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cinema

org gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran


apesar da imagem
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

M547 Menotti, Gabriel, Org.; Bastos, Marcus, Org.; Moran, Patrícia, Org.
Cinema apesar da imagem / Organização de Gabriel Menotti, Marcus Bastos
e Patrícia Moran. – São Paulo: Intermeios, 2016.
250 p.

Conferência Besides the screen (Telas à parte), Brasil, 2014.

ISBN 978-85-8499-042-9

1. Cinema. 2. Comunicação. 3. Semiótica. 4. Artes. 5. Criação Artística.


6. Processo de Criação. 7. Produção Cinematográfica. 8. Produção Audiovisual.
9. Distribuição Cinematográfica. 10. Performance. I. Título.
II. Imagens/Ontologias. III. Filme/Difusões. IV. Visão/Bricolagens.
V. Materialidade/Performances. VI. Menotti, Gabriel, Organizador.
VII. Bastos, Marcus, Organizador. VIII. Moran, Patrícia, Organizadora.
IX. Intermeios – Casa de Artes e Livros.

CDU 791 CDD 791.43

Cinema apesar da imagem


Gabriel Menotti | Marcus Bastos | Patrícia Moran
distribuição em (CC) BY-SA 2.5 BR

1ª Edição: Março de 2016



Editoração eletrônica, produção Intermeios Casa de Artes e Livros
Revisão José Irmo Gonring
Capa Marcus Bastos

CONSELHO EDITORIAL
Vincent M. Colapietro (Penn State University)
Daniel Ferrer (ITEM/CNRS)
Lucrécia D’Alessio Ferrara (PUCSP)
Jerusa Pires Ferreira (PUCSP)
Amálio Pinheiro (PUCSP)
Josette Monzani (UFSCar)
Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar)
Ilana Wainer (USP)
Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB)
Izabel Ramos de Abreu Kisil
Jacqueline Ramos (UFS)
Celso Cruz (UFS) – in memoriam
Alessandra Paola Caramori (UFBA)
Claudia Dornbusch (USP)
José Carlos Vilardaga (Unifesp)

Editora Intermeios
Rua Valdir Niemeyer, 75 – Sumarezinho
CEP 01257-080 – São Paulo – SP – Brasil
Fone: 2338-8851 – www.intermeioscultural.com.br
sumário

7 Introdução GABRIEL MENOTTI, MARCUS BASTOS, PATRÍCIA MORAN

parte 1 imagem/ontologias
 19 Verdade, realismo SEAN CUBITT
 33 Irreprodutível: cinema como evento ERIKA BALSOM
 55 Máquinas do tempo BRUNO VIANNA

parte 2 filme/difusões
 63 Intermediários escorregadios: expandindo conceitos sobre a distribuição
cinematográfica VIRGINIA CRISP
 79 Formalidades da circulação informal de cinema e os grupos de torrent
cinéfilos ANGELA MEILI
105 Entre a formalidade e a informalidade: pirataria e distribuição
cinematográfica no México STEFANIA HARITOU
117 Cine Fantasma: o cinema morreu? Viva o cinema! PAOLA BARRETO LEBLANC

parte 3 visão / bricolagens


135 Vídeo aberto em 360 graus LARISA BLAZIC
143 ETS – Experimentos Técno-Sinestésicos CARLOS AUGUSTO M. DA NÓBREGA,
MARIA LUIZA P. G. FRAGOSO, BARBARA PIRES E CASTRO E FILIPI DIAS OLIVEIRA
157 Máquinas que veem: visão computacional e agenciamentos do visível
ANDRÉ MINTZ

parte 4 materialidade/performances
179 Entre sensores e sentidos: sobre a materialidade da comunicação na
artemídia GRAZIELE LAUTENSCHLAEGER
201 Mulheres continentais MONICA TOLEDO
213 Cartografia performativa? STEPHEN CONNOLY
221 Jogos de distância e proximidade: micro-performances via Skype PATRÍCIA
AZEVEDO E CLARE CHARNLEY
231 Sobre os autores
introdução
gabriel menotti,
marcus bastos e patrícia moran

Este volume visa a contribuir na difusão de abordagens para um estudo dos


sistemas audiovisuais que aconteça à parte das telas. Trata-se de um projeto que
remete às primeiras conferências Besides the Screen, realizadas em Londres no início
da década de 2010, com o intuito de diversificar os screen studies britânicos por meio
de uma maior atenção a aspectos menos discutidos do campo cinematográfico.
Naquele contexto, buscava-se reunir pesquisas voltadas para práticas e processos
midiáticos nem sempre presentes na bibliografia especializada, tais como os modos
de distribuição e exibição de filmes; a regulamentação da produção e do acesso
à imagem; os protocolos de codificação da informação visual; e a engenharia de
dispositivos para o engajamento com o meio. Para além do empenho em descobrir
as nuances operacionais por trás desses fenômenos, havia a vontade de ressaltar a
sua centralidade na composição da imagem em movimento como a conhecemos.
A conferência foi trazida à América Latina em 2014, num empreendimento
apoiado pelo Arts & Humanities Research Council do Reino Unido. Aquele
primeiro evento, de onde tiramos o título para este volume, representou mais do
que um alargamento geopolítico da rede de investigadores comprometidos com o
projeto Besides the Screen. A conexão com laboratórios brasileiros, particularmente
da UFES, USP e PUC-SP, contaminou a iniciativa com uma verve acadêmica
local, interessada na intersecção do cinema com outras mídias e na atuação artística
como possibilidade epistemológica. A partir desse intercâmbio, foi consolidada uma
abordagem interdisciplinar e metodologicamente diversa.
Os textos aqui reunidos expressam o diálogo transcontinental por uma
compreensão do cinema apesar da imagem – que não implica, entretanto, a sua
recusa. Pelo contrário, trata-se de uma tentativa de superar a fascinação óbvia que
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a imagem nos causa, de forma a apreendê-la de maneiras ainda mais detalhadas.


Ao reparar nos diversos elementos que se dão por dentro, por trás e ao redor das
telas, somos levados a perceber que a imagem não é uma unidade autônoma de
valor e sentido, que pode ser acessada apenas por uma determinada operação
psicofisiológica. É muito mais do que isso.
Nesse sentido, nos aproximamos de uma espécie de arqueologia das mídias,
interessada nas materialidades da imagem, capaz de colocar os sistemas audiovisuais
sob a perspectiva de suas dimensões sociotécnicas e, portanto, evidenciar o papel
(ora coordenado, ora conflitante) das redes de notação e dos campos discursivos
que os constituem. Ainda assim, é preciso manter as telas em vista — por mais
confortável que seja situar o cinema em recortes mais abrangentes, nos quais se
possa transitar com liberdade. O diálogo com a tradição serve para dilatar o seu
corpus de referências, os seus modos de trabalho e territórios de atuação, num
contínuo esforço de heterogeneidade, que reflete o modo também heterogêneo
com que a linguagem audiovisual vai se constituindo.
A organização deste livro procura manter aberto o campo de interlocuções
possíveis. Cada sessão estabelece tensões entre elementos: a singularidade de
uns, frequentemente tidos como incontestáveis, é colocada em questão pela
multiplicidade dos outros. A imagem é rearticulada entre as supostas determinações
ontológicas pelas quais subsiste; o filme se dissolve nos fluxos de distribuição
que o carregam pelo mundo; o dispositivo óptico é ressignificado e subvertido
perante os processos responsáveis por sua fabricação; a materialidade do meio,
tida como horizonte derradeiro de sua especificidade, se mostra como resultado
das performances que a põem em prática. Dessa forma, tentamos estimular
um pensamento lateral, capaz de encontrar a interdisciplinaridade dentro da
disciplina, da mesma maneira que encontra outros cinemas dentro do cinema.
Já no primeiro capítulo, Verdade, realismo, Sean Cubitt nos convida a ponderar
sobre o esgotamento da imagem em movimento revisitando a questão do
realismo, tão cara à representação cinematográfica. O conceito é apropriado a
partir de um ensaio do dramaturgo Bertold Brecht da década de 1930, no qual
a subversão do poder aparece relacionada ao desvelamento dos seus mecanismos
de reprodução. Tal projeto político e estético, que teria sido levado a cabo tanto
pelo teatro quanto pelo filme em determinados momentos do século XX, parece
encontrar seus limites no mundo contemporâneo, em seu perpétuo estado de
crise econômica e ambiental. A perspectiva, forma simbólica sob a qual o cinema
organiza o mundo, já não é capaz de dar conta do real que nos cabe, em que os
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estatutos do concreto e do abstrato se invertem e se contaminam. Diante desse


contexto, Cubitt ressalta o poder persuasivo da visualização de dados estatística
e nos adverte contra qualquer ciência que se apresente como singular, universal
e absoluta, clamando pelo monopólio da Verdade. No sentido de desestabilizar
o controle exercido pela imagem, o autor sugere que talvez seja interessante
pensar um realismo dissociado desta Verdade, possivelmente ligado a formas de
animação. Quais cinemas surgem daí?
Da mesma forma que Cubitt sugere um olhar contemporâneo para questões
ligadas ao realismo da representação, tem sido recorrente um retorno ao problema
da reprodutibilidade. O lugar da diferença parece agora se instalar no retorno ao
corpo, num sentimento diante da presença que, se não é exatamente de assombro,
valoriza no campo dos acontecimentos únicos o tempero que remete aos domínios
da exclusividade. Irreprodutível: cinema como evento, de Erika Balsom, trata justamente
dessa mudança. O texto analisa tipos de cinema experimental que desafiam o
caráter seriado e múltiplo, o modelo de distribuição de cópias para circular por
salas de cinema padrão. No texto, esse universo refratário ao múltiplo surge na
volta ao matérico e às especificidades dos lugares (onde se poderia supor algo
da ordem do digital). Ao explicitar as operações da reprodutibilidade referencial,
noção por ela adotada para a reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin,
Balsom aborda o surgimento do que chama de “reprodutibilidade circulatória”.
Essa ordem de reprodutibilidade não acontece apenas quando as matrizes de
uma foto ou filme se multiplicam em cópias, mas também quando elas alcançam
outros circuitos. Ao fazê-lo, a autora analisa a maneira como o exclusivo e o único
passam a ser percebidos de outra forma. Seu texto mostra como o que se repete
vai, aos poucos, abrindo brechas para experiências fora disso que se constituiu, na
passagem do mecânico ao eletrônico e digital, como um novo padrão.
Encerrando a primeira parte deste livro, marcada por certo contraponto
entre o moderno e o contemporâneo, Máquinas do tempo, de Bruno Vianna,
retoma algumas premissas do cinema, recolocando de forma sintética problemas
ligados à representação do tempo. O texto interpreta aspectos da materialidade
das máquinas de imagem e som que sugerem uma analogia com as máquinas
de costura. Ao apontar para um pensamento que ocorre por meio de carreteis
e bobinas, Vianna reflete sobre os limites e campos de expansão de um tipo
de imagem que se define a partir dos quadros e sucessões típicos do modo de
representar que se desdobra da pintura à fotografia e ao cinema. Seu interesse é
encontrar um cinema que vá além desses determinantes.
10 cinema apesar da imagem

Na sequência, pretende-se lançar um olhar generoso sobre o que há por trás


daquilo que é superficialmente reconhecido como distribuição cinematográfica. No
capítulo Intermediários escorregadios: expandindo conceitos sobre a distribuição cinematográfica,
Virginia Crisp aponta para a necessidade de encararmos essa atividade em
toda a sua diversidade logística e social, de modo a podermos refletir sobre suas
transformações tecnológicas para além do binômio indústria versus pirataria. Ela
ressalta, por exemplo, o papel da distribuição como um gatekeeping capaz de organizar
públicos, fomentar mercados, promover e preservar certas culturas fílmicas.
Quais seriam os efeitos dos sistemas digitais sobre essas operações, na medida
em que borram as fronteiras que separam consumidores de distribuidores? Para
examinar a questão, Crisp reivindica análises mais escrupulosas das topografias de
distribuição, informadas por maior rigor taxonômico. No caso, pretende abordar o
que está contido pela expressão (e pela prática) do compartilhamento de arquivos,
no que tange à disseminação informal de filmes. Observando a “cena” online onde
essa atividade se realiza, a autora não apenas identifica os grupos e as estruturas
que a compõem, como também reconhece formas de distribuição “autônoma” e
“intermediária” que lhe são particulares.
Essa questão é aprofundada no texto Formalidades da circulação informal de cinema
e os grupos de torrent cinéfilos, de Angela Meili. O foco aqui também são as redes
digitais, nas quais a distribuição desautorizada de conteúdo audiovisual se tornou
expressiva a partir da década de 2000, graças à superação de certas limitações
técnicas dos dispositivos de mídia acessíveis ao público. Meili demonstra que
a ruptura de paradigma provocada por esses circuitos não apenas implica a
reorganização do consumo de filmes, como também indica uma crise mais ampla
do mercado cultural, passível de ser entendida sob a ótica do pós-colonialismo. Ao
mesmo tempo em que desestabiliza estruturas hegemônicas, a circulação informal
instaura as suas próprias redes de distribuição. Nessa conjuntura, os “piratas”
aparecem como agentes extremamente especializados, capazes de agir com
eficiência, destreza e, por vezes, sofisticação curatorial. Meili chama a atenção
para as comunidades que se configuram a partir dos sites indexadores de arquivos
BitTorrent, que servem para organizar o compartilhamento descentralizado de
dados. Muitos desses grupos pautam a sua atuação por critérios estéticos, políticos
e técnicos, no sentido de fomentar “novas cinefilias da era digital”. O fato de que
a participação dos usuários no sistema pode ser restrita, caso eles não se adequem
às normas da comunidade, sugere contradições interessantes no seio da cultura
dita “colaborativa”.
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Mas a ambiguidade com que os novos sistemas de difusão informal respondem


àqueles tradicionalmente estabelecidos não se limita ao território da internet.
Ela também opera off-line, tanto no cotidiano das cidades quanto no cenário
geopolítico global, como atestado por Stefania Haritou em Entre a formalidade e
a informalidade: pirataria e distribuição cinematográfica no México. Ecoando estudos
semelhantes a respeito dos contextos nigeriano, indiano e chinês, Haritou se
debruça sobre os procedimentos da pirataria em um mercado nacional específico,
no qual ela representa um papel econômico e cultural muito diferente do que lhe
é popularmente atribuído. No México, a exemplo de outros países emergentes, o
comércio informal não é a exceção, mas uma regra da vida urbana. Enquadrá-lo
sob um prisma unicamente jurídico, tal como o proposto pela Aliança Internacional
de Propriedade Intelectual, nos faz perder de vista o modo como ele nutre a
cultura cinematográfica do país. Reformas governamentais e legislativas de cunho
neoliberal, realizadas durante a década de 1990, deixaram as salas de cinema
mexicanas à mercê das companhias de distribuição de Hollywood. Nesse sentido,
a venda ilegal de DVDs em banquinhas de camelôs cria um dos raros espaços
para a circulação de produções independentes no seu próprio país de origem.
A partir da análise de casos distintos, tais como o do longa Heli, vencedor do
prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes de 2013, Haritou traz à tona essa
produtividade das práticas piratas e o tipo de conhecimento por elas elaborado.
Encerrando essa sessão, o capítulo Cine Fantasma: o cinema morreu? Viva o
cinema! demonstra como os sistemas de difusão audiovisual representam muito
mais do que simples bases para a circulação de produtos midiáticos. Por meio
deles, também se articulam atributos aparentemente intrínsecos à linguagem do
cinema e à sua lógica de ocupação do espaço. Ao refletir sobre sua prática junto
ao coletivo Cine Fantasma, que faz intervenções nas fachadas de antigos cinemas de
rua, a autora Paola Barreto Leblanc nos apresenta a projeção de imagens como
uma ferramenta anarqueológica, capaz de colocar em questão a neutralidade dessas
regras, denunciar a ideologia de progresso que guia a historiografia do cinema e
da cidade e, acima de tudo, apresentar alternativas. Nesse sentido, o engajamento
com a estrutura do meio aparece como um modo de criar novas formas de
insurgência – epistemológica e política.
Na esteira desse projeto, a terceira parte de Cinema Apesar da Imagem traz
estudos de caso sobre aspectos dos dispositivos de imagem que revelam suas
facetas mais políticas, ao enveredar por questões de propriedade intelectual e do
controle tecnológico sobre o regime do visível. Ao fazê-lo, revelam também um
12 cinema apesar da imagem

procedimento da crítica contemporânea, caracterizado por um embate indireto


em que, ao invés do desmonte explícito, dá-se um discurso paralelo ou uma leitura
das complexidades de certos contextos. Num mundo de menos oposições, os
olhares dicotômicos ou opositivos parecem aos poucos ser substituídos por outros
modos de operar.
Se, no campo da difusão, o avesso da padronização surge na forma de uma
duração expandida ou de certa aderência ao contexto, extrema a ponto de tornar
impossível a circulação de certos filmes pelo circuito mais convencional, no campo
do dispositivo, ele se dá por exemplo com as práticas do software livre. É esse o
engajamento primeiro de Vídeo aberto em 360 graus, texto de Larisa Blazic que
apresenta as possibilidades de se criarem ambientes imersivos com sistemas de
baixo custo. O capítulo traz um rápido panorama histórico de codecs e tecnologias
que se oferecem como alternativa aos modelos comerciais mais conhecidos
e, no seu formato tutorial, nos convida a exercita um novo modo de discussão
do conhecimento, em que as práticas “mão-na-massa”, o compartilhamento e
a generosidade intelectual transformam-se em atitude política diante de uma
indústria da tecnologia que surgiu em meio a utopias coletivas para se transformar
em algo mais parecido com um apêndice da indústria do entretenimento.
Na mesma linha, o grupo de pesquisa laboratorial Núcleo de Arte e Novos
Organismos (NANO) desenvolve dispositivos experimentais que questionam os
limites entre mídia e natureza. Coordenado pelos artistas e professores Guto
Nóbrega e Malu Fragoso, o grupo faz do espaço institucionalizado da UFRJ um
lugar de construção de recursos compartilhados. Ele estabelece colaborações com
artistas não vinculados à universidade para desenvolver trabalhos calcados na
conectividade entre organismos naturais e artificiais. O artigo ETS - Experimentos
Técno-Sinestésicos explicita a aposta do grupo na materialidade maquínica e
biológica, abolindo dualismos entre a vida da matéria construída e daquela
que é fornecida pronta pela natureza. Seus organismos híbridos problematizam
diferenças e propõem aproximações entre modus operandi dos dois sistemas.
Trabalhos como S.H.A.S.T - Sistema Habitacional para Abelhas Sem Teto – trazem no
título política e poesia, ao expor o problema social contemporâneo das grandes
cidades da falta de moradia. A partir da arte, da tecnologia computacional, da
eletrônica/robótica, da biologia e da sociologia, o complexo habitat das abelhas
é ponto de inflexão sobre nossa organização social. A projeção das colmeias em
uma caixa hexagonal, com paredes espelhadas, multiplica e distorce as abelhas,
seus ruídos e movimentos. Os dados captados por sensores são exibidos como
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imagens, cuja deformação traduz material e metaforicamente o constante diálogo


entre sistemas dotados de inteligências distintas, tornando explícitos os limites dos
nossos dispositivos de visão convencionais.
Outra reação aos rumos recentes da imagem aparece em Máquinas que veem:
visão computacional e agenciamentos do visível, de André Mintz. Ao tratar da visão
computacional, suas genealogias e políticas, Mintz aponta para os pontos de fuga
que se estabelecem não por contraste, mas por embate ou expansão. Na tensão entre
os esforços por encontrar um termo comum da visão, que possa ser calculado, e os
problemas por trás dessa premissa homogeneizante, Mintz faz a leitura crítica de um
universo recente da arte que se engaja na desconstrução dos elementos estatísticos,
classificatórios, padronizantes, que a cultura de banco de dados produzida como
resultado da digitalização avançada vem produzindo. A disputa pelos modos de ver
— seria possível dizer, de forma mais ampla, modos de instanciar — o mundo é um
dos entraves sensíveis do mundo contemporâneo. À medida que o espaço público
torna-se permeável ao alcance de redes corporativas, privadas, governamentais e
outras, os domínios do íntimo e do privado sofrem uma espécie de colonização que
torna tudo o que as pessoas fazem capturável à distância (seja à revelia, ou com
desavisada anuência). Sem adotar um tom alarmista ou estabelecer um confronto
rígido, o artigo de Mintz permite adentrar, de vários modos, o universo sofisticado
e rico em que se procura desenvolver tecnologias capazes de leituras semânticas
do mundo visível. Além disso, o texto oferece um ótimo panorama do estado da
arte no campo pesquisado, reunindo informações históricas e recortes teóricos que
raramente surgem, compilados de maneira sistemática como nesse capítulo.
Em sentido inverso ao estabelecido pelos dispositivos que mapeiam as relações
entre as pessoas, por meio dos rastros que elas deixam nas redes que frequentam, o
uso de sensores e processos em tempo real no corpo gera indivíduos ciborguizados
— seres que desafiam o entendimento de qualquer separação possível entre seus
corpos e o aparato informacional que os rodeia. A quarta parte do livro Cinema
Apesar da Imagem trata justamente disto que sempre esteve do outro lado dos
processos de projeção: o corpo e suas extremidades sensíveis.
Em Entre sensores e sentidos: sobre a materialidade da comunicação na artemídia,
Graziele Lautenschlaeger parte dos supostos embates entre teoria e prática, entre
sistemas biológicos e sistemas técnicos produzidos pela cultura, para propor o
atravessamento dessas fronteiras e problematizar a produção de sentido na arte.
A autora investiga as materialidades da comunicação a partir de Hans Ulrich
Gumbrecht, destacando nos projetos artísticos o imbricamento entre processos
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estritamente racionais e sensíveis. Sua pesquisa para a criação estética faz das
dimensões do “sentir” e do “fazer sentido” uma caixa de ressonância de problemas
relacionados às materialidades dos meios. Ela explicita, por meio de sensores,
a implicação do corpo na arte, ou seja, o acesso à proposta estética e às suas
questões, que estaria além das telas, além de esquemas estritamente racionais, que
se estruturam por contato, pelo dado sensível. Breves arqueologias da artemídia,
dos sensores e da cibernética desenham um pano de fundo para o desenvolvimento
do processo artístico, em suas implicações táteis e de conhecimento formal.
O retorno aos sentidos, ou às interfaces que unem corpo e máquina,
representa um conjunto de esforços para expandir as maneiras como as tecnologias
e as imagens mapeiam o mundo, suas culturas, suas sociedades, etc. Mulheres
continentais, de Monica Toledo, representa esse universo de um novo engajamento
com as corporeidades e subjetividades, em que a experiência, a presença ou a
memória transitam por territórios distintos do numérico. Talvez esse afastamento
do mundo de telas e interfaces que predominou desde a popularização da internet
e dos dispositivos móveis seja um aspecto a ser considerado, uma tendência
representativa de um mundo que algumas pessoas já vêm chamando de pós-digital.
A pesquisa de Toledo encontra-se na intersecção entre performance e videoarte,
com recorte etnográfico. A tensão entre corpo e tela, eu e outro, um trabalho
que em certo sentido movimenta os interstícios que separam de forma arbitrária
cultura e civilização, surge no texto em função de uma experiência de fazer em
trânsito. Sua proposta parece inverter o sentido de registro do corpo que se tornou
mais comum numa época em que todos fazem selfies, e o imaginário coletivo parece
se interessar mais pela representação de si que pela representação do outro. Ao
apontar a câmera para outras culturas, para o universo do feminino, para campos
de exclusão, apesar dos discursos de heterogeneidade que vêm batalhando sua
legitimidade de forma sistemática desde pelo menos os anos 1960, Toledo aponta
para um ponto sensível pouco corrente nos debates contemporâneos.
A prática de olhar para o outro também se aplica em Cartografia performativa?,
de Stephen Connoly. Ao deslocar para São Paulo inquietações decorrentes do
mapeamento da especulação imobiliária na cidade de Detroit, Connonly encontra
mais do que uma simetria entre procedimentos formais. São Paulo passou
por processos de transformação urbana igualmente motivados por interesses
especulativos, e o olhar do autor para a cidade, por meio de um dispositivo
filmagem instalado no interior de um veículo, parece ligar pontos improváveis
entre essas práticas, que se tornaram ilegais nos Estados Unidos, e a dança
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 15

frenética dos aluguéis na maior metrópole brasileira.


A primeira fala de Clare Charnley em Jogos de distância e proximidade: micro-
performances via Skype anuncia o dispositivo do trabalho e uma questão corrente na
filosofia: o debate sobre espaço, tempo e presença. O capítulo é uma transcrição
de performance apresentada por ela e Patrícia Azevedo durante a conferência
Besides the Screen 2014, na UFES. Charnley expressa a incongruência da situação,
que envolve estar fisicamente ao lado de Azevedo, sua parceira em trabalhos
de telepresença cujo desenvolvimento se dá entre Leeds, na Inglaterra, e Belo
Horizonte, no Brasil. A cartografia performativa proposta por Connoly assume
nesse projeto um caráter heterotópico, uma vez que a sua estratégia se assenta
em jogos de contiguidade visual e simultaneidade temporal, emulando uma co-
presença espacial – se não fisicamente, pelo menos por meio das telas, que são
dispostas sequencialmente na versão em vídeo da performance, gravada em
tempo real e sem pós-produção. Movimentos aparentemente simples exigem a
adequação dos corpos para atender às convenções cinematográficas constitutivas
da ilusão de continuidade de olhar e movimento, ou seja, há na performance uma
adequação à tela que exige uma disfunção em relação à gestualidade corrente, como
fica explícito no trabalho Orientate 2. Em prol da construção da continuidade visual,
a disjunção e reinvenção da gestualidade. O espaço euclidiano cede terreno ao
espaço virtual, a expressão além das telas abarca simultaneamente uma dimensão
topológica e virtual. Transborda problemas estritamente relacionados ao quadro
e campo, ou seja, à tela como espaço material e imaginário de composição visual.
Ao reunir este conjunto de textos, que procuram apresentar as discussões
mais recentes a respeito das formas de criação, difusão e circulação audiovisual,
esse volume pretende contribuir com um retrato provisório dos circuitos de
pensamento que vêm se consolidando a partir do intercâmbio entre Brasil e Reino
Unido. Mais do que fixar modelos ou sugerir formatos, nosso objetivo é estabelecer
pontos de reflexão que permitam a continuidade e o adensamento desses debates,
em busca de uma forma multicultural e mais abrangente de entender aquilo que
se passa nas articulações entre sons e imagens em movimento.
parte 1
imagem |
ontologias
verdade, realismo
sean cubitt
tradução gabriel menotti

Os historiadores localizam o começo da modernidade, a chamada “Idade


Moderna”, no século XIV. A forma cultural que conhecemos como modernismo
começa no século XX. Mas qualquer tentativa de isolar o movimento modernista
do século XIX tende a fracassar: ali estão os poetas Mallarmé e Whitman, os
pintores impressionistas e a própria ideia da fotografia, a música de Debussy
e Wagner. Ou, para tomar outro rumo, a extraordinária confluência entre
representação social e fluxo de consciência nas passagens finais do romance Daniel
Deronda, de George Eliot, bem como as interações da Europa com o Japão no
campo das artes gráficas e do design, que apontam para outras perturbações: de
gênero e sexualidade, colonialismo e império, raça e classe. Se a primeira fase da
modernidade se desenvolve em direção a Bolívar e às Revoluções no Haiti, na
França e nos Estados Unidos, sua segunda fase despenca no catastroficamente
fraturado projeto da razão, do progresso e da justiça, expresso, ainda que de
maneira bem distinta, nas narrativas de escravos e no Simbolismo. O ápice dessa
segunda fase engolfou as décadas centrais do século XX. O tumulto cultural dos
anos 1906-1912, do dodecafonismo e do cubismo/fauvismo, é “o canário na mina
de carvão” do conflito global que, entre 1914 e 1945, pôs fim aos impérios europeus
e estabeleceu a hegemonia norte-americana. Se Arrighi e sua equipe (1999)
estão certos a respeito do declínio do papel de liderança dos EUA, a emergente
hegemonia chinesa de 2014 repete a contradição histórica da hegemonia norte-
americana: em 1945, uma nação comprometida com a democracia se descobriu
policial e banqueiro; em 2014, uma nação comprometida com a igualdade se
descobre obrigada a liderar uma economia global fundada na miséria dos
miseráveis. A última transição foi realizada ao longo de trinta anos de guerras.
20 cinema apesar da imagem

Os conflitos fiduciários da Guerra Fria foram um presságio da transição para a


preeminência asiática. Há muito o que se temer.
Na época de Brecht, entre as duas guerras mundiais, no centro desses trinta
anos de conflito global – os “dias de más notícias” –, o proletariado e o seu
ambiente fabril eram os protagonistas em matéria de verdade e realidade, e o
adversário era um adversário de classe. Hoje, o adversário não é mais humano,
mas sim o ciborgue corporativo, as vastas concatenações de sistemas e máquinas
cujo acesso randômico é proporcionado por biochips humanos implantados em
conglomerados que se espalham pelo planeta. As classes não desapareceram,
mas se expressam de outras formas. Quarenta anos depois do crash da bolsa de
Wall Street em 1929, começaria a mobilização que viria a resultar na Crise do
Petróleo de 1973, uma crise cuja solução preliminar se daria na forma do neo-
liberalismo, e cuja verdadeira força se tornaria aparente apenas outros 35 anos
depois, em 2008. A recente Crise da Dívida foi produto dessas crises anteriores,
ambas impulsionadas pela superprodução, exigindo uma classe dedicada ao
superconsumo, uma classe a que foram negadas oportunidades de receita e que
portanto se tornou uma consumidora de crédito em massa. Em primeira instância,
o superconsumo produz o desperdício integral do qual depende o capitalismo
contemporâneo: o desperdício de alimentos; de produtos farmacêuticos destinados
a superar os efeitos do superconsumo de alimentos; das embalagens de alimentos
e remédios; o desperdício de energia usada para transportar materiais para
fábricas de montagem e commodities para consumidores distantes. Esse ciclo de
desperdícios possui três virtudes: ele compensa a queda de lucro ao reforçar um
consumo disciplinarizado do produto excedente; ele coloca os consumidores contra
os produtores, segregando os mais explorados dos mais oprimidos; e ele financia
produção e consumo empregando salários futuros, ainda não recebidos. Dessa
forma, ele garante antagonismo político e inanição cultural, enquanto transforma
o futuro num lugar não mais de esperança mas de ansiedade, assegurando a
expansão do lucro ao custo das matérias primas e das populações cujo trabalho e
reprodução o capitalismo requer para sobreviver. Essa tendência suicida é a maior
prova da natureza ciborgue do capital contemporâneo.
Os últimos anos da Guerra de Trinta Anos do século XX produziram, nas
formas nascentes do radar, da criptografia e da bomba atômica, as condições que
sustentam as finanças, a política e a cultura do século XXI: transmissão, código e
energia. Em 1938, já exilado da Alemanha nazista, o dramaturgo e poeta Bertold
Brecht escreveu um breve ensaio sobre The Popular and the Realistic.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 21

Realista significa: desnudar as redes causais da sociedade / demonstrando o ponto


de vista predominante como o ponto de vista dos dominadores / escrevendo a partir
da posição da classe que preparou as soluções mais abrangentes para os problemas
mais urgentes que afligem a sociedade humana / enfatizando as dinâmicas do
desenvolvimento / concreto de modo a encorajar a abstração (BRECHT 1964: 109).

Hoje nos encontramos abordando a mesma questão, mas em um terreno


profundamente distinto. Temos que considerar a possibilidade de que, em cada
uma das instâncias de Brecht, precisemos assumir o oposto.

•  A “rede de causas” é agora a rede como causa, uma rede que não se furta
de se revelar, sob os nomes privilegiados de Conectividade e Livre Mercado
– uma mão invisível pronta para ostentar sua própria realidade. Não existe
razão para “desnudar” o que já é obscenamente exibicionista, mesmo (e
especialmente) quando o temo “rede causal” foi apropriado como uma
construção quase que inteiramente ideológica. Hoje, quando falamos de
redes de causas, nos referimos ou ao supostamente livre mercado, essa rede
de transações cujo fracasso em distribuir riqueza, ou até mesmo salários
decentes, para a vasta maioria da população global, é incessantemente
negada pelo neoliberalismo dogmático, ou a um tipo de ecologia moral
segundo a qual os pobres – sejam consumidores, produtores, ou aqueles
excluídos dos circuitos do capital – são culpados pela própria pobreza, pelo
seu consumo e por suas dívidas.
•  Hoje, o ponto de vista predominante é, em vários aspectos, o ponto de
vista dos dominados – aqueles condenados ao superconsumo perpétuo,
tanto pobres quanto ricos –, caracterizado por uma mistura de ansiedade
e consentimento sob o slogan de que “Não existe alternativa”. Em 1939,
dois anos depois do ensaio de Brecht, Clement Greenberg (1992) analisou
o kitsch como a forma cultural com a qual os ditadores influenciavam
os gostos dos oprimidos. Hoje, já não é necessário nenhum subterfúgio,
exceto pelo fato de os líderes mundiais esconderem qualquer propensão
que possam ter à alta cultura, preferindo se refestelar jogando golf ou
tocando sax. O triunfo da democracia ciborgue é que estejamos todos no
Facebook agora, todos igualmente ineficazes. Mais radicalmente, a própria
existência de um ponto de vista, com suas metáforas relacionadas da visão
binocular e do avanço estratégico, já não pode ser garantida. Em seu lugar,
22 cinema apesar da imagem

temos o que os adeptos mais otimistas do regime chamam de estilo de vida,


que aparece aos outros como um ânimo global de saciedade exaustiva
pontuada por carnavais de destruição.
• Os problemas mais urgentes não são exclusivamente aqueles da sociedade
humana, que já não pode reivindicar autonomia dos processos naturais. A
sociedade humana é ela mesma o problema. A redução da democracia a
uma escolha, a cada par de anos, entre partidos igualmente comprometidos
com a manutenção do status quo, abertamente consolidados sobre essa
premissa, reduziu o que já foram os órgãos políticos de classe a siglas sob
as quais se esconde a demolição da solidariedade de classe pelo racismo
oficialmente sancionado, e pela atomização do que ainda constitui a
sociedade pela dívida e pelo superconsumo.
• Mesmo que não abandonemos a importância político-econômica e
sociocultural da noção de classe, já não podemos assumir que classes
distintas simplesmente existem, como Brecht podia. Já não nascemos
numa classe, mas sim num lar (econômico), num estilo de vida (cultural),
numa identidade (política): condições de separação, não de solidariedade.
A tarefa de construir um “nós”, um coletivo organizado capaz de ações
históricas, ainda deve ser experimentada.
• As dinâmicas do desenvolvimento, que já foram o motor de políticas
revolucionárias, assumiram um valor sinistro nos anos da hegemonia
norte-americana e da Guerra Fria, quando a palavra se tornou sinônimo
da globalização, da extração de recursos humanos, naturais e minerais, e
da proliferação de ditaduras. Desenvolvimento, em suma, foi reconfigurado
como um sinônimo de crescimento econômico, aquele crescimento que
está para o capital como a velocidade está para o tubarão, a rapidez sem a
qual ele não pode sobreviver, mas que ameaça tudo ao seu redor.

Nesse catálogo de inversões do programa realista de Brecht de 1930, somos


levados a confrontar no último item a relação entre o concreto e o abstrato. O
que acontece se, ao contrário de Brecht, supormos que qualquer novo realismo
tenha que começar na abstração, de modo a encorajar a chegada ao concreto.
Retraçando nossos passos: poderia a criação concreta de um “nós” capaz de
desafiar o ponto de vista predominante começar com a abstração? As condições
da modernidade se transformaram uma vez no século XIX, para inverter os ideais
iluministas da liberdade e do progresso em industrialização e colonialismo. Elas
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 23

se inverteram novamente desde Brecht, impulsionadas pelo desperdício próprio


da superprodução e do superconsumo e pelo confisco do futuro sob a sobra fiscal
e emocional da dívida. A elaboração de Brecht das obrigações do realismo ainda
é valiosa, não simplesmente como uma fórmula narrativa, mas como forma de
levantar a questão radical da verdade. Seu grande insight é que o realismo seja
uma questão da verdade e do seu relato, e que portanto concerne à relação entre
o abstrato e o concreto. Essa relação entra em questão na forma contemporânea
assumida por ambos.

Verdade C21
Os portadores da verdade dos nossos tempos já não são os romances, os filmes e
dramas televisivos, nem sequer o jornalismo investigativo, assaltado de um lado pelos
governos repressores e seus patrocinadores corporativos, e do outro, pela corrupção
dos donos que dedicam seus recursos ao inquérito sobre a nudez dos famosos. Não
é que a demonstração que os membros das famílias reais sejam mamíferos esteja
abaixo da busca pela verdade. É que a santidade da verdade foi reservada a outro
modo de exibição e demonstração. Se na era de ouro da racionalidade científica o
experimento era o caminho para a verdade, na era das probabilidades a verdade
existe, na medida em que existe, como diagrama. A exposição de conhecimento
estatístico, na forma de tabelas ou gráficos de diversos tipos, é agora uma forma
discursiva necessária para a expressão da verdade. Ainda que essa vinculação entre
discurso e verdade possa evocar Foucault, é mister destacar que o diagrama não
é um discurso entre outros discursos, da mesma forma que os discursos da lei, da
medicina ou da engenharia, que reivindicam certas construções de enunciados-
verdade simultaneamente, sem reivindicar exclusividade para além dos seus próprios
domínios. Pelo contrário, a ubiquidade que os diagramas, quadros e gráficos
atingiram desde a sua repentina emergência e disseminação no Statistical Breviary de
Playfair, de 1801, sugere a reivindicação de uma abrangência primordial entre todas
as outras ordens visuais, como se fosse a única com a habilidade de representar o
mundo como verdade. O último grande sistema a fazê-lo foi a perspectiva, que
Panofsky (1991) definiu como uma “forma simbólica”.
Panofsky tomou esse termo emprestado do filósofo Cassirer, para quem o
conceito constituía uma chave histórica da existência humana. Cassirer (1944:
87ff), como tantos filósofos de seu tempo, presumiu que a linguagem fosse um
alicerce do ser humano, e descreveu três grandes eras de formas simbólicas
24 cinema apesar da imagem

segundo as quais nossa existência foi organizada no mundo: a expressiva, a


representativa e a significativa. A forma expressiva do mito ancora o presente no
passado distante, dando sentido ao fluxo da experiência por meio das emoções que
ele evoca e, o que era mais importante para o filósofo, sem distinguir o real da sua
aparência. O indivíduo expressivo se organiza em torno das condições do mundo.
Para Cassirer, a forma representativa era mais bem capturada pelo surgimento de
palavras como “aqui” e “agora”: termos que indicam a distinção entre o modo
como as coisas aparecem em diferentes circunstâncias, e como portanto elas
organizam o mundo em torno do indivíduo. O domínio significativo pertence à
ordem da ciência, para a qual a distinção entre realidade e aparência é a condição
para uma nova investigação da verdade. Na era significativa, espaço e tempo são
abstraídos do aqui e agora experimentado, que se torna uma mera instância de
uma estutura lógico-matemática. O grande passo de Panofsky foi compreender
que a perspectiva, como uma linguagem visual, não era apenas uma inovação
estilística, mas sim um meio para formular as verdades do período representativo,
constituindo de fato a sua forma privilegiada. Na época do regime significativo,
que com o auxílio da arqueologia das mídias podemos datar em 1801, a verdade
não mais aparece como uma perspectiva representativa, mas sim abstraída das
aparências na forma inequívoca do diagrama e do seu avatar do século XXI, a
visualização de dados.
Como forma simbólica, a perspectiva é histórica e, ainda que aberta à
evolução, fundamentalmente estável, a tal ponto que Hubert Damisch (1994: 6),
um dos comentadores mais importantes de Panofsky, possa ter desprezado a ideia
de que o cubismo constituiria uma forma simbólica da mesma ordem. O diagrama
é algo completamente distinto. Ainda que haja fortes argumentos para sugerir que
os experimentos replicáveis e a álgebra formal das provas lógicas sejam as formas
essenciais da ciência, sua forma visual, a forma visual em que suas verdades (e as
quase-verdades das ciências sociais) são proclamadas é o gráfico. Uma fotografia
sempre pode ser alterada, supomos, mas um gráfico articula a autoridade do
número com o poder persuasivo de uma forma que deriva do número, da conjetura
algorítmica de muitos números, da média proporcional que suaviza as dúvidas
residuais que se formam em torno da divergência entre experimentos únicos. O
diagrama não é um adendo à ciência: é a sua mais alta forma de expressão.
Os aspectos mais evidentes do diagrama são o modo como ele atenua
diferenças, transformando-as em similaridade, e seu grau de abstração.
Nesse sentido, ele se conforma com a revisão dialética de Brecht delineada
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 25

anteriormente. O problema se encontra precisamente no modo dessa abstração.


Na introdução de suas palestras Gifford sobre o “pensamento”, Arendt sugere
qual seria esse problema.
Desde Parmênides até o fim da filosofia, todos os pensadores concordam que, de forma
a lidar com [as questões que não se dão aos sentidos-percepção], o homem deve desligar
sua mente dos sentidos destacando-a tanto do mundo que eles apresentam quanto das
sensações – ou paixões – despertadas pelos objetos percebidos (ARENDT 1978: 13).

A mente filosófica é treinada por meio do isolamento do mundo e do próprio


corpo. Essa simples ação não apenas instrui, como também cria o “eu” e os seus
ambientes; não apenas dá forma, como também instiga o sujeito, ao distingui-lo
de seus objetos. Ao mesmo tempo em que reduz tanto corpo quanto mundo, ela
abstrai o ego. A verdadeira abstração na ciência não é a do mundo, ainda que ele
seja reduzido a dados e privado de sua existência aqui e agora, mas a do assunto
sobre o qual versa o diagrama. O que acontece com um assunto cuja verdade é
condicionada pela sua abstração? Arendt oferece outro palpite: “Verdade e sentido
não são a mesma coisa” (ARENDT 1978: 15). Essa distinção é importante para
a leitura de teóricos da mais modernista entre as ciências: “Matéria e sentido não
são elementos separados. Eles estão intrinsecamente fundidos, e nenhum evento,
não importa qual enérgico, pode romper sua união” (BARAD 2007: 3). Matéria
e sentido estão entrelaçados, mas há certa sabedoria em compreender que, nesse
entrelaçamento, a verdade não está envolvida.
A distinção feita por Arendt entre verdade e sentido, da mesma forma que o
“ponto de vista dos dominadores” evocado por Brecht, pode parecer a base para
uma teoria da ideologia. Ainda que o ponto de vista seja o dos dominados, esse
ponto de vista é ideológico no sentido do termo que o confronta com a verdade.
Mesmo assim, na distinção entre sentido e verdade, somos intimados a tomar o
partido do sentido, e reconhecer na nova configuração que o arranjo entre matéria
e sentido implica um fim ao destacamento filosófico da matéria, das paixões
corpóreas e das aparências mundanas, e, dessa forma, o fim da própria ideia de
ambiente, subordinada à existência de um eu que seja distinto do seu entorno.
A consideração da verdade não estaria mais ligada à ideia de ideologia, mas sim
posicionada sobre a matéria e o sentido numa terceira posição. A verdade não
seria externa, como nas formas expressivas de Cassirer, nem imanente, como no
regime representativo no qual Panofsky demonstrou a centralidade da perspectiva,
mas sim abstrata. Essas antigas camadas persistem, como estratos profundos de
26 cinema apesar da imagem

hegemonia, mas o insight de Barad sugere que a ontologia possa driblar a verdade,
vinculando a matéria ao sentido sem qualquer recurso à verdade.
Não obstante, a verdade persiste como eixo de controle. Ironicamente, depois
que a crítica de Althusser escancarou a oposição entre ideologia e verdade, somos
levados a confrontar a pretensão de verdade do diagrama como um discurso
visual predominante, como forma simbólica predominante, em outras palavras,
como a forma visual e simbólica da dominação, de modo que a verdade se tornou
ideologia. Aquilo que confronta a ideologia é o sentido, e, segundo essa lógica, a
verdade não faz sentido. Isso não significa que seja inverídica: meramente que a
construção específica da verdade agora se abstém do sentido, e que a construção
típica do sentido, para o bem ou para o mal, se abstém do verdadeiro como seu
objetivo ou justificativa.
O que a matéria e o sentido compartilham, dentro do vocabulário de Arendt, é a
aparência: a aparência que, nas tradições racionalistas e religiosas, está subordinada
a uma verdade da qual ela é aparência. Se Cassirer está certo, o modo de verdade
desposado pela ciência é centralmente uma verdade de relacionamentos, mas
constituída por relações abstraídas dos fluxos do presente fenomenológico: uma
verdade na forma de fórmulas, de lógica, matemática e física. A questão portanto
é se isso seria capaz de constituir um realismo para o século XXI, um realismo
que é “abstrato, de modo a encorajar a concretude?” Dada a centralidade do
Marxismo científico para o socialismo de Weimar, poderíamos nos perguntar se
Brecht não estaria propondo um método científico quando ele argumentou pelo
contrário, por um concreto que encorajasse o abstrato. Seria, por outro lado, o
tempo de aderirmos à relação entre matéria (que aparece) e sentido, na insistência
de que a verdadeira função do realismo seja a de compreender de que maneira as
forças abstratas se reúnem, e nesse sentido apenas existem, com o seu aparecimento
– isto é, numa única instância de existência, num único evento? Nesse caso, as
singularidades não seriam desprovidas de sentido, nem privadas de conexões, mas
poderiam vir à tona como encruzilhadas entre relações (incluindo aí tanto as leis da
física quanto as menos compreensíveis tendências históricas). Seria portanto hora
de abandonarmos a fascinação científica com o que é típico e focar, em vez disso,
naquilo que é único?
Esse é o fardo do realismo de Bazin e de suas recentes releituras, que
privilegiam o poder indicial do cinema analógico (Rodowick, Doane, Harbord).
Trata-se de uma forma de enfrentar o desafio de reconsiderar as preocupações
de Brecht com os “problemas que afligem a sociedade humana”. A indicialidade
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 27

cinemática e fotográfica (e, poderíamos acrescentar, a fidelidade da gravação


sonora) são orquestradas em torno do aparelho sensório humano; mas, se os
maiores desafios não são mais apenas humanos, então o alcance desses sentidos é
restritivo, e precisamos olhar para além deles, para regiões do espectro que os seres
humanos não podem ver: além daquilo que aparece, na medida em que aparece aos
humanos. A descoberta do princípio ecológico nas ciências da vida corresponde a
um descentramento do ser humano no funcionamento do planeta. Ela corresponde
também a um novo conceito de economia baseada em sistemas, no qual a mão
invisível do mercado supera o poder da ação humana: uma compreensão política
da economia que serve para remover os interesses humanos da soma das atividades
humanas. “Linguagem, mito, arte, religião, ciência são os elementos e as condições
constitutivas” da sociabilidade que, segundo Cassirer, define o ser humano desde
Aristóteles (1944: 280). Esses interesses característicos do politikon bion, do animal que
vive nas cidades (polis), não estão entretanto no topo de qualquer agenda política,
exceto aquela dos mais suspeitos fundamentalistas para os quais a conservação de
privilégios patriarcais e raciais supera qualquer prática devocional ou contemplação
da divindade. Na medida em que somos “pós-humanos”, renunciamos a esses
interesses. Colocando de maneira mais política, nós nunca fomos humanos. Não
nos tornaremos humanos até que reconceitualizemos nossa relação com uma esfera
comum [commons] que é mais do que humana.

O monoteísmo e a imagem em movimento


Profissionalmente e entre seus pares, a maior parte dos cientistas dirá que
busca o conhecimento e não a verdade; mas, no domínio público, os Fatos, como
artefatos típicos do discurso científico, assumem o status monológico, para não
dizer monoteístico, de uma Verdade não apenas epistêmica como ontológica:
singular, universal e absoluta. É essa forma de Ciência (como a forma singular
da Verdade, distinguida aqui pela letra maiúscula) que se torna perigosa.
Em suas origens ritualísticas, as mídias baseadas no tempo (narrativa, teatro,
música, dança) ensaiam o conflito entre deusas, deuses, flora, fauna, lugares e
humanos. Apenas o culto aos santos, que remonta a cultos pré-monoteístas, e
o panteísmo herético são capazes de proteger alguns elementos das religiões do
Livro da absoluta singularidade da Verdade. O sujeito fraturado da ciência tem
sua origem no ser inevitavelmente falho que caracteriza o ser humano diante da
perfeição de um Deus Único (é essa condição de inadequação que, entre os mais
28 cinema apesar da imagem

devotos, retorna como ódio ao outro: sexual, cultural; um ódio fora do controle
da consciência pessoal, já que, na condição de ser inadequado e possuir vontades
inadequadas, podemos confiar apenas no Ser e na Vontade de Deus). Prestar
serviço à Verdade como singular, absoluta e universal era a base para o ódio na
era representativa. Em nossa era significativa, essa prática é aperfeiçoada, sob a
forma do racionalismo Ocidental, como o cerne do governo. Já que no campo da
realpolitik é quase impossível falarmos em “genocídio”, somos levados a descrever
como limpeza étnica a forma de monoculturalismo que acompanha o monoteísmo
desde a Bósnia até o califado, desde Israel enquanto estado judeu até o mantra
norte-americano que evoca Deus e Nação e promove a adoração diária de sua
bandeira, contrariando o segundo mandamento. No século XXI, confrontamos
portanto duas proclamações de Verdade monológica: o fundamentalismo
monoteísta e a Ciência instrumental. O primeiro rejeita o realismo perspectivista
que o segundo criou; acontece que hoje, ainda que subsista como ferramenta, o
realismo perspectivista não mais integra a cultura visual da Ciência.
Ambas as crenças estão baseadas no Ser: na existência de algo que precede
e excede todas as aparências, e que as permeia enquanto simultaneamente as
compromete. A imagem em movimento, emergindo na esteira do regime
diagramático, abre imediatamente outra trincheira. As culturas visuais que
precederam as tecnologias mecânicas da imagem ainda eram capazes de
propor que os objetos que criavam fossem inteiros e completos em si mesmos,
e como tal proporcionassem um encontro com a plenitude do Ser. Apesar de
todos os seus confrontos com a mortalidade, as grandes tradições visuais nunca
puseram em questão a integridade do mundo para si mesmo. Foi a fotografia
que despedaçou toda a plenitude dessa autoidentficação. Essa imagem estática
sempre foi claramente um fragmento apanhado de processos que a ultrapassavam.
Ela abraçava um mundo múltiplo, instável e conflituoso. Em retrospecto, era
inevitável que a fotografia viesse a gerar a imagem em movimento, uma vez que
sempre foi instável. Uma foto solicitava a companhia de outras. Sua profunda
incompletude não mais possuía o álibi dado pela existência de uma perfeita
Unidade Divina ausente da história. A imagem mecânica veio pela primeira vez
desfraldar o privilégio do Ser. Sob essa luz, parece correto que as religiões do Livro
se proponham a renunciar às imagens que destabilizam a unidade da existência.
O mártir busca, numa afronta aos mandamentos, fazer-se inteiro pela sua
re(a)presentação sob a luz do paraíso, do ser primordial, como instrumento de
uma Vontade que não a sua própria. Uma vez que, como toda representação, essa
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 29

também implica a inevitável multiplicação do eu, o suicídio acaba sendo a sua


mais perfeita re(a)presentação enquanto Vontade e Ser aperfeiçoados, bem como
a única re-estabilização lógica do mise-en-abyme da representação, não fosse o fato
de que aniquila a ambos, demonstrando dessa forma a ontologia profana em que
ser e não-ser, identidade e não-identidade, são sinônimos.
Na sequência dos ataques à publicação Charlie Hebdo, somos levados a modificar
a famosa equação de Foucault entre saber e poder de modo a distinguir o poder/
saber do clamor da Verdade pelo controle, no sentido de que a Verdade não visa
a persuadir mas sim a dominar. Brecht está correto em falar de dominação em
relação ao realismo, na medida em que o realismo é uma busca pela Verdade. Mas
a própria separação entre dominantes e dominados indica que a verdade nunca
pode ser singular, universal e absoluta. É sempre da ordem da perspectiva; e acima
de tudo, um produto da intersecção entre ser e não-ser, em um processo de devir.
Portanto a Verdade, com letra maiúscula, opera de fora da história, de fora da
sociedade. A Verdade singular é desumana. Isso poderia ser uma virtude se as
técnicas realistas clássicas, que colocam o aparelho sensório humano no centro de
toda revelação da verdade, estivessem sendo substituídas por uma ecologia mais
abrangente de perspectivas conectadas, mas não é o que acontece. Nem a Verdade
monoteísta nem a científica reivindicam abertamente um papel de controle, que
não para pressupor o controle como condição da própria Verdade, e portanto
como álibi para utilização da Verdade no sentido de dominar o outro, humano e
não-humano. A classificação de ambas como instituições sociais diz muito sobre a
etiologia da Verdade como controle.
A reivindicação de posse da Verdade nos leva a retomar ainda outra vez a
tese de Brecht sobre o “ponto de vista predominante”. Uma análise da forma
singular da Verdade mostra que ela serve tanto à tecno-ciência instrumental da
racionalidade biopolítica quanto ao fundamentalismo monoteísta. Se atualmente
o ponto de vista dos dominados é de fato o predominante, então os resíduos que
ele guarda da ideia metafísica de Verdade constituem o seu aspecto mais opressor.
Não obstante, o ataque à Verdade não se mostra exclusivamente negativo: ele
implica uma tentativa de produzir sentido, que é implicitamente histórico e social:
plural, parcial e cambiante. De modo a expandir a sua crítica num programa
de práticas, Brecht apelou para a classe trabalhadora. Os oprimidos do século
XXI, sem dúvida, são os que mais têm a ganhar com a busca pelo sentido. Mas
esse sentido será o mais débil, na medida em que for postulado exclusivamente
na opressão humana. Precisamos não apenas revisar nosso conceito de humano
30 cinema apesar da imagem

para incluir os que dele se encontram atualmente excluídos – os migrantes e


indígenas –, como também expor o grau de controle implícito na exclusão do
não-humano das nossas formas políticas. Com isso, talvez possamos re-engendrar
a ideia brechtiana de “enfatizar as dinâmicas do desenvolvimento” por meio de
uma adoção literal do termo, que nos levaria a substituir o êxtase da Verdade
pelas dinâmicas do devir.
Resta-nos portanto descobrir se os meios da imagem em movimento já se
esgotaram; se os cem anos de história do cinema teriam sido o bastante para
acabar com o seu potencial utópico e subordiná-lo definitivamente ao regime
representativo da perspectiva como forma simbólica. A questão do realismo
parece ter menos a ver com as impressões humanas sobre o mundo e mais com a
imaginação que nos permite habitar esse mundo de outras maneiras, ou mesmo
habitar imaginariamente outros mundos. Se consideramos o realismo como
um problema relacionado menos à captura da luz e mais à animação, capaz de
desestabilizar a presença da imagem e as suas representações, a próxima questão
diria respeito à capacidade da visualização de dados como forma simbólica
autêntica da era significativa. Seria a visualização de dados capaz de imaginar
o mundo como outro – outro que não autoidêntico, outro que não a sua própria
forma predestinada, outro que não um objeto de controle?
Essas questões são tão relevantes para as novas histórias materialistas da
distribuição cinematográfica quanto o são para a estética do filme.

