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Relig D'Ag Bees oa S Reto 18 ‘eopodgatreoesgea -swszlognguedres com 209 pone “io ria dn 208) ae eee ‘Tran: Mel ers ein ip: Cat Cha Vaconcln ore ftpmais Vesa Bsc — mek "Si Se (© Regio D'Apan tres, Mio 2010 oi mrcoen | cms ns oh Sipps Filosofia Chime Caputo da Histra do Mundo as Principas Obras Citadss Criagdio e Salvagio |. Os profetas desaparecem cedo da historia do Ocidente. E verdade que no & possivel entender o judaismo sem a do nabi, se os livros proféticos ocupam na Brblia um ‘central em todos os sentidos, nfo € menos verdade que, 0 interior do judafsmo, operam precocemente forgas que ‘A Timitar 0 profetismo no exercicio € no tempo. Atra- rabinica tende assim a encerrar o profetismo num pas- ‘deal que se conclui com a primeira destruigo do Tem- fem 587 aC. «Depois da morte dos iltimos profetas, . Zacarias ¢ Malaquias, 0 sopro sagrado ,ensinam 0s ra- 5, wafastou-se de Israel; todavia as mensagens celestes game através da at Kol» (literalmente «a filha da voz>, € a tradigfo oral ¢ o trabalho de comentério e de inter- 40 da Torah). No mesmo sentido, o crstianismo reco- Ihece a fungao essencial da profecia e consti até a relagéo “entre 0 Antigo e o Novo Testamento em termos proféticos. ‘Mas, precisamente uma vez que © messias apareceu na Terra © cumpriu a promessa, o profeta jé no tem razio de ser € Paulo, Pedro ¢ os seus companheiros apresentam-se como ‘apstolos (isto é «enviados») e nunca como profetas. Por is- So, na tradigfo crista, aquele que assume a figura do profeta 6 pode ser olhado com suspeita pela ortodoxia, Também ne- Ta, aquele que de algum modo quer associar-se & profecia s6 10 Giorgio Agamben 6 pode fazer através da interpretagio das Escrituras, lendo-as fm termos novos ou resttuindo-thes a significagdo original perdida. Como no judaismo, a hermenéutiea tomou igual- ‘mente no cristianismo o lugar do profetismo,¢ a profecia s6 sob a forma da interpretagao pode ser exercida NNaturalmenteo profeta nem por isso desapareceu por com- pleto da cultura ocidental. Sob disfarces de varias especies, continua diseretamenteo seu trabalho talvez também fora do | Ambito hermenéutico em sentido estrito. Assim Aby Warburg classificava Nietzsche ¢ Jakob Burckhardt como dois tipos ‘opostos de nabi,o primeiro virado para o futuro e o segundo ppara o pasado; ¢ Michel Foucault, na ligdo de 1 de Fever 10 no Collége de France, distinguia quatro figuras da veridi cidade no Mundo Antigo: 0 profeta,o sabio, 0 técnico eo par- resiasta,¢, na ligGo seguinte, convidava-nos a retragar a sua ddescendéncia na histéria da filosofia moderna, Resta, todavia, ‘que, pelo menos em termos gerais, ninguém se sentria hoje iclinado a reivindicar para si no sentido imediato a posigio do profeta, 2 sabido que, no Isto, o rofetadeserpenha uma fun- 0 se possivel ainda mais essencial. No 86.08 proftas bi blicos em sentido estito, mas também Abraio, Moise Je- sus sto profetas caractrizados.E, todavia, também aqui 0 profeta por exccléncia, Muhammad, &«o sclo da profecia», aguele que enceradefinitivamente com o seu livro a histria do profetismo (que também aqui seeretamente permanece através do comentérioe da interpretagio do Corio), contudo signfiatvo que a tradgioislimca gue indis- soluvelmente a figura e a fungéo do profes a wma das duas obras ou aegdes de Deus. Segundo esta doutin ha em Deus , a sua «contemporaneidade» em relago ao pre~ sente, numa desconexio ¢ num desfasamento. Aquele que pertence deveras ao seu tempo, que & deveras contemporneo 6 alguém que nao coincide perfeitamente com ele nem se ‘adapta as suas exigéncias ¢ 6 por isso, nesse sentido, inactual: ‘mas, precisamente por isso, precisamente através do seu dis- tanclamento ¢ do Seu anacronismo, é capaz de perceber captar o seu tempo melhor do que outros. Esta ndo-coincidéncia, esta diseronia, ndo significa, natu- ralmente, que o contemporineo seja aquele que vive num ou- {to tempo, um nostélgico que se sinta mais em casa na Atenas de Péricles ou na Paris de Robespierre e do Marqués de Sade do que na cidade e no tempo em que Ihe foi dado viver. Um hhomem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe em to- do 0 caso que Ihe pertence irrevogavelmente, sabe que no pode fugir ao seu tempo. ‘A.contemporaneidade 6, assim, uma relago singular com 0 nosso proprio tempo, que a ele adere e dele se distancia em simultneo; mais precisamente, ¢ essa relagdo com o tempo ‘que a ele adere através de wm desfasamento e de wm anacro- nismo. Os que coincidem demasiado plenamente com a 6po- «2, que condizem em todos os pontos perfeitamente com ela, no sio contemporineos, porque, precisamente por isso, nfo ‘conseguem vé-la, nfo podem fixar 0 olhar sobre ela, a . Em 1923, Osip Mandelstam escreve um poema que se “«O Século» (mas a palavra russa vek também sign xépoce»). O poema contém niio uma reflexdo sobre 0 sé- Jo, mas sobre a relagio entre o poeta e o seu tempo, isto € 4 contemporaneidade. Nao se trata do «século», mas, Meu século, minha fea, quem poderd othar-te no fundo dos othos soldar com o seu sangue 1s vértebras de dois séculos? poeta, que pagaria com a vida a sua contemporaneidade, ue deve fixar o seu olhar nos olhos do seu século- soldar com 0 seu sangue a coluna despedagada do tem- (0s dois séculos, os dois tempos, nZo so somente, como ve quem sugerisse, 0s séculos x1X e XX, mas também e so- do 0 tempo da vida de cada um (lembremos que o termo -Saeculum significa originalmente o tempo da vida) e o @ hist6rico colectivo, a que chamamos, neste caso, 0 s6- jo Xx, cuja coluna — como aprendemos na tltima estrofe Poema — foi quebrada. © poeta, enquanto contempor’- 9» € esta fractura, é aquilo que impede o tempo de se com- of €, 20 mesmo tempo, o sangue que deve suturar a ruptura ;paralelismo entre o tempo — e as vértebras — da criatura ¢ eas vértebras — do século consttui um dos te- essenciais do poema: Enquanto vive @criatura deve carregar as suas vértebras, 1s vagas brincam ‘com a invistvelcoluna vertebral Como uma tenra cartilagem ifarit 60 séeulo recém-nascido da terra 2 Giorgio Agamben (© outro grande tema — também ele, como 0 precedente, ‘uma imagem da contemporaneidade — & 0 das vértebras que- bradas do século e da sua sutura, que € obra de cada um (nes- te aso, do poeta) ara libertaro século acorrentado para dar inicio ao nove mundo é necessdrio reunir com a flauta (0s joethos nodosos dos dias. Que estamos diante de uma tarefa inexequivel — ou, seja ‘como for, paradoxal —, prova-o a iltima estrofe, que remata ‘© poema, Nio s6 a época-fera tem as vértebras quebradas, co- ‘mo 0 século, vek, recém-nascido, por meio de um gesto im- ppossivel para quem tem quebrada a coluna, quer voltar-se pa- ‘1 tris, contemplar 0 Seu proprio rasto e, assim, mostra 0 seu rosto demente: ‘Mas tens partida a coluna ‘meu pobre século formidével Com um sorriso insensato ‘como uma fera outrora flexivel volias-te para trds,fracoe cruel, ‘acontemplaro teu rasto. 3.0 poeta — o contemporineo — deve fixar 0 olhar no seu tempo. Mas que vé quem vé o seu tempo, o sorrso demente do seu século? Chegado a este ponto, gostaria de vos propor uma segunda definigio da contemporaneidade: contemporiineo alguém que fixao olhar no seu tempo, para perceber ndo as suas Iuzes, mas o seu escuro, Todos os tempos sZo, para quem expe- rimenta a sua contemporaneidade, tempos obscuros. O contem- porlneo é, precisamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, ‘que 6 caps de escrever mergulhando 0 aparo na treva do pre- sente, Mas que significa «ver uma teva», «perceber 0 escuro»? a "Via primeira resposta 6-n0s sugerida pela neuofisiologia Aja Que acontece quando nos ackamos num lugar sem wis goto fechamos osolos?O que € 0 esc que en ‘Gunbs? Os neurofisilogistas dizem-nos que a auséncia I desinibe uma sri de c6lulas periféricas da retina, as previsamente,ofcells, que enram em actividad essa expécie particular de visio aque chamamos (O escuro nlo €, portant, um conceit privatvo, a rauséncia de lz, qualquer cosa como uma nio-islo, 1 resultado da actvidade das of-cels, um produto da retina O qu signifi, se volarmos agora nossa tse { esctro da contemporaneidade, que peoeber esse es- ‘nfo € uma forma de inécia ou de passividade, mas im- tua actividade e uma aptido patculares, qv, n0 nos- Seaso, equivalem a netralizar as luzes que provém da ara Jescobira sua teva, o su escuro especial, que todavia, separivel das referidas luzes. pode dizer-se contemporaneo quem no se deixa cegar Tures do século © consegue apreendernelas a parte da bra sua obscuridade intima. Mas com