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Editorial
Novembro de 2017
5 A estranheza do outro
The strange other and the
e os limites da tolerância
limits of tolerance Liliana Liviano Wahba
13 Inclusão e diversidade
na imagem feminina de Sofia
Inclusion and Diversity in the
Claudia Morelli Gadotti
feminine image of Sophia
23 Escolha profissional na meia-idade:
Psicologia e individuação
Professional choice at middle-age: Marcia Aparecida Lopes Amorim Silva e Simone
psychology and individuation Rodrigues Neves
77 Resenha
Review
“Etapas da Família”
Etapas da família:
quando a tela nos espelha
79
Guidelines for publishing Normas
Junguiana
v.35-2, p.5-12
A estranheza do outro
e os limites da tolerância
Resumo Palavras-chave
A noção de alteridade possui uma fundamen- passadas pelo fanatismo e suas disrupções som- Tolerância,
tação arquetípica/ontológica e, no entanto, é difi- brias imbricadas pela crueldade. Propõe-se que a alteridade,
sombra.
cilmente alcançada no convívio social. A reflexão vinculação entre alteridade, tolerância e aceitação
proposta aborda o tema dos limites da tolerância do outro implica na aceitação da ansiedade exist-
e da proliferação de intolerância e radicalismo per- encial e no enfrentamento da incerteza. ■
as campanhas de ódio ao outro em governos po- decisão moral é suprimida (1957/1978c). O escri-
pulistas na América Latina. tor israelense e pensador contemporâneo Amos
Se a alteridade é uma confirmação do outro, Oz (2004) considera a tolerância a questão fun-
encontramos com maior frequência o oposto, damental do século XXI. Relaciona o fanatismo –
a desconfirmação e a estranheza do outro. muitas vezes – à atmosfera de um desespero pro-
fundo. Fora os extremos, a intolerância “fanática”
3. Psicologia social e desconfirmação se encontra no dia a dia em todo lugar, em formas
do outro civilizadas. Um exemplo seriam os antitabagistas,
A partir de teorias sobre identidade cultural e os vegetarianos, os assim chamados politicamen-
cognição da psicologia social (HOGGAN; LITWIN, te corretos, entre tantos outros.
2016), aprende-se que as pessoas protegem suas Os grupos em torno de uma convicção são
identidades protegendo suas convicções. Assim, levados a se acharem moralmente superiores
se alguém detesta algo, vai procurar evidências aos demais ou, oportunisticamente, retiram uma
que confirmem que aquilo merece ser detesta- vantagem dessa condição. Em uma empresa na
do. Os seres humanos são tribais e se orientam França um executivo que lá trabalhava há 30 anos
formando matrizes morais do grupo que operam foi sumariamente demitido, porque fumava no
por oposição. Por exemplo, lealdade/traição ou terraço e a fumaça “adoeceu” uma funcionária
santidade/degradação. A tendência é se identifi- ressentida que o processou. Independentemente
car com o polo mais favorável e projetar o menos da teimosia do homem em questão ou da empre-
favorável no outro. A desconfirmação defensiva sa estar farta dele, a punição parece certamente
emprega a negação do discurso e facilmente de- desproporcional, mas pegou, por quê?
semboca no radicalismo O fanático intolerante difere daquele que tem
Portanto, procurar a alteridade mediante a opiniões firmes e convictas, pois se credita uma
moral não parece a solução, dada a dificuldade superioridade moral. Converge sua energia em
em encontrar uma resposta moral universal para salvar ou punir o outro e, desse modo, evita con-
garantir o respeito ao outro. frontar-se com sua pequeneza.
O debate sobre o relativismo moral é exten- Há certamente forte fator de projeção na into-
so. Importa assinalar aqui que, diante de uma lerância: o outro é desprezível e, se for despos-
pluralidade de morais, em uma sociedade múl- suído de humanidade, pode ser perseguido até
tipla na qual dificilmente se encontra consen- justificar-se a violência. O fenômeno do bode ex-
so de princípios, a alteridade pode se diluir no piatório é conhecido na antropologia e estudado
convívio entre estranhos morais (ENGELHARDT pela psicologia, aplicado a todas as esferas de
JUNIOR, 2008), conceito particularmente eluci- convívio no decorrer da história.
dativo ao tema proposto. A respeito dos fundamentalismos que estão
atrelados ao fanatismo imbuído de princípios
4. Intolerância e fanatismo religiosos, Oz (2004, p. 86) conta uma anedota:
Se, de um lado, é incerto estabelecer os mes-
mos pressupostos morais para grupos diferentes, Em Jerusalém um homem está num café
de outro, em nome da moral e de elevados prin- sentado junto a um idoso que se identifica
cípios, ideologias extremadas podem se instalar como Deus. O homem pergunta a deus: –
em detrimento da alteridade: a intolerância leva Caro Deus, quem tem a fé certa? Católicos,
ao fanatismo. Jung (1948/1978) apontava no fana- protestantes, muçulmanos, judeus? Quem
tismo uma dúvida inconsciente, um modo de evi- tem a fé correta? – Para lhe dizer a verdade
tar as próprias incertezas e a instituição de uma meu filho, não sou religioso, nunca fui reli-
sacrossanta verdade acima de crítica em que a gioso, nem sequer interessado em religião.
Zoja (2015), sociólogo e analista junguia- associa-se a uma epidemia de solidão, cada vez se
no escreveu recentemente A morte do próximo, tem menos amigos próximos para conversar e são
um ensaio sobre o afastamento das relações substituídos por chats superficiais pela Internet. O
humanas em que descreve fatos da história e colunista escreve: “o crescimento da desconfiança
do cotidiano, e detecta graves sinais de que se corrói a intimidade [...] o medo é o grande inimigo
perdeu grande parte do contato com o próximo da intimidade. A perda de intimidade deixa as so-
semelhante e concomitante perda de empatia. ciedades mais isoladas. Isolamento leva a mais
Existiria na atualidade uma liberação da sexu- medo. Mais medo leva a líderes divulgadores de
alidade e uma repressão da intimidade, que medo”. (p. A9), confirmando observações aponta-
busca vazões para a falta. O semelhante se tor- das nesta apresentação e a obra icônica de Orwell
na estranho, difundem-se a desconfiança e as (1984) 1984 – em uma sociedade do futuro o poder
rivalidades, companhias de seguro faturam em concentrado no Partido e simbolizado no Grande
decorrência das suspeitas e aumenta a psico- Irmão mantém em guerra e sob vigilância constan-
patia onde não seria usual, exemplo, nas cor- te seus cidadãos, inibindo o pensar, a intimidade
porações. Encenam-se rituais de vencedores e e o prazer.
vencidos, exibidos em programas televisivos de
eliminação do mais fraco. Segundo Zoja (p. 90), 8. Como combater a intolerância
um rigor mortis psíquico contrasta com a agita- Diante da pergunta de se o mundo caminha
ção física: e as pessoas “Não têm pensamento para a intolerância urge achar meios de combatê-la.
autônomo. Não se interessam pelos homens que Importa assinalar que Freud não vê, apesar
estão perto, não por maldade, mas porque não do pessimismo, uma disputa irreconciliável ou
os compreendem”. Ou seja, instala-se a morte mal-estar irremediável entre natureza e cultura.
psíquica ao se negar a face do outro, como intuí- Sua maior preocupação é com o futuro e a pos-
do por Lévinas (1997). sibilidade de dominar a pulsão agressiva. Essa
Zoja (2017) também escreveu sobre a política preocupação, presente em Jung, independe
da paranoia, e talvez a cultura ocidental patriarcal de se considerar uma possível pulsão de mor-
sofra da explosão da consoante “p” em três deri- te como primária ou secundária (em relação a
vadas negativas: paranoia, psicopatia, perversão. eros), pois o efeito destrutivo é real, assim como
O primeiro desconfia e teme, os dois outros se a autodestruição possível.
aproveitam como as infecções oportunistas. Evi- A segunda imediata questão é se a psicolo-
dências de desconfiança e suspeita, que fomen- gia profunda pode contribuir para criar antídotos
tam a intolerância proliferam, na Europa o multicul- da intolerância. A projeção maciça denota uma
turalismo está decrescendo como valor, no Brasil necessidade não reconhecida que provoca ado-
suspeita-se dos vizinhos, as fratrias se fecham em ecimento. Ou seja, mais odiamos quanto mais
ódios e expulsam os traidores, nos Estados Unidos precisamos desse Outro que nos escapa. O re-
a política apoiada no discurso de ódio e a segrega- conhecimento das necessidades latentes – no
ção se concretizaram de modo alarmante. Períodos sentido de pulsante – se petrifica em monobloco.
de transição cultural ativam arquetipicamente pri- Ativar a multiplicidade interna favoreceria com-
mitivismo, confusão, incerteza. preendê-la fora adquirindo maior flexibilidade.
O jornalista Brooks (2016) observa que as cam- Podemos dizer: maior flexibilidade, menos medo.
panhas são impulsionadas por “uma sólida rajada Fomentar a imaginação – sem reduzi-la ao
de desconfiança”, uma enquete mostrou que, em marketing –, estimular a capacidade de imaginar
uma geração, diminuiu drasticamente a confiança o outro, de ativar o bom humor – senso de humor
do norte-americano nas pessoas ao redor – como inexiste no fanático – e difundir esperança, segun-
seria no Brasil? Lá, o declínio de confiança social do Oz. O escritor repete as palavras de Yehuda Ami-
chai (p. 35) “onde temos razão não podem crescer var mudanças o comunicador precisa usar men-
flores”. Propõe prescindir das ilusões de amor e ao sagem de valor (HOGGAN; LITWIN, 2016).
invés fomentar a paz, e procurar soluções de com- Jung (1951/1978) atentava para a importância
promisso e de encontro do outro em algum lugar no da função sentimento que trata de valores para
meio do caminho. Latour (2016), filósofo francês, emitir julgamentos que provenham de um envolvi-
escreve a esse respeito que, ao não compartilhar mento com a dimensão mais plena da realidade.
o terreno comum, pode-se compartilhar a disputa. Pareceriam quimeras, no entanto, estudos
Trata-se de uma tarefa de educação cultural sobre estresse pós-traumático revelam que a
que felizmente se verifica em distintas partes do superação é possível via resgate do reprimido e
mundo. Na França, criou-se um Centro de Des- acionando uma linguagem afetiva. O medo e a
radicalização com trabalho ainda incipiente e atroz desconfiança de um eu traumatizado reco-
incerto. Na África do Sul, findaram o apartheid bram a confiança de viver.
via negociações políticas e, apesar do árduo per- Para que esse processo de resgate de con-
curso inacabado e continuação da intolerância, fianças possa ser pelo menos ensejado – e certa-
encerrou-se uma condição de perversão. mente não atinge os radicais, mas os inseguros
Na contramão do televisivo Big Brother, cine- desejosos de algo diferente –, há de se começar
astas e documentaristas trazem mensagem de pelo reconhecimento da vulnerabilidade e do
tolerância e solidariedade. O documentário isra- medo íntimo, em cada um. Seria um processo
elense de B. Z. Goldberg, Promises (Promessas de de educação da personalidade, de uma “edu-
um novo mundo) de 2001, acompanha sete crian- cação para a consciência mais plena” (JUNG,
ças palestinas e israelenses entre 9 e 13 anos. 1945/1980) educar-se para ter a coragem – con-
Gravado de 1997 a 2000, e entrevistas dois anos tinente do medo – de enfrentar assombrações,
depois. Se houve mudança neles é difícil dizer, a “coragem de ser” anunciada por Tillich (1975),
um dos meninos palestinos fica amargo, a garota a coragem que amaina a estranheza do outro e o
palestina se mostra disposta a diálogos, os gême- torna cúmplice de um partilhar de humanidades
os liberais não têm ódio, mas são levados por seu possíveis, quando as vulnerabilidades deixam
dia a dia. Os dois mais extremistas permanecem de ser vergonha e a exposição crua se desfaz ao
com opiniões polarizadas e enraivecidas, um dos adquirir consciência que a imperfeição é nossa,
garotos palestinos irá para os Estados Unidos, minha e sua, pois não somos deuses, apesar de
com dor, mas para uma nova vida. alçar voos para o infinito. ■
Seriam estratégias esparsas que, reunidas,
poderiam ganhar força. Os psicólogos sociais e Recebido em: 02/08/2017 Revisão: 13/11/2017
linguistas cognitivos demonstram que para efeti-
Abstract
Resumen
Referências
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Inclusão e diversidade
na imagem feminina de Sofia
Resumo Palavras-chave
O presente artigo faz uma interpretação da Sofia,
imagem arquetípica de Sofia como um símbo- Narciso, Bem,
lo de inclusão e tolerância. Para o desenvolvi- Mal, imagem
arquetípica
mento dessa ideia, baseia-se na reflexão de
C. G. Jung em relação ao escrito bíblico Livro
de Jó. Sofia é apresentada como uma força
arquetípica que se contrapõe à dinâmica de
Narciso, tão presente nos dias atuais. O autor
reflete sobre as definições do Bem e do Mal,
ideias que inevitavelmente emergem quando o
tema é inclusão. ■
do vários diálogos com seu inconsciente através componentes românticos e estéticos. O tercei-
dessa técnica. O resultado desse material, como ro estágio é representado por Maria, como uma
todos sabem, tornou-se o que ele chamou Livro personificação da relação celestial. Por último
Vermelho. Foi em uma dessas atividades quando, encontramos Sofia, o eterno feminino e a repre-
questionando-se se o que fazia era arte ou ciência, sentação da Sapientia alquímica, e, como des-
Jung ouviu vozes de seu interior afirmando que seu crito por Jung, “a espiritualização de Helena e
trabalho era arte (JUNG, 1965). Ele atribuiu a essas consequentemente o Eros propriamente dito”
vozes internas um caráter feminino, associando-a, (JUNG, 1988b). Apesar de Jung descrevê-la como
inclusive, a uma antiga paciente que atendera uma sequência, vejo que na prática as vivências
anos antes. A partir deste insight, ele desenvolve a dessas imagens arquetípicas acontecem de for-
ideia de anima como a contraparte feminina no in- ma aleatória. Atualizamo-nas de acordo com as
consciente do homem, afirmando que “o feminino experiências que temos no decorrer da vida e es-
pertence ao homem como sua própria feminilida- sas diferentes imagens vão encontrando simila-
de inconsciente, o que chamei de anima” (JUNG, ridades e se interconectando o tempo todo. Por
1989). Ele descreve a anima como a ponte inter- esse motivo, entendo essa escala como uma es-
mediária e necessária para que o homem entre em piral, na qual uma imagem interfere e existe com
contato com sua totalidade psíquica. Já em outro a outra, propiciando sempre um maior aprofun-
momento ele associa a anima ao Eros materno, damento na psique. Em trabalho anterior (2011),
(JUNG, 1988a) que tem uma numinosidade na vida desenvolvi uma interpretação das características
consciente do homem, trazendo-lhe sensibilidade de cada uma delas mostrando seus dinamismos
ao seu mundo interior, a anima é introjetada como e funções na psique e, apesar de todas serem
o arquétipo que dá o sentido da vida. A partir dessa extremamente instigantes, neste momento pre-
reflexão, e baseando-se nas próprias experiências, tendo me aprofundar na imagem de Sofia que,
Jung finalmente sugere que anima é o arquétipo da a meu ver, representa duas qualidades de extre-
vida (JUNG, 2000a) é a “alma que é o sopro mágico ma importância nos dias atuais, nossa inerente
da vida” (JUNG, 2000a). Hillman (1985) aprofun- capacidade de simbolização e a predisposição
dou-se nessa concepção e desenvolveu a ideia de humana de inclusão e tolerância a tudo que é
anima como intercambiável ao conceito de alma diferente daquilo que consideramos conhecido.
e psique. Para Hillman, um arquétipo, por ser um No entanto, é principalmente essa segunda qua-
conceito de universalidade e transcender as dife- lidade de Sofia, a de inclusão e tolerância, que
renças biológicas e sociais de homens e mulheres, me mobiliza a pensar e escrever sobre o tema.
