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INTRODUÇÃO
O brincar se inicia muito cedo na vida da criança, antes mesmo que possa
realizar movimentos voluntários, como segurar algo com sua próprias mãos ou
mover-se sozinha, quando o simples ato de abrir e fechar os olhos faz o mundo
aparecer e desaparecer diante de si como se fosse mágica. Tão logo acontecem as
primeiras experiências integrativas entre o bebê e sua mãe, ainda nos primeiros meses
de vida, a criança já se deleita com gestos e cantos, já se exercita coma lalação, já
“brinca” com os objetos que balançam à sua frente e para os quais dirige o seu olhar,
como chocalho, o móbile, etc... Sua “brincadeira”, neste caso, corresponde a tentar
pegar esses objetos - e o esforço que realiza para isso proporciona a formação de
novas conexões em seu cérebro. Essas novas sinapses serão imprescindíveis para
todas as ações posteriores que envolvam essa tipo de movimento.
Jean Piaget (1971) nos esclarece que os jogos e as brincadeiras, na infância,
representam uma espécie de espelho dos estágios cognitivos da criança. Nessa fase
inicial do desenvolvimento da criança, do nascimento até os aproximados dois anos, a
que denomina de período sensório-motor, Piaget explica que o bebê começa a
executar uma série de movimentos simples, que vão desde um simples movimentar de
braços ou pernas, passando pelo engatinhar e empurrar, até o repetir de uma mesma
ação diversas vezes (ou, um pouco adiante, o colocar objetos dentro e fora de
recipientes), envolvendo, assim, repetições de sequências de ações já estabelecidas.
Segundo ele, é brincando “de agir” que os movimentos involuntários da criança vão
se organizando, dando lugar a experiências nas quais elas demonstram um maior e
progressivo domínio sobre seu movimento, maior controle sobre o seu próprio corpo.
Uma vez que nessas ações a criança é motivada por um prazer funcional (o que faz
com que outros estudiosos as considerem apenas exercício e não jogo, como Lev
Vygotsky), Piaget as denomina “jogos de exercício” (Idem).
Por muito tempo, ao longo de sua infância, a criança encontrará nas
brincadeiras que fazem uso da motricidade (como as que envolvem movimentação
corporal) uma de suas motivações essenciais. Como esclarece Bailey (1999 apud
BROCK at ali, 2011, p. 145), “a brincadeira de atividade física é a primeira e mais
frequente expressão da brincadeira na infância”.
Na faixa etária dos 3 aos 6 anos, as crianças estão na fase de desenvolvimento
das habilidades motoras básicas e os movimentos essenciais são considerados
verdadeiros núcleos cinéticos (PEREZ, 1994). É nesse período que ocorre o
desenvolvimento motor mais significativo, pois a criança amplia a capacidade para
movimentar-se com maior autonomia. Segundo Mello (1989), tanto as funções ou
habilidades psicomotoras 2 (como estruturação do esquema corporal, organização
espacial e temporal, coordenação, lateralidade, equilíbrio, visão periférica, resistência
2
Função ou habilidade motora, segundo Leplat e Pailhous (1975, 1976 apud ROSAMILHA, 1979,
p.68), é “o ultimo estágio da atividade sensorial-motora na qual entra em ação o mais alto nível de
interiorização. Mais ainda, ela é formada, generalizada, reduzida e assimilada, implicando na
interiorização dos aparelhos sensoriais e motores envolvidos na tarefa”.
à fadiga, etc) como as qualidades físicas (como velocidade, força, equilíbrio) são
estimuladas durante as brincadeiras infantis.