isto no respon- mos anda a nossa perguna, Porque devera interessar-nos euitmos perecber as trevas que provém da época? NSo orventurao escuro uma experiéncia anima e por de- Tmpenetrvel, qualquer cosa que no se dirge ands pode, portato, dize-n0s respeito? elo contri, © porineo 6 aguele que pecebe 0 escuo do se tempo o qualquer coisa que Ihe diz respeitoenio para de qualquer coisa que, mais do que toda a lz, se ende- a dircotaesingularmente a cle. E contemporineo quem - em pleno rosto 0 fixe de treva que provém do seu 4. No firmamento que olhamos & noite, as estrelasfulguram ‘eireundadas de uma treva densa. Uma ver que no universo hi ‘um nimero infinito de galsxias e de corpos Tuminosos, 0 ¢s- Giorgio Agamben ‘euro que vemos no e&u € qualquer coisa que, segundo os cien- tists, necessita de uma explicagio. E precisamente da expl cago que a astrofisica contemporinea dé deste escuro que {gostaria agora de vos falar. No universo em expansio, as ga- léxias mais distantes afastam-se de nds a uma Velocidade tio forte, que a sua luz nio consegue alcangar-nos. Aquilo que Percebemos como 0 escuro do céu esta luz que viaja velo- cfssima direita a nds ¢ todavia nio pode alcangar-nos, porque as galdxias de onde provém se afastam a uma velocidade su- perior a da luz Pereeber no escuro do presente esta luz que procura al- cangar-nos e no pode fazé-Io, eis o que significa sermos con- temporineos. E por isso que os contemporiineos slo raros. 5 € por eso que sermoscontemporineos é, anes do mas luma questo de coragem: porque significa sermos capazx ‘los de iar oolhar no ecu da epoca, mas tanbem de pereeber nesse escuro uma luz que, dirigindo-se a nds, se afasta infinitamente de n6s. Quer dizer ainda: sermos pon- tus num enconto que s6 pe aha Por isso que o presente que a contemporaneidade perce- be tam as venebratquebradas.O nosso tompo,o preene no € $6, com efeito,o mais longinguo: mas em caso nenhum pode alcangar-nos. A sua coluna esté partida e nés ocupamos ‘exactamente ponto da fractura. Por isso somos, apesar de ‘tudo, seus contemporineos. Entendamos bem que 0 encontro {que esté em questo na contemporaneidade nao tem lugar simplesmente no tempo cronol6gico: 6, no tempo cronolégi- 0, qualquer coisa que urge dentro dele e o transforma. E es- ta.urgéncia é a intempestividade, o anacronismo que nos per- ‘mite captar 0 nosso tempo sob a forma de um «demasiado cedo» que é, também, um «demasiado tarde» de um «jé» que também, um «ainda no». E,em simultineo, reconhecer na treva do presente a luz que, sem nunca poder alcangar-nos, «std perenemente em viagem para ns. ‘A moda 6 um bom exemplo dest especial experiénia do po a que charmamos a contemporaneidade. © que define a Ida é o facto de la introduzir no tempo uma descontinuida- peculiar que o divide segundo a sua actalidade ou ina Made, © seu Ser ou 0 seu nio-ser-j-na moda (na moda € o simplesmente de moda, que se refere apenas 4s coist), ‘cesta, apesar de subtil, 6 clara, no sentido em que aque- Mave devem percebé-la a pereebem sem falta, precisa: esse modo, atestam o seu ser na moda; mas quando objectivécla¢ fixé-la no tempo cronolégico,re- se incaptivel, Antes do mais 0 «agora» da moda, 0 ins tin que ela chega a ser, no 6 identificével por meio de metro algum. Este «agora ¢ talvez 0 momento em que sta concebe o trago, o cambiante que definiré 0 novo da pega de roupa? Ou 0 momento em que o confia 20 nador e depois ao atelier de costura que confeccionaré o 0? Ou, antes, o momento da passagem de modelos, 6 peca de roupa é envergada pelas inicas pessoas que 0 sempre e s6 na moda, as mexieos, que, no entanto,pre- te por isso, nunca o esto deveras? Porque, em sitima cia, ¢ estar na moda do «olde» ou da «lina» depen- ri do facto de as pessoas de came eoss0, diferentes das mo- os — essas vitimas sacrifiiais de um deus sem rosto —, 0 conhecerem como tal e dele fazerem a roupa que vestem. “O tempo da moda 6, deste modo, constituivamente um mpo que se antecipa a si proprio e, precisamente por iss0, também sempre atrasado, tem sempre a forma de um i- fr incaptavel entre um «ainda no» © um «jé nfo>. E pro- 1 que, como sugerem os tedlogos, tal depend do facto de ‘moda, pelo menos na nossa cultura, ser uma marca teol6g :daroupa, que deriva da circunstancia de a primeira pega de upa ter sido confeccionada por Adio e Eva depois do peca- “do original, sob a forma de uma tanga vegetal entretecida {60m fothas de figueira(precisemos que as pegas de roupa que Yestimos derivam nio desta tanga vegetal, mas das tunicae 26 Giorgio Agamben pelliceae, das pesas de roupa feitas da pele de animais que Deus, segundo Gen. 3, 21, faz. com que 08 nossos progenito- res enverguem, como simbolo tangivel do pecado e da morte, ‘no momento em que os expulsa do Paraiso). Em todo 0 caso, seja qual for a razio, 0 «agora», kairos da moda é incapti- vel: a frase «neste instante eu estou na moda» é contraditéria, porque no momento em que o sujeito a pronuncia, est jé fo- ra de moda. Por isso, o estar na moda, como a contempora- neidade, comporta uma certa «folga», um certo desfasamen- to, em que a sua actualidade inclui dentro de si uma pequena parte do seu exterior, uma tonalidade de démodé, De uma mu- Ther elegante dizia-se na Paris do século x1x, neste sentido: Elle est contemporaine de tout le monde, Mas a temporalidade da moda tem um outro carécter que a aparenta a contemporaneidade. No proprio gesto em que 0 seu presente divide o tempo segundo um «jf nfo» e um «ain- {da nao, institui com estes «outros tempos» — decerto com 0 ppassado e, talvez, também, com o futuro — uma relagdo par- cular. Ou seja, pode «citar» e, desse modo, reactualizar qualquer momento do passado (0s anos 20, 0s anos 70, mas também a moda Império ou neo-cléssica). Ou seja, pode por cm relaglo aquilo que inexoravelmente dividiu, reclamar,re- evocar e revitalizar aquilo que, todavia, declarara morto, 6. Esta relagio especial com o passado tem ainda outro as- Pecto. A contemporaneidade inscreve-se, de facto, no presen- te assinalando-o acima de tudo como arcaico e s6 quem per- ceebe no mais modemo e recente os indicios e as marcas do arcaico pode ser seu contemporaneo. Arcaico significa: pré- ximo da arché, isto € da origem. Mas a origem nao se situa ‘somente num passado cronol6gico: & contemporsinea do devir histérico e nio para de operar neste, como 0 embrido conti- ‘nua a agir nos tecidos do organismo maduro e a crianga na vi- dda psiquica do adulto. O afastamento — e, em simultineo, a — que definem a contemporaneidade tém 0 seu a meio ets provided rgem, que em nxn tro ponto pulsa com mais forga do que no presente. Quem ‘pela primeira vez, o chegar por mar ao romper do dia, 0s unha-céus de Nova Torque, pereebeu subitamente esta fa- arcaica do presente, esta contiguidade com a ruina que as temporais do 11 de Setembro tomaram evidente pa- historiadores da literatura e da arte sabem que entre 0 sco © 0 moderno hi um encontro secreto, nfo tanto por- Drecisamente as formas mais arcaicas parecem exercer ‘0 presente um fascinio particular, como porque a chave p modemo ests escondida no imemoral e no pré-histrico. ‘© mundo antigo no seu termo voltase, para se reen- pra os priméndios; a vanguarda, que se perdeu no po, poe-se no rato do primitivo edo arcaico.E neste sen- ‘que se pode dizer que avin de acesso a0 presente tem ne~ forma de uma arqueologia. Que nao regride na direegdo de um passado remoto, mas na daquilo ‘no presente em caso algum podemos viver e que, perma- no vivido, 6 incessantemente sorvido de novo na o da origem, sem nunca poder aleangé-la. Porque © ido 6 mais do que a parte de no vivido de todo 0 vi doe aquilo que impede o acesso ao presente & precisamen- a massa do que, por qualquer razio (0 seu carter traumé- 3. sua excessiva vizinhanga), nele nfo conseguimos ver. A atengdo a este nfo-vivido && vida do contemporineo. Sermos contemporsineos significa neste sentido, tomarmos ‘um presente em que nunca estivemnos | 7-Aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade, s6 ‘Puderam fazé-Io na condi de a cindirem em varios tempos, “de introduzirem no tempo uma des-homegeneidade essencial. Quem pode dizer «0 mew tempo» divide 0 tempo, inscreve niele uma cesura e uma descontinuidade; e, todavia, precisa- ‘mente através desta cesura, desta interpolago do presente na a) Giorgio Agamben hhomogeneidade inerte do tempo linear, © contemporsineo pde «em acgio uma relagio especial entre os tempos. Se, como. ‘mos, foi o contemporineo que quebrou as vértebras do seu tempo (ou, em todo o caso, percebew a sua falha ou ponto de ruptura), faz