos erros, ele sentir-se-á desconcertado;
corrigi-lo-eis, parecendo estar a lastimá-lo; pois, para aquele que
supõe valer mais que os outros homens, é muito doloroso consolar
-se com o seu exemplo: é reconhecer que o máximo a que pode pre
tender é afirmar que eles não valem mais que ele.
A idade dos erros é a das fábulas. Censurando o culpado sob
uma máscara desconhecida, instrui-se-lo sem o ofender; e então
ele compreende que o apólogo não é uma mentira, através da ver
dade que lhe foi aplicada. A criança que nunca foi enganada com
lisonjas não compreende nada da fábula que examinei; mas o
estouvado que acaba de ser enganado por um lisonjeador com
preende perfeitamente que o corvo não passava de um tolo. Assim,
com um facto fixa uma máxima; e, através da fábula, a experiência
que ele rapidamente teria esquecido fica gravada no seu entendi
mento. Não há conhecimento moral que não se possa adquirir pe
la experiência: de outrém ou nossa. No caso de essa experiência ser
perigosa, em vez de a fazermos podemos aprendê-la com uma da
História. Quando a experiência não tem consequências, é conve
niente que o jovem seja exposto a ela; depois, através do apólogo,
redigem-se, como máximas, os casos particulares que lhe são
conhecidos.
No entanto, não pretendo dizer que essas máximas devam ser
desenvolvidas ou enunciadas. Não há nada que seja tão inútil, tão
mal compreendido, como a moral pela qual termina a m aioria das
fábulas. Como se essa moral não estivesse ou não devesse ter sido
compreendida durante a leitura da própria fábula, de modo a
torná-la sensível ao leitor! Porquê se acrescenta sempre essa 51
moralidade no fim, tirando ao leitor o prazer de a encontrar por si
próprio? O talento de instruir consiste em fazer que o discípulo
sinta prazer em receber a instrução. Ora, para que ele tenha esse
prazer, é necessário que o seu espírito não permaneça de tal mo
do passivo a tudo quanto lhe dizeis, que não tenha,absolutamen
te nenhum esforço a fazer para vos compreender. E preciso que o
amor-próprio do mestre deixe sempre algumas possibilidades ao
do pupilo; é necessário que este possa pensar: «Concebo, com
preendo, actuo, instruo-me>>. Uma das coisas que tornam enfado
nho o Pantalon1 da comédia italiana é a preocupação que ele tem
de explicar, aos espectadores, algumas banalidades que todos
estão fartos de ouvir. Não pretel)do que um governante seja Pan
talon e muito menos um autor. E sempre necessário que nos com
preendam; mas não é indispensável dizer sempre tudo: aquele que
. diz tudo diz poucas coisas, porque, por fim, ninguém lhe presta
atenção. O que significam esses quatro versos que La Fontaine
acrescenta à fábula da rã que incha? Terá receio de que não o te
nham compreendido? Tem alguma necessidade, esse grande pin
tor, de escrever o respectivo nome por debaixo de cada objecto que
descreve? Longe de, por esse meio, generalizar a sua moralidade,
especifica-a, restringe-a, de certo modo, aos exemplos citados, e
impede que a apliquem a outros. Gostaria de que, antes de pôr as
fábulas deste autor inimitável entre as mãos de um jovem, se lhes
retirassem todas essas conclusões com as quais ele se dá ao traba
lho de explicar o que acaba de dizer tão clara quanto agradavel
mente. Se o vosso pupilo só compreende a fábula com o auxílio da
explicação, podeis ter a certeza de que mesmo assim não a com
preenderá.
Seria ainda conveniente dar a essas fábulas uma ordem mais
didáctica e mais em conformidade com os progressos dos sentimen
tos e das luzes dojovem adolescente. Poderá imaginar-se algo me
nos razoável que seguir exactamente a ordem numérica do livro,
sem atender à necessidade nem à oportunidade? Primeiro o corvo,
depois a cigarra2, a seguir a rã, as duas mulas, etc. Ainda não con
segui digerir essa das duas mulas, porque me recordo de ter visto
uma criança - educada para a finança e à qual recordavam
constantemente a profissão que teria de desempenhar- ler essa
fábula, decorá-la, recitá-la centenas de vezes, sem nunca se sen
tir inspirada para fazer uma objecção contra a profissão para que
a tinham destinado. Não só nunca vi crianças fazerem nenhuma
aplicação sólida das fábulas que decoravam como também nunca
L.B.S24-S
-todo inteiro em todos os momen tos da sua vida - não chegue a
um determinado ponto através de uma das suas faculdades e a ou- ·
Meu filho, não espereis de mim nem sábios discursos nem ra
ciocínios profundos. Não sou um grande filósofo e pouco interes
sado estou em sê-lo. Mas, por vezes, tenho bom-senso, e amo sem
pre a verdade. Não pretendo argumentar convosco, nem sequer
tentar convencer-vos; basta-me expor-vos o que penso na simpli
cidade do meu coração. Consultai o vosso, durante o meu discur
so; é tudo quanto vos peço. Se estou enganado, é de boa-fé; isso é
quanto basta para que o meu erro não me seja imputado como um
crime: se vos enganásseis da mesma maneira, pouco mal haveria
nisso. Se penso bem, a razão é-nos comum, e temos o mesmo inte
resse em escutá-la; por que não haveríeis de pensar como eu?
Nasei camponês e pobre, destinado - pela minha condição
a cultivar a terra; mas acharam mais bonito que eu aprendesse a
ganhar o meu pão na profissão de sacerdote, e encontraram a ma
neira de me pagar os estudos. Realmente, nem os meus pais nem
eu pensávamos procurar nela o que era bom, verdadeiro, útil, mas
unicamente o que era preciso saber para ser ordenado. Aprendi o
que aeh aram que devia aprender, disse o que quiseram que disses
se, fiz os votos que me ditaram, e ordenaram-me padre. Mas não
tardei a sentir que, obrigando-me a não ser homem, prometera
mais do que podia cumprir.
Dizem-nos que a consciência é a obra dos preconceitos; contu
do, sei por experiência própria que ela se obstina a seguir a ordem
72 da natureza, contra todas as leis dos homens. Bem nos podem proi-
mesmo: «Amo a verdade, procuro-a e não consigo reconhecê-la;
que ma mostrem e agarro-me a ela� por que motivo se esquiva ela
ao interesse de um coração feito para a adorar?»
Embora tenha muitas vezes experimentado males maiores,
nunca levei uma vida tão constantemente desagradável como nes
sa época de perturbações e de ansiedade, em que, errando, cons
tantemente, de dúvida em dúvida, das minhas longas meditações
apenas recolhia incerteza, obscuridade, contradições sobre a cau
sa do meu ser e sobre a regra dos meus deveres.
Como é possível ser-se simultaneamente céptico, por sistema,
e de boa-fé? Nunca o poderei compreender. Esses filósofos, ou bem
não existem ou então são os mais infelizes de todos os homens. A
dúvida sobre as coisas que nos importa conhecer é um estado de
masiado violento para o espírito humano: não lhe pode resistir du
rantemuito tempo; mesmosem querer, acaba porterde decidir, de
uma ou de outra maneira, e prefere ficar no engano a nada crer.
O que redobrava a minha confusão era o facto de que, tendo
nascido numa Igreja que tudo decide, que não autoriza nenhuma
dúvida, um único ponto rejeitado obrigava-me a rej eitar todos os
outros, e de que a impossibilidade de admitir tantas decisões ab
surdas também me impedia de admitir aquelas que o não eram. Di
zendo-me: «Crede em tudo!», impediam-me de crer fosse no que
fosse, e eu já nem sabia onde me deter.
Consultei os filósofos, folheei os seus livros, examinei as suas
diversas opiniões; achei-os todos orgulhosos, afirmativos, dog
máticos ---'- mesmo no seu pretenso cepticismo -, não ignorando
nada, não demonstrando nada, troçando uns dos outros; e esse
ponto, que é comum a todos eles, pareceu-me ser o único em que
todos concordavam. Triunfantes quando atacam, não têm vigor
quando se defendem. Se examinais as suas razões, só as têm pa
ra destruir; se contais os seus caminhos, cada um está limitado ao
seu; só se põem de acordo para discutir; prestar-lhes ouvidos não
era o meio de me livrar da minha incerteza.
Compreendi que a insuficiência do espírito humano é a pri
meira causa dessa prodigiosa diversidade de sentimentos, e que o
orgulho é a segunda. Nós não temos amedida dessa imensa máqui
na, não podemos calcular as suas proporções; não lhe conhecemos
nem as primeiras leis nem a causa final; ignoramo-nos a nós mes
mos; não conhecemos nem a nossa natureza nem o nosso princípio
activo; mal sabemos se o homem é um ser simples ou composto:
mistérios impenetráveis rodeiam-nos por todos os lados; pairam
porcim a da região sensível; paraos compreendermos, supomos ter
inteligência, e apenas temos imaginação. Cada um de nós abre
através desse mundo imaginário - um caminho que supõe ser o
bom; nenhum de nós pode saber se o caminho que abriu conduz ao
objectivo que tem em mente. Porém, queremos compreender tudo,
74 tudo conhecer. A única coisa que não conseguimos é ignorar o que
bir isto ou aquilo, que o remorso nos censura sempre ligeiramen
te o que a natureza bem ordenada nos permite, e, com muito mais
razão, o que ela nos prescreve. Ó bom-jovem, ela ainda nada dis
se aos vossos sentidos: vivei muito tempo na condição feliz em que
a voz dela é a inocência. Lembrai-vos de que a ofendemos muito
m ais quando a prevenimos que quando a combatemos; é preciso
começar por aprender a resistir, para saber quando podemos ceder
sem cometer crime.
Desde muito jovem, sempre considerei o casamento como a
mais importante e a mais santa instituição da natureza. Tendo
-me retirado o direito de me submeter a ela, resolvi não a profanar;
porque, apesar dos estudos, tendo sempre vivido uma vida unifor
me e simples, conservara no meu espírito toda a luminosidade das
luzes primitivas: as máximas do m undo não as tinham escurecido,
e a minha pobreza afastava-me das tentações que ditam os sofis
mas do vício.
Estaresoluçãofoi precisamente o queme perdeu : o meurespei
to pelo leito de outrém deixou as minhas faltas a descoberto. Foi
preciso expiar o escândalo: detido, interdito, expulso, fui muito
mais a vítima dos meus escrúpulos que da minha incontinência; e,
pelas censuras que acompanharam a minha desgraça, tive mo
tivos para compreender que, muitas vezes, basta agravar a falta
para escapar ao castigo.
Poucas experiências deste género levam até longe um espíri
to que reflecte. Vendo, pelas minhas tristes observações, inverti
das as ideias que eu tinha do que era justo, honesto, e de todos os
deveres do homem, cada dia ia perdendo alguma das opiniões que
recebera; asqueme restavamjá não eram suficientes para, no seu
conjunto, formarem um corpo que se pudesse suster por si mesmo,
e, pouco a pouco, senti que, no meu espírito, a evidência dos prin
cípios se obscurecia, até que, finalmente, reduzido a já não saber
o que pensar, cheguei ao mesmo ponto em que vos encontrais; com
a diferença de que a minha incredulidade -fruto serôdio de uma
idade mais madura - se formara com mais dificuldade, e deveria
ser mais difícil de destruir.
Encontrava-me nessas disposições de incerteza e de dúvida
que Descartes exige para a busca da verdade. Este estado, pouco
feito para durar, é inquietante e penoso; só o interesse pelo vício ou
a preguiça da alma nos permitem estagnar nele. O meu coração
não estava suficientemente corrupto para me sentir bem nesse es
tado; e não há nada que melhor conserve o hábito da reflexão que
sentir-se mais satisfeito consigo próprio que com a sua fortuna.
Meditava, pois, na triste sorte dos mortais que flutuavam
sobre este oceano de opiniões humanas, sem leme, sem bússola, e
entregues às suas paixões tempestuosas, sem outro guia que não
fosse um piloto inexperiente que desconhece a sua rota, e que não
sabe, nem de onde vem nem para aonde vai. Dizia, para comigo 73
não conseguimos saber. Preferimos entregar-nos ao acaso, e crer
naquilo que não existe, a reconhecer que nenhum de nós pode com
preender o que é. Pequena parte de um grande todo cujos limites
não alcançamos, e cujo autor entrega às nossas loucas discussões,
somos suficientemente vãos para pretender decidir o que é esse to
do, e o que nós próprios somos, em relação a ele.
Mesmo que os filósofos tivessem a possibilidade de descobrir a
verdade, qual, de entre eles, se interessaria por ela? Cada um de
les sabe muito bem que o seu sistema não tem mais fundamentos
que os dos outros; mas sustenta-o, porque é seu. Não houve um
único que, tendo chegado a distinguir o verdadeiro e o falso, não ti
vesse preferido a mentira que encontrou à verdade descoberta por
outro. Onde se encontra o filósofo que, para defender a sua glória,
não enganaria cientemente o género humano? Onde se encontra
aquele que, no âmago do seu coração, tem outro propósito que não
seja o de se distinguir? Contanto que se eleve acima do vulgar, con
tanto que apague o brilho dos seus concorrentes, que mais deseja
ele? O essencial é pensar diferentemente dos outros. Para os cren
tes, é um ateu; para os ateus, seria um crente.
O primeiro fruto que retirei destas reflexões foi o de aprender
a limitar as minhas pesquisas ao que me interessava imediata
mente, a permanecer numa profunda ignorância quanto ao resto,
e a só me preocupar, até à dúvida, com as coisas que me interessa
va saber.
Também compreendi que, longe de me livrar das minhas inú
teis dúvidas, os filósofos só conseguiriam multiplicar as que me
atormentavam e não resolveriam nenhuma. Por conseguinte, es
colhi outro guia e disse para comigo mesmo: «Consultemos a luz in
terior, ela desorientar-me-á menos que eles, ou, pelo menos, o
meu engano será só meu, e depravar-me-ei menos seguindo as mi
nhas próprias ilusões que entregando-me às mentiras deles.»
Depois, voltando a considerar no meu espírito as várias opi
niões que me tinham sucessivamente influenciado desde o meu
nascimento, vi que, embora nenhuma delas fosse bastante eviden
te para produzir imediatamente a convicção, todas tinham vários
graus de verosimilhança, e que o assentimento interior se presta
va ou se recusava a elas, em diversas medidas. Feita esta primei
ra observação, e comparando entre si todas estas diferentes ideias
no silêncio dos preconceitos, cheguei à conclusão de que a primei
ra e a mais comum era também a mais simples e a mais razoável,
e que, para reunir todos os sufrágios, só lhe faltava ter sido propos
ta <>m último lugar. Imaginai todos os vossos filósofos, antigos e
modernos, tendo começado por esgotar os seus bizarros sistemas
de força, de probabilidades de fatalidade, de necessidade, de
átomos, de mundo animado, de matéria viva, de materialismo de
toda a espécie, e, depois deles todos, o ilustre Clarke esclarecendo
o mundo, anunciando finalmente o Ser dos seres e o dispensador 75
das coisas: com que universal admiração, com que aplauso unâni
me não teria sido recebido esse novo sistema, tão grande, tão con
solante, tão sublime, tão próprio para elevar a alma, para dar uma
base à virtude, e, simultaneamente, tão evidente, tão luminoso,
tão simples, e, ao que me parece, não apresentando menos coisas
incompreensíveis para o espírito humano que as absurdidades que
ele encontra em qualquer outro sistema! E eu dizia para comigo
mesmo: «As objecções insolúveis são comuns a todos, porque o es
pírito do homem é excessivamente limitado para as poder resolver;
por conseguinte, nada provam contra nenhum filósofo em especial:
mas que diferença entre as provas directas! O único que tudo expli
ca não deverá ser preferido, quando não apresenta mais dificulda
de que os outros?
Transportanto, pois, em mim, o amor da verdade como única
filosofia, e, como único método, uma regra fácil e simples que me
dispensa da vã subtileza dos argumentos, retomo, sobre essa re
gra, o exame dos conhecimentos que me interessam, resolvido a
admitir como evidentes todas aquelas às quais, na sinceridade do
meu coração, eu não poderei recusar o meu consentimento, como
verdadeiras todas aquelas que me paerecerem ter uma ligação ne
cessária com essas primeiras, e decidido a deixar todas as outras
na incerteza, sem as rejeitar nem admitir, e sem me atormentar
para as esclarecer, quando elas não conduzem a nada que possa re
velar-se útil na prática.
Mas quem sou eu? Que direito tenho de julgar as coisas? E que
determina os meus juízos? Se eles são provocados, forçados pelas
impressões que recebo, é em vão que me canso nessas buscas, e elas
não terão lugar, ou far-se-ão por si mesmas, sem que eu me preo
cupe em dirigi-las. Portanto, é necessário começar por virar os
meus olhares para mim mesmo, a fim de conhecer o instrumento
de que me quero servir, e de saber até que ponto me poderei fiar na
sua utilização.
Existo e possuo sentidos que me afectam. Eis a primeira
verdade que se me patenteia e com a qual sou forçado a concordar.
Terei um sentimento próprio da minha existência, ou só a sinto
através das sensações que experimento? Eis a minha primeira dú
vida, que, por agora, me é impossível resolver. Pois, estando cons
tantemente afectado por sensações -ou imediatas ou recordadas
-, como poderei saber se o sentimento do eu é alguma coisa exte
rior às minhas próprias sensações e pode ser independente delas?
As minhas sensações passam-se em mim, pois fazem-me sen
tir a minha existência; mas a sua causa é-me desconhecida, pois
elas afectam-me, e porque não depende de mim provocá-las ou fa
zê-las desaparecer. Por conseguinte, concebo nitidamente que a
minha sensação-que está em mim -e a sua causa ou o seu objec
to - que é exterior a mim - não são a mesma coisa.
76 Assim, não só eu existo como também existem outros seres, a
saber, os objectos das minhas sensações; e mesmo que esses
objectos não passassem de ideias, não deixaria de ser verdade que
essas ideias não são eu.
Ora, a tudo quanto sinto exterior a mim e que age sobre os
meus sentidos, chamo-lhe matéria; e a todas as porções de m até
ria que concebo reunidas em seres individuais, chamo-lhes corpos.
Assim, todas as discussões dos idealistas e dos materialistas não
significam nada para mim: as distinções que eles estabelecem so
bre a aparência e a realidade dos corpos são quimeras.
Eis-me, pois, já tão convencido da existência do universo como
da minha. A seguir, reflicto sobre os objectos das minhas sensa�
ções; e, encontrando em mim a faculdade de as comparar, sinto-me
dotado de uma força activa que ignorava possuir.
Aperceber é sentir; comparar é julgar; julgar e sentir não são
a mesma coisa. Através da sensação, os objectos apresentam-se-
. -me separados, isolados, tais como se encontram na natureza;
através da comparação, mexo-lhes, transporto-os, por assim
dizer, coloco-os um sobre o outro, para me pronunciar sobre a sua
diferença ou sobre a sua semelhança, e, geralmente, sobre todas as
relações que existem entre eles. A meu ver, a faculdade distintiva
do ser activo ou inteligente é a de poder dar um sentido a esta
palavra é. Em vão procuro, no ser puramente sensitivo, essa força
inteligente que sobrepõe e que, depois, decide: não a conseguiria
encontrar na sua natureza. Esse ser passivo sentirá cada objecto
separadamente, ou mesmo sentirá o objecto total formado pelos
dois; mas, como não dispõe de nenhuma força para os colocar um
sobre o outro, nunca os comparará: não os julgará.
Ver simultaneamente dois objectos não é ver as relações que há
entre eles nem ajuizar das suas diferenças; avistar vários objectos
separados uns dos outros não é determinar o seu número. Posso
ter, no mesmo momento, a ideia de um grande pau e de um pau pe
queno, sem os comparar, sem ajuizar que um é mais pequeno que
o outro, como também posso ver simultaneamente a minha mão in
teira, sem contar os meus dedos1 • Estas ideias comparativas,
m aior, mais pequeno, assim como as ideias numéricas de um, de
dois, etc., não são certamente sensações, embora o meu espírito só
as produza no momento das minhas sensações. Dizem-nos que o
ser sensitivo distingue as sensações, umas das outras, pelas dife
renças que elas têm entre si; ora, isto exige uma explicação: quan
do as sensações são diferentes, o ser sensitivo distingue-as porque
as sente independentes umas das outras. Se assim não fosse, como
1
Esse repouso é, por assim dizer, relativo; mas, como observamos o
mais e o menos no movimento, concebemos muito nitidamente um dos dois
termos extremos, que é o repouso, e concebemo-lo tão bem que nos senti
mos tentatos a considerar como absoluto o repouso que só é relativo. Ora,
não é verdade que o movimento seja a essência da matéria, se ela pode ser
concebida em repouso.
1
Os químicos consideram o flogisto - ou o elemento do fogo - co
mo esparso, imóvel e estagnante nos mistos de que faz parte, até que cau
sas alheias o soltem, o reúnam, o ponham em movimento e o transformem
em fogo. 79
natural da matéria é o repouso e de que, por si própria, não possui
nenhuma força para agir, que, vendo um corpo em movimento,
penso imediatamente ou que se trata de um corpo animado ou que
esse movimento lhe foi comunicado. O meu espírito recusa-se a
aceitar a ideia de que a matéria não organizada se possa mover por
si própria, ou produzir qualquer acção.
No entanto, este universo visível é matéria, esparsa e morta1 ,
que no seu todo não tem nada da união nem da organização do sen
timento comum das partes de um corpo animado, pois é certo que
nós, que somos partes, não nos sentimos, de modo nenhum, no to
do. Esse mesmo universo está em movimento, e, nos seus movi
mentos regrados, uniformes, submetidos a leis constantes, não há
nada dessa liberdade que se evidencia nos movimentos espontâ
neos do homem e dos animais. Por conseguinte, o homem não é um
grande animal que se mova por si mesmo; por conseguinte, nos
seus movimentos há alguma causa que lhe é alheia, causaessa que
ignoro; mas a persuasão interior torna-me essa causa de tal mo
do sensível, que não posso ver rolar o sol sem imaginar uma força
que o impele, e que, se a terra executa um movimento de rotação,
creio sentir uma mão que a faz girar.
Se é necessário admitir leis gerais cujas relações essenciais
com a matéria eu desconheço, em que é que isso me avança? Essas
leis, como não são seres reais, como não são substâncias, têm, por
conseguinte, algum outro fundamento que me é desconhecido. A
experiência e a observação deram-nos a conhecer as leis do movi
mento; essas leis determinam os efeitos sem mostrarem as causas;
não são suficientes para explicar o sistema domundo e o andamen
to do universo. Com dados, Descartes fechava o céu e a terra; mas
não pôde dar o primeiro impulso a esses dados, nem pôr em jogo a
sua força centrífuga sem o auxílio de um movimento de rotação.
Newton descobriu a lei da atracção; mas a atracção, por si só, em
breve reduziria o universo a uma massa imóvel: a essa lei teve de
se acrescentar uma força projectara, para fazer descrever curvas
aos corpos celestes. Que Descartes nos diga qual foi a lei física que
fez rodar os seus turbilhões; que Newton nos mostre a mão que lan
çou os planetas para a tangente das suas órbitas.
As primeiras causas do movimento não se encontram na ma
téria; esta limita-se a receber o movimento e a comunicá-lo, sem
o produzir. Quanto mais observo a acção e a reacção das forças da
natureza, agindo umas sobre as outras, mais me convenço de que,
1 Fiz todos os esforços que pude para imaginar uma molécula viva,
sem o conseguir. A ideia da matéria que sente sem ter sentidos parece-me
ininteligível e contraditória. Para adoptar ou rejeitar esta ideia, seria
preciso começar por compreendê-la, e confesso que não tenho essa felici-
80 dade.
de efeitos em efeitos, é sempre preciso remontar a alguma vonta
de, como causa primeira; porque supor um progresso infinito de
causas é o mesmo que não supor causa nenhuma. Em resumo, to
do o movimento que não é produzido por outro só pode provir de um
acto espontâneo, voluntário; os corpos inanimados só agem atra
vés do movimento, e não há verdadeira acção sem vontade. Eis o
meu primeiro princípio. Creio, portanto, que existe uma vontade
que faz mover o universo e anima a natureza. Eis o meu primeiro
dogma, ou o meu primeiro·artigo de fé.
Como é possível que uma vontade produza uma acção física e
corporal? Ignoro-o, mas sinto, em mim mesmo, que ela a produz.
