AFONSO DE LIGORIO

Uma opção pelos abandonados

 Théodule Rey-Mermet, C.SS.R.

AFONSO DE LIGÓRIO
Uma opção pelos abandonados

Prefácio de Jean Delumeau

Professor no Colégio de França

EDITORA SANTUÁRIO
Aparecida - SP
Tttvlo original:
Le saint áu siècle ães Lumières — Alfonso de Liguori(1696-17S7)
® Nouvelle até. Paris 1982
Tradução: Pe. José Braz Gomes, C.SS.R.
Carlos Felício da Süveira

Com aprovação eclesiástica

Todos os direitos em língua portuguesa reservados ã Editora Santuário

A meiLS irmãos redentoristas,

no 250.''aniversário de nossafundação.
Capa: Rustração: Marlene Godoy Barreiros
Arte: Vantuil Evangelista

Este livrofoi composto EDITORA SANTUÁRIO

e impresso nas oficinas da Rua Pe. Claro Monteiro, 342
EDITORA SANTUÁRIO, Fone: DDD (0125) 36-2140
no ano do 84."Aniversário 12.570 — APARECIDA-SP
de sua existência. C.G.C.: 60.601.28310016-35
Maio de 1984. Inscr. Est.: 174.007.170
 PREFÁCIO
Santo Afonso de Ligório (1696-1787) é um gigante. Um gigante da história da
espiritualidade e da história simplesmente.Nossa época correria no entanto o risco de
esquecê-lo se um livro vivo e rico como este não viesse oportunamente no-lo lembrar.

Os números aquiestão,convincentes,espantosos:a Teologia moral do fündador

dos redentoristas teve nove edições quando ele ainda estava vivo e 73 depois de sua
morte,e o resumo desta obra,o Homo apostolicus,atingiu do século XVm até nossos
dias 118 tiragens. As Visitas ao Santíssimo Sacramento mereceram 2017 edições,as
Glórias de Maria mnte de tnU A IMtica do amor a Jesus Cristo, 535. A Preparaçao
para a morte, 319. Em número de edições santo Afonso ganha de longe de Shakes-
peare:o primeiro teve cerca de 20.000 edições em mais de 70línguas;o segimdo 10.602
edições (em 1961), é verdade que em 77 línguas. Essas quantificações indicam a
envergadura de um fato religioso e culturalque nem sempre tem ocupado noslivros de
história o lugar que lhe caberia.

O homem teve xrm destino fora de série. Nascido na nobreza napolitana e filho de
militar, al;mo extraordinariamente talentoso,com inclinação à música,à pintura,ao
desenho, à arquitetura, aos dezesseis anos já é advogado. Nápoles admira este bri
lhante jovem que conheceu J.B.Vico tendo-o em grande consideração e que convive
com os mais belos espíritos da cidade.É com surpresa que ela o vê se tomar padre
contra a vontade de um pai autoritário; com estupor que em breve o descobre nos
bairros mais pobres,evangelizando os analfabetos por meio de surpreendentes prega
ções noturnas cv(ja fórmula legará à posteridade.

E eis que vun dia ele foge de Nápoles montado n\im burro, decidido a consagrar
sua vida às missões nas zonas rurais mais abandonadas. Companheiros se juntam a
ele e serão os redentoristas. Mas não é fácil no Reino de Nápoles do século XVin
fundar uma nova congregação religiosa. Já existem padres seculares e regulares
demais e conventos demais neste país pobre e mal administrado. Não é sem motivo
que o governo quer impedir a expansão de bens inalienáveis e a multiplicação das
isenções fiscais. Afonso não deseja senão a pobreza para seu instituto. Mas as autori
dades replicam que não se pode garantir o futuro: as congregações mais fiéis no
começo acabaram relaxando e adquirindo riquezas. Contra sua vontade, Afonso é
obrigado a voltar a Nápoles mais fi^qüentemente do que gostaria, tomar-se nova
mente advogado e pleitear em favor de sua frágü instituição. Barba mal feita ou por
fazer,com uma batina remendada,mas considerado como um santo,ele discute sem
tréguas com ministros que o respeitam sem nem por isso sempre ceder.

E se fosse somente a resistência do governo napolitano! Mas o estabelecimento
da CJongregaçâo dos Redentoristas será durante meio século a cruz do fundador.
Hostilidades ou desconfianças no clero,abandono de certos discípulos que não agüen
tam o ritmo de uma vida dura demais e se deixam abater pelo firio e pela fome, pelos
atritos entre os homens, pelas dificuldades entre o Papa e o Rei das Duas Sicílias:
todos essesfatoresse coligaram contra Afonso e teriam levado ao desespero qualquer
outra pessoa.
Dois paradoxos trágicos assinalam os últimos trinta e cinco anos de sua vida.Ele
havia jurado a si mesmo náo ser bispo, mas teve de aceitar o encargo por ordem
expressa de Roma onde se ouvira falar de sua santidade. Ele tinha fundado uma
congregação de missionários. Tendo finalmente conseguido afastamento do episco-
pado por motivo de saúde,esperava terminar tranqüilamente seus dias no meio dos
"filhos". Ora,ao morrer,ele se encontrava marginalizado e excluído com seus confira-
des napolitanos da Ordem que criara.O conflito entre Pio VIe o Rei das Duas Sicílias
levara a este resultado surpreendente e doloroso: Roma reconhecia apenas os reden
toristas do Estado Pontifício,excluindo os que continuavam a trabalhar mais no sul.
Ser um santo náo é fácil;não é fácil rompercom uma sociedade brilhante,opor-se
à vontade paterna,discutir ponto por ponto com a Igreja e com o Estado; sobretudo
não é fácü lutar consigo próprio.Pois Afonso tinha um caráter explosivo e autoritário.
Mas se dominava à custa de jejuns, mortificações, trabalho, privação de sono, e se
apresentava mais freqüentemente com um "semblante de paraíso,... suave, alegre e
amável".
Afonso era terrivelmente duro consigo mesmo (por acréscimo fizera o voto de
nunca perder tempo).Sua mensagem espiritual,porém,foide confiança,de esjjerança
e de moderação.Conheceu osterrores do escrúpulo,tentando dele preservar os outros.
Mortificou-se, temos de reconhecer, excessivamente, mas desaconselhava seus "fi
lhos" a seguirem seuexemplo.Não foi um "rigorista",contrariamente a certas lendas.
Pelo contrário, aparece na história(e é certamente este seu mais belo título de glória)
como quem fez recuar "a maré negra do rigorismo" — impressionante imagem do
padre Rey-Mermet—no interior do mundo católico.Tomou a direção contrária de um
agostinismo até então triunfante e do qual ojansenismo foi apenas uma das expres
sões históricas.
Hamack expnnuu de forma concisa e penetrante: "Beatificado (1816), canoni
zado (1839), Doutor da Igreja(1871), Ligório é a exata antítese de Lutero e, no catoli
cismo romano, tomou o lugar de santo Agostinho... Se ele fica mmto aquém dos
probabilistas despudorados do século XVH,aceitou entretanto plenamente seu sis
temae num número incalculávelde questões—até no divórcio,no falsojuramento,no
homicídio(e eu acrescentaria na blasfêmia)—ele soube transformar o inaceitável em
faltas veniais. Nenhvun Pascal se levantou contra ele no século XIX; i>elo contrário,
crescia a cada ano a autoridade de Lãgórfo, o novo Agostinho." Santo Afonso foi o
adversário do"probabüiorismo"ou"tuciorismo",que postulava se adotasse em cada
caso de consciência a opinião moralmente"amais provável","a maissegura",isto é,a
mais dura. Mas não foi sem esforço que ele chegou a essa doutrina mais animadora
para os penitentes. Um dia escreveu: "Fui eu próprio e durante muito tempo lun
partidário encarniçado do probabüiorismo." Foram as obras dos jesiiítas que o fize
ram evoluir. Tanto assim que no momento em que a Companhia de Jesus era supri-
9
mida pelos Bourbons, em seguida por Roma, ele foi encarado por alguns como um
"Jesuíta disfarçado". Sua Teologia moral foi proibida na Espanha e em Portugal.
O fundador dos redentoristas tinha se convertido num dos grandes adversários
do "adiamento de absolvição" e da recusa da comunhão,caros a Amauld. A respeito
do casamento ele teve a coragem de afirmar,contra toda a tradição agostiniana,que a
procriação não é sua primeira finalidade.Num nível mais geral,escreveu frasesespan
tosas na pena de um sacerdote daquele tempo: "Nada se deve impor aos homens sob
pena de falta grave, a não ser que hãja uma razão evidente para isso." "Visto a
fragUidade da natureza humana, não é verdade que para as almas o caminho mais
estreito seja sempre o mais seguro."
A evolução de santo Afonso pode se explicar por sua experiência de missionário e
de confessor dos camponeses.Seu confronto com são Vicente de Paulo salta aos olhos
do historiador que, ao ler a cativante biografia do padre Rey-Mermet,reencontra na
Itália do Sul,com cem anos de defasagem,a atmosfera e os ritmos conquistadores da
Reforma católica na França do século precedente.Os dois homens tiveram as mesmas
intuiçóes, descobriram a mesma realidade, optaram pelas mesmas soluções. Julga
ram,tanto um como o outro,que os habitantes das zonas rurais—e sobretudo os das
regiões mais afastadas—estavam "sub-cristianizados".Quiseram se consagrar a eles,
proibindo seus discípulos de pregar nas grandes cidades. Não quiseram negligenciar
nenhum vüarejo, por mais modesto que fosse. Excluíram de sua pregação qualquer
floreado, qualquer complicação. Insistiram mais sobre o catecismo do que sobre a
eloqüência. Quiseram ser simples com os simples: motivo de seu sucesso popular.
Mas—originalidade de santo Afonso — ele era músico,tendo aliás freqüentado
bastante em suajuventude o Oratório dosjerônimos de Nápolesonde se conservavam
e se cultivavam as tradições musicais procedentes de são Füipe Néri. Fica assim
explicado o gabarito dascinqüenta canções que ele compôse onde não aparece o Deus
vingador tão freqüente nos cânticos franceses da mesma época.Essas canções entra
ram para o patrimônio cvütural italiano.Foi Verdiquem disse em 1890 a respeito do Tu
scendi dalle stelle que "sem esta pastoral de santo Afonso, Natal não é mais Natal".
Nossos contemporâneos voltaram a ouvir sua melodia no filme A árvore dos taman
cossem adivinhar o nome do autor.Enfim,a simplicidade ao mesmo tempo procurada
e sincera do grande napolitano o levou a ser um dos criadores da língua italiana
moderna.Porque antes dele,os letrados da Península escreviam num toscano rebus
cado,enquanto o povo falava os dialetos de suas respectivas províncias. Da mesma
forma que Lutero se esforçou por criar uma língua alemã acessível a todos, santo
Afonso também falou e escreveu num italiano simples e direto,"comestível" do Norte
ao Sul do país.
É tudo isso que ficamossabendo—e muito mais—ao seguir este guia seguro que
é o padre Rey-Mermet, um homem e um autor de surpreendente juventude. O leitor
ficará impressionado pelo estüo alegre e pelo vigoroso ritmo da obra. Esta biografia
erudita é conduzida ao som da fanfarra,na alegria.Ela é igualmente vivida a partir de
dentro.É claro que se trata de uma história"engajada",a de um redentorista que vive
sua própria vocação através da do fundador. O discípulo ama e admira seu mestre.
Existe melhor modo de fazé-lo compreendido?
Jean DELUMEAU
Professor no Colégio de Ftança
 INTRODUÇÃO
No início deste século,a respeito do livro Santo Afonso de Ligório publicado pelo
padre Berthe, podia-se ler, nas páginas ainda ôescas do Dictionnaire de Théologie
Catholique:"Cremos ser a vida definitiva do santo Doutor." Quarenta anos depois,o
padre Cacciatore, profundo conhecedor de Afonso de Ligório, dirá, numa conferência
sobre sua espiritualidade: "Afonso ainda está à espera de seu biógrafo." Não sei se
algum ingênuo benevolente irá se dizer,ao sorver estas páginas:"Aquiestá o biógrafo
definitivo de santo Afonso." Mastenho acerteza de que antes de quarenta anos,novos
trabalhos aparecerão, a fim de dar ao público outras descobertas, atender a outras
curiosidades, satisfazer outras sensibilidades. Algims atê fecharão estas páginas di
zendo: "Afonso de Ligório ainda está esperando seu biógrafo."

Eles teráo razáo. A história mmca ê escrita definitivamente. Porque as curiosi

dades mudam. Porque também, ao contrário do que se costuma pensar, o afasta
mento progressivo de uma época ou de um personagem o fazemergir cada vez maisda
obscuridade.

Assim, de cinqüenta anos para cá, numerosas pesquisas foram feitas sobre
Afonso de Ligório, seu meio econômico e religioso, sua vida famUiar e profissional.
Napoleão dizia que a educação de uma criança começa vinte anos antes de seu
nascimento, pela educação de sua mãe. Observação espirituosa, mas profunda: os
psicólogos modernos dizem que a criança é "impressa" aos quatros anos,"revista e
corrigida" ao mais tardar aos nove anos."A criança é o pai do homem",disse o poeta
inglês Alfredo Tennyson.Já não concebe uma biografia que não revele o ambiente no
qual a pessoa se formou. Para Afonso, isso estava por fazer.

Por outro lado, por ter Afonso de Ligório fUndado a Congregação dos redentoris-
tas há 250 anos, seus filhos têm a tendência de fazer começar sua vida em Scala em
1732. Não é o inverso que permite compreender por que ele fUndou e que fundador ele
foi? Nele, o advogado e o padre diocesano nos interessam tanto quanto o bispo.

