\"

A. Casse11di, que o repreendia por utilizar a muito contestável CAPÍTULO 1

noçilo de alma, Descartes respondia que ela rdeva, efectivamente, des-
,.··, ses nomes «impostos por pessoas ignorantes, o que faz com que nem
~ ~;:, ,;~.pre coílvenharn f!i Cpr,~ J. riit!nle às cois,;;s 0uc si~h0ricútrl i) , 7,~;a~ ~- IA-e ­
PESSOA
«quando são recebidos umá vez, deixamos de ter liberdade para os
mudar, quando vemos que não são bem compreendidos»11. No que diz
respeito à palavra bioética, coloquei-me ao nível desta sabedoria carte- é~,

siana, que se ajusta à utilização comum, para melhor fazer compreen- <<É somente pela sua relação com o homem Paulo, seu
der a radica/idade crítica da razão. semelhante, qu e o homem Pedro se refere a si próprio
!
enquanto homem. Mas, ao fazê-lo, o referid o Paulo, com
toda a sua corporeidade pauliniana de carne e osso, toma
l
Setembro de 1992- Dezembro de 1993 igualmente para ele valor d e forma fenomenoló gica do
!
=too
~

género humano.» K

KARLMARXl

~;
'i'
li

Nada mais elementar, à primeira vista, do que a ideia de ,,

pessoa humana. Contudo, poucas noções são tão d ifíceis de ~i
\
determinar claramente. li
Não é que, como por vezes se lê, a pessoa seja uma realida- ,~Í

de demasiadamente complexa para ser enunciada num concei- !f

I

·!J
to. Pois um conceito não tem unicamente como função ser a
imagem do seu objecto. Como diz, aproximadamente, Spinoza, /..

o conceito de círculo não tem de ser redondo.2 O conceito de

cão não tem que ladrar. Assim, pode perfeitamente haver um i:,;l
njiJ
conceito não contraditório da contradição, um conceito simples I~
.,;~.
d o complexo. Se o próprio Deus se define na Bíblia em três
iH~
ili·
li!·
~tlj

1 K Marx, Le Capital, Livro I, trad. Jean-Pierre Lefebvre, Éd. sociales, 1983, e ljjj
kil
jjl!•
PUF/Quadrige, 1993, p. 60, nota 18 [tradução porh1guesa: O Capital, b·adução !Jli
de António Dias Gomes, Lisboa, Delfos, 1973-74 (2 volumes)]. (Tradução ligei- ijj:
ramente modificada por mim.) Jl!i
2 De la réforme de l'entcndement, em Spinoza, Oeuvres, Gallimard, La Pléiade, tli:
1954, p. 168 [tradução portuguesa: Tratado sobre a Refonna do Entendimento, tra- :Ji:
:jf
dução, prefácio e notas de António Borges Coelho, Lisboa, Livros Horizonte, llq
1971]. O texto diz o seguinte: <<A ideia do círculo não é algo que tenha uma Jl;:
periferia, um centro, como o círculo.» Em Comprendre la philosophie marxiste, !~~:

r
Éd. sociales, 1982, p. 118, Marie-Hélene Lavallard acrescenta que <<O conceito
ft~
11 Réponses aux cinquiemes objections, em Descartes , Oeuvres et lettres,
Gallimard, La Pléiade, 1952, p. 481. de cão não ladra >>.
·Í' f.::
!,f.i
ll~i
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16 1t;i ~
17 ~'!r!
palavras: «Eu sou Aquele que é»3, por que razão não poderá a
pessoa definir-se da mesma maneira? Entre tantas outras fórmulas,
o homem foi caracterizado como animal insaciável, um existente
semcssência, um ser da distância: càda um destes enunciados
constitui uma definição cuja forma fechada não o impede de modo
nenhum de dar a entender a abertura essencial daquilo que define.
É por isto que mesmo uma metafísica do mistério da pessoa seria
mal fundada se recusasse as exigências de uma ética da clareza.
Se a empresa de esclarecer o que é a pessoa humana levanta
dificulades, não é, pois, porque ela se recuse a uma definição.
Seria antes, ao contrário, porque admite muitas definições que
não se percebe bem como poderiam ser compatíveis. Ninguém
precisa de análises eruditas para perceber aquilo que, a bem
dizer, entra pelos sentidos em inúmeras ocasiões. Assim, uma
série de emissões televisivas que teve recentemente um forte eco
intitulava-se O bebê é uma pessoa.4 Toda a gente compreende ime-
diatamente o que o título significa, e aquilo que ele não significa.
Aquilo que ele não quer, de todo, dizer - pois isso sabemo-lo à
partida, e nã o é plausível que se queira gastar muito tempo a
ensinar-no-lo - é que o bebé não é uma coisa que podemos usar
como nos pa recer, mas um ser humano de pleno direito, d e
maneira qu e maltratá-lo expor-nos-ia à indignação da consciên-
cia pública, e mesmo à sanção dos tribunais.
N ão, o projecto anunciado por este título é fazer-nos desco-
brir que o bebé é uma pessoa num outro sentido da palavra:
que, por muito pequeno que seja, tem uma competência para
perceber, para sentir, para comunicar muito maior do que habi-
tualmente se pensou até aos nossos dias. Ele já é uma pessoa, é
o que nos querem dizer, não no sentido jurídico - isso é evidente
- mas no psicológico - e essa é que é a novidade. Ora, este
segundo sentido não está de acordo com o primeiro, bem longe
disso. Pois se, por exemplo, sendo profundamente débil, um
bebé não for uma pessoa senão muito longinquamente, nesta
segunda acepção, nem por isso o é menos na primeira. E se,
3 Êxodo, lU, 14.
4 Esta série de emissões ficou a dever-se ao muito saudoso Tony Lainé e a
Bertrand Martinot.
18
inversamente, completamente desperto, tem a infelicidade de
nascer num país onde lhe não são reconh ecidos os direitos da
pP.ssoa, no sentido jurídico e moral, nem por isso u. é menos no
sentiJu psicológiéo e pediátrico.
Eis-nos, pois, em presença de um termo estranhamente u1kt ,
e duplo, ao mesmo tempo. «Ser uma pessoa» constitui, por is~q,
mesmo, uma proposição das mais ambíguas. É possível enten~
dê-la no sentido em que, numa certa idade, se é púbere: aqui. 0
verbo ser constata, e aquilo que é constatado é uma pessoa «de
facto))' reconhecível, com as suas capacidades, qu e são prescru-
táveis, quer pela biomedicina quer pelas ciências humanas.
Pode-se compreendê-la igualmente no sentido em que, por
exemplo, numa certa idade, se é eleitor: aqui, o verbo ser
decreta, e aquilo que é decretado é uma pessoa «de direito))' ~,,I
definível pelas suas prerrogativas, precisadas pelos moralistas e i:
pelos juristas. Realidade de um lado, valor do outro: estes dois
aspectos da noção são, não somente heterogêneos mas, ao que
~f
1.
parece, discordantes. E contudo, na sua plena acep ção comum,
a pessoa humana inclui manifestamente os dois; aí está o enig-
ma. Usar um conceito tão paradoxal sem o elucidar de modo
preciso é votar-se a mu itos d esenganos ou sofismas. Assim,
quando se trata da pessoa no discurso bioético, surge, à partida,
a necessidade da sua críti ca, no sentido indicado no princípio.
Ora, uma tal crítica do conceito de p essoa com promete-nos
com um percurso circular, em que cada aspecto da noção mani-
festa uma propensão para englobá-la totalmente, ambição cujo
fracasso incontestável nos reenvia ao outro aspecto - e recipro-
camente. Comecemos por enfrentar este círculo vicioso.
A PESSOA, FICÇÃO CULTURAL?
O indivíduo faz parte dos conceitos da ciência biológica; a
pessoa não. Não nos dirá esta evidência, já, o essencial? Aquilo
que visamos no ser humano, ao nomeá-lo pessoa, é de ordem
incorporai.
Afirmação à primeira vista estranha. Na linguagem mais
comum- «as pessoas presentes))' «aquela pessoa ali)) - , não nos
referimos, justamente, com a palavra pessoa ao ser de carne e
19
osso? Sem dúvida, mas, neste sentido banalizado ao extremo,
trata-se simplesmente do algué~ indiferenciado, do qujdam .
Estamos aqui bem abaixo do concezto de pessoa, d~ ~u~ a ~mgua
comum mantém, contudo, algum véstígio quando ms1ste: estar
num sítio «em pessoa», assumir os riscos «pessoalmen~e».
Aparece então uma entidade sob a indiferenciação- uma entida-
de, aliás, mais moral do que física em exp~ssões como «uma pes-
soa notável», «uma pessoa de confiança». E verdade que «pessoa
de qualidade» foi uma expressão que fico~ somb~eada com o
Antigo Regime, e a palavra pessoa ressentm-se d1sso. dur~nte .
muito tempo. Em seu lugar, a Revolução promoveu _o_c1dadao; a
sociedade burguesa, o indivíduo, o movimento operano, o cama-
rada. Contudo, o seu ressurgimento contemporâneo no uso cor-
rente não parece ser imputável apenas às teologias do Deus pes-
soal e às filosofia s personalistas: a afirmação crescente dos
Direitos do Homem e da sua dignidade não terá contado mais? Na
linguagem policial, por exemplo, não é bom sinal ser~ indivíduo:
a passagem a tabaco não está longe. Mais vale ser tido ~or um.a
pessoa: pressente-se aí a intervenção do advogado, que ~a1~a res~ei­
tar os direitos do acusad o. Até mesmo o linguajar quohdrano hga,
assim, intuitivamente, a pessoa às obrigações que ela implica.
Ninguém, como Kant, fez valer esta concepç~o . ~<A p~ssoa,
escreve ele, é esse sujeito cujas acções são suscept1ve1s de tmp~­
tação.>> E o que é uma imp,utação? «A imputação no sentido
moral é o juízo pelo qual se olha para alguém como o autor de
uma acção.» Um corpo determinado pode ser a causa a que se
atribui um efeito. Mas só um agente livre pode ser o autor a
que se imputa uma acção. Quem diz pessoa diz portanto,
simultaneamente, sujeito e liberdade. Enquanto ser natural, o
homem está, bem entendido, submetido a determinismos orgâ-
nicos. Mas, enquanto ser de razão, é capaz de determinações
éticas «independentes dos impulsos sensíveis». Já não são,
então, as leis naturais que o constrangem, mas as da su~ vonta-
de autónoma que o obrigam - por exemplo, ao respeito pela
palavra dada. Apenas a este título ele é uma pessoa. «A pessoa
nada é senão a liberdade de um ser racional.» 5
5 Kant, Métaphysiquc des moeurs, em Oeuvres philosophiques, Gallimard, La
Pléiade, 1986, t. UI, pp. 457, 470 e 475.
20
Se quisermos pensar com algum rigor, temos portanto de
distinguir aquilo que normalmente se confunde sob a noção .)
equivoca de ser humano .. O ser humano é humano pcrqu~ tem ( · ('i.
como ponto de partida a humanidade como espécie biológiCE}.
A pessoa é humana num sentido completamente diferente: peib
facto de tomar como fim a humanidade como ideal regulado'f",
No ser humano, a humanidade está presente a título de facto.
Na pessoa, ela está representada como um valor. É esta repre-
sentação que constitui a consciência moral. Esta «deve conce-
ber um outro para além dela própria (um outro que é o homem
em geral) como juiz das suas acções» - um outro que «pode ser
uma pessoa real ou uma pessoa puramente ideal, que a razão
dá a si própria»6. É verdade que a actividade da pessoa ética
pressupõe as conquistas da personalidade psicológica, por
exemplo, a capacidade de dizer «eu », que eleva o homem «ao
infinito acima de todos os outros seres vivos sobre a terra»7. E é
nisto que o exercício da moralidade requer uma pedagogia.
Mas atenção: essas são apenas as suas condições empíricas de
possibilidade e não a sua natureza intrínseca, que reside intei-
ramente na «inconcebível propriedade da lihcrdade»B. Se acei-
tarmos o ponto de vista de Kant, pessoa ética e indivíduo físico
pertencem claramente a duas ordens inteiramente distintas.
Não é espantoso encontrar análises de orientação muito 'I
semelhante entre juristas? A pessoa como sujeito de direito
«ign ora completamente o cor p o», diz -nos Do miniqu e
Thouvenin. «Não se trata de um esquecimento nem de uma
indiferença», mas de uma fronteira que o sistema jurídico tem
de traçar com firmeza, se quiser delimitar o seu «campo legíti-
mo de intervenção». Conceito abstracto e não realidade concre-
ta, a pessoa define-se como «a aptidão a ser titular de direitos e
de obrigações», aptidão essa que repousa sobre a «vontade
livre e autónoma» do sujeito.9 Esta linguagem é directamente
6 Ibid., p. 727.
7 Kant, Anthropologie du point de vue pragramatique, ibid., p. 945.
8 Kant, Métaphysique des moeurs, obra citada, p. 702.
9 Dominique Thouvenin, «Le droit aussi a ses limites», em Le Magasin des
enfants, obra colectiva sob a direcção de Jacques Testart, François Bourin,
1990, p. 223.
21