Referências
ARENDT, Hanna. The Life of the Mind. New York: Harcourt, 1978.
ARRIGHI, Giovanni & SILVER, Beverly J. Silver (com Iftikhar Ahmad, Kenneth Barr, Shuji
Hisaeda, Po-keung Hui, Krishmendu Ray, Thomas Ehrlich Reifer, Miin-wen Shih e Eric
Slater). Chaos and Governance in the Modern World System. Minneapolis: University of Minnesota,
1999.
BARAD, Karen. Meeting the Universe Halfway: Quantum Physics and the Entanglement of Matter and
Meaning. Durham NC: Duke University, 2007.
BRECHT, Bertolt. Brecht on Theatre. Nova York: Hill and Wang, 1964.
CASSIRER, Ernst. An Essay on Man: An Introduction to a Philosophy of Human Culture. Nova York:
Doubleday Anchor, 1944.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 31

DAMISCH, Hubert. The Origin of Perspective. Cambridge MA: MIT, 1994.


GREENBERG, Clement. “Avant-Garde and Kitsch”, in HARRISON, C. & WOOD, P. (eds.)
Art in Theory 1900-1990. Oxford: Blackwell, 1992.
PANOFSKY, Erwin. Perspective as Symbolic Form. Nova York: Zone Books, 1991.
irreprodutível:
cinema como evento
erika balsom
tradução marcus bastos

Para começar, e para oferecer algum contexto à minha abordagem da


ideia de cinema como evento, eu gostaria de fazer uma distinção entre duas
formas diferentes de reprodutibilidade. Ao capturar um traço indicial do
evento profílmico, filme e vídeo produzem uma cópia física da realidade. Esse
entendimento da reprodutibilidade da imagem em movimento – que chamo
de reprodutibilidade referencial – foi amplamente discutido durante a história da
teoria cinematográfica; de fato, sua centralidade para um entendimento do
meio é tal que ela frequentemente é tida como um indicativo da especificidade
cinematográfica. Mas existe uma segunda forma de reprodutibilidade, que chamo
de reprodutibilidade circulatória: em vez de se ocupar de um traço da realidade, ela
relaciona-se com a maneira como a imagem é copiada e copiada e copiada,
transformando aquele traço singular em algo múltiplo que é privilegiado pela
circulação. Esta segunda forma de reprodutibilidade tem, eu acho, recebido
comparativamente pouca atenção nas teorias cinematográficas – mas isso parece
estar em processo de mudança. À medida que a reprodutibilidade referencial
pode nos levar a questões a respeito de indicialidade, documentário, e realismo, a
reprodutibilidade circulatória nos traz temas sobre autoria, autenticidade, acesso,
escassez, e abundância – todos que surgem de um entendimento da imagem em
movimento como uma cópia em circulação.
Pensar sobre as implicações da reprodutibilidade circulatória é especialmente
importante, hoje, sob a luz da mudança tecnológica. A mídia digital reacende a
promessa radical e a ameaça suprema que a cópia corporificou desde ao menos
o desenvolvimento da mídia fotográfica no Século XIX. A cópia oferece acesso
crescente, mas também ameaça comprometer a autenticidade e o controle
34 cinema apesar da imagem

autoral. As viagens promíscuas da imagem digital resultaram em uma variedade


de respostas que procuram legitimar essa mobilidade e reafirmar a necessidade de
uma imagem “autêntica”, controlada.
Essa dinâmica acontece no cruzamento das culturas fílmicas – mas é algo que
vejo pressionar especialmente os artistas da imagem em movimento. Esta área de
prática é paradoxal no sentido que tem uma longa história de premiar a imagem
em movimento por múltiplos e explorar as possibilidades latentes do acesso,
mas também tem laços estreitos com – senão acolhimento completo entre – as
economias simbólicas da arte, que se manifestam em investimentos profundos em
autenticidade e unicidade. Esse paradoxo perpassa a história da arte com imagens
em movimento, mas é especialmente pronunciada no momento contemporâneo,
em que se encontra a forma de distribuição mais regulada da história do cinema,
a edição limitada, ao lado da forma mais promíscua de distribuição nesta mesma
história, o rastreador BitTorrent. A digitalização provocou uma multiplicidade
de novos modos de circulação de imagens e atribuiu retroativamente novos
significados àqueles já existentes, como o modelo de aluguel das cooperativas. Os
circuitos de distribuição do cinema de artista sempre foram plurais, mas nunca
antes essa pluralidade foi tão diversificada e igualmente necessitada de atenção
acadêmica quanto ela é hoje. Christian Marclay vende edições limitadas de The
Clock (2010) para museus por valores próximos de US$ 5.000,00 cada, enquanto
Kenneth Goldsmith torna centenas de obras disponíveis sem custo – ainda que
em muitos casos, ilegalmente – em seu website, UbuWeb. Resumindo, as imagens
nunca foram tão livres e tão controladas como são agora.
A imagem em movimento na arte esteve historicamente alinhada com
acesso e com tentativas de tirar o objeto de arte de uma economia da unicidade
e da raridade. Germano Celant referiu-se ao desejo pela fabricação ilimitada e
distribuição ampla de objetos de arte como “pequena utopia”, posicionando-a
como “um sonho que pontuou o Século XX através de miríades de contextos
e momentos históricos e estéticos” (CELANT, 2012, p. 31). Conforme Celant,
essa trajetória culmina nos final dos anos 1950 e 1960 com a concepção do
“múltiplo”, uma categoria que naquela época compreendia objetos como livros
de artista, assim como as edições teoricamente ilimitadas das esculturas publicadas
por Daniel Spörri através de suas Éditions MAT. Todavia, é possível facilmente
declarar que não é nesses múltiplos objetuais senão no cinema e na vídeo arte – e
nas instituições desenvolvidas para lhes dar apoio – que se encontra a verdadeira
apoteose desta contra-história. A história dos engajamentos dos artistas com a
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 35

imagem em movimento é em grande parte a história do impulso para democratizar


a distribuição e desvincular a produção de arte dos regimes emaranhados da
raridade e do fetichismo da mercadoria. Por exemplo, ao priorizar o acesso,
o modelo de locação de filmes e vídeos co-operativamente talvez represente a
articulação mais amplamente desenvolvida da “pequena utopia” da distribuição
de arte, mas a história da vídeo arte entre os anos 1960 e 1980 também poderia
representar outra. Essa pequena utopia mais uma vez estica sua cabeça com o
advento da distribuição digital. Muitos artistas estão interessados em buscar novos
tipos de reprodutibilidade e explorar as formas estéticas que elas engendram,
seja isso trabalhar com imagens de baixa resolução, circuitos de cópia caseira, ou
outros formatos de circulação.
Em mencionei antes que as imagens nunca foram tão livre e tão controladas
como são hoje. O que eu acabei de dizer sugere algo sobre como poderíamos
pensar a respeito de liberdade. Mas as páginas a seguir vão explorar algo que é
menos questionado, e isso é controle. A capacidade de reprodutibilidade inerente
à imagem em movimento pode ser matizada por fatores que são tecnológicos,
legais, econômicos, estéticos, conceituais, ou alguma combinação deles. No cinema
narrativo atual, tal regulamentação da reprodutibilidade é feita através de políticas
agressivas de direitos autorais e o desenvolvimento de sistemas de gerenciamento
digital de direitos.1 No cinema de artista, uma das principais formas de controle
que encontramos é o modelo da edição limitada, que é usado para vender
filmes e vídeos no mercado. Nesse modelo, um filme ou vídeo é lançado em um
número limitado de cópias – geralmente entre três e cinco – acompanhadas por
um certificado de autenticidade e vendidas geralmente por preços bastante altos.
Obviamente uma das motivações primárias por trás deste modelo é obviamente
a oportunidades de ganho financeiro. Mas gerar edições também fornece uma
maneira de garantir que a obra só será vista em certas situações controladas.
Há muito a se dizer sobre isto. Mas o que eu gostaria de focar no que segue
é como poderíamos pensar sobre formas de escassez e raridade que não têm
motivos financeiros, mas são estética e/ou conceitualmente motivadas. Como no
modelo de edições, estas formas envolveriam uma rejeição da reprodutibilidade,
mas os métodos e motivações são bastante diferentes. Vou introduzir duas formas

1. O termo usado no artigo original remete aos sistemas conhecidos como Digital Rights
Management, usados para controlar direitos autorais de equipamentos e programas após sua
venda (incluindo técnicas com licenciamento restritivo e criptografia, entre outras formas
que visam controlar a pirataria) (n.t.).
36 cinema apesar da imagem

diferentes em que podemos pensar sobre este tipo de escassez, os quais concebem o
cinema como evento, como uma experiência irreprodutível ao invés de um objeto
reprodutível. A primeira é o cinema ao vivo, e o segundo é o cinema site-specific.
Em ambos casos, eu gostaria de arriscar a assertiva de que estas formas causam um
interesse especial, hoje, graças às formas a que eles recuam dos circuitos digitais
de disseminação. Em uma época de cópia e circulação sem precedentes, eles as
rejeitam tanto em favor da singularidade quanto do controle.

Condição ao vivo
O tema do programa deste ano do Festival de Curta-Metragens de
Oberhausen, “Memórias Não Podem Esperar: Filme sem Filme”, começou
com uma tela vazia. Nenhum celulóide correu pelo projetor; ao invés disso, a
luz foi transmitida sem intermediário, clara o suficiente para rebater e iluminar
parcialmente os rostos dos espectadores sentados. Rapidamente, membros da
audiência começaram a jogar bolas de papel amassado em direção ao projetor,
provocando sombras que apareciam na tela. Outros aderiram e aviões de papel
começaram a planar, com risos e conversas preenchendo a sala. Não estava claro
como isso tudo começou: nenhuma instrução tinha sido dada; presumivelmente
o curador havia plantado alguns indivíduos com conhecimento na plateia. Os
panfletos de filmes antigos que estavam sobre os assentos do auditório tomaram
o ar e voaram em direção ao vazio à frente. Na ausência da imagem, as atenções
estavam mais focadas na série de interações lúdicas entre espectadores que no jogo
de sombras. Quando a comoção arrefeceu, o programa seguiu com a próxima
escolha do curador. Nessa recriação coletiva de Hell’s Angels (1969), a performance
de cinema expandido concebida pelo cineasta austríaco Ernst Schmidt, Jr. e
dedicada a Howard Hughes, tinha terminado.
As práticas de cinema expandido dos anos 1960 e 1970 foram tema de
atenção curatorial e acadêmica significativa nos anos recentes, muita da qual
interrogou como esses trabalhos negociam as antípodas entre expansão intermeios
e especificidade reducionista. Para entender Hell’s Angels desta forma, é preciso
dizer que ela oferece o grau zero da exibição cinematográfica: projetor, tela,
público. Essa consideração tem relevância particular, hoje, enquanto o cinema
se transmuta e migra sob as pressões da digitalização. Mas parar aqui seria
negligenciar tratar um tema hipoteticamente mais central na obra de Schmidt,
e que desempenha um papel chave para contrabalançar o interesse intensificado
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 37

que festivais de cinema e museus têm recentemente demonstrado em certas obras


históricas e contemporâneas de cinema expandido: a condição de ao vivo do
evento. Hell’s Angels antecipa um entendimento do cinema como algo fundado
na semelhança da reprodução mecânica em favor da ativação do auditório como
espaço de acontecimentos e encontros acidentais. A condição de ao vivo é uma
forma de cultivar o imprevisível: não se sabe, com precisão, o que vai acontecer.
Mesmo que a obra ocorra no escopo de um conjunto estável de parâmetros, ela
nunca será a mesma duas vezes; ela será sempre uma re-apresentação ao invés de
uma repetição. E, talvez mais importante, ela nunca será possível de ser baixada
do Karagarga ou transmitida na UbuWeb – ao menos não sem regredir ao status
de mera documentação.
“Cinema ao vivo” soa como algo como uma contradição em termos.
Afinal, se a condição de ao vivo é considerada em relação às mídias tecnológicas
sobretudo, ela tende a ser pensada como propriedade da transmissão de TV
e da internet muito mais que no caso do cinema, que depende de repetições
reguladas do pré-gravado. O “fluxo” televisivo, para usar o termo de Raymond
Williams, dá impressão de um presente que se desdobra sem cessar, mesmo
quando o conteúdo transmitido não é um fato ao vivo. Como Mary Ann Doane
colocou, a “dimensão temporal da televisão [...] parece ser aquele de uma
‘presentidade’ insistente – um ‘Isto-está-acontecendo’ ao invés de um “isto-foi’,
uma celebração do instantâneo” (DOANE, 2001, p. 269). A navegação pela
web herda esta temporalidade enquanto a exacerba através de interatividade e
customização aumentadas. Não apenas o conteúdo é frequentemente atualizado
em tempo real, como o usuário possui a habilidade de navegar conforme sua
vontade, portanto experimentando a condição ao vivo de um desejo autodirigido.
Por contraste, mesmo que destinado ao desvelar em tempo-presente do filme
através do projetor, a exibição cinematográfica é mais propriamente localizada
no domínio do “isto-foi”. O espectador encontra uma obra já completada que
existe no âmbito de uma economia de múltiplos como uma cópia sem original.
Mas ver o cinema apenas como um meio da reprodutibilidade gravada é
adotar uma visão muito estreita da história do cinema, que exclui as diversas
práticas de exibição do primeiro cinema e das vanguardas. As imagens em
movimento foram produzidas ao vivo desde seus primórdios. Mesmo antes do
desenvolvimento do suporte fotográfico, shows de lanterna mágica, panoramas e
brinquedos óticos ofereciam ilusões de movimento que dependia do agenciamento
de um operador humano e incorporavam graus significativos de variabilidade
38 cinema apesar da imagem

de uma performance para a próxima. Depois do advento do próprio cinema, a


condição ao vivo manteve-se como um componente chave da prática de exibição,
particularmente no nível da trilha sonora, seja com os narradores-apresentadores
que teciam histórias a partir de uma sucessão de quadros filmados ou na música
que os acompanhava. Ainda que a afinidade entre o primeiro cinema e o cinema
experimental tenha sido longamente apontada, ela foi frequentemente articulada
em termos de preocupações textuais compartilhadas, como um foco no deleite
visual ou no choque, uma refração da integração narrativa, ou o emprego de um
vocabulário formal reduzido2. O enlace da condição ao vivo em muitas obras de
cinema expandido figura como uma semelhança familiar adicional com a era pré-
clássica, que une práticas cinematográficas bastante diferentes através de períodos
históricos distintos, em uma posição compartilhada fora de uma experiência
padronizada, reprodutível, da imagem em movimento.
Apesar desta afinidade, o significado de cinema ao vivo tem mudado
imensamente desde os dias do benshi.3 Uma coisa é sair de um regime de repetição
antes de ele ser consolidado e outra bastante diferente é deixá-lo depois que ele se
tornou norma. A condição ao vivo hoje esta bifurcada. O que Tara MacPherson
chamou de “mobilidade volitiva” da internet prevalece como uma experiência
dominante da condição ao vivo: um agora perpétuo de acessibilidade quase-
instantânea que depende sobretudo da velocidade extrema dos dados digitais e
tende a abarcar a separação física dos envolvidos. É uma condição ao vivo de
uma vida totalmente administrada vivida no automático e na grade, desdobrando-
se na homogeneidade do tempo real. Mas, em reação à quase-inescapabilidade
deste regime, testemunha-se a emergência de outra forma de condição ao vivo: um
desejo de repelir a circulação nas redes e insistir na locatividade e coletividade de
um evento estético que será mantido fora do domínio da reprodutibilidade digital.
É possível ver a arte da performance como mais bem equilibrada para responder
a esta demanda, mas ela o faz sob o risco de assumir a condição ao vivo como um
estado de pureza ontológica, de sonhar com um retorno ao momento pré-lapsariano
antes da invenção do rádio colocar em crise uma oposição binária, antes forte, entre
o ao vivo e o mediado. A força comparativa do cinema ao vivo é sua habilidade de
produzir uma resistência à condição ao vivo tecnologicamente mediada de dentro
de seus domínios. A imagem em movimento é fundada em uma economia do

2. Ver, por exemplo, Bart Testa, Back and Forth: Early Cinema and the Avant-Garde (Toronto: Art
Gallery of Ontario, 1992).
3. Narradores do cinema mudo japonês (n.t.).
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 39

múltiplo e possui a habilidade de circular de uma forma que os meios tradicionais


não podem. Com o cinema ao vivo, vemos algo que trabalha contra as percepções
comuns de seu meio, ao encenar uma partida maior do alinhamento persistente de
filme e videoarte com acesso, circulação e reprodutibilidade. A condição ao vivo do
evento fílmico não se resume ao imprevisível, mas também ao impossível de ver: ela
floresce da carga do presente que se desdobra enquanto oferece a seus espectadores
uma experiência compartilhada exclusiva e irreprodutível, inacessível àqueles que
não participaram pessoalmente. Mover as rédeas da reprodutibilidade da imagem
em movimento rumo à prioridade do raro é com mais frequência associado ao
modelo de distribuição da edição limitada, motivado por preocupações financeiras
e institucionais; aqui, todavia, encontra-se um tipo muito diferente de raridade,
estimulado por interesses estéticos e conceituais.
“Cinema ao vivo” é uma etiqueta que pode potencialmente abranger um
número diverso de práticas, incluindo a obra de Ernst Schmidt, Jr. já mencionada.
Ela pode, também, incluir um projeto como After the Garden Series, de Luther Price;
aqui, Price enterra found footage em seu jardim, para apodrecer e acumular musgos,
então a desenterra para arranhar e pintar, produzindo impressões únicas como
After the Garden: Dusty Ricket (2007) e After the Garden: Silking (2010). Notoriamente
difíceis de projetar graças à sujeira acumulada, a condição ao vivo destas frágeis
impressões vem da maneira com que elas mudam de exibição em exibição,
conforme fazem seu caminho tortuoso através de projetores que foram certamente
construídos para as películas menos irregulares e afetadas.
Passio (2006), de Paolo Cherchi Usai, oferece outro exemplo que se engaja com
filme fotoquímico como um meio antigo, e oferece explicitamente a metáfora da
impressão em película como um corpo que vive e morre. Feito com a participação
de onze arquivos cinematográficos ao redor do mundo, Passio é uma obra em 35
mm com negativos encontrados projetados junto a uma performance ao vivo da
cantata passional Passio Domini Nostri Jesu Christi secondum Joannem, de Arvo Pärt
(1982). A obra requer um barítono solo, um tenor solo, um quarteto vocal, e um
coro de doze a quinze cantores, acompanhados por órgão, violino, cello e fagote.
Usai destruiu o negativo original depois da criação de sete impressões numeradas;
ele declara ter feito um vídeo que o mostra atingindo o negativo com um machado
para provar que o evento realmente aconteceu. Essas impressões foram, então,
coloridas à mão, cada em uma diferente matiz. Usai explicou seu uso de música ao
vivo em Passio como resultado do fato de que cinema “requer presença humana”,
mas a escolha de uma peça em particular que tematiza os últimos dias de Cristo
40 cinema apesar da imagem

– um tempo de sofrimento que prepara o caminho da redenção – também tem


ressonâncias significativas para o meio cinema em uma época de obsolescência4.
Editado manualmente, colorido à mão, e acompanhado ao vivo: todos os aspectos
do filme trabalham para juntos cercá-lo com a singularidade da presença humana
e distanciá-lo das formas de reprodução engajadas na proliferação de cópias
idênticas de forma a permitir circulação ampla. Usai volta às técnicas de filmagem
usadas antes da automação dos processos de cor e do desenvolvimento de processos
de edição on-line. A esse respeito, é possível dizer que ele retorna ao ancestral no
âmbito do antigo: ele observa técnicas que estão fora de moda mesmo no escopo
do cinema feito com processos fotoquímicos, eles mesmo um anacronismo na era
digital. Como Usai destruiu o negativo, tudo o que sobrou são as sete cópias que
vão degradar cada vez que são mostradas. Elas são entidades que, como corpos,
vão viver, envelhecer, e morrer, inscrevendo sua passagem pelo tempo em sua
superfície epidérmica. Endossadas com uma finitude material, as impressões de
Passio vão acumular pó e riscos cada vez que forem mostradas, performando sua
própria passagem para ruína a cada projeção.
E, por último, nós também podemos pensar performances com o projetor,
como aquelas de Bruc McClure ou Sandra Gibson e Luis Recoder. No mesmo
programa temático de Oberhausen mencionado antes, Gibson e Recoder
performaram Stations of Light: Installation for Two Movie Theaters, One Audience, and
Musician (2014). Para esta peça, os artistas deram três instruções ao curador
do programa, Mikka Taanila: ele deveria usar como fonte dois filmes com
aproximadamente a mesma duração em DCP;5 em sua seleção, ele deveria levar
em consideração como o programa temático “Filmes sem Filme” poderia trabalhar
com filmes; ele não deveria revelar a identidade do filme aos artistas ou o público.
Eu levanto este exemplo em particular porque, notadamente, ele não usa filme
fotoquímico, como muitos dos outros projetos que eu mencionei fazem. Gibson
e Recoder substituíram a trilha sonora dos filmes por um acompanhamento
ao vivo composto por Douglas J. Cuomo e interpretado por Dirk Wietheger,
enquanto suas imagens eram transformadas em borrões ectoplásmicos. Gibson
e Recoder estavam na cabine, manipulando o projetor de luz com um pedaço
rotativo de filtros de vidro e cor, para criar imagens abstratas, gasosas, que às vezes

4. Entrevista para a autora em 17 de junho de 2013.


5. A sigla DCP significa Digital Cinema Package, em português Pacote de Cinema Digital.
Trata-se de um sistema de projeção em sala de cinema em que um conjunto de arquivos
armazenam e organizam sons, imagens e dados de um filme (n.t.).
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 41

lembravam as fotografias de espíritos do século XIX. Após mais ou menos vinte


minutos, os músicos desertaram para o outro cinema e o público os seguiu. Lá,
um segundo filme era exibido, este ainda mais abstrato que o primeiro com suas
refrações através de um cilindro rotativo mais rápido. A manipulação das imagens
pelos artistas servia como uma alegoria da própria ideia de evento performativo:
as imagens fugidias que tocamos, deslizam para dentro e fora da capacidade de
reconhecimento. Após algum tempo neste espaço, o público voltou ao primeiro
cinema para a conclusão da performance.
Gibson e Recoder afirmaram que seu uso de dois cinemas foi inspirado pelo
sistema e mudança em ato do 35mm, em que o projecionista troca rolos conforme
opera projetores alternados posicionados lado a lado. Isso foi largamente
abandonado com a introdução do sistema de chassis nos anos 1960, que iniciou
uma automação crescente da projeção que encontra sua apoteose com o DCP.
Ao metaforizar espacialmente o sistema de troca de rolos, os artistas buscaram
recuperar contingências perdidas. De maneira semelhante, as trilhas de imagem
e som de Stations of Light encenaram uma tensão entre a estabilidade da notação
e a variabilidade da improvisação. Como Cuomo notou na discussão depois da
projeção, sua composição estava amplamente preparada, mas inclui algumas
oportunidades para o violoncelista tocar fora das bordas. Enquanto isso, as
impressões de DCP serviam como um tipo de partitura de onde Gibson e Recoder
performavam; ainda que esta partitura pudesse ser copiada (ou, melhor, era uma
cópia), eles produziriam algo a partir dela que seria absolutamente singular.
A este respeito, a dupla estava explorando o que Nelson Goodman chama
de natureza alográfica do cinema: ele é uma arte em duas fases que requer uma
atuação performativa de forma a ser realizado, algo que necessariamente abre o
trabalho à diferença, flutuação, e modificação mesmo se ele continua ele mesmo
(GOODMAN, 1976, p. 113-117)6. Goodman coloca as formas alográficas contra
as formas autográficas como a pintura, que são completamente realizadas por seus
produtores. Isso significa que mesmo “a duplicata mais exata dela não a computa,
todavia, como genuína” e seria considerada forjada (ibid., p. 113). Por contraste,
é possível copiar um roteiro, uma partitura musical, ou uma impressão de filme e

6. O relacionamento do cinema com a terminologia de Nelson se torna substancialmente


mais complicado quando se questiona o status das múltiplas impressões produzidas a partir
de um “original”. Para o escopo da presente discussão, a terminologia de Goodman será
usada apenas para discutir o relacionamento entre a impressão como notação e a projeção
como performance.
42 cinema apesar da imagem

manter-se firmemente dentro dos domínios do genuíno. A reprodutibilidade está,


portanto, no cerne da distinção alográfico/autográfico. Crucialmente, no entanto,
não é apenas uma questão de alinhar o alográfico com o múltiplo e o autográfico com
o singular. A identidade-não-individual da arte alográfica garante que ela também
possui um relacionamento com o único, mesmo que ela difira em caráter daquela
das artes autográficas. É possível copiar uma notação sem entrar nos domínios do
forjado, mas não é possível duplicar exatamente a performance que resulta dela.
Considerada como performance, a imagem em movimento para de pertencer
somente à economia do múltiplo e também começa a manifestar uma afinidade
com o singular. Insistir na reprodutibilidade da imagem em movimento é considerá-
la como material em vez de experiência. No momento em que se desvia para o
entendimento do cinema como evento, a singularidade vem para primeiro plano.
Desta forma, os artistas da imagem em movimento que excluem a reprodutibilidade
em favor da singularidade do evento podem ser entendidos não apenas como
responsáveis por excluir um atributo-chave de seu meio – sua capacidade de circular
–, mas também por explorar um atributo não menos importante do filme e do vídeo:
a condição ao vivo do encontro entre o espectador e a imagem.
Generalizando, o objetivo de executar uma performance e uma arte alográfica
na era da reprodução mecânica é criar uma experiência padronizada que se
conforma o mais próximo possível das intenções autorais e/ou industriais. O que
aparece aqui é, em um esmagamento da variabilidade, algo que foi a pedra de
toque da exibição cinematográfica desde os anos 1910 e tem sido mais geralmente
entendido como uma parte importante dos modelos Fordistas de produção. Stations
of Light, em contraste, explora esta abertura onde a exibição tradicional veria formas
de fechamento. Ao fazê-lo, Gibson e Recoder distendem o ponto em que esta
dimensão performativa está sempre presente, mesmo nas formas mais reguladas de
exibição, como a projeção DCP. Enquanto é possível considerar o cinema ao vivo
simplesmente como uma parte marginal do domínio já marginal das práticas de
cinema de artista, há também uma forma em que ele pode ser tomado como um
modelo para repensar a experiência cinematográfica tout court. Todas as projeções de
cinema são em certo sentido eventos ao vivo, performances únicas de uma notação
estável que ocupa um lugar e tempo particulares e são compartilhadas coletivamente.
Este sempre foi o caso, claro, mas hoje obtém uma nova visibilidade em relação
aos desvios de sentido históricos da condição ao vivo. Como arte performática, o
cinema para de ser um objeto reprodutível e torna-se, no lugar, uma experiência
singular – algo que exerce um apelo especial na era do acesso digital.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 43

Especificidade do lugar
Especificidade do lugar é um conceito com uma história bastante longa na
prática artística, mas não tanto em cinema e vídeo. A seguir será explorada a noção
de cinema site specific, através de um estudo de caso: o cineasta experimental dos
EUA Gregory Markopoulos e seu sonho do Temenos. Nós poderíamos certamente
falar do relacionamento entre um filme e seu entorno, e poderíamos designar sua
situação (geralmente a sala de cinema) como uma situação de observação ideal ou
primária, mas na maioria dos casos nós também estamos bastante conscientes que
estas imagens podem e vão circular para além desta situação. Em seu texto de 1989,
Images in the New Media, Vilém Flusser enumera uma trajetória histórica que vê a
imagem como tendo se deslocado da locatividade absoluta (as cavernas de Lascaux),
através de crescente transportabilidade (pinturas e painéis de madeira), para um
telos de “imagens descorporificadas”, “‘puras’ superfícies” (FLUSSER, 2002, p. 70).
Flusser escreve, fotografias “e filmes são fenômenos de transição em algum lugar entre
as telas emolduradas e as imagem descorporificadas. Há, entretanto, uma tendência
ambígua: imagens vão se tornar progressivamente mais portáteis e os endereçados
cada vez mais imóveis” (ibid.). A era contemporânea tem visto fotografias e filmes
se apoiar mais nas “imagens descorporificadas” que os sucederam que de volta nas
telas que os precederam, conforme as formas digitais de reprodutibilidade vêm
permitindo formas sem precedentes de mobilidade da imagem.
Como mencionei antes, um investimento nas possibilidades da distribuição
em massa atravessa com força a história do cinema de vanguarda. Mas, na figura
de Gregory Markopoulos e seu sonho do Temenos, confronta-se o contrário. Na
Grécia Antiga, o Temenos era um pomar sagrado restrito aos usos cotidianos;
para Markopoulos, ele designava um lugar de exibição absolutamente ideal que
surgiria apenas no futuro. Não existe, talvez, qualquer outra figura na história do
cinema que tenha recusado tão ardentemente as possibilidades de circulação do
meio. Para Markopoulos, a “pequena utopia” da distribuição de Celant era uma
distopia que o induziu a inventar uma maneira de assegurar o controle absoluto
sobre sua obra e suas condições de exibição. Markopoulos foi uma das figuras
mais proeminentes do Novo Cinema Americano antes de partir para a Europa em
1968 e tirar seus filmes de circulação em 1971. A partir de então, ele raramente os
mostrou em público, sobrevivendo de patrocínio privado. Ele estava furioso com o
que via como um tratamento inadequado que seus filmes recebiam.
Em um estado de quase-invisibilidade, ele nutriu o sonho do Temenos, que
substituiria arquivos de filme e cinematecas estabelecidos, assumindo um mandato
44 cinema apesar da imagem

duplo de preservação e apresentação apenas das obras de Markopoulos e seus


parceiro Robert Beavers. Inicialmente, Markopoulos imaginou construir uma
estrutura arquitetônica em área rural na Grécia ou Suécia com esta finalidade.
Com Wagner como modelo, ele imaginou uma Bayreuth cinemática, mas os fundos
não surgiam. No início dos anos 1980, ele e Beavers começaram a manter exibições
em uma área campestre próxima ao vilarejo de Lyssaraia, no Peloponeso, onde o
pai de Markopoulos havia nascido. Markopoulos pretendia que os espectadores
viajassem ao Temenos para experimentar uma forma de limpeza ritual ao passar
um tempo distantes das “más influências” de sua existência cotidiana e ambientes
mais urbanos (MARKOPOULOS, 1980). O Temenos era, então, não apenas
uma profilaxia para os filmes de Markopoulos, mas também uma tentativa de cura
para as doenças engendradas como parte de um complexo midiático-industrial
maior. Em outras palavras, e para usar a referência grega condizente, o cinema de
Markopoulos era um pharmakon: veneno, remédio, e intoxicante ao mesmo tempo.
A dimensão terapêutica do evento era concentrada nas exibições de filmes que
aconteciam a cada noite, mas também estendiam-se além delas para abranger o
restante do tempo que os peregrinos gastassem na área.
Ainda que a atração inicial de Markopoulos pelo vilarejo tivesse raízes nele
ser o lugar de nascimento de seu pai, era-lhe também simpático fazer as exibições
Temenos lá em função do fato de que a área tinha sido o solo de um templo de
purificação ancestral. Asclépius era o deus da cura e da medicina na religião
grega ancestral, para quem templos chamados Asclépieia eram devotados, o mais
celebrado deles sendo localizado em Epidauro, no Peloponeso oriental. Muitas
asclepieias tinham espaços para anfiteatros, do tipo que interessava a Markopoulos
e Wagner. Peregrinos costumavam com frequência viajar grandes distâncias para
estes lugares, que eram geralmente localizados fora da cidade, como Temenos seria.
Uma vez lá, eles passariam por formas de purificação ritual antes de conseguir
permissão para entrar no santuário. No Abaton, a câmera interna, eles entrariam
num estado de incubação, dormindo sob a influência de drogas. Ao acordar,
quaisquer visões que o paciente tivera à noite seriam relatadas ao sacerdote, que
as interpretaria e prescreveria a cura apropriada: beber das águas, fazer exercícios,
dieta ou mesmo cirurgias. Às vezes, o próprio Asclepius aparecia para o paciente
durante a incubação, que acordava para se encontrar curado – ou curada. Em
linha com a tradição asclepiana, as exibições noturnas Temenos deveriam servir
como uma forma cinemática de incubação. Ela forneceria um remédio para
focos de atenção fragmentados, o uso instrumentalizado do tempo, a escravização
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 45

por motivos de lucro, e a banalização da imagem que Markopoulos via tomar


conta da sociedade. O alívio viria na forma de uma experiência estética de alta-
definição, acontecendo plenamente fora dos regimes estabelecidos de circulação,
em harmonia com a beleza natural da paisagem infusa de significado mitológico.
Estas exibições terminaram em 1986. Quando Makopoulos morreu, em
1992, ele legou Eniaios (c. 1948-91), um ciclo de filmes de 16mm concluídos, mas
não revelados na época de sua morte. O título do ciclo tem um duplo sentido de
“unidade” e “singularidade”, e ambas figuram pesadamente no projeto. Durante
os últimos anos de sua vida, Markopoulos revisitou sua obra inteira, remontando
seleções em um único trabalho dividido em vinte e duas ordens. Ele decidiu que
ele seria visto apenas no Temenos. De 25 a 27 de Junho de 2004, em torno de
duzentas pessoas reuniram-se para ver as três primeiras ordens de Eniaios, o longa-
formante de Markopoulos destinado a ser exibido apenas no Temenos. Uma tela
de vinte pés foi erguida, com pufes vermelhos em frente para fornecer assentos
confortáveis para os espectadores reclinados. Como nos eventos anteriores, estas
exibições eram gratuitas e tinham programas belamente impressos incluindo
textos de Markopoulos em inglês e grego.
Austero e difícil até mesmo para os padrões do cinema experimental, Eniaios
consiste em vinte e duas ordens entre três e cinco horas cada, totalizando uma
duração de umas oitenta horas. O filme é construído predominantemente de
ritmos de preto e guias claras, com estouros ocasionais de imagens extraídas do
corpo de trabalhos de Markopoulos. O ato de dedução emerge talvez como a
estratégia estética central da obra, já que o mero aparecimento de uma imagem
torna-se um presente revelador. A plenitude de movimento tão central ao
prazer visual do cinema é recusada em favor de uma concentração resoluta na
imobilidade do fotograma – uma parte da filosofia de Markopoulos do filme como
filme. Markopoulos encena uma supressão quase violenta de suas próprias imagens,
que é também composta de relatos de que os negativos originais foram destruídos
depois da integração em Eniaios. Mas ao lado desta sensação de negação – de
fato, através dela – descobre-se algo bem diferente: uma total recalibragem da
própria visão e relação com o movimento fílmico.
A noção de produção de filmes site-specific parece ir contra uma das qualidades
inerentes do meio – sua reprodutibilidade circulatória – mas de fato ela tem uma
história, ainda que limitada, no âmbito da tradição do cinema experimental e
é geralmente acionada entre práticas profundamente investidas no pensamentos
sobre o que atravessa as especificidades cinemáticas. No início dos anos 1970,
46 cinema apesar da imagem

Robert Smithson produziu plantas não realizadas para construir salas de cinema
subterrâneas com relações intrínsecas com os filmes a serem exibidos nelas.
Smithson imaginou que Spiral Jetty (1970) seria mostrado em um museu construído
com esta finalidade perto do Golden Spike National Historic Site, em Utah,
dentro de uma sala que o espectador acessaria através de uma escada em espiral;
Towards the Development of a Cinema Cavern (1971) joga com um chiste no “cinema
underground”, criando o diagrama de uma caverna-cinema que exibiria apenas
um filme sobre a construção do espaço. Mas onde Smithson ludicamente interroga
a especificidade de sítio e a dialética de lugar/não-lugar, para Markopoulos o
Temenos era uma questão da máxima seriedade. Não era uma aposta conceitual,
mas algo necessário para a proteção da obra, que Markopoulos entendia como
uma extensão de seu próprio ser. Monumento e fortaleza ao mesmo tempo, não
se tratava de uma forma bem humorada de crítica institucional.
Também é possível apontar 2’45” (1972), de William Raban, ou Screening
Room (1968-), de Morgan Fisher, ambos necessitando serem refeitos novamente
a cada vez que são mostrados em um novo lugar. Estes dois filmes registram a
história de sua própria produção: eles são filmados e exibidos no mesmo espaço,
embaralhando a atualidade material da exibição e a virtualidade ilusionista da
imagem representada. Nestes casos, aventura-se no domínio da singularidade
interativa do cinema ao vivo. Os planos de Markopoulos para Eniaios, por
contraste, não são de forma alguma amarrados à produção de diferença através
da repetição. Ao contrário, Markopoulos concebeu Temenos como um espaço
atemporal. Ele é, portanto, marcado pela negação aguda da efemeridade do evento
cinemático tão central para as explorações de Raban e Fisher da especificidade
de sítio cinemática.
A especificidade de sítio é um paradigma espacial, mas no caso das exibições
de Eniaios em Temenos, a categoria temporal do evento permanece central. É
possível visitar Double Negative (1969), de Michael Heizer, em qualquer dia do ano,
sem que qualquer momento em particular seja melhor que outro. Por contraste,
Eniaios é acessível por apenas três dias a cada quatro anos, e mesmo então o
que é tornado disponível é aproximadamente um oitavo da obra. A cooperação
entre diferentes tipos de raridade – assistir à única cópia, de uma filme nunca
mostrado antes, no único lugar onde ele deve ser mostrado – empresta às exibições
de Temenos uma aura especial. Como os peregrinos que viajaram para visitar a
Asclepeia ancestral, a maioria dos espectadores que compareceram às exibições
posteriores a 2004 viaja uma distância considerável para chegar a Temenos.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 47

Conforme Lucy Reynolds notou, “poderia se argumentar que o projeto de filme


épico de Markopoulos, sua experiência cinematográfica sem concessões, evoca a
figura do penitente inerente ao peregrino, em que os desconfortos da jornada são
parte de uma reparação, e onde a resiliência é premiada com revelação e epifania”
(REYNOLDS, 2014, p. 75). A lista de pessoas que compareceram ao evento de
2012 mostra representantes de dezesseis países, viajando para um lugar distante
de um aeroporto internacional. A dedução que é tão central às operações formais
de Eniaios é, portanto, também central ao contexto de exibição da obra, que se
apoia na raridade e no gesto deliberado de remoção. Eniaios se engaja em uma
negação da habilidade da imagem em movimento de circular através de diferentes
exibições, insistindo ao invés disso que seus espectadores façam a jornada para
encontrá-la em um ambiente ao qual está intrinsecamente conectada. Torna-se
possível delinear onde o texto termina e onde o contexto começa, conforme o todo
da experiência – mesmo o tempo entre as exibições – contribui para o significado
total e experiência do trabalho original. Eniaios não é simplesmente inseparável
de seu lugar, mas também do evento que o cerca, o que (para esta escritora
pelo menos) inclui nadar no Mar Eônio, jantares de carneiro e vinho, debates
apaixonados sobre a mitologia em estilo de culto de Markopoulos e o estado do
cinema de vanguarda, e viver sem água quente e acesso à internet por alguns dias.
Em uma palestra ministrada no último dia de projeções de 2012, no terraço
do hotel principal em Loutra, o vilarejo onde a maioria dos participantes ficou,
Robert Beavers disse que o Temenos proporciona “um momento de força fora das
pressões” das instituições e finanças. Mas, também, proporciona um momento
fora das formas hegemônicas de circulação que governam nossa cultura visual.
Ainda que Eniaios seja, em certo sentido, um retorno à era dos grandes projetos
modernistas, que agora foram abandonados faz tempo (mesmo que tenham
chegado mais tarde ao cinema que às artes), há todavia algo completamente
contemporâneo nas exibições pós-2004 e em particular a intervenção que elas
propõem em questões de especificidade e distribuição do meio. Exibindo filme
de 16mm com grande custo e dificuldade, estes eventos estão necessariamente
engajados nos discursos de obsolescência de uma forma que se pode assumir que
não seria aplicável a Eniaios no momento de sua feitura. No entanto, os escritos
de Markopoulos revelam uma consciência aguda dos problemas decorrentes da
mudança de formatos e mobilidade da imagem iniciados pelo advento do vídeo.
Em A Supreme Art in the Dark Age, de 1971, ele escreveu que “o uso de filme como
vídeo” o deixou “tomado de desgosto”; em 1975, ele escreveu sobre os “elementos
48 cinema apesar da imagem

sinistros do vídeo” (MARKOPOULOS, 1977, p. 42-43). Markopoulos foi, então,


formulando o sonho do Temenos em sintonia com uma consciência da forma como
a mudança tecnológica poderia exacerbar o mau tratamento do filme que ele já
vislumbrava acontecer no final dos anos 1960. Isto dito, o significado e atração das
exibições pós-2004 só podem ser completamente entendidos quando se considera
a posição negativa que elas assumem em relação às práticas predominantes de
circulação na cultura visual contemporânea.

* * *
Ao postular o cinema como evento, estes projetos asseguram ao espectador
uma forma de experiência incomum em nosso momento contemporâneo,
baseada no encontro público face a face com uma obra em seu formato original,
com frequência usando estratégias que seriam difíceis ou mesmo impossíveis de
reproduzir em uma situação doméstica, digital. Elas rompem com a recepção
distraída de imagens para canalizar atenção e oferecer experiência em alta
definição – não no sentido do nível quase forense de detalhe oferecido pelas
tecnologias de imagem digital, mas no sentido de Marshall McLuhan na forma
como as mídias quentes proporcionam “um estado de estar satisfatoriamente
preenchido com dados” (MCLUHAN, 2003, p. 39). A mídia quente é uma forma
de exclusão, algo que inunda os sentidos do espectador e nada demanda em
troca. O filme já era uma mídia quente para McLuhan – mas aqui encontramos
organizações do meio que demonstram um investimento distinto em tornar esta
mídia quente ainda mais quente, em uma época em que as mídias supostamente
esfriaram como um todo. Estas não são formas maleáveis, participativas, em que
é possível se engajar quando se deseja, mas, ao contrário, usos da imagem em
movimento que buscam oferecer uma experiência mais forte, pura, contemplativa
de mídias bastante diferente da interatividade distraída da maioria das situações
contemporâneas de exibição, inclusive museus e galerias. Além de prometer uma
ruptura da experiência cotidiana das imagens em movimento, tais obras também
podem permitir um nível significativamente maior de controle autoral em uma
época em que isto está cada vez mais ameaçado.
Talvez o termo chave para entender o que está em jogo em tudo isso seja
autenticidade. Tomado do museu e da degustação da arte, autenticidade é um
conceito polêmico do século 19 que procura reviver um sentido pleno e um
estado desalienado de ser, num momento em que a secularização crescente e a
industrialização dispararam uma crise dos absolutos. Na ausência do transcendente
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 49

e do eterno, o sujeito volta-se para dentro, tomando a autenticidade como um


modelo de virtude pessoal. Conforme Luc Boltanski e Ève Chiapello, no século
XIX a autenticidade torna-se um termo chave da crítica artística ao capitalismo,
a qual coloca este último como uma fonte de desencanto e inautenticidade
(BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2005, p. 37). Diferente da originalidade da
vanguarda, que privilegia a novidade, a autenticidade é uma reação conservadora
que tende a recorrer a um tempo anterior, um estado supostamente primitivo, e/
ou modos de produção tradicionais.7 O autêntico é diametralmente oposto ao
reprodutível e circulável, seu caráter surgindo justamente de sua existência fora
de qualquer regime de substitutibilidade ou equivalência. Ela senta-se firmemente
ao lado do raro, sempre alinhada com o humano e contra a máquina. Como
Walter Benjamin escreveu, “toda a esfera da autenticidade se esquiva da reprodutibilidade
técnica – e claro que não só técnica” (BENJAMIN, 2002, p. 103, ênfase no original).
A autenticidade tornou-se uma preocupação maior no final do século XIX em
meio à explosão de novas tecnologias; agora, ela opera um grande ressurgimento
como reação-formação à suposta homogeneização e nivelamento da experiência
perpetrada pela internet. Em seu livro de 2007, Authenticity: What Customers Really
Want, os escritores especializados em gerenciamento de negócios James Gilmore e
Joseph Pine encampam esta ideia, declarando que a autenticidade é o que agora
define uma certa sensibilidade do consumidor. Eles escrevem que, em “um mundo
cada vez mais preenchido de experiências deliberada e sensacionalmente encenadas
– em um mundo cada vez mais irreal – os consumidores escolhem comprar ou não
baseados em quanto eles percebem uma oferta como real ou não. Os negócios
hoje, portanto, dependem integralmente deste real. Original. Genuíno. Sincero.
Autêntico” (GILMORE & PINE, 2007, p. 1, ênfase no original). O interesse no
cinema como evento não está, de alguma maneira, deslocado deste contexto.
Em seu nascimento, a imagem cinematográfica era definitivamente
inautêntica. Afinal de contas, era maquinalmente copiada duas vezes: uma cópia
da realidade profílmica sem a presença discernível da mão do artista e uma mídia
reprodutível, a que falta um original. Mas a obsolescência caminhou bastante,
ao instaurar o filme fotoquímico ao lado do autêntico; afinal de contas, agora é a

7. Conforme escreveu Rosalind Krauss, “a originalidade das vanguardas é concebida


literalmente como uma origem, um início do zero, um nascimento” (KRAUSS, 1986,
p. 6). Ainda que difiram em sua forma de pertencimento temporal, a autenticidade e a
originalidade compartilham da mesma repressão à cópia e da mesma emergência a partir
de um campo de repetições.
50 cinema apesar da imagem

imagem digital que está associada à cópia. Um evento como o Temenos se apoia
nesta recém-descoberta aliança entre filme fotoquímico e autenticidade, ancorando
a autenticidade através de noções de peregrinação, escassez e integridade artística.
Mas vale a pena observar o caráter supremamente contraditório da autenticidade:
sua perda é velada como parte do que Boltanski e Chiapello designam crítica
artística do capitalismo; ela é valorizada como algo que se mantém como
resistência contra a total colonização de todos os aspectos da vida pelo princípio
de troca. Mas, como parte do que eles chamam de crítica social do capitalismo – a
objeção à desigualdade e egoísmo do interesse privado –, o apego ao autêntico
é desprezado por sua natureza classista (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2005,
p. 37). Afinal de contas a autenticidade pode ser facilmente entendida como um
impulso reacionário que busca valorizar o estado das coisas às custas da novidade
– e de quaisquer promessas de democratização e mudança positiva que ela possa
trazer. É importante manter ambos os aspectos da autenticidade em mente ao
analisar as obras discutidas aqui. E também é importante reconhecer que estes
diferentes entendimentos da autenticidade não são mutuamente excludentes, mas
podem operar totalmente em arranjo um com outro.
Notavelmente, vários teóricos proeminentes das novas mídias e do ativismo
digital propuseram que, atualmente, formas de deserção ou retraimento figuram
como modos privilegiados de (não)engajamento. No âmbito do regime dominante
de circulação em rede e vigilância, emerge um imperativo de escapar da captura
e pavimentar rotas de circulação. Irving Goh escreveu que o “imperativo para
pensar este ‘direito de desaparecer’ não pode ser mais atemporal hoje, devido ao
claustrofóbico aperfeiçoamento das políticas e arquitetura de uma aterrorizante paz
e segurança do século XXI” (GOH, 2006, p. 99-100). Alex Galloway elabora:
Ao invés da politização do tempo ou do espaço, estamos testemunhando um aumento
na politização de temas orientados à ausência e presença, tais como invisibilidade,
opacidade, e anonimato, ou o relacionamento entre identificação e legibilidade, ou
táticas de inexistência e desaparecimento (GALLOWAY, 2011, p. 246-247).

De certa forma, a deserção fundamentada dos regimes de circulação, em


projetos como os que discuti, como participantes, hoje, desta tarefa necessária,
porém impossível de se tornar imperceptível. Ao sair de circulação, esses
investimentos em mídias (na maioria das vezes) velhas cruza caminhos com a
vanguarda do ativismo digital e da intervenção artística. Eles recusam o imperativo
de que os produtos de mídia devem circular para gerar valor, mesmo que isto
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 51

signifique que o façam de forma degradada.


Para o artista e teórico Zach Blas, as formas de desaparecimento e
imperceptibilidade agrupadas no que ele chama de “estética anti-internet” não
apenas proporcionam uma crítica da internet e propõem alternativas a ela, como
o fazem no contexto de um investimento político mais amplo que tem intersecções
e engajamentos com o desvio de novas tecnologias para usos subversivos (BLAS,
2014, p. 90 e 94). As obras discutidas aqui claramente não encaixam neste
paradigma, mas elas possuem algo que vários outros artistas que lidam com
estas questões não têm: enquanto uma obra como How Now to Be Seen: A Fucking
Didatic .MOV File (2003), de Hito Steyerl, pode no plano do conteúdo tematizar
a opacidade informática da forma como Blas a teoriza, a obra em si permanece
hipervisível, circulando on-line e em galerias. Há, então, uma contradição do
relacionamento com a circulação e a visibilidade proposta no âmbito da obra com
as formas em que ela circula e a tornam visível. Por contraste, projetos como o
Temenos não tematizam o êxodo das redes de dados mas, ao contrário, encenam
esta condição em suas próprias escolhas de distribuição. Não há dúvida de que
um projeto do tipo permanece, em aspectos-chave, inassimilável à categoria de
obras mais associadas com a recente “politização da ausência”. E, entretanto, a
conexão entre a sua supressão da reprodutibilidade da imagem em movimento e
as táticas digitais de não-existência permanece importantes, já que ela sublinha a
pervasividade das fantasias de fuga numa época em que a matriz – de comunicação,
de circulação – é aparentemente infinita.

Referências
BENJAMIN, Walter. “The Work of Art in the Age of Its Technological Reproducibility (Second
Version)”, in EILAND, H. & JENNINGS, M. (eds) Selected Writings, Volume 3, 1935–1938.
Cambridge: Harvard University, 2002.

BLAS, Zach. “Contra-internet Aesthetics”, in KHOLEIF, Omar (ed.) You Are Here: Art After the
internet. Manchester: Cornerhouse and SPACE, 2014.

BOLTANSKI, Luc & CHIAPELLO, Ève. The New Spirit of Capitalism. Londres: Verso, 2005.

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Fondazione Prada, 2012.
52 cinema apesar da imagem

DOANE, Mary Ann. “Information, Crisis, Catastrophe”, in LANDY, M. (ed.) The Historical
Film: History and Memory in Media. Londres: Athlone, 2001.

FLUSSER, Vilém. “Images in the New Media” in STRÖHL, A. (ed.) Writings. Minneapolis:
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Discontents: Contestation, Critique, and Contemporary Struggles. Wivenhoe, Nova York, Port
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Harvard Business School, 2007.

GOH, Irving. “Prolegomenon to a Right to Disappear”, Cultural Politics 2(1), 2006.

