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O Diabo na carne de Miss Jones

Por Marcelo de Andrade Maciel

“Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay.”


Provérbio Espanhol

Aeroporto Internacional de Toronto.


BUM !
Um 747 da Air Canada explode em plena pista. Repleto de passageiros. Fogo por tudo que é lado.
Bombeiros, forças de segurança do aeroporto, todo mundo correndo para a cratera do tamanho de uma scania
de seis eixos carregando um baú maior do que uma locomotiva. Pessoas queimadas gritando sendo carregadas
em macas. O povo que se apinhava no hall do aeroporto se atropelando em frente às janelas para tentar
enxergar algo entre as colunas negras fumegantes fedendo à carne humana flambada.
Quem teve a presença de espírito de pegar sua malinha e cair fora do aeroporto rumo à fila de taxis
escapou.
O resto não.
E eles chegam.
Com uma precisão de relógio suiço, o CSIS ( serviço de inteligência canadense para quem não sabe) cerca
tudo. Camburões bloqueiam as portas do aeroporto, tudo em um perímetro de 5 quilômetros passa a ser
vigiado e helicópteros pretos passam a sobrevoar irritantemente todo o espaço aéreo do aeroporto.
E o aviso fatídico brota dos alto-falantes como um geiser ejaculando medo em forma líquida.
- “Atenção senhores passageiros e aeroviários, isto é uma emergência federal. Todas as saídas se encontram
vigiadas pelo CSIS e forças federais associadas. Cada um dos presentes será interrogado individualmente
quando chegar a sua vez. Aparentemente, houve um atentado terrorista. Serão servidas refeições por conta do
Governo do Canadá até o estado de crise findar e os senhores puderem se evadir do perímetro demarcado. Por
favor, os passageiros com destino ao Oriente Médio reportem-se ao oficial McVoughan que se encontra no
portão “C”. Todos os telefones do aeroporto estão bloqueados, incluindo os seus próprios.”
Ninguém entra.
Ninguém sai.

* * * * *

Sala VIP da American Airlines.


- SCRASH !
O telefone celular atravessa o recinto voando e se espatifa contra a parede. A dona do celular, em transe,
soca a cadeira com ódio de tudo, de todos e de si mesma, por não ter saído correndo do aeroporto na hora da
explosão ao invés de ficar esperando um vôo que talvez nunca mais decole.
- Calma...
- Calma o quê, e se esta gente achar que eu sou terrorista só porquê na minha carteira de trabalho está que
eu já trabalhei no Habib’s ? Ei... Você fala Português !
- É.
- Você é da onde ?
- Horizontina.
- A terra da Gisele Bündchen !
- Isto ! Do ladinho de Santa Rosa, a terra da Xuxa. E você, é da onde ?
- Rio.
- Rio de Janeiro ?
- É.
- E o que está fazendo no meio deste gelo todo ?
- Precisava comprar umas ervas de um Shaman dos índios Sarcee aqui no Canadá e resolvi ir embora por
Toronto. Selvagens são temperamentais, estas coisas você só faz pessoalmente.
- Você é bióloga ou coisa assim ?
- Coisa assim.
- Mexe com Naturopatia, terapias alternativas, Fitoterapia ?
- Não, mexo com Necromancia, Demonolatria e Magia Negra.
- Ei... Isto é do Mal !
- Mas paga minhas contas.
[ Silêncio ]
* * * * *

Essencialmente, Valdirene, a destruidora de iPhones, era uma cética.


Perdera a fé em Deus quando o noivo a abandonou aos 21 anos para se amasiar com uma baianinha
estrábica de Duque de Caxias. Havia sido terrivelmente humilhante devolver os presentes para os convidados
e explicar que havia sido trocada por uma suburbana. Se fosse por uma cria dos Matarazzo, dos Guinle ou dos
Odebrecht teria sido doloroso, mas não tanto.
O pai era duro mas se importava com os filhos. Colocava todo mundo para trabalhar como “menor-
aprendiz” aos 14 anos, mas, chegando no fim do segundo grau, pagava faculdade sem reclamar. Valdirene
havia passado por McDonalds, Bobs, Gordon e o fatídico Habib’s que ela temia que acabasse sendo
confundido por Hamas ou coisa assim.
Fez Economia na UFRJ, entrou como estagiaria do Chase Manhattan Bank do Rio, galgou os degraus
protocolares para ser enviada para o mundo civilizado como assessora técnica na área de fusões e aquisições
desde que envolvesse o setor de mineração. Estava no Canadá sondando como um sindicato local reagiria ao
ato do banco credor querer fatiar a Blanford Mining Co. em 4 empresas diferentes e vender para quem
quisesse comprar ou entregar todo o pacote para uma mega-multinacional chinesa.
Tinha a consciência de que produzia desemprego, miséria e dissolução de pequenas cidades inteiras com a
migração de mineiros desgraçados sem salário e sem esperança. Mas...
Pagava as contas.

* * * * *

- Então você é uma bruxa ?


- Meu cartão diz Acompanhamento para Desbravadores das Ciências Esotéricas.
- Acompanhante ? Que sexy...
- É que os neófitos realmente precisam de alguém que os guie pelos caminhos misteriosos dos mundos
além do umbral.
- E quanto custa uma voltinha pelo Mundo dos Mortos, com direito a um papinho com entes queridos e
retorno antes do Jornal Nacional ?
- Depende, onde seus parentes estão ?
Valdirene se cala.
- Pode fazer este tipo de coisas mesmo ?
- No meu ramo de trabalho, com a concorrência brutal, você tem que fazer de tudo: matar usando
encantamentos, provocar doenças, incendiar casas à distância, destruir casamentos, unir ex-namorados de
infância, fazer gente estúpida passar em concursos federais e estaduais invocando demônios e, quando
aparece a oportunidade, servir de guia turístico na balsa de Caronte para os curiosos que querem conhecer o
“outro lado”.
- E como eu posso passar em um concurso público usando bruxaria ?
- Primeiro, estude ! Digamos que existam 10 vagas e você passou em 18 o lugar. A minha invocação clama
pelo auxílio faz hostes de Lucifer que, simplesmente, matam os 8 primeiros colocados em questão de dias.
Mas, claro, tudo tem um preço.
- O seu preço ?
- O meu preço e o dele.

* * * * *

Alto-Falante: “Senhores passageiros com passaportes dos seguintes países: Irã, Somália, Sudão, Síria,
Iêmen, Chade e Líbia dirijam-se ao Portão “E” e apresente-se ao Oficial Davemport e seus auxiliares.”.
Valdirene resmunga...
- Pensei que ia ser por ordem alfabética. É um das poucas vantagens de se ter passaporte brasileiro.
- Estão seguindo a ordem de periculosidade estatal do governo norte-americano.
- Eu só queria ver o que a televisão está mostrando. Será que vai aparecer alguém do Itamaraty para
conversar com a gente ?
- Á estas alturas, o teu banco já deve ter entrado em contato com a Ministério das Relações Exteriores em
Brasília. Não é que eles gostem de você, é que multinacional nenhuma quer o logotipo da corporação
associado a terroristas.
- Tem razão. O que fazia antes de ser bruxa ?
- Eu era aprendiz de bruxa, grudada na barra das longas saias da minha mãe.
- Que meigo... E quando você foi promovida a Bruxa Sênior ?
- Quando mataram a minha mãe com 38 tiros porquê ela errou em um feitiço.
- Que horror !
- Tudo bem... Ela deveria saber que, neste ramo profissional se você comete um erro grave podem haver
consequencias igualmente devastadoras. Ela foi contratada por um fazendeiro em Goiás para arrasar um
assentamento do M.S.T. que estava instalado nas beiradas do latifúndio improdutivo do sujeito.
- E conseguiu ?
- Sem problemas. Uma legião de elementais do ar foi invocada para provocar um ciclone extra-tropical que
simplesmente varreu os sem-terra do lugar, só que, após fazer destruição na zona rural, prosseguiu até uma
estrada próxima derrubando e incendiando um ônibus escolar onde estavam os dois netos do fazendeiro, de 5
e 7 anos, respectivamente. Danos colaterais da “Operação Dorothy” se assim quiser chamar.
- Meu Deus !
- Deus não tem nada a ver com isto. Mamãe pagou o erro de sua incompetência. De certa forma, foi justo.
Eu também já cometi meus erros, só que a consequencia do pior deles não passou de ser obrigada a me
mudar do Rio para São Paulo, o que, convenhamos, não é nenhuma tragédia.
- Eu estou sem palavras.
- Como diria o Sinatra: “It’s my way.”
Valdirene, intranquila, tenta tirar as botas para relaxar.
A mulher sem nome simplesmente observa a ansiedade de todos e se cala, com a fleuma de quem já
esteve nos sete infernos e voltou.

* * * * *

Duas horas depois...


A porta da sala VIP da American Airlines é aberta. Lentamente, um pouco da fumaça exalando querosene
de aviação penetra no aposento.
Empurrando dasajeitadamente a lâmina de vidro, um funcionário da companhia dava passagem para
algumas aeromoças conduzindo carrinhos metálicos onde se equilibravam bandejas repletas de refeições
encapsuladas. “Catering” de classe econômica.
- Boa noite, eu sou o superintendente Smith. A companhia me incumbiu de zelar pelos seus interesses
enquanto durar esta situação incômoda. Mais tarde traremos travesseiros e cobertores para quem desejar.
Vocês podem escolher, ou ficar aqui degustando as nossas deliciosas refeições de bordo ou entrar na fila da
comida que será distribuída pela polícia canadense lá fora em mais ou menos uma hora. Alguma pergunta ?
Vinte e sete mãos levantadas.
- O senhor já passou por uma situação parecida ?
- Não senhora. Mas eu li bastante sobre este tipo de crise. Eu li que, dois dias após o 11 de setembro, a CIA
enviou para uma prisão secreta de segurança máxima nos Balcãs, uma tropa de 21 escoteiros extremamente
suspeitos que voltavam de um acampamento em Beavercreek, Ohio. Próxima ?
- Alguma previsão de quando isto acaba ?
- Quando o último suspeito for interrogado. A fila está andando, já existem vários passageiros lá fora,
liberados. Próximo ?
Valdirene retira uma das bandejas, equilibra sobre as pernas, abre o potinho de pudim e vê que até que não
era ruim para comida de classe econômica.
Cutuca a “amiga” com o cotovelo direito.
- O resto eu não sei, mas o pudinzinho está ótimo. Não vai pegar uma bandeja ?
- Se eu paguei primeira classe, eu quero comida da primeira classe.
- Só que eu acho que não tem divisão na comida. É isto ou a fila que vai se formar lá fora. Quer jantar
respirando querosene de aviação queimando, Samantha ?
Ela sorri.
- Eu não te disse meu nome, né ?
- Achei que ocultar o nome tinha a ver com a sua “religião” por isto não perguntei, mas, se puder dizer...
- É Rebeca Jones. Becky para os amigos. Lady Rebeca para quem está do “outro lado”. Miss Jones para os
clientes.
- Jones ? É parente da Rita Lee ?
- Não, não... Os “Jones” da Rita eram uma família de confederados que chegaram ao Brasil quando terminou
a Guerra Civil, o meu “Jones” veio de um comerciante de peles do país de Gales que aportou no Maranhão,
gostou e acabou ficando, lá por 1600...
- Me desculpa, eu não dou uma dentro.
- Nem tanto, me alertar para deixar de ser enxerida e atacar a bandeja foi um ponto para você.
A luz vermelha de alerta acende dentro de Valdirene com esta estória de “ponto para você”, Rebeca tanto
podia ser uma mística profissional respeitável como afirmava ser como uma louca que pularia no seu pescoço
com uma adaga cerimonial no primeiro equinócio do solstício.
- Posso te chamar de Val ?
- Porque não ?
- É engraçado... Você não sabia o meu nome e me chamou de Samantha. Quando eu era guria, quem não me
conhecia me chamava de Sabrina. Do jeito que estão minhas rugas, em breve vão me chamar de Endora.
- Não vai fazer uma pergunta para o cara da companhia aérea ?
- As coisas estão caminhando, vamos ser interrogadas e um ônibus da American Airlines vai nos tirar daqui
para um hotel mais cedo ou mais tarde. É só esperar.
- Me parece também... Mas, Rebeca, eu tenho uma pergunta para você, posso ?
- Claro.
- Você falou do grande erro que cometeu na vida e que a obrigou a se mudar do Rio para São Paulo. O que
houve ? Pode falar ?
- Posso. Quer a versão para “Maiores de Idade” ou a versão para passar no Disney Channel ?
- Sinceramente... Minhas varizes estão me matando, não me conformo que destruí o meu celular e meus
olhos estão lacrimejando direto pela fumaça de querosene de aviação queimada. A última coisa que quero
ouvir é relato de putaria.
- Tá bom... A long, long time ago... In a galaxy far... Far... Away...
Na mente de Valdirene Sampaio de Albuquerque, letras amarelas ascendem sobre um fundo negro e
estrelado, enquanto a música de John Williams é executada ao fundo.
E Lady Rebeca interage com as palavras, manifestando seu Poder no que sabia fazer de melhor: Encantar.

* * * * *

Muito, muito calor.