Um exemplo: ao brincar de amarelinha, além de fortalecer o músculo das
pernas, a criança experimenta treinar movimentos corporais cada vez mais
estruturados e precisos que a auxiliam na organização e na consciência do seu
esquema corporal, ao mesmo tempo em que desenvolve o equilíbrio, a percepção
espacial e o domínio da força. A brincadeira lhe exige, por um lado, avaliar a
distância e a quantidade de força que deve empregar para lançar a pedra: ao
dimensionar a distância, a criança estará exercitando a sua percepção espacial e/ou
discriminação visual, enquanto que, ao controlar a força que utilizará para lançar a
pedra, estará também utilizando o seu sistema de coordenação motora fina. Por outro
lado, ao pular sem pisar no risco do diagrama, pular com um pé só e seguir a
sequência numérica, estará, respectivamente, desenvolvendo a sua percepção espacial,
utilizando sua orientação temporal, aprimorando sua habilidade de reconhecer e
contar os números, e exercitando o seu equilíbrio...
Muitas brincadeiras que envolvem movimento são, também, a mola mestra de
muitos outros tipos de aprendizagem que a criança realizará em seu processo de
desenvolvimento, a exemplo de ler e operar os conceitos básicos da matemática -
conforme será anunciado adiante, no tópico referente à importância do brincar no
desenvolvimento cognitivo da criança.
Para o autor, mesmo que a criança busque a brincadeira pelo fato de que esta
lhe proporciona prazer, dificilmente uma criança brinca espontaneamente, ou só para
passar o tempo: sua escolha é motivada por processos internos, desejos, problemas,
ansiedades, tudo isso de forma inconsciente. Através das brincadeiras, representando
passo a passo os problemas ou anseios com os quais se depara, ela pode conseguir
transpô-los, encontrando suas próprias soluções para esses problemas.
Em outra obra, Bettelheim (1980) expressa sua compreensão acerca das
demandas psicoterapêuticas dos jogos e das brincadeiras infantis. Esclarece que,
para dominar os problemas psicológicos do crescimento - superar decepções
narcisistas, dilemas edípicos, rivalidades fraternas, ser capaz de abandonar
dependências infantis, obter um sentimento de individualidade e de
valorização, e um sentido de obrigação moral - a criança necessita entender o
que está se passando dentro de seu inconsciente. Ela pode atingir esta
compreensão, e com isto a habilidade de lidar com as coisas, não através da
compreensão racional, da verbalização, mas familiarizando-se com ele através
de brincadeiras, contos, devaneios - ruminando, reorganizando e fantasiando
sobre elementos adequados em respostas a pressões inconscientes (p.16).
3
Apesar de o enfoque desses autores estar ancorado em correntes de pensamentos bastante distintas
entre si, considero relevante trazê-los neste texto, uma vez que, de seus respectivos “lugares”, ambos
trazem contribuições importantes à compreensão do que representa o brincar para a criança. Embora, a
partir de uma perspectiva da ciência reducionista, seus pontos de vistas apresentem-se contraditórios,
se experimentarmos a perspectiva com que nos desafia a ciência da complexidade e considerarmos que
“cada um desses pontos de vista é apenas a vista de um ponto” que compõe o caledoscópio de um
fenômeno multirreferencial, como nos ensina o filósofo americano Ken Wilber (1998) com sua teoria
dos quatro quadrantes, talvez possamos ser mais tolerantes com a contradição...
Quando as crianças brincam umas com as outras, criando ou interpretando
papeis baseados no que observam ao seu redor, necessitam adequar seu
comportamento aos dos seus pares, às regras de convivência necessárias para que a
brincadeira aconteça, e/ou ao que o papel desempenhado requer, necessitando muitas
vezes lidar com os limites e as frustrações por ventura tais situações lhes possam
impor - ainda mais porque as regras, imaginárias ou não, são, a todo momento,
discutidas e negociadas pelas crianças que brincam. Isso favorece não apenas o seu
crescimento emocional, à medida em que projeta e organiza na brincadeira
sentimentos como alegria, raiva, ciúme de forma construtiva, como, e sobretudo, a sua
aprendizagem social, já que ela estabelece relações, assume responsabilidades, recorre
a acordos, cede em algumas situações para que a brincadeira não se acabe, desenvolve
atitudes de cooperação e de respeito (ou assume uma postura competitiva), espera a
sua vez...