Quando quero agir, ajo; quando quero mover o meu corpo, o meu
corpo move-se; mas que um corpo inanimado e em repouso se
comece a mover por si mesmo ou produza o movimento, isso é in
compreensível e não tem exemplo. A vontade é-me conhecida atra
vés dos seus actos, não pela sua natureza. Conheço essa'vontade
como causa motriz; mas conceber a matéria produtora do movi
mento é conceber claramente um efeito sem causa, é não conceber
absolutamente nada.
Não me é mais fácil conceber de que maneira a minha vontade
movimenta o meu corpo que conceber com o as sensações que tenho
afectam a minha alma. Nem sequer sei por que foi que um destes
mistérios pareceu mais explicável que o outro. Quanto a mim, se
ja quando estou passivo ou quando estou activo, o sistema de união
qas duas substâncias parece-me absolutamente incompreensível.
E muito estranho que se parta dessa própria incompreensibilida
de para confundir as duas substâncias, como se operações de na
turezas tão diferentes'se explicassem melhor num só assunto que
em dois.
O dogma que acabo de estabelecer é obscuro, é verdade; mas,
enfim, oferece um sentido, e não contém nada que repugne à razão
nem à observação: poder-se-á dizer a mesma coisa do materialis
mo? Não é evidente que se o movimento fosse essencial à matéria,
seria inseparável dela, permaneceria nela sempre com a mesma
intensidade, sempre idêntico em cada porção dela, seria incomuni
cável, não poderia aumentar nem diminuir, e nem sequer se
poderia conceber a matéria em repouso? Quando me dizem que o
movimento não lhe é essencial, mas necessário, pretendem iludir
-me com palavras que seriam mais fáceis de refutar se tivessem
um pouco mais de sentido. Pois, ou o movimento da matéria lhe
vem dela mesma, e, nesse caso, é-lhe essencial, ou, se lhe vem de
uma causa alheia, só é necessário à matéria na medida em que a
causa motriz actuasobre e la; penetramos na primeira dificuldade.
As ideias gerais e abstractas são a fonte dos maiores enganos
dos homens; nunca o calão da Metafísica conduziu à descoberta de
nenhuma verdade: só encheu a Filosofia de absurdidades de que
temos vergonha, quando as vemos despojadas das suas palavras 81
L. B.S24-6
de efeitos em efeitos, é sempre preciso remontar a alguma vonta
de, como causa primeira; porque supor um progresso infinito de
causas é o mesmo que não supor causa nenhuma. Em resumo, to
doo movimento que não é produzidopor outro só pode provir de um
acto espontâneo, voluntário; os corpos inanimados só agem atra
vés do movimento, e não há verdadeira acção sem vontade. Eis o
meu primeiro princípio. Creio, portanto, que existe uma vontade
que faz mover o universo e anima a natureza. Eis o meu primeiro
dogma, ou o meu primeiro-artigo de fé.
Como é possível que uma vontade produza uma acção física e
corporal? Ignoro-o, mas sinto, em mim mesmo, que ela a produz.
Quando quero agir, ajo; quando quero mover o meu corpo, o meu
corpo move-se; mas que um corpo inanimado e em repouso se
comece a mover por si mesmo ou produza o movimento, isso é in
compreensível e não tem exemplo. A vontade é-me conhecida atra
vés dos seus actos, não pela sua natureza. Conheço essa·vontade
como causa motriz; mas conceber a matéria produtora do movi
mento é conceber claramente um efeito sem causa, é não conceber
absolutamente nada.
Não me é mais fácil conceber de que maneira a minha vontade
movimenta omeu corpo que conceber como as sensações que tenho
afectam a minha alma. Nem sequer sei por que foi que um destes
mistérios pareceu mais explicável que o outro. Quanto a mim, se
ja quando estou passivo ou quando estou activo, o sistema de união
qas duas substâncias parece-me absolutamente incompreensível.
E muito estranho que se parta dessa própria incompreensibilida
de para confundir as duas substâncias, como se operações de na
turezas tão diferentes· se explicassem melhor num só assunto que
em dois.
O dogma que acabo de estabelecer é obscuro, é verdade; mas,
enfim, oferece um sentido, e não contém nada que repugne à razão
nem à observação: poder-se-á dizer a mesma coisa do materialis
mo? Não é evidente que se o movimento fosse essencial à matéria,
seria inseparável dela, permaneceria nela sempre com a mesma
intensidade, sempre idêntico em cada porção dela, seriaincomuni
cável, não poderia aumentar nem diminuir, e nem sequer se
poderia conceber a matéria em repouso? Quando me dizem que o
movimento não lhe é essencial, mas necessário, pretendem iludir
-me com palavras que seriam mais fáceis de refutar se tivessem
um pouco mais de sentido. Pois, ou o movimento da matéria lhe
vem dela mesma, e, nesse caso, é-lhe essencial, ou, se lhe vem de
uma causa alheia, só é necessário à matéria na medida em que a
causa motriz actua sobre ela: penetramos na primeira dificuldade.
As ideias gerais e abstractas são a fonte dos maiores enganos
dos homens; nunca o calão da Metafísica conduziu à descoberta de
nenhuma verdade: só encheu a Filosofia de absurdidades de que
temos vergonha, quando as vemos despojadas das suas palavras 81
L.B. 524 - 6
dência através da qual os seres que o compõem se prestam um au
XI1io mútuo. Considero-me como um homem que, pela primeira
vez, visse um relógio aberto, e que não deixaria de admirar a obra,
embora não soubesse como utilizar a máquina e não tivesse visto
o mostrador. «Não sei», diria ele, «para que serve tudo isto; mas
vejo que cada peça é feita para as outras; admiro o trabalho do
obreiro, no pormenor da sua obra, e tenho a certeza absoluta de que
todas estas rodas que assim andam, de concerto, tem uma finali
dade comum que me é impossível compreender.
Comparemos os fins particulares, os meios, as relações ordena
das de toda a espécie, e depois escutemos o sentimento interior;
qual o espírito são que se pode recusar ao seu testemunho? A que
olhos não prevenidos a ordem sensível do universo não anuncia
uma inteligência suprema? E quantos sofismas não será preciso
acumular para não ver a harmonia dos seres e o admirável concur
so de cada peça, para a conservação das outras? Digam-me tudo
o que quiserem sobre as combinações e as possibilidades; de que
vos serve reduzir-me ao silêncio, se não conseguis conduzir-me à
persuasão? E de que maneira me retirareis o sentimento involun
tário que,mesmo sem eu o querer, vos desmente sempre? Seos cor
pos organizados se combinaram fortuitamente, de mil maneiras
diferentes, antes de adquirir formas constantes; se, de início, se
formaram corpos sem bocas, pés sem cabeças, mãos sem braços, ór
gãos imperfeitos de todas as espécies e que pareceram por não se .
poderem conservar, por que motivo nunca vimos essas informes
tentativas? Por que foi que a natureza acabou por se ditar leis a
que, de início, não estava sujeita? Não me devo sentir surpreen
dido quando uma coisa acontece, se ela é possível e quando a difi
culdade do acontecimento é compensada pela quantidade das ma
nifestações; de acordo. Mas, se me viessem dizer que alguns carac
teres de tipografia, lançados ao acaso, deram, como resultado, a
Eneida, toda ordenada, desde o princípio até ao fim, não me daria
ao trabalho de fazer um passo para ir verificar a mentira. Esque-.
ceis-vos - dir-me-ão - da quantidade das manifestações. Mas,
dessas manifestações, quantas devo supor, para tornar a combi
nação verosímil? Cá por mim - que apenas vejo uma - posso
apostar o infinito contra um em como o seu produto não é efeito do
acaso. Acrescentai que combinações e possibilidades nunca darão
mais que produtos da mesma natureza que os elementos combina
dos, que a organização e a vida não resultarão de uma ideia de áto
mos, e que um químico que combine mistos nunca conseguirá que
eles sintam e pensem, no seu tubo de ensaio1•
1
Quem acreditaria- se disso não tivesse a prova- que a extrava
gância humana pudesse ser levada a esse ponto? Amatus Lusitanus asse
gurava ter visto, dentro de um copo, um homenzinho com a altura de um 83
Foi com surpresa, e quase com escândalo, que li Nieuwentit.
Como foi possível que esse homem tenha pretendido fazer um li
vro sobre as maravilhas da natureza, que patenteiam a sageza do
seu autor? Mesmo que fizesse um livro que fosse tão grande como
o mundo, não teria esgotado o seu assunto; e, desde o momento em
que se pretende entrar em pormenores, a maior maravilha escapa,
que é a harmonia e o acordo que há em tudo. A geração dos corpos
vivos e organizados é, só por si, o abismo do espírito humano; a
barreira intransponível que a natureza colocou entre as diversas
espécies, a fim de que elas não se misturassem, mostra as suas in
tenções com a maior evidência. Não se contentou em estabelecer a
ordem como também tomou medidas certas para que nada a pu
desse perturbar.
Não há um ser no universo que não possamos - sob um de
terminado ponto de vista -considerar como o centro comum de to
dos os outros, em redor do qual eles estão todos ordenados, de ma
neira que são todos reciprocamente fins e meios, uns em relação
aos outros. O espírito confunde-se e perde-se nessa infinidade de
relações, de entre as quais nem uma única está perdida entre a
multidão das outras. Quantas absurdas suposições para deduzir
toda esta harmonia do cego mecanismo da matéria fortuitamente
posta em movimento! Aqueles que negam a unidade de intenção
que se manifesta nas relações de todas as partes desse grande to
do, bem podem encobrir os seus galimatias de abstracções, de coor
denações, de princípios gerais, de termos emblemáticos; seja o que
for que fizerem, é-me impossível conceber um sistema de seres tão
constantemente ordenados sem conceber uma inteligência que os
ordena. Não depende de mim acreditar que a matéria passiva e
morta pôde produzir seres vivos e sensíveis, que uma fatalidade ce
ga pôde produzir seres inteligentes, que aquilo que não pensa ti
vesse podido produzir seres que pensam.
Portanto, creio que o mundo é governado por uma vontade po
derosa e sage; vejo-o, ou antes, sinto-o, e isso interessa-me saber.
Mas esse mundo é eterno ou foi criado? Haverá um princípio úni
co das coisas? Haverá dois ou vários? E de que natu_reza são? Não
sei absolutamente nada, e isso não me importa. A medida que
esses conhecimentos se forem tornando interessantes para mim,
(Salmos, 1 1 5.) 93
o inferno na outra vida? Ele já se encontra nesta, no coração dos
maus.
Onde cessam as nossas necessidades perecedouras, onde ter
minam os nossos desejos insensatos, também devem acabar as
nossas paixões e os nossos crimes. De que perversidade de espíri
tos puros seriam eles susceptíveis? Não tendo necessidade de na
da, por que motivo seriam maus? Se, desprovidos dos nossos gros
seiros sentidos, toda a sua felicidade residisse na contemplação
dos seres, só poderiam desejar o bem; e quem deixa de ser mau po
derá ser eternamente miserável? Eis aquilo em que me sinto ten
tado � acreditar, sem me dar ao trabalho de decidir se é assim ou
não. O Ser clemente e bom! Sejam quais forem os teus decretos,
adoro-os; se castigas os maus, aniquilo a minha fracarazão peran
te a tua justiça. Mas se os remorsos desses infortunados se devem
apagar com o tempo, se os seus males tiverem um fim, e se, um dia,
a mesma paz nos espera, a todos, louvo-te por isso. O mau não é
meu irmão? Quantas vezes me senti tentado a proceder como ele!
Que, libertado da sua miséria, ele também perca a malícia que a
acompanha; queele sejatãofeliz comoeu: longe de exacerbar a mi
nha inveja, a sua felicidade só aumentará a minha.
Foi assim - contemplando Deus nas suas obras, e estu
<ia.., .J .._� através dos seus atributOs que me interessava-conhecer
- que consegui estender e desenvolver, pouco a pouco, a ideia
inicialmente imperfeita e limitada - que tinha desse ser imenso.
Mas, ao tornar-se mais nobre e maior, esta idei,a também passou
a ser desproporcionada para a razão humana. A medida que, em
espírito, me aproximo da luz eterna, o seu fulgor encandeia-me,
perturba-me, e vej o-me forçado a abandonar todas as noções ter
restres que me ajudavam a imaginá-la. Deus já não é corporal e
sensível; a suprema Inteligência que governa o mundo já não é o
próprio mundo: em vão, elevo e fatigo o meu espírito, a conceber a
sua essência. Quando penso que é ela que dá a vida e a actividade
à substânciaviva e activa que rege os corpos animados; quando ou
ço dizer que a minha alma é espiritual e que Deus é um espírito,
indigno-me contra esse aviltàmento da essência divina; como se
Deus e a minha alma fossem da mesma natureza; como se Deus
não fosse o único ser absoluto, o único verdadeiramente activo,
sentindo, pensando, querendo por si próprio, e do qual recebemos
o pensamento, o sentimento, a actividade, a vontade, a liberdade
e o ser! Só somos livres porque ele quer que o sejamos, e a substân
cia inexplicável é, para as nossas almas, o que as nossas almas são
para o nosso corpo. Se ele criou a matéria, os corpos, os espíritos,
o mundo, não sei. A ideia de criação confunde-me e ultrapassa a
minha compreensão: creio nela, tanto quanto a posso conceber;
mas sei que ele formou o universo e tudo quanto existe, que ele fez
tudo, que tudo ordenou. Deus é eterno, certamente; mas o meu es-
94 pírito poderá abarcar a ideia da eternidade? Para quê utilizar pa-
lavras cujo sentido não conheço? O que concebo é que ele existe
antes das coisas, que existirá enquanto elas subsistirem, e que
continuará a existir mesmo depois disso, se tudo devesse, um dia,
acabar. Que um ser que eu não concebo dê a existência a outros se
res, isso só é obscuro e incompreensível; mas que o ser e o nada se
convertam, por si mesmos, um no outro, é uma contradição palpá
vel, é uma nítida absurdidade.
Deus é inteligente; mas de que maneira o é? O homem é inteli
gente quando raciocina, e a suprema Inteligência não precisa de
raciocinar; para ela, não há premissas nem consequências, nem se
quer há proposição: é puramente intuitiva, vê igualmente tudo o
que é e tudo o que pode ser; para ela, todas as verdades são a penas
uma ideia, como todos os lugares um único ponto, e todos os tempos
um só momento. O poder humano actua através de meios, o poder
divino actua por si mesmo. Deus pode porque quer; a sua vontade
faz o seu poder. Deus é bom, nada é mais manifesto: mas a bonda
de, no homem, é o amor pelo seu próximo, e a bondade de Deus é
o amor pela ordem; pois é pela ordem que ele conserva o que exis
te, e liga cada parte como o todo. Deus éjusto; estou convencido dis
so, é uma consequência da sua bondade; a injustiça dos homens é
obra destes e não dele; a desordem moral, que, aos olhos dos filó
sofos, depõe contra a Providência, nãofaz mais do que demonstrá
-la, aos meus. Mas a justiça do homem é dar a cada um o que lhe
pertence, e ajustiça de Deus é pedir contas, a todos nós, do que nos
deu.
Se consigo descobrir, sucessivamente, esses atributos de que
não tenho nenhuma ideia absoluta, é através de consequências for
çadas, é através da boa utilização da minha razão; mas afirmcr<>s
sem os compreender, e, no fundo, isso é não afirmar nada. Por mais
que me diga: «Deus é assim, sint<r<>, provo-mo», nem por isso con
cebo melhor de qúe maneira Deus pode ser assim.
Enfim, quanto mais me esforço por contemplar a sua essência
infinita, menos a concebo; mas ela é, e isso basta-me; quanto
menos a concebo, mais a adoro. Humilho-me e digo-lhe: <<Ser dos
seres, sou porque és; é elevar-me à minha origem, meditar in
cessantemente em ti. A utilização mais digna da minha razão é
aniquilar-me perante ti: sentir-me oprimido pela tua grandeza é
o êxtase do meu espírito, é o encanto da minha fraqueza.»
Depois de, assim - da impressão dos objectos sensíveis e do
sentimento interior que me leva a ajuizar das causas consoante as
minhas luzes naturais -, ter deduzido as principais verdades que
me interessava conhecer, resta-me procurar as máximas que de
las devo retirar, para o meu próprio comportamento, e saber quais
as regras que me devo prescrever para desempenhar o meu destino
na terra, segundo a intenção daquele que nela me colocou. Seguin-
do sempre o meu método, não retiro essas regras dos princípios de
uma alta filosofia, mas encontr<r<>s no fundo do meu coração, es- 95
critas pela natureza, em caracteres indeléveis. Só me resta consul
tar-me sobre ó que pretendo fazer: tudo quanto sinto ser bem é
bem, tudo quanto sinto ser mal é mal: o melhor de todos os casuís
tas é a consciência; e só quando se discute com ela se tem recurso
às subtilidades do raciocínio. O rnais importante de todos os cuida
dos é o que devemos ter por nós mesmos: contudo, quantas vezes
a voz interior nos diz que, ao fazermos o nosso bem à custa de ou
trém, fazemos mal! Supomos seguir o impulso da natureza, e resis
timos-lhe; escutando o que ela diz aos nossos sentidos, despreza
mos o que ela diz aos nossos corações; o ser activo obedece, o ser
passivo comanda. A consciência é a voz da alma; as paixões são a
voz do corpo. Será de admirar que, muitas vezes, essas duas lin
guagens se contradigam? E, nesse caso, qual delas deveremos es
cutar? Demasiadas vezes, a razão engana-nos; por isso, adquiri
mos o direito de a recusar; mas a consciência nunca engana; ela é
o verdadeiro guia do homem: ela é, para a alma, o que o instinto é
para o corpo1; quem a segue obedece à natureza e não receia extra
vi ar-se.
L. B. 5 24 - 7
num caminho, a algum acto de violência e de injustiça; imediata
mente, um sentimento de cólera e de indignação se eleva no fun
do do nosso coração, e leva-nos a tomar a defesa do oprimido: mas
um dever mais poderoso nos retém: é que as leis não nos dão o di
reito de proteger a inocência. Pelo contrário, se assistimos a algum
acto de clemência ou de generosidade, quanta admiração, quanto
amor ele nos inspira! Quem é que não diz, para consigo mesmo:
«Gostaria de ter feito a mesma coisa!»? Claro que pouco nos impor
ta que - há dois mil anos - um homem tenha sido mau ou justo;
contudo, o mesmo interesse nos afecta quando lemos a História an
tiga, como se tudo isso se tivesse passado na época em que vivemos.
Que me importam a mim os crimes de Catilina? Receio ser sua ví
tima? Então, por que será que sinto, por ele, o mesmo horror que
sentiria se elefossemeu contemporâneo? Odiamos os maus, não só
porque nos fazem mal como porque são maus. Não só desej amos
ser felizes como também desejamos a felicidade dos outros; e essa
felicidade, quando não é à custa da nossa, aumenta-a. Enfim, mes
mo sem querermos, sentimos piedade pelos infortunados; quando
somos testemunhas dos seus desgostos, sofremos por causa deles.
Os mais perversos dos homens não poderiam perder completa
mente essa tendência; muitas vezes, ela coloca-os em contradição
consigo mesmos. O ladrão que despoja os transeuntes é capaz de
cobrir a nudez do pobre; e o mais feroz assassino ampara um ho
mem que está prestes a perder os sentidos.
Fala-se do grito dos remorsos, que, secretamente, castiga os
crimes encobertos e tantas vezes os coloca em evidência. Oh! Qual
de nós nunca ouviu essa voz importuna? Fala-se por experiência;
e desej ar-se-ia abafar esse sentimento tirânico que tantos tor
mentos nos causa. Obedeçamos à natureza, veremos com que do
çura ela reina, e que encanto encontramos - depois de lhe termos
prestado ouvidos - ao tornar-mo-nosbonsjuízes de nós mesmos.
O mau receia-se a si próprio e foge de si mesmo; alegra-se, sain
do para fora de si; lança em sua volta olhares inquietos e procura
um objecto que o distraia; sem a sátira amarga, sem a ironia insul
tante, sentir-se-ia sempre triste; o riso forçado é o seu único pra
zer. Pelo contrário, a serenidade do justo é interior; o seu riso não
é de malícia, mas de alegria; transporta, em si mesmo, a fonte de
la; sente-se tão alegre quando está só como quando está rodeado
de gente; o seu contentamento não lhe vem dos que se lhe aproxi
mam; comunica-se-lhes.
Lançai os olhos sobre todas as nações do mundo, lede a História
de cada uma delas. Por entre tantos cultos desumanos e bizarros,
por entre essa prodigiosa diversidade de costumes e de caracteres,
encontrareis em todas elas as mesmas ideias de justiça e de ho
nestidade, em todas, as mesmas noções do bem e do mal. O anti
go paganismo gerou deuses abomináveis que, neste mundo, teriam
98 sido punidos como celerados, e que, como imagem da felicidade su-
prema, só ofereciam malvadezas a cometer e paixões a saciar. E o
vício, armado de uma autoridade sagrada, descia em vão da mo
rada eterna, porque o instinto moral o rejeitava do coração dos
humanos. Enquanto se celebravam os deboches de Júpiter, admi
rava-se a continência de Xenocrata; a casta Lucrécia adorava a
impudica Vénus; o intrépido Romano oferecia sacrifícios ao Medo;
invocava o deus que mutilara seu pai e morria, sem queixume, pe
la mão do seu. As mais desprezíveis divindades foram servidas pe
los maiores homens. A santa voz da natureza, mais forte que a dos
deuses, fazia-se respeitar nesta terra, e parecia relegar, para o
céu, o crime e os seus culpados.
Existe, portanto, no fundo das almas, um princípio inato de
justiça e de virtude, sobre o qual, apesar das nossas próprias má
ximas, julgamos as nossas acções e as dos outros, como boas ou
más; e é a esse princípio que eu dou o nome de consciência.
Mas, ao citar esta palavra, ouço elevar-se, de todos os lados, o
clamor dos pretensos sages: «Erros da infância, preconceitos da
educação!» clamam eles, em uníssono. «Não há nada no espírito
humano, além do que nele se introduz pela experiência, e nós só
ajuizamos das ideias adquiridas.>> E fazem mais: esse acordo evi
dente e universal, de todas as nações, atrevem-se a rejeitá-lo; e,
contra a vibrante uniformidade do julgamento dos homens, vão
buscar, nas trevas, algum exempio obscuro e que só eles conhecem;
como se todas as inclinações da natureza ficassem aniquiladas pe
la depravação de um povo, e que, desde que houvessem monstros,
a espécie passasse a não ser nada. Mas de que servem, para o cép
tico Montaigne, os tormentos por que ele passa para desenterrar,
num canto do mundo, um costume oposto às noções da justiça? De
que lhe serve dar aos viajantes mais suspeitos a autoridade que ele
recusa aos escritores mais célebres? Alguns costumes bizarros e
incertos, fundamentados em causas locais que nos são desconhe
cidas, conseguirão destruir a indução geral retirada do concurso de
todo� os povos, opostos em tudo o resto, e de acordo num único pon
to? O Montaigne! Tu que te gabas de franqueza e de verdade, sê
sincero e verdadeiro, tanto quanto um filósofo o pode ser, e diz-me
se existe algum país nesta terra em que seja crime conservar a sua
fé, ser clemente, benfazejo, generoso; onde o homem de bem seja
desprezível e o pérfido venerado. .
Diz-se que cada um concorre para o bem público, em seu pró
prio interesse. Mas, a que se deve que o justo o faça em �eu prejuí-
zo? O que é deixar-sem atarpeloseu próprio interesse? E certo que
não há ninguém que não aja pelo seu bem; mas se existe um bem
moral que devemos considerar, só se poderão explicar, pelo próprio
interesse, as acções dos maus. Até é de acreditar que não se tenta-
rá ir mais longe. Seria excessivamente abominável, uma Filosofia
em que as pessoas se sentissem embaraçadas com as acções virtuo
sas; em que nelas apenas vissem intenções vis e motivos sem vir- 99
tude; em que se vissem forçadas a aviltar Sócrates e a caluniar
Régulus. Se alguma vez doutrinas destas conseguissem germinar
entre nós, a voz da natureza, assim como a da razão, elevar-se
-iam incessantemente contra elas, e nunca permitiriam a nenhum
dos seus partidários ter a desculpa de estar de boa-fé.
A minha intenção não é de entrar, aqui, em discussões meta
físicas que ultrapassam a minha competência e a vossa, e que, no
fim, não conduzem a nada. Já vos disse que não queria filosofar
convosco mas apenas auxiliar-vos para que pudésseis consultar o
vosso coração. Mesmo que todos os filósofos provem que estou en
ganado, se sentirdes que tenho razão, ficarei satisfeito.