Uma tarde infernal, que, somada ao fato do técnico do ar condicionado aparentemente estar me boicotando
por ser evangélico produzia um torpor no meu entendimento que resultava em surtos de irresponsabilidade
como dar as chaves do meu carro para a secretária comprar 4 ventiladores no BarraShopping.
Era refém da assistência técnica da Springer, por mais absurdo que isto possa parecer.
- Tem alguém aí ?
Ao ouvir a voz, saltei da cadeira giratória, atravessei minha sala e, em frente à mesa vazia de minha
secretária pateta encontrei o homem.
- Sim, deseja alguma coisa ?
- Eu gostaria de marcar um horário com Rebeca Jones.
- É Miss Rebeca Jones.
- OK. Então como eu posso marcar um horário com Miss Rebeca Jones ?
- Deu sorte. Vamos até a minha sala. O consulente das 15:00 faltou e o horário está vago.
- Quanto custa ?
- Te dou 30 minutos para me explicar sua situação. Se eu considerar teu caso interessante discutimos o preço
e detalhes de implementação, se eu achar que não vai engrandecer minha “lenda pessoal” você vai embora
sem pagar nada e como eu sou uma pessoa muito bacana ainda posso te indicar algum pai de santo, feiticeiro
voodoo ou necromante que possa te ajudar.
- Meus 30 minutos já estão contando ?
- Vamos na minha sala.
Não passou nada na minha cabeça. Terno, gravata, sapato social padrão. Devia ser alguma banalidade
qualquer como curar o filho com leucemia ou obter um sortilégio para ascender no ambiente profissional.
Afinal, tem chefe que, para promover alguém só pressionado por legiões de Exus ou coisa pior. Enfim, achei
que fosse só mais um servicinho à toa que ia me render um dinheirinho parco para uma bolsa Birkin nova e
uns creminhos da Lancome.
Na minha sala, mando o sujeito sentar na cadeira do consulente. Ele senta.
Mando ele começar a falar. Ele fala.
E eu vejo que a coisa não era tão simples assim.

* * * * *

- Miss Jones eu estou aqui representando um grupo empresarial aqui do Rio mesmo, a Artplancton e nossos
associados estrangeiros. Durante muitos anos, meu chefe, o Sr. Mendina gestou o sonho de organizar um
grande festival de Rock com diversas atrações internacionais para entreter a juventude carioca portadora de
Transtorno Obsessivo Compulsivo, o Toc in Rio. Perseverante, ele alcançou 4 sócios estrangeiros e obteve os
recursos necessários para construir a Cidade do Toc, a área na Barra onde será realizado o festival. O
Sr.Mendina foi pessoalmente vasculhar as imobiliárias e encontrou 5 terrenos contíguos. Com os cofres
cheios do dinheiro dos investidores estrangeiros, cometemos um erro. Ao invés de reunirmos os 5
proprietários dos terrenos para negociar conjuntamente, o que pouparia tempo, mas poderia encarecer o preço,
a Artplancton tentou comprar os terrenos um a um e... Enquanto negociava-mos os dois maiores, o dono do
terreno do “meio” vendeu a propriedade para uma empreiteira de São Paulo. Grosseiramente, a área é um
retângulo. Compramos os dois terrenos de uma das pontas e os dois da outra ponta, mas o terreno do meio
está indisponível, entende ?
- Sem o terreno do meio, que liga as duas pontas não tem festival porquê o dinheiro dos investidores não vai
ser suficiente para ressarcir a empreiteira de SP já que eles vão querer lucrar na estória, mesmo que resolvam
repassar o terreno para vocês. Que encrenca !
- É bem pior. Como você deve saber, Construção Civil é uma área onde tudo anda mais rápido se você tem
recursos abundantes para “tocar” a obra. E esta empreiteira de SP estava extremamente capitalizada. Enquanto
nós estávamos negociando os terrenos das pontas, eles ergueram um condomínio fechado dos mais exóticos
que eu já vi na minha vida no terreno do centro.
- Quantas unidades ?
- Oito. Mais as lojinhas e conveniências que não são um problema, pois pertencem ao condomínio. Se
alguém possuir as 8 cotas pode simplesmente mandar os lojistas para o olho da rua para que tudo seja
demolido e limpo para erguer a Cidade do Toc !
- Acho que entendi. E o que seus empregadores querem que eu faça ?
- Que você coloque as oito escrituras em um envelope na mão do Sr.Mendina em 45 dias.
- E estes 45 dias significam o quê ?
- É o prazo final para começarmos a construir a Cidade do Toc ou devolver o dinheiro aos investidores
estrangeiros com juros. Aceita o serviço ?
- Cem mil dólares até amanhã depositados em minha conta offshore nas ilhas Seychelles e outros cem mil
em 45 dias quando o serviço estiver terminado.
- Dá para negociar ?
- Diga para o Sr.Mendina que, se ele tivesse vindo pessoalmente falar comigo, ao invés de enviar um
empregado, talvez eu pudesse fazer um abatimento, mas como ele não me considerou digna de sua atenção é
200 mil divididos em duas vezes mesmo.
- Então você aceita ?
- Temos um trato assim que a minha atabalhoada secretária voltar do BarraShopping com os ventiladores que
eu mandei comprar. Você precisa assinar uns papéis.
- Mas você não tem um feitiço para deixar a temperatura mais agradável ?
- Invocar uma massa de ar polar ártica no Rio de Janeiro só se eu fosse Jesus Cristo.
- É... Jesus Cristo tem Poder.
- Sem dúvida, mas a genética que ele tem ajuda bastante.
- Agora você parece uma bruxa.
- Obrigada.
* * * * *

Minha secretária pateta chega com os ventiladores.


O sujeito assina o que tem de assinar.
Eu assino o que tenho de assinar
E o sujeito vai embora.
Tinha 45 dias para ganhar 100 mil dólares, já que a primeira parcela, a estas horas já estava na minha conta.
É meu dinheiro, seja lá qual for o resultado da missão.
Só uma reputação muito sólida realiza milagres como estes.
Bee-Be-Di-Bo-Be-De-Boo !
* * * * *

Acordo. Queria terminar aquilo o mais rápido possível. Tomo um banho. Devoro uma tigela de amoras
com cobertura de leite condensado e chocolate granulado e vou para o carro.
Doze minutos depois: Barra da Tijuca: onde o vernáculo britânico encontra a arquitetura brasileira de
terceira linha.
Ando um pouco em círculos e me deparo com o tal condomínio: meu alvo, minha missão. Muito mais
exótico que eu poderia imaginar, só que eu sou paga para matar, roubar e destruir não para fazer crítica de
arquitetura.
Só gostei do nome: “The Castle”. Aquela porcaria fazia parte do mesmo estilo de condomínio temático que
já parira o “The Mandarin’s Paradise”, com suas pipas coloridas que ficavam tremulando sobre os muros e o
“The Reign of Mermaids” com sereias fluorescentes de acrílico e neon que cercavam os jardins verde-alga-
marinha da entrada do condomínio fechado. Blargh !
O “The Castle” era um octógono cinza, com gravuras medievais em relevo na parte posterior e, é claro, um
portão monumental de bronze com uma escultura do Rei Arthur sentado à tavola redonda. Empreendimento
imobiliário para quem jogara RPG quando adolescente, mas não conseguiu se livrar da papagaiada pseudo-
medieval do jogo. Gente que cresceu, enriqueceu e veio parar aqui.
Paro o carro do lado da portaria.
- Oi ! O senhor sabe se tem alguma unidade do condomínio para vender ou alugar ?
O porteiro vasculha a papelada, organiza como quem corta cartas de baralho e responde:
- As oito unidades estão ocupadas, mas tem duas lojinhas que ainda estão para alugar, se a senhora se
interessar. Quem trabalha aqui diz que o movimento é bom.
Fui ver as tais lojinhas. Parte de um mini-shopping subterrâneo. Tinha de tudo: salão de beleza, confeitaria,
agência bancária do Manufacturers Hanover, empório de produtos naturais, um bar... Praticamente tudo para
fazer o sujeito não precisar sair do condomínio.
Peguei os dados da imobiliária, dirigi até a Senador Dantas, no centro e acertei tudo com um corretor com
cara de fuinha e sotaque do litoral de São Paulo.
Agora era a feliz locatária de uma unidade comercial no Stonehenge mini-shopping.
Infiltração: completa.
Entrei.
Como eu estou na Barra... Mission Accomplished !

* * * * *

Dia dois.
Ando por um lado, ando por outro. Meus 42 metros quadrados de estabelecimento comercial me pareciam,
agora, menores do que ontem. Tinha um banheirinho, com chuveiro de marca boa e, aparentemente, toda a
parte hidráulica funcionando.
Na parte de fora, em frente, uma minúscula praça de alimentação com dragões entalhados em forma de
cadeiras de plástico e uma fonte de onde, no centro, um punho feminino erguia uma espada. Excalibur,
obviamente.
Aquilo era demais para a minha cabeça.
Passeio entre as lojas ainda fechadas tentando deduzir que tipo de serviço o shopping não oferecia e
resolvo, com certa malícia no olhar que viraria açougueira. Entrando no jogo... Morgana’s Beef Shop. Onde
os pecados da carne oferecem entrega delivery.
Belo slogan. Morgana aprovaria.

* * * * *

Dia doze.
Se fosse uma joalheria, um pet-shop ou mesmo um salão de beleza eu faria tudo sozinha. Só que... Açougue
é complicado. Envolve balcão frigorífico, mudança na fonte de força e uma coleção de facas considerável.
Mesmo a contragosto, tive que contratar uma firma para montar a “boutique de carne”. Fui no google, achei e
contratei a Prét-a-boi-zê, que montou tudo e me deixou com um açougue vazio prontinho para funcionar.

* * * * *

Dia catorze.
Contratei um açougueiro de verdade, um moto-boy e uma loirinha que havia sido vendedora do São
Conrado Shopping Mall.
Ao invés dos panfletos de praxe visitei, uma por uma as oito famílias proprietárias do condomínio com um
kit de boas vindas: filé mignon, bife Kobe, almôndegas pré-temperadas. Kibes pré-temperados e uma garrafa
de vinho francês para completar a generosidade.
Na realidade, visitei 7 das famílias, uma vez que Pedro Arueira, a esposa e os filhos estavam caçando onças
no Mato Grosso do Sul.
E daí ? Mais cedo ou mais tarde voltariam. Onça não é rinoceronte: um tiro na cabeça e acabou. Daqui a
pouco estão de volta.

* * * * *

Dia dezessete.
Admito. Estava adorando. As empregadinhas alcoviteiras trajadas como camponesas medievais por
obrigação dos Estatutos do Condomínio me lembravam aquelas mocinhas da série “Handmaid’s tale”: sempre
ávidas a compartilhar os podres dos padrões, mas, ao mesmo tempo, sempre elevando ao máximo a condição
financeira dos chefes para, indiretamente, se erguer perante as colegas. “Não sou qualquer uma, sou a
empregada do pecuarista Davi Fontes Pereira.”.
Era um mundo a parte. De pecadinhos e indiscrições de gente pobre que convive com gente muito rica e
que nunca foi preparada para lidar com o choque cultural. Comemoravam as vitórias dos patrões como se
fossem suas em um sentimento de simbiose, de busca por uma identidade que lhe era negada pela situação
financeira ou pela cor da pele. O máximo que recebiam era um “...fulana é da família.”. E muito pouco além
disto.
Elas gostavam de mim. Eu conversava com todo mundo, ouvia as abobrinhas do dia e ainda vendia mais
barato se a garota garantisse que era para ela mesma ou a família no Vidigal ou na Rocinha. Informação é um
ativo como qualquer outro, se compra barato, se vende caro.
Não deixa de ser irônico, você abre um estabelecimento comercial dentro de um condomínio de alto luxo
para tratar com gente que ganha 1 salário mínimo e não com os donos ricaços dos imóveis.
Estava tudo dando certo.
Minha desgraça foi a ausência de um pouco de saudável rigor contábil.
Só um pouquinho. Um bocadinho de nada e não teria ocorrido o que ocorreu.

* * * * *

Dia vinte e um.


Achei que estava pronta.
Separei a carne em dois blocos: “os brindes” que eram oferecidos para as domésticas por preço subsidiado
e o “principal” que era vendido para a “Casa Grande”, para não perder a piada com Gilberto Freyre.
Só o “principal” receberia o feitiço. Não tinha motivo nenhum para agredir as empregadinhas. Não trabalho
de graça.
Volto para casa.
Retorno às duas da manhã.
O porteiro acha estranho, mas como me conhecia abriu os majestosos portões de bronze para mim.
Entro no açougue.
O resto é rotina.
Com o giz feito de ossos de virgens mortas no Camboja sob a ditadura de Pol Pot traço o pentagrama
invertido. O punhal corta meus braços como oferenda aos Ventos do Leste e do Oeste. Sinto dentro de mim, a
fúria das entidades Incas que emergem dos Andes clamando vingança e as “Banshees” que partiram dos
campos da Irlanda com seus gritos demoníacos canalizando ódio e devastação. Lucifer é um administrador
zeloso. Quem era um burocrata no Céu, constrói uma burocracia no Inferno, com todas as ordens, pastas e
sub-pastas incluídas como em qualquer repartição pública. Mas o mundo dos espíritos e dos deuses
esquecidos é tão sólido quanto um castelo de cartas. O Caos que se equilibra sobre a cabeça de um alfinete,
que por sua vez se equilibra cambaleante sobre um dos bigodes do coelho de Alice.
Invoque um demônio com uma voz rouca de laringite e ele nem se importa. Invoque uma divindade
egípcia vestindo uma meia com a cor do estandarte de algum antigo inimigo e o sujeito nunca mais aparecerá.
Demônios nunca foram deuses, nunca foram adorados por multidões em transe.
Deuses esquecidos perderam tudo. São fantasmas arrogantes, caprichosos, esguios, que falam como o
rugido de mil leões. Para um séquito de adoradores que não quer mais ouvi-los.
Ninguém se lembra que Marpaloth, o deus-mamute que era adorado pelos nômades da Sibéria de 20.000
anos atrás existiu. A liturgia de seu culto era tradição oral, morreu com as eras. Mas o Vento do Leste, que
coleta e transmite tudo sobre todas as coisas desde antes de Adão nunca soube ficar calado. E presenteou os
“escolhidos” dotados da sensibilidade para viver com um pé no Mundo dos Mortos com a saga de Marpaloth.
Vamos ver no que dá. A “Alta Magia” está longe de ser uma ciência exata.
Me concentro.
Passo o sangue dos corte de meus braços para minhas mãos, esfrego as dedos e desenho o símbolo do
paquiderme celestial fora do pentagrama, para que ele não pense que estou tentando prendê-lo.
- Pai das planícies, grande Marpaloth, aqui estou para clamar por uma dádiva. Por favor, apresente-se
perante esta humilde seguidora de teu cânone de sabedoria.
- PAFFT !
Uma força, vinda do alto, como uma bala de espingarda de pressão me atira ao chão. Fico em transe, saio
do ar, chame como quiser. Não importa quantas vezes isto aconteça, sempre é desagradável. Principalmente
porquê não é você que controla o destino do “teletransporte” espiritual.

