You are on page 1of 8

HOLANDA, Frederico de. 10 mandamentos da Arquitetura. Brasília: FRBH, 2013.

Mandamento 1 – Veja na arquitetura uma propriedade dos lugares.


 Arquitetura é uma palavra de muitos sentidos: o sentido de partes articuladas
num todo ordenado, ou seja, arquitetura física de uma estátua, de um
conjunto de leis, arquitetura do computador em que trabalhamos; arquitetura
do nosso cérebro, ou mesmo de uma célula dos estudos de biologia.
Convenhamos, tais usos não são recorrentes.
 O senso comum e a academia (os teóricos) relacionam arquitetura a edifícios
especiais.
 Entretanto, a maior parte do estoque de arquitetura produzida em todos os
tempos e lugares, é anônima e sem chancela profissional.
 Essa produção anônima até pouco não fazia parte dos livros de arquitetura.
Era apontada como mera construção, maneira pejorativa de se referir a algo
sem intenção ou reflexão, porque não contem os principios fundamentais da
época.
 Toda arquitetura é impregnada dos princípios da cultura em que é feita. Os
mais simples desses edifícios são fenômenos complexos, na divisão dos
seus espaços internos e na significação que é dada a cada um deles.
 Não é só a arquitetura indígena brasileira que desconhece sua autoria. No
Brasil, 70% do espaço doméstico edificado é anônimo, ilegal ou irregular, ou
seja, autoconstruído. Dos 30% de construções formais, muito pouco pode
ser considerado como “arquitetura de pedigree”.
 Temos de entender causas e feitos dessa produção anônima ou profissional
e aplicar-lhe efeitos de valor, sem mitificar uma ou outra. A separação entre
arquitetura e construção é recente, vem da Renascença. Como não existia
antes, pode passar a ão existir novamente.
 Cada sítio tem peculiares atributos de luz e sombra, ruído e silêncio,
possibilidades ou restrições ao movimento dos nossos corpos, fazendo-os
mais ou menos acessíveis fisicamente, próprios ao convívio, confortáveis,
emocionantes, belos.
 Compreender arquitetura exige incluir todos os tipos de lugares, produzidos
ou apropriados socialmente em todos os âmbitos: do pequeno abrigo às
metrópoles, do artefato à paisagem natural, do lugar realizado mediante um
saber profissional àquele feito sob um saber prático e implícito, socialmente
disseminado por milhões de sujeitos sociais.

Mandamento 2 – Pense as causas.


 Ao fazermos as coisas, há um ponto de partida, experiência pregressa,
saberes, valores, escolhas, circunstâncias econômicas, políticas ou sociais:
são as causas, as determinações.
 Todos agem dentro de limitações, explorando suas possibilidades,
eventualmente as transformando. Veja as diferentes fases da obra de Le
Corbusier ou Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. No tempo, mudam as causas,
mudam os efeitos. Oxalá mudanças nas causas e nos efeitos fossem sempre
para melhor.
 No Brasil, o poder do capital imobiliário não está nem aí para a qualidade do
espaço urbano que cai a olhos vistos (p.63). Para maximizar o lucro, ele
transforma a paisagem das cidades fazendo-as crescer para cima,
destruindo a qualidade ambiental, pela qual vendeu os primeiros espigões:
beleza da vista, luminosidade, qualidade ambiental, ventilação.
 Os valores do individualismo consumista globalizado contaminam e mudam
culturas milenares fazendo proliferar “não lugares” como hotéis, aeroportos,
shoppings centers semelhantes planeta afora (p.63).
 São enclaves de acesso controlado, minimizando relações de transparência
e acessibilidade para o exterior. A cidade passa a ser um conjunto de
enclaves fortificadas, cujos edifícios crescentemente dão as costas para o
espaço público (p.64).
 A competição entre cidades por investimentos e consumidores no mundo
global, determina a criação de novas centralidades ou mudanças nas
antigas. Essas novas centralidades se apoiam por vezes em âncoras
arquitetônicas de grifes – Zaha Hadid, Norman Foster, entre outras.
 Essas âncoras visam a espetacularização do lugar, por meio da
complexidade da sua forma ou técnicas construtivas, e claro, da assinatura
de sua grife. Transformam a cidade em vitrines do capital, contudo, estouram
os orçamentos e tem sérios problemas de manutenção.