GOODMAN, Nelson. Languages of Art: An Approach to the Theory of Symbols. Indianapolis:


Hackett Publishing, 1976.

KRAUSS, Rosalind. The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. Cambridge:
MIT, 1986.

MARKOPOULOS, Gregory. Carta à George Spentzas (18 de Novembro de 1980), Cerberus,


volume 26. Temenos Archives, Uster, Suíça.

MARKOPOULOS, Gregory. Boustrophedon. Rome: Temenos, 1977.

MCLUHAN, Marshall. Understanding Media: The Extensions of Man. Corte Madera: Gingko,
2003.

REYNOLDS, Lucy. “Wayward Canyons and Sacred Spaces: New Forms of Cinephilia in
Artists’ Moving Image”, Millennium Film Journal 59, Primavera de 2014.
máquinas do tempo
bruno vianna

Me pergunto se o cinema ainda existe. Na medida em que olho através da


minha janela à noite, minha retina imprime uma imagem, meu cérebro a processa
e a transforma em algo que suspeito ser a realidade. Eu nego essa suposição. Não
existe realidade no que vejo, nem nas imagens que produzo. O tempo, esse sim,
sempre foi capaz de infiltrar essas imagens planas através de pequenas brechas,
construindo superfícies, esculpindo relevos. Ele se espalha silenciosamente e aos
poucos domina, guiando olhares a cantos escondidos e eventos imperceptíveis.
Ele costura retalhos da existência, e me desespera enquanto escorre pelos meus
dedos. O tempo há.
O tempo é fluido e elástico. Ele pode ser dividido ao infinito. Nossa percepção
temporal não é absoluta: há dias livres que passam rápido, dias de trabalho que
demoram imensamente a chegar ao fim. A relatividade geral diz que o tempo,
para objetos com velocidade próxima à da luz, passa mais lentamente do que para
os objetos estáticos.
Desde que as culturas ocidental e oriental começaram a tentar domar
o tempo, a estratégia vem sendo o dividir para conquistar. Os primeiros
mecanismos medievais de medição utilizaram um pêndulo para fazer uma roda
avançar a pequenos passos. Cada pequeno avanço da engrenagem cria uma
unidade básica de tempo, que então pode ser contada. Eles são chamados de
mecanismos de escape, apesar de terem a ver mais com controle do que com
evasões. O que se vê na imagem foi inventado em 1657, por Robert Hook. O
mundo se torna cada vez mais numérico: das equações contínuas e fluidas, do
tempo sensorial, sem intervalos indivisíveis, passamos à matemática discreta que
analisa conjuntos de números isolados.
56 cinema apesar da imagem

Mecanismo de escape. (CC0) Chetvorno.


Fonte: <commons.wikimedia.org/wiki/File:Anchor_escapement_animation_217x328px.gif>

Ao contrário do fluxo de áudio, que desde o início das técnicas de registro


automatizado foi gravado em sistemas contínuos e analógicos como fitas magnéticas
ou ranhuras no vinil, o fluxo imagético tinha como referência as representações
estáticas da pintura, gravura, desenhos. Com o invento da fotografia, automatizar
a captura em sequência era só uma questão mecânica. A anedota diz que uma
aposta feita por Leland Stanford o levou a contratar o fotógrafo Eadweard
Muybridge: ele queria provar que as quatro patas de um cavalo saíam do chão
simultaneamente durante o galope, o que Muybridge conseguiu demonstrar
usando 12 câmeras fotográficas dispostas em sequência e disparadas pelas patas
do cavalo através de fios. Mas seu principal mérito técnico foi o de aperfeiçoar
o obturador da câmera, permitindo o fatiamento de instantes de até 1/2000
segundo (CLEGG, 2007). Uma vez domada a técnica, Muybridge seguiu fazendo
dezenas de estudos do movimento humano e animal, que se estabeleceram entre
as primeiras imagens em movimento manufaturadas.
Seu trabalho influenciou o invento do cinematógrafo de Thomas Edison e
Louis Le Prince, mesmo que esse invento tivesse um funcionamento muito diferente.
As câmeras e projetores de cinema acabaram utilizando outro mecanismo de
escape medieval: a roda de genebra, ou cruz de malta. Ela é composta de dois
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 57

elementos: a lua, roda que gira continuamente, alimentada por uma manivela
ou motor; e a estrela, que a cada volta da lua avança um quarto de círculo. Entre
um avanço e outro, o dente fica 1/48 segundo parado, permitindo congelar um
instante – que não é mínimo, como se nota pelos artefatos de motion blur, mas que
permite criar esses pedaços discretos de tempo (BICKFORD, 1972).

Esquema da cruz de genebra. (CC-BY-SA) Booyabazooka.


Fonte: <en.wikipedia.org/wiki/Geneva_drive#/media/File:Geneva_drive.svg>.

No auge da revolução industrial, em paralelo ao desenvolvimento da


fotografia e do cinema, um outro dispositivo de tempo foi criado. A máquina de
costura utiliza mecanismo parecido ao da cruz de malta: a cada volta do motor, o
tecido congela um instante, um nó é feito, e a roupa pode avançar um pouco mais.
O resultado é parecido: um rastro de instantes, criados a partir da linha infinita do
tempo. Fotogramas costurados numa superfície linear, carreteis, bobinas e laços.
A afinidade entre essas máquinas não passou despercebida para o cineasta
austríaco Hans Scheugl. Em 1968, ele propõe o filme ZZZ: Hamburg Special, onde,
em lugar da película 16mm, um fio de costura é conduzido pelas engrenagens
de um projetor de cinema (SCHEUGL). A linha, com suas texturas e fiapos, é
projetada em tamanho ampliado na tela. O congelamento de cada fiapo, feito
pela roda de genebra, cria um cinema têxtil, costurado pelas retinas. O fio se torna
eixo e representação do tempo, duas dimensões em uma imagem projetada em
outras duas dimensões.
No plano do registro das imagens, a emulsão fotográfica também não é uma
representação contínua. O limite da superfície sensível química são os grãos,
que afinal de contas também são elementos individuais de armazenamento
de informação visual. Na passagem para o digital, a diferença – em termos
de densidade de elementos – é que os pixels estão organizados em uma grade
cartesiana, enquanto os grãos são dispostos caoticamente (CUBITT, 2014, p.
103-106). Mesmo a quantidade de pixels por área nos sensores deve alcançar em
breve a resolução dos grãos de prata das emulsões.
58 cinema apesar da imagem

Filme 16mm da Marinha Americana. Domínio Público. Foto de Cmacd123.


Fonte: <commons.wikimedia.org/wiki/File:USN16mmSoundtrack.jpg#/media/File:USN16mmSoundtrack.jpg>

(CC) Bruno Vianna.

Mas se, na superfície sensível, a discretização do mundo segue imperando,


já há indícios de que no suporte numérico o tempo venha a ser representado de
maneira menos estanque. No que parece ser uma contradição – já que em última
instância a informação digital é armazenada em elementos discretos – , alguns
algoritmos de compressão, tais como o H.264, não representam a passagem do
tempo somente em quadros completos que se referem só ao instante capturado.
Para otimizar o espaço de armazenamento, as técnicas de compressão utilizam
fotogramas “P”, onde elementos que se repetem entre um quadro e outro são
guardados apenas uma vez – o cenário de um telejornal, por exemplo. A imagem
não está mais contida entre quatro linhas de uma moldura; ela vaza para frente
e para trás no tempo, contaminando fotogramas com elementos que pertencem
a outros instantes. Nos sensores eletrônicos de captura de imagem como CCD
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 59

(CC) Bruno Vianna.

e CMOS, a imagem não se forma de uma vez só, e sim linha a linha. Assim,
um fotograma representa um conjunto de momentos – cada um em uma linha,
tendendo a uma representação em uma dimensão espacial e outra temporal
(CUBITT, 2014, p. 246-253).
Num momento histórico em que as verdades absolutas são questionáveis,
onde os formatos de filmes e suportes da arte fazem cada vez menos sentido,
podemos também sonhar com uma imagem em movimento onde o tempo volte
a ser contínuo? Livres de metrônomos que ditam instantes de uma duração
arbitrária, e das linhas que limitam o quadro, que representações surgirão? Um
cinema do que está por vir deverá necessariamente transbordar dos confinamentos
espaciais e temporais do fotograma.

Referências
CLEGG, Brian. The Man Who Stopped Time: The Illuminating Story of Eadweard Muybridge:
Pioneer Photographer, Father of the Motion Picture, Murderer. EUA: Joseph Henry, 2007.

BICKFORD, John H. Mechanisms for intermittent motion. Nova York: Industrial Press, 1972.
Disponível em: <http://ebooks.library.cornell.edu/k/kmoddl/pdf/002_010.pdf>. Acesso em:
22/01/2015.

CUBITT, Sean. The Practice of Light. Cambridge: MIT, 2014.

SCHEUGL, Hans. zzz: hamburg special. Disponível em: <http://scheugl.org/website-von-hans-


scheugl-startseite/filme-von-hans-scheugl/zzz-hamburg-special>. Acesso em: 22/01/2015.
parte 2
filmes |
difusões
intermediários escorregadios:
expandindo conceitos sobre a
distribuição cinematográfica
virginia crisp
tradução gabriel menotti

Esse artigo trata da distribuição cinematográfica. Mais especificamente, ele


nos convida a compreender certos aspectos da distribuição, previamente distintos
e demarcados, como interconectados e inter-dependentes. Esse argumento é
desenvolvido por meio de uma discussão sobre aquilo que realmente constitui
a distribuição cinematográfica tanto em termos industriais quanto sociais, bem
como de que maneira a definição desse papel-chave sobre quais filmes são
disseminados globalmente precisa ser constantemente revisada e expandida de
modo a refletir transformações mais amplas na paisagem tecnológica, social e
midiática. Ao fazê-lo, defendemos a ideia de que não é preciso buscar por uma
definição final de “distribuição”, uma vez que as práticas que se reúnem sob essa
rubrica são por demais vastas e múltiplas para serem adequadamente descritas
por um único termo. Nesse sentido, precisamos expandir nosso vocabulário de
modo a incluir uma nova terminologia que nos possibilite fazer distinções entre
as diversas atividades de distribuição, sem cair na armadilha de tentar categorizar
as atividades de disseminação de um lado ou de outro de uma divisão binária.
Em suma, esse artigo explora o que a “distribuição” de filmes de fato significa,
bem como a forma como ela já foi considerada em termos tanto industriais quanto
acadêmicos. Trataremos especificamente da distribuição de filmes, ainda que
possamos admitir que as distinções entre o filme e os outros suportes da imagem
em movimento estão se desfazendo, e portanto se faz necessária uma abordagem
holística, capaz de examinar conjuntamente os modos formais e informais de
todas as formas de difusão midiática.
64 cinema apesar da imagem

Os gatekeepers invisíveis
As distribuidoras de filme agem como gatekeepers, separando produtores do
seu público potencial e em última instância moldando a nossa percepção da(s)
cultura(s) cinematográfica(s). Isso não quer dizer que formadores de opinião
como críticos, jornalistas, historiadores, espectadores e acadêmicos não atuem
no processo de formação daquilo que entendemos como um legado fílmico. Em
verdade, diversos agentes são capazes de contribuir para aquilo que constitui
o cânone cinematográfico. Não obstante, todos os juízos de qualidade e valor
sobre determinados filmes são em última instância restritos aos filmes que foram
realizados, e mais especificamente aqueles que tiveram a fortuna de conseguir
um contrato de distribuição. Como colocado de maneira eloquente por Julia
Knight e Peter Thomas, a distribuição é “o elo em grande medida invisível” entre
produção e exibição, que até agora atraiu pouco interesse acadêmico (2008, p.
354). Considerando a influência que as distribuidoras podem ter na definição de
quais filmes são vistos, onde, quando e por quem, a falta de um corpus coerente
sobre a área é ao mesmo tempo surpreendente e digna de resposta.
Com isso, não buscamos sugerir que a distribuição cinematográfica não
tenha sido objeto de investigação acadêmica, mas sim que tais intervenções
no estudo da disseminação de filmes tenham sido visões parciais, que focavam
certos aspectos da indústria cinematográfica enquanto acabavam negligenciando
outros.1 Já houve, por exemplo, importantes pesquisas sobre o modo como
Hollywood manteve sua posição privilegiada na indústria cinematográfica por
meio do poder que exerce sobre os canais de distribuição. Como apontado por
Toby Miller et.al., os grandes estúdios e as maiores produtoras independentes
mantêm controle sobre a indústria cinematográfica global negociando dinâmicas
de exibição com distribuidoras associadas, de modo que um terço dos custos de
produção seja coberto independentemente do sucesso que um filme venha ou não
a fazer nas bilheterias (2004, p. 296). De fato, é a integração vertical do sistema
de Hollywood – segundo a qual toda produção, distribuição e exibição dos filmes
são operacionalizadas por um mesmo conjunto de corporações multinacionais
– que permite aos estúdios americanos manterem seu domínio sobre a indústria
cinematográfica global. De acordo com o economista da comunicação Gillian
Doyle, essa é uma das principais razões pelas quais realizadores independentes
têm problema para conseguir exibir seus filmes (2002, p. 113).

1. Para uma discussão detalhada dessa questão, ver o trabalho de Alisa Perren (2013)
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 65

O controle que Hollywood exerce sobre os canais de distribuição global


produz a impressão de que ela também se trata de um centro global de produção,
quando a realidade é bem diferente. Um relatório do Instituto de Estatísticas
da Unesco (2012, p. 8) demonstrou que, a cada ano, India e Nigéria produzem
mais filmes que os EUA, muito embora Hollywood ainda domine as bilheterias
de todo o mundo. Esse fato é particularmente alarmante quando percebemos a
proeminência estatística de apenas um punhado de empresas. Se tomarmos o
Reino Unido como um exemplo, percebemos que, em 2010, de acordo com o BFI
Statistical Yearbook, “as dez maiores distribuidoras dominavam 94% do mercado”
(2011, p. 71).2 Essa fatia do mercado britânico flutuou entre 92 e 97% de 2004 a
2010 (2011, p. 78), demonstrando que não se trata de um boom repentino, mas sim
de uma tendência consistente. Isso sugere que um pequeno grupo de corporações
multinacionais controla as decisões a respeito de quais filmes são amplamente
distribuídos e quais não o são. Existe uma competição ferrenha sobre o controle
dos canais formais de distribuição. Isso motivou teóricos como Sean Cubitt a
sugerir que associar pirataria com formas de criminalidade como o terrorismo
e o tráfico de pessoas seria parte de um “extremismo por meio do qual o acesso
privilegiado aos meios de distribuição é protegido” (2005, p. 207). Em verdade, o
cerne dos conflitos antipirataria não é o controle do lucro, mas sim dos canais de
distribuição que propiciam esse lucro.
Logo, por mais que a distribuição assuma diversas formas (legais e ilegais), e
ainda que esses métodos de disseminação estejam intimamente conectados, existe
uma carência de estudos que examinem a natureza da relação entre a distribuição
cinematográfica profissional e a pirataria de filmes. Muito embora a literatura
corrente tenha focado a distribuição profissional e a “pirataria” como fenômenos
distintos, eu gostaria de sugerir que precisamos examinar os múltiplos modos e
práticas de disseminação audiovisual conjuntamente, de modo a considerar uma
ecologia de distribuição mais ampla.
Até aqui, as discussões acadêmicas sobre distribuição cinematográfica
estiveram polarizadas entre análises da “indústria” de um lado e da “pirataria” de
outro. Entretanto, essa abordagem binária não apenas apresenta tais atividades
como antagônicas e em oposição, como também fracassa em reconhecer a
diversidade de práticas de distribuição presentes no que podemos (com certa

2. Essas distribuidoras são (em ordem de predominância porcentual): Warner Bros, 20th
Century Fox, Paramount, Walt Disney, Universal, Sony Pictures, One Films, Lions Gate,
Entertainment e Optimum.
66 cinema apesar da imagem

hesitação) nos referir como setores legais e ilegais da distribuição cinematográfica.


Um pequeno corpus bibliográfico tende a se concentrar na dominação de
Hollywood, e frequentemente ignora o papel de distribuidoras “independentes”.
Ao mesmo tempo, os estudos sobre pirataria digital adotam um foco muito restrito,
se preocupando em estabelecer de uma vez por todas se tais práticas são benéficas
ou prejudiciais para a indústria (ver SMITH & TELANG, 2008)
Essas pesquisas deixam de reconhecer que a pirataria e o compartilhamento
de arquivos não são atividades homogêneas, baseadas em um conjunto unificado
de motivações, e que resultam num conjunto igualmente previsível de resultados.
O campo também favorece estudos que tentam estabelecer os motivos dos
“piratas”, de modo que eles possam ser forçados ou persuadidos a interromper
suas atividades (ver PODOSHEN, 2008; WINGROVE ET AL., 2011).
Essa dupla preocupação domina o debate, deixando pouco espaço para
trabalhos sobre os aspectos sociais e culturais do compartilhamento de arquivos
e da pirataria – assuntos que só foram examinados em alguns raros estudos
(CENITE ET AL., 2009; CONDRY, 2004; HUANG, 2003). Ao contrário de
estudos anteriores, esse artigo não está preocupado em provar ou refutar os custos
econômicos da pirataria cinematográfica (ou de qualquer outra commodity cultural).
Em vez disso, nas páginas seguintes, as atividades piratas aparecerão como parte
de um conjunto mais amplo de processos culturais e sociais de distribuição
cinematográfica. Tendo isso em mente, precisamos ampliar nossa compreensão
sobre o que constitui a “distribuição” de filmes.

Distribuição cinematográfica: um termo escorregadio


Toda discussão sobre distribuição cinematográfica precisa partir do
princípio de que o termo “distribuidora”, quando aplicado à indústria
cinematográfica internacional, é na melhor das hipóteses enganoso – e, na pior,
completamente impróprio. Como sugerido por Paul McDonald, ainda que o
termo seja frequentemente utilizado para designar aqueles que detêm os direitos à
propriedade intelectual de determinado filme, “essas companhias não costumam
cuidar do transporte físico das unidades aos vendedores e locadores” (2007, p.
5). Portanto, McDonald acata a idéia de Harold Vogel (2001, p. 467), segundo a
qual seria mais adequado designar tais companhias como “editoras” [publishers],
em vez de distribuidoras em um sentido logístico. Na indústria cinematográfica,
as distribuidoras fazem muito mais do que simplesmente facilitar o transporte
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 67

do filme aos espectadores. Por vezes, elas definem “quem será capaz de ver
filmes, em quais circunstâncias, e por quê” (Lobato, 2007, p. 113). Nesse sentido,
parece necessário explorar a fundo o que a distribuição implicaria no contexto da
indústria cinematográfica global.
Também não podemos ignorar que, atualmente, o significado de
“distribuição” está sendo desestabilizado e contestado por práticas informais em
todo o mundo: desde a falsificação de DVDs que são negociados em mercados
de rua, até o compartilhamento de arquivos de filmes nas redes. Embora se
diga que todas essas atividades ameaçam a saúde e a rentabilidade da indústria
cinematográfica, ainda mais significativo é o questionamento que elas levantam
sobre o que efetivamente constitui a distribuição de filmes e quem podemos
identificar como distribuidores. Ainda que Hollywood permaneça de certa forma
dominante, o seu controle sobre a circulação de filmes já não é, e quiçá nunca
tenha sido, absoluto. Cubitt aponta, por exemplo, para o fato de que fluxos
alternativos de distribuição, operados por comunidades de fãs, organizações
voluntárias e diásporas, tenham existido junto ao “mercado” da mídia de massa
por algum tempo (2005, p. 207). Dina Iordanova, por sua vez, coloca em questão
o domínio de Hollywood sobre o mercado cinematográfico global, sugerindo que
filmes mais “periféricos” estejam sendo realizados e assistidos devido ao crescente
predomínio de canais de distribuição alternativos (2010, p. 24). Iordanova sugere
que “na maior parte dos casos, se enfoca um único canal de distribuição que,
por motivos de conveniência, é removido de seu contexto complexo” (Iordanova,
2010, p. 25). Isso resulta numa visão limitada de uma ecologia de distribuição
mais ampla. Ela argumenta que precisamos parar de olhar para os canais de
distribuição como entidades discretas, se queremos formar um quadro total de
como os filmes circulam transnacionalmente.
Essa é uma convocatória importante, mas que ainda não foi universalmente
abraçada pelos estudos críticos a respeito de distribuição cinematográfica. Uma
notável exceção é o livro Film Cultures (2002), de Janet Harbord, que fornece
um exame detalhado dos lugares de distribuição, exibição, competição oficial e
marketing, onde a autora sugere que o valor do filme seja criado. Entretanto,
ainda que evite as armadilhas que preocupam Iordanova, o trabalho de Harbord
não considera métodos de disseminação que existem fora dos lugares formais
sancionados pela indústria cinematográfica (i.e. pirataria). Um estudo que se
dispõe a romper essa fronteira é o artigo de Janet Wasko no livro The New Media
Book, de 2002, onde se discute distribuição tradicional, pirataria, e novas formas
68 cinema apesar da imagem

de distribuição digital. Wasko aponta que, por mais que a tecnologia esteja se
transformando rapidamente, ainda é incerto qual será o futuro da distribuição e
da exibição digitais (2002, p. 195). Mais de uma década depois, a situação ainda
parece indefinida.
Nesse contexto de transformações digitais, numa era em que as fronteiras
entre produtores, distribuidores e consumidores estão se tornando borradas, o
que podemos dizer que seja a distribuição de filmes, e como podemos definir o
que são as distribuidoras? Em termos gerais, a distribuição cinematográfica pode
ser compreendida como o espaço entre produção e exibição, onde são realizadas
negociações de modo a assegurar o lançamento de um filme nas salas de cinema
e/ou organizar o lançamento de cópias físicas do filme para o consumidor final,
seja em DVD ou, mais recentemente, Blu-Ray. Não obstante, essa definição
preliminar só dá conta de uma parte da história. Ainda que uma compreensão
cotidiana da distribuição cinematográfica automaticamente traga à nossa mente
as companhias que operam num determinado filão da indústria, uma definição
mais crítica precisa examinar uma gama de outras atividades às quais o termo
pode ser aplicado. A situação suscita uma questão: deveria o termo “distribuição
cinematográfica” se referir especificamente a um ramo específico da indústria, ou
seria ele capaz de descrever todos os processos pelos quais um filme é disseminado
ao redor do mundo?
Em resposta, gostaria de propor que a distribuição cinematográfica é mais
do que um elo numa cadeia institucional que facilita a remessa de produtos dos
produtores aos consumidores. Além disso, do mesmo modo que a exibição de
filmes compreende muito mais do que simplesmente a projeção do último blockbuster
em um multiplex local, a distribuição precisa ser encarada como uma atividade
múltipla dentro da própria indústria cinematográfica. A distribuição comercial
pode incluir, sem necessariamente ser reduzida a, a atividade de pequenos
comerciantes; companhias independentes; distribuidoras “independentes”
semiautônomas, ligadas aos grandes estúdios; distribuidoras que, mesmo depois
de serem adquiridas por grandes corporações, continuam a fazer comércio sob sua
própria marca; e os ramos de distribuição dos próprios estúdios hollywoodianos.
Mas a distribuição não constitui apenas uma atividade profissional e comercial.
Se levamos em conta todos os modos como os filmes circulam globalmente, então
o foco nas companhias distribuidoras só será capaz de contar parte da história. A
distribuição também é facilitada por uma diversidade de redes alternativas que se
prestam à circulação de cópias tanto físicas quanto virtuais de filmes por todo o
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 69

mundo. Tais redes podem incluir a pirataria global organizada de DVDs; as redes
de compartilhamento de arquivos; a troca de DVDs em cineclubes; e mesmo o
empréstimo entre amigos. Ainda que todas essas atividades possam se enquadrar
sob a rubrica de “distribuição”, elas constituem atividades extremamente diversas
que precisam ser tratadas como entidades distintas, mesmo que interconectadas.
Decidir quais termos podem descrever de maneira adequada a natureza
de certos tipos de distribuição não é uma tarefa simples. Qual expressão poderia
ser utilizada para descrever aqueles agentes que compram os direitos de filmes
estrangeiros como parte de seu trabalho numa companhia de distribuição
cinematográfica profissional e comercialmente reconhecida? De certa maneira,
o termo comercial parece apropriado, mas ele também pode implicar que essa
atividade visaria principalmente ao lucro – uma ideia que poderia ser debatida. Nesse
sentido, o termo profissional pode ser uma alternativa, a menos que consideremos
seu antônimo natural, o amador. Embora eu mesma já tenha utilizado a expressão
“profissional” para produzir uma aliteração com a palavra “piratas” no título de meu
livro, existem diversos motivos para rejeitar o termo. Em primeiro lugar, porque ele
implica que quem quer que esteja do outro lado da moeda seria um não-profissional,
que realiza um trabalho inferior. Esse artigo (bem como minha pesquisa como um
todo) busca evitar a armadilha de posicionar as pessoas engajadas voluntariamente
em práticas de distribuição on-line como se fossem menos informadas do que aquelas
que recebem algum tipo de pagamento por essa tarefa.
Além disso, reforçar um contraste entre práticas “profissionais” e “amadoras”
é problemático. Assim como “fã”, um termo que nunca “escapou completamente
de suas primeiras conotações, ligadas ao fanatismo religioso e político, às falsas
crenças, aos excessos bacânticos, possessão e loucura” (JENKINS, 1992, p. 12), a
palavra “amador” é popularmente compreendida de maneira pejorativa. Diferente
do aficionado e do connoisseur, o amador é frequentemente considerado alguém que,
por definição, não é bom o bastante para ser um profissional – afinal, uma pessoa
com bastante conhecimento e perícia num determinado campo deveria estar
ganhando alguma recompensa financeira por isso, certo? Finalmente, a dicotomia
entre profissionais e amadores situa a discussão numa dimensão essencialmente
financeira. Em outras palavras, a opção por esses termos nos leva a compreender
a atividade das distribuidoras primeiramente em relação à remuneração que elas
recebem por seu trabalho – uma classificação que valeria a pena evitar.
Considerando o peso atrelado aos termos supracitados, poderíamos preferir
uma distinção entre modos de distribuição “formais” e “informais”, baseada
70 cinema apesar da imagem

no trabalho de Ramon Lobato (2007, p. 113). Essa terminologia, ainda que


imperfeita, reflete o fato que certos canais de distribuição são reconhecidos e
valorizados, enquanto outros não o são. De acordo com a definição de Lobato,
o formal está situado no campo da economia formal, legalmente sancionada, da qual
extraímos estatísticas e tendências sobre distribuição, enquanto o informal engloba as
zonas cinzas (mercados secundários, trocas ponto a ponto domésticas) (2007, p. 33).

Nesse sentido, formal se refere à distribuição “tradicional”: à cadeia de


lançamento que começa numa sala de cinema e passa daí para a venda e o
aluguel de DVDs e Blu-rays, antes de cair nos canais de pay-per-view, transmissão
por satélite ou cabo, até que o filme seja finalmente disponibilizado na TV
aberta (HENNIG-THURAU ET AL., 2007, p. 63) theaters, home video, video
on demand. Nesse modelo tradicional de distribuição, “os estúdios controlam o
lucro das bilheterias por meio do lançamento coordenado dos filmes em salas de
cinema, para somente depois direcioná-los por uma sequência inflexível de janelas
de exibição hierarquicamente ordenadas” (IORDANOVA E CUNNINGHAM,
2012, p. 1). Essa definição se aplica ao sistema empregado pelos estúdios de
Hollywood, no qual uma distribuidora se vincula a um projeto de realização desde
a confecção do roteiro, e frequentemente auxilia na captação de recursos para o
filme. Nesse contexto, a distribuidora detem um amplo poder que nos permite
afirmar que “mais do que um setor da indústria cinematográfica ou um conjunto
de procedimentos técnicos, a distribuição engloba a regulação, o fornecimento
e a interdição de conteúdos audiovisuais – ela envolve poder cultural e controle
cultural” (LOBATO, 2006, p. 170).
Não obstante, essa compreensão de um modelo de distribuição formal
parece muito distante de vários tipos de práticas de distribuição que se dão fora
de Hollywood. Muitas distribuidoras especializadas independentes adquirem os
direitos para distribuir um filme em mercados estrangeiros somente muito tempo
depois que o filme tenha sido finalizado e exibido nos cinemas de seu país de origem.
Nesse contexto, a distribuição formal poderia ser entendida como “o momento
em que os produtores de um filme firmam contrato com as distribuidoras para
o lançamento em certos territórios” (IORDANOVA E CUNNINGHAM, 2012,
p. 4). Alguns filmes terão exibição limitada nos cinemas, mas frequentemente
serão lançados diretamente em DVD (ou, mais recentemente, Blu-ray). Logo, à
distribuição formal também concerne a aquisição de direitos legais para a exibição
de um filme no cinema e/ou a produção de cópias em DVD/Blu-ray para venda
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 71

em determinado território (normalmente por um determinado período de tempo).


Já a distribuição informal é mais difícil de definir, ainda mais quando a
proliferação de meios de disseminação cinematográfica se encontra facilitada
pelo intenso desenvolvimento tecnológico das indústrias audiovisuais. Nas
suas primeiras pesquisas, Lobato se refere aos canais informais de distribuição
como “subcinema”, que seria “uma maneira frouxa de conceituar certas formas
de cultura cinematográfica que seriam incompatíveis com paradigmas mais
familiares [ênfase no original]” (LOBATO, 2007, p. 114). Dentro dessa categoria,
se encontrariam “lançamentos em home vídeo, telefilmes, mercados de filmes cult,
mídia diaspórica, [...] ‘Nollywood’, pornografia, filmes para interesses específicos”
e também pirataria (LOBATO, 2007, p. 114). Dessa forma, o termo “informal”
conseguiria capturar uma ampla diversidade de práticas e comportamentos sem
amalgamá-los sob a rubrica da pirataria.
O uso do termo pirataria ainda é problemático porque, no contexto das
indústrias culturais e da propriedade intelectual, ele continua a ser mobilizado
entusiasticamente para dar suporte a uma determinada agenda corporativa.
O termo repercute de maneira negativa, servindo de base para afirmações da
indústria cinematográfica segundo as quais tanto a sua sobrevivência quanto o
futuro da criatividade estariam sendo colocados em risco por piratas que lucram
com o trabalho simbólico alheio. Para complicar, o termo não consegue descrever
de maneira adequada o tipo de apropriação e compartilhamento de material
digital que se dá em comunidades on-line.
Entretanto, ainda que as classificações de Lobato nos ajudem a suspender
a dicotomia entre legal e ilegal, elas também suscitam a questão se seria possível
(ou mesmo desejável) segmentar as práticas de distribuição em outra dicotomia,
ou alternativamente deveríamos adotar uma taxonomia mais complexa.
Essas disputas terminológicas sugerem que a adoção de uma definição única é
improvável e potencialmente inútil. A tentativa do próprio Lobato de cunhar
uma definição universal para distribuição resulta em “o movimento da mídia por
meio do tempo e do espaço” (LOBATO, 2007, p. 114). Ainda que certamente
inclusiva, essa definição me parece por demais vaga e nebulosa para ser
utilizada na prática. De todo modo, é improvável que Lobato tenha tido outra
intenção que não a de ilustrar o vasto número de atividades passíveis de serem
reunidas sob esse designador. Nesse sentido, eu gostaria de sugerir que, em vez
de continuarmos buscando termos únicos que apresentem definições definitivas,
abrangendo uma ampla gama de práticas de distribuição do passado, do presente
72 cinema apesar da imagem

e do futuro, deveríamos expandir o vocabulário existente, de modo a incluir


mais subcategorias de distribuição. De modo a fazê-lo, é necessário reconhecer
as limitações e suposições subjacentes a cada termo, para que suas associações
possam ser reconhecidas e tornadas visíveis.

Dos filmes aos arquivos


Um exemplo de expressão ubíqua cujo uso e conotações precisariam ser
mais cuidadosamente examinados é “compartilhamento de arquivos”. Esse termo
coloca ênfase no aspecto de “compartilhamento” da redistribuição pela internet
de conteúdo protegido por direito autoral, sem considerar as diferenças entre os
vários tipos de mídia que circulam on-line. Enquanto a ideia de compartilhamento
de arquivos pode ser facilmente aplicada à circulação on-line de arquivos de música,
não é tão simples aplicá-la à disseminação de filmes. Isso porque é relativamente
simples colocar um CD num computador e converter os arquivos extraídos para o
formato MP3, enquanto é necessário um certo tipo de conhecimento especializado
para burlar as proteções de cópias dos DVDs, quanto mais compartilhá-los on-line.
A ênfase no compartilhamento também ignora o fato de que aqueles que se beneficiam
das redes de troca de arquivo não contribuem necessariamente para o crescimento
da coleção de conteúdos disponíveis – eles podem estar simplesmente parasitando
[leeching]3 sem compartilhar nenhum dos conteúdos que tenham baixado. Além disso,
a expressão “compartilhamento de arquivos” enfatiza o papel do indivíduo tanto
como consumidor quanto distribuidor de conteúdo, desconsiderando os níveis de
gatekeeping que esta autora encontrou operando nas redes peer-to-peer. Finalmente, como
buscarei examinar nos parágrafos seguintes, diversas formas de “compartilhamento”
são encontradas mesmo nas comunidades peer-to-peer especializadas. Portanto, na
medida em que é utilizado nesse artigo, o termo “compartilhamento de arquivos”
implica que nem todos envolvidos nessa prática são simultaneamente consumidores
e distribuidores em igual medida, nem estão necessariamente comprometidos com
a noção de “compartilhamento” ao se engajarem em tais atividades.

3. Leeching é um termo comumente utilizado para alguém que baixa um arquivo de uma
rede p2p mas opta por não continuar compartilhando-o com outros usuários ao fim desse
processo. Vários softwares p2p possuem opções que permitem ao usuário definir se os
arquivos que estão no seu próprio computador serão disponibilizados aos outros. Nesse
sentido, os indíviduos que baixam arquivos de fóruns de compartilhamento não estão
automaticamente nem tecnologicamente obrigados a compartilhar esses arquivos com a
comunidade. Para vários grupos, o leeching é considerado um comportamento antissocial.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 73

Apesar desses problemas, o termo “compartilhamento de arquivos” nos


lembra que os artefatos que chamamos de “filmes” cada vez mais circulam como
“arquivos”. Conforme os realizadores ao redor do mundo abandonam a película
(querendo ou não), filmes são cada vez mais produzidos utilizando outros meios
que não “filme”. Ainda que esse processo de digitalização esteja sendo levado a
cabo ao longo de muitos anos, existem repercussões que só agora estão se fazendo
sentir no modo como os filmes são capazes de circular. Da mesma maneira que o
VHS encabeçou uma revolução que libertou os espectadores dos grilhões da sala
de cinema, o processo de digitalização permite que os filmes sejam experimentados
não apenas no conforto do lar, mas em praticamente qualquer lugar. No momento
em que escrevo esse texto, esse fato não é nenhuma novidade. Não obstante, ele
levou a uma crise terminológica e ontológica. Em outras palavras, o que queremos
dizer quando empregamos o termo “filme”?
Agora que os filmes não são mais registrados em película de celu-lóide e
o seu transporte se dá cada vez mais em formatos digitais, não seria possível
substituir a palavra “filme” pela palavra “arquivo”? A resposta é “não”, pelas
mais diversas razões. Em primeiro lugar, porque livros, programas de TV, jogos
de computador e a maior parte dos conteúdos midiáticos são armazenados em
formato digital como “arquivos”. Por isso, a ideia de “arquivos” não captura as
especificidades de nenhum desses meios. Além disso, tal mudança terminológica
seria desnecessária porque, num nível cotidiano, a definição de “filme” não
configura uma tarefa acadêmica tortuosa. Para muitas pessoas, filme não é um
conceito vago, escorregadio ou nebuloso. Ele é facilmente compreendido como
uma série de imagens em movimento reunidas para nos divertir, informar ou
entreter em casa, no cinema, num iPad ou mesmo num telefone celular. Eu
diria que a população em geral não está preocupada em redefinir o seu próprio
entendimento do que seria o “filme” e o “cinema” simplesmente porque esses
termos são tecnicamente impróprios. O conceito de “filme” existe na cabeça dos
espectadores na mesma medida em que o seu significado definitivo continuará
escapando ao estudioso de sua ontologia. Apesar dessas questões, o “filme”
continua existindo. O debate teórico acerca do que significa filme, ou mesmo
cinema, fracassa em reconhecer que, em certa medida, esses conceitos são criados
na mente da audiência, e não por decretos dos pesquisadores. Os cinemas (como
estruturas físicas) continuam a existir, e em certos casos a prosperar. Os filmes,
quer em película, quer em formato digital, continuam a ser produzidos. Ainda
que a experiência cinematográfica possa ser expandida para incluir os extras do
74 cinema apesar da imagem

DVD, o merchandising, as resenhas, os brinquedos de parques temáticos, etc, a


audiência ainda é capaz de identificar o “filme” em meio a todo esse universo que
o circunda. Em outras palavras, nossas experiências e entendimentos do filme ou
do cinema não estão sendo substituídas, mas expandidas.

Expandindo o léxico: distribuição autônoma e intermediária


No espírito de contribuir para a expansão da linguagem necessária para
descrever de maneira precisa a diversidade de práticas de distribuição que se dão
tanto em contextos formais quanto informais, proponho introduzir novos termos
em nossa discussão. A partir de minha própria pesquisa sobre formas particulares
de distribuição on-line, relativas ao “compartilhamento” de filmes em fóruns
fechados, especializados em certas formas de cinema, pude identificar distinções
entre alguns tipos de distribuição (CRISP, 2015). Optei por designá-los como
distribuição “autônoma” e “intermediária”.
Nos contextos que examinei, a distribuição autônoma parte de um indivíduo
que adquire (legal ou ilegalmente) a cópia de um filme, que ele (geralmente, mas
nem sempre) codifica e/ou legenda de modo a poder compartilhá-la, por meio
de um sistema peer-to-peer, em um determinado fórum de compartilhamento de
arquivos. Designei tais atividades como “autônomas” porque o grosso do trabalho
é desempenhado por um indivíduo (e não por um grupo) que não é um membro
típico da Cena [Scene]. “A Cena”, nesse contexto, se refere a um modo organizado
de compartilhamento de arquivos que envolve a reunião de indivíduos em
“grupos de lançamento” [release groups], de forma a dividir entre eles as diversas
atividades envolvidas nesse processo (LASICA, 2005). Grupos de lançamento
normalmente possuem nomes e se especializam em determinados meios e/ou
gêneros. Distribuidores autônomos, por sua vez, usam critérios de lançamento
muito mais arbitrários e pessoais. Ainda que suas atividades estejam inseridas
numa comunidade, eles só contam com a colaboração alheia para tarefas muito
específicas (como legendagem) (CRISP, 2015).
Já o termo “distribuição intermediária” pode ser usado para se referir aos
lançamentos da Cena realizados nesses mesmos fóruns por um “intermediário”.
Esses intermediários não costumam ser membros do grupo de lançamento original,
mas teriam adquirido o link para uma cópia do filme em algum outro lugar, que
subsequentemente compartilhariam com o fórum do qual participam. Em outras
palavras, esses distribuidores não teriam sido responsáveis por adquirirem a fonte
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 75

original do conteúdo nem teriam participado do seu processo de codificação e


legendagem para o lançamento on-line. Logo, ainda que desempenhem um papel
na curadoria de arquivos disponíveis naquela comunidade específica, eles não
aumentam a variedade de filmes disponíveis nas redes de compartilhamento como
um todo. Sua atividade é distinta tanto daquela dos distribuidores autônomos
quanto daquela dos grupos de lançamento, e precisa ser identificada como tal.
O que essa breve introdução busca demonstrar é que, ainda que esses
dois tipos de distribuição on-line possam 1) caber dentro da definição de Lobato
para “informal”, 2) se enquadrar na definição técnica de compartilhamento de
arquivos, e 3) ser igualmente considerados pirataria, eles configuram práticas
eminentemente distintas. Logo, mesmo dentro de comunidades relativamente
pequenas e especializadas, se fazem necessárias nuances para a compreensão
da diversidade de formas de distribuição. Uma terminologia mais detalhada nos
permitiria descrever e representar de maneira mais precisa as múltiplas formas de
disseminação que ocorrem nesses contextos.

Conclusão
Harbord sugere que “fora do cinema, o filme vem embrulhado em celofane
e empacotado em uma caixa plástica” (2007, p. 127) – mas basta que ele tenha
escapado do cinema e se objetificado na forma de uma propriedade tangível
para que o filme venha novamente a evaporar, ser reduzido a um arquivo, uma
codificação, a dados digitais que se proliferam em diversos formatos. O que
Harbord salienta é que “a busca pela ontologia do filme, as características do seu
modo de existência fundamental, é um exercício inútil” (2007, p. 144). Por isso,
talvez não devêssemos estar procurando pelo que é fundamental ou essencial,
mas sim contribuindo para um projeto mais amplo, capaz de examinar como
o filme está se expandindo e proliferando por novos espaços e assumindo novas
modalidades. Por mais que o esforço de “definir” o filme de uma vez por todas
possa ser em vão, o mapeamento de sua jornada e de suas trajetórias por novas
esferas não precisa ser. Como sugerido por Harbord, “atualmente, o método para
elaborar o paradigma acerca do que o filme faz deve ser um método aditivo, um
‘também’ e um ‘e’” (2007, p. 144). Nesse sentido, este artigo buscou examinar
alguns dos diversos modos pelos quais o filme circula, bem como o papel de
diversos indivíduos e grupos envolvidos nesse processo. Ao fazê-lo, eu defendi que,
da mesma forma que nossa definição de “filme”, nossa definição de “distribuição”
76 cinema apesar da imagem

também precisa ser expandida. Precisamos nos afastar dos significados que
dependem de dicotomias como legal/ilegal, profissional/amador, e mesmo
formal/informal. Em vez de aceitar as oposições implícitas em nossa terminologia
binária, precisamos produzir um léxico sobre as práticas de distribuição capaz de
capturar o “também” e o “e” ao qual Harbord se refere.

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formalidades da circulação
informal de cinema e os grupos
torrent cinéfilos
angela m. meili

Entende-se por circulação informal aquela que não participa diretamente


da cadeia econômica convencional, ao dispor de estratégias de relacionamento
com o público e com as obras que desobedecem às regulamentações comerciais
próprias dos mercados oficiais de distribuição. A circulação informal de filmes na
internet vem provocando uma ruptura de paradigmas na indústria do cinema, ao
criar um espaço de experiência dos conteúdos audiovisuais no qual audiências
piratas (DE SÁ, 2013) produzem sistemas paralelos distribuição, que interferem
diretamente nos imaginários culturais (LOBATO, 2012).
As ferramentas tecnológicas ampliam as possibilidades de distribuição e tendem
a satisfazer uma série de demandas do consumidor que não são contempladas
pelo mercado formal; ainda que este atinja uma dimensão relativamente massiva,
ela é insuficiente para a maioria da população global. Em outras palavras, a
pirataria, uma atividade originada no público, é motivada pela ineficiência dos
mercados centralizados e pela insatisfação quanto ao acesso desigual à cultura
(CHIANG e ASSANE, 2008), já que o mercado de filmes, tradicionalmente, tende
a ser centralizado, especialmente pelas grandes produtoras norte-americanas,
satisfazendo muito mais a interesses de lucro do que, propriamente, a um acesso
igualitário aos bens culturais, em qualquer classe ou localidade.
Atores informais criam estratégias para a atingir o público, dando visibilidade
a fontes mais heterogêneas de produção cinematográfica e atuando contra a

1. O leitor pode encontrar um desenvolvimento mais detalhado e outros exemplos desta


relação entre modelos de circulação formal e informal na tese que originou este trabalho
(cf. MEILI, 2015)
80 cinema apesar da imagem

obscuridade que ameaça muitas cinematografias mundo afora (CARDOSO,


CAETANO, et al., 2012). Se pensarmos sob o perspectiva pós-colonial, notamos
que a pirataria situa-se em um cenário historicamente marcado pela dominação
cultural, principalmente a do hemisfério norte sobre o hemisfério sul, onde a
maioria das culturas permanece silenciada e excluída dos centros culturais; ou
seja, grande parte das cinematografias permanece obscura para grande parte da
população, justamente porque a centralização do mercado a deixa isolada, sem
visibilidade ou mesmo sem possibilidade prática de disseminação.
O desenvolvimento de dispositivos tecnológicos de reprodução e exibição vem
facilitando o surgimento de formas alternativas de disseminação dos conteúdos,
abrandando significativamente a gran-de disparidade de acesso e visibilidade das
produções. Mas, para isso, precisa transgredir as regulamentações responsáveis,
conforme apontam Eckstein e Schwarz (2014), pelo controle da informação;
este depende e é preconizado pela premissa da propriedade intelectual, que
acaba funcionando como um obstáculo para a inclusão informacional. Assim, a
inclusão do público e das obras no cenário de trocas requer a informalidade e a
desobediência, requer a pirataria.
Certamente, a circulação informal ultrapassa as redes digitais e vem
muito antes delas, presente em todas as fases de desenvolvimento da indústria
cinematográfica, tendo apenas se acentuado e transformado com o progresso
tecnológico. De acordo com Gaines (2006), nas décadas iniciais do cinema, o
sistema de dstribuição dos filmes de 16mm era desorganizado e dependia de
grupos informais (comunidades, organizações políticas, clubes, etc.) para circular.
Segundo Lobato (2012), tanto o cinema amador quanto o cinema pornográfico
também sempre dependeram de circuitos alternativos. Nos anos 1980, com o
surgimento do home video, o volume da circulação informal aumentou muito e,
depois, ainda mais, com as tecnologias digitais e a internet.
Um filme entra nas redes informais a partir da gravação de uma exibição
ou transmissão, da cópia de mídia digital ou da digitalização de qualquer fonte
analógica. Depois, circula por meio de mídias físicas e das redes digitais, podendo,
ainda, ser exibido e retransmitido em outros canais. Ele pode ser vendido, alugado
ou doado, propagando-se através da possibilidade infinita da cópia e penetrando
nos mais diversos grupos sociais, a partir de atores diretamente engajados em uma
prática que é, sobretudo, desobediente.
A presença da pirataria de filmes nas redes digitais tornou-se expressiva somente
a partir dos anos 2000, devido à superação de limitações técnicas, como a pouca
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 81

largura de banda, a falta de modelos eficientes de compressão da imagem e do


som (MP3, MPEG-4, DivX, etc.) e a precariedade da experiência visual (tela, cores,
processamento, armazenamento). A partir desse período, ocorreu uma intensificação
das cópias domésticas em das mídias digitais (CDs e DVDs), gravadores caseiros,
sofisticação técnica do processamento digital de áudio e vídeo, que foram seguidos
da melhora da internet, dos monitores (que passaram a ser chamados de telas) e,
mais recentemente, da convergência entre a televisão e o computador.
Os operadores informais criam grandes redes, que se subdividem e se
especializam (BODÓ e LAKATOS, 2012), o que lhes permite produzir sistemas
de distribuição ágeis e heterogêneos. Esses sistemas de distribuição compreendem
diversos nichos culturais, no sentido do termo atribuído pelo esquema da cauda
longa, de Chris Anderson (2006), de modo que os sistemas dispõem de grande
quantidade e diversidade de conteúdo (gêneros, formatos e origens), atingindo
desde um público geral, até um público de interesse ou gosto especializado. Vale
ressaltar que o público, quando pensamos na distribuição informal, não está
contido dentro desses nichos, mas compõe-se de sujeitos que transitam entre eles.
A circulação informal na internet é diversificada, abrangente e massiva;
conforme Jonas Andersson (2012, p. 587), ao falar especialmente do
compartilhamento peer-to-peer, este pode ser pensado como uma utilidade de
massa, pois constrói repositórios vastíssimos e altamente conectados. Segundo o
autor, as associações peer-to-peer partem de uma dimensão colaborativa, ou seja, de
doação e envolvimento individual dentro de um projeto coletivo, mas ultrapassam-
na (devido ao número incontável de participantes), resultando na produção de
uma infraestrutura de larga escala, ou seja, uma ferramenta massiva que produz
superabundância de dados (ibid.).
A resiliência das ferramentas e processos envolvidos na circulação informal lhe
permite atuar como agente massivo de distribuição, que atinge mais facilmente uma
diversidade de público e localidades, sem ter que lidar com uma série de convenções
e impedimentos que os meios formais exigem, como regulamentações, licensas,
contratos, taxações, etc., produzindo, conforme apontam Gallio e Martina (2013),
novas lógicas entre os setores envolvidos com a produção e distribuição do produto
cinematográfico. Essas novas lógicas, fundamentalmente, dispõem de menor custo,
maior rapidez e maior personalização ao longo do caminho da distribuição.
Todos esses processos dependem da existência de um uso autônomo da
tecnologia por parte do público. O ambiente da circulação informal de vídeo
digital, além de ocorrer sobre uma malha tecnológica que tem sido construída
82 cinema apesar da imagem

pelos mais diversos agentes, também depende que o público se aproprie dessa
malha. Apropriar, no sentido da palavra, é fazer próprio, fazer do seu jeito.
Pegar uma ferramenta, linguagem ou solução tecnológica e utilizar para uma
função específica ou, ainda, produzir novos recursos a partir dos existentes. Há
várias formas de apropriação para cada tecnologia, que podem ser previstas
pelos seus criadores ou podem ser imprevisíveis, inovadoras. Pode-se dizer que
a maleabilidade do software possibilita que as tecnologias digitais sejam objetos
facilmente apropriáveis.
A apropriação, portanto, sempre vai gerar arranjos particulares, de modo
que, conforme nos lembra Schäfer (2011), toda função tecnológica tem também
um significado contextual. A tecnologia, sendo um nível abstrato de conhecimento,
é composta por elementos, níveis também abstratos, de possíveis relações e
automatismos entre forças, materiais, componentes e mecanismos lógicos, que,
unidos funcionalmente, em determinado momento e cadeia relacional, compõem
um aparelho, um objeto, uma individuação técnica (SIMONDON, 1980). Assim, o
conhecimento técnico e a atividade do operante garantem relativa autonomia no
domínio das ferramentas; ao mesmo tempo em que os automatismos encadeados
em certos processos e interfaces limitam a sua agência.
As muitas formas de apropriações tecnológicas alimentam a economia
de bens informacionais e tecnológicos, bem como desesta-bilizam os regimes
de propriedade intelectual (BENTLY, DAVIS e GINSBURG, 2010), gerando
circuitos marginais que, ao satisfazerem demandas, forçam o sistema econômico
a aceitá-las, convivendo com elas ou até mesmo incorporando-as. Nesse sentido
pode-se pensar na “guerra contra a pirataria” como uma causa perdida, pois o
cenário se desenvolve, conforme aponta Cox (2012, p. 10), tal qual uma corrida
de gato e rato, onde os agentes informais semprem encontram novas formas de
funcionar e desempenham um papel tão importante a ponto de desestabilizar
indústrias antigamente estabelecidas, modelos de negócio predominantes, sistemas
jurídicos e componentes culturais, simbólicos e linguísticos, além de alterarem
drasticamente o perfil do público. Tudo isso também interfere na produção de
novos modelos econômicos, estabelecendo relações entre o formal e o informal1.
De acordo com Chéneau-Loquay (2011), a informalidade tem sucesso justamente
devido à sua proximidade com os consumidores, pois, além de tornar o consumo
viável/acessível, também consegue se adaptar mais facilmente às suas necessidades,
tendendo a uma especialização maior dos conteúdos e recursos em relação aos
consumidores e às circunstâncias de consumo.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 83

Os Grupos de Torrent Privados e a formalidade da circulação


informal
A tecnologia BitTorrent foi criada como uma solução para o compartilhamento
descentralizado de arquivos digitais muito grandes, o que a tornou eficiente para
a transferência de filmes, jogos e softwares. O seu criador e principal desenvolvedor,
Bram Cohen, anunciou se tratar de um modelo adaptado ao audiovisual que, a
longo prazo, poderia concorrer diretamente com os métodos tradicionais. Trata-
se de uma tecnologia de transmissão capaz de um excelente aproveitamento
de banda (volume de transferência de dados), que não depende de um servidor
centralizado e é capaz de entregar conteúdo de alta qualidade, de forma barata
e personalizada. De acordo com Silva (2012, p. 86), o criador do BitTorrent
contribui com o “self-service globalizado” de bens midiáticos e investe no protocolo
P2P como uma empreitada de enfrentamento direto aos métodos tradicionais de
entrega, tornando-os obsoletos.
O BitTorrent é um protocolo de comunicação ponto a ponto que permite o
compartilhamento não linear de arquivos; estes são fragmentados e trocados em
pedaços2, de acordo com a disponibilidade dos peers. Os dados estão armazenados
e distribuídos em computadores pessoais de cada ponto que participa da troca
coletiva ou swarm3. O processo de compartilhamento se inicia quando um
arquivo no formato torrent é colocado em um servidor da internet, ele contém
informações sobre o arquivo (filme, música, jogo, etc.), duração, tamanho, a
informação criptográfica (que é responsável pela sua fragmentação e posterior
“recolagem”)4 e endereço do tracker (COHEN, 2003). O torrent é um arquivo feito
para as máquinas se comunicarem, que contém as informações básicas sobre os
arquivos compartilhados e um código único que define a sua identidade.
Os trackers podem ser públicos ou privados e são responsáveis por fazerem os
peers se encontrarem e conectarem, mantendo a busca de peers ativos; eles promovem
interações automáticas entre os usuários, são basicamente computadores que

2. Normalmente, de 1⁄4 de megabytes.


3. Termo utilizado para definir a situação de conexão entre todos os peers no processo
de troca conectados em um torrent específico. A tradução para o português pode
ser enxame, formigueiro, multidão.
4. Cada pequena parte é protegida por um “hash criptográfico” descrito no arquivo
de torrent que garante qualquer tipo de codificação nas partes que possa ser
identificada, seja ela acidental ou maliciosa. Esse tipo de codificação também
serve para garantir a autenticidade do arquivo.
84 cinema apesar da imagem

coordenam a distribuição, dizendo para cada peer onde está cada pedaço que deve
ser descarregado primeiro. Apesar de o mais comum ser cada torrent utilizar um
tracker, pode acontecer de cada torrent ter mais de um tracker (multitracking) e, ainda,
há casos de torrents sem um tracker central, estando essa função também distribuída
entre os peers, em sistemas ainda mais descentralizados (distributed hash table).
Normalmente, um tracker está vinculado a um indexador, mas não
necessariamente. A indexação dos arquivos de torrent (busca, ordenação e
armazenamento) ocorre de maneira independente ao tracker. A busca por torrents
pode ser feita em sites que oferecem o arquivo, em sites que promovem apenas
a busca entre os inexadores (metasearch), em alguns clientes BitTorrent, como o
Tribler e o BitComet e, ainda, via RSS Feed (broadcatching).
Os sites indexadores de torrent são bancos de dados acessíveis via navegador, em
que os arquivos podem ser obtidos. Eles consistem em uma estrutura informacional
que hospeda arquivos. Identificamos quatro tipos básicos de sites indexadores:
• abertos: não exigem senha ou registro; possuem conteúdo genérico, abrangendo
diversas categorias; não controlam a participação do usuário.
• privados: exigem registro, que pode ser feito apenas por meio de convites;
possuem conteúdo mais especializado; controlam a participação do usuário.
• indexadores de outros sites: agregam conteúdo de sites abertos e permitem a busca
em suas bases de dados.
• verificadores: indexam arquivos verificados provenientes de diversos sites abertos.