desta fractura © lugar de um encontro e de um confronto entre os tempos e as geragdes. Nada mais exem- plar, neste sentido, do que 0 gesto de Paulo, no ponto em que ‘experimenta e anuncia aos seus irméos essa contemporanc ‘dade por exceléncia que & o tempo messifinico, © serem con- temporineos dos messias, a que chama precisamente o stempo-de-agora» (ho nyn kairos). Este tempo nio s6 € ct0- nologicamente indeterminado (a parusia,o regresso do Cris- to que assinala o fim esté sem divida préximo, mas incal- culével) como tem a capacidade singular de pér em relagdo consigo cada instante do passado, de fazer de cada momento ou episédio da narrativa brblica uma profecia ou uma prefi- {guracdo (typos, «figura», & 0 termo que Paulo privilegia) do presente (assim Adio, através do qual a humanidade recebeu ‘a morte e 0 pecado, € «tipo» ou figura do messias, que leva ‘0s homens & redengdo e & vida), (© que significa que 0 contemporinco nio é somente aque- le que, percebendo o escuro do presente, capta a sua luz in- vendavel; 6 também alguém que, dividindo e interpolando o tempo, esté em condigdes de o transformar e de o pdr em re- Jago com os outros tempos, de ler de modo inédito a sua his- ‘tia, de a «citar» segundo uma necessidade que néo provém ‘de modo algum do seu arbitrio, mas de uma exigéncia & qual ‘ele néio pode responder. E como se essa indivisivel luz que é ‘o-escuro do presente projectasse a sua sombra sobre 0 passa- do e este, tocado por esse feixe de sombra, adquirisse a caps ‘cidade de responder as trevas da hora. Michel Foucault devia ter em mente qualquer coisa do género quando escrevia que as suas indagagdes historicas sobre 0 passado so apenas a sombra projectada pela sua interrogaglo tedrica do presente, E Walter Benjamin, quando escrevia que a indicaglo histéri- -contida nas imagens do passado mostra que estas s6 ace- Mt legiilidade num determinadlo momento da sua hist6- iE da nossa capacidade de darmos ouvidos a essa exi ‘@ a essa sombra, de sermos contemporineos ndo s6 do ‘séeulo ¢ do «agora, mas também das suas figuras nos se documentos do pussado, que dependerio 0 éxito ou 0 {do nosso seminar. K. 1. Kalumniator fo processo romano, no qual a acusagio publica tinha limitado, a ealdnia representava para a admini ida justiga uma ameaga tio grave, que 0 falso acusa- ppunido pela marcagao na sua fronte da letra K (ini- ‘kalumniator). Cabe a Davide Stimilli o mérito de ter ‘a importincia deste facto para a interpretagio do de Kafka, que o incipit apresenta sem reservas co- pprocesso calunioso («Alguém devia ter caluniado KK. porque, sem que ele tivesse feito coisa alguma de ‘certa manhi foi detido»). K., sugere Stimili, lembran- Kafka estudara hist6ria do Direito Romano quando wva para exercer uma profissio jurfdica, nfo signi segundo a opiniio comum que remonta a Max Brod, i;mas calinia. 2. Que a calinia represente a chave do romance — ¢, tal~ 2, de todo o universo kafkiano, tio potentemente marcado ppoténcias miticas do direito — torna-se, contudo, ainda is esclarecedor se observarmos que, a partir do momento ue a letra K. ndo substitu simplesmente kalumnia, mas ‘Se refere ao kaluniniator, isto 6, ao falso acusador, tal s6 po- Pe Giorgio Agamben ‘de significar que 0 falso acusador € o prdprio protagonista do romance, © qual, por assim dizer, intentou um processo calu- nioso contra si préprio. O «alguém» (jemand) que, com a sua calinia, deu inicio ao processo, € 0 proprio Josef K. Mas tal é precisamente o que uma leitura atenta do ro- ‘mance mostra para além de qualquer divida. Embora, com feito, K. saiba desde o inicio que nfo é de facto certo que o tribunal o tenha acusado («Ndo sei se vocé foi acusado», diz-he jéna primeira conversa 0 inspector) € que em todo 6 caso a sua condigio de «acusado» nio implica mudanga al- guma na sua vida, ele procura por todos os meios penetrar nos edificios do tribunal (que nao o so, mas se encontram «em s6tios, em arrecadagGes ou casas de lavar — que, talvez, 6.0 seu olhar transforma em tribunais) e provocar um peo- cesso que os juizes nio parecem ter qualquer intengdo de Iniciar. Que nao se trata, de resto, de um verdadeiro proces- 50, mas que o processo s6 existe na medida em que ele 0 re- conhece, € 0 que 0 proprio K. concede temerariamente 20 Juiz de instrugio durante o primeiro interrogatério. E, toda- via, ndio hesita em dirigir-se ao tribunal ainda que néo tendo sido convocado e, precisamente nessa ocasio, admite sem nevessidade a condigao de acusado. Tal como, durante a conversa com a Menina Buster, nfo hesitara em sugerit- -lhe que 0 acusasse falsamente de agressio (assim, de certo ‘modo, se autocaluniando). E é isso mesmo que, em iltima analise, 0 capelio da prisio dé a entender a K. no final da sua longa conversa na catedral: «O tribunal nada quer de ti aceita-te quando vens, deixa-te ir embora quando te vais». Ou seja: «O tribunal néo te acusa, no faz mais do que aco- Ther a acusagdo que te fazes ati préprion. 3. Cada homem intenta um processo calunioso contra si proprio. E este 0 ponto de partida de Kafka. Por isso 0 seu luniverso nio pode ser trégico, mas somente cémico: a culpa no existe — ou, antes, a dnica culpa é a autocalinia, que 33 no acusarse de uma culpa inexistente (isto é, da sua mnocéncia,e€ este 0 gesto c6mico por excelencia). a ancora com o principio, enunciado noutro lugar por exundo o qual «o pecado original, «antiga injustica mahomem cometeu, consste na acusagio que faze da qual secate, de Ihe ter sido feita uma injustica, de 0 pecado Her sido cometido conta ele. Também aqui, como na fr eulpa no é a causa da acusaglo, mas identifica i ealinia, com efeito, se 0 acusadorestiver convent Mocéncia do acusado, se acusar sem que haja uma cul- demonstrat. No caso’ da autocalnia, esta convicgdo se a0 mesmo tempo necesséria e impossivel. O acusa- “pla em que se autocalunia, sabe perfeitamente es- mente, mas, na medida em que se acusa, sabe igual- ‘bem ser eulpado de caltnia, merecero seu labéu. Tal € wo kafkiana por exceléncia. Mas porque é que K. — que cada homem — se autocalnia, se acusa flsa- 2 A calinia era percebida pelos juristas romanos como ‘cormupgio (usavam 0 termo temeritas, de temere, «is ce- 9 acaso», etimologicamente aparentado com treva) da fio. Mommsen observava que 0 verbo accusare no pa- ‘ser na origem um termo técnico do direito e, nos teste mais antigos (por exemplo em Plauto e Teréncio), & is usado em sentido moral do que juridico. Mas preciss- nesta sua fungéo nos confins do dreito, a acusagio re- ‘asua importincia decisiva (© pprocesso romano tem inicio, com efeito, com a nominis “delatio, a inscrigio, a cargo do acusador, do nome do denun- Kado na lista dos acusados. Accusare deriva etimologiea- “mente de causa ¢ significa «por em causa». Mas causa é,em ‘certo sentido, o termo juridico fundamental, porque nomeia Tmplicagio de qualquer coisa no direito (como res significa @ si Giorgio Agamben implicagdo de qualquer coisa na linguagem), 0 facto de qual- {quer coisa ser fundamento de uma situacdo juridica. Nesta perspectiva, é instrutiva a relagdo entre causa e res, que, em latim, significa «coisa, assunto». Ambas pertencem 80 voca- bbuldrio do dreito e designam o que esté em questio num pro- ccesso (ou numa relagdo juridica). Mas, nas linguas neolatinas, ‘causa substitui-se progressivamente a res e, depois de ter de- signado na terminologia algébrica a ineégnita (do mesmo ‘modo que res, em francés, sobrevive somente na forma rien, ‘«nada»), df lugar a0 termo «coisa» (chose em francés). A «coisa», essa palavra tio neutra e genérica, nomeia, na reali- dade, «o que esté em cause», aquilo de que se trata n0 direi- to (ena linguagem), A gravidade da calinia 6, assim, Fungo do seu repor em {questi 0 préprio principio do processo: 0 momento da acu- sagdo. Porque nao so a culpa (que no direito arcaico nio é necesséria) nem a pena que definem o processo, mas sim @ acusagio. Mais ainda, a acusagio € talvez a «categoria juri- dca por exceléncia (kategoria significa cm grego «acusa- lo»), aquela sem a qual todo 0 edificio do direito faltaria: 0 orem causa do ser no direito. Ou seja, 0 direito é,na sua es- séncia, acusagio, «categoria». E 0 ser, posto em causa, «acu- ssado no direito, perde a sua inocéneia, torna-se «coisa», is- to 6, causa, objecto de litigio (para os romanos, causa, res © lis eram, neste sentido, sinénimos).. 