"Santo do século das luzes", Ligório o foi cronologicamente. Se se trata de

identificar as "luzes" com o anticristianismo de Voltaire, ele foi sua exata antítese.
Mas não,o iluminismo não é a propriedade da pequena coorte dos inimigos do Cristo.
Ele é primeiramente promoção da razão,da experiência,daliberdade,da pessoa.Ele é
alargamento do campo do conhecimento.Existe uma Europa cristã das"luzes",cvija
aurora se situa cerca de 1660-1680. Nela Afonso se apresenta como grande figura,com
este acréscimo: que ele conserva um profundo enraizamento na tradição e fornece
12
claridade e calor,nâo apenas a uma reduzida elite, mas às massas populares da Igreja
universal.
"Doutor do meio exato,sua ascendência sobre oscorações foisempre crescente...
Essa ascendência sobre os corações passou de uma nação para a outra, de uma igreja
para a outra,de uma diocese para a outra,de um confessionário para o outro:o espírito
de Afonso e a benignidade de seu amor pastoral pelas almas penetraram por toda
parte, triunfaram em todos os países católicos e dominam hoje soberanamente em
toda a extensão da Igreja de Deus."
Henrique Manning,posteriormente cardeal,escrevia isso em 1864. Nós esquece
mos disso hoje como se esquece do ar que se respira. A Renovação não nos convida a
retomar o contato com o Doutor da oração?
De todo o coração, eu agradeço
— ao senhor João Delumeau,professor do Colégio de França,ter aceitado prefa
ciar esta obra,e acima de tudo pelas preciosas trocas de idéias que me proporcionou;
— aos padres Francisco Bourdeau, Francisco Chiovaro e Pedro Kemilis que,
cada qual no setor de sua competência,generosamente colaboraram, no decorrer de
todos estes anos de trabalho, com uma ajuda tão amável quanto necessária;
— aos membros,finalmente,de nosso Instituto histórico de Roma—padresJosé
Orlandi, André Sampers e Luís Vereecke,que foi seu presidente até 1982 — o fato de
haverem consagrado muito tempo e amabilidade em me orientar, em me reler e
corrigir com uma minúcia oportima.
Comigo, ê Afonso de Ligório e todos os seus filhos que lhes são devedores.
Th. Rey-Mermet, C.SS.R.
Paris, 17 de fevereiro de 1982
BIBLIOGRAFIA
São mencionadas aqui apenas as fontes usadas diretamente neste trabalho.
Acta concesslonis tituli Doctoris S. Alphonsi M. de Ligorio, Roma,1871.
Acta integra capitulorum generalium C.SS.R., Roma, 1899.
AFONSO DE LIGÓRIO,Lettere dl S. A.M.d. L., org. F.Kimtz e Fr. Pitocchi,3 vol.,
Roma, 1887-1890. _
— Opera dogmática, tradução latina e ed. crítica de Aloys Walter, 2 tomos, Roma,
1903.
— Opere ascetiche, Roma 1935-1968,"Introduzione generale" e 10 vol. aparecidos.
— Theologia moralis, ed. crítica de L. Gaudé,4 vol., Roma,1905-1912.
ANGOT DES ROTOURS,Barão J., St Alphonse de Liguori, Paris, 1903.
Archivio Generale redentorista, Roma.
Archivio di Stato, Nápoles. A parte mais preciosa, posta em lugar seguro perto de
Nola no início da guerra,foi queimada em 1943 por ordem de um oficial inunigo.O
resto foi reclassificado pelo ano de 1972. A Sezione Giustizia conservou-se.
Archivio municipale de Nápoles. Queimado em grande parte em 1946.
Archivio postulazione generale dos padres jesuítas em Roma: Sununarium intro-
ductionis causae V.S.D. Francisci de Geronuno, Roma,1729.
Archivio delia provincia napoletana C.SS.R., Pagani.
Archivio storico diocesano, Napoli.
Archivio vescovile Santagatense.(Arquivos episcopais de S. Ágata dos Godos).
BACH,Julien, sj. Histoire de S. François de Geronimo,sj., missionnaire de Naples,
Metz, Paris, 1867.
BAYON,Rodrigo, cssr., Cómo escribio Alfonso de Ligorio, Madri, 1940.
BENEDETTI,Claudio,Posizionie articoli per processi ordinarisu Iafama disantità
de! Servo di Dio P. Cesare Sportelli... Paolo Cafaro... Domenico Blasucci, Roma,
1893.
BERRUTI,Celestino,cssr.,Lo spirito diS.Alfonso M.de Liguori,Z.^eá.,Prato,1896.
— Método pratico degli esercizi di missione per uso delia C.SS.R., Nápoles, 1856.
BERTHE,Auguste, cssr., S. Alphonse de Liguori, 2 vol.. Paris, 1900.
BOGAERTS,J., S. Alphonse de Liguori musicien. Paris, 1899.
BOUVIER, Renê e LAFFARGUE, André, La vie napolitaine au XVIII® siècle. Ra
chette, Paris, 1956.
CACCIATORE, Giuseppe, S. Alfonso de Liguori e il giansenismo, Florença, 1944.
— La Spiritualità di S. A. de L., in Le scuole cattoliche di spiritualità, Milão, 1943.
CAFARO, V. S. D. Pauli, cssr., Epistolae, Roma, 1934.
CAPECELATRO,Card. Alphonse, Vie de S. A. M.de L., Desclée De Brouwer, 1893.
14
— Vie du Père Rocco, o.p., Desclée De Brouwer, 1887.
CAPONE,Domenico, cssr., n volto dí S. Alfonso, Roma, 1954.
CELANO,Cario, Delle notizie... delia città di Napoli,5 tomos, Náp>oles. 1692.
Centenário (Nel secondo)delia nascita de S. A. M.de L., Roma, 1896.
CHAÜNU,Pierre, La civilisation de 1'Europe des lumières, Paris, 1971.
Codex regulamm et constitutionum C.SS.R., Roma, 1896.
COLLETTA, Général Pietro, Histoire du royaume de Naples (1743-1835), 4 tomos.
Paris, 1835.
Contributi: c£ GREGORIO,CAPONE,FREDA,TOGLIA.
CRISPINO, Giuseppe, n buon Vescovo, Roma,1682. Extrato: Trattato delia visita
pastorale, Roma,1695.
CROCE,Benedetto, Uomini e cose delia vecchia Italia, seconda, 3.^ ed., Laterza, Bari,
1956.
— 1 teatri di Napoli, Bari, 1947.
— Storia dei regno di Napoli, Bari, 1972.
D'ARIA, PM., ^., Un restauratore sociale (S. Pr. de Geronimo), vol. I, Roma, 1943.
DECHAMPS,Card.Victor-Auguste,S.Alphonse de Liguoriconsidéré danssa vie,ses
vertus et sa doctrine spirituelle, Malines, 1840.
DELERUE,Pélix, cssr., Le système moral de S. A. de L., St. Etienne, 1929.
DE LUCA,Don Giuseppe,Sant'Alfonso,11 mio maestro di vita cristiana,organizado
por Creste Gregorio, Alba, 1963.
DETiTTiTiE, Gérard, Croissance d'une société rurale, Montesarchio et Ia Vallée Cau-
dine aux XVn® et XVm® siècles, Nápoles, 1973.
DELUMEAU,Jean, Le catholicisme entre Luther et Voltaire, PUP,Paris, 1971.
L Italie de Botticelli à Bonaparte, A. Colin, Paris, 1974.
La peur em Occident(XIV® - XVHI® Siècles), Payard, Paris. 1978.
DE MAIO, Romeo, Società e vita religiosa a Napoli neiretà moderna (1656-1799),
Nápoles, 1971.
DE MEUIÍeMEESTER, Maurice, cssr., Bibliographie générale des écrivains ré-
demptoristes,3 tomos, La Haye-Lovaina, 1933-1939.
— Histoiresommaire de Ia Congrégation duT.S.Rédempteur,2.^ed.,Lovaina 1958.
— Origines de Ia Congrégation du T. S. Redempteur,2 séries, Lovaina 1953 ê 1957.
FiUipo, D missionário istruito, 2 vol. Nápoles, 1728.
E RISIO, Alessandro, cssr., Cronicbe delia Congregazione dei SS. Redentore,
Palermo, 1858.
DE ROSA,Gabriele, Vescovi, popolo et magia nel Sud, Nápoles, 1971.
Chiesa et religione popolare nel Mezzogiomo,2.^ ed., Bari, 1979.
DI COSTE,P. Antonio, org., Le melodie di S. Alfonso M.de Liguori, Roma, 1932.
DILGSKRON,Carl,cssr., Leben des heiligen Bischofs und Kirchenleheres A. M.de
L., 2 vol. Regensburg, Nova Iorque e Cincinnati, 1887.
DILLENSCHNEIDER, Clément, cssr., La mariologie de S. A. de Liguori, 2 tomos,
Priburgo, Paderbom, Paris, 1931 e 1934.
Dictionnaire de Théologie catholique. Paris 1890-1948.
Dictionnaire de spiritualité. Paris, 1932.
Dizionario delle leggi dei Regno di Napoli,4 tomos, Nápoles, 1788.
Documenta authentica facultatum et gratiarum spiritualium quas Congregationi
SS. Redemptoris S. Sedes concessit, Ratisbona, 1903.
Documenta miscellanea ad Regulam et spiritum Congregationis nostrae illustran-
dum,Roma, 1904.
15
D'ORAZIO,Benedetto, cssr., La ven. Madre Sr. Maria Celeste Crostarosa, Autobio
grafia, Casamari, 1965.
DUDEL,Erwin, Um abogado de Nápoles, Madri.
Enciclopédia cattolica, Vaticano, 1948-1954.
Enciclopédia italiana di scienza, lettere ed arti, Roma, 1929-1949.
Encyclopaedia universalis. Paris, 1968-1975.
Encyclopédie "Catholicisme", Paris, 1948.
PALCOIA, Dom Tommaso, Lettere a S. Alfonso de Liguori, Ripa, Sportelli, Crosta
rosa, org. por Creste Gregorio, Roma, 1963.
PAVRE, Jean, La vénérable Marie-Céleste Crostarosa, Paris, St-Etienne, 1931.
GALANTL Giuseppe Maria, Delia descrizione geográfica e política delle Smilie, 4
tomos, Nápoles, 1789-1790. Reeditada em 1969.
— Napoli e Contomi,2 tomos, Nápoles, 1829.
GALASSO,Giuseppe,RUSSO,Carla,PerIa storia sociale e religiosa de Mezzogiomo
d'Italia, vol. 1, Nápoles, 1980.
GAUDÉ,Léonard, cssr.. De morali systemate S. A. M.de L., Roma, 1894.
GETTO, Giovanni, SanfAlfonso de Liguori, Milão, 1945.
GIANNONE,Pietro,Histoire civile du Royaume de Naples,trad.do italiano,4 vol.,La
Haye, 1742.
GIATTINI, Vincenzo Antonio, cssr., Vita dei beato Alfonso M.de Liguori(dedicata
dal Padre). O autor é D. Domenico Antonio Marsella, Monza, 1819.
GIOVINE, Raimondo, Vita dei grand servo di Dio D. Gennaro M. Samelli,2 vol.,
Nápoles, 1858.
GODTS,P. X., cssr., L'Apôtre moderae du T.S.Sacrement: S. Alphonse, docteur de
TEglise, Bruxelas, Paris, Roma... 1905.
GOUSSET,Thomas, Justification de Ia théologie morale de S. A. de L., Besançon,
1832.
GREGORIO,Oreste,CAPONE,Domenico,PREDA,Ambrogio,TOGLIA,Vincenzo,
SanfAfoiiso de Liguori, Contributi bio-bibliografici, Morcelliana, Brescia, 1940.
Essa obra,ainda no comércio,cresce tanto mais de importância pelo fato de que os
arquivos que lhe serviram de base foram queimados quase que inteiramente em
1943 e 1946. Citá-la-emos sob o nome de Contributi.
gregorio, Oreste, Canzoniere alfonsiano, Studio critico dol testo, Angri, 1933.
— SanfAlfonso grammatico, Materdomini, 1938.
— La biblioteca teológica di S. Alfonso, Pagani, 1941.
— Mons. Tommaso Falcoia, 1663-1743, Roma, 1955.
— Monsignore si diverte... Modena, 1962.
GRIMALDI,Gregorio e Ginesio, Istoria delle leggi e magistrati dei regno di Napoli,
12 tomos, Nápoles, 1774.
GUERBER Jean,sj., Le ralliement duclergé français à Ia morale liguorienne,TAbbé
Gousset et ses précurseurs (1785-1832), Roma,1973.
HAZARD,Paul, La crise de Ia conscience européenne (1680-1715),3 vol. Paris, 1935.
HIDALGO, José Pidel, cssr., Doctrina alfonsiana acerca de Ia action de Ia gracia
actual eficaz y suficiente, Turim, 1955.
HITZ, Paul, cssr., L'annonce missionaire de TEvangile, Paris, 1954.
Informatio, animadversiones, responsio super virtutibus, Roma, 1806.
JANSEN, J. -L., cssr., Testimonia de S. Alphonso de Ligorio, Gulpen, 1928.
JEANCARD, Jacques, Vie du Bx. A.-M. de Liguori, 3.® ed., Lyon, Paris. 1855.
KEUSCH,Charles, cssr., La dottrina spirituale di S. A. M.de Liguori, traduzido do
16
alemão, Milão, 1931.
— La spiritualité de S. A. de Liguori, extrato do Cahiers thomistes. abrU de 1929.
KEUSCH-GARRIGOU LAGRANGE,La spiritualité de S. A., suplemento de La vie
spirituelle,junho de 1927.
KUNTZ,Frédéric, cssr., Annales Congregationis SS. Redemptoris,3 vol. manuscri
tos, de 1696-1739.
— Commentaria de vita D. Alphonsi et de rebus Congregationis SS. R.Manuscritos
in-fólio, vol. I a XI(1735-1787).
LANDI,Giuseppe,cssr.,Istoria delia Congregazione dei SS.R.,2tomos,manuscritos
de 1782.
lANTERI, Bruno, Réflexions sur Ia sainteté et Ia doctrine du Bx. Liguori, Lyon,
Paris, 1923.
LIÉVIN, Germain, cssr., La route vers Dieu, Lineamentos de luna espiritualidade
afonsiana, Friburgo: Paris, 1963.
MAJORANO,Sabbatino, cssr., L'imitazione per Ia memória dei Salvatore. n mes-
saggio spirituale di Suor M.0. Crostarosa, Roma, 1978.
MANNING,Card. Henry,La confíance em Dieu et Ia mission de S. Alphonse,Paris,
1862.
MAZZONI,Petro Aloysio,Le missioni popolari nem pensiero di S.A.M.de L.,Pádua,
1961.
MEIBERG, Antonius, cssr., Historiae missionis paroecialis lineamenta, Roma-
Ruremonde, 1953,1955.
MINCUZZI, Prancesco, cssr., Lettere di Bernardo Tanucei a Cario III di Borbone
(1759-1776), Roma,1969.
MINERVINO, Francisco, cssr.. Catalogo dei redentoristi d'Italia 1732-1841, Roma,
1978.
— Le nostre missioni, 2 vol., Materdomini, 1964.
MOUSNIER, Roland, LABRQUSSE,Emest, Le XVllP siècle, tomo V da "Histoire
générale des civüisations", PUF,5.» ed.. Paris, 1967.
NICOLINI, Fausto, La giovinezza di G. B. Vico, Bari, 1932.
PALLADINO,Dom Mario, SainfAlfonso poeta, 3.® ed., Caserta, 1917.
PASTOR,Ludwig von,Storia dei papi,versão italiana di Pio,CENSI,vol. XIV.XV e
XVI, Roma 1932-1933.
Pietas alfonsiana erga Matrem gloriosam Mariam,Relatio actorum in C.SS.R., sec-
tione Marialis Congressus 1950 Romae habiti, Lovaina, 1951.
POURRAT,Pierre, La spiritualité cherétienne, IV, Paris, 1928.
RIPA,Matteo,Storia deliafondazione delia Congregazione e dei Collegio dei Cinesi,
edição póstuma em 3 tomos, Nápoles, 1832.
RISPOLI, Pier Luigi, cssr., Vita dei B. A. M. de Liguori, Nápoles, 1834.
ROMANO,Aurélio, La Città e il Commune di Napoli, notícias históricas 1131-1904,
Nápoles, 1909.
ROMANO,Cândido M,Delle opere di S. A. M.de Liguori,ensaio histórico, Roma,1896.
ROMANO,Ruggiero, Prezzi,salari e servizi a Napoli nel secolo XVlll, MUão,1965.
ROSSI, Giovanni, Delia vita di Mons. Emilio G. Cavalieri, Nápoles, 1741.
RUSSO,Carla, org., Società, Chiesa e vita religiosa nell"Ancien Régime",Nápoles,
1976.
SARNELLI, Gennaro, M., Riproduzione di tutte le Opere, 14 tomos, Nápoles, 1848-
1851.
SATURNO,Paolo,cssr., Un musicista sconosciuto dei,'700 napoletano,S.Alfonso de
Liguori, Pagani, 1977.
17
SCHIPA,Michelangelo, II regno di Napoli al tempo de Cario Borbone,2 vol., 2.» ed.,
Miláo-Roma-Nápoles, 1923.
SOMMERVOGEL,Carlos, sj., Bibliothéque de Ia Compagnie de Jésus, nova ed. 11
tomos, Bruxelas-Paris, 1890-1932.
SPARANO,Giuseppe, Memorie istoriche per illustrare gli atti delia Santa Napole-
tana Chiesa, 2 vol., Nápoles, 1768.
SPORTELLI, Yen. S. D. Caesaris, cssr., Epistolae, Roma, 1937.
Storia di Napoli sob a direção de Ernesto Pontieri, 10 vol., Nápoles 1967-1971.
STRAZZULLO,Franco,Ediliziae urbanística a Napoli dei'500 al'700,Nápoles,1968.
Summarium super virtutibus, Roma, 1906.
TANNOIA, Antonio Maria, cssr., Delia vita ed istituto dei Yen. S. di D. Alfonso M.
Liguori,3 vol., Nápoles, 1798-1802. Somente as edições napolitanas é que são boas.
As de Turim foram retocadas.
— Vite dei padri D. Alessandro Di Meo e D. Ângelo Lattessa e dei Fr. G.Gaudiello e
Fr. Tartaglione, Nápoles, 1812.
TELLERIA, Raimimdo, cssr., San Alfonso Maria de Ligorio, 2 vol., Madri, 1950.
Tannoia, testemunha ocular de 40 anos de vida de Afonso e Telleria, o grande
pesquisador moderno, são as fontes a que irei remeter continuamente.
VALSECCHI, Franco, L'ltalia nel seicento et nel settecento, Turim, 1967.
VAN BIERVLIET, Albert, cssr., La liturgie dans Ia pieté alphonsienne, Eschen
(Bélgica), 1925.
VAN DELFT, Marius, cssr., La mission paroissiale, pratique et theorie, trad., do
neerlandês, Lethielleux, Paris, 1964.
VAUSSARD, Maurice, La vie quotidienne en Italie au XVIIP siècle. Paris, 1959.
VICO, Giambattista, Vie de Giambattista Vico écrite par lui-mème. Paris, 1981.
VILLANI, Pasquale, Mezzogiorno tra riforme e revoluzione, Bari, 1974.
VILLARI, Rosário, Mezzogiorno e contadini nelFetà moderna, Bari, 1977.
VILLECOURT, Card. Clément, Vie et Institut de S. A. M. de Liguori, 4 tomos,
Toumai-Paris-Leipzig, 1863-1864.
VrviANI DELLA ROBBIA, Enrica, B. Tanucci ed il suo piú importante carteggio;
vol. 1: Biografia; vol. 2: Le lettere - Florença, 1942.
PRINCIPAIS REVISTAS:
Analecta Congregationis SS. Redemptoris, Roma, 1922-1967.
Asprenas, revista do clero napolitano, Nápoles, 1954.
Campania sacra, Estudos e documentos, Nápoles, 1970.
S. Alfonso, revista mensal do culto e da basílica de S. Afonso. Pagani, 1930-1968.
Spicilegium Historicum Congregationis SS. Redemptoris, Roma, 1953
Studia moralia, órgão científico da Academia alfonsiana, Roma, 1963.
SIGLAS:
AGR - Arquivo geral dos redentoristas(em Roma).
ASDN - Archivio storico diocesano, Napoli.
ASN - Archivio di Stato, Napoli.
AVS - Archivio vescovile di Sant'Ágata dei goti.
DTC - Dictionnaire de théologie catholique.
SH - Spicilegium Historicum Congregationis SS. Redemptoris.
PRIMEIRA PARTE
''Notável,jovem e rico"
(1696-1723)

Certo homem de posição lhe perguntou:

"Bom Mestre, que devofazer
para alcançar a vida eterna?"...
Era muito rico.
(Lc 18,18; Mt 19, 22)
 1.o ANO DE 1696 NO REINO DE NÁPOLES

O memorialista pensa na ant^a proclamaçáo do Martirológio na manhã de

Natal... Talveztambém no anúncio, pelo evangelho de Lucas,da entrada em ação de
são João Batista!... Ele escreve:

No ano de 1696 de nossa Salvação, aos 27 de setembro, dia dedicado aos

gloriosos mártires Cosme e Damião,às 7 horas,numa residência de sua família
em Mflrinnpiia, iim dos vüarejos de Nápoles,nascimento de Afonso de Ligório.
Governava a Igreja de Nápoles o eminentíssimo cardeal Cantelmi; ocupava a
sede no Vaticano Inocêncio XII; garantia a felicidade do Império e do Reino
Leopoldo-Augusto, primeiro deste nome entre os imperadores romanos. Le
vado para Nápoles, Afonso renascia à graça na paróquia de santa Maria das
Virgens no dia 29 do mesmo mês,num sábado,sob os auspícios do arcaiyo são
Miguel...De um modo especial,para que ele lhessirva em qualquer necessidade
de Advogada e de Mãe,colocaram o recém-nascido sob a proteção da santís
sima Virgem, motivo pelo qual recebeu o nome de Afonso Maria. Tal foi o
nascimento de Afonso de Ligório.

É nesses termos que o padre Antônio Maria Tannoia introduz, em seus três
volumes de"Memórias",aquele do qual Luís von Pastor escreverá,em sua monumen
tal História dos papas,que ele é "neste ímpio século XVin,a mais alta e imponente
figura".^

O século XVm,isso nos parece muito longínquo!... Longe, de fato... como os

concertos de Vivaldi e as fugas de Bach;longe como Mozart e sua Flauta encantada;
longe como Voltaire e Rousseau, Goethe e Schiller; longe como a revolução da inde
pendência americana... Longe? Próximo, pelo contrário. Próximo como nossas pró
prias raízes.

