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CADERNOS DO ICHF
Serie Estudos e Pesquisas
ISSN l5l8-8515
n° 81 » agosto de 2002
Conselho Editorial
Prof* Cecilia Maria Barças Coimbra (ICI-IF/UFF)
Prof. Emilio Maciel Eigenheer (ICHF/UFF)
Prof. Gisálio Cerqueira Filho (ICHF/UFF)
Prof. Luiz Carlos Fridman (ICHF/UFF)
Prof. Luíz Carlos Soares (ICHF/UFF)
Prof' Simoni Lahud Guedes (ICHF/UFFÕ
Prof. Charles Pessanha (IFCS/UFR])
Prof. Caio Navarro de Toledo (IFCH/UNICAMP)
Prof' Lena Medeiros de Menezes (IFCH/UERJ)
Prof. Marcio Tavares do Amaral (ECO/UFRJ)
Prof. Mario Antônio de Lacerda Guerreiro (IFCS/UFRI)
Prof' Silvia Leser de Mello (Instituto de Psicologia/USP)
Secretário-Executivo: Marcelo Guerra
Impressão: Mecanografia do ICI-IF
Projeto Gráfico: laboratório de Criação da UFF
CADERNOS DO ICHF
Rua Visc. do Rio Branco, s/n°
Campus do Gragoatá - Bloco O - Sala 520
24210350 - Nâzezóâ . RJ . Brasil
Tel: (021) 2618 3386 / Fax: (021) 2719 8012
Eletrônico: boletim@vm.uff.br
Solicita-se permuta
Caderno: do ICHF é uma publicação do Imtlruto de Ciências e Filosofia da UFF para diwlgaçdo dos tortos de tmbaho deseus
professores e alunos. Compõe-se de quatro séries: I) Estudos e Pesquisas; 2) Monogmfias; 3) Iniciação Cienrífiwã 4) Anais.
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suàâzáaio
CONCLUSÃO ....................................................................... 7
BIBLIOGRAFIA .....................................................................
A êâfasfosâ stat DE MARILENA cê-IAUI E A Hêsroascêoaos
os Eseâsêosâz uma DISCUSSÃO
Introdução
" Pro tessor do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da Universidade Federal
Fluminense.
Anote›se aqui brevemente que, a rigor, esta não e a primeira vez que M. Chaui
se manifesta sobre o tema. Se examinarmos um livro como Da realidade sem mistérios ao
mistério do mundo, encontraremos em seu terceiro ensaio (“Experiência do pensamento"),
dedicado precisamente a Merleau-Pontv, uma penetrante análise sobre o procedimento
do intérprete que é movido pelo desejo de coincidir internamente com o clássico.
Suprimindo a alteridade entre o autor e quem o lê, tal desejo finda por perder de vista
o fato de que a multiplicidade das interpretações, longe de ser um defeito, é mesmo
condição e riqueza de um “livro interpelante”. (CI-IAUÍ, 1981: 192203)
Voltando à Nervura do real, após percorrer sua mencionada Introdução, o leitor
se deparará com uma densa obra construida em diferentes niveis de interlocução
com o pensamento de Espinosa. Dois deles se destacam em particular (não sendo
necessariamente seqüenciais, pois se interpenetram ao longo do texto). Resumindo
muito um extenso trajeto, diríamos que o primeiro consiste na apresentação de uma
8 CADERNOS po ICHF
A Naxvum Do R1-:zu DE MAMLENA C1-:Aut E A Hxsrorucrpàne...
imagem equivocada, quase uma caricatura, que se formou acerca do filósofo, que
teve uma de suas fontes principais no verbete Spinoza, do Dicionário histórico e critico
de Pierre Bayle. M. Chaui mostra como diversas criticas endereçadas a Espinosa têm
sua origem nesta imagem distorcida, que se revela carente de fundamento quando
se procede à exegese textual da própria obra do filósofo. ]á o segundo grande campo
temático abordado pela autora consiste na apresentação de um histórico de alguns
dos conceitos centrais do pensamento espinosano - como os de substância, causa de
si, modo -, apresentação que vem acompanhada da análise minuciosa das profundas
modificações a eles imprimidas pelo próprio filósofo.
