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34º Encontro Anual da Anpocs

ST: Sociologia e Antropologia da Moral


Sociologia da Fofoca: notas sobre uma forma de narrativa do cotidiano
Autor: Pedro Paulo de Oliveira (PPGSA/UFRJ)

“Pois toda espécie de feras, aves e répteis se doma e tem sido domada
pelo gênero humano; a língua, porém nenhum dos homens é capaz de domar;
é mal incontido, carregado de veneno mortífero”.
Tiago, Capítulo 3, versículos 7,8

“Na boca de quem não presta, quem é bom não tem valor”
Folclore popular (trecho de “Lapa”, interpretada por Clementina de
Jesus)

Sociologia da Fofoca: notas sobre uma forma de narrativa do cotidiano

Por que fofocamos? Alguns psicólogos sociais especulam sobre uma


série de hipóteses no sentido de tentar explicar o fato da fofoca ser algo tão
comum na sociabilidade humana. Pode-se postular simplesmente, por
exemplo, que ela propicia vínculos entre as pessoas num determinado grupo
(DUNBAR, 1996), ou então que decorre de nossa propensão a nos comparar
socialmente com os semelhantes e aqueles que nos são próximos (WERT;
SALOVEY, 2004). Na mesma matriz disciplinar, houve quem recorresse à
velha idéia da seleção natural, segundo a qual se trata de uma estratégia
comportamental vencedora, entre outras constitutivas da natureza humana:

A inteligência social necessária para o sucesso nesse ambiente [nosso


passado pré-histórico] exigia a habilidade de prever e influenciar o

1
comportamento dos outros; e uma atenção especial nas transações
proveitosas – e muitas vezes decisivas no processo de seleção natural –
realizadas por outras pessoas. Em resumo, quem se interessava pela vida
alheia, em geral obtinha mais sucesso que os demais (MCANDREW, 2009:
39).

Distanciando-se destas perspectivas, o objetivo deste artigo é sugerir um


conjunto de postulados sociológicos que possam desvelar alguns aspectos das
fofocas1. Parto de algumas sugestões presentes na obra de Norbert Elias, mais
especificamente os insights sobre o tema que ele nos fornece em passagens
de Os estabelecidos e os Outsiders (ELIAS; SCOTSON, 2000). Além destas,
trabalho com a noção de ludicidade como elemento fundante dos jogos, tramas
e narrativas sociais (cotidianas, históricas), bem como outras inspiradas em
diversos autores para justificar a idéia de que elas podem ser tratadas como
um fenômeno social fundamental da vida cotidiana, com peculiaridades
sociológicas próprias, dentre estas aquela de servir como veículo moralizador,
de atuar como “fala falada” de preceitos morais, mesmo em bocas que sofrem
estigmas neles baseados, uma vez que eles são fundamentais para a
constituição de preconceitos e práticas de discriminação.

Norbert Elias e algumas observações sobre as fofocas

Em Os estabelecidos e os Outsiders, livro no qual expõe os resultados


de uma pesquisa empírica realizada juntamente com John Scotson, Norbert
Elias dedica um capítulo à discussão de uma temática singular. Na tentativa de

1
Trabalho aqui a fofoca como uma narrativa na qual se informa ao interlocutor sobre o
comportamento visto como “desviante” de outro agente, ausente à interação na qual este
“informe” ocorre. Pode ser narrada na forma de revelação conspiratória e/ou como petisco
preambular para desqualificação daquele(s) que é (são) alvo(s) das chacotas e outras formas
de sarcasmo que ela propicia, constituindo-se assim como uma verdadeira arma, dentro de
uma determinada rede, para o confisco do prestígio alheio, em contrapartida à elevação do
próprio status dos que acionam a boataria, uma vez que (hipocritamente ou não) expressa, no
instante em que é narrada, a adesão dos fofoqueiros aos preceitos e prescrições socialmente
sancionados de forma positiva. Estas características já apontam para a necessidade de se
pensar o regime interacional como fundamental para a emergência das relações nas quais
fofocas são narradas. É preciso distinguir as fofocas de outras modalidades de narrativas do
cotidiano, tais como os rumores, as calúnias, as difamações, os relatos de situações cômicas
e/ou embaraçosas, entre outras que podem nelas estar contidas, mas que nem sempre podem
com elas se confundir. Aparecem no texto, de forma equivalente às fofocas, os termos
“boataria” ou “mexericos”.

2
definir o que ele próprio intitulou de “uma sociogênese do preconceito”, o autor
chama a atenção para o problema dos mexericos entre os habitantes de
Winston Parva (nome fictício dado à cidade alvo do estudo), e nos fornece
valiosas indicações quanto a aspectos importantes para uma abordagem
sociológica acerca do tema das fofocas. Vale lembrar que muitos dos
postulados e asserções sobre o assunto já haviam sido aludidos em A
sociedade de Corte, livro que, segundo Chartier, “atingiu sua forma quase que
definitiva em 1933”, ainda que, por razões específicas, só tenha sido publicado
em 19692.
As fofocas não podem ser vistas como fenômenos independentes. Elas
dependem das normas e crenças coletivas e das relações e interações entre os
agentes. Elias3 não endossa a idéia de que elas tenham uma função
específica, única, exclusiva, clara e determinada; nem mesmo que elas sejam a
causa da integração do grupo, no qual são acionadas e narradas. Elas atuam
sim, entretanto, reforçando a integridade previamente sólida do grupo e, nesse
sentido, postula-se que “o grupo mais bem integrado tende a fofocar mais
livremente do que o menos integrado, e que, no primeiro caso, as fofocas das
pessoas reforçam a coesão existente” (ELIAS; SCOTSON, p. 129). Este
reforço se deve à reiteração de valores morais comuns que consolidam a base
identitária dos agentes da rede ou grupo em questão.
Há que se distinguir as “blame gossips”, que são as fofocas
depreciativas, das “pride gossips”, que tendem a celebrar e elogiar as pessoas
das quais se comenta. As primeiras reforçam a imagem negativa dos agentes
que se afastam das prescrições e valores morais e que geralmente não
pertencem ou que não são identificáveis com o grupo do qual fazem parte os
que acionam a boataria4. Quando incidem sobre os agentes do grupo (ou da
rede de interdependência) funcionam como um mecanismo de controle,
uma

2
Ver a esse respeito o prefácio de Roger Chartier para a edição francesa do livro em 1985 e
que foi acrescentado também à edição brasileira (ELIAS, 2001: 11).
3
Ao lermos A sociedade de corte e Os estabelecidos e os outsiders fica claro que os
postulados sociológicos presentes neste último livro são inteiramente da lavra “eliasiana”, daí o
fato de me referir apenas a Norbert Elias quando mencioná-los no texto.
4
Quando pertencem ao grupo, aqueles que são os alvos dos mexericos passam a sofrer
retaliações em função de estarem se afastando das normas estabelecidas e, nesse sentido, as
fofocas são o primeiro passo para um processo social que pode levar ao estigma e mesmo ao
seu isolamento dentro do grupo. No caso de se referir àqueles que não fazem parte do grupo,
as fofocas depreciativas funcionavam como forma de reiterar a identidade dos estabelecidos e
confirmar a execração pública dos outsiders.