No universo dos indexadores torrent, há uma gama de desenvolvimentos


em termos de conteúdo e modos de organização. Enquanto os sites privados,
normalmente, priorizam tipos de conteúdo ou formato, os sites abertos são
mais diversos. O que aqui denominamos como grupos de torrent privados
(GTPs) refere-se aos indexadores fechados, que podem, ou não, corresponder a
trackers privados específicos. O relevante quanto aos GTPs é que, normalmente,
possuem catálogo extenso e variado de filmografias especializadas, sendo células
de distribuição altamente organizadas e orientadas para o conhecimento, que
expandem a experiência do público com o cinema.
Os GTPs representam um desdobramento possível da pirataria na
internet e desenvolvem um modo particular de apropriação das tecnologias de
armazenamento, transmissão e interação, que resultam em formas também
particulares de manipulação e consumo dos bens culturais. Conforme Mylonas
(2012), os GTPs são diferentes de sites abertos de torrent, como o The Pirate Bay,
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 85

porque se posicionam defensivamente com relação às instabilidades e ameaças da


internet (spams, hackers, usuários oportunistas, fiscalização autoral, entre outras).
Eles criam ambientes seguros e privados, formando comunidades que regulam as
trocas, são espaços de interação social, conhecimento técnico e produção coletiva
de acervo e conhecimento.

Site Site aberto


aberto GTPGTP
Menos
Menos especializado
especializado Mais
Mais especializado
especializado
MaisMais
grátisgrátis Menos
Menos grátis
grátis (exige
(exige cooperação)
cooperação)
Menos
Menos formal
Formal Mais
Mais formal
Formal (regras
(regras internas)
internas)
Tabela 1: Comparação entre sites abertos e fechados de torrent

A chamada principal de um site especializado em convites para GTPs, o


torrent-invites.com, apresenta o grupo como sendo fiel ao “verdadeiro sentido
do compartilhamento” e com o objetivo criar uma “comunidade de torrent
verdadeiramente global”, guiando o usuário ao “verdadeiramente secreto e
iluminado clube”. Nota-se um entusiasmo grande com relação ao universo
BitTorrent, onde o uso repetido da palavra “verdade” refere-se a um espectro
discursivo segundo o qual a comunidade coloca-se como representante legítima
de uma cultura da pirataria, cujos eixos ideológicos já estão estabelecidos e
compartilhados por um grupo seleto de pessoas. Sites dessa natureza apresentam-
se como articuladores que promovem ritos de passagens, que exigem engajamento
e conhecimento dos usuários para conquistarem o seu lugar em um mundo
de privilégios. O ambiente é de disponibilidade total, mas que não se adquire
facilmente, ela requer engajamento e pesquisa, uma postura ativa do espectador
que navega, negocia e participa dos grupos. Assim, a reprodutibilidade exacerbada
das interações peer-to-peer, ainda que atue diretamente contra a escassez, reinterpreta
a ideia de exclusividade no âmbito de comunidades fechadas e especializadas.
Um mundo de privilégios que se alicerça, paradoxalmente, na ideia de
acesso e bem comum, própria da cultura colaborativa ou da participação, que se
popularizou como uma promessa que incentivou a produção e consumo das novas
tecnologias e se transformou em um fenômeno emergente e central nas práticas de
mídia contemporâneas (SCHÄFER, 2011). A cultura da participação apresenta-
se como um solo comum para o desenvolvimento das ferramentas e interações
do mundo digital, ainda que – os GTPs, particularmente – sigam criando guetos
86 cinema apesar da imagem

e núcleos seletos. Nota-se uma articulação entre a noção de colaboração (bem


comum) e a de exclusividade. Mesmo que os GTPs criem zonas fechadas e dotadas
de alto rigor formal (regras, controle, organização), no fundo, eles estão diluídos
em uma grande massa interativa e colaborativa que é o espaço virtual.
Vale relembrar que os computadores foram, inicialmente, vendidos como
“máquinas para o conhecimento” (SCHÄFER, 2011) e o seu design foi altamente
influenciado pela promessa de participação, ou seja, de que qualquer pessoa poderia
contribuir, ser um agente de transformação e produção de conhecimento, sem a
necessária mediação de instituições legitimadoras, o que despertou o imaginário
de uma série de entusiastas tecnológicos ao longo das décadas. Ainda na década
de 1960, o criador do mouse, Douglas Engelbart, já pensava na interação homem-
máquina como uma oportunidade de “aumentar o intelecto” e, na década seguinte,
o filósofo Ted Nelson com o Projeto Xanadu (uma rede de computadores com
interface simples), já visionariamente pensava no que teria sido desenvolvido, mais
tarde, por Tim Berners-Lee, a world wide web. Conforme lembra Schäffer (2011),
para Ted Nelson, os computadores passariam a ser, ao longo do tempo, um aspecto
de tudo o que concerne à vida humana, defendendo que as pessoas deveriam
estar incluídas e integradas no desenvolvimento da computação, que, aos poucos,
começa a ser vista como uma tecnologia de comunicação. A realidade tecnológica,
sendo de natureza tanto simbólica quanto material, apresentou o desenvolvimento
da computação pessoal envolto em um imaginário: o da comunicação digital
libertadora, incluindo dimensões culturais e políticas.
A construção de soluções participativas da natureza dos GTPs não está livre
de regras, ou seja, acordos simbólicos, formalidades criadas com o intuito de fixar
diretrizes para um projeto coletivo, guiando o usuário para as formas possíveis de
contribuição, o que nos leva a considerar que esses espaços informais resultam
de uma formalização das interações. As regras internas de um GTP estabelecem
delimitações, ao mesmo tempo em que oferecem recursos para a participação.
Trata-se da formação de uma estrutura participativa que, de certa maneira,
institucionaliza o espaço informal, estabelecendo os mecanismos básicos para o
seu funcionamento. Assim, pode-se dizer que os GTPs são um modelo formal da
circulação informal.
Um exemplo do que podemos considerar como sendo um projeto coletivo
informal/formal (em GTPs), no sentido apontado acima, aparece em Carter
(2013), ao descrever o site Cinetorrent. Ainda que o autor não utilize a terminologia
aqui apresentada, notamos que o Cinetorrent segue esse modus operandi, especialmente
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 87

quando cria projetos colaborativos temáticos de pesquisa e coleção cinéfila, dos


quais o usuário pode participar, submetendo conteúdo sob regras específicas (o filme
deve ser difícil de encontrar, obscuro, tratando de temas cujo espírito combinaria
com os administradores). São projetos que resultam na e da formalização de uma
atividade participativa dada a partir de um acordo simbólico.
Conforme menciona Carter (ibid.), os membros do site não estão simplesmente
compartilhando conteúdo, mas atuando como trabalhadores que investem tempo
e conhecimento para a manutenção dessas redes informais. Grande parte das
regras, em comunidades fechadas, referem-se a como os usuários devem se
comportar, o quanto devem contribuir, a padronização e o tipo do conteúdo,
diversas especificidades técnicas, entre outros.
Desta maneira, a formalidade da circulação informal ocorre no agenciamento dos
suportes tecnológicos, da interação social e do banco de dados. É o que Schäfer
(2011) aponta como o material-digital, uma relação dependente entre discursos,
apropriação social e design tecnológico, um caso em que as linhas que separam
objetos, ações e atores é difícil de desenhar, pois estão hibridizadas em recursos
tecnológicos, configuração de software e interface de usuário.
Os GTPs organizam-se por meio de fóruns em páginas da internet e salas de
bate-papo (normalmente via protocolo Internet Relay Chat).5 Uma das formas
mais comuns de agregação dos GTPs é por meio de fóruns gerais, especialmente os
fóruns de convites. Os fóruns de convites são sites destinados a articular a comunidade
BitTorrent, funcionando como uma porta de entrada para um universo que é
intrincado por mediações formais e reguladas, compostas por regras e linguagens
específicas, sejam elas técnicas ou mesmo éticas, incluindo a grande utilização
de siglas e termos técnicos, além da necessidade de se conhecer e participar de
procedimentos específicos de interação/colaboração. No Torrent-invites.com, por
exemplo, apenas para para habilitar o perfil de um usuário para ganhar convites,
deve-se seguir um ranking de participação, que utiliza termos relacionados a
processos bastante específicos que, na maioria das vezes, não são explicados
claramente para o iniciante e exigem uma imersão do usuário naquele ambiente
interativo e domínio do seu universo linguístico particular para compreendê-los.
Para participar do universo GTP, que viabiliza um livre e rápido acesso a
conteúdos do mundo todo (audiovisual, música, livros, jogos, softwares), o usuário

5. Protocolo de comunicação específico para chat que era predomindante na rede entre o
final dos anos 1990 e início dos anos 2000.
88 cinema apesar da imagem

deve demonstrar relativa aptidão técnica6, respeito às regras e hierarquias das


comunidades e, por fim, o entendimento dos princípios fundamentais de uma
ética pirata, ou seja: o respeito ao anonimato; a disponibilidade para contribuir
ativamente (postar, semear, comentar); e o respeito às características técnicas e
curatoriais do acervo (relativo ao GTP de que se está participando).
Ainda, os GTPs têm políticas de estímulo à participação, que se sustentam
em um sistema de hierarquias, benefícios e desafios, a partir do qual os usuários
tornam-se ativos na disseminação de conteúdo e na estruturação do sistema de
distribuição, por meio de um trabalho colaborativo, mas também hierárquico,
que cria um jogo de obrigações e recompensas.
Os tipos de especialização dos GTPs estão relacionados à mídia original
(televisão, cinema, música, livros, etc.), a gêneros, à técnica (formatos de vídeo) e à
cultura (língua, estilo, nacionalidade, etc.) do conteúdo indexado. A cinefilia aparece
como definidora de um desses modos de especialização, produzindo comunidades
aqui identificadas como Grupos de Torrent Cinéfilos (GTC), que possuem, em comum,
uma série de critérios particulares para a seleção de filmes. Observamos em nossa
pesquisa que tais critérios podem, essencialmente, ser sumarizados pelas palavras:
raridade, oposição ao mainstream, clássicos, alternativo, independente, nacional,
arte, bom gosto e experimentalismo.

Os grupos de torrent cinéfilos e o MKO


Os grupos de torrent cinéfilos já foram mencionados em uma série de
trabalhos acadêmicos, sendo associados diretamente:
a) ao fenômeno das novas cinefilias da era digital (IORDANOVA & CUNINGHAM,
2012) ou cibercinefilias; estas corresponderiam a um fenômeno sociocultural que
se desenvolve a partir da proliferação do acesso aos bens de consumo culturais
via tecnologia digital. Enquanto, tradicionalmente, para ser um cinéfilo era
necessário residir em centros urbanos maiores, onde ocorrem os principais
circuitos de exibição e eventos diversos relacionados ao cinema (encontros,
clubes, seminários, debates, entre outros), com o desenvolvimento do home video
e, ainda mais, com circulação digital, ser um amante e conhecedor da arte
cinematográfica é um fato possível em qualquer localidade ou classe social. As

6. Pois, tanto para contribuir, quanto para baixar, é necessário saber usar o fórum/site – postar,
navegar, buscar, etc. –, saber usar a tecnologia BitTorrent, além de ter um conhecimento
sobre formatos e codificadores de vídeo, já que muitos GTPs categorizam ou selecionam
seus conteúdos a partir dessa especificação.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 89

novas cinefilias desconstroem os espaços tradicionalmente legitimados de culto


ao cinema e democratizam essa possibilidade, produzindo novos espaços de
conexão entre cinéfilos dos mais diversos lugares que, além de consumirem e
culturarem o cinema, também produzem informação e crítica, ou seja, tornam-
se, além de tudo, agentes que comentam, analisam, avaliam e compartilham
ideias, opiniões e impressões acerca do material cinematográfico.
b) à popularização e desenvolvimento de uma cultura arquivista do cinema (KOSNIK,
2012), a qual resulta do acúmulo de conteúdos provenientes de uma infinidade
de fontes que alimentam os bancos de dados, mundo afora. Indivíduos
dedicam-se à busca, pesquisa, digitalização, organização e compartilhamento
de arquivos digitais, aproveitando-se da cada vez maior capacidade de
armazenamento da informação pelos dispositivos tecnológicos.
c) a modelos independentes de distribuição de cinema não-comercial (CARDOSO,
CAETANO, et al., 2012); tanto o alto nível de formalização das redes de torrent
privadas, quanto das redes abertas, aproximam muito os canais informais do
que é esperado das plataformas formais de distribuição; Cardoso (2012, p.
820) sugere que grupos de torrent especializados, por exemplo, podem ser
pensados como protótipos para a distribuição do cinema não-hollywodiano
na era digital. Esse tipo de distribuição, de acordo com Bodó (2012, p.
443), dá origem a uma lógica de programação que relaciona o popular/
mainstream com uma demanda fragmentada de nicho, tudo dentro da mesma
plataforma, que reserva algum espaço para os gatekeepers tradicionais, mas
também dá liberdade de divulgação e escolha sem precedentes.
d) a um processo de organização tão formal que tem o potencial de oficializá-los como
núcleos de distribuição (BODÓ, 2013), no sentido de que esses grupos tornam-se
referência de acesso para muitos consumidores e também, em alguns casos,
são aceitos e, até mesmo, apoiados por produtores e diretores que enxergam,
nessas plataformas, uma oportunidade de distribuição de baixo custo. De
acordo com Bodó (ibid.), em alguns GTPs há, inclusive, a possibilidade de
uma monetização que pode ser revertida aos proprietários do conteúdo.
e) à mediação intercultural que desenvolvem, como, por exemplo, na apre-
sentação de filmes asiáticos a um público ocidental (CRISP, 2012; 2015),
elaboração de legendas e pesquisa cultural e promoção de nichos específicos;
f) e, ainda, à democratização do conhecimento sobre cinema no Brasil e à distribuição de
filmes nacionais (ALMEIDA, 2011). Em nossa pesquisa sobre o GTC brasileiro
MKO, notamos que, em 2014, quase 80% dos filmes brasileiros disponíveis
90 cinema apesar da imagem

no site não eram encontrados na Amazon7, o que nos leva a supor que o
acesso legal a filmes nacionais também é restrito em diversos outros meios.
Necessidade que acaba sendo suprida pelo GTC.

Esses grupos/sites correspondem a uma gama de nichos de cinema,


transitando entre os mais diversos circuitos e abrangendo a maior diversidade
de estilos, gêneros, origens, línguas e épocas. Ao analisarmos o GTC brasileiro
MKO8, notamos que ele participa de um amplo fenômeno midiático de onde
surgem diversos grupos particulares, cada um com a sua própria dimensão
simbólica, formando redes vivas de integração de colecionadores, comentadores
e espectadores de filmes.
O sistema formal do MKO, especificamente, é composto por regras que,
a partir da análise da comunidade, classificamos como sendo de teor político,
técnico, organizacional e curatorial9, além de uma classificação hierárquica entre os
participantes, que conta com um núcleo administrador e de moderação das
atividades. Esse sistema interfere diretamente nas características da interface do
site, na formação do acervo e na identidade da comunidade.
No âmbito político, a proposta do MKO é alimentar a cultura cinéfila,
opondo-se ao mainstream e propondo dedicar-se ao cinema com menor visibilidade,
estabelecendo o valor e papel social do grupo ao exercer uma função que não é
realizada pelo circuito oficial. O administrador do site expõe claramente o fato
de não ser um concorrente direto dos grandes distribuidores e do circuito de
lançamentos nas salas, ao recusar a publicação: i) de filmes que ainda não tenham
sido explorados comercialmente; ii) de filmes de grandes distribuidores até seis
meses após o seu lançamento nas salas brasileiras; iii) de filmes nacionais até três
meses após lançamento em mídia digital; iv) de filmes já altamente explorados
e divulgados no mainstream. Isso demonstra um posicionamento estratégico da
comunidade em relação ao mercado de distribuição, produzindo, pode-se dizer, a
sua própria janela de exibição.

7. Utilizamos a Amazon como referência de um centro de distribuição por se tratar de


uma líder de vendas de mídia na internet, incluindo tanto mídias físicas quanto streaming,
materiais de segunda mão, antigos e novos lançamentos, de inúmeras distribuidoras.
8. A sigla foi utilizada no intuito de proteger o nome do grupo. Este foi criado no Brasil em
2006 e permanece ativo até a data desta publicação; em 2014, o MKO possuía mais de 46
mil usuários inscritos.
9. Taxonomia proposta pela autora, a partir da análise dos dados.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 91

As regras do MKO apresentam-se politicamente no sentido de trazer a ideia


de uma ética pirata específica, sumarizada pela expressão bom senso. Um acordo
coletivo implícito, que não depende somente das regras, mas da interação e
constante negociação entre os pares; esse acordo inclui o respeito à hierarquia da
comunidade e a obrigatoriedade de se colocar a serviço do grupo, compreendendo
suas necessidades, o seu espírito e a sua forma particular de cinefilia.
As regras também têm uma dimensão técnica que diz respeito à formação da
estrutura do site, incluindo definições da interface; características das postagens
e do acervo; qualidade e proveniência dos arquivos e das legendas, entre outras.
A preocupação técnica é indiscutível, uma vez que a prioridade do site é a
qualidade do material, muito mais do que a sua quantidade. Os rigores com a
técnica traduzem o propósito de se criar um núcleo de distribuição que agrade
especialmente os membros da comunidade. Ainda que os propósitos do MKO
não incluam a tentativa de agradar um público geral ou de conquistar audiências,
a administração parece preocupada em oferecer um material de qualidade para
o seu público específico, ou seja, há o interesse em atrair pessoas de gosto cinéfilo
particular que priorizam a qualidade da imagem, do som e das legendas.
As regras organizacionais do MKO se fizeram necessárias para o funcionamento
do site, como condição para a realização de um projeto que envolve um grande
número de pessoas, dentro de um contexto, como já mencionamos, cheio de pressões
e instabilidades, tais como ameaças legais, usuários oportunistas ou maliciosos
que poderiam descaracterizar ou até mesmo inviabilizar o funcionamento do
site, além de instabilidades oriundas da própria estrutura tecnológica. As regras
organizacionais determinam, principalmente, o aspecto hierárquico e funcional
das atividades dos usuários. Entre essas regras, temos o controle na distribuição de
convites, a classificação e hirerarquização de usuários por méritos (ver Quadro na
página seguinte), a obrigatoriedade de colaboração, o controle dos comentários
para que não tenham caráter ofensivo, entre outras.
As regras curatoriais, por fim, são coerentes com o posicionamento político do
site, aparecendo na proposta oficial do MKO que é “compartilhar filmes raros,
antigos, alternativos, fora do circuito comercial e documentários relevantes”. O
intuito é agradar um nicho de público bem definido, mas, além disso, também
formar esse público, conforme aparece no texto que identifica a proposta do site:
“despertar nas pessoas o interesse pelos produtos de boa qualidade no cinema”.
Certamente, a definição de bom gosto tem uma dimensão subjetiva e implícita,
tal qual a questão do bom senso anteriormente mencionada. A definição do que é
92 cinema apesar da imagem

Agitador (a): São membros que participam ativamente do fórum mas


que não têm condições de postar filmes – o que não é demérito algum. A
cada 3 meses os membros dos fóruns da administração fazem a indicação
dos candidatos para essa categoria.
Projetor (a): Qualificam-se para essa categoria os membros que
completam 25 filmes postados e que não tenham um histórico de posts
inadequados ou de atitudes desabonadoras. No início de cada trimestre
é feita a verificação dos membros que podem ser promovidos.
Tradutor (a): As legendas exclusivas postadas por qualquer membro
são avaliadas pela equipe e, se não há uma repetição e as legendas são
bem feitas, o membro é assinalado como um possível candidato ao
grupo. Se o potencial for realmente bom o membro é contatado por
alguém da equipe, com sugestões de melhorias, se for o caso.
Conselheiro (a): São convidados para esse grupo os membros que são
reconhecidamente competentes, têm facilidade de interagir com outros
membros, têm o equilíbrio necessário entre seus interesses individuais e
os do fórum, um bom conhecimento de cinema e áreas afins, mas não
têm as habilidades para editar posts e outras coisas técnicas, ou não têm
tempo de moderar o fórum.
Moderador (a): Os convidados para esse grupo têm os requisitos
técnicos suficientes para editar posts em qualquer fórum e verificar se o
que foi postado está de acordo, tecnicamente ou em termos de conteúdo,
com a regulamentação do fórum, além do equilíbrio necessário para um
bom relacionamento com os demais membros do fórum.
Veterano (a): São os membros que definem as políticas gerais do fórum
e que têm acesso ao painel de controle. A tomada de decisões é sempre
feita de maneira colegiada.
Postado no site MKO por usuário veterano em 04.04.2014
Classificação de Usuários MKO

um filme de boa qualidade ou do que é o “verdadeiro cinema” (slogan do site) é relativa


e imprecisa, contraposta por uma ideia de mau gosto – sendo esta apresentada em
uma lista de cerca de 260 filmes banidos, além de uma lista de atores, diretores e
séries10. Os filmes são excluídos por serem prioritariamente comerciais, seguindo
sem inovar as fórmulas consolidadas por Hollywood, mesmo que não tenham

10. Filmes com o personagem Batman, da série Emanuelle, qualquer um de “Os Trapalhões”,
da série Star Trek, com os atores Steven Seagal, Sylvester Stallone, Chuck Norris, Eddie
Murphy, Chevy Chase, John Candy, Arnold Schwarzenegger ou dirigidos por Radley
Metzger.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 93

recebido muita atenção da mídia; fórmulas prontas também são mal-vistas em


filmes de outras nacionalidades que tentam imitar a estética hollywoodiana.
Grande parte dos filmes comerciais de maior sucesso após os anos 1980 é
excluída, ao passo que os filmes anteriores a essa década recebem uma avaliação
menos rigorosa em relação ao fator comercial, sendo reinterpretados como
clássicos. Blockbusters americanos dos anos 1960, por exemplo, podem ser facilmente
encontrados no site. Supõe-se que o distanciamento temporal das obras as faz
perder o seu peso comercial, permitindo que elas integrem um imaginário cultural
e se legitimem nos grupos cinéfilos, ao passo que a proximidade temporal com o
lançamento faz com que o seu peso comercial seja sentido mais criticamente.
Em larga medida, o tipo de cinefilia que encontramos no MKO reproduz
os cânones acadêmicos e a seleção art house cultuada pelos cineclubes. Por outro
lado, também inclui elementos diversificados no seu cânone – filmes clássicos ou
atuais de Hollywood, filmes antigos, filmes exploitation, filmes de diversos países,
gêneros e estilos.
O MKO participa de um processo de revisão dos cânones que se integra
à percepção cinéfila contemporânea, tanto dentro como fora da internet, o
que podemos pensar como um fenômeno de dimensões globais. Por exemplo,
filmes indonésios exploitation dos anos 1980 (The Queen of Black Magic, Lilek
Sudijo, 1980; Lady The Terminator, Jalil Jackson, 1989) ganharam um novo status
na internet, quando na época eram desprezados pela crítica especializada
(LOBATO, 2012); filmes Giallo, um gênero italiano exploitation popular nas
décadas de 1970 e 1980 (Your Vice Is a Locked Room and Only I Have the Key, Sergio
Martino, 1972; The Bird With the Crystal Plumage, Dario Argento, 1970), na
época do seu lançamento considerados de mau gosto pela crítica especializada,
também ganham apreciação cinéfila e pesquisa em redes torrent (CARTER,
2013); a pornochanchada brasileira, em sua época desprezada pelos grupos
intelectualizados, também incorpora-se nas novas cinefilias, ganhando espaço,
por exemplo, no acervo do MKO. As pornochanchadas mais populares são
encontradas nesse site: O Libertino (Victor Lima, 1973), Dona Flor e Seus Dois
Maridos (Bruno Barreto, 1976), O Bem Dotado, O Homem de Itu (José Miziara, 1978),
A Dama da Lotação (Neville de Almeida, 1978), entre muitas outras. Mesmo que
sejam cuidadosamente selecionadas para estar no MKO, não deixam de ser
valorizadas como um momento histórico do cinema brasileiro. Vale ressaltar
que tanto o Giallo quanto a pornochanchada, apesar de não constituírem o
cânone, desde algum tempo já adquiriram um status cult entre os meios cinéfilos,
94 cinema apesar da imagem

uma percepção que também se manifesta em meios cibercinéfilos como o


MKO, o Cinetorrent e outros.

Esclarecendo as cibercinefilias
Pode-se dizer que as novas ou cibercinefilias, a partir das redes massivas de
compartilhamento informal, promovem uma reinterpretação sobre a centralidade
de Hollywood, que se dissolve e deixa entrever cinemas de fontes heterogêneas.
A tendência transnacional do circuito informacional coincide com a própria
multiplicidade cultural das produções cinematográficas; essa complexidade
permite um movimento de desconstrução de uma série de dicotomias
tradicionalmente aceitas, como oriente e ocidente, norte e sul, desenvolvido e
subdesenvolvido, comércio e arte, local e global (NAGIB, 2006).
A cinefilia é o resgate da aura artística do cinema, um fenômeno de bases
industriais e tecnológicas, que tem a reprodutibilidade mecânica como elemento
fundamental da experiência estética (ALMEIDA, 2011). Se a aura benjaminiana
fora definida pela sacralidade e irreprodutibilidade da obra, sua crítica à reprodução
mecânica apontou, justamente, para o esvaziamento dessa aura. Se projetássemos
esse raciocínio para a era da reprodutibilidade imaterial, concluiríamos que, nesse
período, a aura chegaria a um esvaziamento quase pleno, haja vista o volume,
facilidade, banalização e similaridade da cópia (na era digital, a cópia é idêntica
ao original, sem distinções). Todavia, curiosamente, notamos, que os objetos
ganham novas roupagens auráticas nos meios digitais, através dos cultos e ritos,
mediados por emaranhados técnicos e interações que criam zonas privilegiadas
de troca em redes subterrâneas, onde, conforme observamos na análise do grupo
MKO, bem como de outros GTPs, a apreciação e devoção ao cinema ressurgem
com grande força.
As cibercinefilias oferecem um framing para conceituar o cinema a partir de
suas próprias definições: o cinema-arte, a cultura do cinema (PRYSTHON, 2013),
cujo significado ultrapassa o consumo efêmero, reproduzindo um objeto que se
eterniza em constante multiplicação. Essa definição delineia um entendimento
específico e é coerente com as suas diversas possibilidades de circulação e
experiência nos suportes digitais.
A necessidade e o interesse em preservar e dar acesso a bens culturais
transpõem as barreiras do discurso jurídico ou da ética econômica, nos quais
a circulação informal costuma ser enquadrada, em nome de uma outra ética
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 95

colecionista, arquivista e cinéfila, interessada no valor artístico e histórico das


obras. As cibercinefilias, em consonância com outras cinefilias possíveis, se
interessaram pelo difícil, raro e curioso, promovendo caminhos alternativos no
imaginário cinematográfico (ALMEIDA, 2011), produzindo demandas e ofertas
únicas, de um consumo autoral.
O efeito da hiperconexão e das tantas iniciativas de compartilhamento
(especialmente as comunidades de usuários de BitTorrent) é que as culturas tornam-
se mais conscientes sobre a própria ignorância quanto ao cinema mundial, de
maneira que a disponibilidade relativiza a centralidade do bom gosto, da arte e da
genialidade do cinema e, consequentemente, multiplica e enriquece os imaginários
culturais dentro e fora da internet. Justamente pela fluidez das fontes de referência, os
mediadores especializados são cada vez mais requisitados, sejam grupos, plataformas,
mecanismos ou instituições que funcionam como curadores culturais; por exemplo,
o MKO, através de sua especialização e critérios curatoriais, disponibiliza um certo
tipo de conteúdo e procura diferenciar-se de outras fontes, formulando um contexto
único para a experiência cinéfila. Assim, cada fonte informacional é ela mesma
uma interpretação que se oferece com relativa coesão, inserindo-se em um contexto
maior de diversidade incontável de fontes. Como intui Goldsmith (2015, p. 75), o
próprio ato de mover a informação de um lado a outro constitui, em si mesmo,
um ato cultural que significa, ou seja, produz sentidos particulares, que, ao mesmo
tempo, dialogam dentro do campo infinito de trocas.
Entre os tantos campos possíveis da cinefilia, iniciativas como o cineclubismo,
historicamente formadoras de circuitos alternativos de exibição e ativismo cultural
fora da internet, relacionam-se diretamente com as cibercinefilias, desenvolvendo
com elas um jogo intenso de retroalimentação. Tanto o cineclubismo como a
pirataria on-line ocupam uma posição marginal, desafiando as regulamentações,
lidando com limitações ou potencialidades tecnológicas e agregando conhecimento.
As redes digitais facilitam a multiplicação de cineclubes locais, e o conhecimento
produzido nos cineclubes locais também contribui com conhecimento e atores
para as redes digitais (ALMEIDA, 2011; GONRING, 2014).
Tanto a cibercinefilia quanto o cineclubismo são motivados pelo interesse
na descoberta do que é novo e raro, na experiência estética e intelectual com o
cinema, e no crescimento dos repertórios cinematográficos, o que realizam através
da coleta e do compartilhamento, mantendo vivo e acessível o objeto cultural,
classificando e organizando o conhecimento. Esses acervos têm uma dimensão
simbólica própria, uma vez que arquivos são sempre interpretações, seleções
96 cinema apesar da imagem

do que fica e do que sai. Como lembra Derrida (1998), a estrutura técnica e o
propósito social dos arquivos determinam a relação dos bens simbólicos com o
futuro, pois registrar e catalogar informações sobre o passado interfere diretamente
na memória cultural, ou seja, no entendimento e, consequentemente, na própria
produção desse futuro.

O valor do cinema nas redes piratas


A pirataria do audiovisual reconfigura amplamente os valores que atribuímos
aos bens culturais, o que evidencia uma crise axiológica (SCHROEDER, 2012)
nos âmbitos ético, estético e econômico. A crise ética relaciona-se aos direitos e
políticas da informação, ao papel do direito autoral, da exploração da propriedade
intelectual, do controle dos meios de produção e de circulação e das políticas culturais
transnacionais. Nesse contexto, a pirataria aparece como um agente desafiador, que
se legitima a partir de uma série de argumentos também éticos, que delineiam a
própria ética pirata, ligada ao livre acesso à informação e à quebra dos oligopólios
midiáticos. A pirataria reinterpreta o valor estético do cinema, ao apresentar suas
facetas mais diversas, num espaço que vai muito além das salas comerciais ou dos
cânones tradicionais. E, ainda, a pirataria é um agente importante dentro de uma
crise econômica sem precedentes para a indústria cultural, pois desafia os centros
distribuidores oficiais, oferecendo vias alternativas ao público.
A formação cultural e intelectual nem sempre é a prioridade dos mercados,
que preferem a distribuição massiva de produtos padronizados. Por isso, ainda
que o desenvolvimento e barateamento das tecnologias de cópia, transferência
e reprodução audiovisual possam beneficiar a circulação de uma cultura mais
diversificada e o interesse por formação e desenvolvimento de sensibilidades
plurais, muitas vezes esse processo precisa ocorrer na ilegalidade, já que as
legislação autoral não está adaptada a essas relações de consumo.
O controle dos meios de distribuição garante o valor de mercado e a
visibilidade de um produto, mas, na era da reprodutibilidade imaterial, a
distribuição informal permite uma manifestação mais direta do valor cultural,
artístico e simbólico das obras, despida dos condicionamentos impostos pelos
veículos oficiais; isso porque, na distribuição informal, o consumo não está
necessariamente mediado pela troca comercial ou pela disponibilidade autorizada
dentro do sistema econômico centralizado; o acesso, a disponibilidade, em redes
informais, e, consequentemente, o consumo, ocorrem em um processo no qual o
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 97

fator econômico não é o principal elemento determinante, permitindo que outras


influências contribuam mais ativamente.

Considerações Finais
Se a declaração de Susan Sontag no jornal New York Times, em 1996, sobre o
fim ou a morte do cinema provocou muitas reações (favoráveis ou contrárias), não
devemos esquecer que a autora deixou entrever, conforme lembra Almeida (2011),
uma fagulha de esperança para o meio, ao entender que ele ainda poderia ser
resgatado (salvo) por um novo tipo de amor cinematográfico. Acreditamos poder
pensar nas novas cinefilias da era digital como uma evidência da renovação de amor
pelo cinema que ultrapassa barreiras geográficas e centralidades enunciativas;
como aponta Prysthon (2013), a cibercinefilia não redefine drasticamente a noção
original de cinefilia, mas é uma reconfiguração de suportes para uma série de
práticas cinéfilas.
A internet permitiu que cinematografias especializadas deixassem de habitar
somente as salas das grandes metrópoles. As novas gerações, a partir de locais
periféricos, reivindicam a experiência cinéfila, promovendo a distribuição de
filmes por conta própria, constituindo redes alimentadas por diversas fontes e
referências, capazes de conectar microrregiões artísticas.
As práticas cinéfilas incluem, sobretudo, a própria distribuição dos filmes,
que ocorre em plataformas – especialmente os GTPs – dotadas de alto grau de
organização e formalidade. Nesse sentido, ainda que seja uma circulação informal,
por ocorrer paralelamente às instituições, fora dos seus processos burocráticos e
regulamentações, ao olharmos atentamente para o modo como essas plataformas
se constituem, notamos uma série de formalidades, acordos simbólicos, diretrizes,
procedimentos e códigos, que resultam em uma estrutura participativa que acaba
por institucionalizar o espaço informal. Os Grupos de Torrent Cinéfilos funcionam
como núcleos curatoriais, centros de distribuição de cinema, cuja informalidade
não contradiz a ideia de ordem.
Ainda que pensar em formalidades da circulação informal pareça um paradoxo,
notamos que, quando cada ponto conecta o outro e pode tanto emitir quanto
receber a informação, ao mesmo tempo, ocorrem influências potencialmente mais
heterogêneas na dinâmica de circulação de mensagens, de elaboração de formas
e códigos. Através da interface, o banco de dados é alimentado por cada ponto da
interação e assume um número variado de formas. É justamente o diálogo entre
98 cinema apesar da imagem

as formas que permite com que tanto as redes de circulação informal quanto as
redes formais misturem-se a ponto de, progressivamente, terem difícil distinção.
Os Grupos de Torrent Privados, como notamos, apresentam-se bem
estruturados e é esse trabalho um constructo digital, um ente composto de
caracteres, símbolos, significantes culturais, arranjos de sentido, códigos e
estruturas lógicas. Um material-digital (op. cit) produzido a partir de múltiplas
interações e investimentos pessoais, de abstrações conceituais e realizações.
Conforme sugere Goldsmiths (2015), um processo de aquisição, catalogação e
arquivamento dos artefatos culturais pode consumir muito mais o nosso tempo
do que a própria fruição destes, de maneira que os modos de arquivamento atuais
são bens culturais tão interessantes quanto os próprios artefatos (nas palavras do
autor, hoje, é preferível a garrafa ao vinho).
Um outro aspecto aparentemente paradoxal que observamos no fenômeno
é a articulação entre uma postura de disseminação da informação, própria do file
sharer, e o desenvolvimento de ambientes/plataformas exclusivos e controlados, que
selecionam rigorosamente o material disponibilizado e o público. É interessante
observar que essas aparentes oposições (acesso vs. privilégio) aparecem arranjadas
dentro do discurso e da ética pirata presente nos GTPs e GTCs.
Abrimos, aqui, um parênteses para mencionar que Lobato (2014) já
apontou para dois paradoxos importantes no estudo da pirataria, resultantes da
própria natureza do termo pirata: a) a expressão deriva de um campo semântico
produzido pela própria centralidade ideológica da propriedade intelectual, que,
ao ser desconstruída; acaba esvaziando o próprio sentido do termo; b) a pirataria
refere-se a uma diversidade tão grande de práticas que impedem uma identidade
comum; tanta diversidade torna praticamente impossível a aplicabilidade do
termo pirataria, que, por apontar para tantas coisas diferentes, acaba por não
apontar para nada.
O que constatamos com o nosso trabalho é que o fenômeno da circulação
informal pode, ainda, acrescentar novos paradoxos à discussão do tema, que
desafiam a pensar a cultura contemporânea: a formalidade da circulação informal e
a ideia de exclusividade/privilégio dentro da cultura colaborativa, que é baseada no acesso
e na democratização da informação. Percebemos, nessas aparentes contradições,
o constante rearranjo e articulação de imaginários e de práticas altamente
dinâmicas, que se dão em um universo onde essas dicotomias não aparecem em
oposição mas sim manifestam uma tendência ao hibridismo, elemento importante
para a compreensão das práticas comunicacionais contemporâneas.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 99

Importante mencionar que o MKO trouxe um exemplo do que pode ser


pensado como ética pirata (ver também Crisp, 2014)., que, no estudo do grupo, apareceu
como um acordo coletivo implícito resultante da interação e negociação dentro
da comunidade. Notamos que esses acordos podem incluir a hierarquização e
também a dependência mútua entre usuários, administradores e colaboradores,
além de um posicionamento quanto à propriedade intelectual. Ainda, compondo
essa ética pirata, há uma ética arquivista ou colecionista que preza pela preservação
de obras e pela manutenção de acervos, mesmo que isso signifique desconsiderar
as limitações institucionais e normativas; uma pirataria cuja ética prioriza a
preservação da memória cultural e o acesso.
Por fim, vale ressaltar que o compartilhamento de filmes, ainda que possa
ser observado estruturalmente, em termos de números e sistemas informacionais,
ou de seu impacto econômico na indústria, será ainda mais bem compreendido
pela sua motivação cultural. Se, como ensinou Bourdieu (1984), todo gosto é uma
fabricação, então os GTCs desempenham um papel nessa fabricação do gosto,
em diálogo com a cultura de massa e com os setores mais artísticos do cinema, de
modo que a reticularização e a interatividade das relações revelam uma dinâmica
cultural de influências tanto hegemônicas quanto subterrâneas.

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entre a formalidade e a
informalidade: pirataria e distribuição
cinematográfica no méxico
stefania haritou
tradução gabriel menotti

Como em outros países, a pirataria de filmes no México possibilita o acesso


a uma cultura da qual o público costuma ser privado pelos sistemas formais de
distribuição, que constituem um oligopólio dominado por produções dos estúdios
americanos e por determinados padrões de trabalho e organização. De acordo
com o argumento de Sean Cubitt (2005), a distribuição não pode ser examinada
separadamente, isolada das complexas operações da cadeia de abastecimento,
produção e exibição cinematográfica. A distribuição engloba o lançamento
de filmes, a criação de conexões com uma audiência e a sua manutenção no
mercado. Esses processos são condicionados por uma gama de fatores, incluindo
a organização industrial e institucional dos mercados cinematográficos locais,
as particularidades da produção cinematográfica independente e industrial,
e a dominação global dos distribuidores americanos. Nas palavras de Cubitt, a
distribuição pode ser entendida como uma “construção da diferença; distinguindo
inicialmente os produtores dos espectadores, os compradores dos vendedores,
e, num mundo em rede, criando ainda mais separação entre as populações de
acordo com a sua proximidade temporal e espacial a um poder econômico e a
um economia política que se concentram cada vez mais nos territórios de troca,
em vez dos locais de produção” (2005, p. 194). Como os estudos de caso neste
artigo buscarão demonstrar, a pirataria e as práticas piratas de distribuição
cinematográfica parecem desafiar e reconfigurar essas distinções.
Meu estudo não compreende a pirataria cinematográfica como um todo
coerente, tampouco nos termos de uma abordagem focada na ilegalidade e na
economia política. Pelo contrário, pretendo dar atenção a diferentes aglomerados
de práticas, aos acordos para operação da tecnologia, à criação e expansão de
106 cinema apesar da imagem

redes, e à reprodução e circulação de filmes. Para tanto, localizarei a pirataria em


meio às práticas e normas habituais que definem o contexto social, econômico
e material mexicano. Num mundo em que filmes estão sendo instantaneamente
baixados e compartilhados na web, e o fluxo de commodities e serviços alcança uma
extensão global, buscarei examinar a localização da pirataria nesse contexto
particular, de modo a rastrear a multiplicidade de relações e diversidades que
estão envolvidas na distribuição cinematográfica pirata no México. Nesse sentido,
esse artigo se propõe a fazer uma investigação detalhada de determinados
campos, problemas, materiais, práticas e fatos, de modo a trazer à tona “as
práticas desarrumadas de relacionamento e materialidade” (LAW, 2009, p. 142)
da distribuição cinematográfica formal e informal no México.
De acordo com o Instituto Mexicano de Cinematografia (IMCINE), 126
longas-metragens foram produzidos no país em 2013. Em comparação com os anos
anteriores, esse volume representa um aumento significativo1. Entretanto, em se
tratando da distribuição, os números apresentam certa discrepância. No mesmo
ano, apenas 101 desses filmes chegaram às salas de cinema do país. Mas é preciso
ressaltar que a distribuição de filmes nacionais atravessa uma mudança de paradigma
institucional. Nas últimas duas décadas, entre 80% e 90% dos filmes exibidos nos
cinemas mexicanos vieram dos Estados Unidos. A reforma da lei cinematográfica
nacional, em 1992, “reduziu a cota de tela para produções nacionais de 50% para
10%, tornando mais difícil que os filmes mexicanos fossem exibidos, e prejudicando
a confiança dos investidores nessa produção” (LARROA & GÓMEZ GARCÍA,
2011, p. 5). Seguindo a lógica do livre mercado2, a reforma legislativa “liberou o
preço dos ingresso, beneficiando alguns exibidores. O aumento nos preços dos
ingressos, combinado com a baixa renda de 80% da população mexicana, levou a
um considerável aumento na pirataria de DVDs”. Conforme a demanda por filmes
mais baratos crescia, “os vendedores de rua e outros ‘micronegócios’ se tornaram a
infraestrutura de distribuição primária”.
De acordo com Guillermo Wolf, diretor geral da Câmara Americana no
México, o mercado pirata pode movimentar o equivalente à metade das vendas

1. De acordo com a mesma fonte, em 2007, apenas 70 longas mexicanos foram produzidos e,
desses, apenas 43 foram exibidos em cinemas.
2. Larroa e Gómez García explicam que, a partir do começo dos anos 1990, “o modelo de
livre mercado transformou a indústria cinematográfica Mexicana, reduzindo a intervenção
do Estado na economia, liberando o comércio e privatizando as companhias públicas.
Eventualmente, esses processos levaram à predominância das companhias transnacionais
no país” (2011, p. 848)
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 107

do mercado cinematográfico estabelecido (EXCELSIOR, 2014). A pirataria no


México opera em larga escala, e sem dúvida os danos econômicos que ela causa
aos detentores de direito autoral são uma questão importante de ser examinada.
Os regimes de propriedade intelectual, e o modo como eles são expressos em
documentos oficiais, tais como o relatório da Aliança Internacional de Propriedade
Intelectual (IIPA) para os Representantes do Comércio dos Estados Unidos
(USTR), buscam tanto problematizar quanto solucionar a pirataria, ao sugerir
reformas na regulação e nos modos de controle de cópias. Não obstante, essa
abordagem policialesca, por mais que possa ser moldada de acordo com o sistema
jurídico e político mexicano, não dá conta da produtividade das práticas piratas,
nem das formas de circulação e da flexibilização que elas trazem ao terreno de
distribuição cinematográfica. Portanto, da mesma forma que em outros países
de economia emergente, a abordagem da pirataria de conteúdos midiáticos no
México a partir de uma perspectiva jurídica não se mostra tão interessante.
Uma série de estudos etnográficos busca se afastar dessa abordagem de modo
a produzir reflexões pormenorizadas sobre o tema a partir de estudos de caso
específicos. Entre alguns exemplos que podemos citar estão o trabalho de Brian
Larkin sobre o contexto Nigeriano e a produção de vídeo pirata em Hausa (2004),
o estudo de Lawrence Liang sobre a indústria cinematográfica Malegaon na
Índia (2009), o relato de Shujen Wang sobre a pirataria e as redes de distribuição
hollywoodianas na Grande China (2003) e o foco de Ramon Lobato nas economias
cinematográficas das sombras em diversas conjunturas nacionais (2012).
A partir do trabalho de Lobato (2012) sobre a constituição material da
pirataria e a perspectiva de Cubitt (2005) sobre a materialidade dos processos de
mediação e comunicação, eu gostaria de examinar a materialidade da pirataria
em relação às redes sociais de seus praticantes. Esse tipo de análise ressalta o papel
das práticas, tradicionalmente identificadas nos setores de distribuição formal,
demonstrando como elas se constituem socioculturalmente no México, a partir da
associação de redes e materiais. Nesse sentido, busco seguir o exemplo de Larkin,
ao demonstrar como a pirataria midiática no norte da Nigéria se relaciona à
infraestrutura, central para o surgimento de economias paralelas de reprodução e
distribuição cinematográfica. Para Larkin, o foco em questões jurídicas acaba por
obscurecer “a natureza midiática da própria infraestrutura” (2004, p. 290). Ao se
concentrar na materialidade da reprodução pirata, Larkin demonstra como essa
infraestrutura é marcada pelo ruído e pela precariedade. Assim, começamos a
iluminar a diversidade material da pirataria na Nigéria, as suas variações regionais
108 cinema apesar da imagem

e o modo como ela se insere em diferentes contextos performáticos, tanto em


termos de inovação quanto de crise. Nesse sentido, a pirataria teria a capacidade
de afetar nossas “noções de espaço, tempo, cultura e corpo” (2004, p. 306),
contribuindo para a constituição da modernidade nigeriana. Nas palavras de
Ravi Sundaram, essa “modernidade pirata” engloba “um mundo de inovação e
ilegalidade, de descobertas ad-hoc e estratégias de sobrevivência eletrônica” (1999,
p. 94), fora do território das elites do capital eletrônico, baseado e sustentado por
“conhecimentos tecnológicos informais” (1999, p. 95).

Informalidade e Ubiquidade
No México, a pirataria é considerada parte de uma economia informal
dinâmica e altamente organizada (CROSS, 1998, 2011), representada
principalmente pelos vendedores de rua. De acordo com o relato de John
Cross, essa “informalidade é ‘causada’ pela incapacidade dos indivíduos de se
formalizarem” (1998, p. 30). Cross descreve complexas relações entre os oficiais
do estado, os políticos e os líderes dos camelôs, as quais dificultam a eliminação e
o controle do fenômeno da informalidade. Considerando o clientelismo que opera
entre os grupos informais e os partidos políticos, Cross sugere que a informalidade
no México é sustentada por um combinação entre interesses internos ao Estado
e a própria habilidade dos vendedores de resistir ao policiamento. O crescimento
da economia informal mexicana e a sua “longa história de resistência contra as
tentativas administrativas de repressão, combinada com o trabalho de seus aliados
políticos no governo” (2011, p. 206) criam o contexto em que o fenômeno da
pirataria surge e opera no México. Portanto, trata-se de uma pirataria que não se
encontra “às margens da economia de mercado, mas sim sedimentada num setor
altamente organizado de economia informal, que possui ampla experiência em
adquirir e administrar capital político”.
Na sua pesquisa sobre a centralidade dos sistemas de circulação informal na
cultura e economia audiovisual, Lobato (2012) chamou a atenção para o mercado
negro de Tepito, na Cidade do México. Retratando a função da pirataria do país,
ele afirma que
ninguém contesta o fato que a economia pirata é o sistema de distribuição informal mais
importante e eficiente no México. É o sistema de circulação normal para a maior parte
das pessoas que vivem aqui, o padrão a partir do qual a distribuição formal se constitui.
A pirataria na Cidade do México não é uma forma de resistência ou um exercício de
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 109

liberdade de expressão; trata-se de uma atividade mundana e ordinária, em que todos se


envolvem de modo a participar da cultura cinematográfica (2012, p. 233).