Brougère (2006) defende o brincar como uma atividade impregnada de valores
e concepções do mundo de determinada cultura. Nessa perspectiva, quando brinca de
casinha, por exemplo, a criança está tendo a oportunidade de manipular a teia de
relações que constitui o que se lhe apresenta como família, expressando a sua visão
sobre esse núcleo e relacionando-se com os diferentes papeis que, culturalmente,
foram atribuídos a cada um dos seus membros. Igualmente, num jogo onde há a
interação de famílias diferentes, ou que se passe em determinados contextos
específicos, estão sendo colocadas em evidência as relações sociais que se
estabelecem nesses contextos, delineando-se as regras que norteiam essa convivência
e os valores nelas embutidos. Munidas de latas, embalagens e frascos vazios de
produtos consumidos em suas casas, ou de brinquedos industrializados que se
configuram como miniaturas de objetos do mundo adulto, é comum que as crianças
brinquem de “lojinha” ou “supermercado”, utilizando “dinheirinho” e “cartões de
crédito/débito”, simulando ações como o manusear uma calculadora ou um
computador, estipulando o valor total das compras e imitando as relações entre as
partes envolvidas na situação (no caso, vendedor, comprador, empacotador...).
Portanto, ao experimentar um jogo simbólico4, a criança vai selecionando, no
seu repertório, as informações extraídas das suas observações, colhidas de cenas
4
De acordo com a classificação ESAR, descrita por GARON (apud FRIEDMANN, 1992, pp. 171-
118), os jogos simbólicos são aqueles nos quais se dá a representação de um objeto por outro, como por
típicas do seu dia-a-dia e, naturalmente, vai organizando esses elementos, ampliando
a sua compreensão sobre as questões relacionadas a essas situações. No caso da
lojinha, por exemplo: qual é a função que vendedor e freguês desempenham? Como
se adquirem as mercadorias que suprem a casa? Como e com o quê se paga as
compras? Além disso, nesses simulacros de realidade, a criança já demonstra
claramente uma série de valores incorporados à trama das relações entre os
integrantes de uma sociedade, como as demonstrações de poder e submissão que
caracterizam, muitas vezes, as interações entre patrão/empregado, dona da
casa/empregada, professor/estudante, pais/filhos...
Entretanto, uma vez que, para o autor, o “espaço” do jogo se configura nas
fronteiras das possibilidades, onde o experimentar e o inventar estão livres de serem
cerceados pelo real, o jogo torna-se um território isento de risco (1995), de modo a
favorecer que, manipulando e alterando imageticamente o objeto da realidade que é
tema da brincadeira, as também crianças possam operar com outras possibilidades
para o real.
Assim, além de possibilitar espelhar seu mundo interior, a brincadeira, ao
mesmo tempo, possibilita que a criança vá, também, compreendendo suas
experiências, suas descobertas e seus papeis, entendendo melhor o mundo que a cerca
e amadurecendo sua capacidade de socialização, por meio da interação e da
utilização, experimentação (e transgressão) de regras e papeis sociais.
exemplo imitar, fazer-de-conta, brincar com situações e objetos adultos, brincadeiras com a utilização
de bonecas, etc.
Em sua compreensão, os atos intelectuais são atos de organização e adaptação
ao meio, resultantes de um processo de equilíbrio entre dois aspectos básicos: a
assimilação (processo em a que a criança incorpora elementos do mundo externo a
partir de formas de pensamento que correspondem às suas estruturas mentais,
transformando o mundo exterior para que este se adapte às suas necessidades) e a
acomodação (processo em que as crianças reorganizam suas estruturas mentais para
incorporar novos elementos do ambiente externo, modificando a si mesma para
adaptar-se ao mundo) (PIAGET, 1975).
