You are on page 1of 8

Segunda-feira

A maioridade de um país

O Brasil na bancarrota ou em certa prosperidade sempre foi, como disse Stefan Zweig, 'o país do futuro'

Hoje lembramos os 518 anos da chegada de uma frota portuguesa à costa da atual Bahia. Outrora
adoravam discutir se o episódio seria intencional ou acidental. Há argumentos para os dois lados.
Querendo ou não, achando ou descobrindo (ou os termos mais quinhentistas, achamento ou invenção), o
fato era que a prioridade lusitana estava no lucro das Índias que despejariam especiarias sobre Lisboa e
fariam a beleza do mosteiro dos Jerônimos. Portugal e Argentina compartilham esse sentimento de
apogeu já vivido. O Brasil na bancarrota ou em certa prosperidade sempre foi, como disse Stefan Zweig,
“o país do futuro”.
Traço marcante dos brasileiros fictícios como Policarpo Quaresma (na obra de Lima Barreto) ou dos reais
como o monarquista Afonso Celso (Porque me Ufano do Meu País – 1900): somos um país de imensas
possibilidades no horizonte por atingir. Aliás, na frota do almirante Cabral já viajava o homem fundador da
tradição. Pero Vaz de Caminha olhou para a Terra de Santa Cruz com o olhar profético de que ali,
naquela terra graciosa, tudo germinaria por força das águas. Da visão do escrivão até nossa esperança
contemporânea no aquífero Guarani ou no petróleo do pré-sal, somos o país das terras, recursos e
esperanças infindas. Por que ainda não saímos do leito eterno e esplêndido?
Há um argumento sobre nossas origens que merece ser revisitado. Já afirmei, em mais de uma ocasião,
que a corrupção é ambidestra e que, em nosso cotidiano, praticamos pequenos atos imorais, antiéticos e
francamente corruptos. Seja em Raymundo Faoro, a quem citei no mês passado, seja na controversa
série O Mecanismo, a ideia de que existe uma elite corrupta que nos subtrai atavicamente desde o século
19 (ou desde os tempos coloniais) é frequente. No seriado, a busca da origem genética de um Estado
patrimonialista e corrupto localiza Elias António Lopes, um traficante de escravos luso-brasileiro que doou
sua casa na Quinta da Boa Vista para o regente. Em troca da “generosidade”, virou cavaleiro da Ordem
de Cristo, ganhou cargo em Paraty e em São João del-Rei (atual Tiradentes) e obteve a oportunidade de
cobrar impostos em várias localidades. Comerciantes ou empreiteiros; traficantes de escravos de
antigamente ou os de drogas do século 21; empresários e latifundiários sempre miraram o poder
arrecadatório do Estado para obter vantagens.
É realmente inegável que havia conúbio incestuoso entre Estado e outros setores da sociedade em 1808
ou nos tempos de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal. A questão que se põe é outra. O chamado
Antigo Regime era baseado nisso. Era perfeitamente legítimo e esperado que houvesse favorecimentos,