Essa citação sugere que o sistema circulatório da pirataria dá forma a uma


parte ubíqua da cultura cinematográfica e da vida urbana no México. Cópias físicas
de filmes pirateados são vendidas em mercados de rua, em lojas de conveniência,
nas zonas centrais das maiores cidades e menores vilas. Geralmente, esses lugares
de distribuição e venda são caracterizados pelo lançamento simultâneo de cópias
(os filmes não demoram mais do que um dia para se espalhar de um mercado a
outro ou de uma cidade a outra); pelo fornecimento de serviços especializados a
um baixo custo (um consumidor habitual pode encomendar os filmes que quiser
ao vendedor); e na maior parte dos casos por uma alta qualidade de reprodução.3
A natureza mundana que o fenômeno da pirataria assume no México se
torna essencial para a sua capacidade de mobilizar material cinematográfico e
fazer circular o conhecimento sobre as práticas informais que eles incorporam e
produzem. Para Lobato, a pirataria surge como um problema epistemológico, que
busca se apropriar de ferramentas de análise cultural. O estudo da pirataria no
contexto mexicano busca identificá-la com o campo da cultura, tomando por base
a sua relação seja com a cultura dinâmica da informalidade, seja com a cultura
dominante da espectação cinematográfica (levando em consideração que o México
é um dos maiores mercados em todo o mundo para exibição cinematográfica.
PIVA ET AL. apontam que, em 2009, o México estava em quinto lugar mundial
em termos de número de espectadores pagantes, num total de 180 milhões de
ingressos vendidos). Este artigo busca ir além dessa análise cultural e abordar a
interligação de aspectos materiais e socioculturais da pirataria. Especificamente,
empregarei uma abordagem semiótico-materialista, de caráter não explicativo mas
descritivo, que busca analisar fenômenos por meio das redes de relações em que
se localizam (LAW, 2009). Assim, buscarei investigar como a pirataria está sendo
reconfigurada no contexto mexicano. Dito de outra forma, pretendo examinar
as relações sociais, culturais e materiais que dão forma ao fenômeno da pirataria
no México, ainda que precariamente, na tentativa de responder a uma pergunta-
chave colocada pela teoria ator-rede: “Como as coisas estão acontecendo?” (em

3. As cópias só não possuem alta qualidade quando são encontradas em compilações que
incluem diversos títulos num mesmo disco Blu-ray ou quando os filmes são gravados
diretamente da sala de cinema. Nesse último caso, os vendedores normalmente indicam o
modo de reprodução e cobram mais barato pelo título.
110 cinema apesar da imagem

vez de “por que elas acontecem?”). Segundo John Law, esse exame dos “modos
locais de testemunhar e autenticar as conexões” entre sistemas formais e informais
de distribuição nos permitirá descrever “a produção de conhecimento, a dimensão
epistemológica” (2009, p. 154). Com isso, o mundo ordinário da pirataria – o que
Liang chama de “o mundo do cotidiano legal de consumo e circulação” (2009, p.
9) – pode vir a iluminar como o conhecimento sobre a pirataria é produzido por
meio de diversas performances e situações.
Meu trabalho busca ir além e contribuir com o estudo das relações entre
pirataria, infraestrutura e materialidade, conforme foi exemplificado por
Larkin (2004) e Lobato (2012). Ao abordar a pirataria por meio do prisma da
semiótica materialista da teoria ator-rede, ele almeja trazer à tona a invisibilidade
e capacidade de agência das infraestruturas, bem como a perícia envolvida nas
práticas dos piratas. As práticas que me interessam neste artigo não refletem a
pirataria cinematográfica no México como um todo, mas se constituem como
particulares, que se dão em situações particulares. Sob essa lente, a pirataria
aparece como um fenômeno que se dá em um território específico de produção,
distribuição e exibição cinematográficas, no decorrer de certas atividades, sob
circunstâncias específicas.
Na tentativa de esclarecer as dinâmicas da pirataria no México e as suas
correspondências com (bem como suas divergências de) a organização e
especificidades do circuito de distribuição formal, podemos evocar um primeiro
estudo de caso. O filme mexicano Heli, dirigido por Amat Escalante, foi exibido e
ganhou bastante renome em festivais ao redor do mundo, chegando a conquistar
o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes de 2013. Como uma produção
independente, Heli teve suas primeiras projeções oficiais em Agosto daquele
ano, com apenas 25 cópias rodando em alguns poucos estados mexicanos, e
uma campanha publicitária bastante restrita (ARRONA CRESPO, 2013). Essa
situação reflete os dois grandes desafios que a distribuição de filmes nacionais
enfrenta no México: o controle praticamente monopolista das três maiores cadeias
de exibição do país e a pressão das companhias de distribuição hollywoodianas
que controlam os letreiros eletrônicos nas salas de cinema (UGALDE, 2010, p.
10). Relacionados ao contexto de comunicação transnacional, esses dois fatores
reduzem drasticamente o espaço para produções independentes que não sejam
distribuídas pelas grandes companhias dos Estados Unidos.
Acontece que, alguns meses depois, na primeira semana de Dezembro de 2013,
múltiplas cópias da versão pirata de Heli apareceriam quase que simultaneamente
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 111

em zonas centrais por todo o país, nos mercados de rua, em quiosques e lojas de
filmes piratas. Isso demonstra como as práticas piratas podem levar a cabo uma
forma de distribuição cinematográfica que diverge das transações econômicas e das
trocas organizacionais instituídas pelos sistemas formais. Isso se dá de três formas. A
distribuição de filmes piratas no México é uma prática comercial bem organizada,
que opera numa grande escala geográfica, tornando-se um canal para o acesso aos
filmes do próprio país que não conseguem suficiente espaço nas salas de projeção.
As redes de pirataria que permitem a circulação desses filmes operam tanto por
meio quanto em torno das redes formalizadas (WANG & ZHU, 2003; LOBATO,
2012), mas também para além delas, prolongando o acesso da audiência.
Além disso, a pirataria se mostra capaz de preencher as lacunas dos sistemas
de distribuição formais. Podemos citar o caso particular do filme Asalto al Cine,
feito pela diretora Iria Gómez, em 2011, que só foi exibido na Cineteca Nacional
em 2013. Por dois anos depois de ter sido finalizado, antes de seu lançamento
oficial no cinema, o filme circulou apenas por festivais, como o de Sundance e
Guadalajara. Mas, por todo esse tempo, ele também esteve disponível tanto nas
banquinhas de DVDs piratas quanto nos sites de compartilhamento da internet.
A diretora teria comentado numa entrevista que:
quando descobri, fiquei muito feliz, porque o filme estava alcançando o público que eu
tinha em mente quando o realizei. Eu nunca me tornarei rica fazendo filmes. Estou na
mesma situação que dez anos atrás. Aqui no México não é possível desenvolver uma
indústria. Ainda que isso seja muito frustrante, ao mesmo tempo me motiva a buscar
novas estratégias para produzir filmes (OLIVARES).

De acordo com essa fala, podemos presumir que a diretora não relaciona a
pirataria diretamente à violação de direitos autorais, nem considera que ela diminua
o valor ou os lucros do produto cinematográfico.
O modo como se deu a distribuição de Asalto al Cine indica as deficiências
da indústria cinematográfica mexicana, ilustrando a posição desfavorável das
produções locais em seu relacionamento com as principais distribuidoras e
exibidores, implicando a “desintegração da cadeia de valor local” (LARROA E
GÓMEZ GARCIA, 2011, p. 849). Mas ele também demonstra a capacidade da
pirataria em desempenhar a função de distribuição, conectando um filme com
o seu público. Assim, embora não gere lucro imediato para o diretor ou para
a produtora, a circulação do filme pelas redes piratas atesta a viabilidade da
sua organização como um modo de distribuição veloz e de alta conectividade.
112 cinema apesar da imagem

Se, conforme colocado por Cubitt, “a distribuição tem por função organizar a
informação no tempo e espaço, acelerando ou retardando a sua chegada em
determinados espaços, que ela diferencia a partir desse parâmetro” (205, p. 194),
então o caso de Asalto al Cine acentua a produtividade da pirataria em retrabalhar o
tempo de distribuição e o desequilíbrio entre oferta e demanda. Enquanto as redes
legalizadas de distribuição cinematográfica retardaram o lançamento oficial do
filme, ou ainda o restringiram a uma única sala, a pirataria permitiu sua circulação.
Ao mesmo tempo, o fato de o filme estar disponível antes do seu lançamento nos
cinemas compromete o modelo de negócios baseado na hierarquização de janelas
de exibição, segundo o qual os filmes são primeiro exibidos no cinema e só depois
deslocados para outras plataformas e espaços comerciais (DVD, televisão, on-line).
O que esse caso nos mostra é que a pirataria não só desempenha funções que
esperamos da indústria cinematográfica formal, mas também que ela é capaz de
desafiar e negociar as fronteiras e a escala da economia audiovisual no México.
As habilidades e conhecimentos tecnológicos dos piratas não se restringem
ao processo de reprodução de filmes, como também lhes dão a capacidade de
fazer melhoramentos tradicionalmente atribuídos a profissionais especializados
da cadeia de distribuição cinematográfica. Um exemplo a ser considerado é o
que aconteceu com o filme Así (2005), do diretor Jesus-Mario Lozano, cuja versão
final possuía um problema de compressão de vídeo, causando falhas de sincronia.
Esse defeito não foi corrigido pela empresa distribuidora, e o filme foi lançado em
festivais e salas de cinema nessa condição. Acontece que na versão pirata do filme,
lançada simultaneamente nas banquinhas de camelô, o problema foi corrigido. A
cópia ilegal possuía uma qualidade superior ao original.
Nesse caso, em vez de nos prendermos à ilegalidade das práticas de pirataria,
poderíamos considerá-las em primeiro lugar como um tipo de performance, que
suplanta e aperfeiçoa as ferramentas e operações da distribuição cinematográfica
formal. Os piratas costumam se valer das mais diversas tecnologias. Além disso,
como está implicado nesse exemplo, eles podem estar mais atentos à qualidade da
imagem do que as distribuidoras oficiais, tomando mais cuidado com a experiência
da audiência. Seria então possível afirmar que a pirataria é capaz de “melhorar”
os filmes originais? No caso de Así, as práticas piratas vieram a interferir no
produto cinematográfico e conseguiram beneficiá-lo, tanto tecnológica quanto
esteticamente. Na versão distribuída oficialmente, Así era um filme “ruim”, incapaz
de ser reproduzido em certos aparelhos, com uma imagem “deficiente”. Já em sua
cópia pirata, ele foi adaptado e melhorado. Esse processo envolve uma manipulação
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 113

cuidadosa da tecnologia, capaz de gerar aperfeiçoamentos. Contrariando o


argumento de Larkin a respeito do colapso da tecnologia nas infraestruturas piratas,
o que esse caso demonstra é que as práticas piratas de distribuição cinematográfica
implicam outras formas de profissionalismo. A proficiência tecnológica e as
ferramentas empregadas na pirataria podem ocupar o lugar de certas operações
profissionais que são esperadas dos circuitos cinematográficos formais.
Como afirmado por Sundaram (1999) a respeito do contexto indiano, as
práticas da modernidade pirata são um exemplo de “conhecimento tecnológico
informal”, por meio das quais os vendedores aprendem a usar ferramentas. Os
estudos de caso acima apresentados são um exemplo de outras formas de controlar,
ou ainda de expandir, os meios de distribuição cinematográfica, tanto em termos
da comunicação do produto final com a audiência quanto da criação de espaços
para a circulação de filmes. Eles demonstram que reside nos grupos informais
um certo conhecimento tácito sobre como encontrar, reproduzir e vender cópias.
Esse conhecimento se relaciona a aperfeiçoamentos tecnológicos e à acumulação
de informações sobre pontos de venda, lojas de vídeo e redes. A perícia contida
nas práticas piratas reforça e expande o circuito de distribuição cinematográfica,
tornando-o mais durável e manejável, mais aberto à produção local.
Nesse sentido, é preciso diferenciar o conhecimento sobre a pirataria,
produzido nos contextos institucionais para fins de controle e policiamento,
daquele produzido em meio à pirataria, ligado aos praticantes que tratam do material
pirata. O conhecimento local sobre a pirataria está ligado às particularidades
socioculturais e materiais do sistema de distribuição mexicano. Esse conjunto de
práticas cria condições para a produção de outros canais de distribuição e o ajuste
de novos circuitos entre os realizadores e o público. Os três casos acima ressaltam
reorganizações de trabalho entre sistemas de distribuição formais e informais,
demonstrando que a pirataria se tornou um canal de saída, o caminho para uma
nova economia capaz de conectar a produção, a distribuição e a exibição de filmes.

Referências
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<http://www.am.com.mx/leon/espectaculos/ya-tiene-heli-fecha-de-estreno-25459.html>.
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114 cinema apesar da imagem

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WANG, S. Framing Piracy: Globalization and Film Distribution in Greater China. Oxford:
Rowman and Littlefield, 2003.
cine fantasma: o cinema morreu?
viva o cinema!
paola barreto leblanc

A pergunta pela natureza, o sentido, ou o “ser” do cinema, pergunta tão


antiga e já recolocada em diversos momentos de sua(s) história(s), parece nos levar
mais uma vez à conclusão de que ele ainda esteja por ser inventado (BAZIN, 1976,
p. 25). No momento em que as salas de exibição que não foram fechadas passam
por uma reformulação digital e se anuncia o “fim” da película, a pergunta ressurge,
renovada e implicada em questões que atravessam sua produção e distribuição. Ao
pensarmos em bairros que assistiram ao fechamento de dezenas de cinemas, como
é o caso do Brás e da Cinelândia Paulista, percebemos o quanto as configurações
da indústria de exibição cinematográfica, como se observam sobretudo no Brasil,
contribuem com um cenário de especulação imobiliária e redesenho urbano, no
qual as particularidades e identidades locais tendem ao desaparecimento.
Curiosamente, o desaparecimento é um traço e um estigma do cinema.
O argumento que vamos apresentar neste texto, em lugar de fazer uma defesa
nostálgica de antigos hábitos em risco, é o de que a sala de cinema que hoje
desaparece em diversas cidades do Brasil e das Américas representa um modelo
de commoditização, ou domesticação, como proposto por Pier Paolo Pasolini (1982),
de uma natureza mitológica e arquetípica que seria o princípio das imagens
animadas. Neste sentido, entendemos a codificação do aparato cinematográfico
como uma ruptura com as possibilidades mediúnicas que se anunciavam no
horizonte das “novas mídias” do século XIX, onde as chamadas “imagens vivas”
eram apreciadas em contextos que variavam entre a pesquisa científica e a séance
espiritualista. Deste modo entendemos a crise desta sala de cinema que dominou o
século XX como como um convite para pensar modelos de espectação de imagens
do século XXI, onde “novos” formatos encontram antigos ritos.
118 cinema apesar da imagem

Esta forma de olhar para a aurora do cinema, não no sentido de apontar as


deficiências ou fraquezas dos dispositivos que o “antecederam”, nem mesmo de
pensar em termos de antecedência, mas de sim procedência, encontra no célebre
simpósio da Fédération Internationale des Archives du Film (FIAF) em Brighton, em
1978, um ponto de clivagem. É a partir desse olhar renovado para o momento
inaugural do cinema que empreendemos aqui a nossa própria arqueologia, que
apresenta-se como um método de pesquisa, uma estratégia artística e um projeto
de intervenção urbana.

(An)Arqueologia de mídia
A arqueologia da mídia é um campo de pesquisa que se destaca dos estudos
de história e teoria de mídia ao longo dos anos 1980, e desde então vem se
expandido no entrecruzamento entre cinema, comunicação e filosofia da técnica.
(ZIELINSKI, 2002, 2014; PARIKKA, 2012). Para compreender de que forma
a noção de arqueologia articula-se com as mídias, auxilia-nos o pensamento
de Michel Foucault, que concebe a disciplina como investigação acerca das
condições de possibilidade, ou de princípio (ἀρχή), que fazem algo emergir. Trata-
se de uma abordagem que nega modelos históricos teleológicos, e que conduz,
invariavelmente, à formulação de (múltiplos) possíveis futuros, a partir dos traços
de mídias mortas, obsoletas ou marginais. A busca por este princípio se dá não
como uma tentativa de aproximar, por semelhança, manifestações heterogêneas
que surgem em seu trabalho de escavação, mas como uma leitura dos futuros
possíveis que este princípio seria capaz de originar, através por meio das diferenças
e das disparidades que emergem ao longo do tempo. Levando-se em consideração
esta concepção intempestiva da arqueologia, Siegfried Zielinski (2002) propõe o
neologismo (an)arqueologia, enfatizando o aspecto de sua insubordinação contra
uma compreensão linear da história. Ao utilizar o modelo de tempo profundo
(tiefe Zeit) da geologia e da paleontologia, os cortes, as interrupções e os desvios de
curso aparecem como pontos de interesse que podem apontar para perspectivas
futuras que resultariam em “novas (velhas) mídias”. Cabe ressaltar que a
escola alemã de arqueologia de mídia é tradicionalmente mais próxima a uma
abordagem baseada na análise da estrutura lógica ou informacional das mídias,
partindo das bases de sua constituição física para compreendê-las como sistemas
de inscrição, como sugere Kittler (2011). As abordagens de língua inglesa, por
outro lado, partem de uma análise mais articulada com as implicações sociais e
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 119

ambientais das mídias, caso de Sean Cubitt (2015), por exemplo. Nosso esforço
aqui irá oscilar entre estas duas visões, ora tendendo para a explicação da técnica
pelo social, ora do social pelo técnico, em um intrincado jogo de disputas políticas
e simbólicas que envolvem, entre outros, o registro de patentes, os interesses de
mercado, a cultura do espetáculo e o embate entre ciência e mito.
Bruce Sterling propõe em seu Dead Media Manifesto (1985) a criação de um
livro dedicado às mídias que perderam suas funções ou tiveram sua produção
descontinuada: “What we need is a somber, thoughtful, thorough, hype-free, even lugubrious
book that honors the dead and resuscitates the spiritual ancestors of today’s mediated frenzy”.
Se trouxermos esta noção das mídias mortas para os espaços mortos – ou lugares
fantasmas – cuja desvalorização evidencia movimentos perversos na lógica
capitalista de exploração de territórios, podemos pensar também o ocaso de certo
tipo de experiência de cinema segundo o princípio de obsolescência programada.
Como sabemos, a obsolescência programada está relacionada a uma cultura de
descarte tecnológico, onde os aparatos são desenvolvidos para terem uma vida
útil limitada. Neste cenário toda “nova mídia” já surge velha; é de sua própria
constituição tornar-se descartável. A necessidade de crítica deste modelo se dá,
como aponta Parikka (2012), não apenas no plano ideológico ou discursivo, mas
na micro política, e a cultura do do-it-yourself assim como o reaproveitamento de
mídias é uma forma ativa de combate.
É da natureza do sistema capitalista de produção desassociar as forças
sociais do trabalho dos bens comercializados, ou seja apagar como (e por quem)
foram produzidos. O conceito de fetiche da mercadoria de Marx encerra um aspecto
fantasmagórico, que reside justamente na alienação do trabalho dos bens a ele
associados1. Se podemos afirmar haver no meio digital uma desmaterialização
da imagem técnica, no sentido de uma “zerodimensionalidade”, como sugerida
por Flusser (2008), não podemos esquecer do fato que os aparatos digitais, ou
analógicos, baseiam-se em elementos físicos, químicos e materiais, extraídos da
natureza em condições que degradam meio ambiente e comunidades por meio de
um modelo de extrativismo que remonta ao sistema colonial.

1. Interessante notar a presença do termo fantasmagoria na Seção 4, Capítulo 1 de “O


Capital”: “O fetichismo da mercadoria e seu segredo” in Marx, Karl, Engels Friedrich.
Das Kapital: Kritik der politischen Ökonomie (1ª ed.). O. Meissner: Hamburg, 1867. Para um
aprofundamento nas relações entre Marx e os espectros ver: DERRIDA, Jacques, Spectres
de Marx, Paris: Galilée, 1993.
120 cinema apesar da imagem

Nesse contexto, pensar a história do cinema simplesmente enquadrada em


uma ideologia do progresso, de crença no desenvolvimento tecnológico, seguindo
toda uma linhagem de dispositivos que se sucedem na busca pelo mimetismo
total, revela-se insuficiente. É fato que a indústria audiovisual desenvolve-se nesta
direção: o mito da alta resolução continua despejando no mercado novas câmeras,
novos sistemas de registro e armazenamento, novas necessidades para a exibição
que resultam no aniquilamento de modos antigos de produção e consumo de
imagens. Contudo, estamos interessados em pensar em outra chave os devires do
cinema, da imagem em movimento, das imagens animadas e das imagens com
alma. Entendê-las não somente pela mimese ou cinese, mas por aquilo que seriam
capazes de invocar, ou fazer aparecer; por suas capacidades de revelação, magia
e alquimia. Nessa direção, nosso trabalho de arqueologia torna-se não somente
método de pesquisa, mas também estratégia artística e intervenção estética no
espaço, na esteira de uma longa tradição de inventores, artesãos e feiticeiros que
invocaram e seguem invocando as potencialidades mágico-míticas da imagem
para a criação de mundos, produzindo, cada um ao seu modo, uma forma de
alquimia ou feitiço. Incorporamos assim influências de naturezas e épocas
distintas, incluindo o magnetismo de Athanasius Kircher, as fantasmagorias de
Étienne-Gaspard Robert, os truques de Georges Méliès e as potências do falso de
Orson Welles, na busca por um ofício que Jean-Luc Godard definiu como (nem
arte nem técnica): mistério.2 “É nesse sentido, englobando passado e futuro, que o
cinema é não somente a arte, mas também a religião do presente. E é nesse sentido
igualmente, que a cinelândia é o centro da cidade. É por isso que um estudo
existencial da Cinelândia urge” (FLUSSER, 1965).

A significação mágica das imagens e a significação mítica dos


lugares
«Any sufficiently advanced technology is indistinguishable from magic.»
Arthur C. Clarke, 1973

Em 28 de novembro de 1895, é registrada aquela que entrou para a


história como a primeira projeção de filmes para um público pagante: o sessão
do Cinématographe dos irmãos Lumière no Salon Indien do Gran Café em Paris. Esse

2. Citacão extraída de Histoire(s) du cinéma - Fatale Beauté (França, 1997: 09’22” - 09’49”).
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 121

evento ocorre algumas semanas após a sessão promovida em 01 de Novembro


pelos irmãos Skladanowsky, no Variété Wintergarten, em Berlim, com a apresentação
de seu Bioskop. Que, por sua vez, ocorre mais de um ano depois da sessão de
Phantoscope que Charles F. Jenkins realizou para seus familiares em Indiana nos
Estados Unidos... É curioso imaginar que poderíamos hoje frequentar o Bioscópio
ou o Fantoscópio em vez da habitual “ida ao cinema”. Quando nos referimos
aqui a essas e outras invenções que desapareceram como formas de pré-cinema
(MACHADO, 1997) ou frühes Kino (ELSAESSER, 2002), isso não significa que as
tomemos como etapas ou versões menos bem-acabadas ou eficientes daquilo que
o cinematógrafo foi capaz de efetivar. O panorama de onde essas “novas mídias”
emergiram no século XIX era absolutamente heterogêneo, e não se deixa reduzir
a uma narrativa única; as invenções eram ofertadas em público ou privadamente
em um contexto que misturava descoberta científica, espetáculo de curiosidades
e comunicação com o além, pra citar apenas alguns aspectos. As propagandas
da época convocavam o público para apreciar as “imagens vivas”, que nos
habituamos a chamar de imagens em movimento. O caráter vital, no sentido de
invocação mesma da vida, estava diretamente associado à novidade, e em muitos
casos expresso nos sugestivos nomes dos dispositivos patenteados. Além dos acima
mencionados, podemos enumerar outros tais como Animatógrafo, Biograf, Biokam,
Vitascope, Zoetrope, Zoopraxiscope, em um jogo curioso entre as máquinas recém
criadas e as raízes etimológicas que definem o conceito de vida em suas diversas
acepções no grego e no latim. Ao longo do século XIX, o desejo ancestral de
comunicação entre vivos e mortos ganhou uma face técnica, com o advento do
telégrafo e da fotografia. As “novas mídias”, entendidas cientificamente como
máquinas de reprodução técnica ou próteses de visão e comunicação tornaram-se
instrumentos de análise de fenômenos (sobre)naturais e psíquicos, como a hipnose
e outros estados de transe. A associação entre as manifestações do inconsciente
estudadas pela então nascente psiquiatria e os novos aparatos técnicos nos deu,
como um de seus resultados, a invenção da histeria (DIDI-HUBERMAN, 2012).
Nesse contexto podemos afirmar que o telégrafo trouxe como resultado possível a
invenção da doutrina espiritualista e seus médiuns (SCONCE, 2000). No entanto,
ao contrário da psicanálise, suas sessões (séances) não obtiveram a legitimação dos
diversos comitês científicos que se reuniram ao longo de décadas de controvérsia
e incluíram figuras tão célebres quanto díspares como a cientista Marie Curie, o
filósofo Henri Bergson e o autor Arthur Conan Doyle. Sem oferecer provas sobre
a validade científica de teorias sobre fenômenos como a telecinese, as alucinações
122 cinema apesar da imagem

coletivas e as materializações, a atividade de médiuns e sua comunicação com os


espíritos foram acusadas de fraude e charlatanismo, deixando o campo de ciência
rumo a um terreno movediço - entre o espetáculo e a religião. Não teremos aqui
espaço para desdobrar este vasto e fascinante tema3, que evidencia a linha tênue
entre crença - mito - e ciência, e o papel desempenhado pelo objeto técnico em
seu traçado. Investigar esse traçado e compreender o objeto técnico a partir
das ciências naturais, notadamente a biologia e o estudo dos seres vivos, bem
como das ciências sociais, como a etnografia e a antropologia, é uma operação
que se intensifica ao longo dos anos 1950, ganhando corpo na formulação do
pensamento estruturalista e da cibernética. Como apontado por diversos autores
(ALMEIDA, 1999; LE ROUX, 2009) ainda que seja um ponto pouco explorado
na literatura, Lévi-Strauss refere-se com frequência a conceitos e modelos
cibernéticos. Seu interesse pelas teorias de informação e comunicação e a ênfase
na teoria de grupo para o entendimento, seja do pensamento mitológico, seja do
pensamento conceitual ou numérico, no que diz respeito a criação de narrativas e
modelos de conhecimento, o levaram a operar por modelos estatísticos, em lugar
de modelos mecânicos. O legado destas contribuições reverberam em questões
atuais como a da inteligência artificial, da consciência na máquina e da teoria
ator-rede latouriana, e nos ajudam a pensar nossa proposta de ritual técnico,
como apresentaremos a seguir.
O termo cinematógrafo, de onde deriva o cinema, pressupõe ser o movimento,
entendido em sua dimensão mecânica, o que define a animação da imagem. Neste
sentido, gostaríamos de pensar aqui de outro modo: não seria a mecanização a
causa ilusão de movimento; seria antes o movimento, inerente a um processo a
um só tempo psíquico, físico e simbólico, instaurado pela relação com (entre) as
imagens, a causa da animação. Para não reduzir o entendimento do movimento
do cinema a explicações científicas restritas ao campo da fisiologia ou da
psicologia, trabalhamos com “uma concepção mitológica da imagem, que dá
forma a explicação do tempo e abre as categorias do ser para o abalo do devir.”
(MICHAUD, 2013, p. 329). Deste modo, em lugar de comemorar o triunfo do
cinematógrafo e o modelo de expectação que ele inaugura sobre outras formas
de relação com o movimento das (nas) imagens, poderíamos pensar que ocorre

3. Um interessante livro a respeito foi escrito pelo mágico, dublê e personagem de vaudeville
Harry Houdini, que atuou como desmascarador de médiuns no início do século XX.
HOUDINI, Harry. A Magician among the Spirits. 1ª ed. Cambridge: Cambridge University
Press, 2011.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 123

em seu estabelecimento uma primeira morte do cinema4, com a negação de


toda uma cultura de mediúnica, que têm por desejo invocar relações vitais ou
espirituais a partir das imagens. Provocados em grande medida por esse problema,
empreendemos nossa (an)arqueologia por meio dos elos espectrais entre mídia
e médium, vida e não-vida, e apresentaremos nosso modelo de intervenção
que propõe ocupar com fantasmagorias espaços desativados, ameaçados ou
esquecidos, em um diálogo direto com as noções que expusemos até aqui e com
conceitos que vem sendo trabalhados por artistas pesquisadores brasileiros como
Giselle Beiguelman (2014) e Mario Ramiro (2008), por exemplo.
O cinema sedimentou-se como uma arte industrial, funcionando de acordo
com as leis do capital, segundo as quais os filmes circulam como mercadorias que
se destinam em última instância a gerar lucros. Radicalizando propostas que os
chamados cinemas independentes, experimentais ou novos (como o Cinema Novo
Brasileiro, o Novo Cinema Alemão e a Nouvelle Vague francesa) defenderam em
trincheiras de resistência ao longo do século XX, entramos o século XXI discutindo
um cinema pós-industrial (MIGLIORIN, 2011), no qual modos de produção
coletivos desafiam hierarquias e modelos fordistas de segmentação e distribuição do
trabalho audiovisual. Poderíamos, para pensar a partir de categorias flusserianas,
falar em um cinema pós-histórico ou informacional, que agiria não como um
espaço para criação de narrativas (históricas), mas como um campo para produção
de in-formação nova, de novas formas, pondo em cena o embate entre um modo
discursivo, que opera segundo uma lógica textual, linear, teleológica, e um modo
imaginativo, que opera segundo uma lógica circular, não linear, mítica, de produção
de imagens. O embate entre estes dois modos cria panes de temporalidade,
permitindo a emergência de situações não previsíveis, onde há possibilidade de
escapar da entropia — e da morte. Dessa perspectiva, se o fechamento das salas de
cinema e os processos de digitalização podem ser vistos como fenômenos negativos
que operam segundo a lógica da obsolescência programada, eles também podem ser
vistos positivamente a partir da emergência de novos modelos de compartilhamento
em rede, que, se não substituem a experiência social da sala de cinema, permitem
arquiteturas potentes e revolucionárias, onde o conceito de autor, produtor,
espectador e mesmo de filme são colocados em xeque.

4 Sobre as muitas “mortes” do cinema ver: GAUDREAULT, Andre; MARION, Philippe.


La fin du cinéma ? Un média en crise à l’ère du numérique. Armand Colin: Paris, 2013.
124 cinema apesar da imagem

Senhoras e Senhores: Cine Fantasma!


Cine Fantasma é uma série de performances e vídeointervenções que
cria situações de projeção de imagens em locais degradados, ameaçados de
extinção ou relegados ao esquecimento, buscando articulações entre memória,
esquecimento e constituição de identidade. O material utilizado nas projeções é
levantado colaborativamente, por meio de workshops, mecanismos de busca on-line
e off-line, entrevistas e principalmente, como gostamos de afirmar, em nossa livre
releitura das séances, a conjuração – o que coloca nosso trabalho entre práticas
de pseudociência, psicogeografia e tecnoxamanismo. Formando um arquivo
vivo que encarna a memória coletiva e afetiva do espaço em questão, o trabalho
nasceu associado às salas de cinema que perderam sua função, transformadas em
estacionamentos, supermercados, lojas de departamentos ou igrejas, fenômeno
muito comum em diversas cidades brasileiras que já abrigaram as vídeo-
intervenções.5 No entanto, a possibilidade de invocação da memória por meio
da projeção de imagens, textos e sons produzidos coletivamente por e para um
sítio específico revelou-se uma forma de ritual técnico com dinâmicas próprias,
e o trabalho expandiu-se para além dos cinemas em vias de desaparecimento,
ganhando força em outros contextos, como por exemplo a Aldeia Maracanã
e o antigo DOPs, no Rio de Janeiro. Desse modo as ações do Cine Fantasma
constituem-se como um movimento de resistência à transformação de lugares
em não-lugares, no sentido proposto por Marc Augé (1992) ao referir-se ao
apagamento de traços históricos, identitários ou relacionais em espaços urbanos.
Observada a irreversibilidade de certos processos de degradação e mudança, o
ritual acontece menos no sentido de restabelecimento de uma situação passada,
de caráter saudosista, e mais como uma forma de intervenção crítica que invoca
nas ruínas e rupturas com o passado as condições de possibilidade para o
entendimento do presente e a formulação de possíveis futuros.
É importante frisar que a proposta de vídeointervenção do Cine Fantasma,
ainda que se utilize de tecnologias digitais, reside menos na produção de efeitos
de video mapping ou realidade aumentada, e mais na criação de redes de afeto e
memórias compartilhadas. Evitando uma perspectiva simplesmente nostálgica,
as ações investem na exploração das potências da montagem e da projeção
de imagens, pensando a projeção em seu duplo sentido: técnico e psíquico.

5. Um portfolio reunindo documentação das intervenções encontra-se on-line em


cargocollective.com/cinefantasma/
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 125

Operando fora da lógica do espetáculo ou do consumo, e a partir de noções como


comunidade, pertencimento e assombro, a tecnologia atua como uma fagulha que
deflagra o ritual de invocação, remixando imagens, ao vivo, na rua, e criando
aquilo que Benjamin (1985a) chamaria de imagem-espaço (Bildraum), construída
por meio de uma ação política que diz respeito a um coletivo. Assim, as colagens
audiovisuais, em suas aparições fantasmagóricas, buscam materializar a memória
coletiva e afetiva do espaço em questão, explorando a relação entre as estruturas
materiais e simbólicas que se entrelaçam na arquitetura das cidades.
A memória poderia ser definida como a instância onde se sobrepõem as
marcas da experiência. Seria aquilo que escapa do esquecimento, aquilo que é
reconstituído pela lembrança em operações que não tem fim e que se atualizam
incessantemente, em um processo cumulativo, generativo, vivo. Na teoria
platônica, conhecimento é reminiscência: as coisas são sabidas, mas esquecidas,
e conhecer é lembrar. Podemos pensar também a memória como uma promessa
de futuro, um germe, prenhe das possibilidades vindouras, carregando consigo as
condições de possibilidade para desdobramentos múltiplos, o vir a ser, o por vir,
o devir... Assim, a memória diria mais do futuro que do passado, visto que o que
passou, já foi, e só existe na memória, a cada vez que se atualiza em novas redes
e conexões. Isso pode ocorrer involuntariamente, a partir de um gatilho material,
como a madeleine de Proust; ou pode se formar por uma operação da consciência,
tendo a intuição como fio metódico, como propôs Bergson. A memória pode ser
um traço, uma marca, um vestígio, um rastro. Ou uma invenção. Ou uma lacuna.
Ou um fantasma. Este é o escopo do Cine Fantasma, cinema sem sala, o filme
entendido como fluxo ativado pelas lembranças e expectativas dos espectadores
habitantes do espaço. Ao pensar maneiras de definir o que seria este trabalho de
montagem e conjuração provocado pelo Cine Fantasma, poderíamos dizer que as
justaposições sobre a arquitetura buscam estabelecer condições de apreensão de
elementos que existem no espaço mas de algum modo não estão visíveis, trazendo
o que permanecia oculto para o campo da experiência. É cinema de arquitetura
efêmera, que projeta imagens que se constituem a partir das redes tecidas para a
realização de cada sessão-intervenção.
No Cine Fantasma, operamos por associações livres descontínuas, por vezes
arbitrárias, e que encarnam o que entendemos ser uma prática de mistura entre
imagens-técnicas e imagens míticas, a fim de atualizar o princípio animador do
que entendemos por cinema. Produzindo um tipo de “subfilme mítico ou infantil”,
como se refere Pasolini (1982) ao “monstro hipnótico”, sonhamos com a utopia de
126 cinema apesar da imagem

uma forma ancestral, herdeira dos adivinhos que, na descrição de Benjamin (1985b,
p. 112), projetavam nas borras de café, nas vísceras dos animais e nos movimentos
celestes suas (pre)visões. Por meio de redes digitais que nos permitem colocar em
circulação o compartilhamento de imagens em uma nova escala, experimentamos
do streaming às plataformas de mineração de imagens em tempo real,6 produzindo
fantasmagorias automatizadas, randômicas e incontroláveis, onde as manchas
e borrões ganham formas algorítmicas. Anacronismos, saltos e justaposições
temporais constituem nosso método e nossa prática, em procedimentos análogos
ao do historiador da arte alemão Aby Warburg, que propôs, com a criação de seu
Atlas Mnemosyne em 1929 o que chamou de “uma história de fantasmas para gente
grande”. História, em alemão Geschichte, inclui o radical Schichte, que se traduz por
“camada”. As camadas da história sobrepõem-se não segundo um princípio de
ordem cronológica, linear, mas por meio de movimentos irregulares, que as fazem
ora submergirem, ora emergirem, deixando aparecer aquilo que permanece,
latente, através do tempo. Desse modo, por exemplo, o ritual da serpente
realizado pelos índios Hopi, testemunhado por Warburg em visita ao oeste da
América do Norte no final do século XIX, pode abrir um campo de possibilidades
para uma renovada leitura do Renascimento florentino. Como modelo de
conhecimento, ou antes rito de orientação, Mnemosyne não se resume a buscar
um princípio invariante em meio a realidades heterogêneas, mas pelo contrário,
a partir das diferenças e da alteridade, mapear identidades que reverberam nas
imagens e pelas imagens, entendidas como mediações entre homem e mundo,
que se atualizam e se reencontram no espaço e no tempo através das civilizações.
É uma forma rica e expandida de compreender o fenômeno da imagem, e se
vale da reprodutibilidade técnica para reunir, no presente, a formas que não têm
tempo, e que advêm, justamente, das relações entre as imagens, fazendo surgir
algo que não se daria a ver nas imagens individualmente. Esse pensamento está
relacionado a modos de ritualização das ações do homem no mundo, nos quais
a imagem possui poderes mágicos de invocação ou de instauração de realidades.

6. Na intervenção realizada no Cine Art Palácio em São Paulo, como parte do Besides the
Screen, trabalhamos com a plataforma on-line Midia Magia, desenvolvida pela artista Denise
Agassi, que, em suas palavras, “permite criar sequências audiovisuais a partir de arquivos
de fotografia, vídeo, texto e áudio existentes em bancos de dados online [Flickr, Youtube,
Twitter e Freesound]. O sistema é ativado por meio de tags escolhidas pelo autor, conforme
as categorias disponíveis. A plataforma é interativa e aberta ao público para a criação de
novas ‘net artes’ que integram as exposições online.” Disponível em plataforma.midiamagia.
net.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 127

Dessa perspectiva, podemos voltar às cavernas de Chauvet ou Lascaux, mas


não simplesmente para admirar o engenho da representação do movimento
nas múltiplas patas dos animais desenhados e enxergar aí semelhanças com as
técnicas de animação quadro-a-quadro contemporâneas. Se podemos afirmar
que os artistas-caçadores pré-históricos tomavam partido da superfície irregular
da caverna para criar a impressão de movimento, as cavernas eram escolhidas
por suas propriedades acústicas, como formas de sintonizar a natureza vibrátil
do universo, em um ritual primitivo de invocação da caça (REKNIKOFF, 2015;
DEVEREUX, 2015). As imagens nas cavernas não tinham um valor de exposição,
não eram para ser vistas. Tinham um valor de culto, serviam para criar efeitos
no mundo, para criar “campos”. Ou seja: não foi o aspecto mecânico de uma
representação bidimensional o seu ponto de engenho, mas a invocação de um
aspecto vital através da imagem. Com as intervenções do Cine Fantasma não
estamos sugerindo um primitivismo fetichista que nos levaria de volta as origens de
nossa ancestralidade, mas sim a ideia de assumir o movimento das imagens como
um instrumento de ação histórica. E, nesse sentido, pensamos a história a contra
pelo, pois “é a partir da história (e não da natureza […]) que pode ser determinado,
em última instância, o domínio da vida” (BENJAMIN, 2011, p. 105).

Cinema apesar da imagem


A imagem, se a pensamos dentro de uma tradição ocidental, em suas
raízes gregas, é ideia, é ídolo, é ícone. A iconoclastia fala da impossibilidade da
representação, não em termos de uma simples interdição, de cunho moral ou
religioso, mas em termos de uma impossibilidade metafísica, como sugere Flusser.
As imagens são como biombos, escondendo aquilo mesmo que desejam mostrar:
Bilder verstellen was sie vorstellen, afirma o filósofo (1990). A ideia de um “cinema
apesar da imagem” implica assumir esse interdito, fazendo da impossibilidade de
enunciar um modo de enunciação.
Vilém Flusser critica a adoração das imagens que afasta e aliena o homem
do mundo, a qual chama de idolatria. A crítica de Flusser à idolatria refere-se ao
fato de que o homem, apartado do mundo, coloca-se contra ele, e não como um
irmão de todas as coisas. “As festas clássicas na acrópole festejavam a natureza
e seus ritos simbolizavam aspectos da natureza. A festa na Cinelândia festeja o
homem enquanto sujeito e seus ritos simbolizam a adequação deste sujeito ao seu
objeto (…)” (FLUSSER, 1965).
128 cinema apesar da imagem

A Cinelândia paulista não existe mais. Nos cadáveres de seus cinemas,


fazemos a nossa festa, rito de passagem entre a morte do cinema, ou a morte
no cinema ou o cinema como morte, e uma possibilidade de cinema vivo,
colocando, como sugere Nietzsche (2003), a história a serviço da vida, não a favor
do puro reconhecimento ou da ruminação. Na projeção sobre as fachadas, cria-
se um campo de arquitetura expandida, adicionando camadas informacionais às
camadas arquitetônicas, amplificando a heterotopia do próprio cinema através de
um ritual técnico com as imagens.
Flusser afirma ser o hábito uma espécie de cobertura que esconde o mundo.
Este pensamento decorre de sua experiência no exílio, de viver fora de seu habitual,
estar em território estranho, terra estrangeira. Pensar o cinema apesar da imagem,
à margem da tela, é uma empreitada dessa mesma natureza. “O hábito é anti-
estético” afirma o filósofo. Nesse sentido, a experiência estética do cinema precisa
ser inabitual, ou seja: buscar meios, fora do hábito, para a existência de filmes.

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und Variantologie der Künste und Medien. Eckhard Fuerlus: Köln, 2014.
parte 3
visão |
bricolagens
vídeo aberto em 360 graus
larisa blazic
tradução gabriel menotti

Software livre e aberto, uma noção introduzida por desenvolvedores e


hackers nos anos 1970, hoje encontra diversas aplicações em campos criativos,
tais como o vídeo. Desde o seu início, o vídeo aberto [open video] e a produção de
mídia aberta são marcados pelo uso de licenças livres e por uma atitude copyleft,
que encoraja o compartilhamento e a troca. Essa forma de trabalho criou novas
oportunidades para a produção e distribuição de vídeo, estimulando projetos
comunitários, o vídeo colaborativo e a produção de arte participativa, evidente
em projetos como Active Archives, Depford.TV, The Pirate Cinema e Pad.ma,
bem como em organizações tais como a Open Video Alliance.
Nas últimas duas décadas, as tecnologias digitais transformaram o modo
como a mídia é produzida, distribuída e experimentada. Esse artigo, que relata
brevemente certos processos de pós-produção de imagem, busca reconhecer esse
fato e evidenciar as implicações culturais e sociais do modo de trabalho com
software livre de código aberto [Free/Libre/Open Source Software (FLOSS)] e seu
impacto no vídeo. Acadêmicos como Matthew Fuller, Sean Cubitt, Lev Manovich
e Geert Lovink, entre outros, podem fornecer o contexto e os elementos discursivos
necessários para ampliar o estudo das questões aqui expostas.
A pesquisa sobre exibição de vídeo em 360 graus apresentada neste capítulo
teve início em 2012, após a ICCI360 Arena, evento organizado pelo Innovation for
the Creative and Cultural Industries (ICCI) da Universidade de Plymouth, na Inglaterra.
Na época, todo o sistema de exibição empregado fazia uso de software proprietário
que, por definição, impede o acesso e o uso público livre da tecnologia.
136 cinema apesar da imagem

Vídeo aberto, codecs e software livre


A popularização do vídeo aberto começou no início dos anos 1990 graças ao
container Ogg, desenvolvido pela Xiph.Org Foundation, que permite o streaming
eficiente e a manipulação multimídia de alta qualidade. Theora, um formato livre
para a compressão de vídeo com perda de dados desenvolvido pela mesma instituição,
foi introduzido no começo dos anos 2000. Esses dois formatos de codificação digital,
aliados ao lançamento da linguagem HTML5, permitiram o desenvolvimentos de
novos codecs de vídeo aberto, tais como WebM e Matroska, e motivaram a recente
“abertura” do H.264, um dos codecs de vídeo mais amplamente utilizados.
Muito embora a maior parte desses acontecimentos esteja diretamente ligada
à internet e a distribuição de vídeo on-line, ela causa impactos na produção de vídeo
como um todo, não importa qual seja o seu formato ou plataforma de distribuição
final. Além disso, ao empregarem as quatro liberdades essenciais do software livre –
relativas ao uso, à copia, à manipulação e à distribuição do conteúdo ou do código
–, esses avanços tecnológicos promovem formas de criatividade relacionadas à
coletividade e à colaboração.
Os programas aqui empregados para a pós-produção de vídeo em 360
graus são Processing, Gimp, Kdenlive e VLC. São todos softwares livres, que
oferecem acesso ao seu código fonte, o que nos dá a oportunidade de estudá-
los e modificá-los, possibilitando que alteremos o funcionamento do programa.
Esse aspecto, que é possivelmente o mais importante do software livre, permite
aos usuários participarem ativamente da construção das ferramentas empregadas
na sua produção criativa. Além disso, ele permite uma liberdade de criação e
colaboração para além dos limites impostos pelas leis de propriedade intelectual e
pela custosas licenças de softwares e codecs proprietários.

Estudo de caso: fluxo de pós-produção para uma instalação de


vídeo 360 graus
Esse é um relato sobre o processo de filmagem e pós-produção de vídeo para
uma configuração de projeção panorâmica. Embora o hardware utilizado nessa
pesquisa prática seja proprietário, existem pacotes FLOSS e projetos individuais
disponíveis que nos possibilitariam cobrir toda a pós-produção com tecnologias
livres. A documentação abaixo analisa esse fluxo de trabalho e os métodos que
ele emprega como uma oportunidade para práticas de arte participatória e a
produção de vídeo aberto e colaborativo.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 137

1. Golan Levin e o unwrapping da imagem 360o no Processing


Em 2010, o artista americano Golan Levin criou um código nas plataformas
openFrameworks e Processing capaz de desembrulhar [unwrap] o vídeo produzido
pela câmera panorâmica Bloggie, da Sony. Essa câmera grava o vídeo em formato
anular, resultando num arquivo que precisa ser processado digitalmente para
poder ser exibido da maneira correta. Ela vem de fábrica com um software que é
capaz de realizar essa tarefa, mas que só é compatível com o sistema operacional
Microsoft Windows. O Processing, por sua vez, é um ambiente de programação
multiplataforma, livre e aberto, criado por Casey Reas e Ben Fry, em 2010, e desde
então mantido por uma comunidade de usuários bastante ativa. Ele costuma ser
utilizado como uma ferramenta para promover a alfabetização em programação
no campo das artes, bem como a alfabetização visual no campo da tecnologia.
O uso do código de Levin para desembrulhar o vídeo da câmera Bloggie é
bem simples. O usuário começa baixando da internet o seu código fonte, num
diretório que contém o arquivo de Processing, um arquivo de vídeo para teste e um
arquivo de texto com as configurações. Se o usuário já possuir o Processing instalado
no seu computador, basta dar um duplo-clique no arquivo do código e apertar o
botão respectivo para executá-lo. Essa ação abre uma janela separada com o vídeo
desembrulhado e pronto para ser exportado (como um arquivo Quicktime, um
formato proprietário). A exportação acontece pressionando a tecla “e”.

Still do vídeo da câmera Bloggie sem tratamento


138 cinema apesar da imagem

Still do mesmo vídeo após ser desembrulhado em Processing 2.1

2. Kdenlive
Após o arquivo de vídeo ser exportado, ele precisa ser codificado num
formato de código aberto e editado para servir aos propósitos de exibição. Isso
é feito usando o Kdenlive, um programa para edição de vídeo livre e aberto. O
Kdenlive é completamente estável e funciona em diversas plataformas. Para essa
atividade, executamos o programa em uma distribuição do Ubuntu Linux.
A interface do Kdenlive é dividida em três áreas principais: um banco de
recursos, um monitor e uma linha do tempo, que são familiares a qualquer um
que já tenha trabalhado com software para edição de vídeo. É possível editar uma
ou várias pistas de vídeo com ferramentas simples de corte e seleção, bem como
aplicar uma diversidade de efeitos e transições. O software também oferece a
possibilidade de criar máscaras, composições, empregar texto e renderizar numa
ampla variedade de formatos, notadamente Ogg/Theora/Matroska e WebM.

Interface do Kdenlive

Nessa etapa, um fator importante para se levar em conta é a proporção


da imagem adequada para uma instalação de vídeo multitela. A proporção
recomendada, caso sejam utilizados cinco computadores (ou projetores) como
fonte de imagem, é de 1:9. Entretanto, como em muitos outros casos, a melhor
forma de estabelecer a dimensão e resolução exatas para uma determinada obra
é por meio de tentativa e erro.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 139

3. Gimp
Outra opção para a manipulação do vídeo exportado pelo Processing é o
software Gimp. Gimp é um programa para a manipulação de imagens bitmap. Se
o vídeo for exportado como uma sequência de imagens, é possível desembrulhá-lo
no Gimp usando o filtro Distort via Polar Coordinates. Essa alternativa possibilita
criar imagens diferenciadas, o que é útil no caso do vídeo final adotar uma
linguagem visual mais experimental.

Imagem editada no Gimp

4. VLC
Finalmente, quando todo o processo de edição e manipulação estiverem
concluídos e o vídeo estiver pronto para o streaming, utilizamos o software VLC
para transmiti-lo de um computador para vários outros, de modo a criar diversas
superfícies de exibição que serão utilizadas na composição da projeção panorâmica
360o. Como as ferramentas acima, o VLC também é um software desenvolvido
por uma comunidade. Ele é normalmente utilizado como um reprodutor de
mídia, mas também oferece opções de streaming, uma das quais é o multicast.
O streaming multicast é um modo de transmitir áudio e vídeo por meio de uma
rede ad-hoc, na qual um computador envia sinais para diversos outros utilizando
endereços IP UDP/RTP Multicast.1

1. Para mais informações sobre sistemas multicast, ver <http://en.flossmanuals.net/vlc/


playing-streams/>.
140 cinema apesar da imagem

Painel de protocolos de rede do VLC

O fluxo de imagens recebido é segmentado em linhas e/ou colunas,


dependendo do número e da configuração de computadores/projetores
disponíveis, por meio dos efeitos geométricos do VLC.

Painel de efeitos geométricos do VLC

Com essa última etapa, o fluxo de trabalho para a projeção panorâmica


multitela utilizando FLOSS está concluído. Boa sorte e divirta-se criando!
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 141

Imagem segmentada, pronta para a projeção multitela

PS: Floss Manuals e a documentação do software livre


O suporte para várias etapas deste processo pode ser obtido via Floss Manuals,
uma plataforma voltada para a documentação comunitária do software livre. Ela
foi iniciada em 2007 por Adam Hyde, e atualmente consiste de 3 comunidades
linguísticas independentes (francesa, inglesa e finlandesa) que recebem o apoio de
uma fundação holandesa. Por meio de maratonas de escrita [booksprints] e técnicas
de edição distribuídas, o site já produziu mais de 120 livros em mais de trinta
línguas, contando com a colaboração de mais de quatro mil pessoas. Atualmente, a
iniciativa busca desenvolver parcerias com formas de educação de base e produzir
material pedagógico sobre software livre. Trata-se de uma iniciativa editorial
inestimável, onde o conhecimento sobre software livre é gerado e compartilhado.
ets - experimentos
técno-sinestésicos
barbara pires e castro, carlos augusto
m. da nóbrega, maria luiza p. g. fragoso e
filipi dias oliveira

O Núcleo de Arte e Novos Organismos, criado em 2010, está vinculado à


linha de pesquisa Poéticas Interdisciplinares do Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
coordenado pelos artistas pesquisadores Prof. Dr. Carlos Augusto M. da Nóbrega
(Guto Nóbrega) e Profa. Dra. Maria Luiza P. G. Fragoso (Malu Fragoso). Trata-se
de um grupo interdisciplinar, abrangendo discentes, docentes e pesquisadores de
diversas unidades acadêmicas e programas de pós-graduação1, que desenvolve
trabalho de caráter artístico/investigativo/acadêmico em arte e tecnologia. Mais
especificamente, ultimamente temos investido em propostas de construção de
recursos compartilhados, voltados para a pesquisa e a criação de experimentos
com o audiovisual e as artes interativas. O evento Hiperorgânicos: Concha/Ressonâncias
Simpósio Internacional e Laboratório Aberto de Pesquisa em Arte, Hibridação e Biotelemática2,
realizado em novembro de 2013, é um exemplo desse trabalho.
O tripé conceitual que permeia as pesquisas do NANO é estruturado sobre os
eixos investigativos: arte, hibridação e biotelemática. Os conceitos que articulam
esse tripé são motivados pela necessidade de se pensar a arte e o design em seu

1. Escola de Belas Artes, Escola de Comunicação, Escola de Música, Escola Politécnica e


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, SMT- Sinais, Telecomunicações e Multimídia
da Coppe, Sonic Arts Research Centre (SARC) da Queen’s University Belfast, o Laboratório de
Creaciones Intermedia na Faculdade de Belas Artes em San Carlos, Valência – Espanha, a
UFBA, UNB, UFJF, UFG, UFRB, USP, UNESP, UDESC, UFSM, dentre outros.
2. Evento realizado no Auditório Samira Mesquita, Prédio da Reitoria, Ilha do Fundão.
144 cinema apesar da imagem

entrecruzamento com a ciência e as tecnologias da informação/comunicação,


em especial naquilo que concerne as novas possibilidades de conectividade
entre organismos naturais e artificiais (questão inerente às interrelações homem-
máquina) e o potencial telemático dessas possíveis interconexões, suportado pelas
redes de comunicação contemporâneas. Os projetos desenvolvidos pelos artistas/
pesquisadores focam possíveis trocas entre artes visuais, design, tecnologia, ciência
e natureza, investindo numa forma experiencial, demonstrativa e dialógica para
abordar questões sobre arte, processos compartilhados e conectividade.
Em nossos laboratórios artísticos (ou laboratórios estúdio), onde são
desenvolvidos projetos e construídos os objetos sensíveis aplicados nesse campo
de investigação, encontram-se elementos essenciais para tais criações. Esses
elementos tecnológicos estão para os artistas hoje como antes estavam pincéis,
tintas, pigmentos, telas, materiais diversos moldáveis, ou seja, equivalem a
ferramentas e matérias-primas que compõem a “plasticidade” dos atuais sistemas
complexos. Seguem algumas informações básicas sobre o ferramental utilizado:3

•  Sensores — que geram informações sobre o estado do próprio sistema e o


estado do ambiente. Podem ser exteroceptivos ou proprioceptivos, ao gerar
informações sobre o ambiente externo, ou sobre situações internas ao
sistema. Alguns sensores foram biologicamente inspirados, outros criados a
partir de detecção de radiação, como o LDR (Light Dependent Resistor), que é
um sensor que mede a intensidade da luz no ambiente.
•  Unidades de Processamento e/ou microcontroladores — fazem a análise
de estímulos provenientes dos sensores que comandam os atuadores
e exibidores, o que pode ocorrer em tempo real oferecendo uma
resposta imediata pelo sistema. Num objeto eletronicamente interativo,
os microcontroladores substituem os computadores na execução do
processamento de dados. Os processadores se utilizam de linguagens de
programação como Java ou C+, de acordo com a especificidade do sistema
utilizado.
•  Efetuadores — são partes mecânicas do sistema/objeto percebidas no seu
exterior, em contato com o ambiente ou com o público. Exemplo disso são
componentes de robôs que permitem sua locomoção ou interação com

3. Os exemplos aqui citados tiveram como referência o trabalho de dissertação de mestrado


de Julia Ghorayeb Zamboni (vide ZAMBONI, 2013).
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 145

outros objetos, braços, pernas, rodas, hélices, etc.