Quando Afonso vem ao mundo,os europeus já abordaram e penetraram o Ex

tremo Oriente, as duas Américas e as costas africanas; suas companhias multinacio
nais havia muito tempo aí estabeleceram seus escritórios; estas jovens metrópoles
que são Nova Iorque, Quebec, Boston ou Rio contam cem anos ou mais. Como nós
hoje, a mãe de Afonso já pode adoçar seu café americano com açúcar das Antilhas e
usar diamantes engastados em ouro da África ou do Brasil. A máquina de calcular,o
termômetro,o barómetro, o relógio, o microscópio e o telescópio, a máquina a vapor
não esperaram nosso garoto.O pensamento antigo,estagnado e abstrato,ê transpor-
 22 PARTE I Cap. 1
tado para o cemitério das idéias mortas; a ciência moderna desabrocha, o espírito
moderno, a filosofia moderna. O homem,estático há dois nndl anos, como um mane
quim, numa natureza que se pretende ser eterna e imutável, recupera vida e movi
mento:ele se move,se sacode,começa a andar;deixa-se modelar de modo diferente de
ontem pelo ritmo acelerado da história. E pur si muove: a despeito dos jxiízes de
Galileu(t 1642),o homem se dirige para uma nova era.Uma visão"profana",portanto
adulta,do mundo,das técnicas e das políticas o convida finalmente a tomar nas mãos
o leme e a conduzir ele próprio, como um grande, o navio que o transporta para o
amanhã.
Longínquo,o século XVm? Nós vivemos hoje do efervescer desse "Século das
Luzes", como foi chamado. As lutas imprescindíveis que esse século desencadeou,
entre um mimdo cadiico — O Antigo Regime — e um mimdo novo, estão longe de
extinção. O Concilio Vaticano n muitas vezes as vivenciou febrilmente. O período
pós-concüiar ainda não acabou de sentir o seu calor.
Ora, um dos gigantes desta época-encruzilhada,"o maior na Igreja do século
XVin",porque será o mais atento ao clamor dos homens e aos apelos de Jesus Cristo,
o mais santamente "revolucionário" da moral e da piedade cristãs, pois determinará
iraa nova relação das leis e da liberdade,é precisamente este Afonso de Ligório,que
"nasceu no ^o de 1696 de nossa Salvação, ocupando a sede no Vaticano Inocéncio
xn e garantindo a felicidade do Império romano e do Reino de Nápoles Leopoldo I".
O Império romano,o Reiuo de Nápolesjá não são assuntos de nossas conversas
w dia-a-dia, é verdade. Mas nem por isso os releguemos para a época dos faraós!
^mente em 1918 o S^to Império romano germânico,transformado em Império da
Amtria, exalou o último suspiro; somente em 1946 se desfez o Reino de Nápoles,
mtegrado no da Itália em 1861... e sua história, vivida ontem em escala eiuropéia e
Italiana, é exatamente a que se estende hoje por todo o planeta. É a nossa.
Hoje nossa história se desenrola sobre todo o tabuleiro planetário: dois"super-
grandes" que se espreitam,e um terceiro, a China, que desperta — quatro ou cinco
pretensos "grandes" que ambicionam o papel de "potências" — e em volta deles,
algi^ cento e setenta Estados mais ou menos autônomos. Tal é nosso campo político
em busca do equilíbrio mundial" para nossa terra humana.
^muito tempo que o campo de nossa história era cem vezes menor.
Abrangia apenas qii^ que o velho continente europeu. Mas era este mesmo drama
que se vivia neste plano restrito: o "equilíbrio europeu" buscado na violência. Bus
cado entre tres"grandes":os soberanos da França,da Espanha e da Áustria.Sobera
nos, e não povos, pois se estava na era dos príncipes. Por direito pretendido divino,
algumas fan^as reais se julgavam proprietárias dos países e dos homens: arrebata
vam ou vendiam en^ si os reinos e os principados,os ducados e as repúblicas,como
camponesescomerciam ou disputam um palmo de terra eseu gado.Exatamente o que
ocorre, no plano mundial, a nossos olhos: ontem como hoje, tratava-se já de uma
concorrência na "colonização" dos pequenos pelos grandes.
Na Itália, essa atividade colonizadora não era recente: identificava-se com toda
sua história. Terra de sol e de dolce vita,excitante de cores até nos ricos matizes das
pedras de construção, talhada nos mares mais azuis do mundo na forma de uma
PARTE I Cap. 1 23
península infinda que desenrola oito mil quilômetros de costas paradisíacas,essajóia
da Europa havia exercido desde sempre um fascínio irresistível. Os etruscos, os
gregos,os celtas antes de Jesus Cristo; os cartagineses,os bárbaros de todos os tipos
(cimbros, himos, húngaros,teutões)e os lombardos antes de Carlos Magno;e a partir
deste, os germanos, os normandos. os sarracenos, os eslavos, os firanceses haviam
cobiçado este éden, sua civilização brilhante, sua técnica evoluída, o número e a
prosperidade comercial de seus portos, de braços abertos para todas as riquezas da
Afldca,do Oriente e do Ocidente.Em vagas sucessivas,tinham-na invadido,ocupado,
espoliado, não sem nela deixar sedimentos de suas culturas e farrapos disparatados
de suas respectivas leis. Mestre Afonso de Ligório que o diga!...
Bem no interior da Península,os apetites recíprocos das cidades e dos senhores
não haviam mostrado dentes menos agressivos. A ambição própria de cada um e a
cupidez comtun a todos por muito tempo dividiram esse país em cerca de cinqüenta
Estados de rivalidades continuamente reavivadas. São os conflitos dos príncipes
italianos e seu apelo ã ajuda estrangeira que, a partir do século XV,expuseram a
atraente Itália às concupiscências audaciosas das casas de Anjou, de Valois, de
Aragão, de Habsbmgo. Grandes feras cercando pequenos animais para devorã-los
segundo as melhores leis das florestas, estes Estados não eram mais do que uns vinte
em meados do século XV,uma dezena no fim do século XVn.Como vemos,a história
interna da Itália modema é tão complexa quanto a de um continente, para não dizer
do mvmdo, através dos longos espasmos de sua xmificação.
"No ano 1696 de nossa Salvação", dez Estados dividem portanto a Península:
cinco"pequenos",quatro "grandes",entre os quais os Estados dos Pontificios cortando de
um lado a outro a península e, ao Sul, um "supergrande", pelo menos em suas
dimensões: o Reino conta então um quarto dos habitantes de toda a Itália: três
milhões e trezentos mil. Devido à decadência de Constantinopla no século XV,ele
possui a capital mais povoada do mundo depois de Londres e Paris: 214.000 almas,
quase o dobro de Roma; e essa população terá mais do que dobrado — 442.000
habitantes — por ocasião da morte de Afonso de Ligório.®
Uma botina chutando uma bola mxircha,tal é a imagem esportiva que desperta
em nós o mapa do que era o Reino de Nápoles.Com seus doiselementos—continental
e insular de relevo atormentado,com suas duas metrópoles—Nápolese Palermo —
com seus dois monstros sagrados — o Vesúvio e o Etna — as Duas Sicílias exerceram
desde sempre a sedução dos perigos inebriantes. Quinhentos anos antes de Jesus
Cristo, os atenienses aí construíram uma Neápolis ("cidade nova") na enseada que
prolongava, ao leste, a Palaiópolis ("cidade antiga"), a vetusta Parténope fundada sabe
Deus quando por gregos de Cumes.
Carinhosamente amado pelos gregos, por eles povoado de colônias florescentes,
eficazmente protegido pelos mesmos contra as incursões dos piratas,o país parteno-
peu alcançou, há mais de dois mil anos, uma estupenda densidade de habitantes
felizes: cerca de quinze milhões para as Duas Sicílias reunidas.
Mas esse Mezzogiomo encantador foi, mais do que o Norte da Itália, pilhado
pelos romanos e bárbaros, pelos lombardos e normandos, pelos imperadores do
24 PARTE I Cap. 1
Oriente eimperadoresdo Ocidente,pelos papassedentos de podere piratas dos mares
e das costas. Finalmente, aqui estão, arrebatando para si sucessivamente esse reino,
os das casas de Hohenstaufen, de Angers, de Aragão,em seguida os Habsburgos da
Espanha, até 1700.
Carlos V(1500-1558),esse Habsburgo da Áiistria por parte do pai,nascido de uma
rainha de Castela,depois herdeiro de Aragão,se apossou assim de todas as cartas do
jogo ocidental na Europa e nas Américas: ele foi, ao mesmo tempo, Carlos I da
Espanha,Carlos IV de Nápoles, Carlos V da Alemanha e do Santo Império romano
germânico.A ponto dele próprio não saber maisem que numeração estava!...Interes
sante para nós esse Carlos V: encontra-se à origem do processo "internacional" que
fàrá do Mestre Afonso de Ligório o irmão dos Lazzaroni dos bairros miseráveis de
Nápoles.
Ao abdicar em 1556, depois de quarenta anos de reinado, divide seus Estados em
duas partes, lega a Alemanha e abandona o Império a seu irmão Fernando I(1503-
1564);dá aEspanha,Milão,as Duas Sicílias,os Países Baixose a América espanhola a
seu filho Fihpe n(1527-1598). No mesmo ano em que este sobe ao trono, portanto em"
1556,um golpe violento conjugado de Henrique n da França e do papa Paulo IV bem
que tenta repelir o Espanhol da Itália; mas seu desastre em Saint-Quentin (1557)e o
tratado de Cateau^ambrésis(1559)consagram a dominação espanhola no reino de
Nápolese no Milanés.Porcento e cinqüenta anos...Cento e cinqüenta anos de relativa
teanq^dade—osexércitosestão matando e queimando era outroslugares—porém,
humilhante e onerosa; daqui por diante se dirá:"Os espanhóis petiscam na Sicília,
comem em Nápoles e devoram na Lombardia."
provérbio histórico enfatizava o contraste econômico que, desde o século
foise acentuando entre o Norte e o Sulda Península.No Norte,mna terra rica num
climare^ar,umaflorescente indústria de tecidos(de lã,de seda,de algodão),estalei
ros navais ativos,companhias comerciais de braços poderosos e mãos ágeis,banquei
ros cqjo gênio das transações garante o domínio financeiro da Europa, formas de
governo já democráticas em que o povo não é apenas vü rebanho para trabalhar a
terca ou empunhar as armas. No Sul, 87% do solo fica ocupado por montanhas e
colmas, o que sobra de terras aráveis é alternativamente sulcado pelas chuvas e
res^qmdo pelas secas; as culturas são freqüentemente flageladas pelas tempesta
des,as mcessantes pierras,século apósséculo,devastaram asexíguaszonasrurais,as
costas ficam desabitadas porque expostas sem defesa aos bandos bárbaros surgidos
do mar em noites sem lua; um feudalismo todo-poderoso reduzindo os camponeses a
um servilismo constrangedor; em vez de assegurar os melhoramentos fundamentais
urgentes,esse feudalismo entregou as partes mais baixas de terra aos pantanais que
exalam a malária e a morte; por esse motivo os povoados ficaram agarrados aos
fiancos ou sobre os cumes das montanhas a fim de fugir da insalubridade,com medo
também das incursões e do banditismo. No fim do século XVm,G.M.Galanti ainda
poderá escrever:"As melhores terras da Campânia estão alagadas pelos pântanos.
Por isso suas cidades se acham despovoadas,salvo Nápoles cuja pletora funesta é o
abcesso de fixação onde se aglomera a miséria de todo um reino.
Essa miséria não é a preguiça,é o desemprego endêmico do trabalhador naral.
Este é chamado bracciante por não contar senão com seus braçoscomo único capital.
Reunidos de madrugada nas praças do vilarejo, como os diaristas do Evangelho,os
PARTE I Cap. 1 25
braccianti ficam à espera de que um administrador venha contratá-los para os traba
lhos da estação ou pelo menos por aquele dia.Deixados de lado dia após dia,afome os
expulsa para Nápoles,elese osseus;aí não há mend^o que não estejacerto de comere
de beber,enquanto em seu povoado não tem essa garantia. Por esse motivo,a partir
do século X"VII,a capital se tomou de tão densa popiilação que a compressão interior
apertou extremamente as ruas,suprimindo parques e jardins públicos,fazendo cres
cer as casasem altura e traxisformando os tetosem terraços para se poderchegar ao ar
e ao sol... até que se tenha abarrotado também os próprios terraços com barracas
suplementares.
Não,de fato o povo napolitano não tem necessidade de bocas estrangeiras para
"petiscar" suas azeitonas e "comer" seu trigo duro, seu milho e suas laraujas.
Após tantos outros, e isto durante duzentos anos, de 1504 a 1707, é pois o jugo
espanhol que pesa sobre o povo napolitano. Este é meticulosamente governado de
Madri; está militarmente ocupado pelas tropas ibéricas, espiritualmente, sobretudo
em Palermo, pelas armas da toda-poderosa Inquisição. Uma colonização política e
econômica.
Ascabeças pensantesjulgavam exatamente dessaforma,tanto de um lado como
do outro. No conclave de 1605, a Espanha havia feito oposição à eleição papal do
cardeal César Baronio, tendo Filipe m ficado ressentido com o autor dos Anais
eclesiásticos por ter qualificado de usurpação o governo de Filipe n na Sicília.Assim é
que via esse santo historiador napolitano,que Bento XIV irá declarar"Venerável".E
se esse golpe de pena tanto feriu em Madri foi porque acertou em cheio.
De fato, a casa da Espanha sangrava seus domínios italianos em soldados e
ducados para alimentar suas guerras e o fausto da corte de Madri. A tal ponto que em
1647 duas revoltas haviam partido do povo humilde,esmagado por uma fiscalização
insuportável para os pobres: uma em Palermo e outra em Nápoles, suscitada pelo
jovem pescador Masaniello."
Oitenta anos depois da morte sangrenta de Masaniello, outra fermentação su-
blevará o povo simples do bairro do Mercado e daquilo que será a praça... Masaniello.
Afonso de Ligório será seu fogo central. Mas no tempo quente de Masaniello, outro
Afonso de Ligório,seu bisavô(1615-1666),comandava um regimento de escudeiros do
exército... espanhol; e talvez tenha ele atirado sem remorsos sobre os revoltosos, por
ordem do vice-rei espanhol.® Então, um traidor? Não. Um honesto cavaleuo. Essa
situação de sujeição a um poder estrangeiro, velha como a história, era comumente
vivida, mais do que refletida, pelo coiyxmto dos napolitanos, como uma fatalidade.
Era preciso se adaptar a ela,a fim de tirar o melhor partido possível.Dessaforma,o pai
de Afonso é, em 1696, fuzileiro naval no Capitana, será oficial superior no exército
marítimo do arquiduque da Áustria, Carlos "VI de Habsburgo (1685-1740), imperador
do Santo Império romano germânico:"Capitão das galeras austríacas",como escreve
sem complexo um dos primeiros biógrafos italianos de seu filho.®
Mas não antecipemos. Em 1696 Carlos de Habsburgo ainda tem apenas onze
anos. É seu pai, Leopoldo I (1640-1705) quem reina então na Alemanha e Áustria,
Boêmia e Himgria, e que é titular da coroa imperial de Carlos Magno. Um título
fictício, cu^o diadema fechado, prestigioso de história mas oco de poder, é reputado
26 PARTE I Cap. 1

como capazde presidir,por direito divino,àfeUcidade política do Ocidente cristão em

geral e do Reino de Nápoles em particular... Na realidade, sob essa augusta e inútil
aura que evoca ix>mposamente Tannoia,o rei de Nápoles é o doentio Carlos n(1661-
1700), rei da Espanha:é ele quem,de Madri, governa Nápoles e Palermo,como espa
nhole de modo espanhol.É representado por vice-reis bem espanhóis.O de Nápolesse
chama, nesta época, Luís de Lacerda, duque de Medina CoelL

Tal é o contexto político-econômico da cidade e do país que, em 1696, acolhe

neste mundo aquele do qual se há de dizer "o mais santo dos napolitanos e o mais
napolitano dos santos".
2."DUQUES,NÃO; MAS CAVALEIROS"
NOTA

As bombas que pulverizaram os altares e a abóbada da igreja santa Maria das

9 «H part. m,p. 296. Virgens, por felicidade pouparam suas pias batismais e os arquivos. Na sacristia, o
pp.295-297 •'«toricttm C.SS.R.)25(1977), p.76;J.Delumeau,L'ltalie de Botticelli à Bonaparte. zelador nos traz, como uma relíquia, o volume XI do livro dos Batismos; com muita
precaução, ele o desembrulha de seu envólucro protetor; e o registro se abre por si
44. Delumeau,op.Niiova
cit, pp.descrizione
181-182,195geográfica e política delle Sicilie, L. IV, cap.
h IV.§ 2. mesmo na página 127.Bem em cima,à esquerda,uma Cruzde Malta assinala o último
5.SH 7(1959), p. 229. ato de batismo de setembro de 1696. Estranho, com efeito, esse ato: à direita, à
tionis
uon..et ^ ^amm,»!»,,,
M cMnmitioau MarseUa),Vita de!vlButlbiB).
Beato A.M.pp.
de Liguori,
5«8. P.I,cap.1,p.3;Summarium(Beatifica- esquerda e em baixo,margens e espaços livres ficaram sobrecarregados de anotações
posteriores, feitas evidentemente por penas diversas. Inscrições de casamento ou
ordenação? Não.Esses acréscimos não evocam etapas sacramentais subseqüentes da
vida desse batizado, mas as de sua glória e de sua autoridade póstumas na Igreja.
Lemos:"Beatificado em setembro de 1916","Canonizado no dia 26 de maio de 1839",
"Declarado Doutor da Igreja aos 23 de março de 1871".Se sobrasse lugar, uma quarta
mão teria acrescentado,com tinta muito mais recente e talvez com uma esferográfica:
"Proclamado Padroeiro dos confessores e dos moralistas a 26 de abril de 1950".

E aqui está o ato de batismo que essas prestigiosas iluminuras enquadram:

i

No dia 29 de setembro de 1696, um sábado, Afonso Maria Antônio João

Francisco Cosme Damião Miguel Ângelo Gaspar deXigôrio,filho do casal José
de Ligório e Catarina Ana Cavalieri, foi batizado por mim, José dei Mastro,
vigãrio;ele foilevado(àsfontes batismais)por Graça Porpora; havia nascido no
dia 27 do mesmo mês às 13 horas.

Com toda a Península, os napolitanos de então determinavam os dias e conta

vam as horas a partir do ângelus da tarde que era tocado meia hora depois do pôr-do-
sol.Durante a segimda quinzena de setembro,as treze horascorrespondiam às7horas
da manhã. A hora em que a igreja, bem próxima, de Marianella e todos os sinos de
Nápoles lançavam ao mimdo os dobres do ângelus da aurora.

Dando aseu fiihn os prenomes de Afonso Antônio João Francisco Gaspar,os pais
queriam fazer reviver em seu primogênito a memória de seus antepassados paternos,
especialmente de seu avô e de seu tataravô, ambos Afonso. Seguindo as boas tradi
ções do tempo,acrescentaram os nomes dos santos festejados nos dias de seu nasci
mento no mimdo e de seu renascimento à graça: Cosme e Damião, e são Miguel
Arcanjo. Finalmente, eles queriam — era necessário — que a Padroeira de todos os
sábados do ano estivesse particularmente presente a esse sábado batismal e a essa
vida recentemente desabrochada na qual ela desempenhará rnn papel tão impor-
28 PARTE I Cap. 2
tante, e cada vez mais: uma vez bispo, esse menino assinará, não mais Afonso de
L^ório, mas Afonso Maria, sem mais.
Afonso. O casal Ligório-Cavalieri ignorava o sentido original desse belo vocá
bulo.O"ph"("f'no português)latino e francês,que lhe confere uma aparência grega,
não passa de um erro de ortografia consagrado pelo uso."Alfons"deriva com efeito de
duasraízes germânicas:adal,homem de origem nobre,e funs,pronto para o combate.'
Nunca um prenome ficará táo bem para quem o traz. Nobre pelo nascimento, sim;
muito melhor: cavaleiro do Cristo, armado e em riste para os combates de Deus...
Os Ligórios, por enquanto,nâo visavam tão alto. Quais eram os sonhos da mãe
feliz? Foio segredo de suas orações.Quanto ao pai,sonhava explorar ao máximo para
este menino o duplo privilégio que encontrava em seu berço: pertencer à casta dou
rada,ser o primogênito de irmãos e irmãs.Essa dupla sorte de nascimento acarretava
por si mesma títulos, poderes, riquezas, ociosidade, certeza de um casamento bri
lhante.Ele,o senhor José,cuidaria que aquele que trouxesse seu nome,tomasse posse
de todo o patrimônio — terras e palácios — e conservasse sua linhagem, isto é, de
fidalgo mais deslumbrante do Reino!
Era bastante letrado para não ignorar que o nome que lhe legava vinha talvez do
Oriente: do grego liguros, ilustre... Sim,seguramente era essa a procedência; e esse
filho o haveria de provar!...Era,aliás, um dos nomes de família mais antigos da Itália
do Sul. Nápoles já tinha Ligórios antes de ter tido reis.
Embora não gozassem de nenhum dos mil títulos nobilitários que rivalizavam
entre si, no Reino, cada qual badalando mais alto —119 príncipes, 156 duques, 173
marqueses,42 condes e 445 barões, apenas isso!^ — títulos que, pela trama das alian
ças, heranças, negociações, trapaças,favores reais, se repartiam ou se acumulavam
em mais de mil famílias com pretensões a serem patrícias,os Ligórios eram, autenti
camente,"cavaleiros napolitanos". Havia sécxilos que sua linhagem vinha se distin-
g^do a serviço da cidade partenoeuropéia, nas armas, na magistratma, na alta
admmistração na Igreja. Orgulhava-se daquele Marco de Ligório que foi governador
de Náp^essob o reino de Tancredo de Lecce(1190-1194).Pelo menos a partir do século
,pert^cia à "nobiltà di seggio": ela "presidia" na piazza de Portanova, um dos
seis epartamentos distritais que partilhavam, por direito hereditário, o governo da
capital.3
Essa instituição piazze, as "praças", tem raiz na vetusta tradição das cidades
p'egas:enquanto o povo partia para o trabalho,os notáveis preenchiam seus lazeres
indo se encontrar na ágora para um intercâmbio de novidades,pedir conselho,decidir
negócios. Muito antes do feudalismo, Nápoles via assim se reunir em suas "praças"
aqueles que,pelo fato de suas riquezas ou de seus altos cargos,podiam subsistir sem o
trabalho de suas mãos:os não-servos,os"nobres",que"viviam com armas e cavalos".
Essa nobiltà di piazza tratava dos interesses comimitários e a seu respeito decidia
soberanamente. Está claro que desde tempos imemoriais essas assembléias haviam
emigrado da "praça" pública para um palácio próximo de onde "presidiam". Dessa
forma, piazza e seggio (daqui por diante transcrita como praça e sede) se tinham
tomado sinônimos para designar esses altos conselhos mimicipais hereditários.
PARTE I Cap. 2 29
Vasta demais psira estar ao alcance da estatura humana, Nápoles se dividia
então em seis departamentos: cinco governados pela nobreza(Capoana, Montagna,
Nido, Porto e Portanova), e um (Popolo)pelos representantes do povo.
O irmão de são Luís IX,Carlos de Aryou(1227-1285), quis fazer dessa nobUtà di
piazza,para si,um instrumento seguro eforte do poder real.Elevou poisesses nobres à
dignidade de cavaleiros, concedendo-lhes diversas prerrogativas. A mais apreciada
foi o privUégio de dividir entre eles os 60% dos direitos de alfândega recebidos sobre
todas as mercadorias que entravam, por terra ou por mar,na metrópole. A partir de
então as sedes de Nápolesforam muito cobiçadas por todo o reino;e asfamílias que as
detinham, a fim de não lhes diluir o prestígio, o poder e os recursos, se atribuíram o
direito de admitir,isto é,mais exatamente,de recusar os pretendentes.Nos anos 1500,
as praças chegaram a um acordo sobre regulamentos públicos segundo os quais só
seriam agregados aos Conselhos"nobres de quatro quartos de nome e de armas,sem
nenhuma interrupção". Isso significa que as famíhas detentoras de mais numerosos
títulos e os grandes oficiais da Coroa postulavam ardentemente uma cadeira em
alguma praça.FUipe H(1527-1598)apertou ainda mais a porta estreita:seria necessá
rio doravante o consenso unânime dos titulares e, além disso, o do rei em pessoa."
Pois bem,os Ligórios não precisaram abrir caminho acotovelando e se se^do
de influências a fim de obter cadeiras no Conselho de Portanova: já aí presidiam,
certamente,cem anos antes pelo menosde Filipe n,provavelmente antesde Carios de
Anjou e é verossímil que desde o tempo do governador Marco de Ligório, no fim o
século XII. Não eram, pois, destes "felizardos do armorial",enriquecidos no negócio
ou na trapaça,a quem o reiconcedia títulos nobilitáriosem troco do financiamento de
suas guerras; esses nobres por privilégio dos quais os nobres de ori^m escmi^iam
com este provérbio:"Duques,sim;cavaleiros,não".Em finsde setembro de 1710,para
os seus catorze anos, o senhor Afonso de Ligório, cavaleiro napolit^o, ocupará na
sede de Portanova o lugar ocupado por gerações de antepassados,ao lado de seu paio
senhor José, que é então seu Capitano a guerra, o comandante da guarda cívica.
Pois, quanto aos Ligórios, não partüham a ociosidade pomposa e ruinosa da
maioria dos aristocratas napolitanos do tempo.Eles são ambiciosos,talvez cheguem à
cupidez: Dai Justinianus honores,"o Código dá acesso às honras ... e a trapaça ao
dinheiro;tios e primos ocupam ativamente o pretório e a magistratura.® Ouentão,são
aventureiros e batalhadores:foi nas armas que,durante três gerações,os ^cendentes
paternos do senhor José fizeram carreira.Seu bisavô,o senhor Antônio,foi governador
militar da ilha-fortaleza de Nisida, defesa avançada entre as duas baías de Nápoles.
Seu avô,o senhor Afonso,trocou o código pela espada;comandando um regimento de
escudeiros, sua coragem chamou a atenção do belicoso Filipe IV (1605-1665). Final
mente seu pai, senhor Domingos, foi também ele oficial; esteve à firente de uma
unidade napolitana de infantaria de marinha na armada espanhola que guerreava,em
1667, ao longo das costas portuguesas.Seus serviços foram tão brilhantes que regres
sou dotado por Madri de uma renda mensal de 50 escudos. Mais do que o necessário
para se casar. Desposou portanto,em 1668, a senhora Andreana Mastrillo, uma viúva
de Nola, cuja filha (Eleonora) adotou.^
Foi assim que seu primogênito,José,nasceu em Nola,na família de sua mãe,no
dia 5 de fevereiro de 1670.® Ele tem sangue de soldado nas veias, e a imaginação
30 PARTE I Cap. 2
povoada de armadas. Órfão de mâe aos seis anos, cresceu em Nápoles entre um pai
casado em segundas núpcias e uma madrasta, uma irmã mais velha que não é dele e
duas irmãs mais moças,Jerônima e Hipólita(chamada também de Porzia)que prefe
rem suas bonecas a seus sonhos de campanhas e de cruzeiros. Talvez para libertá-lo, o
senhor Domingos, desde 1685 — ele está com quinze anos — transfere para ele a
propriedade de todos osseus bens,reservando para sio usufruto durante a vida;salvo
quanto a s^residência de verão de Marianella, da qual lhe cede o uso imediato. Ele
próprio reside certamente no palácio que possuinaextremidade oeste darua Toledo.®
Marianella, nome que canta evocando a Virgem menina; Marianella, vilarejo-
satélite de setecentos habitantes ao norte da capital: uma excursão de oito quilôme
tros através dejardins e bosques, para além de Capodimonte. Ao lado da igreja, uma
vasta propriedade, de jardins, pomares e bosques, onde os Ligórios se sucedem há
duzentos anos. Nos anos 1660, enquanto o avô, o senhor Afonso, lutava com seus
escudeiros a serviço de Filipe IV, seu irmão e co-proprietário, o senhor Hércules,
substituiu um pequeno pavilhão pela ampla construção que ojovem José vai ocupar:
dois andares — uma "vinte-peças" — erguida sobre um andar térreo onde havia
dependências de serviço e bassi(compartimentos ao nível do solo)para alugar. Esse
primeiro "seu lar", José gostará de embelezá-lo, de tomá-lo mais amplo,comprando
terras e casas. Por enquanto limita-se a vir passar aí suas "licenças" solitárias.'®
Amda adolescente, ele deixa um lar que não é mais totalmente o seu, para
empuimar as armas e enfrentar o mar.Seu pai, que deve ter mantido contato com a
talvez a nela ingressar. Pela porta estreita. José começa pelo
degrai^ como simples aventurero na galera Capitana. Nada de um "aventu
reiro ,menos^dade mercenário:longe de receber o mínimo soldo,o aventurero
m e garantir a própria subsistência! A trirreme,com efeito,compreende 400 força-
e 105 oficiais e soldados,nem um único a mais.O aventurero utiliza sua
p p P®ssoae seusducadosem vista apenasdo privilégio de ocupar um lugar nafila
que es que esper^ a morte ou a demissão de um dos 105 militares. Ele avançará
então um grau na direção de um posto titular que lhe garantirá soldo e alimentação.
Com a esperança de galões...
Nossojovern cavaleiro serve pois desse modo durante um ano ou dois na infanta-
m de mai^a. Ora fuzüeiro e artilheiro, ajudante de estaleiro e timoneiro noviço,
• ^ com bússola ou pelas estrelas. Tanto assim que
ren a m i ar ^de'f®^P^^°t)tém
50 escudos pordemês.
Madri um decretoLigório
O aventurero real transferindo paraoJosé
atinge assim grausua
de
+** ~(esses termos são espanhóis: não nos esqueçamos de que o exército
^ j bem
soldado ^ soldado:
^ ^ um comandante
P®®sa a ser sustentado pelo Estado;
de galera ganhava é doravante
55escudos soldado;
mensais. Quinzee
anos ele servirá assim na infantaria naval a bordo da Capitana, subindo não
sabemos em que ritmo preciso — os degraus da hierarquia militar." Quinze anos de
uma situação fulgurante como o mar nos belos dias,apesar das agitações,em terra e
fora dela, da guerra da Sucessão da Espanha.
Não o imaginemos vagueando ao longo das costas asiáticas ou marroquinas. A
frota de guerra napolitana só compreendia sete trirremes'®, algumas embarcações
ligeiras para manobras rápidas e,é claro,tartanas para transportar as"mtmições"de
boca Sua tarefa? Manter à distância os piratas que sondavam as margens do mar
PARTE I Cap. 2 31
Tirreno, proteger os portos,escoltar os transportes marítimos — tropas ou mercado
rias — em volta do pé da "bota", do Adriático até o golfo de Gaeta, garantir a
segurança dos comboios diplomáticos entre Barcelona e Nápoles, eventualmente
escoltar as viagens reais.
O que eqüivale a dizer que o senhor José,freqüentemente ausente,raramente se
encontra muito longe de Nápoles,nem por muito tempo.Essesquinze anostranqüilos,
partilhados entre o mar e a cidade, serão portanto os da constituição de sua família.
No dia 15 de maio de 1695, na catedral de Nápoles,o jovem oficial desposa dona Ana
Catarina Cavalieri,dez meses mais moça do que ele.Ele está com vinte e cinco anos.'®
Dona Ana é um partido prestigioso. Nascida em 24 de novembro de 1670, é a
quinta criança de um dos primeiros magistrados do Reino,o senhor Frederico Cava
lieri, e de dona Helena d'Avenia, da família, espanhola de origem, dos marqueses
d'Avenia.
Uma dinastia de eminentes homens de lei, estes Avenia-Gizzio. Quando não são
eclesiásticos. Um tio bisavô de Helena,Francisco Gizzio(t 1698),oratoriano,é célebre
por seu zelo e por sua eloqüência"»;ele vive,no Oratório dos filhos de são Filipe Néri, os
últimos anos de uma vida inteiramente consagrada à educação cristã dos jovens
nobres napolitanos. Um jovem primo irmão de Helena, Pedro Marco Gizzio, já é
cônego da catedrale oficial da diocese.Afonso o chamará afetuosamente de seu tio ,
segundo o uso do tempo.
Quanto aos Cavalieri,eles são o tipo acabado da família patrícia de então,cujos
dois pólos vitais são o direito de primogenitura e a religião. O pai de Ana, o ^nhor
Frederico, traz assim o patrimônio, a linhagem, o nome dos Cavalieri. Eminente
jurista, é presidente da Câmara Real da Sommaria (1688)— ao mesmo tempo Corte
das Contase Ministério das Finanças—encarregada da gestão dos bens da Coroae do
Estado: domínios,frota, arsenais,feudos,fiscos, alfândegas..., de julgar seus delitos e
ser o árbitro de seus conflitos. Ele será chamado,no ano seguinte, 1696 — ao mesmo
tempo que se tomará avô de Afonso — a ocupar uma cadeira no Sacro Conselho Real
de Santa Clara o Supremo Tribimal de apelação que é como o reiem pessoa,acima da
Sommaria e da Viçaria(a Alta Corte criminal e civü). Um muito grande antepassado,
este Frederico! Durante essa ascensão,seus três irmãos mais moços desapareceram
da competição e da herança:com ou sem vocação,um é enclausurado nos olivetanos,
outro nos carmelitas descalços e o terceiro nos celestinos. Nenhuma dessas ordens
figura então,em Nápoles, na vanguarda do fervor e da pobreza.'®
A alta situação do senhor Frederico Cavalieri é certamente devida também a
uma coragem estimulada e canalizada pela infelicidade. Depois de onze anos de
casamento apenas,aos vinte e oito anos,suaesposa Helena morre de parto dando uma
vida de algumas horas a seu sexto filho, Francisco. Nossa Ana Maria Catarina conti
nuou sendo assim, aos três anos, a caçula de um lar que perdera sua alma e seu
coração.O pai conservou-ajunto de si,com os dois meninos Emílio e José — de onze e
sete anos—e internou as irmãs mais"velhas",Teresa e Cecília—nove e seis anos—no
colégio do mosteiro de São Francisco dos Capuchinhos Reformados, no atual n.® 44 da
ladeira Pontecorvo. Ele continua sozinho sua vida, enrijecido por sua dor, seu tra
balho, sua fé. Monsenhor Sanfelice, futuro bispo de Nardo, o descreve como "um