apadrinhamentos e um toma lá dá cá entre a monarquia e os amigos do rei. As capitanias hereditárias
foram a perfeita simbiose entre o interesse particular dos donatários e o poder da coroa. Um dono de uma
concessão próspera como Pernambuco era, ao mesmo tempo, a empreiteira e o partido no poder. D.
João no Rio de Janeiro estreitaria esses laços fraternos em corrente de aço: o doador da Quinta da Boa
Vista não realizou a transferência da propriedade por lealdade aos Braganças ou a algum diáfano
sentimento nacionalista. Fez por interesse e anseio de retribuição.
No século 18, certo discurso republicano de matriz iluminista passou a criticar essas práticas. Era
necessário separar os poderes, ter transparência, criar uma imprensa livre, treinar burocracias técnicas,
probas e eficazes, eleger representantes do povo (ainda que a ideia de povo, 250 anos atrás, fosse
completamente diferente da de hoje). Houve revoluções e novas formas políticas surgiram tentando pôr
em prática essas ideias novas. Ao fazê-lo, incorporaram muito do patrimonialismo do Antigo Regime.
Nosso país não foi exceção. Aliás, em um continente republicano, optamos pela manutenção da fórmula
monárquica por todo o século 19.
As observações anteriores parecem conduzir a alguns sentimentos paralisantes. O primeiro é “sempre foi
assim”, o imobilismo histórico. O segundo é “todo mundo faz assim”, o imobilismo sociológico. A crença
em estruturas deterministas e anteriores é problemática. Seu oposto, a ideia de que tudo é derivado da
vontade e ação humanas, é pouco científico. Os homens fazem a História, porém não do jeito que
gostariam, lembrava um filósofo alemão. Um país nasce de opções concretas, diárias, individuais e
coletivas. Mas tais opções são moldadas por uma forte tradição herdada do passado. Não é fácil, mas
tudo pode ser mudado, até mesmo para pior. Não existe um destino ou um miasma natural brotando do
solo. Dentro das possibilidades do presente, tudo é ação ou omissão dos agentes históricos: nós.
Assim como no passado, o povo de Pindorama ainda anseia por um futuro brilhante no horizonte.
Permanece o desejo por um D. Sebastião a quem delegaremos a tarefa de refazer a mítica terra sem
males. As águas continuam infindas e ainda há milhares de motivos para nosso ufanismo.
Parabéns ao país no qual moramos. Ele é jovem e forte, antigo e frágil, haja vista que sobrevive a seus
governos ao mesmo tempo que naufraga em suas utopias. Sim, eu e você, querida leitora e estimado
leitor, teremos de escolher alguém no ano em curso para recolocar o velho sonho de Caminha em outros
trilhos. Teremos de nos virar com o que temos, com o que nos legaram e com o que deixaremos para o
amanhã. Aos 518 anos, já somos grandinhos: não dá para debitar tudo na conta de ex-colônia
portuguesa. Bom domingo para todos vocês.