aparentada com a da ,análi~e ~antian~, e não é ~or acaso: não;
a sua matriz comum e a propna matrtz dos dueitos do homem .
' Numd tal lógicd, a dissociação entre pessoa e indivfduo físico é
de tal maneira fundamental que, se se atender ao pensamento
jurídico contemporâneo, se deve recusar ,a concepção clássica
do direito natural, para o qual «era o caracter humano da pes-
soa que lhe conferia os seus direitos». Pois, racio~n~n~o _deste
modo, perpetuar-se-ia «uma confusão entre ~ _noçao J~n~1ca d:
pessoa e a de ser humano». «A figura do sujeito de d1re1to esta
inteir amen te ligada à autonomia da pessoa », e de mod o
nenhum à natureza de ser vivo que nele ocorre. Eis por que
razão o corpo, enquanto tal, está «ausente do Código Civil»: o
que constitui a pessoa de direito não é o organismo humano,
mas a «vontade agente>>. 10
Aquilo que põe ainda mais em relevo :sta heter~geneid~de
é o facto de, como recorda outra junsta, M ane -Angele
Hermitte, «entre as pessoas, no sentido jurídico do termo, não
haver senão seres humanos>> . Ao lado daqueles a que o direito
chama «pessoas físicas» - físicas apenas no sentido em que ,o
seu suporte é um indivíduo -, estão as «pessoas moraiS» as
auais falta totalmente este gênero de suporte11: entidades como
~ Estado, agrupamentos c~mo os sindicatos, e mesmo massas
de bens como as fundações.._ A noção de pessoa humana revela
aqui toda a sua ambiguidade. Contrariamente àquilo que po:
vezes se pensa, não se trata de um pleonasmo, uma vez q~e ha
pessoas jurídicas que não são pessoas humanas. Ma~ quall~Icar
aquelas qu e o são como «pessoas humanas>>, por mmto habitual
10 Dominique Thouvenin, <<Consentement et assujettissement>>, em Vers un.
anti-destin, sob a direcção de François Gros e Gérard Huber- Actas do
colóquio «Patrimoine génétique et droits de l'humanité>> (Outubro de
1989), Odile ]acob, 1992, p. 473 . Isto nã.o quer dizer que o corpo humano
seja estranho ao direito. Ele encontra o seu lugar, nomeadamente no
Código Penal, em razão dos atentados que pode sofrer. CJ. Dom1m~u,e
Thouvenin, «Les projets de !oi sur le corps humain ~ des pnnCipes gene-
raux pour une Iégislation spéciale», em Prévenir, «L'Ethique, l'Homme, la
Santé>>, n-º 22, primeiro semestre de 1992, p. 81. · gia que nos esclareça sobre ela - sobre o seu começo, o seu fim,
11 Marie-Angele Hermitte, «L'embryon aléatoire>>, em Le Magasin des enfants,
obra citada, p. 263.
22
1:
'
que seja, arrisca-se a criar a confusão, fazendo recuar todo o
esforço da filosofia e do direito no sentido de marcarem a dife-
;.-ença essencial entre ser natural e sujeito racional, ordem de
facto e ordem de valor. ·
I
I ~
ONDE O ABSOLUTO SE DEMONSTRA
INACEITAVELMENTE RELATIVO
Em suma, se a vida produz humanos, apenas numa comu-
nidade instauradora de regras morais e jurídicas se produzem
pessoas. Compreende-se então que, construção cultural estra-
nha à ordem natural, a pessoa possa transcender as vicissitudes
d esta ordem. Relacionando-se com conceitos normativos e não
com conceitos descritivos, esta elaboração da razão não é con-
dicionada pelos estados inesgotavelmente varia dos e variáveis
do ser empírico, mas confessa-se, pelo contrário, invariável,
unívoca e, acima de tudo, incondicional. Há nela algo de abso-
luto, que é expresso igualmente pelo valor categórico do impe-
rativo moral e pelo carácter inalienável dos Direitos do Homem.
Abstraindo de tudo aquilo que singulariza os seres concretos, a
pessoa, assim compreendida, pode também, à primeira vista,
'i 1\
ter pretensões à universalidade: todos os indivíduos diferem
entre si, todas as pessoas se equivalem. Em virtude desta mes-
ma abstracção, ela é uma qualidade indefectivelmente ligada a
todos aqueles que são, serão, poderiam ser ou foram sujeitos
livres. Ponto capital: as prerrogativas éticas da pessoa esten-
dem-se muito para além das condições psicofísicas que ela
pressupõe na sua forma realizada. Mesmo quando o sujeito
desfalece e se torna incapaz, nem por isso elas deixam de per-
manecer como exigências plenas atribuíveis a terceiros - pai,
tutor, homem de lei-, convidados a emprestarem-lhe a sua pró-
pria liberdade. Nada ilustra melhor a essência incorporai da
pessoa.
Uma vez delimitado com exactidão o seu conceito, espanta-
-nos ver que, com tanta frequência, se continua a pedir à biolo-
e mesmo sobre o seu próprio ser. Alguém se lembraria de pedir
23
à química dos corantes que nos instruísse sobre aquilo que
constitui a beleza de um quadro? Num pedido deste género,
trai-se a incompreensão profunda daquilo que é um facto de
cultura. BióÍogos, não subam acin~.á da natureza! De resto, os
mais sábios dentre eles sabem-no, pois declinam firmemente
este género de convite dirigido à sua disciplina. Não é a ciência
do ser vivo que funda o respeito pelos mortos. E a Declaração
dos Direitos do Homem não se apoia na embriologia para pro-
clamar que os homens nascem iguais em direitos: insustentável
se pretendesse descrever um dado natural, tal princípio opõe
deliberadamente à natureza a ficção, que nos impõe que faça-
mos prevalecer.
Eis pois, ao que parece, o estatuto da pessoa assegurado.
Mas, quanto mais se consolida a sua autonomia racional, mais
a fragiliza o seu distanciamento do real. Voltando resolutamen-
te as costas ao facto, não será uma tal concepção da pessoa, no
fim de contas, menos absoluta que arbitrária? Termo não polé-
mico, reivindicado, pelo contrário, pelos defensores desta visão
totalmente simbólica. «Como se a definição da pessoa, escreve
a psicanalista Monette Vacquin, _pudesse não ser arbitrária.>> 12 A
ideia é, ccntudo, preocupante. E claro que a pessoa resulta das
ficções, sustenta, por seu lado, uma jurista como Catherine
Labrusse-Riou, mas dessas «ficções não arbitrárias>> às quais o
direito é obrigado a recorrêt.13 Apreciações contraditórias?
Certamente que não, pois a arbitrariedade pode entender-se a
diversos níveis. No sentido habitual, é a ausência de motivos
válidos que torna uma escolha arbitrária; num sentido mais ele-
vado, é o próprio facto de se escolher. No primeiro sentido, o
jurista pode, evidentemente, defender o carácter bem motiva~o
de qualquer construção, arguindo que apenas ela penmte
«proteger>>a vida do sujeito, «sem por isso confundir a pessoa
com o seu destino biológico»14. Resta, contudo, no segundo
12 Monette Vacquin, <<Le face-à-face de la science et du sexu el>>, em Le
Magasin des enfa.nts, obra citada, p. 291.
13 Catherine Labrusse-Riou, «Servitude, servitudes», em Bernard Edelman e
Marie-Angele Hermitte, L'Homme, la na.ture et le droit, Christian Bourgois,
1988, p. 327.
14. Ibid., p. 327.
24
sentido, a arbitrariedade inerente e uma ficção, ou, se se prefe-
rir, o seu carácter puramente decisório.
Mas então as coisas invertem-se invPncivç+n.cnte. Abscluta.
relativamente às realidades antropológicas que se esforça por
apagar, a pessoa aparece, por isso mesmo, inteiramente relativt. , ,
aos conceitos ético-jurídicos nos quais se decide apoiá-la. De
que incondicionalismo pode ela então tirar partido? Também
aqui, a reflexão de Kant é exemplar. Não há pessoa sem liberdade
- esse modo de determinação de um ser sensível onde é suposto
ele escapar a toda a causalidade natural-, mas uma libe;dade
que há que reconhecer, por isso mesmo, que é inconcebível, a
tal ponto que «qualquer esforço, qualquer trabalho para procu-
rar uma explicação para ela, afirma o filósofo, é pura perda de
tempo» 15. Pedra angular da pessoa, como a considerámos até
aqui, a liberdade ergue-se, a seus olhos, dos postulados da
razão prática, como a existência de Deus ou a imortalidade da
alma. É difícil dizer de modo mais claro que ela está suspensa
de um acto de fé metafísica. Como recusar, então, a arbitrarie-
dade última desta representação da pessoa? E de que modo
poderia ela estabelecer um acordo entre moralistas especulati-
vos e cientistas positivos, entre almas crentes e espíritos incré-
dulos?
Com o carácter incondicionado da pessoa, desvanece-se
também a sua universalidade. Válida para todos, em pensa-
mento, pelo próprio facto da sua completa abstracção, ela não .,,
,·
pode sê-lo na realidade, por causa da sua solidariedade patente
com uma cultura particular. Como mostrou Marcel Mauss
numa análise clássica da noção 16, a pessoa, no sentido moral e
jurídico de que aqui se trata, é o termo provisório de uma longa
história, marcada, nomeadamente, pela persona latina, o homem
cristão, o indivíduo da sociedade burguesa, o cidadão das
Luzes. Tradição prestigiosa e altamente pregnante, sem qual-
quer dúvida, exposta contudo a muitas contradições íntimas e a
15 Kant, Fondements de la métaphysique des moeurs, Delagrave, 1952, p. 206 (tra-
dução portuguesa: Fundamentação da Metafísica dos Costumes, tradução de
Paulo Quintela, Lisboa, Ed. Setenta, 1986).
16 Mareei Mauss, Sociologie et anthropologie, PUF, 1991, pp. 333-361.
25
limitações externas. Não que ela possa ser encarada como
exclusivamente ocidental. Mas poderá ser interiorizada, por
exemplo, por um Kanc.k, ~stranho à nossa Jr<':neira de sermos
indivíduos em sociedade17, ou por um Hindu, formado na evi-
dência da metempsicose? E, no nosso próprio ambiente cultu-
ral, de quantas contestações teóricas e recusas práticas é ela
objecto? Paradoxo: face ao carácter tão relativo desta universali-
dade fictícia , não será, pelo contrário, a biologia que põe fora
de dúvida, através da infinitude das diferenças individuais, a
identidade natural de todos os homens, inscrita nos traços
comuns dos seus genomas?
E ainda não é tudo. Nesta visão da pessoa, a única preocu-
pação parece ser defini-la em compreensão: o que é a pessoa?,
para identificá-la com a ideia de sujeito racional livre. E parece
considerar-se que seria fixada, no mesmo movimento, a sua
extensão: o que é uma pessoa er\.tre os seres concretos? Ora, esta
última questão, tal como foi posta, é insolúvel, uma vez que
pensar a pessoa seria justamente abstrair-se destes entes con-
cretos. Ela é reduzida a uma característica atribuída - e é aí que
está a sua arbitrariedad e. É preciso ainda dizer quais são os cri-
térios de atribu ição dessa característica. E onde procurá-los,
senão do lado destes indivíduos físicos que se pretende igno-
rar? Assim, a pessoa não pode ser uma entidade tão abstra cta
que não comece e acabe no tempo: em que pontos da vida
empírica devemos situar este começo e este fim? Ela não pode
ser tão ideal que não se relacione com o mais e o menos: será o
direito, será a moral que nos dirão que razão podemos supôr
haver no demente, que liberdade no autista, que sujeito no
doente em coma? Temos que submeter-nos à evidência: a pessoa
só é valor quando valoriza seres reais. Excluir do seu campo
17 Cf Maurice Leenhardt, Do Kamo- La Personne et le mythe dans le monde méla-
nésien, Gallimard, 1947. O dirigente independentista Kanak Jean-Marie
. Tjibaou explicava (Le Monde, 2-3 de Dezembro de 1984, p. 9): <<( .. .)Existe a
sequência dos antepassados e depois existimos nós. E a vida passa através
desta genealogia, e esta genealogia é a dos meus pais, mas é também a do
clã que deu a minha mãe e que, dando a minha mãe, também me deu a
vida. (... ) Então, eu permaneço sempre dual. Nunca sou um indivíduo. Não
posso ser indivíduo. O corpo não é um princípio de individuação. O corpo
é sempre relação.>>
26
estes seres reais não é, portanto, somente contestável, mas, pura
e simplesmente, impraticável. Assim, não há pessoa «de direi-
to» sem pessoa «de bcto». Toda a anál-i;,~ deve ser :rE:tomada. ,,.- · .j, '''"
A PESSOA, REALIDADE NATURAL?
Tínhamos partido de uma convicção arriscada: a pessoa é
incorpora!. Partamos agora da evidência oposta: a pessoa é o
ser carnal. É o respeito por ele, e não por uma ficção, que se tra-
ta de assegurar. E portanto, sem surpresas, pela biome~icina
que se deve começar, quando se quer pensar a bioética. E ver-
dade que se disse e se repetiu que a ciência do ser vivo nada
tinha a ensinar-nos sobre a consistência da pessoa. Mas este
desprezo pela informação científica adequada não resiste ao
estudo de um único dossier de ética biomédica. Bem entendido,
o saber biológico não entra em concorrência com a moral nem
com o direito no esclarecimento sobre o bem e a justiça. E tam-
bém não pretende substituir a filosofia para nos instruir sobre o
sujeito e sobre a liberdade. Ele limita-se, aparentemente, a muito
menos do que isso: ao orgânico, ao neuronal, ao biomolecular.
A surpresa para o profano consiste, então, em constatar que
este saber altamente complexo do elementar nos faz, muitas
vezes, avançar mais na consideração devida ao homem real do
que toda a literatura apologética sobre a sua eminente dignidade.
Todas as pessoas têm o mesmo valor? Esta tese ético-·jurídi-
ca capital não deixou de ser alvo das denegações daqueles que
tomam por adquirida a noção de «raças» humanas. A biologia
estabelece de modo indubitável a inanidade de uma tal crença.
Cada pessoa é um ser singular? A genética e a imunologia con-
ferem a esta evidência intuitiva um alcance totalmente inespe-
rado, reveland o a insondável variedade dos acasalamentos
genéticos e das combinações do sistema HLA 18. De modo mais
18 Da mesma maneira que há grupos sanguíneos determinados por um sistema
de antigenes ao nível dos glóbulos vermelhos, há também grupos orgânicos
compatíveis ou incompatíveis entre si, cujo conhecimento é capital em maté-
ria de enxertias de órgãos, e que são determinados por um sistema de antige-
nes ao nível dos glóbulos brancos (daí o seu nome de sistema HLA: Human
Leucocyte Antigens) A sua descoberta valeu o Prémio Nobel da Medicina a
Jean Dausset, em 1980.
27
geral, é impossível dizer o que q~er _que seja ~e valioso sobre o
nascimento e a morte, sobre a propna humamdade do homem,
sem -começar por assimilaJ1 as experiências, frequentemente
deàpantes, das ciêncías dâ vida e da sa~de. O r~speito pelo ser
humano cessa então de ser um o-rande 1mperat1vo formal para
se povoar de obrigações precisas~ A própria ~essoa sai da ficç~o
abstracta: é o ser de carne e de sangue, do sofnmento e do deseJO,
do olhar e da palavra, e, nesta base, da razão e da liber~ade - na
acepção da palavra que a experiência aut~riz~. ~-partir da qual
se concretizam as rubricas mestras da ex1genoa etica: preservar a
vida, acalmar a dor, escutar o pedido, respeitar a vontade.
Alegar-se-á, com Hume, que o facto de modo nenh~m fun-
da o direito? Muito bem. Mas o direito, por sua vez, nao nega
impunemente o facto . A ciência é impiedosa com a arbitrarie-
dade. É aí que se encontra todo o sentido da fórmula cara a
19
Tean Bernard : «Aquilo que não é científico não é ético.»
~\forismo sem relação com a apologia de uma «moral científica»:
trata -se, simplesmente, da constatação çle que, a partir do fal~o,
não se pode chegar ao justo. Neste sentido, através d~ uma ~Ia­
léctica que escapava a Hume, o facto dita, em certas orcunstan-
cias, o direito: negativamente. Determina-o, negando-lhe a lati-
tude de decretar seja o que for. Este ponto permanece, na
minha opinião, consideravelmente subestimado na literatur~
bioética. Ora, ele diz respel'to, nada mais nada menos, que a
questão central, aquela onde reside todo o enigma da pessoa:
ao nó que formam, em conjunto, realidade e valor. Demoremo-
-nos um pouco a ilustrá-lo com um exemplo importa~te .
«A pessoa começa desde a concepção». Para mmtos daqu~­
les que se ocupam de ética biomédica, seguidos - ou p~ecedi­
dos - por largos sectores da opinião pública, esta asserçao tem
um valor fundamental e quase axiomático. Tal como é normal-
mente compreendida, ela significa que, desd e o inst~nt~ da
fecundação, surge um ser humano ao qual devemos atnbm~ as
prerrogativas essenciais da pessoa. Enunciado normativo
19 De la biologie à l'étlúque, obra citada, P- 40. Cf. o comentário de Jean Be~nard
a esta fórmula frequentemente incompreendida na rev1sta Pro;et, n.- 195,
Setembro-Outubro de 1985, p. 105, nota 4.
28
garantido pelo que passa por ser uma constatação de facto, ele
beneficia de apoios de respeito: o do jurista, para quem o ser
_ concebido é, à p 8.rtida, snjeit.o rle.di.reito, sob ;-cs.:.:r v '' J0 ·seu··" " -
nascimento viável; o do teólogo, que professa, acompanha9-o
por uma tradição considerável, a tese da animação imed1ata'20;
e, acima de tudo, sem dúvida, o do bom senso: como duvida,{
de que, quando o óvulo é fecundado, começou um novo ser?
Ora, é altamente instrutivo ver de que modo os biomédicos I!
colocam com precisão, sem ódio e sem temor, questões de facto
muito desestabilizantes a esta posição de princípio.
1. Que se quer dizer com «desde a concepção»? Isto parece
ser óbvio. Mas, já que é necessário, explicitemo-lo: desde a
penetração do espermatozóide no ovócito, e da união que dela
resulta entre os cromossomas destes dois gâmetas. Será suficien-
temente claro? Não, escreve sem hesitar um biólogo católico
como Charles Thibault: trata-se de uma resposta «superficial»,
e por uma razão forte21
Porque esta penetração e esta união sumariamente tidas
por qu ase instantàneas revelam-se, quando abordadas mais
finamente, um processo complexo, ocorrido durante uma longa
1' ~
jornada e marcado por diferentes fases . Qual delas se deve I
escolher como instante inaugural? Gincana sem consequência?
Julgar que o é seria não ver que uma tal sequência temporal
oferece muita matéria para investigações biomédicas, cuja ava-
liação ética varia totalmente segundo a resposta escolhida.
Seria ainda não captar o alcance profundo da dificuldade. Na
afirmação de que a pessoa começa «desde a concepção», o ponto
decisivo é a ideia de instantaneidade. É ela que sustenta, ao
menos silenciosamente, a representação de uma cesura ontoló-
gica na qual a pessoa pode ser efeito de um momento, no seu
carácter absoluto. Ora, aquilo que resulta do saber biomédico é
20 Tese segundo a qual Deus infunde directamente a alma no embrião. Cf.,
neste mesmo capítulo, um comentário mais pormenorizado sobre este pon-
to no subtíh!lo: <<Pessoa: um conceito inconcebível?»
21 Charles Thibault, «Un biologiste, enseignant-chercheur, face à l'expéri-
mentation sur les animaux et sur l'homme>>, em Aux débuts de la vie - Des
catholiques prennent position, Éd. La Découverte, 1990, p. 62.
29
que não há um «instante t» onde se possa situar um tal surgi-
mento: por muito longe que vamos nadissecação do tempo,
cor:tinll3mos <~. tP.r entre mãos um processo e, consequentemen-
te, a gradualidade de uma gênese. É o próprio conceito de pes-
soa como totalidade imediata, cuja entrada em efeito escaparia
à constituição progressiva, que esta interrogação, modesta mas
muito perturbadora, põe em causa.
UMA FICÇÃO À PROVA DE FACTOS
2. No enunciado «a pessoa começa desde a concepção», o
que se entende exactamente por «pessoa»? Parece que já se
explicou suficientemente esta questão acima: trata-se do sujeito
de prerrogativas jurídicas e éticas. E, uma vez que, com a con-
cepção, aparece, sem sombra de dúvida, um ser humano, surge
também a obrigação de lhe reconhecer estas prerrogativas:
quem diz ser humano, diz pessoa. Ora, esta equivalência postu-
lada constitui uma verdadeira violência lógica. Pois a expressão
«ser humano» dissimula, sob a sua familiaridade, um extraor-
dinário equívoco. Poderá negar-se o ser ao ser concebido?
Certamente que não. Será contestável que ele é humano? Muito
menos. Trata-se, pois, de um ser humano -e, consequentemente,
de uma pessoa: tal é o raciobnio que está por trás desta tese.
Mas, se basta ser e relacionar-se com o humano para ter direito
ao nome de ser humano, como pode este raciocínio aplicar-se,
por exemplo, aos gâmetas tomados à parte, antes da concep-
ção? Assim, o óvulo é? Certamente que sim. E é um óvulo
humano? Decidimos que sim. Ele é, portanto, também um «ser
humano»- um ser humano antes da concepção, a qual não seria,
pois, o verdadeiro «começo da pessoa»?
Já se percebeu que há aqui um sofisma. Ele consiste em
jogar inconscientemente- ou talvez, por vezes, conscientemente?
-com os dois sentidos das palavras em causa. Num sentido
fraco, a expressão verbal <<ser humano» mais não faz do que
especificar uma rubrica do ser em geral e pode aplicar-se, por-
tanto, a tudo aquilo que é constitutivo do Homo sapiens sapiens:
do neocórtex hiperdesenvolvido, como do polegar oponível,
30
poder-se-á dizer que «são humanos» - e há que dizê-lo, com certe-
za, neste sentido, do ser concebido da nossa espécie. Mas, no senti-
do forte, a expreseão substantivil «ser humL<no» (o st::r humano, um
ser humano) significa incomparavelmente mais. Aqui, ser já não
reenvia à pura existência de alguma coisa mas à subsistência rica-: ..
mente determinada de alguém - e toda a questão consiste em saber
se o ó~o fecundado ainda deve ser tido por alguma coisa, ou já
por alguem. Passar de um ao outro sem sentir a necessidade de se
justificar é um equivoco conceptual exorbitante, que, contudo, leva
uma existência tranquila em muitos textos bioéticos.22 O ser conce-
bido é humano, ou seja, é um ser humano, e portanto uma pessoa:
CQFD. Uma tal consequência, onde se encontra pressuposto, atra-
vés de wn jogo de palavras, justamente aquilo que se tratava de
estabelecer, é arbih·ária no sentido mais proibitivo do termo.
Isso tornará insustentável a ideia de um respeito que entra
em efeito desde que a criança é concebida? Não forçosamente,
se se tomar, com toda a clareza, uma decisão ética a esse respei-
to, respondem aqueles cujo pensamento seguimos aqui.23 O
gue, segundo eles, não resiste ao exame científico é simples-
mente isto: que haja, desde a concepção, uma pessoa a respeitar
porque estaríamos imediatamente a falar de um ser humano. Do J,;
,,
óvulo acabado de fecunda r nada autoriza a estabelecer que ele ~i
o seja, como uma irrecusável evidência. Faltam-lhe característi-
cas propriamente decisivas do ser humano. Como a actividade
nervosa superior, tão essencial àquilo gue constitui a vida de
um homem que o traçado electroencefalográfico plano é hoje
critério da morte. Ora, no desenvolvimento do embrião, há que
esperar pelo décimo quarto dia para que, com o aparecimento
da linha primitiva, comece a ficar indicado aquilo que se torna-
rá o sistema nervoso central, e pelo sétimo mês para que o cére-
bro seja funcional. Haverá ser humano sem cérebro?24
22
E m es m o numa _obra muito erudita e útil co mo Penser J'embryon de
Philippe Caspar, Ed. Universitaires, 1991, p. 112.
23
Por exemplo, M. Palacios, Relator da comissão <<Ciência e Tecnologia>>da
Assembleia Parlamen tar do Conselho da Europa; cf Philippe Oliviero, «La
notion de preémbryon>>, em Vers un anti-destin, obra citada, pp. 92-115.
24
Em Le Magaszn des enfants,. obra c1tada, pp. 242 e 260, Marie-Angele
Henmtte apresenta como mmha a proposição de «que a pessoa humana
3.1
 Podemos dizer, pelo menos, que desde a fecundação estamos
a lidar com um indivíduo? Nem isso, se se quiser convir em que
as propri~gaqes imunulógic~s s~o as mais típicas da individuali~
Jade no plano biológico. Ora, até ao fim da segunda semana, estas
propriedades não se manifestam; aliás, pelo contrário, o embrião
em fase pré-implantatória seria rejeitado pelo útero materno como
um vulgar corpo estranho. Haverá indivíduo sem eu biológico?
Há que render-se à evidência: o zigoto da nossa espécie é huma-
no, mas isso é claramente insuficiente para fazer dele um ser
humano, nem que este fosse apenas _u ma carne capaz de sofrimen-
to - portanto para provar que ele deve ser tido por uma pessoa.
3. Que se quer dizer quando se defende que a pessoa
«começa» desde a concepção? Será isto uma constatação ou um
decreto? Se fosse um decreto jurídico-moral, certamente que a
ciência nada teria a dizer. Mas o utilizador deste verbo no indi-
cativo mistura de novo as pistas: veste um decreto de constata-
ção. Faz como se o direito pudesse tirar partido de um facto. E
zanga-se quando se responde: o senhor nega que, com a união
dos dois gâmetas, entra na calha um novo ser, embrionário, sem
dúvida, mas já provido do equipamento genético que vai fazer
dele, não um rato ou uma mosca, mas um indivíduo da espécie
humana? Assim, n concepção é tida como um autêntico conzeço,
isto é, o empenhamento numa história orientad a, onde um tenno
futuro estaria já fixado no presente,. de maneira que reconhecer
nele uma pessoa relevaria, não da aposta, mas da certeza.
seja definida por dois electroencefalogramas, o do início e o do fim», reme-
tendo, neste ponto, para uma entrevista que me foi feita por Josette Alta e
publicada pelo Nouvel Observateur, n.º de 10 a 16 de Maio de 1990. Ora,
nem a frase que me é imputada, nem qualquer outra com o mesmo senti-
do, figuram, de modo algum, nessa entrevista, pela simples razão de que
eu defendo um ponto de vista exactamente oposto. Evocando as razoes
científicas pelas quais é tão difícil pretender que o embrião seria já um ser
humano, defendi nessa entrevista a ideia de que ele nem por ISSO deve dei-
xar de ser tratado como pessoa potencial, sublinhando que se trata de uma
«questão ética». E comentava: «Seria arruinar essa questão pretender cau-
cioná-la, selvaticamente, por argumentos biológicos que não se lhe apli-
cam.>> Não me parece que Marie-Angele Hermitte esteja suficientemente
atenta à diferença profunda que existe entre o conceito biológico de ser
humano e o conceito axiológico de pessoa. Ela acred ita, assim, numa inter-
pretação do meu pensamento que constitui um total contra-senso.
32
Ora, os conhecimentos biológicos actuais põem igualmente
em causa esta imagem da fecundação como ponto de partida
de um processo finalizado. Inicialmente, porque o óvulo acaba- .
dó de fecundar nãci é, como ima-gina o -prof~no, uma re:üidade
com um destino unívoco que desenvolve a pouco ~ pouco a sua-;
actividade, mas uma célula totipotente apta para evoluções ,
diversas e cuja realização resulta, não da emergência de uma
única possível, mas da eliminação de todas as outras. É verda-
de que, a partir do zigoto humano, não aparecerá um rato ou
' uma mosca, mas também não aparecerá necessariamente um
ser humano. Da divisão celular, pode resultar um embrião
informe25, ou mesmo um tumor. A maior parte destas células
produzirá, não o embrião, mas a sua placenta . Até à terceira
semana, o próprio embrião pode dividir-se, para formar gêmeos.
E o ser humano chegado ao fim será o fruto de uma imprevisí-
vel epigénese, tanto quanto dos dados genéticos iniciais. Como
não concluir que o destino unívoco do zigoto é um mito, como
o é a representação finalizada de um começo?
Mas há mais. Nas condições naturais da reprodução huma-
na, 50 a 80% dos en1briões abortam espontaneamente nos pri-
meiros dias e são evacuados sem o conhecimento das mulheres
que os traziam dentro de si. No estado actual de incerteza, os
autores parecem escolher entre estas duas avaliações extremas,
segundo as suas orientações ideológicas.26 Seja como for, tal é o
destino da maioria dos embriões - em consequência, nomeada-
mente, de anomalias cromossômicas . Portanto, há muitas
fecundações que não produzem um ser humano viável. Este
importante facto, pouco divulgado, que alimenta sarcasmos
blasfematórios sobre o tema do «Deixai-os viver!», tem um
alcance importante na questão que agora nos ocupa. Ele torna
manifesto que, entre a lotaria que preside à constituição de um
genoma e a hecatombe que atinge os embriões ainda não
implantados, aquilo que domina os processos iniciais da repro-
dução humana é o seu carácter maciçamente aleatório.
25 Crescimento anormal da placenta que conduz ao aborto precoce.
26 Cf Vers un anti-destin, obra citada, p. 108, nota 20.
33
 Isto não estabelecerá definitivamente que pensar a concepção
como instante inaugural do ser pessoal constitui uma projecçã?
fantasmática do mito da origem, oper~da em total desconheci-
e
mento dos acasos limiares sucessivos da ontogénese, que se
poderia igualmente tomar c?mo <<ver?a~e.iro» começo?~ mes-
mo acontece com as vãs disputas lustoncas para designar o
acontecimento onde começariam verdadeiramente os tempos
modernos . O ser humano .n ão estaria, pois, nem mais nem
menos pré-formado no óvulo fecundado que o século xxr e~ta­
va no século xx - a não ser que tomemos a evolução do ser vivo
como um determinismo, ao mesmo tempo providencialista e
simplista, doravante tão obsoleto em biologia como em história.
NO CAiv1INHO PARA O CINIS:f\1[0
Demorei-me neste exemplo. Valeu bem a pena. Não se vê
nele, com toda a clareza, de que modo, seguindo esta linha de
pensamento, a precisão teimosa dos fa ctos.po_de desqualificar a
o-eneralidade falsamente simples de uma hcçao? Estabelecer de
facto que <<a pessoa começa desde a concepção» não. diz nada
que seja claramente_ pensável, e menos ainda que seJa fac~al­
mente sustentável. E verdade que se pode propor que se conve-
nha que, desde a fecundaçãO). haja uma pessoa real a respeitar,
mas como convencer muitos cientistas a concedê-lo? Este exem-
plo é genérico: em qualquer domínio de ética biomédica, ant~s
de se pretender reger os valores, procuremos conhecer as reah-
dades27 - as da biologia, e também as das ciências humanas,
pois o homem é também muito mais do .que u~ or~_ganismo.
Assim, contestaremos eticamente a msemmaçao com dador
anónimo (IADA *) em nome do direito das crianças de conhece-
rem o seu progenitor, sem nos preocuparmos em est~dar ~e
aqueles, que são já aos milhares, que se encontram nesta sltuaçao
sofrem de facto com uma tal impossibilidade? Censuraremos
27 É este o sentido da fórmula: <<Aquilo que não é científico não é ético.» Cf.
nota 19
,. Iniciais da fórmula francesa: «lnsémination Avec Donneur Anonyme». (N. T.)
34
moralmente a fecundação in vitro, por abalar os próprios fun-
damentos da filiação, sem ouvir o antropólogo que nos diz: «Ü
modo .de filiação que uma sociedade es tabelece não é ditado
pela ordem natural das coisas, das propriedades estáveis da
natureza humana, mesmo que essa seja uma crença largamente
partilhada em todas as sociedades», e que acrescenta, a propó-
sito da IAD e das «mães de empréstimo»: «Todas as fórmulas
que pensamos serem novas são socialmente possíveis e foram
experimentadas em determinadas sociedades particulares» ·-
do mundo romano às socieda des da Oceânia? 28 Nem a ética
nem o direito podem valer no real começando por desprezá-lo.
Mas aqui os extremos tocam-se: de uma relatividade recu-
sada, a dos conceitos que estão subjacentes à pessoa «de direi-
to», não cairemos noutra, aceite com grande ligeireza: a dos
dados que condicionam a pessoa <<de facto»? Em prim.eiro
lugar, relatividade sociológica, à qual nenhuma construção
humana pode gabar-se de escapar, e que é tanto mais perturba-
dora quanto é atestada, pelo menos em segundo grau, pela pró-
pria sociologia da bioética. Ainda que praticada com a sabedo-
ria de um François-André Isambert, esta disciplina desconcer- .;(
tante não nos deixa qualquer dúvida sobre a irredutível plurali- .,"
dade geocultural das abordagens da pessoa. Sob um tal olhar,
será ainda lícito pensar que a este termo genérico corresponde
uma realidade objectiva? Novo paradoxo: ainda que se queira
situá~la no terreno sólido dos factos, não há, no limite, lugar
para a pessoa senão no mundo incomprovável das representa-
ções subjectivas.
Em segundo lugar, relatividade biológica - e esta, de conse-
quências ainda mais preocupantes. Pois se a pessoa não é um
valor universalmente atribuível a todos os seres humanos, mas
um nome discri~inatório daqueles que são, de facto, capazes
de raciocinar e de querer por si mesmos, quantos poderão ser
tidos como pessoas? Assim compreendida como o mais eleva-
do estádio neuropsíquico da ontogénese, a pessoa é tardia, frá-
gil, fugaz . Estará ela já no feto, sem autonomia e sem voz?
28 Françoise H éritier-Augé, <<De l'engendrement à la filiation », dans Topique,
n Y44, Setembro de 1989, p. 176, 180.
35
Estará ela verdadeiramente no alienado, sem livre arbítrio?
Estará ela sempre no ser vegetativo, sem olhar? Era ema abs-
tracção. permanente, ei-la realidade a t~mpo parcial. .Daí um
estreitamento espectacular da populàÇão ·justicável nas suas
prerrogativas. Na concepção precedente, ela tendia a afirmar-se
sempre que havia humanidade em sentido amplo; nesta, pelo
contrário, tende a retirar-se sempre que não há individualidade
em sentido forte. A um relativismo ficcional mas extensivo
substitui-se outro mais rude: realista mas restritivo. Tão restriti-
vo que, em suma, ele se inclina a não se preocupar com a pes-
soa senão onde ela não é ameaçada. E por que razão a defende-
ria onde ela não existe? Que ética agradável nos obrigaria a tal!
Vem-nos à id eia a exclamação indignada desse ianque do sécu-
lo passado a braços com um juiz de paz londrino por ter batido
no seu escravo: «Pode chamar-se livre um -país onde um
homem não tem o direito de chicotear o seu negro? »29
Há, sem dúvida, hoje em dia, cientistas que diriam o mes-
mo: pode chamar-se estado de direito a um país onde uma pes-
soa não é livre de tratar um embrião como um puro amontoado
de células? E espantam-se por haver quem se perturbe! Dos
pacientes em estados vegetativos prolongados - estados com-
plexos, cuja irreversibilidade se entrevê hoje estar longe de ser
sempre garantida::l0 -, e depois de ter sujeito um deles a uma
experiência sem quaisquer potenciais benefícios para o próprio,
escrevia friamente o professor Âlain Milhaud que eles constituem
«modelos humanos quase perfeitos e intermediários entre o
homem e o animal,,3J. Com tais impulsos, até onde nos arrisca-
29 Cf K Marx e F. Engels, L'[déologie allemande, Éd. sociales, 1976, p. 203 ftra-
dução portuguesa: A Ideologia Alemã, tradução de Conceição Jardim e
Eduardo Lúcio Nogueira, Lisboa, Editorial Presença, 1974-75) .
30 Pode citar-se, entre outros, o exemplo desse jovem de vinte e cinco anos,
Jean-François, mergulhado em coma profundo durante cinco anos no
seguimento de um grave acidente ocorrido em Outubro de 1985, e que,
com o passar dos anos, graças a um trabalho sustentado de despertar e de
reeducação, recuperou sensivelmente as funções afectivas, relacionais e
linguísticas (Le Monde, 2 de Maio de 1991).
31 A experiência em questão data de Abril de 1985. Cf o parecer da CCNE de
24 de Fevereiro de 1986, na colectãnea editada pela CCNE, Les Avis de 1983
à 1993, pp. 103-112; cf, Jean-Yves Nau, <•Les comateux sont-ils des coba-
yes?>>, Le Monde, f8 de Janeiro de 1987. Alain Milhaud expôs a sua tese em
Testa me n/ de vie, Ed. Bernard Barrault, 1988.
36
remos a chegar? Para um bioético americano muito influente
H. T. Engelhardt, «mesmo uma criança recém-nascida não ·é
tlffi.ª p~?soa» 32 . _.8. esta luz,, estare._rnos segmos de sermos, nós .c
próprios, serrtrre pessoas? E verdade que todos somos livres de'·
conceber a pessoa a partir daquilo que pensamos Ser a sua rea- :
lidade estrita. Mas será possível não ver de que modo um tal "
«realismo» se arrisca a ser o primeiro passo no caminho para 0
cinismo? Poderemos esquecer que a bioética tomou corpo nos
Es tado s Unidos, nos anos 70, a partir dos escândalos de
Brooklin, de Willowbrook, de Tuskegee, onde, em respeitáveis
instihlições hospitalares, médicos não menos respeitáveis não
tinham achado que a consideração pela pessoa fosse suficiente
para os impedir, por exemplo, de inocularem sub-repticiamente,
no interesse superior da ciência, células cancerosas em doentes
idosos?33
PESSOA: UM CONCEITO INCONCEBÍVEL?
Mas, no fundo, não será a própria legitimidade da noção de
pessoa, no seu uso descritivo, que põe em questão o realismo ;·!
t _,.·t
científico? Quando partimos da biologia e quando a ela nos ate-
mos, encontraremos algo parecido? Mais se não faz do que
embrulhar as coisas, quando se in troduz este termo. É o que
afirma sem rodeios, por exemplo: um filósofo ligado ao materia-
lismo racional como Dominique Lecourt num debate com Jean
32 Citado por A Fagot-Largeault e G. Delaisi de Parseval em «Qu'est-ce qu'un
embryon?», artigo citado, p. 103. A frase figura no livro de H. T. Engelhardt,
The Foundations of the ethics, Oxford University Press, Nova Iorque, 1985,
capítulo 4. Cf o estudo de Marie-Louise Lamau, <<Le concept de personne
chez T. Engelhardt», em Laennec, n.º 3-4, <<Dignité, perte de dignité>>, Março
de 1993, pp. 16-19.
33 Cf François-André Isambert, «Aux sources de la bioéthique», em Le Débat,
n.º 25, Maio de 1983, p. 85. Soube-se depois, através de um Relatório da
câmara dos represeútantes de Washington que, até ao meio dos anos 70, cen-
tenas de pessoas foram utilizadas nos Estados Unidos como cobaias - não
existindo nos dossiers qualquer sinal de consentimento- para estudar os efei-
tos sobre o homem de substâncias radioactivas (L 'Humanité, 27 de Outubro
de 1986).
11· ::; I
37 I
Bernard. «Ü senhor diz que a partir de um óvulo há potenciali-
dade de pessoa. Mas trata-~e de pessoa .ou de indivíduo? Se se
u tiJi:;:a 0 termo «pessoa», ha que assum1r todas as suas c.ono,t~­
ções. Na minl-la ·opinião, estas conotaçõ.e~ são jurídtco-hloso!t-
cas e pressupõem a liberda~e de um su]e1to. Ora, o senhor nao
encontra nada disso num ovulo. No ovulo encontra-se uma
preficruração [... ] d e um indivíduo, mas não de uma pessoa.»
Ao q~e Jean Bernard objecta: «Concordará comigo em como a.s
aptidões de Mozart estavam já no seu óvulo.» «Certamente, admt-
te, sem discuti!~ Dominique Lecourt, mas aí voltamos ao problem~
do indivíduo. Não foi Mozart enquanto pessoa que escreveu; fm
enquanto indivíduo dotado de faculdades criadoras .q~e são per-
mitidas tanto pelo programa genético quanto pela eptgenese; pelo
34
contrário, foi enquanto pessoa que assinou os contra~o.s».
Conversa esclarecedora. O conceito que convma ao ser de
facto com que nos preocupamos aqui não é o de «pessoa», mas
0 de «indivíduo» - um termo que a biologia conhece e reconhe-
ce. A «pessoa», pelo contrário, é claramente uma categoria ~o
direito romano e, de forma para nós mais directa, da teologta
cristã. Cita-se frequentemente a definição que dela deu Boécio,
no século vt «substância individual de nahlreza racional>>. Não
convirá recordar que ela figura num tratado teológico onde o
autor toma posição numa viva querela sobre «a dupla nat~reza
e a pessoa una de Cristo»?35 Não é verdade que, por den:as do
debate contemporâneo, de carácter totalmen.te,bt~medtco,
sobre 0 estatuto do embrião se perfilam as form1dave1s contro-
vérsias da Idade Média sobre a animação imediata ou mediata
- isto é sobre a infusão da alma directamente por Deus ou por
intermédio dos pais -, cujos contornos são, antes de mai~, :eli-
giosos: implicação do Criador na transmissão do pecado ongmal,
34 De la biologie à l'éthiquc, debate entre Jean Bernard e Dominigue Lecourt (14
de Novembro de 1990), brochura do Círculo Condorcet, n.º 18, Dezembro
de 1990, pp. 13-14. . .
35 Boécio, Contra Eutychen, em The Theological Tractates, Harvard Umver:Jty
Press, Cambridge e W. Heinemann, Londres, 1978, p. 84. Cf. PaulLa~nere,
<<La notion de personne, héritiere d'une longue tradition», em Bwmedw,nc
ef dcvenir de la personnc, obra colectiva sob a direcção de S1mone Novaes,
Éd. du Seuil, 1991, pp. 47-50.
38
estatuto de Adão, de Cristo ou da Virgem Maria?36 E se o
Magistério Católico optou- tardiamente-, contra o próprio São
Tomás, e sem pôr fim às controvérsias, a favor da animação
imediata, foi por motivos que devem infinitamente menos à
embriologia do que à teologia.37
Será então faltar ao respeito aos crentes dizer: uma ética
pública, portanto necessariamente laica, não pode entrar neste
género de considerações? Que interesse teria ela em baptizar o
indivíduo pessoa - fora da estrita acepção jurídica do termo?
Poderemos recusar-nos a concluir, com Dominique Lecourt,
que, apesar de tudo, «as coisas estão doutrinadas à partida»?
Assim, a pessoa «de facto» acaba por nos aparecer como uma
pura e simples contradição nos termos: a pessoa não é um fac-
to. O critério experimental deveria concretizar esta noção abs-
tracta; na verdade, dissolve-a. E é o realismo científico que nos
convence a reenviá-la às ficções do direito.
O círculo lógico fecha-se aqui. Situada na ordem simbólica
dos valores, a pessoa parece desmoronar-se sob o peso das suas
contradições: incondicional, ela tem estranhos conceitos como
condição; absoluta, não nasce senão de uma arbitrariedade;
universal, não ilustra senão uma cultura circunscrita; atribuída,
é incapaz de definir os critérios da sua atribuição sem se referir
ao seu contrário -o ser físico na sua concretude. Mas tomemo-la
então, inversamente, por este ser mesmo no cume das suas
faculdades e envolver-nos-emos num caminho inexoravelmen-
te destrutivo: começando, certamente, por refutar ilusões espe-
culativas, mas também reduzindo drasticamente o campo
daquelas que parecem merecer respeito, abrindo mesmo ino-
centemente a via do cinismo e, no fim de contas, desqualifican-
do o termo na sua utilização geral para o abandonar à teologia
e não o admitir senão na sua acepção contratual, isto é recon- 1
duzindo-o ao ponto de partida - à ficção jurídica. Conceito
inconcebível, a pessoa confronta, aparentemente, quem qu er
36 Cf Philippe Caspar, Penscr l'cmbryon, obra citada. Cf também Marie-Hélene
Congourd eau, <<Entre science et philosophie: petite histoire de l'embryon >>,
em Étlúque, n.º 3, Inverno de 1992.
37 Cf Paul Ricoeur, Soi-même comme un autrc, Éd. du Seuil, 1990, p. 315, nota 1.
39
.
I.
'
pensá-la com aquilo a que os filósofos chamam uma aporia; isto
é, um impasse da razão. Não há dúvida de que as filosofias
personalist.1s pensaram poder acampar neste imp.:.sse, susten-
tando ao mesmo tempo que a pessoa é um «ser natural» e que
ela «transcende a natureza,38. Prêoéupação comovente de con-
ciliar os contrários, mas que, formulada deste modo, não chega
senão a subliúiar uma a poria lógica em mistério ontológico.
Para que possamos escapar-lhe, seria necessário nada
menos do que aquilo que passa por impensável: que a pessoa
«de direito» fosse de facto, que o indivíduo real fosse, em si
mesmo, valor. Mas se há um ponto tido como filosoficamente
estabelecido é o de que, do facto ao direito, há um abismo.
Espectacularmente avivada pela «revolução biomédica» é, aliás,
a dificuldade simétrica de passar do direito ao facto, dito de
outro modo, de julgar no sentido ético e judicial da palavra.
Disso dão testemunho as errâncias contraditórias da opinião e
da jurisprudência nas questões bioéticas - do «arrendam ento
do útero » à eutanásia, da experimentação sobre o homem à
patenteação dos seus genes. Pois, se o facto não funda o direito,
o direito e a moral têm, por sua vez, grande dificuldade em
estatuir sobre o facto biológico e terapêutico, doravante tão
desconcertan te. Apesar de tudo, é o mesmo ser humano que,
com um só movimento, clam~ a sua dor e reivindica a sua dig-
nidade. Eis a mistura íntima de facto e de valor, diariamente
oferecida pela pessoa, que se nos apresenta como um mistério
único no seu género.
REALIDADE E VALOR: O PARADIGMA
DA MERCADORIA
E, contudo, olhemos simplesmente à nossa volta: não está o
mundo humano, sob muitos outros aspectos familiares, para
além do da pessoa, povoado com este género de misturas?
Haverá mesmo um único facto antropológico, no sentido histó-
38 Ernmanuel Mounier, Le Personna/isme, PUF, 1953, p. 21.
40
rico-social da palavra, que não seja deste género? Tomemos ·
como exemplo, crucial para a bioética, o conceito de saúde,
como o analisou G..:orgt:b·Cangcilhem Yta t>Ua famosa tese sobre ·<" • •
o normal e ci patológico: será este um conceito descritivo ow
normativo? Manifestamente, as duas coisas ao mesmo tempo::
«as mesmas pessoas do povo dirão do seu vizinho que ele tem -'
uma má saúde ou que não tem a saúde, tendo por equivalentes
a presença de um facto e a ausência de um valor». E tambélD
«valere, que deu valor, significa em latim, portar-se bem». É
que, segundo Canguilhem, o biológico «é polaridade e por isso
mesmo posição inconsciente de valores», «actividade normati-
va»39. Asserção muito discutida. Mesmo que se o admita, a
vida poderá, contudo, definir por si mesma o estado de saúde
que deve valer para nós? Não é verdade que houve pessoas
que souberam metamorfosear uma doença, um sofrimento,
mesmo uma enfermidade ou uma perturbação mental, em
acréscim o de sensibilidade, de criatividade, de altruísmo e,
para dizer numa palavra, de sã humanidade? Ser e valor não se
'I
conjugam, pois, menos enigmaticamente na ideia de saúde do
que na de pessoa.
Voltemo-nos agora para a forma por excelência da vida
social onde, num sentido muito preciso do termo, o valor faz lei
no real: a economia mercantil. A lição que ela nos dá é a mes-
ma. Qualquer mercadoria é, ao mesmo tempo, uma coisa que
se recomenda pela sua utilidade e um valor que se exprime
num preço. E, contudo, estas duas faces da mercadoria, de tal
maneira ligadas pela utilização que parecem não ser senão
uma, são também totalmente heterogéneas e sem cessar discor-
dantes. Mercadorias muito diferentes podem ter o mesmo
valor; uma mesma mercadoria pode ter valores muito diferen-
tes. Há mesmo bens de grande utilidade que não têm qualquer
valor e, por conseguinte, são gratuitos. Pelo contrário, objectos
quase inúteis em si mesmos têm, contudo, um grande valor e,
consequentemente, não têm preço- o que faz deles, antef' de
tudo, sinais de riqueza. Paradoxo significativamente análogo,
39 Georges Canguilhem, Le Normal et le pathologique, PUF, 1966, pp. 77, 86, 134.
41
• i'
l , ..,
ainda, ao das relações desconcertantes entre a pessoa como fac-
to e a pessoa como valor.
Seguindo a análise que dele faz Marx, o mistéri~ dissipé!-se,
quando se percebe que o valor de uma mercadoria traduz a
quantidade de trabalho social necessário à sua produção -
valor que se realiza na troca e cujo preço é a sua ·expressão
monetária. Duas mercadorias diferentes têm o mesmo valor de
troca se a sua obtenção exigir o mesmo tempo de trabalho social;
uma mesma mercadoria muda de valor quando varia este tempo
social. O ar não tem valor de troca porque nenhum trabalho
social é necessário para que dele disponhamos, enquanto um
dispositivo sofisticado pode exigir muito trabalho. Assim, o
valor nã o emana d a substância da coisa. Como diz Marx,
<<nenhum químico encontrou, jamais, qualquer valor de troca
numa pérola ou num diamante». Conh1do, ele não é, de modo
nenhum, uma propriedade arbitrariamente atribuída: nele se
traduz a realidade objectiva de um trabalho social efec~uado
em condições tecnológicas e económicas determinadas. E esta
realidade, bem distinta da sua corporalidade natural, que, con-
tudo, se incorpora na mercadoria a ponto de parecer inerente à
sua matéria, e que deve, aliás, incorporar-se nela, sob pena de
não ser mais que um fantasma; pois um trabalho que não pro-·
duz qualquer resultado útil também não produz qualquer valor.
Assim, o ouro vale muito mais que o ferro porque, sendo mais
raro na natureza, exige um trabalho de prospecção e de extrac-
ção muito mais considerável. Mas isso não está afixado sobre o~
lingotes, e é por si mesmo que ele parece ter um grande valor. E
aí que está aquilo a que Marx chama o <<carácter fétiche» da
mercadoria, essa <<coisa sensível supra-sensível» propriamente
inconcebível para quem não sabe discernir nela uma <<coisa
sociai»40.
Pode, naturalmente, contestar-se esta análise clássica do
valor-trabalho, preferir-lhe uma explicação em termos de utili-
dade marginal. Mas esta reenvia-nos à lei da oferta e da procu-
ra, e portanto a relações económicas não menos exteriores à
substância da mercadoria . De tal maneira que a única condu-
40 K. Marx, Le Capital, Livro I, obra citada, pp. 81, 83, 95.
42
são que aqui nos interessa não é modificada. Unidade contradi-
tória de naturalidade e de socialidade, a mercadoria permanece
incompreensíveLenquanto não se r-eali-z-a o des'l'io pelo estudo das
relações sociais através das quais ela adquire uma natureza
segunda, que não emana da primeira, mas antes se sobrepõe a
ela. Dada a omnipresença do mercado nas coisas da nossa vida,
e da própria biomedicina, podemos ver aí um exemplo tipo do
«facto de valor», um paradign:ta para essa característica univer-
sal da humanidade desenvolvida. Se queremos esclarecer a
questão da pessoa, é igualmente impossível economizar o des-
vio pelo estudo do seu pressuposto de conjunto: a constituição
histórico-social, não da espécie, mas do género humano.
ANIMALIDADE E HOMINIZAÇÃO
A humanidade saiu da animalidade nos dois sentidos da
palavra <<sair»: provém dela e mantém nela as suas raízes, mas
ao mesmo tempo tornou-se uma coisa completamente diferen- •"
~):
te. Não apenas por efeito de diferenças biológicas quantitativas .~ i
·( '1 .
que, por muito consideráveis que sejam -como é o caso da , .r
I 'I ~
H
amplitude do cérebro fro ntal -, são incapazes de dar conta de t;· r
~\~r
uma alteração tão radical, mas por efeito de uma transformação '~I"
qualitativa de outra ordem. No mundo animal, por exemplo !I' .
entre os insectos, o passado evolutivo das espécies inscreveu-se ' J ~
no interior dos organismos sob a forma de um equipamento
genético a partir do qual são predefinidos os esboços dos com-
portamentos individuais. Assim, a abelha será infalivelmente,
em função da sua maturação orgânica, alternadamente ama de
leite, obreira e recolectora. E, na própria medida em que pode
haver lugar para aprendizagens individuais -mais importantes
nos vertebrados superiores -, estas devem, no essencial, ser
retomadas do zero por cada geração. De onde a lentidão, a nos-
sos olhos extrema, e os limites estreitos de uma evolução ern
que as abelhas nada mais sabem fazer hoje do que sabiam no
tempo de Virgílio.
Foi isto que se bifurcou num sentido totalmente diferente -
iniciado nos Primatas- com a produção, pelo Homo sapiens, de
43
mediadores nas f)uas relações com a natureza e uns com os
outros: a ferramenta e o signo, bases objectivadas e, em si Ines-
mas, inorgânicas sJe, capacida~es de um tiEo completamente
inédito. A medida que se foi firmando esta inovação capital, o
passado evolutivo da espécie começou a armazenar-se, não tan-
to dentro do organismo, sob a forma lenta e limitada de modifi-
cações genéticas, mas no exterior, sob a forma, cada vez mais
rapidamente cumulativa, de um mundo social - objectos, lin-
guagens, práticas, instituições - emancipado, no seu crescimen-
to, dos limites do organismo individual. Esta disposição sem
precedentes, modificou, a pouco e pouco, todo o destino huma-
no. Para se integrar na vida dos seus congêneres, cada novo
homem tem de se apropriar, através de uma longa formação,
do domínio dos seus mediadores sociais, e, através deles, de
uma parte, singular em cada um, do vasto mundo humano
assim constituído. Tem de hominizar-se - metamorfose biográfica
sem equivalente no mundo animal. Assim, a humanidade,
enquanto facto histórico, é, de maneira totalmente profana, trans-
cendente relativamente ao biológico. Era isto que sublinhava
André Leroi-Gourhan, ao escrever que «toda a evolução humana
concorre no sentido de colocar fora do homem aquilo que, no res-
to do mundo animal, corresponde à adaptação específica»4J .
É esse o ponto decisivo para pensar, na sua profunda origi-
nalidade, os factos constitutiVos da humanidade. Nas activida-
des do indivíduo, tudo continua, naturalmente, a repousar nos
constituintes orgânicos da espécie; mas, simultaneamente, tudo
é media tizado, e portanto transfigurado, pelas aquisições
daquilo em que o gênero humano se torna. A explicação pela
biologia toca aqui no seu limite, tão claramente indicado por
41 André Leroi,Gourhan, Le Geste et la parole, Albin Michel, 1965, t. !I, «La
mémoire et les rythmes>>, p. 34. Cf aquilo que escreveu Stephen Jay Gould
em Le Sourire du flamant rase, Éd. du Seuil, 1988, p. 45: «Ü comportamento
dos insectos está, em grande parte, inscrito nos seus genes: contrariamente
aos seres humanos, os insectos são «pré,programados>> (é principalmente
por esta razão que os modelos sociobiológicos das formigas convêm tão
pouco à descrição do comportamento humano).>> Cf., numa perspectiva
fenomenológica, Franck Tinland, La Différencc anthropologique, Aubier,
nomeadamente pp. 166-167.
44
François Jacob. Salientando que, na nossa espécie, mais do que
em q~alquer outra, «abranda o rigor da hereditariedade», em .
prc::veJ.:o de u111"«papel crescente do, adquirido »,·chamando ain--: , . ·.,.
da mais a atenção para a intervenção de «novos sistemas de~
c~munic~ção, de regulação, de memória, que funcionam a um ;
mvel mais. elevado que o organismo» e «segundo princípioé
desco~heodos aos níveis inferiores», este autor conclui: «Os
conceitos de democracia, de propriedade, de salário são tão
d~~providos de significação pa!a uma célula ou para um orga-
msmo quanto os de reproduçao ou de selecção natural o são
para uma molécula isolada. Isto é, a biologia dilui-se no estudo
do homem, do mesmo modo que a física se dilui no da célu-
la.»42 Eis .c~r~o se esclarece a primeira armadilha posta pela
p~lav:a. biOeltca: ~la sugere que a avaliação moral das práticas
b_lümedi~as podena r~sultar validamente de um diálogo exclu-
SIVO da ehca com a b10logia, inspirando desse modo uma com-
posição de comissões de ética lamentavelmente desatentas ao
contributo diversificado das ciências humanas, bem como à
experiência múltipla das coisas da vida.
. I~I2sista:nos p~r~ procurar não deixar ambiguidades nesta
~ues_,ao arüropol~gica, maltratada por simplismos ideológicos.
E evidente que o mdivíduo não é, à partida, tábua rasa ou cera
v:rgei~l , e qu~ I:~nhuma das suas actividades escapa às condi-
ç~oes a~ possibllidade prescritas pelas realidades biológicas.
~ont~wor q~as~ nada é dado à partida, no que diz respeito às
tunçoe~ p~Iqm_cas propriamente humanas: aí, tudo está por
constnur. E mmto pouco falar de aprendizagem. A verdade é que
se trata, neste caso, d~ m~ processo qualitativamente diferente do
que ~corr~ entre os amt~~I~: o ser hu_m~no não se limita a adap-
tar capaodades heredttanas, extenonzando-as no seu meio
~as apropria-se, antes de tudo, das capacidades sociais, interio~
nzando-as na sua prática. Segundo a esclarecedora .fórmula de
Alexis Lé~ntiev, ~ cérebro humano não contém, em si mesmo, a
est~ r:spei;o, mais do que «a aptidão para a formação destas
aphdoes» 4 . Do psiquismo humano no seu todo poder-se-ia
42 F ·.· f b L l . ·
43 r~nç01s. a~o , . a ogzqu~ du vmant, Gallimard, 197~, pp. 337,338,341.
~lexzs N. ~eontiev, Le Developpemcnf dup:ychzsme, Ed. sociales, 1976, P· 248.
\ er tambem, do mesmo autor, Actmztc, consczence, personnalité, Ed. du
Progres, Moscovo, 1984.
45
dizer, neste sentido, que ele tem uma dupla articulação. Ele
pressupõe estruturas neurobi?lógicas, determina~as ,- e é por-
que elas cstJo ausentes no chlmpanze que este nJo e capaz de
aprender a falar. Mas, a paxtir destas estruturas, as fun5ões
superiores não se edificarfi senão rtas relações do md1v1duo
com o mundo humano onde elas têm a sua verdadeira base - e
é por isto que a criança surda de nascença permanecerá inevita-
velmente muda. O homem é um misto de naturalidade e socia-
lidade, mas um misto desigual, no qual, se a primeira condicio-
na a segunda, esta, por sua vez, transfigura aquela.
Seria preciso outro livro para pormenorizar as provas que
apoiam esta visão das coisas, tão frequentemente incompreen-
dida, e mesmo ignorada. Apenas reterei, pela sua particular
eloquência, os casos mais conhecidos de crianças selvagens,
passados com Kaspar Hauser e Victor de 1' Aveyron: o de
Kamala e Amala, as duas rapariguinhas de cerca de oito anos e
um ano e meio capturadas em 1920 na Índia, num covil de
lobos, e postas a cargo do Reverendo Singh, no Orfanato de
Midnapore. Resumindo o quadro que o Reverendo traça no iní-
cio do seu diário44, Lucien Malson descreve-as deste modo:
«Elas deixam pender a língua através dos lábios vermelhos,
espessos e orlados, imitando o arquejo e abrindo, por vezes
desmesuradamente, as mandíbulas.» Temendo a luz, e vendo
perfeitamente na obscuridade, insaciáveis, dormindo muito
pouco, elas passam «todo o dia agachadas na sombra ou imó-
veis diante de uma parede, saindo da sua prostração à noite,
uivando várias vezes seguidas, gemendo sempre no desejo de
se evadirem». Correm- muito depressa - apoiadas nos pés e
nas mãos, com os braços e as pernas esticados, a quatro patas.
«Os líquidos são lambidos e a alimentação é comida com o ros-
to inclinado, em posição agachada.» O gosto exclusivo pela car-
ne crua condu-las «às únicas actividades de que são capazes:
caçar galinhas e desenterrar carcaças e entranhas», que farejam
a longa distância.45
44 J A. L. Singh, R. M. Zingg, L'Homme en friche - De l'enfant-loup à Kaspar
Hauser, Éd. Complexe, 1980.
45 Lucien Malson, Les enfanfs sauvages, UGE, 10/18, 1964, pp. 85-86.
46
Não se tendo desenvolvido entre os homens, estas rapari-
guinhas estão inteiramente «lobizadas». Contra as crenças tena-
zes DLima natureza humana, o seu caso mostra de modo evi-
dente a extensão e a profundidade daquilo que configura em ,
nós a integração na sociedade: não somente, como"é evidente, a :
boa educação, a linguagem, a sociabilidade, mas traços que
passam mesmo por serem exclusivamente congênitos, como a
posição erecta ou o carácter omnívoro, as possibilidades senso- .l'
'·
riais ou as pulsões emocionais. Também de todos estes pontos
de vista, o rebento humano é «totipotente» . Amala morreu
menos de um ano depois. Tendo-lhe sobrevivido quase uma
década, mas a contar de uma idade provável onde é já mais
reduzida a fantástica plasticidade neuro-psíquica da pequena
infância humana, Kamala apenas lentamente aprendeu a man-
ter-se de pé, a suportar vestidos e regras sociais, a pronunciar
mal algumas dezenas de palavras bengalis, a evidenciar alegria
e tristeza - vertendo uma lágrima pela primeira vez na morte
da sua «irmã.». Heroínas de uma extraordinária experiência antro-
pológica involuntária, elas ensinam a quem quiser ouvi-las que,
para pensar o humano, a biologia deve dar lugar à biografia.
«O HOiv1EM É O MUNDO DO HOMEivf»
Sublinhar-se-á suficientemente, aliás, até que ponto recu-
sar-se a isso faz cair quem o recusa na incoerência científica?
Com efeito, como faz notar Jean-Pierre Changeux, e com ele I
.'
todos os especialistas, «os mecanismos genéticos que fizeram
nascer o cérebro do homem moderno parecem ter sido suspen-
sos há muitas dezenas de milhares de anos»46. Tanto quanto se
sabe, os homens de hoje têm, pois, o mesmo cérebro que os
seus antepassados do Paleolítico. Fica assim patente que as
imensas conquistas da civilização e do psiquismo que nos sepa-
ram deles ficaram armazenadas, no essencial, algures no códi-
go genético- um algures social que se mete pelos olhos dentro,
46 Jean-Pierre Changeux, L'Homme neuronal, Fayard, 1983, p. 357.
.i~
47
pelo qual a Pré-História e depoi~ ahistória human~ assumiram
relevo da evolução biológica. E portanto uma úmca e mesma
0
roisa constatar o carácter psíquico prematuro do homemà sua
11 asce~ça, cnde se exprime essa estagnação genética, e reconhe-
cer a factura histórico-social das nossas. funções psíquicas supe-
riores, de onde resultou a sua progressão exponencial.
Não somente o desenvolvimento da humanidade no
homem transcende, assim, a explicaçao estritamente biológica,
mas é ele que sobredetermina muitos processos neurofisiológ~­
cos metamorfoseando o nosso corpo humano em corpo homi-
niz~do. Nem sequer estou a falar aqui do rico arsenal das práti-
cas pelas quais uma cultura mete as suas garras na natureza,
em ritos de iniciação ou de passagem - das deformações corpo-
rais às mutilações sexuais -, como em condutas de prestígio
físico - das curas de emagrecimento ao body-building. Trata-se,
mais ainda, para lá das modelações externas e intencionais, dos
inumeráveis processos de vida socializada nos quais, para além
de consciência e projecto, as actividades modulam as funções e
as funções chegam mesmo a modular mesmo os seus órgãos.
Assim, a edificação das estruturas cerebrais é muito sensivel-
mente afectada, e, para lá de uma certa idade, de modo irrever-
sível, peln riqueza -· ou a pobreza - das condutas perceptivas,
práticas ou linguísticas às quais é incitada a criança. Para dar
um exemplo muito diferente;•como não ficarmos perturbados
quando vemos que casais considerados estéreis, quando espe-
ram uma fecundação in vitro, registam inopinadamente uma
gravidez natural? «A experiência psicanalítica, pensa poder
generalizar, a este respeito, Marie-Magdeleine Chatel, mostra
que a procriação é psicossomática.» 47 De quantos outros fenô-
menos orgânicos se deverá dizer o mesmo?
De base que era, na aurora da hominização, o biológico
regressou, numa medida importante, ao papel de suporte, retra-
balhado em todos os sentidos por aquilo que se tornou a verda-
deira base de uma vida: a actividade socializada - da mesma
47 Marie-Magdeleine Chatel, <<Le désir escamoté>>, em Le Magasin des enfants,
obra citada, p. 81. Cf., do mesmo autor, Malaise dans la procréation, Albin
Michel, 1993.
maneira que à geografia física de um território se sobrcnõe
... j .L
a
geograha humana de um povo. E verdade que não se deve pas-
~ar__ a fronteira para lá da qual nos arriscamos a c<'! ir Pmn c~ütu -· ~ · · .... •
ralismo sem limites que esquece os irrecusáveis determinismos
naturais, e mesmo num panpsiquismo obscurantista de que se.
l ·' l.
. alimentam sem vergonha as medicinas dos charlatães. Resta
f-1
que o corpo humano é um corpo hominizado, coisa que, salvo
excepção, não se percebe na ocular de um microscópio electró-
nico, mas que é bem sabida pelo médico ou pelo enfermeiro
que se encontra à cabeceira do doente. Com esta incorporação
íntima das relações sociais externas, muitas vezes tão pouco
aparente no corpo do homem como no lingote de ouro, vere-
mos começar a esclarecer-se a especificidade enigmática do
misto humano?
Aquilo que aparece simultaneamente é a armadilha pouco
banal que nos estende a questão, aparentemente muito inocente:
o que é o homem? Pois ela convida-nos a procurar sem malícia
a resposta no interior do ser assim designado - «o homem»,
maquinalmente identificado com o indivíduo -, dito de outro
modo, a encontrar nele mesmo a sua «natureza», ou, como
àizem os filósofos, a sua «essência». Ora, na medida em gue o
processo está fundado no seu início, relativamente ao ser
humano enquanto exemplar da sua espécie biológica, nessa
mesma medida ele mistifica-nos quando se trata de o pensar
como membro do género humano historicamente desenvolvi-
do, pois, a este título, ele não tem, justamente, a sua base em si,
mas fora de si. De onde a fórmula de Marx, que parece respon-
der ao lado da questão, porque evita a sua armadilha: «Ü
homem é o mundo do homem» - e, de modo mais explícito:
«A essência humana não é uma abstracção inerente ao indivíduo
tomado à parte. Na sua realidade, é o conjunto das relações
sociais.,,48 Há que compreender que «o homem» é inseparavel-
48 A prime~ra fórmula figura na Introdução à Critique du droit politirJiie
hégélicn, Ed. sociales, 1975, p. 197 (tradução portuguesa: Crílica da Filosofia
do Direito de Hegel, tradução de Conceição Jardim e Eduardo Lúcio
Nogueira, Lisboa, Editorial Presença, s/d); a segunda pertence à «6ª Tese
sobre Feuerbach>>, em L'ldéologie allemande, obra citada, p. 3.
49 i.
 mente socialidade prática e simbólica na qual se desenvolve o
género humano, e também individualidade biológica na qual, a
·pMtir daí, se hominiza um organismo. Querer definir o segun-
do termo desta complexa, mas indissociável, unidade pondo o
primeiro entre parêntesis é o que confere a todas as especulações
sobre a «natureza humana» o seu carácter pré-crítico e a sua
inevitável trivialidade. Há todas as hipóteses de que, posta sob
esta forma armadilhada, a questão da pessoa não possa conhe-
cer melhor sorte.
Esta primeira armadilha esconde, aliás, uma outra, já não
ligada à palavra homem, mas ao verbo ser: o que é o homem?
Na sua forma, uma tal questão orienta-nos, à partida, para
uma resposta de tipo ontológico, que procurasse enquadrar o
homem numa definição invariável do seu ser, e mesmo do seu
dever-ser: os próprios fins «do homem» fariam parte da sua
«natureza». Ora, uma vez compreendido que o conjunto de
socialidade e individualidade humanas são mais uma história
que uma natureza, a questão não pode, manifestamente, conti-
nuar a encontrar resposta em termos de ser fechado, mas de
existência aberta, de agir inacabado, de futuro a decidir. Foi
isto que Jean-Paul Sartre popula rizou ao afirmar que «O
homem não tem essência», que «estamos condenados a ser
livres» - asserções que nada perderam da sua mordacidade
contra todos os dogma tismo ~, metafísicos ou não, portadores
de ordem moral. Mas, contudo, asserções unilaterais, mais
preocupadas em recusar a ideia de natureza individual do que
em pensar a história colectiva. Ora, cada individualidade,
cada geração, hominiza-se sem o ter escolhido, em condições
sociais e culturais dadas que não o explicam como objecto
mas, o que é completamente diferente, o implicam sem esca-
patória numa forma de ser sujeito. «O homem» não tem essên-
cia metafísica, mas uma pertença histórica, de que pode abs-
trair tanto menos quanto ela o constitui no interior de si mes-
mo, para o melhor e para o pior. Quer o meça, quer não, e ain-
da que de modo muito modesto, cada indivíduo singular é
assim responsável pelo presente e pelo futuro da nossa huma-
nidade comum. Ora, isto tem consequências para uma ética do
respeito, e para as relações que devem ser, aí, bem clarificadas
50
entre consciência e prática morais, autonomia e solidariedade,
liberdade e responsabilidade.
ALGUNS MAL-ENTENDIDOS
Mas não queimemos as estapas. Regressemos, pelo contrá-
rio, antes de avançarmos, a alguns mal-entendidos possíveis
naquelas que acabámos de atravessar. Já estou a perceber onâe
querem levar-me, dirá talvez aquele ou aquela, que tem conhe-
cimentos sobre a questão, que me terá lido um pouco depressa
demais: querem levar-me para o ambientalismo, essa teoria
segundo a qual, contrãriamcnte âv hereditarismo, para o qual
tudo está nos genes, tudo nos viria do meio.
Julgá-lo seria, falemos claro, nada ter compreendido. Em
primeiro lugar, porque é insustentável, embora ainda seja
defendida, a dicotomia entre hereditariedade e meio, concebi-
dos como dois «factores», independentes e adicionáveis, numa
proporção que seria objecto de litígio. Fazendo fé em trabalhos .,
"·'
como os de Cyril Burt, relativos a gémeos verdadeiros - traba-
lhos cujo carácter fraudulento foi confirmado49 -, assim nos
seringaram durante mais de uma década, e asseguram-nos ain-
da, de tempos a tempos, que a inteligência humana seria
<<determinada a 80% pelo património genético e a 20% pelo
meio» . Ora, como mostrou Albert Jacquard, esta afirmação
<<não tem sentido rigorosamente. nenhum». Ela significa dizer
que «uma criança que não tivesse recebido qualquer contribu-
to do meio teria um QI (quociente de inteligência) de 80, e uma
criança que não tivesse recebido qualquer gene teria um QI de
20. Estas frases são d~ tal maneiras absurdas que ninguém
ousaria proferi-las.»5o E contudo aquilo que se diz quando se
repetem tais percentagens - como se o pão, por exemplo, <<se
explicasse» em 80% pela farinha e em 20% pelo padeiro. Na ver-
49 Sobre esta questão, ver Stephen Jay Gould, La Malmesurc de /'homm e,
Ramsay, 1983; Richard C. Lewontin, Steven Rose, Léon J. Kamin, Naus ne
sommes pas programmés, Éd. La Découverte, 1985.
50 Albert Jacquard, Éloge de la difference, Éd. du Seuil, 1978, p. 176.
51