* * * * *

E eu senti frio.
Muito frio.
Estava no meio de um deserto de gelo com ventos cortantes rasgando minha carne translúcida. Ventos que
uivavam como lobos ameaçadores.
Não vi nada. Não vi ninguém.
Me ajoelho no chão e oro para o “Grande Pai”, o Deus-mamute que trazia abundância em forma de caça
para os homens, fertilidade para as mulheres, mas dizimava a todos se houvesse o menor sinal de devoção à
outra entidade. Marpaloth não conhecia o perdão, suas pragas somente cessavam quando o último infiel era
torrado por raios que de espirituais não tinham nada. Não importa quanto tempo isto levasse. Elefantes não
esquecem.
Ouço passos.
Um homem chega até mim. Trajado como um caçador neolítico, mas andava com a segurança de um Lorde
Inglês cercado por um batalhão de 10000 cavaleiros.
Se curva e toca em meus cabelos.
- Faz muito tempo que não recebo visitas.
- Faz muito tempo que não vislumbrava tão poderosa divindade.
- E queres uma dádiva em troca de teus elogios e de tua companhia, eu presumo.
- Eu preciso de uma dádiva para ajudar outras pessoas, gente doente que, se vivesse em tua era seria cuidada
pela tua infinita misericórdia.
- Prossiga.
- No meu tempo, no meu mundo, há muitos jovens com uma doença chamada TOC. Meu senhor, Lorde
Mendina, quer construir um santuário onde estes desgraçados da Sorte possam desfrutar de um pouco de
alegria e esquecer as agruras da enfermidade, mas há oito famílias que se negam a vender suas posses para
Lorde Mendina construir a Cidade do Toc, o santuário onde estes enfermos encontrariam algum conforto para
suas almas.
- Seu mestre, Lorde Mendina vai pagar um preço justo pelas terras ?
- Tão generoso quanto possível.
- Então estes homens gananciosos que se recusam a ajudar os enfermos devem conhecer a ira de Marpaloth.
O que queres que eu faça, mulher ?
- Próximo ao portal que usei para vir até teus domínios, tenho uma boa quantidade de carne, boa para
consumo humano. Tenho como vender estas peças para os desgraçados que não querem ajudar os enfermos.
- Porquê não usas veneno ?
- Poderia ser aprisionada, senhor.
- Entendo.
Então o caçador que acreditava ser uma antropomorfização de Marpaloth, toca, com sua luva de um couro
inidentificável minha testa. Apago de novo.
Acordo com sua voz ressoando nas estepes.
- Está feito. Quem comer desta carne só falará a verdade, será tomado pelo ódio e terá a força equivalente a
10 macacos das neves. Nestas condições, qualquer briga familiar estúpida se transformará em uma carnificina.
Tudo que seu mestre terá a fazer é comprar a terra dos herdeiros.
Por motivos óbvios, me ajoelho em frente à divindade, que, até agora, havia se mostrado benevolente.
- Senhor, há algo que esta pobre mulher possa fazer para servir-te ?
- Mulher... Meu tempo se foi jazem muitas eras. Quando Aníbal cruzava os alpes usando minhas crianças
como tanques de guerra eu estava com eles, mas não fomos páreo para o panteão romano, já que, meus
seguidores já eram menos que pó há séculos. Mas não reclamo. Estou resignado com meu destino neste
mundo gelado e vejo, com alegria, que minhas crianças prosperam: Ganesh tem templos em sua honra por
toda a Índia e John Merrick, o elefante símbolo do partido republicano norte-americano representa a força, a
imponência e a virilidade para milhões de pessoas. São meu sangue, e sangue, afinal, é o que importa.
Eu sorrio.
- É bom aqui ?
- Tem paz. Considerando a vida que eu tive é justo. Se você visse onde estão Odin e Zeus veria que eu estou
muito bem alocado.
Havia uma dignidade, um senso de virtude naquela entidade que Rebeca só havia conhecido em seus
encontros com os deuses indígenas norte-americanos.
E Marpaloth, o senhor das planícies, se debruça até a fascinada feiticeira e sussurra em seus ouvidos:
- Parta.
E eu parto.

* * * * *

Ai... Que dor de cabeça.


Olho o relógio: quatro e trinta.
Que dor horrível. Eu quero meu Vicodin !
Rapidamente limpo com uma esponja molhada o pentagrama grafado no chão do açougue.
Rasgo uma folha de papel desta impressora nojenta que não funciona nunca e escrevo o recado:
FECHADO PARA BALANÇO – A PROPRIETÁRIA RETORNARÁ NA QUINTA NO HORÁRIO DE
PRAXE.
Era bem capaz do moto-boy não saber o que significa “praxe”.
Dane-se.

* * * * *

Dia vinte e três.


Os esotéricos falam muita besteira sobre os deuses esquecidos e isto inclui os escritos de Neil Gaiman. Há
divindades esquecidas de todo o tipo: os que querem se isolar para esconder a vergonha de não receberem
mais orações e sacrifícios ou os que pensam ainda ter algum poder a agem como fantasmas como a bela
Allyfá, deusa da Sorte e da Fortuna dos extintos hirkanianos. Entediada, a potentade deixou o oriente médio
rumo à Las Vegas e perambula entre os jogadores com seus vestidos esvoaçantes e os olhos violeta mais
lindos que já vi em minha vida. No meio dos jogadores tem a ilusão de estar distribuindo dádivas e fortunas
quando a única coisa que tem poder para fazer é esfriar o ar da área onde está. Normalmente, é confundida
com um fantasma. Quem a viu, jura que viu o fantasma de Elizabeth Taylor, por causa dos olhos violetas. Ser
confundida com Elizabeth Taylor para uma deusa de 12.000 anos não é necessariamente um mal final. Ela
tem um “quê” de Norma Desmond do filme “Sunset Boulevard” mas não é má pessoa. Está muito mais para
uma versão psicótica feminina de Gasparzinho do que das coléricas deusas gregas.
O grande segredo é não desistir. Há milhares de portas para bater no labirinto do Crepúsculo dos Deuses.
Sempre existe a chance de você encontrar alguém com um resquício de poder e que queira lhe ajudar. A maior
parte deles são como idosos abandonados pela família em um asilo. Uma visita, uma partida de xadrez, ouvir
algumas estórias e você ganhou um aliado poderoso.
Ou perdeu um bocado de tempo.
Claro, sempre há a opção de negociar com Lucifer. Só que isto é como disputar um rally com o Dick
Vigarista tendo Richard Nixon como navegador. Já passei por esta fase. Se é para ir para o Inferno que seja
montada em um corcel flamejante de minha própria propriedade. Satanistas são pessoas obcecadas em servir,
em obedecer ordens e agradar superiores. Você passa 10 anos em um culto satânico e não aprende um só
feitiço que funcione. Porquê todo o conhecimento útil, (não filosófico ) a tal da “Practical Magick”, está
concentrada nas mãos dos sacerdotes e TUDO tem um preço. Se eu quisesse uma rotina destas para minha
vida teria ido para a Cientologia.
Pelo menos lá eu poderia pegar os autógrafos do Will Smith, do Tom Cruise e do John Travolta de graça.
Ah...Ah...Ah...Ah... Staying alive... Staying alive...

* * * * *

Dia vinte e três.


Tudo prontinho.
A carne separada e “ionizada misticamente” pelo meu benfeitor de tromba peluda estava em um freezer e os
presentinhos para minhas amiguinhas domésticas no outro. Não tinha como errar.
Vendemos.
Vendemos.
E vendemos.
Dezoito horas. Fecho tudo.
Claro, a “Alta Magia” não é uma ciência exata, mas me recuso a acreditar que um sujeito com uma trompa
peluda daquele tamanho vá fazer feio.
É esperar.

* * * * *

18:00. Rio de Janeiro-RJ , Brasil


Barra da Tijuca, Condomínio “The Castle”.
Residência do Neurologista Alexei Apophis Canalli.
Helena, também conhecida como Senhora Canalli, corta o bife e o ingere.
- Eu quero o divórcio !
O Doutor Canalli responde a altura.
- Você está louca ?
- Louca estava eu quando me casei contigo ! Nunca te amei ! Na época eu era apaixonada pelo Albertinho
Limonta.
- E esperou 25 anos para me dizer porquê ?
- Porquê eu era uma covarde.
Anabolizada misticamente pela carne, Helena se levanta da cadeira, rodeia a mesa, agarra o marido pelo
tórax e o arremessa janela a fora.
Onde aterrisa nas pontas da grade de ferro que separava a residência dos Canalli da do vizinho.

* * * * *

18:03. Rio de Janeiro-RJ , Brasil


Barra da Tijuca, Condomínio “The Castle”.
Residência do Advogado Tributarista Jânio Mário das Pedras Alencar.
Família catolicíssima, sendo o casal, membro assíduo das reuniões da TFP. A filha mais velha enclausurada
em um convento carmelita pernambucano fez a felicidade de papai e mamãe..
O filho de 15 anos, Élio, era um daqueles adolescentes de ectoplasma que existem por aí. Não incomodava,
não bebia, não perdia o ano. Lia mais do que devia. Não era tão devoto como os pais gostariam que fosse,
mas, por medo das consequências, seguia a família nas missas, procissões e ritos católicos para onde era
arrastado. pelos genitores que já haviam perdido a fé em ter um filho padre.
Meio sem vontade de comer ou de fazer qualquer coisa, Élio leva o pedaço de bife enrolado à boca.
E mastiga.
Mastiga.
Engole.
E fala:
- Mãe, eu vou me converter !
- Hã ?
- Vou seguir as palavras do profeta Mohammed ! Quero dinheiro para ir até o Afeganistão e me preparar para
ser um Mujahedin e lutar na Jihad contra esta decadente civilização judaíco-cristã ocidental.
O pai, atônito, levanta da cadeira e encara o filho:
- Se isto é piada não tem graça. Volta a comer e amanhã vou te levar no padre Edgar para você confessar esta
asneira.
- Não vai me dar dinheiro para eu ir até o Afeganistão ?
- Nem até Niteroi !
- Cão infiel !
Arfando de ódio edipiano, Élio dá um soco na mesa. O que faz quebrar o vidro de blindex que protegia o
móvel de jacarandá de arranhões e marcas de copo.
Arrancando um pedaço de vidro do tamanho de um laptop, Élio encara o pai que já estava pronto para a
briga.
Segurando firme o vidro, Élio gira o corpo e corta a cabeça do pai que voa em direção à biblioteca,
quicando como uma bola de vôlei murcha.
A mãe e a empregada, correm desesperadas para o corpo inerte que sujava o chão com litros de sangue.
Élio, segura a cabeça do pai pelos cabelos e a levanta como um troféu para a mãe e a criada.
- ALLAH AKBAR !
Enfim, a mãe toma uma atitude.
- Élinho, eu vou chamar a polícia. Vem cá que eu te dou um Valium 10 e você espera até os policiais
chegaram.
O Jihadista-treinee coloca a cabeça do pai no chão, apanha o revólver que o advogado guardava em uma
gaveta e salta um jardinzinho de margaridas, buscando o muro que o levaria ao mundo externo.
Sumiu na escuridão.
Meia hora depois foi fuzilado pelo BOPE que o confundiu com um traficante local, o Tony Tonelada.
Quando chegou do outro lado, Élio não encontrou um oásis com 72 virgens de seios duros.
Mas isto é outra estória...