5. A autocalinia faz parte da estratégia de Kafka no seu in- ‘cessante corpo a corpo com a lei. Pde acima de tudo em ques- tio a culpa, 0 principio segundo o qual nfo hé pena sem cul- pa. E, com ela, também a acusaglo, que se funda na culpa (a acrescentar & lista das tolices brodianas: Kafka no se ocupa {da graga, mas do seu contro, a acusaglo). «Como pode em ‘geral ser culpado?, pergunta Josef K. ao capeléo da prisio. E.0 capelio parece dar-lhe de certo modo razio ao dizer que rio ha sentenca, mas que « préprio proceso se transforma 35 ‘a pouco em sentenga». Um jursta modemo escreve, sentido, que, no mistério do processo,o prinespio ;poena sine iudcio se invertenesse Outro, mais tenebro~ {6 qual nao hé juizo sem pena, porque toda a pe- no juizo, «Estarse num processo semelhante>, diz. 0 itura a K., «significa té-o jé perdido» Eevidente na autocalinia e, em geral, no processo ca 1-0 processo calunioso uma causa na qual nada hé ja em causa, em que & a prépria causa a ser posta em {sto € a acusagdo como tal. E onde a culpa consiste no ‘a0 processo, a sentenca no pode ser Sendo 0 pr 880. sm da calinia, os juristas romanos conheciam outras. temeritates ou obnubilagbes da acusagio: a praevari- {sto é a colusdo entre acusador e acusado, simetr ‘oposta & caltinia, e a tergiversatio, a desisténcia da (para os romanos, que viam uma analogia entre @ ‘© 0 processo, a desisténcia da acusagio era uma for- desergao — tergiversare significa originalmente «vi- costas»). K. € culpado das trés: porque se calunia, porque, na fem que se autocalunia, se colude consigo proprio € io 6 solidério com a sua propria acusagao (neste sen- stergiversa», procura escapatGrias ¢ faz perder tempo). |. Compreende-se, entio, a subtileza da autocalinia como {gue tende a desactivare a tomar ociosa a acusaglo, em causa que o diteito enderega a0 ser, Porque se a acu- fas e se, por outro lado, acusador e acusado coinci eno é a propria implicagao fundamental do homem no ito que & posta em questio. O inico modo de alguém afi ‘a sua propria inocéncia frente & lei (e as forgas que a re- ta: o pai, 0 casamento) &, neste sentido, acusar-se fal- ‘ai Giorgio Agamben Que a caltinia pode ser uma arma de defesa na luta com 4s autoridades, di-lo claramente o outro K., 0 protagonista de O Castelo: «Seria um meio de defesa relativamente ino- Cente, mas afinal insuficiente». Com efeito, Kafka esté ple- ‘namente consciente da insuficiéncia de uma tal estratégia, ‘Uma vez. que o direito responde transformando em crime o Proprio por em causa e fazendo da autocalinia o seu funda. ‘mento. Ou seja,o diteito ndo s6 pronuncia a condenagiio no preciso momento em que reconhece o infundado da acusa- ‘920, como transforma também 0 subterfigio do autocalu- niador na sua propria justficagio eterna, Uma vez que os homens nao param de se caluniar a si pr6prios e a0s outros, nto 0 diteito (isto € 0 processo) é necessério para apreciar uais s20 as acusagdes fundadas e quais o nao sio. Deste modo, 0 direito pode justifiear-se a si préprio, apre- sentando-se como um baluarte contra o delirio auto-acu- Sat6rio dos homens (e, em certa medida, agiu realmente co ‘mo tal, por exemplo relativamente a teligifo). E ainda que © homem fosse sempre inocente, se nenhum homem em ge- ral pudesse ser declarado culpado, subsistria sempre como pecado original a autocaldnia, a acusago sem fundamento ue ele ditige a si prépri. 8.£ importante distinguirmos entre autocalnia e confissdo. ‘Quando Leni procura induzi-lo a confessar,sugerindo-Ihe que 6 quando se confessou a culpa «se tem a possibilidade de es- capa», K. declina rapidamente o convite, E contudo, em cer- to sentido, todo o processo visa produzir a confissio, que, jé 0 romano, vale como uma espécie de autoconde- nag. Aquele que confessou, reza um adégio juridico, ja est Julgado (confessus pro iudicato)¢ & equivaléncia entre contis- ‘io © autocondenagio & alirmada sem reservas por um dos -autorizados juristas romanos: quem confessa condena-se Por assim dizer a si proprio (quodammodo sua sententia dam. rnatur). Mas aquele que se acusou falsamente, esté por isso 3 cnquantoacuado ma impossibilidade de cones, £0 rs pe conden io como atnadr se renhect inootncncome ssa. A enti dK. poe sr dfn, reste serio, com recto, como a tentatva falda de fora impossivel process, ras a confissto, De resto, ama um fg: Me 1920, sconesar ppiaelpa e meni 530 & ‘ois. Mentese pra se poder confess. Kafka pa Hmsoreverse, asim, nua tig gue contro fvor de ‘la gora na calor judico-cis, ret ecitiamente Aono e Ce te a ni como eee igo» (pis et pertcosa, Pos ie seo Macsnsatiscce ene eves a) 9. Na histria da cons, ¢ particularmentesignficativa Tiago com a tru, & gual Kafka no poiadcxar de Sensivel Enquano, no dneito da poca republican, a sso ea admit com reserva eserviaem princi i ‘para defender 0 acusado, na época imperial, sobretudo no de crimes contra o pode (conju, ago, conspragio, lade contra o principe), mas também nos casos de adul- de maga eadvinhago ita, 0 proceso petal imp aa tortura do acusad € dos eux esravos tendo em vst irhhes a confseo, «Arrancar a verdade» (eratem fruere a dvisa da nova racionalidae judicial que igando fsteltamenteconfisioc verdad, fz da tortura, estendeno- Sts sino cho de safe, o nano ‘de prova por exceléncia, Dai o nome de quaestio que a de- Signa nas fone juries: a tora € inguerito sobre aver A (quaesto vers) e& nesses termos qe serdretomada Intuit rediva Spenco ta ce wien ncaa stn pi tong, Dp ax rie eis 0 gos, ainda pone go initava a declararaeiocene, Ges fala plats vorara.O acta er liad Ge coms 38 Giorgio Agamben ‘em cima de um eavalete (eculeus, «pequeno cavalo» — o ter- ‘mo alemio para tortura, Foiter, deriva por isso de Fohlen, « aay Pi cdma cena, com K. estendido em cina © Pr a posi muito Frsada ¢ improvavel>, € mals an os a eto do que uma execugao capi F Wt eral da coldnin penal nfo consegue encontay 2 ade que ela buscava, assim iguslmente 2 20° ar Vnis parce um homo do que 8 conclaio de Be ocario veritas, No final com efit, fan Me ero que sabia ser © seu dever: ), deixar coer a fraqueza que, como registaré a 3 de Fevereiro, :teve até agora afastado tanto da loucura como da ascen- — Auftieg, de novo aideia de um movimento para cima) ‘uma teologia postica (a nova cabala oposta ao sionismo, a igae complexa heranga gndstico-messfinica contra a psi jogia ea supericalidade da wesyldische Zeit em que vi ia). Mas torna-se ainda mais deeisiva quando referida 20 ro- mance que Kafka estava a escrevere ao seu protagonista, 0 fagrimensor K. (kardo, «o que Vai na direcgao da junta do £64»). A escola da profissdo (que & 0 proprio K. a atrbui se, ninguém 0 encarregou do seu trabalho, do qual, como 0 egedor lhe fz notar, a aldeiando tem a mais pequena neces- Sidade) é, portato, ao mesmo tempo uma decarago de guer- ‘ae uma estratégia, Nao foi das extremas entre 0s quinais & as casas da aldia (que, nas palavras do regedor, eto jé «de- mareados ¢ registados como deve ser») que ele veio ocupar- -se, Mas antes, «partir do momento em que a vida na aldeia 6,narealidade,iteiamente determinada pelos confins que a separam do easteloe, 0 mesmo tempo, a mantm abragada a ele, sio sobretudo esses limites que © agrimensor pe em questi. © . Passaram-se quinze anos desde a data deste diapndstcoim- placivel, edigido por quem tinha toda a competéncia eauto- Fidade para 0 fazer, e cua exactido ninguém (nem mesmo enre of que, autarcas,arquitectos ou ministos,entio como hoje tveram etém, nas palavrs de Tafuri.awindectncia» de continua a enfetar ea vender o cadaver) podria de boa fé orem divida,O que significa, condo, vendo bem, que Ve- era ji nio & um cadaver, que, se de algum modo continoa a txstr nfo pode necessriamente deixar dete pasado a0 e5- tidio que se segue a mort e& decomposigao do cadaver, Tal So esto do especzo, Ouse 0 de um moro que aparece et aera manent histo, Pro vel ci Yt ccidades curopeias, apagam as suas m, eis. E por inno ee areas, tornam-nas ilegi- — € de maneira especial Venera ill Nudez 3 — parecem-se com os sonhos. No sonho, com efeito, cada visa faz sinal Aquele que a sonha, cada criatura sua exibe ‘uma marca, através da qual significa mais do que tudo 0 que (98 seus tragos, 0$ seus gestos, as suas palavras alguma vez _poderiam exprimir. No entanto, também quem tenta obstina- damente interpretar os seus sonhos, esta algures convencido de que eles nada querem dizer. Assim na cidade tudo 0 que faconteceu naquela calgada, naquela praca, naquela rua, na- {queles alicerces, naquela rua de lojas, de repente condensa-se ¢ cristaliza numa figura, ao mesmo tempo abl e exigente, "muda e amistosa, intensa e distante. Essa figura € 0 espectro, ~ 0u10 génio do lugar. Que devemos nis a0 que morreu? «O acto de amor de re- cordar um morto», escreve Kierkegaard, «é 0 acto de amor mais desinteressado, livre e fiel». Mas nio &, com certeza, 0 ‘mais facil. O morto, com efeito, nfo s6 no pergunta, mas p rece fazer tudo para ser esquecido. Mas, precisamente por is- $0, © morto talvez.seja 0 objecto de amor mais exigente, pe- rante 0 qual estamos sempre desarmados e incumpridores,em fuga e distrafdos. 