Terça-feira

A inteligência do seu filho

Há uma preocupação forte dos pais com a inteligência dos filhos. Antes bastava amar, vacinar e
alimentar. Hoje temos de estimular de consciência hídrica até desenvolvimentos de habilidades cognitivas
avançadas.

Existe razão na preocupação. Por milhões de anos, o poder na sociedade foi determinado pela força
física. O macho alfa hábil nas armas era o líder natural. A força física perdeu muito espaço para o poder
econômico. A riqueza passou a determinar o status social das pessoas. Os guerreiros de outrora
passaram a ser guarda-costas dos senhores endinheirados. Redefiniu-se a pirâmide social.
Crescendo rapidamente após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e disparando com a revolução dos
computadores e softwares no fim do século 20, despontou de vez o critério da inteligência. Os homens
mais influentes deixaram de ser os construtores de ferrovias ou produtores de aço. Criadores como Bill
Gates e Steve Jobs eram o máximo da admiração mundial e tornaram-se parte da elite dos
multibilionários. O novo empreendedor é o homem das ideias novas, das rupturas de paradigmas, da
criação inquieta como eixo. Considere o celular de hoje. Com que parcela do lucro fica o criador do
software, do design e da inovação tecnológica? Com qual fica a fábrica na Ásia? Por fim, qual o quinhão
de quem aplicou força física como operário? Ao responder a essas questões teremos a completa noção
da metamorfose.
O crescimento da inteligência desperta o sinal de alerta dos pais. Será que meu filho está apto ao
admirável mundo novo? Será que a escola está adequada? Por que ele não lê mais? São perguntas
justas e lícitas.
Primeiramente façamos uma distinção básica. Saber dados constitui informação que pode tornar uma
pessoa culta. Erudição é um treinamento que não implica muita inteligência, apenas memória e repetição.
O processo leva anos, mas é mais ou menos padronizado e eficaz. A inteligência está associada à
capacidade de criar, associar, comparar, inovar, relacionar e dar aos dados formais da erudição um
sentido novo. Há pessoas cultas que não são inteligentes. Há pessoas muito inteligentes que não são
cultas.
A busca para incrementar a inteligência dos filhos leva a crenças variadas. Não existem estudos
irrefragáveis sobre o efeito da música de Mozart no quarto de um bebê. Pense: os filhos de Mozart tinham
seus genes e cresceram ouvindo o pai. Ambos foram medíocres na sua produção. Imaginar que sua
caixinha de música tenha efeito superior ao próprio Mozart tocando é algo fantasioso. Porém, o ambiente
tranquilo e com música pode ajudar a relaxar. Dormir bem será fundamental na formação do cérebro.
A inteligência pode ser estimulada. Ler para crianças com paixão e fantasia, levá-las a atividades
culturais, estimular a criatividade, ensinar línguas e instrumentos musicais são, comprovadamente, fatores
estimulantes de mais conexões cerebrais. O importante é não forçar ou tornar a leitura ou o teatro uma
obrigação formal. O caminho preciso para criar ódio de um aluno por um livro é forçá-lo a ler e fazer
prova. Da mesma forma, já disse em outra crônica, fazer um percurso de horas em um museu é caminho
bom para sepultar a análise estética de um jovem ser.
O exemplo funciona bem. Pais lendo com prazer e comentando algo do que leram ou admirando um
quadro especial em uma exposição é mais eficaz do que a formalidade educacional. Piaget tinha razão: o
lúdico é a chave educativa mais forte.
O ponto central de toda influência é permitir que os jovens façam a vinculação afetiva com os portadores
de conhecimento.
Na minissérie Merlí, o professor de Filosofia faz uma pergunta na primeira aula e ouve uma resposta do
pior aluno, aquele que havia repetido duas vezes de ano. Ouve e elogia: você é meu aluno preferido a
partir de agora. O simples estímulo intelectual refez a visão da personagem Pol Rubio, que acabará
orientando toda sua carreira futura a partir desse encantamento inicial.
No melhor estilo da personagem infantil do Show da Luna, despertar a curiosidade científica é
fundamental. Boas perguntas sobre o funcionamento das coisas e idas a museus de ciências funcionam
como estratégia. Como o peixe respira debaixo da água? Por que o gelo derreteu em um copo cheio até a
borda e não existiu transbordamento? Também a curiosidade sociológica e humanística estimula o olhar.
Por que há pessoas dormindo na rua e nós temos quartos bons? Não se trata de moldar seu filho a ideias
conservadoras ou de esquerda, mas fazê-lo perguntar, a partir de um óbvio socrático, para entender a
estrutura das coisas e do mundo.
Por fim, minha querida mãe e meu estimado pai: não sejam ansiosos. Existe um tempo e hora para tudo.
Não temos poder absoluto sobre as pessoas e seus cérebros. O “estalo de Vieira”, a velha lenda de que
um emburrado e medíocre aluno, um dia, despertou para o latim e a oratória e se tornou nosso genial
Padre Vieira pode ocorrer. Há muitos estalos possíveis na vida. Devemos lembrar que nem todos os pais
que clamam por mais leituras dos rebentos foram exatos devoradores de livros na mesma idade. Há que
se ter humildade e paciência. Se urge incluir o lúdico, é imperativo estabelecer o exemplo.
Claro: os velhos valores ainda existem: alimentar, vacinar, cuidar. O resto vai do cruzamento da
maquiavélica virtù com a fortuna. Há algo de aleatório no interesse e no despertar da inteligência criadora.
Ela pode brotar longe do solo ideal como em Machado de Assis e rarear em filhos tratados com todas as
benesses do dinheiro. Boa semana para todos nós.

Quarta-feira

De onde vem o exemplo?