não pode ser atribuído ou localizado dentro da psi- A figura mítica de Sofia incorpora vários signifi-
que de nenhum dos sexos. Nesse artigo, portanto, cados que são inicialmente encontrados na alqui-
entendo a imagem arquetípica do feminino de for- mia e no Gnosticismo, no livro apócrifo A Sabedo-
ma similar ao que Hillman postulou, como “alma, ria de Salomão. A primeira característica atribuída
como feminilidade interna onde a vida adquire a Sofia é a sua divindade. Ela é considerada a rai-
um significado e o sentido da vida se faz notar” nha celestial. A natureza dessa divindade varia de
(GADOTTI, 2011, p. 131). acordo com as diferentes tradições. Em alguns ca-
Em outro trabalho (JUNG, 1988b), Jung des- sos ela é a passiva companheira de Deus, mas em
creve os quatro estágios do feminino, e os re- outros ela é a rainha que tem seu próprio poder.
laciona à escala erótica inicialmente enunciada Para o gnóstico Simon Magus, Helena representa
pelos antigos gnósticos. Eva, o primeiro estágio, a encarnação de Sofia na terra, portanto através
refere-se a uma relação puramente instintiva e dela Sofia se torna também mortal. Por outro lado,
sexual. Helena, o segundo grau, ainda diz res- ela é a companheira de Deus com quem compar-
peito a uma relação carnal, mas já com alguns tilha intimidade e de quem é conselheira. Apesar
de Sofia ter reencarnado em uma forma humana, de todas as outras qualidades ligadas a
sua natureza nunca deixou de ser divina. Ainda no esse par. (JACOBI, 1959 p. 88).
livro Sabedoria de Salomão, Sofia é considerada
a esposa de Deus, e, embora venha depois dele, Um símbolo sempre designa algo que, por
estava presente mesmo antes da Criação. Para trás do sentido objetivo e consciente, oculta um
os alquimistas, Sofia representava a sabedoria e, sentido invisível e inconsciente. Jacobi, nessa
ao mesmo tempo, a guia das almas. O analista jun- mesma reflexão, cita uma passagem na qual
guiano Raff (2003), através da escuta de sonhos de Oskar Doering explica o símbolo “como uma me-
seus pacientes, observa algo semelhante a essa táfora onde o imperecível e sua manifestação es-
ideia pois conclui que tanto para homens como tão fundidos numa unidade de sentido” (JACOBI,
mulheres, Sofia representa psicologicamente uma 1959), ou poderíamos dizer, onde o arquétipo e
forte imagem de totalidade na psique. sua expressão encontram-se unidos ou onde o
Na tradição cristã, Sofia é uma importante divino e o mortal estão juntos. É o símbolo que,
protagonista no escrito da Bíblia Hebraica Livro ao conter a numinosidade do arquétipo (Jeová),
de Jó. De acordo com Jung (2001), toda a trans- nos possibilita criar imagens que apesar de car-
formação do divino só é possível através da in- regarem em si o fogo do arquétipo, trazem uma
terferência de Sofia, da Sabedoria. Ela é quem expressão de seu significado possível de conta-
intermedeia o difícil conflito entre Jeová e Jó, en- to (Jó). Através do símbolo, as dimensões arque-
tre a divindade e o humano. Para Jung, Jeová é típica e humana da experiência se encontram.
capaz de refletir e rever suas atitudes através do Somos humanos pois somos capazes de simbo-
aconselhamento de Sofia que traz o olhar sobre lizar, de criar imagens sobre a realidade vivida.
a natureza humana, sendo inclusive capaz de se Somos humanos porque psicologizamos, uma
identificar com Jó. Ela é a companheira de Deus vez que a psique é constituída basicamente de
e espírito como ele, mas, ao mesmo tempo, seu imagens. Sob essa perspectiva, entendo que o
trono encontra-se na terra, portanto é também potencial de Sofia tem, portanto, uma importan-
humana. É considerada o Espírito Santo femini- te função de simbolização e humanização.
no e, segundo Jung, “é o espírito amigo dos ho- Mas é na sua capacidade empática que vejo
mens” (JUNG, 2001). Ela traz a reflexão na sua sua maior colaboração pois Sofia também pode
capacidade empática, desenvolvendo um pen- ser compreendida através de sua função con-
samento através da vivência, podendo dessa ciliatória e relacional. Como rainha celestial e
forma, ser considerada uma imagem de Logos li- companheira de Deus, Sofia é a mediatriz que
gado à alma. Ela faz a ponte entre o humano (Jó) intermedeia a relação entre o poderoso divino e
e o divino (Jeová). Como psicopompo, ao mesmo o humano. Ela é a conselheira de Deus, interme-
tempo em que nos humaniza, transporta a psi- diando o diálogo entre Jeová e Jó e sua interferên-
que para uma dimensão arquetípica, divina. cia possibilita um olhar para aquele que tem uma
Seguindo esse raciocínio, penso que Sofia pode natureza distinta de Jeová. O divino distante apro-
ser considerada o potencial que nos possibilita a xima-se do humano, através da natureza dupla de
simbolização, uma vez que é justamente essa a Sofia. Através de Sofia, Jeová é capaz de incluir
função do símbolo, intermediar a relação entre o em sua reflexão o sofrimento de Jó, tornando pos-
arquétipo e a experiência. sível uma aproximação entre dois polos distan-
tes. Nesse sentido, entendo que é a força arquetí-
a bipolaridade do símbolo se baseia na pica de Sofia que nos aproxima do estranho e nos
sua qualidade de unificador dos pares permite tocar o antes intocável. A experiência em
opostos, em primeiro lugar do conscien- Sofia nos tira desse lugar onipotente e narcísico
te e do inconsciente e, por conseqüência, ao qual nos apegamos desesperadamente com
medo de confrontar o diferente. Ela é como uma que habitamos de qualquer invasão daquilo que
anfitriã que recebe diferentes convidados em sua consideramos estranho a nós. No reino de Narciso
moradia. A meu ver, a vivência da imagem arque- o diferente é muitas vezes sinônimo de inimigo.
típica de Sofia é o que nos possibilita incluir o es- Narciso e Sofia são, portanto, de naturezas
trangeiro, o incompreensível e o “estranho” não completamente diferentes. Na mítica grega, Nar-
apenas fora de nós, mas também dentro de nossa ciso não atende aos chamados de Eco, ou nem
psique. Através de sua dinâmica conciliatória So- mesmo a enxerga. Sofia, ao contrário, é sensível ao
fia nos permite incluir as diversidades. O branco sofrimento de Jó e interfere a seu favor. Enquanto
e o negro. O rico e o pobre. O homem e a mulher. Narciso paralisa em frente a sua própria imagem e
O hetero, o homo e o transexual. O cristão e o islâ- semelhança, Sofia se movimenta através de todas
mico. O judeu e o palestino. O bonito e o feio. O eu as possibilidades. Ela vê e abre-se aos opostos.
e o você, e tantas outras múltiplas possibilidades Narciso exclui, mas Sofia inclui. Narciso é indife-
de ser. Sob esta perspectiva, acredito que Sofia rente ao outro, Sofia mobiliza a empatia.
representa, portanto, o potencial arquetípico que Mas a reflexão sobre a capacidade de inclu-
nos possibilita a inclusão e a tolerância diante do são de Sofia traz na sua esteira algumas ques-
outro diferente de nós. tões em relação aos limites dessa tolerância.
Infelizmente, num mundo de egos envaideci- Descrevendo a potencialidade de Sofia dessa
dos e fóbicos, a dinâmica de Sofia nem sempre maneira é fácil imaginarmos que ela não é ape-
está presente. Assim como Narciso na mítica gre- nas a imagem da inclusão, mas pode tornar-se
ga, somos tomados pela ilusão de que o mundo também um símbolo de abuso e anarquia, onde
é composto por reflexos idênticos à| imagem que tudo e todos, sem nenhum impedimento pode-
olhamos diariamente no espelho das nossas vi- rão ser convidados a participar da comunhão
das. Nossa vaidade psíquica se torna a prisão dos homens de bem. Dentro dessa perspectiva,
na qual nossa alma não consegue transitar en- então, seríamos inclusive tolerantes em relação
tre as diferenças, ficando estagnada na pobreza a comportamentos que excluem e discriminam,
da singularidade. Alguns são capazes de sair de portanto Sofia representaria um imenso para-
sua cegueira e olhar para além de sua vaidade, doxo. Mas será que Sofia representa a benevo-
mas, muitas vezes, se deparam com o medo do lência cega e irrestrita? Será que se aceitarmos
encontro. O outro muitas vezes mobiliza em nós Sofia em nossa existência, teremos de incluir
os outros “eus”, que nos é tão difícil confrontar. todas as possibilidades de expressão e vida,
O diferente nos assusta não apenas porque não sejam elas construtivas ou não? Devemos to-
sabemos a receita de como lidar com ele e con- lerar a intolerância alheia e incluir aqueles que
sequentemente controlá-lo, mas também porque nos excluem? Devemos aceitar a submissão e
de alguma forma nos traz novas possibilidades de crueldade? Devemos incluir os fascistas, tortu-
vida que negamos existir. Viver em uma socieda- radores e assassinos? O que chamamos de Mal
de narcisista não significa apenas não olhar para deve ser incluído na mesma proporção daquilo
as diferenças, mas significa também matar uma que chamamos de Bem? Qual o nível de elasti-
parte de nossa própria essência e de novas pos- cidade que podemos ter em relação aos aspec-
sibilidades de sermos e vivermos. Consequente- tos sombrios, pessoais e coletivos? A sombra
mente, não olhar para fora das barreiras do nosso na sua faceta destrutiva deverá ser incluída as-
mundo não nos permite nos alimentar de conte- sim como na sua dimensão criativa? Essas são
údos que de alguma forma nossa alma também questões complexas que não somos capazes de
necessita. No mundo contemporâneo, vivemos responder de forma binária. Não existe o sim e o
numa dinâmica na qual passamos a maior parte não simplesmente, embora nosso maior anseio
do tempo tentando proteger as bolhas narcísicas seja o de finalmente relaxarmos na segurança da
certeza. De acordo com Rowland (2017), a ten- Proponho aqui apenas uma reflexão, já que Sofia
dência humana é de buscar no dualismo respos- como a imagem da inclusão nos leva necessaria-
tas objetivas aos mistérios do Cosmos que nos mente a esse impasse.
afligem. Mas como sabemos nem sempre isso é Jung também não considerou discutir essa re-
possível. Rowland nos lembra que mesmo Jung lação entre o bem e o mal como tarefa da psicolo-
que estruturou sua psicologia a partir da teoria gia, mas sim da filosofia. Apesar disso reforça que
dos opostos acabou movimentando-se para uma para a psicologia “trata-se de questões práticas”
abordagem holística em relação a alguns temas, (JUNG, 2000b). Existem atitudes que para alguns
tais como alquimia e sincronicidade. No que se são positivas e outras não e por isso não nos cabe
refere à discussão do Bem e do Mal, não é di- julgar. Ele defende a liberdade de escolhas que
ferente. Aqui o labirinto se torna realmente um aos olhos do coletivo podem ser vistas como noci-
emaranhado de caminhos sem fim. vas. Apesar de toda essa complexidade e mesmo
Mas independentemente disso, acredito que, relativizando os conceitos de certo e errado, colo-
como todo movimento, a elasticidade de Sofia cando-os a serviço do processo de individuação,
não pode ser infinita. Há de haver um momento Jung é mais categórico quanto a questão do Mal
onde a tensão rompe essa elasticidade, isto é, associado a crueldade e forças destruidoras.
há de haver um limite para essa empatia e to-
lerância. O imenso desafio que se apresenta é o Mal é uma realidade tremenda! E assim
como estabelecer esses limites sem perder o o é na vida de cada indivíduo. Se conside-
próprio sentido da imagem, que é a inclusão e rarmos o princípio do Mal como realmente
tolerância ao diferente. existindo, também podemos chamá-lo de
Cada novo conceito sobre o qual nos debru- “diabo”. Pessoalmente acho difícil aceitar
çamos e que desenvolvemos requer de nós uma como válida a idéia de privatio boni (o mal
atitude ética e de comprometimento. Não somos como sendo apenas a privação do bem).
isentos dessa responsabilidade em relação à (JUNG, 2000b, par. 879)
discussão sobre Sofia. A questão ética que se
levanta a partir do pressuposto de Sofia como A idéia do Summum Bonum que está em Tacia-
aquela que inclui todas as diferenças, amplia-se no – o Bem vem de Deus e o Mal vem do homem
para uma antiga reflexão que muito já interessou (JUNG, 1988a) ou como em Basílio, o Mal como mu-
Jung, e que se refere à natureza do Mal. Como tilação da alma, são desdobramentos da ideia de
entender a dinâmica daquilo que denominamos que seria inconcebível que Deus, o Bem supremo,
de Mal? Para responder a essa questão, precisa- tenha criado o Mal. Para alguns, Deus criou o Bem
mos inicialmente discriminar o que estamos cha- e o menos Bem. Em Santo Agostinho, porém, já se
mando de Bem e de Mal. Tarefa árdua e talvez pode vislumbrar uma consciência da totalidade
digna de Sísifo, pois estaremos provavelmente que esses pares compõem. Para ele “todas as na-
chegando sempre ao mesmo ponto uma vez que turezas são boas, mas não suficientemente boas,
por serem categorias definidas culturalmente para que sua maldade também não seja patente”
apresentam diferentes e contraditórias defini- (JUNG, 1988a). De acordo com Jung, existem coi-
ções. Trata-se de uma extensa reflexão que nos sas que são más e a natureza humana é capaz de
encaminha àquele labirinto de possibilidades e criar maldades sem limites. O Bem e o Mal existem
perguntas, e que muito provavelmente não nos desde sempre como forma autônoma, não derivam
levará a um consenso que nos dê finalmente o um do outro, mas existem como pares opostos e
alívio da convicção. Não é obviamente a propos- portanto a psicologia deve insistir na realidade do
ta desse artigo, pois seria ingênuo tentar des- Mal: “no campo de nossas experiências o bem e o
membrar essa questão em tão poucas palavras. mal são pares contrários, um não existindo sem o
outro” (Jung, 1988a). Dentro dessa perspectiva, a dessa complexidade, vejo que o verdadeiro Mi-
concepção cristã da imago – Dei – é insuficiente, notauro desse labirinto de questionamentos e do
pois exclui o lado escuro e humano de Deus. Cristo qual nos tornamos presas fáceis é o medo. Se por
como um símbolo do Self deve trazer em sua es- um lado banalizamos as crueldades e injustiças,
sência os opostos, Bem e Mal. Uma vez que Deus é incorporando-as ao nosso cotidiano, por outro, a
bondade, em sua totalidade é também expressão exclusão e a intolerância apropriam-se do discur-
de forças malignas, portanto Jung inclui a sombra so dos perigos do Mal transformando-o em escu-
e proclama a existência do Mal. Mas, apesar de do para continuar descartando tudo o que ame-
insistir no fato de que a psicologia deve incluir a aça não apenas a integridade de cada um, mas
realidade do Mal, Jung obviamente também não também a vaidade e ganância. A fobia do Mal fica
nos dá o mapa de como reconhecê-lo e nomeá-lo. a serviço de Narciso e de diferentes interesses,
Continuamos perdidos no labirinto. disseminando a necessidade de nos protegermos
Arendt (1965), em seu livro A Banalidade do na assepsia das nossas bolhas preconceituosas.