Por exemplo: uma criança que está acostumada a brincar de “passar a bola”,
entregando (ou até mesmo jogando) a bola que chega às suas mãos ao companheiro
de brincadeira posicionado imediatamente ao seu lado, embora já esteja familiarizada
com o ato de lançar a bola para outra pessoa, ao ser desafiada a brincar de “bobinho”
com outra criança ou adulto, lançará a bola para o outro de modo a recorrer ao seu
repertório sobre o como usualmente lança uma bola para outra pessoa, ou seja,
imprimindo força e velocidade compatíveis com o lançar de bola na brincadeira de
“passar a bola”. Ocorre, nesse caso, um processo de assimilação, ou seja, sua ação de
lançar a bola na brincadeira “bobinho” será semelhante à ação de lançar a bola na
brincadeira de “passar a bola”.
O processo de aprendizado da diferenciação entre intensidade e velocidade do
lançar da bola nessas duas brincadeiras ocorrerá através do processo de acomodação.
A nova brincadeira lhe exigirá o jogar a bola para o segundo elemento da brincadeira
(ou “encaixar” a bola que ele lhe lançara), sem deixar que um terceiro, posicionado
entre si e o segundo elemento, consiga pegá-la. Para dominar essa nova modalidade
de brincadeira com a bola, a criança se depara com uma série de novos desafios
(problemas), como avaliar a distância, a altura e a quantidade de força necessários
para o sucesso da nova ação a ser aprendida: lançá-la ao parceiro de jogo, ou recebê-
la dele, e não mais “passar” a bola para o colega ao lado (como ocorre com a
brincadeira de “passar a bola”), ao mesmo tempo mantendo o seu equilíbrio corporal.
Assim, diz-se que a criança passou por inúmeras acomodações no aprendizado de
uma nova modalidade de brincadeira de jogar bola com as mãos, modificando os seus
esquemas já existentes quanto ao ato de jogar bola com as mãos para outra pessoa.
Em seu desenvolvimento, na constante busca de equilíbrio com a realidade
externa, a criança, segundo Piaget, utiliza-se frequentemente do jogo enquanto um
mecanismo básico em seus sucessivos processos de assimilação e acomodação. O
brincar, para ela, é uma ponte entre o mundo adulto (externo) e o mundo infantil
(interno); é, em sua essência, o elemento que a permite organizar progressivamente o
seu intelecto.
Piaget (1975, 1967) enumera quatro períodos no processo evolutivo da criança
que demarcam o seu desenvolvimento, classificando os jogos de acordo com cada
uma dessas fases. Cada período é caracterizado por formas distintas e
progressivamente mais complexas de organização mental que, ao desvelarem
capacidades superiores às do estágio anterior, possibilitam diferentes formas de o
indivíduo interagir com a realidade.
Entre o nascimento e até os dois anos de idade, período que corresponde ao
estágio sensório-motor, a modalidade de inteligência característica da criança desse
período é denominada “prática”, já que sua utilização está condicionada a percepções
(simbólicas) e esquemas sensoriais e motores - nesse caso, relacionada à solução de
problemas imediatos como pegar, jogar, chutar... É nessa fase que aparecem a
primeiras experiências motoras, que, como já mencionamos, o autor denomina jogos
de exercício. Uma vez que, nessa fase, a criança utiliza-se da imitação como uma
forma de apreender o mundo exterior, predomina a acomodação.
Dos dois aos seis/sete anos, as crianças passam para o estágio objetivo
simbólico (ou pré-operacional), realizando a transição entre a inteligência sensório-
motora e a inteligência representativa, possibilitada pelo advento da representação
simbólica. Aqui, a criança não pensa no sentido estrito que atribuímos ao termo, mas
constrói imagens mentais daquilo que lhe é evocado, podendo “transportar o mundo
para a sua cabeça”. Essa capacidade de representação será responsável pelo
desenvolvimento da função simbólica, permiti(n)do à criança representar objetos e
relações através da linguagem oral, da imitação, da imagem mental, do desenho, do
jogo simbólico, diferenciando o significante do significado: eis a fase dos jogos
simbólicos, momento em que a criança dedica-se aos jogos de fantasia, nutrindo um
interesse especial pelas brincadeiras de “faz de conta”.