dade, deveria ser evidente que tudo nas capacidades psíquicas
propriamente humanas pressupõe o genoma e o organismo, e
que; ao mesmo tempo, nada se compreende, no que a elas diz
respeito, fora da apropriação subjectiva de capacidades histori-
camente objectivadas. Da mesma maneira, o dilema tradicional,
insolúvel por construção, entre ambiente e hereditariedade,
bem como a adição eclética de ambos, frequentemente apresen-
tada como a sua solução, deveriam ser definitivamente abando-
nados à sua indigência teórica.
Em segundo lugar - que é ainda mais importante, do ponto
de vista que aqui nos ocupa - , pensar a hominização em termos
de ambiente tradu z uma desarmante subestimação do abismo
que separa o ser humano socializado de um animal. Para a criança,
o universo apetrechado da casa ou da escola, a linguagem que
aí se 'fala, as relações que aí se estabelecem são infinitamente
diferentes do ambiente natural pelo qual são modulados os
comportamentos hereditários de uma abelha ou de um porqui-
nho da Índia, constituem o próprio centro de onde emanam
condutas de que ele tem de se apropriar. Voltemos a dizê-lo: a
animalidade de cada espécie tem a sua sede no interior do
organismo individual, a humanidade social edificou-se no exte-
rior. De uma à outra, o centro mudou de lugar: excenf:rou-se, e
foi contra isto que nem o ambientalismo nem a hereditariedade
..
se acautelaram. Ao mesmo tempo, a hominização é uma coisa
complexa, muito diferente de um condicionamento impessoal
de condutas já presentes num indivíduo. Ela exige dele activi-
dades apropriativas que sustentam um complexo de identifica-
ções e de diferenciações precoces, de desejos e de sentidos, de
motivos e de expectativas, configurado numa biografia inesgo-
tavelmente singular. Não é verdade que uma observação míni-
ma mostra, até que ponto, as atitudes e actividades electivas
dos pais, longe de difundirem por si mesmas igualmente, são
reassumidas de maneiras susceptíveis de variar totalmente de
uma criança para outra? A socialidade não é, pois, de modo
nenhum contraditória com a individualidade. Pelo contrário.
Como diz Marx: «Ü homem é, no sentido mais literal, um zôon
polítíkon, não somente um animal sociável, mas um animal
que não pode constituir-se como indivíduo singular sehão na
52
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sociedade.»5 1 O desenvolvimento psíquico do ser humano não
é uma simples ontogénese universal, é ·também uma his tória .li
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semp.re origi11al. ... . . '·· ..a<;,?:.''· •-t.~J:
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Indissociável de llula visão redutora da aculturação huma- tj
na, o conceito de ambiente, válido em psicologia animal, não( ,
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responde em nada ao nosso problema. Para mim, que tenho a tl"Í'l
,( .1 ' -~
:' li:
t.íi Uo;
crença nos «dons» como um equivalente moderno da fé medieval
na «virtude dormitiva» do ópio52, a explicação ambientalista é
51 K Marx, Contribution ii la critique de l'économie politique, Éd. sociales, 1977, p.
150 [tradução portuguesa: Para a Crítica da Economia Política. Prefácio, tradução
d e Álvaro Pi n a, em Ma rx/ Engels. Obras escolh ida s em três tomos,
Lisboa/Moscovo, Editorial «Avante!>> - Edições Progresso, 1982, I volume,
r pp. 529-533] .
J2 Em Le ]eu des possibles, Fayard, 1981, François Jacob critica «a ideologia mar-
xista segundo a qual o indivíduo é inteiramente moldado pela sua classe social
e pela sua educação>>. «Assim desaparece, comenta ele, tod a a diversidad e,
.•u;
toda a diferença de ordem hereditária nas aptidões e nos talentos do indiví-
duo. Só contam as di fer~nças sociais e as diferenças de ed ucação. A biologia e
os seus constrangimentos detêm-se diante do cérebro humano! Sob esta for-
\
ma extrema, esta ati tude é simplesmente insustentável!>> (pp. 120-121) Não •1,!:
conheço nenhum marxista b·ancês que se reconheça numa tal ideologia dita ~rL
':J\
«marxista>>. Pela minh a parte, num artigo que levantou muita discussão, i~ -1 !'
il
<<Les 'dons' n'existent pas>>(L'École et la Nation, Ouh1bro de 1964), escrevi com I•<
toda a clareza: <<De wna maneira geral, não se podem ver as relações entre ~ ci,;l•
hereditariedade biológica e meio social como relações mecãnicas entre factar
lj' :/f~
,:·(
res independentes, cuja <<parte>> respectiva se poderia discutir, mas devem - ' i
ver-se antes como relações dialécticas entre níveis de desenvolvimento. Num
certo sentido, é toda a vida do indivíduo, em todos os seus aspectos, que está
marcada pelos dados biológicos de partid a. Isto é evidente. Toda a sua vida
está marcada por eles, mas nem por.isso alguma coisa está decidida, pois aquilo
que decide é sempre, no fim de contas, o desenvolvimento ulterior, isto é, a
história social. >> (p. 56) N ão penso que esta tese tenha o que quer que seja d e
insustentável. Jean Rostand, que não é suspei to d e subestimar a hereditarie-
dade e os seus constrangimentos, e que tinha lido o meu artigo, d eu-lhe
publicamente a sua aprovação quanto ao essencial no seu discurso de
Dezembro d e 1966, aquando do centenário da Liga d o Ensino (Cf Cahiers /ai~
ques, suplemento ao n P 96 de NovembrarDezembro d e 1966). ~<Quanto mais
progrido, escrevia ele alguns anos mais tarde, mais acredito na acção do
meio, que tinha indubitavelmente subestimado um pouco na minha JUVentu-
de, em favor dos factores genéticos>> ( <<Doués ou pas?>> em Pour l'énfant, vers
l'homme, n.º de Março-Abril d e 1972, p. 25.) Sobre a concepção histórico-cultu-
ral do psiquismo, cf L. S. Vygotski, Pensée et langage, Éd. sociales, 1985, e os
trabalhos d e Alexis Léontiev citados na nota 43.
53
tão frágil que aquilo que me parece admirável não é, por exem-
plo, que haja, estatisticamente falando, uma clara relação entre
«nívelcultural» de pais adoptivos e QI das crianças adoptadas,
mas antes que, tratando-se uma tal questão numa óptica tão
grosseira, se possa, apesar de tudo, salientar correlações signifi-
cativas. É verdade que a visão das coisas que resulta daquilo
que precede não é o ambientalismo - nem, evidentemente, o
hereditarismo. É aquela a que o grande psicólogo soviético dos
anos 20, L. S. Vygotski, chamava uma «concepção histórico-
-cultural do psiquismo>>, a qual não ostenta qualquer desdém
pelo biológico, mas lhe atribui aproximadamente o mesmo
lugar explicativo - e os mesmos limites - , que aquela que se
apoia na geografia quando quer pensar a história de uma nação.
Regressemos também um pouco a esta questão que, ao con-
trário da precedente, parece ser tida por muitos como regula-
mentada, enquanto continua a ser lugar de um litígio de gran-
de importância na sequência da nossa reflexão. Pensa-se muitas
vezes resumir tudo aquilo que acaba de ser indicado caracteri-
zando os factos propriamente humanos pela sua dimensão sim-
bólica. E é verdade que há, na evolução do mundo vivo, uma
novidade capital. Trata-se da linguagem, actividade simbólica
por excelência: muitas espécies animais exprimem e comuni-
cam; nenhuma delas fala, pois não acede à arbitrariedade do
signo, medidor omnipresente do progresso da consciência e do
sentido. Não estará aí todo o homem? Não; pelo menos se não
se quer perder de vista que a linguagem articulada é, em mui-
tos aspectos, inseparável do gesto articulado. Foi em conjunto
que estas duas renovações colocaram a humanidade numa
órbita de desenvolvimento totalmente diferente da das espécies
de onde ela provém. Separar da dimensão prática a dimensão
simbólica tornaria inexplicável a gênese das actividades huma-
nas e inconcebível a sua eficácia. Isto é verdade, hoje como
ontem, por muito que desagrade àqueles que pensam que a
informação, na muito ampla acepção contemporânea da pala-
vra, está chamada a suplantar a produção. Se a produção inclui,
sem cessar, cada vez mais informação, esta, por sua vez, exige e
continuará a exigir a produção- a começar pela dos componen-
tes electrónicos. Aquilo a que se chama, no discurso da moda,
54
«o imaterial>> nunca aparece sem matéria, e, para fabricar esta
matéria, o discurso não substitui o trabalho.
Terá havido, inicialmente, sem dúvida, nesta assimilação
unilateral do humano ao simbólico, uma reacção justificada
pela estreiteza inversa de um materialismo, incluído o marxis~ i
ta, que apenas relacionava a hominização com o instrumento e;
a produção material. Descobrindo com entusiasmo aquilo com
que a linguística moderna pode contribuir para a compreensão
dos factos de cultura - do mito ao saber, do inconsciente ao
poder-, aqueles a que se chamou estruturalistas- Claude Lévi-
-Strauss, Jacques Lacan, Michel Foucault... - torceram, de
algum modo, noutra direcção: tudo no homem estaria estrutu-
rado como .uma linguagem. Ao mesmo tempo que eram assim
adquiridos conhecimentos preciosos, unilateralizando-se para o
outro lado a visão global tão bem expressa pelo título do gran-
de livro de Leroi-Gourhan: Le Geste et la parole*. Hoje como
ontem, a humanidade caminha sobre dois membros, e não a
quatro patas. Assim, a «revolução biomédica» é inseparavel-
mente feita de coisas que voltam a ser postas en causa na
ordem simbólica - da imagem do próprio corpo à representa-
ção da parentalidade - e de perturbações de ordem tecnológica
que as sustentam - do enxerto de órgãos à intervenção sobre os
gâmetas e sobre os genes. Toda a questão do estatuto da pessoa
está aqui em jogo: puro símbolo ou, simultaneamente, realida-
de prática?
DO INDIVÍDUO
Mutação nas relações entre indivíduo e espécie, a homini-
zação fez surgir modalidades do ser desconhecidas do mundo
animal, que não são ainda a pessoa, mas que ela pressupõe.
Indivíduo na acepção sociopolítica da palavra, sujeito, persona-
lidade num sentido original que teremos de justificar: eis, para
generalizar uma expressão de Léontiev, algumas «neoformações
* O Gesto e a Palavra. (N. T.)
55
psicológicas»53 inteiramente devidas à posição excêntrica das
conquistas históricas da humanidade, e portanto aos múltiplos
processos de apropriação pelos quais. elas se .interiorizatn. de
forma inédita em' cada história da vida.
No seu sentido mais amplo, o conceito de indivíduo não
refere estas especificações humanas. Ele refere, inicialmente, a
unidade de um ser que cessa qualitativamente de ser quando se
o divide. Para o biólogo, ele acrescenta que este ser é um exem-
plar ao mesmo tempo genérico e singular da sua espécie: pos-
sui as suas características corno todos os outros e como nenhum
outro, diferenciando-se dos outros ao infinito por um conjunto
único de particularidades genéticas, epigenéticas, somáticas e,
entre os animais superiores, temperamentais. Em tudo isto são
mencionadas muitas das coisas que importam a uma ética da
pessoa, como os limites de uma integridade ou as riquezas de
uma individualidade a respeitar ·- mas nada que seja próprio
do homem. A este sentido biológico vem, porém, sobrepor-se,
no que a este diz respeito, uma acepção completamente dife-
rente da palavra indivíduo.
Com a divisão do trabalho, o mercado e a propriedade,
com a organização política, o direito e a cidadania, com a afir-
mação polêmica de identidades étnicas, religiosas, culturais
diversas, e ainda tantas outras coisas, dissolveram-se as relações
de fusão que constituíam o ser puramente gregário: formou-se
um novo modo de individuação ao nível psico-histórico.
Falemos como Hegel: o animal não é um indivíduo senão em-
si, o homem torna-se um indivíduo para-si .. Imenso processo
sempre inacabado. Esta longa marcha não deixou de ser assus-
tadoramente agravada pelo seu contrário: aquilo a que se cha-
ma o progresso humano foi pago, até agora, com um gigantes-
co holocausto físico e moral de indivíduos. Não será isso mes-
mo que nos parece, desde agora, já não somente insuportável,
mas impraticável? Um futuro civilizado não é pensável sem o
livre desenvolvimento, em todos os sentidos, de todos os indi-
víduos. A universal escalada, neste fim de século, da aspiração
53 A. Léontiev, Acl:ivité, consciencc, personnalité, obra citada, p. 191.
56
a ser si próprio não será um indicador suficiente da necessida-
de urgente de ir mais longe, na passagem da animalidade nati-
vaài11dividualidadeplena? . ,, . . _, ..
Rico de sentido54 e mantendo a vocação de denominação
mais geral da identidade pessoal, será o conceito de indivíduo,
assim compreendido, suficiente para englobar as neoforrnações
psicológicas de que falamos? Manifestamente, não. Na primei-
ra destas acepções - o homem como «particular empírico», de
que fala Louis Dumont, convidando-nos .a distingui-la com cui-
dado da outra, o homem como «portador de valor»ss -, ele diz
bem da singularidade de cada humano, mas não da especifici-
dade humana desta singularidade, uma vez que, neste sentido,
concerne igualmente a qualquer ser vivo. Por outras palavras,
reenvia ao carácter único de uma dotação genética, de uma
complexidade somática, e mesmo de uma idiossincrasia tempe-
rarnental concebidas como uma natureza mais ou-menos irre-
formável. A tendência de um tal conceito é paa:â.'a naturalização
da individualidade, muito mais do que para ler em conta aqui-
lo que releva nela da hominização e da remodelação biográfica
de si. Assim, ele conserva sempre qualquer coisa do olhar pura-
mente objectivo e distanciado que a biologia tem sobre os seus
objectos. Trata-se de um termo desatento à subjectividade e vir-
gem de simpatia. Será um acaso se indivíduo pode tomar, na
linguagem corrente, conotações francamente pejorativas, em
que o outro é coisificado?
Considerado agora na sua significação sociopolítica, este
conceito arrisca-se a fazer-nos passar de uma generalidade bio-
lógica demasiadamente ampla a uma particularidade histórica
54 No seu debate com Jean Bernard (cf nota 34), Dominique Lecourt afirma
que eu «não gosto muito do conceito de indivíduo, em consequência dos
pressupostos filosóficos que (eu) não escondo>> (p. 15). Asserção que me
deixa estupefacto. Pelo contrário, o meu livro Marxisme et théorie de la per-
sonnalité, Ed. sociales, 1969, é, do princípio ao fim, uma defesa e ilustração
do lugar central que o indivíduo ocupa no desenvolvimento civilizado, e
no pensamento de Marx- o que não me impede de considerar que o con-
ceito de indivíduo não pode, por si mesmo, substituir o conceito de perso-
nalidade, no sentido abaixo definido.
55 Louis Dumont, Essais sur l'individualisme, Éd. du Seuil, 1983, pp. 29 e 304.
57
demasiadamente estreita. Pois, falando socialmente, os homens
nem sempre foram, nem são em toda a parte, indivíduos. Nas
sociedades pré-mercantis, em geral, o ser humano permanece ·.
largamente inscrito em laços de dependência natural e social
onde se define muito mais pelas suas .relações do que pela sua
individualidade. Os Kanarks, caros a Maurice Leenhardt, os
«grandes homens», cuja «produção» Maurice Godelier estudo'!
no coração da Nova Guiné, não se vivem como indivíduos. E
verdade que não é ceder a um culpável eurocentrismo ah·ibuir -
um valor potencialmente universal ao processo de individua-
ção que conduziu a proclamar os Direitos do Homem e a digni-
dade da pessQa. Mas seria dar prova de uma estranha cegueira
não ver, no indivíduo dos tempos modernos, as marcas profun-
das da sociedade burguesa onde ele tomou outrora impulso e
prossegue hoje a sua evolução.
Etimologicamente centrado na indivisibilidade de um todo
autónomo, culturalme~t~ ç9~do pela ideologia do individua-
lismo concorrencial, o conceito sociopolítico habitual de indiví-
duo leva a legitimar a ligação invejosa de cada particular aos
seus interesses próprios e à sua privacidade: eu e o meu corpo,
eu e o meu bem, eu e o meu direito - isto é, também neste pla-
no, a esquecer a essencial interdependência entre homem indi-
vidual e humanidade social. Isto não nos aproxima da pessoa
ética. Seria então necessário abandonar o indivíduo ao indivi-
dualismo selvagem? Conviria sem dúvida, antes, ver aí- como
no mercado e na democracia - uma conquista irreversível e
expansiva da civilização, mas conquista intrinsecamente plurí-
voca, na qual embarcámos, para o melhor e para o pior. E será
possível orientá-la para o melhor sem dar vigor a todos os pro-
cessos históricos susceptíveis de abrir o indivíduo à consciência
daquilo que ele tem de comum com toda a humanidade, de tra-
ÇéU as vias práticas de uma individuação solidária? Vasto
empreendimento.
ACERCA DO SUJEITO
Esta dupla dimensão de abertura ao outro e de interiorida-
de a si, demasiadamente ausente da noção de indivíduo, tem o
58
seu conceito próprio: o de sujeito. Ou, para dizer melhor, ela
deu-se-lhe subvertendo-lhe a acepção inicial. Pois, para o pen-
samento antigo e -medieval, o sujeito não é, Je todo, aquilo uue
pomos hoje sob este termo. É, etimologicamente, o ser subja(en- .
I
li
~ !'
-, ,
te aos seus atributos, a substância. Mas com Descartes inicia-se
e depois, com Kant, completa-se, uma reviravolta: da «substân-
cia pensante» em forma de puro ego separa-se a actividade ideal
. de um eu legislador do seu mundo, daquilo que podemos aí
conhecer, daquilo que devemos aí querer. A partir desta promo-
ção capital desenvolveu-se, graças ao contributo das ciências
humanas, a concepção moderna da subjectividade. Em vez do
biológico, a referência pertinente passa a ser, aí, o simbólico.
Pela sua insérição originária na ordem do significante, o sujeito ,,•
rompe as amarras com o ser natural para entrar no universo do
sentido, onde a consciência adquire a sua livre interioridade. Já
I
não é um ser com propriedades suspensas, redutível às suas
causas e movida por necessidades, mas um existente sempre ·à
distância de si mesmo, animado pelo desejo e identificável com
os seus fins - modo de existência onde se esboça a autonomia
necessária para ser reconhecido como sujeito de direito. Eis-nos,
ao que parece, no caminho que conduz à pessoa.
·i' .;'
Contudo, na medida em que a interioridade é também .. ,
essencial ao sujeito, o escândalo filosófico é que possa haver,
para ele, outros sujeitos em posição de irremediável exteriori-
d ade. Assim, o eu apareceria invencivelmente ameaçado de
encerramento solipsista no seu ,foro interior se, como bem fez
ver a fenomenologia, a experiência do outro não devesse ser
tida por constitutiva do sujeito na sua intimidade. Em registos
diferentes, Sartre e Lévinas, por exemplo, mostraram de que
modo o olhar que me é dirigido desdobra do ser-para-si no seio
de mim-mesmo um ser-para-outro, ou seja, atribui-me uma
indeclinável exigência ética para com o Outro. O outro é um eu,
eu é um outro, e ambos, diz Hegel, «reconhecem-se, reconhe-
cendo-se mutuamente»56. Ser reconhecido: tal é, como mostra
claramente a actualidade, a reivindicação cardeal do si. O sujeito
56 Hegel, Phénoménologie de /'Esprit, trad. Jean-Pierre Lefebvre, Aubier, 1991,
p. 152 (ou tradução de Jean Hyppolite, Aubier, 1939, T. I, p. 155).
59
é, pois, com um mesmo movimento, clivado no interior e arga-
massado no exterior, tão inter-subjectivo como subjectivo.
Trata-se de um ser, não substancial, mas_relacional: conquíst~
importante da reflexão contemporânea, para aquém da qual já
não é concebível dar conta da pessoa.
Tal como o de indivíduo, o conceito de sujeito carregou-se
de uma acepção sociopolítica - também aí, por uma torsão
espectacular do seu sentido clássico. Sob o Antigo R€gíme, o
sujeito é o homem submetido aos constrangimentos da ordem
feudal, sujeito ao monarca e à lei que é suposto ele encarnar. Na
concepção pós-revolucionária, ele torna-se, pelo contrário, o
cidadão teoricamente soberano, livre nos seus actos e forte nos
seus direitos. Por oposição à personalidade social compreendi-
d a como colecção d e papéis prescritos, suporte de funções
impessoais, ele é o actor, tal como o que exalta, por exemplo,
Alain Touraine - resistindo pür vocação aos atentados totalitá-
rios, ou simplesmente burocráticos, afirmando, face a todas as
lógicas de dominação, a da individualidade. Actor, aliás, tão
colectivo como individual: o eu que se apresenta opondo-se em
nome de uma consciência moral superior a qua lquer juízo
público casa-se com o nós dos movimentos sociais contestatários
e inventivas, sei.11 cuja iniciativa permaneceríamos puros apên-
dices da sociedade.
Teremos, assim, identificado convenientemente a modali-
dade mais específica do ser-homem? Contesto essa possibilida-
de. Pois se o sujeito, tal como o estabelecemos brevemente,
reenvia, sem dúvida, a uma dimensão crucial da gênese de si, a
interpretação que o autor dá dele pode suscitar dúvidas legíti-
mas. A menos que nos comprazemos numa visão especulativa
das coisas, devemos, efectivamente, interrogar-nos sobre os
processos concretos pelos quais a criança se torna sujeito. Se se
seguirem, por exemplo, as complexas análises freudianas do
eu, vemo-lo esquartejar-se entre os requisitos do mundo exterior,
as pulsões do id e os imperativos do superego, de que ele se
afadiga, en\ grande medida inconscientemente, a ser o media-
dor. As filosofias do sujeito opõem - a de Sartre é o exemplo
mais claro - uma resistência feroz ao franco reconhecimento do
inconsciente, e compreende-se porquê: a unidade do sujeito, a
60
própria fiabilidade da sua consciência estão, aí, directamente
em causa. Pois não é possível «levar em conta» o inconsciente
para pôr f9ra do_seu alcance ~!11 eu transparente a si mesmo,
cujas finalidades e cuja liberdade escapariam às il~sÕes, ess~ s ­
crenças governadas pelo desejo. Por que efectividade pode
exactamente tomar partido o sujeito exemplar que nos é descri-
to, por que incondici~nalidade pode tomar partido o respeito
que ele nos reclama? E este o momento de dizer que a bioética
não pode ignorar o contributo da experiência analítica, inde-
pendentemente do que se pense das diversas práticas e teorias
nas quais ela se difractou: uma das mais claras lacunas na com-
posição das comissões de ética é o facto de ela não estar directa-
mente presente nelas.
De modo geral, não será a ideia de sujeito muito mais equí-
voca que a de subjectividade? Se as experiências sem cessar
renovadas do eu relevam, para cada um, da própria evidência,
o ser hipoteticamente subjacente, e mesmo o Sujeito com maiús-
cula ao qual se gostaria de as imputar em bloco será verdadei-
ramente mais que uma ficação interpretativa? Para Touraine,
por exemplo, «apelo à liberdade», que ressoa na história como
«força supra-social», o Sujeito seria, no fim de contas, um
«princípio não social a que se deve chamar espiritual» e que
nos reconduziria muito legitimamente à ontologia humanista
do «direito naturab 57 . Se a subjectívidade é, por essência, rela-
ciona!, não esconderá uma tal ídeia do sujeito, invencivelmente,
qualquer coisa da entidade metafísica? E não se arriscará então,
mesmo identificada com aespontaneidade do «actor», a perma-
necer fechada à exigência moral do respeito pelo outro? Pois,
do mesmo modo que se pode compreender que um sujeito
57
Alain Touraine, Critique de la modemité, Fayard, 1992, pp. 254, 259, 341, 424, .
De notar as reticências do autor face ao conceito de pessoa, explicitado no
p. 318. Alain Touraine aprova o facto de, no relatório da CCNE sobre
Recherche biomédica/e et respect de la personne humainc, obra citada, eu ter
sublinhado, escreve ele, << que é o sujeito que é um valor, não a pessoa>>
(p. 328). Há aqui um manifesto mal-entendido: com efeito, se eu insisto, nes-
. se relatório, no momento psíquico do sujeito como <<momento de viragem
decisivo>> em direcção à pessoa, é claramente esta última que aí é compreen-
dida como conceito do valor do ser humano (cj., nomeadamente, pp. 29-31).
61
auto-subsistente esteja apto a reivindicar direitos subjcctivos,
assim também, se se ignorar o seu laço constitutivo com a
humanidade social - mesmo que ela não esteja presente m~le,
como na moral kantiana, senão sob a forma de uma humar,ida-
de puramente ideal-, estará ausente dele a fonte legitimadora
de uma obrigação ética incondicional face a todos os outros. Se a
dificuldade do indivíduo é o individualismo, o sujeito também
tem uma dificuldade: o subjectivismo, tão funesto ao querer
como ao saber.
ENTRE SUJEITO E PESSOA:
A PERSONALIDADE
Para apreender a íntima conjunção de singularidade e socia-
lidade, de interioridade e objectividade, que constituem este
humano integral de que indivíduo e sujeito exprimem aspectos
importantes, mas parciais, um terceiro conceito se nos oferece:
o de personalidade, outrora sinônimo da palavra pessoa.
Conceito desdenhado, no entanto, pela antropologia filosófica
actual, o que não é dE' espantar. Pois a disciplina que se apre-
senta como psicologia da personalidade propõe-nos uma sua
versão pouco profunda. Apo~ada, por um lado, em tipologias
que combinam, segundo os casos, traços morfológicos, de
carácter ou cognitivos, ela não vê neles senão uma panóplia de
formas comportamentais vazias cuja origem permanece obscu-
ra e a evolução improvável. Voltada, por outro, para a psicolo-
gia social, ela redu-la simetricamente às variantes possíveis de
uma suposta «personalidade de base» que nada faz, às diversas
disposições de uma colecção de papéis prontos a vestir, isto é, a
um personagem de confecção. Nesta dupla abstracção, a perso-
nalidade é apenas uma estrutura formal inerte que atravessa,
sem o afectar, um fluxo contingente de acontecimentos vividos,
susceptíveis de interessar, já não ao psicólogo, mas ao historia-
dor, ao biógrafo, ao romancista. Compreende-se que um tal
conceito pareça subalterno . Com efeito, apenas lhe falta o
essencial: a própria vida do ser concreto na espessura do seu
mundo e na abertura do seu destino.
62
A este termo, no entanto insubstituível, restituamos agora o
seu imenso objecto: aquilo que um homem faz da sua vida e
aquilo q!le a sua vida faz dele. Corneç.:> .então a esboçar se urr•
conceito fecundo: a personalidade como produtora de uma his-
tória de vida que, ao mesmo tempo, a produz.SS É uma coisa
totalmente diferente de uma idiossincrasia nativa ou uma iden-
tidade cedo desenhada pela inscrição no simbólico, ainda que
transporte, em toda ela, o seu traço: trata-se de uma dinâmica
biográfica que toma forma à medida que os actos começam a
Jazer qualquer coisa no mundo da vida. Mundo de práticas e de
relações, de significações e de regulações, cujas lógicas objecti-
vas são outras tantas formas indutoras de personalização- his-
tória familiar, atitude dos sexos, actos de trabalho, relações
financeiras, instâncias de poder, modos de consciência ... - nas
quais este «fazer qualquer coisa» deve «emalhar-se»59 e de
onde se tricota em cada um, segundo dialécticas inesgotavel-
mente originais, o que o constitui em societário activo dos seus
semelhantes, próximos ou longínquos.
O mesmo se pode dizer da condição assalariada que o capi-
talismo generaliza: ela é a força de trabalho e de saber pessoal
que nele se troca directamente por dinheiro, forma universal da
riqueza social, pela qual cada um prova que é igual a todos os
outros, mas devendo renunciar mais ou menos ao domínio das
modalidades e das finalidades da sua própria utilização, pela
qual se aliena profundamente o ser humano, reagindo cada um
à sua maneira - e a passagem maéiça das mulheres ao trabalho
assalariado não tem pouca importância nas profundas mudan-
ças do olhar que elas lançam sobre si próprias e sobre a vida.
Assim, outro exemplo, o da adolescência, idade de vida que
58 Foi este o conceito que procurei desenvolver em, Marxisme et théorie de la
personnalité, obra citada; cf também <<La personnalité en gestation», em Je -
-Sur /'individualité, obra colectiva, Éd. sociales, 1987.
59 A palavra é do filósofo Yves Clot na sua tese de doutoramento, Le Travaii
entre activité et subjectivité, Université de Provence, 1992, T. II, p. 786. Ver
também o seu estudo <<À l'école de I'adolescence>>, em Je- Sur l'individuali-
té, obra citada, à qual se deve a análise deste tempo de vida contida no
parágrafo que se segue.
63
n'io tem razão suficiente, nem orgânica nem simbólica, inven-
ção social dos últimos séculos, com a escolaridade obrigatória,
o trabalho retardado, a maioridade legal - uma idade que con-
tinua, a.ild::t hoje, a alongar-se entre 'uma espécié de -infância
mais precoce e uma entrada mais tardia, e mesmo inacessível,
na vida profissional e nas autonomias adultas: é uma época
biográfica onde o futuro passa a ser, simultaneamente, ofereci-
do e recusado, atraente e repulsivo, à qual responde o vasto
leque das reacções juvenis, da adaptação avisada à revolta mili-
tante ou à fuga para a droga.
De todas estas lógicas não resulta, para as pessoas, uma
simples justaposição de traços, mas a composição de uma figu-
ra parecida com nenhuma outra, pelos sentidos pessoais de que
estão carregados os actos, pelas motivações e os motivos que os
animam através de uma afectividade, de um pensamento, de
valores, pela hierarquia inconstante destas motivações e destes
motivos, onde se procura um alcance biográfico global. A per-
sonalidade não é apenas um passado, mas um futuro no pre-
sente, projectado num emprego do tempo cuja estabilidade
relativa durante uma época de vida nem por isso deixa de
incluir, na base das contradições do mundo social, a possibili-
dade do conflito, da crise, do bloqueamenlo, do retomar do
crescimento. A trajectória de uma vida pode ser sempre reaber-
ta, mas a chave das reaberturas está, para a maior parte das
pessoas, na transformação colectivamente exigida de lógicas
históricas que se tornam um entrave à personalização. Assim, a
personalidade na qual vêm complicar-se, o indivídu o e o sujeito
é o microcosmo da humanidade social. E nela que se provam a
coerência ou a incoerência, a viabilidade ou a inviabilidade de
um mundo, é nela que nascem as críticas e as rebeliões, os
sonhos e as iniciativas que desabrocharão em tomadas de res-
ponsabilidade, em intervenção prática, em invenção espiritual
à medida das vastas mutações biográficas em curso, esse formi-
dável motor possível para um futuro mais humaniza do.
Indivíduo biológico, sujeito psíquico, personalidade bio-
gráfica: três modalidades enredadas da singularização humana,
onde é fortemente subestimado, em geral, o alcance de uma
hominização nunca acabada. Assim, aquilo a que se chama, tac-
64
teando, o «carácter», mais do que um dado irreformável ancora-
do nu~a identidade genética, aparece-me como 0 traço durável,
~~s na? co~1gelado, de uma primeira idade, que a história da .
Vida _:eu:terpreta e remodela profundamente nas SUaS longas
constanc1as ou nos seus tempos fortes. Evidentemente irredutível
ao indivíduo orgânico, a personalidade é também uma coisa dife·-
r~nte de um epifenómeno social do sujeito psíquico. Estas duas
~rmensões do eu não têm, nem a mesma gênese - o eu subjectivo
Ja tem as suas cores quando o eu pessoal toma forma - nem 0
mesmo ritmo - a identidade psíquica é recorrente a dinâmica
biográfica é, por essência, evolutiva. Elas mantêm a; suas distân-
cias: complexidades identitativas muito diferentes, de modo
n~nhum, se deixam unificar por lógicas biográficas semelhantes,
e mversamente. ~ontudo,_ elas interpenetram-se em cada pessoa.
De que modo, afinal? Ate que ponto consegue a personalidade
reformar uma identidade originária ? Questão que continua a
~star claramente em aberto. Em qualquer caso, dos dois lados
e~nos dada ~ma mesma opinião, e é essa que aqui nos interessa:
a1~da que seJa 5ransportado pelo indivíduo físico, o homem psí-
qurco releva, nao da natureza, mas da história e de uma história.
Ser humanamente homem não é um estado, mas um acto.
A PESSOA: SUBSTÂNCIA OU RELAÇÃO?
. Procurar resolver o enigma da pessoa valia este longo des-
VIO pela hominização. Mas ele parece desembocar num resulta- I
I
do inesperado: haverá, afinal, um enigma? Para conceptualizar II
o ~e.r humano singular, tivémos que falar de indivíduo, de ~i'
SUJeito, de pe:sonalidade. Não deparámos com a exigência de
acresce1~tar a Isso a ~e~soa. Para lá da acepção banalizada que !'
ela partilha, no quotidiano, com a palavra indivíduo, será ela, ll'
err: ~u~a, outra coisa que uma interpretação espiritualista do
SUJeito, um duplo especulativo da personalidade? Quando
Théodule Ribot intitulava, em 1885, um dos seus livros Le:;
Ma/adies de la personnalité*, fazia-o por recusa expressa de recor-
* As doenças da personalidade. (N. T.)
65
rer à palavra pessoa considerada, na psi~o~ogia cient~fica nas-
cente, como inseparável da crença metahs1ca na realidade da
alma ou, pelo menos, na unidade ontológica do eu. E quando,
vi nte anos mai s tarde, Renouvier, em França, Stern, na
Alemanha, ou Browne, nos Estados Unidos, elaboram o perso-
nalismo, não será para tentar dar lugar, não somente ao materia-
lismo prático do individualismo burguês e do socialismo ope-
rário, mas também ao materialismo teórico de uma ciência do
homem cujos-ensinamentos têm qualquer coisa de irrecusável?
Ponhamos então a questão com clareza: para além dos juristas,
quem precisa do conceito de pessoa? . .
Que o termo tenha o seu húmus cultural- em pnmeuo
lugar religioso - e, por este facto, uma coloração ideológica, é
coisa que não será contestada. Também indivíduo, sujeito, per-
sonalidade têm os seus: não há conceitos ideologicamente neu-
tros- nem mesmo o de neutralidade. Mas aquilo qu e conta
aqui é saber se o conceito de pessoa visa um aspecto incontor-
nável da realidade humana que se supõe que outras perspecti-
vas visem igualmente e com base no qual possa, consequente-
mente, rea lizar-se o entend imento público. Parece-me que
temos boas razões para estarmos convencidos disso. Pois, para
lá das teorizações particulares, aquilo que a palavra pessoa diz,
propriamente e a todos, é que, diferentemente da coisa, o ser
humano tem uma dignidade 'que motiva o respeito. Eis a única,
mas decisiva, originalidade de sentido que no-Jo torna indis-
pensável: da ordem do facto ele transporta-nos para a ordem
do valor. Indivíduo, sujeito, personalidade são conceitos no
indicativo. Em pessoa há o imperativo, e esta imperatividade é,
ela própria, um feito confessado de que ninguém, qualquer que
seja a sua cultura ou a sua ideologia, pode abstrair. A questão
passa a ser: quem tem medo do conceito de pessoa?
Mas aquilo que revela o desvio pela hominização incita-nos
e autoriza-nos a retrabalhá-lo para o definir em termos empiri-
camente mais validáveis, na óptica de um entendimento laico -
o que não proíbe quem quer que ache que ela faz falta de lhe
acrescentar a fé. E, digamos, para já, apesar de uma longa tradi-
ção actualmente muito estafada, que já não podemos, de modo
nenhum, fazer repousar o valor da pessoa na sua representação
66
como uma substância - espiritual ou material. A ideia de subs-
tância é a de um dado subjacente que subsiste por si mesmo.
Tudo contradiz uma tal caracterização naquilo que sabt:>nos do
ser humanamente homem. Ele não é dado, mas constrói-se.
Nada de subjacente nele poderia ocupar o lugar de uma tal
actividade. Ele é menos subsistente que existente. E não existe
por si só, mas pelo outro, pelos outros, pelo género humano.
Em qualquer variante moderna - sociobiologia, mitologia da
«psychê» - , nenhum substancialismo pode conseguir hoje o
acordo. O que é uma sorte para a ética, pois substancializar a
pessoa não seria, num certo sentido, e muito perigosamente,
coisificá-la?60 Mas há que avaliar as consequências deste suces-
so: renunciar a _ver na humanidade própria do homem uma
substância é reconhecê-la como processo. Acabaram-se portan-
to, nela, os começos súbitos, as fronteiras delimitadas, as mar-
cações imutáveis. O que dá à moral preocupações e trabalho.
Optaremos então por uma concepção relaciona! da pessoa?
A ideia convenceu, a palavra faz figura. Alimentado pelas aná-
lises do sujeito, o racionalismo marca um duplo progresso de
fundo sobre o substancialismo. Ele acorda incomparavelmente
melhor a representação da pessoa com as conquistas das ciências
humanas, ao mesmo tempo que com as lições da experiência
vivida. E permite pensar no seu valor já não como uma proprie-
dade metafisicamente atribuída a um ser insular, mas como
uma exigência concreta intersubjectivamente experimentada . A
pessoa e a sua dignidade aparecem, assim, laicizáveis, de uma
maneira que continua, contudo, aberta às interpretações religio-
sas. O problema está, então, resolvido? Muitos pensam que
sim, mas nem por isso podem iludir graves dificuldades.
Em primeiro lugar, de ordem técnica. Ao desubstancializar
a pessoa para fazer dela um nó de relações, pensa-se tê-la insta-
lado no coração do mundo dos homens. Mas não se socializou
o sujeito psíquico senão psicologizando a relação social. Pois as
relações constitutivas de uma sociedade não são simples relações
60 Cf Paul Ladriere, «La notion de personne>>, em Biomédecine et devenir de la
personne, obra citada, p. 31.
67