* * * * *
18:06. Rio de Janeiro-RJ , Brasil
Barra da Tijuca, Condomínio “The Castle”.
Residência do Artista Plástico Eduardo Lemos e seu consorte o “hair designer” Carlos Olavo Cintra, vulgo
“Olavinho”.
Lemos é um herdeiro. Nunca trabalhou na vida. Presenciou, aos 8 anos, seus pais morrerem, em um crime
horrível na escuridão de um beco lúgubre do Baixo Leblon. Só que, ao invés de sair por aí vestido de
morcego, Lemos viveu como rentista a vida inteira, se aproveitando das taxas de juros brasileiras, as maiores
do mundo. Rico e gay. Um dia encontrou Olavinho, igualmente aboiolado e se juntaram. Quando a lei mudou
se casaram e, para se mostrar para a borbulhante comunidade gay carioca, adotaram um bebê. Uma menina
perdida em um orfanato que ganhou o nome de Patricia. Continuava perdida, mesmo aos 20 anos.
Bife à milanesa. Muito gostoso. Geovana, a empregada, cozinhava que era uma beleza.
Patrícia come o bife.
Não costumava brigar com os pais em conjunto. Um dia brigava com um, no outro brigava com o outro.
O dia chegara.
- Papais, eu não sou lésbica !
Lemos, o gay-alpha leva na tranquilidade.
- Bobagem... É só uma fase. Você está confusa. Logo você vai estar fazendo festas do pijama de 3 dias com
suas amigas da PUC.
- Eu nunca fiz festa do pijama.
Agora Lemos acorda. Olavinho observa sonolento ruminando a salada.
- Como é que é ?
- A gente ficava vendo DVD e conversando sobre a saga crepúsculo, não tenho amigas lésbicas. Nem bi. Até
onde eu sei.
- E a Jane, a Carla Machadão, a Fabiana Terremoto ?
- Eu trato todo mundo bem, mas vocês colocaram estas moças na minha vida. Eu me limitei a interagir
socialmente.
- Está querendo dizer que nós, teus pais estávamos tentando te transformar em lésbica ?
- E não estavam ? Me matricular em curso de mecânica de automóveis no SENAI com 12 anos ? Me dar de
presente de aniversário filme pornô de lésbicas desde os 15 ? Encher esta casa de gays e lésbicas desde que eu
me entendo por gente ? Me inscreveram na Juventude LGBT do PT desde que eu tinha 15 ? O último casal
“normal” que entrou nesta casa foram o palhaço e a palhaça que animaram minha festa de aniversário de 9
anos ?
O tom sobe. Olavinho e suas garfadas cheias de rúcula na outra ponta da mesa só observam.
- Olha aqui, sua pivetinha homofóbica ! Você foi escarrada em um orfanato. Se não fosse eu e o Olavo você
teria apodrecido lá até fazer 18 anos e daí para a zona do baixo meretrício porquê bonita para ser “escort” de
turista americano você não é.
- Eu vou te matar.
E vai mesmo.
Olavinho, que, finalmente percebe que a coisa estava feia, salta de sua cadeira e segura Lemos por trás.
- Não fala mais besteiras. Se ela não quer ser lésbica, deixa.
- Deixa o cacete ! Esta mentirosa está comendo e bebendo ás nossas custas. Vai assinar 100.000 promissórias
até pagar cada centavo que gastamos com ela. E vai viver na rua agora mesmo !
- Te acalma.
- Acalmar ? Ela está dissimulando que é lésbica para nos agradar e ganhar presentes desde os 15 anos !
Vadiazinha ordinária !
E o primeiro tempo acaba.
Patrícia explode em fúria.
- Não sou e nunca fui vadia !
- SOCK !
O soco direto no rosto, lançado do punho da filha adotiva simplesmente quebra o pescoço do pai
decepcionado.
Olavo corre para o cadáver. Mede seu pulso e percebe a tragédia.
- Você matou o Olavo.
- Ele me chamou de vadia.
- Você é uma vadiazinha ordinária, ingrata e homofóbica.
- Bem... Você me criou.
- SOCK !
O punho da jovem parricida estoura no peito de Olavo destruindo toda e qualquer funcionalidade de seu
músculo cardíaco como quem atira um despertador do vigésimo andar de um prédio.
Fim de jogo.
Patrícia não era idiota. Sabia que, por algum motivo desconhecido adquirira superforça, só não sabia se isto
seria temporário ou não. Mas, como em nosso plano ninguém acredita em super-heróis com superpoderes
pareceu sensato chamar a polícia e dizer que os dois gays se golpearam mutuamente até a morte. Como
galináceos nas rinhas de galo. Seus braços magros jamais teriam a potência suficiente para golpear alguém até
a morte.
Sempre achara fascinantes as coincidências da vida de seu pai Lemos com o Batman. No delírio da
adrenalina somada com o fato de saber que agora estava podre de rica como herdeira única, se sentia muito
bem. Bem demais. Quem sabe se a superforça for permanente ? Até que seria interessante colocar uma capa e
sair por aí espancando bandidos. O que, aliás, não falta no Rio de Janeiro.
Um uivo.
Há um Husky Siberiano uivando lá fora.
Patrícia sabe como ele se sente.

* * * * *

18:08. Rio de Janeiro-RJ , Brasil


Barra da Tijuca, Condomínio “The Castle”.
Residência do Pastor neopentecostal aposentado Tadeu Jurubeba.
O problema central com os gatos é que eles não conhecem o que significa a expressão “animais de
estimação”. Bem... Se eles conhecem, provavelmente os bichanos pensam que nós somos os animais deles.
Eles nos manipulam, usam nossas carências afetivas contra nós mesmos e, normalmente, conseguem o que
querem. Desde o antigo Egito.
Ou antes.
Vai saber ?
Totonho era o mais feinho da ninhada. Nascera para fazer dinheiro para Leila, que criava gatos angorá no
subúrbio para ganhar uma graninha extra no final do mês. Só que, daquela vez algo não dera certo. Um dos
gatinhos simplesmente não vendeu: era magrinho demais, carinha de doente e ninguém quis. Como criar estes
bichos tem um custo, que Leila não estava interessada em arcar, mandou o gatinho mirrado à título de
presente para o irmão, ex-pastor em Belford Roxo, agora “New rich” na Barra da Tijuca. Quem tem dinheiro
para sustentar um iate de 70 pés ancorado na Marina da Glória tem dinheiro para alimentar um gato magrelo.
Leila simplesmente, ligou para o irmão que, por educação, aceitou o presente.
O bicho chegou transportado em uma caixa de sapato da Sapasso por um diácono da igreja. Ninguém deu
muita bola para a bolinha de pelo.
Acabou sendo adotado pela empregada, Glorinha, que, inclusive, se encarregou de batizar a criatura.
Totonho não era dos felinos mais inteligentes do mundo, mas aprendera que seu território estava limitado à
cozinha, à área de serviço, aos aposentos de Glorinha e à rua, onde dificilmente aparecia.
Se desse as caras na sala ou em um dos quartos dos patrões, imediatamente alguém arremessava uma
almofada nele, que, como qualquer gato de pelagem longa, deixava um rastro de pequenos fios brancos que
exalavam perfume de xampu de gato por toda parte.
Cozinha.
Glorinha, sonolenta, prepara a carne para picar na máquina e fazer goulash no dia seguinte. Gostava de
adiantar tudo quando era possível.
Acidentalmente, um naco de carne cai no chão.
Totonho, o gato, dispara e engole o pedaço de come.
Glorinha, sempre limpinha, molha a esponja da pia com detergente, limpa o chão, limpa a esponja e retorna
sua atenção para a carne, desconhecendo a existência do o gato.
Totonho se sentia tonto, mareado. Mia de uma maneira estranha, mas Glórinha o ignora.
Depois, uma onda de fúria invade cada célula de seu corpo.
Mesmo sabendo que não podia, entra na sala.
Encontra o pastor Jurubeba esparramado em uma cadeira-do-papai com massagem importada que deve ter
custado o dízimo de muita gente na baixada fluminemse.
Jurubeba vê o gato e grita:
- Volta pra cozinha, bicho dos infernos !
Totonho avança sala a dentro.
Jurubeba arremessa um almofada contra o oponente que se aproxima.
Erra.
Irritado, o pastor, que havia aceitado dar abrigo para o felino somente para não desagradar a irmã se levanta
e esboça um chute que faria Totonho voar para a casa vizinha se tivesse sido certeiro.
Mas não foi.
Cansado de ser alvo de almofadas e chutes por toda a sua vida, Totonho salta no pescoço do clérico.
Normalmente, a garra de um gato angorá adulto já teria feito um estrago enorme na jugular de alguém, agora,
aditivada misticamente para ter a força de 10 macacos da neve gera um chafariz de sangue que alcança o teto.
Glorinha ouve o ruído do corpo caindo sobre a coleção de estatuetas de cristais Swarovski da esposa do
pastor. Entra na sala e grita.
O gato sai correndo.
Desaparece nas trevas.
Nunca mais é visto.
Se não tivesse sido tratado como alvo para almofadas e chutes quase desde que chegara na casa, Totonho
não teria tomado a atitude que tomou. Mas, afinal, ele era o gato, o dono da casa, e não era certo deixar um
humano nojento destes lhe faltar com o respeito lhe atirando almofadas, não é mesmo ?
Cría cuervos y te sacarán los ojos.

* * * * *

18:08. Rio de Janeiro-RJ , Brasil


Barra da Tijuca, Condomínio “The Castle”.
Residência do Geneticista e Embriologista Natanael Gesser.
Era uma casa triste.
Durante anos Gesser e a esposa fizeram tratamento de fertilidade, até que, utilizando uma técnica japonesa
de última geração conseguiram gerar uma filha: Talitha.
A menina foi a luz da vida do casal até ser alvejada por uma bala perdida quando o carro da família
atravessava o entorno do Morro do Macaco Molhado em Jacarepaguá.
Criança de 9 anos condenada à cadeira de rodas pelo resto da vida destrói a motivação para ter mais filhos
de qualquer um.
Porém, Gesser continuou a viver. Analisando tubos de ensaio no laboratório de genética avançada de sua
propriedade onde, além de administrar, era responsável pelo setor de pesquisa agrícola que gerava milhões de
dólares em lucros mensalmente. Enfim, a Gesser, Inc. era a Embrapa do setor privado.
A esposa, Janete, gerenciava uma boutique de moda feminina em Ipanema, mais para se entreter do que
para outra coisa. E a lida na loja lhe fazia um grande favor: lhe mantinha longe de casa e da companhia da
filha já que a simples visão da menina na cadeira de rodas lhe deprimia enormemente. Exercia as obrigações
de mãe pelo celular.
Depois que voltou das cirurgias para remover a bala, a menina, tímida, não se adaptou à condição de única
cadeirante da escola e acabou sendo educada em casa, com tutores: “homescholling” híbrido onde ela só
comparecia à escola para fazer as provas. Pela lei pode ? Não pode ! Mas quem iria fazer uma denúncia à
secretaria da Educação do Rio contra um cientista famoso que vivia dando entrevistas no Fantástico ?
Ninguém. As pessoas tem medo. Se não dele, dos 4 afro-americanões trogloditas armados que ele carregava
sempre como amuletos da sorte por onde passava.
O temperamento de Berenice, a empregada, contribuía com o clima funéreo da residência. Moça calada, de
modos contidos, quando terminava seus afazeres se recolhia ao quarto, deixando a menina com as três babás
eletrônicas: a televisão, o computador e o celular.
Da mesma forma que Mogli, que foi criado pelos lobos, a menina que fora criada em frente às 3 telas,
cresceu. Com 13 anos, já esboçava formas de adolescente, mas 4 anos não foram suficientes para calar a
pergunta recorrente: - Porquê comigo ?
18:10 Berenice leva a bandeja com bife, arroz, ovo e um pouco de catchup sobre tudo. Uma lata de guaraná
e uma barra de cereal para completar.
Deposita na escrivaninha, ao lado do teclado onde a mini-patroa, dasapaixonadamente interagia com uma
versão nacional do www.stardoll.com. Vendo a comida, Thalita migra para o Youtube, aciona uma playlist de
K-Pop e começa a comer, sem a preocupação de agradecer a empregada por ter trazido o jantar.
Come, mastiga e engole ao som das jovenzinhas coreanas saltitamtes do Twice.
Passa mal. Cólicas horríveis trazem ânsias de vômito que não se concretizam.
Os espasmos fazem a mocinha cair da cadeira pelo lado esquerdo e rolar pelo chão de tanta dor.
Grita:
- Berê ! Vem cá !
Já em seu quarto, a serviçal não ouve.
- Berêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêê !
Agora ela escuta.
E quando chega correndo no quarto da menina, a surpresa: a garota, em pé, sem se apoiar em nada.
- Chama o papai ! Tô passando mal !
- Mas você está andando !
- Tô. Mas meu estômago está me matando.
- Pode deixar... Já vou chamar.
Em transe, Berenice corre para o telefone fixo da sala, o mais próximo.
Thalita, titubiante, caminha até a varanda de seu quarto e resmunga para si mesma:
- Caraca ! Eu estou andando mesmo !
Mas não é só isto que estava no pacote.

* * * * *

A mãe chega primeiro.


E encontra a filha arrumando os livros, de pé, ocupando as prateleiras mais altas da estante que antes não
consegui alcançar.
- Meu Deus ! Você está andando !
- É... Mas meu estômago está me matando. Tem algo para cólicas ?
Janete abraça a filha. Não tinha esperança que suas preces fossem atendidas, mas... Tanta gente orou,
aparentemente Deus ouviu alguém.
- Como foi isto ?
- Eu estava na cadeira, no Youtube. Então comecei a comer o bife da Berenice. Comecei a passar mal. Caí da
cadeira e consegui me levantar. Estou andando desde aquela hora, mas a barriga dói.
- Tem certeza que foi o bife ?
- Foi, não comi mais nada.
- Só um pouquinho querida.
Janete vai até o escritório do marido, volta com uma pinça e um saco plástico, “captura” o bife, coloca-o
na geladeira e grita para Berenice, que já retornara para seu quarto:
- Berenice, não toca no bife que está dentro da saco plástico na geladeira, entendeu ?
- Entendi. A menina vai continuar andando ?
- Se foi milagre acho que vai. Se foi por outra coisa, como alguma reação ao bife, isto pode ser temporário.
- Acho que foi milagre.
- Também acho que foi.
E se não foi ?
O coração de Janete dói. Dói muito.