E como se aprende filosofia em todos estes momentos! E realmente
impressionante a capacidade de M. Chaui recuperar a história de conceitos centrais
da filosofia e mostrar de forma muito precisa tanto a sua gênese como as sucessivas
transformações sofridas por eles ao longo do tempo. Fato oportunamente destacado
pelo professor Bento Prado ]r. em sua apresentação de A nervura do real, quando
ele menciona a “desejada coroação filosófica da historiografia”, momento em que
a história da filosofia se constitui no exercício mesmo da própria filosofia.
Todavia, e este é precisamente o núcleo temático que desejamos aprofundar
neste artigo, em ambos os niveis de interlocução com o pensamento espinosano
(seja na desmontagem da imagem equivocada acerca do filósofo, seja no histórico
e na análise de alguns de seus conceitos centrais) aquelas citadas considerações
introdutórias parecem não ter desempenhado um papel mais substantivo em A
nervura do real. Em outras palavras: o tema da historicidade do autor clássico, que
envolve a diferença de suas questões face as de seu leitor contemporâneo, comparece
apenas na Introdução do trabalho, mas não no seu desenvolvimento. Assim, o Espinosa
que emerge do texto de M. Chauí é afinal apresentado - ainda que isto não chegue
a ser dito com todas as letras - como o filósofo que efetivamente apresentou respostas
verdadeiras, que se sustentariam em sua íntegra mesmo nos dias de hoje. Como que
a subscrever a importante carta endereçada a Albert Burgh (citada em mais de um
momento do texto), onde Espinosa afirma: “Não pretendo haver encontrado a
melhor filosofia, mas sei que conheço a verdadeira”. (apud NR: 600)*
E digno de nota, também, o fato de que a referida história de alguns conceitos
centrais da filosofia se encerra com o próprio Espinosa, não sendo feita nenhuma
menção ao devir posterior de tais conceitos (que mostrasse, por exemplo, uma
eventual alteração sofrida por eles que levasse, no limite, a uma retificação do
valor de verdade que havia sido presumido pelo filósofo).
Ora, poderiamos exclamar, é claro que não cabia analisar o devir posterior
dos conceitos: o objeto de A newura do real simplesmente não é este! Ponderação
muito legítima, sem dúvida, mas que deixa sem resposta o fato de que, ao longo
de todo texto, são feitas afirmações que ultrapassam em muito o âmbito de uma
1 Semp re que possivel, as citações do P ro P rio EsP inosa foram feitas tal como Podem ser localizadas emA
nzrvura do reaL Apenas em dois momentos isto não ocorreu (cf. página 17 deste artigo), quando foi
preciso citar um pouoo mais extensamente o próprio filósofo, em razão do argumento aqui apresentado.
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A NERVURA no REAL DE MAMLENA CHAUÍ E A Hrsromcrmoe...
12 C.›^¬DEaNos Do ICI-IF
A Nsxvuxa Do REAL DE MARILENA C1-|AUi E A Hisroaicinàns...