6 deste modo se pode explicar a falta de amor dos vene- zianos pela sua cidade. Nao sabem nem podem amé-la, porque lamar uma morta é dificil. E mais simples fingir que esté viva, cobrir-Ihe os membros delicados e exangues com méscaras © ‘maquilhagens para se poder exibi-la contra pagamento a0s tu- ristas. Em Veneza os vendilhes nfo esto no templo, mas nas sepulturas;ultrajam ndo s6 a vida, mas, sobretudo, um cadé- Ver. Ou, antes, aquilo que, sem ousarem confesséclo, acredi- tam ser um cadaver. E €, pelo contrétio, um espectro, ou seja — se sabe s@-1o — a coisa mais aérea, subtle distante de um, ccadéver que imaginar se poss. ‘Acespectralidade é uma forma de vida. Uma vida péstuma fou complementar, que comega apenas quando tudo acabou © st Giorgio Agamben genie gabe cet pr rere ee el he rw gi rc {com nnn nse rs 1ist6rias de fantasmas, comparavs vaclos) Shion sss eal ea fase ae evasivos, que sio sempre os vivos a invadir ee “ee nt hie en hf oN reat ‘tt eataecienies ct foie hanes aro ano esa: Salo iaccio inuteseees ns in un rn ta cas Ta ar a “ron pm ann oe Joon rai mano = ou incubos, ¢ ‘hes moverem do interior os met fe ies ei deen Et ance cides ea pore ta em on rr ni ea ere ee eee tear ee perante 0 seu passado, & sua ince ert se pasado ua inepecdade des sabre con- eae Bachmann comparou uma vez a lingu: gatas ener error ae pe ingua comportam a mesma utopia ¢ a ‘mesma rut : Boo ‘e perdemo-nos na nossa cidade como na eee sraos'an ear pomareoae eo ae Cenetcarruinn = eae cei eos te a a ili Nudez pil tinua falar 6 Tid; 6 simplesmente impossvel 08 Gnu fin “ln a posigdo de um sujet, a de quem ee Aiunpn mora 6,na verde, como Venez a Bs eerie na qual no podemos falar, mas que $8 ‘maneira spec Tgcona esussurra.€ que, embors com esfordo « CO rio do diciondrio,podemos entender e defer 10 fa aa agua morta? A quem se drge o expects & ingua? PDecerto que nfo ngs; mas também nfo aos ss destinatitios pects, das quais i nlo tem recordago agua: NC Oe te tacpresiaamente por iso, € agora come © Fosse $6 pe- rarer ve a falas ess gun, de goal 0 SMSO SS Mar conta de Ihe asibuir assim uma consistencia spectral, diz aque ela fala — nto a nos. Veneza é, portanto, verdadciraments — ainda que We! seni completamente diferente do evocado por Tin 2 fi seu discus de abertura —,0 emblema da mows mal de nosso tempo nfo é novo, mas nowssino, sD st dade ear Concebe-se como Ps-histrin ¢ poe-moeerne, mo fospetar que assim se aribuia necessariamenic AST ‘Argntuma eespeta, sem imagiar que 2 video SPP Fo sso mals itxicae inacessvel que impdc 9 chat a comet ras de sber-viverinransigentes ed lit F Wancin om as suas vésperas e as Sons matinas, as stas CO pletas ¢ 0s seus oficios. a falta de rigor ede decencin das Larva ene ns hae: von todos os povose todas as lingua, todas 36 OWENS vingin as inettuigdes,0s parlamentos © os SObEraNOS, #5 Save as sinagogasosarinhos ea fogs esiartt pos Jes a jnenoraveimente,passando A condigio de arves 1, {or assim dizer, impreparados e sem atenSo doliberada. AS- Pore pecritoes escrevem mal, porque fem de fingit gM & sim gon ext viva os parlamentos legislam em vio, Ford su fi alak wma vida police 3 Larva nagao, a5 eines ae xprovides de piedade, porque jé nfo sabem sbenons ¢ 36 habitar sepultura esfilar empertigad ‘madamente a sua Por isso vemos esqucletos e manequins wos, ¢ mimias que pretendem dir an aco, Sem se darem conta de que os Sobre 0 Que Podemos Nao Fazer Deleuze definiu uma vez a operagio do poder como um se~ pparar os homens daquilo que podem, isto &, da sua poténcia. AAs forgas activas so impedidas no seu exercicio ou porque so privadas das condigdes materiais que o tornam possivel, fou porque uma proibigdo toma esse exervicio formalmente Jmpossfvel. Nos dois casos o poder — ¢ € esta a sua figura _mais opressiva e brutal — separa os homens da sua poténcia ce, desse modo, tomna-os impotentes. Hi, todavia, uma outra e ‘mais dissimulada operagdo do poder, que nio age imediata- mente sobre o que os homens podem fazer — sobre a sua po- ‘éncia —, mas antes sobre a sua impoténcia, isto é sobre o que ro podem fazer ou, melhor, podem nao fazer. Que a poténcia seja sempre constitutivamente também im- poténcia, que todo o poder fazer seja jf sempre um poder nao fazer 6 a aquisigio decisiva da teoria da poténcia que Arist6- teles desenvolve no livro 1x da Merafisica. «A impoténcia [adynamial», escreve ele, «é uma privagao contréria & potén- cia [dynamis}. Toda a poténcia é impoténcia daquilo mesmo ‘por referéncia aquilo mesmo [de que é poténcial» (Met. 1046, 29-31), «lmpoténcia» nao significa aqui somente au séncia de pot8ncia, nio poder fazer, mas também e sobretudo ‘poder nio fazer», poder nao exercitar a poténcia propria. E 8 Giorgio Agamben € recisanente ea anbival ‘ ivalnciaespectca de toda a pon. que € sempre potica de er ee sce ses lo fer que define em primero lara poten nem ¢, or consguite, 0 servo que ena moo da ptt, pds tn uma cosa Some oso ‘lo, trate-se de fazer ou de nao fazer. 0 ue 0 ex] fe gue qualqver outro ser vivo, a rico deen ae ee” E sobre eta outa face ma st outa face mais obscura da potecia qu ho bree agro poder que se define nine te PO Imocrcow. Sepa os homens ose nio ans danas om fer. mas ants do mae as mand soe expetgnia do gue pod no free & lo fazer, homem de hj ot pz de do eee ose fv cao heer ss eee ttn ae, Pa cn rn li Ce Oe a Tr ae ee ere ‘Nudez Ne Jem cujaaroginca€invrsrenteproporcionl& provi Soredae © increa do seu papel em cena. Aiea de que Goda um pode fazer ou ser inditinamente sje 0 ie fr Soopstn de que, nto a6 0 mélic qe me examina pera set ten um artista de vdeo, masque até mesmo o algo que toe main sj na ealldade como em O Proceso de Kaa, un fantor, no so mais do que o reflex da consciéncia de que Poss esto simplesmente a vergar a essa lenblidae que hoe «pimeim qualidade que omeread exge de cada um, [Nada rende tantos pobres e tio pouco livres como este es- tranhamento da impoténcia. Aquele que & separado do que pode fazer, pode, todavia, resistr ainda, pode ainda ndo fazer. ‘Aquele que é separado da sua impoténcia perde em contra- partida, antes do mais, a capacidade de resistir. E como é s0- ‘mente a calcinante consciéneia do que no podemos ser a ga- rantir a verdade do que somos, assim também & somente a visio hicida do que nio podemos ou podemos nto fazer a dar consisténcia ao nosso agi. Identidade sem Pessoa 0 desejo de ser econhecido pelos outros & inseparivel do ser humano. Este reconhecimento éIhe, mais ainda, t0 es- sencial que, segundo Hegel, o ser humano estédisposto, para 6 obter, a pra sua propria vida em jogo. Nio se trata, com efeito, simplesmente de satisfagdo ou de amor proprio: mas & antes, somente através do reconhecimento dos outros, que © hhomem pode consttur-se como pessoa. Persona significa na origem «mascara» e 6 através da més- ‘cara que 0 individuo adquire um papel e uma identidade so- ‘ial, Assim, em Roma, cada individuo era identificado por um ‘nome que exprimia a sua pertenca a uma gens, a uma estirpe, ‘mas esta era, por sua vez, definida pela mascara de cera do an” tepassado que cada familia patricia guardava no dirio de sua ‘casa. Daqui a fazer da persona a «personalidade» que define © lugar do individuo nos dramas e nos ritos da vida social, a distincia é curta e persona acabou por significar a capacida- ‘de juridica e a dignidade politica do homem livre. Quanto 30 ‘escravo, do mesmo modo que nio tinha nem antepassados, nem mascara, nem nome, no podia também ter uma «pes- soa», uma capacidade juridica (servus non habet personam). ‘Auta pelo reconhecimento é, portanto, luta por uma mésca- "a, mas esta mascara coincide com a «personalidade» que a Giorgio Agamben feriedade reconhece a cada individuo (ou com o «persona: ‘gem> que, com a sua conivéncia sem> ivéncia por vezes reticente, cla faz gue iso acomeen fo antes do sean {osofia ees, que mldow asain st «lane actor ea sua misara. Esa elo € define pane esd: om aoe acta a pe pete lo pode unbém dete sm rion ea breton escroveEpiccto,wque 6 como tn en ey Que ator damstico quis sbi‘ eve a ee are sane Nudez «que te foi atibuda, isso depende de ti (Ench. Xv) E toda- via, 0 actor (como 0 sibio que 0 toma como paradigma) nio deve identifcarse até ao fundo com 0 seu papel