directas de sujeito a sujeito, mas antes, muito mais profundamente,
conexões mediatas entre os homens - não somente os próximos,
mils os dic;t;:mtes, aqueles com quem mmca cruzarei um olhar - ,
através Jas construções objectivas como o mercado ou o sufrágio
universal, o Código Penal ou as instituições internacionais.
Digamos, com o sociopsicanalista Gérard Mendel: a sociedade não
é uma família.61 Assim, a relação do trabalho assalariado com o
capital é infinitamente diferente da eventual relação do empregado
com o PDG. Quando se centra a pessoa nas relações interpessoais,
faltam as lógicas sociais cuja transcendência é manifesta relativa-
mente àquilo que pode revelar-nos uma fenomenologia do vivido.
Este défice de objectividade tem ·grandes consequências no
plano moral. Se a exigência ética do respeito pela pessoa não
tem outro fundamento que não seja a relação intersubjectiva na
qual eu estou envolvido, onde está a garantia essencial de que
ela conservará, para mim, a sua força de obrigação, para além
dos limites temporais da sua anunciação? Pensa-se tê-la sub-
traído à desafecção relativamente às crenças metafísicas para a
enraizar numa indubitável experiência, mas não se a terá entre-
gue a todas as incons tâncias da subjectividade? Há quem
defenda, por exemplo, que o embrião congelado participa da
pessoa em virtude do «projecto parental» que nele investiu um
casal envolvido numa procriação assistida. Mas então, termina-
do o projecto, eis o embrião convertido, de repente, em pura
amálgama de células. Seja qual for o ponto de vista filosófico
em que nos coloquemos, não haverá aí uma consequência infi-
nitamente perturbadora? De que modo pode o relacionalismo
antropológico escapar ao relativismo ético? Não nos parece que
ele tenha respondido adequadamente a esta questão crucial. É
para ele que apontam, justamente, Anne Fagot-Largeault e
Genevieve Delaisi de Parseval: «A ontologia relaciona! está na
moda. Mas não é evidente que uma ontologia puramente rela-
ciona!, sem um ponto de apoio substancial, nos faz oscilar no
arbitrário? Um ser humano pode ser desejado hoje e rejeitado
amanhã. Teremos de aceitar que os velhos que já ninguém quer
deixaram de ser pessoas?»62
61 Gérard Mendel, La Société n'est pas une fmnille, Éd. La Découverte, 1992.
62 «Qu'est-ce qu'un embryon?>>, artigo citado, p. 103, nota 7.
68
' I
,j
j
PESSOA E ORDEM DA PESSOA
«Sem um ponto de apoio substancial»: é este o fulcro da -, ...
. questão. Pelas i:Up?rtan:es r~zões m:ncionadas, a vis,ão da pes~
soa corno substanc1a esta, hoJe em d1a, desqualificada, e, contu-
do, comportava um aspecto de que muitos se confessam nostál-
gicos: com ela, o valor da pessoa não estava à mercê dos humo-
res de um sujeito ou dos caprichos de uma época. É por isso
que vemos espíritos, avisados, sem dúvida, dos impasses onde
nos encerra o substancialismo, mas angustiados pelo laxismo
que o racionalismo não proíbe, refluir para o primeiro sob a for-
ma do «se fosse possível...». Ser-nos-ia necessário, escreve, por
e_xemplo, Bernard Edelman, retomando uma linguagem filosó-
fica de outrora, um ponto de vista firme sobre a «essência» da ./
~ lj
humanidade. 63 E há muitos outros que, como ele, não encon- . i'
t~~m salvação senão na surpresa divina de um regresso à meta-
flsica, de uma reabilitação da mítica natureza humana, de uma
~o~un hão laica à volta do sagrado entregue à salvaguarda «do
Junsta que vela, sozinho e sem apoio, pelo simbólico»64 - ima-
gem pungente de voto piedoso. Pois quanto mais esta busca
pelo absoluto se orienta contra a maré dos saberes e das atitu-
des_às quais muitos outros de modo nenhum querem renunciar,
ma1s afasta, por sua vez, as condições de um acordo geral anti-
-relativista.
É aqui que a conquista, demasiadamente desconhecida, de
um desvio pela hominização aparece como decisiva. Quando
não se a i~clui no enunciado do problema, procura-se a quadra-
tura do circulo: uma base para o valor da pessoa que tenha, ao
mesmo tempo, a subjectividade de uma relação e a objectividade
de u~!' sub~tância. Ora, se se quer realmente alargar o campo
de v1sao, ca1-se neste misto impossível de encontrar: o mundo
do homem, sem a formação milenar do qual, estaríamos ainda
a talhar os nossos primeiros sílex. Ele tem a objectividade de
~! L'Homme, la nature et le dro_it, obra citada, p. 285.
Ib zd., pp. 8 e 104. Cf tambem «Entretien avec Bernard Edelman>>, em Actes,
n .os 67-68, Setembro de 1989, pp. 68-78, e Bernard Edelman, «Génétique et
liberté>>em Droits, n.º 13, Abril de 1991, pp. 31-42.
69
uma substância - material ou espiritual -, sendo uma coisa
completamente diferente: uma instância onde a materialidade e
a, espiritualidage não s.~o atributos iner.tes, mas actividades
vivas. E tem a subjectividade de uma relação, sendo, contudo;
mais do que qualquer outra relação: sendo um conjunto de
relações, que a ultrapassam com toda a sua objectividade social,
e que, contudo, não têm outro sentido que o de serem sem
cessar apropriadas, subjectiva e intersubjectivamente, pelos
indivíduos que contribuem, em conjunto, para o seu devir.
Se a dimensão axiológica do ser humano não emana de
uma «natureza» que há nele - física ou metafísica - , também
não se explica suficientemente a partir de uma intersubjectivi-
dade vivida ou de uma ficção jurídica. Uma troca de olhares,
um símbolo de convenção, um vapor, a pessoa e o seu valor?
Mas isso é uma floresta de práticas, de representações e de ins-
tituições sociais! É o estado civil e o cemitério, a utilização civi-
lizada e a sua elaboração diária, o conflito moral e a sua discus-
são inesgotável, é o contrato e a assinatura respeitada, o código
penal e a advocacia, o mandato electivo e as virtudes cívicas, é
a generosidade pública e as leis anti-racistas, o júri de honra e a
comissão de ética, o sentido do sagrado e o espírito de tolerân-
cia, são os Direitos do Homem e as reivindicações da dignidade,
a figura de lenda de Antígona e o heroísmo anônimo de inume-
ráveis vidas quotidianas. E"é também uma vegetação rasteira
de formas psíquicas correspondentes nas individualidades: é o
superego freudiano e da boa vontade kantiana, a estima de si e
a preocupação pelo outro, a tomada de responsabilidade e a
objecção de consciência, é a oração e o diário íntimo, a indigna-
ção e o escrúpulo, o orgulho e o pudor, a disciplina e a revolta,
é a solidariedade e a intransigência, é «do horizonte de um só
ao horizonte de todos» e «se apenas restar um serei eu».
A pessoa é a ordem civilizada da pessoa, onde o valor do
humano é socialmente objectivado de cem maneiras- taL como
são objectivadas as suas negações hipócritas ou brutais -, mas
ordem interiorizada, incorporada mais ou menos em cada um
sob diversas formas que, validadas, contraditas, emendadas em
consciência, regressam, pelos seus aetos, à objectividade social.
É a própria dialéctica da hominização enquanto diz respeito ao
70
lícito e ao proibido, ao louvável e a:o censurável. Da mesma
maneira que o lingote, a pessoa não tem valor por natureza,
mas também não o tem por uma pura imputação subjectiva ou
decisória. O valor vem à mercadoria de uma soma de trabalho ,
social; à pessoa, vem de u~ imenso labor de civilização, de :
uma humanidade poderosamente constituída e constituinte
incluindo os antagonismos - de que ela se faz sócia. Repetimos,
_ naturalmente, essa tese filosófica segundo a qual não há passa-
gem do facto ao direito, Mas, se me voltar para o mundo real,
constato aí que esta passagem é, ela própria, um facto constante.-
Ao mesmo tempo que produz instrumentos e signos, a humani-
dade produz também normas e valores. A dignidade da pessoa
releva também destas produções históricas - ainda que elas
sejam uma das suas formas «supra-sensíveis» mais complexas.
Afastemos imediatamente uma possível incompreensão.
Constatar que a passagem do facto ao direito é um facto não
equivale, de todo, a pretender que esse facto valha como direi-
to: permanece a possibilidade de julgar se o humano não será
inumanl'l . A análise precedente nada deve à tola afectação de
optimismo ou à cínica profissão de realismo, qual das duas a
mais escandalosa, relativamente às barbáries do século. Se tudo
aquilo que é tem a sua razão de ser, só o positivismo mais gros-
seiro pode concluir daí que tudo o que é merece ser. Era este
pseudo-hegelianismo que Marx fustigava no seu tempo, ao vê-lo
assumido por um campeão da escola histórica do direito, aos
olhos do qual «o Alemão que educa a sua filha para fazer dela a
jóia da família não é mais positivo que o Rajpoute que a mata a
fim de se livrar da preocupação de a alimentar»6s. E Marx
comentava sarcasticamente: «Toda a existência tem para ele
valor de autoridade, toda a autoridade valor de argumento.»
Compreender etnologicamente a prática da excisão não é admi-
ti-la eticamente: a objectividade de uma prática social não me
exonera em nada da minha responsabilidade apreciativa pessoal.
Mas esta apreciação é, por sua vez, socialmente mediada por
todo um mundo de concepções jurídicas e de representações
65 K. Marx, «Le manif~ste philosophique de l'école historique du droib>, em
Oeuvres philosophiques, Gallimard, La Pléiade, 1982, T. III, p. 223.
71
morais, de regras argumentativas e de procedimentos filosóficos,
toda uma cultura ao nível da qual o afrontamento das práticas
_pode trrutsmutar-se em confronto dos valores, por vezes até à con-
vicção partilhada. De que pode reclamar-se uma partilha deste
gênero? É essa a questão que será explorada no próximo capítulo.
O valor da pessoa não permanece, portanto, bem entendi-
do, na embocadura majestosa de um longo rio tranquilo. Ele é
antes o envolvimento, perpetuamente em remoin11o, dos seus
meandros e dos seus rápidos. Ele é polaridade, const~~temente
em luta com o seu contrário. Um certo sentido dialéctico não é,
neste caso, supérfluo: não recobrirá a própria ideia de \lalor
uma flagrante antinomia? Todo o valor, no sentido axiológico
da palavra, é um exigível inacessível: se fosse acessível, não
seria mais do que um futuro próximo; se fosse inexigível, tor-
nar-se-ia uma extravagância. Ele afirma que um determinado
traço da humanidade deve existir e que, contudo, não pode
existir. Frequentemente, consideramo-nos desobrigados com
uma tal contradição, situando-a com resignação num afasta-
mento eterno do ideal do real. Mas não será isso acomodar-nos
com demasiada facilidade com um real que é nada menos que
ideal? Se o ideal é verdadeiramente um dever-ser, não será
então assim tão estranho ao ser; se formula uma sua exigência,
ele exprime, pelo menos, um possível. Mas, não sendo senão
ideal, confessa também que é impossível neste mesmo real. A
contradição manifesta entre ideal e real vela e revela, assim,
uma contradição latente do real consigo próprio. É o mesmo
mundo humano que afirma a dignidade da pessoa e que a
nega. E nada pode, consequentemente, dispensar-nos de traba-
lhar neste mundo para fazer prevalecer esta afirmação sobre
esta negação. O valor da pessoa não apela somente ao debate
mas, em muitos casos, a um combate.
NO CORAÇÃO DO PROBLEMA:
OS PROCESSOS DE ASCRIPÇÃO
Compreender a formação histórica de uma ordem da pes-
soa não é, contudo, ainda deixar completamente claro este pro-
72
cesso tão específico que é a personalização ética. Pois se o sujei-
to e a personalidade constituem singularizações psíquicas do
indivídücÇa .pessoa, por sua ve_z, envolve, pelo contrário, a &..IJ -
um versalização moral. E de que modo pode o ser singular tor-·
nar-se para os outros, ao mesmo tempo que para si mesmo, um i
valor universal? Trata-se do próprio problema que formuláva~
mos no início deste capítulo, ao perguntarmos de que modo a
ficção abstracta da pessoa pode tranformar-se em realidade con-
creta de uma pessoa- o que é totalmente diferente da interioriza-
ção de capacidades no indivíduo: o surgimento, nele, de prerroga-
tivas que obrigam todos os outros. Eis-nos encostados à parede.
Ora, o modo de inerência que se trata de elucidar foi, até
agora, tão pouco pensado teoricamente que faltam os conceitos
para o determinar com exactidão. Kant, como vimos, recorria
ao de imputação. Mas esta velha palavra, para além da sua pro-
ximidade inoportuna com a linguagem da culpa, apenas diz
respeito à relação de um acto com um agente, quando o que é
preciso é caracterizar a relação, bem diferente, de um valor com
um ser. É face a um problema deste tipo, encarado por ele de <
~i1
,.,,
um ângulo mais abstracto, que, em Soi-même comme un autre,
Paul Ricoeur retoma o termo do filósofo Peter Strawson, to ~-t
i!ll
I
~ l;
ascribe, para propor o conceito inédito de «ascripção*»66 - neo-
logismo franglês que, uma vez sem exemplo, me parece um 'li
..,,
111.
,,.r
:'!;.
Lq
verdadeiro progresso na reflexão antropológica. ·I ~jl
il .•
Seguindo aqui livremente, naquilo que nela nos motiva, a
análise de Paul Ricoeur, o que é a ascripção? É uma espécie tão
particular de atribuição que volta a pôr em causa a lógica tradi-
cional, mais própria para tratar das questões físicas que das
morais. Poderíamos dizer, por exemplo, que o respeito pela
palavra dada é atribuível à pessoa? Esta formulação sofreria de
um grave equívoco: seria o decreto - sempre justificado --
daquilo que a pessoa é de direito ou a constatação - frequente-
mente contestável- daquilo que ela é de facto? Ultrapassamos
este equívoco ao dizer que o respeito pela palavra dada é
ascriptível à pessoa, ou, dito de outro modo, que pertence ao
* «Ascription>>, no original. Traduzimos directamente. (N. T.)
66 Paul Ricoeur, Soi-même comme un autre, obra citada, pp. 109 e seguintes.
73
repertório das suas características obrigatórias, se ela merece o
seu título. «Ascrever não é descrever»: não é designar um
modo de ser. de qualque~ coisa, mas atribuir a alguém um
modo de se comportar. Entretanto, ascrever difere igualmente
de prescrever, pois a pre~çrição não pressupõe o assentimento
daqueles a que diz respeito, mas a ascripção envolve também a
inscrição que se faz neles: quando algo é ascripto a alguém,
esse alguém ascreve-se-o ele próprio, desde o momento em que
se designa como pessoa. A ascripção consiste precisamente nes-
ta «reapropriação» pelo sujeito. E não é tudo: visando, não o
indivíduo na sua particularidade, mas o humano na sua gene-
ralidade, a ascripção a um é também ascripção a todos os
outrosP Ela é, à partida, interpessoal e recíproca. Em suma, a
ascripção é o modo de atribuição que apenas convém quando
reportamos ao ser individual características universais da pessoa.
Tirando resolutamente este precioso conceito do lado das
ç, ;m as concretas da hominização, mais do que das lógicas abs-
.. rtas da atribuição, direi que a ascripção de uma dignidade é o
.resso pelo qual o ser individual vem a deter em-si e por-si a
, Mlidade de associado do gênero humano. Naturalmente, isto
1 .. . o se faz sem muitas discordâncias. Enquanto pessoa, posso
mostrar-me indigno; e posso ser tratado indignamente. E con-
tudo, a concordância de princípio persiste, pois o objecto desta
ascripção é, por essência, um equivalente universal: possuir o
estatuto de pessoa identifica-me em dignidade com todos os
outros; ligado a esta dignidade, sou corresponsável com todos
os outros pelo seu estatuto. A pessoa é uma relação humana,
uma prerrogativa ética que, ao mesmo tempo, me pertence e
me ultrapassa: aquilo que, nela, me pertence ultrapassa-me,
aquilo que, nela, me ultrapassa pertence-me. Ela faz do homem
aquilo a que os filósofos chamam um ser genérico, responsável
pelo seu gênero como bem próprio e como bem comum.
Neoformação histórica do ser humano, como o sujeito e a per-
sonalidade, a pessoa é-o portanto, não apenas no sentido psí-
quico, como aqueles, mas também no sentido axiológico: é
intrinsecamente um conceito de valor.
67 Ibid., pp. 52, 117, 121.
74
Falta compreender de que maneira se estabelece, concreta-
mente, a este último título, a sua definição compreensiva - que
prerrogativas e obrigações para a pessoa?- e extensiva- quais
os candidatos a ser uma pessoa? O modo habitual dé encarar â
questão permanece, com demasiada frequência, ·na minha opiJ
nião, marcado pela desatenção ao papel insubstituível do mun· "'
do social, que não é verdadeiramente compreendido como
aquilo que é: a própria humanidade na sua dimensão objectiva.
Ora, o facto de se a pôr entre parêntesis condena-nos a um dile-
ma pouco exaltante: fazer nascer a definição procurada de urna
autodeterminação originariamente subjectiva - como se a pes-
soa pudesse instituir-se a si própria, fora da sua ascripção pela
ordem da pessoa - ou fazê-la nascer de uma citação puramente
objectiva - como se a ordem da pessoa pudesse, por sua vez,
acreditar-se fora da sua apropriação pelos sujeitos reais. Pessoa
«de facto» sem legitimidade, de um lado, pessoa «de direito»
sem efectividade, do outro: será possível escapar a este círculo
vicioso sem perceber que, entre a moção de base de um eu e de
um tu tomados à parte e a deliberação ético-jurídica do topo, a
determinação do campo da pessoa é centralmente um processo
civilizador, engendrado interactivamente no quotidiano, de
maneira pré-reflexiva, sem dúvida, mas de modo nenhum
irreflectida, por todas as práticas e por todas as consciências
humanas?
ETHOS E ÉTICA
Num estudo sobre as modalidades de controlo das malfor-
mações congênitas, F. A. Isambert, notando a «dimensão ética
implícita» destas práticas, escreve que se «pode considerar que
elas encobrem um conjunto de normas vividas, mas não codifi-
cadas, e de valores admitidos, mas não sistematizados, em
suma, um ethos ». Nos Estados Unidos, sublinha este autor, a
existência de um «corpo de moralistas» teve uma importância
decisiva para que o ethos fosse elaborado, constituindo uma ética.
«Mas não esqueçamos que a função cria o órgão, e o desenvol-
vimento deste corpo de moralistas está relacionado com uma
75
demanda ética», dos médicos e dos biólogos, confrontados com
escolhas difíceis, bem como dos meios sociais, interessados em
tomar ·decisões esclarecidas. 68 Estamos, aqui, no coração do
processo civilizador onde se opera, não sem conflitos, a ascrip- ·
ção social da pessoa. Em França, um exemplo típico desta ela-
boração colectiva foi a formação de um ethos doravante capital:
a doação de sangue, benévola e gratuita, cuja história apaixo-
nante está ainda muito pouco escrita69, e que introduziu duas
inovações profundas na definição extensiva e compreensiva da
pessoa: a sua dignidade deve ser estendida aos constituintes do
corpo humano; ela implica que não se possa tratá-los como
coisas venais.
Antes da guerra, vendia-se o próprio sangue, como se pode
ver no filme Hôtel du Nord, e havia mesmo quem fizesse greve
pela sua revalorização. A prática da gratuitidade da doação não
substituiu esta prática da venda em virtude de uma súbita ilu-
minação filosófico-jurídica. Ela estabeleceu-se, não por acaso,
na seq uência do conflito mundial, no fio das solidariedades
estab;~lecidas aquando d os combates da guerra e da
Resistência, onde a transfusão de sangue de um braço para
outro perdia todo o seu carácter mercantit no contexto do
generoso clima da Libertação, marcado pela renovação do espí-
rito público, pelas nacionalizações e pela construção da
Segurança Social. Ela deve imenso a personalidades nas quais
encarnavam estes ideais humanistas, como a do Dr. Arnault
Tzanck, mas a indispensável rede dos dadores benévolos não
teria podido constituir-se sem as poderosas tradições de entre-
ajuda alimentadas pelo movimento sindical e o envolvimento
íntimo de centenas de milhares de trabalhadores. A lei de 2 de
Julho de 1952 mais não fez que organizar o sistema transfusional
68 François-André Isambert, «Éthique et génétique>>, em L'Amniocentese et les
médecins, Caderno n.º 1 do Centro de sociologia da ética, EHESS /CNRS,
1980, pp. 3 A e 35 A.
69 Cf., para uma visão de conjunto, o relatório da CCNE feito por Georges
David, Transfusion sanguine et non-commercialisation du. corps humain, 2 de
Dezembro de 1991. Cf. também Bernard Génetet, «Éthique française et don
du sang», em Actes de 3e Congres international d'étlúque médica/e (9-10 de
Março de 1991), Ordem nacional dos médicos, 1992, pp. 226 e seguintes.
76
esboçado pela iniciativa social, e sem sequer evocar o princípio
do dom gratuito que é a sua alma.
Percebemos por este exemplo até que pontoJazPr depender · ·
o estatuto da pessoa exclusivamente dos decretos do direito ou ·
dos apelos a uma pura subjectividade está longe dos ensina- '
méntos da experiência. Se a pessoa repousa sobre a ordem ins-
tituída da pessoa, não será esta ordem mesma, em primeiro
lugar, a que modela em permanência uma vontade humana
comum? E se, na França actual- apesar do contexto cívico cla-
ramente alterado e das terríveis falhas de um sistema transfusio-
nal cuja inspiração humanista se deixou penetrar por lógicas
muito diferentes - , o princípio de gratuitidade continua a ter
futuro, não será, antes de mais, porque 84% das francesas e dos
franceses se declaram ainda muito ligados a ele?70 Sendo a pes-
soa, por essência, relação, não é de espantar que o seu lugar
seja este vai-e-vem: entre as práticas de todos e de cada um, nas
quais ela toma corpo, e as jurisprudências que a precisam, as
instâncias que a teorizam, as instituições que a oficializam, mas
sempre para regressar à experiência partilhada onde ela é posta
à prova e evolui.
Assim, a nova medida da pessoa, inaugurada pela prática
popular da doação do sangue, produziu nas nossas vidas mui-
tos outros efeitos coerentes - codificados, como a doação dos
órgãos, ou não: o leite ma terno continua a ser oficialmente
venal em França, mas a maioria das mulheres que fornece 'os
lactários deseja fazê-lo gratuitamente. Percebemos aí, com cla-
reza, um dos mil caminhos civilízadores da pessoa no mundo
social. Não chegaríamos ao mesmo resultado estudando a
gênese de consensos mais ou menos largamente maioritários -
como o consenso acerca da IVG* - ou que se procuram em ten-
tativas contraditórias- por exemplo, o consenso sobre a escolha
das características da criança por nascer -, através dos quais
continuam inevitavelmente a desenhar-se os contornos e os
70 Cf. o inquérito de opinião BV A/Viva em Viva (La Vie mutualiste), n.º 60,
Setembro de 1992, pp. 8 a 13.
* Interrupção voluntária da gravidez (iniciais da fórmula francesa: interrup-
tion yolontaire de grossesse). (N. T.)
77
conteúdos da pessoa? E não foi isso que puseram já fortemente
em relevo os historiadores das mentalidades, a propósito da
formação das atitudes relativamente à loucura e ao internamen-
to psiquiátrico, à morte e aos ritos funerários - ou, noutro pla-
no, aquilo que releva do estudo de imensos processos civiliza-
dores, como a abolição da escravatura, ontem, ou a marcha,
ainda tão laboriosa, no sentido da completa igualdade das
mulheres, hoje?
Também aí, previnamos os mal-entendidos. A tese que eu
defendo não é que os costumes fazem a ética - eles podem,
indubitavelmente, fazer a falta de ética -, mas que a ética se faz
principalmente neles - pelo menos na sua parte mais humana-
mente criativa. Não se trata, portanto, evidentemente, de erigir
o facto em direito, de minimizar a responsabilidade da consciên-
cia, a exigência do conceito, a eficácia do direito, nem, muito
menos, de apagar o curso frequentemente antinómico e confli-
tu al, por vezes d rama ticamente regressivo, da reprodução
colectivamente alargada da pessoa. Trata-se de reparar a dema-
siadamente frequente e tão lamentável omissão de que é víti-
ma, numa grande parte da literatura bioética, o próprio centro
do seu tema: não tanto aquilo a que se chama por vezes, com
uma fórmula um pouco condescendente, o «papel da opinião
pública» - essa forma mais passiva, manipulável e versátil do
julgamento de um povo - , mas a importância inestimável das
práticas de vida carregadas de sentido onde se cumpre aquilo
que merece ser tido por mais do que uma hominização : por
uma humanização. Pois é por aí que a pessoa se torna verda-
deiramente, enquanto valor, realidade humana ou, para retomar
um termo feliz de Albert Jacquard, humanitude.
A PROPÓSITO E OPORTUNIDADE
DO MATERIALISMO
Detenhamo-nos aqui um instante: não será estranho que
um materialista assuma assim a defesa da realidade da pessoa
ética? A interrogação não é retórica. Encontramo-la, por exem-
plo, numa estimulante entrevista acerca da moral com uma filó-
78
sofa de orienta ção muito diferente da minha, Claudie Lavaud.
Avançando a ideia de que há, «para todos os homens de boa
vontade».. «um certo número de definições fundamentais se>bre
àS quais se deve poder estabelecer um acordo, independente-
mente das grandes opções filosóficas», ela alega, em relação a
isso, como prova «o facto de haver, no seio da Comissão Nacional
de Ética, um filósofo, Lucien Seve, que, ainda que marxista, e
portanto, em princípio, materialista, concede um lugar impor-
tante à noção de pessoa». Sendo então questionada sobre aquilo
que pode tornar esta noção «conciliável» com o materialismo, a
entrevistada sugere que se deve, indubitavelmente, procurar
essa conciliação «não somente na relação com um outro, ele
mesmo pessoal, mas na vida social e na constituição de um
mundo humano»71 . Seria difícil dizer melhor em tão poucas
palavras.
É verdade que sou, como muitos outros neste país, materia-
lista -não somente em princípio, mas por princípio. E não é
apesar, mas em função, desse princípio que eles, como eu - ain-
da que em termos diferentes - , levam muito a sério a pessoa e a
sua dignidade. Que isto conduza a voltar a pôr em causa, tam-
bém seriamente, alguns laços comuns desagradáveis sobre o
materialismo filosófico parece-me conveniente. Não será um
pouco espantoso, por exemplo, ler na pluma de um filósofo
considerado que «para as interpretações materialistas», «todas
as operações que o sujeito se atribui são redutíveis ao funciona-
mento que o sustenta»72 - como se defen der o materialismo sig-
nificasse querer fazer sair o homem social do homem neuronal.
Em suma: como se pode ser materialista? Em mais de uma obra
ou colóquio de ética biomédica, há quem afirme, de passagem,
em tom de evidência, que numa «visão materialista» o embrião
71 Em Bulletin, revista editada pelo CLCJ de Bordéus, n.º especial 23 bis sobre
«La bioéthique», 4.º trimestre de 1990, pp. 41-42.
72 Jean Ladriere, «Expérimentation humaine et droits de l'homme: perspecii-
ves philosophiques>>, em Expérimentation médica/e et droits de /'homme, obra
citada, p. 194. Cf, entre tantos outros exemplos, Frédéric Lenoir, Le Temps de
la responsabilité, Fayard,I991, p. 47, onde «uma visão puramente materialis-
ta do homem>> é dada como podendo «abrir as portas a todas as tiranias>>.
79
 não poderia ser outra coisa senão uma amálgama de células, ou
o parentesco um laço biológico: tanto pior para os materialistas
que sustentam exactamente o contrário. Estaríamos ainda, por
urn lado, nesses tempos em que Leibniz chamava caritativa- ·
mente ao materialismo paupertina philosophia, isto é, filosofia do
pobre - e isto no século de Hobbes e de Spinoza? E ainda deve-
mos dar-nos por muito felizes por não estarmos incluídos no
campo do «materialismo totalitário» por não considerarmos
que infligir penas de prisão às mulheres que recorrem à IVG
constitui um grande progresso do humanismo.73 Um materia-
lista tem menos direito que qualquer outra pessoa a que o seu
pensamento seja respeitado?
Na verdade, existiu efectivamente aquele materialismo
para o qual o cérebro segrega o pensamento como o fígado
segrega a bílis - e existiu na mesma época em que o espiritua-
lismo defendia, por seu lado, a alma substancial. E pode acon-
tecer que hoje, entre espíritos mal informados, se prossiga o
aflitivo duelo destes fantasmas. No esteio do homem-máquina
cartesiano, prosperou toda uma tradição francesa de materialis-
mo médico, de La Mettrie a Cabanis, de Broussais a Broca, e a
outros, mais próximos de nós. Só um profundo desconheci-
mento da história das ideias poderia fazer subestimar aquilo
que esta tradição trouxe à inteligência moderna do homem físi-
co. Mas é bem verdade que, ao mesmo tempo, ela não cessou
de ser agravada por terríveis estreitezas - nomeadamente,
aquela que consiste em fazer da materialidade humana uma
concepção onde é ferozmente ignorada a excentração da subjec-
tividade e da socialidade. De onde as tentativas, tão infatigáveis
como vãs, de reconduzir as funções psíquicas superiores às
suas condições nervosas, os comportamentos sociais a pulsões
biológicas e o destino pessoal a um programa genético: a biolo-
gia degenera aqui em biologismo. De tal maneira que foi possí-
vel que alguns recorressem a esta corrente de pensamento ori-
ginalmente humanista, à vontade no republicanismo radical do
73
A fórmula é de João Paulo II, fustigando a lei polaca - anterior à mudança
de regime- que autorizava a IVG (Le Monde, 15 d e Novembro de 1990).
80
século passado, para alimentar igualmente o racismo de uma
direita elitista 74 ou a variante francesa de um eugenismo, cujos
traços estão longe de estar apagados em diversas orientações
actuàis da bíomedicina. · ·
Mas poderia - e deveria - saber-se que o materialismo dest
te século, sem nada deixar perder das conquistas da biologia, S@
desenvolveu abundantemente em muitas outras direcções: na 1
da exploração analítica do inconsciente e do sujeito, tal como a
franqueou o materialista Freud; na da exploração da abertura
antropológica operada pela teoria da hominização, que tanto
deve à obra desco nh ecida de materialistas com o H enri
Piéron75; na da interrogação múltipla das relações soéiais, tor-
nadas muito mais legíveis pela cultura saída de Marx - com a
qual a vulgata «marxista-leninista» dos países desde então socia-
listas tinha mais ou menos a mesma relação que o Syllabus com
o Evangelho. Redutora, uma tal abordagem polimorfa do ser
humano? Aquele que o julga com condescendência estará segu-
ro de não ter, ele próprio, uma visão terrivelmente reduzida?
Evidentemente, ele pensa em «biologismo» e traduz maquinal-
mente por «materialismo» . Orai este último é uma atitude filo-
sófica de conjunto, tão pouco identificável com um reducionis-
mo biológico- ou sociológico- quanto o espiritualismo o é, por
exemplo, com o idealismo absoluto.
O materialismo; dizia Engels, não é senão o empreendi -
mento de dar conta do mundo «sem qualquer acrescento estra-
nho a ele»76, por outras palavras, sem qualquer invocação de
74 Ana lisei a ev o lução d es ta corre nte do materialism o franc ês em La
Philosophiefrançaise contemporaine et sa genese .de 1789 à nos jours, Éd. socialies,
1962, nomeadamente p p. 146-148. Um exemplo típico é o d e Jules Soury,
autor de um Bréviaire du matérialisme, qu e ad eriu à Acção'fràncesa no início -
deste século.
75 Cf. Henri Piéron, De l'actinic à. /'holii me, PUF, 1959, T. II, 4.ª parte, <<De
l'enfant à l'homme et d e son 'humanisation' >>. Posteriormente, o termo d e
hominização prevaleceu enquanto conceito antropológico.
76 F. Engels, Dialectique de la nature, Éd . sociales, 1952, p . 198; I<. Marx e F.
Engels, Études philosophiques, Éd. so-ciales, 1974, p . 209. Sobre este p roble-
ma, cf. L. Seve, Une introduction à. la philosophic marxistc, obra citada, nomea-
dam ente p p . 335-338.
,81
.l; I 1
( 'i
uma sobrenatureza. Esta é, com efeito, de Epicuro a Diderot, de
Feuerbach a Ernst Bloch, a iconoclasta tentativa materialista. A
Bonaparte, que se espantava por não v~r J?eus _no se~ sistema
do mundo, Laplace respondia: não preCisei dessa 11Ipotese. E o
materialista procura fazer ideia do que é ·o próprio ~ornem ~e~
supor que há uma alma ou um Criador. Contudo, e necessano
que ele torne inteligíveis o homem e o mundo em to~a~ ~s suas
dimensões efectivas, sob pena de dever recorrer a artiflcws que
são, afinal, não menos especulativos que aqueles que censura
às metafísicas que recusa. Por isso, acrescentaria, pela minha
parte, um elemento importante à definição de Engels: é materia-
lista o empreendimento de dar conta do mundo sem qualquer
acrescento estranho nem subtracção arbitrária. O que é um ponto
capital para o nosso propósito. Uma visão plenamente m~t~ria­
lista do homem - aliás, como uma visão plenamente espmtua-
lista - nã o pode ignorar nenhuma destas ~~mens?es_ construti-
vas: nem o indivíduo biológico, nem o SUJelto psiqmco, nem a
ersonalidade bioaráfica, nem a pessoa ética. Sem o que. o par-
P b
tido que tomar se transforma em preconceito. Contranamente
àquilo que muitas vezes se pensa, o biologismo, ~o~ as suas t
estreitezas fundamentais, não é o cúmulo do maten ahsmo, mas
trai, antes, a sua falta. E é justamente por isso que não é fácil
entender-se com ele.
O ENTENDih!IENTO NÃO É O COI\1:PROMISSO
- Tocamos aqui no paradoxo do acordo verdadeiro. Segundo
um preconceito difundido, para se encontrar uma base de har-
monização entre opções filosóficas diversas, e mesmo advers~s,
cada uma delas deveria sacrificar à outra uma parte essencial
de si própria. Isto é compreender a harmo~iz_ação como um
compromisso eclético que nenhuma das cotwtcçoes em presença
pode achar sinceramente vantajoso. A limite, _um acordo entre
todos seria um acordo sobre nada - sobre aqmlo a que, por um
lapso espantoso, um prelado cha~ava «o m~i.s pe~ueno d~~o­
minador comum»77. O verdadetro acordo etlco e de espmto
77 Monsenhor Jullien, <<Cohérence et incohérence», ú Mo nde, 13 de janeiro de 1988.
82
diferente: para inverter o lapso, diria que ele tem por objecto
«O maior múltiplo comum», na ocorrência, o respeito de todos
os bomens pela sua humanidade. Isto supõe que cada filosofia
dê, não somente o contributo de todo o seu pensamen;to, mas
também o esforço de pensar todo o real 'de acordo cdm ·uma
regra de leal exaustividade, não se permitindo desfalcât; desse
pensamento, a seu bel-prazer, os aspectos que o embaraçam.
Não acreditar na alma não autoriza a ignorar o assúnto. Não
acreditar em Deus não autoriza a negar a pessoa. Acreditar em
Deus não autoriza a desconhecer os dados biológicos ou as
relações sociais. É quando cada um se impõe assim a tarefa de
reflectir no seu sentido sobre todas as dimensões da realidade
comum que um acordo autêntico sobre a compreensão e a
extensão da pessoa se torna, certamente não fácil, mas pensá-
vel, porque todos se esforçam por encontrar o universal.
É por isto que, colocando este trabalho crítico sob o signo
de uma investigação do mais amplo acordo ético possível, eu
litigo pela parte que nessa investigação pode ter um materialis-
mo, não reduzido, mas, pelo contrário, integral, isto é, ao qual
nada de humano permanece estranho - nem o subjectivo nem o
objectivo, nem o respeitável nem o palpável. Litigo pelo contri-
buto de um materialismo, não somente natural, mas histórico e,
daí, contra a exclusividade que marca, sem dúvida mais do que
qualquer outra orientação da cultura materialista, aquela a que
se chama marxismo.78 Pois, para além das suas faltas de razão,
78 Posso dar aqui um testemunho pessoal? Na altura da criação da CCNE, em
1983, a minha nomeação, incluída nas «cinco personalidades designadas
pelo Presidente da República, como pertencentes às principais famílias filo-
sóficas e espirituais>> deu lugar a uma pequena campanha de imprensa com
fins intimidatórios. No Le Figaro de 17 de Novembro de 1983, sob o titulo
«Morale et communisme>>, Annie Kriegel pensava dever afirmar que os tra-
balhos da Comissão estavam «desacreditados à partida>> pelo facto de eu ter
sido nomeado. Numa página inteira do L'Express (n.º de 2 a 8 de Dezembro
de 1983), sob o título «Question de morales>>, opondo a minha suposta moral
à «moral comum >>, Alain Besançon escrevia, em termos curiosamente seme-
lhantes: «Esta nomeação parece ser de natureza tal que arruinará totaL:nente
a autoridade desta comissão.>>A perfeita indiferença do presidente da CCNE
e dos meus colegas a estas amabilidades foi-me muito grata.
83
 e daquelas que se lhe atribuem mesmo quando ele não as tem,
ele representa um dos antídotos mais activos para todas as
reduções do reaL Há nele, dizia Emmanuel Mounier, uma sã
-provocação «para que se afastem as mistificações idealistas, se
assentem os pés na condição humana dos homens, se ligue a
mais alta filosofia aos problemas da cidade moderna»79. Assim,
não foi «apesar d e marxista », mas justamente como tal, que m.e
senti à vontade no seio da CCNE na posição do materialista
que se encontrava muitas vezes de acordo, sem se negar, com
os crentes, eles mesmos atentos a todo o real, para darmos, jun-
tos, grande importância à dignidade da pessoa.
É verdade que o materialismo é «conciliável» com a afir-
mação da pessoa; tem mesmo necessidade disso para se tratar
a
de um materialismo integral. Eu defendo a recíproca: pessoa é
«conciliável» com o materialismo; ela tem mesmo necessidade
d ele para chegár a uma definição comum. Foi isto que não se
verificou suficientemente nos começos da bioética . Esse é ainda
outro aspecto da armadilha que a palavra nos estende. Ela
sugere que poderia bastar um encontro entre o biólogo e o éti-
co, segundo a máxima implícita: ao biólogo, a materialidade, ao
ético, a espiritualidade- o que deixa entender qu e a competên-
cia moral competiria, antes de tudo, ao teólogo e que o contri-
buto materialista se reduziria ao saber científico. O desenvolvi-
mento d a ética bioméd ica pública obriga a corrigir estes pre-
conceitos. O crente também tem os seus pontos de vista sobre
os factos, o não crente também tem as suas ideias sobre os valo-
res. Assim, impõe-se a todos uma exigência fundamental: a do
pluralismo escrupuloso das éticas chamadas a confrontar-se,
cujas divergências sobre o sagrado não impedem muitas vezes
de concordarem acerca do profano.
De resto, seria ter uma visão bem limitada de uma discus-
são ética digna desse nome pensar que ela está regulada, à par-
tida, por quaisquer «mandatos imperativos» que os supostos
oponentes receberiam das suas respectivas doutrinas. Face às
mais vivas questões éticas - que fazer dos embriões congela-
79 Emmanuel Mounier, Le Personnalisme, obra citada, p. 16.
84
dos?, que dizer ao portador de uma doença genética incurável?,
que pensar do diagnóstico obrigatório da SIDA? ... -,cada um
se s~nte só consigo mesmo, sem resposta d edutível. d e 'lm;·.
opção filosófica, de um dogma da Igreja, de um envol..,·irne~t~- -
partidário. Mais ainda: sente-se dividido· em si mesmb:,Mas,
segundo o pertmente reparo de France Querê, «podeclo.s che-
gar a acordo entre todos, porque há desacordo em cada um »so.
Nesta nudez de respostas precon cebidas a que nos reduz 0
inteiramente inédito, sou constrangido a contar como um e a
querer por todos: no fundo, é a mesma coisa. Faço como nunca
a experiência daquilo que disse Montaigne: cada homem traz em
si a .forma da humana condição. Há aí uma hipótese forte de
caminharmos em conjunto para urna humanidade sem fronteiras.
Mas, aqui, a dúvida parece dever mudar de campo. Se é
possível um acordo público - e portanto uma legislação - neste
domínio, não será, por hipótese, n a base de urna concepção
puramente laica da pessoa e das suas prerrogativas? E será esta
con cepção totalmente laica «conciliável» com as exigências da
1 fé? Aqui, já não é o materialista que deve ser interrogado, mas
os seus parceiros religiosos, cuja resposta é decisiva. Assim, 0
teólogo católico Xavier Thévenot defende, com toda a clareza, a
ideia d e uma razão comum que permite à sua Igreja <<colaborar
em ple1~0 com os ~ão cristãos para a elaboração de um campo
normativo» do agu· humano, pois, sublinha, «aquilo que se
p rescreve em nome de Deus d eve poder [... ] justificar-se em
nome do homem» ou, por outras palavras, «em nome da razão
considerada na sua saudável autonomia»Sl. Num espírito con-
vergente, Pau l Ricoeur afirma que «mesmo no p lano ético e
moral, a fé bíblica nada acrescenta aos predicados 'bom' e 'obri-
gatório' aplicados à acção», o que o leva a dizer «qu e não exis-
te uma moral cristã, a não ser no plano das mentalidades, mas
antes uma moral comurn»82 . Bem entendido, o crente colocar-se-á
-
~~ France Qu,éré, L'Éthique et la vie. Odile Ja:ob, I ~91, p. 278.
Xav1er Thevenot, «LOJ ra t10nnelle et ecc!esJahte», em Le Supplémeni, n.º 147,
D~zembro de 1983, p. 531, e «Les chrétiens: des veilleu rs>> em L.a Croix -
l'E~enement, 30 de Abrjl a 2 de Maio de 1989, p. 13. Cf , d o mesmo autor, La
Bwet/uquc, Centurion-Ed. Paulines, 1989.
82 P I R.
au JCoeur, 5oHneme
. ' com me un autre, obra citada, p. 37.
85
numa perspectiva de sentido totalmente diferente da do não
crente - de onde podem resultar muitas divergências de análise
c de aprPciação concreta. Mas o facto de o materialista, o agnós-
tico ou o humanista poderem encontrar-se com o católico e o
muçulmano, o protestante e o israelita, neste terreno da moral
comum, atesta que a procura de um entendimento verdadeira-
mente ético não releva de uma quimera.
PARA UMA DEFINIÇÃO COMUM DA PESSOA
Resumamos, pois, numa proposição - no duplo sentido do