3
vez que operam no sentido de depreciar o seu prestígio, a sua reputação frente
aos demais. Sabe-se que para Elias a idéia de prestígio ((status)) tem um
papel fundamental para a interação pessoal, sendo talvez o mais desejado bem
simbólico ao qual alguém pode aspirar dentro das redes de interdependência
nas quais ele(a) interage com os outros: “é esse medo de perda de prestígio
aos olhos dos demais, instilado sob a forma de autocompulsão, seja na forma
de vergonha, seja no senso de honra que garante a reprodução habitual da
conduta característica, e como sua condição um rigoroso controle das pulsões
em cada pessoa” (ELIAS, 1993: 213).
Estas redes, das quais nos fala o autor, podem ser bastante diferentes:
desde um grupo de amigos, ou um conjunto de parceiros comerciais, uma
família, uma instituição que reúne cientistas de uma determinada área e até
mesmo uma roda de carteado, entre outras possibilidades5. Nelas a posição e
o prestígio social do agente dependem, entre outras coisas, da imagem que o
mesmo possui junto aos demais que a integram e que com ele ali interagem.
Assim, uma fofoca depreciativa tende a funcionar como um elemento corrosivo
e desestabilizador desta imagem. Destacam-se aqui dois dos três paradoxos
que permeiam a obra do sociólogo alemão: 1) a realidade na aparência: no
caso, a imagem pessoal do agente como representação de seu valor frente aos
demais e que, em função dela, lhe atribuirão prestígio que se traduz em
importância e celebração social do mesmo, garantindo-lhe prerrogativas reais e
efetivas que se exprimem como poder em situações cruciais e decisivas em
sua dinâmica relacional com os seus pares; 2) independência na submissão: o
poder, o prestígio, o renome, enfim o status social do agente está diretamente
relacionado à sua capacidade de atender às demandas simbólicas, que são
produzidas de acordo com os valores hegemônicos e que são preponderantes

5
A idéia de redes de interdependência apresenta uma salutar flexibilidade para descrever
estes diversos formatos interacionais. A meu ver, apresenta inúmeras vantagens de
aplicação empírica quando confrontada, por exemplo, com a idéia de “campo”, formulada por
Bourdieu. Além da noção de posição dinâmica dos agentes nas redes, elas podem ser
pensadas na diacronia e sincronia históricas, constituídas pelos equilíbrios flutuantes de tensões,
que se apresentam mais equilibrados ou tensionados, de acordo com “o retrato momentâneo”
em que se encontram. Com esta noção, são passíveis de descrição as redes diversas que
constituem as mais diferentes instituições e seus variados processos interacionais, ocorram estes
num departamento de uma empresa, numa sala de aula, numa repartição pública, num bar,
numa sala de estar, etc. As fofocas são veiculadas nas (e exprimem) narrativas do cotidiano
que se desenvolvem nestes incontáveis contextos interacionais reticulares (típicos das redes,
segundo a terminologia eliasiana (ELIAS, 1994: 35)).

4
naquele grupo (ou rede), portanto, de acordo com a sua submissão a estes
mesmos valores6.
A posição dos agentes em espaços de poder num grupo que cultua
determinados valores só servirá para legitimar e reforçar mais ainda esses
mesmos valores, fechando um circuito no qual agentes se esforçam para se
conformar a crenças e padrões de classificação dominantes e que acabam,
assim, reiterando e confirmando a dominação daquilo que já os domina. Mede-
se o grau destes valores pela capacidade destrutiva do prestígio daquele que
deles se afastou conforme a narrativa acionada na boataria. A desestabilização
destes valores pode ser expressa pela ineficácia desta capacidade, o que,
entre outras coisas, aponta para um processo significativo de mudança dos
mesmos e, portanto, da própria forma assumida pelas redes em que aqueles
valores adquiriam o poder de conformá-la7.
A verve moral e conservadora das fofocas exprime-se no fato de que os
boatos podem em algum grau desestabilizar o prestígio de um determinado
agente dentro da rede na qual ele interage com outros. O pânico de se
transformar em alvo de boataria, de ser acusado de não partilhar dos
comportamentos e valores prescritos, deve dissuadir os potenciais “desviantes”
e desclassificar os que se desvia(ra)m; desta forma, ser alvo de boataria
converte-se num obstáculo importante a ser evitado diante da necessidade
humana, nunca serenada, de elevar a auto-estima, por meio de uma melhoria
ou, na pior das hipóteses, da manutenção do valor de si próprio diante dos
demais (“realidade na aparência”), em sua busca pelo prestígio social que lhe
garanta prerrogativas importantes para a conservação, entre outras coisas, de
uma boa posição social adquirida, condição, muitas vezes, salutar para se

6
“Distância na proximidade” é o terceiro paradoxo, que ao lado dos outros dois constituem um
dos elementos fundamentais dos postulados sociológicos de Elias. Ver, a este respeito,
Chartier (ELIAS, 2001 : 11) (confirmar página da referência).
7
Assim, o que antes poderia ser considerado indecoroso, indecente, inaceitável, pode, em
função de mudanças, perder a capacidade de atuar como elemento corrosivo e destruidor do
prestígio alheio. Isto ocorreria tanto em função da mudança dos valores (atenuando as
exigências de se manter um comportamento de acordo com prescrições e obrigações morais)
ou porque em determinada rede tal atitude ou comportamento, antes estigmatizado e narrado
em fofocas depreciativas, deixa de ser nela condenado ou já não suscita mais o anátema de
outrora. Como a vida social apresenta um incessante dinamismo é sempre possível perceber
graus e variações na intensidade dos valores tanto do ponto de vista diacrônico (o que
antes era cultivado, pode deixar de sê-lo ou atenuar as prescrições que a ele estavam
implicadas), como também do ponto de vista sincrônico (no mesmo momento histórico regimes
interacionais diferenciados em redes diversas podem condenar de formas distintas os
comportamentos que são objetos dos mexericos).

5
defender dos ataques de seus rivais ou possíveis competidores na rede
(“independência na submissão”). Neste sentido, o perigo de ser objeto ou tema
de fofocas e mexericos é o mesmo de ter sua auto-estima depreciada em
função desta última estar também relacionada à imagem que o agente pensa
ter junto aos demais.
A fofoca depreciativa propiciaria um afastamento simbólico dos que a
enunciam em relação aos que são alvos dos comentários, bem como a
confirmação de seu valor pessoal positivo frente ao transgressor que incorreu
num ato condenável e “narrativizável” (fato digno de ser fofocado como alvo de
mexerico). Existe a possibilidade de se encontrar agentes que fofocam, mas
que na vida cotidiana praticam ou comportam-se da mesma maneira daqueles
que são alvo da boataria. Neste caso, as fofocas teriam a função de aproximar
aqueles que aparentam ter um comportamento correto, mas que secretamente
comportam-se de forma “desviada”, tal qual os que já estão expostos à
execração e que agora se refestelam em fofocar sarcasticamente dos que
foram forçados “a sair do armário”8. Funcionariam como um anátema contra os
que se apresentam socialmente como imaculados, mas que longe dos olhos
dos demais se comportam e praticam os mesmos atos que são a causa da
depreciação social dos que agora deles fofocam. Este é o caso, por exemplo,
dos comentários sobre a (suposta, muitas vezes) vida sexual “desviante” de
pessoas ou celebridades, realizados por gays, que costumam apontá-los como
“enrustidos” (“in the closet”, na famosa expressão anglófona) e se deliciam em
acionar a boataria sobre a identidade sexual não assumida dos que são alvos
dos “comentários bisbilhoteiros”. Vale dizer que nesse caso, como em outros,
os que acionam a boataria apenas confirmam os preconceitos de que são
vítimas em sua vida cotidiana. Explicitam a introjeção dos valores que os
condenam ao exprimirem-se em torno de “falas faladas”. “Acionar a boataria”
tem entre outros efeitos, portanto, aquele específico de reiteração dos valores
hegemônicos.

8
A expressão serviria neste caso para exprimir situações diversas. Um exemplo: fofocas nos
corredores do Congresso, possibilitando o sarcasmo fruído por políticos corruptos que
descobrem esquemas de suborno ou qualquer tipo de corrupção que envolva políticos
adversários que “se orgulhavam” (de forma hipócrita) de terem uma imagem pública ilibada e
que apontavam, até então, para os primeiros como as maçãs podres do mundo da política.