Mal, faz também uma profunda discussão sobre Quando não sabemos como lidar com o diferente,
a questão ética do Mal. Arendt chega à conclusão o medo toma a cena. O Mal fica difuso e espalha-
que o mal pode ser banalizado quando em servi- -se por todos os lados transfigurando-se através
ço a ideologias e radicalismos. Na paixão por um de diferentes máscaras. Não sabemos reconhe-
ideal, ou mesmo na patologia, a consciência do cê-lo. Ele está projetado em tudo que está fora
Mal fica contaminada pela intensidade do pathos, de nós e que nos é estranho. Talvez tomados por
cegando aquele que é pego por seu fogo. Na com- um frenesi fóbico, somos iludidos pelos delírios
paixão, facilmente nos identificamos com o outro dessa projeção, já não sabendo o que é real e o
e deixamos no esquecimento a consciência crítica que é fantasia. A projeção do Mal no mundo que
e ética. Na compaixão somos capazes de incluir e nos cerca é paradoxalmente uma proteção para
aceitar as facetas criativas, mas também destruti- que não entremos em contato com o que não sa-
vas do objeto da nossa paixão. Estar com a paixão bemos ainda lidar. Enquanto isso, o chamado da
nos deixa conivente com o objeto de nosso “apai- inclusão se faz todos os dias diante das câmeras
xonamento”, seja qual for sua qualidade. de televisão e páginas da internet. Está na crian-
Podemos intuir portanto, que, independente- ça abandonada das ruas, no homossexual agre-
mente da definição de seu conceito, o Mal com- dido, no negro desrespeitado, nos muçulmanos
põe uma faceta de Sofia. Assim como todo ar- banidos e refugiados. Mas acredito que a faceta
quétipo carrega em si a luz e a sombra, a imagem criativa de Sofia também se multiplica por todos
arquetípica de Sofia também apresenta essa os lados manifestando-se das mais diferentes for-
bipolaridade. A inclusão do Mal, e consequente- mas. A arte, a psicologia e as ciências humanas
mente a sua banalização, pertence à esfera som- em geral vivem uma familiaridade com Sofia, pois
bria de Sofia, que pode transformar a tolerância sem seu olhar empático, não são capazes de exis-
em conivência e a inclusão em anarquia. Limites tir. Quero crer que a imperiosa força arquetípica
tênues e perigosos, mas inevitáveis. da inclusão trazida pela imagem de Sofia deve
O importante, no entanto, é ressaltar que, per- ser capaz de combater o monstro da fobia que se
didos nesse labirinto de reflexões ambivalentes confunde com a vaidade de Narciso. Sofia é uma
e paradoxais, corremos o risco de não entrar em aliada do “bem”, mas não do certo e da perfeição;
contato com a importante elaboração de Sofia no esses são aliados de Narciso. Assim como Jung
mundo contemporâneo. O terreno escorregadio viu em Sofia a possibilidade de Jeová de se tor-
dessa conceituação nos confunde e nos distrai da nar um ser mais íntegro através de sua mediação,
verdadeira internalização da imagem e atuação também a vejo como uma parceira no processo
de sua dinâmica no nosso cotidiano. Mas, apesar de cada um de nós de nos tornarmos mais tole-
rantes e humanos. Sofia nos compromete com o carga coletiva que nela se encontra. Sofia é nossa
outro fora e dentro de nós. Ao confrontarmos e companheira nessa trajetória de inclusão de nos-
introjetarmos nossa sombra pessoal projetada no sa sombra projetado no outro, transformado em
inimigo, somos capazes de aceitá-la como parte vítima de nossa exclusão e intolerância. ■
de nós. O outro deixa de ser alguém a quem te-
mer e passa ser alguém com quem compartilhar. Recebido em: 15\08\2017 Revisão: 13/11/2017
Consequentemente, ao trabalharmos nossa som-
bra pessoal, contribuímos para que a sombra co- 1
Não utilizo a palavra democrática no seu sentido político, mas
letiva seja também elaborada, pois liberamos a sim como alegoria.
Abstract
Resumen
Referências
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Resumo Palavras-chave
Esta pesquisa propõe-se a investigar o senti- Universitários,
do da escolha pelo curso de Psicologia em alunos educação,
na segunda metade da vida, tendo como referen- Psicologia,
meia-idade,
cial teórico a psicologia analítica, proposta por
individuação.
Carl G. Jung. Observando o número significativo
de alunos universitários no curso de Psicologia
entre 40 e 55 anos e compreendendo que nes-
ta etapa do desenvolvimento humano ocorrem
transformações e questionamentos existenciais
profundos, buscamos entender a vivência dess-
es estudantes, os determinantes da escolha,
as expectativas e o projeto de vida. Assim, nos
apoiamos numa pesquisa qualitativa fenome-
nológica realizada com seis alunos de Psicologia
* Psicóloga pela Faculdade Pitágoras de Uberlândia. História
matriculados em uma instituição particular na
pela Universidade Federal de Uberlândia. Especialista em cidade de Uberlândia. Optamos pela entrevista
Gestão de Trabalhos Pedagógicos e Psicanálise e Educação.
Professora de História na rede Municipal e Estadual de Ensino. aberta e, posteriormente, procuramos identificar
E-mail: <marcia.ppsi@gmail.com> as unidades de significado apresentadas. Veri-
** Psicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em
Medicina Social pela USP/Ribeirão Preto. Especialista em Psicologia ficamos que os fatores que influenciaram a es-
Clínica Analítica pela Unicamp/IPAC. Professora do curso de Psico-
logia e da Pós-graduação da Faculdade Pitágoras de Uberlândia.
colha pelo curso de Psicologia correlacionam-se
E-mail: <sipsineves@gmail.com> com o processo de individuação. ■
antigo e/ou ampliar o sentindo da vida, abrindo Este momento é marcado por “inquietações”
caminhos para outras possibilidades, a fim de relacionadas ao processo de desenvolvimento
não “viver o entardecer da vida de acordo com o interno que se confronta com as conquistas al-
programa de seu amanhecer” Jung (2000, p. 166). cançadas em fases anteriores.
Além disso, Quishida e Casado (2009) asse- Nesta fase, são comuns questionamentos de
guram que na meia-idade o indivíduo se volta dimensões existenciais que demandam respostas.
para aspectos que antes estavam inconscientes, A busca de sentido da vida e a ressignificação de
tais como desejos que não puderam ser realiza- valores são questões que marcam o início desse
dos anteriormente. A energia psíquica, anterior- processo, no qual costuma mobilizar uma “crise de
mente aplicada a adaptações ao ambiente exter- meia-idade”. Isso que Jung vai denominar de me-
no, tais como o exercício profissional, família e tanoia, referindo-se ao momento de grandes trans-
participação na comunidade, passa a se centrar formações e mudanças que leva o indivíduo adulto
na interioridade visando a autorrealização. a “olhar para dentro” e reconhecer que “aquilo”
Como parte desta busca por um significado e que não foi vivido não poderá mais sê-lo, pois o
realização pessoal e profissional, e/ou o resgate tempo não retorna (SCHWARZ, 2008).
de um sonho, encontram-se os cursos de gradu- O meio da vida, se é que se sabe o que é o
ação e, dentre estes, o curso de Psicologia. meio, está cheia de paradoxos. É a fase em que
Este estudo se justifica pela mudança de in- alguns indivíduos vivenciam turbulências emo-
teresses que os indivíduos nesta faixa etária têm cionais, causada por situações de dúvidas e an-
apresentado em relação ao trabalho e a carreira. siedades, ao colocar em xeque os valores que
Apesar de a meia-idade ser uma fase marcada serviram de direcionamento e sustentação à sua
por transformações no que se refere ao trabalho vida até o momento; ao mesmo tempo, criam-se
e carreira, verifica-se ainda uma carência em pes- possibilidades para que novas oportunidades
quisas na área do desenvolvimento humano nes- possam emergir, mudando a direção do percurso.
sa faixa etária. Muitos buscam, nesse momento, De acordo com Papalia et al. (2010), o termo
uma segunda formação acadêmica, ou a primeira, meia-idade é um constructo social, surgido no iní-
na busca de ampliação das possibilidades profis- cio do século XX, com significado peculiar para cada
sionais. Esse trabalho buscou investigar o sentido cultura. Em termos cronológicos, pode ser definido
da escolha pelo curso de Psicologia, em alunos pelo período etário entre 40 e 65 anos, marcado por
na segunda metade da vida. O caminho escolhido diversas mudanças físicas e psicossociais.
para desenvolver o presente estudo foi a pesqui- As transformações biológicas nessa fase evi-
sa qualitativa fenomenológica. denciam o processo natural do envelhecimento
Para tanto, optamos pela entrevista aberta do ser, porém, em nossa cultura, envelhecer
tendo como pergunta disparadora: “Fale-nos so- está associado a uma representação negativa
bre a sua vivência como estudante de Psicolo- de diminuição de produtividade e decadência.
gia na fase atual da sua vida”. Os depoimentos Segundo Hillmann, o “pensar” ocidental con-
foram gravados e transcritos, e, posteriormente, temporâneo sobre a duração da vida “tem sido
procurou-se identificar unidades de significado emboscado num ‘idadeísmo’ depreciativo – um
apresentadas em forma de títulos. conceito de classificação que relega todos os
idosos a uma categoria com limites definidos”
2. “Não vou me adaptar”: (HILLMANN, 2001).
construindo um novo caminho Os problemas emocionais experienciados
O estranhamento de si e o sentimento de não nesta fase da vida, ou seja, relacionados à cri-
ter percebido o tempo passar atravessam o su- se da meia-idade, dito comumente, têm sido
jeito que transita pela segunda metade da vida. largamente estudados pelas ciências psicoló-
gicas, devido ao significado atribuído ao enve- ses, desenvolvendo a capacidade para tolerar
lhecimento. Geralmente tem-se a perspectiva as ambiguidades que existem no nosso mundo
de que o indivíduo entra num período crítico da interior e no mundo que existimos.
vida, marcado pelas ideias de declínio e finitude. A autora descreve ao final do texto que reen-
Nesse momento o sujeito se vê diante de duas contra a sua criança perdida, essa é um “menino
cruciais possibilidades: viver de forma inautên- lobo grunhindo”. Em uma perspectiva da Psi-
tica, negando as marcas de sua existência, ou cologia Simbólica, podemos considerar que a
assumir a responsabilidade pelo modo com que criança citada no poema, é a representação da
construiu sua existência, vivendo a angústia ge- criança primitiva arquetípica, protegida no plano
rada por suas escolhas. Adélia Prado, no poema da inconsciência, que “clama” por ser reconhe-
Salve Rainha, reflete sobre a angústia do enve- cida e integrada à consciência. Dessa forma, as
lhecimento e a consequente finitude da vida: características de Sênex (velho) e Puer (infan-
til) deverão ser integrados. Conforme propõe
A melancolia ameaça [...] Hillmann, a alma não é nem jovem nem velha,
Chorando seus casamentos é ambos. Sênex e Puer são polaridades comple-
vejo mulheres que conheci na infância mentares de um mesmo arquétipo: “[...] atrás de
como crianças felizes. tudo isso há uma divisão arquetípica entre puer
A vida é assim, Senhor? e senex, começo e fim, temporalidade e eterni-
Desabam mesmo dade” (HILLMANN, 1998, p. 21).
pele do rosto e sonhos? Na perspectiva junguiana, um ganho da me-
Não é o que anuncio tanoia é a possibilidade de ampliação da cons-
- já vejo o fim destas linhas, ciência de si mesmo a partir da integração das
isto é um poema - tem ritmo, experiências vividas.
obedece à ordem mais alta Partindo de sua própria experiência, Jung (2001)
e parece me ignorar. conclui que a segunda metade da vida seria o mo-
Me acontecem maus sonhos: mento de desenvolver os aspectos que permane-
A casa tem uma porta, cem subdesenvolvidos na primeira fase da vida
Casa-prisão, paredes altas, adulta, levando a uma grande transformação da
cômodos estreitos. personalidade, através do contato do ego com os
Chamo pelo homem, ele já se foi, aspectos irracionais e sombrios da psique. A per-
quem se volta é um negro, sonalidade está destinada à individuação, assim
indiferente. como o corpo físico a envelhecer, como elucida:
A criança que se perdera,
ou deixei perder-se de mim, A individuação é uma tendência natural
é um menino-lobo, de desenvolvimento psíquico, direciona-
eu a encontro grunhindo, da pelo Self, centro unificador da perso-
com um casal velho de negros [...] nalidade [...] Individuação, portanto, é um
(Prado, 2007, p. 13) processo de diferenciação, tendo por meta
o desenvolvimento da personalidade indi-
O poema destaca a dor do não vivido, as per- vidual. Esse processo inicia-se na infância
das, a “queda” da pele e dos sonhos e a desa- e tornar-se-á evidente a partir da segunda
celeração da vida, que agora segue o ritmo mais metade da vida do homem (2001, p. 267).
lento, obrigando o sujeito, na lentidão de seus
passos, a encontrar um sentido profundo para Silveira (1997), ao se referir ao processo de
sua vida e a abandonar antigos valores e interes- individuação, enquanto expressão do desen-
volvimento humano, que marca, sobretudo, a 3. “Uma vida não basta apenas ser
segunda metade da vida, define: “O caminho vivida. Precisa também ser sonhada”
que leva o indivíduo a confrontar o inconsciente (QUINTANA, 2003)
e consciente pode ser longo, pois não se trata A contemporaneidade, tecnicamente mais
de um ‘desenvolvimento linear, mas de um mo- eficiente, movida pelo incentivo ao individu-
vimento circunvolução, para chegar a um novo alismo e por um discurso consumista, exibe
centro psíquico - o Self’” (SILVEIRA, 1997, p. 77). sua fragilidade quando não consegue acolher
Jung alerta que esta é uma tarefa complexa e exi- integralmente o homem em sua condição de
gente; um processo contínuo e não um objetivo desamparo. A valorização cultural da jovia-
a ser alcançado. lidade e da beleza estética e a negação da
No início da vida, o indivíduo se encontra finitude e do envelhecimento surgem alicer-
num estado de totalidade indiferenciada; pos- çadas no materialismo, no qual o reconheci-
teriormente através das vivências integradas mento social passa pelo consumismo e pela
na dinâmica psíquica – consciente e incons- acumulação de bens. Logo, “envelhecer se
ciente, a personalidade se desenvolve rumo a tornou vergonhoso, tido como desleixo, fa-
diferenciação e unidade. As realizações obtidas zendo com que o indivíduo que vive essa
na primeira metade da vida estão relacionadas transição da vida adulta para a velhice tenha
às exigências impulsionadoras do ego, que im- um sentido de morte simbólica pela ameaça
pelem o sujeito a se ater às necessidades ex- ao sentido de pertença à sociedade” (FÄR-
ternas, assumindo papéis sociais produtivos e BER, 2012, p. 14). Dessa forma, a crise dessa
socialmente aceitos. fase é demarcada por uma negação social do
Na segunda metade da vida, o indivíduo ini- processo de envelhecimento.
cia um novo processo de desenvolvimento inter- Os objetos e valores com os quais o homem
no em direção à integração e ao desenvolvimento contemporâneo se relaciona são descartáveis e
subjetivo, não sendo mais a sua existência regi- frágeis em significados. Assim, este padece pela
da pelos princípios de outrora. Nesse momento, racionalidade e pela perda da criatividade sim-
o indivíduo é convidado a atender ao clamor de bólica. Essa forma superficial de se relacionar é,
sua vida interior, questionando o significado da por vezes, traduzida por perturbações psíquicas
vida, indagando-se se não haveria algo a mais a e desequilíbrios orgânicos.
ser conquistado: Jung (2008), ao escrever sobre “o homem e
seus símbolos”, alerta que o homem “racional”,
[...] Para o jovem constitui quase um peca- no seu processo de civilização, apartou a consci-
do ou, pelo menos, um perigo ocupar-se ência “das camadas instintivas mais profundas
demasiado consigo próprio, mas para o da psique humana, e mesmo das bases somá-
homem que envelhece é um dever e uma ticas do fenômeno psíquico” (p. 60). Essa cisão
necessidade dedicar atenção séria ao seu acarreta em prejuízos significativos para o pro-
próprio Si-mesmo. Depois de haver es- cesso de individuação.
banjado luz e calor sobre o mundo, o Sol Vale ressaltar que a individuação, enquanto
recolhe os seus raios para iluminar-se a si potencial humano, não ocorre passivamente,
mesmo (JUNG, 2000, p. 167). pois o desenvolvimento do indivíduo se dá no
plano simbólico, e como tal, não há garantia do
Porém, o indivíduo terá como desafio con- que vai acontecer. A luta por tentar romper as
frontar-se com as exigências de uma sociedade barreiras das imposições sociais pode gerar um
frenética e massificante, em contraponto as suas descontentamento pessoal. A pessoa situa-se,
necessidades internas. desta forma, diante de um problema paradoxal,
por um lado, inserida numa sociedade que pre- experiência simbólica de passagem e renas-
coniza uma cultura de consumo massificada, cimento para outro lugar de posicionamento
onde se consome tudo, desde objetos à ideolo- existencial.