Para isso, basta conseguir que compreendeis que existe uma
diferença entre as nossas ideias adquiridas e os nossos sentimen
tos naturais; pois sentimos antes de conhecer; e, assim como não
aprendemos a querer o nosso bem e a evitar o nosso mal, mas re
cebemos essa vontade da natureza, também o amor pelo bom e o
ódio pelo mau são, em nós, n aturais como o amor que sentimos.
Embora todas as nossas ideias nos venham do exterior, os sen
timentos que as apreciam encontram-se no nosso interior, e é
unicamente através deles que conhecemos a conveniência ou a in
conveniência que existe entre nós e as coisas que devemos respei
tar ou evitar.
Para nós, existir é sentir; a nossa sensibilidade é, incontesta
velmente, anterior à nossa inteligência, e tivemos sentimentos,
antes de termos começado a ter ideias1 • Seja qual for a causa do
nosso ser, ela encarregou-se da nossa conservação dando-nos os
sentimentos que convêm à nossa natureza; e ninguém poderia
negar que esses, pelo menos, são inatos: no que se refere ao indi
víduo, são o amor por si próprio, o receio da dor, o horror pela morte,
o desejo do bem-estar. Mas se o homem tem uma natureza sociá
vel - facto de que não podem restar dúvidas - ou, pelo menos, se
esforça por se tornar sociável, só o poderá ser através de outros sen
timentos inatos, relativos à sua espécie; pois, mesmo consideran
do apenas a necessidade física, esta deve certamente dispersar os
homens, em vez de os reunir. Ora, é do sistema moral, formado por
essa dupla relação consigo mesmo e com os seus semelhantes, que
nasce a impulsão da consciência. Conhecer o bem não significa
vardes que me devo submeter, tudo correrá bem: mas, para mo provardes,
ponde-vos ao meu alcance: medi os vossos raciocínios pela capacidade de
um pobre espírito, caso contrário deixo de reconhecer, em vós, o verdadei
ro discípulo do vosso.mestre, pois não é a sua doutrina que me estais a
112 anunciar.
O INSPIRADO
A razão diz-vos que o todo é maior que a sua parte; mas eu afir
mo-vos, da parte de Deus, que é a parte que é maior que o todo.
O ARRAZOADOR
O INSPIRADO
O ARRAZOADOR
O quê? Ireis provar-me que é Deus que vos envia depor contra
ele próprio? E de que género vão ser as vossas provas, para me
convencerem de que é mais verosímil que Deus mé fale através da
vossa boca que através do entendimento que me deu?
O INSPIRADO
O ARRAZOADOR
O INSPIRADO
O ARRAZOADOR
O INSPIRADO
L.B.S24-8
O ARRAZOADOR
O INSPIRADO
O ARRAZOADOR
O INSPIRADO
O ARRAZOADOR
O INSPIRADO
O ARRAZOADOR
O INSPIRADO
O INSPIRADO
O ARRAZOADOR
O INSPIRADO
O ARRAZOADOR
O INSPIRADO
Ora! É o que estou a fazer e vós não me escutais. Mas que di
zeis das profecias?
O ARRAZOADOR
O INSPIRADO
O ARRAZOADOR
pela paz que por indiferença pelo bem: desde o momento em que tudo cor
ra bem, nada mais importa ao pretenso sage, contanto que possa estar em
repouso no seu gabinete. Os seus princípios não fazem matar os homens,
mas impedem-nos de nascer, destruindo os costumes que os multiplicam,
afastando-os da sua espécie, reduzindo todas as suas afeições a um secre
to egoísmo, tão funesto para a população como para a virtude.Aindiferen
ça filosófica assemelha-se à tranquilidade do Estado sob o despotismo; é
a tranquilidade da morte: é mais destruidora que a própria guerra.
Assim, o fanatismo, embora seja mais funesto nos seus efeitos imedia
tos que aquilo a que actualmente se chama o espírito filosófico, é-o mui
to menos, nas suas consequências. Aliás, é fácil expor belas máximas nos
livros; mas o que importa é saber se elas condizem com a doutrina, se elas
derivam necessariamente dela; e é isso que, até agora, não tem parecido
claro. Ainda falta saber se a Filosofia, bem instalada e sentada no trono,
comandaria bem à gloríola, ao interesse, à ambição, às pequenas paixões
do homem, e se ela praticaria essa humanidade tão doce que nos gaba com
a pena na mão.
Através dos princípios, a Filosofia não pode fazer nenhum bem que a
religião não faça mais perfeitamente; e a religião faz muito que a Filoso
fia não conseguiria fazer.
Através da prática, é outra coisa; mas, mesmo assim, examinemos.
Não há nenhum homem que siga completamente a sua religião, quando
tem alguma: isto é verdade; a maior parte deles pouca tem e não a segue:
isto também é verdade; mas, enfim, há alguns que têm uma religião e que
a seguem, pelo menos em parte; e é indubitável que motivos religiosos os
impedem, muitas vezes, de praticar o mal, e obtêm deles virtudes, acções
louváveis, que nunca teriam tido lugar sem esses motivos.
Que um monge negue ter recebido um depósito; o que se depreende 129
L. B. 524- 9
Copiei este escrito, não como um catecismo dos sentimentos
que devem ser seguidos em matéria de religião, mas como um
exemplo da m aneira como se pode arrazoar com o seu pupilo, para
não nos afastarmos do método que tratei de estabelecer. Enquan
to não se dá nada à autoridade dos homens, nem aos preconceitos
do país em que se nasceu, as únicas luzes da razão não podem, na
instituição da natureza, levar-nos mais longe que a religião natu
ral; e é a isso que eu me limito, com o meu Emílio. Se ele tiver de
adoptar outra, deixo de ter o direito de ser seu guia para esse as
sunto; só ele a pode escolher.
Trabalhamos de concerto com a natureza, e, enquanto ela for
ma o homem físico, nós tratamos de formar o homem moral; mas
os nossos progressos não são idênticos. Já o corpo está robusto e
forte, ainda a alma está lânguida e fraca; e seja o que for que a ar
t,e humana possa fazer, o temperamento precede sempre a razão.
E a reter um e a excitar a outra que, até agora, temos dedicado to
dos os nossos cuidados, a fim de que o homem seja sempre uno, tan-
daí, se não é que um tolo lho confiara? Se Pascal tivesse negado um, isso
provaria que Pascal era um hipócrita, e mais nada. Mas um monge!... As
pessoas que fazem da religião um tráfico serão aquelas que a têm? Todos
os crimes que se praticam entre o clero, como alhures, não provam que a
religião seja inútil, mas que são poucas as pessoas que têm religião.
E incontestável que os nossos Governos modernos devem ao cristia
nismo a sua mais sólida autoridade e a sua menor frequência de revolu
ções; o cristianismo tornou-os menos sanguinários: isso prova-se pelos
factos, comparando-os aos antigos governos. A religião, melhor conheci
da, afastando o fanatismo, deu mais suavidade aos costumes cristãos. Es
sa mudança não é, de modo nenhum, a obra das letras; porque nem porto
da a parte onde elas brilharam a humanidade foi mais respeitada; as
crueldades dos Atenienses, dos Egípcios, dos imperadores de Roma, dos
Chineses, confirmam-no. Quantas obras de misericórdia se devem ao
Evangelho! Quantas restituições, quantas reparações, a confissão não le
va a fazer, entre os católicos!? Entre nós, quantas reconciliações e esmo
las não se operam, ao aproximar-se o tempo da comunhão!? Como os usur
padores se tornavam menos ávidos, durante ojubileu dos Hebreus! Quan
tas misérias não prevenia ele! A fraternidade legal unia toda a nação: não
se via um mendigo, entre eles. Também não se vêem mendigos, na Tur
quia, onde as instituições piedosas são inúmeras; esse povo é hospitalei
ro, por princípio de religião, mesmo em relação aos inimigos do seu culto.
Segundo Chardin, «OS maometanos dizem que, depois do exame que
se seguirá à ressurreição universal, todos os corpos terão de atravessar
uma ponte chamadaPoul-Serrho, que passa porei ma do fogo eterno, pon
te que pode ser considerada - dizem eles -como o terceiro e derradeiro
exame e o verdadeiro julgamento final, porque é nela que se separarão os
bons dos maus ... etc.
»Os Persas», prossegue Chardin, «sentem-se muito impressionados
130 com essa ponte; e quando alguém é vítima de uma injustiça que, de ne-
to quanto possível. Desenvolvendo o natural, iludimos a sua sen
sibilidade n ascente; regulámo-la cultivando a razão. Os objectos
intelectuais moderavam a impressão dos objectos sensíveis. Re
montando ao princípio das coisas, subtraímo-la ao império dos
sentidos; era simples elevar-se do estudo da natureza até à inqui
rição do seu autor.
Quando chegámos a esse ponto, quanta influência já adquiri
mos sobre o nosso pupilo! Quantos novos meios possuímos para lhe
falar ao coração! E só então que ele compreende o seu verdadeiro
interesse em ser bom, em praticar o bem longe da vista dos ho
mens, e sem a isso ser forçado pelas leis, em ser justo entre Deus
e ele, em cumprir o seu dever - mesmo à custa da sua vida -, e
em transportar no seu coração a virtude, não só pelo amor pela or
dem - à qual todos preferem sempre o amor por si mesmos-, mas
por amor ao autor do seu ser, amor que se confunde com esse amor
por si mesmo, para finalmente gozar da felicidade durável que o re
pouso de uma boa consciência e a contemplação desse Ser Supre
mo lhe prometem na outra vida, após ter bem utilizado esta. Fora
disso, só vejo injustiça, hipocrisia e mentira, entre os homens. O in
teresse pessoal, que, na concorrência, é superior a todas as outras
nhum modo nem em nenhum momento, pode vir a ser reparada, a sua úni
ca consolação é dizer ao que lha fez: Pois bem! Pelo Deus uivo, pagar--ma
-ás a dobrar, no último dia; não passaráspelo Poul-Serrho sem primeiro
me terespedido desculpa!Agarrar--me-ei à aba do teu casaco e lançar-me
-ei às tuas pernas. Vi muitas pessoas eminentes, e de todas as profissões,
que, receando que alguém lhes fizesse isso durante a passagem dessa te
mível ponte, imploravam, àqueles que delas tinham razões de queixa, que
lhes perdoassem: isso aconteceu-me mais de cem vezes, a mim próprio.
Pessoas de qualidade, que me tinham levado a efectuar, por importunida
de, diligências diferentes das que eu teria desejado, abordavam-me ao ca
bo de um determinado tempo que elas consideravam suficiente para o des
gosto me ter passado, e diziam-me: Peço-'le, halal becon antchifra, isto é,
devolve--me esse caso lícito oujusto. Algumas até me chegaram a fazer pre
sentes e prestaram-me serviços, a fim de que lhes perdoasse declarando
-lhes que o fazia de boa vontade: de tudo isto, a única causa é essa cren
ça de que não se passará pela ponte do Inferno antes de se ter pago, até ao
derradeiro cêntimo, àqueles que se oprimiu.», (Tomo VII, in 12, p. 50).
Poderia eu supor que a ideia dessa ponte que tantas iniquidades re
para, nunca as impede? Se se tirasse essa ideia aos Persas, persuadindo
-os de que não há nem Poul-Serrho, nem nada que se lhe pareça, onde os
oprimidos seriam vingados dos seus tiranos, depois da morte, não é evi
dente que isso os poria muito à vontade e os dispensaria do cuidado de se
desculparem perante esses infelizes? Por conseguinte, é falso que essa
doutrina sej a nociva; porque, se o fosse, não seria a verdade.
Filósofo, as tuas leis morais são muito belas; mas, por favor, mostra
-me a respectiva sanção. Pára, durante um momento, de percorrer os
campos, e diz-me nitidamente o que colocas em lugar do Poul-Serrho. 131
coisas, ensina cada um a ornamentar o vício com a máscara da
virtude. Que todos os outros homens façam o meu bem à custa do
deles; que tudo se refira só a mim; que toda a espécie humana
morra, se for preciso, na dor e na miséria, para me poupar um mo
mento de dor ou de fome: é esta a linguagem interior de todo o in
crédulo que raciocina. Sim, ampará-lo--ei durante toda a minha
vida, aquele que se tenhadito, no seu coração: «Deus não existe, e
quem diz o contrário é um mentiroso ou um insensato».
Leitor, por mais que me esforce, bem sinto que, nem vós nem
eu, nunca conseguiremos ver o meu Emílio sob o mesmo aspecto;
vós imaginai-lo sempre parecido com os vossosjovens, estouvado,
petulante, volúvel, correndo de festa para festa, de divertimento
para divertimento, sem nunca se poder fixar em nada. Troçareis de
mim, ao verdes que, de um jovem ardente, faço um contemplativo,
um filósofo, um verdadeiro teólogo, inteligenmte, impetuoso, fo
goso, na época mais efervescente da sua vida. Dir-vos-ei: «Esse so
nhador prossegue na sua quimera; apresentando-nos um pupilo
educado por ele, não só o forma, como também o cria, tirando-o do
seu cérebro; e, supondo obedecer sempre à natureza, afasta--se de
la constantemente» . Eu, comparando o meu pupilo com os vossos,
dificilmente vejo o que eles podem ter em comum. Alimentado tão
diferen temente, é quase um milagre se se lhes parecer, seja no que
for. Como passou a sua infância na liberdade de que eles só des
frutam quando atingem a juventude, quando atinge a juventude
começa a obedecer à regra a que eles foram submetidos durante a
infância: essa regra torna--se o flagelo deles, h orroriza4>s, nela só
vêem a prolongação da tirania dos mestres; crêem só p oder sair da
infància sacudindo toda a espécie dejugo1 ; e, então consolam--se da
prolongada opressão em que foram mantidos, como um prisionei
ro que, liberto dos seus grilhões, estende, agita, e flecte os seus
·
membros.
Emílio, pelo contrário, sente--se orgulhoso por se fazer homem
e por se sujeitar ao jugo da razão nascente; o seu corpo, já forma
do, não tem necessidade dos mesmos movimentos, e começa a de
ter-se por si próprio, enquanto o seu espírito, meio desenvolvido,
procura, por sua vez, desenvolver--se. Assim, enquanto, para uns,
a idade da razão apenas é a idade da liberdade, para o outro, ela
passa a ser a idade do arrazoamento.
Quereis saber quem - entre eles e Emílio - é mais forte nis
so, pela ordem da natureza? Considerai as diferenças naqueles que
L. 8. 524 - 1 0
las; penetrarei nas suas vistas para as dirigir; não lhe procurarei,
à custa da presente, uma felicidade futura. Não pretendo que ele
seja feliz só uma vez, mas sempre, se for possível.
Aqueles que querem dirigir a juventude com sageza, para a
garantirem contra as armadilhas dos sentidos, inspiram-lhe o
horror pelo amor, e quase que se dispõem a considerar como um
crime, se, nessa idade, ela pensa nele; como se o amor tivesse sido
feito para os velhos! Todas essas lições enganosas que o coração
desmente não conseguem persuadir. O jovem, guiado por um ins
tinto mais seguro, ri secretamente das tristes máximas a que fin
ge aquiescer, e só espera pela oportunidade de demonstrar que eles
são vãs. Tudo isso é contra a natureza. Seguindo por uma direcção
oposta, atingirei, com mais certeza, o mesmo alvo. Não recearei li
songear, nele, o doce sentimento de que se sente ávido; descrever
-lho-ai como a suprema felicidade da vida, porque, verdadeira
mente, ele assim é; ao descrever-lho, quero que ele se lhe entregue;
fazendo--lhe sentir o encanto que a união dos corações acrescenta
à atracção dos sentidos, desgostá-lo-ai da libertinagem, e torná
-lo-ei sage, levando--o a apaixonar-se.
Como é preciso ser-se limitado para só ver, nos desejos nascen
tes de um jovem, um obstáculo para as ligações da razão! Eu, eu
considero isso o verdadeiro sistema de o tornar dócil para essa§!
mesmas lições. Só as paixões conseguem dominar as paixões. E
através do seu império que se deve combater a sua tirania, e é sem
pre da própria natureza que deveremos retirar os instrumentos
próprios para a dirigir.
Emílio não é feito para viver sempre solitário; membro da so
ciedade, ele deve cumprir os seus deveres. Feito para viver com os
homens, precisa de os conhecer. Tem uma ideia do homem, em ge
ral; resta-lhe conhecer os indivíduos. Sabe o que se faz no mundo:
falta-lhe ver como se vive nele. Chegou o momento de lhe mostrar
o exterior desse grande palco cujos jogos ocultos ele já conhece; dei
xará de experimentar, por ele, a estúpida admiração de um jovem
estouvado, mas terá o discernimento de um espírito recto e justo.
As suas paixões poderão iludi-lo, certamente; quando é que elas
não iludem aqueles que a elas se entregam? Mas, pelo menos, não
será enganado pelas dos outros. Se as vir, vê-las-á com o olhar do
sage, sem ser arrastado pelos seus exemplos nem seduzido pelos
seus preconceitos.
Assim como há uma idade que é própria para o estudo das ciên
cias, há outra para bem compreender os costumes do mundo.
Aquele que aprende esses costumes quandojovem de mais, segue
-<>s durante toda-a sua vida, sem preferência, sem reflexão, e, em
bora com aptidões, sem nunca saber exactamente o que faz . Mas
aquele que os aprende e que lhes compreende as razões, segue-os
com mais discernimento, e, por conseguinte, com maisjusteza e in
146 dulgência. Entregai-me uma criança de doze anos que não saiba
absolutamente nada, e, quando ela chegar aos quinze, entregar
-vo-la�i tão sabedora como aquele que instruístes desde a mais
tenra idade: a única diferença será que, enquanto que o saber do
vosso só estará na sua memória, o do meu estará no seu entendi
mento. Domesmomodo, introduzi, na sociedade, umjovem de vin
te anos; bem dirigido, dentro de um ano ele será mais amável e
mais judiciosamente polido que aquele que lá terá vivido desde a
sua infância; porque o primeiro, sendo capaz de compreender as
razões de todos os procedimentos relativos à idade, ao estado e ao
sexo - que constituem esses costumes - pode traduzi-los em
princípios e adptá-los aos casos não previstos ; contanto que o se
gundo, tendo apenas a sua rotina como regra, sente-se embaraça
do logo que tem de sair dela.
Todas as meninas francesas são educadas em conventos, até
que as casem. Alguém se aperceberá de que, em consequência dis
so, elas sintam dificuldades para se adaptarem a essas novas ma
neiras que lhes são tão desconhecidas? E deverão criticar-se as
mulheres de Paris, por terem um ar desajeitado, acanhado, e por
ignorarem os usos do mundo, quando neles não foram educadas
desde a infância? Esse preconceito vem das próprias pessoas do
mundo, que, como não conhecem nada que seja mais importante
que essa pequena ciência, imaginam - erradamente - que não
deve ser ensinada cedo de mais.
É verdade que também não se deve esperar muito para a en
sinar. Quem tenha passado toda a sua juventude longe da alta ro
da, passa o resto da sua vida a viver nela com um ar acanhado e
constrangido, tem propósitos sempre fora de propósito, maneiras
desajeitadas e sem graças, que não desaparecem com o hábito de
nela viver, e que só conseguem adquirir um novo aspecto ridículo,
pelo esforço que fazem para se livrar delas. Cada espécie de ins
trução tem a sua época própria, que é preciso conhecer, e os seus
perigos, que se devem evitar. E sobretudo para esta que eles se
reúnem ; mas, para o proteger, também não exponho a ela o meu
pupilo, sem ter tomado todas as precauções.
Quando o meu método preenche, com o mesmo objecto, todos
os intentos, e quando, eludindo um inconv�niente, ele previne,ou
tro, concluo que é bom e que tenho razão. E o que creio ver no que
ele, aqui, me sugere. Se pretender ser austero e seco com o meu pu
pilo, perderei a sua confiança, e, em breve, ele esconder-se-á de
mim. Se seu quiser ser complacente, fácil, ou fechar os olhos, de
que lhe serve estar sob a minha protecção? Com isso, não farei mais
que autorizar a sua desordem e aliviar a sua consciência, à custa
da minha. Se o introduzo no mundo - com a única finalidade de
o instruir - ele instruir�se-á mais do que eu quero. Se o mante
nho afastado dele até ao fim, o que terá ele aprendido comigo? Tal
vez tudo, excepto a arte mais necessária ao homem e ao cidadão,
que é a de saber viver com os seus semelhantes. Se eu atribuir a es- 147
tes cuidados uma utilidade muito remota, ela não servirá de nada,
para ele que só se preocupa com o presente. Se me contentar em for
necer-lhe distracções, que bem lhe faço? Ele amodorra-se e não
aprende nada.
Nada disso. Só o meu expediente é que provê a tudo. «Ü teu
coração», digo ao jovem, «precisa de uma companheira; tratemos
de procurar a que te convém : talvez não a encontremos facilmen
te, porque o verdadeiro mérito é sempre raro; mas não nos preci
pitemos nem percamos a esperança. Certamente que há uma e
acabaremos por encontrá-la, ou, pelo menos, encontraremos a que
m ais se pareça com ela.» Com um projecto tão lisonjeiro para ele,
introduzo-o na sociedade. Que mais'preciso dizer-lhe? Não vedes
que fiz tudo?
Descrevendo-lhe a prometida que lhe destino, bem podeis pen
sar que me saberei fazer escutar, que saberei tornar-lhe agradá
vel e queridas as qualidades que ele deve amar, que saberei dispôr
todos os seus sentimentos para o que ele deve procurar ou evitar.
Seria preciso que eu fosse o mais desajeitado dos homens, se não
conseguisse que ele se se apaixonasse antecipadamente, sem
saber por quem. Pouco importa que o objecto que lhe descreverei
seja imaginário; basta que o desgosto daqueles que o poderiam
tentar, basta que ele encontre, por toda a parte, pontos de compa
ração que o levam a preferir a sua quimera aos verdadeiros obj ec
tos que lhe atrairão a atenção: e o que é verdadeiro amor, em si
mesmo, a não ser quimera, mentira, ilusãq? Ama-se muito mais a
im agem que se constrói que o objecto ao qual se ela aplica. Se se
visse, tal e qual ele é, o objecto que se ama, deixaria de haver amor,
neste mundo. Quando se deixa de amar, a pessoa que se amava
continua a ser a mesma que antes, mas não a vemos da mesma
maneira; o véu do prestígio cai e o amor desvanece-se. Ora, forne
cendo o objecto imaginário, sou senhor de fazer comparações, e
facilmente impeço a ilusão dos objectos reais.
Isto não significa que eu queira que se engane um jovem, des
crevendo-lhe um modelo de perfeição que não pode existir; mas es
colherei de tal modo os defeitos da sua prometida, que eles lhe con
virão, que eles lhe agradarão e lhe servirão para corrigir os seus.
também não quero que lhe mintam, afirmando enganosamente
que o objecto que lhe foi descrito não existe; mas se ele se compraz
com a imagem, em breve lhe desejará um original. Do desejo à su
posição, o trajecto é fácil; bastam algumas descrições hábeis que,
sob traços mais sensíveis, darão a esse objecto imaginário um
grande ar de veracidade. Gostaria até de lhe dar um nome: diria,
rindo: «Chamemos Sophie à vossa futura prometida: Sophie é um
nome de bom augúrio: mesmo que aquel a que escolherdes não o
tenha, pelo menos será digna de o usar; poderemos dar-lhe essa
honra, de antemão». Depois de todos estes pormenores, se, sem
148 afirmardes, sem negardes, arranjardes pretextos, as suas suspei-
tas transformar-se-ão em certeza; convencer-se-á de que não lhe
quereis revelar o segredo da esposa que lhe é destinada, e de que
só a verá quando vier o momento oportuno. Se ele chegar a esse
ponto, e se tiverdes bem escolhido os traços que é preciso descre
ver-lhe, o resto é fácil; podeis expô-lo na sociedade, quase sem pe
rigo: protegei-o unicamente dos seus sentidos, que o seu coração
está em segurança.
Mas, quer ele personifique ou não o modelo que eu soube tor
nar-lhe amável, esse modelo - se tiver sido bem feito - não o le
vará a interessar-se menos por tudo quando se lhe assemelha, e
a afastar-se de tudo quanto não se lhe parece, como se fosse um
verdadeiro objecto. Que vantagem, para preservar o seu coração
dos perigos aos quais a sua pessoa deve ser exposta, para reprimir
os seus sentidos através da sua imaginação, e, sobretudo, para o
arrancar a essas doadoras de educação que a fazem pagar tão cara,
e só formam um jovem para a cortesia retirando-lhe toda a hones
tidade! Sophie é tão modesta! Com que olho verá ele esses avanços?
Sophie á tão simples! Como apreciará ele os ares delas? Há uma
distância exageradamente grande entre as suas ideias e as suas
observações , para que estas consigam alguma vez ser perigosas
para ele.