6
Da mesma forma, as fofocas elogiosas e positivas (“praise gossips”)
também reforçam valores sociais prescritos e hegemônicos ((reprodução
social)) , mas são menos freqüentes do que as depreciativas. Elas são na
maior parte das vezes restringidas para os agentes com os quais o enunciador
se identifica (nem sempre é o caso do ouvinte, que pode ou não pertencer ao
mesmo grupo): “ao elogiar a Sra. Crouch, as pessoas louvavam, ao mesmo
tempo, a vida digna e respeitável que levavam em seu bairro, em contraste com
outras de que tinham conhecimento” (ELIAS; SCOTSON, p. 123).
Tal como as narrativas tradicionais, explicitadas em contos, novelas,
romances, narrativas mitológicas, etc., as fofocas também atuam como
mecanismo de controle social ao reiterar os valores sociais prescritos. Em
Winston Parva, elas confirmavam a comunhão dos virtuosos, segundo a
perspectiva do grupo dos estabelecidos. A censura grupal imposta aos que
infringiam as regras tinha uma vigorosa função integradora, ainda que não se
sustentasse sozinha, pois apenas “mantinha vivos e reforçava os vínculos
grupais já existentes” (idem, p. 124). As fofocas também propiciavam aos
estabelecidos um rígido mecanismo de controle social em algumas
circunstâncias, uma vez que “tinham também a função de excluir pessoas e
cortar relações” ao funcionarem como “instrumento de rejeição de extrema
eficácia” (idem, p. 125).
Aponta-se também neste texto para o fato de que as fofocas satisfazem
inusitadas demandas humanas, como, por exemplo, possibilitar aos que
acionam a boataria realizarem vivências vicárias dos fatos. Para os que têm
curiosidade, mas não a coragem de protagonizar determinados atos, elas
podem representar uma forma de vivência vicária do agente que as narra, bem
como daquele que as ouve: “os mexericos de censura apelavam mais
diretamente para o sentimento de retidão e virtude daqueles que os
transmitiam. Mas traziam também o prazer de permitir que se falasse com
terceiros sobre coisas proibidas que o próprio indivíduo não devia fazer. E a
conversa, muitas vezes, soava como se, para a imaginação dos boateiros,
fosse excitante pensar por um momento que eles mesmos pudessem ter feito o
que não convinha ─ ´imagine só, uma coisa dessas!´ ─, sentissem o peso do
medo e da culpa que sentiriam se praticassem tal ato, e rapidamente

7
tornassem a cair em si, radiantes e aliviados, com a sensação de que ´não fui
eu!´ ” (idem, p. 124, grifos do original).
Em Winston Parva, as notícias (fofocas) sobre uns e outros e sobre
todas as pessoas publicamente conhecidas tornavam a vida comum muito mais
interessante: “Em todas as suas diversas formas, as fofocas tinham um valor
considerável como entretenimento. Se um dia parassem os moinhos da
boataria na ´aldeia´, a vida perderia muito de seu tempero” (idem, p. 122).
Voltarei a analisar esta específica dimensão lúdica que envolve os mexericos.
Outra faceta lúdica destaca o fato de que há uma competição
envolvendo os fofoqueiros: “um dos determinantes das fofocas costuma ser o
grau de competição entre os que disputam o ouvido e a atenção de seus
semelhantes, o qual, por sua vez, depende da pressão competitiva,
particularmente a pressão das rivalidades de status, nesse tipo de grupo. Tem-
se mais probabilidade de ganhar atenção e aprovação quando se consegue
superar outros boateiros, quando, por exemplo, ao mexericar sobre outsiders,
consegue-se contar alguma coisa ainda mais desfavorável, mais escandalosa e
ultrajante a seu respeito do que eles ou, noutros casos, quando se consegue
mostrar que se é ainda mais fiel do que os rivais do credo comum do grupo, e
mais radical na própria afirmação das crenças que fortalecem o orgulho grupal”
(idem, p. 125).
Entre outras coisas, algo que está implícito nesta passagem é o fato de
que os agentes humanos precisam de atenção e muitas vezes fofocar é uma
ótima isca para obtê-la de outrem. A capacidade de atrair a atenção alheia não
é a única força impulsora da fofoca: quanto mais escandaloso o fato narrado
enquanto fofoca, mais o enunciador exprime sua adesão às normas
consagradas pelo grupo.
Relevante é o fato de que as fofocas mais excitantes costumam ser
aquelas que mais provocam escândalo e que, portanto, tendem a ter um efeito
mais devastador na imagem e no status dos envolvidos nos fatos que
suscitaram os mexericos, com um conseqüente efeito de desestabilizar e
depreciar o seu prestígio. Pode-se entender isto também pelo fato das fofocas
proporcionarem um controle do prestígio e status alheios. Quanto mais
escandaloso, mais vexatório e ignomioso os comportamentos e condutas
narrados nas fofocas, maior a excitação da vivência vicária e também maior é a

8
sensação de controle, superioridade e possível desforra, se for o caso, frente
aos alvos dos comentários.
Fofocar atua como um mecanismo de ligação entre os agentes. Quanto
mais próximos, mais eles tendem a fofocar entre si. Ainda que, neste caso, a
nomenclatura social faça uma distinção entre os que fofocam entre próximos e
os que o fazem com qualquer pessoa indiscriminadamente. Apenas aos últimos
é atribuído o epíteto de fofoqueiro. Os primeiros pensam estar apenas trocando
informações, mas o formato do informe é o mesmo de qualquer mexerico. A
idéia da coesão social como facilitadora para a emergência dos mexericos
indica que as “comunas paroquiais” ou os grupos mais próximos de redes em
que a idéia de comunidade se faz mais presente (grupos economicamente
menos favorecidos, populações rurais, coletivos religiosos, etc.) tendem a ser
aqueles nos quais o controle do comportamento alheio acaba sendo mais
rígido do que em redes caracterizadas pela impessoalidade e distância social
entre os agentes.

Fofocas e Narrativas

Uma fofoca tem sempre a estrutura de uma narrativa. Esta última pode
ser vista como uma enunciação de fatos e eventos que se articulam em torno
de significados constituintes de um percurso narrativo, que exprime um sentido
reconhecível e decodificável para quem a enuncia e para quem a interpreta.
Qualquer narrativa tradicional9 como romances, filmes, novelas, contos, etc. se
enquadra neste tipo de definição. Não existe narrativa tradicional escrita, falada
ou representada que não seja uma enunciação de fatos e eventos numa certa
ordem minimamente lógica e causal. Os estudos de semiótica que incidem
sobre textos, narrativas, discursos, etc., apontam para a necessidade de se

9
Deixo de lado a análise das narrativas que poderiam ser consideradas não convencionais
como, por exemplo, a dramaturgia típica do teatro do absurdo de Beckett, ou os romances e
contos kafkianos, entre outras. Ainda que estas possam ser analisadas de acordo com os
modelos de interpretação narrativa da semiótica greimasiana, por exemplo, elas exigem do
analista recursos explicativos muito mais sofisticados para serem neles enquadradas e
decodificadas. Daí o fato de sempre me referir aos modelos de narrativas mais tradicionais,
mesmo porque a estrutura fundamental dos relatos típicos das fofocas são, sem sombra de
dúvida, a elas assemelhadas e não àquelas tidas como experimentais ou não convencionais e
que são muitas vezes vistas como absurdas ou pouco comuns.

9
fazer uma distinção entre a análise interna (estrutural) e a análise externa dos
mesmos (BARROS, 2001: 7).
Na análise interna, tem-se o escrutínio dos elementos, procedimentos e
mecanismos que estruturam os discursos ou as narrativas examinados. Neste
sentido, os textos são analisados como objetos de significação. Quando se
passa para a análise externa, pensa-se neles como sendo objetos de
comunicação entre um sujeito que os enuncia e outro que os decodifica e os
interpreta. Nesta última acepção, o texto ou a narrativa devem ser pensados à
luz dos fatores contextuais e sócio-históricos que possibilitaram as formas de
interpretação dos sentidos neles veiculados. O interesse aqui é analisar, sob
uma perspectiva sociológica, a narrativa como objeto de comunicação de
valores sociais prescritos e/ou hegemônicos e justificar o porquê de se postular
a idéia de que as fofocas se enquadram neste tipo de conceituação.
Além de pensar as narrativas como relatos nos quais se verifica alguma
forma de organização lógica temporal e/ou causal que organiza a exposição e
o encadeamento dos fatos e eventos ali narrados, outras características são
fundamentais para descrevê-las. Nelas pode se perceber, invariavelmente,
uma descrição de fatos na qual personagens interagem na forma de conflito
e/ou cooperação, configurando tramas que se orientam pela temporalização
sucessiva dos eventos e pelas causalidades cumulativas que os acompanham
e que os explicam. Nas narrativas os personagens assumem objetivos que
norteiam suas ações, modelando um percurso de sentido em que tarefas são
realizadas ao mesmo tempo em que obstáculos são enfrentados. Estes últimos
podem ser inclusive outros personagens com objetivos que se confrontam
àqueles perseguidos pelos primeiros; ou trabalhos, desafios, etc. que vão
tecendo o percurso e a orientação da narrativa. Assim, um elemento
fundamental de qualquer narrativa é o conflito que exprime a tensão que lhe é
essencial.
Outro elemento importante também deve ser destacado. Todo texto ou
narrativa possui o que se chama coloquialmente de “moral da estória” e que
corresponde, de modo geral, ao sentido social mais comum nele veiculado.
Normalmente esta “moral” se articula com os objetivos de um ou de um núcleo
de personagens que tendem a ser vistos como os virtuosos ou alinhados com
os valores do grupo no qual a narrativa foi formulada. Um exemplo significativo