termo - aquilo a que chegárnos. Na sua acepção ética, a única
em que a palavra não é substituível por nenhuma outra, a pes-
soa é a forma-valor igualmente ascrita a todos os indivíduos, na sua
qualidade de pertencentes ao género humano.
Entendamos adequadamente este conceito crucial de «for-
ma-valor». Ele não diz que a pessoa é, inicialmente, um outro ser
diferente do indivíduo biopsíquico - da mesma maneira que o
valor mercantil não é uma coisa diferente do bem útil corres-
pondente -, mas q1.1e ela é ou tra forma , a de uma relação de
essência social que se objectiva nas práticas, institui ções e
representações específicas ..Entretanto, à medida que esta forma
adquire, na ética, uma c~nsistência conceptual e uma força
motivadora próprias -da mesma maneira que o valor mercantil
passa a existir, como tal, no dinheiro -, ela pode separar-se do
seu estrito suporte inicial, o indivíduo na plena posse dos seus
meios, para ser investida, pouco a pouco, onde quer que se
encontre em jogo uma parte significativa da humanidade - o
ser embrionário, o ser diminuído, os restos mortais, a parte do
corpo ... - e ascrever-lhes uma dignidade sinónima de obrigações
moduladas a seu respeito. É este incessante trabalho de autono-
mização da forma-pessoa e do reinvestimento alargado que
constitui o processo civilizado da personalização.
Não nos fará uma tal definição sair do círculo vicioso de
que tínhamos partido: pessoa «de direito» ou pessoa «de facto»?
A pessoa não é um dado de facto: a qualidade imprescritível em
que ela consiste é urna coisa totalmente diferente da resultante
86
condicional de um estado físico ou de urna conquista psíquica,
pois emana, pelo contrário, de uma ordem de valor historica-
mente produzido em que todos os humanos são, em princípio,
eleitos. Será, então, um direito recebido? Que urna tal dimensão''
do ser me venha de outro lado, que não do meu ·campo fecha- '
do, parece ser uma evidência. Mas, para que esta alocação não ;
esteja votada à pura arbitrariedade e à sua fragilidade, é neces-
sário que possa ser acolhida por todos como reconhecimento,
neles, de uma realidade que apela, o que supõe que ela lhes seja
apropriável, na prática e em consciência, a ponto de se tornar,
para eles, uma exigência. Assim, aquelas e aqueles que marcam
cruelmente as faltas e as lacunas de uma ordem humana com
demasiada frequência irmmana, reivindicam, a partir da sua
experiência, que se alarguem para todos, em pontos precisos, as
prerrogativas legais ou habituais da pessoa. Por este duplo pro-
cesso de apropriação individ ual e de elaboração colectiva, a
pessoa «de facto >>pode deter um direito ascrito, a pessoa «de
direito» pode tornar-se um facto vivido. Na sua unidad e apa-
rentemente imediata de facto e de direito, ela apresenta-se-nos
então com o aspecto exterior de um enigma que apenas um
longo desvio torna decifrável.
Relativamente ao seu conceito ético precisamente delimita·
do, a noção comum de pessoa é portanto menos falsa gue tre-
mendamente confusa e, por isso mesmo, estreita. Na lingua-
gem corrente, a palavra reenvia, não à pura forma-valor do ser
humano, que apenas aparece no termo de uma análise abstrac-
ta, mas, de modo bem concreto, ao próprio indivíduo capaz de
a assumir conscientemente, isto é, reserva-a para as pessoas-
-para-si. Ora, todos os progressos da humanidade civilizada
tenderam justamente a alargar de forma modulada as suas
prerrogativas às pessoas-em-si, mesmo para lá das realidades que
participam da pessoa, que não têm os meios físicos ou psíquicos
de os fazerem valer, eles mesmos: outros fazem-nos valer em
seu lugar. Paradoxalmente, é este processo altamente cultural
de ascripção de um valor a todos os humanos que pode fazer
crer que a dignidade lhes seria inerente, apenas pelo facto natural
de serem tal. A ilusão está, pois, à vista. Se, por exemplo, tantos
franceses defendem que os produtos derivados do sangue
87
numa perspectiva de sentido totalmente diferente da do não
crente - de onde podem resultar muitas divergências de análise
c ck aprPciação concreta. Mas o facto de o materialista, o agnós-
tico ou o humanista poderem encontrar-se com o católico e o
muçulmano, o protestante e o israelita, neste terreno da moral
comum, atesta que a procura de um entendimento verdadeira-
mente ético não releva de urna quimera.
PARA UMA DEFINIÇÃO COMUM DA PESSOA
Resumamos, pois, numa proposição - no duplo sentido do
termo - aquilo a que chegárnos. Na sua acepção ética, a única
em que a palavra não é substituível por nenhuma outra, a pes-
soa é a fo rma-valor igualmente ascrita a todos os indivíduos, na sua
qualidade de pertencentes ao género humano.
Entendamos adequadamente este conceito crucial de «for-
ma-valor». Ele não diz que a pessoa é, inicialmente, um outro ser
diferente do indivíduo biopsíquico - da mesma maneira que o
valor mercantil não é uma coisa diferente do bem útil corres-
pondente -, mas que ela é ou tra forma, a de uma relação de
essência social que se objectiva nas práticas, instituições e
representações específicas.,,Entretanto, à medida que esta forma
adquire, na ética, uma consistência conceptual e uma força
motivadora próprias -da mesma maneira que o valor mercantil
passa a existir, como tal, no dinheiro - , ela pode separar-se do
seu estrito suporte inicial, o indivíduo na plena posse dos seus
meios, para ser investida, pouco a pouco, onde quer que se
encontre em jogo uma parte significativa da humanidade - o
ser embrionário, o ser diminuído, os restos mortais, a parte do
corpo ... - e ascrever-lhes uma dignidade sinónima de obrigações
moduladas a seu respeito. É este incessante trabalho de autono-
mização da forma-pessoa e do reinvestimento alargado que
constitui o processo civilizado da personalização.
Não nos fará uma tal definição sair do círculo vicioso de
que tínhamos partido: pessoa «de direito» ou pessoa «de facto>>?
A pessoa não é um dado de facto: a qualidade imprescritível em
que ela consiste é urna coisa totalmente diferente da resultante
86
condicional de um estado físico ou de urna conquista psíquica,
pois emana, pelo contrário, de uma ordem de valor historica-
mente produzido em que todos os humanos são, em princípio,
eleitos. Será, então, um direito recebido? Que uma tal dimensão '
do ser me venha de outro lado, que não do meu ·campo fecha- i
do, parece ser uma evidência. Mas, para que esta alocação não ';
esteja votada à pura arbitrariedade e à sua fragilidade, é neces-
sário que possa ser acolhida por todos como reconhecimento,
neles, de uma realidade que apela, o que supõe que ela lhes seja
apropriável, na prática e em consciência, a ponto de se tornar,
para eles, uma exigência. Assim, aquelas e aqueles que marcam
cruelmente as faltas e as lacunas de uma ordem humana com
d emasiada frequência il•umana, reivindicam, a partir da sua
experiência, que se alarguem para todos, em pontos precisos, as
prerrogativas legais ou habituais da pessoa. Por este duplo pro-
cesso de apropriação individual e de elaboração colectiva, a
pessoa «de facto>>pode deter um direito ascrito, a pessoa «de
direito>> pode tornar-se um facto vivido. Na sua unidade apa-
rentemente imediata de facto e de direito, ela apresenta-se-nos
então con1 o aspecto exterior de um enigma que apenas um
longo desvio torna decifrável.
Relativamente ao seu conceito ético precisamente delimita·
do, a noção comum de pessoa é portanto menos falsa gue tre-
mendamente confusa e, por isso mesmo, estreita. Na lingua-
gem corrente, a palavra reenvia, não à pura forma -valor do ser
humano, que apenas aparece no termo de uma análise abstrac-
ta, mas, de modo bem concreto, ao próprio indivíduo capaz de
a assumir conscientemente, isto é, reserva-a para as pessoas-
-para-si. Ora, todos os progressos da humanidade civilizada
tenderam justamente a alargar de forma modulada as suas
prerrogativas às pessoas-em-si, mesmo para lá das realidad es que
participam da pessoa, que não têm os meios físicos ou psíquicos
de os fazerem valer, eles mesmos: outros fazem-nos valer em
seu lugar. Paradoxalmente, é este processo altamente cultural
de ascripção de um valor a todos os humanos que pode fazer
crer que a dignidade lhes seria inerente, apenas pelo facto natural
de serem tal. A ilusão está, pois, à vista. Se, por exemplo, tantos
fra nceses defendem que os produtos derivados d o sangue
87
humano não sejam tratados como mercadorias, é por verem
neles o traço de dignidade que ali deixa o dom generoso de
uma parte de si mesmo. Se, pelo contrário, o facto r vm, tão pre-
cioso para os hemofílicos, ou a albumina, vierem a ser produzi-
dos sinteticamente, como está a ponto de acontecer, essas mes ·
mas pessoas já não se dizem chocadas se os tomar como medi-
càmentos . Não é, como se vê, à nahueza bioquímica dos produ-
tos sanguíneos que se prende a intuição de uma dignidade,
mas à sua forma social: na transfusão com dador transita, não
somente sangue, mas, se assim se pode dizer, a pessoa.
Compreende-se bem de onde resulta a aporia que assedia
tantos debates éticos intermináveis sobre a natureza da pessoa.
Deixando de lado os elos centrais da personalização- a ordem
instituída da pessoa, as relações sociais que a sustentam, as
actividades psíquicas que a interiorizam, as práticas colectivas
qu e a transformam -, não resta, num encontro estéril, senão a
inverosimilhança de uma pessoa de puro facto, produzida pela
natureza, numa ponta da cadeia, a arbitrariedade de uma pes-
soa de puro direito, instaurado por convenção, na outra.
Somos, assim, intimados a escolher entre duas visões igualmen-
te redutoras: bioiogismo ou juridismo, que confundem desas-
trosamente a ascripção, o primeiro com uma descrição, o
segundo com uma prescr,ição. É este género de situação sem
saída que uma crítica da razão bioética tem como finalidade
ultrapassar.
Mas então por que razão estão tão pouco presentes estes
elos centrais em muitas atitudes e escritos bioéticos? Por desco-
nhecimento? É verdade que a informação contemporânea acen-
tua, em cada dia, um grave desequilíbrio, existente na nossa
cultura, entre o papel explicativo, sem cessar imputado ao bio-
genético - aliás, frequentemente mal compreendido -, e aquele
que é tão mesquinhamente comparado com outras dimensões
essenciais do humano. Os jovens franceses aprendem biologia,
durante anos, no liceu, e mesmo, valha o que valha, na televi-
são, mas onde ouvem eles falar da hominização sociopsíquica,
senão, por vezes, e por uma grande sorte, num<:t aula de filoso-
fia? Há aí um verdadeiro problema de tratamento público das
representações da pessoa. Quem acreditará, contudo, que. possa
88
dever-se a simpleE desconhecimento o poder actual do biologis-
mo, não somente nas ídeias, mas nas práticas- por exemplo,
aquilo a queGeorp;es David chama «a _obsessão modema pela
determinação da paternid~:d2 através da biologia>>: o "'verda· . ,, .
deiro» pai seria, forçosamente, o genitor.83
Deveremos então incriminar um «cientismo» ambiente?··,'•i.
Mas são as tomadas de posição do próprio Vaticano que o mes- ·
mo autor, não sem razão, acusa de serem um «esquema de pen-
samento demasiadamente biológico», onde a transmissão de
material genético é dominante na apreciação de uma paternida-
de que é, contudo, «social e sobretudo psicológica e afectiva>>.
Será este «rnaterialismo» ditado pelos cientistas materialistas?
Como compreender, aliás, se se defende uma tal lógica inter-
pretativa, que a tão difundida redução do humano operada
pelo biologismo vá a par desta outra redução, igualmente viva,
mas de sentido exactamente contrário: a do juridismo, onde a
pessoa é simetricamente reduzida a uma ficção necessária ins-
taurada pelo direito, à guarda de um jurista «só e sem apoio»?
A PERSONALIZAÇÃO Elvf CRISE
Estas tendências ideológicas tão pregnantes, apesar dos
impasses confessados onde nos encurralam, devem ter raízes
mais profundas. E não será necessári o procurá-las precisamente
nos processos sociais d e personalização que elas esquecem?
Com efeito, vivemos, a este nívet um período de grande crise
para a pessoa. De crise específica, induzida pelo sismo das ino-
vações biomédicas. Quando morte pessoal e morte corporal se
dissociam, quando uma avó traz em si o filho da sua filha,
quando se armazenam embriões humanos congelados, quando
se abre a caixa de Pandora dos nossos genomas, como seria
possível que as nossas representações de nós mesmos não ficas-
sem perturbadas, desestabilizadas as nossas relações com os
83 Georges David, «À propos de Ia stérilité masculine et de l'insémination
artificielle: une réflexion sur la filiation paternelle», em Aux débuts de la vie,
obra citada, pp. 150-152.
89
outros, postos em questão os traços fundamentais da condição
humana? Nunca a apreensão e a extensão da pessoa tinham
sido desordenadas a este ponto. Mutações tanto mais perturba-
doras quanto ,encontram, aliás, ressonância numa crise vasta e
mais profunda da sociedade, e mesmo da civilização: o tecido
social rasga-se, as identidades psíquicas ocultam-se, o casamen~
to, o trabalho, a escolaridade, a política são abandonados pelos
seus sentidos tradicionais, as perspectivas de um mundo
melhor desmoronam-se, o dinheiro impõe-se como senhor de
todos os valores, a inumanidade transborda do copo. Poderá a
pessoa permanecer sozinha, incólume nesta grande vacilação
das referências?
Se os elos da personalização que aqui se têm como centrais
são, muitas vezes, perdidos de vista, não acontecerá isso por-
que, em muitos casos, eles próprios perderam o norte? Antes
de serem os defensores de uma duvidosa convicção, biologis-
mo e juridismo aparecem como recursos de uma confusão reaL
Num mundo em turbulência, em que tudo aquilo que diz res-
peito à pessoa parece ameaçar partir à deriva, quer-se acreditar
nas seguranças absolutas que seriam, para ela, a «verdade bio-
lógica>> ou a «normatividade jurídica>>. Mas estes recursos não
lhe são de nenhum auxílio. Se a pessoa não fosse, na realidade,
senão um mosaico de moléculas ou um sistema de convenções[
'1,
então por que razão estaríamos interditados de a modificar à
nossa vontade? O reducionismo não reduz o perigo, redobra-o.
Num caso como noutro, imagina-se pôr em segurança o funda-
mento da pessoa fazendo dela uma constante biológka ou uma
norma supra-histórica, subtraídas, uma e outra, às agitações da
época, quando qualquer manutenção de valores através dos
tempos supõe, pelo contrário, que elas se mostrem popular-
mente reapropriáveis, num sentido renovado em cada geração.
Compromete-se esta manutenção ao excluir da pessoa aquilo
que é nela, hoje, mais importante, por ser o seu centro, em vez
de afrontar todo o campo dos problemas da civilização onde se
opera esta questão. Pois não há, afinal de contas, outra garantia
para uma personalização continuada senão a riqueza humana
do tecido social, como das práticas individuais, que fazem dela
uma realidade viva.
90
Não se fará, na realidade, uma ideia, também ela redutora,
da crise actual da pessoa? De forma geral, se há crise, é sempre
porque o antigo é trabalhado pelo novo ao qual não quer ou
não sabe dar lugar. Ora, sem antecipar sobre a análise do actU:al
«mal-estar na civilização>>, deitemos um olhar, setn complacênJ'
cias nem benevolências, a esta novidade: não se reconhecem;
também aí, os germes de uma personalização ética mais rica?
Com a derrocada dos valores inculcados e das obediências pas-
sivas, com o descrédito das autoridades e das hierarquias - na
família ou na escola, na empresa ou no Estado, na Igreja ou no
partido-, pode perder-se alguma coisa da verdade das tradições,
da riqueza das experiências colectivas, mas como não ver aqui-
lo que se ganha em autonomia pessoal, essa condição cardeal
da au têntica moralidade? A repugnância pelos envolvimentos
cegos pode resultar num individualismo sem limites, mas tam-
,bém em solidariedades sem engodo. A baixeza, o egoísmo, a
intolerância proliferam, mas, contraditoriamente, afirmam-se
em muitos a recusa das exclusões, a aptidão à generosidade, a
sede de dignidade. Todas as crises são momentos de bifurcações
possíveis. Nessas alturas, há que ousar pôr na balança todos os
valores vivos da pessoa, para fazer pender os pratos na sua
direcção, em vez de os pôr numa redoma, na esperança vã de
mantê-los intactos. Quando ser-se si próprio se torna uma aspi-
ração universal, a individualidade e a universalidade aparecem
menos como competidoras que como concorrentes. Quanto
mais reivindico a minha humanidade plena, mais sou levado a
sentir-me membro do género humano. A pessoa pode, assim ,
engrandecer-se, simultaneamente, dos dois lados.
Objectar-se-á talvez que esta visão das coisas, bem como a
definição proposta de pessoa, relevam de um universalismo do
«género humano>>demasiadamente pouco atento à radical dife-
rença das identidades que caracterizam os indivíduos e os
povos, ainda que não encubra a pretensão totalitária de subme-
ter todas as culturas a uma mesma representação daquilo que
faz o valor do homem. Mas não estará uma tal objecção, ela
própria, cativa de uma concepção démasiadamente pouco ela-
borada do universal? No budismo, ao qual estão profundamente
ligados muitos japoneses, pensa-se que a vida cessa com as
91 I ~'
batidas do coração e que, depois da morte, a alma permanece
um certo tempo no corpo. Crença que é incompatível com a
defin,ição de morte adaptada em muitos países, ~· entre nós lar-
gamente interioiizada, sem ·ter, contudo, recebido a coi1sagração
da lei: a morte é a paragem definitiva da actividade cerebral, o
que fundamenta a prática da recolha de órgãos do cadáver.
Ora, constata-se que, mesmo no Japão, a lógica solidária da
doação de órgãos tende a abalar a representação tradicional de
morte, que era um obstáculo a essa doação.84 Quer isto dizer que
os Japoneses deviam renunciar às suas crenças nacionais para se
incluírem na prática internacional da recolha de órgãos? Não é
assim que normalmente se estabelecem as universalizações.
Em Israel, num contexto religioso totalmente diferente, mas
onde se põe um problema análogo, as comunidades judaicas
ortodoxas encontram, como explica Henri Atlan, «um meio d e
legitimar, de um ponto d e vista tradicional, a recolha de u m
coração conservado artificialmente num sujeito em estado de
morte cerebrai»S5. Vem os aqui posta em prática uma dialéctica
muito esclarecedora do particular e do u niversal: uma cultura
pode integrar uma exigência comum que lhe era estranha, mas
à sua maneira, e sem deixar de ser ela própria. Como escreve
Françoise Héritier-Augé, «as culturas não são mundos absolu-
tos em si>>, e «cada sociedade não é intraduzível na linguagem
das outras». A universalização não é uniformização, <<que seria
um falso universalismo>>86. Pelo contrário, é a emergência de
equivalências, numa pluralidade mantida de formas, onde o
universal está, aliás, longe de provir sempre do mesmo lado:
não será a própria consideração budista por todos os seres
vivos, por seu lado, portadora de uma universalidade que nos
concerne? Assim, a universalização ética não é, de modo
nenhum, a uniformização das sabedorias concretas, mas antes a
partilha dos valores últimos. Tanto para os povos, como para os
84 Cf. Philippe Pons, «La greffe prend au Japon>>, Le Monde, 30 de Novembro
de 1988, e «Les transplantations d'organes divisent !e Japon», Le Monde, 28
de Agosto de 1990.
85 Henri Atlan, Touf, non, peut-être, Éd. du Seuil, 1991, pp. 317-320.
86 «Un en tretien avec Françoise Héritier-Augé», Le Monde, 6 de Abril de 1993, p. 2.
92
indivíduos, ser si próprio não exclui entender-se com os outros
sobre as obrigações da nossa humanidade comum. Podem ter-
-se muitas abordagens diferent~s dos Direitos do Homem , mas.
o iJ.n porfante.é respeitá~ios, .po; t;da á parte, da mesma ~aneira
escrupulosa. A universalidade da pessoa não exige mais do
que isso.
QUESTÕES EM ABERTO
Quando se p ercebe tudo aquilo que a nossa época, intensa-
mente crítica, põe em causa na ordem instituída e nas dimensões
vividas da pessoa, parece-me que se tem que concordar com
uma coisa: seja qual for a interpretação filosófica que se dê dela,
a pessoa nem por isso é uma entidade metafisicamente su spen-
sa que se d eva actualizar, mas antes uma realidade historica-
mente móvel de que esta m os encarregados. E por isto que
avançar no sentido d e uma definição daquilo que ela é presen-
temente não esgota os problemas gue ela nos p õe. Importa ain-
da elucidar as novas condições da sua ascripção a essas frontei-
ras do hom em onde se activa, cada vez m ais, a biom edicina,
para pôr em coerêncin com a sua figura reconhecida os traços
inéditos que nela desenha esta experiência dos limites. Limites
cronológicos - os do seu surgimento e do seu apagamento: nas-
cimento e m orte. Limites topológicos - os das escalas, cad a vez
mais finas, onde se intervém sobre ele: tecido, célula, molécula.
Limites ecológicos - os das relações onde a experimentação e a
terapêutica o põem ao nível dos restantes seres vivos. Questões
difíceis. Questões em aberto.
Uma vez que este capítulo não pretende, de modo nenhum,
ser um tratado, mesmo que não exaustivo, sobre a pessoa, mas
somente uma crítica indicativa das orientações do seu conceito,
apenas apontarei aqui, pela sua exemplaridade, três casos limi-
te, a bem dizer essenciais, que serão, ao mesmo tempo, três oca-
siões de pôr à prova a concepção proposta: os do embrião, do
gene e do animal. Mas, primeiramente, temos de examinar uma
questão mais vasta, dada hoje, frequentemente, como decisiva:
a das relações entre pessoa e corpo humano.
93
'I
•
Velha questão, que vem no prolongamento dos debates
metafísicos sobre a alma e o corpo e das cánsiderações teológicas
sobre o espírito e a carne, ainda que se desloque, hoje em dia, na
direcção da avaliação -ética das relações entre a pessoa e o orga-
nismo - e não é seguro, como se verá, que esta deslocação torne
ascoisas mais claras. Em todo o caso, se o problema se põe com
tanta acuidade, é porque os actuais desenvolvimentos da biolo-
gia modificam, a um ponto sem precedentes, a nossa imagem do
corpo, que parece ter deixado de ter, actualmente, qualquer
semelhança com a pessoa, no sentido corrente da palavra. Onde
encontrá-la, com efeito, na fábrica química, na rede neurológica,
no ordenador molecular em que a ciência contemporânea faz
consistir os fundamentos da nossa existência? Onde encontrar,
mesmo, o humano num genoma cujas bases temos em comum
com o rato e a mosca? Desfigurado pela nossa experiência quoti-
diana de nós próprios, o corpo torna-se, simultaneamente, cada
vez mais substituível: na era da enxertia de órgãos, da assistência
mecânica, da proteína de síntese, ele tende a não aparecer mais
do que como suporte indefinidamente substituível do ser pessoal.
A metodologia da clonagem dá consistência ao fantasma do cor-
po de reserva, o armazenamento de embriões congelados ao
fu turismo à Orwell de um «supermercado de crianças».87
À medida que o corpo parece, assim, separar-se ~da pessoa,
para já não ser mais que-uma coisa entre outras, a pessoa põe-se
à deriva em direcção a um direito subjectivo exacerbado. Um
eu omnipotente apresenta-se como proprietário incorporai do
seu organismo, como de um bem móvel, com o qual po~e fazer
aquilo que muito bem entender, incluindo vendê-lo. E o que
acontece com as mães abusivamente chamadas de emprésti-
mo88, com os desempregados que procuram vender os seus
87 Clonar uma célula ou um indivíduo é reproduzi-los de modo idêntico a partir
d o genoma dessa célula ou de uma célula desse indivíduo. . quando o corpo é maltratado e quando a existência da pessoa é submetida ao
88 Como a CCNE fez observar desde o ilúcio, mas com êxito diverso, junto dos
jornalistas, a mulher habitualmente chamada «mãe de substihüção» não faz
mais que assegurar a gestação: ela dá os seus ovócitos para a fecundação zn
vitro. Ela é, portanto, na verdade, uma mãe «dadora>> de uma criança que é
biologicamente sua, facto que é dissimulado pela expressão <<mãe de emprés-
,, timo>> . Pode adequadamente chamar-se <<de empréstimo>>à mulher que ape-
I
nas assegura a gestação de um embrião resultante do ovócito de outra mulher.
94
órgãos - «F.L., 23 anos, de boa saúde, vende o seu rim direito,
preço a discutir», foi um anúncio que apareceu na imprensa
brasileira89 -, ou desse americano «com células de ouro», çuja
aventura, extravagcnté mas premonitória, Bernard Edelman
relatou. 9ü Neste regresso em força, teórico e prático, de um dua; _
lismo radical tão fortemente instituído, não estará o corpig ·
humanQ em vias de se tornar já, nos Estados Unidos91, uma
mina de matérias-primas rentáveis, e mesmo um recurso últi-
mo para fazer face à miséria, através do qual a livre disposição
de si se torna no seü contrário? Encontramos mesmo, entre nós,
juristas dispostos a litigar neste sentido. «Que significa o ideal
89 Cf Jean Bernard, Cesl de l'!wmme qu'il s'ngit, Odile Jacob, 1988, p. 280.
90 Bernard Edelman, <<L'Homme aux cellules d'or>>, em L/Fiôpital à Paris, n." 116,
1990, pp. 38-45 . Em L'Hommc, In nnture et le droit, obra citada, Bcrnard
Edelman, fazendo a crítica, muito justificada, à concepção proprietária e utili-
tária da natureza e do corpo humano, decide imputá-la, nomeadamente, a
Marx, <<para quem a natureza é, em altíssimo grau, como afirma, um meio de
produção>>, e a Hegel, segundo quem <<a apropriação das coisas (a proprieda-
de privada) constitui o modelo da tomada de posse de si mesmo>> e <<o corpo
humano e as coisas têm a mesma na tureza>> Cpp. 109-11 0). Nos dois casos,
esta imputação é insustentável e mesmo injuriosa. No que diz respeito a
Ma rx, não somen te a tese que este autor defende não é a da redução d a nahl-
reza (a que ele chama frequentemente «o corpo inorgânico>> do homem , cf
nota 102) ao nível de puro meio de produção, como essa é mesmo uma das
acusações fundamentais q ue dirige ao modo de produção capitalista. Como
escreve na última frase - célebre - de 1m1 dos capítulos principais do Capital
(Livro I, obra citada, p. 567): «A produção capitalista não desenvolve a técni-
ca e a combinação do processo de, produção social senão arruinando, ao mes-
mo tempo, as fontes vivas de toda a riqueza: a terra e o trabalhador.>> Quanto
a Hegel, este indica, no § 48 dos Principes de In philosophie du dmit (Gallimard,
1940): <<Basta que o eu como livre esteja vivo no meu corpo para que seja
proibido degradar esta existência viva ao nível de besta de carga. Enquanto
eu estiver vivo, a minha alma (que é conceito, e mesmo liberdade) e o meu
corpo não estão separados; este é a existência da liberdade e é nela que a
experimento. Portanto, só um entendimento sem ideia, sofístico, pode fazer
essa distinção segundo a qual a coisa em si, a alma ou a ideia, não é atingida
poder de outro.>> (pp. 93-94). Em vez de procurar pôr em causa, contra a evi-
dência, uma tradição de pensamento que é justamente a da recusa da instru-
mentalização do corpo e da natureza, valeria mais analisar aquela que mais a
legitimou, e que a sustenta até hoje, isto é, a do utilitarismo, que nem sequer
é nomeada nas páginas em questão de Bernard Edelman.
91 Bernard Edelman, L'Homme, la nature et le droit, obra citada, p. 127 e, mais
amplamen te, todo o capítulo, pp. 107-141.
95
 de gratuitidade do sangue, por exemplo, escreve um deles,
quando a venda deste sangue permite a uma família pobre
sobreviver?»92 Em suma, com que direito impediremos esse
comércio do corpoT Questão difícil -· tão difícil como estas
outras, suas primas: com que direito procuramos impedir um
adolescente de se drogar, um desempregado de se enforcar?
Não será isso atentar contra a «liberdade da pessoa»?
Não é verdade que tudo mostra que a disponibilidade do
corpo humano vai, no essencial, ao revés desta livre disposição
pela qual se pensa justificá-la? Ela é, antes, alienação do indiví-
duo a gestões sociais da coisa corporaL Gestões que podem ser
anirr:adas, aliás, pelas motivações mais nobres de saúde públi-
ca. E o caso dos transplantes de órgãos, cuja lógica, instituída
pela Lei Ca.illavet, de 1976, com o seu princípio do «consenti-
mento presumido» para a recolha, deu lugar ao esquartejamento
de cadáveres em condições que revoltam até mesmo os defen-
sores resolutos da doação de órgãos.93 Neste domínio, como em
muitos outros, à falta das medidas públicas necessárias e, mais
profundamente ainda, de um envolvimento colectivo à medida
1
d os problemas, não nos arriscaremos a caminhar na direcção
dessa terrível «nacion alização d os corpos» qu e Fran çois
Dagognet não teme preconizar?94 Não estaremos já nessa sihla-
ção, por exemplo, com a esterilização forçada dos doentes men-
tais, largárnente praticada em democracias respeitadas?95
Será esta gestão actual dos corpos pelos poderes públicos
ainda pouca coisa, comparada com a que os submete, com cres-
·'i ' cente impudor, às lógicas do lucro privado - a que voltaremos
no próximo capítulo -: servidão assalariada de voluntários sau-
92 Thierry Cornavin, «Théorie des droits de l'homme et progres de la biolo-
gie», em Droits, 1985, n.º 2, p. 103.
93 Cf, a este propósito, o muito penoso <<caso de Amiens>>, Le Monde, 17-1 8 de
Maio de 1992.
94 François Dagognet, La Ma!trise du vivant, Hachette, 1988, p. 189.
95 Sobre o passado da questão, cf Claire Ambroselli, L'Éthique médica/e, PUF,
1988. A elaboração, em 1989, na RFA, de um projecto de lei que tornava
possível a esterilização dos deficientes mentais, sem o seu consentimento
(Le Monde, 4-de Fev~reiro de 1989) mostra bem que o perigo não é imaginário.
Cf Bernard Doray, Ethique et psychiatrie, M1RE, 1989, p. 9.
96
dáveis para a experimentação no homem, mercado em plena
expansao dos produtos e «desperdícios» humanos, incluindo a
or?anizaçã~ mafiosa da «adopção» ou mesmo do puro rapto de
cnanças - amda ontem violentamente negada, inas já hoje cada
vez mais conhecida -, postas a .~ngordar, qU:~~1o não mesmo
mortas, para lhes serem extraídos os órgãos, ,yé'Ftdidos a preço
de ouro aos afortunados deste mundo.96 Meid''s~culo depois do
processo de Nuremberga, e no auge do liberalismo avançado, o
horror continua a ser possíveL E é ele, ainda que inconsciente-
mente, que parece favorecer o feroz desligamento do corpo e da
pessoa em que se apoia a ética do «tudo é permitido».
O CORPO É A PESSOA?
Vemos também reafirmar, em muitos lados, como reacção
explícita a este dualismo, a indissociabilidade da pessoa e do
seu corpo. Outra velha concepção, que pode valer-se de
Aristóteles, mas que a fenomenologia reformulou, na nossa
época, em termos bem diferentes - como nas análises do corpo
desenvolvidas por Maurice Merleau-Ponty. Elas convid am-nos
a distinguir claramente o corpo-objecto (em alemão: Korper),
matéria para todas as dissecações, e o corpo-sujeito (em ale-
mão: Leib, a «carne»), «ser-aí» do sujeito vivo. Enquanto sujeito,
eu não tenho um corpo, «eu sou o meu corpo»97. Nestas análi-
ses, co~o na tese, mais tradicional, da indivisibilidade da pes-
soa, «Simultaneamente corporal e espiritual», segundo a fórmu-
la utilizada nos documentos católicos98, muitos pensam encon-
trar o antídoto absoluto para a ética do «tudo é permitido», a
96 Ver, sobre este ponto, depois dos seus numerosos artigos, aparecidos no
L'Humanité, o balanço provisório que faz Malté Pinéro do seu corajoso tra-
balho de investigação no terreno em Le Monde diplomatique, n.Q461, Agosto
de 1992, «Enlevements d'enfants et trafic d' organes>>.
97 Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Gallimard, 1945,
p. 175. Cf Edmund Husserl, Méditations cartésiennes, Vrin, 1947, p. 93 [tra-
dução portuguesa: Meditações Cartesianas: Introdu ção à Fenomenologia,
Introdução de António M. Magalhães, Porto, Rés, [1986?] .
98 Por exemplo, na encíclica Donum vitae, I, 3.
97
. T·
I
I: I'
. I
ponto de esta indivisão estar a tornar-se um lugar comum na
ética biomédica francesa. E contudo, se eu sou o meu corpo, não
serei também o seu dono, tão autorizado a abusar dele como
estava na concepção precedente? Esta consequência não está
excluída.
Eis por que razão,por exemplo, a doutrina católica fornece
';i
a tese de uma restrição capital que não está logicamente ligada
a ela: deste corpo que sou eu, eu não sou, no entanto, proprietá-
rio, mas apenas «usufrutuário»99. É esta representação da vida
como depósito recebido - recebido da natureza, de acordo com
o direito natural; portanto, de Deus, para as teologias - que
alguns juristas gostariam de revigorar, adaptando o conceito
romano de património, de bem que cada um herda com a obri-
gação de o preservar, para, por sua vez, o transmitir.l OO Pensar
o corpo como património do indivíduo, o genoma como patri-
mónio da humanidade, e tratá-los em consequência: tal seria a
via a seguir para proteger o ser humano das inaceitáveis inva-
sões do direito subjectivo. Assim, coisa à primeira vista espan-
tosa, opor ao dualismo uma visão unitária do corpo-pessoa não
é ainda suficiente, contrariamente à opinião admitida, para
conjurar o risco ético de uma instrumentalização de si - e será
necessário perceber em quê. Mas, se parece insuficiente do pon-
to de vista moral, uma tal visão, para além dos aspectos sólidos
de bom sensç: e dos seus méritos parciais na análise erudita,
parece-me também ser portadora de assimilações bem contestá-
veis, e mesmo perigosas.
Em primeiro lugar, a assimilação do corpo à «carne>>.
Efectivamente , do mesmo modo que é justo distinguir vida
orgânica de vida vivida do corpo, também não seria razoável
relacionar com este último todo o meu ser carnal. A ecografia, a
biopsia ou o diagnóstico genético revelam, em mim, realidades
e processos gue escapam inteiramente à minha consciência e
que podem, contudo, marcá-la em alto grau. Ter, como escreve
Merleau-Ponty, como «evidente que não é concebível qualquer
99 Cf. a entrevista com Monsenhor Eyt em Bulletin, revista citada, p. 27.
100 Cf., por exemplo, Marie-Angele Hermitte, L'Hommc, la nature et le droit,
obra citad a, pp. 258-262, e íbid., Catherine Labrusse-Riou, pp. 351-355.
98
relação de causalidade entre o sujeito e o seu corpo>>JOI não será
jogar excessivamente com a palavra causalidade? Deve-se tomar
partido: o corpo-sujeito é o vivido de um corpo-objecto que,
transbordando-o por todos os lados, constitui G·.em-si do pró-
prio corpo. Esta verdade indubitável é, aliás, etidu:r~ente impor-
tante, como ilustra o princípio de anonimato ma doação de
·101.
órgãos: se o dador não se apagasse, a doação criada, nos dois
sentidos, entre o receptor e ele, terríveis elos de dependência
pessoal. É necessário que o órgão dado seja «feito objecto», jus-
tamente para que o sujeito seja respeitado. Mas a questão que se .
põe é bastante mais vasta. Se o corpo humano apenas fosse car-
ne subjectiva, querer conhecê-la objectivamente, na sua intimi-
dade última, não equivaleria a um projecto invasor de violação
da pessoa? Dever-se-ia então tomar a investigação médica como
um empreendimento luciferiano e sonhar em opor-lh-e uma for-
ma moderna da interdição que atingia outrora a dissecação de
cadáveres? Parece, ao menos, permitido temer que haja algum
obscurantismo nesta assimilação unilateral do corpo à «carne>>.
Mas a tese tem outras implicações, não menos preocupan-
tes, quanto ao próprio estatuto da pessoa. Dizer que o corpo é a
pessoa é, com efeito, pagar a valorização do primeiro com a
naturalização da segunda, abatida sobre o ser humano, o que
desfaz todo o trabalho levado a cabo no sentido de diferenciar
estes dois conceitos. De novo confundidos, eles deixam-nos
com insolúveis dificuldades. Pretende-se continuar a sustentar,
por exemplo, que o ovo fecundado é já um ser pessoal, na
ausência de qualquer corpo? Entra-se então em contradição
directa com a corporeidade essencial que se diz reconhecer à
pessoa. Não se pretende ver, pelo contrário, na pessoa senão o
próprio acto do corpo? Recai-se na estreitez ruinosa do biolo-
gismo. Nos dois casos, desconhece-se o papel capital da hom i-
nização. Se a existência pessoal tem como suporte o organismo,
a sua base específica deve antes ser procurada neste «corpo
orgânico,J02 que é, para nós, o mundo social, com todos os seus
101 Phénoménologie de la perception, obra citada, p. 496.,
102K. Marx, Manuscrits de 1857-1858 (Grundisse) , Ed. socia les, 1980, T. I,
p. 425 e seguintes. Desloco aqui o sentido da expressão que, neste texto de
Marx, se aplica à natureza.
99
 componentes materiais e simbólicos. Quem relacio!ta a realida-
de concreta da pessoa apenas com o seu corpo, e nao com o seu
undo inscreve-se na ideologia característica de uma form~ de
~Jcied;de que despoja maciçâmente os indivíduos dos seus
meios e dos seus po_deres s?ciais, para faz~r dele_s o~tras tantas
potências impessoais dommadoras, face as qums e.a os toma,
enquanto assalariados, como puras forças de trabalho musc~ll~r
e cerebral - alienação histórica que ousa dar-se como condrçao
humana obrigatória.l03 Dizer que o corpo é a pessoa é também
passar ao lado, do ponto de vista teórico, da própria fonte da
plena humanidade do homem. . específico da sua dignidade? No primeiro caso, dizer que o cor-
E, do ponto de vista ético, é envolver-se em perigosos erros.
Ao estabelecer a estrita coincidência do corpo com a pessoa, e, a
fortíori, ao inscrevê-lo no património comum _da humanidade,
·não se o valoriza senão tornando-o tabu 104 - amda que ele este-
'~ doente ou em sofrimento. Como se a pessoa não tivesse mui-
J" d' .
tos motivos para se queixar do seu corpo, chamando a~~ rcr-
na a remediar nele, de alguma maneira, e mesmo a corngir, os
erros da natureza para que ela própria seja respeitada. Que
toda a intervenção sobre o corpo afecta directamente a pessoa,
gue ela apela, consequenternente: à vigilâ~ci~ é~ica, ~ fi~ de
que a intervenção não degenere e1~ ma~11pula~ao, Isso e e\:rden-
te. Neste sentido, humanizar a b1olog1a supoe personalizar o
corpo: esta é a tarefa de uma ascripção meditada dos valores
hu~1anos. Mas a equivalência pura e simples do corpo e da pes-
soa institui um princípio atributivo claramente s~rnário~ 9ue se
arrisca a fazer-nos passar de urna ética do «tudo e penmhdo» a
uma outra do «nada é aceitável», onde se vê diabolizado em
bloco o empreendimento derniúrgico de recriação do_ horn~~
que seria a biomedicina actual. Daí um non possu~1US srstem~b­
co, cujas consequências últimas ninguém pensana ;erdadeua-
rnente em defender, a não ser a testemunha de Jeova que prefe-
re deixar morrer o seu filho a chamar o médico.
103 lbid., pp. 424-425. Cf- também T. II, p. 34; Le Capital, Livro I, obra citada,
pp. 189 e 805.
104 A palavra é do Pastor André Dumas, ~etomada po,r Paul Ladnere,
<<Perso nne humaine potentielle et procreatlon>>, em Ethzque et bzologze,
Cahiers STS, Éd. do CNRS, n." 11, 1986, P- 102.
100
O corpo é a pessoa? Tal como é posto, o problema apenas
te m uma solução equívoca: é e não é, ao mesmo tempo.
-· Quando duas respostas contrárias são igualmente plausíveis e _·
igualmente contestáveis, há que perguntar se os ter mos da '
questão foram suficientemente criticadÓs. Manifesta~t:Íftte, tal
não é o caso. Neste enunciado, o corpo é tomado conib.~sujeito
ou como objecto, o verbo ser como indicação de uma constata-
ção ou de um decreto? E, sobretudo, a pessoa é compreendida
como um simples duplicado do ser humano ou como conceito
po é a pessoa significa, singelamente, sublinhar que ela não é
puro espírito: banalidade supérflua; no segundo, pretender que
o corpo é, em si mesmo, respeitável: asserção indefensável. Mas
estes sem sentidos têm um sentido. Eles traduzem o facto de
que, partindo de uma preocupação ética: evitar a desumaniza-
ção da biomedicina, recusando a despersonalização do corpo,
se acha conveniente sustentá-la numa tese ontológica: o corpo é
a própria pessoa - como se o ser pudesse garantir, por si mes-
mo, o dever ser. Mas, passando assim ao lado da sua finalida-
de, esta petição de princípio atinge outra totalmente indesejá-
vel. Querendo humanizar a biologia, biologiza o humano, tra-
vestindo em homologia simplista uma relação de uma ordem
bem mais complexa: aquilo que constitui a pessoa como valor
excede de longe o corpo, aquilo que compõe o corpo como fac-
to ultrapassa de longe o campo da pessoa. Se não fosse assim,
por que razão levantaria problemas tão delicados a tarefa de
fazer respeitar a pessoa no seu corpo?
Perante esta dificuldade, será fecunda a definição da pes-
soa como forma-valor? Penso que sim. Ela indica, à partida, de
que modo a questão inicial atravessa, na confusão, o problema
antropológico e a interrogação moral. Ao convidar, pelo contrá-
rio, a distinguir claramente ser humano como facto e pessoa
como valor, ela autoriza todas as ascripções, motivadas por
uma dignidade, ao corpo e às suas partes, mas sem pressupor
_,
qualquer fetichização do corporal, que não é fonte do seu pró-
prio valor e pode, de direito, ser modificado, dado, substituído,
estudado nas condições e limites muito precisos em que tratar o
corpo não é maltratar o homem. Percebe-se aqui aquilo que se
.101