1
Reierindo-se a sexualidade humana, aparentemente tão próxima de uma determinação natural, Foucault
afirma: “A sexualidade e' o nome que se pode dar a um dispositivo histórico (...]". (FOUCAULT, 1993:
100) Lembremos também que, embora não o cite aqui, Foucault foi um leitor entusiasmado de François
Jacob, biólogo e prêmio Nobel de Fisiologia, que no seuA lógica da vida discorre sobre a diminuição do
rigor da hereditariedade nos mamíferos avançados, abrindo espaço para a interveniência de fatores
outros que não o proprio programa genético (é “o papel crescente do adquirido"). (IACOB, 1983: 315)
Só que enquanto Foucault parece preferir enfatizar a ocupação deste espaço potencial por dispositivos
de coerção propriamente sociais, F. Jacob, talvez mais otimista, nos fala sobre “o poder [dos mamíferos
avançados] de se liberar da aderência dos objetos, de interpor uma espécie de filtro entre o organismo
e o meio, de simbolizar”. (JACOB, 1983: 317)
abrange não só a guerra entre tais Estados, como também práticas de extrema
violência que ocorrem no interior de uma sociedade determinada: indivíduos que
delinqüem tendo em vista uma apropriação patrimonial, grupos étnicos que
espancam até a morte aqueles que identificam como seus rivais, ou, mais
radicalmente, adolescentes que fuzilam por motivos aparentemente banais seus
próprios colegas. Se nos situássemos numa perspectiva próxima àquela sustentada
pelos que afirmam que uma natureza violenta estaria congenitamente presente
em alguns homens, tais fenómenos seriam interpretados por uma ótica que admite
analogia com o comportamento de outras espécies. Dentro desta ótica (defendida
contemporaneamente por antropólogos como Richard V/rangham e Dale Peterson),
em toda sociedade existem individuos - naturezas singulares e irrepetiveis - que são
mais violentos do que outros, verdade incontornável que poderia ser atestada
inclusive pelas pesquisas etológicas sobre a agressividade entre os primatas. Se
desejássemos retornar agora a um registro espinosano, poderiamos dizer, quanto
aos humanos, que tanto os mais violentos como os de natureza mais pacífica estão
em sua luta para perseverar no ser.
Mas será que esta é de fato uma aproximação satisfatória para a questão?
Diriamos que, pelo menos no exemplo acima mencionado, seria preciso tecer
uma série de considerações suplementares sobre quem são os homens que se
dedicam a práticas de guerra. Haveria que se pesquisar se é de sua natureza proceder
desta maneira, assim como as abelhas fazem guerra entre si, ou os pombos têm
ciúmes. Se fizéssemos tal pesquisa, chegariamos a alguns temas relevantes, que
vem sendo discutidas por outras correntes das Ciências Sociais, e que dizem
respeito, por exemplo, ao número de horas que estes homens estão expostos a
veiculos de comunicação onde são maciçamente divulgadas cenas de violência.
Indo mais longe, chegariamos mesmo na existência de uma indústria de
armamentos que lida com problemas de superprodução de suas mercadorias e
necessita de um poderoso sistema de incentivos para que os individuos adquiram
armas, donde o surgimento de categorias de manipulação que engendram uma
cultura que associa virilidade à violência. (ZALUAR, 1994: 9-12) Em suma:
determinar um conteúdo para a natureza (ou essência) de um ser é uma tarefa
dificil que demanda considerações sobre as relações objetivas e subjetivas em que
os homens estão postos.
Questões extemporãneas face à historicidade do próprio Espinosa? Cobrança
de que um filósofo do século XVII discuta aquilo que é um tema nosso, do século
XXI Tais ponderações fariam sentido caso se demarcasse, em A newura do real, a
descontinuidade entre o horizonte conceitual do filósofo e o nosso próprio
horizonte. Como isso não é feito, o texto finda por apresentar como exemplares
aquelas tomadas de posição filosóficas que emergiram num contexto bastante
determinado, ficando inquestionada a idéia de que ainda hoje poderiamos, por
exemplo, responder a um Blijenbergh nos mesmos termos e com os mesmos
supostos do próprio Espinosa. Convém, portanto, refletir sobre as conseqüências
de uma assunção integral, hoje, da integra de seu discurso.
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A Nsxvuxa no REAL DE MARILENA C1‹1AuI E A HisToR1cioADE...
do primeiro face à segunda. Por outro lado, a autora nos mostra que seria um erro
grave de interpretação entender o Deus sive natura como indicando identidade
absoluta entre Deus e a Natureza, pois assim procedendo perderiamos a diferença
ontológica que existe entre a substância infinita (a Natureza Naturante, na expressão
do filósofo) e os seus múltiplos efeitos (modos infinitos e finitos, Natureza
Naturada). Esclarecida tal diferença, permanece verdadeiro que, para Espinosa, a
natureza de cada coisa finita e uma singularidade perfeita, completa, e este
entendimento se deve à concepção de que todas as coisas singulares são produzidas
por Deus, como esclarece a análise de M. Chaui:
Afirrnar que as coisas são produzidas com suma perfeição porque seguem
necessariamente da natureza perfeitissima de Deus, explica Espinosa,
não significa irnputar qualquer imperfeição a Deus, mas, pelo contrário,
é sua própria perfeição que nos obriga a afirmar a necessidade e perfeição
do que produz. (NR: 910)
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A Naxvum oo Rau. os MAiu1.ExA C1~w:i E A aisroazczcarê...