Segundo Piaget, a assimilação, nesse período, exerce sua predominância sobre
a acomodação, já que a criança busca tornar o mundo semelhante a si própria: o
mundo real perde espaço para o universo mágico da fantasia, o que importa é o
mundo assimilado ao próprio mundo interno.
Dos sete aos onze/doze anos, as crianças adquirem habilidades mentais que
evidenciam uma forma diferenciada de abordar o mundo, caracterizada por uma
lógica interna mais consistente e pela habilidade de solucionar problemas concretos.
Nesse período, já mais afastada do mundo fantástico, a criança manipula,
concretamente, os objetos da realidade, aproximando-se de suas regras: daí o interesse
crescente pelos jogos que possuem suas regras definidas, como “brincar de casinha”,
“de esconde-esconde”, “futebol”, “baleado”... Entretanto, ainda não há, neste
momento, um planejamento dessa experimentação do real, dessa manipulação
concreta da realidade - característica do quarto e último período concebido por Piaget,
denominado de estágio das operações formais ou abstratas.
Essa fase, peculiar às crianças, ou melhor, aos adolescentes de onze/doze anos
em diante, é caracterizada pela possibilidade de distinção entre o real e o possível,
abrindo espaço para o pleno exercício de jogos eminentemente mentais, espaço este
propício à construção das hipóteses e ao planejamento de ações. Para o epistemólogo
suíço, pois, o jogo se constitui enquanto pólo extremo da assimilação do real no ego,
relacionando-se com a imaginação criativa que, por sua vez, será a base de todo
pensamento e raciocínio subsequente. Ou seja, ao brincar, a criança assimila objetos,
situações e/ou ideias ao seu “eu” e às suas estruturas mentais, seus esquemas
anteriores. O jogo, pois, é a “expressão de uma das fases dessa diferenciação
progressiva: é o produto da assimilação, dissociando-se da acomodação antes de se
reintegrar nas formas de equilíbrio permanente que dele farão seu complemento, ao
nível do pensamento operatório ou racional” (PIAGET, 1975, p. 207).
Assim como Piaget, para quem a imaginação criativa é o pilar sobre o qual se
erguerá o pensamento abstrato, Vygotsky (1996) também esclarece que o brinquedo
introduz a criança numa esfera mediadora entre suas ações com objetos concretos e
suas ações com significados, e que o brincar da criança é a sua imaginação em ação,
fruto do seu contato com a realidade social. Para este autor, é exatamente esse
processo de criar situações imaginárias que conduz a criança ao desenvolvimento do
pensamento abstrato, de modo que o jogo torna-se um elemento indispensável para o
seu desenvolvimento cognitivo. Esclarece Oliveira, que estuda o pensamento de
Vygotsky:
Do mesmo modo que o físico usa “h” para representar a constante de Planck
para que possamos “ver” como o mundo interior do átomo funciona, ou como
um poeta usa a metáfora (o lago é uma safira) para nos fazer ver algo sobre
uma nova luz, a criança nos mostra a caixa de fósforos caindo aos pedaços e
diz: “veja como meu barco é bonito”. Isso é ver com criatividade, em vez de
passividade, a capacidade que William Blake e outros retiveram por toda a
vida e cultivaram até transformar numa arte refinada (p.163).
Como ainda explica Pearce (1992, p. 157), “uma das bases do brincar está na
narração de histórias”. Segundo esse autor, quando a criança tem acesso à audição de
contos infantis tradicionais, sua visão interior é transportada para onde a ação está
transcorrendo, de modo que ela cria imagens correspondentes ao que está sendo
narrado, a partir de seus próprios referenciais, ou melhor, de seu repertório de
experiências. Esse ato criador representa um enorme desafio para o cérebro da
criança, requerendo a participação de quase todos os seus campos neurais. E a cada
nova história que a criança ouve, mais campos neurais e mais conexões entre eles são
ativados. Assim, a criança que não desfruta amplamente da possibilidade de criar
imagens interiores não desenvolve a sua imaginação, pois a maior parte do cérebro
fica sem utilização - e isso é grave, pois significa que, adiante, não terá desenvolvida
a habilidade de “ver” o significado do símbolo matemático, de aprender as fórmulas
químicas, nem de identificar ou compreender as sutilezas que só conseguimos
enxergar se temos a capacidade (crítica) de ler “nas entrelinhas”, acessando o
conteúdo subjacente ao primeiro plano das ideias apresentadas...