O bicho-homem mata em nome da vida e suplicia em nome de Deus

Quando um jovem antropólogo perguntou a um chefe indígena como ele administrava seu povo, sua
resposta foi exemplar. Quando – disse ele – o pátio central da aldeia precisa ser limpo, eu pego o meu
facão e inicio a tarefa. Pouco a pouco, os outros chegam e logo todos estão fazendo o que deveria ser
feito. Esse mesmo chefe ensinou a esse mesmo rapaz uma antinorma da antipolítica brasileira: um bom
chefe não acumula, ele distribui...
O exemplo é o apanágio dos humanos. Esses bichos que não nascem prontos são programados para não
ter programa e, por viverem na dúvida, precisam de mandamentos, leis e ideologias quase sempre vindas
do céu e dos deuses que variam entre si, dependem de pessoas e, como ensinou Marx, de
circunstâncias. O que é amizade aqui, é corrupção por lá; o que é ativismo político acolá, é crime aqui...
Por isso, esse “bicho-homem” mata em nome da vida, suplicia em nome de Deus, torna-se criminoso
aviltando boas causas.
No nosso caso, eis a descoberta simultaneamente alarmante e transformadora, os partidos do poder
sempre foram donos e “cuidadores” do povo brasileiro. Os eternos “doutores”, tidos com sábios, sabiam o
que fazer para levar o Brasil a um nobre futuro. Tanto isso é verdade que hoje conseguimos ter linhagens
de boçais que, cruzando entre si, estão suicidando o País, mas sem deixar de fazer – sejam eles de um
lado ou do outro – o que sempre tiveram o direito de fazer: roubar a coisa pública em redes de favores.
Eu fico chocado quando ouço pessoas falando do “Brasil” como se elas não fossem também o Brasil e
não precisassem de ninguém para fazer o Brasil que desejam. Na nossa alma, somente o “governo” é
responsável e capaz de modificar o Brasil. Nesse caso, o exemplo viria dos administradores donos não
somente do poder (na formula de Faoro), mas desse coisificado Brasil.
Uma visão vertical do sistema, nos leva a olhar quem está por cima (para pedir ou obedecer) ou por baixo
(para favorecer ou cuidar), mas uma perspectiva horizontal hoje obrigatória muda tudo. Agora, o exemplo
vem, esperamos, dos “supremos”, mas também do bom senso igualitário: de um olhar agudo para os
lados. Sem isso, vamos continuar procurando messias e santos e encontrando caudilhos e boçais.
*
Cito uma um exemplo clássico:
“Quando Xerxes o grande Rei dos Persas perguntou como aquelas cidades gregas sem rei se
levantariam contra ele, Demaratus (rei de Esparta exilado) replicou: Eles têm, sim, um senhor e esse
senhor é a lei que eles temem muito mais do que qualquer dos seus súditos. O que esse mestre comanda
eles obedecem e esse comando jamais varia – ele jamais retrocede nas guerras em qualquer que sejam
as circunstâncias e permanecem em formação para conquistar ou morrer.” (ver On Politics, de Alan
Ryan.)
*
Estamos muito longe dos gregos e mais ainda dos “índios”, que a boçalidade cultural situa na “idade da
pedra”. Como ibéricos, o que vale para uns não vale para os outros. Cada caso é um caso e, embora a lei
seja a mesma, o que conta não é o crime, mas quem o praticou. Não é a lei que submete o “paciente”; é –
estamos pagando para ver – o “paciente” que a engloba.
A lei, reiterei no domingo de Páscoa com um desalento esperançoso, depende de quem estamos falando.
*
No livro de Suzanne Chantal, A Vida Cotidiana em Portugal ao Tempo do Terramoto (1755), Lisboa:
Livros do Brasil, 1962. Ela fala de uma instituição pouco analisada, mas rotineira lá e aqui: o empenho.
“O chefe da família (e da casa) era, mais ou menos, o responsável (...) pelo casamento das raparigas e
pelo emprego dos rapazes. Acresce, assim, que muitas vezes tinha que meter empenhos por seus
protegidos, e fazia-o sem escrúpulos nem vergonha. ‘Nomeie, pois, este rapaz oficial num dos seus
regimentos – dizia tranquilamente um português ao Conde de Lippe, vindo para reorganizar o exército –
ele foi meu companheiro durante vinte e cinco anos e isso merece recompensa.’
Custava recusar qualquer coisa a um amigo – que, aliás, era quase sempre um pouco compadre ou
parente (...), por isso abundavam funcionários inúteis, legiões de criados, os procuradores parasitas que
gravitavam, obsequiosos e sem problemas, à volta de todo homem de bem.
A proteção (...) estendia-se aos mais deserdados, mas também aos menos merecedores. Recomendava-
se um incapaz e afiançava-se sem hesitações um malandrim. Desde que fosse primo de uma criada ou
bastardo de um primo irrequieto. Uma pessoa influente pede a outra em benefício de uma terceira,
geralmente indigna ou nula, e obtém para esta um favor imerecido, ou a sua isenção de um antigo
merecido. De fato (...) a influência pessoal era usada a torto e a direito. (...) Um pedido tornava-se um
teste. Quanto pior fosse o caso, quanto mais o protegido tivesse ofendido a moral ou a lei, quanto mais
obstáculos houvesse a vencer, mais o protetor afirmaria o seu poder.(...)” (pág. 141).
Seria daí que viria o exemplo?

Quinta-feira

Como viver sem criados?