* * * * *

O pai chega.
No sofá, Janete e a filha comendo sorvete e assistindo o Show das Kardashians. Um pouco mais para trás,
Berenice, alheia ao drama que se desenrola na TV, só queria presenciar o que aconteceria quando o pai visse a
filha andando.
Assim que Gesser aparece da escada que dava acesso à garagem, Thalita corre para os braços do pai.
Assustado, o geneticista abraça a menina, mas a reação é muito mais de susto do que alegria.
- Você está andando ?
- Tô.
Janete chega e abraça o marido e filha juntos.
- Você pode me explicar o que está acontecendo, Jan ?
- Ela estava na cadeira, comeu um pedaço de um bife que a Berê fez, passou mal e começou a andar.
- O quê ? Cadê este bife ?
- Na geladeira, dentro de um saco plástico.
Gesser vai até a cozinha e volta com o saco do bife na mão.
- Amanhã eu vou levar isto para um laboratório especializado. Seria bom levar a Thalita para fazer um
check-up clínico amanhã também em um médico qualquer.
- O que você acha que aconteceu ?
- Jan, estes pecuaristas são criaturas gananciosas, irresponsáveis, que injetam todo tipo de hormônios e
suplementos químicos no gado para que cresça mais rápido. Vai ver o coquetel bovino reagiu com algum dos
remédios que a Thalita toma e restaurou a coluna dela. Se é permanente ou se vai durar só algum tempo é que
nós temos que descobrir.
- Eu me lembro, das minhas aulas de Química, que tinha na Idade Média um alquimista que escreveu que a
pedra filosofal só seria descoberta por acaso de tão complexos que eram os procedimentos para chegar até ela.
- Você tem idéia do que nós temos aqui, Jan ?
- Um bife ?
Ele fica sério. E arremata:
- A chance de sairmos da casa dos milhões de dólares e passarmos para a casa dos bilhões de dólares como o
Bill Gates e o Warren Buffet !
- Você quer vender o bife ?
- Analisar o bife, descobrir que raios de substâncias ele contém. Analisar a Talitha, os remédios que ela toma
e encapsular tudo em um tratamento eficaz para restauração de danos na coluna cervical, o único no mundo.
- Mas você não deveria fazer tudo isto em parceria com alguma instituição pública como a Fundação
Osvaldo Cruz para o remédio ser distribuído de graça na rede pública ?
- Claro... No futuro, quando a patente vencer e tudo virar domínio público, o governo pode copiar à vontade,
mas eu não vou perder a chance da Gesser Inc. ter ações listadas em Wall Street.
Janete não se choca pois conhecia o marido, mas se irrita.
- Só tem um problema... O bife não é seu. Talitha, vem cá, meu amor !
Talitha emerge do quarto com a cadeira de rodas dobrada na mão.
- Posso guardar a cadeira ou será que eu vou ter uma recaída ?
- Depois... Agora mamãe quer que você decida sobre uma coisa...
- Fala aí ! Eu tenho pilhas de tralhas que eu quero mover para os armários de cima antes que o efeito da
mágica passe e eu volte para a cadeira.
Janete sorri.
- Seu pai quer mandar o bife para análise para patentear o que te curou e depois vender nas farmácias só para
quem puder comprar. Eu quero que ele procure o governo para que o remédio possa ser distribuído para todo
mundo que não possa andar como você. O que acha ?
- Eu não acho nada. O bife é meu. Estava no meu prato. Se é para fazer um remédio que seja para distribuir
para todo mundo que precise como aquelas vacinas dos postos de saúde.
Rapidamente, Talitha apanha o saco plástico com o bife que estava na mesa de vidro no centro da sala,
levanta e mostra para o pai, desafiando-o.
- É meu !
Gesser reage:
- Não é não, devolve.
- Eu não vou devolver, a gente já tem dinheiro demais. Não é legal andar de cadeira de rodas, se o bife puder
fazer esta gente andar, que faça. Mas não só os que possam pagar por isto.
- Me dá isto aqui !
Cenário – Talitha com o bife na mãe esquerda e a cadeira de rodas na mão direita. Gesser salta sobre a
filha, ensandecido, tenta agarrar o saco do bife. Ela recua e, com raiva, golpeia o pai com sua força aditivada
usando a cadeira de rodas dobrada como o Capitão América usaria seu escudo. Um dos ferros perfura a
garganta de Gesser e o geneticista se esvai em sangue.

* * * * *

A construtura que ergueu o condomínio “The Castle” estava mirando em dois tipos de prováveis
compradores para as oito unidades oferecidas ao mercado imobiliário: ex-jogadores de RPG medieval como
AD&D que cresceram e enriqueceram e indivíduos com fixação por este período histórico. Em uma cidade do
tamanho do Rio de Janeiro achar 8 pessoas com este perfil não foi uma tarefa árdua.
Ariquemes Deodato Rodrigues pertencia ao primeiro time: jogador e mestre de RPG desde os 12 anos. Ao
ver a propaganda do condomínio nas páginas da falecida Gazeta Mercantil imediatamente ligou para a
construtura e agendou uma visita. Extasiado, foi o primeiro a comprar um terreno e o terceiro a se mudar.
Gostava dali. Era um ambiente excessivamente “fake”, mas o estatuto do condomínio tinha grandes idéias
como obrigar as empregadas domésticas a se vestirem de camponesas e os motoristas e jardineiros a trajarem-
se como servos domésticos prussianos do século XIII. Proprietários de cavalos tinham 10% de desconto nas
taxas de condomínio. Era tudo muito doido e Ariquemes adorava esta dose de excentricidade que a vida lhe
permitia ter. Infelizmente, sua esposa, Célia, não concordava com as extravagancias juvenis do marido.
Ariquenes era o próprio self-made-man. Fez fortuna com um comprimido para fazer vomitar que foi a febre
das adolescentes bulímicas dos anos 90. Importava ilegalmente as cápsulas da China e revendia para
farmácias “escolhidas” próximas de colégios, universidades e agências de modelo da Zona Sul. Na caixa,
vinha escrito LC-430, mas a galera batizou de “vomitol” mesmo.
Pegou o dinheiro do “vomitol” e investiu em negócios variados: campos de golfe na Irlanda, hotéis na
África do Sul, uma clínica para tratamento de viciados em videogame na Argentina e por aí vai...
Sem querer, acabou construindo um conglomerado peculiar que mais parecia uma colcha de retalhos dada a
disparidade de modelos e tipos de negócio que possuía.
- Foi acidental. Não me convidem para dar palestra em MBA porquê quem me copiar vai quebrar a cara.
Costumava retrucar o milionário quando convidado para servir de “case” em MBAs e Faculdades de
Administração.
Célia, a esposa, era um “pé-no-saco”. O que se comentava era que Ariquemes só não a largava por gratidão
ao pai da criatura que havia emprestado dinheiro para a importação das primeiras caixas do “vomitol”. Mas,
outra teoria afirmava que ele não se divorciava dela para se manter sempre próximo da cunhada mais nova:
Belinha, uma belezinha de morena pálida/esquálida, estilo Amy Lee do Evanescence.
Teorias a parte, tinham diferenças demais para permanecerem juntos, mas, algum fator-X misterioso que
ninguém sabia exatamente o que era, produzia o cimento necessário para evitar o divórcio.
Era uma convivência complicada, principalmente porquê Ariquemes era ateu e absolutamente cético sobre
absolutamente tudo e Célia era espiritualista, ingênua e presa fácil de videntes, cartomantes e médiums das
mais variadas colorações esotéricas.
Das oito residências que emergiram dos oito terrenos originais do “The Castle”, a de Ariquemes era a que
havia sido decorada mais fielmente em consonância com a proposta temática do condomínio. Ariquemes criou
uma área livre de modernidades que incluia a sala, a varanda e o corredor que ia para os quartos. Nada, neste
espaço deveria parecer que não era do ano 1300 ou mais antigo que isto. O resto da casa foi preenchido
normalmente, com todas as facilidades eletrônicas dos dias de hoje, o que produzia um efeito de “portal
interdimensional” assustador quando você ficava muito tempo em uma área e então, penetrava na outra.
Na “zona medieval” tinha de tudo: uma mesa de pedra imitando a távola redonda do Rei Arthur. Espadas,
maças e escudos pregados em quase todas as paredes. Duas armaduras reluzentes manufaturadas em
impressora 3D. Uma cabeça de cavalo empalhada com um chifre de narval pendurada na parede como um
troféu de caça. Uma pele de urso servindo de cortina e o mais impressionante; uma réplica do Santo Graal em
uma jaula de pequenos palitos de metal pintados para parecer ouro. Era o samba do templário doido.
Célia havia sido vítima de uma traumática tragédia quando tinha uns 16 anos. Debaixo das ferragens de um
acidente de carro, o avô, moribundo, havia dito as seguintes palavras para ela, que já tinha se evadido do
veículo em destroços pronto para se auto-inflamar:
- Cuidado com o...
BUM !
O carro explodiu e o velho nunca concluiu a frase.
Aí começou a busca: Espiritismo Kardecista, Espiritualismo genérico, Pais de santo, Médiums, Videntes...
Célia procurava qualquer um que pudesse lhe proporcionar a comunicação com o além que tanto desejava,
mas, nunca encontrara o “profissional” que realmente fosse capaz de realizar o contato.
Ariquemes achava tudo aquilo uma grande bobagem, mas como a mesada era dela e ela gastava como
queria, havia de respeitar as extravagâncias místicas da esposa.
Tinham um trato: todo dia 18, dia do aniversário do avô, Ariquemes estava proibido de colocar o pé em
casa, entre 18 horas e a meia-noite, pois a casa seria usada em mais uma tentativa de comunicação com o
além-túmulo. Ou seja, mais um espertalhão mediúnico sairia dali com os bolsos cheios de dinheiro, tirando
mais um naco da esperança que Célia tinha de contatar o avô.
Madame Petúnia era a “especialista” da noite. Mais três amigas de Célia que sempre compareciam às
“sessões” para ajudar com a energia positiva.
Em um ramo profissional que apresenta uma competitividade absurda como a picaretagem mediúnica, ou
você se destaca ou morre de fome. E Madame Petúnia se distinguia pelo fato de exigir comer uma porção do
prato preferido do falecido (ou falecida) antes de tentar o contato, para melhor reconhecê-lo no “éter” do
espaço entre mundos. Isto a diferenciava da concorrência, mas gerava um risco: nem todo mundo come
buxada de bode, mas tem quem coma. E tem também salada de jiló, pirão de cabeça de peixe e uma série
enorme de iguarias nojentas que sempre são objeto de predileção de algum doido que se delicia com
excentricidades culinárias. Madame Petúnia às vezes se sentia um avestruz humano, mas aquilo era diferente
do “modus operendi” da totalidade da picaretagem esotérica do Rio de Janeiro e, realmente, atraia um número
considerável de novos “clientes”.
Naquela noite, não haveria nada exótico para alívio da médium: um pratinho de kibes, que o velho Samir,
gostava de desfrutar pelo gosto e para não se olvidar da origem de imigrante sírio-libanês. Madame Petúnia
gosta da simplicidade da iguaria, do sabor da hortelã e da qualidade da carne moída.
A refeição termina e as cinco mulheres sentam-se à mesa de pedra. Dão as mãos. Velas tremulando.
Madame Petúnia começa a passar mal. Sua. Fios de cabelos suados grudam em sua testa engordurada de
creme anti-rugas de segunda linha.
Célia interrompe o pré-transe:
- A senhora está passando mal ?
- Querida, quem o Universo premia com grandes poderes também recebe grandes responsabilidades.
Célia se cala tentando digerir a frase feita e tentando se lembrar onde havia ouvido isto.
- Quer continuar ?
- É a minha sina, minha maldição, meu compromisso com os espíritos de luz das sete esferas.
As mãos são entrelaçadas novamente. Sem cânticos ou mantras, só o respirar nervoso das quatro mulheres
que esperavam um sinal do mundo do desconhecido. Madame Petúnia já havia desistido de encontrar um sinal
do além muito tempo atrás.
Mas o sinal veio.
AAAHHHH !!!!
Madame Petúnia dá um grito.
E caí para trás, estática, no chão.
Glaucia, uma das amigas de Célia, por sorte era médica. Pula sobre a médium abrindo a gola de sua blusa.
Depois de examinar rapidamente o pulso da vidente, dá o diagnóstico:
- Célia, chama uma ambulância do SAMU. Acho que esta mulher teve um derrame.
- Acha ? Mas você não é médica afinal ?
- Pelo que eu me lembro da faculdade de Medicina em Vassouras, você deve chamar uma ambulância agora!
As outras duas amigas continuam na mesa, esperando uma solução para o impasse.
E Sebastiana, a empregada enxerida, surge vinda da cozinha, aguardando os acontecimentos no umbral da
porta.
De repente, Madame Petúnia se levanta:
- ¿Dónde estoy?
Célia, aliviada, faz o primeiro contato mediúnico:
- A senhora está bem ? Quer que eu chame uma ambulância ?
Petúnia encara a anfitriã com olhos parados de possessão demoníaca.
- ¿Dónde estoy, mujer ?
Zélia, a amiga nordestina, grita e apavora todo mundo.
- Esta mulher está possuída, suas estúpidas ! E não é o avô da Célia.
Como é que um negócio destes aconteceu, caro leitor ? Bem... Como havia adiantado Lady Rebeca: a “Alta
Magia” não é, definitivamente, uma ciência exata.
- ¡Sí, sé dónde estoy! ¡Estoy en el infierno! Y todos ustedes son demonios que están aquí para probar mi fe.
No canto esquerdo do ringue – Dom José de Ortega y Ramirez, fidalgo andaluz morto pela Inquisição
espanhola pelo fato de ter 1/32 avos de sangue mouro. Devido a intempéries do mundo dos mortos ficou
vagando por aí desde 1512.
Todas em pânico, principalmente porquê ninguém entendia direito o que o desencarnado falava.
Zélia, a mais corajosa das cinco, contando com a empregada, tenta contato. Faz o tradicional gesto com a
palma da mão aberta e o antebraço apontando para o céu em ângulo reto.
- Viemos em paz.
Ortega, cuja visão já havia se adaptado à penumbra da sala, arranca uma das espadas fixadas à parede por
Ariquemes como objetivo de fazer clima para partidas de R.P.G. medieval e decepa a cabeça de Zélia, a
valente.
De repente, o som do carro de Ariquemes entra na sinfonia de horror, já que este havia se esquecido de um
de seus suplementos de mestre de R.P.G. no quarto e retornara para buscar o livro.
Só que ninguém percebe, com as quatro mulheres gritando.
Ortega, extremamente confuso, estava certo que aquilo era o Inferno, e que retirar o máximo de informações
destes demônios que encontrara era essencial para sua sobrevivência nos domínios de Satã. O fidalgo agarra
Glaucia pelo ombro, encostando a lâmina afiada no pescoço da dermatologista transformada em dona-de-casa
pelas contingências do casamento.
Então, a surpresa: Sebastiana surge da cozinha com uma panela em punho, pronta para acertar com toda a
força possível o crânio da inimiga que falava como algum tipo de argentino alucinado.
Só que Ortega foi mais rápido. Golpeando a negra com a espada no ombro, antes que ela o atingisse. Uma
vez com o joelho no chão, o nobre andaluz atravessa o coração da serviçal com a espada embanhada no
próprio fluido rubro da moça. Que escorre, vagarosamente para o corredor.
Gláucia, antes refém, tenta fugir em direção à porta aberta da cozinha, mas é agarrada por seus longos
cabelos negros pelo ser espectral. Irritado com a atitude da médica. Ortega a golpeia na cabeça com a bainha
da espada, provocando um buraco no crânio, já que estava muito mais forte do que um homem normal. Se
assusta com o fato, mas racionaliza pensando que no Inferno, as coisas haveriam de ser diferentes mesmo.
Contra a parede, no chão, a anfitriã: Célia e a última amiga sobrevivente: Dircinha.
Objetivo, Ortega decide que precisaria de somente uma criatura do Inferno para interrogar. Vai em direção
às duas apavoradas e encolhidas no chão, e, com a bainha da espada golpeia Dircinha, que tomba morta por
traumatismo craniano. O andaluz agarra Célia e a arrasta, gritando, para a grande mesa de pedra. Onde
pretendia amarrá-la e interroga-la,
Célia grita, grita e grita.
E, habilidoso, Ortega consegue amarrar a jovem senhora na mesa, utilizando a toalha de crochê que a
cobria como corda.
Estava na hora de Ortega utilizar algumas técnicas que havia aprendido com a Santo Ofício muito tempo
atrás. Não haviam ali os instrumentos necessários, mas improvisar sempre é possível.
O que era para ser uma noite monótona, de mais uma tentativa frustrada de contato com o além, se
transformara em um cenário de filme de horror, com quatro cadáveres espalhados pela casa e uma médium
possuída por algo que balbuciava alguma coisa entre o castelhano e um possível dialeto ibérico extinto.
E a porta da sala se abre.
No canto direito – Ariquemes, com seu uniforme tradicional de “Noite de RPG”: calça de moleton,
camiseta promocional da C&A e tênis fuleiro do camelô de Copacabana. Afinal, não ficara rico à toa.
Célia grita:
- Chama a polícia !
- Polícia ? Uma maluca entra na minha casa, amarra minha esposa na minha mesa como se fosse a roda do
roletrando no Sílvio Santos e você quer que eu chame os tiras ?
Ortega acha engraçado. Fazia muito tempo que não matava um varão, mesmo um plebeu ridículo como
aquele.
O fidalgo corre até Ariquemes, com a espada sobre seu ombro gritando algo incompreensível até mesmo
para os mais peritos linguistas.
Ariquemes fica parado.
Esperando.
Quando Ortega está a cerca de um metro de sua cabeça, rapidamente, o empresário retira da parede a
cabeça de unicórnio falsa, soma de cabeça de cavalo manga-larga com chifre de narval que custara uma
fortuna na Comic Con de 2005 em San Diego, California, USA.
Quando Ortega está a cerca de meio metro de seu dorso, Ariquemes coloca a cabeça de “unicórnio” contra
o peito do inimigo ibérico e se desloca para o lado, fazendo com que a criatura tropeçasse no joelho do Mestre
de RPG e se estatelasse no chão, com o chifre de narval atravessado no peito.
Game Over.
Ariquemes fica em torpor. Imóvel. Tentando respirar enquanto observa a bagunça de seu adorada sala
medieval e os corpos atirados aqui e ali.
Célia grita:
- Dá para me tirar desta mesa ?
- Claro.
Ariquemes salta um cadáver para chegar até a mesa, retira a esposa que já estava com os pulsos roxos
marcados dos nós górdios aplicados por Ortega. Célia simplesmente se atira em uma das cadeiras da mesa e
olha, catatônica, para o teto.
Ariquemes começa a arrastar os cadáveres, empilhando-os em frente à replica do Santo Graal.
Célia sai do transe, percebe aquilo e não perde a chance de gritar com o marido:
- Vá chamar a polícia ! O que você está fazendo ?
- Eu vou fazer uma pilha deste presuntos para tirar uma foto em cima deles com uma espada na mão e
colocar no Instagram !
- Ariquemes, você está maluco ?
- Primeiro, a casa é minha, eu fotografo o que eu quiser.
- Segundo...
- Segundo, o quê, Ariquemes ?
- Ariquemes é o caralho ! Meu nome agora é Zé Pequeno !