Todavia, passagens como esta - que abrem um caminho mais “laico” para a
visualização dos assuntos humanos ~ são escassas no texto, que prefere investir
longa e pormenorizadamente na idéia de que “[...] Deus é causa próxima de todas
as coisas" (NR: 929), afirmação da onipresença divina levada às últimas
conseqüências. E mesmo nas minoritárias passagens onde se reconhece que a
regência da ação dos homens, sua maneira de ser e de existir, se deve em boa parte
a uma causalidade engendrada pelos próprios homens, isto é feito de uma maneira
tão genérica que acaba por não oferecer subsídios para uma discussão mais
substantiva sobre os assuntos mundanos. E certo que este é o primeiro volume de
A nervura do real, a ser complementado por um segundo. Possivelmente, neste
segundo volume serão expostos com maior vagar os aspectos referentes à ação
humana, que constitui nexos causais possuidores de uma lógica singular. De
qualquer forma, mesmo que esta possibilidade se cumpra, existe aqui uma
ambigüidade que gostaríamos de ver esclarecida.
Também aqui um cotejo com alguns filósofos posteriores seria proveitoso,
pois devemos a eles todo um esforço de pensamento que visa mostrar que é possivel
uma aproximação aos fenómenos mundanos que não recorra à causalidade divina.
Diríamos mesmo que alguns dos resultados mais singulares do pensamento contemporâneo
foram obtidos quando se colocou em suspenso a existência de uma causalidade divina e
tentou-se pensar os ƒenômenos mundanos a partir de uma outra ótica. Esta suspensão,
que para Espinosa se assemelharia talvez a um desconhecimento (a ser combatido),
pode ser vista hoje como um legítimo momento de uma investigação. Não que se
18 CADERNOS Do ICHF
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A NERVURA Do Raw. os MARLLENA CHAUI E A Hisromcipwe...
[...] o homem forte considera antes de mais nada que tudo resulta da
necessidade da natureza divina e, por conseguinte, que tudo o que pensa
ser insuportável e mau, além disso, tudo o que parece ímpio, horrendo,
injusto e torpe, provem do fato de conceber as coisas de uma maneira
perturbada. mutilada e confusa. (ESPINOSA, 198321: 267, grifos nossos)
que poderia ser nomeado como uma verdadeira onipresença deste Deus, ainda
que um Deus despersonalizado, para explicar os fenômenos mundanos.
Enfim, como um último exemplo da assimetria entre o pensamento de Espinosa
e alguns temas pesquisados posteriormente, mencione-se a afirmação de que “'é
evidente que nenhuma coisa poderia, por sua própria natureza, buscar sua própria
destruição”, mas pelo contrário, busca não só conservarse em seu estado como também
alcançar um outro melhor para seu bemestar”. (NR: 922) Ocorre que se levarmos
em conta uma ampla bibliografia do século XX sobre o tema da autoconservação do
ser, teremos dificuldades em sustentar sem maiores ponderações a citada afirmação.
Pense-se na obra de S. Freud e de seus seguidores que, a partir de sua experiência
clinica, detectaram a existência de pulsões destrutivas operando amalgamadas com
as pulsões vitais. Levar em conta as advertências freudianas é particularmente oportuno
quando se sabe que, concordando-se ou discordandose delas, o fato é que foram
formuladas a partir de uma experiência simultaneamente teórica e clinica°.