Nosso etnocentrismo toma como natural a presença de alguém que faça coisas para nós

Nós reclamamos dos privilégios, das generosas e imorais aposentadorias e do exagero dos muitos
assessores, secretários, motoristas e ajudas de custo ligados a cargos públicos, mas jamais cogitamos
dispensar os nossos criados. Um dos meus vizinhos falava com ironia em folha de pagamento, tantos
eram os seus serviçais.
Uma das maiores estranhezas vividas por brasileiros nos Estados Unidos é a da mais absoluta ausência
de empregados domésticos. De pessoas que fazem coisas pequenas e rotineiras para nós.
Na América, existem “cleaning ladies” - faxineiras horistas -, mas são raras as empregadas multiúso
(babás, cozinheiras, confidentes...) como as nossas, não obstante minha duvidosa certeza de que tudo
está sempre mudando!
Na minha longa experiência como estudante e professor visitante nos Estados Unidos, testemunhei
alguns casos de bolsistas acompanhados de empregadas que mal cabiam nas modestas moradias
disponibilizadas pela universidade a qual se associavam. Os locais se assombravam, mas tais auxiliares
são indispensáveis para o nosso estilo de vida, porque são eles que limpam os nossos banheiros, fazem
as nossas camas, varrem nossas casas, transformam alimento em comida, lavam nossas roupas e nos
servem cafezinho, água e sobremesas, tirando e botando na hora certa os pratos da mesa, quando
reproduzem um familismo que é parte do nosso modo de ser. São eles que nos fazem companhia e nos
escutam nas nossas atribulações. Esse paciência pessoal e sempre generosa com a qual os
subordinados nos ouvem, acalentam, obedecem, aconselham, aliviam, sorriem e perdoam, é parte
dessas ocupações e são elas, com certeza, que compensam a enorme desigualdade econômica entre
nós.
São esses empregados que mantêm a nossa distância do sujo, garantindo nossa superioridade aos
nossos egos que o mundo, apesar de toda a corrupção nascida precisamente nesses abismos de
desigualdades tidas como naturais, não acabou, mas está - queira Deus - terminando.
De fato, o que seria do sabido se não fosse o trouxa; do senhor se não fosse o escravo; do patrão se não
fosse o empregado e da “dona da casa” feminista e emancipada se não fossem as suas criadas...
*
Corria o ano de 1979 em Madison, Wisconsin, onde eu servi como professor visitante graças a um
generoso e oportuno convite de Thomas Skidmore, tirando-me de um crônico aperto financeiro.
Estamos pai, mãe, filho mais velho, filha e o rebento mais novo assistindo a um filme quando alguém diz:
- Estou louco para comer um sanduíche. Mamãe, você pega um sanduíche pra mim?
- Não vou perder o filme.
- Então minha irmã, você faz esse favor?
- Estou vendo o filme...
- E aí, meu irmãozinho caçula, você faz o sanduíche?
- Não sou emproado...
Diante da súbita consciência da hierarquia entre pais e filhos, entre gêneros e idades, a qual não podia
ser sustentada sem uma empregada, surgiu um riso e, em seguida, um pacto. Aqui, nos Estados Unidos,
é a gente mesmo quem faz: somos (não é incrível?) nossos próprios empregados. Vamos pausar a
televisão e cada qual faz o seu sanduíche.
*
Em Berkeley, Califórnia. Um casal com filhos pequenos chegou, causando rumores, com uma criada.
Lídia era impecável. Cozinhava e era carinhosa com as “crianças”. Logo, porém, aprendeu inglês e
começou a namorar um americano que se doutorava em matemática. A rotina americana foi fazendo com
que os laços de subordinação fossem sendo substituídos por valores igualitários. Os patrões ficaram
menos autoritários e Lídia, mais companheira.
Quando ofereceram um jantar para amigos, ordenaram a Lídia que o preparasse. Receberam como
resposta a intrusão do individualismo com igualitarismo americano: “Sinto muito, mas não vou poder.
Tenho um date com meu namorado, mas eis aqui R$ 20 para vocês comprarem uma pizza!”.
*
Impossível esquecer um outro caso. Desta vez, exposto no livro Notas Sobre o Rio de Janeiro, do
comandante John Luccock, quando, nos anos 1800, visitava uma casa brasileira e surpreendia, com seu
olhar igualitário de inglês, o comportamento de uma dama carioca sentada numa esteira e rodeada por
suas escravas:
“Junto e ao alcance da mão”, relata Luccock, “estava pousado um canjirão[= JARRO] d’água. Em certo
momento, a dama interrompeu a conversa para gritar por uma outra escrava, que estava em local
diferente da casa. Quando a negra entrou no quarto, a senhora lhe disse: ‘Dê-me o canjirão’. Assim fez
ela, sua senhora bebeu e o devolveu; a escrava recolocou o vaso onde estava e retirou-se sem que
parecesse ter dado conta da estranheza da ordem, estando talvez a repetir o que já fizera milhares de
vezes antes”.
É óbvio que a “estranheza” exprime o etnocentrismo de caráter igualitário do observador, abismado com o
que percebia como inércia ou preguiça da dona da casa, incapaz de mexer-se para pegar a botija d’água
situada ao alcance de sua mão.
*
Já o nosso etnocentrismo toma como natural a presença de alguém que faça coisas para nós, garantindo
o eixo superior/inferior que é central para o nosso estilo de vida. Será que criados não sabemos quem
somos?
Falar em reforma ou intervenção sem enxergar essa matriz hierárquica e interdependente, que junta
protocolos oficiais com elos pessoais, é querer continuar enxugando gelo.