* * * * *

As feministas exageram um pouco. Há muitas vantagens em se ter nascido mulher. Uma delas é que, se
você ostenta a posse de uma grande fortuna, mas não trabalha, não é difícil fazer as pessoas acreditarem que
você é uma herdeira cujos pais morreram em um acidente aéreo, por exemplo. Agora, homem não tem esta
moleza não... Se você sai de casa de manhã todo dia para jogar golfe e só volta a noite sempre tem um espírito
de porco na vizinhança lhe acusando de ser traficante de drogas, contrabandista ou até terrorista, se você for
um pouco mais “moreninho” que a média étnica do condomínio. Se as feministas colocassem a mão na
consciência veriam que as desvantagens não são tantas.
Não eram de muita conversa.
Luna devia estar beirando uns 55 e o marido Péricles uns 35. Sem filhos.
Helicóptero próprio, ao contrário dos outros dois que haviam por lá que eram fruto de contrato de leasing.
Toda manhã, o helicóptero partia, pilotado por sua proprietária. Voltava lá pelas 6 da tarde.
Toda manhã, Péricles partia para o clube para jogar golfe. E ali ficava até umas 6 da tarde também.
Eram (aparentemente) mais ricos que os outros condôminos. Ricos, antipáticos e alvos da boataria geral.
A empregada, Vanessa, fiel aos patrões, nunca forneceu informações para o cardume de piranhas
fofoqueiras que a cercava com milhares de perguntas.
Boa moça, Vanessa. Não existe mais gente assim.
Sexta-Feira.
Como acordado com a patroa desde o princípio, nos fins de semana, a moça retornava para São João do
Meriti, para a convivência com os pais e irmãos menores e para seu quartinho cor-de-rosa que pintou ela
mesma com as sobras de tinta Suvinil que ganhara de uma amiga.
Nas sextas, ela deixava o jantar pronto no forno, fechava tudo e ia embora para voltar na segunda de
manhã. Encostava o olho direito no leitor de retina do sistema de segurança e rumava para o ponto de ônibus
onde iniciava a Odisséia até o subúrbio. Acredite em mim, é estrada para Ulysses nenhum achar agradável.
17:30 – Casa vazia.
17:42 – Luna chega. Entra na residência, lava o rosto. Joga a pasta com papéis sobre a mesa e vai para a
cozinha ver o que Vanessa tinha deixado para o jantar.
Ensopadinho de carne moída com cenoura, batata e azeitona acompanhando arroz branco e uma saladinha
de palmito. Não era o tipo de comida que a executiva serviria para as amigas em um jantar formal. Mas,
matava a fome e era gostoso.
Luna se serve do arroz, joga uma concha de ensopado em cima e vai para frente da televisão com um copo
de suco de laranja de caixa.
Mastiga. Mastiga.
Rumina. Rumina.
Começa a ficar tonta.
Busca o remédio para pressão no quarto, mas não consegue se levantar do sofá.
O marido chega.
- Péricles, corre aqui !
Assustado, encosta os tacos de golfe contra a porta e corre para acudir a esposa.
- Você está bem ?
- Tontura, mas está passando... Eu não estou me sentindo bem. Tem uma coisa que eu preciso contar para
você, mas... É complicado.
- Você me traiu ?
- Não, não ia fazer isto.
- Quer se divorciar ?
- Não é com você. É comigo. O que eu faço, o que eu fiz. Seria menos vergonhoso se fosse prostituição.
- Todo mundo faz besteiras...
- É bem mais grave que simples besteiras ou um deslize ético trivial. Me diz o que eu faço
profissionalmente, por favor.
- Você é proprietária de uma fazenda de plantação de alface hidropônica e orgânica no Méier. É o que nos
sustenta.
- Errado. A fazenda é fachada. Não rende 2% do que eu ganho com o outro negócio.
Péricles coloca a mão na cabeça. A primeira coisa que lhe passa: ela está plantando drogas.
Luna se levanta, pega o marido pela mão e resmunga, baixinho:
- Você não vai me perdoar nunca, mas eu preciso te mostrar. Isto está me matando. Eu abasteci. Tem muito
combustível no helicóptero.
- Mas você está bem para pilotar até o Méier ?
- Estou.
Péricles sabia, pelo nervosismo da mulher, que viria uma grande bomba sobre sua cabeça, mas não tinha
elementos para deduzir a magnitude do choque.
Duas horas e trinta e um minutos depois a aeronave aterrissa no heliporto improvisado da pequena empresa
agropecuária. Zona rural do subúrbio carioca, onde nos anos 70 os bixeiros “desovavam os presuntos” de seus
inimigos, cadáveres insepultos apodrecendo sob o mesmo sol que aquecia as praias da Zona Sul onde Carlos
Imperial caçava suas “lebres”.
Imediatamente, Juvenal, o vigia, corre para auxiliar a patroa a descer do helicóptero.
- Tudo bem, Dona Luna ? Algum problema ?
- Nada não. Só queria mostrar umas coisas para o meu marido.
Péricles dá um aceno amigável.
- Então eu vou voltar para a guarita, qualquer coisa que precisar é só gritar.
- OK.
Luna pega o marido pela mão e inicia a caminhada até os limites da propriedade. Depois de andarem quase
uma hora, encontram a cerca de arame farpado derradeira.
- Acabou, Luna ?
- Teria acabado se o terreno do lado também não fosse meu. Ou nosso, como queira.
Então a mulher se abaixa, começa a tatear o solo até encontrar um ferrolho de alçapão. Retira uma chave da
carteira, abre, levanta a madeira e faz o convite para que o marido fosse iniciado naquele mundo de horror.
- Vamos ?
- O que tem aí embaixo ? Drogas ?
- Não, apesar de que, quem recebe o produto fica feliz como um viciado.
- E isto é legal ?
- Se fosse legal estaria em uma estufa subterrânea em um terreno no fundo da minha propriedade ?
Péricles se cala.
- Vamos !
Lentamente, Péricles vai descendo degrau após degrau desbravando a escuridão que o convidava ao grito.
Chegam ao fim da escada.
Luna acende a luz. Uma pequena sala, com uma mesa, uma cadeira de escritório e uma geladeira pequena
meio abalroada lateralmente. Uma porta ao fundo.
- É aqui que eu fico. É tosco, mas é prático.
- E o que tem atrás da porta é o que está nos sustentando, afinal ?
- É... Eu não sei como começar. É meio inacreditável.
- Só comece. Me dê o direito de ter a decisão de acreditar ou não.
- Eu sei que é meio clichê, mas se estas coisas não caírem do céu, caem da onde ?
- Coisas ?
- Eu tinha uns 15 anos e passava férias na fazenda do meu tio em Montes Claros.
- Montes Claros, Minas ?
- É. Lá por umas duas horas da manhã, eu estava sem dormir e vi um risco no céu que se chocou no chão
perto de onde os cavalos bebiam água. Tipo um meteoro, só que como caiu muito perto, no dia seguinte fui
ver se achava alguma coisa. Dou de cara com uma cratera com uma esfera prateada dentro com símbolos em
relevo. Minha surpresa foi que, quando me aproximei, a esfera se abriu como uma íris de máquina fotográfica.
Dentro, uma pequena caixa de madeira. Usando o casaco para não me queimar, retirei a caixa do interior da
esfera e a levei para casa. Sabe-se lá como, o interior da esfera estava frio como uma melancia. Na caminhada
até a sede da fazenda já percebi que a caixa não estava fechada, só encostada. Dentro: oito sementes cor de
caramelo e mais escritos alienígenas.
- É uma estória e tanto. Tem a caixa e as sementes para comprovar ?
- A caixa sim, as sementes não.
- Perdeu as sementes ?
- Plantei.
- Você é louca.
- Louca não, irresponsável. Na época já sabia que estava introduzindo no ecossistema uma espécie
alienígena, mas queria ver o que ia nascer. Você já teve 15 anos, sabe do que estou falando.
- E aí ?
- As férias terminaram e voltei para casa em Belo Horizonte. Escondi a caixinha de todo mundo para evitar
que meu tio a tomasse, afinal o meteoro caiu nas terras dele. O artefato alienígena era dele, legalmente. Na
quadra da minha casa havia uma fábrica de refrigerantes abandonada, apodrecendo, servindo de privada para
mendigos e de abrigo para drogados, esporadicamente. Com muito medo, penetrei naquele monte de ferragens
enferrujadas e, no meio do mato, plantei uma das sementes. Todo dia, depois da escola, eu passava por lá. No
terceiro dia já havia um caule negro ereto que eu, hoje, acharia com a textura similar a de fibra de carbono,
mas na época era só um caule preto. E o milagre acontece: uma pequena massa esponjosa rubra surge na
ponta do caule. Cresce, parecendo um girino. E... Cresce....Cresce... Até que, após 20 dias de plantio, um bebê
aparentemente humano cai ao lado do caule, chorando como qualquer rebento saudável. Eu já havia percebido
o que a planta estava gerando. Mas, quando cheguei no local, fiquei sem fala e sem ação. Não sabia o que
fazer. Embrulhei a criança com meu casaco, tirei dali, coloquei em um ponto de ônibus e liguei para a polícia
dizendo que tinham abandonado um bebê naquele local.
- Que loucura. E o bebê, que fim levou ?
- Deve ter ido para adoção. Mas o pior vem agora: percebi que, em cada ombro da criança, nascia outra
semente. Quando a criança se desprendeu do caule, as duas sementes se soltaram do bebê direto para o chão
protegidas por uma vesícula transparente. Dias depois de colocar a criança no ponto de ônibus, encontrei as
duas novas sementes lá. Do ladinho do caule, que enrugava e morria. Peguei as duas novas sementes, voltei
para casa e nunca mais retornei àquele campo de horrores.
- Base dois ! Melhor que isto só os Gremlins que se multiplicavam em base 5. Você está consciente que
auxiliou uma invasão alienígena produzindo aquela criatura ?
- Claro. Mas a coisa é bem pior. Você sabe muito bem que meu pai sempre foi funcionário público e minha
mãe vendia Avon para ajudar nas despesas. Mas, apesar disso pagaram a minha faculdade e a do meu irmão.
- Lembro. Eu gosto do seu pai, e daí ?
- Pagar a faculdade significa exatamente pagar a faculdade. Só isto. Se eu não tivesse arrumado uma gaúcha
para dividir um porão, trezentos mil sub-empregos e a faculdade não tivesse uma biblioteca que me permitia
não comprar livros eu não teria o diploma. Por uma destas coincidências do Destino, minha colega de porão
tinha um namorado para lá de suspeito: aluno de medicina, Porshe 911, morando em um duplex com piscina
sozinho com um labrador. Eu sempre pensei que a jogada do Betinho era tráfico de drogas, mas Sofia, a
gaúcha, um dia, bêbada, me confidenciou a verdade: o cara tinha um esquema com policiais corruptos: os
tiras sequestravam crianças de até 4 anos e ele repassava a petizada para uma clínica de transplantes em
Campinas, onde a mercadoria era devidamente fatiada e destituída de seus rins, coração, córneas e o que mais
tivesse liquidez, naquele momento do mercado.
- Campinas, São Paulo ou Campinas, Santa Catarina ?
- Campinas, São Paulo. Então... E... É pesado, sabe ?
- Imagino.
- E... Eu perdi meu emprego de balconista em uma loja de auto-peças. Os dias foram passando, meu dinheiro
foi acabando e o desespero de chegar o dia do aluguel e não ter como pagar me fez procurar o Betinho, com
uma pergunta bem direta: “- Quanto você pagaria por um bebê recém-nascido ?”. Já avisado por Sofia de sua