10
de sentido social expresso em narrativas é a famosa asserção segundo a qual
“o crime não compensa” e que subjaz a quase todas as narrativas tradicionais
de que se tem conhecimento, veiculado em romances, filmes, novelas, etc.,
enfocando, primordialmente, eventos de violência e criminalidade.
Por fim, mas nem por isso menos importante, deve-se apontar para uma
característica fundamental das narrativas: sua capacidade de entretenimento
para o imaginário humano. Poucas atividades têm tanta importância neste
quesito quanto a prática de narrar, ouvir e mesmo apreciar narrativas10. Não há
sociedade sem suas narrativas míticas que tendem a reiterar e reproduzir os
valores por ela cultivados enquanto dignos de serem adotados como
paradigmas comportamentais e orientadores de condutas dos agentes que a
constituem. Narrativas podem ser cômicas, trágicas, ousadas, sugestivas para
a reflexão, etc. Elas alimentam o imaginário humano de uma forma marcante,
leve, empolgante, inesquecível. Não só entretêm, mas, certamente, também
entretêm.
De maneira geral, nas narrativas tradicionais veiculados no Ocidente
moderno e capitalista o sentido final explicita-se de uma forma tal que o “bem
sempre vence o mal” e isto tem o efeito de provocar uma catarse no leitor ou
espectador, que vivencia de forma vicária os eventos narrados e se projeta nos
personagens, tendendo a se identificar com alguns deles, normalmente os que
veiculam os valores socialmente celebrados. Tais personagens tendem a ser
aqueles que advogam e assumem os comportamentos que se coadunam com
os valores tidos como positivos e não raro são vistos como os bondosos,
honrados, íntegros, enfim, aqueles que serviriam de modelo e paradigma de
comportamento das pessoas que integram a coletividade de leitores,
espectadores, etc11.

10
A indústria do entretenimento conhece muito bem este fato. Se fosse possível aglutinar todos
os gastos realizados em atividades de lazer, veríamos que filmes, romances, peças de teatro,
revistas de fofocas acerca de celebridades, entre outros nos quais a moldura básica é aquela
típica das narrativas entenderíamos melhor esta afirmação. Quando se pensa que o formato
das narrativas está presente também em canções, quadros, esculturas e outros objetos, como
bem demonstraram estudos de semiótica baseados na escola greimasiana, teríamos então
uma melhor idéia do que elas representam para os empresários que lidam com este tipo de
bem.
11
Existe indubitavelmente a possibilidade de um vilão apresentar características que sejam
apreciadas por um número significativo de leitores, espectadores, etc. Entretanto, o efeito de
catarse típico tende a ser vivenciado por meio de uma identificação com os personagens que
celebram e exprimem em suas condutas aquelas que são bem vistas e apreciados pela maior

11
De um ponto de vista mais existencial, as narrativas tendem a satisfazer
diversas demandas humanas. Uma das mais importantes é representar
simbolicamente os sentidos que devem constituir e modelar as diversas
trajetórias possíveis e sancionadas como positivas ou eufóricas para os
agentes de uma determinada cultura ou mesmo de uma sub-cultura12.
Espelham, exprimem e prescrevem os valores simbólicos nela cultivados, como
dignos de serem perseguidos. Sua estrutura geral assemelha-se a uma
trajetória. Um desenrolar de fatos e eventos, com um começo, meio e fim. Pode
ser uma epopéia, um mito, uma tragédia, ou mesmo um conto, uma comédia
ou uma estória simples13. Na sua ampla possibilidade de expressões, as
narrativas não apenas veiculam sentidos, mas antes os estruturam de forma
lúdica, criativa, exprimindo-os de maneira a entreter e a reter a atenção dos
que as ouvem e as interpretam (pode-se acrescentar também o prazer da
enunciação da narrativa, quando se pensa que o contador do fato ou do evento
também extrai prazer desta prática). Neste sentido, as narrativas exprimem a
capacidade de recobrir a vida humana de aspectos lúdicos. Uma vida humana
interessante tende a se espelhar numa narrativa de mesmo calibre, ou seja,
numa narrativa lúdica, que entretém, que prende os actantes (atores,
personagens, participantes da narrativa) numa trama na qual há alvos a serem
perseguidos, conflitos e inimigos a serem vencidos, trajetórias a serem
percorridas. É nesta trama que os sentidos da vida humana vão sendo criados,
desenvolvidos e cultivados. Daí a possibilidade de identificar a trajetória da vida
de cada agente numa narrativa que dê a ele possibilidades e horizontes a
serem descortinados. Farei mais comentários sobre este importante assunto
nas conclusões deste trabalho.

parte do público, em contraposição ao comportamento e conduta dos vilões que tendem a ser
menosprezados e vilipendiados.
12
Pensar, por exemplo, nas diversas redes de interdependência humanas existentes, incluindo
aí, inclusive, as sub-culturas do crime, com suas narrativas de bandidos-heróis míticos, ou
mesmo grupos de mafiosos que podem celebrar características como lealdade e abnegação ao
chefe (boss), entre outras, em seus exercícios de ouvir e repassar fofocas.
13
A escola de semiótica de Pierre Greimas mostra de modo convincente que as estruturas
narrativas estão presentes em várias outras formas de expressão artística como as canções ou
mesmo em quadros e representações pictóricas, sendo também verificadas em textos e
discursos com formatos aparentemente incapazes de comportar os elementos típicos de uma
narrativa, como é o caso de receitas culinárias ou as bulas de remédios, entre outros (Ver
GREIMAS (1993)).

12
Já há algum tempo os estudiosos do tema apontaram para o fato de que
as narrativas têm estruturas que são comuns a todas elas. Desde A Poética de
Aristóteles, passando pelos formalistas russos e chegando à escola de Pierre
Greimas, os estudos semióticos que incidem sobre a questão das narrativas
vêm se desenvolvendo e, especificamente nesta última escola, atingiram um
alto grau de formalização, logrando formular conceitos úteis que permitem
entender as estruturas narrativas de uma forma ampla e clara. Aqueles que
nela se baseiam desenvolveram, a partir de um quadro de análise estruturalista
específico, idéias que exploram e esclarecem o formato dos mecanismos
internos mobilizados em todas as narrativas bem sucedidas. Dessa forma,
surgiram tentativas de análises dos fenômenos sociais baseados em seus
paradigmas conceituais (LANDOWSKI, 1992). A meu ver, estes fenômenos,
dado suas inegáveis e ineludíveis complexidades, nem sempre são passíveis
de serem deslindados a partir de uma concepção estruturalista rígida, ainda
que complexa, tal como aquela desenvolvida pela escola greimasiana, mesmo
reconhecendo o seu sucesso na empreitada da análise exaustiva dos textos,
discursos e narrativas em geral.
Os estudos semióticos acerca das narrativas permitiram desvendá-las
como trajetórias textuais que desenvolvem percursos gerativos de sentido. Esta
perspectiva pode ser ampliada e abarcar a vida humana espelhada nos
fenômenos sociais, em suas tramas e trajetórias. A vida social constitui uma
imbricação de trajetórias individuais moduladas pelas possibilidades efetivas
que cada uma delas desenvolve, num processo que envolve conflito e
cooperação entre trajetórias distintas ou similares. O conjunto destas
trajetórias, sua imbricação complexa e variável, dentro daquilo que Elias
chamava de equilíbrio flutuante de tensões típicos das redes de
interdependência, exprime a trama das estórias que desembocam no percurso
daquilo que nós chamamos de História coletiva. Dentro deste quadro móvel,
que se refaz a cada instante, é que se exprime o complexo jogo não apenas de
conflitos e disputas, mas também daqueles constituídos e ladeados pelos
comportamentos de solidariedade e amizade e que tecem a vida cotidiana de
todos nós.
As fofocas constituem uma forma de enunciação destas narrativas, uma
vez que participam ativamente da constituição das vivências interacionais dos