ganha, na representação da pessoa, com a passagem das cate-
gorias de substância ou de relação, à de forma, que permite pen-
sar tanto uma objectividade não reificada como nma subjectivi-
dade não evanescente. Era a ela que recorria, justamente,
Aristóteles, ao conceber a alma como «a forma do corpo». Mas,
nele, a forma permanece essencialmente ideal, imediata, imó-
vel. Ao retrabalhar esta categoria à luz das conquistas filosófi-
cas posteriores105, pode incluir-se nela aquilo que torna a for-
ma-pessoa materialmente produtiva, socialmente mediata, his-
toricamente evolutiva. Ela orienta-nos então para as práticas
vivas portadoras de sentido onde se opera a interminável per-
sonalização ética do corpo humano.
NAS FRONTEIRAS DO HUMANO
Na da torna mais necessária uma concepção rigorosa de
pessoa do que a ética das fronteiras do humano onde se move
actualmente a biomedicina, e, mais que qualquer outra, a do
começo da vida. Pois se a ciência introduz por toda a parte o
inédito - por exemplo, a propósito da vida que acaba, com a
,, noção de morte cerebral ou a exploração dos estados vegetati-
vos prolongados -, e!Jllado algum ela suscita tão grandes per-
turbações como no caso do embrião. «Ü embrião de que agora
falamos, escreve Henri Atlan, é um ser totalmente novo, que
nunca existiu»106: trata-se da amálgama de células oferecida a
todas as investigações e intervenções in vitro, do embrião con-
gelado onde acabam por se confundir as nossas ideias sobre a
demarcação primordial entre a pessoa e a coisa. Ele é, ao mes-
mo tempo, o campo dos afrontamentos mais passionais entre
105 Analisei o conteúdo da categoria de forma em Aristóteles, Kant, Hegel e
Marx (que é, sem dúvida, do meu ponto de vista, o grande pensador
moderno da forma), num artigo com o título «Forme, fonnation, transfor-
mation>>, em Structuralisme et dialectique, Éd. sociales, 1984, pp. 193-236.
l06 Henri Atlan, <<Distinctions nécéssaires: l'innovation thérapeutique, l'expé-
rimentation sur l'adulte, l'expérimentation sur l'embryon», em
E:>.:périmentation biomédica/e ct droits de /'homme, obra citada, p. 210.
102
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'i1.1.
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cientistas como Francis Crick, que vai a ponto de sustentar que 111
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nenhum ser nascente «deveria ser considerado humano antes ' ll
!,1,
~ ~ ·l.
de ter passado um certo número de testes acerca da sua dota-
ção genética»: «se não passar nestes testes, rerde o seu cfir~üo à lj!jl
i.jj
vida»l0 7, e eclesiásticos como Monsenhor Glemp que, co~\'fbtal l il ,J
apoio de João Paulo li, não hesitava em assemelhar a Polóhia a " j '~ 1
um «campo de exterminação legal»108 pelo facto de a lei desse 'J . Ji
país não proibir a IVG.
1'1
Assim se reaviva uma questão milenar: a do estatuto de
humanidade que convém ao embrião. Questão doravante bem
definida, uma vez que diz respeito a factos, consideram os bió-
logos, pelas razões avançadas no início deste capítulo. Aos seus
olhos, só aquele que ignora tudo acerca do real- ou decide não
o ter, de modo nenhum, em conta- pode ver um ser humano,
no sentido consagrado do termo, no zigoto unicelula1~ na moru-
la dos dias seguintes, no blastocito em curso de eclosão, no dis-
co embrionário com um quinto de milímetro, que se diferencia
no decurso da segunda semana. De onde o nome de pré-embrião
que se dá a este conceito, nos seus diversos estádios, destinado,
no espírito dos seus padrinhos, a marcar claramente que, pelo
menos até ao décimo quarto dia, todas as perplexidades são
possíveis. 109 Mas mais do que uma pessoa se recusará igual-
mente a falar de ser humano a propósito de um embrião um
pouco mais evoluído onde, contudo, não há ainda um coração
a bater, um sexo a esboçar-se, um centro nervoso a funcionar.no
Portanto, quando se vem propor que se escreva numa lei que se
trata de um ser humano «desde a primeira etapa da concep-
ção», como poderão estes cientistas, e muitos outros com eles,
107
Propostas citadas em J. Rifkin e T. Howard, Les Apprentis sorciers, Ramsay,
1979, e retomadas por Laurence Gavariní em Le Magasin des enfants, obra
citada, p. 167.
108 Le Monde, 6 de Junho de 1991.
109 Sobre o pré-embrião, ver o capítulo de Jacques Testart, «Définitions de
l'embryon: les apologistes du quatorzieme jour», em Le Désir du gene,
. François Bourin, 1992, pp. 164-177.
l10 Aq m'I o que se tornara' o coraçao
- começa a bater ao ·f.1m d.a terceira
. semana
de gestação~ o sexo é indicado entre a sexta e a sétima semanas, o cérebro
torna-se funcional muito mais tarde.
103
 deixar de ver nessa proposta uma provocação? Visto deste
i lj.
modo, o debate não tem saída e degenera em polémica. Mas
i.'
então, responder-se-á, se o senhor acha realmente que um
embrião é um ser humano, porque não exige que se façam exé-
f ' quias, qualquer que seja a sua idade, a todos os fetos mortos,
!\
hoje em dia tratados simplesmente como desperdícios hospita-
lares?111 Este género de inconsequências faz pesar uma suspeita
quanto aos reais objectivos perseguidos por aqueles que defen-
dem o ser humano até ao extremo.
E, contudo, sem deixar o terreno dos factos, não haverá
também outra coisa a dizer acerca da humanidade do embrião?
Do zigoto, não se passa senão por degraus, e nem sempre, a um
ser humano: esta é uma verdade biológica inegável. Entretanto,
consideremos o processo ao contrário: como escreve )acques
Testart, «se nem todos os pré-embriões se tomam embriões, os
quais não se tornam todos crianças, a verdade é que cada
homem e cada mulher não foram, ao prinCípio, mais do que um
ovo fecundado»l12. Também isto não é negável: uma vez mistu-
rados os cromossomas dos dois pais, está fixada para r:tempre
uma identidade genética absolutamente singular. Momento
chave mais do que qualquer outro, ao qual remonta aquilo que
um gâmeta isolado nunca produzirá. E saibamos ver também,
para lá da génese de um corpo, «aquilo que há de incorporai na
realidade do homem>>113. Pois estes dois gâmetas não se encon-
tram por sua própria iniciativa: mesmo quando se trata da
fecundação in vitro, foram determinadas pessoas que fizeram
111 Cf a <<Proposta de lei tendendo a assegurar o respeito pela integridade da
pessoa>> depositada na Assembleia nacional pela Senhora Christine Boutin,
deputada da UDF, a 19 de Dezembro de 1989 (n.º 1156), cujo artigo primeiro
começa assim: <<Desde a primeira etapa da concepção, o ser humano é
uma pessoa.>> Frase subtilmente redigida que, ao chamar a atenção para a
qualidade de pessoa reconhecida ao embrião, a desvia do postulado
segundo o qual ele seria um ser humano. Cf. Didier David e Nicole
Mulliez, <<Les foetus d'outretombe», Le Monde, 3 de Dezembro de 1993.
Antes dos cento e oitenta dias de gestação, o feto morto não tem, no direi-
. to francês, personalidade jurídica. · potencial, em Vers un anti-destin, obra citada, p. 42.
112 Le Désir du gene, obra citada, p. 173.
11 3 A. Leroi-Gourhan, Le Geste et la paro/e, obra citada, T. l, p. 207.
!.'r
104
com que eles se encontrassem. De modo que o embrião se ins-
creve imediatamente- e pouco importam aqui as suas meta-
rnorfoses biológicas sucessivas --;-senão nuo projccto· pa:tet ial
que por vezes está ausente do encontro, emqll'ltlquer caso, num
romance familiar em que ele abré sempre um hbyo capítulo, e,
mais essencialmente, numa representação sÕ~al irrecusável
para todo o ser civilizado: a de um candidato frágil à humani-
dade, q~e estabelece limites tanto mais firmes ao poder de
outrem. E por isto que a maior parte das legislações sobre a IVG
não institui, de modo algum, um direito sobre a vida do embrião
ou do feto mas, o que é uma coisa totalmente diferente, despe-
naliza o aborto baseada em razões que podem ser uma indica-
ção médica importante ou um perigo maternal patente, isto é,
ponto capital, em nome de um respeito) 14
Essa é, pois, a dificuldade. Considerando apenas os factos,
o embrião parece ser, ao mesmo tempo, bem menos que um ser
humano e, contudo, bem mais do que ele próprio. Dificuldade
redobrada quando se trata da questão ética: deve-se, ou não,
torná-lo como urna pessoa? O conceito de pessoa humana
potencial, recebido em herança dos seus predecessores pela
CCNE, aguando da sua criação115, poderá parecer capaz de
ultrapassar esta dificuldade. Pois, com a categoria de potencial,
estamos perante essa modalidade ambivalente daquilo que ain-
da não é, já sendo: não é esse justamente o estatuto de humani-
dade do embrião? Contudo, este conceito está longe de ter sido
admitido por todos sem discussão. Nos seus primeiros traba-
lhos, a CCNE dizia do embrião que ele é uma pessoa
potencia1. 116 Um tal enunciado foi, corno facilmente se adivi-
114 Cf, sobre este ponto, a resposta d e Dominique Thouvenin à interpretação
da Lei Veil avançada por B. Edelman, em Le Magasin des enfants, obra cita-
da, p. 231. No mesmo sentido, cf C. Labrusse-Riou, L'Homme, la nature et
le droit, obra citada, p. 330.
115 CJ. também a indica ção dada pelo antigo ministro da Investigação e
Tecnologia, Hubert Curien, sobre o <<longo encontro>> com o cardeal
Lustiger, nomeadamente a propósito do conceito de pessoa humana
116 Cf, por exemplo, o relatório da CCNE de Abril de 1984, em Les Avis de
1983 à 1993, p. 11
105
1·'·i '
' < ~
)
' I ~
nhará, fortemente discutido. No grupo de reflexão sobre a pes-
soa, cuja animação me calhou em 1985, biólogos tão ligados à
'j
i 'I: ética como outra pe.ssoo qualquer contestaram-no radicalmente/
em nome da acepção científica do termo «potencial» - estado
específico de uma realidade não exprimida, mas claramente
existente. Ver no embrião uma pessoa potencial seria, em suma,
sustentar que está já presente nele, sob forma virtual, uma pes-
soa susceptível de se manifestar seguidamente de forma actual:
asserção inocentemente preformista - como se, por exemplo,
'l
i pudesse existir uma consciência em estado latente numa amál-
gama de células ainda desprovida da menor estrutura nervosa.
Fiz então valer a distinção - «subtil, mas justificada», no
entender de Henri Atlan 117 - entre pessoa potencial e potencialida-
de de pessoa. No terreno dos factos, aquilo que se deve admitir é,
simplesmente, a potencialidade inerente ao embrião de se tor-
nar um ser humano. E é em nome desta potencialidade existente
que está eticamente fundada a atribuição das prerrogativas de
uma pessoa, ainda não actual - e portanto já para -si -, mas
potencial - isto é, somente em-si, suspensa do reconhecimentq
por outro. Não sendo o embrião, de modo nenhum, capaz de
fazer valer, por si próprio, as suas prerrogativas, diremos, não
que ele é - verbo que é aqui, por essa razão, muito equívoco - ,
mas que ele deve ser tratado como uma pessoa potencial118, o que
implica decidir q'Ue limitaremos os nossos poderes e nos impo-
remos deveres a seu respeito. Era isto que eu exprimia, com o
acordo de todos, no relatório da Comissão sobre o respeito pela
pessoa: «Não nos propomos colocar a pessoa potencial ao nível
dos conceitos da ciência, ao lado da morula ou do blastocisto.
Ao biólogo que declara ver, neste conjunto de células, potencia-
lidades de futuro, mas nenhuma pessoa no presente, podemos
responder: na verdade, é justamente isso que significa a noção
de pessoa humana potencial, devemos pois chegar a entender-
-nos. Ela não obriga a acreditar que exista no embrião uma pessoa
misteriosamente presente, coisa a que, contudo, alguns de nós
117 Henri Atlan, Touf, 11011, peut-être, obra citada, p. 282.
118 Esta evolução é fina mente notada por Philippe Lucas, Dire /'éthique, Actas
Sud-INSERM 1990, pp. 108 e 123-124.
106
estão índefectivelmente ligados. Pede que se admita a evi-
dência de um ser humano em devir, e que se torne consciên-
cia de que o nosso modo de o tratar envolve a moralidade
das nossas relações com a pessoa humana no seu tó'po, com a
colectividade social no seu conjunto"e, por últirrló; ·corn o
próprio género humano. Não há nenhum dia ante'sroo qual
tudo se ria permitido, em rela ção a ela. A moral nunca
fecha_,,119
O EMBRIÃO, PESSOA HUMANA POTENCIAL?
Todos os mal-entendidos a propósito dessa famosa «pes-
soa humana potencial» resultam, pois, em suma, do facto de o
conceito puramente ascriptivo, que significa um valor, perma-
necer mais ou menos confundido com um conceito descritivo,
que indica um facto, por fa lta de uma distinção suficiente-
mente clara entre pessoa e ser humano. Ora, nesta indistin-
ção, nenhum discurso sobre o estatuto d o embriã o pode
enunciar asserções realmente pensáveis: se esta questão passa
por ser do próprio tipo daquelas sobre as quais não pode
haver entendimento, não será porque se insiste em pô-la em
termos tais que quem a põe não se entende a si mesmo? Uns,
pensand o que não se afirma suficientemente a dignidade do
embrião se não se vai a ponto de dizer que ele é uma pessoa,
são constrangidos a defender que ele é, por maioria de razão,
um ser humano, e a solicitar neste sentido factos manifesta-
mente recalcitrantes. Outros, partindo, pelo contrário, do fac-
to de que um embrião não pode ser chamado, sem abuso de
linguagem, um ser humano, não podem, ao mesmo tempo,
conceber que se fale, a este propósito, de pessoa, mesmo que
potencial. Duas atitudes de direcção oposta, que, contudo,
mais não fazem do que ilustrar uma mesma confusão nos
conceitos.
-
11 9 Recherchc biomédica/e et res pect de la perso11ne humaine, obra citada ,
pp. 55-56.
107
iI
i' l
Na medida em que este ponto capital permanece, ainda
hoje, incompreendido120, o conflito perdura no equívoco sobre
a interpr~tação dQ..adjectivo <~potencial», entendido erradament~
como reenviando a dados de facto, quando a verdade é que se
trata, expressamente, da pessoa. Para alguns, o termo deve ser
entendido como o dunamei" de Aristóteles: «em potência>> no
embrião, a pessoa não seria nele «actual» («em acto>>), mas não
deixaria de ser real. Assim, os católicos aceitaram a fórmula
«porque a palavra 'potencial'subentende que se trata, já, de um
ser humano, cujas virtualidades não estão desenvolvidas, mas
cuja 'carga de ser' está já totalmente dada»121. Ora, evidente-
mente, como bem sublinha Paul Ladriere, para a CCNE, esta
fórmula «permanece aquém daquilo que in potentia significa na
filosofia aristotélica e escolástica>>. Aliás, acrescenta este autor-
adição essencial - «não é de todo certo que a teoria do «ser em
potência» se aplique correctarnente ao caso do embrião>>, pois
ele não contém em si mesmo os factores do «meio ambiente>'
necessários à formação de um ser, não somente humano, mas
humanizado.122 Neste sentido, pretender que a «carga de ser»
estaria «já totalmente dada» no embrião não significará ignorar
em bloco o papel da epigénese biológica e da hominização social
na nossa formação?
Para outros, potencial quereria dizer justnmente o contrá-
rio de uma realida"cle já dada: seria uma pura eventualidade.
120 No seu livro Contrc la peur, Hachette, 1990, Dominique Lecourt fala da
<<assombrosa noção de 'pessoa potencial'>> e comenta: «As discussões que
se seguiram sobre o desenvolvimento do embrião em feto para fixar a
data na qual a dita pessoa podia começar a ser dita 'potencial' permane-
cerão, sem dúvida, em todas as memórias! » (p. 63). É espantoso constatar
até que ponto estas discussões imaginadas pelo autor estão afastadas do
debate real da CCNE (cf, por exemplo, o relatório ético anterior ao pare-
cer de 15 de Dezembro de 1986, Les Avis de 1983 à 1993, pp. 113-116). Ao
que parece, ele não percebeu o carácter puramente axiológico do conceito
de pessoa potencial, cujos problemas de ascripção não são, em nada, mais
«assombrosos» do que, por exemplo, os que envolveram os limites de
validade do conceito de «direito de autor>>.
121 Monsenhor Eyt, em Bu.lletin, revista citada, p. 30.
122 Paul Ladriere, «Personne humaine potentielle et procréation», em Éthique
et biologie, revista citada, p. 99.
108
O embrião não seria mais que uma pessoa «possível»: eis o
conceito que lhes «parece filosoficamente mais adequado»123.
Mas se _«em potência» di.'f .demasiado, «possível>> dir4 o sufj.,
ci;rte? A pal~vra reenvia para um futuro incerto aquilo que já .
ha de humamdade num genoma. Aliás, definir-se pelo pC0ssí-
vel vale para cada ser em cada estádio da vida: «Não somos
todos nós, escreve neste sentido Marie-Angele Hermitte:mai~ ,I
do que pessoas humanas potenciais»124. Na medida em que
esta discussão diz respeito, na realidade, através da confusão
de vocabulário, ao devir do ser humano, as duas teses em pre-
sença não têm, contudo, nada de incompatível. O ser humano
é, no embrião, uma simples «possibilidade formal» ou uma
«possibilidade real» ?125 Não se deveria convir, sem qualquer
ecletismo, que é os dois ao mesmo tempo - possibilidade real
se se considera o alcance identificador e determinante do
genoma, possibilidade formal se se consideram as eventualida-
des e os contributos da epigénese?
Mas a questão que nos interessa não é essa. É uma questão
de ordem ética: a partir de que momento e em que medida fará
sentido sentirmo-nos obrigados a respeitar o embrião como
uma pessoa potencial? Desde a concepção e sem reservas, res-
pondem os adeptos da possibilidade real, ao que objectam,
mais ou menos radicalmente, aqueles que defendem a possibili-
dade formal. Dilema que os defensores de urna «ontologia pro-
gresszva>> se propõem ultrapassar, a partir da intuição simples
que «o ser embrionário é um ser em desenvolvimento e que,
perante. uma célula viva, depois um feto de cinco meses, depois
urna cnança de cmco anos, as nossas obrigações morais não
123 C'f G D I . ' d P · des enfants, obra citada, p. 270.
. . e a1S1 e arseval em Le Magasm
Na ocorrência, é o termo retido por H. T. Engelhardt (cf. A. Fagot-
Largeault e G. Delaisi de Parseval, <<Qu'est-ce qu' un embryon?», artigo
citado, p. 111).
124 M . A 'I H . L M ·
ane~ nge_ e ermltte, e agasm dcs enfm:ts, o_bra citada, B: 250.
125
Esta d1stmçao no se10 da categona de poss1ve! e essenoal. b possível for-
malmenle o que não envolve contradição lógica (por exemplo, fazer bom
tempo em Paris no próximo dia 1 de Janeiro). É possível realmente aquilo
relativamente ao qual existe já um certo número de condições determi-
nantes (por exemplo, estar frio em Paris no próximo dia I de Janeiro).
109
podem ser as mesmas»126 . A afirmação é, num certo sentido,
incontestável: uma vez que as prerrogativas da pessoa se enrique-
cem à medida que ela se toma por-si, é_çlaro que as prescripções
do seu respeito são chamadas a alargar-se proporcionalrt1ente.
Querer resolver um problema ético com base em considerações
ontológicas não torna menos grave a questão. At~ que ~onto, uma
ontologia progressiva justifica uma ética degress1va? Drr-se-~ q~e
um ser embrionário apenas tem direito a um respeito embnona-
rio? Desde que exista uma potencialidade de ser humano, deve-se
ascrever-lhe uma dignidade que não é puramente proporcional ao
seu nível evolutivo, a não ser que se implique uma clara involução
das nossas conquistas civilizadas. Não será por isto que são raros
aqueles que admite!ll, por exemplo, que se produzam emb:iões
para investigação? .E que, nesse caso, o ser humano_que_ esta ~m
potência seria flagrantemente tratq,do como um me1o. E1s aqmlo
que uma ontologia progressiva dificilmente poderá e~plic~r.
Não convirá pensar a questão de outro modo, 1sto e, levan-
do até ao fim as consequências do carácter puramente ético do
conceito de pessoa? Nesta óptica, o adjectivo «potencial» aplica-
do à pessoa não pode, de modo nenhum, reenviar em si mesmo
à ontologia, progressiva ou não. Ele reenvia-nos aos valores
civilizados que queremos ligar a estes aspectos do ser humano
com os quais a biomedicina nos relaciona de forma inédita. E as
realidades biológicas não nos importam aqui senão na medida
em que definem as condições factuais de uma ascripção suscep-
tível de se revelar viável na diversidade das situações práticas.
Qu e queremos então dizer, quando afirmamos que o embrião
deve ser tratado como uma pessoa potencial? Duas coisas preci-
sas. Em primeiro lugar, que não podemos considerá-lo como
uma pessoa actual, ou seja, por-si: nem o embrião nem o feto
são capazes de fazer valer a sua dignidade. Esta tarefa incumbe
a terceiros: aos pais, ou, na sua falta, a um tutor. Essa é a pri-
meira diferença de ordem ética - e jurídica - entre uma pessoa
actual e uma pessoa potencial, não sendo esta última, em suma,
senão um caso particular, ao lado de outras pessoas não actuais:
126 A Fagot-Largeault e G. Delaisi de Parseval, «Qu 'est-ce qu'un embryon?>>,
artigo citado, p. 110. N um sentido parcialmente análogo, cf X. Thévenot,
La Bioéthique, obra citada, pp. 67-69.
110
!
J
a pe~s_oa incapaz, a pessoa defunta, ou mesm o a realidade que
p~rh~1pa da pessoa .. . A distinção entre o actual e o potencial
nao e, neste caso, equivalente à distinção entre o presente e 0
· · futuro, mas à (li::; tiHçào entr~ o efeçtivo e o hctk io. - "
~~n ~egu~do _lugar, falar de pessoa potencial a propósitg, do
embnao 1mphca tirar as consequências éticas do facto de ele 'n ão
ser, ainda, sen~o uma potencialidade de ser humano. AquiÍ~~ que
temos, essenCialmente, que respeitar nele é precisamente essa
potencialidade, a fim de que ele tenha todas as hipóteses de se
tornar um ser humano cumprido: o nosso respeito dirige-se ao
~eu presente na medida em que nele consideramos o seu futuro , e
e sobre este futuro que ele deve, antes de tudo, regular-se. E essa
é a segunda diferença entre uma pessoa actual - que devemos,
a:ltes de mais, respeitar como é - e uma pessoa potencial. Assim,
sao !·aros a_queles que recusam a interrupção da gravidez por
maltormaçao ou doença graves e incuráveis do ser concebido.
Opor-se a isso não revelaria uma obstinação ética míope sobre o
: _mbrião presente, mais do que um verdadeiro respeito prospec-
nvo pelo ser humano futuro? Neste duplo sentido, a noção de
pessoa potencial não é, pois, de modo nenhum, portadora de
ambiguidades, e mesmo dos sem-sentidos que lhe são imputa-
dos quando não se faz uma análise suficientemente rigorosa.m
127Essa é, do meu ponto de vista, a solução para os problemas que H enri Atlan
d1z;. encontrar 1~a 1~e1a de pessoa potenoal (cf Vers un anti-destin, obra citada,
p. ;:,7): «A noçao d.e p essoa p otencial parece-me muito obscura e por vezes
p engosa. Aquele ou aquela 9ue tem _dir~ito à dignidade de uma pessoa não
pode ser uma pot~nCialidade. Por defuuçao, desde que lhe reconhecemos esse
direito,_ ele ou ela e uma pessoa real. Além disso, aceitar esta noção de pessoa
po:enCial, que sena diferente de uma pessoa real, tem os seus perigos. Isso
querena diZer que existem dois tipos de pessoas, as verdadeiras e as menos
verdadeiras. O que impediria então de fazer entrar nesta categoria das sub-
pessoas - as potenciais, relativamente às reais - as crianças e os deficientes?
Em suma, a pessoa ou é real ou não é ... » Esta crítica não me parece conclusiva.
Com efeit?, uma vez clar~mente compreendido que, na expressão discutida,
<<pessoa>>e um conceito, nao de realidade,, mas de valor, a distinção entre pes-
soa <<real>> ou <<Irreal>>perde toda a pertm~nCia. A 1de1a de pessoa <<potencial>>
nada tem a ver com a de pessoa <<Irreal>>, a e pessoa <<menos verdadeira>> ou de
<<subpessoa>>. Ela tem a ver com esse duplo facto patente de que o embrião,
diferentemente de uma pessoa actual, não está, presentemente, em condições de
fazer valer por SI mesmo as suas prerrogativas e que o nosso respeito por ele
VISa essenCialmente o seu futuro de ser humano. Não somente não há aí nada
de .'<obscuro>>, ou de <<perigoso», como aquilo que seria perigoso e obscuro
sena antes, na rrunha op1mão, querer assimilá-lo a urna pessoa actual.
111
 Ela está, por maioria de razão, apesar do que_ se po~~a l~r aqui
. nos próprios antípodas de uma noçao «utültansta» -
ou al1, , l do a
sendo bem mais útil que a ficção, tão contestave' segun
-qual o.embrião seria; em si mesmo' um «ser h lmano desde a sua
f ao décimo quarto dia, respondia, na Grã-Bretanha, a te!>missão
í
origem» 128.
Os resultados deste breve exame abarcam claramente, pare-
ce-me a mim, as conclusões precedentes. Rigorosamente f_al~n­
I t
do o facto da pessoa não é senão o seu valor. Procurar defimr ?
car'npo de aplicação deste valor,_ con~o se ele e~tivesse traçado ~
partida a ponteado pela biologia, nao faz mal~ _do que org~m
- Aparentemente reforça-se a etlca ao funda-la
zar a confusa 0 · ' · f
sobre o que é; na verdade, isso consiste com, de~aswda re-
quência em invocar uma ontologia de circunstanCla, ~~r exem-
lo a do pré-embrião, para caucionar uma escolha etlca - ou
~ã~ ética - prévia. É um puro álibi para a moral. Entreta~to, se
se quer forte, a ascripção de uma dignidade deve ser p~rtmente
face ao real - o que é uma coisa completamente diferente.
Assim apesar da imprecisão do momento e dos aspectos co~­
te~táv~is da escolha- como de qualquer escolha -,, a concepçao
apresenta vários traços que, em geral, _levam a rete-la como ~
acontecimento mais convincente a partir do qual deve _começar
respeito pela pessoa. Pelo co~t~ário~ des~enh~r mte1ramente
os facto s votaria as fronleiras etJcas a arbürane~ade de uma
0
convenção: quem poderia aceitar que nos tornassemos um~
pessoa como nos tornamos eleitores, numa data que~ le~ de::l-
de fixar? Inapta para justificar a decisão moral, a e1ene1a nao
desempenha aí um papel de argumentação puramente subalterno.
De onde um papel confuso, e mesmo mistificado~, onde os
recortes plausíveis do real, sem preconcei:os de partida quanto
a fronteiras de valor, importam, contudo, a chegada._Mas, sob a
aparência assim adquirida de se tratar de uma questao de facto,
problema dos limites temporais da ~essoa - ta~to do lado da
morte como do do nascimento - tra1, pelos dms se~t~~os da
0
palavra, uma ordem bem diferente: a dos valores ClVlhzados
aos quais estamos ligados.
128 Cf- Marie-Angele Hermitte, em Le Magasin des enfants, obra citada,
pp. 250, 255 e 260.
112
Um último exemplo acabará por demonstrá-lo. A investiga-
ção em embriões congelados, que são excedentes no termo de
urna fecundação in vitro, será eticaX?ente aceitável, e até que
êsládio de desenvolvimento do embrião? Ela é admi~sível até
Warnock.129 É inadmissível desde o primeiro dia I ·\a:firmam
'
aqueles para quem o embrião é, à partida, um ser humano.
Para lá da oposição diametral das opiniões, aceita-se, 1pois, nos
dois casos, tratar em termos cronológicos um problema que é
essencialmente axiológico. Mais avisada me parece ser a deci-
são da CCNE que, no seu parecer sobre a questão, fazia residir
o critério de aceitabilidade eventual, não na fixação de uma
data, mas na justificação de um projecto: talvez não seja de
proibir tudo para lá de uma certa data, mas não se pode, certa-
mente, aceitar tudo para aquém dela.130 Sob a questão do quan-
do, há que pôr a do porquê. Toma-se então clara consciência de
que os limites da pessoa não podem resultar, simplesmente, de
uma alegada realidade, nem de uma ficção conveniente, mas
são, antes de tudo, fruto de um processo de personalização que
tem como responsabilidade traçá-los até tão longe que encon-
tre, em cada caso, sentido e motivo para preservar a dignidade
do humano.
OS GENES DO HOM:EM SERÃO HUMANOS?
E quando consideramos os limites da pessoa, já não no
tempo, mas no espaço, isto é, quando passamos do corpo intei-
ro às suas partes cada vez mais pequenas, será válido o mesmo
procedimento? No espírito, sem dúvida; mas, na letra, manifes-
tamente não, pois a natureza do problema altera-se. Todos
estão de acordo: já não há aqui ser humano, o corpo dividido já
não é o indivíduo. Até que escala é razoável reconhecer nele,
129 Fécondation et embryologie humaines, Relatório da comissão de inquérito pre-
sidida por Dame Mary Warnock, La Documentation française, Abril de
1985, p. 104.
130 Cf o parecer de 15 de Dezembro de 1986, Les Avis de 1983 à 1993, pp. 122-123.
113
pelo menos, algo de humano, e conceder-lhe uma dignidade?
No órgão ou no tecido, parece ser ainda clara a relação com o
indivíduo: biologicamente, a «forma humana» permanece, ~ aÍ, ·
identificável; socialmente, a pessoa está presente no dom deles
que pode ser feito. É por isto que é forte, ainda que.ameaçada, a
recusa de os ver tratados como coisas. Mas desçamos de escala.
Face aos «excedentes» do corpo humano - placentas, urinas, ·
resíduos de intervenções cirúrgicas ... -, que argumentação opor
à sua crescente conversão em artigos rentáveis de comércio e
indústria? Ainda mais baixo na escala, estamos ao nível da
célula, do gene, da proteína. À medida que se apaga qualquer
traço específico de humanidade, que resta neles de humanitu-
de? Eis-nos face ao grande paradoxo: nos seusconstituintes
últimos, o homem não é feito de homem, o próprio ser vivo não
é feito de vida. Como manter aqui a distinção cardinal entre a
pessoa e a coisa?
O caso dos genes merece toda a atenção, por causa da sua
importância central na evolução actual da biomedicina. Os
genes do homem serão humanos? Se se pensa, por pouco qu~
seja, naquilo que eles são: cem mil sequências de quatro bases
químicas repetidas milhares ou milhões de vezes, sem ordem
aparente em cada uma, e que, em conjunto, formam a molécula
de ADN presente, de modo mais ou menos idêntico/ no núcleo
de todas as nossàs células/ que há nisso que deva ser tido como
hu mano, senão no sentido puramente taxinómico em que as
mesmas bases se repetem de modo diferente no genoma de um
chimpanzé ou de um macaco? E ainda há que ver o seguinte: se
se pode dizer do embrião in vitro de hoje que ele nunca tinha
existido sob esta forma/ é também esse/ por maioria de razão, o
caso do gene. Pois o mundo dos genes que nos ocupa é essen-
cialmente o do gênio genético: genes danados, purificados/
ampliados/ fragmentados/ reproduzidos, em parte, por síntese
química/ desempenhando o papel de fábricas de proteínas no
seio de bactérias-hospedeiras/ de sondas ultraprecisas para exa-
mes genéticos, de medicamentos para terapia genética. Este
conjunto de realidades onde dado natural e criação técnica se
dissociam com dificuldade apresenta-se-nos, assim/ como um
novo mundo de coisas oferecidas sem reserva à investigação
114
apaixonada dos investigadores e ao mercado dinâmico das bio-
tecnologias, vindo a tomada de patentes industriais sobre as
parcelas d.este Eldorado/ em boa consciência, proteger os direi-
tos do inventor e os investimentos consentidos. "' ·
' lf.processo
Este o ponto de vista que sustert·tlà.va a defesatHi
intentado por John Moore, «o homem das células á~ouro», ao
Centro médico californiano, que realizava enormes lucros gra-
ças a uma cultura de células com propriedades úíricas prove- 1
nientes/ com a su a autorização, de si mesmo. Uma das suas
teses era/ precisamente, que, ao nível dos genes, o indivíduo,
enquanto tat já não existe, e que não há, portanto, títulos pes-
soais a fa zer valer sobre eles. Mas/ em 1988 o Tribunal de apelo
1
da Califórnia não foi da mesma opinião. Ele considerou/ efecti-
vamente que, segundo os termos de um manual americano de
genética/ «todos os traços humanos», físico s e p síqu icos/
«incluindo a inteligência e os aspectos da personalidade (por
exemplo, o carácter) são determinados/ no fim de contas pela 1
informação codificada no ADN». De mod o que «o genótipo
pessoal» encobriria «a essência única de um indivíduo» e rele-
varia, por este motivo, da privacy isto é, do direito da persona-
1
lidade.131 Em suma, poder-se-ia dizer, seguindo este ponto de
vista, que sem dúvida os genes não são humanos em si mes-
1 1
mos/ mas são-no à partida, pelo seu poder de expressão num
1
ser humano singular. Não será o suficiente para que nos recuse-
mos a tratá -los como coisas?
Não/ não é suficiente/ uma vez que o Tribunal concluía
igualmente pelo direito de propriedade de J. Moore sobre os
seus genes - e, ao mesmo tempo, é demasiado. Pois esta forma
de humanizar o gene consiste em reduzir todo o humano à
genética: procedimento cientificamente insustentável e etica-
mente inquietante. Já se apresentaram as razões psicossociais
para se contestar, no seu fundo/ esta redução à hereditariedade
daquilo que preside à constituição de uma personalidade. Mas
a própria biologia volta a pôr em questão/ hoje, aquilo que
131 Citado por Bernard Edelman, «L'Homme aux cellules d'or», artigo citado,
p. 42.
115
 autorizou «a utilização literal e abusiva>>da metáfora do progra-
ma genético nos termos da qual, uma vez conhecido o ordena-
mento das quatro bases químicas, rep~tidas mais de três rp.il
r , .. milhões de vezes, que constitui o nosso genoma, teríamos deci-
frado o «Livro do Homem>>. Na realidade, bem mais do que o
H·; «desenvolvimento linear e inelutável de um programa» na for-
mação do ser, precisa, por exemplo, Henri Atlan, teríamos nas
mãos «um processo interactivo entre o genoma e o seu ambien-
te>>, onde o papel da epigénese é considerável, antes mesmo de
tomarem lugar os «factores socioculturais de personalização>>.132
Visão deformadora, por consequência, e visão perigosa .
. ''
Com efeito, ela cauciona, tanto uma sacralização do genoma -
responsável por cerca de três mil doenças genéticas monofacto-
riais recenseadas, às quais a ética de modo nenhum pode reco-
mendar que nos resignemos - , como compulsões eugenistas
inquietantes. Compulsões de que um exemplo, memorável pela
sua tolice, terá sido a criação, nos Estados Unidos, de um banco
de esperma de Prémios Nobel, mas que também subentende-
ram, e não somente na Alemanha nazi, à esterilização maciça.-
forçada, e mesmo dissimulada - de doentes mentais, áe
«débeis>> e de «associais», e que poderiam amanhã, numa demo-
cracia aparente, estender muito mais os seus estragos.
Quanto mais reflectimos nestas práticas, mais entrevemos
i ..
aquilo que constitui, sem dúvida, o procedimento justo para
ascrever, também a este nível, a exigência de um respeito pela
pessoa. Se os genes do homem podem ser associados ao huma-
no, não será essencialmente em nome daquilo que se faz do
homem em seu nome? É menos a sua expressão biológica que a
sua utilização social que deve entrar em linha de conta. Num
relatório de 1991, a CCNE avançava, assim, três preocupações
éticas fundamentais, para reclamar que se estabelecessem limi-
tes ao tratamento utilitário dos nossos genomas: a de prevenir
uma categorização biológica das pessoas, que terá como efeito
submetê-las, sem o seu consentimento, a exclusões ou discrimi-
nações, por exemplo, por parte dos empregadores ou das segu-
132 Henri Atlan, «Personne, espece, humanité», em Vers un anti-destin, obra
citada, p. 55.
116
radoras; a de proibir, pelo menos no estado actual dos conheci-
mentos, qualquer terapia genética germinai, isto é, qualquer
modifiçação do ADN dos gâmetas, afectanrto, portanto, a des-
cendência; a de impedir que, com o estabelecimento de pàten-
tes industriais, se desenvolva a apropriação, corn.* nalidades
lucrativas, de informações acerca dos genes do ~I-wmem e da
monopolização dos saberes com fins biotecnológicos,l33 Foi
precisamente com esta última preocupação que a.1 equipa fran-
cesa do Généthon pôs o conjunto dos seus trabalhos, em maté-
ria de cartografia do genoma humano, à disposição da comuni- •
dade científica internacional.134
Ainda aqui, foram considerações, não de facto, mas de
valor, que pareceram ser as melhores conselheiras, mesmo
quanto à pertinência factual de uma ascripção. E é por isto que
não me parece mais apropriado desenhar arbitrariamente os
limites topológicos do humano traçando uma linha simplista,
do que atribuir-lhe limites cronólogicos fixando uma data tipo
chave-mestra. Seria então uma boa solução para o problema
instituir os genes do homem em «património da humanidade»?
Sem falar das ressonâncias sexistas da palavra património -
não será o genoma, igualmente, um «matrimónio>>? -, não se
arriscaria ele a abrir a porta, tanto aos defensores de uma
inquietante «nacionalização>> dos genes, quanto aos da sua des-
razoável dessacralização? Temos fortes razões, ao que parece,
para afastar o termo.135
Em qualquer .caso, a necessária dialectização da dicotomia
tradicional entre pessoa e coisa não pode evitar os escolhos do
laxismo a não ser marcando bem o carácter «transitivo>> das par-
tes do corpo, grandes ou pequenas, no sentido que Winnicott
133 Cf o parecer de 2 de Dezembro de 1991, Les Avis de 1983 à 1993, p. 316.
134 Sobre os procedimentos efectuados neste sentido por Charles Auffray na
UNESCO, cf Le Monde, 29 de Outubro de 1992. Cf igualmente Daniel Cohen,
Les Genes de l'espoir, Robert Laffont, 1993, nomeadamente pp. 53 e 158.
135 Foi o que fez o colóquio <<Analyse du génome humain: libertés et responsa-
bilités» (Association Descartes, 2-4 de Dezembro de 1992). Ver, nomeada-
mente, o contributo de Henri Atlan sobre <<A transmissão do saber biológi-
co», que explica por que razão <<é particularmente mal vinda a expressão
'património genético da humanidade' ».
117
 deu ào adjectivo136: elas são objectos onde, mais do que nunca,
o sujeito se investe, e, por isso mesmo, se põe em jogo. E é a
seguir com finura os processos d~ste . pôr-se em jogo, a interro-
gar-se com exigência sobre os seus efeitos em cada caso que
I'
I
deve empenhar-se uma ética dos limites. Não é eloquente ver
porem-se de acordo, acerca de um tal procedimento, espíritos
muito diferentes? Reflectindo sobre o eugenismo, Anne Fagot-
-Largeault acaba por concluir: «O genoma não é sagrado. Aquilo
que é sagrado, são os valores ligados à ideia que temos de
humanidade».137 E Jacques Testart, alertando para os perigos
do diagnóstico pré-implantatório a partir de uma filosofia bas-
tante diferente, não hesita em escrever, seguindo uma inspira-