confund “se com o seu personagem. «Em breve viré o dia avisa ain- dda Bpicteto, «em que 0s actores acreditaro que a sua masca- 2 0$ seus trajos so eles mesmos» (Diss 1 XI, 41), ‘A pessoa moral constitu-s, pois, através de uma adesio e, juntamente com esta, de um afastamento em relagdo & mis- cara social: aceit-a Sem reservas e, a0 mesmo tempo, toma perante ela, como que imperceptivelmente, as sua dstinias ‘Talvez em parte nenhuma este gesto ambivalentee, com ele, a distancia étiea que abre entre 0 homem e a sua méscara sur- jam com tanta evidéncia como nas pinturas ou nos mosaicos romanos que representam o dilogo silencioso do actor com a sua méscara. O actor € aqui figurado de pé ou sentado diante Otic avo pbk, apreenen rs, ae Icy er ys ons om ou leanne aren alge senda ce Rae _graga «Como a vestepressupde o corpo que deve cobrit». es Sve hr sis a sae en pms cinagen Pox ee uamstare: = ee —plemenfteinedemmede ana ~ va tes ac i ‘uma natureza propria, diferente da divina —, mas foi nd a nck oe pra ou rie sobrenatural da gloria». ap areas Nudez n © problema da nudez é, entdo, o problema da natureza hu- ‘mana na sua felagio com a graga. : '5, Na colegiada de Santo Isidoro, em Léon, conserva-se um reliodri de prata do século X1,em cujos lados foram esculpidas fem relevo cenas do Génesis. Um dos quadros em relevo mostra ‘Adio Eva pouco antes da expulsio do Eden. Segundo a nar- rativa biblica, acabaram de se dar conta de que esto nus © co- briram as suas vergonhas com uma folha de figueia, que segu- tam com a mio esquerda, Diante deles, 0 eriador, irado tnvergando uma espécie de toga, aponta com a mao dieita num testo inguisitsrio (que a didasatia explicit, «Dixit Dominus “Adam bi es») retomado pela mo esquerda dos culpados que, para se desculparem,apontam infantimente Eva (Adio) ¢ ser ents (Eva). A cena Seguin, que nos interessa de modo pat Pilar, ilustra o versiulo de Gen.3, 21: «Et fecit Dominus Deus ‘Adae et mulierieius tunicas pelliceas et induit eos». O artista esconhecido representou Adio jé vestido, numa atitude de tris- tear aflta: mas, pot meio de uma deliciosa invenglo, figurou Eva'com as pemas ainda nuas no acto de envergar a tnica com {que 0 Senhor parece cobri-la& forga. A mulher, da qual no se Ye mais do que o rosto saindo da gola da vest, resiste com 10- das as suas enerpas a violencia divina: o que é demonstrado pa- tn além de toda a divida nao s6 pela torgdo pouco natural das, mas ¢ do esgar dos olhos torts, mas também pelo gesto da mio direita que se agarra desesperadamente &veste divina. ‘Porque no quer Eva vestir a «pega? Porque quer perma: necer nua (ao que parece, despiu a flha de figueira ou perdeu~ vp. no ardor da disputa)? E certo que, segundo wma antiga tra- “igdo, j& atestada em S. Nilo, em Teodoreto de Ciro © em Jewsnimo, as peligas, os chitonai dermatinoi(tunieae pelliceae nha Vulgata; de onde, 0 modero termo «peliga», que conser- ‘ou até hoje uma conotagio pecaminosa),si0 um simbolo da norte; por isso, depois do baptism, sio postas de parte e subs- titufdas por uma branca veste de linho («Quando, prontos & Giorgio Agamben revesti-nosde Cis, tivermon te, escreve leis, en dhe jada uz com ‘i de qe sin ‘ern Oat \20tho, insist, elo ont, su sigaicage eit. 6 provivel que nr inlaid eeu 0 que oencomendaran team quridodareo eae uma signifi parca Mat aque Saige acs oe td adequdoguind ens pscnte que tae done momen. da st vida no Parso Teese so el oe rogers prem es ainda ms antes dese ee pels expos arasempre puna era Sc tl grea co Ho eset guna de pata, uc ene dacapee ‘se vss, umextordndo into fenton faz da mulher a guardid obstinada da nudez aradisiaca, " Posto de parte as tinicas de pe- fergaremos entio a veste de linho igo da morte, mas é ineiramente branca, do baptismo possamos cingir os rins na utoTes, entre oS quais Joo Criséstomo e 6.0 facto de a ei ‘Braga ser qualquer coisa como uma veste ostinho chama-Ihe indumentum gratiae, De Civ, Dei ‘Nudez - xiv, 17) significa que ela, como qualquer veste, foi adicio- hada © pode ser retirada, Mas significa também, precisa: ‘mente por isso, que a sua adigo constituiu na origem a cor- poreidade humana como «nua» € a sua subtraceo toma sempre a exibi-la de novo como tal. E, uma vez que a gra ‘ga, nas palavras do apéstolo, «nos foi dada em Cristo antes dos séculos eternos», uma vez que ela, como Agostinho nio se cansa de repetir, «foi dada quando no existiam ainda aqueles a quem seria dada» (Doc. Chr. m1, 34, 49), @ natu- reza humana é constituida sempre j4 como nua, sempre jf scorporeidade nua». °O facto de a graca ser uma veste e a natureza uma espécie de nudez & sublinhado fortemente por Peterson. Citando 0 provérbio alemiio, segundo o qual a veste faz a raga (Klei- der machen Leute), precisa que ano 86 a raga, mas 6 proprio hhomem é feito do que veste, e isso porque o homem nao ¢ in- terpretdvel por si préprio. A natureza humana, segundo o seu ppriprio destino, é subordinada, com efeito,& graga e s6 atra- vvés desta se cumpre. Por isso Adio € “vestido” pela justiga sobrenatural, pela inocéncia e pela imortalidade, uma vez que 6 essa veste Ihe confere a sua dignidade e torn visfvel aqui- Toa que Deus 0 destinou através do dom da graga e da gloria, ‘A veste paradisfaca torna compreensfvel ndo s6 que assim se- ‘a, mas também que, precisamente como a veste, a justia, & ‘nocéncia ea imortaidade the devem ser dadas a fim de o tor- narem completo. E,enfim, esta tltima verdade ainda: quer di zer que, tal como a veste vela © corpo, assim também em ‘Adio a graga sobrenatural recobre 0 que, na natureza aban- , Rm. 5, 12). a natueza humana foi cor rompida e sem o socorto da graga tomourse absolutamente incapaz de fazer o bem. Mas Se se perguntar agora 0 que € 4 natureza que foi corrompida, a resposta no € facil. Ado fot com efeito criado na graga ¢ sta natureza est, potato, desde o inicio, tal como a sua nudez, revestida pelos dons di vino. Depois do pecado, o homem, uma vez que abandonou Deus, foi abandonado asi préprio e deixado tnteiramente meré da sua natureza,E todavia, a pera da graga no dei simplesmente aparecer a natureza antes da graga — que nos 6 de resto, desconhecida —, mas somente urna hatureza con romp (in deterus commutata) que resulta da perda dara a. Com a subtracgio da grag vem, por isso, uz uma {ureza original que jf no o &, porque original & 60 peealo, da qual ela se torn robeto. 'Nio & por acaso que, no seu comenttio& Suma Teoldgica ‘de Toms, Caitano (Tommaso de Vio) 0 subtilteslogo que 4 Tgreja Catlica opte a Lutero em 1518, tena ido de recor. era uma comparagio com a mide para tomar compreen- vel este paradoxo. A diferenga que passa entre uma suposta Nudes 8 ee sa ys a Sc vg See ee es er eee ee eens ‘Pessoa nua € uma pessoa desnudada (expoliara). A analogia é ‘aqui esclarecedora ndo s6 quanto natureza, mas também ren ‘tratégia teolégica que liga obstinadamente veste ¢ graga, na~ ee meet, eee ee (eee cr enmece tone oer eee: See ee a ee ae eer eee a eee rere sce oneree rompida, 11.A Biblia no di sea de que maneira fr que Adio Eva antes do pecado no podlan vera sua nudes po esta esta 0- Pera por uma vst Je grag, A dica colt certs 6 10 0- tnego Adi e Eva estavam muse nfo experimentavam verg0- the ex a aes eta arn s,s 0 txperimentavam vergonha), Depois da queda, seem, em cosa msn de coin cm fn figuin, A tanpesoo do inanamento diving impli, or tanto, pasagem de un ae se vergonha uma ner (te deve ser eobena, ‘A nosalgia do una nudez sem vergona, a idea de que saul q's perde com o pecao fol x posibliade dese tala sem be corn, olan a emergir com forganos Evan: id Giorgio Agamben gelhos © nos outros textos extracanénicos (que continuam sem rario a ser definidos como apéerifos, isto €, ocultos), Assim, lése no Evangelho de Tomé: «Os discipulos pergun. taram-Ihe: “Quando te revelaris, quando te veremos?” Jesus disse: “Quando vos despides sem vergonha, quando trardes 4s Vestes e a8 calcardes Sob os Vossos pés como eriangas, en ao verso filho do deus vivo endo tereis temor"» 'Natradigdo da comunidade crsti dos primeiros dois séeu- 40s, tnica ocasifo em que se podria estar nu sem vergonha 2 do sto baptismal, que ndo se aplicava habitualmente & que os progenitores envergam no momento da expulsdo do Paraiso, Sio por isso substtuidas a seguir ao baptismo por uma vests branca de linho. Mas o aspectodecisivo é que no rito baptismal seja precisamente a nudez adimica sem vergonha que se evo- <8 como simbolo e penhor da redengéo. E tal € « nudez cuja nostalgia, na representago do felcrio de Santo Isdoro, Eva experiment, rejitando as vests que Deus a obriza a envergar. 