13
agentes. Elas apresentam aspectos bastante coincidentes com a estrutura
geral das narrativas.
Uma primeira aproximação óbvia entre as fofocas e as narrativas diz
respeito ao fato de que toda e qualquer fofoca consiste num relato de eventos.
Alguém narra acontecimentos acerca de fatos e comportamentos de outros
para um ou vários interlocutores.
Assim, como em qualquer narrativa, as fofocas são comunicadas,
obedecendo a um encadeamento de fatos e eventos numa ordem lógica e/ou
temporal capaz de ser enunciada e apreendida pelos ouvintes que as
repassam numa cadeia de interdependência, na qual os valores implícitos são
reiterados e reafirmados.
Da mesma forma que conflitos e tensões são fundamentais para o
desenvolvimento das narrativas, eles também têm importância precípua para
as atitudes conspiratórias das tramas comuns e ordinárias do nosso cotidiano
que podem motivar ou serem motivadas por fofocas. Essa característica
comum é o que torna a vida social semelhante às narrativas, no sentido em
que boa parte dela se exprime em pequenas tramas e jogos que modelam as
vivências interacionais do nosso dia-a-dia. De um modo mais amplo, o grande
jogo da vida social se modela em torno dos conflitos que configuram o
equilíbrio flutuante de tensões típicos das redes de interdependência nas quais
prerrogativas destinadas a agentes e posições estão sempre sendo disputadas,
contestadas, confrontadas, buscadas a partir de perspectivas variadas e
distintas formuladas e assumidas pelos atores que nelas vivem e interagem.
Tal qual como ocorre no modelo das narrativas.
Se as narrativas sempre veiculam sentidos que se exprimem em
fórmulas muitas vezes sintéticas e simplificadas em que se percebe uma
admoestação ou crítica aos malfeitores e desviantes, o mesmo pode ser
percebidos nos relatos típicos das fofocas. Se alguém rouba um bem alheio de
modo furtivo e é depois descoberto, ele(a) pode ser alvo de fofoca na qual o
seu prestígio vê-se diminuído e neste caso a fofoca funcionaria como a sanção
negativa que ele recebe podendo inclusive desencadear uma trama de
reparação, bem como uma tentativa de alertar outros para o perigo de se
relacionar com o alvo da fofoca. “O crime não compensa” aqui também.

14
Na qualidade de narrativas da vida cotidiana, as fofocas sempre
transmitem sentidos sociais que exprimem e celebram os valores hegemônicos
num determinado contexto sócio-histórico. Dessa forma, as prescrições em
torno dos comportamentos sexuais, das atitudes em relação aos bens alheios,
das expressões pessoais inadequadas, etc., orientam o aspecto moral que
baliza a interpretação dos fatos narrados, à luz de sua conveniência e
adequação àqueles mesmos valores. Dessa forma, às fofocas subjaz um
sentido implícito que se exprime na adesão aos valores sociais prescritos e
hegemônicos, revelando aspecto semelhante ao que se pode encontrar nas
narrativas tradicionais.
As fofocas em geral alimentam o sarcasmo em relação aos que são
objetos de comentários e narrativas desprestigiosas, propiciam a ocasião para
a difamação de outrem, depreciam seu status simbólico e social; funcionam na
maior parte das vezes como recurso típico dos exercícios conspiratórios que
alimentam as tramas e narrativas do cotidiano. Este fato é de uma significação
fundamental quando se adota a perspectiva de que a sociabilidade humana é
caracterizada pelo lúdico, pelo caráter do jogo (que é o mesmo que caracteriza
as narrativas). Voltarei a isto.
Além de funcionar como recurso nas tramas interacionais do cotidiano, a
boataria propicia outras fontes de prazer lúdico. Um dos aspectos fundamentais
para se entender esta característica de diversão essencial é a capacidade de
vivenciar vicariamente o périplo e a trajetória dos personagens em uma
narrativa. Já foi destacado anteriormente a possibilidade de vivencia vicária
que as fofocas propiciam aos “comentaristas da vida alheia”. Elias e Scotson
apontaram para o fato das fofocas e mexericos serem um elemento
fundamental para a diversão dos moradores de Winston Parva e isto se deve
às inúmeras possibilidades de prazer lúdico que as narrativas emprestam à
vida humana. Acrescente-se aí o fato da enunciação da fofoca ser em si
própria um ato de jogo e deleite entre os jogadores, neste caso os próprios
fofoqueiros.
Aqui também há uma importante aproximação entre os efeitos sociais e
individuais propiciados pelas fofocas e pelas narrativas, ainda que no caso
destas últimas as “benesses” sociais sejam mais amplas e de uma significação
mais relevante. Aristóteles já enunciou o efeito catártico que as tragédias

15
gregas produziam em seus espectadores e o mesmo pode ser dito de qualquer
narrativa clássica ou contemporânea em suas mais diversas e inusitadas
formas e fórmulas. Além das vivências vicárias, as catarses que se exprimem
na condenação implícita dos que são alvo de boatarias aproximam também
fofocas e narrativas. Ao se pensar as fofocas como elementos fundamentais
das tramas e jogos do cotidiano podemos perceber a importância desta última
para as vivências interacionais de todos nós.

Profecias que se auto-cumprem

As fofocas acionam o poder de modelação da imagem e identidade


sociais dos agentes a partir da opinião coletiva. Esta opinião se forma no
âmbito da troca de informes e narrativas a respeito dos comportamentos
daqueles que estão próximos uns dos outros. Desta forma, são meios pelos
quais os agentes exercem um controle e uma pressão consideráveis, uns sobre
os outros, pautando a avaliação final destas condutas de acordo com a
adequação destes comportamentos àquelas condutas socialmente
sancionadas de modo favorável, depreciando as demais que se afastam deste
paradigma, bem como os agentes que ousaram realizá-las.
Além do efeito facilmente verificável de desprestigiar e macular imagens
sociais dos agentes, outro efeito menos evidente, porém dos mais
interessantes da fofoca, é aquele no qual uma boataria reiterada sobre
comportamentos tidos como desviantes acaba por propiciar a realização dos
efeitos previstos pelo postulado da profecia que se auto-realiza.
As fofocas são narrativas que descrevem eventos e ao mesmo tempo
trazem implícitos julgamentos acerca dos comportamentos narrados,
imputando aos agentes envolvidos nos fatos relatados as avaliações elogiosas
ou depreciativas de acordo com as fórmulas das praise gossips ou blame
gossips, respectivamente. Assim, ajudam a disseminar uma imagem social
específica daqueles que são os protagonistas envolvidos nos relatos de
mexericos. Esta imagem social tem importância no processo de constituição
identitária dos agentes, tal como o processo de identificação dos jovens

16
discriminados de Winston Parva, que acabavam por confirmar em suas
condutas expressas em regimes de interação específicos a fama de
desordeiros que lhes era comum na cidade ((teoria da rotulagem,
ultrapassada?)) .
Seguindo as argumentações presentes em Os Estabelecidos e Os
Outsiders, se um grupo tem suficiente força para imputar aos outsiders a
mácula de desonra em função do comportamento que o grupo dominante
considera desviante, ocorre um interessante efeito de profecia que se auto-
realiza. Ao perceberem a total inutilidade de se comportar tal como a cartilha de
honra mantida pelos dominantes, uma vez que serão alvo de fofocas
independentemente do que venham a fazer, os outsiders passam a desfrutar
de uma liberdade frente às restrições comportamentais que os dominantes
precisam considerar para manter seu status. Uma vez estigmatizados e
transformados em alvos de constantes mexericos, fundados ou não, os
outsiders passam a confirmar sua inconsistência de status ((travesitis,
transexuais, por exemplo?)) .
Nos encontros de jovens nas igrejas locais, os moradores dos bairros da
zona 3 (região de má fama na cidade) faziam algazarras, falavam palavrões e
se comportavam de modo a se adequar à fama que possuíam. Pode-se pensar
que agiam assim, pois explicitavam uma forma de revolta contra a condição a
eles imputada. Alguns deles ao tentarem explicar este comportamento diziam
que era aquela conduta criticada a única forma de serem notados ou vistos
pelos que os discriminavam. Aproveitavam-se naquelas ocasiões para se
divertir, dando rédea solta aos seus “desregramentos”, uma vez que não
tinham que defender nenhum status favorável advindo de comportamentos
elogiáveis, mesmo porque quando procediam socialmente de modo comum
não recebiam nenhum mérito por isso. Assim, mesmo que se agissem de modo
“adequado”, eram sempre vistos com desconfiança por seus detratores
((esssencial p´a violência no Brasil? Parece q a teoria da rotulagem afinal tem
alguma validade)).
Sem condições de adquirir um status favorável, eles relaxavam e
negligenciavam em suas condutas o tipo de comportamento visto como
conveniente. Dessa forma confirmavam o que socialmente era disseminado por
meio de fofocas e mexericos, reafirmando assim um velho adágio popular,
segundo o qual “quem tem fama deita na cama”. Tão logo surgiam as
17
oportunidades para o comportamento tido como inadequado eles se
manifestavam nas atitudes dos jovens discriminados que, em função disso,
reforçavam o estigma que sobre eles incidia.