Mandamento 3 – Pense os efeitos


 A arquitetura [e o urbanismo] têm efeitos, mexe conosco direta ou
indiretamente, afeta nosso corpo e nossa mente, e impacta o meio ambiente
do qual dependemos (p.71).
 O desempenho arquitetônico [e urbanístico] de um lugar é fruto da conjunção
de vários atributos, que ora incidem em certo aspecto, ora em outro, por
vezes em vários.
 Os aspectos funcionais concernem respostas da arquitetura a exigências
práticas da vida quotidiana (p.72)
 Os aspectos bioclimáticos se referem às características do clima local e
como a arquitetura se adapta a elas, melhorando as condições favoráveis e
apaziguando as desfavoráveis, ou agravando-as (p.77).
 Os aspectos econômicos concernem custos de construção e manutenção
dos lugares (p.81).
 Abordar a arquitetura pelos aspectos sociológicos é focar as relações
“arquitetura x sociedade”, especialmente quanto às relações entre
configurações de edifícios, cidades e da paisagem natural entendida como a
arquitetura e as maneiras pelas quais as pessoas fazem o quê, como, onde
e com quem (p.86).
 A arquitetura condiciona esse sistema de encontros e esquivâncias, em
alguns casos o determina, contribuindo para o tipo e a quantidade da gente
nos lugares, do indivíduo isolado a milhões de pessoas.
 Os aspectos topoceptipos referem-se aos atributos da arquitetura captáveis
essencialmente pelo sentido da visão, capazes de contribuir (ou não) à
identidade do lugar e à boa orientação nele (p.86).
 Os aspectos afetivos são relativos às sensações, estados psicológicos,
emoções, provocados em nós pelos atributos do lugar captáveis por nossos
sentidos. Embora haja parentesco com os aspectos topoceptivos, leva-se em
consideração aqui a “personalidade” do espaço: agorafóbico, arrogante,
banal, dinâmico, diversificado, etc. (p.92).
 Aspectos simbólicos são elementos arquitetônicos, ou lugares mais amplos
que evocam o lugar onde estão, como a Torre Eiffel, por exemplo, que
simboliza a cidade de Paris, como também a própria França; Ou o Cristo
Redentor, cartão postal internacional do Brasil (p.95).
 Os aspectos topoceptivos são universais, os simbólicos não: são
convencionais, culturais, mudam no tempo. Qual era o símbolo de Paris
antes da Torre Eiffel?(p.96)
 Os aspectos estéticos referem a maneira pela qual partes e todo tenham
características a implicarem estimulação prazerosa autônoma dos sentidos
para além de questões práticas (p.101).
Mandamento 4 – Entenda a arquitetura como um campo de possibilidades e
restrições
 Pioneiros do movimento moderno tinham o sonho demiúrgico pelo qual a
nova arquitetura determinaria a nova sociedade. Hoje somos mais modestos
– e sensatos. Voltamos a atenção para as possibilidades e as restrições da
arquitetura e como elas interferem em nossas vidas (p.114).
 É inegável que a arquitetura tem efeitos sobre nós: condições climáticas,
ergonomia e segurança, etc. Podemos equipar edifícios para que tenham
bons efeitos sobre nosso corpo (p.115).
 Quando se trata da relação entre arquitetura x comportamentos sociais,
oscilamos entre conferir à arquitetura superpoderes, para transformar corpos
e mentes, e descrer absolutamente em quaisquer efeitos. Este capítulo trata
portanto do determinismo arquitetônico.
 O determinismo arquitetônico profetiza que “a arquitetura torna-se criadora
de novas regras sociais.” (p.115).
 A corrente de Le Corbusier defende que a arquitetura poderia prevenir
eventos “indesejados” (a revolução), ao passo em que a corrente de Taut e
Balthazar entendem que a arquitetura pudesse produzir novas regras de
convívio, ou até comportamentos “antissociais.” (p.116).
 Hoje o tema se nos coloca de maneira diferente: arquitetura e gente são
coisas relacionadas, mas distintas (...) A arquitetura cria sim um campo de
possibilidades e um campo de restrições, possibilidades que podem (ou não)
serem exploradas e restrições que podem (ou não) ser superadas (p.131).
 Espaços públicos antes cheios de gente em forte interação quotidiana
podem encontrar-se hoje desertos: ou mudou o estilo das pessoas
envolvidas, embora habitem os mesmos lugares, ou mudaram as próprias
pessoas (p.131).
 Exemplos de caso: Pérouges, no sudeste da França, outrora com espaços