Todos aqueles que falam da educação das crianças seguem os
mesmos preconceitos e as mesmas máximas, porque observam
mal e reflectem ainda mais mal. Não é nem pelo temperamento,
nem pelos sentidos que começa o desregramento da juventude, é
pela opinião. Se aqui tratássemos dos rapazes que são educados
em colégios e das meninas que são educadas nos conventos, eu de
monstraria que isso é verdade, mesmo em relação a estas; porque,
de entre as primeiras lições que recebem uns e outras, as únicas
que darão fruto, são as do vício; e não é a natureza que os corrom
pe, é o exemplo. Mas abandonemos os pensionistas dos colégios e
dos conventos aos seusmaus costumes; estesnunca terãoremédio.
Refiro-me unicamente à educação doméstica. Tomai, como exemplo,
um jovem honestamente educado em casa de seu pai, na província,
e observai-o no momento em que ele chega a Paris, ou em que ele
entra na sociedade; vereis que pensa bem das coisas honestas e que
tem a vontade tão são como a razão; vereis que sente desprezo pe
lo vício e horror pelo deboche; só de ouvir a palavra prostituta, ve
reis nos seus olhos o escândalo da inocência. Afirmo que não há um
único que seja capaz de se decidir a entrar, sozinho, nas tristes ca
sas dessas infelizes, mesmo que saiba para que servem e sinta es
sa necessidade.
Daí a s<>is meses, considerai o mesmo jovem; não o reconhe
cereis, propósitos livres, m áximas inconvenientes, ares indepen
dentes, levariam a tomá-lo por outro homem, se os gracejos que
formula sobre a sua primeira simplicidade, a vergonha que mos-
tra sentir quando lha recordam, não mostrassem que se trata do 149
mesmo jovem, que cora por ter sido o que foi . Oh! Como se formou,
em tão pouco tempo! De onde lhe vem uma mudança tão grande e
tão brusca? Do progresso do temperamento? O seu temperamen
to não teria feito o mesmo progresso na casa parterna? E, certa
mento que, lá, ele não teria adquirido esse tom, nem aprendido es
sas máximas . Dos primeiros prazeres dos sentidos? Pelo contrário:
quando um jovem se começa a entregar a eles, torna-se receoso, in
quieto; evita-se a luz do dia e o ruído. As primeiras voluptuosida
des são sempre misteriosas, o pudor tempera-as e esconde-as: a
primeira amante não toma um jovem descarado mas tímido.
Completamente absorvido num estado tão novo para ele, o jovem
recolhe-se para o saborear, e receia constantemente perdê-lo. Se
é ruidoso, é porque não é voluptuoso nem terno; se se gaba dele, é
porque ainda não gozou.
Só outras maneiras de pensar podem ter produzido esses efei
tos. O seu coração continua a ser o mesmo, mas as suas opiniões
mudaram. Os eus sentimentos, mais lentos a alterarem-se, aca
barão por se modificar, graças a elas; e só então ele estará verda
deiramente corrompido. Mal entra na sociedade, recebe dela uma
segunda educação, completamente oposta à primeira, através da
qual aprende a desprezar o que respeitava e a respeitar o que des
prezava: levam-no a considerar as lições que recebeu de seus pais
e dos seus mestres como uma gíria pendatesca, e os deveres que
eles lhe pregaram como uma moral pueri que se deve desdenhar
quando se é adulto. l'or honra, crê-se obrigado a modificar o seu
comportamento; torna-se empreendedor sem desejos e fátuo por
falsa vergonha. Troça dos bons costumes antes de ter tomado gos
to pelos maus, e gaba-se de deboche, sem saber ser debochado.
Nunca olvidarei o que me disse um jovem oficial dos guardas suí
ços, que se irritava com os ruidosos prazeres dos seus camaradas,
e que não se atrevia a recusar-se a eles, receando quetoçassem de
le: «Exercito-me nisso», dizia ele, «como a tomar rapé, apesar da
minha repugnância: o gosto virá com o hábito; não devemos ser
eternamente crianças».
Assim, pois, é muito menos da sensualidade que da vaidade
que se deve preservar o jovem que entra no mundo: ele cede mais
ás tendências dos outros que às suas, e o amor-próprio faz mais li
bertinos que o amor.
Posto isto, pergunto se, na terra inteira há algum que esteja
mais bem armado que o meu Emílio, contra tudo quando pode ata
car os seus costumes, os seus sentimentos, os seus princípios; se há
algum que esteja mais em estado de resistir à corrente. Pois, con
tra que sedução não""' êncontra ele em estado de defesa? Se os seus
desejos o arrastam para o sexo, nele não encontra o que procura,
e o seu coração preocupado retém-no. Se os seus sentidos o agitam
e o impelem, onde poderá ele satisfazê-los? O horror pelo adulté-
150 rio e pelo deboche afasta-<> tanto das mulheres públicas como das
mulheres casadas, e é sempre por um desses estados que começam
as desor.dens da juventude. Uma menina para casar pode ser co
quete; mas não será descarada, não se lançará à cara de um jovem
que a pode desposar se a crê honesta; aliás, ela terá alguém para
a vigiar. Pelo seu lado, Emílio não estará completamente entregue
a si mesmo; ambos terão, pelo menos, como vigilantes, o receio e o
pudor, inseparáveis dos primeiros desejos; não passarão, brus
camente, ás m aiores familiaridades, e não disporão do tempo ne
cessário para percorrerem todas as etapas que a elas levam, sem
obstáculos. Para proceder diferentemente, será preciso que ele já
tenha visto o exemplo dos seus companheiros, que com eles tenha
aprendido a troçar da sua reserva, a tornar-se tão insolente como
eles. Mas, haverá algum homem, no mundo, que seja menos imi
tador que Emílio? Que homem se deixa menos levar pelo tom bre
jeiro que aquele que não tem nenhum preconceito e nada sabe dar
aos outros? Trabalhei vinte anos, para o armar contra os trocistas:
precisarão de muito mais tempo para o conseguirem enganar; por
que, aos seus olhos, o ridículo não é mais que a razão dos tolos, e
nada torna mais insensível ao escárnio que estar acima da opinião.
Em vez de gracejos, ele precisa de razões; e, enquanto assim pen-
sar, não receio que jovens loucos mo depravem; tenho, do meu la-
do, a consciência e a verdade. Se for preciso que o preconceito se
acrescente a isso, uma dedicação que durou vinte anos também
tem algum peso: nunca conseguirão convencê-lo de que o aborre-
ci com vãs lições; e, num coração recto e sensível, a voz de um ami-
go fiel e sincero saberá apagar os gritos de vinte sedutores. Como,
nesse caso, só se tratará de lhe mostrar que eles o enganam, e que,
fingindo tratá-lo como um homem, eles o tratam verdadeiramen-
te como uma criança, mostrar-me-ei sempre simples, mas grave
e explícito nos meus raciocínios, a fim de que ele sinta que sou eu
que o trato como um homem. Dir-lhe-ei: «Bem vedes que só o vos-
so interesse- que também é o meu - dita os meus discursos; não
posso ter nenhui_m outro. Mas porque é que esses jovens vos que
rem persuadir? E porque vos querem seduzir: não vos amam, não
estão minimamente interessados em vós; o seu único motivo é um
secreto despeito por verem que valeis mais do que eles; pretendem
rebaixar-vos à sua pequena medida, e quando vos criticam por vo!>
ceixardes governar é para poderem governar-vos eles próprios. E
possível que acrediteis que teríeis alguma coisa a ganhar com esaa
mudança? A sageza deles será, assim, tão superior, e a sua recen-
te amizade será mais firme que a minha dedicação? Para atribuir
qualquer valor às suas ironias, seria preciso poder atribuir algum
à sua autoridade; e que experiência têm eles para elevar as suas
m áximas mais alto que as nossas? Não fizeram mais do que imi-
tar outros estouvados, e, por sua vez, também querem ser imita-
dos. Para se colocarem acima dos supostos preconceitos de seus
pais, sujeitam-se aos dos seus companheiros. Não vejo o que ga- 151
nham com isso: mas vejo que, com esse comportamento, perdem,
certamente, duas grandes vantagens: a do afecto paterno, cujos
conselhos são ternos e sinceros, e a da experiência, que permite jul
gar o que se conhece; pois que os pais já foram crianças e as crian
ças ainda não foram pais.
«Mas crei-los sinceros, pelo menos nas suas loucas m áximas?
nem sequer isso, caro Emílio; enganam-se para vos enganarem ;
não estão de acordo consigo mesmo: os seus corações desmentem
-nos constantemente, e, muitas vezes, as suas bocas contradizem-
-nos. Qualquer, de entre eles, que troça de tudo quanto é honesto,
sentir-se--i a desesperado se sua mulher pensasse como ele. Outro
incluirá, nessa indiferença pelos costumes, até os da mulher que
ainda não tem, ou, para cúmulo da infâmia, os da mulher que já
tem. Mas ide mais longe: falai-lhe de sua m ãe, e vede se ele acei
taráde bom grado passar porserum filho adúltero e o filho deuma
mulher de m á vida, para desonrar o nome de uma família, para
roubar o seu património ao herdeiro natural; enfim, se ele deixa
rá, impunemente, que lhe chamem bastardo. Qual, de entre eles,
desejará que se devolva a sua filha a desonra com que ele cobre a
de outrém? Não há nem um deles que não seja capaz até de aten
tar à vossa própria vida, se, na prática, adoptásseis, P5lra com ele,
todos os princípios que se esforçam por vos inculcar. E assim que
acabam por demonstrar a sua inconsequência, e que se com preen
de que nenhum crê no que diz. Eis algumas razões, querido Emílio:
pesai as deles - se é que eles as têm - e comparai. Se eu quises
se utilizar - como eles -o desprezo e o escárnio, vê-los-íeis su
portar o ridículo, talvez tanto e até m ais que eu. Mas não receioum
exame sério. O triunfo dos escarnecedores pouco dura; � verdade
permanece e o riso insensato deles deixa de se ouvir.••
Não podeis imaginar como possível que, aos 20 anos, Emílio se
ja tão dócil. Como as nossas ideias são diferentes! Eu não concebo
como ele pode ter sido aos dez; pois que autoridade tinha eu sobre
ele, nessa idade? Foram-me necessários quinze anos de desvelos,
para conseguir obter esta influência sobre ele. Nessa altura, não
o educava: preparava--o para ser educado. Agora, é--o bastante pa
ra ser dócil; reconhece a voz da amizade e sabe obedecer à razão.
É verdade que lhe deixo a aparência da independência, mas nun
ca ele esteve mais dependente de mim, pois que está porque o quer
estar. Enquanto não me consegui tornar senhor da sua vontade,
fui--o da sua pessoa; nunca me separei dele. Agora, deixo--o, por ve
zes, entregue a si mesmo, porque continuo a governá-lo. Ao deixá
-lo, abraço--o e digo--lhe, num tom seguro: «Emílio, confio--te ao
meu amigo; entrego--te ao seu honesto coração; é ele que me pres
tará contas de ti.»
Não é de um momento para o çutro que se conseguem corrom
per afectos sãos que não sofreram nenhuma alteração precedente,
152 ou que se apagam princípios directamente criados com as primei-
ras luzes da razão. Se, durante a minha ausência, alguma modifi
cação neles se opera, nunca é suficientemente duradoura, e nun
ca será capaz de passar tão despercebida aos meus olhos, que eu
não me aperceba do perigo antes do mal, e que não esteja a tempo
de lhe trazer remédio. Assim como ninguém se deprava brusca
mente, também não é de um momento para o outro que se apren
de a dissimular; e se jamais houve algum homem que não tivesse
jeito para esta arte, é Emílio, que, durante toda a sua vida, nun
ca teve uma oportunidade de dela se servir.
Através destes cuidados e de outros semelhantes, creio-o tão
bem protegido dos objectos desconhecidos e das máximas vulgares,
que preferiria vê-lo no meio da pior sociedade de Paris que sozinho
no seu quarto ou num parque, entregue a toda a inquietação da: sua
idade. Por mais bem que procedamos, de todos os inimigos que po
dem atacar um jovem, o mais perigoso e o único que não podemos
afastar, é ele próprio; no entanto, esse inimigo só é perigoso por
nossa culpa; pois-como já mil vezes o disse -é unicamente pe
la imaginação que os sentidos despertam. A sua necessidade não
é propriamente uma necessidade física: não é verdade que seja
uma verdadeira necessidade. Se nunca um objecto lascivo se
tivesse mostrado aos nossos olhos, se nunca uma ideia desonesta
tivesse aflorado ao nosso espírito, talvez que essa pretensa neces
sidade não se tivesse feito sentir aos nossos sentidos; e teríamos
permanecido castos, sem tentações, sem esforço e sem mérito. Não
se sabe que fermentações surdas certas situações e certos espectá·
culos excitam no sangue da juventude, sem que ela própria seja ca
paz de compreender a causa dessa primeira inquietação, que não
é fácil de acalmar, e que nãotarda em voltar. Cá por mim, quanto
mais reflicto nessa importante crise e nas suas causas-próximas,
ou remotas-,mais me convenço de queum solitário,educado num
deserto,sem livros, sem instrução e sem mulheres,ali moreria vir
gem, fosse qual fosse a idade que tivesse atingido.
Mas, aqui, não se trata de um selvagem dessa espécie. Quan
do se educa um homem, por entre os seus semelhantes e para a so
ciedade, é impossível-e nem sequer é aconselhável-alimentá
-lo sempre com essa salutar ignorância; e o que de pior há para a
sageza é ser meio-sábio. A recordação dos objectos que nos interes
saram e as ideias que adquirimos seguem-nos até ao nosso retiro,
povoam-no, mesmo que o não queiramos, com imagens mais se
dutoras que os próprios objectos,e tornam a solidão tão funesta pa
ra aquele que para lá os leva quanto ela é útil para aquele que ne
la se mantém sempre só.
Tendepoiscuidado comojoveme ele poderá defender-se de tu
do o resto; mas é a vós que compete defende-lo de si próprio. Não
o deixeis só, nem de dia nem de noite, dormi, pelo menos, no seu
quarto: que ele só se vá deitar quando estiver a cair de sono e que
se levante da cama logo que desperta. Desconfiai do instinto, se 153
não continuardes a proceder assim: ele é bom, enquanto age só;
torna-se suspeito desde que se mistura com as instituições dos
homens; não é necessário destrui-lo: é preciso regulá-lo; e isso
talvez seja mais difícil que destrui-lo. Seria muito perigoso que ele
ensinasse ao vosso pupilo a iludir os seus sentidos e a suprir as
ocasiões de os satisfazer: se ele alguma vez conhecer esse perigo
so suplemento, está perdido. A partir daí, terá sempre o coração e
o corpo enervados; transportará até ao túmulo os tristes efeitos
desse hábito, o mais funesto a que um homem possa estar sujeito.
Certamente que, ainda seria preferível... Se os furores de um tem
peramento ardente se tornam irredutíveis, meu caro Emílio, las
timo-te; mas não hesitarei nem um momento; não, não suportarei
que a finalidade da natureza seja iludida. Se for preciso que um ti
rano te subjugue, prefiro entregar-te àquele de que te posso livrar:
seja o que for que acontecer, livrar-te-ei mais facilmente das mu
lheres que de ti mesmo.
Até aos 20 anos, o corpo, em crescimento, precisa de toda a sua
substância: nesse momento, a continência está na ordem da na
tureza, e só se falta a ela à custa da sua constituição. A partir dos
vinte anos a continência é um dever de moral; é importante, para
aprender a dominar-se a si próprio, a permanecer senhor dos seus
apetites. Mas os deveres morais têm as suas modificações, as suas
excepções, as suas regras. Quando a fraqueza humana torna uma
alternativa inevitável, dos dois males demos a preferência ao
menor; seja como for, mais vale cometer uma falta que contrair um
vício.
Lembrai-vos de que, agora, não é do meu pupilo que estou a fa
lar, mas do vosso. As suas paixões, que deixastes fermentar, sub
jugam-vos: cedei-lhes, pois, abertamente, e sem disfarçar a sua
vitória. Se lha souberdes mostrar no que ela tem de verdade, ele
sentir-se-á menos orgulhoso que envergonh ado, e tereis adquiri
do o direito de o guiar durante o seu desvario, para, pelo menos, lhe
fazerdes evitar os precipícios. Importa que o pupilo não faça nada
que o governante nãosaiba e não queira, nem sequer o que é mal.
E é cem vezes preferível que o governante aprove uma falta e se
engane a que seja enganado pelo seu pupilo e que a falta seja come
tida sem que ele o saiba. Quem crê ter de fechar os olhos sobre al
guma coisa, em breve se vê forçado a fechá-los sobre tudo: o primei
ro abuso que é tolerado traz outro; e essa cadeia tem como resul
tado o derrube de toda a ordem e o desprezo por todas as leis.
Um outro erro que já combati, mas que nunca abandonará os
espíritos tacanhos, é aectar constantemente a dignidade magis
tral e pretender passar por um homem perfeito, no espírito do seu
pupilo. Esse método é despropositado. Como é possível que eles
não vejam que, pretendendo reforçar a sua autoridade, a destroem;
que, para conseguirem fazer que dizem sej a ouvido, é necessário
154 colocar-se no lugar daqueles a quem se dirigem, e que é preciso ser
homem para saber falar ao coração humano? Todas essas pessoas
perfeitas não influenciam nem persuadem: pensa-se sempre que,
para elas, é muito fácil combater paixões que não experimentam.
Mostrai as vossas fraquezas ao vosso pupilo, se pretendeis curá-lo
das que ele tem; que ele assista, em vós, aos mesmos combates que
lee trava, e que não possa dizer, como os outros: «Esses velhotes,
despeitados porjá não seremjovens, querem tratar osjovens como
se estes fossem velhotes: e, porque todos os seus desejos estão ex
tintos, consideram os nossos como crimes.»
Montaigne relata que, um dia, perguntou, ao senhor de Lan
gey, quantas vezes nas suas negociações com a Alemanha ele se
embriagara, ao serviço do rei. Tenho muita vontade de perguntar,
ao governante de certojovem, quantas vezes entrou num lugar mal
afamado, ao serviço do seu pupilo. Quantas vezes? Engano-me. Se
a primeira não retira, para sempre, ao libertino, o desejo de lá vol
tar, se dele não sai com o arrependimento e a vergonha, se não vai
verter no vosso seio torrentes de lágrimas, abandonai-o imediata
mente; ou ele não é mais do que um monstro, ou vós não passais de
um imbecil; nunca lhe servireis de nada. Mas deixemos estes ex
pedientes extremos, tãotristes quanto perigosos, e que em nada se
relacionam com a nossa educação.
Quantas precauções se devem tomar com um j ovem de bom
nascimento, antes de o expor ao escândalo dos costumes do século!
Essas precauções são penosas, ll}as indispensáveis; é a negligên
cia neste assunto que perde toda a juventude; é pela desordem da
primeira idade que os homens degeneram, e que os vemos torna
rem-se no que, actualmente, são. Vis e covardes nos seus próprios
vícios, têm pequeninas almas, porque os seus corpos usados oram
corrompidos muito cedo; mal lhes resta vida suiciente para se mo
verem. Os seus subtis pensamentos m arcam espíritos sem estoo;
são incapazes de sentimentos grandes e nobres; nãotêm, nem
simplicidade nem vigor; abjectos em todas as coisas, e vilmente
m aldosos, só são vãos, tratantes, falsos; nem sequer têm suficien
te coragem para serem ilustres celerados. Tais são os desprezíveis
homens que a devassidão dajuventudeforma: se, entre eles, se en
contrasse um único que soubesse sertemperante e sóbrio, que sou
besse no meio deles - preservar o seu coração, o seu sangue e os
seus costumes, do contágio do exemplo, aos trinta anos esmagaria
todos esses insectos e tornar-se-ia seu senhor com menos dificul
dades que as que teve para não deixar de ser o seu.
Por pouco que o nascimento e a fortuna tenham feito por
Emílio, ele seria esse homem, se quisesse sê-lo: mas desprezá-los
-ia de mais, para se dignar dominá-los. Vejamo-lo, agora, entre
eles, entrando na sociedade, não para nela brilhar, mas para a
conhecer e para nela encontrar uma companheira digna dele.
Pouco importará a categoria com que ele tenha nascido, porque
seja qual for a sociedade em que fizer o seudebute, a sua entrada 155
será sim pies e apagada: Deus não permita que ele tenha a infelici
dade de nela brilhar! As qualidades que impressionam à primeira
vista não são as que ele tem ; não as tem nem as quer ter. Atribui
pouquíssimo valor aos julgamentos dos homens e menos ainda aos
seus preconceitos; além disso, nãoestá interessado em que o esti
mem antes de o conhecerem. A sua maneira de se apresentar não
é nem modesta nem pretenciosa: é natural e franca; nãoconhece
embaraço nem fingimento e, no meio de um grupode pessoas, por
ta-se da mesma m aneira que se estivesse só e sem testemunhas.
Será, por isso, grosseiro, desdenhoso, desatento para com os ou
tros? Exactamente o contrário; se, quando só, nãoconsidera os ou
tros homens como não valendo nada, por que motivo eles nãohave
riam de contar para ele, vivendo entre eles? Não os prefere a si
mesmo, pelas suas maneiras, porque nãoos prefere a si mesmo, no
seu coração; mas também não lhes demostra uma indiferença que
está muito longe de sentir; embora não empregue as fórmulas de
cortesia, emprega as da humanidade. Nãogosta de ver ninguém
sofrer; não oferecerá o seu lugar a outro, por afectação, mas ce
der-lho-á de boa vontade, por bondade, se, vendo-o esquecido,
pensa que esse esquecimento o mortifica; porque, ao meu jovem,
custar-lhe-á menos permanecer de pé voluntariamente que ver o
outro ficar de pé, pela força das circunstâncias.
Embora, geralmente, Emílio não estime os homens, não se
mostrará desdenhoso para com eles, porque os lastima e se compa
dece deles. Não lhes podendo proporcionar o gosto pelos verdadei
ros bens, deixa-lhes os bens da opinião com que eles se contentam,
receando que, retirando-lhos sem interesse nenhum, os torne
mais infleizes do que já eram. Por conseguinte, não é nem alterca
dor nem contrariante; também não é complacente nem lisonjea
dor; diz a sua opinião sem combater a de ninguém, porque ama a
liberdade acima de tudo, e porque a franqueza é um dos seus mais
belos direitos.
Fala pouco, porque não está interessado em que se ocupem de
le, e, pelo mesmo motivo, só diz coisas úteis: se assim não fosse, o
quê que o levaria a falar? Emílio é excessivamente instruído para
poder ser tagarela. A grande lábia vem necessariamente, ou da
pretensão à espirituosidade- de que falarei a seguir -ou do valor
que se atribui a bagatelas, em que, tolamente, se crê que os outros
estão tão interessados como nós. Aquele que conhece um número
suficiente de coisas, e que sabe dar a cada uma o seu justo valor,
nunca fala de mais; pois também sabe apreciar a atenção que se lhe
presta e o interesse que os seus discursos podem merecer. Geral
mente, as pessoas que poucç sabem falam muito, e as pessoas que
sabem muito falam pouco. E natural que um ignorante considere
importante tudo quanto sabe, e o diga a toda a gente. Mas um ho
mem instruído não mostra facilmente o seu repertório; teria coisas
156 de mais a dizer, e vê ainda mais coisas a dizer depois dele: cala-se.
Longe de chocar as m aneiras dos outros, Emílio adopta-as de
boa vontade, não para parecer instruído dos co!3tumes nem para
afectar os ares de um homem cortês, mas, pelo contrário, para que
não o notem, para evitar dar nas vistas; e nunca se sente tanto à
sua vontade como quando ninguém lhe presta atenção.
Embora entre na sociedade, ignora absolutamente os costu
mes dela; mas nem por isso se sente tímido e receoso; se se esqui
va, não é porque se sinta embaraçado, é porque p ara bem ver é pre
ciso não ser visto; pois que o que pensam dele não o interessa na
da, e o ridículo não lhe mete medo nenhum. Daí se segue que, es
tando sempre calmo e de sangue-frio, não se perturba com uma
vergonha que não tem razão de ser. Quer olhem para ele ou não,
faz sempre, o mais bem que sabe, tudo quanto faz ; e, sempre me
tido consigo mesmo, para bem observar os oturos, àprende as suas
maneiras com uma facilidade que os escravos da opinião não con
seguem ter. Pode-se dizer que ele adquire os hábitos do mundo
precisamente porque pouco caso faz dele.