gia, sugerindo uma falsa identificação entre indi-
víduo e sociedade, enquanto, por outro lado, há 4. Método
o desejo em diferenciar-se. Neste estudo, optou-se pelo método qua-
Como bem observou Jung, o processo de litativo de coleta de dados numa perspectiva
individuação é um caminho de diferenciação fenomenológica, pois atenderia melhor ao ob-
psíquica, a partir da integração dos conteúdos jetivo da pesquisa, em virtude de apresentar
inconscientes da psique. Logo, o indivíduo é consistência e legitimidade em estudos cien-
inquirido a entrar em contato com os velhos tíficos que enfatizam a experiência vivida do
padrões, levando-o a olhar para dentro, em di- homem, principalmente quando não é possível
reção ao sentido da própria existência. Nesse explicá-la por uma relação de causa e efeito ou
movimento se torna imperativo assumir a res- conceitos previamente estabelecidos (OLIVEI-
ponsabilidade por suas escolhas que frequen- RA; CUNHA, 2013).
temente podem levar à mudanças na vida, re- Trata-se de um estudo exploratório que
estruturando o modo de estar no mundo, os utilizou depoimentos gravados e transcritos
valores, as prioridades, a carreira, os relaciona- posteriormente, com a finalidade de se obter
mentos, enfim, tudo que não oferece significa- uma diversidade de percepções sobre o tema.
do à existência. Segundo a literatura disponível, Oliveira &
Entretanto, as escolhas exigem, o reconheci- Cunha (2008); Triviños (1987); Minayo (1993),
mento das imagens arquetípicas inconscientes as pesquisas qualitativas de caráter explora-
como potenciais a serem atualizadas, através tório estimulam os entrevistados a pensar,
da experiência individual. escrever e falar livremente sobre algum tema,
Na segunda metade da vida, surge o impe- objeto ou conceito. Elas fazem emergir aspec-
rativo de romper com a tirania egoica, pois o tos subjetivos e atingem motivações não ex-
indivíduo será despertado por um desejo mais plícitas, ou mesmo não conscientes, de forma
intenso de se tornar uno e indiviso. Faz-se im- espontânea. Tal metodologia mostrou-se coe-
portante entender, conforme propõe Hollis rente com uma interpretação sustentada teo-
(2011) que neste estágio da vida é preciso ricamente pela Psicologia analítica proposta
aprender morrer simbolicamente para não mor- inicialmente pelas autoras.
rer em plena vida. A pesquisa foi realizada no primeiro semestre
A pessoa na meia-idade, atendendo às exi- do ano de 2012, com alunos do curso de Psicolo-
gências externas e internas, vivencia a expe- gia, em uma faculdade particular localizada em
riência arquetípica de morte e renascimento. Uberlândia, Minas Gerais.
Esta fase demanda vivências ritualísticas de Primeiramente, foi feito um levantamento
passagem e iniciação, pois insere o indivíduo dos alunos que se encontravam na meia-ida-
em uma nova realidade psíquica, mais ampla, de, entre 40 e 60 anos, aproximadamente.
que podem ser alcançados através de “rituais” Após esse levantamento (Quadro 1), foi feito o
de morte e renascimento, tão importantes e convite de participação na pesquisa e realiza-
necessários nos momentos de transição que da uma explicação sobre esta, a fim de conse-
encontramos pela vida, por se tratar de uma ne- guir voluntários que se dispusessem a partici-
cessidade psíquica (GIMENEZ, 2009). par da coleta de dados.
O ingresso na universidade após os 40 Foi escolhida a entrevista aberta para cole-
anos é uma oportunidade de vivência de rica tar dados, por seu caráter de valorizar a descri-
Nº de Alunos(as) 8
Feminino Masculino
Sexo
5 3
Casado(a) Divorciado(a) Solteiro(a)
Estado Civil
4 2 2
Nível superior Primeira formação superior
Escolaridade Inicial
5 3
Faixa Etária 40 a 57 anos
ção verbal dos entrevistados para a obtenção Feitas as transcrições, iniciou-se a organi-
de informações com relação às experiências zação dos dados e o procedimento de análise
que estão expostas. Para tanto, foi-lhes dirigi- destes, seguindo a trajetória fenomenológica, a
da uma questão norteadora: “Fale-nos sobre a descrição, a redução e a compreensão.
sua vivência como estudante de Psicologia na Seguindo o critério de sigilo dos colaboradores
fase atual da sua vida”. Os depoimentos fo- na pesquisa, seus nomes foram preservados, sen-
ram gravados e transcritos posteriormente, e do utilizados nomes fictícios para identificar o en-
procurou-se identificar unidades de significa- trevistado quando necessário. Tendo como critério
do, sendo buscadas suas convergências, diver- para identificação o período que está cursando e a
gências e idiossincrasias. idade, do menor para o maior (Quadro 2).
com a passagem do tempo e o exercício da pro- A maioria dos entrevistados revela o que es-
fissão; 3. A busca pelo curso por valores altru- tudos apontam sobre a questão de mudança de
ístas; 4. A crise de transição: a angústia com a carreira na segunda metade da vida (Jung, 2012);
passagem do tempo versus o aumento da expec- (Hollis, 2011), que está relacionada, muitas vezes,
tativa de vida; 5. As limitações cognitivas impos- ao confronto crítico e criativo com os eventos que
tas pela idade versus ganhos com a experiência. impulsionaram a primeira escolha. Movida por
uma energia criativa, vem a compreensão dos mo-
5.1 Crise criativa: a formação em tivos e significados de ter deixado para trás aqui-
Psicologia enquanto sentido e lo que realmente gostaria de fazer. Jung (2000,
significado existencial p. 165) em sua obra “A natureza da psique” diz
O tema de convergência, que primeiro se que “[...] o vinho da juventude nem sempre se cla-
destacou, refere-se a uma crise criativa e de uma rifica com o avançar dos anos; muitas vezes até
escolha permeada por investimento afetivo. Para mesmo se turva”. Isso certifica de que o indivíduo
os entrevistados, a ideia de cursar Psicologia faz
traz consigo um impulso para a individuação, e
parte de um projeto de vida, presente em suas
todos nós teremos de lidar com isso em nossas vi-
vidas desde a juventude, quando estes tiveram
das, tendo de escolher em permanecer nas situa-
que optar por outras profissões que lhes propor-
ções já conhecidas e confortáveis, ou enfrentar os
cionariam meios de sobrevivência:
riscos de experienciar algo novo ainda não vivido.
tenham tempo de se solidificar em costumes, tais como status e dinheiro; preocupação com as
hábitos e verdades (BAUMAN, 2005). necessidades alheias mais do que com ambições
O imediatismo do dia a dia não possibilita pessoais e apreciação empática. Um estudo reali-
contemplar o que foi realizado, O tempo, nesse zado com 146 alunos no primeiro ano do curso de
sentido, emerge como elemento coercitivo, po- Psicologia, em duas universidades do estado do
dendo provocar sentimentos de angústia e in- Rio Grande do Sul, procurou interpretar, o perfil
satisfação. Conforme reflexão de Pedro: “[...] A do estudante de Psicologia. Os resultados apre-
gente pensa muito quando formar o que vai fazer sentaram como motivos da escolha da Psicologia
como vai fazer... é a questão do tempo. Quando como profissão: o desejo de ajudar, a busca de
eu estiver formando, estarei com 50 anos”. crescimento pessoal, o fascínio pelo conhecimen-
Embora os entrevistados revelem uma pre- to psicológico e a busca de competência interpes-
ocupação com o tempo cronológico, externo soal (MAGALHÃES et al., 2001).
e sequencial, como se este fosse seu algoz, A fala dos entrevistados nos asseguram isso,
principalmente, quanto ao exercício da profis- o que nos levou à terceira unidade de significa-
são, existe um desejo de poder gozar do tem- do: a busca pelo curso por valores altruístas, po-
po presente, pois ele aponta possibilidades dendo ser observada, por exemplo, no discursos
de realização de projetos, de produção, como de Elza e Arnaldo:
estabelece Clara: “Como a gente tem a questão
da idade né?... a gente não tem muito tempo... [...] Eu trabalhei como voluntária durante
ainda tem a questão da casa, dos filhos, e as muito tempo [...] esses projetos a nível
outras ocupações, para mim é... é muito caro [sic] de pessoa voluntária, como psicólo-
estar aqui... [referindo-se à faculdade].”. A fala ga voluntária, esse é um projeto que eu
da entrevistada afirma a ideia de um tempo quero fazer, mas não é um projeto que eu
criativo, dando-se conta de que a grande am-
tenho vaidade de estar falando (Elza).
bição do momento é a própria realização. Na
segunda metade da vida, a energia psíquica [...] pretendo também atuar em alguns seg-
constela a regência de Kairós, o tempo irregu- mentos sociais, uma ONG talvez, para levar
lar, interno, qualitativo e oportuno, marcado a Psicologia mesmo para aqueles que não
pela fluidez e criatividade. tenham condições necessárias para fazer
uma consulta particular (Arnaldo).
5.3 A busca pelo curso por
valores altruístas Percebe-se que a escolha pelo curso de Psi-
A Psicologia se caracteriza como um tipo de cologia, para os entrevistados, está relacionada
profissão voltada às questões sociais, isto é, a um engajamento social e uma relativa despre-
possui aspectos de altruísmo, cuidado, confian- ocupação com recompensas financeiras. Impor-
ça e cooperação. Logo, podemos supor que se tante destacar que esses indivíduos já possuem
trata de um curso que atrairá indivíduos que se outras fontes de renda e, possivelmente, por esse
identifiquem com esses aspectos. motivo, o retorno financeiro não seja prioridade.
Várias pesquisas, como Bedford, Bed- A ambição, para eles, nesse momento, está as-
ford, 1985; Holmstrom, 1975; Kadushin, 1976; sociada a realizações internas mais profundas.
Polansky, 1959; Rosenberg, 1957; Rutheford, A possibilidade de mudança social relaciona-se a
1977 (apud Magalhães et al., 2001), procuraram atitudes pessoais. Nesse sentido, o investimento
demonstrar isso, ao concluir que pessoas envolvi- em uma carreira profissional como a Psicologia
das em profissões de ajuda possuem como carac- implica um processo de tomada de consciência e
terísticas a desatenção às recompensas externas, transformações pessoais constantes.
5.4 A crise de transição: a angústia envelhecer e aproveitar melhor esta fase caracte-
com a passagem do tempo versus o rizada por momentos valiosos de introspecção.
aumento da expectativa de vida/As lim- Cabe considerar que cada fase da vida tem suas
itações cognitivas impostas pela idade restrições e prazeres: quanto maior a consciên-
versus ganhos com a experiência cia de si mesmo, melhor o indivíduo vivenciará a
Os participantes dessa pesquisa apontaram etapa da vida em que se encontra. Como bem as-
que a vivência como estudante de Psicologia, severa Jung (2000, p. 416), “não podemos viver a
tarde de nossa vida segundo o programa da ma-
nesta fase da vida, é uma atividade prazerosa,
nhã, porque aquilo que era muito na manhã será
e eles se revelaram muito motivados. Contudo,
pouco na tarde, e o que era verdadeiro de manhã
a queixa mais comum se refere a um sentimento
será falso no entardecer”. As falas dos entrevis-
de letargia, sendo a experiência de vida um faci-
tados revelam que o processo de individuação
litador do aprendizado, como podemos conferir:
vivenciado, quando percebem que o tempo pre-
sente é o momento oportuno para apropriarem
A gente pensa muito quando formar, o que
da sua própria história, integrar as experiências
vai fazer [...]. Também tem a questão que a
anteriores e transformar as exigências externas e
gente fica um pouco mais atrás dos colegas
os complexos emocionais em competências e re-
mais jovens. [...] As teorias, as abordagens,
alizações pessoais. Tal movimento relaciona-se
o curso... é... a gente vai direcionando a
ao abandono da fantasia de imortalidade e à
maneira de pensar, e ver as pessoas de
onipotência presente nessa fase da vida. O reco-
forma diferente, pensar de forma diferen-
nhecimento das próprias limitações, que muitas
te... Está sendo muito bom para mim. Mas
vezes é demarcado por crises e sentimentos de
a experiência ajudou um pouco... é muito desilusão, pode ser mobilizador de “renasci-
bom... (Pedro) mentos” por meio de novos projetos de vida.
pica, como parte da condição humana capaz de Os possíveis ganhos de maturidade deste
mobilizar os indivíduos a buscarem transforma- estágio da vida deverão então ser considera-
ções profundas e significativas. dos como marcas fundamentais do processo
Por meio deste estudo, procurou-se explorar de individuação.
os motivos que levaram pessoas, que se encon- O que este trabalho desvela é apenas
tram na segunda metade da vida, a escolher o uma pequena faceta do fenômeno estudado,
curso de Psicologia. Para tanto, propôs-se uma que foi analisado e compreendido a partir de
revisão bibliográfica que contemplasse a esco- uma atitude fenomenológica. Sob a perspec-
lha de carreira, a meia-idade e as discussões em tiva da compreensão sobre a segunda fase
torno dessas temáticas numa perspectiva da Psi- da vida, este estudo colabora para elucidar
cologia Junguiana. sobre o desenvolvimento dessa etapa, como
Verificou-se, por meio das entrevistas realiza- também compreender motivos subjetivos
das, quais os fatores que influenciaram na esco- da escolha do curso de Psicologia. Torna-se
lha pelo curso de Psicologia e quais deles foram essencial que os pesquisadores do desen-
mais relevantes, preponderando questões de volvimento humano se empenhem na cons-
cunho existencial. Esses indivíduos esperam tri- trução de conhecimentos e práticas contex-
lhar uma nova trajetória de vida profissional, mo- tualizadas que possam ajudar os indivíduos
bilizados pela necessidade de se apropriarem do a compreenderem os conflitos vivenciados e
que realmente são e integrarem experiências an- terem suporte para tomar decisões de manei-
teriores com novas aprendizagens. Eles relatam ra consciente.
que a aprendizagem acadêmica nesse momento Há muito o que se pesquisar neste campo.
da vida relaciona-se à busca de um novo senti- Sugere-se, por exemplo, em estudos futuros,
do, atendendo a exigências mais internas e in- verificar o contexto de atuação dessas pessoas
dividuais. Dessa forma, a escolha, mostra-se em após terem concluído o curso e seu espaço de
consonância com o processo de individuação, atuação. Enfim, o tema é instigante e convida a
proposto por Jung, como um movimento natural reflexões e debates. ■
e espontâneo do desenvolvimento psíquico e di-
recionado pelo Self, centro unificador da psique. Recebido em: 15/08/2017 Revisão: 13/11/2017
Abstract
Resumen
Referências
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Resumo Palavras-chave
Este ensaio propõe a análise simbólica da Relação primal,
obra cinematográfica “O quarto de Jack”, en- desenvolvi-
tendendo-a como uma alegoria para explicitar mento infantil,
psicologia
a relação primal entre mãe e bebê, descrita por
analítica.
Neumann. Elementos dessa história, tais como
a inconsciência do mundo externo pela criança
e o período de isolamento em que se mantém
circunscrito a seu mundo privado, semelhante a
um útero psíquico, característico desta fase, le-
varam-nos a concluir que ela pode ser considera-
da um excelente representante simbólico desta
teoria, tanto pelos aspectos visuais e linguísti-
cos quanto pelo desenvolvimento cronológico. ■
O quarto de Jack: tecendo símbolos da relação primal à luz da teoria de Erich Neumann
vida lá fora. Explica que fora do quarto ela era mesmo se aplica à unidade da vida no interior
uma menina chamada Joy, que tinha pais e mo- do uroboros, que, tal como o pântano, gera,
rava numa casa com eles. Neste trecho podemos dá à luz e mata no círculo sem fim do eterno
aludir a relação do quarto com o uroboros, por- estar-enterrado-dentro-de si-mesmo”.
que fora dele está o ego e as personas da mãe, e Ao saber da existência das duas realidades,
dentro está o arquétipo da Grande Mãe. uma interna e outra externa, Jack se angustia e
Na relação primal é o arquétipo da Grande começa a chorar. Neumann (1995) diz ainda que
Mãe, juntamente com o Self da mãe, que auxi- a primeira sensação que o ego vivencia é a da an-
liam o filho a criar um ego. Dentro do uroboros gústia pela experiência conflituosa entre as po-
está o filho, mas não o seu ego, e sim o seu Self. laridades (dentro e fora, eu e tu, Self e persona).