Sexta-feira

O que é milagre brasileiro

É ninguém tentar furar a fila, invocar prioridades inexistentes, aplicando a lei do mais esperto

Sempre procuro me sentar ao lado de José de Souza Martins na Academia Paulista de Letras. Porque é
um grande conversador, um daqueles que você ouve longamente e até esquece o café, o suco e os
pastéis. No último encontro do ano, no almoço que durou horas no restaurante La Casserole, de Marie
France, me esgueirei e consegui ficar ao lado do amigo, autor de O Coração da Pauliceia Ainda Bate, um
de meus livros de cabeceira, que me ensina a escrever crônicas e me encanta com histórias desta
cidade. À certa altura, Martins virou-se para mim: “Sabe o que é o milagre brasileiro?”. E emendou:
“Tomar o café da manhã”.
Peguei a deixa, retruquei: “O milagre brasileiro é ter o café, o leite e o pão”.
E ele: “Também milagre é levantar-se de manhã, disposto, sem uma doença, uma dor, um mal-estar, um
estresse, uma preocupação”.
Neste momento, Jorge Caldeira chamou Martins, mas continuei sozinho, elucubrando (perdoem-me por
tal palavra).
"Milagre é pegar o ônibus de manhã."
"Milagre é o ônibus passar e, se passar, não chegar superlotado."
"Milagre é um jovem no metrô estar sentado no banco de gestante e idoso e levantar-se assim que uma
grávida entre."
"Milagre brasileiro é um homem conseguir ficar junto a uma mulher sem encoxá-la, assediá-la."
"Milagre é a pessoa chegar ao trabalho, sentar-se e cumprir sua jornada, sem ter sido demitida logo de
manhã."
"Milagre é você não ser demitido no final do expediente de sexta-feira, na véspera do feriado, no dia em
que sai de férias."
"É também receber seu salário."
"Aliás, milagre mesmo é ter emprego."
"É também você passear pelo centro ou pela Avenida Paulista e não ter o celular ou a carteira roubados."
"Milagre é entrar nos Correios e ninguém te oferecer um boleto do Baú da Felicidade.”
"Ou em um banco e o caixa não indagar: não quer fazer um título de capitalização? Preciso fechar uma
meta."
"Ou numa lotérica e a atendente entregar seu jogo sem perguntar: Não vai levar o bolão da Mega?”
"Estacionar seu carro e nenhuma pessoa surgir do nada perguntando: posso vigiar? Só 20 paus.”
"Milagre é o caixa do supermercado não indagar: o senhor não quer arredondar os centavos em prol de
uma instituição?"
"Milagre é o telefone tocar e não haver do outro lado uma voz do telemarketing oferecendo fibras óticas
ou tantos megabytes."
"Andar nas ruas e perceber que desde que o gestor Doria entrou pela primeira vez em 12 meses passou
um varredor."
"Milagre é andar pela calçada e completar uma quadra sem tropeçar em um buraco, numa pedra solta,
um degrau que não se percebe."
"Milagre é você pisar na faixa e os carros que viram na esquina o deixarem atravessar a rua."
“Milagre é você chegar ao estacionamento e perceber que aquele garoto, com um sorriso, permite que
você ocupe a sua vaga de idoso."
“Milagre brasileiro é ninguém tentar furar a fila, invocar prioridades inexistentes, aplicando a lei do mais
esperto."
"Milagre é você estar sentado na sua poltrona do avião e nenhum outro passageiro bater com a mochila
na sua cara, no seu ombro, no peito. Ou atropelá-lo no corredor, querendo sair na frente."
"Milagre é você estar entrando em algum lugar e a pessoa à frente segurar a porta, em lugar de largá-la
em sua cara."
"Milagre é seu vizinho entrar no elevador e dar-lhe bom dia. Ou uma pessoa pedir algo dizendo por favor
e depois acrescentar muito obrigado."
"Milagre brasileiro dos maiores seria entrarmos em um apartamento e descobrirmos um monte de malas
repletas de dinheiro e um cartãozinho avisando: Com o amor de sua mãezinha. Gaste com moderação."
Bom ano para vocês todos. Se for realmente bom será um imenso milagre brasileiro, como jamais se viu
em 517 anos.