públicos prenhe de gente, artesãos, mercadores. Essas pessoas sumiram e
os espaços públicos estão desertos. As residências foram vendidas,
compradas pela burguesia de Lyon que as utiliza como casas de fim de
semana. No Brasil, processo análogo se vê em Pirenópolis e em Olinda, por
exemplo (p.131).
 Em bairros tradicionais de cidades brasileiras, quase sempre sumiram as
cadeiras nas calçadas, o bate-papo, a eventual paquera.
 Diante do exposto, nota-se que há uma relação clara entre restrições, e uso
dos lugares, particularmente nos centros das cidades. Mapeamento
pormenorizado [dos exemplos de caso mencionados] identifica problemas
relacionados com o pouco uso (...) dos lugares. Os resultados das pesquisas
apontam medidas necessárias que, implantadas, revertem situações de
abandono de décadas (p.133).
 Exemplo de caso: o planejamento de longo prazo, trouxe gente de volta ao
centro de Copenhague, e a reforma da Praça do Ferreira em Fortaleza fez
retornar as pessoas que a haviam abandonado durante o período em que
prevaleceu a configuração moderna até década de 1990 (p.134).
 Esses exemplos ilustram restrições que foram paulatinamente abolidas e
trouxeram gente de volta aos espaços públicos (p.134).
 Hoje detemos um conhecimento mais sofisticado, que permite antecipar o
impacto da arquitetura na vida social, e conscientemente optar por uma
arquitetura mais congruente com o estilo de convívio eticamente defensável:
o da urbanidade (p.135).
Mandamento 5 – Leia na arquitetura igualdades e desigualdades sociais.
 A arquitetura reflete igualdades ou desigualdades sociais, contradições,
conflitos e contribui para sua reprodução. Implica diferenças de poder entre
gêneros, gerações, patrões, empregados e visitantes, no espaço doméstico;
alunos, professores e funcionários, na escola; patrões, administradores e
operários, na fábrica; classes sociais na cidade (p.138).
 É banal dizer que as cidades apresentam uma segregação sócio-espacial
(...) uma leitura mais cuidadosa revela que a cidade não é tão claramente
clivada assim, pois embora haja uma ordem dominante a privilegiar quem
pode mais, também ocorre “fissuras urbanas” (p.139).
 Essas fissuras podem ser físicas, por meio de um contraste no desenho do
tecido urbano, ou podem referir-se a um contraste nos modos de uso do
espaço pelos sujeitos – camelôs numa área nobre, por exemplo (p.139).
 A produção do espaço da cidade e a luta por sua apropriação são uma
guerra permanente entre interesses historicamente afirmados e outros
historicamente reprimidos (p.139).
 O tombamento da capital federal brasileira como Patrimônio Cultural da
Humanidade oferece um recurso ideológico precioso pelo qual os conflitos
de classe são mascarados: medidas de repressão a interesses populares
são apresentadas como gestos necessários à “preservação do patrimônio”, à
“manutenção da ordem” ou até à “limpeza da cidade” (p.139).
 Tudo que ameace o usufruto exclusivo dos espaços centrais de Brasília, por
parte das classes média e burguesas e seus carros, é taxado de “sujo,”
“desordenado,” “feio” (p.158).
 Não mitifiquemos a sabedoria do “homem comum”: apenas por virem dele,
não significa que suas iniciativas sejam as melhores do mundo. Todavia, não
é a sua qualidade que está em causa em Brasília, é a sua existência (p.158).
 Eles e suas iniciativas estão no “lugar errado” apenas porque são “visíveis”.
Tampouco mitifiquemos a ideologia das classes média e burguesas. Ela
consiste em valores e em um estilo de vida (p.158).
 A visão sobre Brasília abomina a mistura de classes no espaço público. A
Capital surge como cidade-classe-média, à imagem e semelhança da
burocracia do Estado (p.158).
 Por isso qualquer manifestação contrária a seu estilo de vida salta à vista
mais do que em qualquer outra cidade brasileira. Daí a reação
desproporcional por parte da burguesia (p.159).
 Entretanto, a simultaneidade de classes sociais diversas no espaço público é
tendência em muitas cidades planeta afora, particularmente no resgate de
áreas urbanas centrais, antes desertificadas e deterioradas. Nessas
condições todos ganham (p.159).
 Em Brasília, porém, essa simultaneidade é reservada às “fissuras urbanas.”