32 PARTE I Cap. 2
ministro de perfeita integridade,apaixonado pelajustiça, uma alma forte, incapaz de
respeito humano, um modelo em toda sua vida, repleto de santo temor de Deus".'®
Mas os chefes de família daquele tempo, uma vez cumpridos seus "deveres
religiosos" plenamente, achavam que Deus lhes garantia a reciprocidade. Não, não,
que o Senhor não queira exercer,sobre osseiis primogênitos,sua vontade própria!Seu
Emílio Giacomo, nascido aos 24 de julho de 1663, primeiro fruto de sua união com
Helena d'Avenia,entrou portanto em sua trilha,a Universidade,com a perspectiva de
recolher a herança indivisívele aresponsabilidade do nome e do renome.Ora,Emílio é
filho de^u pai: é,como ele, de boa témpera. Tomou a liberdade, como Deus,de ter
uma idéia própria: aos vinte anos, terminados seus estudos de Direito, disse não ãs
tradições imperiosas e,sem avisar nem rever seu pai,entrou no noviciado dos padres
Pios Operários, missionários do povo humilde. A tempestade foi terrível no palácio
Cavalieri.A fim de arrancá-lo de seu projeto"insensato",o presidente Frederico foi até
o ponto de intentar contra seu filho um processo canônico jimto ao tribimal eclesiás
tico. Sessenta anos mais tarde, Afonso, que terá conhecido semelhantes combates,
contará o fato em seu Avisos sobre a vocação religiosa,sem dizer que se trata de seu
tio.
O presidente perdeu seu processo. Quanto a Emílio,saiu lucrando a atenção e a
estima do arcebispo,o cardeal Antônio Pignatelli.Este o ordenou presbítero aos vinte
e quatro anos,com dispensa de idade,e não tardou a nomeá-lo examinador dosjovens
padres e co-responsáveis do clero (diríamos hoje "vigário episcopal").
Em 1661, Pignatelli tomou-se o papa Inocéncio XII. Sucedeu-lhe em Nápoles o
c^deal Giacomo Cantelmo Stuart, primo de Jaime 11 da Inglaterra. Suas missões
ip omáticas na Sihça, na Polônia e na Alemanha,longe de abrandar o diplomata,
via alçado a lâmina de sua intolerância. Imediatamente portanto reativou a
quisição episcopal.'^ Para Promotor da fé, escolheu o padre Cavalieri. Jurista de
onnação e de espírito, homem da lei e do rigor, Emílio por acréscimo já ganhara a
estima de ^us confrades e da diocese por sua prudência e sua habilidade. Ele se viu,
pois, aos vinte e oito anos, consultor, em seguida juiz fiscal, nesse temível Tribimal.
Ora,tradicionalmente,a Inquisição era o Monstro Negro de Nápoles.Acrescentemos a
aspereza de um zelo jovem demais, métodos inquisitoriais que tendiam mais para a
serpente do que para a pomba,náo precisaria de tanto para.fazer se levantar contra ele
e seu chefe todas as praças da cidade,inclusive a do Popolo.Seus seis deputados,por
ocasião de uma reunião da Città no Tribunal de São Lourenço, cogitaram exigir o
afastamento do cardeal e de seu esbirro. Nada menos do que isso! Acabaram pior se
contentar com um decreto de expulsão contra o padre Cavalieri. O banido tomou
portanto o caminho de Roma onde os Pios Operários acabam de fundar (1689) um
centro de missões na igreja de Santa Balbina. NoAventino, ele encontrou, como
superior, um confrade de sua idade, o padre Tomás Falcoia (1663-1743), um homem
que pesará fortemente sobre nosso Afonso e sua obra.
Roma,aíestava um protetor pessoal no trono de Pedro.A fim de defender Emílio,
Inocéncio xn,que o ama e estima,o promoveu, aos vinte e nove anos, a despeito dos
Santos Cânones,bispo de Fondi.Uma diocese minúscula e miserável —10.000 almas,
1.000 ducados de renda anual—masera a única vaga na ocasião que não ficaria longe
demais de Nápoles. Cavalieri foi se prostrar aos pés do Santo Padre para recusar
humildemente a mitra."De acordo,disse o papa, mas o senhor virá doravante morar
PARTE I Cap. 2 33
comigo no Palácio pontifício". Após um ano desse exílio dourado, Inocéncio XII
nomeou seu jovem amigo para a sede ambicionada de Tróia — 28.000 almas, 9.000
ducados. A humildade de Emílio teve de se dobrar diante da obediência. Ele foi
ordenado bispo a 2 de maio de 1694, um ano antes do casamento de sua umazinha.
Com trinta anos. Seus adversários ficam despeitados; as más línguas não faltam para
dizer que ele só recusou a aliança da Igreja pobre de Fondi a fim de reservar sua mão
para uma esposa mais bem dotada.'® Nem por isso o senhor José de Ligório deixa de
ficarjustamente orgulhoso de desposar,quanto a ele, a irmã de um bispo importante,
sem dúvida o mais jovem da cristandade.
Quanto ao presidente Cavalieri, pode esfregar suas mãos de contentamento
exatamente por causa daquilo que antes acendera seu furor. Tanto mais que seu
segundo filho, um José também,em favor do qual ojovem bispo renunciou seu direito
de primogenitura, cumula-o de esperança. Ele se tomará, com efeito. Ministro da
Justiça,em seguida,da Guerra,conselheiro no Sacro Conselho Real de Santa Clara,
prefeito de Cápua... Será preciso acrescentar que terá um filho dominicano e duas
filhas visitandinas?'®
Quanto a suas duas irmãs, cresceram com as "Cappuccinelle (capuchinhas).
Teresa aí ficou doente; voltou para casa a fim de se tratar... para aí morrer, tubercu
losa,na flor de seus vinte anos.Cecília fezlã profissão solene"pelas duas"com o nome
de irmã Maria Francisca Teresa (Teresa!)do Coração de Jesus. Será eleita e reeleita
abadessa continuamente.
Faltava a pequena Ana Catarina. Depois de ter crescido em companhia do pai
até seus catorze anos,em dezembro de 1684 havia ido se jimtar no colégio das capu
chinhas a suas irmãs mais velhas que a esperavam havia dez anos. Certamente ai
permaneceu outros dez anos aproximadamente; até seu casamento.
Asjovens patrícias se casavam normalmente ao saírem do convento. A seqüên
cia atual:"Eles se encontram"-"Gostam um do outro"-"Passam aestarjuntos"-
"Amam-se"-"Avisam o paie a mãe"-"Casam-se",não era conhecida,era impossí
vel. Os pais é que faziam "sua"escolha,às vezes com muita antecedência.Por razões
de família: bens,um feudo, um título, um nome.Só ficava faltando que os"interess^
dos"(?) pronunciassem o "você quer — eu quero" imposto pelo concilio de Trento. O
amor não era pois uma exigência prévia para o casamento.Mas podia ser,em compen
sação,seu primeiro finito.E não era raro.Mas nesse caso,ele se envolvia de reservae de
discrição. Se nós sabemos que dona Ana trazia para o senhor José 5.000 ducados em
seu ramalhete de noiva®',ignoramos tudo a respeito do capital de sentimentos que eles
puseram em comum nesta primavera de 1695 que os uniu durante cinqüenta anos e
seis meses...
34 PARTE I Cap. 2

NOTA

1. SH 1 (1953), pp. 114SS.; 5 (1957), pp. 122-123.

2. B. Croce, Storia dei regno di Napoli, p. 113; R. Bouvier e A. Laffargue, La vie napolitaine au XVIII"
siècle, p. 38.
3. Contributi(S. Alfonso de LiguorL Contributi bio-bibliographici), pp. 19-22, 36.
4. P. Giannone, Histoire civile du royaume de Naples, L. XX,cap. 4.
5. Contributi, pp. 23, 36, 41.
6. Ibid., p. 22.
7. SH 7(1959), pp. 229SS.
8. Contributi, p. 23.
9. Ibid., p. 33; SH 13 (1965), pp. 102-104.
10. ASDN, Visite Pastorali, A. Pignatelli, H, ü. 199; Contributi, pp. 24-26, 30-35. 3. BERÇOS E VIDAS
11. SH 7(1959), pp. 231SS.
12. R. Telleria, San Alfonso Maria de Liguori, tomo I, p. 12, nota 44.
13. SH 7 (1959), p. 231, nota 9; Contributi, p. 24.
14. R. de Maio. Società et vita religiosa a Napoli nell'età moderna (1656-1799), pp. 56, 59. 63. 145.
15. Ibid., pp. 108-109. Nos anos 1700, Nápoles ainda se encaramujava medrosamente em seu recinto
16. TeUeria. op. cit, I. p. 6; SH 2(1954). p. 283. nota 12. fortificado, sob a proteção do Castelo São Elmo. Com seus 214.000 habitantes, ela se
17. De Maio. op. cit., pp. 25-26. asfixiava dentro de suas muralhas como uma matrona no interior do colete de uma
18. Giuseppe Galasse,"NapoU nel Viceregno spagnolo 1696-1707", in Storia di Napoli, VII. p. 68-85; pessoa esbelta. Foi preciso a chegada dos austríacos e as violentas reclamações de
Luciano Osbat,L'Inquisizione aNapoli.li processo agli ateisti 1688-1697,pp.149ss.. 192.200,etc.; D.Vizzari.E.
Cavalieri da inqnisitore napoietano e vescovo di Tróia, Nápoles. 1976 uma população sufocada, para arrancar finalmente do vice-rei, o conde de Daun,em
19. SH 7(1959). pp. 250-251. 1717,aautorização de construirfora dosmuros.Só em 1740se começará a derrubá-los.
20. SH 2(1954). pp. 283-284; Analecta C.SS.R., 11 (1932). pp. 45-46.
21. SH 5 (1957). p. 241. Assim é que a despeito das ordens de Madri, o vice-rei Pedro de Toledo, em
meados do século XVI, havia deixado estourar volumosas hérnias da cidade fora dos
muros. Para além da Porta São Gennaro, o bairro das Virgens se havia assim desen
volvido no fundo de encostas verdejantes que se elevam em direção a Capodimonte.^

Foi nessa região relativamente nova,arejada,lavada pelas chuvas vertendo das

alturas,que José e Ana de Ligório,recém-casados,encontraram abiigo.Ela não ficará
longe de seu pai durante as longas ausências do jovem oficial; e ele só terá de descer
pela rua Toledo para alcançar o porto militar de sua trirreme-almirante,a Capitana.É
portanto aí, e não na casa natal de Marianella, que crescerã, até seus onze anos, o
jovem Afonso.

Teriam alugado um dos três apartamentos do palácio Scordovillo,na esquina da

rua das Virgens e do Supportico Lopez(no n.o 38 de hoje)? O fato deles o comprarem
em 1717 permite essa coiyetura. Entretanto é mais verossímil que se tenham insta
lado algumas centenas de metros mais adiante, com um primo de segimdo grau, o
jovem Domingos de Ligório(1674-1752),cuja ampla morada se sobressai ainda no n.o 2
da rua S.Maria Antesaecula.É a tradição oral ainda hoje conservada pelos Ligórios di
Presiccio.2 De qualquer forma é um fato que, desde seu matrimônio até 1707 — será
para eles o decênio dos berços — serão paroquianos de S. Maria das Virgens. Temos
como irrecusáveis testemimhas os livros XI e XII dos Batismos dessa paróquia:
depois do ato de batismo de Afonso Maria,em 29 de setembro de 1696,lemos em suas
datas os de seus sete irmãos.

O casal Ligório-Cavalieri pós no mimdo oito filhos em dez anos:quatro meninos e

quatro meninas.