Sábado

O off é mais barato do que o sale?

'Fique à vontade, olhe, escolha, se quer saber o preço chame 787, ofertas é no ramal 321'
Entro na loja de calçados. Chega o atendente: “O que o senhor deseja?”. A pergunta óbvia, exige a
resposta óbvia: “Quero um sapato. O que mais poderia ser?”.
Sou impertinente. Clichês me enfurecem. Por exemplo, nada me causa repulsa maior do que aquela série
de expressões sem originalidade, repetitiva dos implicados em processos de corrupção: sou inocente, são
fantasias de mentes doidas, produtos da imaginação, delírios, suposições, conjeturas, hipóteses,
premissas, especulações, vislumbres. Ou como diz nosso cambaleante presidente, ilações, ficções.
Assim, diante do pobre moço que tenta ajudar, pergunto: “O que eu poderia querer aqui? Acaso vocês
vendem pão, sorvete, cereais, iogurte, tecidos, guarda-chuvas, panelas, meias, granola, bateria para
celular, arame, corda, roupas, remédio para dor de dente (falando nisso será que anda existe a Cera
Doutor Lustosa?), controle remoto, abotoaduras?”.
O pobre jovem fica aturdido. Têm paciência os vendedores e a sorte deles é que nem sempre pegam pela
frente um comprador como eu. Fico admirado quando veja uma pessoa pedir um sapato, recusar, e outro,
e outro de outro número, outra cor, outro formato, e de outro modelo, e com cordão, sem cordão, salto
alto, baixo, sem salto, chinelinhas. Sem decidir e o caixeiro (como se dizia antigamente) ou atendente (na
linguagem das operadoras de serviço de atendimento ao cliente) vai e volta, abre caixa, sobe e desce
escadas e sorri, e procura agradar. Ele é obrigado, tem o dono ou o gerente em cima a vigiar. Verdade
que as boas lojas do ramo (ainda se usa esta arcaica expressão?) hoje possuem elevadores que
mandam o produto direto do estoque (antes se dizia depósito).
Fico admirado quando uma freguesa (ou será cliente?) se levanta e tranquila, corajosa, diz que não vai
levar nada, e deixa esparramado ao redor um monte de calçados desparelhados (assim se diz em
Araraquara), 37 com 39, 40 com 36, e o funcionário leva um tempo para arrumar aquilo. Nada vende e
ainda pode perder outro freguês impaciente, que não tem tempo ou paciência de esperar. Admiro
profundamente esses bravos que entram na loja, descem tudo das prateleiras e, sem culpa nenhuma,
abandonam mercadorias no balcão e não levam nem um lencinho.
Toda essa história por quê? Para confessar meu grande problema com lojas, comércio. Entro e sou
atacado por um complexo de inferioridade. Não quero tomar o tempo de ninguém. Não gosto de
incomodar. Por timidez, entro e quero sair o mais rápido. Coisa que me incomoda é entrar, o atendente se
posicionar e gentilmente me questionar (pressionar): “Quer o quê?”. Se respondo, ele toma conta de mim,
me domina, mostra isso, aquilo, insiste que este produto é o melhor, o mais moderno, o que está em
moda (ou é a tendência), em uso, não nos dá tempo para pensar, raciocinar, escolher com calma. Não sai
do lado, nossa cabeça ferve, os neurônios queimam.
Assim, dezenas de vezes comprei um sapato que jamais usei, uma camisa que odeio, um cinto que é
largo demais (ou os passantes é que são estreitos?), um objeto que nunca tive coragem de dar ao meu
pior inimigo. Inimigo já é incômodo. Como classificar o melhor e o pior?
Estamos em fase de liquidações. Ou sale. Ou descontos de até... Ou rebaja. Ou off. Ou discount. Entrei
numa loja pedi um produto em off, não era o que eu pensava, me ofereceram outro, similar, ia
comprando, mas aí o vendedor avisou que aquele não estava em off e sim em sale e o preço era
diferente. Igual ao do off, não tem mais, avisou. Desse modo, a coisa varia e fui informado de que o
melhor seria entrar numa “queima total”.
Compreendo o trabalho do vendedor. Ele precisa vender. Muitas vezes, além de um pequeno salário
ganha comissão. Certo dia, um funcionário (atendente, caixeiro, servo, fâmulo, subordinado, o quê?) me
confessou que, se não vendesse ao menos um produto por dia, no final do expediente estava despedido.
Há anos, aprendi a entrar e quando alguém se aproxima e diz “posso ajudar”, saio correndo.
Dependessem de mim, indústria e comércio iriam à falência, ou me pagariam um terapeuta. Não sei o que
fazer. Tenho necessidade de tantas coisas, mas não ouso entrar para comprá-las.
Vou adorar o dia em que entrando em um estabelecimento (há palavras que odeio, esta é uma) alguém
passe por mim e cochiche: “Fique à vontade, o senhor tem todo o tempo, olhe, examine, pegue, escolha,
prove, se precisar de mim ligue para 104, se precisar do gerente ligue para 112, se quer saber o preço
chame 787, se preferir alguém de sua idade, chame 132, se quiser consultar ofertas, é o ramal 321”.
Ficarei livre. Laços fora, gritarei. E acabo de perceber que nunca escrevi um texto com tantos parênteses.
Pior se usasse colchetes.