No entanto, não vos enganeis a respeito do seu comportamen
to, e não o compareis com a dos vossos jovens agradáveis; é firme,
e não pretencioso; as suas m aneiras são livres e não desdenhosas:
o ar insolente só os escravos o têm, a independência não tem afec
tação. Nunca vi nenhum homem que tivesse o orgulho na alma
mostrá-lo no seu comportamento: essa afectação é muito mais pró
pria das almas vis e vãs, que só podem impor-se dessa m aneira. Li,
num livro, que, um dia, o famoso Marcel, vendo entrar um es
trangeiro no seu salão, lhe perguntou de que país era: «Sou inglês>>,
respondeu o estrangeiro. «Vós, Inglês!>>, exclamou o bailarino; «Se
ríeis dessa ilha onde os cidadãos tomam parte na administração
pública e são uma porção do soberano poder1 !? Não, caro senhor;
essa cabeça baixa, esse olhar tímido, essa maneira de andar hesi
tante, só me indicam o escravo intitulado de um eleitor».
Não sei se essa conclusão demonstra um grande conhecimen
to da verdadeira relação que existe entre o carácter de um homem
e a sua aparência. Cá por mim - que não tenho a honra de ser
m estre de danca -, teria pensado exactamente o contrário. Teria
dito: «Este Inglês não é um cortesão, nunca ouvi dizer que os cor
tesãos andassem de cabeça baixa e com passo hesitante: um ho-
1
Como se houvesse cidadãos que não fossem membros da cidade e
que, como tais, não fizessem parte na autoridade soberana! Mas os Fran
ceses, tendo achado bem usurpar esse respeitável nome de ddadão -ou
trora devido aos membros das cidades gaulesas -desnaturaram-lhe o
significado, ao ponto de não se perceber mais nada. Um homem que aca
ba de me escrever muitos disparates contralaNouvelle Héloise ornamen
tou a sua assinatura com o título de cidadão de Paimboeuf, e convenceu-
-se de que me tinha feito uma excelente f acécia. 157
mem que se mostra tímido em casa de um dançarino pode não o ser
na Câmara dos Comuns». Certamente que esse senhor Marcel con
sidera todos os seus compatriotas como Romanos.
Quando se ama deseja-se ser amado. Emílio ama os homens,
e, por conseguinte, quer agradar-lhes. Com muitos mais motivos,
deseja agradar às mulheres; a sua idade, os seus costumes, o seu
projecto, tudo concorre para, nele, alimentar esse desejQ. Digo os
seus costumes, pois que eles têm muita importância nisso; os ho
mens que'os possuem são os verdadeiros adoradores das mulheres.
Não têm, como os outros, um não sei quê de galantaria; mas têm
um interesse mais sincero, mais terno, e que parte do coração. De
entre cem mil debochados, eu seria capaz de distinguir - ao lado
de uma mulher - o único homem que tivesse costumes e que do
minasse a natureza. Imaginai como deve ser Emílio, com um tem
paramento absolutamente novo, e tantas razões para lhe resistir!
Quando ao lado delas, creio que, por vezes, se sentirá tímido e
embaraçado; mas certamente que esse embaraço não lhes desa
gradará, e as menos brejeiras não deixarão de dele desfrutar e de
o aumentar. De resto, o seu interesse mudará sensivelmente de
forma, consoante os estados. Mostrar-se-á mais modesto e mais
respeitador para as mulheres, mais animado e mais terno para as
JOVc ' nqsadoiras. Nunca se esquece do objecto das suas buscas e
...
1 Isto está demonstrado num Essai sur ['origine des Zangues (Ensaio
sobre a origem das línguas), que encontrarão numa compilação dos meus
escritos. 161
L. B. 524-11
Aqueles que nos guiam são os artistas, os grandes, os ricos; e
o que os guia é o seu interesse ou a sua vaidade. Os últimos, para
ostentarem as suas riquezas, e os primeiros, para tirarem provei
to disso, porfiam na procura de novos meios de despesa. Através
disso, o grande luxo estabelece o seu império e faz amar o que é di
fícil e dispendioso; então, o pretenso belo, longe de imitar a natu
reza, só o consegue ser à força de a contrariar. Eis como o luxo e o
mau gosto são inseparáveis. Em toda a parte em que o gosto for dis
penqioso, também é falso.
E sobretudo, no comércio dos dois sexos que o gosto, bom ou
m au, adquire a sua forma; a sua cultura é um efeito necessário do
objecto desta sociedade. Mas, quando a facilidade de desfrutar
amorna o desejo de agradar, o gosto deve degenerar; e é essa, ao
que me parece, outra razão das mais sensíveis, por que o gosto es
tá ligado aos bons costumes.
Consultai o gosto das mulheres nas coisas fisicas e que depen
dem da avaliação dos sentidos; o dos homens, nas coisas morais e
que dependem mais do entendimento. Enquanto as mulheres fo
rem o que devem ser, limitar-se-ão às coisas da sua competência,
e ajuizarão sempre bem; mas, desde que se começaram a estabe
lecer como árbitros da literatura, desde que comecaram a ajuizar
dos livros e a escrevê-los com todo o entusiasmo, já não conhecem
mais nada. Os autores que consultam as sábias sobre os seus tra
balhos podem ter sempre a certeza de que são mal aconselhados :
os galantes que as consultam sobre as m aneiras de vestir andam
sempre ridiculamente trajados. Em breve, terei a oportunidade de
falar dos verdadeiros talentos desse sexo, da m aneira de os culti
var, e das coisas sobre as quais as suas opiniões poderão ser escuta
das.
Eis as considerações elementares que determinarei como prin
cípios, arrazoando com o meu Emílio, sobre uma m atéria que, na
circunstância em que ele se encontra e na busca que o ocupa, não
lhe é indiferente. E a quem deveria ela ser indiferente? O conhe
cimento do que pode ser agradável ou desagradável aos homens
não é unicamente necessário àquele que precisa deles, mas tam
bém àquele que pretende agradar-lhes para os servir; e a arte de
escrever não passa de um estudo ocioso, quando é utilizada para
fazer ouvir a verdade.
Se, para cultivar o gosto do meu pupilo, eu tivesse de escolher
entre países onde esta cultura ainda não nasceu e outros onde ela
já tivesse degenerado, seguiria a ordem retrógada; começaria por
fazê--l o visitaros últimos e tertninaria pelos primeiros . A razão pa
ra esta escolha está em que o gosto se corrompe por uma delicade
za excessiva que torna sensível a coisas que a maioria dos homens
não vê; essa delicadeza conduz ao espírito de discussão; pois que,
quanto mais se subtilizam os objectos, mais eles se multiplicam:
162 essa subtilidade torna o tacto mais delicado e menos uniforme.
Formam-se, então, tantos gostos quantas as pessoas que há. Nas
discussões sobre a preferência, a Filosofia e as luzes estendem-se;
e é desse modo que se aprende a pensar. Ai; observações finas só po
dem serffeitas por pessoas muito relacionadas, tendo em conside
ração que elas atingem, depois, todas as outras, e que as pessoas
pouco habituadas às sociedades numerosas esgotam nelas a sua
atenção sobre os grandes traços. Talvez, que presentemente, não
haj a um lugar policiado na terra em que o gosto geral sej a mais
mau que em Paris. No entanto, é nesta capital que o bom gosto se
cultiva; e editam-se poucos livros estimados na Europa cujo autor
não se tenha formado em paris. Aqueles que pensam que basta ler
os livros que lá se fazem enganam-se: aprende-se muito m ais nas
conversas dos autores que nos seus livros;� os próprios autores não
são aqueles com quem mais se aprende. E o espírito das socieda
des que desenvolve uma cabeca que pensa e que transporta a vis
ta tão longe quanto ela pode ir. Se tendes uma centelha de génio,
ide passar um ano em Paris; em breve, sereis tudo quanto podereis
ser, 9u nunca chegareis a ser nada.
E possível aprender a pensar nos lugares onde o mau gosto im
pera; mas é preciso não pensar como aqueles que têm esse mau gos
to, e é mui to difícil evitar que isso,aconteça, quando se convive com
eles durante demasiado tempo. E preciso aperfeiçoar, através de
les, o instrumento que ajuíza, evitando utilizá-lo como eles. Não
me atreverei a polir o ajuizamento de Emílio, ao ponto de o alterar;
e, quando ele tiver o tacto bastante ino para sentir e comparar os
diversos gostos dos homens, será sobre objectos mais simples que
o levarie a fixar o seu.
Ainda o farei de mais longe, para lhe conservar um gosto pu
ro e são. No tumulto da dissipação, arranjarei maneira de com ele
ter conversas úteis; e, dirigindo-as sempre para objectos que lhe
agradem, terei o cuidado de lhos tornar tão interessantes quanto
instrutivos .
Eis o momento da leitura e dos livros agradáveis; eis chegado
o tempo de lhe ensinar a fazer a análise do discurso, f.le o tornar
sensível a todas as belezas da eloquência e da dicção. E pouca coi
sa aprender as línguas, só por si; a sua utiliz ação não é tão impor
tante quanto s� pensa; mas o estudo das línguas conduz ao da gra
m ática geral. E necessário aprender o latim, p ara bem conhecer o
francês; é preciso estudar e comparar um e outro, para compreen
der as regras da arte de falar.
De resto, há uma certa simplicidade de gosto que vai direi ta ao
coração e que só se encontra nos escritos dos antigos. Na eloquên-
cia, na poesia, em toda a espécie de literatura, ele encontrá-las-á
-como na História-abundantes em coisas, e simples de julgar.
Os nossos autores, pelo contrário, dizem pouco e pronunciam
muito. Dar-nos constantemente a sua opinião como lei não é a ma
neira de formar a nossa. A diferença entre os dóis gostos faz-se 163
sentir em todos os monumentos e até sobre os túmulos. Os nossos
estão cobertos de elogios; nos dos antigos, liam-se feitos.
Vê-se bem que não foi a Academia das inscrições que compôs
esta.
Estarei muito iludido, se o meu pupilo, que tão pouca impor
tância atribui às palavras, não dedicar toda a sua atenção a estas
diferenças, e se elas n ão o influenciarem sobre a escolha das suas
leitu:ças. Influenciado pela m áscula eloquêncil! de Demóstenes, di
rá: «E um orador••; mas, ao ler Cícero, dirá: «E um advogado».
Em geral, Emílio sentirá mais gosto pelos livros antigos que
pelos nossos; pela única razão de que, como foram o5 primeiro,, o5
antigos encontram-se mais perto da natureza e o seu génio é-lhes
1
Duas mulheres da sociedade, para se darem ares de se divertirem
muito, decidem nunca se deitarem antes das cinco horas da manhã. Du
rante os rigores do Inverno, os seus criados passam a noite na rua, a es
perar por elas, lutando com muitas dificuldades para não ficarem gelados.
Uma noite, ou, para melhor dizer, uma manhã, entra-se nos aposentos de
uma dessas duas pessoas tão divertidas que deixam correr as horas sem
as contar: encontram-se exactamente sozinhas, a dormir, cada uma na
sua poltrona.
173
vê pouco dinheiro e muitos géneros alimentícios, e onde reinam a
abundância e a pobreza.
Ali, eu reuniria uma sociedade, mais escolhi dá que numerosa,
de amigos que gostassem do prazer e que o soubessem apreciar, de
mulheres que pudessem deixar as suas poltronas e prestar-se aos
jogos campestres, a pegar, de quando em quando - em vez de no
tear e nas cartas - na linh a de pesca, nas varinhas enviscadas pa
ra apanhar pássaros, no ancinho das mulheres que põem o feno a
secar, e nas cestas dos vindimadores. Ali, todos os ares da cidade
seriam esquecidos, e, tendo passado a ser aldeões na aldeia, encon
trar-nos-íamos entregues a muitas e variadas distracções que, ca
da tarde, apenas nos criariam o embaraço da escolha para os do dia
seguinte. O exercício e a vida activa formar-nos-iam um novo es
tômago e novos gostos. Todas as nossas refeições seriam festins,
onde a abundância dos alimentos seria mais apreciada que a sua
delicadeza. A alegria, os trabalhos rústicos, os jogos folgazões, são
os melhores cozinheiros do mundo, e as refeições finas são muito
ridículas para pessoas que trabalham desde o nascer do sol. O ser
viço não teria mais ordem que elegância: a sala de j antar seria em
toda a parte, no j ardim, numa barca, à sombra de uma árvore; por
vezes ao longe, ao pé de uma fonte de águas límpidas, sobre a er
va verdejante e fresca, por debaixo de maciços de amieiros e de ave
leiras; uma longa procissão de alegres convivas trtansportaria, a
cantar, os pratos do festim; teríamos a relva como mesa e como
cadeira; as bordas da fonte serviriam de aparador'e a sobremesa
estaria suspensa nas árvores. Os pratos seriam servidos indiscri
minadamente, o apetite dispensaria cerimónias; cada um, prefe
rindo-se abertamente a qualquer outro, acharia bem que cada um
dos outros se prefrisse a si mesmo: desta familiaridade cordial e
moderada, nasceria, sem grosseirice, sem hipocrisia, com toda a
naturalidade, uma intimidade prazenteira, cem vezes mais encan
tadora que a cortesia, e mais feita para unir os corações . Não ha
veria nenhum lacaio importuno para espiar os nossos discursos, e
criticar, em voz baixa o nosso comportamento, contando o que
comíamos com um olhar ávido, divertindo-se a fazer-nos esperar
para nos dar de beber, e resmungando por o almoço ser tão demo
rado. Seríamos os nossos próprios criados, cada um seria servido
por todos; o tempo passaria sem que déssemos por ele; a refeição
seria o repouso e duraria tanto quanto o calor do dia. Se perto de
nós passasse algum camponês, de regresso ao trabalho, com os
seus instrumentos ombro, eu alegrar-lhe-ia o coração com alguns
bons ditos e alguns goles de bom vinho, que o ajudariam a supor
tar mais alegremente a sua miséria: e também teria o prazer de
sentir as minhas entranhas levemente comovidas e de me dizer,
em segredo: «Continuo a ser homem>>.
Se alguma festa campestre reunisse oshabitantes do lugar, eu
1 74 seria dos primeiros a lá chegar, com os meus companheiros; se al-
guns casamentos - mais abençoados pelo céu que os das ci
dades - tivessem lugar na minha vizinhança, saber-se-ia que
aprecio a alegria, e seria convidado. Levaria a essa boa gente al
guns dons sim pies como ela, que contribuiriam para a festa; e, em
troca, encontraria bens de um preço inestimável, bens tão pouco
conhecidos pelos meus iguais: a franqueza e a verdadeira satisfa
ção. Jantaria alegremente, na extremidade dak sua longa mesa;
faria coro com o refrão de uma antiga canção rústica, e dançaria na
sua granja, com mais entusiasmo que no baile da Opera. ,
«Até aqui, tudo está perfeito>>; dir-me-ão, «mas a caça? E pos
sível imaginar esta no campo sem caçar? Compreendo-vos: não
pretendia mais que uma quinta, e fazia mal. Suponho-me rico, por
conseguinte, preciso de prazeres exclusivos, de prazeres destrui
dores: eis outros prazeres completamente diferentes. Preciso de
terras, de bosques, de guardas, de contribuições, das honras se
nhoriais, sobretudo de inceso e de água benta.
Muito bem! Mas essa terra terá vizinhos ciosos dos seus direi
tos e desejosos de usurpar os dos outros; os nossos guardas discu
tirão, e tal vez que os senhores também : eis ai tercações, discussões,
ódios, processos, pelo menos: isso já não é muito agradável. Os
meus vassalos não verão com nenhum prazer que os seus trigais
sejam roídos pelas minhas lebres e que as suas favas sejam comi
das pelos meus javalis; cada um deles, como não se atreve a m atar
o inimigo que destrói o seu trabalho, pretenderá, pelo menos, ex
pulsá-lo do seu campo; depois de terem passado o dia a cultivar as
suas terras, será necessário que passem a noite a guardá-las, te
rão m astins, tambores, buzinas, campinhas: com todo esse ruído,
perturbarão o meu sono. Mesmo sem querer, terei de pensar na mi
séria dessa pobre gente, e não poderei deixar de ma censurar. Se
tivesse a honra de ser príncipe, nada disso me afectaria, de modo
nenh um; mas eu, novo rico, ainda terei o coração um pouco plebeu.
E não é tudo; a abundância da caca tentará os cacadores; em
breve, terei caçadores furtivos para castigar; precisarei de prisões,
de carcereiros, de archeiros, de galeras; tudo isso me parece bas
tante crel. As mulheres desses infelizes virão postar-se à minha
porta e importunar-me com os seus choros, ou bem será necessá
rio correr com elas, maltratá-las. Por seu lado, aqueles que não
tiverem caçado furtivamente, e cuja colheita a minha caca terá
comido, virão queixar-se: uns serão punidos por terem morto a
caça, os outros ficarão arruinados por não a terem matado: que
triste alternativa! Por todos os lados, só verei casos de miséria, e
ouvirei queixumes: isso deve perturbar m uito, ao que me parece,
o prazer de massacrar, à sua vontade, perdizes e lebres quase de
baixo dos nossos pés.
Se quereis separar os prazeres das penas que eles causam, re
tirai-lhes a exclusividade: quanto mais os deixardes comuns aos
homens mais os apreciareis sempre puros. Por conseguinte, não 1 75
farei tudo quanto acabo de dizer; mas, sem mudar de gostos, se
guirei aquele que suponho ser o menos prejudicial. Estabelecerei
a minha habitação campestre numa região onde a caca seja livre
para toda a gente, e onde eu possa ter esse divertimento sem
problemas. A caça será mais rara; mas será necessária mais arte
p ara a procurar e sentir-se-á mais prazer em atingi-la. Lembrar
-me-ei sempre do entusiasmo que meu pai experimentava quando
via voar a primeira perdiz, e dos transportes de alegria com que ele
encontrava a lebre que procurara durante todo o dia. Sim, m ante
nho que, só com o seu cão, carregado com a sua espingarda, a sua
bolsa de caca, o seu equipamento, a ksuà pequenina presa, ele re
gressava ao fim da tarde, estafado e arranhado pelas silvas, mais
s atisfeito com o seu dia que todos os vossos cacadores amaneira
dos, que, em cima de um bom cavalo, seguidos porvinte espingar
das carregadas, nãofazem mais do que disparar e m ater em sua
volta, sem arte sem glória, e quase sem exercício. Mas o prazer não
é menor, e o inconveniente é nulo, quando não se têm terras para
guardar, nem caçador furtivo para punir, nem desgraçado para
atormentar: eis, portanto, uma sólida razão para a minha prefe
rência. Seja o que for que fizerem, não se pode atormentar indefi
nidamente os homens, sem se receber também algum incómodo; e
as repetidas m aldições do povo, mais cedo ou mais tarde, tornam
a caça amarga.
Mais uma vez, os prazeres exclusivos são a morte do prazer. As
verdadeiras distracções são as que se compartilham com o povo:
aquelas que pretendemos ser os únicos a ter, já não as temos. Se
os muros que eu m andar erigir em volta do meu parque me tornam
esse enclausuramento triste, só consegui, com miuto dispêndio,
perder o prazer dos passeios; eis-me forcado a ir procurá-lo mais
longe. O demónio da propriedade infecta tudo aquilo em que toca.
Umrico quer ser o patrão por toda a parte e só se sente bem onde
não o é: ve-se constantemente obrigado a fugir de si mesmo. Cá por
mim, e a esse respeito, farei, na minha riqueza, o que fiz durante
a minha pobreza. Actualmente mais rico do bem dos outros que
nunca poderia ser do meu, apodero-me de tudo o que me convém,
na minha vizinhança: não há conquistador mais determinado que
eu; mais que os próprios príncipes; acomodo-me, indistintamente,
a todos os terrenos abertos que me agradam; atribuo-lhes nomes;
de um, faço o meu p arque, do outro, o meu terraço; e eis-me seu
proprietário; a partir desse momento, passeio neles impunemen
te; visito-os frequentemente, p ara conservar a minha possessão;
desgasto, tanto quanto quero, o solo, à força de andar por cima de
le; e nunca me convencerão de que o titular dos bens de que me
aproprio retira mais utilização do dinheiro que eles lhe produzem
que o que eu retiro do seu terreno. E se me quiserem vexar abrin
do fossos, elevando sebes, pouco me importa; ponho o meuparque
176 às costas e vou colocá-lo noutro lugar; os lugares não faltam, na vi-
zinhança, e, durante muito tempo, poderei pilhar os meus vizinhos
antes de ter falta de abrigo.
Eis um exemplo do verdadeiro gosto que se pode ter na escolha
das distracções agradáveis: eis o espírito em que se desfruta; o res
to não passa de ilusão, de quimera, de tola vaidade. Aquele que se
afastar destas regras, por mais rico que seja, comerá o seu ouro em
estrume e nunca conhecerá o valor da vida.
Objectar-me-ão, certamente, que tais distracções estão ao
alcance de todos os homens e que não é preciso ser-se rico para as
experimentar. Era precisamente aí que eu queria chegar. Temos
prazer quando o queremos ter: é só a opinião que torna tudo difí
cil, que afugenta a felicidade, à nossafrente; e é cem vezes mais fá
cil ser fleiz que parece-lo. O homem de gosto e verdadeiramente
sensual não precisa de riquezas; basta-lhe ser livre e senhor de si
mesmo. Aquele que goza de boa saúde e que nãotem falta do ne
cessário, se souber arrancar do seucoração os bens da opinião, é
bastante rico; é a aurea mediocritas de Horáio. Gente com cofres
-fortes, procurai, pois, outro emprego para a vossa opulencia, pois
que para o prazer ela não serve de nada. Emílio não saberá todas
estas coisas mais bem que eu; mas, como tem o coração m ais pu
ro e mais são, senti-las-á ainda mais bem, e todas as suas obser
vações na sociedade não farão mais do que confirmá-lo.
Enquanto o tempoassim passa, continuamos a procurar So
phie, e não a encontramos. Era bom que nãoa encontrássemos mui
to depressa, e só a procurámos onde eu tinha a certeza absoluta de
que ela não estava1 •
Enfim, o momento aproxima-se; é tempo de a procurar real
mente, para evitar que lhe apareça uma que ele confunda com ela,
e que só tarde de mais se aperceba do seu engano. Adeus, pois, Pa
ris, cidade célebre, cidade ruidosa, de fumos e de lama, onde asmu
lhers deixaram de crer na honra e os homens na virtude. Adeus,
Paris: nós procuramos o amor, a felicidade, a inocência; nunca nos
esqueceremos de ti.
L.B.524 - 12
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LIVRO V
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Eis-nos chegados ao último acto da juventude, mas ainda não
estamos no fi m .
Não é bom que o homem esteja só. Emílio é homem e promete
mos-lhe uma companheira: é preciso dar-lha. Essa companheira
é Sophie. Onde vive ela? Onde a encontraremos? Para a encontrar
mos, é preciso que saibamos onde está. Comecemos por ter uma
ideia do que ela é, e, em seguida, poderemos melhor julgar dos lu
gares onde ela habita; e, mesmo assim, quando a escontrarmos, tu
do não ficará resolvido. <<Pois o nosso jovem gentil-homem», diz
Locke, <<está preparado para se casar, chegou o momento de o dei
xarmos junto da sua prometida.» E assim, acaba a sua obra. Para
mim, que não tenho a honra de educar um gentil-homem, não m e
atreverei a seguir essas instruções d e Locke.
SOPIDE OU A MULHER
L. B. S24 - l3
num sexo como no outro. Em geral, as raparigas são mais dóceis
que os rapazes, e até se deve empregar com elas mais autoridade,
como explicarei mais adiante; mas daí não se segue que devemos
exigir delas sej a o que for cuja utilidade elas não possam com
preender; a arte das mãos consiste em lha demonstrar em tudo
quanto lhes prescrevem, e isso é tanto mais fácil quanto é certo
que, nas raparigas, a inteligência é mais precoce que nos rapazes.
Esta regra exclui do seu sexo, assim como do nosso, não apenas to
dos os estudos inúteis que não conduzem a nada de bom e que não
tornam sequer mais agradáveis aos outros aqueles que os fizeram,
mas também todos aqueles cuja utilidade não é da sua idade, e que
a criança não pode prever num futuro remoto. Se não quero que se
insista com um rapaz para que ele aprenda a ler, com mais razão
não quero que se forcem as raparigas a fazê-lo, antes de se lhes ex
plicar p ara que serve a leitura. E, na m aneira como geralmente se
lhes mostra essa utilidade, segue-se muito mais a sua própria
ideia que a delas. Afinal, que necessidade tem uma raparigas de
saber ler tão cedo? Irá ter, brevemente, uma casa a gorvernar?