Mandamento 6 – Considere a sintaxe e a semântica.


 A arquitetura tem implicações sintáticas, contidas na própria configuração
dos lugares. Independentemente de tempo, lugar e sujeitos envolvidos,
mantida a configuração, mantêm-se as implicações, porque intrínsecas a ela
(p.162).
 A arquitetura tem implicações semânticas, sobrepostas à configuração, que
dependem da sociedade como um todo, de grupos ou até de indivíduos. São
convencionais e históricas, mudam no tempo, mesmo mantida a
configuração do lugar (p.162).
 A arquitetura é mais perene que os rótulos nela colados. Daí ser comum a
“ressemantização” dos lugares – reaproveitamento de estruturas anteriores
para finalidades e significados diversos (p.163).
 Não se trata apenas de uma economia de meios, de aproveitar o esforço um
dia investido na sua construção, por vezes enorme. Trata-se de explorar uma
das facetas do determinismo arquitetônico: o rico campo de possibilidades
colocado à nossa disposição pelos lugares (p.163-4).
 Daí templos virarem salas de concerto; fábricas, galerias de arte; armazéns
portuários, centros culturais, etc (p.164).
 A tradição foca a semântica da arquitetura, mais do que a sintaxe, ênfase
acentuada com a importância recente conferida à subjetividade (p.164).
 Na tradição hard da Teoria da Sintaxe Espacial, as implicações da
arquitetura estão contidas na sintaxe do lugar. No entanto, outros estudiosos
observam como se superpõem à sintaxe regras e convenções não aparentes
na configuração espacial (p.180).
 Exemplo emblemático das relações entre sintaxe e semântica está no
modelo organizacional das aldeias dos bororo, índios brasileiros. Não basta
a sintaxe ser prenhe de regras: casas dispostas em círculo, separadas entre
si, ao redor de um edifício central (p.172).
 Por sobre essa sintaxe há uma superposição enorme de regras semânticas:
espaço central, sagrado; espaço periférico, profano; dois eixos
perpendiculares dividem o círculo em 4 partes, que por sua vez representam
4 clãs da aldeia (p.172).
 Sem conhecer códigos de conduta de determinada cultura, podemos bater
na porta errada. Sem a chave do código, cometemos gafes. Ou se temos a
chave, e abrimos portas que não devemos, somos severamente penalizados.
É um exemplo de como a semântica incide nos aspectos sociológicos, não
apenas nos expressivos (p.180).
 Tudo é convencional, leituras da arquitetura dependem do grupo envolvido,
quando não do indivíduo (p.181).
 A proposta desse mandamento reconhece a objetividade das implicações da
arquitetura sem eliminar o papel da subjetividade na fruição (p.181).

Mandamento 7 – Cuide a ordem sem descuidar da desordem.


