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2.

Personalização das sociedades empresárias

Há direitos, como o do Reino Unido (Farrar-Hannigan, 1985:79/81), que associam a


personalização da sociedade à limitação da responsabilidade dos sócios. Para tais
sistemas, as sociedades em que os sócios respondem integralmente pelas obrigações
sociais são despersonalizadas. Em outras ordens jurídicas, inclusive a brasileira, não
existe necessária correlação entre esses dois temas societários. A personalização da
sociedade não está ligada sempre à limitação da responsabilidade dos seus integrantes.
Quer dizer, há no Brasil sociedades personalizadas em que sócios respondem
ilimitadamente pelas obrigações sociais (p. ex., a sociedade empresária em nome
coletivo), assim como há uma hipótese de articulação de esforços despersonalizada, em
que os participantes podem responder dentro de um limite (o sócio participante da conta
de participação, se assim previsto em contrato).

As sociedades empresárias são sempre personalizadas, ou seja, são pessoas distintas dos
sócios, titularizam seus próprios direitos e obrigações (a conta de participação não é, a
rigor, sociedade, mas um contrato de investimento comum que a lei preferiu chamar de
sociedade: Cap. 33, item 4). O estudo das sociedades empresárias, por isso, convém seja
iniciado pelo da teoria das pessoas jurídicas.

2.1. Natureza e Conceito de Pessoa Jurídica

É comum, na doutrina comercialista, evitar a discussão acerca do conceito e da natureza


da pessoa jurídica. Para alguns autores, o exame do complicado tema não é imprescindível
à compreensão do direito positivo aplicável às sociedades (Requião, 1971, 1:278/279);
para outros, tal exame pertence a capítulos distintos do conhecimento jurídico, como o
direito civil ou a filosofia do direito (Borges, 1959:267). Não deixam de ter razão, em
certo sentido. Observo, porém, que parte da crise em que se encontra o princípio da
autonomia patrimonial, nos tempos que correm (item 2.5), talvez possa ser creditada à
desqualificação doutrinária da discussão, à diluição da compreensão global do instituto,
entre os tecnólogos do direito societário.

Começo pela natureza: muitas foram as soluções tentadas pelos teóricos para organizar o
argumento da questão ontológica da pessoa jurídica. Essas soluções dividem-se,
fundamentalmente, em duas. De um lado, as teorias pré-normativistas, que consideram as
pessoas jurídicas seres de existência anterior e independente da ordem jurídica. Para os
seus adeptos, a disciplina legal da pessoa jurídica é mero reconhecimento de algo
preexistente, que a ordem positiva não teria como ignorar. Segundo entendem, além do
ser humano, também elas se apresentam ao direito como realidades incontestáveis, como
os reais sujeitos das ações dotadas de significado jurídico. De outro lado, encontram-se
as teorias normativistas sustentando o oposto, isto é, as pessoas jurídicas como criação do
direito. Fora da previsão legal correspondente, não se as encontram em nenhum lugar. No
primeiro grupo, estão a teoria “orgânica” e a da “realidade objetiva”; no segundo, a da
“ficção” e a da “realidade jurídica” (Ferrara, 1921:346/348 e 359; Beviláqua, 1908:258).

A doutrina pré-normativista tende a considerar a natureza das pessoas jurídicas como


semelhante à dos homens. Há, inclusive, discussão acerca do gênero da semelhança, se
por analogia proporcional ou por atribuição (Oliveira, 1979:16/20). Ao seu turno, a
normativista tende a contrapor a intangibilidade das pessoas jurídicas à realidade dos
seres humanos. Nesse contexto, ressalta-se a importante e curiosa contribuição de Kelsen,
que, sendo inegavelmente um normativista, não vislumbra diferença nenhuma entre as
duas espécies de pessoas, a física e a jurídica. Para ele, são ambas conceitos auxiliares da
ciência do direito; instrumentos para facilitar a descrição de complexas normas jurídicas.
O homem, para a ordem positiva, não é necessariamente titular de direitos e obrigações,
e a escravidão demonstra que a natureza humana não força determinada solução jurídica.
Quer dizer, também a pessoa física é simples criação do direito (1960:242). Outro
normativista, Tullio Ascarelli, considera a pessoa jurídica a síntese de um conjunto de
disposições legais, o resumo de uma disciplina; seria uma noção destinada apenas a
facilitar a referência a regras jurídicas complexas e esparsas (1959:235/270; Comparato,
1977:256/261).

As concepções kelseniana e ascarelliana apontam o caminho para a solução da questão.


Os interesses dos seres humanos — dos “nascidos do ventre de uma mulher”, como diz
Ascarelli, para afastar a menor possibilidade de dúvida acerca do que se está falando —,
na complexa sociedade dos nossos tempos, compõem-se a partir de regras positivadas,
isto é, legitimadas pela forma de sua criação e aplicação. Ao se referirem às pessoas
jurídicas, essas regras não se reportam a nenhuma realidade preexistente, mas apenas
indicam como determinados conflitos de interesse devem ser superados. No final, o que
está em jogo, nas questões relativas a pessoas jurídicas, é sempre a distribuição de bens
entre indivíduos: quem usufrui o quê. A natureza das pessoas jurídicas, assim, é a de uma
ideia, cujo sentido é partilhado pelos membros da comunidade jurídica, que a utilizam na
composição de interesses (Coelho, 1989:72/74).

A pessoa jurídica não preexiste ao direito; é apenas uma ideia, conhecida dos advogados,
juízes e demais membros da comunidade jurídica, que auxilia a composição de interesses
ou a solução de conflitos.