ção, no fundo, pouco distanciada: «Aquilo que me preocupa,
mais do que o sacrifício de alguns milhares de ovos, ao mesmo
tempo em que a fome mata milhões de crianças, é o projecto
ameaçador de triar as pessoas.» 138 Eis talvez, esboçada neste
ponto preciso, a ética sem fetichismo e, por isso mesmo, sem
desfalecimentos, de que precisamos.
O ANIMAL, UM PARCEIRO EI\1 DIGNIDADE?
Há ainda outra zona de fronteira de que a biomedicina faz,
hoje, um lugar obrigatório de reflexão ética: aquela em que o
homem se justapõe ao animal. Com efeito, os animais irracio-
nais nunca tinham sido até este ponto recrutados para o serviço
da nossa saúde. Eles eram já pré-requisitos como terreno de
ensaio dos nossos futuros medicamentos, vítimas sacrificiais
dos nossos progressos científicos; são agora, além disso, reser-
136 O objecto transicional - por exemplo, o urso de peluche - é, segundo
Winnicott aquele sobre o qual o bebé efectua a projecção de si mesmo (selfJ
familiarizando-se com o ambiente que o rodeia.
137 A. Fagot-Largeault, <<Respect du patrimoine génétique et respect de la
personne», em Esprit, Maio de 1991, p. 51. Cf. também, do mesmo autor,
<<Normativité biologique et normativité sociale», em Fondements nature/s
de /'étlúque, obra colectiva sob a direcçã.o de Jean-Pierre Changeux, Odile
Jacob, 1993.
138 Jacques Testart, Le Désir du gene, obra citada, p. 177.
118
vatórios de órgãos para enxertias aleatórias, modelos experi-
mentais para proezas genéticas, onde o velho mito das quime-
ras homem-animal parece adquirir alguma consistência. Não
progride a própria fecundação in vitro num vaivém inquietante
entre procriações humanas assistidas e'·ltécnicas de melhora-
mento do gado? Esta perturbadora diluição das fronre~as faz
surgir questões angustiantes nos dois sentidos. Não nos con-
fundirá a biomedicina, por vezes, com animais? E o sánho defi-
nitivo de aperfeiçoar biologicamente a humanidade não tende-
rá a metamorfoseá-la, por sua vez, em espécie doméstica? Mas,
reciprocamente, não estaremos a caminho de tratar os animais
como os homens se trataram uns aos outros neste século, isto é,
com uma bestialidade onde o nosso género parece não ter rival?
Em qualquer caso, é isto que dizem, com veemência, aque-
les que se proclamam defensores dos animais. Convencidos de
que travam o bom combate, eles permanecem surdos àquilo
que se lhes responde: que não se pode confundir humanitaris-
mo com antropomorfismo; que, em última análise, é menos
cruel para os animais fazer deles cobaias correctamente trata-
das do que carne de talho, coisa a que, contudo, muito poucos
deles renunciam; que as investigações em que o modelo animal
permanece indispensável aproveitam igualmente à arte veteri-
nária; que a Convenção europeia de protecção dos vertebrados
utilizados para fins experimentais é cada vez mais respeitada;
que, além disso, o número de animais de laboratório, ainda
considerável, não tem deixado de diminuir, em França, em pro-
veito dos métodos alternativos.139 Intratáveis, estes pequenos
grupos nem por isso deixam de exercer contra todo o recurso
científico aos animais uma vindicta não menos fanática que a
dos comandos anti-IVG. Mas, para lá das recusas passionais e_
simplistas, põe-se uma verdadeira e grande questão: podere-
mos nós ser civilizados violentando os nossos parceiros da bios-
fera? Seria verdadeiramente humano o respeito pelo homem que
assentasse sobre o desprezo pelas outras formas vivas?
139 Cf. Catherine Vincent, <<Le nombre d'animaux utilisés à des fins expéri-
mentales a diminué de 25% en six ans>>, Le Monde, 5 d e Setembro de 1992.
119
 Tal é a querela que sustenta uma filósofa como Élisabeth de
Fontenay.I40 A seus olhos, «a biurgia que se desencadeia nas
manipulações genéticas» ou na vivissecação .s_ão, _claramente,
«crimes» - os de um Estado social cujas raízes longínquas
,l Rousseau tinha claramente visto numa ferocidade canibal per-
'"i petuada na alimentação carnívora e no nosso «robespierrismo
animalesco». Ora, o animal é «o elo sensível e decisivo que liga
o homem à natureza». Nós, porém, rompemos esta ligação,
estabelecendo a superioridade ontológica radical do homem
racional sobre o animal irracional. De onde a oportunidade de
reler Plutarco, que contestava a fundo a recusa aristotélica de
atribuir aos animais uma alma intelectiva: «Os animais não são
bestas». Quando o negamos, revestimo-nos de uma pretensão
racionalista, d~ um «humanismo enfatuado», de um antropo-
centrismo «cheio de arrogância», que apenas encobrem uma
«razão do mais forte» . Para esta impostura, há só um remédio:
«desconstrução da eminente dignidade racional e portanto des-
tituição da preeminência humana». Toda a ética da «ontoteolo-
gia humanista >> é aqui visada, desde os estóicos a Kant e aos
1
seus epígonos «de face limitada>>. Será, contudo, seguro que os
animais têm uma razão? Na verdade, este ponto é duvidoso: o
próprio Plutarco hesita. Aliás, deve-se respeitá-los <<porque
., i:
eles são racionais>>ou, inversamente, «desprovidos de razão>>?
Em qualquer caso, têm uma sensibilidade. Por isso, «o homem
está submetido, relativamente a eles, a uma certa espécie de
dever» - e portanto «mais cedo ou mais tarde, este dever terá
que enunciar-se>>- ou, pelo menos, ainda que «sem esperança
de reciprocidade>>, à caridade dos modernos «Franciscos de
Assis pagãos».
Pode ser-se sensível às intenções deste palavriado sem ade-
rir a fundo aos seus procedimentos: a inculpação de uma ética
ligada ao «próprio>> do homem. Será o humanismo necessaria-
mente canibal? Élisabeth de Fontenay pega, por exemplo, em
140 Élisabeth de Fontenay, «La raison du plus fort>>, texto introdutório a
Plutarco, Trais traités pour les anímaux, POL, 1992. Algumas citações deste
parágrafo são tiradas, ainda, de «Une communauté de destin>>, posfácio
da mesma autora a L'Homme, la nature et le droít, obra citada, pp. 375-385.
120
I '
ú,:jt;.;:,i ,,,.j;,.,
Kant, como numa «figura conciliatória>>do racionalismo antro-
pocentrista. Mas como passar em silêncio que, em nome da
próprja tese segundo a qual o homem apenas tem deveres rela·
tivamente ao homem, o filósofo tenha escrito: «A •violência
resultante da crueldade no modo de tratar os animais ,.§ ~"O pro-
fundam~nte oposta ao dever do homem para consig01I?,róprio,
porque rsso embota no homem a simpatia relativamente aos
seus sofrimentos, enfraquece e anula, pouco a pouco, uma dis-
posição natural, muito ú-tff.à moralidade na relação com os
outros homens - ainda q~e seja, entre outras coisas, permitido
ao homem matar os animais de modo expedito (sem tortura),
ou impor-lhes um trabalho (uma vez que também os próprios
homens se submetem a isso), com a condição de que ele não
exceda as suas forças; pelo contrário, há que execrar as expe-
riências físicas no curso das quais se os martiriza, com o único
proveito da especulação, quando se poderia passar sem isso
para se atingir o fim visado.>>I41 Texto eloquente. Onde estão
aqui a arrogância da espécie, a criminal enfatuação às quais
todo o racionalismo antropocentrado é acusado de conduzir?
É, porém, verdade: a preocupação pelos animais é clara-
mente apoiada por Kant no respeito que o homem deve a si
mesmo. Trata-se de um dever, precisa o filósofo, «em considera-
ção pelos animais>>, mas não propriamente para com eles. Não
haverá aí uma estreiteza criticável? Há autores contemporâneos
que pensam que sim, não renunciando, contudo, a uma ética
«própria» do homem. Não se poderá admitir que, se é verdade
que os animais não têm direitos sobre nós, há contudo neles,
proporcionalmente às suas capacidades neuropsíquicas, com
que justificar que nós reconheçamos que temos deveres para
com eles? Não serão os mais -inteligentes daqueles que toma-
mos como companheiros, até certo ponto, parceiros numa rela-
ção de reciprocidade convivencial? Mais amplamente, de acor-
do com o velho adágio utilitarista de Bentham, não obrigam
todos aqueles que são capazes de sofrer, por isso mesmo, os
sujeitos morais a poupá-los, tanto quanto possível, à dor? Não
se poderá mesmo sustentar, numa óptica ecológica, que eles são
141 Kant, Métaphysíque des moeurs, obra citada, pp. 733-734.
121
 associados autónomos de um mundo vivo que partilhamos
com eles? Tudo isto não conduzirá a concluir que não temos
~. '
ape11as, ·num espírito kantiano, dever~s morais e obrigações
·''
jur{dicas relativas e eles, mas que é justo distingui-los fortemen-
te das coisas para lhes ascrever, em graus variados segundo o
seu ser, uma forma de dignidade?142
Mas isto ainda parece insuficiente a alguns. Para os defenso-
res da Declaração universal dos direitos do animal143, o passo a
dar seria reconhecer nos animais autênticos sujeitos de direito, de
modo que os seus representantes legais pudessam impôr-nos
obrigações estritas relativamente a eles. Sem entrar aqui numa
controvérsia especializada, que os próprios juristas parecem achar
muito complexa, gostaríamos de levantar algumas questões de
bom senso. Quando, por exemplo, o artigo primeiro desta
Declaração dispõe que «todos os animais têm direitos iguais à
existência, no quadro dos equihbrios ecológicbs», não será eviden-
te a flagrante contradição que existe entre o fim e o princípio da
frase? Como dizia Spinoza, por natureza, os peixes estão determi-
nados a devorarem-se uns aos outros, e «os maiores comem os
mais pequenos em virtude de um direito natural soberano»144. A
noção de equidade natural é um puro sem sentido. Mas será mais
sensato querer conferir o estatuto de pessoa jurídica a seres inca-
pazes de assumirem a reciprocidade dos direitos e dos deveres?
Quanto a identificar, -em dignidade, os animais e os huma-
nos, temamos a passagem do a favor ao contra que salienta
Henri Atlan: «Se é igualmente grave fazer experiências sobre
um rato e matá-lo e matar um homem, isto quer dizer igual-
mente que não é mais grave matar um homem q~e matar um
animal»145: quem estará pronto a defendê-lo? Elisabeth de
142 Cf, neste sentido, Jürgen Habermas, De l'éthique de la discussion, Éd. du Cerf,
1992, pp. 193-199. Cf. também, sobre toda esta questão, Jean-Yves Goffi,
«Les animaux ont-ils des droits?», em Vers un anti-destin, obra citada, pp.
195-198.
143 Publicado em Plutarco, Trais traités pour les animaux, obra citada, pp. 88-90.
144 Spinoza, Traité des autorités théologique et politique, em Oeuvres, obra citada,
p. 880.
145 Henri Atlan, «Personne, espece, humanité», em Vers un anti-destin, obra
citada, p. 56.
122
Fontenay é a própria a concordar: há que ter em conta «as
extremas dificuldades inerentes a um direito dos anímais»146.
Não será admitir, ao menos implicitamente que, se os mais &vo-
luídos entre eles, apelam a um estatuto ético e jurídico que. os
diferencie das coisas, a forma-valor de todo o ser,: emana proptiijl,i
mente apenas de nós? Não será afinal a tese «humanista»~,~e
Kant, alargável em reconhecimento de uma dignidade das for-
mas animais mais complexas, a melhor e, sem dúvida, a única
fundamentada?
Nesta terceira fronteira, a crítica ao conceito de pessoa
~r· parece-me assim encontrar uma confirmação do seu resultado
.:~ de conjunto. A ascripção de uma dignidade não procede se~ão
·'·• da humanidade desenvolvida no homem. Mas nem por ISSo
. , deixa de ter outros objectos plausíveis, para além do sujeito e
isto sem limites estabelecidos à partida. Desconhecendo a dife-
rença essencial entre realidade do ser humano e forma-valor da
pessoa, pensa-se poder atribuir a esta última uma origem, natu-
ral ou sobrenatural, totalmente definida, cujo momento da con-
cepção passa por ser o modelo por excelência. Mas que, a partir
do indivíduo, o problema se alargue à espécie, e a ilusão salta
aos olhos: em que instante da antropogénese teria surgido,
então, a primeira pessoa humana? No neolítico? No paleolítico?
Há um milhão de anos, com o Homo erectus? Há quatro milhões,
com o Homo habilis? O mesmo é perguntar que cabelo, na sua
queda, transforma subitamente em calvo um homem cabeludo.
Nenhum limite natural, nenhuma demarcação de convenção
virá aqui, mais do que em qualquer outro sítio, tirar-nos de
apuros. Não será necessário ver as coisas de um modo comple-
tamente diferente? A pessoa nasce, pouco a pouco, de um
movimento de civilização humana onde tomaram corpo, simul-
taneamente, no mundo social e na intimidade dos indivíduos,
conquistas tão essenciais como a r~ciprocidade das obrigações e
a consciência de uma dignidade. A medida que se desenvolve,
a lógica da pessoa torna-se mais englobante e mais recorrente:
ela persuade-nos a confraternizar com tudo aquilo que há motivo
146. Cf. Plutarco, Trais traités pour les animaux, obra citada, p. 76.
123
 e sentido para respeitar. É este sentido partilhado que traça as
fronteiras móveis da exigência ética.
Eis o pouco recusável princípio de .rnoralidade que se julga
desqualÍfiéat amalgamando-o córn a arrogância dominadora de
que ele é a antítese. E o que se propõe, em suma, corno seu
substituto? O carácter sagrado de toda a vida? Essa é talvez a
ideia subjacente que preside ao espírito de quem o põe em causa.
Mas, ao defender-se urna ideia destas, familiar a outras culturas
e sem dúvida parcialmente traduzível na nossa, medir-se-á
adequadamente a formidável deslocação das referências éticas
que se operaria naquilo que não é urna cultura entre outras,
mas o alcance universal dos Direitos do Homem e do valor da
pessoa? Este não é, evidentemente, um motivo para afastá-la
sem a examinar. Mas é um motivo para ter atenção às razões
para nela consentir. Pois, de urna moral da autonomia do sujei-
to, a sacralização de toda a vida faz-nos passar a urna mística
d o assentimento ao ser. Tudo muda então, não somente no
objecto do respeito, ao qual foi consagrado este capítulo, mas
naquilo que nos leva a respeitá-lo, na própria maneira de o
fazer. Ora, o que é exactamente o respeito? Depois do conceito
de pessoa, eis o conceito cujo exame crítico se impõe.
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I I
124
CAPÍTUL02
RESPEITO
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<<Se ainda não se sabe o que é o homem, sabe-se11 pelo
menos, o que é inwnano. >>
ERNFST BLOCHl
Ao avançar a ideia de que a pessoa é, no seu princípio, a
forma-valor de cada indivíduo num mundo civilizado, tom a-se
indubitavelmente mais clara a natureza daquilo que a ética bio-
médica procura fazer respeitar. Mas falta definir aquilo que este
respeito exige de nós. Tarefa bem distinta da precedente: o pro-
blema que agora se põe é de ordem prática e já não somente
teórica. Novas dificuldades nos esperam aqui, pois, na sua
ordem própria, a ideia de respeito não é menos antinómica que a
de pessoa. Uma análise, mesmo elementar, pode convencer-nos
de que assim é.
Respeitar, por exemplo, o bem de outro, quando se o utiliza,
um pedido, quando se o defere, urna partitura musical, quando
se a interpreta, é impedir que qualquer urna dessas coisas se
altere para a pôr mais ao nosso jeito. O respeito mantém pela
trela a minha inclinação, para devotá-la a urna regra que a
ultrapassa, emanando de urna outra liberdade, cujos decretos
devem ser aceites tal como são, a limite, sem mesmo entrar nas
suas razões. Haveria verdadeiro respeito sem urna obediência
passiva a uma vontade que não é a minha? Fazer votos de urna
1 Ernst Bloch, Experimentummundi, Payot, 1981, p. 166.
125
 tão escrupulosa heteronomia, pelo menos em tudo aquilo que
ela pode reclamar-me de honesto, eis, por um lado, o que signi-
fica respeitar. Mas, para não conduzir a uma submissão total,.a
atitude respeitosa exige, ao mesmo tempo, o contrário: não a
conformidade ap~níJ.s exterior àquilo que me é ordenado, mas o
assentimento íntimo, não a pontualidade de um seguidismo
limitado, mas a iniciativa de um a simpatia inteligente .
Respeitar autenticamente é, então, situar-se nos antípodas de
uma passividade: é assumir a liberdade do outro em seu lugar,
ou seja, inventar aquilo que ele faria no meu. Portanto, quando
começo a perder de vista a sua alteridade é então que começa o
respeito. O respeito está assim sempre mais ou menos dividido
entre as suas duas indicações indissociáveis, ainda que frequen-
temente impossíveis de pôr de acordo: as de uma fidelidade
invejosa e de uma criatividade arriscada.
A problemática milenar d(i~tra e do espírito gira inteira-
mente à volta desta oposição. Ao fetichismo do escrito, seja ele
o Tal mude, opõe-se a famosa palavra de São, Paulo: «A letra
mata, mas o Espírito vivifica.»2 E a de Santo Agostinho: «Ama
et fac quod vis.» 3 Quem tem fé encontra em si mesmo aquilo
que a fé ordena. Pois não há verdadeiro respeito que não seja o
"i 1.,' do sentido- tanto em matéria profana como sagrada. A literali-
dade servil é o caminho mais curto da tradução à traição. Ser
fiel ao espírito supõe a capacidade de se emancipar da letra,
por vezes, mesmo, de a corrigir. Corno dizem algumas erratas:
«O próprio leitor terá rectificado.» Tem, pois, de haver um cor-
redor, e mesmo um autor, no bom leitor, audácia na verdadeira
fidelidade. Sem o que o respeito não é mais que letra morta. E,
entretanto, este espírito que ponho acima da letra, e até lhe
oponho, de onde o recebi eu senão dessa mesma letra? Ele não
está somente nela, é ela. Mudar uma palavrinha pode fazer o
2 Segunda Epístola aos Coríntios, III, 6.
3 Santo Agostinho, Traité sur la premiere épitre de saint Jean, Sources chrétiennes,
Ed. du Cerf, 1961, pp. 328-329. Devo esta referência, pouco conhecida, à genti-
leza da Senhora France Quéré. O texto latino diz: <<Dilige, et quod vis fac.>>
. I
Saliente-se este comentário esclarecedor, três linhas abaixo: «Mantém no fun-
do do coração a raiz do amor: desta raiz nada pode sair senão o bem.>>
126
maior dos contra-sensos. Alterar um tempo pode destruiruma
música. Se compreender supõe ultrapassar a letra, compreen-
der melhor exige sempre regressar ao texto ·- mesmo que f>eja
para nele encontrar matéria para novas perplexidades. .,
Ora, a ética biomédica está por toda a' <parte sujeita a .~~sta
dialéctica das interpretações rivais do respeito, uma cons]l·va-
dora, outra empreendedora. Assim, respeitar a pessoa será levi-
tar mudar o que quer que seja na actual constituiç~o do
homem, incluindo as doenças genéticas, ou esforçar-se por
livrar delas as gerações futuras, correndo o risco de tremendos
enganos? Toda a questão do eugenismo gira à volta destas duas
fórmulas. Será levar à letra o pedido pessoal de outrem, tantas
vezes obscuro na sua aparente clareza, tão incerto e tão mutá-
vel, ou ter no espírito a ordem colectiva das pessoas, pelo
menos tal como a compreendemos, com o risco de recusarmos
então o pedido do paciente, o projecto do investigador que tem,
em consciência, outra opinião? Eis o género de dilema que se
encontra, a cada passo, quando se querem definir, por exemplo,
as indicações aceitáveis das procriações medicamente assisti-
das. Será, por outro lado, solidarizar o respeito com a firme
ligação a uma regra geral, cuja terrível estreiteza todos conhece-
mos, ou com o exame sem preconceitos do caso particular, que
nos ameaça de laxismo? Aqueles que são profissionalmente
confrontados com escolhas dramáticas, como a da eutanásia,
conhecem o peso desta permanente ambiguidade. Em diversas
circunstâncias, a mesma vontade de respeitar aconselha-nos coi-
sas contrárias: tal é o problema que nos propomos afrontar agora.
AS ANTINOMIAS DO RESPEITO
Co mecemos por ilustrar a sua acuidade evocando um
debate importante. Deve-se reanimar um recém-nascido atingi-
do por uma doença genética particularmente grave e, actual-
mente, incurável, recusar dar uma morte suave a um canceroso
em fase terminal, que a reclama? Nos anos 70, nos Estados
Unidos, esta dupla questão dominou as controvérsias bioéticas
nascentes. E toda a discussão posterior sobre a natureza da pes-
soa - ser de facto ou sujeito de direito? - foi sustentada pelo lití-
127
gio primordial sobre a consistência do respeito: respeitar a pes-
soa, mas em que sentido? Respeitá-la como é, ou como devia,
como quereria ser? Será necessário, para retomar u:q1 preceito
hipocrático, «salvar a natureza sem a modificar»4 ou modificá-la,
para a respeitar? Ao intitular o seu relatório de 1979, sobre a
reforma do direito canadiano, Sanctity of life or quality of life? -
sacralidade da vida ou qualidade de vidaS-, o juíz Edward
Keyserlíngk formulava abreviadamente uma questão ética cen-
tral que não cessou, desde então, de ocupar os espíritos.
Bem entendido, o respeito pela pessoa é, em primeira apro-
ximação, identificável ao respeito pela sua vida. Primum non
nocere - em primeiro lugar, não prejudicar: eis o adágio de base
de toda a medicina. Mas é preciso que nos entendamos sobre
aquilo a que aqui se chama a vida. Deveremos ligar-nos à exis-
tência biológica em si mesma, ou somente à existência persona-
lizada? Distinção essencial, que foi tornada evidente, nos esta-
dos vegetativos, pela concomitância possível de uma vida orgâ-
nica perpetuada e de uma morte cerebral irreversível. Ora, não
é verdade que toda a gente está de acordo em que, nesses casos,
desligar os circuitos de assistência é, não apenas possível, mas
desejável? Isso é reconhecer que o respeito pela vida pessoal
não coincide, de modo algum, com a conservação, a qualquer
preço, da vida orgânica. Essa era a tese que defendia o moralis-
ta americano Joseph. Fletcher, e outros, como H. T. Engelhardt.
Estabelecer como princípio o carácter sagrado da vida, inde-
pendentemente daquilo que a eleva ao nível da existência pes-
soal, seria enganar-se à partida, ao confundir o respeito ético
com o encarniçamento terapêutico. É, pois, necessário, concluía
Fletcher, «que abandonemos o princípio clássico da inviolabilida-
de da vida a favor de uma ética fundada na qualidade de vida6.»
Não será, aliás, isso que reclamam muitos pacientes no fim
das suas forças, com um resto de liberdade que deve igualmente
4 Hipócrates, La Consultation, Hermann, 1986, p. 202.
5 Edward Keyserlingk, Le Caractere sacré de la vie ou la qualité de la vie du
point de vue de /' éthique, de la médecine et du droit, Ministério dos
Aprovisionamentos e Serviços do Canadá, 1979.
6 Ibid. p. 27 cf também pág. 213, nota 141 ond e o autor se confessa «devedor a
H. T Engelhardt de uma grande parte da (sua) análise sobre a pessoa».
1.28
obrigar a nossa? <<Aquilo que estou a viver já não merece ser
vivido», diz o agonizante extenuado de sofrimento, o entreva-
do esmagado por uma intolerável 9-ependência, <<Por que m~
deixaram viver?», perguntam os adolescentes atormentados
por uma- doença genética grave e sem esp~rança de curpi f'J_ão
são eles mesmos que no-lo gritam? Nem tudo é pref'irivel à
morte . E não será o mesmo que matar abandonar ci~i não
empreender esforços que saem do razoável. Fazer sobreviver
aqueles a que se chama «vegetais» pode mesmo ser tido como
uma afronta à pessoa. De onde a reivindicação do direito de
morrer com dignidade, e mesmo o pedido de legalização da
eutanásia. De onde também a ideia de delimitar a reanimação
neonatal - ponto de vista defendido, por exemplo, por François
Dagognet. Se uma criança deve nascer vítima de uma aberração
cromossómica muito grave, em nome de que princípio devere-
mos «seguir a natureza» até ao ponto de <<tolerar a desnatura-
çã.o»? Não será necessário anular a vida quando ela «comete
erros de transmissão» 7? E não valerá mais anulá -la mais cedo,
graças ao diagnóstico pré-~t;<,t},._e mesmo pré-implaf\.ta~ório, do .
que mais tarde, com o preço de um aborto ou de uma não rea-
nimação que, de outro modo, seriam dramáticos?
Este modo de ver, frequentemente considerado com favor
no seu princípio, poderá, contudo, evitar o inaceitável? Em pri-
meiro lugar, o que é exactamente a «qualidade» da vida? Mesmo
mantendo a questão do terreno puramente biomédico, e não
retendo senão alguns critérios de bom senso, como a ausência
de dor física, a aptidão 'p ara a autonomia pessoal e para a rela-
ção com outrem, eles expõe-nos a inextricáveis dificuldades.
Quem pode estabelecer a lista das anomalias congénitas que
condenam a uma vida sem qualidade- e ousar-se-á incluir nes-
sa lista aquelas que um grande número dos nossos contempo-
râneos enfrenta?S Quem pode dizer qual o grau de sofrimento a
que é preferível pôr um ponto final? O doente? A experiência
clínica dos cuidados paliativos atesta de que modo o seu julga-
7 François Dagognet, La Maftrisc du vivant, obra citada, p. 162.
8 Cf a perturbadora história relatada por Axel Kahn em Vers un a.nti-destin,
obra citada,p. 492.
129
: lt
'
 menta, a este respeito, pode flutuar, segundo os dias, os contex-
tos e os motivos. Quem reclamava ontem a morte, renuncia
hoje a esse desejo 9: isso deveria ser suficiente, senão para inva-
lidar a noção de qualidade da vida, pelo menos para estàbele-
cer a sua irremediável subjectividade. Poderemos tentar, ainda
assim, introduzir aí a objectividade_de medidas quantitativas,
como a do «número de anos potenéiais de vida», em função do
qual alguns preconizam que se escolham os beneficiários privi-
legiados de uma enxertia de órgãos ou de um tratamento dis-
pendioso? Exemplo inquietante, na verdade. Seja qual for o seu
valor técnico, um tal conceito, no sistema americano QALYlO ou
nas suas variantes europeias, não será um daqueles graças aos
quais se subordina o respeito das pessoas ao dos invólucros
orçamentais, pondo uma aparência de ética na ausência de éti-
ca por excelência: o princípio de exclusão?
Tendo partido da qualidade de vida, eis-nos solicitados a
admitir o desigual valor das pessoas, com consequências proi-
bitivas. Não estariam elas em germe no ponto de partida? Que
o respeito pela pessoa deve implicar a solicitude pela qualidade
de vida é evidente. Mas a tese que sé nos propõe é, de algum
modor a inversa: ela faz desta qualidade uma condição suspen-
siva do respeito. Aí está, à primeira vista, o irrecusável, que não
pode passar indubitavelmente por admissível senão na medida
em que se tinham, irlicialmente, em vista os excessos manifes-
tos do encarniçamento terapêutico. Ora, ao estender-se a todo o
campo das práticas biomédicas, a ética da qualidade de vida
revela o seu vício escondido. Ela toma a direcção contrária do
esforço civilizado para ascrever uma dignidade àquilo que já
não é, ou ainda não é, um ser personalizado, que nos leva a
ultrapassar a barreira do cinismo. De modo simétrico, ela pre-
tende persuadir-nos de que é moral orientar a reprodução
humana para a produção de indivíduos conformes a normas de
9
Cf France Quéré, L'Éthique et la vie, obra citada, pp. 32-34 e 127-132.
10
Sobre o sistema QALY, cf Actes du 3e Congri!s international d'éthique médica-
le, obra citada, pp. 153 e 162_ Ver também o estudo de Marie-Louise
Lamau, «La notion de qualité de la vie dans !e champ de la santé»,
Fevereiro de 1993.
130
qualidade. Nos Estados Unidos, há bastante tempo que os ban-
cos de esperma privados propõem aos seus clientes a escolha -
aliás, em parte ilusória - de perfil da criança que vai nascer
com base num catálogo que descreve as características físicas e
psíquicas dos dél,_dores. A ideologia da qua1idade da vida l,].eta-
morfoseia, assim, o ser humano em produto. Será ex·!t]essivo
denunciar nela o princípio de uma coisificação rasteira dà1 pes-
soas, que vai, por exemplo, a ponto de programar a gravidez
com a única finalidade de utilizar os tecidos, os órgãos do feto
para tratar as doenças de uma criança anterior?
QUALIDADE OU SACRALIDADE DA VIDA?
E, contudo, é verdade: apesar destas graves objeccões, a éti-
ca da qualidade de vida tem muitos adeptos. Pode , mos con-
dená-la sem fazer tábua rasa da escolha livre dos ind íduos? O
argumento não pode ser tomado ligeiramente, com o risco de
se perder de vista o perigo de uma ordem moral. Há, contudo,
outro ponto que também não pode ser tomado ligeiramente: a
liberdade de outrem que obriga a nossa não é a espontaneidade
superficial de um livre arbítrio, mas a autonomia profunda de
uma consciência que se esforça por se instruir acerca dos pro-
blemas e por se apresentar como responsável pelos valores,
capaz, consequentemente, de renunciar a uma opinião imatura
em proveito de uma apreciação meditada. Será esta liberdade
que sustenta as reivindicações em causa? Não será antes o livre
curso deixado ao desejo, o qual pode subentender votos muito
legítimos - morrer dignamente, ter filhos bem formados - , mas
também compulsões frequentemente consideradas muito per-
turbadoras - como as da inseminação post mortem ou da gravi-
dez depois da menopausa -, e mesmo objectivos marcados de
desrazão científica ou social - purgar a humanidade dos seus
«maus» genes, enquanto a genética estabelece a inconsistência e
portanto a maleficência de um tal projecto, ou legalizar a euta-
násia, quando essa legalização corre o forte risco de abrir a por-
ta a trágicos abusos? Nascida do bom senso e, por isso mesmo,
envolvente, mas demasiadamente subjectiva e, por isso, aberta
131
 a muitas derivas, poderá a noção de qualidade da vida viver
em harmonia com uma ética do respeito?
Também_vemos regre~sar em força a atitude oposta:~ o sgr
humano merece um r~speito que não é quantificável nem limi- ·
tável. Desde o início até ao fim, a sua vida é inteiramente a de
uma pessoa. Ressaltemos a palavra: ela tem um carácter sagra-
do. Significará isto invalidar uma ética laica? A consequência
não é necessária, pelo menos se se quiser admitir que o sagrado
tem uma tradução profana: é o intransgressível. Quer se seja
crente, quer não, defender um mundo civilizado significa con-
siderar intransgressível a recusa de situar a morte entre as tera-
pêuticas possíveis, de fazer comércio com o corpo humano, de
alterar a identidade da espécie, de experimentar no homem
sem o seu consentimento expresso- e querer dar a tais interdi-
tos a sanção de lei. Nesta óptica, a apreciação da vida de
outrem como «não valendo a pena ser vivida» aparece como
portadora de atentados directos ao respeito humano. Ter-se-á
suficiente consciência de que esta noção foi formada no começo
do século, por psiquiatras e juristas alemães, para justificar a
eutanásia dos doentes mentais e dos deficientes, antes de inspi-
rar a política de exterminação racial do III Reich?ll A ela, opõe
a ética esta tese sem equívocos: «A qualidade da vida é da
ordem do indecidível.» 12
Contudo, convenhambs que é mais fácil concordar com o
carácter transgressível do respeito pela pessoa do que com uma
definição rigorosa desta vida que se pretende sagrada, mas cujo
conceito parece consagrar a confusão entre existência pessoal e
I,
existência biológica. Procedimento perturbador, com efeito: no
próprio momento em que a biologia acaba de estabelecer que
«a vida» é apenas o pseudónimo de níveis de organização da
matéria e que, por conseguinte, «o vitalismo perdeu toda a sua
função» 13, conjuram-nos a suspender a ética precisamente no
1l CfDaniele Lochak, «Diagnostic prénatal: le difficile passage de l' éthique
au droit>>, em Vers un anti-destin, obra citada, p. 461.
12 M.-A. Hermitte, «Génome et devoirs de l'humanité», em Vers un anti-
-destin, obra citada, p. 528.
13 François Jacob, La Logique du vivant, obra citada, p. 327.
132
respeito pela «vida enquanto vida». Como surpreender-nos,
então, ao ver florir as objecções? «Um regresso disfarçado do
vitalismo, C()m a sacraJiz,ação da vida na sua generalidade»,
nota Henri Atlan, é um «factor de despersonalização» que volt?
o respeito contra si mesmo. Assim, é «em nome-.do valor supre.~ .,,.,
mo da vida que é possível valorizar o eugenismo»14. «Uma t.'!.l. ·.
reabilitação metafísica do ser vivo, mostra, por seu lado, Anne (~
Fagot-Largeault, implica uma ocultação dos conflitos que são
uma manifestação essencial da própria vida na mesma medid~
em que o é a sua unidade.»15 Sacralizando em bloco todos estes
aspectos, como ressaltaríamos as múltiplas contradições que
eles estabelecem entre si? Se a qualidade da vida é uma noção
perigosa, porque demasiadamente fluida, que dizer então da
que lhe é preferida?
Mas há mais. Afirmar o carácter sagrado da vida não deixa
de ter pesadas consequências, que muitos consideram inadmis-
síveis. Pois, quer se queira, quer não, as palavras têm a sua car-
ga de significação: da sacralidade da vida ao «deixem-nos
viver» dos adversários da IVG, a distância não é muito grande.
Como não evocar aqui esta questão ultra-sensível? Altamente
instrutiva parece-me ser a maneira como a aborda, por exem-
plo; o jurista Bernard Edelman. Crítico esclarecido, mas decla-
rado, de toda a «dessacralização do hurnano»16, este jurista
regressava, numa entrevista desprovida de artifícios, a essa
profissão de fé que, na altura do debate da Assembleia Nacional,
em Novembro de 1992, sobre os projectos de «leis bioéticas»,
era retomada em termos próprios por urna parlamentar como
Christine Boutin, que acusava estes projectos de laxismo: «Sim,
confiava ele nesta entrevista, parece-me que uma das causas
essenciais de todas as derivas de que falarr'.Os resulta precisa-
mente do direito ao aborto.»I7
14 Henri Atlan, <<Personne, espece, humanité>>, em Vers un anti-destin, obra
citada, pp. 56-57.
15 J.-P. Amman, S. Diaz-Husson, A. Fagot-Largeault, <<Recherches sur le
vivant: soucis éthiques>>, em Vers un anti-destin, obra citada, p. 510.
16 Cf L'Homme, la nature et le droit, obra citada, p. 113. Cf também p. 104.
17 «Entretien avec Bernard Edelman», em Actes, n.º 67-68, Setembro de 1989,
p. 75. Todas as citações que se seguem são tiradas desta entrevista.
133
 ' i
Formulação corrente, é verdade, mas interpretação espan-
,, ~tosa da Lei Veil, de 1975, na boca de um juristà tS.o irlor:mado:
com efeito, a maioria dos seus colegas sustenta que esta lei não
instituiu, de modo nenhum, um <<direito ao aborto», mas ape-
nas despenalizou esse acto em casos, devidamente estabeleci-
dos, de <<perigo» para a mulher grávida, de ameaça directa para
a sua saúde, ou de incurável <<afecção de uma particular gravi-
dade» para o embrião.1B E é apenas esta despenalização que é
sentida, com força, por muitos, como um <<direito>>muito impor-
tante a preservar. Admitindo que, em muitos casos, se pode
invocar <<um estado de legítima defesa>> da mulher grávida, não
deixando de dar por adquirido que a legislação em vigor pen-
sou o aborto <<como um direito da mulher sobre o seu corpo>>,
que ele estigmatiza com violência, designando a noção de pes-
soa humana potencial como <<o horror absoluto>>, dando crédi-
to, pelo contrário, à de <<perigo do embrião>>, ele vem julgar
<<perfeitamente lógicas>> as reposições em causa da IVG que, um
pouco por toda o mundo, vêm à luz do dia, correspondendo ao
apelo do Vaticano. <<Não digo que esteja de acordo, mas são
lógicas.>> Pois, com a sua <<Vontade de ultrapassar aquilo que a
natureza fez de nós», o Ocidente irá, pouco a pouco, <<viver sobre
os nossos crimes>>. E conclui: <<Estamos na época dos bárbaros.>>
DOS PROBLEMAS DO RESPEITO
ÀS QUESTÕES DE PRINCÍPIO
Não podemos deixar de estar reconhecidos a quem se
explica com tal franqueza. Mas se o sentido último do <<carácter
sagrado da vida» fica agora muito mais claro, a linha a seguir
para uma ética do respeito parece ainda mais obscura.
Quaisquer que sejam as escolhas, elas não entrarão gravemente
em contradição consigo próprias? Ligar o respeito à qualidade
da vida arrisca-se a conduzir a que se ponha em causa o igual
18 Foram as expressões utilizadas no texto da lei de 17 de Janeiro de 1975.
Sobre a crítica à interpretação de B. Edelman, cf nota 114 do capítulo 1.1.
134
valor das pessoas, e mesmo, para algumas, a vender barata a
própria existência. Tomamo-s o~ partido contrário? Eis-nos
embarcados num encarniçamento ético que, em muitas circuns-
tâncias, nâo parece, paradoxalmente, fazer mais caso da digJ:ti-
dade dos seres humanos. Assim, condenar a IVÇ - e portanto, .
quer se queira, quer não, preferir o drama maciço do aborto
cla ndestino - nã o será recusar à pessoa actual que é umà
mulher em perigo o respeito concedido à potencialidade de ser
humano que representa um embrião? E que dizer do dilema
com que nos confronta o aborto por afecção grave do ser conce-
bido? Pois aí trata-se de escolher entre dois respeitos por uma
mesma pessoa: será necessário considerar, antes de tudo, o ser
humano, que o seu mal não o impedirá de ser, ou o mal que ele
experimentará, sem dúvida como um injustificável impedimen-
to de ser? Falar aqui de aporia do respeito não é, na verdade, ir
demasiadamente longe.
O problema será, então, insolúvel? Edward Keyserlingk
exprimiu, no seu relatório, uma opinião diferente. <<A moral
pode facilmente conciliar as duas perspectivas>>, escrevia ele
com um espantoso optimismo.19 Bastaria, para isso, que a
sacralidade da vida fosse dissociada do vitalismo, e a qualidade
da vida, do relativismo. No que diz respeito ao primeiro ponto,
essa posição supõe entender o carácter sagrado da vida, não
como um critério directamente operatório, mas somente como
uma posição de princípio, que não exclua a escolha do mal
menor, e portanto a avaliação diferenciada dos possíveis. No
que concerne o segundo, ela conduz a apreciar comparativa-
mente as qualidades de vida, não entre as pessoas - que têm
todas, sublinha ele, o mesmo valor-, mas entre os tipos de vida
oferecidos ao mesmo indivíduo, que não se equivalem. Assim,
face ao doente em fase terminal, uma <<pessoa razoável» recusa~
rá a eutanásia, isto é, o partido de matar, admitindo a supressão
de tratamentos tornados inúteis, isto é, deixando-o morrer.2D
Não é verdade que se considera igualmente, com frequência,
face ao problema do feto atingido pela malformação, que é
19 E. Keyserlingk, relatório citado, p. 5.·
20 Ibid., p. 117.
135