18
Se as fofocas consagraram para um segmento social ou mesmo para
um agente isolado uma imagem social vilipendiada, elas tendem a propendê-
los ou, ao menos, tornam mais plausível que seus comportamentos venham a
confirmar esta visão socialmente disseminada. Esta proposição vai ao encontro
do famoso teorema de Thomas, que postula não ser importante se a
interpretação dada por um grande número de pessoas acerca dos fatos é ou
não correta, o que importa é que “se os homens definem [algumas] situações
como reais, elas [,caso não sejam,] vão se tornar reais em suas
conseqüências” (THOMAS; THOMAS, 1928 : 572).
Não se trata de determinismo, pois isso não quer dizer que todos os
agentes de um grupo específico irão se comportar da forma que costumam ser
socialmente vistos e depreciados, mas torna as atitudes criticadas mais
plausíveis para alguns deles e, portanto, estatisticamente mais representativas
na conduta dos agentes do grupo em questão, efetivando o famoso postulado
da profecia que se auto-realiza. ((método essencial determinismo versus
probabilidade ))
Esta formulação só pode ser melhor compreendida quando se pensa a
idéia de formação da auto-imagem do agente correspondente ao seu self (si-
mesmo, si-próprio) por meio dos processos de interação que irão também
constituir sua identidade pessoal e social, bem como as práticas a ela
associadas, segundo as argumentações descritas por Mead em seu clássico
Mind, Self and Society.
Ao perceber a força coletiva da imagem social que se constrói na
dinâmica interacional e que modela o self do agente, ele tende a confirmá-la,
retirando daí as vantagens que ela propicia e ao mesmo tempo pagando os
custos de estar a ela associado. Essa dinâmica não é percebida de modo
consciente pelos agentes, mas se constitui paulatinamente no decurso
cotidiano das inúmeras situações de convívio e interação entre as pessoas.
As vantagens de uma imagem social valorizada são o alto prestígio e
status sociais que garantem prerrogativas de poder (simbólicas e materiais) em
situações específicas. As desvantagens advêm da necessidade de contínua
monitoração do comportamento de acordo com as prescrições sociais que
devem ser seguidas; em outras palavras, trata-se do decoro que se impõe aos
que buscam a ela se conformar e que se traduzem como os custos ineludíveis
para se manter no topo da escala social. Os que se comportam de forma
19
condenada não possuem poder nem prestígio, mas não precisam se ater aos
rígidos preceitos que incidem sobre os que buscam se manter no grau mais
alto e valorizado das posições existentes na rede configuracional. Se por um
lado, noblesse oblige, por outro, misère n´oblige pas.

Vivências Interacionais

Simmel dizia que seria impossível pensar a existência do beijo sem o


processo que envolve dois agentes. Poderíamos dizer que não há beijo sem a
interação de parceiros e que ele encerra um processo que está além de um
mero par de lábios, além dos movimentos e sensações que provoca (1971: 46).
Da mesma forma, se existe fofoca é porque há uma interação que envolve, no
mínimo, uma díade interacional. A interação é o ponto de partida tanto para
Simmel como para Mead e Goffman e de alguma forma eles nos ajudam a
pensar, de um ponto de vista sociológico, as tramas da vida cotidiana que
suscitam as fofocas, bem como aquelas por elas propiciadas. Tramas, jogos e
narrativas são aqui tomados como elementos fundamentais para o
entendimento das interações sociais. Subjazem enquanto forma fundamental
das interações. Antes, no entanto, de explorarmos esses aspectos, foquemos
na questão da interação.
Goffman pensava a interação como sendo aquela influência recíproca
dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando em presença física
imediata (1999: 23). Neste sentido, a fofoca pode ser vista como uma narrativa
que se efetua em presença física imediata14 e que tem o impacto de revelar
alguma novidade na qual se reavalia a posição e o status social dos envolvidos
na trama e eventos descritos.
As fofocas devem ser pensadas como um momento de interação que
reatualiza valores e práticas legitimadas como socialmente válidas e
positivamente sancionadas, embora nem sempre isto esteja claro ou seja
percebido de forma consciente entre os que fofocam. Da mesma forma, as

14
Há, evidentemente, a possibilidade de se interagir por outros meios que dispensam a
presença física imediata, tal como o uso do telefone, de cartas, de avisos ou outros. Isto, no
entanto, não altera a capacidade da interação mediada por tais instrumentos de produzir os
efeitos sociais que teriam caso eles fossem substituídos pela interação realizada na presença
física dos interlocutores.

20
implicações sociais aqui discutidas acerca das fofocas não são visíveis e
controláveis pelos que acionam a boataria dentro das cadeias de interação e
interdependência dos agentes nelas envolvidos.
Elas são narrativas que em tese descrevem outras narrativas vivas, ou
seja, descrevem tramas expressas em vivências interacionais efetivamente
encenadas num momento pregresso. Por serem representações que podem se
moldar ao feitio de quem as aciona, guardam um variável grau de distância e
imprecisão em relação aos fatos que lhes deram origem (o que nos faz lembrar
o adágio popular, segundo o qual “quem conta um conto aumenta um ponto”).
A possibilidade de enfatizar aspectos dos fatos em detrimentos de outros, de
realçar nuances e de omitir deliberadamente informações, de poder manipular
os fatos dentro de certo limite, constituem algumas das possibilidades lúdicas
que as fofocas propiciam aos que as repassam.
O agente que aciona a boataria pode utilizá-la como estímulo
fundamental para tramar com outros. Aqui há um elemento importante: as
fofocas podem descrever tramas e ao mesmo tempo iniciar e/ou reiterar outras
que se desdobram em implicações futuras para a manutenção ou mudança no
equilíbrio de poder constante na rede de configuração dos agentes. Admitindo
as tramas e narrativas do cotidiano como forma elementar das interações é
possível então entender a importância que esse processo pode ter no sentido
de fortalecer ou emascular a imagem social dos que são alvo dos mexericos.

Jogos, tramas e narrativas

Vários aspectos podem ser indicados para apontar o fato de que os


jogos contêm as estruturas mínimas que constituem as narrativas e que estas
são, em essência, um tipo complexo de jogo que pode incluir em suas tramas
vários outros tipos de jogos. Poderíamos pensar numa escala de complexidade
que vai do jogo à narrativa, passando, neste percurso, pelas inúmeras tramas
que compõem esta última e que se constitui por uma miríade de possibilidades
de jogos.
Trabalho aqui com a idéia segundo a qual a sociabilidade humana
apresenta em essência o formato do jogo ou ainda que o elemento lúdico
constitui a forma básica da sociabilidade. Esta idéia é formulada explicitamente

21
por Simmel (1991 : 121-136). Para ele a forma mais pura da sociabilidade
humana se exprime de acordo com o formato dos jogos. Dos impulsos eróticos
aos interesses práticos, das questões religiosas aos assuntos referentes ao
comércio, à guerra, à defesa, etc. estamos sempre diante de formas de
associação entre agentes humanos que se organizam solidariamente e/ou em
contraposição a outros. Os conteúdos podem ser os mais variados possíveis,
mas a forma que a sociabilidade presente nestes processos assume é aquela
típica do jogo, que para mim é apenas um modelo restrito de narrativa. Simmel
é o primeiro sociólogo que destaca a forma da sociabilidade como sendo
tipicamente lúdica. Outros, irão segui-lo, ainda que acrescentem a estas
formulações inusitadas, até então, idéias também originais.
Mead nos permite pensar a passagem dos jogos sociais para as tramas
e consequentemente para as narrativas do cotidiano. Nele é possível constatar,
por exemplo, a relação entre processos interacionais e as questões lúdicas.
Para ele os regimes interacionais que constituem o self de cada agente são
primeiramente ensaiados durante a infância nas diversas brincadeiras em que
as crianças assumem diversos papéis sociais diferentes15: pai, mãe, médico,
cavaleiro, monstro, herói, etc. Esses papéis são aqueles adotados pelos
diversos actantes que compõem as narrativas sociais e humanas. As
brincadeiras (“play”) transformam-se em jogos (“games”) quando então, já
adultos, os agentes integram com os demais as diversas “equipes” no trabalho,
na família, na política, na rede de amigos, nos cultos, nos campos científicos16,
etc. Em todos esses universos sociais constituem-se tramas e narrativas
vívidas e reais, nas quais os agentes nelas estão integrados por meio de sua
atuações e relações com os demais.
Em Goffman (1999), podemos observar a dimensão das interações
humanas em um regime de dramaturgia, ou seja, num formato típico das
narrativas. Para ele, a sociabilidade humana nos diversos regimes interacionais