Poucas são aquelas que não só utilizam mas que também abusam
dessa ciência fatal; e todas elas são suficientemente curiosas pa
ra não precisarem de ser forçadas a aprendê-la, desde que tenham
a oportunidade e a ocasião para o fazer. Talvez fosse preferível que,
antes de tudo o m ais, aprendessem a fazer contas; pois não há na
da que ofereça uma utilidade mais sensível em todas as idades, que
exija uma utilização mais prolongada, e que tão bem sirva para
evitar cometer erros, como as cootas. Se a rapariguinha só recebes
se as cerejas do seu lanche através de uma operação aritmética, ga
ranto-vos que aprenderia a calcular muito depressa.
Conheço uma rapariga que aprendeu mais depressa a escrever
que a ler, e que começou a escrever com a agulha antes de saber es
crever com a pena. De entre todas as letras, a primeira que quis es
crever foi o O. Fazia constantemente O grandes e pequenos, O de
todos os tamanhos, O, uns dentro dos outros, e sempre traçados ao
contrário. Infelizmente, um dia em que estava ocupada com esse
útil exercício, viu-se num espelho; e achando que essa atitude
constrangida lhe dava m au aspecto, fez como Minerva: deitou fo
ra a pena e nunca mais quis fazer O. Seu irmão não gostava mais
que ela, da escrita; mas o que o contrariava era o incómodo e não
o ar que ela lhe dava. Arranjou-se outro pretexto para a levar no
vamente à escrita; a rapariguinha era delicada e frívola, não acei
tava que a sua roupa servisse para as suas irmãs; era marcada pe
la mãe e esta deixou de querer fazê-lo; foi preciso que ela própria
a m arcasse: bem se pode im aginar o resto do progresso.
Justificai sempre as tarefas que impondes às rapariguinhas,
mas não deixeis de lhas impor. A ociosidade e a indocilidade são os
dois defeitos mais perigosos p ara elas e cuj a cura é mais difícil, de-
194 pois de contraídos. As raparigas devem ser vigilantes e laboriosas;
e isso não é quanto baste: devem ser menstruadas bastante cedo.
Esta contrariedade - se acaso o for para elas - é inseparável do
seu sexo; se alguma vez dela se livram será para sofrer outras mais
cruéis. Durante toda a sua vida estarão sujeitas a um inçómodo
mais contínuo e mais severo, que é o das boas-maneiras. E preci
so começar por exercitá-las nas contrariedades, a fim de que estas
nunca venham a ser sacrifícios, para elas; por habituá-las a domi
nar todas as suas fantasias, para as submeter à vontade de
outrém. Quando elas querem trabalhar constantemente, é conve
niente obrigá-las, de vez em quando, a não fazerem nada. A dis
sipação, a frivolidade, a inconstância, são os defeitos que nascem
facilmente dos seus primeiros gostos corruptos e sempre satisfei
tos. Para prevenir esse abuso, ensin ai-as sobretudo a dominar-se.
Nos nossos insensatos costumes, a vida da mulher honesta é um
perpétuo combate contra si mesma; é justo que esse sexo compar
tilhe o castigo dos m ales que nos causou.
Impedi que as raparigas se aborreçam nas suas ocupações e
que se apaixonem pelos seus divertimentos, como sempre aconte
ce nas educações vulgares, onde se põe - como diz Fenelon - to
do o aborrecimento num lado e todo o prazer no outro. O mais gra
ve de todos esses inconvinientes não se fará sentir, se as regras pre
cedentes tiverem sido respeitadas, a não ser quando as pessoas
que estiverem na sua companhia lhes desagradem. Uma rapa
riguinha que ame sua mãe ou a sua amiga, trabalhará durante
todo o dia ao seu lado, sem se aborrecer; só a tagarelice a compensa
rá de todo o seu esforço. Mas, se aquela que a governa lhe é insu
portável, con�iderará com o mesmo desgosto tudo quanto ela fizer
diante de si . E muito difícil que aquelas que não se sentem bem ao
lado de suas m ães nem ao lado de ninguém, possam vir, um dia, a
virar para bem; mas, para ajuizar dos seus verdadeiros sentimen
tos, é preciso observá-las, e não se fiar no que dizem; porque são
lisonjeadoras, dissimuladas, e muito cedo aprendem a aparentar
sentimentos que não experimentam . Também não se deve obrigá
-las a amar a própria mãe; a afeição não vem por dever, não é pa
ra isso que serve a autoridade. A dedicação, os desvelos, o próprio
hábito, farão que a mãe seja amada pela filha, se não fizer nada pa
ra provocar o seu ódio. A própria submissão em que ela a mantém,
longe de enfraquecer esse afecto, só o poderá aumentar, porque co
mo a dependência é um estado natural das mulheres, as raparigas
sentem-se feitas para obedecer.
Pela única razão de que têm, ou devem ter, pouca liberdade,
levam ao exagero aquela que se lhes dá; exageradas em tudo, en
tregam-se aos jogos com mais entusiasmo que os rapazes: é o se
gundo dos inconvinientes de que acabei de falar. Esse entusiasmo
deve ser moderado; pois é a causa de vários vícios particulares às
mulheres, como, por exemplo, o capricho da predilecção, através do
qual uma mulher se deixa transportar, hoje em dia, por um deter- 195
minado objecto que amanhã deixa de lhe interessar. A inconstân
cia dos gostos é-lhes tão funesta como o seu excesso, e ambos têm
a mesma origem . Não lhes retireis a alegria, os riscos, o barulho,
as brincadeiras; mas impedi que elas se saciem de um para se de
dicarem a outro; não suporteis - nem que seja durante um único
momento da sua vida - que elas deixem de sentir o freio. Habi
tuai-as a ver-se interrompidas no meio das suas brincadeiras e
obrigadas a dedicar-se a outras tarefas, sem resmunguices. Nis
to, o hábito também é o suficiente, pois não faz mais que secundar
a natureza.
O resultado desta contínua opressão é uma docilidade de que
as mulheres têm precisão durante a sua vida, porque nunca dei
xam de estar submetidas, ou a um homem, ou à opinião dos ho
mens, e porque nunca lhes é permitido colocar-se acima dessas
opiniões. A primeira e a mais importante qualidade de uma mu
lher é a doçura: feita para obedecer a um ser tão imperfeito como
o homem -frequentemente tão cheio de vícios e sempre tão cheio
de defeitos -, muito cedo ela deverá aprender a suportar mesmo
a injustiça e os erros de um m arido, sem se queixar; não é para ele,
mas para ela, que deve ser doce. A amargura e a obstinação das
mulheres nunca conseguem m ais do que agravar os seus males e
os m aus procedimentos dos m aridos; estes sentem que não é com
essas armas que elas os devem vencer. O céu não as fez insinuan
tes e persuasivas para se tornarem rabujentas; não as fez fracas
para se mostrarem imperiosas; não lhes deu uma voz tão doce pa
ra proferirem injúrias; não lhes fez traços tão delicados para que
elas os desfigurassem num acesso de cólera. Quando se zangam,
são capazes de tudo: em muitos casos, têm razões de queixa, mas
procedem sempre mal, quando ralham. Cada um deve m anter o
tom do seu sexo; um m arido excessivamente brando pode tornar
uma mulher impertinente; mas- a não ser que o homem seja um
monstro - a doçura de uma mulher acalma-o, e, mais cedo ou
mais tarde, triunfa dele.
Que as raparigas sejam sempre submissas, mas que as m ães
não sejam sempre inexoráveis. Para tornar uma jovem dócil, não
é necessário torná-la infeliz; para a tornar modesta, não é preci
so embrutecê-la; pelo contrário, não acharia mal que, por vezes,
lhe permitissem empregar um pouco de dissimulação, não para
evitar a punição da sua desobidiência, mas para se eximir a obe
decer. Não se trata de lhe tornar a dependência penosa, basta fa
zer-lha sentir. A manha é um talento natural ao sexo; e, persua
dido de que todas as tendências n aturai s são boas e rectas em si
mesmas, a minha opinião é de que essa deve ser cultivada, tal co
mo as outras: trata-se apenas de evitar que seja usada abusiva
mente.
Sobre a oportunidade desta observação, dirijo-me a todos os
196 observadores de boa-fé. Não pretendo que, a este respeito, se ex a-
minem as mulheres, por si próprias: os nossos incómodos precei
tos podem forçá-las a aguçar o espírito. Quero que se examinem as
raparigas, as rapariguinhas, que, por assim dizer, acabaram de
nascer: que sejam comparadas com os rapazinhos da mesma ida
de; e, se, ao lado delas, estes não parecerem pesados, estouvados
e estúpidos, é evidente que estou enganado. Permiti-me citar um
único exemplo, retirado da mais pura ingenuidade infantil.
Há muito o hábito de proibir as crianças de pedirem seja o que
for, quando estão à mesa; porque se pensa que a maneira mais
conveniente de as educar é sobrecarregá-las com preceitos inú
teis: como se um bocadinho disto ou daquilo não fosse facilmente
concedido ou recusado1, sem a necessidade de fazer morrer cons
tantemente uma pobre criança, vítima de uma cobiça aguçada pe
la esperança. Todos conhecem a habilidade de um rapazinho sub
metido a essa lei, e que, tendo sido esquecido à mesa, se lembrou
de pedir o sal, etc. Não digo que o podiam ter repreendido por ter
pedido directamente sal e indirectamente a carne; a omissão fora
tão cruel, que, mesmo que ele tivesse infringido abertamente a lei
e tivesse francamente declarado que estava com fome, não posso
acreditar que o castigassem. Mas eis como se arranjou-na minha
presença - uma menininha de 6 anos, num caso muito mais di
fícil; pois, além de lhe ser rigorosamente proibido pedir alguma
coisa, directa ou indirectamente, a desobediência não teria sido
desculpada, porque já comera de todos os pratos, excepto de um
único, que se tinham esquecido de lhe servir e que ela cobiçava
muito.
Ora, para conseguir que esse esquecimento fosse reparado sem
que a pudessem acusar de desobediência, fez apontando com o de
do, a revista de todos os pratos, dizendo em voz alta, à medida que
apontava para eles: «Comi disto, comi disto»; mas afectou tão visi
velmente passar sem dizer nada por aquele de que não comera, que
alguém que se apercebeu disso lhe disse: «E disto, corrtestes?»<<Oh!
Não!>>, respondeu em voz baixa e pequenina glutona, baixando os
olhos; comparai: este truque é uma astúcia de rapariga; o outro foi
um ardil de rapaz.
Ora isto é bem, e nenhuma lei geral é má. Estejeito particular
concedido ao sexo é um a indeminização muitojusta, pelaforçaque
ele tem a menos; sem isso, a mulher não seria a companheira do ho
mem, seria a sua escrava: é através desta superioridade de talen
to que ela se mantém sua igual e que o governa, obedecendo-lhe.
A mulher tem tudo contra ela: os nossos defeitos, a sua timidez, a
ACRIADA
ACRIANÇA
ACRIADA
Como é possível que não vos lembreis, vós que tão boa memó
ria tendes?
ACRIANÇA
ACRIADA
ACRIANÇA
Não.
ACRIADA
Sim.
ACRIADA
ACRIANÇA
Sou jovem.
ACRIADA
ACRIANÇA
É velha.
ACRIADA
Já foi jovem?
ACRIANÇA
Sim.
ACRIADA
ACRIANÇA
Porque envelheceu.
ACRIADA
ACRIANÇA
Foram desmanchados.
ACRIADA
ACRIANÇA
ACRIADA
ACRIANÇA
Porque cresci.
ACRIADA
Continuareis a crescer?
A CRIANÇA
Sim.
ACRIADA
ACRIANÇA
Tornam-se mulheres.
ACRIADA
ACRIANÇA
ACRIANÇA
Tornam-se velhas.
ACRIADA
ACRIANÇA
ACRIADA
ACRIANÇA
Não sei.
A CRIADA
ACRIANÇA
Morreu1•
ACRIADA
L.B.524-14
ACRIANÇA
ACRIADA
ACRIANÇA
Morrem.
ACRIADA
ACRIANÇA
ACRIADA
ACRIANÇA
ACRIADA
ACRIANÇA
ACRIADA
ACRIANÇA
210
ACRIADA
Tanto melhor para vós. Mas, enfim, creis que vivereis sempre?
ACRIANÇA
ACRIADA
Então?
ACRIANÇA
ACRIADA
ACRIANÇA
Infelizmente, sim!
ACRIADA
ACRIANÇA
ACRIADA
A CRIANÇA
ACRIADA
ACRIANÇA
ACRIANÇA
L.B.524 - 15
ter; nunca chorará sinceramente, e perante Deus, por ser um ob
jecto de cobiça, nunca se convencerá de que o mais doce sentimen
to do coração seja uma invenção de Satanás. Fornecei-lhe outras
razões, porque essas não penetrarão nela. Ainda será pior se se
criar -comoé costume -contradição nas suas ideias, e se, depois
de a ter humilhado aviltando o seu corpo e os seus encantos com a
sujidade do pecado, lhe fizerem, respeitar -como se fosse o tem
plo de Jesus Cristo -esse mesmo corpo que lhe tornaram tão des
prezível. As ideias excessivamente sublimes e excessivamente vis
também são insuficientes e não se podem associar: é preciso uma
razão que esteja ao alcance do sexo e da idade. A consideração do
dever só tem alguma força na medida, em que se lhe acrescentam
motivos que nos levam a cumpri-lo.
Ninguém pensaria que é Ovídio que tem uma opinião tão se
vera.
Quereis, pois, inspirar, às jovens, o amor pelos bons costumes?
Sem cosntantemente lhes dizerdes: <<Sede sages!», esforçai-vos
por se-lo; fazei-lhes sentir todo o valor da sageza, e conseguireis
que elas a amem. Não basta sentir esse interesse para mais tarde,
no futuro; mostrai-lho no momento presente, nas relações da sua
idade, no carácter dos seus pretendentes. Descrevei-lhes o homem
de bem, o homem de mérito; ensinai-as a reconhece-lo, a amá-lo
para elas; provai-lhes que amigas, esposas ou amantes, só esse ho
mem s pode tornar feliz. Inspirai a virtúde através da razão; fazei
-lhes sentir que o império do seu sexo e todas as suas vantagens
não dependem apenas do seu bom comportamento e dos seus cos
tumes, mas também dos costumes dos homens; que elas têm pou
co poder sobre as almas vis e baixas, e que não se pode servir a sua
amada se não se souber servir a virtude. Convencei-vos de que, en
tão, descrevendo-lhes os costumes dos nossos dias, lhes inspira
reis uma sincera repugnância; mostrando-lhes pessoas na moda,
levá-las--ei a desprezá-las; só lhes inspirareis desdém pelas má
ximas dessa gente, aversão pelos seus sentimentos, desprezo pe
las suas vãs galantarias; criareis nelas uma ambição mais nobre:
a de reinar sobre alamas grandes e fortes, a das mulheres de espar
ta, que era de comandar os homens. Uma mulher corajosa, impú
dente, intrigante, que só consegue atrair os seus pretendentes com
a coquetaria e conservá-los através dos seus favores, leva-<>s a
obedecer-lhe como lacaios, nas coisas servis e vulgares: nas coisas
importantes e graves, não tem qualquer autoridade sobre eles.
Mas a mulher que é simultaneamente honesta, amável e sage, a
que força os sues a respeitarem-na, a que é reservada e modesta,
aquela, em resumo, que conserva o amor pela estima, envia-nos,
226 com uma só palavra, ao fim do mundo, ao combate, à glória, à , mor-
te, aonde quiser. Esse império é belo, ao que me parece, e vale bem
a pena de ser comprado.
Eis em que espírito Sophie foi educada, com mais desvelo que
dificuldade, e mais segundo o seu gosto que contrariand�. Diga
mos agora uma palavra sobre a sua pessoa, segundo a descrição
que dela fiz a Emílio, e de conformidade com a ideia que ele tem da
esposa que o poderá tornar feliz.
Nunca insistirei de mais em que ponho de parte os prodígios.
Emílio não é nenhum deles e Sophie também não o é. Emílio é ho
mem e Sophie é mulher; eis toda a sua glória. Na confusão de se
xos que reina entre nós, quase que é um prodígio ser-se do seu.
Sophie é bem nascida, tem uma bondade natural; tem o cora
ção muito sensível, e, por vezes, essa extrema sensibilidade dá-lhe
uma actividade de imaginação difícil de moderar. Tem um espíri
to menos justo que penetrante, um humor agradável, uma fisiono
mia que promete uma alama e que não engana; é possível abrodá
-la com indiferença, mas não deixá-la sem emoção. Outras há que
têm boas qualidades que lhe faltam; outras há que têm mais desen
volvidas as que ela possui; mas nenhuma tem as qualidades mais
bem harmonizadas para ormar um bom carácter. Sabe tirar par
tido dos seus próprios defeitos; e, se fosse mais perfeita agradaria
muito menos.
Sophie não é bela; mas, a seu lado, os homens esquecem as mu
lheres belas e as mulheres belas ficam descontentes de si mesmas.
À primeira vista, quase que nem parece bonita; mas, quanto mais
se olha para ela, mais bela aparece; ganl}a onde tantas outras per
dem; e o que ela ganha já não o perde. E possível terem-se olhos
mais belos, ter-se uma boca mais bonita, uma figura mais impo
nente; mas não se poderia ter cintura mais bem marcada, tez mais
bela, mão mais branca, pé mais pequenino, olhar mais doce, fisio
nomia mais comovedora. Sem deslumbrar ela interessa; encanta,
e não se saberia dizer porquê.
Sophie gosta de enfeitar-se e percebe do assunto; sua mãe não
Gravem
Pelidae stomachum cedere nescii.
Leitores, ignoro que efeito faria um discurso dês SéS sobrê as jo
vens educadas à vossa maneira. Quanto a Sophie, é possível que
ela não lhe responda com palavras; o pudor e a comoção não lhe
permitiriam expressar-se livremente; mas tenho a certeza abso-
236 luta de que ele permanecerá gravado no seu coração, para o resto
da sua vida, e de que, se é possível contar com alguma solução hu
mana, é sobre a que a levará a ser digna da estima dos seus pais.
Vejamos o caso pelo pior aspecto, e demos-lhe um tempera
mento ardente que lhe torne penosa uma longa espera; garanto
que o seu discernimento, os seus conhecimentos, o seu gosto, a sua
delicadeza, e, sobretudo, os sentimentos com que o seu coração foi
alimentado durante a sua infância, oporão, à impetuosidade dos
seus sentidos, um contrapeso que lhe bastará para os dominar, ou,
pelo menos, para lhes resistir durante muito tempo. Preferiria
morrer mártir, no seu estado, que afligir seus pais, casando com
homem sem mérito, e expondo-se à infelicidade de um casamen
to mal harmonizado. A própria liberdade que recebeu só consegue
dar-lhe uma nova elevação de alma e torná-la mais exigente pa
ra a escolha do seu senhor. Com o temperamento de uma Italiana
e a sensibilidade de uma Inglesa, ela possui - para conter o seu
coração e os seus sentidos - o orgulho de uma Espanhola, que,
mesmo quando procura um amante, não encontra facilmente
aquele que considera digno dela.
Nem a toda a gente é dado sentir a força que o amor pelas coi
sas honestas pode dar à alma, nem a que se pode encontrar em si
mesmo, quando se deseja sinceramente ser virtuoso. Há pessoas
para as quais tudo quanto é grande parece quimérico, e que, na sua
baixa e vil razão nunca virão a saber quanto pode - sobre as pai
xões humanas - a própria loucura da virtude. A essas pessoas, só
se deve falar por exem pios: só têm a perder, se se obstinarem a ne
gá-los. Se eu lhes dissesse que Sophie não é um ser imaginário, que
só o seu nome é uma invenção minha, que a sua educação, os seus
costumes, o seu carácter, a sua própria figura existiram realmen
te, e que a sua memória ainda inspira lágrimas a uma honesta fa
mília, é certo que não me acreditariam; mas, enfim, que poderei eu
perder, se continuar a contar a história de uma jovem tão pareci
da com Sophie que esta história poderia ter sido a sua, sem que nin
guém se pudesse sentir surpreendido? Quer a creiam verdadeira
ou não, pouco importa: terei, se quiserdes, contado ficções; mas
nem por isso deixarei de explicar o meu método, e de atingir os
meus fins.
A jovem pessoa provida do temperamento que acabo de atri
buir a Sophie, tinha, aliás, como ela, todos os atributos que lhe po
deriam ter feito merecer esse nome, e é por isso que lho deixo. Após
o discursso que acabo de relatar, seu pai e sua mãe-pensando que
os partidos não se viriam oferecer na aldeia onde habitavam, en
viaram-na passar um Inverno na cidade. em casa d<> uma tia que,
secretamente, instruíram da finalidade dessa viagem; pois que a
orgulhosa Sophie levava, no fundo do seu coração, o nobre orgulho
de saber tirunfar de si mesma; e, fosse qual fosse a necessidade que
tivesse de um marido, teria preferido morrer solteira que resolver-
-se a procurá-lo. 237
Para obedecer aos intentos dos pais, a tia apresentou-a nas ca
sas, levou-a a festas, a reuniões, fê-la conhecer pessoas -ou, an
tes, fez que a vissem -porque Sophie pouco se interessava por to
do esse bulício. No entanto, constatou-se que ela não fugia dos jo
vens de aspecto agradável que pareciam decentes e modestos. Ape
sar da sua reserva, tinha uma certa arte para os atrair, que bas
tante se parecia com a coquetaria; mas, depois de ter conversado
com eles duas ou três vezes, desinteressava-se. Em breve, a esse
ar de autoridade que parecia aceitar as homenagens, ela substi
tuía um comportamento mais humilde e uma cortesia mais repul
siva. Sempre atenta a si própria, já não lhes dava a oportunidade
de lhe prestarem o mais ínfimo serviço: era dizer que não queria
ser a sua amada.
Nunca os corações sensíveis apreciaram os prazeres ruidosos
-vã e estéril felicidade das pessoas que não sentem nada e que se
convencem de que atordoar as suas vidas é desfrutar delas. Não
encontrando o que procurava, e desesperando de o encontrar des
sa maneira, Sophie fartou-se da cidade. Amava ternamente seus
pais, nada a compensava da ausência deles, nada conseguia fazer
-lhos esquecer; voltou para a casa paterna, muito antes de ter ter
minado o prazo fixado para o seu regresso.
Mal recomeçara as suas funções em casa dos pais, estes nota
ram que, conservando o mesmo comportamento, ela mudara de
humor. Tinha distracções, mostrava-se impaciente, andava tris
te e sonhadora, escondia-se para chorar. De início, pensou-se que
amava e que se envergonhava disso: falaram-lhe, ela negou. Ga
rantiu não ter conhecido ninguém que lhe pudesse atingir o cora
ção - e Sophie não mentia.
No entanto, a sua languidez continuava a aumentar, e a sua
saúde começava a ressentir-se disso. A sua mãe, preocupada com
essa modificação, acabou por decidir conhecer-lhe a causa. Falou
-lhe a sós, e utilizou essa linguagem insinuante e essas carícias in
vencíveis que só a ternura materna sabe utilizar. «Minha filha, tu,
que transportei no meu ventre e que, constantemente, trago no
meu coração, verte os segredos do teu no seu de tua mãe: Então,
que segredos são esses que uma mãe não os possa conhecer? Quem
é que lamenta as tuas penas, quem é que as compartilha, quem é
que as quer aliviar, se não teu pai e eu? Ai! Minha filha, queres que
eu morra da tua dor, sem a conhecer?»
Em vez de esconder os seus desgostos a sua mãe, a jovem até
estava satisfeita por tê-la como consoladora e confidente; mas o
pudor impedia-a de falar e a sua modéstia não encontrava lingua
gem para descrever um estado tão pouco digno dela como a emo
ção que perturbava os seus sentidos. Por fim, tendo a sua vergonha
servido de início para a máe, esta conseguiu arrancar-lhe a humi
lhante confissão. Em vez de a afligir com justas reprimendas, con
238 solou-a, lastimou-a, chorou por ela; era demasiado sensata para
lhe fazer ver um crime num mal que só a sua virtude tornava tão
cruel. Mas, por que suportar, sem necessidade, um mal cujo remé
dio era tão dócil e tão legítimo? Por que não usava ela da liberda
de que lhe tinham dado? Porque não aceitava um marido? Por que
não escolhia um? Não saberia ela que o seu destino dependia de si
própria, e que, fosse qual fosse a sua escolha, seria confirmada por
seus pais, pois que ela não poderia escolher um homem que não fos
se honesto? Tinham-na enviado à cidade e ela não quisera lá ficar;
tinham-se apresentado vários partidos, e ela recusara--Ds a todos.