Domingo

Capacetada

Onde estávamos que não pulamos no palco para enfrentar todas as injustiças que nos revoltam, desde
Gólgota?

A cidade de Nova Hartz fica no interior do Rio Grande do Sul, não muito longe de Porto Alegre. Todos os
anos, na Páscoa, a cidade faz uma encenação da Paixão de Cristo que termina com sua crucificação no
Monte Gólgota. A parte final é a mais impressionante do espetáculo, com a música, a iluminação e os
efeitos de cena contribuindo para a dramaticidade do seu desenlace. Que inclui o detalhe mais cruel do
drama: o do centurião romano que espeta o lado do agonizante Jesus com sua lança.
Este ano, a cena final teve uma participação inesperada. Um espectador não aguentou tanta maldade,
pulou no palco e atacou o centurião com um capacete de motoqueiro, interrompendo o martírio de Cristo
e o espetáculo e espalhando confusão e perplexidade no Monte Gólgota que não estavam no script. Até o
momento em que escrevo, a invasão do palco já tinha saído na imprensa de todo o mundo, mas aqui não
se sabia muita coisa sobre o homem que atacou o centurião, se estava bêbado ou apenas indignado, ou
as duas coisas.
Pensando bem, sabia-se tão pouco sobre o invasor quanto sobre o ator que fazia o centurião em Nova
Hartz e menos ainda sobre o próprio centurião romano da Bíblia, um daqueles ajudantes que têm seus
cinco minutos na História e desaparecem para sempre. Os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João
não se contradizem muito no relato do martírio e da crucificação de Jesus, mas só São João menciona o
centurião com sua lança covarde, que ficou como protótipo de sadismo gratuito, além do dever militar. Se
há algum personagem histórico, fictício ou não, que merece uma capacetada retroativa, é esse centurião.
Né não?
Resta comentar a força do teatro, que consegue impelir um homem para cima de um palco e enfrentar
uma guarnição de soldados romanos armados com lanças para vingar Jesus Cristo. E há no ato do nosso
herói uma reprimenda implícita. Onde estávamos que não pulamos no palco para enfrentar todas as
injustiças que nos revoltam, desde Gólgota?

You might also like