No que diz respeito ao fundador da psicanálise, o que ocorreu foi que, a
partir de certo momento de seu percurso, ele se viu obrigado a admitir que,
contrariamente ao que supunha no inicio de sua clinica, não era possivel interpretar
os conflitos de seus pacientes apenas em termos de impedimentos defensivos á
manifestação das pulsões vitais. (FREUD, 1977: 71-82) Havia também o trabalho
silencioso de uma outra pulsão que não cessava de gerar efeitos; tais tendências
destrutivas não poderiam ser atribuídas apenas ã pressão de circunstâncias externas,
pois elas se manifestavam mesmo em individuos que dispunham de condições
objetivas de vida muito favoráveis. Donde a conclusao ƒreudiana de que o sujeito não
pode ser concebido apenas como uma unidade que visa a sua sobrevivência, pois a observação
de determinadas tendências psíquicas aponta claramente para pulsões destrutivas que, mesmo
camuƒladas, se manifestam na “vida clandestina dos sintomas”.
De novo aqui, ê claro que também este não é o objeto teórico de A nervura
do real. Ainda assim, contudo, a assunção integral da afirmativa espinosana de que
nenhuma coisa, por sua própria natureza, busca sua própria destruição tem
conseqüências ao nivel da própria ética a ser analisada por M. Chaui. Pois, para que tal
ética não seja hoje nomeada pelos detratores de Espinosa como sendo simplesmente
um projeto desavisado, para que não se possa dizer que “sua conseqüência era boa
se a suposição fora verdadeira”, haveria que se levar em conta considerações
como as que acabaram de ser expostas. E, ainda que o resultado final deste
procedimento fosse uma recusa, neste último exemplo, das objeções freudianas
quanto a um possível vitalismo, acompanhada de uma afirmação e reiteração da
° Não entraremos aqui no importante debate, levantado por autores como O. Deleuze e F. Guattari. que
versa sobre a insuficiente teorização freudiana acerca das injunções sociais e politicas que afetam em
profundidade o campo pulsional. De todo modo, vale lembrar que, em que pese tal ressalva, estes ultimos
autores sempre reconheceram a originalidade e a relevância da contribuição freudiana. Cf. DELEUZE SL
OUATTARI, 1976: 15 34.
Pro ferida em seu contexto próprio, esta saborosa frase do jesuíta Antônio Vieira foi convenientemente
citada em NR: 27n (trata»se da parte da obra que contém as Notas, bibliografia e índices).
20 CADERNos Do [CHF
A Nsxvum Do REAL DE MAMLENA CHAi:i E A 1-iisroazcznazs...
postura do próprio Espinosa, sem dúvida um trajeto teria sido percorrido com
beneficio para ambas as partes. lncidentalmente, vale lembrar que um dos seguidores
de Freud que mais se preocupou com a ética da psicanálise foi ]. Lacan, que chegou
a dedicar um livro inteiro de seus seminários ao assunto (tratafse do livro VII, A
ética da psicanálise), texto onde se leva em conta a vigência da pulsão de morte, não
para uma rendição a ela numa espécie de cultivo de sentimentos de autodestruição,
mas antes para incorpora-la como momento constitutivo da experiência humana
que, não podendo ser ignorado, há de ser enfrentado pelo desejo em seu devir.
Conclusão
Talvez a questão de fundo aqui subjacente diga respeito à postura mais adequada
a se ter com um autor clássico. O vigoroso trabalho de M. Chaui nos mostra com
eloqüéncia o quanto Espinosa tem a nos dizer: seu pensamento nos afeta, já não
somos mais os mesmos após lermos seus textos e o de sua brilhante intérprete. O
que se indagou ao longo do presente artigo foi apenas a conveniência de se endossar
o conjunto da filosofia espinosana em sua totalidade. Até porque mesmo aquele
pensamento mais estruturado (como é o caso de Espinosa) admite uma apropriação
de alguns de seus conceitos que não absorva outros pressupostos ali existentes, mesmo
que isto ocorra à revelia da expressa intenção original do filósofo.