Por que esperava ela, então? O que queria? Que contradição inex
plicável!
A resposta era simples. Se apenas se tratasse de um recurso pa
ra a juventude, a escolha brevemente se faria; mas um senhor pa
ra toda a vida não é assim tão fácil de escolher; e, como essas duas
escolhas não se podem separar, é preciso esperar, e, muitas vezes,
perder a sua juventude, antes de ter encontrado o homem com
quem se quer passar a sua vida; Era esse o caso de Sophie: preci
sava de um amante, mas esse amante teria de ser seu marido; e,
quanto ao coração de que o seu precisava, um era tão difícil de en
contrar como o outro. Todos esses jovens tão brilhantes só tinham,
em relação a ela, a conveniência da idade: mas as outras faltavam
-lhes sempre; o seu espírito superficial, a sua vaidade, a sua lin
guagem, os seus costumes desregrados, as suas frívolas imitações,
levavam-na a sentir repugnância por eles. Ela procurava um ho
mem e apenas ecnontrava macacos; procurava uma alma e não en
contrava nenhuma.
«Como sou infeliz!>>, dizia ela a sua mãe; «preciso de amar, e não
vejo nada quem e agrade. O meu coração repudia todos aqueles que
atraem os meus sentidos. Não vejo um que não excite os meus de
sejos, nem um qye os não reprima; um gosto sem estima não pode
durar. Ai! Não é esse o homem que convém à vossa Sophie! O seu
encantador modelo está excessivamente colocado acima de tudo,
na alma dela. Ela só a ele pode amar, só a ele pode fazer feliz, e só
com ele poderá ser feliz. Prefere consumir-se e combater constan
temente, prefere morrer infeliz e livre, que desesperada ao lado de
um homem que não ame e que tornaria infeliz; mais vale não vier,
que viver para sofrer.>>
Impressionada com essas singularidades, sua mãe achou-as
demasiado bizarras para nelas não suspeitar algum mistério. So
phie não era nem preciosa nem ridícula. Como seria possível que
essa delicadeza levada ao excesso lhe pudesse convir, a ela, a quem
tanto se ensinara, durante a sua infância, como a acomodar-se às
pessoas com que tinha de viver e a fazer de necessidade virtude?
Esse modelo de homem amável de que ela estava tão enamorada,
e de que falava sempre nas suas conversas, levou sua mãe a pen-
sar que esse capricho tinha outro fundamento qualquer que ela
ainda ignorava, e que Sophie não dissera tudo. A infeliz, sobrecar- 239
regada com o seu secreto desgosto, só procurava desabafar. Sua
mãe insiste, ela hesita; por fim rende-se, e, saíndo sem dizer na
da, volta um momento depois, com um livro na mãe: «Lastimai a
vossa infeliz filha, pois que a sua tristeza não tem remédio e os seus
choros não podem cessar. Quereis saber a causa disso: pois bem!
E i-la!», diz ela, lançando o livro para cima da mesa. A mãe pega no
livro e abre-o: era Les aventures de Télémaque1 • Começa por não
compreender nada desse enigma; depois de muito perguntar e de
receber respostas embaraçadas, compreende, finalmente-� com
uma surpresa fácil de imaginar - que sua filha é a rival de Euca
ris.
Sophie amava Telémaco, e amava-o com uma paixão de que
nada a poderia curar. Logo que seu pai e sua mãe conheceram a sua
mania, riram dela e convenceram-se de que lha poderiam fazer
perder, através da razão. Enganavam-se: a razão não estava toda
do seu lado; Sophie também tinha a sua e sabia fazê-la valer.
Quantas vezes os reduziu ao silêncio, utilizando contra eles os seus
próprios argumentos, mostrandO-lhes que eles tinham sido os pró
prios a fazer todo o mal, que não a tinham formado para um homem
do seu século; que, necessariamente, ela teria de adoptar as manei
ras de pensar de seu marido, ou fazê-lo adoptar as suas; que eles
lhe tinham tornado o primeiro sistema impossível pela forma como
a tinham educado, e que o outro era precisamente o que ela pro
curava. «Dai-me••, dizia ela, «um homem imbuído das minhas má
ximas, ou que eu possa imbuí-lo delas, e desposo-o; mas, até lá,
porque me ralhais? Lastimai-me. Sou feliz e não louca. O cor,ação
dependeda vontade?Nãofoi o meu próprio paique mo disse? E cul
pa minha, se amo o que não existe? Não sou uma visionária; não
quero um príncipe, não procuro Telémaco, sei que ele não passa de
uma ficção: procuro um homem que se pareça com ele. E porque é
que esse homem não pode existir, pois que eu existo, eu, que sin
to o meu coração tão semelhante ao dele? Não, não desonremos as
sim a humanidade; não pensemos que um homem amável e virtuo
so seja apneas uma quimera. Ele existe, vive, talvez me procure;
procura uma alma que o saiba amar. Mas quem é ele? Onde está?
Ignoro-o: não é nenhum daquele� que eu vi; certamente que não
será nenhum daqueles que verei. O minha mãe! Porque me tornas
tes a virtude tão amável? Se só a ela posso amar, a culpa é menos
minha que vossa!>>
Prosseguirei neste relato até à sua catástrofe? Direi os prolon
gados debates que a precederam? Descreverei uma mãe impacien
tada, transformando em severidade as suas primeiras carícias?
L. B. 524 - 16
se notar entre elas, mais se confundem os caracteres. Daí, os casa
mentos incôngruos e todas as desordens que deles derivam; daí se
deduz - por uma consequência evidente - que quanto mais nos
afastamos da igualdade, mais os sentimentos naturais se alteram;
quanto maior for o intervalo entre os grandes e os pequenos, mais
o elo conjugal se afrouxa; quanto mais ricos e pobres houverem,
menos pais e maridos haverá. O senhor, assim como o escravo, dei
xam de ter família, cada um deles vê apenas o seu estado.
Se quereis prevenir os abusos e fazer casamentos felizes, aba
fai os preconceitos, esquecei as instituições humanas, e consultai
a natureza. Não unis pessoas que só se convêm numa dada condi
ção, e que deixarão de se convir quando essa condição vier a mu
dar; mas uni aquelas que se convêm em todas as condições que se
encontrem, seja qual for o país que habitam, seja em que catego
ria for que possam cair. Não digo que as afinidades convencionais
sejam indiferentes no casamento; mas afirmo que a influência das
afinidades naturais é tão importante que chega a ser a única que
decide do destino da vida, e que quando há tal conveniência de gos
tos, de humores, de sentimentos, de caracteres, isso deveria impe
lir um pai sage -nem que fosse príncipe, monarca - a dar, sem
hesitar, ao seu filho, a jovem com a qual ele tivesse todas essas con
veniências, mesmo que ela viesse de uma família desonesta, mes
mo que ela fosse a filha do carrasco.
Sim, sustento que -mesmo que todas as desgraças imaginá
veis se venham a abater sobre dois esposos bem unidos -estes go
zarão de uma felicidade mais verdadeira, chorando juntos, que a
que desfrutariam com todos os prazeres da Terra, envenenados pe
la desunião dos corações.
Por isso, em vez de, desde a sua infância, ter destinado uma es
posa para o meu Emílio, esperei até conhecer a que lhe convêm.
Não sou eu que lhe dou esse destino: é a natureza; tudo quanto me
compete fazer é encontrar a escolha que ela fez. Que me compete,
digq, a mim, e não ao pai; pois que, confiando-me o seu filho, ceden
do-me o seu lugar, substituiu o seu direito pelo meu; sou eu o ver
dadeiro pai de Emílio, fui eu quem fez dele um homem. Teria re
cusado educá-lo, se não tivesse tido o direito de o casar a seu agra
do, isto é, ao meu. Só o prazer de fazer feliz pode pagar o trabalho
que se tem para colocar um homem em estado de o ser.
Mas também não deveis pensar também que -para encontrar
a esposa de Emílio - eu me tenha esquecido de o colocar na obri
gação de a procurar. Esta pretensa busca não pa�sa de um pretex
to para o levar a conhecer as mulheres, a fim de que ele aprecie o
valor daquela que lhe convém . Há já muito tempo que Sophie foi
encontrada; talvez até que Emílio a tenha visto; mas só a reconhe
cerá quando chegar o momento oportuno.
Embora a igualdade de situações não seja indispensável para
242 o casamento, quando essa igualdade se reune às outras conveniên-
cias, dá-lhes um novo valor; não se contrabalança com nenhuma,
mas faz a balança pender para um lado, quando tudo é igual.
Um homem - a menos que seja monarca - não pode procurar
esposa em todos os estados; porque os preconceitos que não tiver,
encontrá-los-á nos outros; e mesmo que determinada jovem lhe
conviesse, ele não a obteria, por causa disso. Há, por conseguinte,
máximas de prudêncià que devem limitar as buscas de um pai ju
dicioso. Não deverá pretender dar ao seu pupilo uma categoria aci
ma da sua, pois que isso não depende dele. Mesmo que o pudesse,
não o deveria fazer: que importa a categoria ao jovem, pelo menos
ao meu? E, no entanto, subindo, eleexpõe--se a mil verdadeirosma
lesque sentirá durante toda a sua vida.Afirmo mesmo queele não
deverá querer compensar bens de diferentes naturezas -como a
nobreza e o dinheiro -, porque o valor de cada um deles confere ao
outro é menor que as alterações que recebe; porque, além disso,
nunca se está de acordo com a avaliação comum; e, finalmente, por
que a preferência que cada um dá à sua categoria predispõe para
a discórdia entre as duas famílias e -muitas vezes-entreos dois
esposos.
Para a ordem do casamento, ainda há uma grande diferença de
situações, se é que o homem que se alia acima ou abaixo dele. O pri
meiro cá só é absolutamente contrário à razão; o segundo já está
mais em conformidade com ela. Sendo através do chefe que a famí
lia se liga à sociedade, é a condição desse chefe que regra o da fa
mília inteira. Quando ele contrai aliança com uma mulher de ca
tegoria inferior, não desce, e eleva sua esposa; pelo contrário,
quando desposa uma mulher de uma categoria social superior à
sua, abaixa-a sem se elevar. Assim, no primeiro caso, há bem sem
mal; e, no segundo, mal sem bem. Além disso, está na ordem da na
tureza que a mulher deve obedecer ao homem. Por conseguinte,
quando ele a escolhe numa categoria inferior, a ordem natural e a
ordem civil estão em conformidade, e tudo corre bem. Mas, qaun
do, pelo contrário, faz uma aliança com uma mulher de categoria
superior à sua, o homem coloca-se na alternativa de magoar o seu
direito ou o seu reconhecimento, e de ser ingrato ou desprezado.
Então, a mulher, pretendendo a autoridade, torna-se o tirano do
seu chefe; e o senhor, transformado em escravo, sente-se como a
mais ridícula e a mais miserável das criaturas. Tais como os infe
lizes favoritos que os reis da Ásia honram e atormentam com a sua
aliança, e que -ao que se diz -para se deitarem com as suas mu
lheres, só se atrevem a entrar na cama pelo fundo.
Estou preparado para que mui to leitores, lembrando-se de que
eu atribuo à mulh er um talento natural para governar o homem,
me acusem de contradição, neste ponto: no entanto, estarão enga
nados. Há uma grande diferença entre arrogar-se o direito de co
mandar e governar aquele que manda. O império da mulher é um
império de doçura, de habilidade e de complacências; as suas or- 243
dens são carícias; as suas ameaças são choros. Em casa, deve rei
nar como um ministro no Estado, fazendo-se ordenar aquilo que
deseja fazer. Neste sentido, é constante que os casais mais felizes
são aqueles em que a mulher tem mais autoridade: mas quando ela
ignora a voz do chefe, quando ela usurpar os seus direitos e ser ela
a comandar, dessa desordem nunca resulta nada que não seja mi
séria, escândalo e desonra.
Resta a escolha entre a suas iguais e as suas inferiores; e creio
que ainda resta alguma restrição a fazer para estas últimas; por
que é muito difícil encontrar, entre a ralé do povo, uma esposa ca
paz de fazer a felicidade de um homem honesto: não porque se se
ja mais vicioso nas classes mais baixas que nas mais altas, mas
porque se tem pouca ideia do que é belo e honesto, e porque a in
justiça dos outros estados faz ver, a este, a justiça nos seus próprios
vícios.
Naturalmente, o homem não pensa. Pensar é uma arte que ele
aprende como todas as outras, e até com mais dificuldade. Só co
nheço - para os dois sexos - duas classes realmente distintas:
uma delas é a das pessoas que pensam; a outra é a das pessoas que
não pensam; e esta diferença deve-se quase unicamente à educa
ção. Um homem da primeira destas duas categorias não se deve
aliar a uma pessoa da outra; porque o maior encanto da socieda
de falta à sua, quando, tendo uma esposa, ele se vê reduzido a pen
sar sozinho. As pessoas que passam exactamente toda a sua vida
a trabalhar para viver não pensam em mais nada, a não ser no pró
prio trabalho ou no seu interesse, e todo o seu espírito parece re
sidir nas extremidades dos seus braços. Essa ignorância não pre
judica nem a probidade nem os costumes; muitas vezes até lhes
serve; muitas vezes, ganah-se com os seus deveres, à força de ne
les reflectir, e acaba-se por pôr uma linguagem no lugar das coi
sas. A consciência é o mais esclarecido dos filósofos: não é preciso
conhecer os Offices de Cícero, para se ser homem de bem; e a mu
lher do mundo, por mais honesta que seja, talvez seja a que menos
sabe o que a honestidade é. Mas não deixa de ser verdade que um
espírito cultivado é o suficiente para tornar o seu comércio agra
dável; e, para um pai de família que gosta de estar em sua casa, é
uma coisa muito triste ver-se obrigado a fechar-se em si mesmo,
e não se poder fazer compreender por ninguém.
Aliás, como é que uma mulher que não tenha o hábito de reflec
tir educará os filhos? Como conseguirá discernir o que lhes con
vém? De que maneira os poderá dispor para as virtudes que não co
nhece, para o mérito de que não faz ideia nenhuma? Só saberá aca
riciá-los ou ameaçá-los, torná-los insolentes ou receosos; fará de
les macacos afectados ou desonestos estouvados, mas nunca nem
bons espíritos nem crianças amáveis.
Não convém, pois, a um homem que tenha educação, desposar
244 uma mulher que a não tenha, nem, por conseguinte, casar com
uma que pertença a uma categoria que a não tenha. Mas eu pre
feriria cem vezes uma jovem simples e grosseiramente educada a
uma rapariga instruída e de belo espírito, que viria estabelecer, na
minha casa, um tribunal de literatura de que ela seria a presiden
te. Uma mulher de belo espírito é o flagelo do marido, dos filhos,
dos amigos, dos criados, de toda a gente. Da sublime elevação do
seu belo génio, desdenha todos os seus deveres de mulher, e come
ça sempre por se fazer homem, à maneira de mademoiselle de l'En
clos. Fora de casa, é sempre ridícula e muito justamente criticada,
porque é impossível não o ser quando se sai do seu estado e que não
se é feito para aquele que se tomar.
Todas essas mulheres de grandes talentos nunca impressio
nam mais do que os tolos. Sabe-se sempre qual é o artista ou o ami
go que segura na pena ou no pincel, quando elas trabalham; sabe
-se qual é o discreto homem de letras que, em segredo, lhes dita os
seus oráculos. Toda essa charlatanice é indigna de uma mulher ho
nesta. E mesmo que tivesse verdadeiros talentos, a sua pretensão
aviltá-los-ia. A sua dignidade é manter-se ignorada; a sua glória
reside na estima do seu marido: os seus prazeres consistem na fe
licidade da família. Leitores, dirijo-me a vós própios, sede de boa
fé: o que vos inspira mais boa opinião e vos faz abordar com mais
respeito uma mulher, quando entrais na sua sala: vê-la ocupada
com os trabalhos do seu sexo, com as tarefas da casa, rodeada das
roupas dos filhos, ou encontrá-la a escrever versos sobre a sua toi
lette, rodeada de brochuras de todas as espécies e de pequeninos
bilhetes pintados de todas as cores? Toda a jovem letrada conser
var-se-á solteira durante toda a sua vida, enquanto só houver ho
mens sensatos neste mundo.
).-. B. 524-17
tinha uma filha amável, que, na véspera de o seu pai dar hospita
lidade a um estrangeiro, pensou que em breve teria um marido>>.
Sophie, interdita, cora, baixa os olhos, morde a língua; é impossí
vel imaginar uma tal confusão. O pai, que se diverte a aumentá
-la, toma a palavra, e diz que ajovem princesa ia pessoalmente la
var a roupa no rio. «Credes>>, prosseguiu ele «que ela teria desde
nhado tocar nos guardanapos sujos, dizendo que cheiravam a res
tos de comida?» Sophie, que se sente atingida, esquece a sua timi
dez natural e desculpa-se com vivacidade. Que seu pai sabe mui
to bem que todas as pequenas peças de roupa não teriam tido ou
tra lavadeira que ela, se lho tivessem permitido1; que ainda teria
feito mais, e com parzer, se lho tivessem ordenado. Enquanto diz
isso tudo, lança-me olhares, de soslaio, com uma inquietação de
que não posso deixar de rir, lendo no seu coração ingénuo os receios
que a levam a falar. Seu pai tem a crueldade de fazer realçar es
sa atrapalhação, perguntando-lhe, num tom irónico, a que propó
sito ela fala por si mesma, e o que é que pensa ter em comum com
a filha de Alcinoo. Envergonhada e trémula, ela não se atreve a res
pirar, nem a olhar para ninguém. Jovem encantadora! Já não é
preciso fingir: eis-vos declarada, mesmo sem o terdes querido.
Muito depressa essa pequena cena é esquecida, ou parece sê
-lo. Felizmente para Sophie, Emílio foi o único que não se aperce
beu de nada. O passeio continua, e os nossos jovens, que tinham co
meçado por andar ao nosso lado, têm dificuldade em acompanhar
a lentidão dos nossos passos; insensivelmente, passa-mos adian
te, e acabam por se acostar; vemo-los bastante longe, à nossa fren
te. Sophie parece atenta e grave; Emílio fala e gesticula com ani
mação : não nos parece que a conversa os aborreça. Ao cabo de uma
longa hora, regressamos; chamamo-los eles voltam para trás,
mas, por sua vez, lentamente, e vê-se que fazem render o tempo.
Enfim, bruscamente a conversa deles acaba antes de as suas vozes
chegarem ao nosso alcance, e apressam o passo para se nos reuni
rem. Emílio aproxima-se com um ar aberto e carinhoso; os olhos
brilham-lhe, de alegria; no entanto, dirige-os com um pouco de in
quietação para a mãe de Sophie, para ver a recepção que ela fará
à filhas. Esta não tem, nem de longe, um ar muito desinteressado;
ao aproximar-se, parece muito confusa por se ver a sós com o jo
vem, ela que tantas vezes esteve com outros sem se sentir emba-
Senhor, creio que um jovem tão bem nascido como vós, que tem
sentimentos e costumes, não desejaria retribuir com a desonra de
uma família a amizade que esta lhe testemunha. Não sou nem in
tratável nem afectada; sei o que se deve consentir à juventude es
touvada; e o que suportei diante de mim bem vo-lo prova. Consul
tai o vosso amigo sobre os vossos deveres; ele vos explicará a dife
rença que existe entre osjogos que a presença de um pai e de uma
mãe autoriza e as liberdades que se tomam longe delas, abusando
da sua confiança e transformando em armadilhas os mesmos favo
res que, debaixo dos seus olhares, são apenas inocentes. Ele dir
-vos-á, senhor, que o único erro que a minha filha cometeu em re
lação a vós foi o de não ter visto, logo na primeira vez, o que nun
ca deveria consentir; ele dir-vos-á que tudo quando se recebe co
mo favor passa a sê-lo, e que é indigno de um homem de honra abu
sar da simplicidade de uma jovem, para, em segredo, usurpar as
mesmas liberdades que ela pode admitir em presença de toda a
gente. Pois bem se sabe o que as boas maneiras toleram, em públi
co; mas ignora-se onde se detém -na sombra do mistério- aque
le que se erige como único árbitro das suas fantasias>>.
L. B.S24 - 18
sentado numa boa carruagem, amá-la-ia à sua vontade, amá-la
-ia como Parisiense. Leandro teria querido morrer por Hero, se o
mar não o tivesse separado dela? Leitor, poupai-me palavras; se
sois feito para me compreender, acompanhareis bastante bem as
minhas regras, nos meus pormenores.
As primeiras vezes que fomos visitar Sophie, íamos a cavalo,
para chegarmos mais depressa. Achámos esse expediente cómodo,
e, na quinta vez, ainda fomos a cavalo. Estavam à nossa espera; a
mais demeia légua da casa, avistamos pessoas no caminho. Emílio
observa, o coração palpita-lhe com mais força; aproxima-se, reco
nhece Sophie, apeia-se precipitadamente, corre, voa, está aos pés
da amável família. Emílio gosta de bons cavalos; o seu é vivo, sen
te-se livre, escapa-se pelos campos fora: persigo-o, dificilmente
me consigo aproximar dele, trago-o de volta. Infelizmente, Sophie
tem medo de cavalos, não ouso aproximar-me dela. Emílio não dá
por nada; mas Sophie avisa-o, ao ouvido, do trabalho que deu ao
seu amigo. Emílio acorre, todo envergonhado, pega nos cavalos,
deixa-se ficar para trás: é justo que cada um tenha os seus traba
lhos. É o primeiro a partir, para se desembaraçar das nossas mon
tadas. Assim, deixando Sophie para trás, j á não considera o cava-
·
L. 8.524 - 18
ros, deliciosos, mas menos reais que imaginários, avivam o seu
amor sem efeminar o seu coração.
Os dias em que a não vê, não os passa ocioso e sedentário. Nes
ses dias, ainda é Emílio: não está nada transformado. Na maior
parte das vezes, percorre os campos das redondezas, prossegue a
sua História Natural; observa, examina os terrenos, as suas pro
duções, as suas culturas; compara os trabalhos que vê fazer com os
que conhece; procura as razões das diferenças: quando crê que ou
tros métodos são preferíveis aos do lugar, ensina-os aos cultivado
res; se propõe uma charrua com uma forma mais adequada, man
da-a fazer pelo::: seus desenhos: se encontra uma mina de marga,
ensina-lhes a utilização dela, que é desconhecida na região; mui
to frequentemente, ele próprio põe mãos à obra; os cultivadores fi
cam espantados, quando o vêem manejar as suas alfaias com mais
habilidade que eles próprios, traçar trilhos mais profundos e mais
direitos que os seus, semear com mais uniformidade, preparar as
terras em declive com mais inteligência que eles. Não troçam de
le como troçariam de um bem-falante da agricultura: vêem que ele
a conhece, efectivamente. Em resumo, ele estende o seu zelo e os
seus cuidados a tudo quanto é de utilidade essencial e geral; e nem
se limita a isso: visita as casas dos camponeses, informa-se do seu
estado, das suas famílias, do número dos seus filhos, da quantida
de de terras que possuem da natureza dos seus produtos, da sua
venda, das suas faculdades, dos seus encargos, das suas dívidas,
etc. Dá pouco dinheiro, sabendo que, para o dia a dia, ele é mal em
pregado, mas dirige ele próprio a sua utilização, e torna-a útil,
apesar das suas reservas. Fornece-lhes operários, e, mui tas vezes,
ele próprio lhes paga as jornas pelos trabalhos de que eles tinham
necessidade. A um, manda endireitar, ou pôr um telhado na sua
cabana meia-derrubada; a outro, manda desbravar a sua terra,
abandonada por falta de meios; a outro, oferece uma vaca, um ca
valo, gado de toda a espécie, para substituir o que perdeu; dois vi
zinhos estão quase em litígio: fala com eles, consegue reconciliá
-los; um camponês adoece, manda-o tratar, trata-o ele próprio1;
outro, sente-se vexado por um vizinho poderoso: ele protege-o e re
comenda-o; se vê dois jovens pobres que se amam, ajuda-os para
o casamento; uma boa mulher perdeu o filho querido, ele vai visi
tá-la, consola-a, não sai logo que entra; não desdenha os indigen-
L. B. 524 - 19
«Falemos de vós. Aos aspirardes aos estados de esposo e de pai,
já lhes meditaste bem os deveres? Tornando-vos chefe de família,
passareis a ser membro do Estado. E o que é ser membro do Esta
do? Sabei-lo? Estudastes os vosso deveres de homem, mas conhe
ceis os de cidadão? Sabeis o que é governo, leis, pátria? Sabeis a que
preço vos é permitido viver, e por que deveis morrer? Credes ter
aprendido tudo, e ainda não sabeis nada. Antes de ocupardes um
lugar na ordem civil, aprendei a conhecê-la e a saber qual a cate
goria que vos convém.