Vimos nascer o primogênito,Afonso Maria,em Marianella com a aurora do dia 27

de setembro de 1696.
36 PARTE I Cap. 3
Antônio vem alegrá-lo a 5 de novembro de 1698. Com certeza cresceram juntos.
No dia 21 de março de 1816, com o nome de Benedito Maria, Antônio fará profissáo
solene entre os beneditinos da Congregação de Monte Cassino, em seu super-rlco
mosteiro napolitano dos santos Severino e Sosslo. Mestre de noviços com trmta e três
anos, morreu aos quarenta,"mártir de penitência e de abnegação", garante Tannola.
Mas a história diz que esse convento nadava então na preguiça e no relaxamento.^
De 25 de fevereiro de 1700 são as gêmeas Bárbara e Madalena. O livro dos
Batismos anota que Madalena,nascida em segundo lugar e portanto concebida antes
da outra segundo a antiga crença, foi quem recebeu o batismo em primeiro lug^.
Talvez também se temesse sua morte? O fato ê que ela logo desaparece da história
familiar dos Llgórios.A náo ser o seu nome que será acrescentado na frente do de Ana
Maria,a primeira menina que nascerá depois dela,em 1702.Presença de um anjo que
voou? Quanto a Bárbara, será Internada em um colégio, portanto naquela época na
clausura,aos nove anos,com asfranclscanas de Sáo Jerônlmo,onde receberá o hábito
religioso aos quinze anos com o nome de Irmã Maria Luíza.
Caetano,de 4de setembro de 1701,crescerá,como seus dois Irmáos mais velhos,
em casa.Meninos felizes! Este será padre diocesano por orientação paterna: desde os
catorze anos,o senhor José lhe obterá de seu amigo,o duque de Gravlna-Orslnl, um
benefício eclesiástico cujo padroado cabe a este príncipe.No entanto,o adolescente só
se decidirá pelo sacerdócio uns doze anos mais tarde.Será ordenado em 1730. Até sua
morte,em 1784,"levará, na casa paterna,uma vida seml-eremitlca"(Tannola)tendo,
como encargo pastoral,o de zelar pelacapela do Tesouro de São Gennaro,na catedral.
Mas o biasto de prata que aí preside desde 1840,com os outros santos padroeiros de
Nápoles, é o de seu Irmão Afonso.
No dia 28 de novembro de 1702, eis que vem ao mundo Ana Maria Madalena,
chamada de Aninha. Vão enclausurá-la mais cedo ainda do que sua irmã Bárbara,no
mosteiro de são Jerônlmo. Como ainda náo tem cinco anos, um breve pontifício de
Clemente XI ao cardeal Plgnatelll se dignará conceder a dispensa de Idade: não se
podia enclausurar meninas antes da Idade da razão. Depois de dez anos de Intemato,
ela será admitida, ela também, ao noviciado, com quinze anos, e se tomará irmã
Marlana, ao lado da Irmã Maria Luíza. Sua vida consistirá numa longa doença de
corpo e espírito. Torturada de escrúpulos, ela esgotará todos os recursos de seus
confessoresjesuítas e de seu próprio Irmáo."Você vai morrer louca",lhe dirá um dia
Afonso. E assim lhe acontecerá, coitada. Precisará de quem a vigie noite e dia.'»
As criançasse sucedem e não se assemelham.Teresa Maria,de 12 de dezembro de
1704, esta crescerá jimto de sua mãe até o casamento,em 1720, aos dezesseis anos,com
o duque Domingos dei Balzo, barão de Presenzano. Um menino para perpetuar o
nome,alinhagemeo patrimônio,umamenlna para oferecerem casamento aqualquer
nobre herdeiro, era o bom êxito familiar e o equilíbrio social da nobreza.
O último nascimento, Hércules, em 30 de novembro de 1706, talvez tenha preo
cupado seus pais. Comerá ele da guerra, da tramóia, do negócio, de um benefício
eclesiástico ou da mesa comum de um mosteiro? Afonso resolverá a questão cedendo-
Ihe seu lugar.®
PARTE I Cap. 3 37
Hoje em dia se fica perplexo diante dessa distribuição das cartas pelo pater
famílias. Nem Deus, o Pai todo-poderoso, ele mesmo, não se atribui esses direitos
exorbitantes!... Eram os costumes do tempo e os Imperativos sóclo-económlcos do
Antigo Regime.
Nós o vimos quanto a Emílio Cavallerl. a "sucessão" era regida por este duplo
princípio conservador: perpetuar a Casa; não esfacelar seu patrimônio,feudos,terras
e edificações. Isso Implicava no morgado, ou direito de primogenltura. em favor do
primeiro filho. Os meninos "a mais" tentavam a aventura da espada, da toga, dos
negócios,da tonsura ou do hábito. As meninas tinham direito à sua"legítima".Isto é,à
sua manutenção, enquanto ficassem em casa, e a um dote ou a uma renda se se
casassem ou entrassem para um convento.O concilio de Trento tendo declarado que
se devia admitir sob pena de anátema que "a virgindade é mais perfeita e mais
honrosa do que o matrimônio", a solução do mosteiro era, naturalmente,"a melhor
para a glória de Deus e a felicidade das mulheres! Motivo pelo qual certas grandes
famílias possuíam "seu" mosteiro a fim de nele abrigar suas filhas. Ah!É claro, bem
fora do alcance dos namorados! Uma pena de excomunhão estava reservada para o
atrevido que,sem a permissão do bispo,tivesse Ido conversar,através das grades,não
apenas com uma religiosa, mas com uma simples educanda!
Verdadeiramente, que poderia significar, por parte da pequena Aninha — que
ainda não tem cinco anos — esse requerimento ao papa Clemente XI em que ela se
mostrava sensata em "lhe exprimir seu ardente desejo de ser admitida no mosteiro
das franclscanas de S. Jerônlmo, a fim de preservar sua honra e lá se Imbuir de bons
costumes"? Ou então, após sete ou dez anos de clausura, este pedido, assinado por
Bárbara em 1715, aos quinze anos,e por Ana Maria em 1718, aos dezesseis, para fazer
profissão por toda a vida, atestando "não ter sido forçada, ameaçada nem constran
gida por ninguém"?É verdade que era a fórmula padronizada"exigida livremente de
todas, para que ninguém caísse sob o golpe excomungatórlo do concilio de Trento.
Aliás, essa chaga das "vocações" orientadas não era napolitana; era ocidental:
prendla-se ao Antigo Regime.O concilio de Trento não estava lutando com moinhos
de vento quando excomungava quem quer que fosse, rei ou cardeal, que forçasse
moças ou viúvas a entrarem para um mosteiro ou fazerem profissão. Essa pressão
sociológica autoritária sobre os destinos forneceu à literatura um velo de ouro abun
dantemente explorado fora da Itália. Foi na França que surgiu A Religiosa de Dlderot,
essa maldosa caricatura. É na História do catolicismo na França, e a respeito do
século XVlll, que André Latreüle, embora lhe proporcionando todas as surdinas
Indispensáveis,reconhece que provas não faltam aos romancistas que descrevem os
claustros cheios de vocaçõesforçadas,jovens de famílias sacrificadosem benefício dos
mais velhos, moças votadas contra sua vontade a um cellbato contra a natureza .
Quanto ao clero, havia, na França,nos anos 1700,duzentos e cinqüenta mil membros
para vinte mühóes de habitantes. Isto é, dez vezes a mais. E não foi num rom^ce
napolitano e sim num sermão famoso Sobre a vocação que o manso MassUlon
mostrou-se iodlgnado:
— Mas não se pode, vocês dirão, numa família numerosa,colocar a todos
em atividades não-rellglosas.
— Mas como?! meus Irmãos, para não partilhar seus bens, vocês sacrifi
cam seus filhos!...Imolam-se os mais moços à grandeza de um mais velho...Pais
38 PARTE I Cap. 3
bárbarose desumanos,a fim de elevar um só de seusfilhos mais alto do que seus
antepassados, consideram como nada o sacrifício de todos os outros: eles ar
rancam do mundo filhos para os quais somente a autoridade toma o lugar da
vocação;conduzem ao altar infelizes vítimas que vão se imolar à cupidez de seu
pai antes do que à grandeza do Deus que aí se adora...É assim que a imprudên
cia, a ordem de nascimento, a cupidez, as considerações humanas decidem o
destino de quase todos os homens;e daí provém descontentamentos em todos
os estados, tanto arrependimento nos casamentos, tanto aborrecimento no
serviço, tanta revolta, tédio, amargura nos claustros.
Certamente a Europa catóUca inteira merecia essas repreensões.
A irreflexão dos pais, a obediência sacralizada dos filhos, o peso dos hábitos, a
pressão sociológica, os imperativos econômicos — onde reside o único verdadeiro
poder de todos os regimes—e"algum diabo ajudando",tomavam toleráveis para as
consciências essas maneiras de agir.
Os imperativos econômicos!... Certos historiadores gemem por causa da expan
são topográfica da Nápoles sagrada de então: um solo demasiado estreito em grande
parte invadido por conventos, mosteiros,igrejas,"conservatórios" de meninas ou de
meninos, casas de refúgio ou de retiros, com seus vastos domínios, condenando a
população pobre a se amontoar em casebres, a empilhar esses casebres até o céu.
Talvez se deva ver nessas riquíssimas fíindações a súplica inconsciente de uma triste
sociedade que se absolvia assim e queria ser perdoada pela internação desses "en
clausurados à força",tomando-os para eles locais suntuosos? Infelizmente,em trinta
e sete mosteiros femininos e cento e quatro conventos masculinos,três quartas partes
escandalizavam por sua ociosidade, seu luxo e seu amor ao dinheiro.®
Voltando à família Ligório, não a vemos aqui, nem pior que as outras, nem
melhor. Somos até obrigados a constatar que, nessas vocações "paternas", o econô
mico desempenha um papel embaraçador.
É em 1715 que Antônio entra para os beneditinos e toma parte vitalícia em sua
mesa comum. É também em 1715 que Caetano, aos quatorze anos destinado ao
clericato, é acomodado a um benefício eclesiástico; dessa forma, por meio de uma
tonsura atrás da cabeça,eis um prato pago diante de sua boca,na mesa de família, por
meio de uma sinecura rendosa. Ainda é em 1715 que o senhor José não pode fornecer a
Bárbara os 1.500 ducados de que necessita para fazer voto de pobreza entre as Francisca-
nas de São Jerônimo. Desse dote, 1.000 ducados serão então adiantados por uma
benfeitora,irmã Benedita Maria de Angelis,e 500 pelos"Governadores do Monte dos
Pobres envergonhados".^ Fundado em 1614, "governado" por uma fíratemidade de
cavaleiros,esse Monte dosPobres envergonhados tinha,entre outras finalidades,a de
dotar as moças da nobreza,cuja pobreza impedia de entrar em religião para''desposar
Jesus Cristo".®
Os Ligôrios se encontram tão desprovidos assim de dinheiro? Ou estão atraves
sando por volta de 1715 alguma crise financeira? Levemos até aí uma réstia de luz de
nossa pesquisa.
PARTE I Cap. 3 39
Abundantes documentos de tabelionato vêm pelo contrário mostrá-los, por
volta de 1715,em confortável progresso econômico.Os 7.000 ducados do dote materno
devem estar rendendo mais de 400 por ano. Uma família pobre com quatro filhos tinha
de viver com dez vezes menos: 4 ducados por mês! Surge de repente ao senhor José
uma opulenta herança legada por um reverendo padre, abade Francisco Mastrillo,
primo de sua mãe. Recebe seus 55 ducados mensais como tenente-coronel, coman
dante da Capitana.Por esse título,é membro do Conselho superior da Marinha criado
precisamente em 1715 para realizar a construção de quatro galeras a fim de reforçar a
esquadra real; e isso se paga bem.Por outro lado,esse marinheiro está com os pésem
terra! É visto emprestar somas importantes,colocar capitais em empresas de sal, de
tabaco, de seda, de óleo, de gelo (frigorífico), de ferro, de farinha; ele próprio cria em
1714 e preside uma exploração de madeira nasilhas Pontinas(no golfo de Gaeta),a fim
de fornecer madeiramento de construção e carvão pulverizado utilizado na fabricação
da pólvora. Investe igualmente na pedra: a partir de fevereiro de 1715 — neste mês,
como que por acaso, ele não tem um carlino para dotar Bárbara — o comandante
Ligório, por meio de depósitos importantes ao senhor José Scordovülo, garante os
direitos hipotecários para seu palácio de Supportico Lopez. De fato, ele o comprará
por ato de 30 de novembro de 1717. Em 1717 também,ele comprará,em Marianella, a
casa Cardovino e suas dependências, niam espaço de cinco hectares de terra.®
Não se pode ficar investindo por toda a parte ao mesmo tempo!
E, temos de reconhecer, o senhor José faz questão de dinheiro. Por ocasião da
morte de seu pai,o senhor Domingos,em 1728,será necessário recurso aos advogados
a fim de fazê-lo entregar o soldo dos dotes ainda devidos a suas duas meias-irmãs
Jerônima de Migliore(falecida, mas que deixa dois filhos)e Hipólita dei Balzo.^® Suas
duas filhas fí-anciscanas,as irmãs Mariana e Maria Luíza,terão de citá-lo emjuízo para
arrancar-lhe sua "legítima".^'
Reação contra sua pobreza de aventurero? Dureza de órfão de mãe que cresceu
em meio exclusivamente masculino? Esse capitão de aço é tão austero no lucro como
no trabalho. E além disso há a ambição. Pois nobreza obriga!
Ora,custava caro, em Nápoles, pertencer à aristocracia. Palácio, fausto, festas,
teatro,criadagem, parasitas...: os ducados escorregavam entre os dedos daqueles que
queriam manter sua posição. Tanto mais que o primeiro luxo desses filhos do sol e da
fortuna era, para a maioria,o dolce far niente; a nobreza vivia como grande dama,isto
é, não trabalhava e desprezava o comércio.
Mas não lhe faltavam as circimstãncias atenuantes. Avalia-se que para seis
napolitanos, só um trabalhava^®, os outros cinco se agitavam, corriam, falavam e
gesticulavam sem nada fazer. Sua desculpa até virou provérbio: Nápoles é um pedaço
do céu caído na terra—un pezzo dicielo caduto in terra—e todos sabemos que o céu é
o repouso eterno. Deslumbrado, Goethe escreverá:
Nápoles é um paraíso: todos vivem numa espécie de embriaguez e de
esquecimento de si. É o que eu também estou experimentando.Quase que não
me reconheço mais, e me parece que sou outro homem. Ontem me dizia:"Ou
você sempre foi louco até este dia, ou então está louco agora." (...)

40 PARTE I Cap. 3
Se em Roma a gente estuda de boa vontade,aqui só se pode viver; a gente
se esquece tanto do mimdo quanto de si mesmo,e é para mim uma sensação
singular viver com pessoas ocupadas só com gozar.
O poeta só viu a luz. Num livro recente(1970), um historiador,"bom especialista
da época", G. Spini, aponta as sombras:
A nobreza italiana tomava por modelo, cada vez mais, o exemplo espa
nhol. A ociosidade pomposa da aristocracia espanhola, seu desdém por qual
quer atividade produtora, sua mania de aparecer, sua paixão insensata pela
etiqueta, pelas precedências, pelos pontos de honra e pelos duelos a caracteri
zaram a ela também de modo pouco simpático... Enquanto os privilégios e
títulos retumbantes mantinham contentes e submissos a nobreza e o clero, o
povojazia namiséria,ceifado periodicamente pela penúria e pelas epidemias.'^
Comojá dissemos,os Ligórios e os Cavalieri pertencem a uma elite que recusa o
ócio faustoso. Mas sua ambição visa mais alto do que sua posição. O senhor José não
está esquecido de que seu sogro é um dos supremos magistrados do Sacro Conselho
Real,que seu cunhado é Conselheiro do Estado,Ministro da Guerra,que seu antepas
sado Marco foi govemador em Nápoles, que seu filho Afonso será... Ah!seu fUho,seu
primogênito...Seu amor(pois este cidadão rude é temo,apaixonado pela música).Seu
orgulho!... Insondável orgulho..."Não o confesse mmca. Mas pense sempre."
De qualquer forma,os cavalieri não andam mais a cavalo. As pessoas de distin
ção só saem em carmagem, precedidos e seguidos por lacaios corredores, de libré,
trazendo,à noite,tochas na mão.Du Paty escreverá em suas Cartas sobre a Itália:"A
profissão de quinze mil pessoas em Nápoles é de ficar diante de uma carruagem; de
quinze mü outras,de ficar atrás." Mas eles não corriam de graça;e as librés custavam
mais caro do que o hábito monástico.
E se fossem só esses carregadores de archotes que eles tivessem de sustentar!"As
famílias nobres, observará Galanti, têm uma multidão de empregados: secretários,
mordomos,capelães,pagens,escudeiros,criados de quarto,lacaios, volanti(moços de
recado), cocheiros, cavalariços. Na capital, o emprego de lacaio é generalizado; isso
traz distinção. Seu salário é minguado;seu único recurso para viver será espoliar seu
mestre de todos os meios."'^
Sua situação de oficial superior na Marinha de guerra facüita para o senhor José
o recrutamento de um efetivo de serviço original, abimdante,barato e fácil de formar:
escravos turcos ou barbarescos, capturados em operações de inspeção de piratas.
Seus filhos terão um criado de quarto e não sairão na cidade sem um lacaio atrás.'®
Mas não nos antecipemos, Afonso e Antônio mal sabem andar quando trans
põem o limiar do século XVm.Como se fosse de propósito, uma sacudidela histórica
marca a passagem e acorda duramente essa nobreza adormecida.
No sábado 20 de novembro de 1700,um estafeta extraordinário da embaixada de
Romainforma o Vice-reide que Carlos n morreuem Madri.O pobre soberano não tem
filhos: é a extinção da dinastia dos Habsburgos na Espanha. Mas suas duas irmãs.
PARTE I Cap. 3 41
Maria Teresa e Margarida Teresa,desposaram respectivamente Luís XIV e o impera
dor Leopoldo I. Quais serão as conseqúéncias? Pelo mesmo correio Nápoles fica
sabendo que o defUnto designou por testamento para seu sucessor à firente dos vinte e
três reinos ou principados soberanos ligados à Coroa da Espanha não um sobrinho seu
da Casa da Áustria,masseu sobrinho neto Filipe de Bourbon,duque de Anjou,neto de
Luís XIV. Filipe V (1683-1746)é, pois, proclamado Rei Católico no dia 6 de janeiro de
1701; no dia 19 de fevereiro, ele faz em Madri sua entrada triimfal.
Pelo mesmo fato, tornou-se rei de Nápoles,Palenno e vinte outras "capitais". O
Vice-reiem exercício em Nápoles,o pomposo Luís de Lacerda,duque de Medina Coeli,
não tem nenhuma dificuldade em reconhecê-lo e proclamá-lo. Ele é bom espanhol;
ora, Nápoles continua pertencendo à Espanha. Seu posto é bom; portanto ele conti
nua com seu posto. Nesse caso, Habsburgo ou Bourbon, pouco importa o mestre!
Para o povo,"o rei morreu,viva o rei!", a festa de entronização é sempre boa para
se divertir, o pau-de-sebo é bom para pegar as prendas, e é bom apanhar as moedas
lançadas aos punhados sobre as lájes escuras pelos oficiais da cavalgada.
Mas, por detrás das reverências de fachada e do süéncio dos nobres,fermenta a
conspiração. Toda a amargura deixada pelos Angio,os Angevinos,sobe-lhes ao cora
ção novamente só de ouvir o nome desse duque de "Anjou". E além disso, Nápoles
nutrira a esperança de voltar a ser ela própria capital e não só a cidade principal da
província, com seu rei residindo nela e uma corte onde se pavonear e se divertir
"regiamente".
E, precisamente, fica sabendo que o imperador Leopoldo I reivindica para os
Habsburgos as coroas de seu cunhado defunto. Dele recebe manifestos em que a
exorta a permanecer fiel à Casa da Áustria. A Filipe de Bourbon,ele opõe seu segundo
filho,o arquiduque Carlos.É assim que explode,entre os dois cimhados de Versalhes e
de Viena a guerra da Sucessão da Espanha; treze anos sangrentos ao mesmo tempo
na Espailha, na Alemanha, na Itália do Norte (1701-1714). No sul, nobres conspiram
com o imperador: que ele lhes dê Carlos como seu rei e Mudarão a jogar no mar os
espanhóis e o Vice-rei. Um punhado de conjurados passa à ação no dia 19 de setembro
de 1701, dia da festa de são Gennaro. Mas o santo se retrai na neutralidade! O povo
também.Osrevoltosos não podem fazer mais do que se entrincheirar nos mosteiros de
Santa Clara, de São Sebastião e nas ruas vizinhas. No dia 23 de setembro, o duque de
Popoli,irmão do arcebispo, à firente de um grupo de nobres e da guarnição espanhola,
os ataca. Assim, após três dias de luta inútil e de desordem, o rojão se apagou no
sangue de algumas cabeças entregues ao machado por Luís de Lacerda.'®
As cabeças dos Ligórios permaneceram sobre seus pescoços.Por sorte,o senhor
José se encontrava no mar;exatamente,a 19 de setembro,no porto de Nice. Seguindo
a Capitana"completamente recoberta de dourados e bandeiras , partira a esqua ra
real, pelos meados de agosto, para efetuar o triângulo Nice-Barcelona-Nápoles. Ia
buscar, em Nice, a jovem rainha Maria Luísa da Savóia, prometida à Espanha e a
Füipe V;depois de havê-la conduzido a Barcelona,daí trará um regimento de infanta
ria para reforçar a guarnição espanhola de Castel Nuovo.As galerassó voltaram no dia
28 de dezembro.'^
42 PARTE I Cap. 3

Uma forte tropa de ocupação, um novo vice-rei de mão pesada, o duque de

Escalona,é preciso mais do que isso para conquistar o coração dos napolitanos. Filipe
V resolve ir em pessoa conquistar sua simpatia. A 5 de abril de 1702, deixa a Espanha
nas mãos da rainha—uma regente de treze anos—e singra para Náp)oles,comboiado
por oito naus francesas. No dia de Pãscoa,16 de abril,surge a esquadra real diante de
Baia. Nápoles em peso se dirige para a praia. O jovem rei — dezenove anos — desem
barca na frente do palácio. E os sinos de quinhentas igrejas a tocar; e os canhões a
atirar dos castelos e navios. O senhor José devia estar ocupado com suas p)eças de
artilharia na Capitana.

A Entrada Triunfal deixaram para 20 de maio. Escoltado por três cardeais, por 4."O QUE SERÁ ENTÃO ESTE MENINO?"
grandes do reino e por seus séquitos, o soberano,coroado, percorre uma cidade em
transe, desde C^los V que não vê seu soberano.Os cavaleiros napolitanos o esperam (1696-1708)
ern suas respectivas sedes.Na sede de Portanova,encontra-se o senhor José,com seu
^,0 se or Domingos, e seu primo,o senhor Francisco de Ligório, prínciE)e de Forte em cores, forte em barulhos,forte em cheiros, a rua napolitana do Sette-
cento (de 1700 a 1800)formiga em alegre agitação, na qual se acotovelam sem se
lar ^ flores,salvas, música,discursos. O cortejo prossegue.Os titu- confundir, dizem os historiadores, cinco categorias bem diferenciadas: uma nobreza
r-Qrfos apuano
° uma
seguram a rédea do guarda
cavalo decom
real; honra:o senhor
três outrosFrancisco
cavaleiros,eoo senhor
senhor faustuosa e desocupada, um clero bem remunerado, uma classe média de burgueses
Jose carrega o pãlio.i» parasitas, uma ralé de comerciantes ocupando as lojas e os bassi das propriedades
particulares, e a imensa plebe de uns trinta mü mendigos (os lazzaroni, chamados
também de banchieri porque dormem nos bancos públicos,a não ser que o inverno os
moH essa^cidadedemora no paraíso
de coração partenopeu.
austríaco. Mais
Parte para do que
Milão, paradosua
Vesúvio,
guerra.ele tem amontoe nos patamares das escadas internas).^
— WW J o ——

Até se esquece de um sexto"mundo":o dos escravos negros,orientais ou mouros

Ligório, nasceu na política. Pressente que o céu de
—que constituem,juntamente com os cavalos,o rebanho urbano dos grandes portos.
encontra no bair^'^ pequeno mundo com quem de novo se
Entretanto, a realidade aqui está, próxima. Este texto oficial conta pouco mais
de duzentos anos; é de um procurador do rei da França em 1768:
NOTA

A maioria dos escravos que se encontram em Nantes é inútile até perigosa.