razoável recusar o aborto por lábio leporino e aceitá-lo por
hidrocefalia acentuada?21
Através destes compromissos «de bom senso>>, afastam-se
algumas das atitudes extremas que têm poucos adeptos, mas
deixando-nos com o embaraço face ao grande número de situa-
ções intermédias: para lá dos casos limite opostos, como o lábio
leporino ou a hidrocefalia, que decidir face aos embriões porta-
dores do trissomia 21, de miopatia ou de mucoviscidose?
Nenhum ecletismo ultrapassou jamais as oposições reais.
Apesar do optimismo de Keyserlingk, o conflito entre qualida-
de e sacralidade da vida não deixou de se alargar com as novas
terapias. E, dez anos mais tarde, formulando, no final de um
colóquio, recomendações relativas às PMA, Laurence Gaviríni e
Jacques Testart constatavam «a existência de dois modos diver-
gentes de pensar o desenvolvimento biomédico», tornando
<<ilusório imaginar uma terceira via»: <<Para uns, diziam eles, o
projecto de aliviar graves misérias é mais importante do que os
estados de alma, as inquietações não demonstradas e algumas
..,.,
derrapagens inevitáveis. Para outros, os valores culturais, espe-
cíficos ou comuns à humanidade, não podem ser sacrificados
no altar do desempenho sem dar lugar a alguma barbárie., 22
Mais do que nunca, há que escolher o que significa o respeito ..
Eis onde repousa toda a questão de princípio à qual é con-
sagrado este livro. Como compreender que o projecto, aparen-
temente claro, através do qual se resume o ponto de vista bio-
ético: dar pleno direito à dignidade da pessoa em matéria bio-
médica, pareça de execução tão penosa? Parece ser habitual
pensar que a razão dessa dificuldade deve ser procurada do
lado da pessoa: passando o respeito por uma decisão simples,
seria a pessoa a consistir numa realidade das mais complexas.
Ora, o exame crítico que se fez do problema não confirmou esta
hipótese: a ideia de pessoa não nos apareceu filosoficamente
misteriosa, mas comummente confusa. Uma vez reduzida esta
21 Derramamento de líquido cefaloraquidiano nos ventrículos cerebrais, sus-
ceptível de implicar malformações graves no feto.
22 Laurence Gavarini e Jacques Testart, «Procréation médicallement <ssistée>>,
em liers un anti-destin, obra citada, p. 517.
136
.,
•
confusão, percebemos que ela não é, falando rigorosamente,
-rnada mais de que .a c!.e um eminente valor a respeitar. Fomos,
pois, reenviados às dificuldades, me.nos aparentes talve~, m~s
muito profundas, da ideia de respeito. Se ele entra assim tao.
facilmente em conflito consigo próprio será, entã0, por nature- .
za, de sentido antinómico e de exigibilidade equívoca? E, aliás,.
de onde retira ele, em última análise, essa exigibilidade e esse
sentido?
Para tentar ver claro, temos de remontar às fontes da obri-
gação ética, e, por consequência, às grandes correntes de ,refle-
xão entre as auais foi partilhada, ao longo dos tempos, e e par-
tilhada aind~ hoje, a sua interpretação. A literatura bioétic.a
raramente tem tempo para ir, neste aspecto, ao fundo das cm-
sas. E uma citação de Aristóteles ou de Kant, uma referência a
Habermas ou a Jonas, não nos deixam, evidentemente, desobri-
crados da filosofia moral, quando todo o seu contributo consiste
~o rigor com que desenvolve as suas análise~ e encadeia as
suas razões. Não se pod e economizar aqui. E, portanto, de
novo, a um vasto desvio crítico que estamos obrigados, desvio
no qual teremos de examinar algumas questões fundamentais
daquilo a que se chama, ora moral, ora ética.
ÉTICA E MORAL
Eis que a simples enunciação do problema constitui já um
problema. Estamos a falar da mesma ~oisa, quando falamos _de
moral e de ética? Se sim, por que ha duas palavras? Se nao,
onde está a diferença? Interrogação que fornece uma passagem
quase obrigatória a todos os livros sob:e o ~osso assun~o. E a
resposta é, também, sempre a mesma: nao ha qualquer diferen-
ça de significação entre os dois termos assinalável ao nível das
etimologias. Mores significa, em latim, o mesmo que ethos e~
grego23: os costumes, os modos habituais de viver e de agir,
23 Na realidade, existem duas palavras gregas ethos, quase homónimas e de sen-
tidos compatíveis. Cf Jean Bemard, De la biologie à l'éthique, obra citada, P· 30.
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