indiscrição, responde na tampa: “Quatro mil dólares, pode entregar quando ?”. Vinte dias depois eu estava
quatro mil dólares mais rica e o bebezinho-alien viajava de Porshe 911 para ser fatiado e retalhado na Clínica
de Campinas. Com o dinheiro, saí do porão, aluguei uma kitinete perto da faculdade para economizar com o
ônibus, comprei 5 xaxins, adubo e toda a tralha de jardinagem que me pareceu necessária. Betinho comprava
tudo: a cada 20 dias eu tinha vinte mil dólares nas minhas mãos. Até que acabou a minha festa: os “meus”
bebês eram muito mais baratos para o Betinho do que os conseguidos através de sequestros feitos pela polícia.
Claro que era muito mais seguro trafegar com uma criança sem documentos em uma rodovia interestadual
dentro de uma viatura policial do que dirigindo um Porshe 911, mas não compensava. Betinho chama o chefe
do esquema, um tal de Sargento Sampaio para conversar e encerrar com a “parceria comercial”. O policial
não gosta dos termos, há uma discussão e Betinho é simplesmente fuzilado dentro de seu apartamento com os
olhos de Bob, o labrador, como únicas testemunhas. Ele já havia me avisado que, se aparecesse morto, o
assassino seria o tal do Sampaio. Até onde eu sei, nunca foi preso ou expulso da corporação.
- Gostava dele ?
- Não. Era um canalha ordinário que ganhava dinheiro com a dor e o desespero dos outros, no caso, os pais e
mães das crianças que eram sequestradas pelos seus “amiguinhos” da polícia. Mas a foto no jornal de alguém
que você conhece deitado em uma poça de sangue dá sempre a impressão que na próxima foto pode ser você.
- O que fizeram com o cachorro ?
- Não sei. Nunca pensei nisto. Naquele momento, eu entendi que, se quisesse continuar no negócio dos
bebês-alien deveria eliminar os intermediários, vendendo direto para o consumidor final, verticalizando a
cadeia não haveria espaço para gente armada entre a entrega da mercadoria e o recebimento do meu
pagamento. A morte de Betinho travou a minha vida por uns seis meses. Até que percebi que poderia vender
os bebês sem intermediários se os negociasse diretamente com quem busca crianças para adotar e com os
satanistas que costumam matar inocentes em seus rituais de depravação e sangue. Na internet “comum”
encontrei grupos de discussão sobre adoção, na Deep Web esbarrei com uns doidos de um grupo esotérico
chamado “Filhos do Grande Mestre” que se interessaram pela oferta e pelos meus termos negociais: sem
perguntas, pagamento em ouro, leve 4 pague 3.
- E você entregava como ?
- Entregava pessoalmente, em lugares de pouca luminosidade como becos, debaixo de viadutos e terrenos
baldios. Com o rosto envolto em uma echarpe de seda. Meu plano era continuar com aquilo até terminar a
faculdade e depois queimar tudo começando a vida de novo como Engenheira Mecânica. Mas é difícil,
entende ?
- É o mesmo que dizem da chantagem. É um dinheiro tão fácil que vicia. O chantageado paga eternamente se
tiver dinheiro para isto. O chantagista pode parar a hora que quiser só que não consegue largar o osso.
- Já foi chantageado ou chantagista ?
- Não, mas conheço quem foi chantageado.
- E como terminou ?
- O chantagista ganhou uma oferta irrecusável para mergulhar nas águas turvas da Lagoa Rodrigo de Freitas e
nunca mais foi visto.
- Acontece.
- E você se formou e aconteceu o quê ?
- Sempre gostei do Rio, então eu peguei o diploma e vim para cá. Gastei quase quatro meses para encontrar
este terreno no Méier, montei a fachada das alfacinhas hidropônicas e com mão de obra de fora construí a
estufa. Em uma situação destas, encher um caminhão pau-de-arara de baianos, obrigar eles a trabalharem em
4 turnos ininterruptos de 6 horas e mandar os caras de volta para o nordeste é sensato.
- E o projeto, o cálculo estrutural, a planta baixa ?
- Eu que fiz. Já ouviu falar em livros de engenharia ?
- Faz sentido.
- Eu pensei grande. Montando uma matriz de 8x8, poderia produzir 64 crianças simultaneamente. Um
sistema de irrigação funcionava 24 horas, o resto: adubo orgânico e algum fertilizante eu sempre apliquei
manualmente. Como o ambiente simula um útero significa que não tenho gastos com luz. Quando eles
nascem vão entregues por drones para seus novos “donos” que ficam esperando em um raio de 2 Km. Estou
mais maleável, acho que é a idade... Além de ouro estou aceitando diamantes e algum material de
melhoramento genético bovino se interessar: sêmen congelado de touro premiado, estas coisas...
- Nada que possa ser rastreado.
- Exatamente.
- E quem compra ?
- A maioria vai para a adoção, uns 20% para satanistas que adoram demônios diversos e o resto vai para uma
Clínica de Transplantes de Piracicaba que eu encontrei no Facebook. Nunca sobra nada na prateleira. Não
vendo para pedófilos, mesmo que tentem me assustar com uma Carteira Funcional do Ministério Público.
- E você está colaborando com uma invasão alienígena, caso não tenha percebido.
- É... Vamos ver lá dentro ?
- Não. Isto acaba aqui.
- Imaginei que você fosse dizer algo assim. Eu concordo com você. O negócio das alfaces é lucrativo, só
vamos ter que nos mudar para um apartamentinho no Leblon, vender o helicóptero e você pode me ajudar
aqui com a “peãozada” se não quiser reabrir seu escritório de advocacia. Este negócio dos bebês-alien dá
dinheiro, mas está me roendo por dentro faz muito tempo.
Péricles a abraça. Jamais havia visto a esposa tão vulnerável, mas por outro lado, a idéia do divórcio para se
afastar das consequencias desta carnificina que perdurava por décadas parecia sensata. O fato de ser marido,
poderia fazer com que algum juiz pensasse que ele era sócio no empreendimento. Seu “advogado interior” lhe
ordenava para queimar tudo e , amanhã de manhã, sair correndo para o Acre, mandando um amigo com uma
procuração para realizar o divórcio o mais rápido possível. Seu “macho provedor interior” lhe ordenava para
auxiliar a esposa no encerramento do empreendimento e levá-la para uma semana romântica em Paris para
que pudesse descansar os olhos dos horrores da vida.
Como podem ver, o advogado interior era um grande filho da puta.
- Luna, você tem algum gerador a diesel aqui ?
- Não.
- Então vamos fazer o seguinte: vamos tirar um pouco de querosene do helicóptero, espalhar pela estufa e
atear fogo. As pessoas vão ver a fumaça mas não vão saber de onde está saindo. E é noite, isto facilita. Vamos
para casa de taxi e amanhã nós voltamos com um mecânico que tenha alguns galões de querosene da aviação,
reabastecemos e, aos poucos, retiramos o resto do entulho em sacos, com calma.
- E vamos fazer o quê com o entulho ?
- Fazer uma laje e jogar concreto em cima ?
- Parece bom. BANG !
A bala atravessa o crânio de Luna. Péricles dá um passo para trás instintivamente e....
BANG ! BANG ! BANG ! BANG !
Quatro tiros certeiros no peito tiram a vida do dublê de golfista e advogado Péricles de Alencar Souto.
Juvenal desce o último degrau da escada enferrujada.
Haviam dito para ele que seria uma missão de rotina. Uma incumbência de infiltração sem atropelos e sem
necessidade de exterminar ninguém, o que sua religião proibia, mas, ás vezes, era necessário no ofício que
exercia para ganhar a vida fora de Carcalon VIII: observador de ninhos. Tudo que tinha a fazer era garantir
para que, pelo menos metade das novas crias carcalonianas chegassem a famílias adotivas terrestres para que,
no momento certo, preparassem a invasão e a aniquilação dos terráqueos. O traje holográfico que usava
permitia viver em anonimato como um cearense “boa praça” e inofensivo. Não era nem uma coisa nem outra.
Era assim que os carcalonianos se espalhavam pelo cosmo: mapeando planetas com vida inteligente e
enviando sondas com sementes que, aparentemente, geravam seres idênticos à espécie dominante. Em uma
segunda fase, as crias passavam a exalar bactérias e toxinas que infectavam cada exemplar da espécie local
dominante com vida inteligente, exterminando assim seus pais, mães e irmãos adotivos.
Cada um daqueles bebezinhos fofos gerados através de sementes cor de caramelo era um vetor para a praga
mais aniquiladora da galáxia: “A Devastação Púrpura”. Cada um daqueles bebezinhos fofos era o que existia
de mais avançado em armas biológicas, a excelência na arte do genocídio em massa.
Juvenal remexe e vasculha os bolsos de Luna e Péricles, retirando todas as chaves que poderiam lhe ser
úteis. Leva os corpos para dentro do helicóptero, aplica uma dose da pasta explosiva VX9 de Borblax e....
BUM !
O helicóptero explode.
Chama a polícia e diz que explodiram ao aterrisar.
Acorda com os tiras a obrigação de ir depor no dia seguinte na delegacia mais próxima, mas jamais
apareceu por lá. Retirou todos os bebês (ainda não formados completamente), colocou em uma pick-up de
transportar alfaces e rumou para o interior de Teresópolis, onde foi abduzido de maneira clássica por uma
belonave da esquadra carcaloniana.
Dois meses depois...
Um carro para em uma rua lamacenta de São João de Meriti. Salta do veículo um sujeito de terno e gravata
com um embrulhinho debaixo do braço;
Bate na porta.
Atende uma moça de uns 21 anos, mulata clara, cabelo alisado com uma trança que mal alcançava a metade
da nuca. Magra, mas não esquelética como uma modelo de passarela, só magra.
- O que o senhor quer ?
- Você é Vanessa Gonçalves ?
- Sou, sim senhor. O que o senhor quer ?
- Você trabalhou para Luna de Alencar Souto no Condomínio “The Castle” na Barra ?
- Sim senhor. E ela nunca teve motivos para reclamar de mim.
- Fique tranquila, é exatamente o contrário. Dona Luna gostava de você e lhe deixou uma lembrança em um
testamento informal encontrado nas coisas dela.
- Dinheiro ?
- Acho que não. Talvez jóias. É esta caixinha aqui. Eu não tenho autorização para abrir. Se você assinar o
recibo comprovando que eu entreguei você pode abrir, já que será sua.
Um pouco desconfiada, Vanessa lê o documento de uma lauda. Pensa ter entendido e assina.
O advogado entrega o pacotinho embrulhado e vai embora.
O pai chega.
- O que é isto ?
- Veja só, pai... Minha última patroa me deixou esta caixinha no testamento. O advogado que entregou disse
que podem ser jóias.
- Então vá abrir, menina !
Nervosa, a moça retira o papel... Abre a caixinha.... E...
- Sementes ?
- É.
- Vai ver ela achava que eu tinha “boa mão”.
- Olha, Vanessa... Eu acho simpático deixar sementes para alguém e você pode usar a caixinha para guardar
suas bijuterias. Tudo isto significa que ela gostava de você.
- É... Eu preferia jóias, mas não se pode ter tudo.
[ Riem ]
- Como ninguém sabe o que é isto, primeiro planta uma semente, depois, dependendo do que nascer, plante o
resto.
- Vai ver eu tenho “boa mão” mesmo, né, pai ?
- Vamos ver...

* * * * *

Aeroporto Internacional de Toronto.