Conforme Neumann (1995), o Self da mãe esti- Essa angústia é o cerne de todas as aflições da
mula o Self do filho para que este gere um ego de vida adulta, caracterizada pela incapacidade do
dentro de si mesmo. É justamente isso que ve- ego de se identificar por completo com nenhuma
mos no filme, a mãe de Jack preparando-o para dessas polaridades. Se o uroboros representava
que ele possa entrar em contato com o mundo então a ausência de polaridades, o ego é repre-
externo, já que é a consciência e a relação com o sentado por esse eterno conflito e incapacidade
mundo que caracterizam o ego. de conciliação entre as polaridades.
É interessante ainda pensar na imagem do Na cena seguinte, Jack estava dormindo
buraco em que a Alice cai, trazida pelo filme, quando o abajur acende sozinho, bem acima
porque, segundo Neumann (2013, p. 31), esse da sua cabeça, e permanece aceso, então ele
útero psíquico, que guarda o filho, muitas vezes repousa sua mão sobre a luz do abajur. Em com-
é representado por figuras alegóricas como bu- paração com a primeira cena do filme em que o
racos e cavernas: “Todas as coisas profundas – abajur fica piscando (onde a luz da consciência
abismo, vale, solo, assim como o mar e o fundo do ego ainda está oscilando) aqui a luz acende e
do mar, fontes lagos e poços, a terra, o mundo permanece acesa. Ou seja, o ego acordou. Agora
interior, a caverna, a casa e a cidade – são partes que há a consciência do dentro e do fora, o ego
desse arquétipo”. está aceso. Podemos dizer também que a luz do
Isso sem falar que a própria estrutura física mundo externo está adentrando a caverna do
do quarto remete muito à ideia de uma caver- uroboros e alcançando o ego.
na, tanto pelo fato de ser extremamente escuro,
quanto pela maneira como a luz entra no local, 3. A subida do ego
através de uma claraboia no teto. Neumann (1995, 2013) discorre sobre o fato
Mas, “Eu quero ter quatro anos de novo...”, de que, à medida que o ego vai se desenvolven-
é o que Jack diz à sua mãe ao descobrir a exis- do e inicia sua partida rumo a saída da caverna,
tência de um mundo real fora do quarto. Ele preparando-se para se desligar completamente
chora, resiste e diz que não quer acreditar nes- da relação primal, o arquétipo da mãe, por con-
se “mundo fedido”. Sua reação exprime exata- sequência, também se desligará desta relação.
mente o que Neumann (1995) diz ser a natural Então, enquanto o ego da criança está nascen-
atitude do Self do filho diante da eminente se- do para o mundo externo, o arquétipo da mãe
paração do Self materno. Essa resistência por está morrendo para a relação primal. Essa di-
parte do Self é quase que um instinto de au- nâmica também acontece no filme, ainda nessa
topreservação, numa tentativa de se manter cena em que o abajur fica aceso, a mãe de Jack
conectado à mãe, nesse uroboros. Neumann não encontra forças para se levantar e passa o
(2013, p. 47) traz a analogia do pântano para dia todo deitada, e Jack fala: “você é a melhor
representar o poder dessa conexão primal: “O em ler, contar histórias e em várias outras coi-
sas, exceto quando está em um dia de morta”. meira fase da infância, a tendência que o Self tem
Ou seja, na mesma cena em que vemos o ego para relacionar-se com um ‘tu’ é ‘dada’, e do nos-
de Jack acendendo (como o abajur) e nascendo, so ponto de vista, externalizada, pela mãe”.
vemos o arquétipo da mãe morrendo. Neumann No filme encontramos justamente isso, a
descreve como necessário ao nascimento do ego mãe de Jack não só o torna consciente do mun-
para o mundo consciente e masculino (fora do do externo, como faz com que ele saia do quarto
mundo inconsciente materno) a morte simbólica e ainda diz que a primeira coisa que ele preci-
da mãe, ou, em outras palavras, a subjugação do sará fazer é se comunicar com alguém e levar a
inconsciente pelo consciente: mensagem de que existe esse quarto, essa pri-
são. A função de Jack ao sair era então levar a
Umas das partes do mito da luta do herói mensagem sobre a existência do quarto para o
com o dragão é a conquista ou o assassi- mundo externo, ou seja, a função do ego é esta-
nato da mãe. A masculinização bem suce- belecer relação e comunicação entre o mundo
dida do ego encontra expressão em sua interior e o exterior. Apavorado diante da ideia
combatividade e prontidão para expor-se de ter que deixar a sua mãe, Jack se nega a sair
ao perigo simbolizado pelo dragão. Foi a do quarto. Para minimizar a angústia do filho,
identificação do ego com o lado masculi- Joy diz que uma parte dela irá junto com ele,
no da consciência que primeiro estabele- dando-lhe um dos seus dentes. Jack o coloca
ceu a divisão psíquica em opostos, o que dentro de sua boca e, agora, pelo pedaço de sua
permite que o ego enfrente o dragão do in- mãe que ele tem dentro de si, está pronto para
consciente. Essa luta é representada como sair. Neste trecho, a simbologia percebida re-
penetração na caverna, descida ao mundo presenta outra característica da relação-primal
inferior, ser engolido, ou enfim, incesto descrita por Neumann:
com a mãe. (NEUMANN, 2013, p. 122).
Ao longo do desenvolvimento da criança, o
Mais surpreendente ainda é encontrar uma Self encarnado na mãe da relação primal,
cena em que, depois de sair do quarto, Jack brinca ou, para formulá-lo de maneira mais caute-
que está ‘sendo engolido para dentro do abismo’. losa, o aspecto funcional do Self encarna-
Podemos considerar que essa brincadeira se tra- do na mãe, que na relação primal torna-se
ta de uma re-elaboração simbólica da luta e con- experiência formativa para a criança, deve
quista sobre o inconsciente materno. gradualmente “deslocar-se” para o interior
O Self materno não apenas estimulará o Self da criança. (NEUMANN, 1995, p. 13).
do filho a gerar um centro da consciência, o ego,
como “ensinará” que a função desse ego deverá Além do dente, sua mãe diz que não preci-
ser mediar a relação entre o mundo interno e o ex- sa ter medo porque ela será como uma voz em
terno. Assim, o Self materno mostrará para o ego sua cabeça lhe dizendo o que precisa fazer, ilu-
do filho que este deve estabelecer relação com minando a ideia que nosso Self frequentemente
um “tu”. O próprio ego só se estabelece como tal se expressa através de uma “voz em nossa cabe-
a partir do momento em que ele concebe a reali- ça”, principalmente em nossos sonhos. Jung fala
dade de um “tu” e se torna apto a se relacionar sobre o caráter dessa voz:
com ele. Em outras palavras, podemos dizer que
a primeira ação do ego após seu nascimento, O que a voz diz, possui, de fato, um cará-
deverá ser a de estabelecer relação com o “tu”, ter de verdade irrefutável, de modo que é
e quem estimulará essa dinâmica será o Self da quase impossível não reconhecê-la como
mãe. Segundo Neumann (1995, pág. 14), “Na pri- uma conclusão de uma prolongada e in-
Inclinados, então, diante da íngreme desci- o famoso Fred Hoyle em Cambridge, escreve de
da que nos levaria até as profundezas do quar- modo bem ingênuo um livro sobre este motivo,
to, vislumbramos não apenas um, mas diver- uma novela, sem ter nenhuma idéia a respeito
sos símbolos que expressaram bem a teoria de do que de fato escreve”.
Neumann. Estes se manifestaram a nós por via Tanto nesta obra cinematográfica quanto em
da linguagem, de imagens e até mesmo de re- tantas outras, podemos permitir a interpretação
ferências a outras obras, encontradas tanto no simbólica e, neste caso, possibilitando a análise
filme quanto no livro. O próprio desenvolvimento de uma teoria de abordagem analítica. Assim,
cronológico da história parecia seguir os passos propusemos este ensaio que contribuiu para
e caminhar em paralelo ao nascimento do ego reflexão e ilustração da teoria de Neumann, no
para fora da caverna do inconsciente. tocante ao funcionamento da relação primal, fa-
Muito provavelmente os objetivos do livro e cilitando nossa própria aprendizagem mediante
do filme não fossem criar essas metáforas, tam- ao vasto campo de compreensão do desenvolvi-
pouco assemelhá-las às obras de Neumann, mas mento emocional humano. ■
assim como Jung (2015, p. 33) nos lembra, nem
sempre captamos o sentido dos símbolos que se
expressam através de nós: “Até um astrônomo, Recebido em: 15/08/2017 Revisão: 13/11/2017
Abstract
“Room”: forging symbols from the primal relationship according to the Erich
Neumann’s Theory
This essay suggests the symbolic analysis of in which his world is circumscribed, similar to a
the cinematographic work “Room”, as an alle- psychic uterus of this phase - led us to the con-
gory to explain the primal relationship between clusion that “Room” can be considered an excel-
mother and baby, described by Neumann. Fea- lent symbolic nominee of this theory, as much
tures of this novel - as the child’s unconscious- by its visual and linguistic aspects as by the
ness of the external world and the confinement chronological development. ■
Resumen
Referências
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de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2008.
O QUARTO de Jack. Direção: Lenny Abrahamson. Roteiro:
JUNG, C. G. Psicologia e religião. 9. ed.Petrópolis, RJ: E. Donoghue. Los Angeles: Universal Pictures, 2015. (117
Vozes, 2011. (Obras completas de C. G. Jung, v.11/1). minutos), son., color., 35 mm.
Resumo Palavras-chave
O presente artigo propõe uma reflexão sobre Transtorno
a questão do feminino nos transtornos alimen- alimentar,
tares, correlacionando-os com a problemática Feminino,
Contempo-
da contemporaneidade. Inicialmente buscamos
raneidade,
delimitar as características deste momento para Anima,
depois ampliar nossa compreensão sobre como Elaboração
este contexto dialoga com a sintomatologia ali- simbólica.
mentar e o feminino arquetípico. ■
plena consciência, uma vez que ele é destituído As atividades valorizadas eram as exercidas pe-
de significado pessoal, ocupando apenas o lugar los homens, e os mitos e discursos evocavam
de um fetiche coletivo. Vivemos o que Svendsen a natureza inferior das mulheres. Dos papéis
(2006) denuncia como a era do vazio de signi- exercidos pelas mulheres somente a materni-
ficados, do tédio. O autor coloca o tédio como dade era valorizada.
uma vivência de perda, porém assim como na A segunda mulher é a mulher enaltecida, a
melancolia, ao contrário da tristeza, não temos cantada em versos e prosa a partir do século XII,
consciência de qual o objeto perdemos e ansia- quando o código do amor cortês desenvolve o
mos recuperar; seria como “sofrer sem sofrimen- culto da dama amada e suas perfeições. Do sé-
to, querer sem vontade, pensar sem raciocínio” culo XVI ao XVIII as mulheres são elogiadas por
(PESSOA, 1999. p. 259). Ou ainda, poderíamos seus méritos e suas virtudes e no Iluminismo
acrescentar comer sem fome, ou ter fome e não sacraliza-se a mulher como esposa-mãe e edu-
saber do que. Ainda para Svendsen (2006), en- cadora. A mulher é colocada num trono, onde se
contramo-nos em um momento à sombra do enaltece sua natureza, sua imagem e seu papel.
Romantismo, mas perdemos a fé em seu poder Difunde-se a ideia que a força do sexo frágil é
imaginativo. Desejamos, mas não mais fantasia- imensa e que detém, apesar das aparências, o
mos, isto é, não mais viajamos pela estrada que verdadeiro poder exercendo sua dominância so-
nos leva ao objeto amado. Num mágico teclado bre os filhos e seu império sobre os homens im-
o alcançamos e o concretizamos. portantes. Mas esta mulher era definida pelo ho-
É a partir deste empobrecimento de nossa ca- mem e não era nada além daquilo que ele queria
pacidade imaginativa que pretendemos ampliar ou permitia que ela fosse.
nossa compreensão sobre como a contempora- A terceira mulher é a mulher contemporânea,
neidade nos joga em um cenário de esvaziamen- fruto do movimento feminista e do advento da
to da criatividade, de mutilação do arquétipo do pílula anticoncepcional que desvinculou sexo-
feminino e de suas implicações no quadro dos -prazer de procriação. É a sujeita de si mesma, a
transtornos alimentares. Porém, antes de discor- que dispõe de si e de seu futuro sem um mode-
rermos sobre a perspectiva do feminino arquetí- lo social diretivo. As mulheres ganharam direito
pico, faremos um breve relato sobre a posição da à independência econômica, ao poder político,
mulher no mundo contemporâneo, enfocando ini- abolindo-se as tradicionais diferenças sexuais.
cialmente a expressão do arquétipo no nível pes- No entanto, apesar das conquistas, Lipovetsky
soal. No que se refere à dinâmica das mulheres na a denomina Mulher Indeterminada pois neste
sociedade, precisamos compreender a evolução momento ela não anda mais sobre caminhos so-
histórica pela qual o gênero feminino passou. ciais pré-traçados. Tudo na existência feminina
depende de suas escolhas. Casar-se? O que es-
2. A evolução do papel social da mulher tudar? Que carreira seguir? Ter ou não ter filhos?
e o feminino arquetípico Entretanto o movimento feminista como
Lipovetsky (2000) evidencia três períodos subproduto de um capitalismo avançado, cau-
históricos principais na evolução do papel so- sou um movimento enantiodrômico, que, ao in-
cial da mulher. Um primeiro período em que vés de libertar a mulher, acabou por aprisioná-la
ele denomina de a Primeira Mulher ou a Mu- em uma dinâmica extremamente masculina de
lher Depreciada que corresponde a imagem competição e produtividade, sacrificando sua
desvalorizada de Eva da tradição judaico-cris- natureza mais íntima e feminina, isto é sua dinâ-
tã. Neste período, na divisão social dos papéis mica arquetípica.
atribuídos ao homem e a mulher, havia a do- No plano do feminino arquetípico, ou na-
minação social do masculino sobre o feminino. quilo que Jung denominou de anima, é notório
o quanto o contexto social contemporâneo vem errado, normal e patológico, respingam negati-
se mostrando pouco fértil à expressão criativa do vamente na pluralidade da alma, engessando
arquétipo. O conceito de anima na obra de Jung sua mobilidade. A anima continua a ser mutilada
é bastante controverso e polêmico. Inicialmente dando continuidade a uma antiga misoginia que
ele define a anima como a contraparte da consci- se confunde com a própria história do feminino.