•  Atuadores – responsáveis pelo movimento dos efetuadores e podem ser
comparados aos músculos de nosso corpo. Nos objetos robóticos são
normalmente servomecanismos e motores elétricos.
•  Exibidores – são softwares que recebem os estímulos dos sensores através
da rede e utilizam código para gerar visualizações dos dados que serão
projetados junto ao experimento.

Além dos elementos acima listados, encontram-se também máquinas de


grande precisão que têm como função a produção de protótipos desenhados
sob medida para compor os objetos interativos. Hoje, no NANO, temos acesso
a impressoras 3D4 e a máquinas de corte a laser (CNC), a partir de parcerias
com outros laboratórios em projetos integrados. Este é o caso do Laboratório de
Modelos 3d e Fabricação Digital da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
UFRJ (LAMO3d).

Projetos em andamento no NANO


1) S.H.A.S.T. (Sistema Habitacional para Abelhas Sem Teto)5 é um projeto artístico
de caráter transdisciplinar que tem como objetivo geral agregar conhecimentos
das artes, da tecnologia computacional, de eletrônica/robótica, da biologia e da
sociologia, para citar apenas as mais relevantes. O trabalho explora um complexo
sistema de natureza construída, multimidiática, e híbrida e envolve a produção de
três módulos, ou três objetos, interconectados que compõem uma espécie de tríptico
telemático. Os módulos são construídos no modelo de colmeias para apiários:
módulo um – colmeia em atividade, ninho e melgueira localizada no apiário em
área rural, equipada com sistema de transmissão de dados alimentado por energia
solar; módulo dois – colmeia vazia, sistema natural e monitorado de captura de
enxames urbanos; módulo três – expositivo, simulador do processo completo
e exibidor de todas as etapas do projeto. Todos os módulos estão monitorados

4. Ressaltamos aqui nosso agradecimento ao artista-programador Marlus Araujo, que


emprestou sua impressora 3D para as atividades do NANO por vários períodos, o que
foi muito importante nos processos produtivos do grupo. Em 2014 foi adquirida uma
impressora para o laboratório com apoio de projeto financiado pelo CNPq.
5. S.H.A.S.T. foi desenvolvido com apoio da FAPERJ, edital APQ1 de apoio à pesquisa
concedido em 2013.
146 cinema apesar da imagem

via sistema telemático por onde os dados das abelhas são transmitidos para um
servidor localizado em laboratório que recebe e distribui os dados coletados para
serem transformados em imagens no espaço expositivo.

Modelo ilustrativo do sistema S.H.A.S.T.

Para a primeira versão do terceiro módulo6 utilizamos os dados captados


da câmera infravermelho dentro da colmeia para desenvolver uma visualização
inspirada na forma geométrica do hexágono presente nas colmeias. A visualização
era projetada em uma caixa hexagonal de paredes internas espelhadas e paredes
transversais de acrílico, de modo que a projeção se multiplicava e distorcia em
uma profusão de imagens, como um zumbido imagético junto ao som das abelhas.
2) Telebiosfera7 é um projeto de arte focado na construção de um ambiente
híbrido (composto de elementos naturais e artificiais) no qual será possível
uma experiência telemática, bio-comunicativa entre ecossistemas remotamente
localizados. O projeto tem por objetivo a construção de dois pequenos terrários

6. Exposto entre 01 e 03 de Setembro de 2014 na 4th Computer Art Congress Exhibition, no


mezanino do Prédio da Reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e entre 01 e
30 de Outubro na exposição EmMeio#6.0, no Museu da República de Brasília.
7. Telebiosfera está sendo desenvolvido com apoio do CNPq, edital de apoio à pesquisa
concedido em 2013.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 147

interconectados via rede. Cada terrário estará encapsulado em um domo, que


denominamos Telebiosfera, de forma a criar um micro ambiente híbrido e permitir
uma experiência imersiva e intimista para o visitante. Telebiosfera é pensada como
um ambiente biotelecomunicativo cuja interface principal é uma planta. Através
da interação com a planta, sons, imagens serão produzidas e trocadas entre as
duas telebiosferas.
Telebiosfera reúne o conhecimento adquirido nos últimos trabalhos desenvolvidos
pelo artista pesquisador, focados em robótica, visão artificial, hibridação e telemática,
para compor um sistema cujo maior objetivo é permitir ao observador, como um
dos agentes do sistema, uma experiência, sensorial, com base na comunicação entre
duas biosferas remotas. Através da mediação de câmeras, microprojetores, interface
híbrida de interação e a transferência de dados climáticos de um local remoto a
outro, Telebiosfera busca criar um microambiente telemático através do qual seja
possível ao visitante a experiência de uma natureza aumentada, gerada com base na
hibridação entre organismos naturais e artificiais. Trata-se de um trabalho de arte que
dialoga diretamente com a noção de presença, natureza, conectividade, hibridação,
experiência, conhecimento, entre outros conceitos pertinentes aos discursos
contemporâneos. Ideias que desejamos tornar visíveis através desses experimentos.
O fato de plantas responderem a estímulos através de variações em sua
estrutura eletrofisiológica é conhecido desde o pioneiro trabalho do cientista
indiano Sir Jagadis Chandra Bose (1858-1937). Bose foi um dos primeiros cientistas
a utilizar galvanômetros em plantas identificando assim a natureza elétrica de
certas respostas a estímulos externos (temperatura, luz, injúrias, etc.), sugerindo
ainda a existência de algum mecanismo similar ao sistema nervoso animal
em plantas. Essas reações de natureza elétrica em plantas foram confirmadas
experimentalmente por grupos científicos contemporâneos (WILDON ET AL
1992, p. 360, pp. 62–65). Já na década de 60, Cleve Backster executou uma série
de experimentos com plantas e chegou à hipótese de que plantas seriam capazes
de desenvolver formas de biocomunicação sutis com outros seres vivos. Backster
demonstrou que plantas teriam a capacidade de responder aos estímulos físicos do
meio ambiente e seus demais agentes. Inspirado por essas possibilidades o sistema
Telebiosfera foi concebido de forma a amplificar súbitas ligações dialógicas entre o
observador e o sistema na forma de arte.
Os módulos serão capacitados para receber e transmitir dados e imagens
do seu micro ecossistema (terrário, sistema artificial, visitante) em tempo real,
dialogando assim com seu par remoto. Ao visitante será possível experienciar esses
148 cinema apesar da imagem

dados na forma de imagens, sons interativos, assim como através da reprodução


por simulação do ambiente criado na telebiosfera remota. A base do sistema consiste
em dois domos geodésicos para projeção 180 graus equipados com: dispositivo
de climatização customizado; interface de interação orgânica com base em
resposta galvânica; sensores de temperatura, umidade e emissão gasosa; sistema
de projeção, áudio e captura de imagem. Cada domo está sendo construído com
base em estrutura geodésica. Serão estudadas estruturas leves de fácil manuseio e
transporte e seu interior deverá conter uma segunda estrutura côncava, seguindo a
curvatura do domo, que servirá de tela de projeção. Sobre esta teremos um sistema
de projeção para domos baseado na pesquisa de Paul Bourke, professor associado
da University of Western, Austrália. Para captura da imagem externa utilizamos
uma câmera infravermelho tridimensional (Kinect) que possui algoritmo de
reconhecimento do corpo para podermos transmitir dados no lugar de imagens.
O sistema tem por objetivo explorar imagens efêmeras, de alta performance
interativa. A presença do observador é tratada de forma simbólica através de seus
dados, numa abordagem abstrata de seu corpo. Esta escolha se dá por motivações
estéticas e técnicas, pelo interesse na subjetividade da experiência, mas também
pela adequação a diferentes condições de conexão de internet.

Telebiosfera - Exposição Computer Art for All - CAC.4 / UFRJ 2014.


Foto de Barbara Castro
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 149

3) Oficina Experiências Tecno-Sinestésicas é uma oficina de experimentação sonora


e visual a partir do conceito de sinestesia aliado ao conceito de technobiophilia de
Sue Thomas (THOMAS, 2013), resultando em um fenômeno que relaciona
planos sensoriais distintos e explora os sentidos de maneira ampliada. Utilizando-
se de sistemas híbridos constituídos por elementos naturais (frutas) e elementos
eletrônicos/ computacionais (Arduinos, webcam, sensores, etc), os participantes
podem experimentar o funcionamento dessa interação, resultando em uma
atividade prática colaborativa de construção coletiva, visando a introduzir os
participantes nos conhecimentos de ferramentas eletrônicas e computacionais de
forma lúdica e didática. Os participantes, de olhos vendados, utilizando as mãos
molhadas com tinta à base de água, criam desenhos inspirados por músicas e sons
gerados por eles mesmos, por meio da manipulação de um circuito eletrônico
no qual os instrumentos seriam representados por talheres e frutas diversas. O
foco dessa oficina está em discutir aspectos sinestésicos e propor a livre criação
artística, ao mesmo tempo em que promove noções básicas e faz uso de softwares
de abstração e criação de ambientes visuais e sonoros, bem como dispositivos
eletrônicos auxiliares ao processo criativo.
A atividade é dividida em três etapas. A primeira (indicada na imagem
pela letra B), uma composição cênica chamada Picnic Sonoro, utiliza frutas que
são conectadas a dois notebooks por meio de interfaces Arduino. Os notebooks
estão rodando o software MaxMSP, que recebe sinais digitais e os transforma em
som. Espetando os conectores dos Arduinos nas frutas de diferentes tamanhos, os
participantes experimentam a relação da resistência dos corpos com as qualidades
do som gerado. Esse som sintético é emitido por alto-falantes conectados à saída
de áudio do notebook para a segunda fase do processo. Na segunda etapa (C),
chamada de Mesa Sinestesia, os participantes são vendados e convidados a criar
manualmente desenhos (abstratos) que expressem a sensação sonora proveniente
da interação possibilitada pela etapa anterior. Estimula-se o uso do tato no
desenho livre e da audição na interpretação sonora. Na terceira etapa (D), uma
webcam instalada no teto, sobre a Mesa Sinestesia, capta as imagens do processo de
desenho/pintura e as projeta em uma tela adjacente à mesa. Essas imagens são
desconstruídas em tempo real por uma programação específica em Processing, que
percebe os pixels capturados e os reduz à cor dominante, reinterpretando a cena
geometricamente, com círculos e quadrados de cores variadas. O tamanho dessas
formas é definido pela posição do cursor do mouse no eixo X da tela.
150 cinema apesar da imagem

Esquema das três etapas interdependentes da oficina ETS.

Sue Thomas define technobiophilia, em uma tradução livre, como a tendência


inata em focar em processos que imitam a vida e como eles aparecem na tecnologia
(THOMAS, 2013). Em sua publicação, ela cita o teto verde de um ponto de ônibus
e até a última versão do sistema operacional OS X como dotados de elementos
tecnobiofílicos, que aproximam o homem da natureza, tanto física quanto
virtualmente. Portanto, a oficina busca resgatar essa relação que se perdeu a logo
do tempo devido ao avanço tecnológico; prova também que natureza e tecnologia
podem coexistir resultando em benefícios para a humanidade e ressignificando
essas associações tecno-naturais.
Este trabalho é resultante de uma pesquisa de geração sonora e visual
desenvolvida a partir do conceito de sinestesia, cuja metodologia envolve
investigação teórica, pesquisas laboratoriais e experimentos com o público. ETS
— Experiências Tecno-Sinestésicas busca conjugar processos de criação artística e
inovadora com as tecnologias computacionais contemporâneas, onde se incluem
componentes eletrônicos. Essa pesquisa se utiliza de dispositivos híbridos
constituídos de elementos naturais (frutas, verduras) e elementos eletrônicos/
computacionais (Arduinos, sensores, softwares, etc). O objetivo pode ser dividido
também em três momentos: investigar possibilidades inovadoras e criativas no
campo do design e da tecnologia na aplicação de mídias interativas em sistemas
simples e eficientes na construção de objetos sensíveis de uso cotidiano; a partir
destas investigações, resgatar, no design, elementos que podem ser reaproveitados,
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 151

reciclados e transformados em objetos e experiências que ampliam a capacidade


de percepção desse cotidiano; e, o terceiro, experimentar o uso direcionado dos
softwares ligados à arte generativa, e compartilhar essas experiências com alunos e
pesquisadores de arte e design.
Como produtos resultantes dessa atividade estão: a criação e aplicação de um
sistema interativo simples acoplado a elementos do cotidiano, onde um projeto/
protótipo de design de objeto se inicia; depoimentos dos participantes a respeito das
surpresas reveladas, resultantes de suas ações e reações sobre os alimentos, sobre as
imagens mentais construídas pelos sons; uma documentação digitalizada que ilustra
um complexo sistema de interações e construções técnicas de sons e imagens a
partir de conceitos de sinestesia; além do surgimento de inúmeras possibilidades de
aplicação de sistemas simples similares a experimentos com objetivos direcionados a
atividades específicas do NANO e de qualquer atividade do cotidiano.
A oficina foi inicialmente ministrada no III Simpósio em Mídias interativas, em
Goiânia, e posteriormente no 4th Computer Arts Congress, no Rio de Janeiro, no
15º Encontro Nacional dos Estudantes de Design (NGoiânia 2014) e no Encontro Regional
dos Estudante de Design (RMisto 2014), em Bauru. Também foi apresentada como
trabalho na XIX Jornada de Iniciação Científica Artística e Cultural da UFRJ, no 23º
Congresso da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas e no 4th Computer Arts
Congress sob forma de pôster.

Atividades da oficina ETS - Experiências Tecno-Sinestésicas, SIIMI, UFG 2014.


Foto: Jordana Alves.
152 cinema apesar da imagem

4) A performance Entranhas é uma experimentação artística proposta por


Alana Santos. Está centrada numa investigação sobre acoplamentos sensíveis,
aplicados tecnologicamente ao corpo da performer com o objetivo de expressar/
externar ao público as sensações e reações internas do corpo em cena. O desafio
foi buscar expressar, mesmo que simbolicamente, as sensações da performer na
sua interação com o público. O trabalho está inserido no contexto da investigação

Performance Entranhas, série vestíveis Acoplamentos Sensíveis, imersão Granja


Sagrada Família, Barra do Piraí (RJ) 2014. Foto: Cila MacDowell.

em arte, design e tecnologia voltados para a construção de uma percepção ampliada


da consciência corporal a partir das relações que surgem do acoplamento entre
corpo e próteses tecnológicas.
Para que fosse possível ao público ter um feedback visual dos sentimentos e
emoções da performer, através de um reflexo da sua pulsação, um sistema eletrônico
foi desenvolvido. Neste sistema híbrido, a pulsação da performer foi captada
pelo periférico Pulse Sensor e enviada ao Arduino, que processa os dados recebidos
segundo uma sequência programada de instruções. Esse algoritmo sincronizou os
batimentos cardíacos da performer com o acionamento de indicadores luminosos
(LEDs) estrategicamente posicionados em seu corpo. Tais valores de pulsação
foram enviados via USB para o computador e, por conseguinte, transmitidos para
outra etapa de manipulação sonora em que o software MaxMSP se encarregava de
emitir um som de pulsação cardíaca a cada pulso captado.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 153

Esquema do funcionamento do dispositivo do vestível Acoplamentos Sensíveis para


performance Entranhas.

Entranhas se apresenta como uma singela proposta de experimentação artística


performática onde se pretende vivenciar e refletir sobre como acoplamentos
sensíveis, aplicados tecnologicamente ao corpo de uma performer, é capaz de
expressar/externar ao público as sensações e reações internas do corpo em cena.
Essa reflexão parte da necessidade de construir relações singulares, que venham
reformular ações performáticas sensíveis ao corpo tecnológico, e que de alguma
forma contribuam para emocionar e ressignificar a existência humana.

Notas conclusivas
A arte, como um produto da cultura, desenvolve-se como um organismo
complexo. Nesse sentido, a comunicação visual e o design, em seus diversos
campos de aplicação, são áreas de conhecimento que hoje, através das tecnologias
computacionais, ajudam a estabelecer pontes entre a produção criativa, tecnológica
e a apreensão por parte do público. Os novos ateliês e espaços laboratoriais são
responsáveis por conjugar, por meio das experimentações artísticas, possíveis
inter-relações entre artes visuais, design, tecnologia, ciência e natureza, investindo
numa forma experiencial, demonstrativa e dialógica para abordar questões sobre
arte, processos compartilhados e conectividade. Como expressão dessas atividades
apresentamos alguns projetos do NANO — Núcleo de Arte e Novos Organismos, onde
154 cinema apesar da imagem

trabalham professores e alunos de diversas áreas de conhecimento como as artes


visuais, a comunicação visual, o design, a arquitetura, a engenharia elétrica, a
computação, entre outras, sob os eixos investigativos da arte, da hibridação e da
biotelemática. Uma metodologia de pesquisa que consiga abordar e abranger uma
diversidade de conteúdos é um desafio constante e esta explanação visa a oferecer
subsídios para tal objetivo. Defendemos que a arte é um tipo de conhecimento
diretamente relacionado e condicionado ao nosso unwelt, e por que não ao unwelt
de todo e qualquer ser vivo, que, segundo Jorge Vieira, é condicional para garantir
a sobrevivência e, consequentemente, a permanência da espécie (VIEIRA, 2009).

Referências
ASCOTT, Roy. Telematic embrace. Los Angeles: University of California, 2003.

COX, Trevor. The Sound Book. Londres: W. W. Norton & Company. Inc., 2014.

FLUSSER, Vilém. O Mundo Codificado. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

FRAGOSO, M. Luiza. “Tecnologia e arte: a estranha conjunção entre ‘estar vivo’ e subitamente
‘estar morto’”. Palíndromo 4, pp. 59­67, 2011.

FRAGOSO, M.L., NÓBREGA. “Exploring artistic interfaces with natural/organic elements


in telematic environments”. Re-New - The Big Picture: the confluence of art, science and technology.
Copenhagen: Re-New Digital Art Form, v. 1. pp. 294-299, 2013.

MATURANA H.; VARELA F. Árvore do Conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. São
Paulo: PSY II, 1995.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A Inteligência da Complexidade. São Paulo: Petrópolis,


2000.

PLAZA, Julio; TAVARES, Monica. Processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digitais. São
Paulo: Hucitec, 1998.

THOMAS, Sue. Technobiophilia: Nature and Cyberspace. Londres: Bloomsbury Academic, 2013.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 155

WILDON, D. C.; THAIN, J. F.; MINCHIN, P. E. H.; GUBB, I. R.; REILLY, A. J.; SKIPPER,
Y. D.; DOHERTY, H. M.; & BOWLES, P. J. O. D. D. J. “Electrical signalling and systemic
proteinase inhibitor induction in the wounded plant”. Nature, vol. 360, pp. 62-65, 1992.

VIEIRA, Jorge A. Teoria do Conhecimento e Arte. Palestra proferida durante o XIX Congresso
da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - ANPPOM, ocorrido em
Agosto de 2009 na cidade de Curitiba, sediado pelo DEARTES – UFPR.

ZAMBONI, Julia G. Performance Robótica: Aspectos Expressivos e Experimentais em Arte e Tecnologia.


Dissertação defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Arte, Linha Arte e Tecnologia da
Universidade de Brasília, 2013.
máquinas que veem: visão
computacional e agenciamentos
do visível
andré mintz

Viemos nos acostumando, nos últimos anos, com máquinas capazes de


ver. Em estágio já bem adiantado em relação aos leitores de códigos de barras
– que talvez tenham representado sua primeira manifestação cotidiana, ainda
rudimentar –, já não se fazem estritamente necessárias imagens ou grafismos
feitos exclusivamente para as máquinas: estas já aprendem, e cada vez mais, a
lidar com as mesmas imagens que nós. Em um exemplo corriqueiro, algumas
câmeras fotográficas mostram-se capazes de reconhecer rostos, detectar sorrisos
e «piscadas» (indicando a necessidade de uma nova tomada). Algoritmos de
reconhecimento de rostos identificam as pessoas retratadas em uma foto postada
no Facebook, sugerindo quem devemos marcar naquela publicação. Interfaces de
controle de videogames como o Microsoft Kinect, por sua vez, incorporam a pose e
o gesto do jogador à interação a partir de uma imagem de vídeo. Temos, também,
cada vez mais notícias da aplicação de algoritmos de visão computacional no contexto
da vigilância, como as denúncias realizadas em 2014 por Edward Snowden,
que dão conta da utilização de programas de reconhecimento de rostos pelos
serviços de inteligência dos EUA em inúmeras imagens coletadas diariamente
em comunicações interceptadas na web (RISEN e POITRAS, 2014). “Imagem é
tudo”, diz o título de uma das apresentações da Agência de Segurança Nacional
que foram vazadas. Presenciamos, diante desses exemplos, a ascensão definitiva
de máquinas que, por certa capacidade de ver, parecem recolocar questões sobre
o lugar da imagem e do visível na contemporaneidade.
Nomeia-se Visão Computacional a disciplina das Ciências da Computação
dedicada ao desenvolvimento de tais algoritmos de interpretação automatizada
de imagens. Em uma perspectiva histórica, Lev Manovich (1993) indica como
158 cinema apesar da imagem

marco da emergência do campo a tese de doutorado de Lawrence G. Roberts,


defendida no Massachussetts Institute of Technology na década de 1960. Trata-se de um
dos primeiros esforços dedicados ao campo então denominado “machine perception”
(“percepção maquínica1”). Como Roberts (1963) descreve em relatório derivado
da tese, seu objetivo, então, era ultrapassar o limiar do reconhecimento de formas
bidimensionais (como caracteres e códigos de barras) e enfrentar, efetivamente,
o problema do reconhecimento de formas tridimensionais em imagens planas,
encaminhando para o objetivo geral do “reconhecimento de dados pictóricos”.
Diante deste desafio, ele desenvolve processos para o reconhecimento em fotografias
de arestas de formas geométricas tridimensionais, com posterior processamento por
métodos de computação gráfica para gerar outros pontos de vista da mesma cena.
Ao situar o desenvolvimento da visão computacional em sua narrativa sobre
a “engenharia da visão”, Manovich (1993) enfatiza sua relação a uma série de
outras técnicas que aperfeiçoariam o uso da imagem enquanto uma instância
não apenas de representação, mas de controle sobre o espaço. Denominando
nominalismo visual a compreensão da imagem presumida por tais técnicas, o autor
(MANOVICH, 1993, p. 100) reúne, junto à visão computacional, tecnologias
como o radar, as imagens de infravermelho e a ressonância magnética, destacando
como em todas elas subentende-se uma via em mão dupla a conectar a imagem
a seu referente, uma vez que a eficiência instrumental de sua aplicação depende
da possibilidade de reconstituirmos computacionalmente o espaço e os objetos
representados com precisão. O autor sugere, a partir de William Ivins (1975) e
Bruno Latour (1986), que a perspectiva geométrica seria um dos mais importantes
antecedentes de tais tecnologias ao elaborar uma representação instrumentalizada
e sistemática do espaço, desenvolvendo um método algorítmico para a passagem
calculada do espaço tridimensional à imagem, em um processo linear e, em certa
medida, reversível (MANOVICH, 1993, p. 111-116). A visão computacional,
no desenvolvimento inicial de Roberts, visa a fazer justamente este caminho
inverso, partindo da representação bidimensional para acessar aspectos da coisa
representada, aprofundando a compreensão da imagem como possibilidade de
domínio e de ação sobre o espaço.

1. Utilizamos o adjetivo “maquínica”, aqui, como substituto da locução adjetiva “da máquina”,
pela qual poderíamos incorrer em uma ambiguidade pela qual também seria possível ler
como “a percepção da máquina por alguém”. Não se deve confundir este uso, contudo, com
o sentido de maquínico de Deleuze e Guattari, que não se prestaria a uma contraposição
humano/máquina, mas a seus agenciamentos coletivos (Cf. GUATTARI, 2003).
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 159

Tomando o trabalho de Roberts como ponto de partida, Manovich sugere


que a reconstituição computacional do espaço e de objetos tridimensionais a
partir de fotografias seria o traço definidor da visão computacional. Contudo,
se observamos as diversas aplicações identificadas como pertencentes a este
domínio, percebemos como ele não se restringe a tal operação, mas inclui
também outras, particularmente estratégicas na contemporaneidade, como o
reconhecimento de padrões e a classificação de imagens. Forsyth e Ponce (2012),
autores de um livro técnico dedicado à visão computacional, sugerem um percurso
de vai de uma visão de “baixo nível” a uma visão de “alto nível”, realizando
tarefas progressivamente mais abstratas à medida que se afastam de problemas
básicos, como a detecção de contornos, e alcançam a classificação de imagens ou
o reconhecimento de objetos tridimensionais. Em uma definição mais abrangente
que aquela oferecida por Manovich, Golan Levin (2006a, p. 462) define a visão
computacional como uma ampla classe de algoritmos que permite ao computador
fazer “asserções inteligentes” sobre imagens digitais. Segundo sugere, o objetivo
da visão computacional – de modo mais amplo que aquele definido por Manovich
– seria o de superar a opacidade informacional da imagem:
Diferentemente de textos, os dados de vídeo digital, em sua forma básica, não contêm
nenhuma informação intrínseca semântica ou simbólica. Como resultado, um
computador, sem programação adicional, não é capaz de responder mesmo às mais
elementares questões sobre se um clipe de vídeo contém uma pessoa ou objeto, ou se uma
cena exterior de vídeo retrata o dia ou a noite, etc. A disciplina da visão computacional foi
desenvolvida para responder a esta necessidade (LEVIN, 2006, p. 468, tradução do autor).

Deste modo, em um nível mais elementar, trata-se de um campo com grandes


interseções com a área do processamento de imagens, realizando procedimentos
de extração de fundo e detecção de contornos e de movimento a partir de
operações aritméticas simples com os valores numéricos dos pixels. Em um nível
mais elaborado, porém, a visão computacional aproxima-se dos domínios da
Inteligência Artificial e das Ciências Cognitivas, interessando-se, em certa medida,
pelo desenvolvimento, na máquina, de competências humanas.
Não por acaso, inclusive, entre os iniciados, omite-se com frequência o
adjetivo computacional ao se tratar do assunto, dizendo-se apenas visão. David Marr
(1982) sugere claramente a possibilidade da passagem entre a visão humana e a
da máquina através da via de uma equivalência potencial entre computação e
cognição. Ele propõe, afinal, que, mais do que uma área de aplicação tecnológica,
160 cinema apesar da imagem

trata-se de um estudo da visão por um viés computacional, de modo a se


compreender em maior profundidade a própria visão humana e animal. Não nos
deteremos neste texto, porém, à discussão das possíveis relações e reconfigurações
entre uma visão humana ou animal e uma visão da máquina –  ainda que por
vezes a tangenciemos. Trata-se, evidentemente, de um vetor fundamental e
instigante do campo abordado, mas o reservamos para outra ocasião enquanto
nos voltamos, neste momento, principalmente à descrição de alguns dos modos de
agenciamento do visível pela visão computacional a partir de suas manifestações
contemporâneas, diretas ou indiretas – em particular no âmbito da arte.
Buscamos, portanto, compreender como o modo de funcionamento da visão
computacional toma parte na configuração dos dispositivos2 de algumas obras,
sem perder de vista sua relação, em cada caso, com aplicações características
desta tecnologia em outros domínios, como na vigilância ou em mecanismos de
busca na web. Neste esforço, sugerimos a existência de pelo menos dois modos
de operação da visão computacional, relativamente distintos em seu modo de
agenciamento do visível, do espaço e dos sujeitos – embora necessariamente
relacionados e sobrepostos em exemplos efetivos de sua aplicação. De um lado,
temos as operações que reunimos sob o par localização–acionamento, mais próximas da
definição que Manovich faz do campo, as quais se caracterizam pela reconstituição
computacional de um espaço concreto, com a precisa localização – e, em certos
casos, acionamento – dos corpos que o habitam a partir de parâmetros relacionados
ao seu posicionamento no espaço. De outro, temos as operações que reunimos sob
o par reconhecimento–conexão3, que não se dirigem propriamente ao mapeamento de
um espaço circunscrito pelo campo de visão da câmera, mas à possibilidade de
reconhecer padrões registrados pela imagem (como rostos e objetos) e conectá-
los a redes semânticas de dimensões variáveis, pela qual os programas realizam
diferentes percursos interpretativos do visível – conforme as conexões presentes

2. Não poderemos nos deter aqui ao desenvolvimento deste conceito que não assumirá um
papel central em nosso argumento. Em todo caso, dada a dispersão de suas definições, cabe
circunscrevermos a qual perspectiva fazemos menção, na qual referimo-nos principalmente
ao sentido desenvolvido por Anne Marie Duguet (2012), que toma o dispositivo como
conceito operatório para descrever as configurações e os modos de agenciamento espacial
de algumas videoinstalações. Vale destacar, contudo, outras dependências fundamentais
de nossa compreensão mais abrangente do conceito, em particular: FOUCAULT, 1979;
DELEUZE, 1999; e AGAMBEN, 2009.
3. Vale reiterar que, em ambos os casos, buscamos não uma categorização exclusiva ou
exaustiva, mas apenas nomear diferentes modulações próprias ao funcionamento de
programas de visão computacional.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 161

na rede associada permitirem. Trata-se, é claro, de uma classificação sujeita aos


riscos de qualquer esforço analítico, como a simplificação ou o reducionismo da
abordagem, os quais esperamos ter minimizado em nosso percurso.
No primeiro modo de funcionamento sugerido, encontramos aplicações mais
tipicamente relacionadas ao contexto da vigilância, em que o campo de visão da
câmera circunscreve um território e a imagem traduz-se em uma instância de
mapeamento e rastreamento do espaço. Temos, então, uma atualização do regime
da videovigilância, como descreve Fernanda Bruno (2012), em que se delega à
máquina tarefas de seleção, monitoramento e análise do espaço vigiado. Neste
contexto, a localização, o posicionamento ou o comportamento inadequado de
corpos no espaço mapeado disparam alertas a equipes de segurança e acionam
agentes humanos na tarefa de contenção. Esse seria o caso, por exemplo, da detecção
de um corpo em uma zona de segurança em estações de metrô e aeroportos ou no
reconhecimento de outro em movimento ziguezagueante – impreciso, suspeito –
em um estacionamento (BRUNO, 2012). Em outro sentido, tais sistemas também
“acionam” os corpos vigiados ao lhes prescreverem posições e comportamentos
considerados adequados naquele contexto – uma compreensão particularmente
adequada em alguns exemplos da artemídia.
É conhecida a importância que os sistemas de circuito fechado de televisão
tiveram na emergência do gênero da videoinstalação, particularmente em
trabalhos das décadas de 1960 e 1970. Diversas obras do período, de artistas como
Bruce Nauman, Dan Graham e Michael Snow servem, inclusive, de exemplos
para a caracterização deste gênero por sua remissão aos dispositivos de vigilância
(RUSH, 2006, p. 111-118; DUGUET, 2012, p. 58-61). Experimentando com o
tempo ao vivo das imagens de vídeo, uma configuração característica de muitos dos
trabalhos desenvolvidos era, afinal, a da exibição de imagens do próprio espaço da
instalação, simultaneamente, ou quase simultaneamente, à sua captura. De forma
similar à atualização que a visão computacional traz à videovigilância, observamos
como sua incidência mais característica e, talvez, paradigmática no contexto da
arte também vem atualizar a relação já constituída entre a videoinstalação e os
dispositivos de controle e supervisão.
A partir da integração da câmera a sistemas de interpretação automatizada
de imagens, mais do que incorporados à obra, o espaço instalativo, o tempo da
fruição e o corpo do espectador passam a ser mapeados e rastreados, tomados como
parâmetros e condições para o desencadeamento de respostas da obra à interação.
Operando desta maneira, Videoplace (1969), de Myron Krueger, é indicado por
162 cinema apesar da imagem

Golan Levin (2006a) como um dos primeiros trabalhos artísticos a se valer da


visão computacional, tendo sido desenvolvido concomitantemente à emergência
das videoinstalações em circuito fechado e baseando-se, em larga medida, em
uma configuração similar. Contudo, evidentemente, uma diferença importante é a
participação de algoritmos de análise computacional das imagens capturadas, que
desempenham importante papel no dispositivo da instalação. Conforme descrição
do próprio artista (KRUEGER, 2003, p. 384), Videoplace propõe a constituição de
um ambiente responsivo no qual uma câmera capta imagens dos participantes
para que seu programa extraia suas silhuetas, que servem como guias para repostas
do ambiente, permitindo a interação gráfica com linhas e cores projetadas.
O dispositivo desta obra, com seu espaço mapeado e respostas visuais ao
espectador, que se observa como se diante de um espelho de realidade aumentada,
parece ressoar em diversas outras obras posteriores, em particular na virada
dos anos 2000, como Text Rain (1999), de Camille Utterback e Romy Achituv,
Tensión Superficial (1998), de Rafael Lozano-Hemmer, ou Hand from above (2009),
de Chris O’Shea. Atualmente, com a ampla disponibilidade de bibliotecas de
programação de código aberto para aplicações de visão computacional, além
da produção massiva de equipamentos especializados, como o Microsoft Kinect,
talvez seja impossível mapear a totalidade dessa incidência mais direta, já que se
trata de uma tecnologia de aplicação corriqueira e descomplicada, logo presente
não apenas em instalações artísticas, como também em estandes publicitários e
dispositivos museais.
Um aspecto a se destacar nesses casos, que em certa medida os contrapõe
às obras da videoarte indicadas anteriormente – ou mesmo à configuração
tradicional da videovigilância –, é o modo como à imagem, que é tomada na
entrada dos dispositivos constituídos, é destinado um papel secundário – quando
ela não é totalmente ocultada. Constituindo um intermediário transitório entre
o espaço efetivo da instalação e as respostas de seu ambiente, em muitos casos,
a imagem capturada existe apenas no interior da própria câmera, inacessível
ao espectador, sendo tratada, posteriormente, apenas enquanto fluxos de dados
nunca restituídos a um estado visível. A imagem é tomada, nestes dispositivos,
enquanto componente instrumental, que não tem um valor representacional em
sua forma visual mas, principalmente, em sua aplicação enquanto instrumento de
medição e mapeamento do que é enquadrado. A leitura da imagem é baseada,
nos exemplos indicados, em parâmetros bastante simples, que podem ser inclusive
expressos como instruções explícitas de como distinguir o que é capturado.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 163

São operações próprias a estes contextos, por exemplo: a separação entre


corpos e fundo com base na análise de movimento da imagem; o contorno dos
corpos a partir da sua sobreposição a um fundo previamente estabelecido ou
pela identificação de variações bruscas de cor e/ou luminância; ou quantidade e
direção do movimento a partir da comparação entre frames consecutivos de uma
tomada contínua4. São operações que exibem, neste nível de refinamento da visão
da máquina, seu caráter fundamentalmente analítico que é também ressaltado por
Fernanda Bruno (2012) em sua abordagem das chamadas “câmeras inteligentes”,
aproximando-as dos experimentos de análise do movimento de Etienne-Jules Marey
e dos estudos fisionômicos de Alphonse Bertillon, no século XIX. Haveria, ainda,
certa herança da técnica da fotogrametria, desenvolvida no mesmo período, voltada
para a recuperação de medições espaciais a partir de fotografias. Uma característica
importante desse modo de operação, em todo caso, é a articulação da configuração
espacial do ambiente monitorado ao modo de operação do próprio programa,
no dispositivo constituído. As instalações mencionadas, por exemplo, apresentam
uma configuração espacial especialmente preparada para o funcionamento dos
algoritmos implementados, de modo a controlar a iluminação e a circulação de
pessoas. No âmbito das operações de localização–acionamento, tal articulação mostra-
se fundamental, dada a clara necessidade de correlação conhecida entre o espaço
mapeado e sua representação visual no registro pela câmera.
Em instalações interativas que fazem uso da visão computacional nesse
modo de funcionamento, o campo de visão da câmera demarca um território no
espaço instalativo para o desenvolvimento das ações. Seu ponto de vista, em geral
levemente superior ao dos espectadores – sendo, em alguns casos, situada a pino
–, favorece essa operação de mapeamento e circunscrição do espaço. Diante desse
olhar, os corpos dos espectadores, encontram-se como se rendidos: uma vez que
adentram tal território, estão necessariamente disponíveis ao olhar da câmera,
que, de certa maneira, lhes requisita que desempenhem determinadas ações
– ou, de outro modo, lhes recompensa quando são desempenhadas. Golan Levin
(2006b) explora essa questão em um bem humorado ensaio visual acerca de uma
suposta “pose da artemídia” (“media art pose”), indicando como, com frequência,
trabalhos interativos como os destacados (Levin inclusive cita Videoplace e Text rain
entre seus exemplos) nos levam a interagir levando nossas mãos ao alto. Passando
por vários possíveis significados desse gesto – do exercício de controle do maestro

4. Golan Levin (2006a) indica algumas destas operações básicas da visão computacional.
164 cinema apesar da imagem

diante da orquestra à invocação dos poderes divinos pelo Papa – Levin inverte,
ao final, o sentido geralmente atribuído às obras interativas ao sugerir que, longe
de conferir ao espectador uma posição de controle, a artemídia lhe requisita uma
“postura da rendição total” (LEVIN, 2006b). Em certo sentido, afinal, para além
do acionamento interno, pelo qual o programa da instalação dispararia certas
funções de acordo com a pose do interator, haveria um outro tipo de acionamento,
incidindo sobre os próprios sujeitos à medida em que lhe é requisitado interagir,
uma vez que se adentra o campo de visão da câmera.
No âmbito das operações que localizamos em torno do par reconhecimento–
conexão, de outro modo, a circunscrição de um espaço de monitoramento já
não é tão fundamental. Ainda que o campo de visão da câmera siga como uma
demarcação importante daquilo que pode ser percebido, não há necessidade de
inscrição deste território demarcado no modo de funcionamento do programa. As
operações de reconhecimento–conexão se situam em um nível de maior abstração,
em que o campo de atuação dos programas seria mais bem descrito como a rede
semântica que conecta determinado padrão percebido a outros pertencentes a
uma mesma categoria, podendo esta ser mais ou menos específica: um programa
pode, por exemplo, tanto detectar um rosto em uma imagem quanto reconhecer
de quem ele é. Pode, ainda, classificá-lo com relação a determinados parâmetros
como gênero, idade, etnia, expressão facial, etc. Em todo caso, tais operações já
não dizem respeito a um ponto de vista específico da câmera sobre o ambiente
registrado – se tratamos de algoritmos aplicados no contexto da internet, inclusive,
com frequência já nem se trata de uma ou outra câmera, pois lhe são alimentados,
mais do que um determinado ponto de vista, inúmeros deles, oriundos das diversas
imagens em circulação, estáticas ou moventes, tomadas nos mais diversos contextos.
O caráter distribuído das operações de reconhecimento–conexão, mais do
que uma particularidade do contexto atual de aplicação da visão computacional
na internet, constitui uma importante estratégia de seu próprio desenvolvimento.
O método pelo qual são gerados tais programas, chamado de aprendizado de máquinas
(do inglês machine learning), do domínio da Inteligência Artificial, compreende, em
linhas gerais, a implementação de sistemas computacionais capazes de aprender
a desempenhar determinadas tarefas pela inferência de regras gerais através do
treino. No âmbito da visão computacional, um dos modos de aplicação desse
método envolve a alimentação ao sistema de centenas de imagens de rostos, por
exemplo, para que o algoritmo aprenda a reconhecê-los em outras imagens.
Diferentemente das operações que indicamos anteriormente, em que são
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 165

oferecidas instruções explícitas ao sistema, no desenvolvimento do aprendizado


de máquinas cabe ao próprio algoritmo inferir as instruções que deve seguir,
tomando como referência as imagens oferecidas na fase de treino.
Um dos modos de fazê-lo – o chamado aprendizado supervisionado – consiste em
produzir diversas imagens de objetos pertencentes a determinada categoria, os
quais servirão como base de treinamento para o programa aprender a reconhecê-
la. Podem ser encontrados na web alguns bancos de imagens disponibilizados
por laboratórios de pesquisa em visão computacional5 para serem utilizados por
pesquisadores e estudantes no treinamento ou no teste de seus próprios programas.
Compostas por enormes conjuntos de imagens de objetos e pessoas – sempre
recortados, isolados e deslocados de seu contexto e de sua história –, essas bases se
apresentam como uma espécie de memória visual das máquinas de visão. Trata-se,
potencialmente, da totalidade da experiência visual de que se valem alguns destes
programas para darem sentido às imagens com que tomam contato. A natureza
das imagens que desempenham esse papel talvez indique, então, o critério de
eficiência que guia o desenvolvimento das máquinas, cuja experiência dos objetos
do mundo se faz de forma absolutamente descontextualizada e fragmentada –
distanciando-se, assim, das imagens tomadas em circunstâncias comuns, jamais
clivadas, de tal maneira, de um contexto ou de uma história.
Contudo, com a massiva disponibilidade de imagens tomadas nas mais
diversas situações, ganham espaço outros métodos de treinamento que se
valem deste acervo crescente de potenciais bases de treinamento. Métodos de
aprendizado chamados de não supervisionados, complementares aos previamente
descritos, são baseados principalmente na alimentação ao programa de
imagens de treinamento que já não se constituem como exemplos – como
seriam as centenas de imagens de maçãs – mas, de outro modo, apresentam
casos diversos, sem seleção prévia, entre os quais o programa deve buscar
encontrar padrões recorrentes sem que a ele sejam oferecidos, de antemão,
enquadramentos a partir dos quais analisar a informação. Essa é a estratégia
atualmente utilizada por companhias como a Google, o Facebook e a Microsoft
no treinamento de seus algoritmos de visão no que vem sendo chamado de deep
learning (aprendizado profundo), fazendo uso da extensa base de imagens da
própria internet. Assistimos, afinal, a um contexto cada vez mais favorável a tais
desenvolvimentos, especialmente com o uso crescente dos chamados serviços de

5. Cf. Amsterdam Library of Object Images <http://aloi.science.uva.nl>.


166 cinema apesar da imagem

armazenamento em nuvem e com a tendência geral de que potencialmente toda


e qualquer imagem produzida seja em alguma medida disponibilizada na rede.
Por tais métodos de aprendizado, para além das operações analíticas
que indicamos anteriormente, a leitura das imagens parece incluir também
uma dimensão de síntese, pela qual a máquina elaboraria internamente uma
representação daquilo que infere como sendo os aspectos característicos do que
busca reconhecer. Mais do que partir de instruções explícitas que, neste sentido,
indicariam regras gerais para que fossem analisadas imagens singulares, parte-se,
em alguma medida, dessas mesmas imagens para encontrar, em seu conjunto, os
parâmetros que guiam a análise. A Google publicou em 2011 uma imagem que
apresenta um subproduto de seu projeto Google Vision, no qual foram aplicadas
técnicas de aprendizado não supervisionado para a interpretação de mais de
10 milhões de imagens do YouTube, com seu algoritmo buscando identificar
autonomamente alguns dos objetos figurados (LE, 2011 e MARKOFF, 2012).
Após apenas alguns dias de processamento intensivo desse repertório por 16 mil
processadores, o programa da Google tornou-se apto a reconhecer, entre outros
padrões, gatos, permitindo que também se gerasse uma representação visual
daquilo que passou a identificar como tal (Fig. 1). Em seus tons acinzentados e sua
forma tênue, fugaz, nos é trazida a estranha imagem de um “gato médio”, um
abstrato conceito estatístico estranho ao nosso olhar6. Trata-se de uma imagem
que escapa a qualquer possibilidade de singularização, são todos e nenhum gato.

Fig. 1 – O modelo visual de um gato gerado pelo programa de


aprendizado profundo da Google. Fonte: LE, 2011.

6. O experimento chamado pela Google de Inceptionism ou Deep Dream (“sonho profundo”), em


alusão ao deep learning, serviria, aqui, como um outro exemplo, talvez ainda mais contundente
e de maior repercussão do que este que apresentamos (cf. http://googleresearch.blogspot.
com.br/2015/06/inceptionism-going-deeper-into-neural.html). Contudo, como foi
publicado durante a revisão deste artigo, não pudemos abordá-lo neste momento.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 167

Há, evidentemente, uma diferença substancial entre a visualidade inscrita


neste “gato médio” e aquela que Manovich busca na perspectiva renascentista
para compreender a visão computacional nos termos do que indica por nominalismo
visual – vertente incluída nas operações que reunimos sob localização–acionamento.
Se por tal denominação o autor busca remontar a uma relação com a imagem que
se atenha mais aos objetos individuais nela figurados do que à representação de
ideias abstratas, talvez seja justamente a este movimento contrário que se prestam
os processos de aprendizagem aplicados à visão computacional. Afinal, no caso
destes, parte-se de inúmeros casos singulares para chegar a um modelo em certa
medida ideal, pela via da estatística. De tal modo, algoritmos deste tipo buscam
extrair do conjunto de fotografias algo como um idealismo visual – afastando-as,
inclusive, da indexicalidade que constituiria uma de suas características mais
destacadas7. A visão computacional, neste modo particular de funcionamento,
opera pela via da descontextualização de cada imagem superposta, formando essa
estranha figura que nos é apresentada como o gabarito em que se baseia a visão da
máquina. O gato que vemos, neste sentido, consiste naquele que emerge de uma
ampla rede de figurações similares dispersas no YouTube, conexões que seriam
ativadas a cada detecção de um padrão similar pelo programa da Google, a cada
novo reconhecimento.
Se estranhamos essa manifestação particular da visualidade estatística da
máquina que se expressa por meio da imagem do gato pardo da Google, isso não
significa, contudo, que de todo estranhemos esse modo de ver. Afinal, lidamos com
seus efeitos de modo cada vez mais frequente à medida que os algoritmos que
lhe dão forma se fazem presentes de modo disperso, porém, em certa medida,
coordenado8, em diversos dispositivos com os quais produzimos e acessamos
imagens. A interpretação visual automatizada vem sendo usada pela Google já
há algum tempo nas tarefas de busca e indexação de imagens na rede, inclusive
oferecendo, desde 20099, o recurso de pesquisa inversa que permite nos valermos

7. Trata-se de compreensão trabalhada por vários autores a partir do referencial da semiótica


peirciana, mas que tem em Dubois (2012) um dos mais destacados expoentes.
8. Há dispersão na medida em que são diversos os agentes institucionais (governos,
corporações) que aplicam tais metodologias de aprendizado. Contudo, em sua maioria,
partem de uma estratégia comum, relacionada ao que convencionou-se chamar de big data:
mineração, coleta e análise contínua de dados diversos a fim de elaborar perfis (de risco ou
de consumo, o princípio é o mesmo) para embasar tomadas de decisão de ordens diversas.
9. Embora menos conhecido, outro exemplo deste tipo de serviço, que antecedeu brevemente
o da Google, é o canadense TinEye, lançado em 2008 (cf. http://tineye.com/).
168 cinema apesar da imagem

de uma imagem como chave para a busca tanto de sites e conteúdos da web em
geral, quanto de imagens similares. A publicação massiva de imagens na web se
torna, então, tanto um problema a se enfrentar – como dar sentido a esse arquivo
gigantesco e em expansão? – quanto o próprio substrato em que são gestadas as
ferramentas para fazê-lo. A visão computacional parece ser, então, um componente
chave tanto para sermos capazes de gerir tal volume de imagens quanto para
compreendermos o modo de ver requisitado por esse contexto. Esse domínio é,
inclusive, uma importante frente contemporânea da pesquisa em cultura visual,
sendo adotada enquanto instrumento de análise para dar sentido a esse volume
massivo que se produz diariamente10.

Fig. 2 – I›m Google, de Dina Kelberman (fragmento). Fonte: KELBERMAN, 2011.

10. Lev Manovich reconhecidamente empreende algumas das pesquisas neste domínio, com
destaque recente em torno de análises feitas de imagens compartilhadas em redes sociais,
como o projeto Selfiecity, que analisou, em um dispositivo misto, de analistas humanos e
computacionais, um dia de imagens postadas na rede Instagram em cinco cidades do
mundo (cf. http://selfiecity.net/).
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 169

I’m Google (2011-), obra da artista estadunidense Dina Kelberman, brinca


com aspectos dessa visualidade. Trata-se de um trabalho on-line hospedado como
um blog da plataforma Tumblr, em um layout limpo, austero: sobre o fundo branco,
estendem-se apenas três colunas de imagens, em sua maioria estáticas. Valendo-
se do recurso infinte scroll, o blog da artista expande-se de forma aparentemente
infinita: quando levamos a barra de rolagem até o final, a página automaticamente
carrega as próximas imagens. São centenas delas. A seleção e a organização das
imagens são feitas pela própria artista a partir de sua coleta na rede. Apesar da
evidente heterogeneidade do conjunto, dando conta dos mais diversos temas e
estilos – fotos amadoras, registros de atividades agrícolas e industriais, trabalhos
manuais, culinária, esportes –, o passeio pela obra revela cuidadosos trabalhos
de agrupamento e de transição. Em geral, a sequência segue um certo padrão:
séries de imagens reunidas segundo agrupamentos semânticos – como, por
exemplo, séries de peças de croché, de balões cortados, de luvas – entre os quais
são construídas transições em que o salto temático parece ser amortecido por
uma associação superficial entre as imagens, através de correspondências de cores,
formas, texturas e enquadramentos.
Em uma passagem que nos chama especialmente a atenção (Fig. 2), imagens
do que parecem massas de pão dão lugar a uma sequência de jipes e bugues
em meio a dunas de areia: a transição se dá entre a massa amorfa de farinha e
uma nuvem de areia lançada ao ar pela manobra de um dos carros. De forma
similar passamos, noutros momentos, de boias de sinalização marítima a imagens
de trabalhos escolares feitos com bolas de isopor; de aparelhos auditivos a sapatos
de bonecas; de ginásios de treinamento de ginástica olímpica a caixas de papelão
recém-abertas após a chegada de encomendas. Em todas essas transições, a
passagem se dá por associações presentes apenas na superfície das imagens, como
que estabelecendo uma barreira ao nosso olhar, impedindo-o de buscar a coisa
representada e forçando-o a se ater a seus aspectos formais. Diante das relações
estabelecidas e mesmo da profusão heterogênea de temas e contextos, não
conseguimos nos deter a cada uma das imagens e nossa leitura, assim, oscila entre
estes níveis, entre a superfície e a profundidade, sem se estabelecer firmemente
em nenhum dos dois. O movimento de leitura a que somos conduzidos pela obra
parece se sugerir uma dinâmica refinada em que não jogam apenas nosso olhar
e o olhar da artista. O processo, quase algorítmico, com que são construídas
as relações entre as imagens, com seus vínculos cromáticos e sutis jogos de
semelhança, sugere-nos, afinal, a participação de um olhar da máquina. Os saltos
170 cinema apesar da imagem

realizados entre os conjuntos sugerem algo como falhas da ordenação realizada


pela máquina – em nossa perspectiva –, como se derivassem de um equívoco na
aplicação do gabarito através do qual as imagens seriam classificadas. Existe algo
de poético, tanto quanto de cômico, em tais passagens elaboradas pela artista.
O método com que se elabora a sequência de imagens da obra coloca em
evidência algumas das dinâmicas relacionadas ao jogo entre agentes de visão
humanos e não humanos – nós e as máquinas – que acontece, atualmente, por
causa da presença crescente dos agentes computacionais de visão. Ainda que se
valha de certo instante de estranhamento que ainda – e talvez sempre – emergiria
em nossa relação com tais dispositivos, a obra de Kelberman segue um caminho
distinto daquele que se insinua, por exemplo, em trabalhos de Mark Shepard,
Adam Harvey ou Zach Blas11, que exploram as brechas nas quais ainda seria
possível erigirmos uma barreira, ainda que transitória, à sua visibilidade. São
trabalhos que, cada um a seu modo, oferecem respostas para os desafios que nos
colocam as máquinas que veem, tomadas enquanto materializações de um desejo
de visibilidade irrestrita. Shepard, com LEDs infravermelhos que obstruem a
capacidade de leitura, pelos algoritmos, de formas humanas. Harvey, com design
de maquiagem e cabelos que ocultam traços fisionômicos fundamentais para
a detecção e o reconhecimento de rostos. E Blas, com máscaras radicalmente
obstrutivas, geradas a partir de dados acumulados de diversos rostos distintos,
ou, ainda, com objetos que nos permitem visualizar os atributos biométricos
usados na identificação como um instrumento de tortura. Todos eles, ainda
que com abordagens distintas, têm em comum com I’m Google, de Kelberman,
serem respostas a um modo de funcionamento da visão computacional pautado
nas tarefas de reconhecimento e classificação de padrões visuais, de caráter
fundamentalmente estatístico e em uma topologia de rede, em que determinadas
configurações cromáticas dos pixels ativam percursos particulares, produzindo
associações semânticas (classes e identidades).
Em ainda outro exemplo, a instalação The giver of names (1990-)12, de David
Rokeby, traz uma incidência particular desse tipo de operação. Nela, o espectador
é convidado a escolher alguns objetos – de uma diversidade deles, espalhados pelo

11. Sentient City Survival Kit (2010), de Shepard (http://survival.sentientcity.net/). CVDazzle


(2010-) de Harvey (http://cvdazzle.com). Facial Weaponization Suite (2011-2014) e Face Cages
(2013-2015) de Blas (http://www.zachblas.info/projects/facial-weaponization-suite/ e
http://www.zachblas.info/projects/face-cages/).
12. Cf.: http://www.davidrokeby.com/gon.html.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 171

chão – dispondo-os sobre um pedestal diante de uma câmera conectada a um


computador. O programa analisa a imagem captada, extraindo-lhe os contornos,
analisando sua cor e textura, e busca identificar, a partir dos traços descritos,
quais seriam aqueles objetos entre os que constam em uma base conhecida. O
reconhecimento ativa uma rede conceitual, composta por uma base de nomes de
objetos, sensações e ideias – extraídas, entre outras fontes, de textos escritos pelo
artista e obras da literatura – que são articuladas a partir das formas percebidas,
de forma a elaborar uma frase em alguma medida afetada pela percepção visual,
pela máquina, daquela cena. Destaca-se como a operação da obra se distancia
daquelas típicas do par localização–acionamento, pois não se trata de recompor, a
partir da imagem, um espaço concreto, como é o caso das aplicações que indicamos
anteriormente, ou dos trabalhos de artemídia derivados. Trata-se, antes, de uma
operação de abstração pela qual acessamos, a partir da imagem, um espaço difuso,
conceitual, em que, mais do que circunscrever regiões ou monitorar movimentos,
estabelecem-se conexões e ativam-se percursos, fazendo emergir sentidos a partir
das relações estabelecidas.
Por todo o conjunto de casos que pudemos abordar, percebe-se tanto
a diversidade de modos de agenciamento do visível operados pela visão
computacional quanto aquilo que têm em comum. Se, de um lado, as operações
reunidas sob o par localização–acionamento dedicam-se a um contexto particular
de operação, circunscrevendo e mapeando um determinado espaço e nele
localizando e rastreando corpos específicos, concretos, vemos como as operações
de reconhecimento–conexão realizam uma abstração destas individualidades,
buscando conectá-las a categorias ou formulações genéricas, inferidas de
uma enorme quantidade de instâncias singulares. Evidentemente, efetuamos
nesta clivagem uma categorização apenas transitória, já que tais modos de
funcionamento manifestam-se, com frequência, de modo indistinto em diversas
aplicações – na vigilância, por exemplo, tanto a localização de um corpo quanto
a sua identificação ou classificação mostram-se fundamentais.
Em todo caso, incidindo transversalmente a tal diversidade de manifestações,
haveria um eixo comum a percorrer as aplicações da visão computacional, o
qual talvez pudéssemos compreender pela definição de Golan Levin (2006a)
que trouxemos ao início: trata-se de transpor a opacidade computacional da
imagem, de traduzir seus conteúdos figurativos a uma representação quantificável
e computável. Forsyth e Ponce (2012, p. 107) apresentam um exemplo elucidativo:
“Figuras de zebras e de dálmatas têm pixels brancos e pretos, e em torno do mesmo
172 cinema apesar da imagem

número, inclusive. A diferença entre as duas tem a ver com a aparência característica
de pequenos grupos de pixels, mais do que valores de pixels individuais” (tradução
do autor). Partimos, então, da representação numérica da imagem, expressa pixel
a pixel, para chegar a seu nível figurativo (aquilo que ela aparenta, o espaço e
dimensões representadas, etc.) e, então, traduzir esta figuração novamente em um
valor numérico, registrável e computável. Essa definição, embora precisa, atém-
se a um nível técnico que talvez não sintetize todas as questões que pudemos
perceber no percurso de nossa argumentação –  afinal, não basta descrevermos
esta operação sem atentarmos aos modos de agenciamento implicados.
Vem ao nosso auxílio, nesta leitura, a definição de Sean Cubitt (2011, p. 9)
do que seriam, em nosso tempo, as mídias dominantes (entendidas como aquelas
utilizadas para o exercício do poder). Segundo ele, já não seriam mais a narrativa ou
a imagem, mas aquelas que indica como os três pilares contemporâneos da economia
política: planilhas, bancos de dados e sistemas de informação geográfica (GIS).
Seriam estas que, em última medida, serviriam aos propósitos atuais de elaboração
de perfis estatísticos e de controle e gerenciamento de riscos, presentes em instâncias
de governo tanto estatais quanto corporativas. Poderíamos compreender a Visão
Computacional, então, como um agente de passagem, de transição, responsável
pela tradução entre dois paradigmas das tecnologias de controle e conhecimento,
subsumindo a imagem a uma destas formas indicadas por Cubitt, em especial os
bancos de dados e os sistemas de georreferenciamento – situados a apenas um passo
em relação aos desenvolvimentos que pudemos descrever.
De um lado, há evidentemente uma forte reconfiguração do papel
desempenhado pela imagem, que, passível de ser traduzida automaticamente
em informação, desdobra-se enquanto uma fonte de dados estatísticos e deixa de
ser, neste sentido, um objeto de difícil tratamento, indexação ou arquivamento.
De outro, há também um ganho significativo para as mídias identificadas por
Cubitt, com a entrada da imagem em seu domínio. Operando tradicionalmente
por meio de dados numéricos e abstratos, a elas lhes é permitido, a partir da
imagem, circunscrever e particularizar a informação ao operar a partir de um
registro singular. De outro modo, também lhes torna possível fazer o caminho
inverso e generalizar a partir destas mesmas instâncias singulares, na medida
que é pelo enfrentamento de múltiplos registros do individual fotográfico que o
método do aprendizado de máquinas permite aos algoritmos da Visão Computacional
realizar o reconhecimento de padrões e a sua conexão a instâncias relacionadas.
De toda forma, mais ou menos relevante, a imagem tem seu lugar reconfigurado
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 173

nesse contexto, sendo levada a assumir o papel de componente intermediário e


transitório de uma operação na qual, por vezes, nem aparece.