A abstração da questão ontológica não interfere na discussão do conceito de pessoa


jurídica. Pelo contrário, esta última apresenta contornos operacionais com os quais o
tecnólogo do direito está bastante familiarizado, o que facilita muito sua compreensão. A
indagação, agora, não é mais sobre a essência do instituto, mas sobre as implicações
jurídicas da atribuição de personalidade a certo ente. Quando a lei define que as
sociedades empresárias são pessoas jurídicas, que exatamente significa isso?

Sujeito de direito é conceito mais amplo que pessoa: nem todos os sujeitos são
personalizados. Em outros termos, os titulares de direitos e obrigações podem ou não ser
dotados de personalidade jurídica. Se se considerarem todas as situações em que a ordem
jurídica atribui o exercício de direito ou (o que é o mesmo, visto pelo ângulo oposto) o
cabimento de prestação, sujeito será o titular do primeiro ou o devedor da última. No
conceito de sujeito de direito encontram-se, assim, não só as pessoas, físicas ou jurídicas,
como também algumas “entidades” despersonalizadas. São o espólio, a massa falida, o
condomínio horizontal, o nascituro e outras, consideradas juridicamente aptas ao
exercício de direitos e assunção de obrigações. O espólio, enquanto não definida
judicialmente a partilha dos bens deixados por morte, é o sujeito ao qual compete exercer
os direitos e prestar os deveres atribuídos ao morto, ainda em vida ou mesmo após o
falecimento. Os tributos incidentes sobre a propriedade imobiliária do de cujus, por
exemplo, devem ser suportados pelo espólio, assim como lhe cabe a renda proveniente de
aluguel por ela proporcionada. A massa falida, comunhão dos interesses dos credores de
um empresário com falência decretada, substitui este último nas ações de que era parte,
fazendo-se representar pelo administrador judicial. Além disso, ela contrata auxiliares,
movimenta contas bancárias, realiza e recebe pagamentos. O condomínio horizontal,
originado dos interesses comuns dos proprietários (e, para determinados fins, também dos
locatários) de unidades autônomas de um edifício, é devedor de impostos e taxas, pode
contratar e demitir empregados, responde por danos causados por culpa destes e é credor
da contribuição condominial. O nascituro, por fim, é titular de direitos, assegurados desde
a concepção, e pode ser, em situações especiais, até mesmo sujeito passivo de tributos.

Os sujeitos de direito podem ser, inicialmente, distinguidos em dois grupos: de um lado,


a pessoa física e o nascituro; de outro, a pessoa jurídica e as demais entidades
despersonalizadas. Chamem-se os primeiros de sujeitos humanos, numa referência ao
objeto semântico do termo, o ser humano, e os últimos de inanimados. Essa classificação
será útil na conceituação de pessoa jurídica, já que revela o traço distintivo em face da
outra pessoa contemplada pelo direito (a natural). Os sujeitos de direito podem ser
também classificados em personalizados e despersonalizados. Na primeira classe, as
pessoas físicas e jurídicas; na segunda, o nascituro, a massa falida, o condomínio
horizontal etc. Retoma-se, aqui, o ponto central da questão: que significa, para o direito,
personalizar alguém ou algo? Qual o traço diferencial entre o regime dos sujeitos de
direito personalizados e despersonalizados?

O que caracteriza o regime das pessoas, no campo do direito privado, é a autorização


genérica para a prática dos atos jurídicos. Ao personalizar algo ou alguém, a ordem
jurídica dispensa-se de especificar quais atos esse algo ou alguém está apto a praticar. Em
relação às pessoas, a ordem jurídica apenas delimita o proibido; a pessoa pode fazer tudo,
salvo se houver proibição. Já em relação aos sujeitos despersonalizados, não existe a
autorização genérica para o exercício dos atos jurídicos; eles só podem praticar os atos
essenciais para o seu funcionamento e aqueles expressamente definidos. Para as não
pessoas, a ordem jurídica não delimita o proibido, mas o permitido. Mesmo que não exista
proibição específica, o sujeito despersonalizado não pode praticar ato estranho à sua
essencial função. Exemplificando o critério: se a questão é saber se determinada pessoa
física pode exercer o comércio, deve-se verificar apenas se ela não está enquadrada em
nenhuma hipótese de “proibição” (os funcionários públicos, segundo o respectivo
estatuto, o falido, enquanto não reabilitado etc). Não é necessária norma jurídica expressa
prevendo a hipótese, porque decorre a permissão do atributo da personalização. Se, por
outro lado, a questão é saber se um condomínio horizontal pode exercer o comércio, deve-
se verificar se isso corresponde à função essencial do sujeito ou se existe norma expressa
permissiva. O simples fato de constatar a inexistência de proibição, na ordem jurídica,
para o condomínio horizontal exercer o comércio não é suficiente para concluir pela
resposta afirmativa à questão, exatamente porque se trata de um sujeito de direito ao qual
não foi concedida personalidade, ou seja, não foi dada autorização genérica para a prática
de atos jurídicos.

O sujeito de direito personalizado tem aptidão para a prática de qualquer ato, exceto o
expressamente proibido. Já o despersonalizado somente pode praticar ato essencial ao
cumprimento de sua função ou o expressamente autorizado.
Em suma, no campo do direito privado, o sujeito personalizado pode fazer tudo que não
está proibido; o despersonalizado, somente o essencial ao cumprimento de sua função ou
os atos expressamente autorizados. Esse o traço diferencial entre o regime das pessoas e
dos entes despersonalizados (registre-se que o direito público opera com conceitos algo
diversos, já que o estado, embora sendo pessoa jurídica, só pode praticar atos para os
quais se encontra especificamente autorizado — cf. Mello, 1980:13/14; Meirelles,
1964:78). Feitas tais considerações, cabe conceituar pessoa jurídica como o sujeito de
direito inanimado personalizado.

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