15
Apesar de Mead ter enunciado com clareza a noção de papel social bem antes de Parsons,
este último figura como sendo o responsável pela elaboração deste conceito, muito em função
do fato dele fazer da idéia amplo uso em sua caudalosa obra.
16
Deve-se mencionar o fato de que em cada rede de interdependência, em cada grupo, em
cada vivência interacional há a humana propensão para o jogo. Partindo daí, posteriormente,
Bourdieu buscou trabalhar o processo de sublimação da libido em atividades socialmente
sancionadas que se traduz, segundo a sugestão do autor, em illusio, elemento fundamental
que mobiliza os agentes em torno dos processos e vivencias interacionais nos diversos
campos em que atuam (ou nas diversas redes de interdependência interacional).

22
pode ser pensada na modalidade dramatúrgica dos enredos teatrais. Juntos
aqui jogos, tramas e narrativas. Bateson formulou a idéia segundo a qual até
mesmo as nossas conversas cotidianas, frívolas ou sérias, são modelos de
jogos interacionais (BATESON, 1996: 27-36). Finalmente em Huizinga o homo
ludens foi postulado como sendo aquele que melhor descreve a essência da
vida humana e esta essência se inscreve no coração da própria cultura que
para ele assume também o caráter do jogo (HUIZINGA, 2003, p. 15), pois “no
ato de conferir expressão à vida, o homem cria um segundo mundo, um mundo
poético contíguo ao mundo da natureza” (idem, p. 21). Assim, “o jogo cria a
ordem, o jogo é a ordem. O jogo introduz uma perfeição limitada e temporária
na imperfeição do mundo e na confusão da vida. Exige uma ordem suprema e
absoluta” (idem, p. 26). O jogo é aquele formato de existência no qual se
desloca a preocupação para os aspectos não sérios da vida, “mas, que ao
mesmo tempo, absorve intensa e completamente o jogador (idem, p. 29).
A possibilidade de aproximação entre jogos e narrativas é percebida no
momento em que o autor busca aproximar o jogo dos rituais sociais, pois da
mesma forma que estes últimos, as narrativas têm todas as características
formais e essenciais de um conjunto de jogos que se entremesclam num
compósito harmônico com relações de solidariedade e cooperação
coordenadas com outras de conflito e competição entre actantes (atores,
agentes). Huizinga indica que mesmo um autor como Platão já tinha percebido
a centralidade do elemento lúdico para a vida humana: “Qual é então a maneira
certa de viver? A vida deve ser vivida como um jogo, jogando certos jogos,
fazendo sacrifícios, cantando, dançando, e então será possível ao homem
agradar aos deuses, defender-se dos seus inimigos e vencer na competição”
(PLATÃO, apud Huizinga, p. 35).
As narrativas são jogos, porém diferentemente destes que possuem
ordenamentos, regras, posições e desenvolvimentos pré-determinados que
devem ser obedecidos para efetivar sua realização a contento, elas se
constituem de uma miríade de possibilidades de jogos dentro de sua própria
estrutura. As unidades constituídas por jogos diversos são as tramas que vão
organizar e consolidar um determinado percurso gerativo de sentido nas
narrativas.

23
Isto quer dizer que obedecidas as regras básicas de realização de um
percurso gerativo de sentido no qual programas, objetivos e actantes (atores,
personagens, agentes envolvidos nas tramas) se entrelaçam para constituir a
sua tessitura, as narrativas têm as características de compreender jogos dentro
de jogos e mudar as possibilidades de ordenamento de acordo com o
desenvolvimento dos jogos que a constituem, tornando-a aberta e não
circunscrita aos ordenamentos característicos dos jogos comuns. Nesse
sentido a estrutura da narrativa é mais aberta e flexível do que aquela que se
percebe quando comparada com as estruturas menos flexíveis dos diversos
jogos existentes. Neste sentido, as narrativas são marcadas pelo seu caráter
aberto, ainda que mantenham com os jogos a similaridade de possuir um
importante elemento lúdico que as caracteriza e as define em sua essência.
O que se postula aqui é o fato de que toda atividade social está marcada
pelas tramas interacionais nas quais os agentes assumem papéis variados que
se transformam tão logo tenhamos uma dinâmica ambientada em contextos
diferenciados. Essas tramas são facilmente percebidas como narrativas, ou
melhor, podem ser encaradas como uma estrutura narrativa na qual os jogos
se desdobram e se reatualizam a partir das diferentes atuações e vivências
interacionais que os agentes constituem em suas vidas. As tramas seriam uma
denominação adequada para os diversos regimes de sociabilidade e interação
vivenciado pelos agentes e que variam de um jogo relativamente simples
(como as conversas) até um conjunto de jogos que tornam bem mais complexa
a cadeia de tramas a ponto de se consolidar uma verdadeira narrativa (disputas
geopolíticas, lutas em torno da defesa de planos, leis, etc; processos de
consolidação ou desestabilização institucional, entre outras inúmeras
possibilidades).
Em relação a isto, as fofocas são aquelas narrativas do cotidiano que
aparecem como decalcadas a partir das diversas perspectivas e valores que
constituem uma dada cultura num determinado contexto e momento. Elas são
narrativas de segunda ordem que buscam descrever outras narrativas vividas
por outros e se integram à vida social como elemento importante de controle
das atividades e comportamentos alheios.
As fofocas estão numa situação bastante singular quando pensadas de
acordo com os modelos das narrativas vivas que são constituídas pelas tramas

24
interacionais da vida cotidiana. Descrevem-nas e ao mesmo tempo inspiram-
nas, pois, acionadas pelos eventos interacionais pregressos, elas dinamizam
batalhas em torno da especulação do prestígio e status alheios,
desencadeando assim eventos futuros nos quais se rearticulam os conflitos e
as alianças num processo complexo, entremesclados pela reatualização dos
valores consagrados e hegemônicos numa determinada rede configuracional.
Pode-se pensar que as fofocas não apenas reiteram valores, mas
também que servem para reavaliar o status dos agentes (actantes, atores) e
dessa forma funcionam como elemento de desestabilização dos circuitos de
poderes estabelecidos num contexto específico de sociabilidade. De acordo
com essa perspectiva, elas funcionariam então como recurso de controle e/ou
alteração dos instáveis equilíbrios de tensões que envolvem os agentes nas
tramas da vida cotidiana.
Vários exemplos poderiam servir para ilustrar essa potencialidade das
fofocas. Uma trama simples poderia ilustrar situações desse tipo: um
subalterno, ao replicar, de forma intencional e com objetivos definidos, o
comentário inconfessável que um determinado colega expressou acerca de sua
incompatibilidade com as práticas gerenciais de um superior para o próprio,
pode estar atuando no sentido de desprestigiá-lo frente ao superior, esperando
daí retirar vantagens, tal como assumir seu lugar. Se já houver um conjunto de
tramas que possibilite tratar essa fofoca como a “gota d´água” na relação entre
superior e subordinado, o estratagema pode funcionar e levar a uma mudança
concreta e prática da relação de forças envolvidas na configuração da rede de
interdependência constituída no local de trabalho, a partir da destituição de um
subordinado e sua conseqüente substituição pelo outro que fez chegar tais
mexericos aos ouvidos adequados, de acordo com a perspectiva de quem
acionou a boataria.
Este exemplo exprime a potencialidade das fofocas que são
constantemente repassadas nas redes de interdependência, atuando como
elementos fundamentais para a manutenção ou mudança do equilíbrio instável
de tensões que constituem as dinâmicas configuracionais subjacentes às
práticas e atividades cotidianas de todos nós.
Ao mesmo tempo em que funcionam como “chamadas à ordem” pela
ameaça de constrangimentos causados pela depreciação do prestígio daqueles

25
que ousam “atuar” de forma a contestarem valores caros à rede social como
um todo, elas oferecem inúmeras possibilidades lúdicas aos que vivem da
excitação propiciada pelos mexericos e que constituem a quase totalidade dos
agentes integrados às diversas redes de interação social existentes. Dessa
forma se constituem como eficientes mecanismos constantemente acionados
de manutenção dos objetivos fundamentais que orientam as diversas tramas
que compõem a vida social de uma cultura.