«Emílio, é preciso deixar Sophie: não digo que a deveis abando
nar; se fosseis capaz de o fazer, ela poder-se-ia considerar muito
afortunada por não vos ter desposado: é preciso deixá-la, para re
gressar dign<;> dela. Não sejais bastante frívolo para crerdes que já
a mereceis. O, quanto vos falta ainda fazer! Vinde desempenhar
essa nobre tarefa; vinde aprender a suportar a ausência; vinde me
recer o prémio da fidelidade, a fim de que, quando regressardes,
vos possais honrar de alguma coisa perante ela, e pedir a sua m ão,
não como um favor, mas como uma recompensa.»
DAS VIAGENS
1
Se tivessem algum árbitro, esse superior comum só poderia ser o
soberano; e, então, o direito de escravatura, fundamentado no direito do
soberano, não seria o princípio dele. 303
a sua força, sob a suprema direcção da vontade geral, e considera
remos cada membro como parte indivisível do todo>>.
Suposto isto, e para definir os termos de que precisamos, nota
remos que em vez da pessoa particular de cada contratante, esse
acto de associação produz um corpo moral e colectivo, composto por
tantos membros quantas as vozes que a assembleia tem . Geral
mente, essa pessoa pública adquire o nome de corpo político, a que
os seus membros chamam: Estado- quando é passivo; soberano
- quando é activo;poder-quando comparado com os seus seme
lhantes. Quantos aos seus membros; quando colectivamente, são
designados pela palavra povo; por cidadãos, quando considerados
como membros da cidade; ou participantes da autoridade sob era
na, e sujeitos, como submetidos à mesma autoridade.
Notamos que esse acto de associação implica um compromisso
recíproco, entre o público e os particulares, e que cada indivíduo,
contratando por assim dizer consigo mesmo, se encontra compro
metido sob um duplo aspecto, a saber, como membro do soberano
em relação aos particulares, e como membro do Estado, em relação
ao soberano.
Ainda notaremos que, como ninguém é obrigado a respeitar os
compromissos que só tomou consigo mesmo, a deliberação pública
que pode obrigar todos os sujeitos para com o soberano-devido
aos vários aspectos sob os quais cada um é encarado- não pode
obrigar o Estado para consigo mesmo. Daí se depreende que não
há, nem pode h aver, outra lei fundamental propriamente dita que
não seja o pacto social. O que não significa que o corpo político não
possa, em determinados casos, comprometer-se em relação a ou
trém; pois que, em relação ao estrangeiro, considera-se como um
ser simples, um indivíduo.
As duas partes contraentes, a saber, cada particular e o públi
co, não tendo nenhum superior comum que possa ser árbitrio das
suas desavenças, examinaremos se cada uma delas tem o direito
de quebrar o contrato quando lhe convém, isto é, o direito de o de
nunciar unilateralmente, quando se crê lesada.
Para esclarecer esta questão, observamos que, segundo o pac
to social e como o soberano só pode agir por vontades comuns e ge
rais, os seus actos também só podem ter objectos gerais e comuns;
daí se segue que um particular não poderia ser lesado directamen
te pelo soberano sem que todos eles o fossem, o que não é possível,
pois que seria querer fazer-se mal a si mesmo. Assim, o contrato
social nunca tem necessidade de outro garante que não seja a for
ça pública, porque a lesão nunca pode vir se não dos particulares;
e, nesse caso, eles não ficam livres do seu compromisso, mas puni
dos por o terem violado.
Para bem resolver todas as questões semelhantes a estas, te
remos a precaução de nos lembrarmos, todos os dias, de que o pac-
304 to social é de uma natureza particular e própria só dele, porque o
povo só conta consigo mesmo, isto é, o povo em corpo como sobera
no, com os particulares como sujeitos: condição essa que constitui
todo o artifício e o jogo do aparelho político, e que é a única que
torna legítimos, razoáveis e sem perigo, os compromissos que, sem
isso, seriam absurdos, tirânicos e ficariam sujeitos aos maiores
abusos.
Como os particulares só estão submetidos ao soberano, e, como
a autoridade soberana outra coisa não é que a vontade geral, ve
remos como cada homem, obedecendo ao soberano, só se obedece
a si mesmo, e como se é mais livre no pacto social que no estado de
natureza.
Depois de termos feito a comparação entre a liberdade natural
e a liberdade civil, quanto às pessoas, faremos, quanto aos bens, a
do direito de propriedade com o direito de soberania, a do domínio
particular com o domínio eminente. Se é sobre o direito de proprie
dade que se baseia a autoridade soberana, esse direito é o que ela
mais deve respeitar;para ela, é inviolável e sagrado, na medida em
que continua a ser um direito particular e individual. A partir do
momento em que é considerado como comum a todos os cidadãos,
fica submetido à vontade geral, e essa vontade pode destrui-lo. As
sim, o soberano não tem o direito de tocar no bem de um particu
lar, nem no de vários; mas pode, legitimamente, apoderar-se do
bem de todos-como se fez em Esparta, no tempo de Licurgo, en
quanto que a abolição das dívidas, feita por Solon, foi um acto ile
gítimo.
Pois que só a vontade geral obriga os sujeitos, procuraremos
ver como se manifesta essa vontade, a que sinais se pode ter a cer
teza de a reconhecer, o que é uma lei, e quais são os verdadeiros ca
racteres da lei. Este assunto é absolutamente novo: ainda é preci
so estabelecer a definição da lei.
Desde o momento em que o povo considera, em particular, um
ou vários dos seus membros, fica dividido. Forma-se, entre o todo
e a sua parte, uma relação constituída por dois seres separados, de
que a parte éc um, e em que o todo-menos essa parte-é outro.
Mas o todo menos uma parte não é o todo; enquanto essa relação
existir, deixa de haver um todo, para h aver duas partes desiguais.
Pelo contrário, quando todo o povo estatui sobre todo o povo, só
se considera a si mesmo, e se se formar uma relação, será a do ob
jecto inteiro sob um ponto de vista para o objecto inteiro sob outro
ponto de vista, sem nenhuma divisão. Então, o objecto sobre o qual
se estatu i é geral, e a vontade que estatui também é geral. Exami
nemos, para ver se haverá outra espécie de acto que possa mere
cer o nome de lei_
Se o soberano só pode falar pelas leis, e se a lei apenas pode ter
um objecto geral e igualmente relativo a todos os membros do Es
tado, segue-se que o soberano nunca tem o direito de estatuir so-
bre um objecto particular; e como, para a conservação do Estado, 305
L. B. 524-20
importa que também se decida das coisas particulares, procurare
mos saber como isso pode ser feito.
Os actos do soberano só podem ser actos de vontade geral, ou
seja, leis;em seguida, é preciso que hajam actos determinantes, ac
tos de força ou de governo, para a observação dessas mesmas leis;
e esses actos, pelo contrário, só podem ter objectos particulares.
Assim, o acto pelo qual o soberano estatui que se elegerá ufm che
fe é uma lei, e o acto pelo qual se elege esse chefe em observação da
lei, é apenas um acto de governo.
Eis, pois, um terceiro aspecto sob o qual o povo reunido pode ser
considerado, ou como magistrado ou como executor da lei que ele
decretou, como soberano1•
Examinaremos se é possível que o povo se despoje do seu direi
to de soberania para com ele revestir um homem ou mais;pois que
como o acto da eleição não é uma lei, e como, nesse acto, o povo não
é soberano, não se im agina como seria possível que, nesse caso, ele
pudesse transferir um direito que nãotem.
Como a essência da soberania consiste na vontade geral, tam
bém nãose vê como é possível garantir que uma vontade particu
lar esteja sempre de acordo com essa vontade geral. E mui to mais
presumível que ela lhe seja sempre oposta; porque o interesse pri
vado tende sempre para as preferências, e o interesse público pa
ra a igualdade; e, mesmo que esse acordo fosse possível, b astaria
que não fosse necessário, nem in destrutível, para que o direito so
berano não pudesse resultar dele.
Procuraremos saber se, sem violar o pacto social, os chefes do
povo- seja sob que nome tenham sido eleitos- alguma vez po
dem ser outra coisa que os oficiais do povo, aos quais este ordena
quefaçam executar as leis; se esses chefes não lhe devem prestar
contas da sua administração, e se não estão submetidos, eles pró
prios, às leis que estão encarregados de fazer respeitar.
Se o povo não puder alienar o seu direito supremo, poderá con
fiá-lo a outrém, durante um certo tempo? Se não se puder dar um
governante, poderá atribuir-se representantes? Esta questão é
importante e merece ser discutida.
Se o povo não puder tem nem soberano nem representantes,
examinemos de que m aneira ele poderá decretar as suas prórpias
leis. Se deverá ter muitas leis;se as deverá modificar com frequên
cia; se é fácil, para um grande povo ser o seu próprio legislador;
1
Recordar-se-ão que, aqui, só pretendo referir-me a magistrados
supremos ou chefes de nação, os outros sendo apenas seus substitutos em
310 tal ou tal parte.
exteriormente contra todos os agressores injustos. Procuraremos
saber como se pode estabelecer uma boa associação federativa, o
que a pode tornar durável, e até que ponto é possível estender o di
reito da confederação sem prejudicar o da soberania.
O abade de Sain-Pierre propusera uma associação de todos os
Estados da Europa, para conservar entre eles uma paz perpétua.
Essa associação seria praticável? E, supondo que fosse estabeleci
da, seria de presumir que durasse1? Estes estudos conduzem-nos
directamente a todas as questões de direito público que podem
completar o esclarecimento das do direito político.
Enfim, exporemos os verdadeiros princípios do direito da guer
ra, e examinaremos porquê que Grócio e os outros só nos deram fal
sos motivos.
Não me sentiria surpreendido se, no meio de todos os nossos ra
ciocínios, o meu jovem- que tem bom senso-me dissesse, inter
rompendo-me: «Dir-se-ia que construímos o nosso edifício com
m adeira, e não com homen§, de tal modo alinhamos, exactamen
te, cada peca com a régua!» E verdade, meu amigo; mas pensai que
o direito não se verga às paixões dos homens, e que, entre nós, se
tratava de estabelecer os verdadeiros princípios do direito políti
co. Agora, que as nossas fundações estão assentes, vinde examinar
o que os homens construíram por cima delas, e vereis belas coisas!
Então, convenço-o a ler Telémaco e a seguir o seu caminho; pro
curamos a feliz Salente e o bom ldomeneu, que se tornou sage à
custa de infelicidades. Prosseguindo, encontramos muito de Pro
tesilau e nada de Filocles. Adrasto, também se encontra. Mas dei
xemos os leitores im aginar as nossas viagens, ou fazê-las por nós,
com um Telémaco na mão; e não lhes sugiramos aplicações afliti
vas que o próprio autor evitar ou faz, mesmo contra sua vontade.
De resto, como Emílio não é rei e eu não sou deus, não sofremos
muito por não podermos imitar Telémaco e Mentor, no bem que
eles faziam aos homens: ninguém, mais bem do que nós, se sabe
conservar no seu lugar, e menos deseja sair dele. Sabemos que a
todos é atribuída a mesma tarefa; que aquele que ama o bem com
todo o seu coração, e o pratica com todo o seu poder, a desempe
nhou. Sabemos que o Telémaco e Mentor são quimeras. Emílio não
viaja como homem ocioso, e pratica mais bem que se fosse prínci
pe. Se fôssemos reis, não seríamos mais benfazejos. Se fossemos
reis e benfazejos, praticaríamos, se o saber, mil males reais, por
um bem aparente que creríamos fazer. Se fossemos reis e sages, o
primeiro bem que desejaríamos fazer, a nós próprios e aos outros,
seria abdicar da realeza e voltar a ser o que somos.
Já expliquei o que toma as viajens infrutosas para toda a gen-
te. O que ainda as tornam mais infrutosas para os jovens, é a ma
neira como lhas levam a fazer. Os governantes, mais interessados
com a sua distracção que com a sua instrução, transportam-nos de
cidade para cidade, de palácio para palácio, de círculo para círcu- 311
lo; ou, quando são sábios e homens de letras, obrigam-nos a cor
rer de biblioteca para biblioteca, a visitar os antiquários, a admi
rar velhos m onumentos, a transcrever antigas inscrições. Em ca
da país, interessam-se por um século diferente: é como se se inte
ressassem por um país diferente; de m aneira que, depois de, com
grandes despesas, terem percorrido a Europa, entregues às frivo
lidades ou ao aborrecimento, regressam sem nada terem visto do
que lhes poderia ter interessado, nem nada aprendido que lhes
possa ser útil.
Todas as capitais se parecem , todos os povos se encontram mis
turados dentro delas, todos os costumes se confundem, dentro dos
seus muros. Para mim, Paris e Londres são a mesma cidade. Os
seus habitantes têm alguns preconceitos diferentes, mas não me
nos que os outros, e todas as suas máximas práticas são as mes
mas. Sabe-se que espécies de homens se devem reunir nas cortes;
sabe-se que costumes a aglomeração do povo e a desigualdade das
fortunas deve produzir, por toda a parte. Quando me falam de uma
cidade em que vivem cem mil almas, sei, de antemão, de que ma
neira se lá vive. Além disso, o que poderia vir a sabe sobre os luga
res, pão merece a pena qu eeu vá até lá, para o ficar a conhecer.
E nas províncias recuadas, onde há menos movimento, menos
comércio, onde os estrangeiros aparecem mais raramente, cujos
habitantes se deslocam menos, mudando menos de fortuna e de es
tado, que se deve ir estudar o génio e os costumes de uma nação.
Olhai, passando pela capital; mas ide observar o país ao longe. Os
Franceses não estão em Paris, estão na Turena; os Ingleses são
mais Ingleses em Mércia que em Long.res, e os Espanhóis mais Es
panhóis na Galiza que em Madrid. E a essas grandes distâncias
que um povo se caracteriza e se mostra tal como é, sem misturas;
é aí que os bons e os maus efeitos do goverpo se fazem mais bem
sentir, como na extremidade de um raio maior a medida dos arcos
é mais exacta.
As relações necessárias entre os costumes e o governo foram
tão bem espostas no livro L'Esprit des Lois (0 Espírito das Leis),
que o que de mais bem se pode fazer é recorrer a essa obra para as
estudar. Mas, em geral, há duas regras fáceis e simples, para ajui
zar da bondade relativa dos governos. Uma é observar a população:
em todos os países que se despovoam, o Estado pende para a sua
ruína; e o país que se povoa mais, mesmo que seja o mais pobre, é
infalivelmente o mais bem governado1•
Mas, para isso, é necessário que essa popul ação seja um efeito
natural do governo e dos costumes; porque, se ela se tiver feito por
colónias, ou por outras vias acidentais e passageiras, então estas
provariam o mal com o remédio. Quando Augusto decretou as leis
1
312 Só conheço uma excepção a esta regra, é a China.
contra q celibato, essas leis já mostravam o declínio do império ro
mano. E preciso que a bondade do governo leve os cidadãos a ca
sar-se, e que não sejam as leis a obrigá-los a isso;não se deve con
siderar o que é obtido pela força -porque a lei que combate a cons
tituição elude-se e torna-se vã-mas o que se faz pela influência
dos costumes e pela inclinação natural do governo; porque esses
meios sãoos únicos que têm um efeito constante.Apolítica do aba
de de Saint-Pierre era sempre de procurar um pequeno remédio
para cada mal particular, em vez de remontar à sua origem comum
e ver que só se poderiam curar se o fossem todos ao mesmo tempo.
Não significa que se deve tratar separadamente cada úlcera que
aparece no corpo do doente;mas é preciso depurar a m assa do san
gue que as produz. Diz-se que, na Inglaterra, há prémios para a
agricultura;nãopretendo saber m ais: isso sóme prova queelanão
reluzirá durante ainda m uito tempo.
A segunda m arca da relativa bondade do governo e das leis
também se depreende da população, mas de outra maneira, isto é,
da maneira como ela está distribuída e não da sua quantidade.
Dois Estados igualmente grandes e com o mesmo número de ho
mens podem ter forças muito desiguais;e o mais poseroso dos dois
é sempre aquele cujos habitantes estão maisuniformemente espa
lhados pelo território; aquele que não tem cidades, tão grandes e
que, por conseguinte, menos brilha, vencerá sempre o outro. São
as grandes cidades que arruínam um Estado e fazem a sua fraque
za: a riqueza que produzem é uma riqueza aparente e ilusória; é·
muito difnheiro e pouco efeito. Diz-se que, para o rei da França, a
cidade de Paris vale tanto como uma província; mas creio que ela
lhe custa várias; que é sob mais de um aspecto que Paris é alimen
tada pelas províncias, e que a maior parte dos rendimentos destas
de verte nessa cidade e nela permaneçe, sem nunca regressarem
ao povo nem chegarem às mãos do rei. E inconcebível que, neste sé
culo de calculistas, não haja nenhum que saiba ver que a França
seria muito m ais poderosa se Paris fosse destruída. Não só o povo
mal distribuído não é vantajoso para o Estado, como ainda é m ais
ruinoso para este que o próprio despovoamento do p aís, pois que a
despovoação só dá um produto nulo, enquanto que o consumo mal
compreendido dá um produto negativo. Quando ouço um Francês
e um Inglês-muito orgulhosos da grandeza das suas capitais
discutir para saber se é Paris ou Londres que tem m ais habitan
tes, para mim, é como se discutissem sobre qual dos dois povos tem
a honra de estar a ser mais mal governado.
Estudai um povo, no exterior das suas grandes cidades: só as
sim o podereis conhecer. Não significa nada, o ver a forma aparen
te de um governo, mascarada pelo aparelho da administração e pe
la linguagem dos administradores, se não se estudar também a
sua natreza, através dos efeitos que ele produz no povo e em todos
os graus da administração. Como toda a diferença se encontra dis- 313
tribuída entre esses diferentes graus, só quandoos conhecemosto
dos a podemos discernir. Num país desses, é pelas manobras dos
subdelegados que se começa a perceber o espírito do ministério;
noutro, é preciso ver como se elegem os membros do parlamento,
para ajuizar se realmente a nação é livre; sej a em que país for, é
impossível que, quem não tenha visto m ais do que as cidades, co
nheça o governo, dado que o espírito nunca é o mesmo para a cida
de e para o campo. Ora, é o campo que faz o país, e é com o povo do
campo que se faz a nação. .
Esse estudo dos diferentes povos, efectuado nas suas provín
cias afastadas e na simplicidade do seu génio original, autoriza
uma observação geral muito favorável para a minha epígrafe, e
muito consoladora para o coração humano: é que todas as nações,
quando estudadas deste modo, parecem valer muito mais; quan
to m ais se aproximam da natureza, mais a bondade domin a no seu
carácter; só quando se encerram nas cidades, qua·.1do se alteram
à custa de muita cultura, que elas se depravam, e transformam,
em vícios agradáveis e perniciosos, alguns defeitos mais grosseiros
que m alfazejos.
Desta observação, resulta uma nova vantagem para a manei
ra de viajar que eu proponho, e é que os jovens, detendo-se duran
te pouco tempo nas grandes cidades onde reina uma horrível cor
rupção, ficam menos espostos a contraí-la, e conservam, entre os
homens mais simples, e nas sociedades menos numerosoas, um en
tendimento mais segro, um gosto mais são, costumes mais hones
tos. Mas, de qualquer modo, nãotenho de recear esse contágio pa
ra o meu Emílio; porque ele possui tudo de quanto precisa para se
precaver dele. De entre todas as precauções que para isso tomei,
considero miuto valioso o afecto que ele conserva no seu coração.
Já não se sabe até que ponto o verd adeiro amor pode influir nas
inclinações dos jovens, porque-não o conhecimento mais bem do
que eles- os que as governam desviam-nos dele. Por c�nseguin
te, é preciso que um jovem ame ou que fique debochado. E fácil en
ganar, com as aparências. Citar-me-ão mil jovens que- pelo que
dizem - vivem muito castamente, sem amor; mas que me citem
um homem feito, um verdadeiro homem, que afirme ter passado
assim toda a sua juventude, e que sej a de boa-fé. Em todas as vir
tudes, em todos os deveres, só se procura a aparência; eu, eu pro
curo a realidade, e estou muito enganado se, para a conseguir, há
outros meios além dos que exponho.
A ideia de conseguir que Emílio se apaixonasse antes de o le
var a viajar não é da minha invenção. Eis o que ma sugeriu.
Encontrava-me em Veneza, em casa do governante de um jo
vem Inglês. Estávamos no Inverno e instalámo-nos em frente da
lareira. O governante recebe as suas cartas pelo correio. Lê-as, e,
em seguida, volta a ler uma delas, mas em voz alta, ao seu pupi
314 lo. Estava escrita em inglês: não compreendi nada; mas, durante
a leitura, vejo o jovem rasgar uns muito belos punhos de renda que
trazia, e lançá-los para o lume, um após outro, o m ais discreta
mente que pôde, a fim de que não nos apercebessem os disso. Sur
preendido com esse capricho, olho para ele e creio ver-lhe uma
grande emoção no rosto; mas os sinais exteriores das paixões, em
hora muito semelhantes em todos os homens, têm diferenças na
cionais sobre as quais é fácil enganarmo-nos. Os povos têm lingua
gens diversas sobre os rostos, assim como na boca. Espero pelo fim
da leitura, e, depois, mostrando ao governante os punhos nus do
seu pupilo- que, no entanto, ele escondia o mais bem que podia
- disse-lhe: «Pode-se saber o que isso significa?>>
O governante, vendo o que se tinha passado, pôs-se a rir e abra
çou o seu pupilo com um ar de satisfação; e.., após ter obtido o seu
consentimento, deu-me a explicação que eu desejava.
«Os punhos», disse-me ele, «que M. John acaba de rasgar são
um presente que uma dama desta cidade lhe fez, não há muito tem
po. Ora sabei que M. John está prometido, no seu país, a uma jovem
menina, pela qual experimenta um grande amor, e que ainda me
rece mais. Esta carta foi-me escrita pela mãe da sua amada, e vou
-vos traduzir a passagem que provocou o estrago de que fostes tes
temunha.
L. B. S24 - 21
pressa que elas - do amor feliz. A mulher, de longe, pressente a
inconstãncia do homem, e inquieta-se com isso1 ; é o que também
a torna mais ciumenta. Quando ele começa a amornar, ela, vendo
-se forçada a dedicar-lhe, para o conservar, todas as atenções que
ele outrora empregou, para lhe agradar, chora, chega a humilhar
-se, e raramente obtém o mesmo sucesso: a dedicação e os desve
los atraem os corações, mas não os recuperam . Insisto em dar a mi
nha receita contra o esfriamento do amor durante o casamento.
«É simples e fácil>>, recomeço; «É continuarem a ser amantes,
depois de serem esposos.» «Efectivamente>>, diz Emílio, rindo-se
desse segredo», isso não será difícil para nós>>. «Será mais penoso
p ara vós que o que pensais. Dai-me, peço-vos, tempo para me ex
plicar:
«Üs nós, quando se apertam muito, partem-se. Eis o que acon
tece ao do casamento, quando se lhe quer imprimir mais força que
a que ele deve ter. A fidelidade que ele impõe a ambos os esposos
é o m ais santo de todos os direitos; mas o poder que ele dá a cada
um deles, sobre o outro, é exagerado.A obrigação e o amor dão-se
na], e o prazer não se encomenda. Não coreis, Sophie! E não pen
seis em fugir. Deusbem sabe q�e não pretendo ofender a vossa mo
déstia! Mas trata-se do futuro das vossas vidas . Por um tão impor
tante objecto, suportai, entre um esposo e um pai, discursos que
não suportaríeis ouvir de outras pessoas.
Não é tanto a possessão como a sujeição o que sacia; e conser
va-se um interesse mais duradoiro por uma mulher mantida que
por esposa. Como se podem transformar num dever as m ais t�rnas
carícias, e num direito os mais doces testemunhos do amor? E o de
sejo mútuo que estabelece o direito, a na tureza não conhece outro.
A lei pode limitar esse direito, mas não o saberia fazer aumentar.
A volúpia é tão doce, por si só! Deverá ecigir, da triste obrigação,
a força que não pode retirar dos seus próprios atractivos? Não,
meus filhos, no casamento, os corações estão ligados, mas os cor
pos não ficam dominados. Deveis-vos fidelidade, não complacên
cia. Cada um de vós só pode pertencer ao outro, mas cada um de vós
só deve ser do outro na medida em que isso lhe agrada.
«Se é pois verdade, caro Emílio, que queríeis ser o amante de
vossa m ulher, que ela seja sempre senhora vossa e de si mesma; se-