1.Bouvier-Laffargue,op.cit..pn loon-r.» •
417. P- ^0, De Maio,op.cit., p. 191; F. M.D'Aria, Un restauratore sociale, p. Nas praças públicas e nas portas só se vêem bandos de negros agrupados que
levam a insolência até o ponto de insultar os cidadãos, não apenas de dia, mas
3. De
3 Maio, op. cit., pp. los-iogU972). pp 325SS
np M durante a noite também.®
4. A. Tannoia, Delia vita ed Istit
5. Contributi, pp. 36-40* SH 4. íiqkc^ Servo di Dio Alfonso Maria di Liguori, tomo II, p. 204.
6. De Maio, op. cit., pp. 105-124 ^ '^-24, 6(1958), p. 276. O fato é que o século XVm é o mais escravagista da época moderna. A Espanha
7. SH 4(1956), pp. 19-20. se acha,juntamente com Portugal, na melhor posição geográfica para o tráfico dos
8. Galanti, op. cit., L. IV, cap. IV § xni i negros. Ela é também sua melhor compradora. É assim que em 1701 — Afonso tem
9. SH 5 (1957). pp. 239-241* 6(195^ n,. ooc cinco anos —o Rei Católico Filipe V concede por dezanos o monopólio desse comércio
10. Analecta, 31 (1960) pp 290 9qi. P* 253; 13 (1965), pp. 107-110, 124-129.
11. Lettere di S. Alfonso M.de LiguorL^IU961).
11. n 11,pp. sSss. para a América espanhola ã Companhia francesa da Guiné,arrebatando pois "lucros
12. De Maio, op. cit., p. 134. 'P* 2. consideráveis à Holanda democrática, à puritana Inglaterra".®
13. Citados por Delumeau, op. cit nr» 11 ,00
14. Galanti, op. cit., L. I. cap. vili"fvi ^ A "madeira de ébano" era necessária sobretudo à economia colonial. Mas a
15. Tannoia, op. cit., I, p. 13.
16. J. Bach,Histoire de saint Francois n Espanha também dela fazia aproveitarsuas possessões italianas: primeiramente suas
17. Telleria, op. cit., I, pp. 11-12 e t PP- 224-227; Galasso, op.cit., pp.218-220,225-226. galeras: cada uma das quais "consurhia" quatrocentos vigorosos remadores. Os ne
resistindo ao mal do mar,'aos insetose ao ®^^^Ser, Philippe V d'Espagne, Paris, 1978, p. 62. Não gros iam se'juntar assim nos grühóes aos condenados aos trabalhos forçados e sobre
o resto da viagem por terra Penume"dos galerianos,a princesa desembarcou na Provença e fez tudo aos prisioneiros da guerra secular e nunca extinta entre cristãos e maometanos.
18. SH 7(1959), p. 232, nota 10; Telleria, op. cit I n lo Às dezenas de milhares,cativos cristãos de todas as nacionalidades,raptados no mar
19. Erlanger, op. cit., pp. 76-82. •» » p- ou nas costas marítimas por piratas barbarescos,gemiam nas prisões do Marrocos,da
Argélia,da Tunísia,do Egito e da Turquia.Reciprocamente,eram numerosos,entre os
forçados ou a serviço dos ricos particulares,os"turcos",isto é,muçulmanos,captura-

L

44 PARTE I Cap. 4
dos no Mediterrâneo por ocasião dasinspeções de navios piratas vindos da Turquia ou
da AMca do Norte. É assim que em seu diário, o Núncio Apostólico em NáE>oles
relatará, no dia 7 de agosto de 1725,"a volta de quatro galeras napolitanas com uma
carga de escravos capturados em quatro navios corsários.'"'
Nmna cidade em que havia uns dez mü deles, o senhor José de Ligório náo era
portanto um fenômeno pelo fato de "possuir bom número de escravos para executar
os diferentes serviços de sua casa".Tannoia que ficou sabendo disso pelos irmãos de
Afonso,enfatiza:"devido à sua posição de oficial nas galeras, era-lhe mais fácU obtê-
los"; compreendamos, abundantemente e barato.®
Desde o século XVI, os arcebispos de Nápoles se haviam preocupado com a
proteç^e evangelização dosescravos.Nacidade,haviam fundado uma Congregação dos
Catecúmenos encarregada de instruí-los e prepará-los, se possível, para o batismo
J^a as turmas de forçados, nomeavam catequistas; era-lhes destinada a igreja fa.
muralha do porto, para o tempo de sua permanência em
terra.Maso que podiam compreender? Meseseram necessários para aprenderem com
seus pardas e com seus companheiros de cadeias,os forçados,as quatro palavras de
napolitano que acabavam por saber! E que palavras, mamma mia!
Mas houve os jesuítas.
Eficientes e de vanguarda,irmãos de Francisco Xavier, os jesuítas fundam, no
corneço o século XVU,uma Confiraria dos Escravos,para trabalhar em sua evangeli-
mesmo tempo,uma academia das línguas onde aprendem o árabe, o
iversos dialetos desses cativos. Por outro lado,sua influência sobre a alta
carifinHA at« f^ Conscientizar"os grandes a respeito de seus deveres de fé e de
mennc nnrt ® E cis a alegria da colheita:em sua Casa dos Catecú-
vinte por ano acolhem por alguns dias, preparam para o batismo uns
jesuíta, Francisco de Jerônimo (1642-1716)é enviado à
Francisco XavK-^a^ ^ ^P^egnado pelos sonhos de fogo de
escrito ao Padre Garni t ° martírio... Quatro vezes fez esse pedido por
mpntp H Japão será Nápoles",decidiu o Padre Oliva. Ele tem em
todosnsrinminartc ^P^f?^ 6 encruzilhadas, onde "a missão" o envia para pregar
num dia da 1677 o ^ ^ancisco aí descobre os lazzaroni,as prostitutas e,
aos noiipos o ami galés. Logo se tomou um ftreqüentador das docas e,
QAr>rrAntQrtÂc. o ^ galcrianos e dos escravos. Seu único amigo. Esses homens
rtfípiais sâo Horsos nus^*^0» Que paramorenos,
— amarelos, os soldados não passam de "sujeira",
negros—brühantes e para osa
de suor,expostos
seus as ^e ^^eus chicotes, esses "danados"se tomaram para ele rostos, olhares,
nomes,irin os, ®®-^stmmas de forçados o acolhiam com exclamações de alegria:
iTvanff ih já é quase o Coráo:
Evangelho, o nosso pai!" Até
"O padre para osdisse!"
Francisco "turcos", se ele não é ainda o
Por isso, de tanto insistir, o capitão geral das galeras acabou arrancando do
reitor do Gesü Nuovo a nomeação oficial do padre para capelão dosremadores de toda
a esquadra. Seu "envio às galeras", em 1685, encheu Francisco de alegria. Daí por
diante, todas as vezes que as embarcações militares ancorarem no porto, a galera-
PARTE I Cap. 4 45
almirante, a Capitana, será seu quartel general e as turmas de forçados serão sua
paróquia. Até a morte em 1716. Por trinta anos a fio.
É por uma"missão" no sentido forte que ele inaugura sua cura de almas desde a
quaresma de 1685: algumas semanas intensas de pregações,de oração,de encontros,
enquanto a armada está ancorada.Ele se encarregou da Capitana,enviou conflrades a
cada um dos outros navios. E tudo termina, entre flores, música, cantos e... som do
canhão,por uma procissão a S.Maria do Remédio,pela missa e pela comunhão pascal
de cerca de trezentos forçados cristãos. A partir de então, todos os anos, o padre
organizará assim a quaresma dos forçados das galés.
"Trezentos forçados" significa que os dois mil e quinhentos outros remadores
necessários à esquadra eram escravos muçulmanos.Esse será o Japão do missionário;
nele estará o coração de seu coração. Quatro desses "turcos"foram batizados no fim
dessa missão de 1685,primícias de uma colheita agora anual,arrancada por alto preço
ao "deserto".^
Ora —notável conjunção de datas e de homens!— essa posse oficial da cura dos
forçados das galés pelo santo jesuíta data dos primeiros meses de 1685; e é em 1685,
estamos lembrados, que o cavaleiro José de Ligõrio, no entusiasmo de seus quinze
anos,coloca o pé,como aventurero,no tombadilho da Capitana.Durante vinte e três
anos, a g£dera-almirante será sua casa flutuante; e quando, em 1708, a Áustria o
promoverá comandante da Padrona,ele não deixará a"paróquia"do homem de Deus,
nem a irresistível irradiação de sua ternura. Pelo contrário,suas comuns responsabi
lidades só poderão aproximá-los, pois o padre não tardou a se encarregar,não apenas
do povo acorrentado dos tombadilhos flutuantes, mas dos operários do arsenal e do
porto, assim como de todo o bairro da Marinha.®
Detalhe picante: nos anos 1685-1695, enquanto o jovem aspirante ainda não
pensava senão em bombardas e navegação,o missionário conhecia duas filhas notá
veis do presidente Cavalieri: ajovem professa Maria Francisca Teresa do Coração de
Jesus(Cecüia)e,entre as educandas,sua irmãzinha Ana Catarina. A comunidade das
capuchinhas era com efeito uma das que mobilizavam também seu zelo para dias de
reflexão em beneficio de suas alunas.®
Trata-se portanto de um amigo,de um íntimo da casa,é"o padre",que entra no
palácio dos Ligórios neste dia de outono de 1696. Os escravos devem ter sido os
primeiros, logo que o viram, a ir espalhar alegremente a notícia: "Olha o padre
Francisco! Nosso pai!"
Mas hoje ele vem para uma grande circunstância: o primeiro "feliz aconteci
mento" em casa do cavaleiro Ligório.
No início da Idade Média,o cavaleiro habitava o mesmo compartimento que seu
cavalo. Nos séculos XVII-XVIII,a rsilé dos bassiformigava,gente e animais,ha única
sala-cozinha,enquanto a elite se perdia nos vastos e numerosos compartimentos dos
andares.Maso quarto de dormir,embora separado,conservava seu caráter público.O
leito era o móvel de aparato do rico. Recebiam-se as visitas na cama,tocava-se música
na cama; daí se davam as ordens aos criados.'® Não se sabia que o quarto da Rainha
46 PARTE I Cap. 4 PARTE I Cap. 4 47

era a mais bela sala do palácio de Versalhes, e que os reis e rainhas da França e da
Espanha recebiam no leito os embaixadores e os ministros?
Eis pois o que escreve o meticuloso historiador de Francisco de Jerônimo, o
jesuíta Juliano Bach:
No ano de 1696,nasceu um menino que devia mais tarde ilustrar a Igreja e
cujo berço figura com honra na história de são Francisco de Jerônimo. Desde
tempos imemoriais, uma cerimônia muito comovente era de uso nas famílias
nobres do Reino de Nápoles. Três dias depois do nascimento de uma criança,
havia grande recepção.A máe era colocada num leito de gala,cercada por suas
damas de honra e de toda sua criadagem em libré; os homens eram admitidos
sucessivamente a fim de lhe dirigir felicitações, e depois de seu cumprimento,
pagavam para a galeria vizinha ou para um salão indo revmir-se aos outros
amigos da casa que tinham cumprido o mesmo dever. Mas o que era desejado
Igualmente pelas famflias cristãs, ricas ou pobres, era receber a visita de um
santo homem,com a convicção de que isso atrairia as bênçãos de Deus para a
cnança.
ív^nii entrou.Exprimiu suas felicitações. Jimto do bebê se recolheu e o aben-
.' ^^®SJuda, tomando em seus braços o pequeno Afonso, disse à mãe:"Este
TOn+o o Será
venta anos. ^ bispo
idadee avançada, muito
fará grandes avançada;
coisas não morrerá antes de seus no
para d;us."
atenta a Deuse a sua vida interior.Aí a vemossobretudo aplicada ao cuidado de
seus filhos e aos seus deveres de esposa.^^ (pigi igualmente ao espirito monãs-
tico em que crescera), cumpria diariamente a obrigação das horas canônicas,
como uma religiosa.'^
Isso teria podido ser umafuga de suas tarefas maternas.Eram,pelo contrário,as
fontes vivas com as quais alimentava seu pequeno mundo:
A primeira educação de Afonso não foi deixada para empregados,como se
costuma fazer muito fi^qüentemente entre os nobres. Foi suà própria mãe quem
assumiu inteiramente essa responsabilidade, e exclusivamente. Muito à altura
de suas obrigações, dona Ana tomou-as totalmente para si; não confiou a
nenhuma outra pessoa o dever de ensinar a esse filho oscompromissos cristãos,
aliás tanto qüanto a seus irmãos. Disso fiquei sabendo através de seu irmão
Caetano:todas as manhãs a santasenhora fazia questão de abençoar seusfilhos
e de levá-los a exprimir a Deusseus sentimentos de piedade;todas as noites ela
os reunia em volta de si a fim de lhes ensinar os rudimentos da fé cristã,e rezava
com eles o santo rosário e algumas orações em honra dos santos; tomava
cuidado para não deixá-los brincar com outros amigos de sua idade;e a fim de
que a graça prevenisse a malícia e que seus filhos adquirissem desde cedo o
hábito de detestar o pecado, todas as semanas os levava consigo à igreja dos
jerônimos, para se confessarem com o padre Tomás Pagano, seu confessor e
parente.

aleum^^^° primeiro espanto, um silêncio de Anunciação deve ter vibrado por Esse primo afastado tinha um ano amais do que o casal Ligório.Mal ultrapassara
própria respiração' ^üêncio
epente, e que se deteve como que quena
proibido, suspendeu
escada... sua os trinta anos.Já gozava de reputação como professor de teologia.E mais ainda como
homem de Deus. Santo e douto: as duas qualidades que Teresa de Ávila exige do
diretor espiritual.
rante^oda^^lonS^frit^^^
uma tradição viva p
Palavras; repassou-as sem cessar em seu coração du-
Foicertamente dela,ou,seja como for, de "Diretor"? Entendamos "conselheiro": conselheiro escolhido por quem tal pes
munho.1^ '^'^^^iar e pública, que chegou até nós esse teste- soa dirige;e cqja autoridade provém somente da livre escolha daquele ou daquela que
deseja ser dirigido. Assim como se escolhe livremente seu Guia da Cidade ou seu guia
de excursão,porque se tem confiança nele; mas é para segui-lo e obedecer-lhe,porque
anos qurSa^vivSãníní
apóia em documentos nada
freqüentemente no futuro, durante os vinte
Proximidade do senhor José? A história que só se
se quer ir pelo caminho certo.

da poesia...,e anotar com "^^.Pode fazer senão soltar a imaginação e seguir o vôo Tomás Pagano (1669-1755)pertencia à Congregação do "Oratório". Um século e
maio de 1839, o papa Q^ ^^^^i^^^^^avühado, que um século maistarde,aos26de
s rio XVI os elevará jimtos à glória dos santos coroados.
meio atrás, ela se tinha agrupado em volta de são Filipe Néri (1515-1595),junto da
igreja S. Jerônimo da Caridade,em Roma.Em 1586, o "Oratório S. Jerônimo" havia
fundado em Nápoles, em frente do Duomo, isto é, da catedral metropolitana, na
Da profecia de são Pranpic«^ ^ ,
esquina da rua dos Tribxmais com a rua Duomo.Os "filipinos" eram conhecidos em
consciência mais viva unTÍa + Jerônimo,certamente Ana Cavalieri tirou uma toda a cidade por seu nome romano de Girolamini ("jerônimos").^®
educadora. Mas somente sua fó talvez, de sua bela responsabUidade de
lembrarmosde que elasaía de d ^ educação teriam sido suficientes. Basta nos Em meio ao opulento torpor da maioria dos conventos e mosteiros napolitanos,
reformadas da ladeira Pontpcorvo, dandoconvivência
crédito ao com asfervorosas
que afirma capuchinhas
Tannoia: eles faziam parte da dúzia de ordens,jovens ou reformadas onde se vivia fervorosa
mente a oração, a pobreza, a austeridade, o zelo. Para onde só se dirigiam vocações
generosas;e cujos noviciados faziam uma seleção severa.Será por acaso? Todas essas
senh^^M^er d^ oraçS'^^^^
continuado n nratipo^
qualidades dessa grande
pobres,exigente consigo mesma.Havia
ordens eram ativas. Homens atormentados pela preocupação com os outros; e que
encontravam, nesse zelo horizontal, o sentido e o vigor de sua subida vertical para
Oup não a fo-s^lm procurar
Penitências donem
nos teatros, claustro: jejuns, cilícios,
nas tagarelices. Ficavaflagelações.
em casa. Deus. Ou,se preferem,a contemplação da Sarça Ardente os impelia de volta, abrasa-
48 PARTE I Cap. 4
PARTE I Cap. 4 49