Conclusões

Vimos que as fofocas podem ser analisadas segundo uma perspectiva


na qual elas atuam para reiterar o ordenamento social e a manutenção dos
valores hegemônicos de uma cultura num determinado momento histórico.
Dessa forma elas podem ser vistas como veículos de manutenção de valores.
Elas exercem fascínio nos agentes, pois por meio delas pode-se obter a
atenção dos outros. Permitem aos fofoqueiros um afastamento dos agentes
que estariam incidindo em práticas socialmente censuráveis.
Abordou-se também a idéia segundo a qual a enunciação de uma fofoca
delicia os que acionam ou mantém a boataria, pois permite aos mexeriqueiros
a vivência, ainda que vicária, dos fatos e eventos narrados e enunciados.
Dessa forma, no jogo para se obter a atenção do interlocutor deve ser
explorado o elemento sádico de depreciação do outro, o afastamento e a
vivência vicária, bem como a manipulação do prestígio e status alheio que
propicia sensação de poder aos que gostam de “soltar a língua”.
Assim como as fofocas sobre as pessoas de seu circuito de relações, os
moradores de Winston Parva adoravam comentar os fatos acerca das
celebridades que apareciam nos jornais da cidade. Vivência vicária e ao
mesmo tempo vivência protagonizada ao se relatar para o outro a narrativa do
mexerico.
Baseando-se na obra de Elias, pode-se observar que há uma tendência
para que as fofocas sejam mais freqüentes entre agentes ligados entre si em
grupos de sociabilidade mais estreita, as chamadas paróquias comunais, ou
“igrejinhas”, o que denota um maior controle do comportamento dos agentes
nestes grupos em função, entre outras coisas, do grau e freqüência da boataria

26
intensa que sói ocorrer nestes grupos. Elias menciona o fato de que de modo
geral, pode-se dizer que, quanto mais os membros de um grupo sentem-se
seguros de sua superioridade e seu orgulho, menor tende a ser a distorção, a
discrepância entre sua imagem e a realidade, o que leva a uma menor
necessidade de se recorrer a mexericos para tramar nas micro batalhas do
cotidiano, e, por outro lado, quanto mais ameaçados e inseguros eles se
sentem, maior é a probabilidade de que a pressão interna e, como parte dela, a
competição interna levem as crenças coletivas a extremos de ilusão e de
rigidez doutrinária”, bem como a uma intensa rede de boataria acionada para
exercer tal controle (ELIAS; SCOTSON, 200: p. 125-126). A incongruência
entre as crenças (que acabam por favorecer percepções distorcidas da
realidade) e os fatos efetivos leva a um menor controle sobre esses últimos,
propiciando assim um sentimento de insegurança que irá por sua vez propiciar
mais distorção sobre os fatos, num circuito recursivo difícil de ser quebrado.
Foi possível abordar também o fato de que a fofoca ou boataria poderem
atuar no sentido de realizar o postulado da profecia que se auto cumpre,
através de mecanismos complexos nos quais os eventos narrados, baseados
ou não em evidências reais, exercerem um poder de realização inusitado em
diversas situações.
A fofoca torna a vida das pessoas mais interessantes, pois as tira da sua
rotina e dá a elas uma possibilidade de representação espetacularizada de
eventos da vida alheia que tenham algum significado escandaloso ou digno de
atenção diferenciada, por isso têm um valor considerável como entretenimento.
Seria possível pensar que nossa vida e nossas relações são formas de
narrativas vivas. A narrativa viva compõe-se de outras narrativas que são
móveis, abertas, rígidas, aceleradas, densas, contrapostas, conflagradas entre
si ou numa cooperação cega e surda. A complexa trama da vida social torna-se
pensável a partir da combinação destas possibilidades em inúmeros arranjos e
formatos variados. Neste sentido, nós próprios exprimimos por meio de nossas
ações e relações narrativas vivas para outros humanos e continuamente nos
convertemos em símbolos, somos personagens de narrativas contrárias ou
amistosas para os outros. Ou melhor, identificamo-nos com alguns que são
símbolos e narrativas para nós próprios. Confrontamo-nos com aqueles que
desafiam, impedem ou prejudicam o prosseguimento de nossas ações ou que

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interpõem razões existenciais diferentes das nossas para a realização de suas
narrativas.
As fofocas seriam assim formas narradas de apresentação destes
eventos num formato de censura prévia nas quais os valores sociais
funcionariam como régua de análise e avaliação dos comportamentos
humanos. A idéia da concorrência sistemática pela aprovação reforça a idéia
da superioridade na submissão.
Uma das coisas mais interessantes na análise sociológica da fofoca é o
fato de que ela pode fornecer elementos de compreensão da vida social em
seu aspecto sócio-estrutural, bem como em suas facetas micro-interacionais.
Elas não têm uma função única, exclusiva e determinada. Podem ser vistas
como índices que exprimem o grau de celebração de valores: quando tiverem
alto poder de desestabilização do prestígio dos que estão nelas envolvidos
tende a exprimir o alto grau de que goza um determinado valor no qual se
baseiam comportamentos, atitudes, condutas; na situação contrária, apontam
para a erosão daquele valor em grupos específicos, uma vez que a
transgressão dos valores em questão não mais suscita qualquer tipo de reação
mais forte e nem deprecia o valor dos protagonistas envolvidos nos fatos que
geraram as narrativas de fofocas. Nesta perspectiva integram o conjunto de
elementos nos quais se pode enxergar um mapa dos aspectos sócio-
estruturais de uma dada (sub-)cultura. Assim também ocorre quando se
percebe o valor integrador que as fofocas exprimem ao atuar como elemento
de controle e integração do grupo.
A realização do teorema de Thomas e as confirmações inesperadas
previstas pela fórmula das profecias que se auto-realizam dão conta de um
imbricado processo social no qual aspectos sócio-estruturais se dispõem em
momentos diferentes das práticas micro-interacionais do nosso cotidiano, no
qual as fofocas têm um papel inusitado.
Na perspectiva micro-interacional, as fofocas propiciam deleite, prazer e
excitação aos que as enunciam e aos que as ouvem. Promovem uma
importante distância simbólica dos fatos e personagens envolvidos nas
narrativas ventiladas, ao mesmo tempo em que permitem a famosa vivência
vicária destes mesmos fatos. A sensação de domínio sobre a vida alheia, a
excitação de conspirar, tramar e decidir sobre a reputação de outrem e,

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portanto, de influir na processo de depreciação dos outros, traz uma inegável
possibilidade de fruição pessoal importante para se entender o porquê dela ser
um expediente recorrente e freqüente nas interações cotidianas. Isso sem
contar a possibilidade de desforra frente aos adversários e o delicioso exercício
de passar o tempo comentando sobre os problemas alheios, enquanto nos
esquecemos dos nossos e nos refestelamos em dissecar e aumentar (sempre
que possível) os “desvios” e fraquezas dos que nos cercam.
Não posso me furtar a pensar a minha própria atividade como orientada
pelo receio de ser alvo de mexericos. Esse artigo é fruto da necessidade de
publicação e do receio de ser acusado de improdutivo por aqueles que gostam
de bisbilhotar o curriculum Lattes dos pesquisadores para apostar na bolsa de
avaliação do prestígio e status alheios. Os que não publicam ou pesquisam são
alvos dos mexericos que os desclassificam na corrida em torno do prestígio
intelectual. Eis aí mais um exemplo de como as fofocas atuam no sentido de
manter o status quo. Valha-me, Deus, de que eu possa publicá-lo para que
atenue a verve demolidora de línguas ferinas!

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