 Ordem diz respeito a relações entre elementos. Há vários tipos de ordem
(p.184).
 Ordem é intrínseca à configuração dos lugares (em função da sintaxe), mas
também resulta de convenções apostas aos lugares (em função da
semântica) p.185.
 A ordem acontece em todas as escalas: nas partes de um edifício ante o
todo; nos edifícios agrupados em ruas ou praças; nas relações entre os
espaços da cidade (becos, ruas, avenidas, praças, largos) p.185. Neste caso
a ordem refere-se à hierarquia.
 Dois exemplos de cidades aqui apresentados podem ilustrar a superposição
de valores sintáticos e semânticos nas relações entre seus elementos
estruturadores, fornecendo diferentes apreensões do lugar pela mente.
Essas cidades são Chandigarh (1951) e Brasília (1957).
 Chandigar, na Índia, e Brasília são cidades administrativas construídas do
zero. Embora sejam duas cidades “modernas” ambas se diferem em muitos
aspectos quanto à ordenação de seus espaços (p.186), o que implica
distintos desempenhos.
 Em Chandigar, não há diferenças entre os trechos viários da malha quase
ortogonal da cidade (p.186).
 A malha, tem uma rotação de cerca de 45º em relação aos pontos cardeais e
a configuração dos tramos é visualmente idêntica tanto no sentido nordeste-
sudoeste quanto no sudeste noroeste. O cruzamento desses se dá em
rótulas generosas de cerca de 30m de raio (p.186).
 O aspecto dos tramos também é praticamente idêntico: canteiro central de
cerca de três metros mais duas mãos, cada uma com três faixas de
rolamento (p.186).
 Em Brasília, ao deixarmos o aeroporto situado fora do plano, há um trecho
de rodovia interurbana de cerca de 6km, que se transforma em via expressa
ao atingir a extremidade sul da asa sul, estruturadora do tecido residencial
composto pelas superquadras que a bordejam (p.188).
 Essa via, chamada de Eixão, é o único elemento com essas características
em Brasília, ao contrário de Chandigar, em que o mesmo tipo se repete
indiscriminadamente na cidade inteira (p.189).
 Em Brasília há outros tipos intermediários de vias que conferem, ainda na
escala do todo urbano, uma variedade inexistente em Chandigarh, como o
Eixo Monumental, que se distingue das demais unidades morfológicas da
cidade por seus atributos específicos: dimensões, formas, proporções dos
volumes edificados e dos espaços entre eles (p.190-92).
 Chandigar surpreende pela ausência da descoberta, no tempo, de novas
perspectivas visuais. A paisagem da cidade é exasperadamente repetitiva.
 Uma ordem sensível clara implica estímulos visuais em função de mudanças
de direção, variedade de caminhos, diversidade de vistas em função da
variedade espacial e volumétrica. Não os apresentando satisfatoriamente,
Chandigarh tende à desordem pela redundância da informação que nos
chega à mente (p.192).
 Do ponto de vista da apreensão racional das duas cidades, Chandigarh tem
mais ordem, dada a regularidade da malha na escala maior da cidade.
Porém, embora esse esquema ortogonal seja racionalmente compreensível,
a paisagem captada pela visão é de uma uniformidade angustiante. A
sensação de desconforto e a desorientação são inevitáveis (p.198).
 Em suma, ordem da arquitetura é captada pela mente mediante os
elementos e relações identificáveis no nível dos estímulos concretos,
perceptíveis pelos sentidos, e no nível abstrato, compreensível pela razão
(p.199).
 Desordem é bagunça, quando não há satisfação de expectativas humanas.
Mas também é inovação: mutação que prefigura valores, ideias, costumes
em gestação nas fissuras da ordem dominante (p.184). É o caso dos
embates sobre o uso do solo que ocorrem em Brasília, por exemplo,
verificados no Mandamento 05.

Mandamento 8 – Atente à história.