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parte 4
materialidade |
performances
entre sensores e sentidos: sobre
a materialidade da comunicação
na artemída
graziele lautenschlaeger

Observa-se que, embora estejam disponíveis pensamentos e ferramentas


digitais poderosas para superar os paradigmas tradicionais de comunicação,
ainda estamos condicionados por práticas culturais baseadas no consumo
indiscriminado, que fetichizam objetos tecnológicos e estabelecem relações
pouco críticas com as “novidades” que aparecem. Mesmo parcialmente atenta
a esta situação cultural, a produção contemporânea de artemídia está repleta
de trabalhos conceitual ou tecnicamente herméticos, e raramente vão além do
rearranjo da “dispositifaria” oferecida pelo mercado. Considerando atividades de
pesquisa, curadoria, produção e educação artística neste campo, poucas são as
iniciativas no mundo que se valem do seu potencial como meio catalisador da
expressão e autonomia criativa das pessoas.
Além disso, tal produção é muitas vezes reprodutora do distanciamento
histórico e culturalmente construído entre teoria e prática. É muito comum hoje
em dia que artistas tenham as ideias e contratem mão de obra especializada para
a execução do trabalho, ignorando o potencial criativo emergente do mão-na-
massa. Em O Artífice, de Richard Senett (2009), esta questão é rica e profundamente
discutida e nos fundamenta para perceber que tal fenômeno também afeta a
produção de artemídia. Como expressão deste distanciamento, vejamos esta frase
do renomado artista e teórico francês Edmond Couchot, publicada no livro Media
Art Histories, editado por Oliver Grau:
Com as imagens digitais, um modo radicalmente diferente de automatização aparece.
Não esqueçamos que as imagens digitais tem duas fundamentais características que as
distinguem das mencionadas anteriormente [referindo-se à fotografia e à televisão]: elas
são o resultado de um cálculo matemático feito por um computador. Não há mais nenhuma
180 cinema apesar da imagem

relação ou contato direto com a realidade. Assim, os processos de se fazer imagens não são
mais físicos (relacionados ao material ou energia), mas virtuais (COUCHOT, 2006, pp.
182-183, tradução da autora).

Para além dos diversos pontos questionáveis desta afirmação, interessa aqui
discutir especificamente quando Couchot diz: “os processos de se fazer imagens
não são mais físicos (relacionados ao material ou energia), mas virtuais”. Neste
ponto, além de equivocadamente associar virtualidade com imaterialidade, ele
ignora todas as materialidades existentes em escalas que os sentidos humanos
não conseguem perceber.
Talvez a partir da inabilidade em transitar entre o universo das materialidades
e o universo dos modelos abstratos, desenvolvidos para lidar com materialidades
em escalas fora da percepção humana, é que emerja a separação de mundo dos
“pensadores” e dos “fazedores”.
A colocação de Couchot reflete também a atual situação cultural no trato
com a tecnologia, que solicita que simplesmente ignoremos o conteúdo das
“caixas-pretas” que nos circundam diariamente, bem como qualquer necessidade
de aprendermos enquanto lidamos com elas (FLUSSER, 2008).
Além da polarização entre teoria e prática, outras dicotomias permeiam os
processos criativos e a produção de artemídia: orgânico e maquínico, analógico
e digital, as já levemente mencionadas virtual e atual, material e imaterial,
entre outras. Muitas vezes, essas dicotomias acabam engessando as discussões
e proposições no campo, principalmente quando estas são acompanhadas por
deslumbre ou ignorância em relação à própria história da artemídia.
Encarando tais situações, este artigo visa apresentar uma caixa de ferramentas
para a entrada no questionamento dessas estruturas pré-estabelecidas. Trata-se de
uma tentativa de contribuir para que a produção de artemídia possa responder
melhor à ideia de uma engenharia filosófica ou de uma filosofia materializada.
Nesta noção fundiriam-se novamente no artista os papeis do “pensador” e do
“fazedor”.
Para o desafio, a base téorica e metodológica sendo empregada bebe em ideias
do Novo Materialismo, técnicas de Estudos Culturais, Cibernética e Arqueologia
das Mídias. E, como fio condutor para a discussão foram eleitas as propriedades
sensitivas de materiais e dispositivos, apontando para um nexo genealógico destes
com proposições artísticas. Para isso, o fenômeno “sentir” (detecção de estímulo)
é observado através das materialidades e das operações a ele relacionadas, tais
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 181

como a de regulação de um sistema dinâmico, ou mesmo a ideia de tradução de


materialidades.
Na produção de artemídia diversos tipos de sensores são frequentemente
utilizados nas chamadas “interfaces tangíveis”, como dispositivos de captura de
presença e engajamento corporal dos agentes envolvidos. Objetos imbuídos de
sensores e atuadores tornam-se abertos para a troca de inputs e outputs com o corpo,
complexo gigantesco de sensores e atuadores. E, a partir dessa troca de dados,
informação e sentido são criados a partir da experiência. O corpo em interação
direta com a máquina é necessário para que a obra aconteça. Observando esta
dinâmica, sensores fazem a ponte entre o universo físico – da presença corporal no
espaço e de outros estímulos físico-químicos do ambiente – e o universo abstrato
dos modelos conceituais, da geração e a atribuição de sentido. Em outras palavras,
essa ponte poderia também se referir ao elo entre natureza e cultura.
Para embasar essa discussão e refutar perspectivas como a de Couchot,
encontramos na noção de “materialidade da comunicação” um ponto de partida
precioso para resgatar e privilegiar os aspectos artesanais e o envolvimento corporal
com as materialidades, como ferramentas fundamentais para os processos de
aprendizagem em artemídia.
Expressão promovida por Hans Ulrich Gumbrecht a partir de estímulos
recebidos pela produção de Friedrich Kittler, “materialidade da comunicação” diz
respeito a “todos aqueles fenômenos e condições que contribuem para a produção
de significado, sem serem significados por si mesmos” (2004, p. 8, tradução da
autora). Numa perspectiva crítica sobre a construção do conhecimento na
cultura ocidental, baseada na preponderância da instância abstrata de conceitos,
Gumbrecht quer reaver a ideia de presença para a cultura contemporânea,
caracterizando-a como algo sobretudo espacial, antes de temporal. O autor
relaciona história das mídias a culturas estéticas relacionadas ao corpo,
considerando que “nós não acreditamos mais que um complexo de significados
possa manter-se separado de sua medialidade” (2004, p. II, tradução da autora).
Esta abordagem tem especial relevância para a artemídia, experiência
estética mediada que emerge precisamente da tensão e da oscilação entre “efeitos
de presença” e “efeitos de sentido”. A orientação dos processos de criação por
esse caminho pode ser um primeiro passo para a superação das dicotomias
empobrecedoras que circundam tal meio artístico.
Seguindo com a montagem da “caixa de ferramentas”, esse artigo traz
primeiramente definições acerca de sensores; depois introduz a Cibernética como
182 cinema apesar da imagem

base epistemológica para observar fenômenos naturais e culturais; e, na sequência,


caracteriza e exemplifica a artemídia, pincelando a maneira pela qual os sensores
se inserem no contexto da arte, bem como as implicações estéticas de tal inserção.
Um aprofundamento da caracterização da artemídia se dá em Processos criativos em
artemídia como tradução de materialidades, que complementa e explicita os fundamentos
utilizados na proposta de oficina realizada na conferência Besides the Screen Brazil,
em Vitória/ES.

Sensores: algumas definições


A origem do sensor como dispositivo na História da Cultura se baseia na
observação e experimentação com a natureza e com os organismos vivos e,
portanto, a história e a genealogia do uso de materiais e dispositivos sensitivos em
diferentes áreas do conhecimento é fundamental para se compreender o conceito, a
materialidade e as funções/operações agregadas aos sensores em sistemas dinâmicos.
Em um manual prático sobre sensores modernos (FRADEN, 2004), os
especialistas no assunto conceituam sensores dividindo-os em sensores naturais e
aqueles produzidos pelo homem:
os sensores naturais, como aqueles encontrados em organismos vivos, normalmente
respondem com sinais de caráter eletroquímico; isto é, sua natureza física é baseada no
transporte de íons, como em fibras nervosas (FRADEN, 2004, p. 01).

Nos dispositivos sensíveis fabricados pelo homem, por sua vez,


informação é também transmitida e processada de forma elétrica – no entanto, através
do transporte de elétrons. Sensores que são usados em sistemas artificiais, precisam falar
a mesma linguagem que os dispositivos com os quais eles são interfaceados (FRADEN,
2004, p. 01-02).

A partir desses esclarecimentos técnicos específicos, um sensor pode ser


entendido como a parte de um sistema que reage a algum tipo de estímulo do
ambiente circundante, tais como luz, calor, movimento, e outros tantos fenômenos
físicos e/ou químicos. Entre os naturais, pode-se mencionar os criptocromos, um
tipo de proteína presente em plantas e animais, sensíveis ao espectro de luz azul.
Ao sinalizarem a direção da fonte luminosa, eles mediam o fototropismo das
plantas – o movimento de crescimento em direção à luz. Já entre os fabricados
pelo homem, podemos citar acelerômetros; sensores de rotação, de umidade,
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 183

de temperatura; sensores ultrassônicos, infravermelhos, capacitivos, entre outros.


A variedade é imensa, e estão presentes nos diversos aparelhos eletrônicos que
utilizamos cotidianamente.
Se compreendermos sensores como inputs, que mensuram e parametrizam a
regulação de sistemas, o conceito pode ser discutido em diversos outros contextos
e escalas. O fenômeno do Quorum Sensing (QS) é um bom exemplo da escala social
microscópica. QS consiste em um sistema de estímulo e resposta entre moléculas
autoindutoras e moléculas receptoras, geralmente relacionado à densidade
populacional. Muitas espécies de bactérias utilizam QS para coordenar a
expressão de genes de acordo com a densidade da população local.1 Os chamados
insetos sociais (formigas e abelhas) utilizam-se deste mesmo mecanismo para
determinar onde construir o ninho, por exemplo. QS trata-se de um fenômeno de
sensoriamento que pode ser entendido como um processo de tomada de decisão
em sistema descentralizado, e seus princípios têm sido inclusive muito utilizados
em sistemas computacionais.

A Cibernética e as difusas fronteiras entre natureza e cultura


Para discutir sensores sob a ótica das diferenças e semelhanças entre sistemas
vivos e maquínicos, a Cibernética se apresenta como paradigma científico
essencial. Desde as Macy Conferences (1946–1953), os ciberneticistas se debruçam
sobre um amplo espectro de assuntos que variam desde estruturas mínimas,
matemáticas, abstratas, até as relações humanas e o meio ambiente. Cibernética
é uma palavra inventada para definir um novo campo na ciência. Ela combina debaixo
de um título o estudo do que no contexto humano é às vezes frouxamente descrito como
pensar e na engenharia é conhecido como controle e comunicação. Em outras palavras,
Cibernética tenta encontrar os elementos comuns das máquinas automáticas e do sistema
nervoso, e desenvolver uma teoria que cobrirá todo o campo do controle e comunicação em
organismos vivos (WIENER, 1974, apud FOERSTER, 1995, p. 07, tradução da autora).

Esta definição esclarece por que a Cibernética (e especialmente a Cibernética


de Segunda-Ordem)2 desempenha um papel importante na compreensão da

1. Caso haja interesse do leitor sobre o assunto, a palestra How bacteria talk, proferida pela Profa.
Bonnie Bassler nas conferências TEDEd é uma introdução excelente. Link disponível em:
<http://ed.ted.com/lessons/how-bacteria-talk-bonnie-bassler> Acesso em: 28 jul. 2015.
2. Em Cybernetics of Cybernetics: The control of control and the communication of communication, Heinz
184 cinema apesar da imagem

artemídia como expressão transdisciplinar do conhecimento, constituindo-se


como base epistemológica essencial neste contexto. Além disso, no ponto de vista
do supracitado Gumbrecht,
o observador de segunda-ordem redescobriu o corpo e, mais especificamente, os sentidos
como parte inerente a qualquer observação do mundo(...) ele levanta a questão de uma
possível compatibilidade entre a apropriação do mundo por conceitos (o que eu chamo
de “experiência”) e a apropriação do mundo pelos sentidos (que eu devo chamar de
“percepção”) (GUMBRECHT, 2004, p. 39, tradução da autora).

Com essa colocação, Gumbrecht nos impulsiona a relacionar que o termo


“sentir” (a coleta de dados através dos sentidos do corpo) e a expressão “fazer
sentido” (processamento de pensamento) parecem caminhar juntas. E isso
confirmam neurocientistas contemporâneos, como Antonio Damasio (1994),
George Lakoff e Mark Johnson (1999). E para a produção de artemídia, trata-se
justamente da fricção e balanço entre o sentir (aqui expandido também para a
coleta de dados do ambiente) e o gerar sentido que se coloca como desafio para
qualquer proposição.
O historiador e crítico das mídias Friedrich Kittler nos aponta a relação
intrínseca entre ambos esses universos no próprio surgimento das mídias. Ele
afirma: “Nós não sabíamos nada sobre os nossos sentidos até que as mídias
provessem modelos e metáforas” (KITTLER, 1999, p. 34, tradução da autora).
E exemplifica:
a construção de imagens na televisão corresponde à estrutura da própria retina, que
é como um mosaico de bastonetes e cones; os bastonetes permitem a percepção do
movimento, enquanto os cones permitem a percepção de cores, e juntos eles demonstram
o que é chamado de luminância e crominância na televisão em cores (KITTLER, 1999,
p. 36, tradução da autora).

von Foerster abre a publicação distinguindo a Cibernética de Primeira Ordem como “a


Cibernética dos sistemas observados” e a de Segunda Ordem como “a Cibernética dos
sistemas de observação” (FOERSTER, 1995, p. 1). Ranulph Glanville explica que “a
Cibernética de Segunda Ordem (…) foi desenvolvida entre 1968 e 1975 em reconhecimento
do poder e das consequências dos estudos cibernéticos sobre circularidade. É a Cibernética
quando ela está sujeita às críticas e entendimentos da Cibernética. É a Cibernética
em que o papel do observador é apreciado e reconhecido ao invés de velado, como se
tornou tradicional na ciência ocidental: por este motivo, é a Cibernética que considera
a observação/observar, em vez de sistemas observados” (GLANVILLE, 2001, p. 3).
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 185

Outros autores apontam também a coincidência de modos operacionais


entre modelos orgânicos e modelos maquínicos. Valentino Braitenberg, nas notas
biológicas dos robôs que ele descreve em Vehicles – Experiments in synthetic Psychology,
observa:
quando a cooperação de vários inputs nervosos na ativação dos neurônios motores
da coluna vertebral foi analisada, três fatos emergiram. Eles se tornaram descobertas
fundamentais sobre as propriedades computacionais das sinapses, mesmo antes que
técnicas de gravação elétrica de neurônios individuais fossem desenvolvidas (1984, p. 109,
tradução da autora).

Estes três fatos constituem-se como as operações fundamentais dos cálculos


de proposições – conjunção (AND), disjunção (OR), e negação (NOT) –, e eles
explicam as relações funcionais entre “experimentos macroscópicos input-output”
e o universo microscópico das propriedades elétricas das membranas das células
neurais. Coincidentemente, trata-se dos mesmos elementos lógicos utilizados tanto
pelos filósofos gregos na Antiguidade quanto pelos programadores da atualidade.
Outro caso interessante a ser mencionado que ilustra as difusas fronteiras
entre natureza e cultura é o trabalho do pesquisador e arquiteto Achim Menges,
que desenvolve estruturas maquínicas a partir de materiais orgânicos, sem nenhum
controle computacional. No projeto HygroScope: Meteorosensitive Morphology (Centre
George Pompidou, Paris, 2012), Menges explora um
modo de arquitetura responsiva baseada na combinação de compor-tamento inerente
ao material e morfogênese computacional. A instabilidade dimensional da madeira em
relação ao teor de umidade é empregada para construir uma morfologia arquitetônica
responsiva. Suspenso dentro de uma caixa de vidro com umidade controlada, o
modelo abre e fecha respondendo às alterações climáticas sem necessidade de qualquer
equipamento técnico ou energia. (...) A estrutura material por ela mesma é a máquina
(MENGES, 2012, tradução da autora).

Poderiam ser citados muitos outros exemplos de relações entre modelos de


compreensão da natureza e modelos maquínicos, culturalmente construídos,
inclusive produções contemporâneas de artemídia que usam bactérias ou plantas
como interfaces para a geração e/ou manipulação de imagens, sons ou atuadores.
No entanto, importante neste ponto é que se perceba que as tradicionais separações
entre materialidades orgânicas e inorgânicas, ou mesmo entre fenômenos naturais
ou culturais, não se apresentam mais tão demarcadas. E nesse sentido, mesmo
186 cinema apesar da imagem

frente a todas as críticas sofridas, a Cibernética ainda é um dos raros braços da


Ciência que se preocupa em fazer a ponte e discutir esses meandros.

Caracterizando a artemídia
A artemídia compreende experimentações estéticas mediadas por aparatos
técnicos e capazes de gerar outras mídias. Não por coincidência, o campo se
desenvolve dentro da Arte Contemporânea imbricada em experimentações e
estudos científicos norteados pela interação homem-máquina. Trata-se de uma
prática artística que lida com a possibilidade de dois ou mais sistemas permeáveis
(seres ou máquinas) se engajarem em interação, e cujas estruturas, no vaivém de
feedbacks, podem ser modificadas e atualizadas.
Pela perspectiva da Cibernética de Segunda Ordem, interação pode ser
definida como “responsividade mútua que pode conduzir à novidade, na qual
nenhum participante tem controle formal sobre os procedimentos. Interação
ocorre entre os participantes, e não por causa de nenhum deles” (GLANVILLE,
2001, p. 3, tradução da autora). A partir dessa definição, tomemos como princípio
que interatividade não é um conceito atrelado apenas à tecnologia digital ou
qualquer outra tecnologia empregada. Ela nos ajuda a compreender como e por
que os sensores podem ser vistos como elemento-chave para a compreensão das
especificidades da artemídia, já que eles tornam permeáveis os objetos colocados
em interação.
Como apontam diversos historiadores e críticos de arte, a citar Claire Bishop
e Frank Popper, no início do século XX emergiram trabalhos e movimentos
artísticos que denunciavam a crise da representação no campo da Arte. O objeto
de arte passou a ser negligenciado e o processo artístico veio a ser enfatizado
no seu lugar. Artistas começaram a criar proposições que demandavam cada vez
mais a participação do público para que a experiência estética se efetivasse. Essas
iniciativas motivaram inclusive uma revisão dos espaços expositivos.
Dentro deste desdobramento histórico e estético dois principais aspectos
precisam ser destacados: o engajamento corporal e a transformação do contexto
tecnológico, quando a atenção por materiais e dispositivos sensitivos cresce
exponencialmente, associando-se a diferentes intenções, como ilustram alguns
exemplos a seguir.
Em 1942, para a exposição First papers of surrealism, Duchamp propôs
a instalação Sixteen Miles of String, também conhecida como His Twine. Como,
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 187

naquele momento, ele também participava da concepção da exposição, sua


proposta consistiu em preencher todo o espaço expositivo com cordões, de modo
que os visitantes precisassem atravessá-los para fruir o trabalho em si, bem como
os outros trabalhos presentes no conjunto da exposição. Naturalmente, existem
múltiplas perspectivas para análise deste trabalho, mas a intenção em trazê-
lo como exemplo é pontuar o início de uma tendência na História da Arte: a
participação corporal da audiência no trabalho artístico. Além disso, “o próprio
Duchamp também tendeu a enfatizar mais o valor funcional de seus cordões do
que seu significado simbólico” (JOHN, 2008, p. 1, tradução da autora).
Outro exemplo significativo da tendência à participação corporal é a série
de Objetos Relacionais da artista brasileira Lygia Clark, que contribuiu amplamente
para a História da Arte no que se nomeou Arte Participativa, especialmente
nos anos 1960 e 1970. Para esta série, a artista criou objetos que facilitavam o
engajamento das pessoas em situações de troca. Curiosamente, no final de sua
carreira, Clark chegou a expressar que se considerava muito mais psicóloga do
que artista.
Como exemplo contemporâneo, vale a pena olhar para o trabalho Luzes
Relacionais (2009-2010), de Ernesto Klar, artista venezuelano radicado nos EUA.
Segundo o próprio artista, trata-se de uma citação direta à produção de Lygia
Clark, no entanto criada em contexto tecnológico completamente distinto. O
trabalho é composto por linhas brancas projetadas no chão, em uma sala escura.
Fumaça espalhada pelo espaço atribui uma aparente materialidade para as linhas,
que reagem à posição e ao movimento das pessoas na sala. O comportamento
do sistema é baseado no rastreamento do movimento das pessoas feito por uma
câmera (dispositivo fotossensível) posicionada no teto. A informação capturada
é processada e programada para movimentar as linhas projetadas e gerar sons
condicionados ao movimento das pessoas. Com regras e elementos muito simples
– o aspecto lúdico no trabalho se situa justamente em brincar com a forma e a
materialidade aparente das linhas – o artista consegue um engajamento muito
natural por parte dos visitantes. Klar propõe um sistema com regras que podem
ser aprendidas, ao qual os visitantes podem responder ativamente, em atitude
exploratória.
Mesmo que ambos proporcionem o engajamento corporal, os contextos
tecnológicos distintos desses dois últimos trabalhos nos permitem avaliar que, ao
passo que no tipo de trabalho de Ligia Clark são criadas possibilidade de interação
por meio dos objetos, no de Ernesto Klar essa interação também acontece com eles.
188 cinema apesar da imagem

Por outro lado, a descoberta e a implementação de materiais e dispositivos


sensíveis também se relacionam intimamente com o desejo de automatização. O
uso de sais de prata no desenvolvimento da fotografia é o início do processo de
automatização da produção de imagens (Kittler, 2010). Com a o desenvolvimento
da eletrônica e da computação, sensores atuam na automatização da interação
entre máquinas e seres. Na História da Arte, essa intenção é observada já no final
dos anos 1930. Na Exposition International du Surréalisme (Paris, 1938), por exemplo,
Duchamp havia pensado em instalar “olhos mágicos” de modo que as luzes se acenderiam
automaticamente na medida em que o espectador interrompesse um raio invisível ao
passar em frente à pintura. O desejo de Duchamp provou-se inexecutável, mas Man Ray
adaptou a ideia para o dia da abertura, apagando as luzes e distribuindo lanternas na
entrada, de modo que os visitantes poderiam usá-las para verem os trabalhos de arte em
exposição (FILIPOVIC, 2009, tradução da autora).

Apesar de não automatizada, a solução encontrada manteve a intenção inicial


de Duchamp: os então espectadores se aproximaram mais das obras, engajando-
se corporalmente no processo de fruição artística.
Mais tarde, em 1968, em outro contexto tecnológico, o ciberneticista
britânico Gordon Pask apresentou na exposição Cybernetic Serendipity, em Londres,
a instalação Colloquy of mobiles (1968). O trabalho consistia em um sistema social
computacional, em que máquinas “masculinas” e “femininas” podiam interagir
através de elementos como luz, som e mecanismos de rotação. De acordo com
a curadora e crítica de arte Margit Rosen, “a forma de comunicação que ele
concebeu referia-se evidentemente a uma analogia sexual”. Em detalhes, ela
descreve:
Após uma fase de inatividade, as fêmeas (feitas de fibra de vidro) começavam a brilhar mais
intensamente e os três machos emitiam um raio de luz. Quando o raio de luz acertava o
espelho dentro da estrutura do móbile fêmea, através da rotação do espelho, ela tentava
desviar o raio de volta em sensores de luz livremente pendurados acima e abaixo do corpo
de alumínio do macho (ROSEN, 2014).

O sistema foi programado de forma que “a meta da comunicação era


alcançar este momento de satisfação, e os móbiles aprenderam a otimizar seus
comportamentos ao ponto em que este estado poderia ser atingido com o mínimo
uso de energia possível” (ROSEN, 2014). Além disso, os visitantes da exposição
também podiam participar do processo de conversação e aprendizagem, assumindo
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 189

o papel de uma outra “máquina” por meio do uso de lanternas e espelhos. A troca
entre as máquinas torna-se possível somente por elas possuírem estruturas sensíveis,
seja à luz ou som, que permitiam a entrada de dados nas máquinas, e num segundo
momento, eram processados e dirigidos.
Esses exemplos pretenderam elucidar como o engajamento corpóreo e a
inserção de sensores na mediação maquínica são tópicos preciosos para melhor
compreender a natureza do que se tornou possível criar com o desenvolvimento
da cultura eletrônico-digital.

Processos criativos em artemídia como tradução de materialidades


Quando materiais sensíveis estão associados à eletrônica e processos digitais,
as possibilidades criativas dos seres humanos são atualizados. Quando Vilém
Flusser (2008) discute sobre a zero-dimensionalidade das mídias digitais, isso
significa que esses meios de comunicação nos oferecem a possibilidade de reunir
todos as materialidades em um mínimo denominador comum e, no segundo
momento, transformá-las em outras materialidades possíveis, transitando entre o
mundo abstrato e o mundo concreto. Em outras palavras, esse aspecto das mídias
digitais nos leva a problemas de tradução, uma vez que, teoricamente, permite-
nos traduzir qualquer coisa em qualquer coisa.
Considerando as diferentes escalas da matéria, tanto em sistemas vivos
quanto em máquinas, sensores são agentes importantes no processo de tradução
de materialidades. O próprio Fraden, em sua caracterização técnica dos sensores
criados pelo homem, afirma que “nós podemos dizer que um sensor é um tradutor
de um valor geralmente não-elétrico em um valor elétrico” (FRADEN, 2004, p. 02,
tradução da autora). Importante aqui diferenciar sensor de transdutor. Também
para Fraden, um transdutor converte qualquer tipo de energia para outro tipo de
energia, enquanto o sensor converte qualquer tipo de energia necessariamente
para energia elétrica: “um exemplo de um transdutor é um alto-falante, que
converte um sinal elétrico em um campo magnético variável e, subsequentemente,
em ondas acústicas. Isto não tem nada a ver com percepção ou sentir/detectar”
(FRADEN, 2004, p. 03, tradução da autora). No entanto, se um alto-falante é
conectado como input de um amplificador, ele pode funcionar como microfone,
tornando-se, então, um sensor acústico.
Um caso da História das Mídias que esclarece didaticamente o princípio da
tradução de materialidades a partir de elementos sensíveis é o fotofone, inventado
190 cinema apesar da imagem

por Alexander Graham Bell e seu assistente Charles Sumner Tainter, em 1880.
Sua origem é baseada na descoberta de novos elementos químicos na natureza,
neste caso, o elemento fotossensível selênio. Composto por um receptor e um
transmissor, o fotofone foi um aparelho de telecomunicações que permitiu a
transmissão de voz em um feixe de luz. O receptor era um espelho parabólico
com células de selênio no seu ponto focal.

Ilustração do fotofone. Fonte: Bibliography of Early Optical (Audio)Communications.

Pode-se arriscar que o cerne das criações em artemídia também está baseado
na tradução de dados e materialidades o tempo todo. E é com bastante frequência
que vemos trabalhos cujas traduções são sem sentido ou não potentes o suficiente
para provocar conversas relevantes e contribuir para o surgimento de novos
conhecimentos.
O humanista italiano Leonardo Bruni foi, provavelmente, um dos primeiros
pensadores modernos a escrever um tratado científico sobre a questão da
“tradução” no século XV. Bem mais tarde, no século XX, muitos outros teóricos
discutiriam o tema, como Croce e Rosenweig, Benjamin (The task of the translator)
e Steiner (After Babel). O interesse desses pensadores pelo tema é um sinal de que
a importância da tradução vai além do domínio da linguagem, para abranger
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 191

territórios ontológicos e filosóficos. Além disso, não é por acaso que o conceito
também é usado em Biologia Molecular e Genética, chamando também de
tradução o processo celular pelo qual ribossomos criam proteínas. O amplo
espectro de perspectivas sobre a tradução nos leva a compreendê-la como o jogo
que acontece no espaço entre uma realidade e outra.
Um trabalho relevante sobre esta discussão no âmbito das materialidades e
da arte é Gênesis (1999), de Eduardo Kac. O elemento-chave do trabalho é um
gene sintético que foi criado por Kac, traduzindo uma frase do livro bíblico do
Gênesis em código Morse e convertendo-a em pares de bases de DNA. O gene
resultante foi inserido em bactérias que ficavam no espaço expositivo. Por meio
da internet, as pessoas podiam ativar uma iluminação ultravioleta nesse lugar,
causando mutações biológicas reais no organismo vivo. No final da exposição, a
sequência do gene foi reconvertida em texto.
Por um lado, esta obra é um exemplo que demonstra explicitamente as
possíveis traduções de materialidades e suas implicações, discutindo inclusive
questões inerentes à tradução fora do mundo da arte: ambiguidade, ruído, e
subjetividade. Enquanto cada “realidade” (ou sistema) tem sua própria estrutura,
é absolutamente impossível encontrar correspondências exatas em ambos os
universos. Isso também explica as dificuldades na tradução de poesia.
No entanto, conforme coloca o filósofo francês Paul Ricoeur (2006), não há
critérios absolutos para uma boa tradução, ao passo que também é inegável nosso
desejo por traduzir, o que tem movido grande parte do desenvolvimento da cultura.
Retomando o campo da artemídia – e considerando-a como um lugar de pensar-
fazer através do jogo com as traduções de materialidades – é possível descobrir nesta
prática a ideia de materialidade da comunicação apontada por Gumbrecht.

Entre sensores e sentidos: brincando com a materialidade de


comunicação
Há uma grande oferta de sensores e dispositivos eletrônicos no mercado,
o que os torna relativamente acessíveis, aumentando o potencial de se tatear
o universo tecnológico. No entanto, poucas pessoas dominam tais ferramentas
contemporâneas, tampouco as maneiras pelas quais elas podem se informar sobre
as especificidades, limitações, e o modo de usá-las expressiva e criticamente.
Os primeiros experimentos artísticos com tecnologias eletrônico-digitais
foram realizados em centros de pesquisa e tecnologia bastante restritos
192 cinema apesar da imagem

(NAYMARK, 2003). Atualmente, contamos com um contexto de criação


completamente diferente, em que uma quantidade significativa de informação
sobre eletrônica, programação, sensores e outros dispositivos é extensivamente
compartilhada cotidianamente, contribuindo amplamente para uma cultura DIY
(do-it-yourself) e suas diversas comunidades. Este é um fator importante, que nos
permite experimentar mais despretensiosa e esteticamente com tais materiais, o
que num passado não muito distante estava disponível apenas em circuitos muito
especializados. Do potencial emancipador da abordagem “mão-na-massa” dos
sensores caseiros, ao potencial sustentável do uso de materiais orgânicos como
sensores, a cultura DIY é uma outra referência de entrada para repensarmos o
fazer-pensar artemídia.
Frente ao apelo material dos sensores e considerando que a apreensão da ideia
de materialidade da comunicação fica comprometida se discutida desvinculada de
práticas associadas, como experiência-piloto para investigar essas relações usando
os sensores como mote criativo, foi proposta uma oficina chamada Entre sensores
e sentidos: performando a materialidade da comunicação, realizada em Agosto de 2014,
durante a conferência Besides the Screen Brazil, em Vitória/ES (Brasil).
A principal questão que orientou a proposta foi: como experimentos estéticos
com sensores podem contribuir para resgatar uma aproximação artesanal com o
fazer artístico ligado às tecnologias digitais, e a partir disso desenvolver proposições
educativas?
Na ocasião, os participantes divididos em dois grupos foram estimulados a
exercitar a criação de propostas estéticas utilizando sensores caseiros, tendo como
ponto de partida uma mesma estrutura técnica. O sistema funcional oferecido era
composto por um conjunto de cinco sensores reativos à dobra, pressão ou torção,
que podiam disparar até cinco arquivos de áudio simultaneamente. Os sensores
foram feitos manualmente, utilizando linha e tecido condutivos, fita adesiva e
plástico semi-condutivo Velostat, conforme aprendido em um tutorial on-line.3 A
escolha por este tipo de sensor deu-se em função de sua praticidade e do tempo
reduzido da oficina.

3. O tutorial é oferecido no canal do Youtube de Hannah Perner-Wilson (usuário Plusea)


(WILSON, 2009).
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 193

Frame do vídeo-tutorial Sticktape bend sensor in less than 4 minutes.


Fonte: WILSON, 2009.

Os sensores, por sua vez, estavam conectados a um microcontrolador


(Arduino Lilipad) através de um circuito divisor de tensão, de modo que os sensores
atuavam como uma resistência variável. A manipulação do material mudava a sua
resistência, alterando proporcionalmente a tensão recebida nas portas de entrada
de dados do microcontrolador. Por meio de comunicação sem fio (módulos
XBee), os dados eram enviados a um programa (codificado em MaxMSP) rodando
num computador. Nele, cada faixa de áudio foi atribuída a um sensor. Assim, o
sistema como um todo configurava-se como uma potencial composição sonora,
a ser executada em tempo real. A proposta era que os participantes “aplicassem”
tal sistema ao corpo, criando relações entre os sensores e os sons. Isto é, os
participantes deveriam discutir e criar uma proposta de alocação dos sensores no
corpo e/ou espaço, e elaborar conteúdos sonoros para cada um deles.
Primeiramente, os participantes foram introduzidos ao sistema funcional,
sendo-lhes explicada cada parte da plataforma com a qual eles iriam trabalhar.
A proposta fundamentou-se no pressuposto de que o sistema funcional por si
só não tem significado algum, e apenas através do engajamento direto com a
materialidade dos elementos disponíveis é que os participantes poderiam começar
a amadurecer as ideias de como explorar esteticamente as potencialidades da base
técnica, como uma linguagem física/material a ser aprendida e articulada.
194 cinema apesar da imagem

Por meio do estímulo do fazer com as próprias mãos, em um contexto


coletivo de aprendizagem e troca, o principal ponto da metodologia estruturou-
se no encorajamento ao trato com as “caixas-pretas” que compunham a
estrutura técnica oferecida como ponto de partida. Uma vez que a eletrônica e
a programação são campos de saber que lidam com a materialidade das coisas
numa escala intangível para os sentidos humanos, esse exercício buscou trazer aos
participantes a chance de brincar com o sedutor universo da “magia” tecnológica
através de uma perspectiva investigativa. Ou seja, mesmo que não possamos ver
a corrente elétrica sendo manipulada dentro das caixas-pretas materializadas
em forma de circuitos integrados, por exemplo, ao testarmos diferentes tipos de
inputs e outputs, atribuídos através de programas, lidamos indiretamente com
a materialidade do universo eletrônico-digital, na escala atômica. Isso tornou-
se possível em função das abstrações desenvolvidas nos territórios das ciências
exatas. Assim, uma perspectiva investigativa consistiria em assumir, por um lado,
a impossibilidade de tornar essas “caixas-pretas” transparentes; e, por outro, o
aprendizado, construção e partilha do conhecimento a partir de um fazer-pensar/
pensar-fazer indissociáveis, trafegando conscientemente entre a abstração e a
concretude do mundo que nos circunda.
Embora o plano inicial fosse trabalhar com um sistema funcional
preconcebido, a metodologia também buscou oferecer espaço para a criação,
dando aos participantes a possiblidade de exercitar a atribuição de significados
em relação ao engajamento corporal mediado por dispositivos tecnológicos.
Nesse espaço aberto à criatividade, os participantes foram levados a encarar
o processo criativo como um lugar de contingências. Partimos do princípio que as
decisões técnicas e estéticas seriam tomadas de forma colaborativa conforme os
problemas fossem aparecendo. A maioria dos participantes não sabia como reunir
tais elementos (sensores, eletrônica, programação, etc.) para criar um sistema
reativo e/ou potencialmente interativo, e o exercício serviu como introdução a
um universo completamente novo para todos.
Um dos grupos desenvolveu um experimento performático baseado na
contribuição de cada integrante, tendo como metáfora um organismo vivo.
Pensaram os sensores acoplados ao peito de cada um e, juntos, em roda, através
de movimentação torácica, performariam um organismo que respira. Os sons
reproduzidos pelo sistema seriam ruídos de respiração em diferentes ritmos e tons.
O outro grupo desenvolveu a ideia de um corpo ampliado, atribuindo aos sensores
sons remissivos a espaços remotos, especificamente espaços da universidade onde
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 195

a oficina foi realizada. Um sensor localizado na barriga, por exemplo, estava


relacionado a sons do restaurante universitário.
Tomada como uma introdução às potencialidades da artemídia e suas
especificidades, a experiência se apresentou como um processo de aprendizagem
bastante potente. As propostas geradas nos levaram a pensar e discutir os
diferentes modelos de corpo culturalmente construídos: corpo fragmentado, corpo
recipiente, corpo expandido, corpo organismo, e assim por diante (GREINER,
2005). Esse tópico refletiu uma parte do repertório, entendimento e experiência
que os participantes têm com o próprio corpo.
A dinâmica de criação coletiva foi enriquecida por uma atmosfera de
colaboração indispensável para a realização do processo de aprendizagem e
engajamento das pessoas. Almejando algo como a experiência flow descrita por
Csíkszentmihályi (1990), que se baseia no balanceamento entre as habilidades
pessoais e os desafios estabelecidos, os participantes foram encorajados não a focar
no produto final, mas sim a se concentrarem no processo criativo e de aprendizagem,
permanecendo abertos às questões que emergissem das relações com os materiais
disponíveis e com os colegas. Desta abordagem brotou uma descoberta interessante:
no processo criativo, alterar o paradigma de apenas solucionar problemas para o de
descobri-los pode ser uma ferramenta para o aprimoramento do modo pelo qual as
pessoas se relacionam com o conhecimento de uma forma geral.
Experimentos futuros precisariam de prazos mais longos, de modo a
esmiuçar mais profundamente os temas que surgissem em cada etapa do
processo de realização da proposta, em especial as complexas relações entre os
aspectos técnicos e conceituais próprios da artemídia. Certamente sempre haverá
problemas com limitações físicas do mundo concreto para serem solucionados, e
o desafio se baseia justamente em encontrar soluções possíveis que mantenham
a potência e a relevância da discussão que inicialmente impulsionou o trabalho.
Criar no âmbito da artemídia implica lidar diretamente com a materialidade da
comunicação, ou seja, buscar a sintonia fina entre o universo abstrato das ideias e
o universo concreto dos materiais.

Considerações finais
Este artigo é uma formalização preliminar de como o foco em “sensores”
contribui para uma compreensão da influência mútua e interdependência entre
os aspectos estéticos e técnicos da artemídia. Entender a materialidade e a
196 cinema apesar da imagem

medialidade de sistemas interativos é essencial para que sejam desenvolvidas


proposições mais maduras neste campo, em que não deveria mais haver
separação entre o pensar e o fazer. Uma vez que fomos social e historicamente
treinados a fazer tal separação, o processo criativo em artemídia é um exercício
na contracorrente desta tendência, que assume o aspecto transdisciplinar do
conhecimento para que sua construção e compartilhamento possam se efetivar.
Esse seria um dos principais argumentos a favor da implementação desta
abordagem no âmbito educativo formal e informal, em diversas instâncias,
desde a educação elementar até o ensino especializado em artes.
Tal prática, a ser complementada e reforçada por outras iniciativas da
cultura DIY, merece atenção especial pois traz uma chance concreta de alteração
de paradigma na cena criativa, e contribui potencialmente para transformar o
“interator(a)” da História da Arte em um “realizador(a)”, capaz de disparar
outras interações.
Para os já realizadores, a discussão aqui proposta se coloca como um início de
interlocução para a superação das dicotomias empobrecedoras que permeiam o campo.
Por mais óbvias que estas questões possam parecer, elas precisam ser constantemente
retomadas em debates entre artistas, críticos, teóricos e entusiastas da artemídia,
para que possa ser preparado um terreno fértil para essa produção, onde os novos
criadores sejam alimentados por este potencial novo paradigma e possam buscar suas
respectivas pulsões criativas viscerais, que sustentem a necessidade de comunicação.
Agradecimentos ao Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) por financiar esta
pesquisa em andamento; ao Prof. Dr. Wolfgang Schäffner, orientador do trabalho; e aos organizadores
e participantes da oficina no Besides the Screen Brazil/Telas à Parte, em Vitória/ES.

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mulheres continentais:
performance de imagens na
invenção de si
monica toledo silva

Cada lugar é o mundo.


Milton Santos
Para Leandro Neves Cardim, o corpo subjetivo é o corpo vivido (2009, p.
42). Essa percepção do corpo como expressão física do tempo vivido nos permite
apreendê-lo em sua visualidade movente sempre particular, resultante de suas ações
e subjetivações. O filósofo Andrea Bonomini complementa esse entendimento do
corpo afirmando que
o prestígio do presente só se dá pelo conteúdo latente de passado e de futuro e de alhures
que ele esconde. O ser de latência tem uma multiplicidade que nasce na espessura de uma
temporalidade, de uma história, e na disponibilidade para pluralidade de perspectivas
(2004, p. 64).