ência masculina, mas em trabalhos posteriores Para Hillman (1984), esta misoginia desen-
ele a descreve como a atitude interna, a face in- volveu-se como um desdobramento do Mito da
terior que se volta ao inconsciente (JUNG, 1986). Criação. Segundo o mito é pela desobediência e
Mais adiante ele define a anima como o “arqué- pelo desejo feminino simbolizado pela imagem
tipo do significado ou do sentido”, como alma de Eva, que todos os males se abateram sobre a
(JUNG, 2000, p. 42), ideia que Hillman (1995) humanidade. A partir desta interpretação miso-
aprofundou definindo a anima como personifica- gênica do mito, a imagem do feminino sempre
ção da alma. foi relacionada a algo que desestabiliza, traz de-
A ideia de Hillman fala de nossa feminilida- sordem e é pouco confiável. Em tempos remotos
de psíquica, nossa interioridade, nosso mundo esta simples interpretação levou muitas mulhe-
imagético de fantasias e percepções internas, res à fogueira, tidas como pecadoras, ou mais
portanto fala da nossa capacidade psíquica de recentemente a sanatórios psiquiátricos tidas
criar imagens o tempo todo. como “histéricas ou loucas”. Na modernidade,
Jung considerava a psique com sua capaci- detectamos os desdobramentos desta misoginia
dade de criar imagens, uma instância mediado- na constante desvalorização do feminino e da
ra entre o mundo consciente do ego e o mundo característica da anima de criar imagens e fanta-
dos objetos, tanto interiores quanto exteriores. sias, na resistência em reconhecermos nossa re-
As imagens psíquicas auxiliariam a consciência alidade psíquica e mítica. Chamamos lunáticas
a pensar além de si mesma. Ao apontar para o às pessoas que vivem no “mundo da lua”, isto
desconhecido, para o inconsciente, induziriam é, que têm como predominante uma consciência
o indivíduo a transcender o conhecimento cons- imagética, ao invés de egoica. Nossa natureza
ciente (JUNG, 1986). feminina vem sendo sacrificada em nome de
A nossa capacidade imagética é o que nos uma consciência unilateral baseada no pensa-
possibilita o entendimento e o relacionamen- mento lógico e racional, tão distante da lingua-
to com o mundo não apenas pela via da razão, gem anímica e simbólica própria dos mitos, dos
mas também pela via dos mitos, dos sonhos, do sonhos e do feminino.
mundo simbólico. E é desta feminilidade e inte- Além disso vivemos em uma sociedade con-
rioridade psíquica composta por imagens e por sumista, na qual os resultados devem ser rápi-
nossa capacidade de simbolização que o mundo dos, concretos e eficazes. O feminino, ao con-
contemporâneo vem se distanciando. trário desta postura horizontal de conquistas,
O mito monoteísta moderno que nos fez crer nos demanda uma dinâmica de aprofundamento
na busca de um caminho de felicidade através da vertical, de busca de significados internos. A tra-
razão trouxe consequências sérias também na jetória do herói pós-moderno é de acúmulo de ri-
psique coletiva, pois não foi apenas a religiosi- quezas, experiências, informações, na tentativa
dade que foi banida da esfera do cotidiano, mas desesperada de não se tornar um looser. A felici-
a vivência imagética com todo seu panteão de dade, estado emocional volátil e complexo, tor-
possibilidades, uma vez que a ideia monoteísta na-se superficialmente apenas mais uma merca-
de salvação põe em risco toda a multiplicidade doria a ser conquistada. Vivemos uma relação
da expressão da alma. As consequentes deter- capitalista também com nosso funcionamento
minações maniqueístas de bem e mal, certo ou psíquico. Relações afetivas e equilíbrio emocio-
que o Homem contemporâneo apresenta de seu nutriente. Mesmo comendo quantidades mui-
mundo inconsciente e imaginário, dissociação to pequenas elas sentem que se alimentaram
que está ocorrendo, entre outras coisas, por uma exageradamente, ficando com um sentimento
supervalorização da razão e da matéria, manifes- de estarem “cheias”, sentimento este causado
tando-se através de uma idolatria ao corpo. Essa pelo fato do alimento estar sobrecarregado de
dinâmica nos leva a uma impossibilidade de se seu valor simbólico.Sentem-se vazias, deprimi-
perceber e se relacionar com o mundo pela via das, com sensação de inferioridade (Spignesi,
dos mitos, dos sonhos, e dos símbolos. A nosso 1992). Em busca de um sentido, de um signifi-
ver, os transtornos alimentares são decorrentes cado, elas procuram um contato com o mundo
da desconexão com nossa alma, ou como pode- interior, com Hades.
mos dizer, com a anima, o feminino arquetípico. Hades é o deus dos ínferos na mitologia gre-
Para Hillman (1975) um evento externo só é ga e seu nome designa também o local onde
capaz de cultivar a alma, se passar por uma trans- ele reina. O reino de Hades apresenta uma ca-
formação, por um processo psicológico, nossa racterística interessante, lá não se pode comer
capacidade de elaboração. O mundo só pode sob risco de ficar aprisionado. Hades simboliza
ser acolhido como vivência psíquica e adquirir o nosso mundo interior, a nossa vida psíqui-
um significado simbólico se nos aprofundarmos ca, ou seja, representa o mundo inconsciente
na elaboração da experiência. Se pensarmos em (HILLMAN, 1979).
nosso processo de digestão, veremos que não se Na anorexia nervosa ocorre a rejeição ao ali-
trata de uma dinâmica diferente. Assim como o mento nutriente porque jejuar, para estas pacien-
processo digestivo transforma o alimento em nu- tes, é a única forma de entrar em contato com as
triente, incorporamos e damos significado à expe- riquezas do inconsciente, com Hades, e deste
riência, somente depois de uma elaboração psí- modo buscar um sentido as suas existências, de
quica. Precisamos digerir a experiência para que ter um significado. Desta forma, sentem se cheias
ela se transforme em um alimento para a alma. deste novo alimento, simbólico, tentando preen-
A problemática dos transtornos alimentares cher o sentimento de vazio em suas vidas. Porém,
será pensada a partir da relação entre o modo ficam em Hades retidas, por não conseguirem in-
como a anorexia nervosa, a bulimia nervosa e tegrar estes conteúdos a sua consciência.
o transtorno da compulsão alimentar elaboram Estas mulheres só recuperarão sua vida
seus símbolos - processo de elaboração psíqui- quando suas consciências, alimentadas da ri-
ca – e o que acontece no processo digestivo de queza do inconsciente, puderem retornar e se
cada um deles. Por ser um distúrbio que acome- mostrar no mundo da superfície. Só conseguirão
te mais mulheres que homens, usaremos o ter- resgatar sua identidade quando a ligação entre o
mo anoréticas e bulímicas no feminino. mundo dos vivos e o dos mortos for reconectada,
quando houver a integração da experiência vivi-
4.1 Anorexia nervosa da no mundo imagético com a consciência. So-
No mundo pós-moderno onde a literalidade mente ao integrar os conteúdos do inconsciente
reina sobre as imagens, as pessoas com ano- com o consciente o vazio adquirirá um sentido.
rexia nervosa vão ter dificuldades em experi-
mentar seu corpo e o alimento em seu aspecto 4.2 Bulimia nervosa
concreto, o que é importantíssimo a sobrevivên- No caso de pacientes com bulimia nervosa, os
cia. Por não se alimentarem adequadamente alimentos são ingeridos e descartados de modo
não conseguem transformar o alimento em nu- a não serem incorporados pelo organismo; o ali-
triente. Consomem quantidades ínfimas de co- mento ingerido por ter sido rejeitado, não é trans-
mida, gerando uma quantidade insuficiente de formado em nutriente. O mesmo ocorre com as
experiências vividas, elas não são transformadas, venciados neste vazio? Se concordarmos com esta
elaboradas e integradas à consciência. Em sintonia afirmação, teremos que, infelizmente, assumir o
com a sociedade consumista, caracterizada pelo quanto a tentativa é frustrada, pois ao tornar literal
querer tudo, na bulimia tudo se quer, e tudo se esta busca pelo vazio, perde-se a possibilidade de
descarta, assim como descartamos os objetos que aprofundamento e de simbolização.
consumimos. O desejo pelo alimento está relacio- Se um dia a histeria denunciou a mutilação
nado à comilança e não conectado com o trabalho da alma, hoje a bulimia também o faz, ao mi-
da digestão, da mesma forma, nos relacionamen- metizar uma cultura de consumo, de descarte e
tos o desejo pelo outro se conecta com a sedução de falta de apropriação do que é vivido, na pró-
e conquista de um novo amante, e não no ama- pria alimentação e principalmente na psique.
durecimento de uma relação (GADOTTI, 2010). Na Fomos ardilosamente golpeados pela ilusão de
bulimia ocorre uma dificuldade na apropriação dos que o mundo pós-moderno, ao abrir as portas
significados, as experiências não são elaboradas, das infinitas possibilidades, numa falsa proli-
não há simbolização, o que impede a pessoa de se feração de experiências, propiciaria também o
ver interiormente. Há a sensação de um eu vazio. cultivo da multiplicidade da alma. Mas de fato,
Citando Bauman (2004): “Não olhando o outro nos o que vivenciamos é um pincelar superficial de
olhos, torno meu eu interior invisível”.
possibilidades, como um trailer de filme onde
Na bulimia busca-se o objeto desejado sem
aparecem várias cenas, mas a emoção contida
que se percorra o caminho que o leva a ele, isto é,
no enredo nos escapa. Ao sentarmos na frente
o caminho da fantasia. Há a manutenção deste in-
de uma paciente com bulimia nervosa, com toda
tenso estado de desejo que a sensação do vazio
sua intensidade de narrativas, algo também nos
proporciona, num ciclo infindável de entupimento
escapa. Talvez a alma, com toda a sua lingua-
e esvaziamento. Há o consumo superficial e vo-
gem poética e simbólica.
raz de experiências e alimentos, sem a adequada
apropriação dos mesmos, que acabam sendo vo-
4.3 Transtorno da compulsão alimentar
mitados, descartados, para em seguida sair em
No Transtorno da Compulsão Alimentar o ali-
busca de algo novo, mais interessante e prazeroso
mento é incorporado, nada dele é descartado,
que permita a realização concreta e imediata dos
tudo é utilizado. O consumo é voraz e sua apro-
desejos Consome-se comida, compras, e rela-
cionamentos sexuais, para em seguida vomitar a priação acontece apenas no corpo; o corpo se
comida, descartar as compras, romper com os re- enche, transborda. Este enchimento é uma ten-
lacionamentos, que, ao serem simplesmente des- tativa de sonhar, de ativar a imaginação, com a
cartados, não trazem nenhum ganho à formação liberdade de se fartar.
da consciência. Por não deixar que o vazio seja Aqui não há a descida a Hades, como a pacien-
ocupado pela fantasia, não conseguem simbolizar te com anorexia o faz, numa vivência puramente
esta experiência. No contato analítico sentimos imagética, mas também não há o descarte que
que estas pacientes apresentam justamente estas ocorre na bulimia. Aqui a alegria está no consumo
dificuldades em aprofundar e simbolizar e o subse- rápido, excessivo, solitário, sem limite e em segre-
quente ritual de expurgação que lhes proporciona do. A relação ocorre com a comida não havendo a
um vazio excitante. O gozo está em muitas vezes possibilidade de uma relação com o outro.
sentir-se esvaziada, para novamente ser preenchi- A experiência não se transforma em símbolo
da. Poderíamos nos perguntar: será que esta mu- e o alimento é um nutriente para o corpo e não
lher, nostálgica do feminino perdido, não busca para a alma. Sentem um grande vazio de alma e
justamente o estado de imperfeição e incompletu- seu objetivo é saciar esta fome mas ao literalizar
de, próprios da natureza do arquétipo, e que são vi- esta saciedade através do entupimento, se distra-
em com a comida, e perdem a possibilidade de mos impregnados de uma dinâmica capitalista, fo-
elaborar as imagens. cada no resultado, na vivência competitiva do lucro,
Para desenvolver consciência, as pessoas e no imediatismo, ao invés de nos identificarmos e
com este transtorno precisam integrar o alimen- aprofundarmos com aquilo que é “cozido” dentro
to simbolicamente, tirando-as da concretude da de nós, dentro de um tempo e experiências subjeti-
experiência. vas, em um processo mais tipicamente feminino de
transformação e elaboração de significados. ■
5. Conclusão
Apesar das especificidades de cada um destes
transtornos, eles nos fazem lembrar o quanto esta- Recebido em: 15/8/2017 Revisão: 13/11/2017
Abstract
Process, elaborate, digest: eating disorder in the contemporary world,
archetypal view
This article proposes a reflection on the ques- moment and then they expand the understand-
tion of the feminine in eating disorders, correlat- ing of how this social context dialogues with
ing with the complexity of contemporaneity. The eating symptomatology and with the feminine
authors initially set out the characteristics of this archetype. ■
Resumen
Procesar, elaborar, digerir: trastorno alimentario en la conteporaneidad,
leitura arquetípica
El presente artículo propone una reflexión so- delimitar las características de este momento
bre la cuestión del femenino en los trastornos al- para luego ampliar nuestra comprensión sobre
imentarios, correlacionando con la problemática cómo este contexto dialoga con la sintomatología
de la contemporaneidad. Inicialmente buscamos alimentaria y el femenino arquetípico. ■
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Zilda Gorresio*
Resumo Palavras-chave
Este artigo tem como objetivo traçar um pa- Inconsciente
ralelo entre o conceito de inconsciente coletivo coletivo,
da psicologia analítica e a concepção de natureza natureza,
Phýsis,
dentro da tradição filosófica. Tenta demonstrar a
cosmos,
proximidade do pensamento analítico, no que se arché.
refere à concepção de Natureza e inconsciente,
com a concepção de Natureza no Romantismo
alemão e na filosofia grega. ■
sis, em grego, corresponde ao tione, em latim, como a de movimento. “Nisto se revela a dupla
e ção, em português. [...] Podemos dizer, então, carga semântica da raiz Phy, da qual procede a
que Phýsis significa ‘brotação’, isto é, o ato di- palavra Phýsis, a do ser e a de tornar-se ou vir a
nâmico de nascer e de brotar” (MURACHCO, ser” (PANNIKAR, 1972, p. 56).
1996a, p. 14). Phýsis carrega, portanto, o senti- A Natureza para Aristóteles, portanto, é “a
do de devir, de tornar-se, de vir a ser. Designa substância das coisas que têm o princípio do
o crescimento espontâneo de algo não por um movimento em si próprio em quanto tal” (1998,
fator extrínseco, mas pela força que lhe é intrín- v.4 4, 1015a13).
seca. Designa a própria experiência do devir de Neste sentido, a Natureza não é só causal,
tudo que existe. Por isso, a palavra Phýsis tem mas causa final, ela é teleológica, ela tende a um
um sentido muito abrangente, pois abarca tudo fim. A tese do finalismo da Natureza compreen-
que é em qualquer nível de ser: o céu, a terra, um de um princípio movimento teleológico inerente
animal, uma pedra, uma planta, o ser humano, à Natureza, ao qual Aristóteles deu o nome de
mas também um sentimento, um deus, tudo que enteléchia: a realização plena e completa de
é, é uma expressão de Phýsis: “À Phýsis perten- uma tendência, potencialidade ou finalidade
cem o acontecer humano como obra do homem natural, em qualquer um dos seres animados e
e dos deuses, e os próprios deuses, como a ex- inanimados do cosmos.
pressão mais brilhante da Phýsis, sua ontofania” A segunda concepção fundamental de Nature-
(UNGER, 2006, p. 26). za é a de ordem e necessidade e finalidade. Se Pla-
Poderíamos afirmar que a intuição essen- tão e Aristóteles tinham já formulado uma concep-
cial dos pensadores pré-socráticos é a unida- ção teleológica do cosmos, os estoicos vão mais
de profunda e dinâmica de tudo que é, vale além, pois acentuam a regularidade e a ordem do
dizer, da Phýsis. devir à qual a Natureza preside. "Trata-se do fato
Outra palavra que se adere ao conceito de estoico, que é a necessidade absoluta da ordem
Phýsis dentro desse período na Grécia é a palavra cósmica estabelecida por Deus (Pneuma, ou Zeus).
kósmos. A concepção de Phýsis induziu os pré-so- Essa concepção de natureza necessária para os
cráticos a trabalhar a palavra kósmos, que signi- estoicos levou-os a pensar a Natureza como desti-
fica ordenação e beleza. A Phýsis é um kósmos, no, como necessidade inelutável, denominada de
isto é, a natureza é vida dotada de movimento e Hiemarméne" (REALE, 1994, v.3, p. 316).
ordem intrínseca a ela mesma. E já que para os Devemos esclarecer que durante a Idade
gregos o que é dotado de movimento próprio é Média, período que se estende entre o século
divino, em sendo assim, a Phýsis ou Natureza é V e o XV, culturalmente abarca filósofos ára-
divina. Nesse sentido disse Heráclito: “Esta or- bes, judeus e cristãos como em nenhum outro
dem do mundo (a mesma de todos) não a criou momento da história da filosofia. Tal fato torna
nenhum dos deuses, nem dos homens, mas sem- difícil enquadrar uma única posição a respei-
pre existiu e existe e há de existir: um fogo sempre to da filosofia da natureza nesse período. Mas
vivo que se acende com medida e com medida se com certeza, a ideia de correspondência entre
extingue” (KIRK; RAVEN, 1994, p. 205). a ordem macrocósmica e a ordem microcósmi-
Outra definição de Natureza como substância ca permanece. O homem ainda é parte de um
ou essência necessária encontra-se na Metafísi- macrocosmo divino, suas raízes ainda estão
ca de Aristóteles (384–322) que envolve o con- plantadas na Natureza que é divina, mesmo
ceito de matéria e forma (essência-ousia). Duas quando é compreendida como “exterioridade”
ideias básicas dominam o conceito de Natureza do espírito e por isso imperfeita e descaracteri-
em Aristóteles, a gênese das coisas e a substân- zada, como é o caso de Plotino (2002) e de toda
cia (ousia), isto é, a essência das mesmas, bem teosofia medieval.