 A arquitetura tem causas de vários tipos – crenças, valores, teorias, poder
político ou econômico. Por mais simples que sejam, edifícios e cidades
condizem com tempo e espaço, têm precedentes, ninguém constrói do vazio
(p.217).
 O estudo da história é fundamental não para registrar que “isto antecedeu
àquilo” (os precedentes), mas para entender a razão do emprego disto e
daquilo. Decisões arquitetônicas não são inocentes (p.217).
 O estudo da história em geral e da arquitetura em particular nos ajuda a
compreender escolhas (p.218).
 Os emblemáticos projetos de Oscar Niemeyer em Brasília, por exemplo, têm
atributos que remetem a edifícios solenes do passado, do ponto de vista dos
aspectos sociológicos do desempenho da arquitetura: referem interações
entre categorias de pessoas, modos de convívio, estruturas sociais (p.218-
19).
 Por meio de artifícios de separação, estabelece-se distanciamentos entre
dentro e fora de edifícios político-administrativos, culturais ou cerimoniais:
elevação ou rebaixamento de pisos e distanciamento de entradas mediante
atributos vários – jardins frontais, cercas, espelhos d’água, fossos (p.218).
 Esse recurso é usado milenarmente para conferir formalidade aos edifícios.
Isso implica formalidade das relações entre práticas sociais do interior dos
prédios e as de fora dele: à separação física corresponde uma separação
social. Desde sempre (p.219).
 O contrário está nas relações entre edifícios residenciais e espaço público na
cidade medieval europeia, na colonial brasileira, ou nas cidades do século
XX antes de os edifícios começarem a se fechar para o espaço público. De
uma forma ou de outra o espaço público era intensamente utilizado (p.219-
20).
 O uso intenso e variado de ruas e praças, confere a estas sua qualidade de
urbanidade: a fronteira entre o interno e externo é suave (p.220).
 Formalidade e urbanidade são maneiras de ler a história da arquitetura – ou,
mais largamente, de sistemas sócio-espaciais – que facultam revelar
parentescos entre configurações à primeira vista díspares (p.220).
 Os conceitos referem uma dimensão estrutural de ordem social que está
além dos modos de produção ou das formas de ordenação política – diz
respeito à maneira como os indivíduos interagem entre si (p.234)
 Algumas sociedades sem Estado como forma política adotam a formalidade,
outras a urbanidade; idem com os Estados primitivos da África ou com
sociedades feudais europeias (p.234)
 Nos tempos modernos, a urbanidade herdada da era pré-industrial tem
estado sob severo ataque, mas a luta está longe de ser resolvida (p.234).
 Brasília testemunha a sobrevivência dos dois modos: os conflitos em
sociedades tão perversamente clivadas em classes sociais antagônicas
podem ser lidos como conflitos entre valores de uma população de
“formalitas” contra os de uma população de “urbanitas.” (p.234-35).
 As ideias de formalidade e urbanidade se adequam a um processo de
descrição e avaliação da arquitetura e da sociedade.
 A urbanidade envolve intensa participação na vida secular, livre
manifestação de diferenças e de sua negociação, portanto se identifica com
valores universais mais caros à sociedade democrática. O contrário se aplica
à formalidade, que envolve categorias estanques de pessoas, sistemas
sociais hierárquicos e cerimoniais (p.235).
 Entretanto, contradições entre a arquitetura e a vida que a habita acontecem.
Todavia, se a arquitetura não comanda a vontade de ninguém, pode impor
custos pesados àqueles que querem utilizá-la contrariamente às
potencialidades que ela implica (p.235).

Mandamento 9 – Projete a cidade sem ombros ou costas – só rostos.


 A história das cidades nos últimos duzentos anos é a história da erosão do
espaço público. Para este, os edifícios voltavam apenas as fachadas frontais
– rostos (p.238).
 Fachadas laterais – ombros – inexistiam pela contiguidade edilícia. Fachadas
de fundo – costas – voltavam-se pudicamente para o miolo privado dos
quarteirões, invisível das ruas (p.238)
 Exceções confirmavam a regra: igrejas soltas por todos os lados, palácios
ocupando quarteirões inteiros. Quando isolados, costas e ombros eram
tratados quase à maneira de rostos (p.240-41).
 O decoro se perde no urbanismo moderno. Dentre outros atributos, a história
da configuração da cidade é a história da diluição progressiva do quarteirão,
do crescente isolamento das edificações (p.242).
 Com as unidades de habitação, Le Corbusier “transforma a rua em corredor
e o corredor em rua”. Retiram-se do âmbito público alguns dos elementos
que melhor o qualificam: ruas de comércio local e de serviços são jogadas
para um andar intermediário de torre de apartamentos de doze a quinze
pavimentos (p.245).
 No plano piloto de Brasília a linguagem mais típica do urbanismo moderno
acontece: aqui reina a paisagem de objetos quase absoluta (p.248).
Entretanto, essa paisagem não é novidade na história. Talvez as pirâmides
de Giza inaugurem a vertente dos edifícios radicalmente fechados, opacos e
isolados entre si. Os vazios entre eles são amorfos residuais. (p.239).
 A arquitetura moderna só ganharia com um novo resgate. Por que resgatar
do passado apenas atributos das Pirâmides de Giza, não atributos nas mais
preciosas cidades coloniais brasileiras? (p.259)
 Uma outra cidade contemporânea é possível: uma que resgate os atributos
da cidade-só-rostos do Largo do Cruzeiro em Salvador (p.259)

Mandamento 10 – Foque o conhecimento objetivo.


 Na teoria do conhecimento, a obsessão contemporânea é por
“interpretações” de validade supostamente equivalente. Resultam absurdas
falácias (p.262)
 A validação última de quaisquer teorias, de quaisquer pensadores, de
quaisquer escolas e: existe evidência real, no mundo real, que apoia
formulações teóricas? (p.262)

You might also like