Sala VIP da American Airlines.
Lá fora, a fila dos interrogados segue vagarosamente.
No aconchego da Sala VIP, Valdirene arregala os grandes olhos cor de amêndoa.
- E então, o que aconteceu ?
- Quando amanheceu, a polícia praticamente ocupava o condomínio. Os jornais chamavam de “O Massacre
do Condomínio Fechado” e deve ter sido um grande quebra-cabeça para a polícia já que os crimes não tinham
nexo causal nenhum entre eles. O que um ataque de gato assassino poderia ter a ver com uma adolescente que
mata o próprio pai com uma cadeira de rodas ? Nada. E então vieram os enterros. Os advogados da
Artplancton procuraram um por um os representantes dos oito proprietários das cotas do condomínio com
ofertas generosas para a aquisição das casas com tudo, porteira fechada. Sete venderam, um não vendeu.
- Deixa eu ver se acerto... O cara que você não conseguiu fazer sua visita de apresentação porquê estava
caçando onças no Pantanal ? Acertei ?
- Na mosca. Pedro Arueira. O que aconteceu é que eu vendia um grande volume de carne, somando os
moradores e a “carne subsidiada” para as empregadinhas que me forneciam informação. Era tanta picanha,
patinho e lagarto entrando e saindo que eu nunca percebi que nunca vendi nada para uma das famílias, que,
vim a saber depois era composta de vegetarianos. Sendo assim, nunca foram afetados pela carne “batizada”
misticamente. Eu não tinha controle contábil de quem estava comprando o quê. Isto que acabou comigo.
- E...
- Os advogados da Artplancton elevaram a oferta até o máximo possível, mas Arueira não cedeu.
Argumentou que trabalhava ali perto, a esposa também, gostava da casa e pouco se importava de viver no
palco de uma chacina com tantos cadáveres. O tempo que os investidores estrangeiros da Artplancton deram
para que as oito escrituras fossem adquiridas se encerrou. Os gringos tiraram o time de campo e o mega-
empresário Roberto Mendina teve que vender as 7 escrituras, agora inúteis, com um prejuízo monumental. A
chacina desvalorizou em muito o condomínio como um todo.
- E sobrou pra você, eu presumo.
- Presumiu certo. O tal Mendina, em pessoa, apareceu. Veio até o meu escritório. Me destratou, me xingou
de incompetente para baixo e depois, acabou com a minha reputação em toda a cidade do Rio de Janeiro. Um
cara destes conhece muita gente. Políticos inclusive.
- Então você foi para São Paulo ?
- Isto. Com uma carteira de clientes extremamente limitada, não conseguiria pagar as minhas contas se
continuasse no Rio. Comecei de baixo, uma salinha comercial nos Jardins, agora estou melhor. E, em São
Paulo, tem todo um circuito de Work-shops esotéricos que é quase inexistente no Rio.
- Work-shops esotéricos ?
- É. “Practical Magick”. Em um fim-de-semana de “imersão” em um hotel eu ensino coisas práticas como
fazer um ritual para matar o amante da sua mulher com voodoo, como invocar salamandras, elementais do
fogo, para incendiar a loja do seu concorrente comercial, como fazer crescer um tumor cancerígeno naquele
avô que você sabe que vai lhe deixar uma boa herança, estas coisinhas... Básico.
- Básico.
- O último Work-shop eu ministrei em um hotel em Campos do Jordão. Lugarzinho adorável.
- Mas, pensando melhor, você foi muito bem. Conseguiu 7 das 8 escrituras, ou 87.5% de acerto. O que o
Mendina fez com você não foi justo.
- A vida não é justa, bobinha. Nem do meu, nem do seu lado do espelho.
[ Silêncio.]

* * * * *

Duas horas da manhã.


A fila do interrogatório continua apesar do estado deplorável de sono e cansaço dos interrogados. Talvez
fosse uma tática do Serviço Secreto Canadense. Quem sabe ?
Rebeca dormia, apoiando as pernas nas malas de couro de cobra samoana.
Valdirene continuava acordada, depois de assaltar várias vezes a garrafa térmica de café preto que a
American Airlines disponibilizara para os passageiros.
O “cara do Itamaraty”, que viria da Embaixada Brasileira para apaziguar os ânimos das compatriotas não
apareceu. Afinal, entre outras coisas, Valdirene queria saber seu “status legal” . O que era aquilo ? Detenção
provisória ? No fundo, ainda tinha um pouco de medo de acabar em alguma versão canadense da prisão de
Guantanamo por ter em sua carteira de trabalho o carimbo do Habib’s. Pensou em jogar a Carteira de
Trabalho fora, mas não tinha coragem para isto. Sabia que em um aeroporto deste porte existiam câmeras em
toda parte. Rasgar documentos pareceria suspeito até para o mais estúpido dos policiais.
Exceto quem estava na fila do interrogatório, todos dormiam. Lá fora, famílias se acotovelavam, tentando
alguma transferência de calor corporal. Os caixas eletrônicos, secos de papel-moeda serviam de encosto para
passageiros cujas companhias aéreas não dispunham de Sala Vip. Ou você acha que a AeroMexico e a Egypt
Air espalharam Salas Vip pelo globo afora ?
Valdirene estava em dúvida. Não aguentava mais a novela da venda da Blanford Mining Co.. Só que, se
recorresse à ajuda mística de Rebeca teria de pagar do seu próprio bolso, sem reembolso do Chase Manhattan
Bank. Pelos sapatos, pelas malas e pelas jóias, seus honorários não pareciam ser nem um pouco acessíveis.
Era uma oportunidade única. Este tipo de profissional não anuncia na Web, você chega através de indicação
de alguém e o sujeito anda tem o direito de recusar o seu “caso” se não for suficientemente desafiador ou
coisa que o valha. Esta raça não trabalha só pelo dinheiro, trabalha pelo desafio, pela sensação de ir além do
conhecimento místico conhecido, ir além dos mais obscuro recôndito dimensional. E voltar.
Rebeca dorme mal. Vira e revira o rosto. Treme as pálpebras. Treme as mãos. Sinais claros de pesadelos.
Tudo tem um preço.
Valdirene não cria coragem para acordar a colega de Sala Vip. Dorme. E deixa Rebeca dormir.

* * * * *

Oito horas da manhã.


A fila dos interrogatórios já estava andando desde 6 horas, o que significava, aparentemente, que os
canadenses queriam terminar aquilo o mais rápido possível.
Rebeca comia, com gosto, o bolinho de chocolate industrializado com suco de laranja de lata fornecido
pelas aeromoças da American Airlines.
Valdirene dá o bote.
- É caro contratar você ?
- Depende...
- Depende de quê ?
- Depende de tudo. Uma esposa me pagar para invocar um demônio que mate a vizinha do 701 que está
dando em cima de seu marido é um preço. Agora, se ela quiser aprender a invocar demônios para cometer este
assassinato e outros, no porvir, se isto for necessário, o valor é bem mais alto.
- O que dá para fazer com uns 25 mil dólares ?
- Seja direta, por favor.
- Lembra do que eu disse que fazia no meu trabalho ?
- Alguma coisa sobre fusões e aquisições, é isto ?
- É. Mas só no setor de mineração. Quando uma mineradora fale, ela normalmente tem dívidas com vários
bancos. Então, meu banco, o Chase Manhattan compra estes débitos com deságio, saneamos a empresa
financeiramente no que for possível e revendemos ela para terceiros, inteira ou em partes. Muitas vezes, o
maquinário vale mais do que a firma completa.
- Só que às vezes, as coisas não saem como o planejado, acertei ?
- Exatamente. A Blanford Mining Co. é uma empresa tradicional da Colúmbia Britânica, tem quase 80 anos.
Por uma destas excentricidades da legislação societária canadense, no decorrer das décadas o Sindicato dos
Mineiros adquiriu 27% das ações com direito a voto da empresa. Ou seja, neste caso, o sindicato é acionista
minoritário com pilhas de direitos e prerrogativas legais incluindo criar obstáculos contratuais para a venda da
empresa.
- Mas afinal não é para isto que servem os sindicatos ? Para ferrar com a vida dos patrões ?
Rebeca ri. Valdirene não acha graça.
- Os sindicalistas não são malucos, eles aceitam vender a empresa, mas não para os chineses. Só que, estes
caras foram os únicos que apareceram com uma oferta que não envolvesse ações como forma de pagamento.
- E qual o problema com os chinas ?
- Para o sindicato, todos ! Eles não querem sócios, querem obrigar o sindicato a vender seus 27% de ações
com deságio de até 25%. Sem falar que, estão prometendo demitir 100% dos funcionários e substituir por
operários chineses, como outras corporações chinesas fazem em grandes obras de infra-estrutura na África.
- E eu entro aonde ?
- Eu gostaria que, se possível, você mudasse a opinião do “círculo interno”, dos diretores executivos do
sindicato para eles aceitarem os chineses e eu me desvencilhar desta novela.
- Quantos diretores ?
- Nove.
- Pode ser feito.
- Então temos um trato ?
- Primeiro... Quando você chegar no Brasil, eu quero que você vá até o garimpo dos índios Gavião, na Bahia
e troque meus 25 mil dólares por pepitas de ouro, coloque dentro da fronha de um travesseiro e, algum dia, eu
apareço na sua casa para pegar.
- Quando ?
- Quando me for conveniente.
Valdirene não gosta nada da idéia de guardar pepitas de ouro em casa, mas não fala nada.
- E então ?
- Podemos começar a negociação agora mesmo, se quiser.
- Claro, o que há para se fazer aqui até a hora do almoço, afinal ?
Calmamente, Rebeca retira do bolso interno de seu casaco um lenço de seda e desengata de sua lapela um
broche de ouro, com alguns diamantes. Uma representação abstrata de um símbolo profano incompreensível
para não os iniciados nas ”Artes Negras”.
Abre o lenço sobre sua mão direita e entrega para Valdirene o broche cintilante como se fosse validar o
velho ditado: “Mulheres são como peixes, você captura mostrando pedrinhas brilhantes.”.
Valdirene segura o broche com um pouco de medo, mas firme na convicção de resolver o problema da
venda da mineradora canadense.
- Eu quero que você fure seu dedo, qualquer um deles, com o broche e deixe cair o sangue sobre o
receptáculo.
- Receptáculo ?
- O lenço.
- Certo.
Valdirene obedece e o rubro líquido cai em algumas gotas sobre o alvo pedaço de seda. Se Valdirene
soubesse o nome do ritual que estava protagonizando, com certeza, não teria se envolvido: “Colheita
Sombria”.
Rapidamente, Rebeca retira o lenço da mão da parceira comercial, dobra e insere no bolso do casaco.
- Eu preciso que você fala algumas palavras, aí acabou.
- Certo.
- Eu vou falar. Você repete: Cauk
- Cauk.
- Tanarron.
- Tanarron.
- Palimaped.
- Palimaped.
- Zalapar.
- Zalapar.
- Marfan.
- Marfan.
- É só isto.
Valdirene faz um movimento com a mão indicando que vai devolver o broche, mas é interrompida por
Rebeca.
- Pode ficar, é presente.
- Obrigada. Eu sou meio tapada nestas coisas, mas é um símbolo, não é ?
- É.
- E o que significa ?
- Você não gostaria de saber.
[ Silêncio. ]

* * * * *

E o tempo passa.
A fila dos interrogados caminha em sua marcha preguiçosa.
Algumas crianças organizam uma partida de futebol no hall do aeroporto usando um urso de pelúcia
perdido como bola.
Um turista sueco saca um violão e tenta arrecadar alguns trocados tocando velhos sucessos do ABBA.
Lá fora, técnicos da perícia entram e saem da carcaça negra do 747 como formigas albinas em um bolo de
chocolate.
Naquele micro-verso, o frio induzia ao sono e a letargia. Se fosse em um aeroporto marroquino com 42
graus à sombra, todos já estariam se estapeando faz muito tempo.

* * * * *

Rebeca se levanta.
Vai até o banheiro.
Lava o rosto.
Prende o cabelo com um elástico xexelento que trazia no bolso da calça.
Se surpreende ao descobrir que tantos cabelos brancos recorrentes haviam retornado à sua função eterna de
aborrecê-la com a simples existência.
Retorna à Sala Vip da American Airlines.
Encontra Valdirene folheando uma revista Time emprestada de um turista guatemalteco.
Educadamente, Valdirene oferece o entretenimento:
- Depois que eu terminar, quer ler ?
- Não, tô indo embora.
- E vai passar como por aquela gente toda que investiga a explosão do avião ?
- Quem você pensa que explodiu o 747 para forçar este encontro acidental com você ?
- Eu não acredito. Parte do que você faz é real, mas parte é o velho teatro das ciganas e seus colares, dos
faquiris e suas cobras e dos mágicos de salão com seus coelhos e suas assistentes loiras reluzentes.
Rebeca ri.
- Eu vou indo, mas... Não se esqueça. Mais cedo ou mais tarde eu passo na sua casa para pegar meus
honorários.
E então, Rebeca segura as duas malas. Não sorri. Não torce o nariz como Samantha ou pisca os olhos como
Jeannie. Neva lá fora.
BANF !
O cheiro de enxofre e de chifre de bode queimado empestiam toda a Sala Vip da American Airlines.
Aparentemente, ninguém percebeu a partida da bruxa, exceto Valdirene. No fundo, a executiva já esperava
que Rebeca se retirasse de alguma forma espetacular, cinematográfica.
Rebeca não parecia o tipo de pessoa que esperaria horas para ser entrevistada por um burocrata canadense
para, só aí, recuperar a Liberdade.
Apesar de que, usar a palavra “Liberdade”, para ela, caracterizava um eufemismo de humor negro com um
sarcasmo extremamente cruel.

* * * * *

Trinta e duas horas depois.


O vôo 7102 da American Airlines está prestes a penetrar em espaço aéreo da Costa Rica.
Lá embaixo, as águas límpidas do Caribe escondem navios piratas submersos e a sombra de gerações de
sonhadores frustrados: agricultores que viraram faxineiros na California, enfermeiras que viraram prostitutas
em Las Vegas e médicos argentinos que foram elevados à categoria de mito global.
Valdirene encosta sua bochecha na janela do avião procurando algum contato.
Sabia que, dali para frente, teria problemas bem mais graves para se preocupar do que sindicalistas
canadenses.
Tentava se convencer de que, o espetáculo da partida de Rebeca foi nada mais, nada menos que um truque
de prestidigitação, um número de ilusionismo profissional como os de David Copperfield.
Seria muito mais simples levar a vida acreditando que havia sido testemunha de um ato de excelência do
antigo ofício de Mágico de Salão.
Mas Valdirene não conseguia fazer isto.
Nem conseguia dormir.

* * * * *

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