Mais à frente na história das ideias, no pe- “De sorte que, esse eu, isto é a alma, pela qual
ríodo renascentista, o naturalismo renascentista sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e
recorreu ao sentido de Natureza como Deus mes- de fato é mais fácil de conhecer do que o corpo,
mo, dado a virtude divina que se manifesta nas e, ainda que nada fosse, ela não deixaria de ser
coisas, portanto, a Natureza é divina. A Natureza tudo o que é” (DESCARTES,1983, p. 47).
é compreendida como um sistema vital de cone- Esta citação de Descartes marca a transforma-
xões necessárias. Já o aristotelismo renascentis- ção da Natureza num mero espaço geometrizável,
ta retoma o conceito de Natureza como ordem, o lugar sem sacralidade e valor, além disso, mar-
como necessidade absoluta da ordem cósmica ca a cisão entre a Natureza e o pensamento.
estabelecida por Deus. Essa noção de natureza Com Descartes, a tradição da filosofia entra
fundamenta as primeiras noções da ciência mo- em um processo de aniquilamento e com ela a
derna sem, no entanto, desenraizar o homem mais venerável noção de Natureza como divina,
dela. Em Copérnico, Kepler e Galileu, a concep- e do homem como parte da Natureza. A dessacra-
ção da natureza é entendida ainda como ordem lização da Natureza, agora compreendida como
necessária, mas de caráter matemático, porém res extensa separada da res cogitans, é pensada
perde a noção finalista. como substância que não pensa, extensa, im-
Esse sentido de Natureza atravessou todo perfeita, finita e dependente, passa a ser alvo
o naturalismo renascentista até o século XVII, de manipulação e especulação físico matemáti-
quando, nesse século mesmo, começou a con- ca, o que desencadeou um longo processo his-
traposição entre o homem e a Natureza com tórico de domínio e manejo da natureza, cujas
René Descartes, ao dar início à filosofia moder- consequências podemos sentir em nossos dias.
na, processo que já havia sido iniciado um sécu- Iniciou-se assim, a quebra da tradição milenar
lo antes com Roger Bacon, empirista inglês. do cosmo estético-religioso da cultura ocidental.
Desde a Grécia arcaica, os sábios e os filó- O desenraizamento do homem da natureza
sofos elaboraram um modelo de cosmos, como ganha um plus com Immanuel Kant (1724– 1804).
podemos ver, no seio do qual prevaleceu a cor- Kant é famoso, sobretudo, pela elaboração do
respondência entre o microcosmo humano e o denominado idealismo transcendental. A filoso-
macrocosmo divino. Esse esquema teve sua au- fia da natureza e da natureza humana de Kant
toridade no Ocidente até a ruptura instalada com é historicamente uma das mais determinantes
o advento das primeiras manifestações da ciên- fontes do relativismo conceptual que dominou
cia moderna, com os empiristas ingleses, depois a vida intelectual do século XX. Diferentemente
com Descartes e para finalizar com Kant. de Descartes, Kant reduziu o ser à razão, negan-
René Descartes (1596–1650), filósofo francês do totalmente existência da realidade exterior
do século XVII, foi o pensador que demarcou as quando coloca a sua total dependência em rela-
bases do pensamento da ciência moderna. Sua ção ao sujeito conhecedor.
filosofia teve profundo impacto no Ocidente. Como o grande crítico da metafísica parmanece
Suas ideias influenciaram muito a relação do ho- dogmática, para Kant a ideia de alma, de mundo,
mem com a natureza, pois Descartes foi o primei- unidade absoluta da experiência externa, e de Deus
ro filósofo a romper com a tradição e a desenrai- são conceitos necessários da Razão, e não realida-
zar-se de tudo que fosse história, como parte de des em si, pois deles não podemos ter conhecimen-
seu método de conhecimento. Seu desenraiza- to objetivo, isto é, que envolva sensibilidade e en-
mento foi tanto que ele chegou a se pensar como tendimento. Portanto, a cosmologia pensada pela
apenas uma substância, cuja essência é “pen- metafísica permanece dogmática que culmina com
sar”, destituindo-se de toda materialidade (cor- a ideia de Natureza como cosmos, para Kant é uma
po) e espaço. Como disse em suas meditações: das ilusões transcendentais (KANT, 1997, p. XVII).
Segundo ele, pela expressão natureza enten- gião do inconsciente” (1846, 2ª ed. apud GUS-
de-se apenas o conjunto dos fenômenos que só DORF, 1993, v.2, p. 160).
existem segundo regras necessárias ou leis do Fica claro que, para estes filósofos, Natureza
pensamento. A natureza para Kant não é um prin- é o mesmo que inconsciente. Esta filosofia supri-
cípio metafísico, um sistema vital divino de cone- me, assim, a dualidade entre o res cogitans e a
xões necessárias, mas a possibilidade da Razão, res extensa, afirmando como fez Schelling: “que a
ou das leis universais originárias da Razão, gra- atividade consciente é primitivamente idêntica ao
ças às quais é possível a experiência empírica. inconsciente” (1797, apud GUSDORF, 1993, p. 418).
Estava instalado assim, o paradigma moder- Para F.W. Schelling (1775–1854), filósofo que
no, leitura do ser, do conhecer e do homem. Den- sistematizou as concepções da filosofia român-
tro desse paradigma o homem agora centrado na tica, o Absoluto é o princípio divino condicionan-
Razão soberana, desintegrou-se da Natureza. do o real total, é a harmonia, a identidade, a uni-
O movimento romântico, do final do século dade sintética dos contrários, unidade vivente
XVIII e início do século XIX, assinalou um momen- onde se encontra o germe de toda a diversidade
to decisivo na filosofia europeia. O movimento existente. Segundo ele, o real pensado como
organismo é compreendido como um Todo pree-
romântico foi um movimento contra iluminista,
xistente às suas partes, dotado de sentido e mo-
sendo assim, questionar o paradigma moderno
vimento próprio. Compreendeu a Natureza como
foi a grande tarefa filosófica do Romantismo ale-
um sistema teleológico em processo, resultante
mão. Um novo paradigma nasce com o Roman-
de uma força inteligente criativa nela mesma.
tismo, em que o ser, o conhecer e o homem são
Sendo assim, a primitiva aliança do homem com
pensados em novas bases filosóficas, escapan-
a Natureza fora restaurada, o que Schelling cha-
do do empirismo experimental, sem consistên-
mou, de “estado de natureza da filosofia” (1797,
cia e sem fundamento, e do idealismo crítico
apud GUSDORF, 1993, v.2, p. 460).
incapaz de respeitar a autonomia da realidade.
Para Schelling, o homem é um complexo de
O objetivo da Naturphilosophie, assim deno-
matéria e espírito, imerso nesse Organismo,
minada pelos românticos, foi pôr em evidência
a Natureza, inteligente em perpétuo devir. Para
o organismo total da Natureza. Para eles a Natu-
ele não há um fio misterioso que liga nosso es-
reza existe por ela mesma, e este realismo é sin- pírito à natureza, ou um “órgão” intermediário
cronizado com o idealismo, “dado que a nature- através do qual a natureza fala ao espírito e o es-
za é o organismo visível correspondente àquele pírito à natureza, como pensou Descartes, mas:
que existe invisivelmente no nosso entendimen- “A Natureza deve ser o Espírito visível, e o Espí-
to” (GUSDORF, 1993, p. 419). Para os românticos, rito a Natureza invisível” (1797, pp. 45-46, apud
a totalidade, ou seja, a Natureza, este grande GUSDORF, 1993, v.2, p. 460).
organismo ou sistema vivo, é um princípio onto- Portanto, a consciência e a razão humana fo-
lógico, e não um produto lógico do pensamento, ram vistas como a floração própria de sua esta-
como pretendeu Kant. A tese de seus trabalhos é ção, isto é, do seu momento histórico. A consci-
que a consciência não é homóloga à alma. Esta ência humana representa um momento no devir
última possui uma expansão igual àquela do da inteligibilidade da Natureza em busca da sua
universo; ela emerge, das profundezas onde a própria perfeição. Por isso, a respeito do conhe-
vida se desdobra sem consciência da vida. cimento, se o espírito é Natureza e Natureza é
A primeira frase do livro Psyche de C. G. Carus espírito e, se a consciência humana é a revela-
(1789–1869), filósofo romântico alemão, revela: ção da inteligibilidade da Natureza, decorre daí
“[...] a chave para o conhecimento da essência que o espírito conhece a Natureza, pois é Natu-
da vida consciente da alma se encontra na re- reza. E foi a partir da redescoberta da linguagem
De onde surgem o entusiasmo, e a inspiração Esse trecho mostra a viva ideia de que o in-
e o exaltado sentimento de vida” (JUNG, 1911, consciente coletivo é muito mais que um legado
§668)? Nós sentimos a presença desta realida- histórico, a somatória da experiência da humani-
de misteriosa e temível toda vez que “traímos” dade, ou seu legado filogenético. Jung, ao dizer
nossas intenções conscientes, e toda vez que que o inconsciente coletivo é uma “objetividade
subitamente somos tomados por um sentimen- vasta aberta ao mundo inteiro”, concebe-o como
to de medo ou de vida inspirador, e não sabe- uma vida objetiva, como espécie de uma tessi-
mos de onde vem. Como disse nosso venerável tura invisível onde todos os seres, e não só os
mestre, Jung: homens têm seu ser. Assim compreendido, o in-
consciente coletivo é o fundamento de toda es-
O psiquismo aparece como uma fonte de pécie de existência, alma de tudo o que vive, ele
vida, um “primum movens” (motor primeiro), é Natureza como pensaram os românticos.
uma presença espiritual que tem objetiva Em outro trecho, em que o inconsciente cole-
realidade [...] o psíquico não é [...] a quintes- tivo aparece como a metáfora do oceano e dos
sência do subjetivo e do arbitrário; é algo ob- peixes nele contidos, podemos ver a mesma ideia
de Natureza como um sistema, a invisível interde-
jetivo, subsistente em si mesmo e possuidor
pendência de toda vida no cosmos. Leiamos:
de vida própria (JUNG, 1991, §666).
Abstract
Resumen
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Resumo Palavras-chave
O autor realiza um passeio pelas origens acentua que o psicólogo moderno deve saber Alquimia,
da alquimia e por sua existência em diferentes que, em termos científicos, só pode descrever aspectos
culturas e em diferentes épocas. Reconhece a o processo psicológico, uma vez que a natureza históricos,
alquimia como originando-se de técnicas má- real da psique transcende a consciência como alma da
matéria,
gico-míticas, que surgiram com o despertar da um mistério da vida ou da própria matéria. ■
projeções na
consciência. As diferentes alquimias incorpo-
matéria.
ram diferentes sabedorias, que buscam com-
preender as relações cósmicas do homem com
a matéria. A alquimia precedeu no nível objeti-
vo a química e no subjetivo a psicologia. Toda
matéria tem sua alma, que é perene. Os corpos,
porém, são formas transmutáveis. Acentua que
a física moderna, também como a alquimia,
admite a transmutação da matéria. A leitura que
Jung fez da simbólica alquímica, como projeção
de vivências inconscientes pessoais e arque-
típicas, trouxe uma compreensão psicológica
para o complexo simbolismo alquímico. O autor
É impossível dizer-se onde, quando e como ciência. Temos então dois polos: a consciência
surgiu a alquimia. Suas origens são várias, instrumental, clara e discriminada, surgindo jun-
imprecisas, difusas e discutíveis. to com a crença no sobre natural da qual a alma
São várias também as versões sobre a eti- humana faz parte. A ideia de que a conjugação
mologia da palavra alquimia. Parece referir-se de opostos, o polo claro, natureza (consciência),
ao Egito (Khem ou khan, nome antigo do Egito) com o polo escuro, sobrenatural (inconsciente),
e o artigo definido árabe “al” dando-al-chimia, é propiciadora de crescimento, vai permear toda
(a terra negra). Parece também prover da raiz a obra alquímica (opus).
grega chemeia, do egípcio chem, negro, que Se a alquimia tem origem nas técnicas ar-
pode referir-se à terra negra (Egito), ao negro caicas mágico-míticas, ela só pode instituir-se
da oxidação dos metais ou ao negro, cor sagra- como um saber, a partir de uma sabedoria que
da dos sacerdotes egípcios que como tintura procura compreender as relações cósmicas do
a preparavam secretamente, daí o termo “Arte homem com a matéria.
Negra” como arte do aperfeiçoamento em bus- A sabedoria pode ser formulada por um ho-
ca do divino. mem, o(a) sábio(a) (tipo Confúcio) que procura
Como mostra Eliade (1979), a alquimia teria compreender estas relações de um modo que
muito a ver com técnicas arcaicas, mágico-míti- pode ou não ser aceito. Com o advento das reli-
cas da humanidade, que devem ter surgido com o giões reveladas, a sabedoria é considerada como
despertar da consciência. Ter instrumentos (como vinda de Deus, sábio e único, que fala pela boca de
pedra e madeiras) e ser capaz de usá-los como seu profeta. Em várias civilizações antigas, encon-
utensílios tem a ver com a tomada de consciên- tramos alquimias que trouxeram valores que foram
cia, adaptação do homem ao seu meio natural. incorporados pela alquimia europeia. O raciocínio
As técnicas, pelo contrário, surgem quando alquímico é principalmente dedutivo e baseado
o homem promove a adaptação do meio natu- em duas premissas estabelecidas a priori: a unida-
ral às necessidades humanas, para atender às de da matéria e a existência de um potente agente
suas consciências. transformador, chamado “pedra filosofal”. Este
A emergência da consciência traz algo destaca- seria capaz de curar as imperfeições dos metais
do da natureza, mas traz também a percepção dos enobrecendo-os para se transformarem em ouro,
limites da própria consciência, ou seja, o medo do símbolo do perfeito e incorruptível. Do postulado
que permanece desconhecido e fora dela, ou seja, da unidade da matéria segue-se que um agente
o medo da noite com seus sonhos e da morte. seria capaz de curar enfermidades no humano e
No escuro da noite, o homem não sabe o que prolongar sua vida. A pedra filosofal seria esta me-
se ater. Daí consciência ter que ver com luz e es- dicina perfeita, com o nome de elixir da vida.
clarecimento de um lado e não ter consciência Havia em várias antigas civilizações técnicas
tem a ver com escuridão e desconhecido de ou- complexas e refinadas, por exemplo, técnicas
tro. Esta vivência interna que se manifesta como com tinturas, vidros coloridos e metalurgia no
consciência também aparece como emoções, Egito que foram assimiladas pela alquimia, pela
como, por exemplo, amor e medo. Este interno qual se acreditava que coisas materiais estavam
assustador se assemelha ao sobrenatural com carregadas com coisas divinas.
deuses, fantasmas e demônios e parece sobre- Na Caldeia, havia a astrologia que associava
viver à morte, pois o ser humano pode pensar e planetas aos metais e ao destino dos homens.
desejar além do que está claro e distinto na cons- A alquimia chinesa desenvolveu técnicas de
preparo de elixires para tratamento médico e dos pré-socráticos, preocupada com o cosmo, o
prolongar a vida. Ela se consolida quando sobre tempo e a matéria e a filosofia dos neoplatôni-
estas técnicas e também técnicas de metalurgia cos. Para muitos, portanto, a alquimia só adqui-
se aplicassem a sabedoria do Taoísmo. Na alqui- re maturidade com os alexandrinos, quando, ao
mia hindu ocorreram coisas parecidas à chinesa, lado de técnicas antigas, temos um conjunto de
quando, sobre técnicas arcaicas, surgiram inter- doutrinas com afirmações sapienciais e religio-
pretações sapienciais do hinduísmo. sas nos séculos II e III.