É indiscutível, portanto, a existência de uma fértil e sólida relação entre o
brincar e o desenvolvimento cognitivo da criança. Por um lado, essa relação se
expressa, sobretudo, através da brincadeira simbólica, cujo sistema de representação
possibilita o exercício mental de substituir um objeto da realidade por um símbolo,
favorecendo, assim, o desenvolvimento de habilidades cognitivas análogas às que são
requeridas tanto na alfabetização linguística quanto na matemática - ou necessárias a
tais operações. Ora, a leitura é uma atividade extraordinariamente complexa que,
dentre outros aspectos, requer a habilidade específica de manipular mentalmente os
símbolos linguísticos, que são as letras e as palavras, símbolos gráficos que
representam os sons da fala - assim como os números são uma representação abstrata,
simbólica, da noção de quantidade.
Quando, em sua brincadeira de faz de conta, a criança se apropria de dois
gravetos e se dirige ao pais para mostrar-lhes, contagiante, as manobras de seu avião,
quando recorre à imaginação simbólica para representar o objeto “avião” através dos
“dois gravetos”, está realizando uma espécie exercício preparatório às suas operações
cognitivas superiores, requeridas pela aprendizagem conceitual em estágio
subsequente de seu desenvolvimento: tal como necessitamos exercitar nossos
músculos para que se preparem, em resistência e flexibilidade, para realizar atividades
que lhes exijam um maior esforço, ao explorar as situações de representação
simbólica em suas diversas brincadeiras, a criança está realizando o que
metaforicamente poderíamos compreender como uma espécie de “ginástica
cognitiva”, ou seja, está preparando as suas estruturas mentais para as complexas
operações abstratas que lhes serão requeridas pela leitura e pelas operações
matemáticas.
Por outro lado, o jogo como ação e movimento corporal, conforme já aludido
anteriormente, também se apresenta como o impulso inicial e preparatório para
operações cognitivas complexas. Ora, ao realizar uma gama de movimentos corporais
nas brincadeiras que envolvem atividade física, a criança exercita e desenvolve uma
série de habilidades psicomotoras que favorecem e/ou são imprescindíveis ao ato
físico da leitura, como preensão e coordenação óculo-manual, compreensão além do
corpo e motricidade fina desenvolvida. Igualmente, a organização espaço-temporal
que vivenciam em suas brincadeiras também é o palco para o reconhecimento e
manipulação das formas geométricas/matemáticas.
E, uma vez que o uso das mãos é o que coroa todo o sistema da motricidade, e
a evolução do movimento está intimamente relacionada ao desenvolvimento do
pensar, também as atividades manuais que envolvem movimentos organizados
complexos favorecerão, no futuro, a compreensão da aprendizagem das operações
matemáticas, como adição e subtração. É, pois, por meio das experiências de
movimento que fundações neurológicas sólidas são construídas.
Deste modo, o mais profícuo efeito do brincar no desenvolvimento cognitivo
da criança é indireto - o que não significa menos importante, uma vez que é nas
atividades brincantes, quer simbólicas quer relacionadas à ampla motricidade, que
estão assentadas as bases de todos os aspectos operativos e figurativos associados ao
desenvolvimento do pensamento. É por meio das experiências de movimento que
fundações neurológicas sólidas são construídas.
REFERÊNCIAS:
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1988.
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Petrópolis - RJ: Vozes, 1997.
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In: Roskos K; Christie J (eds.). Play and Literacy in Early Childhood: Research
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Publishers; 2007, p.65-80.
WENNER, Melinda. The serious need for play. Scientific American Mind, 2009,
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VYGOTSKY, Lev. A Formação Social da Mente. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes,
1996.