Chegamos então a um ponto delicado, que merece ser retomado agora a
partir do trajeto já realizado. Por um lado, é inegável que um procedimento
interpretativo como o de M. Chaui, que opta por fazer uma imersão em profundidade
no pensamento de Espinosa, é de uma rara seriedade intelectual, principalmente se
levarmos em conta que parte significativa da produção filosófica contemporânea
adota um outro tipo de postura. Aquela que faz uma apropriação de superficie dos
filósofos, passando ligeiramente de um assunto para o outro e sem uma preocupação
mais consistente de aprofundamento dos autores sobre os quais se realiza a reflexão.
Quem aprecia este tipo de produção simplesmente não encontrará o que fazer em A
newura do real: o que se encontra ali é um trabalho muito sério de explicitação
conceitual que persegue, com grande proveito, desde a génese dos conceitos
espinosanos até sua constituição mais avançada. Por outro lado, tentou-se colocar
em evidência neste artigo algumas conseqüências, que se manifestam no próprio texto
de M. Chaui, de uma assunção integral do pensamento de Espinosa que, articulada
com a não incorporação de certos temas correlatos desenvolvidos por autores
posteriores, gera dificuldades para a aceitação de algumas de suas conclusões.
Sobre este ponto, ouçamos a palavra de um pensador bastante esquecido nos
dias de hoje, G. Canguilhem, importante epistemólogo e historiador das ciencias.
Canguilhem foi um dos autores que mais desenvolveu a idéia da relativa autonomia
dos conceitos face ao corpo teórico mais geral produzido por um dado pensador.
5ituando›se no campo das ciências da natureza e da vida, mas com uma contribuição
que certamente gera ressonâncias de vulto na filosofia, ele nos mostra que um conceito
não precisa ser visto como estando inteiramente preso ã concepção mais geral onde
inicialmente surgiu. Fato reiterado pelo comentário de um de seus estudiosos:
E, mais adiante:
5 john Searle, que não tem Espinosa como interlocutor e percorre um trajeto distinto do que se trilhou
aqui. faz considerações opor-runas sobre a dilatação de certos atributos humanos a condição de principio
cosmológico universal (SEARLE. 1998: 184-8). Cf. especialmente a polêmica com David Chalmers.
ZZ CADERNos Do [CHF
A NERVURA Do REAL DE MARILENA CHAUÍ E A HrsroarcroAD|;...
Descartes recebem uma apreciação bastante seletiva por parte de M. Chaui, que
ora aponta para o valor de alguns de seus conceitos ou, procedimento mais
freqüente, identifica a reviravolta neles operada por Espinosa. Em todos estes
casos, a autora permitiu-se enunciar, a partir de um trabalho vertical de
interpretação deste último autor, a possibilidade de um exame produtivo de suas
fontes, o que certamente não exclui a descontinuidade do resultado final face a
elas. Ora, este procedimento - que seria nomeado por um apreciador incondicional
de Aristóteles, por exemplo, como externo ao texto aristotélico, pois construido a
partir de Espinosa, autor posterior ‹ parece-nos na verdade muito legítimo, exercício
mesmo de uma atividade judicativa.
Ocorre, porém, que tal deslindamento do valor de verdade das fontes
conceituais de Espinosa não incidiu sobre o pensamento dele mesmo, que foi
assumido e validado em sua totalidade (como sendo a última palavra proferida
sobre um dado campo temático). Procurou»se fazer neste artigo uma reflexão sobre
certas conseqüências deste procedimento. Em contrapartida, uma apropriação
seletiva do pensamento de um autor clássico - mesmo que à revelia de sua intenção
expressa - talvez seja, afinal, o antídoto mais poderoso aquele desejo apontado
por Merleau-Ponty de coincidir internamente com a obra interpelante, tão
oportunamente citado pela própria autora de A newura do real. Por fim, resta
desejar que M. Chaui publique logo o segundo volume de seu igualmente
interpelante trabalho que, além de seu valor próprio, poderá trazer mais subsídios
para algumas das questões aqui discutidas.
Bibliografia
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ZALUAR. A. Condomínio do diabo. Rio de janeiro, Revan/L'FR_Í. LCP-1
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