Dos sumérios e babilônios vieram as técni- Data também desta época a junção na alqui-
cas para se obtiver metais a partir de minérios mia, da filosofia dos neoplatônicos com a cabala
e a produção de ligas metálicas como o bronze, judaica, a mântica caldaica e a mística egípcia.
realizadas como cerimômias religiosas. Para fun- Havia em alguns autores alquimistas uma verda-
dir o ferro deveria-se esperar a época adequada, deira teurgia, ou seja, a manipulação mágica dos
quando Marte estaria propiciador. Para sua fun- deuses em prol da satisfação dos desejos huma-
dição, o homem deveria estar preparado. Era o nos. Toda matéria é a mesma, nas suas diferentes
momento do Kairos, que iria ser o momento pro- formas de apresentação, inicialmente a mesma
pício para determinadas operações alquímicas. na sua origem, é a “prima matéria”, que por dife-
Houve grande florescimento da alquimia em rentes processos evolucionários adquire diferen-
Alexandria nos séculos II e III, que é considerada tes formas. Toda matéria tem uma alma comum
por muitos como aquela em que atingiu maior que por si só é permanente. A forma externa ou
maturidade e plenitude. Houve algumas propos- corpo, são modos de manifestação da alma do
tas alquímicas no século I A.C., mas difíceis de mundo (anima mundi) e, portanto, formas transi-
identificar e localizar. Reflexões da filosofia gre- tórias e transmutáveis em outras formas.
ga e dos neoplatônicos ampliaram e enriquece- Em essência, estes pontos de vista guardam
ram as percepções dos alquimistas helenísticos. estreita semelhança com os modernos pon-
No século VIII, através da Síria e Pérsia, tos de vista da física moderna. Esta verdadeira
a alquimia penetrou nos países árabes, vinda “alquimia moderna” tem mostrado a possibilida-
principalmente de Alexandria. Entre os árabes, de da transmutação de elementos. A “pedra filo-
floresceu em duas vertentes diferentes, uma es- sofal” seria um fantástico catalisador, capaz de
sencialmente prática, ligada ao artesanato e a provocar transformações na matéria. Um grande
medicina (vertente extrovertida), e outra ligada catalizador seria, por exemplo, um bombardeio
ao misticismo, vista como introvertida e cheia de nêutrons que iniciam a desintegração do Urâ-
de segredos. A primeira, ligada aos sunistas, nio 235 em outros elementos. O que antes era
reduziu-se mais à química, tendo em Al-Razi imaginação agora prova-se.
seu expoente, que introduziu a necessidade de A ideia da transmutação está implícita na
quantificar os materiais. A segunda, ligada aos teoria dos quatro elementos de Aristóteles.
xiitas, teve em Mohamed Ibn-U-mail um grande A natureza busca o aperfeiçoamento. Das ideias
místico, que ficou conhecido como Sênior, seu gregas, pouco parece ter havido uma extensão
nome latino, na alquimia europeia. para a concepção da pedra filosofal e o elixir da
No século X, a alquimia retorna à civiliza- vida como agentes que buscam a perfeição para
ção cristã, pelos árabes na Europa (Espanha o mundo inanimado e animado.
e Sicília), unindo-se à filosofia escolástica e a Um dos primeiros títulos da alquimia helenís-
sapiência cristã. tica é a Physica do pseudoDemócrito que mostra
Para muitos a alquimia, pelo menos a hele- o mago caldeu Ostanes no templo de Memphis
nística, seria filha do encontro da tecnologia e, através de um aforisma zoroastriano, recebeu
química e da mágica dos egípcios com a filosofia as receitas para obtenção do ouro e de elixires
para a imortalidade, justificados pela teoria gre- alquimistas, também símbolos arquetípicos do
ga dos quatro elementos, da mântica caldaica, inconsciente coletivo. Nelas, assim, aparecerá
da Astrologia e do rito do fogo do zoroastrismo. o coletivo arquetípico, próprio do ser humano,
Na idade média, com influências de outras de maneira exuberante, pois os alquimistas não
alquimias, a europeia tornou-se um grande sis- tinham consciência que eram expressões do seu
tema filosófico que busca penetrar e harmonizar inconsciente. Achavam que eram realmente ex-
os mistérios da criação e da vida. Propõem-se a pressões de alterações na matéria que para eles
relacionar o microcosmo do homem com o ma- era una, e, por conseguinte, não havia nenhuma
crocosmo do universo. crítica ou defesa contra suas expressões.
A alquimia é muito mais que uma forma ru- Esta simbólica expressava tudo aquilo que
dimentar de ciência experimental. A busca da é próprio e eternamente presente na psique in-
transmutação de matéria inanimada, os metais, consciente coletiva, ou seja, a vivência dos ar-
é apenas um objetivo incidental. Com isto ela quétipos, na busca da estruturação da consci-
busca provar sua mais essencial e ampla pro- ência. Por esta razão, Jung identificou em muitas
posta da unidade de todas as coisas. Encon- expressões simbólicas dos alquimistas, expres-
tramos na alquimia uma vasta rede de ideias e sões simbólicas idênticas às que apareciam nos
afirmações na qual se misturam rudimentos de sonhos e imaginações de seus clientes.
química, relacionados com religião, folclore, Como dizia Jung (1991), a psique objetiva é
mitologia, astrologia, magia, misticismo, filoso- autônoma em alto grau, sendo o inconsciente
fia, teologia e outros campos de imaginação e uma realidade psíquica que só aparentemente
experiência humana, ou seja, tudo o que é mani- pode ser disciplinada. É um lado da natureza
festação do inconsciente pessoal e coletivo. que não pode se melhorado nem deteriorado,
Uma das compreensões da simbólica al- podemos auscultar seus segredos, mas não
química é a de que se tratava de projeções do manipulá-los. Fica claro que ambos estavam ex-
alquimista sobre a matéria e suas alterações, pressando símbolos arquetípicos, presentes na
do inconsciente pessoal e de imagem arquetípi- personalidade do ser humano, que sempre exis-
cas expressas pelo seu Self, principalmente de tiram e existirão sempre pois são arquetípicos e
seu processo de individuação. próprios de nossa espécie. Aparecerão, no en-
A associação da alquimia com religião e psi- tanto, com algumas características próprias do
cologia tem mostrado que ela é tão ou mais im- tempo e da cultura de quem os está vivenciando,
portante para a psicologia do que para a quími- porém idênticos na sua essência.
ca. Esta interpretação, proposta por Jung, trouxe A ideia básica da alquimia é que tudo provém
enorme compreensão para os complexos, confu- do Uno. O processo alquímico é uma reconstru-
sos e as vezes incompreensíveis manifestações ção microcósmica do processo de criação ou em
da alquimia. outras palavras uma recriação. Para desmanchar
A compreensão da alquimia como projeções o “corpo” em sua forma atual, a procura da for-
de vivências inconscientes, pessoais e arquetí- ma original do Uno, várias operações eram feitas.
picas trouxe um sentido psicológico importan- Ao nível do individual, o corpo das coisas poderia
tíssimo para a compreensão do riquíssimo, exu- ter a operação de dissolução, chamada solutio e
berante e confuso simbolismo alquímico. Estas seguida da coagulação, a coagulatio. Era a sol-
expressões simbólicas aconteceram em diferen- vite corpora et coagulate spiritum. Havia muitas
tes culturas, em diferentes lugares e diferentes outras operações: calcinatio, putrefatio, coniunc-
épocas, devendo, portanto, estar presentes, para tio etc. Como afirmava Jung, o desenvolvimento
os diferentes alquimistas, além de aspectos pes- e crescimento da personalidade, não pode ser
soais e culturais próprios de vivências de cada completo só à custa das vivências externas. É fun-
damental que venha da própria personalidade, A imagem central da alquimia é o opus com a
do Self, motivações que os inspirem e promovam qual o alquimista tinha um compromisso sagrado,
seu desenvolvimento e aprimoramento. era a busca do valor supremo, o ouro alquímico.
As íntimas conexões entre o simbolismo alquí- O segredo alquímico não podia ser divulgado
mico e as metáforas das religiões são muito gran- e sua violação seria um crime pois poderia cair
des. Por exemplo, o grande símbolo da união dos em mãos inadequadas que poderiam fazer mal
opostos, expresso por inúmeras metáforas em to- uso dele. As energias transpessoais devem ser
das as religiões, por exemplo, Cristo unido à igre- secretas e sagradas e não apossadas pelo ego
ja, está presente em inúmeros símbolos alquími- que não pode se identificar com imagens arque-
cos, como o casamento do rei e da rainha. Outro típicas o que seria uma inflação, um não conhe-
exemplo, unicórnio, monstro hermafrodita simbo- cer a si mesmo e seus limites.
lizando uma coniunctio opositorum está presente A ideia da prima matéria veio dos filósofos
em várias alquimias. A serpente gnóstica é com- pré-socráticos como um a priori de que o mundo
parável ao mercúrio alquímico ou à água divina, derivava de uma substância original e única da
símbolo que leva todas as coisas à maturação e qual derivava o mundo. Seria da parte desses fi-
desenvolvimento, buscando aperfeiçoamento. lósofos ou uma imaginação, ou um pensamento
irracional, ou uma impressão visual e, portanto,
É o espírito da vida, a anima mundi. Serpente e o
uma manifestação de um fato psíquico arquetí-
chifre do unicórnio são alexipharmakons, ou seja,
pico, projetados na matéria, já que o mundo é
são antídotos contravenenos.
obviamente múltiplo.
A experiência alquímica europeia era mais
A prima matéria sofrendo um processo de
uma “vivencia mágica” do que uma experiência
diferenciação se parava-se em quatro elemen-
científica concreta e repetível. Ela fundamenta-
tos: terra, ar, fogo e água que combinado-se em
va-se na concepção animista da natureza. Nela
proporções variadas formariam todos os objetos
tudo é movido por uma alma, da qual a alma hu-
físicos, os corpos.
mana participa. Isto possibilitou o estreito para-
A alquimia descreve um processo de trans-
lelismo entre o que acontece com a matéria du-
formação química e das instruções para sua
rante sua transmutação e o que acorria na alma
realização. Embora muito variáveis elas coinci-
do alquimista. Como já dissemos, Jung trouxe dem em algumas partes principais desde o co-
uma nova interpretação para os textos e sím- meço da Era Cristã. Seriam quatro os estágios
bolos alquímicos como sendo projeções do in- da opus caracterizados pelas cores originais:
consciente do alquimista sobre a matéria e suas preto (nigredo), branco (albedo), amarelo (xan-
transformações e seus símbolos coletivos de seu tosis) e vermelho (rubedo). No século XV, as co-
processo de individuação. Ele mostra fenomeno- res foram reduzidas a três, caindo em desuso a
logicamente que a opus é uma projeção sobre a xantosis. Dizia-se que apesar de serem quatro
matéria do acontecer psicológico no processo de elementos, as cores eram três. A mudança na
individuação. Este, para Jung (1997), pode ocor- classificação dos estágios foi devida ao signi-
rer na segunda metade da vida, principalmente ficado simbólico do quaternio e da trindade,
em pessoas preocupadas com sua melhoria in- ou seja, foi devida a razões internas psicológi-
terna e desenvolvimento de sua personalidade cas, e não externas.
ou em termos religiosos como a salvação de sua A sequência das fases da opus, nos diferen-
alma. Atualmente, a psicologia analítica fala em tes autores depende em primeiro lugar de sua
processo de individuação ocorrendo em toda a concepção da meta, que são tão variáveis como
vida e vindo do Self, para o crescimento e aper- os processos individuais. Às vezes, trata-se como
feiçoamento da consciência. meta, da obtenção da tintura branca e vermelha,
às vezes da pedra filosofal, capaz de promover material, por isto a conhece. Haveria um vago fe-
transformações, ou o elixir de vida, a panaceia, nômeno de consciência na matéria.
capaz de curar doenças e prolongar a vida. Estamos diante de um mistério que não con-
O lápis philosophorum é muitas vezes a pri- seguimos compreender. Isto pode nos colocar
ma matéria, ou o meio de produzir ouro, ou um na posição mais humilde e modesta de termos
ser místico chamado Deus terrestris ou Salvator. que descrever fenômenos de acordo com nossos
A opus inicia-se com a evocação da sabedo- conhecimentos atuais e reconhecermos nossa
ria divina, condutora do processo. ignorância em termos científicos da compreen-
A primeira fase, a nigredo, estado confuso são de tais fenômenos.
da matéria é atingida por diferentes operações e Como nos mostra a história, a alquimia exis-
se encerra para muitos quando surgem as “scin- tiu em inúmeras civilizações por séculos e de
tillas, centelhas que brilham e são associadas às certo modo está viva em nossas ideias.
ilhas de consciência”. Através de diferentes ope- Assim, no estudo da obra de Jung, seu livro
rações, evolui-se para a segunda fase, a albedo Psicologia e Alquimia (1991), é de importância
ou fase da prata, na qual se estabelece a ordem fundamental, o que mostra o quanto ela tem
sapiencial esclarecedora com a união dos opos- para nos ensinar sobre a psique humana e seu
tos. Esta evolui para a rubedo, o nascer do sol, funcionamento. De certo modo, nós, analistas
associada à vitória sobre a morte e a redenção junguianos, somos todos alquimistas, porém
da humanidade. com mais consciência de nosso trabalho.
Um dos conceitos básicos da alquimia, além Os alquimistas sabiam que a produção da
da prima matéria, de espaço, tempo e energia pedra filosofal era um milagre que só poderia
de uma partícula, é o conceito daquilo que se ocorrer Deo concendente.
poderia chamar de afinidade química. Era com- O psicólogo moderno deve saber que, em
preendida pela alquimia como uma atração inex- termos científicos, só pode apresentar uma des-
plicável que certas substâncias exerciam sobre crição de um processo psicológico, uma vez que
outras e a repulsão por outras. sua natureza real transcende a consciência, tal
O inconsciente pode fornecer modelos a como o mistério da vida ou da matéria.
que se pode chegar diretamente desde o inte- O psicólogo não explica o mistério, apenas o
rior da personalidade e estes podem se ajustar aproxima um pouco mais da consciência indivi-
a realidade exterior. Von Franz (1980) fala em dual, comprovando com base em dados empíri-
duas explicações possíveis para este fenômeno: cos o caráter real e passível de experiência do
o inconsciente tem conhecimento de outras rea- processo de individuação.
lidades ou ele é uma parte da mesma coisa que Como dizia Jung, é parte da ética do pesqui-
constitui a realidade exterior, pois ignoramos sador poder reconhecer o ponto em que seu sa-
como o inconsciente se liga à matéria. ber chega ao limite.
O inconsciente não material fornece ideias Este limite significa o início de conhecimen-
sobre a realidade material, ou ele próprio está tos mais altos. ■
ligado à matéria sendo um fenômeno dela. Von
Franz pensa que Jung inclinava-se a pensar hipo-
teticamente que o inconsciente tem um aspecto Recebido em: 14/08/2017 Revisão: 07/11/2017
Abstract
Resumen
Referências
ELIADE, M. F. Alquimistas. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1979. JUNG, C. G. O Eu e o inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
(Obras completas de C.G. Jung, v. 2/2).
JUNG, C. G. Psicologia e alquimia. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1991. VON FRANZ, M. L. Alquimia. São Paulo, SP: Cultrix, 1980.
* Psicóloga e analista-membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica – SBPA/SP e da International Association for Analytical
Psychology – IAAP desde 1993. Analista de indivíduos, casais e famílias, atua há 42 anos na área clínica. É supervisora e professora do
curso de formação de analistas da SBPA, da qual foi diretora de ensino e membro do CEFA (Conselho de ética). É membro do Grupo de
Estudos de Empresas Familiares do curso de Direito da Faculdade Getúlio Vargas – GEEF e, desde 2015, é diretora de ensino do Comitê
Latino-americano de Psicologia Analítica – CLAPA.