12, «Como eriangas»: a nudez infantil como paradigma da ‘mudez sem vergonha é um motivo Bastante antigo, no s6 em Nudes 9 textos gndstcos como o Evangelho de Tomé, mas também em ‘documentos juridicos e erstios. Embora a doutrina da propags- ‘glo do pecado original através da geragio implicasse a exclusio dda inocéncia infantil (¢ daqui — como vimos — a pritica do ‘baptismo dos recém-nascidos),o facto de as criangas ndo expe- ‘rimentarem vergonha da sua nudez é muitas vezes aproximado na tradicdo crit da inocéncia paradisaca, «Quando as eseritu- ras dizem “estavam os dois nus ¢ no experimentavam vergo- tha’, isso significa», lemos num texto sirfaco do século V, «que ro se davam conta da sua nudez como sucede com as crian- {gas». Embora marcadas pelo pecado original, as criangas, en- ‘quanto nio véem a sua nudez, permanecem numa espécie de Jimbo, no conhecem a vergonha que sanciona, segundo Agos- tinho, © aparecimento da libido. ‘Atal se deve 0 uso, atestado — ainda que nio de maneira ‘exclusiva — pelas fontes ainda até ao século xvi, de reservar ‘40s pueri o canto durante as fungBes religiosas, como se a voz banca fosse portadora, em contraste com as voces mutatae, ‘da marca da inocéncia pré-lapséria. E céindida, branca, a ves- te de linho que o baptizado recebe depois de ter deposto as vestes que so simbolo do pecado e da morte — «Toda bran- cca», esereve Jersnimo, «porque nio tem consigo sinais de ‘morte, para que assim ao sair do baptismo, possamos cingir os rins na verdade e cobrir toda a vengonha dos pecados anterio- res», Mas candida, 6 em Quintiliano, & também um atributo dda voz (ainda que nio se refira decerto & vor das criancas).. Dagui, na hist6ria da musica sacra, a tentativa de garantir a persisténcia da voz infantil através da prtica da castrago dos ‘Pueri cantores antes da puberdade.A vor branca éa marca ci- fada da nostalgia pela inocéncia edénica perdida — isto é por alguma coisa da qual, como da nudes. pré-lapséria, jé nada sa- bbemos. 13. A persisténcia das categoria teolégicas onde menos ¢s- perarfamos encontr-las tem um claro exemplo em Sartre. No ” Giorgio Agamben capitulo de O Ser € 0 Nada dedicado 3s relagbes com 0 outro, Sarre ocupa-se da nudez a propdsito da obscenidade e do se. ism. F fico em termos que lembram de to pert as catego. riasagostiianas, que, sea heranga teolégica de que se entree ce 0 nosso vocabulirio da corporeidade no fosse suficiente para a explcar, poderfamos pensar que essa proximidade seria intencional O desejo ¢ antes do mas, para Sartre, uma estratégia dest nada a fazer aparecer no corpo do outro a «carne» (chair). O aque impede esta , imagem ou intengio pura. No acto da inte- lecedo, a imagem esti perfeitamente nua e — escreve Avice- nna — ‘«e tomar-se-ia nua, se 0 niio estivesse j4, porque @ facukade conemplaiva x dese de modo a que esha alecedo material nela permanega.» O conhecimento perfeito €contemplagio numa nudez de uma nudez. Num P € desenvolvida posteriormente num sentido que faz. da ima- ‘gem, identificada com a wesséncia nua», qualquer coisa como ‘© meio puro e absoluto do conhecimento. «A imagem, expli- ceaele, «é uma emanagdo simples e formal, que transfunde na sua totaidade a esséncia nua, tal como a considera o metafisi- co ...]- uma vida [vita quaedam}, que podes conceber como ‘uma coisa que comega a dilatar-se e a tremer [intumescere et bullire| em sie por si mesma, mas sem pensar a0 mesmo tem- po o seu expandir-se fora (necdum cointellecta ebullitione)>. Na terminologia de Eckhart, bulltio indica o tremor ou a ten- fo interna do objecto na mente de Deus ou do homem (ens ‘cognitivum), enquanto ebulltio significa a condigo do objec- to real, fora da mente (ens extra animam). A imagem, enquan- to exprime o ser nu, é um meio perfeito entre o objecto na men- te ea coisa real e, como ta, no & um simples objecto légico nem um ente real: € qualquer coisa de vivo («uma vida»), & 0 ‘emor da coisa no meio da sua cognoscibilidade, e 0 frémito fem que se da conhecer. «As formas que existem na matéria», escreve um diseipulo de Eckhart, «tremem incessantemente [continue tremant), como num estreito mar em ebuliglo [tan- quam in eurippo, hoc est in ebullitione| (...). Por isso nada de certo nem de estivel se pode dele conceber.» 1, isto € 0 tremor que 0 toma cognosefvel, mas que se mantém, em si, ina- preensivel. Daqui o fascinio muito especial que as imagens exercem sobre a mente humana. E precisamente porque a imagem no é a coisa, mas a sua cognoscibilidade (a sua nu- Nude? ” 4e2), nfo exprime nem significa a coisa; e, todavia nam dda.em que nfo é mais do que 0 doar-se da coisa a0 conh mento, 0 seu despojar-se das vestes que a cobrem, a nudez | ‘do € diferente da coisa, a coisa mesma. 19 Benjamin levou a cabo uma tentativa de pensar a nudez ra sua complexidade teol6gica c, simultaneamente, if mais Tonge do que ela. Ao aproximar-se do final do ensaio sobre as | AfindadesElecivas, a prop6sito do personagem de Ottilia em que via uma figura da mulher que amava nesse momen- to, Jula Cohn), interroga-se sobre a telagio entre véu e,vela- “doy aparéncia e esséncia na beleza. Na beleza, 0 véu € 0 vela~ do, invéluero e o seu objecto esto ligados por uma relaga0 hevessiria que Benjamin define como «segredo» (Geheim- nis). Belo, por outras palavras, 0 objecto ao qual o véu é es- Sencial. Que Benjamin esté consciente da espessura teol6gica desta tese, que liga irrevogavelmente 0 véu e 0 velado, é sU- ‘gerido pelo facto de a reportar « antigufssima ideia» segun- do a qual no desvelamento o velado se transforma, pois s6 ‘sob invélucto permanece «igual asi proprio». Por isso a be- leza 6, na sua esséncia, indesvelavel: J. Se s6 0 belo, ‘enada fora dele, pode exist essencialmente velado e perma- necendo velado,, ent € no segredo que esté.o fundamento di- cia, nela éprecisamente isto: nl0 0 Jnv6lucro supérfiuo da coisa em si, mas 0 necessirio das co sos para nds. Este véu € divinamente necessério em determi hados tempos, tal como é divinamenteestabelecido que, des- ‘Velado fora de tempo, se voatiliza em nada esse Inaparente, ‘com 0 qual a revelagdo dissolve 0s segredos.» Em contrapartida, precisamente no que se refere ao ser hu- mano e 8 sua mudez,esta lei que, na beleza, une inseparavel- mente véu e velado Talla de moda inesperado. Devido 2 uni- dade que nela o véu ¢ © Yelado formam, esereve Benjamin, 100 Giorgio Agamben lidade da nudez e da vest: na arte nos fenximenos da natu- reza nua. «Quanto mais claramente, pelo contrro, se expr ‘me esta dualidade, para se intensificar ao maximo no set = ‘mano, mais evidente se toma que, na nudez sem véus, 0 essencialmente belo desaparece e, no corpo nu do homem aleangado uma obra para al Jo 0 produto: w obra do eriador ‘No corpo humano — e, em particular, no romance, em Or 4 lia gue €o paradigm desta aparéncia pura ~ abel po isso, enquanto as obras da arte da na tureza vale o principio da indesvelabilidade, no corpo vivo afirma-se, implacdvel, 0 principio oposo, segundo’ © qual ula de moral é ndesvelvel». Nio 8, portant, a poss Tae de ser destudada condena a beleza humana & aparén- €ia, como a desvelabilidade consi de ceo modo 2 sua maa cifada: no corpo humano, a beleza € essence inf nliamente wdsveldvel» — pode ser sempre exbida como me ‘a apartnca. HS, todavia um limit. Para além do qual no se nconza uma esséncia que nfo poe er postrionmente des Yelada nem a natura lapsa, mas oppo ve, a propria ape FEncia, qe jf no aparencia de nad, Este esiduoindelvel | deaparéncia, na qual nada aparece, esta veste, que jd nenhum | corpo pode envergar € a midez humana. Ela o que rest, de Pols de retirado © véu & belezaE sublime, porque como, se- undo Kant, aimpossibiidade de apresetarsensivelmentea cia invete,em certo pont apesentago de ord Superior em du por asim dizer, a propria apresentag a ser spresentada: deste modo, na nde sem véus, aparéneia acede ela préprin&aparéncia e mostase, asim, inintamen. te inaparent, infinitamente desprovda de segredo, Por tas palawas, a aarénca € sublime enquanto exbe a sua vac Aide ,nesaexibio, dena acontecero naparenc. or iso, no final densi, éprecisamene aparéncia que € confada «a experana mais extra © 0 principio, segundo © ‘ual abou querer aaparncia dobem,ecfrea sua Unica Nudez 101 ‘cepeio». Se a beleza era, no seu {ntimo, segredo, isto € relagao nocesséria de aparéncia e de esséncia, véu e velado, aqui a apa- réncia desfaz-se desse vinculo e brilha por um instante por si 6 ‘como «aparéncia do hem». A luz de que esplende €, por isso, ‘opaca, como s6 nos 6 dado encontré-la em certos textos