Lidar simultaneamente com as especificidades e pluralidades de cada


corpo no contexto audiovisual (da produção de conteúdo sonoro e imagético) e
no ambiente instalativo (que permite pensar obras videográficas desconectadas
de telas ou suportes normatizados de exibição, em acordo com a proposta da
conferência Besides the Screen) é também vivenciar e performar as imagens dos
outros. As noções formais de registro (como documento), de permanência (como
fixidez) e de discurso (como unidade) são inadequadas às ambiguidades imanentes
tanto do objeto desta obra instalativa (o corpo) quanto da linguagem explorada
(videoperformances em projeções sobrepostas e simultâneas).
O projeto Mulheres continentais nasce do desejo de mapear corpos que
habitam um lugar ao qual não se pertence. A proposta de uma instalação com
videoprojeções simultâneas tem início em 2014, com o intuito de retratar quatro
202 cinema apesar da imagem

artistas brasileiras de origens distintas: indígena, africana, latina e oriental. São


personagens que se reinventaram para habitar esse outro lugar. Que imagens e falas
criam para si mesmas? Como podemos reproduzir suas histórias fragmentadas e
suas memórias pessoais?
O primeiro resultado desse projeto são 14 vídeos que exibem cenas das vidas
dessas personagens. Os vídeos foram apresentados de diferentes maneiras em cada
uma das etapas da conferência Besides the Screen Brazil 2014. Em Vitória, trechos
foram mostrados durante a minha fala no auditório da UFES. Em São Paulo, a
obra integrou a ocupação artística do Cine Art Palácio, sala de cinema abandonada
localizada no centro da cidade. Nessa ocasião, as imagens foram apropriadas e
manipuladas por outros artistas, que as projetaram sobrepostas ou fora da tela,
abrindo diversas possibilidades de exibição da obra.
Discutir identidade, lugar, memória e pertencimento hoje em dia é entrar
no terreno fértil da mestiçagem, do contágio, impossível de ser categorizado ou
compreendido com nomenclaturas prévias ou pensamentos dualistas. Este lugar
pantanoso é necessariamente o da reinvenção de si; as vivências dizem respeito
à criação de modos de pensar e dar forma para conteúdos pessoais na constante
situação de sentir-se estrangeira. A cada novo lugar um novo corpo: uma nova
realidade se impõe e demanda novo movimento. A pertinência que este projeto
traz se dá pela manipulação de conteúdos pessoais, mais afetivos que históricos,
mais imaginados que familiarizados. A videoinstalação é o formato que mais se
aproxima do exercício de performar nossas próprias memórias e dar sentido a um
sentimento contemporâneo que exclui narrativas simples para mapear vivências
e sentimentos em trânsito.
Os vídeos realizados ao longo de 2014 são resultados de conversas e
experimentos de câmera, de gestos, imagens e histórias. Cada uma das artistas
convidadas (três performers e uma cineasta) contribuiu com a experiência
oriunda de seus próprios trabalhos nessa procura por formas narrativas capazes
de representar acontecimentos, desejos, memórias e impressões. O processo visa
resultar num conjunto de vivências projetadas simultaneamente num espaço a
ser manipulado a cada evento, de acordo com suas respectivas possibilidades e
dimensões. Filmar a memória do outro, o corpo do outro, e criar uma montagem
dinâmica que dialoga e interage com outras montagens de outros corpos e de
outras memórias. Esse desafio compõe a instalação das Mulheres continentais.
A relação corpo-memória-tela se dá sempre de maneira performática,
porque cada ambiente instalativo impõe suas condições físicas e espaciais, em
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 203

dimensões sempre variáveis. As projeções interagem também de formas distintas


entre si, podendo ser totalmente ou parcialmente sobrepostas, invadidas uma
pela outra, expandidas, deformadas (alterando-se as configurações do projetor)
ou minimizadas (projetadas em dimensões mínimas). O posicionamento do
projetor intervém também no resultado visual: ele pode operar atrás de uma
porta, direcionado para o teto, para o chão, para janelas, para fora. Cada espaço
físico portanto interfere no diálogo das projeções e determina parcialmente suas
possíveis narrativas.
O áudio, assim como a imagem, também produz a cada instalação uma
linguagem única, de acordo com o tempo em que cada um dos vídeos é acionado
(o momento em que se inicia), visto que ele é invasivo e “ocupa o espaço” das outras
projeções. Em outras palavras, o áudio de cada vídeo se expande no ambiente
instalativo e deixa de pertencer apenas às imagens de sua montagem original,
passando a “narrar” de modo intrusivo os acontecimentos de outros vídeos.
A composição do áudio em cada videoperformance é bastante variada. Ele é
quase sempre diegético e composto pelos ruídos da captação – sons ao acaso. Há
vídeos mudos, oriundos de fotomontagens. E há vídeos com montagem sonora
de áudios captados em outro tempo e lugar, que constituem parte do acervo da
personagem e representam parte da pesquisa que originou a construção daquela
performance.
Portanto, espaços e tempos distintos de cada videoperformance interagem
e compõem uma paisagem sempre nova no ambiente instalativo, por sua vez
também agente desta sempre nova narrativa. Esta linguagem audiovisual é a
que melhor representa o entendimento do corpo como estado de passagem de
memórias e emoções sempre diversas e impassíveis de um registro documental
formal, pré definido, pré configurado, roteirizado, planejado. Memórias vêm e
vão, se alimentam de afeto, de história, de imaginação, de dor, e precisam ser
sempre reinventadas e alimentadas para existir. Estas informações no corpo das
personagens-performers se dá em sequências de gestos não dirigidos por mim e
nem planejados previamente por elas, compondo paisagens visuais em sequências
de movimentos que trazem estas memórias do corpo que elas atualizam para
reconfigurar suas identidades em uma cultura estrangeira. Esta forma, não
codificada, não mapeada, mostra-se a mais eficaz e próxima de suas realidades e
corpos vivos diante da câmera.
A montagem de cada videoperformance, de maneira análoga, configurou-se a
partir das minhas memórias do registro das performances – de como as personagens
204 cinema apesar da imagem

agiram e se sentiram durante a captura da imagem, o que disseram, o que revelaram


e o que ocultaram. O ritmo, a duração,1 assim como os enquadramentos, agiram
como representações audiovisuais daquele estado daquele corpo naquele momento
e lugar. Dessa forma a linguagem de cada videoperformance é composta por um
jogo de visibilidades (o que se deixou revelar), invisibilidades (silêncios e vazios
na imagem) e possibilidades de entendimento naquela relação de gestos, objetos
pessoais presentes em cena, e memórias vivas do corpo.
Ao se projetar um vídeo sobre o outro, se desfaz esta construção dialógica
singular de cada uma das obras para se construir outra, em conjunto, que no
entanto reafirma o mesmo: o corpo como lugar infinito de resgate e invenção de
imagens, de conteúdos passados e presentes, aderente ao momento e sensível aos
estímulos audiovisuais de cada captura (a câmera; o microfone; a rua; os objetos;
os ruídos; a minha presença inquisitiva; etc). A simultaneidade das projeções assim
confirma a existência do corpo como situação, a fragilidade da imagem como
registro total de um estado, e a impossibilidade de alcance de uma memória como
algo localizado num contexto temporal único, e condiz com a realidade do corpo,
da imagem e da memória, que revelam suas forças na existência do instante.
Duas das personagens iniciais de Mulheres continentais expuseram conteúdos
criativos que fugiram totalmente das minhas expectativas e planejamento inicial.
Luana, descendente indígena, não trouxe qualquer adereço ou referência estética
de sua origem, e sim uma vestimenta portuguesa, coberta de negro da cabeça aos
pés – fez de si uma poderosa colonizadora com figurino que a cobria até a cabeça
– espécie de monstruosidade agressora que aporta em terras virgens. Fez-se do
imaginário coletivo, da dor imaginada, do ressentimento no seu estado presente,
para performar na obra. Joyce, de origem africana, desconhece qualquer origem
(país, língua, nomes de parentes mais distantes) e não pode senão imaginar uma
sensação de perda e representar com as mãos na terra um vago desejo de saber,
esconder, procurar, achar, uma espécie de tesouro ou preciosidade perdida.
Paula Sibilia (2008) aponta para enunciados habitados pela alteridade em
narrativas que tecem e realizam o “eu” – eu como unidade ilusória construída na
linguagem, a partir do fluxo caótico de cada experiência. E questiona: Extingue-
se o velho eu unificador e supostamente estável, ou trata-se de um paroxismo de
identidades efêmeras, todas autênticas e falsas e visíveis? Ao provocar a ideia de

1. A duração para Bergson é a continuidade do que não é mais (passado) no que é (presente),
atenta à experiência concreta do mundo percebido (apud CARDIM, 2009, p. 62).
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 205

sujeito, enunciador de narrativa não unívoca nem linear, Sibilia nos lembra que
a matéria que nos constitui enquanto tais (sujeitos) é moldada no contexto e a
partir de nossa experiência no mundo, trocas, percepções, adaptações. Portanto
identidade e cultura são termos que ganham formas fluidas ou deixam de existir
em seus sentidos originários — delimitadores e esclarecedores.
Sibilia acrescenta que todo relato se insere em um denso tecido intertextual
entremeado com outros textos e vozes, e que as técnicas de criação de si constituem-se
em um relato cotidiano que organiza a realidade. As narrativas que tecem e realizam
o eu constituem-se de linguagens, no contexto da performance, de sequências de
gestos e imagens que excluem tanto o depoimento quanto qualquer discurso linear.
Com o objetivo de abordar o universo de mulheres brasileiras artistas
descendentes de migrantes, imigrantes ou de cultura distinta e formadora da
cultura brasileira contemporânea, a partir de imagens produzidas por elas ou
criadas para a obra, a proposta da obra se dá em função de não haver relatos
claros, sequenciais, ou narrativas únicas, mesmo numa mesma personagem
(que pode ter vários vídeos de vários momentos acerca de uma mesma temática
escolhida). As questões abordadas são relacionadas a estados ou condições,
percepções e vivências, de modo que não remetem ao tempo cronológico nem
constituem sequências de acontecimentos determinados. A proposta instalativa,
portanto, ao permitir a exibição de telas simultâneas, dialoga com estas realidades
e condições que atravessam o tempo e o espaço e permanecem assim – como
existências no tempo e espaço presentes.
Um passado não familiar conhecido por elas apenas por histórias contadas
ou experienciado em parte em outro lugar altera seus modos de perceber e agir
no cotidiano; como elas atualizam esta condição vivida ou imaginada em gestos,
e como habitam e se configuram numa identidade híbrida em outro lugar? O que
cria uma percepção de pertencimento? Objetos, desejos, experiências?
A linguagem da videoperformance dialoga com narrativas possíveis para
invisibilidades de cada corpo – todo material sensível inconsciente ou não
representado em gestos –, pois independe de uma construção prévia de discurso,
roteiro, construção de personagem ou qualquer tipo de mapeamento audiovisual
que anteceda a captura. Criar visibilidades para estas “pessoas-continentes”,
de identidades móveis e aderentes, torna-se ato de performance também do
realizador e do visitante da instalação, que interage com as projeções criando suas
próprias narrativas de acordo com o tempo que lhes dedica seu olhar e o caminho
que escolhe percorrer entre as imagens.
206 cinema apesar da imagem

Em Outros 500... (1994) Lucy Dias e Roberto Gambini exaltam a importância


do reconhecimento da subjetividade e de se abrir espaços para uma emoção que
também é anímica e que se passa em nossos subterrâneos. A mulher na formação
do Brasil é totalmente invisível – da índia nada consta e quase nada sobra: suas
crenças, seus gestos, sua língua. A africana nascida aqui já perdeu também seus
hábitos, valores e referências e a europeia veio mais tarde ao encontro do marido
desbravador que ilustra a conquista masculina do país. Assim há todo um vácuo, um
escuro, um silêncio, que habita a brasileira – assim como sob outras circunstâncias
e particularidades outras mulheres de outras nações. Essa vivência permeada de
invisibilidades, de abusos de muitas espécies ainda muito presentes no cotidiano, a
condição ainda muitas vezes de submissão, fez com que a questão da feminilidade
– desse feminino resistente à brutalidade, que vem de uma grande sombra com
uma grande delicadeza – fez com que o recorte desta obra se abrangesse a artistas
de toda nacionalidade mas se restringisse ao corpo feminino.
Identidades se deslocam em tempos, lugares, histórias, tradições, e distinções
culturais tornam-se reduzidas; nas relações de troca novas possibilidades
identitárias tomam corpo: geografias se localizam em espaços e tempos simbólicos,
e o tempo da memória, que tem uma duração sempre pessoal, é determinante da
duração das cenas – de ações, de respiros, de vazios. O vídeo como geografia
corpórea, espaço de presenças do corpo, o vídeo como expressão de anatomias
em movimento, é o recurso audiovisual mais condizente com a proposta desta
obra. Mais que isso, revelou-se o único possível.
As percepções de imagem de si, a imagem de si como outro; a sensação de
(i)mobilidade; a ação de reinventar-se; a reinvenção também do espaço; o silêncio;
a escuta: estas são as condições que permeiam o pensamento da montagem dos
vídeos e a abordagem das personagens – pois não há perguntas exatas a serem
feitas e sim uma observação minha consentida por elas de seu espaço e sua vida.
A partir de inquietações e ideias propostas por mim (que me sinto estrangeira em
qualquer lugar), elas trazem algumas questões pessoais e assim pensamos juntas
em imagens e cenas possíveis. A receptividade foi sempre boa e o retorno muito
irregular. Cada corpo uma história.
A primeira personagem (Luana) desenvolveu sequências de gestos para
a câmera, em continuidade com um projeto de performance que já tinha em
andamento (Encarnados, com dupla residência em Lisboa). Algumas semanas
de convívio intenso, durante as quais eu dirigi a cena e operei a câmera
enquanto ela performava, resultaram em horas de imagem captada para quatro
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 207

videoperformances. A coreografia foi criada por mim na edição; o tema é o


imaginário traumático da invasão e violência portuguesa no Brasil indígena (sua
ascendência). A segunda (Erika) produziu quatro videoperformances nas quais
relata e atua, demonstrando os gestos japoneses empregados no uso do kimono
e na cerimônia do chá – ações que já pesquisa faz anos. Já a terceira (Joyce) não
tinha qualquer vivência, prática, pensamento ou imagem sobre a história de sua
ascendência africana. Diferente das duas anteriores, que são artistas performers,
ela é cineasta. Depois de meses, conseguimos produzir apenas um vídeo, com
uma única cena, que representa uma tentativa de busca por algo sagrado na
terra. Simone, a quarta personagem, estava no México. Ela trabalhou comigo
à distância, relatando por meio de materiais enviados a mim (trechos de vídeos
e fotografias autorais) a sua experiência de viver lá como estrangeira. Os objetos
trabalhados são a música brasileira e um tecido que adquire utilidades variadas ao
longo do tempo, objeto-performance de afeto.
Fabiana Britto é uma das muitas pesquisadoras do corpo que propõe o seu
entendimento como lugar de trânsito das informações biológicas e culturais,
abrigando “tempos diversos e atuando como mediador dessa simultaneidade”
(BRITTO, 2008, p. 29). Além de sua própria configuração, cada corpo oferece
condições particulares, com suas heranças para cumprir ajustes adequatórios, de
modo que sua história “registra a mudança de aptidão de comunicar como é/ era
o meio que o produziu” (ibid.). Ou seja, Britto apresenta a noção de permanência
no sentido de continuidade dos processos de transformação - e não associada à
estabilidade e conservação.
O sentido transitório da noção de identidade é associado ao caráter residual
de trocas (de formas artísticas hibridizadas na performance e conteúdos do corpo),
que permitem assim pensar a história de um sistema artístico como processo
contínuo de evolução. É neste complexo identidade residual-(im)permanência-
ajustes adequatórios que a linguagem da videoperformance se revela como a mais
fiel à representação das histórias móveis das personagens de Mulheres continentais.
A pregnância do tema continental e do feminino nestes entremeios da vida
pública e pessoal, que não precisa ser relatada na forma de um discurso formal
e que se faz presente na delicadeza e no silêncio, na singularidade de gestos e
histórias passadas e imaginadas, é fator decisivo para o entendimento das
vivências continentais, dando uma dimensão global e coerente com formas de
viver o contemporâneo - a sensação comum de estar em lugar nenhum ou em
lugar qualquer. Por isso a questão da territorialidade, além da identidade, se aplica
208 cinema apesar da imagem

aqui como espaço latente de potência criativa.


Representar vivências, soluções pessoais no contexto de produção autoral,
perceber conteúdos afetivos que se despregam do tempo e do lugar, recriar
conteúdos pessoais e pensar em formas possíveis de diálogo e captação de imagens
e sons revela-se como uma obra de performance tanto da vida das personagens
como da minha, estrangeira em qualquer lugar.
Milton Santos esclarece que cada lugar é um sistema espacial e assim o que
está diante de nós é sempre uma paisagem e um espaço. Nesse processo podemos
“enfrentar o entendimento do mundo” (1994, p. 25) e “precaver-nos de pensar o
lugar sem o mundo” (ibid., p. 85). O geógrafo sugere o entendimento do espaço
como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações, que
“revificam coisas e as transformam” (ibid., p. 103). Nesse sentido, em dois vídeos
da série Mulheres continentais, a personagem Simone apresenta a transformação
de uma toalha de mesa levada de seu restaurante predileto no Brasil em um
vestido (em vídeo que registra o processo de costura e transformação do objeto,
da mesa ao corpo) e a sequência de atribuições desse mesmo objeto até tornar-
se um vestido (toalha para piquenique, varal de exposição, manta para sofá) em
uma fotomontagem em movimento. Assim, as ações não se dão apenas conformes
aos fins, mas conformes aos meios, isto é, aos objetos, conforme Santos. E nesse
processo o espaço representa uma união dialética de fixos e de fluxos, um conjunto
contraditório de configuração territorial e de relações, e formado por um sistema
de objetos e um sistema de ações (ibid., p. 105).
Entre os vídeos das Mulheres continentais, há dois em que a personagem Erika
realiza a cerimônia do chá, ritual japonês de grande tradição; ela o faz com uma
cumbuca indígena. E explica que ela é brasileira e que os utensílios indígenas são
parte de seu cotidiano e objetos de seu afeto, e que portanto devem ser integrados
à cerimônia do chá, que realiza antagonicamente aos preceitos milenares passados
a gerações de mulheres, com a minúcia e detalhamento da sequência fixa de gestos
indispensáveis, lentamente executados com precisão nipônica, envolvendo outros
utensílios japoneses, incluindo um lenço da avó que ela usa para cobrir o colo
sobre o kimono. Da mesma maneira, ao participar do 1o Encontro Internacional de
Cerimônia do Chá, na Islândia, em Junho de 2014, a performer usou na cerimônia
um turbante africano, que também serviu como toalha, e uma moringa, peça
genuína dos interiores do Brasil.
Durante a apresentação desse trabalho no seminário Corpocidade (Escola de
Arquitetura da UFBA, 2014), os participantes do grupo de estudos “Subjetividade,
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 209

corpo e arte” trouxeram questionamentos que avançam essas discussões em


outras direções possíveis. Por exemplo, a proposta de um “habitar expandido e
situado”, que me provoca a pensar o lugar dessas personagens continentais como
“deslocado” do espaço físico onde se encontram e mais próximo de um estado
afetivo, vivido, imaginado. Habitar como ocupar não só com o corpo mas também
no desejo e na memória.
Outro pensamento: “negociar enunciados para infiltrar”. Em contexto
diverso, essa ideia claramente me instiga para as Mulheres continentais, já que eu
própria performo um olhar e um gesto (de abordá-las; de filmá-las; de editá-las;
de dar forma e sentido aos conteúdos que trazem), negociando enunciados e
efetivamente me infiltrando. O fato de não haver roteiro prévio faz com que eu
dirija a cena – ainda que elas não estejam atuando como atrizes e sim representando
a si próprias – e passe a ser parte do material que se propõem a mostrar e dividir.
Outra provocação: “dar visibilidade, respeitando o invisível”. Como relatar? Há
um relato? Como narrar? É preciso narrar? Quem narra: eu (agente perceptora,
diretora, montadora, criadora) ou a personagem? Qual é o lugar da enunciação?
Ela pode ser móvel ou oscilar entre o lugar de um e outro? E como tratar tudo
isso no âmbito do invisível – ou indizível? Algo precisa ser revelado na imagem?
Ou esclarecido – e pra quem, para a personagem ou para o público? Além
destas questões, está ainda a da invisibilidade. Como respeitá-la e dar-lhe forma?
Novamente, a opção pelo formato videoinstalativo tem demonstrado ser a melhor
opção de tratamento para este conteúdo vivo de corpos continentais.
O fato de os estudos de gênero e as teorias feministas não serem abordados
neste artigo não significa que sejam secundários. A opção por artistas mulheres
pode ser ampliada a outros corpos silenciados, ampliando também a noção
do feminino, o que traz discussões potentes sobre performatividade, tal qual
apresentadas por teóricas como Diane Taylor e Judith Butler. Percepções de
identidade e reinvenção de si passam, da mesma maneira, por invisibilidades,
incomunicações, sentidos subliminares e delicadezas manifestas nas muitas formas
sensíveis que estas vivências continentais podem trazer enquanto espaços abertos
às trocas e ações destes corpos que não conhecem fronteiras.
A proposta inicial de Mulheres continentais foi restrita a artistas brasileiras cuja
trajetória incluía outra cultura, uma origem familiar ou um histórico social distinto
do lugar onde vivem, e que se apropriavam dessas diferenças (entendidas por mim
como condições organizadoras de novos trajetos, adaptações, com deslocamentos
das noções de identidade, território e pertencimento) em suas obras autorais,
210 cinema apesar da imagem

nas quais praticam experimentos de linguagens distintas da performance (visual,


cênica, sonora), por sua vez recriados por mim para essa obra videoinstalativa.
No entanto, ao longo de 2014, me deparei com a seguinte situação: por um lado,
o próprio Brasil mostra-se estrangeiro de si mesmo; e por outro, qualquer país
na cena contemporânea, com raras exceções, existe também sob as mesmas
condições de nomadismo, trânsito e miscigenação, transbordando assim a própria
percepção de realidade, das fronteiras e da representação de si. Dessa forma, a
continuação desse projeto estende-se a artistas também estrangeiras, ampliando a
condição da nacionalidade para a de territorialidade.
A técnica de abordagem pessoal (de observação e conversa sem perguntas
específicas) mostrou-se efetiva, sempre em movimento e num estado de significância
latente que corporifica muitas das questões contemporâneas que tento trazer para
esta obra – territorialidade; identidade; narratividade; pertencimento. Dessa
forma, o projeto continua em andamento em 2015, buscando personagens de
outras cidades (Los Angeles, Chicago e Johannesburg) que trarão novas soluções
gestuais e entendimentos de lugar, imagens e vivências.
As questões epistemológicas em torno de Mulheres continentais revelam impulsos
criativos e tornam-se combustível para muitas formas estéticas e narrativas
possíveis no contexto audiovisual. O recurso da sobreposição de imagens foi
muito bem sucedido na ocasião do evento no Cine Art Palácio, sugerindo um
escape ou uma recusa do mapeamento de situações, memórias ou sentimentos,
e a impossibilidade de fazê-lo pelas próprias personagens. Ao mesmo tempo,
percebo essas cenas sobrepostas como a representação de um transbordamento
de realidades múltiplas e identidades instáveis, portanto fora de qualquer formato
de tela possível. Há que se ultrapassar a brasilidade, a feminilidade, a identidade,
a cultura, o território, a fronteira, para chegar a esses estados vivos, às práticas
constituídas pelos sujeitos que habitam e agem no tempo presente.

Referências
BONOMINI, Andrea. Fenomenologia e estruturalismo. São Paulo: Perspectiva, 2004.

BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em dança: parâmetros para uma história contemporânea. Belo
Horizonte: FID, 2008.

CARDIM, Leandro Neves. Corpo. São Paulo: Editora Globo, 2009.


gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 211

GAMBINI, Roberto; DIAS, Lucy. Outros 500: uma conversa sobre a alma brasileira. São Paulo:
Senac, 1999.

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

SANTOS, Milton. Técnica, espaço e tempo. São Paulo: EDUSP, 1994.

SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
cartografia performativa
stephen connoly
tradução marcus bastos

Este é um ensaio curto que pretende refletir sobre as estratégias de visualizar


processos sociais produzindo paisagens, escrito da perspectiva de um realizador.
Essa necessidade surgiu da insatisfação com a maneira como a estrutura sujeito/
objeto na representação convencional externaliza paradigmas dramáticos e sugere
um olhar que modeliza o visual na imagem em movimento em termos de uma
assemblage ator-rede de elementos relacionados.

Biblioteca do British Museum


214 cinema apesar da imagem

A foto na página anterior é uma cena de um vídeo curto chamado the reading
room (2002). Ele mostra a antiga biblioteca do British Museum, familiar a Marx e
Trotsky, atualmente um ponto focal do museu, que recebe milhares de visitantes
por ano. O vídeo consiste de uma única tomada em timelapse – com fotos capturadas
a cada 10 segundos durante um dia de trabalho, de 09h às 17h – exposta em um
rolo de filme 16mm de 30 metros. No vídeo finalizado, há um texto sobreposto
que identifica o lugar, explora algumas das escolhas feitas na montagem do vídeo,
e termina sugerindo que os recursos da biblioteca podem ser acessados on-line
– então por que visitá-la? Esta conclusão é desmentida pela imagem – muitos
visitantes são vistos explorando o lugar.
A posição elevada da câmera revela na imagem o plano circular da sala de
leitura, mostrando o arranjo radical das mesas de leitura e as camadas concêntricas
das prateleiras em torno de um estrado suspenso no centro da sala. Do ponto
de vista do estrado, o superintendente da sala de leitura tinha capacidade de
inspecionar o espaço inteiro; leitores e livros.
Esta biblioteca ecoa o esquema espacial do panóptico, o projeto de Bentham
para uma unidade ideal de encarceramento, mais recentemente citada por Foucault
como um modelo de representação do funcionamento do poder coercitivo no
campo social. Esse panóptico é, portanto, um diagrama. Para citar Deleuze, falando
de Foucault: “o diagrama não é mais um arquivo auditivo ou visual mas um mapa,
uma cartografia que coexiste com o campo social todo” (DELEUZE, 2006, p. 36).
Todavia, o modelo de descrição operacional neste trabalho posiciona e
implica uma distinção entre uma visão subjetiva e um objeto representado. Essa
capacidade de posicionamento exime o sujeito observador de participação no
campo social, no diagrama da representação. Essa distinção e separação se apóia
em uma determinação de 500 anos de idade da filosofia cartesiana, entre sujeito
como testemunha, e mundo como sua própria causa.
As criticas desse sistema de representação têm acontecido por muitos anos
e de várias perspectivas. O regime escópico, subordinando-se ao ocularismo
como produtor das relações espaciais da nação estado, tem sido central para a
constituição do capitalismo da modernidade. A cartografia, como ferramenta
desse regime escópico, reflete um conteúdo ao mesmo tempo em que o constitui
(WARF & ARIAS, 2008, p. 9).
Os geógrafos contemporâneos reposicionaram o espaço como relacional,
em rede; congruente com um mundo rico em informações, globalizado, em
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 215

que as certezas sobre espacialidade foram superadas pela supressão do temporal


na interação entre pessoas e espaço. Essa perspectiva relacional enfatiza a
conectividade dos processos operativos na paisagem, em vez de se amparar naquilo
que se encontra visualmente aparente. Trata-se de uma ênfase alinhada com a
teoria ator-rede, por evitar um foco na essência, desmontando hierarquias entre
sujeito e objeto e inscrevendo agenciamento ou o status de actante em ambos.
Atores humanos e materiais contribuem para o mosaico de práticas sociais.
A abordagem relacional da imagem em movimento pode engajar-se com
uma cartografia implícita pelo diagrama foucaultiano? Ou – como é possível uma
noção do cartográfico ser sustentada e todavia modificada para congruência com
um paradigma relacional? Este é o desafio do projeto para filme chamado Redlining
Detroit1, apresentado de forma embrionária no Besides the Screen Brazil 2014.

Na sinopse descritiva, Redlining Detroit (imagem) é um filme sobre paisagem e


dinheiro. Ele examina o papel das finanças na formatação dos aspectos materiais
do território nesta cidade. O filme adota o voiceover, citando fontes de notícia,

1 É difícil traduzir Redlining, por isso o termo será mantido em inglês durante todo o
capítulo. O conceito se refere à prática da indústria imobiliária de demarcar com linhas
vermelhas áreas de uma cidade que serão alvo de processos de desinvestimento deliberado,
resultando em sua deterioração. Em Unjust Geographies, Edward Sonja amplia o conceito
para além do escopo das cidades, quando afirma que o “Terceiro Mundo, ou a periferia
global, neste sentido, é semelhante a uma zona demarcada numa cidade, uma área de
desinvestimento e superexploração deliberados. Como o redlining urbano, o redlining global
não é necessariamente o produto de capitalistas avarentos conspirando para drenar a
riqueza de certas áreas ao desenhar uma linha vermelha proibitiva a seu redor. Zonas
demarcadas emergem primariamente de operações de mercado normais, cotidianas, e da
busca competitiva por lucros máximos” (n.t.).
216 cinema apesar da imagem

documentos e diários, para revelar as múltiplas perspectivas sobre como o dólar


posiciona as pessoas no espaço.
O filme toma a forma visual de um re-mapeamento performativo da cidade.
A cartografia é evidente na busca visual da “linha vermelha” traçada pelos vagões
do circular de Detroit conforme ele segue sua rota ao redor do centro da cidade.
A câmera, embutida em uma camionete, segue o trem suspenso das ruas abaixo;
imperfeitamente, e sujeita às contigências do trânsito e das poucas pessoas que
circulam pela cidade. O público do filme é convidado a experimentar a cidade
como num passeio de parque de diversões, com uma trama intrincada de imagens
deslizando pela tela funcionando como uma metáfora dos relacionamentos
complexos explorados no voiceover.
O isolamento de setores da cidade leva à prática de reter serviços financeiros
em certas áreas residenciais. Originalmente ele denotava o traçar num mapa de
uma linha vermelha em volta de vizinhanças condenadas a oferecer segurança
financeira insuficiente para Planos de Financiamento Federais, uma política cujo
objetivo era ajudar as pessoas a comprar casas próprias através de subsídios ao
mercado imobiliário.
A implicação desta projeção de indícios de risco financeiro era
negar às comunidades urbanas, em sucessivas gerações, acesso à casa
própria, limitando substancialmente a capacidade de prover riqueza.
Essa pobreza relativa teve um efeito difuso nas condições materiais da
paisagem de cidades do interior dos Estados Unidos. A devastação de áreas
residenciais no âmbito dos limites de Detroit é uma das manifestações mais
extremas deste fenômeno social complexo, produzido ainda que evitável.
Apesar do isolamento imobiliário ter se tornado ilegal nos anos 1970, as
manifestações mais recentes de financiamento sub-faturado anteriores à crise
financeira de 2008 têm sido chamada de “isolamento reverso”, enfatizando a
continuidade do aspecto discriminatório implícito na prática. Levantar capital em
cima de propriedades com pouca probabilidade de sustentar seu valor e vender
a dívida tem beneficiado instituições financeiras. Fazer empréstimos a residentes
com pouca chance de completar os requerimentos para pagamento a partir
de empréstimos de longo termo tem criado populações sem teto e despovoado
comunidades pobres, gerando licenciados incapazes de quitar seus débitos.
Redlining Detroit transforma essas paisagens em representações que são produto
de uma mistura de processos, tornando claro seu relacionamento com as restrições
dos mercados e poderes financeiros. A base cartográfica desses relacionamentos
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 217

é traduzida em uma jornada rumo ao lugar deste poder, no distrito financeiro


no centro da cidade. O diagrama do campo social é apresentado através do
mapeamento desse relacionamento em camadas da imagem. A imagem se torna
um palimpsesto, recebendo as marcas das múltiplas contribuições para esta
“paisagem como assemblage”.
A imagem cinematográfica gerada pela câmera/veículo usados na produção
de Redlining Detroit tem três pontos de fuga ou eixos de perspectiva:
•  a paisagem da rua em frente ao veículo, através do eixo de movimento para
adiante e através de sua janela dianteira, que emoldura a imagem;
•  a paisagem da rua atrás do veículo, conforme revelada pelo espelho
retrovisor;
•  uma perspectiva elevada da cidade refletida a partir da janela traseira da
cabine.

Câmera / Veículo

A composição destes pontos de vista do veículo resulta em camadas de


imagem, apresentando a arquitetura corporativa da cidade de forma líquida e
não substancial. A imaterialidade corresponde à mistura de relacionamentos
financeiros e legais determinantes dos contornos do material final referente – a
paisagem. E, em vez de um dispositivo de gravação para emoldurar imagens
escolhidas pelo cineasta, essa câmera é transformada num objeto actante, que
performa uma montagem de associações espaço-temporais.
O posicionamento da câmera, localizada atrás e apontada para dentro e
através da cabine do veículo, age por meio da representação do plano frontal da
218 cinema apesar da imagem

cabine como um miniauditório. Os espectadores são introduzidos a um simulacro


do campo de visão que eles ocupam ao apreender a imagem. Esta simultaneidade e
duplicação apagam a distinção entre espectador e paisagem da rua, sujeito e objeto.
No seminário Besides The Screen eu gastei algum tempo para gravar
um vídeo rascunho de uma visualidade em rede de São Paulo. O vídeo
começou com a locação do Museu de Arte de São Paulo, situado em um
ponto de vista elevado oferecendo planos desobstruídos na direção norte,
sobre o centro da metrópole. O perfil arquitetônico das galerias superiores
é equivalente ao quadro obtido no concreto, possuindo uma proporção alta
na altura e na largura – quase cinematográfica. O prédio se localiza quase
no meio da Paulista, o bulevar seguindo o sentido do bairro Bela Vista.

A Paulista foi desenvolvida como uma vitrine arquitetônica de São Paulo


como capital. Na planta, o bulevar é uma faixa de duas colunas de prédios de
escritório multifuncionais, uns de frente para os outros e projetados para serem
individuais, demonstrativos da identidade de seus proprietários e distintivos (senão
em busca de distinção).
Esse é o lugar para a visualização destas relações da exibição observacional e
confrontacional. O vídeo curto condensa estas relações em imagens sobrepostas,
apresentando em primeiro plano um aspecto substantivo das condições materiais
e temporais da cidade – o congestionamento endêmico. Reinvidicar este bloqueio
como uma metáfora do modo obstrutivo acumulativo de congestionamento da
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 219

elite neoliberal no Brasil (DEÁK & SCHIFFER, 2007, p. 87) pode ser puxar
muito longe – este vídeo é apenas um rascunho.
Eu levei o resultado para a conferência para discussão como método e
estratégia de produção e teste de como ele performa; e para ser informado pelas
obras de outros realizadores. Esta obra está num estágio intermediário e vai
compor o elemento prático do meu doutorado.

Referências
DEÁK, Csaba & SCHIFFER, Sueli. “The Metropolis of An Elite Society”, em SEGBERS,
Klaus (ed.). The Making of Global City Regions: Johannesburg, Mumbai/Bombay, São Paulo, and
Shanghai. Baltimore: Johns Hopkins University, 2007.

DELEUZE, Gilles. Foucault. Londres: A&C Black, 2006.

LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network-Theory. Oxford:


Oxford University, 2005.

WARF, Barney & ARIAS, Santa. The Spatial Turn: Interdisciplinary Perspectives. Oxford:
Routledge, 2008.
jogos de distância e proximidade:
microperformances via skype
patrícia azevedo e clare charnley
tradução patricia moran

Patrícia: Boa tarde.


Clare: Boa tarde.
P: Bem, eu sou Patricia e essa é a Clare. Vamos falar em inglês, nossa língua
em comum1.
C: É engraçado estar aqui perto da Patrícia, quando vamos justamente falar
sobre uma situação oposta: aquilo que acontece quando estamos separadas.
P: Clare e eu somos duas artistas que trabalham juntas, uma morando
em Leeds, na Inglaterra, e a outra em Belo Horizonte, Brasil. Separadas
geograficamente, entendemos nossa localização espacial não como uma pedra no
caminho, mas sim como uma situação que nos provoca e confronta. Nos trabalhos
que vamos apresentar a seguir, habitamos a tela do Skype para criar um espaço
pessoal onde realizamos nossos jogos de distância e proximidade.
C: Não sendo possível estarmos fisicamente juntas, nosso trabalho é uma
resposta, até bem humorada, a esta situação. Uma série de ações simples
performadas para a câmera do computador e gravadas on-line via Skype, onde
o que está em jogo é o próprio espaço relacional e a simultaneidade com que se
justapõem o próximo e o distante, o lado a lado e o disperso.
P: Jogos de Distância e Proximidade é uma coleção de vídeos de curta duração nos
quais reconhecemos e parodiamos a distância entre nós através de uma série de
microperformances que acontecem em um lugar que não existe fisicamente. É a

1. Esse diálogo foi apresentado pelas duas artistas, em inglês, durante a conferência Besides the
Screen Brazil 2014, na UFES, juntamente com a projeção dos vídeos. Para esta publicação,
transcrevemos o texto em português e incluímos frames dos trabalhos no momento em que
foram exibidos para a audiência original (n.t.).
222 cinema apesar da imagem

ação performada para a câmera que fabrica esse espaço que se dá a ver enquanto
um acontecimento.
C: É relevante lembrarmos que a língua portuguesa tem mais de uma maneira
de se dizer aqui ou lá (here or there), isto ou aquilo (this or that), do que o inglês
tem. O que denota que as relações de localização não são dadas de antemão,
nem as mesmas para nós duas. O fato é que trabalhando no Skype performamos
ao mesmo tempo para a câmera e uma para a outra. Buscamos construir um
espaço onde possamos funcionar juntas, onde nossa ação combinada se torna
uma espécie de ponte, que pode ser vista como um lugar em si, como um espaço
heterotópico justapondo lugares incompatíveis. Podemos ver como isso funciona
em lançar - to throw.

Frame do vídeo lançar - to throw, 2013.

P: Com o uso de ações simples, de nossos próprios corpos e de objetos


triviais, construímos um espaço que somente aparece como um lugar em si na
tela, quando a ação gravada em vídeo é reproduzida, isto é, no ponto de vista da
audiência. A grosso modo, o que move o jogo é uma articulação entre nossas ações
e as relações entre as nossas telas no vídeo. O processo de gravação enquadra as
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 223

duas telas juntas. Embora estejamos em posição frontal uma em relação a outra,
aparecemos nos vídeos lado a lado, configuração que tanto nos posiciona em
lugares diferentes, quanto nos dá a ver espacialmente próximas. A interface de
contato entre as duas telas é a alma do jogo. Um manancial de possibilidades e
formas de acolher nossas localizações diferentes num espaço único, heterotópico
o suficiente para dar corpo a nossa utopia.
C: Sem que tenhamos plena consciência de sua visualidade, nosso gesto
corporal busca dar a impressão de movimento em relação ao outro. Durante
a gravação, figura um movimento articulado: acontecimento que dá a ver esse
espaço, no vídeo, como um lugar possível onde a ação acontece.
P: Na prática, não é tão simples como parece. Durante a gravação da
performance, cada uma tem um computador mostrando uma tela normal de
Skype. Não estão visíveis as duas telas lado a lado. A tela só se vê dividida em duas
janelas depois que a tomada acabou e o playback é acionado. Assim, enquanto
performamos, não podemos ver nossa localização uma em relação à outra. É
preciso tê-la em mente, para entender para onde devemos dirigir o olhar para
ver a outra, como nos mover na sua direção, etc. O vídeo Orientate 2 dá a ver essa
confusão espacial.
C: A primeira coisa que nos interessou foi a própria tela que acolhe e limita
nossos encontros. A plataforma Skype exibe o outro ocupando larga porção da
tela, enquanto nos vemos em uma janela de retorno, tão pequena quanto um
selo postal, transformado em espelho no canto da tela. Talvez vocês já tenham
experimentado o quão frustrante é tentar olhar nos olhos de alguém no Skype.
A câmera fica acima, mas a imagem da outra pessoa está abaixo. Quando
aparecemos olhando de frente, nos olhos um do outro, é porque estamos olhando
para a câmera, e dessa forma não podemos nos ver de fato. Esta é a situação que
o vídeo que exibimos procura negar, ou finge negar.
P: E, francamente, entender ajuda, mas não muito. Durante a performance,
é preciso ter em mente o espaço onde a ação vai acontecer, para que possamos
ocupá-lo, fabricando-o à medida que a ação acontece. Nessas micro performances
via Skype, a ação fabrica um espaço cuja verdade não é um truque de edição.
O que se vê de fato aconteceu, embora não se pudesse ver durante a ação e sua
captura em vídeo.
P: Em passar - to pass, toma-se uma folha branca e, atuando como se
estivéssemos lado a lado, a passamos de uma para a outra lateralmente, através
da janela da tela.
224 cinema apesar da imagem

Frame do vídeo Orientate 2, 2013.

C: Performance que requer treinamento, concentração, e uma série de


tentativas e erros, porque exige direcionar o olhar, o movimento e o próprio papel
em direção ao local da tela onde a outra vai aparecer no vídeo; ao mesmo tempo,
precisamos sincronizar o movimento de nossas mãos com o de nossos olhos, e em
especial com o movimento da outra. No vídeo moscas, o movimento das mãos é
diferente, mas ainda assim produz uma relação entre as duas.
C: Muito do que se performa está fora de cena e não é dado a ver pelo gesto
corporal. Na verdade, estamos a fazer duas coisas diferentes ao mesmo tempo:
mover nossas moscas e se comportar como se nada estivesse acontecendo. As mos-
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 225

Frame do vídeo moscas, 2013.

cas estão penduradas em fios de nylon presos a um arame que nossos braços
operam fora do quadro. Nas experiências anteriores, a ação também é encenada,
mas o truque, se assim se pode dizer, está às claras, enquanto em moscas ele
está fora de cena. Voando “de lá para cá, de cá para lá”, as moscas impõem a
existência desse espaço ordinariamente comum. As moscas (tanto as reais quanto
as de plástico) são globalmente onipresentes, assim como a folha de papel A4 e a
cadeira de escritório que já vimos; e o plástico e os cigarros que iremos ver. Em sua
ubiquidade, estes objetos fazem a ponte entre o aqui e o lá, e também apontam
para o resto do mundo.

Frames do vídeo cloud try 3, 2013.

P: A partir de então, nós começamos a construir este espaço conectando


visualmente nossas duas telas numa cena única. Em cloud try 3, nossa intenção
original era encenar o movimento de duas nuvens diferentes que se encontram, se
juntam e vão embora. Os objetos desaparecem pelo fundo da cena, sugerindo que
a tela acolhe uma profundidade, um espaço que não se vê mas que existe.
C: Este espaço ilusionista não se esconde. Se dá a ver, por exemplo, no fato
de que as micro performances são filmadas simultaneamente por duas câmeras
diferentes, que capturam tons e contrastes distintos. Em geral, mantemos as
226 cinema apesar da imagem

Frames do vídeo blood, 2013.

imagens como foram gravadas. Nós não as alteramos para criar uma visualidade
mais harmoniosa, nem para sustentar a ilusão de uma única cena. Fazemos isto
não por razões puristas, mas porque as falhas concentram uma potência expressiva
que nos interessa. Um exemplo é o vídeo silencioso blood, no qual usamos o nosso
dedo para afetar o obturador, explorando a defasagem no tempo de ajuste da
câmara e de sua exposição. Alteramos deliberadamente a luminosidade incidente
num vaivém que figura um aparecimento e um desaparecimento, que apaga e
acende o espaço um do outro.
P: Tal como acontece com a cor, a exposição, o contraste, etc., nós não
alteramos o tempo na pós-produção. Como o espaço, o tempo também se compõe
com a gravação e se dá a ver em playback. Embora os eventos encenados pareçam
ocorrer simultaneamente, é preciso lembrar que o Skype insere atrasos erráticos e
imprevisíveis. O que é fácil de perceber no vídeo alinhar - to align.

Frames do vídeo alinhar - to align, 2013.

P: Observando onde as duas linhas se encontram, pode-se dizer que


provavelmente não estavam neste ponto simultaneamente, embora possam ter
estado. Em vez de alegar que essa sincronia é apenas ficção, ou que não existe,
seria mais correto dizer que nós simplesmente não sabem.
C: Nós também exploramos a falta de controle e de sincronia em solo, no qual
a ação acontece no centro das duas telas, sugerindo um único espaço onde corpos
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 227

Frame do vídeo solo, 2013.

instáveis dançam em silêncio. Como na técnica surrealista do exquisite corpse –


desenhos feitos em folhas dobradas completados por pessoas diferentes –, o
movimento, sem qualquer sincronicidade calculada, desdobra ou acopla nossas
figuras e o espaço em que se mostram.
C: Em the last cigarette, talvez do lado de fora da porta, num final da festa,
compartilhamos o último cigarro na escuridão, o que retoma a tópica do frame e
do espaço único, agora uma superfície inteira coberta de um breu que finalmente
engole a divisão entre as duas telas.

Frame do vídeo the last cigarette, 2013.


228 cinema apesar da imagem

P: Em todos estes trabalhos, nós sobrepomos lugares heterogêneos que não


se misturam nem se separam, como aqui e lá, longe e perto, passado e presente,
você e eu, falso e verdadeiro, o planejado e a espontaneidade, etc. Dicotomias que
conectam as coisas não por modelos convencionais de espaço e tempo, mas numa
dinâmica que opera por pulsações, lacunas e saltos.
C: Estes espaços metafóricos, heterogêneos, apontam para um desejo de
colapso do espaço encenado – o desejo de estar junto.
P: Como no sonho, nosso trabalho corporifica um espaço descontínuo no
qual, em pano de fundo de latências, se colapsa a continuidade estabelecida do
espaço e do tempo.
C: Calcado numa dinâmica de colaboração, é sempre um processo excitante
de fazer coisas simples e ver o que acontece.
P: Em especial, trata-se de uma espécie de circuito fechado para entender
uma à outra. As traduções, os equívocos, os eventos fortuitos e a perseverança
ajudam no crescimento de nossas ideias. O que é fácil de imaginar, considerando
o meu inglês engraçado.
C: Seu inglês é melhor que o meu português.2 E é mais curioso do que engraçado. E
de qualquer maneira, tem algo maravilhoso na sua imperfeição. Mesmo que falhe
algumas vezes.
P: As falhas estão em cena, são bem visíveis, em verdade são uma parte
importante do trabalho. Também se dão a ver na crueza de como usamos a
tecnologia em nossos vídeos curtos.
C: Sim, fica claro que nós não somos muito sagazes com tecnologia.
P: O que não é realmente uma fraqueza.
C: De certa forma é uma força. Torna as coisas desajeitadas, não totalmente
controladas, definitivamente não transparentes – então todos podem ter
consciência da tecnologia em jogo.
P: Sim, em nosso trabalho o processo técnico não é apenas um ferramenta,
mas também forma e conteúdo.
C: Esta fala, este duplo ato discursivo, objetivou apresentar de forma dinâmica
algumas das ideias sobre as quais estamos trabalhando. Como esta fala, nossa
prática dialógica finge ser espontânea (ou finge fingir, porque a tecnologia permite
e desmonta a ilusão ao mesmo tempo), mas tudo é experimentado e testado com
antecedência, embora o imprevisível é que leve a coisa adiante.

2. Trecho falado em português, na apresentação original (n.t.).


gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 229

P: Nós temos trabalhado juntas por mais de cinco anos, então temos uma
grande quantidade de trabalhos e diferentes tipos de jogos de proximidade e
distância que não mencionamos aqui.
C: Maybe next time. Obrigado pela atenção de todos and many thanks to Besides
the Screen.3
P: Obrigado Patrícia, Gabriel e Marcus for the opportunity to present these works
here, e a todos vocês pela presença.

3. Mantemos as duas frases de despedida na sua forma original, de modo a preservar o jogo
linguístico das artistas, habitando dois idiomas em um só, como habitam dois espaços no
trabalho apresentado (n.t.).
sobre os autores

André Mintz é artista e pesquisador da imagem e mídias digitais. Mestre em Comunicação


Social (UFMG). Estudante de mestrado no programa Erasmus Mundus em Media Arts
Cultures (Donau University, Aalborg University, Lodz University). Foi professor de mídias
digitais nos cursos técnicos da Oi Kabum! Escola de Arte e Tecnologia, de Belo Horizonte,
coordenador de audiovisual do Espaço do Conhecimento UFMG, e também fundador e
membro do coletivo Marginalia Project e do Marginalia+Lab.

Angela Meili é professora do curso de Letras da Universidade Estadual do Paraná.


Doutora em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul. Mestre em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas.

Barbara Pires e Castro é doutoranda e mestre pela Escola de Belas Artes da UFRJ.
Formou-se em Design, na PUC-Rio em 2009. Na UFRJ, é integrante do LabVis e
colaboradora do NANO desde 2011. Durante seu mestrado, foi bolsista no Instituto de
Matemática Pura e Aplicada. Sua pesquisa e produção artística já foram apresentadas na
França, Dinamarca e no Brasil em locais como Museu de Arte Moderna (RJ), Instituto
Inhotim (MG) e no circuito nacional do Centro Cultural Banco do Brasil. Em 2014, fundou
o estúdio Ambos&& com Luiz Ludwig.

Bruno Vianna é um cineasta que mudou o foco da sua produção para suportes audiovisuais
que incorporam diferentes tipos de interatividade e não se limitam à superfície da tela.
Entre outros projetos, realizou Ressaca, um longa-metragem editado ao vivo durante a
sessão, que recebeu 4 prêmios; Céu da Palavra, projeção de poesia em pipas no céu noturno,
finalista do prêmio Celeste Awards; entre outros. Atualmente vem trabalhando com câmeras
de vídeo artesanais e algoritmos de visão computacional. É gestor da Nuvem, estação rural
de arte e tecnologia, e educador na Oi Kabum!, escola livre de arte e tecnologia.
232 cinema apesar da imagem

Carlos Augusto (Guto) da Nobrega é Doutor (2009) em Interactive Arts pelo programa
de pós graduação Planetary Collegium (antigo CAiiA-STAR), da Universidade de
Plymouth, onde desenvolveu pesquisa de caráter transdisciplinar nos domínios da arte,
ciência, tecnologia e natureza. Investiga como a confluência desses campos (em especial
nas últimas décadas) tem informado a criação de novas experiências estéticas. É Mestre
em Comunicação, Tecnologia e Estética pela ECO-UFRJ (2003) e Bacharel em Gravura
pela EBA-UFRJ (1989) onde leciona desde 1995. Fundou e coordena o NANO – Núcleo
de Arte e Novos Organismos, e atualmente é coordenador da Pós-Graduação em Artes
Visuais, PPGAV – UFRJ.

Erika Balsom é professora de estudos cinematográficos e artes liberais no King’s College


London. É colaboradora frequente da revista Artforum, autora de Exhibiting Cinema in
Contemporary Art (2013) e de uma monografia sobre a distribuição e circulação de filmes e
vídeos experimentais, a ser lançada pela Columbia University Press em 2016. Com Hila Peleg,
co-editou a antologia Documentary Across Disciplines (Haus der Kulturen der Welt/MIT
Press, 2016). Seus artigos foram publicados em diversos catálogos de exposição, antologias
e periódicos, tais como Screen, Cinema Journal, e Afterall. Ela possui um doutorado em Modern
Culture and Media da Universidade de Brown e foi Mellon postdoctoral fellow na Universidade
da Califórnia, Berkeley.

Filipi Dias é mestrando em Open Design no programa de pós graduação duplo diploma
entre as Universidad de Buenos Aires e Humboldt-Universität zu Berlin; bacharel em
Comunicação Visual Design pela UFRJ e graduação sanduíche pela Université Rennes 2
(França) na área de Multimídia.

Gabriel Menotti é professor adjunto da UFES. Atua como curador e pesquisador nas
mais variadas formas de cinema. É PhD em Media and Communications pelo Goldsmiths College
(Universidade de Londres) e doutor em Comunicação em Semiótica pela PUC-SP. Já
participou de importantes eventos da área, tais como o International Symposium of Electronic
Arts, a Bienal de Arte de São Paulo, os Rencontres Internationales Paris/Berlin/Madrid e o
Festival Transmediale. É autor de Através da Sala Escura (Intermeios, 2012), uma história da
exibição cinematográfica a partir da perspectiva do Vjing, e co-editor, com Virginia Crisp,
de Besides the Screen: Moving Images through Distribution, Promotion and Curation (Palgrave, 2015).
Menotti é um dos coordenadores da rede de pesquisa Besides the Screen.

Graziele Lautenschlaeger é artista e pesquisadora em artemídia. Possui graduação


em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (2005) e mestrado pelo
Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos
da Universidade de São Paulo (2010), quando também integrou o grupo de pesquisa
NOMADS.USP (Núcleo de Estudos de Habitares Interativos). Em 2008 esteve como
pesquisadora visitante no Interface Culture Department da Kunstuniversität Linz (Áustria) e
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 233

entre 2010 e 2011 no Lagear (Laboratório Gráfico para Experimentação Arquitetônica


na Universidade Federal de Minas Gerais. Sua produção tem circulado em festivais e
instituições no Brasil e no exterior. Entre 2011 e 2013 foi animadora cultural do SESC
SP, curando e produzindo atividades na área de artemídia e cultura digital (2011-13).
Atualmente ela é doutoranda pelo Institut für Kulturwissenschaft da Humboldt Universität zu
Berlin. Mais informações e detalhes sobre sua atual produção podem ser consultados em
grazielelautenschlaeger.com.

Larisa Blazic é professora na Universidade de Westminster. Seu trabalho reflete


interesses híbridos, incluindo o uso criativo da Internet e as intersecções entre videoarte e
arquitetura. Participa da cena internacional de arte mídia há mais de duas décadas. Além
de atuar em colaboração com diversos grupos/projetos (Node London, Raylab, Depford.tv,
SPC, Floss Manuals, Data Union), também produziu videoinstalações que examinam a noção
da imagem em movimento no espaço público e co-criou uma plataforma de vídeo online
para trabalhos colaborativos, envolvendo questões de vídeo aberto, autoria, licenciamento,
copyright e codecs.

Marcus Bastos é professor da PUC-SP. Escreveu o livro de ensaios Limiares das Redes:
Escritos sobre Arte e Cultura Contemporânea (Intermeios, 2014) e o e-book Cultura da Reciclagem
(Noema, 2007). Foi curador de exposições como arte.mov — Festival Internacional de Arte em
Mídias Móveis; Geografias Celulares (Instituto Fundación Telefónica, Buenos Aires e Lima) e
Performix (programa das Satyrianas, 2014). Criou obras como Interface Disforme (2006), e as
composições audiovisuais Ausências (2009, com Dudu Tsuda) e Delayscapes (2014).

Maria Luiza (Malu) Fragoso possui doutorado em Multimeios pelo Instituto de Artes
da UNICAMP (SP) (2003), e concluiu o Pós-Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais da ECA, USP. Artista e pesquisadora, desenvolve projetos de caráter
transdisciplinar nos domínios da arte, ciência, tecnologia em processos de transculturalidade
provocados pela transposição entre áreas de conhecimento.

Monica Toledo é artista audiovisual e pesquisadora das narrativas do corpo no cinema


e performance. É mestre e doutora em Semiótica pela PUC-SP, e pós-doutora pela
UFMG (FAFICH) e Unicamp (Instituto de Artes). Ministrou disciplinas nas universidades
Anhembi-Morumbi e Belas Artes de São Paulo. Organizou o livro Performances da Memória
(editora Impressões de Minas). Seus projetos de instalações multimídia, processos de
pesquisa, artigos publicados e vídeos estão disponíveis no blog integral360.com.br/portfolio/
monica-toledo-2.

Paola Barreto é artista e pesquisadora. Por meio de um trabalho que se desdobra entre
circuitos de vídeo eletrônicos e digitais, fantasmagorias e sistemas híbridos, desenvolve
234 cinema apesar da imagem

pesquisa sobre live cinema e a vitalidade da imagem. Participou de exposições no circuito


SESC em diversas cidades brasileiras, além de festivais internacionais como Vorspiel/
Transmediale, em Berlim; Live Performers Meeting, em Roma; e Live Cinema, no Rio de Janeiro.
Graduada em Cinema (UFF) e Mestre em Tecnologia e Estéticas (PPGCOM/ UFRJ),
atualmente dedica-se ao Doutorado em Poéticas Interdisciplinares (PPGAV/ UFRJ).

O trabalho de Patricia Azevedo e Clare Charnley surge de observações e negociações


conjuntas sobre a linguagem, o território e as relações de poder. Suas obras recentes
envolvem as características do Skype e buscam substituições criativas para a presença
física. Ambas as artistas já apresentaram em diversos lugares do mundo. Seu trabalho
colaborativo recebeu prêmios do Arts Council England, do Visiting Arts e do British Council.
Também foram finalistas do The Northern Art Prize 2009. Exposições recentes incluem
The Bluecoat Gallery, Liverpool; Belfast Exposed Gallery; Project Space, Leeds; Johalla Projects
Gallery, Chicago; The 23rd Festival Les Instants Vidéo, Marselha; Coastal Currents, Hastings e St
Leonards; Giessen Video Festival, Alemanha; Magaio Voicescapes Binaural, Portugal; Platforma,
Londresl; torinoPERFORMANCEART, Turin; e PNEM Sound Art Festival, Países Baixos.
Patricia Azevedo é doutoranda na UFMG.

Patrícia Moran é doutora em Comunicação e Semiótica. Professora do CTR, ECA/


USP, diretora do CINUSP Paulo Emílio. Como realizadora de cinema e vídeo, participou
e conquistou diversos prêmios em festivais. Coordenadora da Coleção CINUSP, organizou
publicação sobre Machinima. Tem pesquisado performance audiovisual em suas diversas
modalidades.

Sean Cubitt é professor titular de Filme e Televisão em Goldsmiths, Universidade


de Londres; Professorial Fellow da Universidade de Melbourne e professor honorário da
Universidade de Dundee. Suas publicações incluem Timeshift: On Video Culture; Videography:
Video Media as Art and Culture; Digital Aesthetics; Simulation and Social Theory; The Cinema Effect;
EcoMedia; e The Practice of Light. Ele recentemente co-editou Rewind: British Video Art of the
1970s and 80s; Relive: Media Art History; Ecocinema e Digital Light. É um dos editores da série
Leonardo Books da MIT Press. Sua pesquisa corrente é sobre colonialismo e eco-crítica.

Stefania  Haritou estudou Filosofia na Grécia e Estudos Cinematográficos no


Reino Unido. Seus interesses de pesquisa incluem projeção, exibição e distribuição
cinematográfica; acervos fílmicos; e filmes de vanguarda. Em 2013, recebeu uma bolsa do
Conacyt (Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología), do México, para realizar um pós-doutorado
com o grupo de pesquisa Teorías de las Artes y Medios Contemporáneos, na Universidade das
Américas, em Puebla, onde realizou investigação sobre a pirataria de filmes no país. Seu
capítulo neste volume é parte dos resultados desse trabalho.
gabriel menotti . marcus bastos . patrícia moran 235

Stephen Connoly é doutorando em Belas Artes na Universidade de Kent. Sua pesquisa


explora a noção de assemblage nos filmes de artista e obras arte-mídia, empregando
perspectivas desenvolvidas nas ciências sociais.

Virginia Crisp é professora de Mídia e Comunicação na Universidade de Coventry. Ela


é autora de Film Distribution in the Digital Age: Pirates and Professionals (Palgrave, 2015) e co-
editora (com Gabriel Menotti) de Besides the Screen: Moving Images through Distribution, Promotion
and Curation (Palgrave, 2015). Crisp é uma das coordenadoras da rede de pesquisa Besides
the Screen.

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