dos, para seus irmãos. À frente deles, ao lado de nossos oratorianos ou jerônimos, os
pios operários, os lazaristas, os capuchinhos, os franciscanos alcantarinos (cujo mi A solicitude materna de dona Ana ia crescendo com os anos. Não lhe
nistro provincial em Nápoles era então João José da Cruz(1654-1734),"que conheci bastando o que Afonso aprendia com esses excelentes oratorianos, e particu
muito bem"escreverá mais tarde Afonso^ ®,e que estará a seulado na glória de Bemini, larmente com seu confessor o padre Pagano, ela o instruía pessoalmente de
com Francisco de Jerônimo, neste mesmo 26 de maio de 1839).^^ maneira prática sobre o modo de rezar e sobre os deveres que constituem o
cavaleiro cristão. Ela lhe inspirava o horror deste grande mal que é o pecado,do
inferno a que ele leva,e do pesar que a mínima falta causa ao coração de Jesus
A igreja e o convento dos jerônimos constituíam um dos seis grandes focos de Cristo. Tudo impressionava Afonso.®®
animação espiritual, de qualidade diversa, que partilhavam a metrópole entre si.
Cada qual tinha suas confrarias de artesãos, de comerciantes, de jovens nobres, de Podemos nos pergimtar se a impressão não feriu profundamente demais o psi-
doutores etc. Comò a dos jesuítas em Gresü Nuovo, dos pios operários em São Jorge quismo desse menino por demais sensível; se a ênfase do pecado mortal e do infemo
Maior ou dos teatinos nos Santos Apóstolos^®, a com\inidade sacerdotal dos oratoria não deixou uma chaga que lhe fará pagar toda sua vida um pesado e secreto tributo de
nos irradiava um espírito bem seu, com métodos típicos, dentro da tradição ainda sofrimento íntimo. Mas aqui está a maravilhosa compensação: "Via-se sobretudo
primaveril e vivaz do fundador. dona Ana se esforçar por encher seus filhos de um ardente amor de Jesus Cristo e de
uma confiança filial na Santíssima Virgem Maria."2^ Dois traços que marcarão toda a
Embora pertencessem ao bairro dos Santos Apóstolos, a dois passos dos teati vida de Afonso —e tão mais profundamente do que o fogo do infemo!—na espirituali
nos,os CJavalierieram dafamília,espirituale carnal,dosjerônimos.O padre Francisco dade e no ministério.O menino,quando se tomou velho,gostava de dizer:"Todo bem
Gtssõo, Ito-avô de dona Ana, acabava de morrer aí (1698). Sua poderosa pregação atraía que reconheço ter feito em minha infância,e se nela não cometi mal,devo-o a minha
multidões. Lã dirigira durante vinte e oito anos o Oratório de São José dos Jovens mãe."®®
Nobres. Graças a seu gênio de animação ativa através do teatro, de modo bem
oratoriano, ele deixava dramas e outras peças religiosas que a história literária não O amor é cego, o tempo embeleza as lembranças, mas nós sabemos que as
esqueceu.19 vocações profundasfreqüentemente afloram na infância.Podemoscrer,com Tannoia,
no que dizia a velha Mamãe evocando esse menino espontaneamente aberto para
Deus, grave e piedoso, que gostava de construir pequenos altares e festejar de modo
Ana substituído por Tomás Pagano,também parente de encantador os santos de sua capela."Coração dócil,diz ela ainda,espírito leal, verda
seus dfr^ dasjovens colunas da obra.Durante quarenta anos preencherá deiramente um bom terreno para se semear Deus.Mais do que tudo o menino gostava
com particulares:
pe NerL^o E o guia escolhido lun coração
por dona filialela
Ana, para para com seus
e para a Virgem e para
filhos. da oração, e todos podiam admirar sua constância em suas práticas de piedade:
quando chegava a hora de cumprir alguma devoção com sua mãe, não era preciso
chamá-lo;e não seria ele que omitiria osexercícios pessoais fixados para si mesmo."®®
Essa escolha do padre Pagano,escreve o cardeal Capecelatro, este tam-
m oratoriano,é xima primeira graça do Mistério da Providência que prepara
onso.Padre Pagano era muito considerado em toda a cidade de Nápoles.De Era este o sistema educativo do tempo:os pais associavam os filhos pequenos a
uma pfêdade profunda e feita de amabilidade, ele irradiava o espírito de são suas práticas de piedade, tratando-os afinal como pequenos adultos: eram levados à
missa, ao oficio, aos sermões; tinham de partilhar sua devoção aos santos. Isso pode
rel^ disso,muito erudito.Ascrônicas nosinformam que nunca ter conduzido a um gosto pessoal; mas também ao formalismo; e até ao aborreci
sua Co^^
agregação.Comoaofoiestudo
^oJ^agrando todo
durante o tempo
perto queanos
de trinta lhe deixavam asde
o confessor tarefas de
Afonso, mento,à revolta,à rejeição. Uma certa autenticidade de vida dos educadores foi o que
sem dúvida decidiu, mais do que a liberdade da criança.
do estmíT'^^^^?^ inspirou,juntamente com a piedade,este vivo amor
amor 21 ^ ® valerá para a Igreja tantos frutos de sabedoria e de No caso de Afonso, devemos sublinhar um traço extraordinário que exprime a
grande influência de sua mãe e a fidelidade do filho. Através de toda sua vida de
estudante, de advogado, de missionário, de bispo, e até na decrepitude de seus no
o Núncio apostólico em Nápoles escreve ao venta anos,Afonso guardará e utilizará cotidianamente o cademinho em que sua mãe
Santa Sé: «Nossa cidade acaba de passar por uma grande havia copiado,logo que ele soube soletrar quatro palavras,as orações que lhe ensinara
ni«5i-m de
nistro Hí» grande
WQ do conselheiro
mtegridade Frederico
e competência. "22 Cavalieri. Era tido como um mi quando criança para de manhã e de noite.Quando tiver perdido a vista e a memória,o
velhinho chamará seu fiel leitor e secretário, frei Francisco Romito:"Pegue o cader-
ninho,lhe dirá ele,e leia para mim as orações habituais." As orações de sua infância.
As orações de sua mãe.®^
dia nnos.É a primeira vez que ele se depara com a morte.Num
Não que seu pai não fosse,ele também,francamente cristão,e mesmo piedoso.Os
A mãe se concentra um pouco mais sobre seus filhos. Ligórios pertenciam a esta elite que não era prejudicada nem pela degeneração do
tempo, nem pelo ceticismo nascente. Leais cavaleiros de Deus. O senhor José tinha
50 PARTE I Cap. 4
"iam tio" o primo irmão de seu pai — Domingos (ele também)de Ligório — que se
tomará bispo de Lucera,sede vizinha de Tróia.Pessoalmente,cercado por dois fogos,
só escapava da irradiação de sua esposa em casa para cair na do padre Jerônimo na
Marinha.
Em terra,"homem exemplar,cristão da cabeça aos pés,o senhor José freqüenta
as igrejas e os sacramentos". Todos os anos faz seu retiro com os jesuítas — quem o
atrai senão Francisco de Jerônimo? —ou com seus vizinhos, os lazaristas.
No mar,encontra-se ainda em atmosfera cristã; depois da galera-almirante e da
vice-almirante,a Capitana e a Padrona,as outras haviam sido batizadas como igrejas,
S^ta Bárbara (a padroeira da pólvora e do fogo), S. Gennaro, S. José, S. Carlos, S.
Miguel e, naturalmente, quando se passar para a Áustria e o imperador reforçar sua
esquadra napolitana, S. Leopoldo.^^ Mestre de bordo a partir de 1708, sua cabine se
parecerá com a cela de um monge,as paredes cobertas de santas estampas e, para lhe
fazer companhia, quatro pequenas estátuas do Cristo na Paixão, de uns cinqüenta
centímetros,de madeira pintada:Jesus na agonia,Jesus na flagelação,o Ecce Homo
coroado de espinhos, Jesus carregando a cniz. Elas estão sendo preciosamente con
servadas pelos redentoristas de Ciorani. Em seus últimos dias ele confiará: "Essa
eyoção ao Cristo padecente me valeu muitas graças.Grandes graças.Livrou-me das
mãos dos turcos."2»
Entretanto, militar e marinheiro de carreira,embarcando freqüentemente para
expe ^Ções de muitos meses,o senhor José pertence muito mais a seus homens do que
seus hos."Meu paise encontrava quase sempre em seus cruzeiros,dirá mais tarde
onso. Ele não poderá velar por nossa educação como gostaria. Todo o cuidado
ava por conta de minha mãe."2o
g .a, os meses
nemde"tudo". Porque, no inverno, a esquadra se detinha na enseada de
verão, depois de outono, trazem férias relativas para todos os
cionários, desde o Vice-rei até os remadores das galeras, a não ser que o "turco"
podem ° Ligório, juntos os dois, com sua turminha na alegria,
encontrar ^"r semanas para o seu paraíso de Marianella^z, e tomar a
talvR^ <!iic? - ^ Nicolau de Ligório (irmão do futuro bispo de Lucera), e
todos admirarn Antônia — dona Antônia Salemo — luna pintora que
brinc^ M^m s Poderá então se esquecer de seus galões,temperar sua voz,
mar vai en Ih brincar? Pelo menos sabe rir?... O lobo do
pincéis — T ^ unhas e depor sua aspereza; toma a encontrar seu cravo, seus
cresc ^ ^ udora músicajunto
e pintura —;mas saberá externar sua temma?... Órfão,
de uma madrasta; muito cedo saiu de casa para se
riano<? soldados, e em breve oficial com subalternos, capitão com gale-
talv enfrentando dia e noite as vagas e os ventos,por vezes os corsários,
ma festa homem decombate inimigas.
autoridade Nesse mimdo da
e de responsabilidade, guerra e dae ambicioso,
trabalhador marinha, ele se
duro
consigo mesmo e de ferro para com os outros, imperioso e impaciente, vulcão de
niscas e violentas cóleras. Esse napolitano tem lava do Vesúvio nas veias. Por isso,
no nível profissional,é altamente eficaz,ao mesmo tempo temido e admirado até entre
os assessores do Vice-rei, como veremos em breve.®^
PARTE I Cap. 4 51
Esse homem danado,esse grande senhor,não pode deixar de marcar fortemente
seus filhos, mesmo se encontrando dez vezes mais em sua galera do que em casa.
Mesmo ausente, ali está e se impóe. Sobretudo a este primogênito no qual cristaliza
tantos sonhos ambiciosos.
Afonso viverá trinta e três anos entre esse homem de aço e essa mulher de veludo.
Um traço muito significativo, escapado muito tempo depois à discrição de
Afonso: desde muito pequeno, seu pai o fazia dormir no chão uma vez por semana;
queria habituá-lo à dureza no caso dele optar pela carreira militar.^^
Era no entanto cedo demais para deixá-lo entrever o inferno das pesadas galeras
do século XVin: as cabeças hirsutas de olhar desvairado dos remadores,com os pés
acorrentados em suas imundícies, os chicotes sulcando seus dorsos, os gritos, as
blasfêmias, aquele mau cheiro de excrementos que denunciava uma turma de força
dos a duas milhas em volta e do qual os oficiais só se protegiam entupindo as narinas
com tabaco forte. Mas com certeza o senhor José o levava às vezes,com seus irmãos,
num veleiro de recreio, para navegar ao longo das costas ou até as ühas próximas,
Capri,Ischia, —ou para exercitar os braços nos remos de uma chalupa na fosforescên-
cia de uma tarde de verão? Os documentos,porém,tanto quanto o mar,não deixaram
vestígios.
Não se vá imaginar este menino na tortura,deitado à noite em lajes frias,durante
o dia ãjoelhado em orações sem fim. Afonso mostrará pela vida inteira demasiada vi
talidade alegre para que não o imaginemoslíder do bando de irmãos dos quais era o mais
velho. Os graves arquivos hagiográficos não estão carregados com brincadeiras das
crianças e com a turbulência dos santos em botão. Mas se as paredes, as escadas e os
jardins pudessem falar, os do bairro das Vii^ns e os de Marianella ressoariam para nós
com os gritos, risos e correrias desatinadas de Afonso e de sua turma, com suas
canções e suas danças em volta de um cravo endiabrado. Certamente, os filhos de
Ligório estão tanto menos"numa galera" quanto o pai se acha mais freqüentemente
na dele.
E além disso,para Afonso e,em breve, para seus irmãos,há os belos domingos do
Oratório de S. José, com os jerônimos.
Sua entrada na Confraria dos Jovens Nobres, assim como sua primeira comu
nhão, certamente no dia 26 de setembro de ITOS^s, marcou a guinada de seus nove
anos. Esse Oratório de S. José será, durante um decênio,o cadinho de sua adolescên
cia. Até 15 de agosto de 1715.
Sem dúvida por causa do tio-avô, o padre Francisco Gizzio, que foi por muito
tempo seu prestigioso diretor, os meninos de sua família materna — os Cavalieri, os
Gizzio, os Avenia — aí se revezavam havia trinta anos.
52 PARTE I Cap. 4
Afonso foi admitido como"noviço"no dia sete de março de 1706. Antes da idade,
devido a sua espantosa maturidade. Menos precoces,seus irmãos Antônio e Caetano
só o serão com catorze e doze anos,em setembro de 1712,lã encontrando como"mestre
dos noviços"... o senhor Afonso de Ligório, então com dezesseis anos.^e
"Todos os domingos de manhã, nós o víamos chegar à reunião!" diz Tannoia.
Ouvia as instruções como um "faminto"; confessava-se com "seu padre Pagano";
participava do santo sacrifício,dasagrada comunhão,prolongava sua ação de graças,
"dejoelhos,com um fervor de alma que comovia qualquer pessoa que o visse"^^. Os
jovens "confrades" tomavam a se reunir de tarde para as vésperas seguidas pelo
"oratório" na melhor tradição filipina.
Filipe Néri legara à sua obra e a seus filhos sua própria personalidade, toda de
amor e de liberdade,de hiimildade e de simplicidade,de oração,de louvor e de alegria
partilhados.Para ele,o sinal de Deus era uma alegria irradiante. Seu"alegremente!"
era mais do que um célebre refrão, era sua irresistível arma de apostolado. Por meio
dela arrastava os homens paraDeusem suaronda cantante e sorridente.Sobretudo os
jovens."O quarto de Filipe era um paraíso!", relata lun discípulo.
Mas ele amava demais seus filhos para fechá-los em casa nas tardes de sol.
Levavaseu pessoal para debaixo de um carvalho do Janículo ou sobre o terraço que é o
Monte Célio;acabara mesmo alugando uma vinha nas alturas de S.Onofre,de onde se
descortinava o mais belo panorama de Roma. O grupK), muito niimeroso, ia para lã
depois do almoço, onde passava toda a tarde vivendo os habituais exercícios do
Oratório:palestra do santo,leituras religiosas,sermõesfamiliares, por quatro "prega
dores" diferentes, intercalados de orações, cânticos, representações teatrais, louvo
res, histórias vividas —foi aí que César Baronio (1538-1607), seu discípulo preferido,
começou a contar seus Anais eclesiásticos — e também no devido momento, diver-
sões.38 Essa seqüência oportmia de narrativas e melodias ia dar origem a uma espécie
de cantata sacra que se chamará oratório.
O (Dratório de Nápoles tinha sido fundado diurante a vida de Filipe. Era então a
única filial de Roma. Tudo nela era Filipe Néri pmo. Os oratorianos napolitanos
haviam alugado, na meia-encosta de Capodimonte, a Vüa di Mtradois: "uma casa
grande com cisternas, um jardim, pérgolas e uma galeria de estátuas de mármore".
Nove hectares de pequenos bosques e pomares de larapjeiras e limoeiros. Ela será
maistarde comprada pelo príncipe de Ia Riccia e tomará seu nome.Mas por enquanto
é a"Vila Füipina".Da páscoa até pentecostes,osjovens nobres da Confraria de S.José
aí viviam, na variada sucessão que lembra uma seqüência musical, a festa espiritual
que é o oratório filipino. No verão e no outono,eles vão mais para o alto em busca da
sombra de um caramanchão ou em busca de um gramado.^®
Portanto, uma vez cantadas as vésperas na imensa e esplêndida igreja dos
jerônimos, a barulhenta tropa segue pela rua Duomo, passa por cima do bairro das
Virgens, a dois passos do palácio dos Ligórios, sobe a grande escada da ladeira
Miradois — ou a paralela da atual ladeira delia Riccia—para alcançar num quarto de
hora o portal da"Vüa filipina".Durante dez primaveras,domingo após domingo,com
seus camaradas de fervor e de jogos, Afonso freqüentará esse parque de Miradois, na
intensa irradiação espiritual e alegre dos Oratorianos,diante desse panorama,um dos
mais belos das costas partenopéias:com a cidade a seus pés semelhante a um tapete
PARTE I Cap. 4 53
de variadas cores; mais longe, as duas enseadas do golfo incendiado de sol, em cqjo
faiscar dançam centenas de veleiros atracados no porto ou deslizando mais ao largo;
por vezes uma trirreme veloz, batendo nas águas com suas nadadeiras de mil patas
gigantes, escapa em direção da linha do horizonte ("Talvez seja a galera de papai",
pensa Afonso); ao anoitecer, uma cor vermelha viva cintila sobre as águas,como se as
florestas de coral que recobrem o fundo da baía emergissem dos abismos tingindo o
mar e o céu com os mesmos reflexos de sangue e ouro; no fundo, à esquerda, Capri
como um canino de mármore verde e os penhascos de Sorrente caindo abruptos nas
vagas; bem à esquerda e próximo demais, o temível Vesúvio, iluminado com forte
golpe pela luz da tarde e tingindo-se pouco a pouco com um rosa discreto vindo do mar
e do sol poente."Ver Nápoles e morrer", sobretudo do mirante de Capodimonte!
Mas outro esplendor—interior—aílentamente se revestiu de beleza sob o sol do
Espírito e o carisma educador de Filipe Néri.E é em Miradois que se fará a surpreen
dente revelação.
Numa tarde da primavera de 1707 ou 1708 — "Afonso ia por seus doze anos",
escreve Tannoia —chega a hora do recreio,no fim de uma longa partilha da Palavra e
da oração. Um grupo resolve jogar bolas com as laranjas caídas nos caminhos.
— Afonso, você vem jogar conosco?
— Eu não sei esse jogo.
— Sabe sim. Nós lhe ensinamos. Venha, pegue estas laraiyas!
E insistiram.Puseram as laranjas em suas mãos.De talforma que Afonso entrou
no jogo...
Sorte ou habUidade,é ele quem ganha todas as partidas,trinta vezesem seguida!
Espanto dos parceiros. Inveja de um ou outro p>or causa dos poucos cruzeiros que
passam de seu bolso para o dele. Um dos mais velhos,justamente o que fez pressão
p£u:a que ele jogasse, explode numa cólera insensata:
— E você disse que não sabia jogar!
Perdendo o controle, deixa escapar uma palavra obscena. Afonso enrubesce e
enfrenta:
— Onde já se viu ofender a Deus por alguns cruzeiros?! Tome seu dinheiro!
Ele joga as moedas no chão e desaparece na espessura do bosque...
Passa o tempo.Cai a tarde.Chegou a hora de entrar... Não se viu mais Afonso...O
padre encarregado fica preocupado. Eles o chamam. Nenhuma resposta... Vão
procurá-lo; percorrem o grande parque... Um grupo acaba por descobri-lo, dejoelhos,
diante de uma imagem de Nossa Senhora.Ele a trazsempre consigo.Havia colocado a
imagem equilibrada sobre o galho de um loureiro ou de um buxo.Está tão absorto em
sua oração, tão surdo ao mundo sensível, que é preciso um momento para que o
barulho à sua volta o retire de seu êxtase.
54 PARTE I Cap. 4

Adivinha-se a impressão causada nos jovens cavaleiros. O grande tolo que o

tinha baixamente insultado não se perdoa:"O que fiz? murmura ele. Maltratei um
santo."

Afonso tratou de nada contar a sua mãe,e seusirmãos ainda não fazem parte do
Oratório. Não foi por seu intermédio que Taimoia ficou sabendo, mas de uma teste
munha, o cavaleiro Antônio Villani que contará o fato aos padres de Ciorani. E
concluirá:

O que vocês não sabiam é que ele, desde sua infância já era um santo."®
5.''COM INTELIGÊNCIA VIVA E COM TODAS
NOTA
AS SUAS FORÇAS"
(1703-1708)
1. Bouvier-Laffargue, op. cit., pp. 33-48.
2. Mauiice LengeUé, L'esclavage (colL "Que sais-je", n 667), PUF,Paris, p. 41.
Eu, abaixo assinado, senhor Domingos Buonaccia, professor licenciado
®®®yc'0Paedia universalis, 6, p. 449.
4. SH 7(1959), p. 241, nota 45. em gramática,humanidades e poesia nesta cidade de Nápoles,atesto sob afé do
5. Tannoia, op. cit., I, p. 13 juramento e com a mão sobre o coração que,sob meu ensinamento, o senhor
e.^prenas,
' '
13(1966), pp. 170-205; 14(1967), pp. 295-313. Afonso de Ligório se dedicou às belas letras com uma viva penetração de
ac nn oti nn CR RO *...uyev),
. pp. 295-313.
!; Summarium introductionis causac(Sorví
n."1
Dei Fr. de Geronimo)pp. 33, 51, 91, 98-99. op.cit.,pp.619-632 espírito e de todas as suas forças.'

o SH 6(1958), pp. 477-478.