gndsti- ‘0s: oj invlucro necessrio ¢ indesvelivel da beleza, & ag0- ra a aparénciacna medida em que nada aparece através dela. © lugar em que esta inaparéncia, esta sublime auséncia de se- _gredo da nudez humana se marca de modo eminente, 6 0 roto. 20, Entre o fim dos anos 20 eo inicio dos anos 30, Benjamin ligou-se a um grupo de amigas muito sedutoras, — entre as quais Gert Wissing, Olga Parem e Eva Hermann — que via te- rem em comum uma mesma relagdo especial com a aparéncia, [Nos didrios mantidos na Cote d'Azur entre Maio e Junho de 1931, procura descrever essa relagio, associando-a ao tema da aparéncia que enfrentara anos antes no ensaio sobre o romance de Goethe. «A mulher do Speyer», escreve Benjamin, «trans- rmitiu-me estas surpreendentes palavra da Eva Hermann, nos seus dias de depresso mais profunda: “Se jé sou infeliz, nem ‘por isso tenho de sair com uma cara cheia de rugas”. Esta frase fez-me compreender muitas coisas, ¢ em primeiro lugar que © 102 Giorgio Agamben contacto peifrco que nos titimos tempos tive com esas pes- Sous — 4 Gert, Eva Hermann, ete. apenas um eco fraco ¢ tdi de uma das expriéncis fundamentais da minha vida, ada aparécia [Schein] Fale isto ontem com o Speyer que pelo su lado também tom reflect sobre ess mesins Pes Soase fez a curiosa observaco de que no tem qualquer snt- deo da honra ou, ants, que 0 seu ego de hon é dizer tudo Obseevago muito josta e que mostra como ¢profunda a obi. za que sentem em lao &aparécia. Porque o seu “dizer to” tende antes do mais a anlar 0 que é dito ou, melhor, tomo, depois de anlado, um object: 6 enguanto sparen {scheinhaf isso se toma assimivel para elas.» Poderia definirse como «nilismo da beleza» esta utitude, comum a muitas mulheres belas, que consste em reduzrem sua beleza a aparéncia pura, e em exibirem a seguir com uma espécic de tristeza desenganada, essa aparéncia,desmentindo obstinadamente qualquer ideia de que a belera poss sini car sea que our coisa for alm desi propria, Mas ¢precist- mente aausénca de ilsbes sobre si propria ner sem véus due beleza alcanga deste modo, qu the forece sua strae- ¢0 mais temivel. Este desencantamento da beleza, est niis- ‘mo especial ange o seu esto extremo nas maneuins e nas ‘modelos, que aprendem antes do mais anlar no se oso to «daa expressio, de mancira a que este se tome puro valor de ‘exposigo e adguira, por isso, um fascino particule 21. Na nossa cultura, ayelagorosto/eorpo é marcada por uma assimetria fundamental, que quer que 0 rosto se mante- nha as mis das vezes nu, enquanto o coepo esté por norma co- bert. A esta assimetria coresponde um primado da eabes que Se exprime das mais variadas maneras, mas que perma nece mais ou menos constante em todos os dominios, da pol tica (na qual 0 titular do poder se chama capo) & religito (a 4 Que tno pode sgniiar cae como acer (V7). Nudes 103 ‘metifora cefélica de Cristo em Paulo), da arte (na qual se po- de representar acabega sem corpo — 0 retrato —, mas no — ‘como é evidente no «nu» — o corpo sem cabeca) 2 vida quo- tidiana, na qual o rosto é por exceléncia o lugar da expresso, Tal parece confirmado ainda pelo facto de, enquanto as outras cespécies animais apresentam muitas vezes no corpo os signos texpressivos mais vivos (os ocelos da pele do leopardo, as co- res flamejantes das partes sexuais do mandi, mas também as ‘sas da borboleta e a plumagem do pavio), 0 corpo humano ser singularmente desprovido de tragos expressivos. Esta supremacia expressiva do rosto tem a sua confirmaciio ¢, simultaneamente ralver seja por es- ‘8 razdo que a eivindicagio da nudez parece pr acima de tu- do em causa o primado do rosto. Que a nudez de um corpo belo possa eclipsar ou tomar invisivel 0 rosto, di-lo clara- mente 0 Cérmides; dilogo que Platiio consagra a beleza. “© (Clrmides, o jovem que dé o nome ao didlogo, tem um belo rosto mas, diz um dos interlocutores, 0 seu corpo & t30 belo ‘que, «se ele consentisse em despir-s crerieis que ndo tinha rosto» (Car. 154d) — que era literalmente «sem rosto» (apro- Sopos). A ideia de que 0 corpo nu possa contestar 0 primado do rosto para por-se a si proprio como rosto, esté implicita ‘nas respostas das mulheres nos processos de feiticaria que, in- terrogadas sobre o porqué de beijarem no Sabath 0 anus de Satans, se defendiam dizendo que nele havia também um rosto, De modo semelhante, enquanto, nos primeiros tempos da fotografia erética, as modelos deviam ostentar no rosto ‘uma expresso romantica e sonhadora, como se a objectiva as tivesse surpreendido, sem ser vista, na intimidade do seu bou- doir, com o passar do tempo este provedimento inverte-se ¢ 4 tinica incumbéncia do rosto toma-se a de exprimir a despu- ddorada consciéncia da exposigio ao olhar do corpo nuO des ont ‘no rubor incontrotivel >. 104 Giorgio Agamben _plice da nudez, olhando o objectivo ou atraindo o espectador, «4éa-ver uma auséneia de segredo, exprime somente um dar- -se ver, uma pura exposigio, 22. Uma miniatura num manuscrito da Clavis physicae de ‘Hondrio de Autun’ mostra um personagem (trata-setalvez do autor) que tem na mo uma faixa onde se Ié: «Involucrum re- ‘rum petit is sib fer claruno», «este procura do invéluero das ‘coisas chegar & claridade»., Poder-se-ia definir « nudez como © invélucro no ponto em que se toma claro que no & possi- vel chegar dele &-claridade. E neste sentido que se deve en- tender a maxima goetheana, segundo a qual a beleza endo po= de nunca trazer-se & claridade a si mesma». $6 porque ermanece até ao sitimo «invélucto>, 6 porque se mantém ‘em sentido literal «inexplicavel», pode dizer-se bela a apa- réncia que na nude7 alcanga o seu estidio supremo. Que nio se possa chegar a claridade da nudez nem da beleza nio sig- nifiea, todavia, que haja, nelas, um segredo que nao conse- _guimos trazer i claridade. Uma aparéncia assim seria miste- rosa mas, precisamente por isso, ndo seria invélucro, porque se poderia sempre continuar a procurar o segredo que nela se ‘esconde. No invlucro inexplicével, pelo contrrioe nao ha segredo algum e, desnudado, ele mostra-se aparéneia pura. 0 belo rosto, que exibe sorrindo a nudez, diz apenas: «Queres ver o:meu segredo? Queres chegar & claridade do meu invé- Iucro? Entao otha isto, se de tal fores capaz,olha esta absolu- ta, imperdosivel auséncia de segredo!» O matema da nudez é, neste sentido, simplesmente: haecce!, xno hérnada anid ser isto». E, todavia, precisamente este desencantamento da be- Jeza na nudez, esta sublime e miseravel exibigio da aparéneia para além de todo o mistério e toda a significagio,a desarmar ‘de certo modo 0 dispositive teol6gico para deixar ver. para além do prestigio da graga e das falsas promessas da nature- ‘za cortompida, o simples e inaparente corpo humano. A de- sactivago do dispositivo retroage, assim, tanto sobre a natu Nudez 105 era como sobre a graga, tanto sobre a nudez. como sobre a ‘este, libertando-as da sua marca teol6gica. Este simples mo- rar da aparéncia na auséncia de segredo € 0 seu tremor espe- cial — a nudez, que, como uma voz branca, nada significa e, precisamente por isso, nos trespassa. 0 Compo Glorioso, 1.0 problema do corpo glorioso, isto &, da natureza e dos cearacteres — e, mais geralmente, da vida — do corpo dos res- surrectos no Paraiso & 0 capitulo supremo da teologia, como tal classificado pela tratadistica na rubrica de fine ultimo. To= davia, precisamente enquanto se referia as coisas diltimas, quando a cGria romana para assinar 0 seu compromisso com ‘a modernidade, decidiu fechar 0 balc3o da escatologia, foi posto apressadamente de parte ou, antes, congelado como, se- ‘io obsoleto, pelo menos sem divida incémodo. Mas en- quanto o dogma da ressurreigdo da carne continuar a ser par- te essencial da fé crista, esta pendéncia ndo pode deixar de se tevelar contraditéria. Nas paginas que se seguem, seré preci ‘samente 0 retomar deste tema teoldgico congelado a permitir- nos por um problema igualmente iniludivel: 0 do estatuto &tico e politico da vida corpérea (o corpo dos ressurrectos € ‘numérica e materialmente o mesmo que tinham durante a sua cexisténcia terrena). O que significa que nos serviremos do corpo glorioso como paradigma para pensar as figuras © os tusos possiveis do corpo humano enquanto tal 2.0 primeiro problema que os tedlogos devem enfrentar é © da identidade do corpo dos ressurrectos, Posto que a alma e real, esté fora de todo 0 uso posstvel. E nio hi, talvez, nada de mais enigmatico do que um pénis glorioso, nada mais espectral do que uma vagina puramente laudat6ria,

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