9. Geronimo), p. 53; Bach, op. cit.,|j. 117-118; SH 7(1959), p. 238. Temos aqui como que o "boletim escolar" de um estudante prodígio que ainda
não completou doze anos.
11 Tan^i^T^' rtpression sextKlIe,(1970), Paris, 1972, pp. 83-84.
10*
léi. To^
Tannoia, i
I, ^
p. 3. ®P* PP-194-195; Summarium (S. D. Alfonsi de Liguori), pp. 56-58, 61.
13. Summariiim, p. 176. Pois se, desde o clarear do dia até o cair da noite, os jerônimos entretinham
14. Tannoia, I, pp. 4-5. alegremente a Confraria dos Jovens Nobres por meio dos movimentos organizados de
15. L. Ponnelle et L. Bordet, Saint Philippe Néri, Paris, 1928, pp. 399-404. lun domingo-sinfonia para o Senhor, vinha em seguida a semana, e aí era outra
17 M7 op.cit., pp. 108,114.
17. De Maio, Cristo, cap. vm,§ 2,6: Opere ascetiche, XIV, p. 285. música: os seis dias completos da criação, duzentos anos antes da semana in^esa.
18.Ibid., p. 125.
Ao mesmo tempo que lhe caem os primeiros dentes, Afonso deixa os brinquedos
2a ?"4\?;5l)®'Í':SÍf3.°°'' de sua primeira infância: certamente, como para tantos outros, o cavalo de pau, o
pequeno moinho de vento,o tamborim,os personagens do presépio feitos de madeira
22.TeUeri^lí^'iá^'" ^'''^"so-Marie de Liguori, 1.1, L. I, cap. I. pintada. São substituídos agora pelos livros e pelo estojo.
23. Tannoia, I, pp. 5-6.
24. Ibid., p. 5.
25. Ibid., p. 7. Sete anos. A idade na qual, para os nobres, o menino era retirado das mãos
26. Ibid., pp. 5-6. femininas a fim de ser "preso, como dizia Montaigne não sem iiyustiça, nesses verdadei
27. S. Alfonso,33(1962), p. 35; Telleria I p 14 nota 53 ros cárceres de juventude cativa" que eram os colégios. Com efeito, enquanto suas
28. SH 7(1959), p. 234.
29. Summarium, p. 54. filhas, precocemente enclausuradas, aprendiam, por detrás das grades, a leitura e a
30. Tannoia, I, p. 7. escrita, um verniz de gramática,dois dedos de cozinha,de bordado e de artes recreati
31. SH 7(1959), p. 238. vas,os nobres e burgueses napolitanos confiavam seus filhos aesses mestreseducado
32. Contributi, pp. 34-35. res que eram osjesuítas.Seus colégios salpicavam literalmente os Estados pontifícios
33. SH 7(1959), pp. 239-242.
e o Reino de Nápoles.Eram cinco na capital(um dos quais reservado para os nobres)e
34. Ibid., p. 240.
35. Telleria, I, p. 14, nota 55. vinte e nove somente para a Sicilia.
36. Aiíalecta, 31 (1959), pp. 307-312.
37. Tannoia, I, pp. 5-6. No entanto,os jovens cavaleiros de famílias opulentas ou esnobes eram muitas
38. Ponnelle e Bordet,op.cit., pp.123ss.; A.Capecelatro,Vie de S.Philippe Néri,Paris,1889,L.II,cap.12 vezes "escolarizados" a domicílio por mestres vindos de fora e por preceptores resi
39. Telleria, I, p. 15; Analecta, 31 (1959), pp. 311-312; SH 23 (1975), pp. 473-474. dentes,geralmente eclesiásticos. Aliás isso significava,na maioria dos casos, votá-los,
40. Tannoia, I, pp. 6-7.
mestres e alunos,à preguiça e à incultura,aosjogos e àsfrivolidades.^ Após umalonga
observação da vida como ela transcorria, Afonso, sessenta anos depois, não achará
muita coisa boa para dizer destes fornecedores de aulas "particulares":
56 PARTE I Cap. 5
"Sejam jovens ou velhos, fiquem de olho neles!" escreverá.
— Mas ele dá aulas de leitura a minha filha; e é um santo homem.
—Você me fala de leitura!e de santo homem!... Os Santos estão no céu. Nossos
"santos homens" da terra são de carne: a ocasião faz deles demônios!3
Mas o velho bispo só poderá lançar essa apóstrofe como uma estima ainda mais
elevada pelas exceções que confirmavam a regra,entre as quais seu próprio mestre,o
senhor Domingos.
Seus pais, com efeito, concordaram que a instrução de Afonso seria em casa.
Assim náo arriscaria se estragar ao contato com camaradas corrompidos,julgaram
eles. E o menino ficaria a seu alcance para ser estimulado ao trabalho, disse certa
mente o paL De fato, o prodigioso esforço intensivo ao qual o jovem aluno será
submetido leva até a pensar que se aproveitaram de sua precocidade para entregá-lo
aos livros mais cedo do que o normal; e para fazê-lo pular as etapas, em seguida.
Escolheram-lhe um professor entre cem,"sábio e de conduta irrepreensível, um
homem de Deus" o senhor Domingos Buonaccia, padre calabrês,"professor licenciado
em gramática,humanidades e poesia,reconhecido na cidade de Nápoles'"*. O precep-
tor morava no palácio familiar, celebrava durante a semana na capela doméstica,
comto na mesa da casa, e recebia alguxis ducados em troca de uma cultura que,
fifiqüentemente,nem mesmo valiatal pagamento.® Quanto ao senhor Buonaccia,ganhou
mais do que ducados:ganhou a estima e a amizade dos Ligórios.Em 1715,ele ainda será
da casa.® Antônio, Caetano e Hércules também passaram por suas mãos. E Afonso,já
universitário,em seguidajovem advogado,terásempre nafamília xam padre de valore um
homem de Deus com quem trocar idéias. Será um mestre espiritual adjunto do padre
P^ano.7
O programa desta formação humanista,que prepara os bacharéis e os conduz à
porta da umversidade, chegou até nós pelo Programa de estudos dos jesuítas, o
mesmo em Paris,Messina,Roma,Gtoa ou Nápoles.O padre Tannoia o apresenta com
detalhes num zelo que merece atenção,acrescentando algims extras para despertar a
curiosidade: gramática, belas letras, poesia latina e italiana, firancês, matemáticas,
filosofi^ geografia, cosmografia, pintura, arquitetura, música. Esqueceu-se do espa
ntei, "indispensável para todo napolitano de certa importância"®: é a língua do
Vice-rei e do Estado; duas vezes necessária a um magistrado para compreender,
discutir e aplicar os decretos oficiais. Omite igualmente a esgrima®, tão importante
quanto sua espada para um nobre desse tempo, mas de fraco prestígio, com efeito,
para um bispo.
Será necessário dizer que era o digno Buonaccia quem intervinha em todas
essas disciplinas,do grego ao cravo,do pincel ao florete?!"Mestres escolhidos entre os
melhores"vinham defora dar a Afonso lições particulares de sua especialidade.Todos
achavam em seu alimo "um espírito de perfeita finura, uma inteligência penetrante,
uma memória tão rápida para registrar quanto tenaz para reter, uma natureza dócil e
ávida de saber". Em particular,"seus progressos, de dia em dia, nas letras encanta
vam seu preceptor e seus pais"*®.
PARTE I Cap. 5 57
Todo o ensinamento estava entãofundamentado no humanismo da Renascença.
Dirigindo-se,infelizmente, apenas às elites sociais,era,então, prático. Não se tratava
de formar engenheiros; menos ainda técnicos. O nobre não tinha mãos para um
trabalho "servil"! Preparavam-se magistrados, administradores, advogados, médi
cos, padres, professores, e muitos, muitos bem-falantes. O estudo devia portanto
essencialmente lhes dar o perfeito domínio e a rica extensão da linguagem, porque a
língua é o instrumento e a medida das operações do pensamento. Esse domínio não
era procurado nas línguas vivas:a maioria delas ainda estava flutuando na adolescên
cia; só deveriam se fixar no decorrer do século XVm.Recorria-se, pois, ao grego e ao
latim, línguas mães da civilização européia e êmulas em perfeição, em perfeição
"clássica" precisamente. O grego do século de Péricles, o latim do de Augusto consti
tuíam a idade de ouro inigualável da perfeição formal da linguagem. O prestígio
dessas línguas mortas e de seus imortais escritores se aureolava ainda justamente
pelo fato de que elas haviam entrado em sua etemidade:nada de mais estável do que
os mortos; é mais fácil reproduzir modelos que não se mexem. Acrescentemos que
essas duas línguas antigas são, profundamente, línguas "maternas" para o napoli
tano, que foi grego antes de ser latino, e latino antes de ser italiano.
As belas letras — gramática, depois humanidades — compreendem portanto,
para Afonso e para as plêiades de alimos antes dele**, xima perfeita assimilação, não
do italiano, menos ainda do napolitano, mas do grego,e sobretudo do latim. O latim
continua sendo a língua modelo, pensamento e forma: o ideal consistirá em fundir o
toscano de Dante no período ciceroniano, com a imaginação e com a música de
Vlrgüio e de Horácio. Além disso,o latim é a língua do ensino:é na fala de Cícero que
seus mestres lhe ensinarão as matemáticas,a geografia,a cosmografia e,mais tarde,o
direito. Antônio Genovesi (1713-1769), estreando em Nápoles, em 1754, a primeira
cátedra européia de economia política, ensinará em italiano, e isso causará escân
dalo.*^ Quanto a Afonso,excetuando suas obras ascéticas e dogmáticas redigidas na
língua criadora da qual falaremos, publicará cerca de nove mil páginas de teologia
moral escritas num latim vivo, acessível e desprovido de elegância.
A importância do livro,a partir do século XVI,havia revolucionado a pedagogia.
As edições dos grandes autores gregos e latinos,escolhidos e expurgados pelosjesuí
tas, se achavam ao alcance da mão. O mestre deixava ao aluno a honra e o deslum
bramento de ler ele próprio o texto latino ou grego(a leitura do grego sendo freqüen
temente ajudada por uma tradução justalinear latina). Mas ele apresentava a "prele-
ção" gramatical, prosódica,literária ou filosófica,segundo o caso:introduzia o aluno
até o limiar do deus da beleza ou do pensamento masdeixava-o penetrar só.Ficou-nos
assim um pequeno exemplar de 216 páginas dos Quinti Horatii Flacci opera denuo
emendata, impresso em Veneza por Nicola Pezzana, certamente em 1702 (a data é
pouco legível)e trazendo a firme ejovem assinatura do proprietário: Alfonzo Liguoro
(sic). A forma arcaica da ortografia é característica da infância do santo.*® Como a Arte
poética e as Odesde Horácio se"liam"no curso de Humanidades,ele devia estar, pois,
com dez ou onze anos.
Teve primeiramente de percorrer o programa equivalente aos quatro anos de
gramática,com Cícero e Virgílio, Ovídio e César para mencionar apenas os latinos. O
senhor Buonaccia pôs-lhe nas mãos os Novos métodos para aprender a língua latina
(1644)e a grega(1665)de Cláudio Lancelot(1615-1695)? A famosa Gramática de Port
Royal(1660)de Arnauld-Lancelot teria sido a base de seu ensino? Estavam então em
58 PARTE I Cap. 5
grande moda no Reino de Nápoles.l'* Mas osjesuítas as haviam precedido de cem anos
com métodos e manuais menos áridos e mais atraentes'®; suas edições deviam estar
em quantidade nas lojas da rua S. Brás dos Livreiros.
As portas latinas eram transpostas,evidentemente,com Fedro e suas Fábulas.
Eram novamente encontradas mais tarde,com Esopo, mas em grego: era o Isopeito.
De todas essas fábulas que devem tê-lo encantado como a nós, uma voltará amiúde
aos lábios e à pena de Afonso em seus conselhos aos pais:
As crianças são como os macacos:fazem o que vêem seus pais fazerem.
Mãe carangueja um dia a sua filha dizia:
— Você anda em ziguezague, náo pode andar em linha reta?
— E como ê que a senhora anda? disse a filha.
Posso andar de outro modo do que o da minha família?
Andar reto quando papai vai mais torto do que nós?'®
Logo se deixava Fedro para pegar Virgílio,Ovídio e os grandes modelos da poesia
antiga. Não nos esqueçamos de que o objetivo dos estudos literários era a perfeita
eloqüência. Motivo da grande importância que se dava aos ritmos e números orató
rios. Uma moda.Não mais inteligente do que as outras. E que gozou de longevidade.
Aquele que preferissejulgar um orador pela qualidade de seu pensamento e pela força
penetrante de sua persuasão, aquele que não apreciasse primeiramente a música de
\nn (mcvirso, o ritmo dos períodos, a cadência das cláusulas, era um "bárbaro"! O
bem-fal^te de amanha não podia portanto se contentar com ler e declamar pomposa-
^®^ósten.es. É dos poetas que tiraria a riqueza do vocabulário, os
oi^^ise a variedade dasimagens,a acentuação e a harmonia dos termos,o encontro
feliz das p^avras que se amam" e que se chamam. Aprendiam-se, pois, de cor os
poemas célebres; eram recitados para serem "prommciados com elegância"; isto é,
buscw o-se a ^rfeição do tom, da voz, da dicção e do gesto. Eram fixados na
mem naemi a o®-^versificaçãoê indispensável para aprender o número e a música
da frase; só se conhece verdadeiramente o que se reinventa.'17
/ioo>i^
).Quejx es4.x 1 j .
dasfontesAtonso
e que anao estudou retórica. Pier Luigi Rispoli
elas acrescenta muitos dados a partir do que
se fazia em seu tem^,não menciona a retórica.'® Giattini-Marsella (1819), este men-
ciona a eoç^encia , mas, como sabemos, todos os estudos literários visavam a
eloqüência. Tenhamos portanto confiança em Tannoia, a testemunha próxima e
meticulosa,ele não fala de retórica. Aliás,Afonso só poderá entrar na Universidade de
Direito com doze anos você leu certo: aos doze anos — porque o fizeram pular
etapas.
Mas por que pular precisamente a retórica, para um futuro advogado?
A partir de 1660, as teorias de Descartes, Antônio Amauld, Locke, em breve
Fleury,sobre a inutilidade da retórica clássica haviam se espalhado.Asidéias claras e
PARTE I Cap. 5 59
distintas devem ser preferidas aos desenvolvimentos enfáticose floridos;já se começa
a gostar mais do tom vivo e breve entre os"modernos"do que da extensão majestosa
do período ciceroniano, mais do punhal incisivo de um improviso bem afiado do que
da sujeição da memória,do tédio da recitação de um texto "perfeito". A coesão de um
desenvolvimento,que outrora se buscava no encadeamento complicado das partícu
las de coordenação e subordinação,ê pedida à seqüência das idéias firmes. Antes ser
ouvido e persuasivo do que admirado pelos esnobes e aborrecido para todos,embora
em latim pomposo.Diderotcaçoará dessa"arte de falar precedendo a arte de pensar,e
a de bem se exprimir antes de se ter tido idéias"^®.
Pioneiro entre todos os outros italianos, Afonso deverá a seu amor pelo povo o
precipitar-se nesse novo caminho, como Fênelon na França. Deixará para outros,
incapazes de rápidas guinadas, as longas frases serpenteando em proposições ondu-
lantes,e se exprimirá num estilo breve,com traços claros e vivos.Seus predecessores
imediatos, os Segneri, os Scupoli,seu confrade e amigo Samelli e até, depois dele,o
grande Genovesi,empolam períodos intermináveis e pesados,colocados um ao lado
do outro como blocos de cimento;depois de três páginasjánão se agüentalevantá-los;
enquanto as frases de Ligório, miúdas e vivas, correm sob os olhos e parecem se
perseguir.Ao contrário de todos de seu tempo,em que os escritores só podem serlidos
por escritores,ele criará uma língua popular italiana,comestível por qualquer um que
saiba ler, que iluminará as vigílias das choupanas.
As belas letras era o domínio do senhor Domingos Buonaccia.Outros mestres,e
certamente às vezes as conversas de seu "meio", iniciaram Afonso no manejo das
línguas vivas. O castelhano, naturalmente: ele era súdito espanhol. Mas por que o
francês?
Desde 1635, a criação da Academia francesa havia sido a consagração de uma
língua moderna que alcançara sua maturidade e estava decidida a se libertar de todo
sentimento de inferioridade diante do grego e do latim. As obras-primas literárias do
Grande Século afiançavam altamente essa pretensão dos"imortais".Por isso o fran
cês foi adotado por todas as sociedades cultas. Era tido como língua imiversal. FOi
assim que,no decorrer do século XV111,tomou o lugar do latim como língua diplomá
tica até osconfins da Asia.Inclusive na Rússia,era alíngua usual das cortes européias
e,naturalmente—não podia deixar de ser—de toda boa sociedade.2' Assim como seu
espanhol quanto a João da Cruz,Teresa de Ávila, Alvarez de Paz,Afonso Rodriguez,
seu francês permitirá a Afonso ler no original seus mestres transalpinos — Francisco
de Sales, Jean Grasset, J. B. Saint-Jure, Francisco Nepveu — dos quais apresentará
citações dos textos originais; o francês suscitará sobretudo o melhor de sua obra
dogmática contra Voltaire, Rosseau, Diderot, Bayle:"Vou entregar à imprensa um
opúsculo contra os deístas, escreve a seu editor; custou-me seis meses de fadigas;
esgotei, para poder compó-lo, uma quantidade de livros franceses e italianos.""
Além das belas letras e do francês, "o homem de cultura" do século XVm deve
saber as matemáticas e a filosofia, a geografia e a cosmografia. Por mais surpreen
dente que isso possa nos parecer hoje,essas disciplinas são então os aspectos de uma
mesma ciência: a ciência do mundo,a física. Lembremo-nos de Copêmico,Descartes,
Pascal, Newton: são filósofos, ou matemáticos, ou astrônomos, ou físicos?
60 PARTE I Cap. 5
É verdade que não se mergulham os alunos nas matemáticas pmas: aritmética,
geometxia,álgebra,análise.Sáo de preferência orientados para as matemáticas"mis
tas"; astronomia,ótica, perspectiva, música, mecânica, hidrostática, geometria apli
cada(agrimensurae topografia).^^ O mestre é um "sábio" no sentido completo que se
pode dar então aessa palavra,e ele visaformar homensinstruídose curiosos,"cabeças
bem feitas","filósofos".
A filosofia é o esforço da razão humana, deixada a suas próprias forças, para
explicar o conjimto de sua experiência total, física e psicológica. A teologia, que é a
exposição coerente da Revelação em determinada cultura, é de uma outra ordem,
divina.Assim como o diário amoroso delun casalé diferente de uma tese sobre o amor
cortês. Não nos esqueçamos disso.
Falamos de filosofia perene.Essa expressão significa que desde sempre e até o
fim,o homem se colocou, se coloca e se colocará as mesmas questões. Mas ninguém
tem o direito de dizer:"Aristóteles e são Tomás de Aquino pensaram por vocês. Nós
vamos lhes ditar soluções". Cada século, cada cultura, com menor ou maior êxito,
tenta foniecer suas próprias respostas. Cada um desses sistemas de pensamento,
quando não é a negação de Deus(ateísmo), do espírito (materialismo)ou do mundo
material(idealismo),pode ser o instnunento sobre o qual se desenrolará a teologia. A
Revelação divina nimca se funda sobre a renúncia em pensar.
Nesse c^,talvez não seja essencial saber se Afonso de Ligório foi tomista ou
cartesiano. Ninguém foi nem \jma coisa nem outra antes do século xni.
Sabemos que aos doze anos Afonso havia terminado seus estudos de "filosofia"
í?o seguida quatro mos de direito,e unicamente de direito,na universi-
Kânniec o K a égide de Tomás
Nápoles, sob m de Aquino. ^os de teología no semínárío maíor de
Que "filosofia" seu mestre enfiou na cabeça desse jovem?
senhor Carminello Rocco"^^, era cartesiano, como
salões e círculos literáSís.» ^ ""unal, academias privadas,
Naembriaguezdarevolução dasciências,o século XVm debutante está em total
ruptura com a tradição de mna filosofia estática, abstrata e "metafísica". Busca a
verdade segundo a ordem científica e o rigor matemático. Por que achar que é um
mal?
Tanto mais que a escolástica havia perdido sua feição: com malabarismos ver
bais escarnecidos com razão por Molière, com grandes palavras abstratas que fre
qüentemente serviam de complemento paraidéias curtas,ficando desacreditada num
mundo em que Galileu, Pascal, Gassendi, Huygens, Malebranche, Leibniz, Newton
criavam as matemáticas, a física, a dinâmica e a astronomia modernas. Ponto final
para os malabaristas do silogismo!Espaço para os observadores e pensadores do real.
Sua filosofia era uma reflexão sobre a experiência, uma "filosofia natural". Desse
ponto de vista não é ela também herdeira de Aristóteles?
PARTE I Cap. 5 61
Contava-se entre eles um Pascal,cuja profundeza não era em nada inferior à de
Platão.Encontrava-se também um matemático,físico por acréscimo,René Descartes
(1596-1650)que reinventava a maiêutica de Sócrates. Foi ele quem proporcionou, a esse
prodigioso desenvolvimento das ciências, a nova filosofia chamada a estabelecer sua
imidade!
Pois bem!com todo seu meio,com seu tempo (fora dos seminários), Afonso será
cartesiano. E, ousemos dizê-lo, sem dúvida ele não teria sido ele mesmo — esse
intrépido inovador — se não houvesse aprendido de Descartes, esse Sócrates da
maiêutica moderna, como dar à luz seu pensamento e "bem conduzir sua razão na
busca da verdade":
—Nada considerar como verdadeiro que não seja evidente,e não pela afirmação
da autoridade.
— Não admitir senão idéias claras e distintas.
— Partir sempre do que é mais simples e ir progressivamente do que é simples
para o que é complexo.
— Deter-se sobre as verdades, antes de passar além,tanto tempo quanto neces
sário para obter sua intuição,isto é,uma visão ao mesmo tempo globale mstantânea.
— Simplificar as questões e dividi-las em partes tão pequenas quanto possível.
Eis o "método" de Descartes expresso em suas "Regras para a conduta do
espírito": Regulae ad directionem ingenii. É daí que o padre Ligõrio tirará esta
clareza,esta simplicidade, este poder de convicção que fará dele,sem comparação,o
escritor mais lido de seu tempo, e tirará esta liberdade de pensamento diante das
opiniões recebidas, que o constituirá como o mestre revolucionário da moral:"Foi
dito pelos antigos, mas eu lhes digo..."
Quanto à doutrina cartesiana (a natureza inteira regida matematicamente se
gundo um modelo mecamcistá distinção em duas substâncias: a matéria-extensa e o
espírito-pensamento), encontraremos traços dela através de suas obras apologéti-
cas.2® É assim que ele escreverá,em 1767:"Os animais são ou não são simples máqm-
nas, é o que eu não sei; e Voltaire sabe menos do que eu!"^^ Há males que vêm para
bem:seu cartesianismo permitirá a Afonso compreender osintelectuais de seu tempo,
dialogar na cultura deles e cruzar ferros com eles dentro do terreno deles. O que falta
na maioria dos padres. Aliás ele não será um incondicional do grande Descartes:nós o
veremos também afiançar "o filósofo Newton", esse anti-Descartes, e sua "filosofia
experimental"; talvez sob a influência de J.B. Vico (1668-1744)2®?
"Filosofia experimental": eis talvez o vasto guarda-chuva sob o qual se podem
reimir as ciências hoje divorciadas que naquele tempo habitavam juntas a grande
casa "Filosofia".
Em 1698 aparece,em quatro tomos,editado por João Batista Coignard,em Paris,
o Institutio philosophica ad faciliorem veterum et recentiorum philosophorum lec-
tionem comparata. Seu autor era Edmond Pourchot (1651-1734), *de Sens, emérito
 62
parte I Cap. 5
PARTE I Cap. 5 63

O tomo I contém: a lógica, a ontologia, a metafísica (Deus, os apjos, o espírito

dSe
terceira, de 17li revfetn a ««
® canônico e antigo reitor da universi-
segunda edição "aumentada", de 1700, e a hiunano).O tomo n:a geometria e a primeira parte da física ou ciência da natureza(os
embora muito latamente
argamente ab^^"
aberto, como'anuncia o título sem
ummentira.
cartesianismo firme, corpos insensíveis e os corpos sensíveis). O tomo ni: a segunda e a terceira partes da
física(cosmografia,meteorologia, geografia física geral, história natural dos vegetais,
dos animais,do homem,isto é,anatomia e fisiologia). O tomo IV;a morale a instrução
vas-°irá t em latim,e üustrado com pranchas expücati- cívica. Aqui temos os"sétuplos"dos quais estava prenhe a filosofia do século XVIII-

primeirode
n^ual Capítulo
fflosofiaGeral
pidn^rA^ f í^ lagóno e seus companheiros, que em 1749
^6,imporá Pourchot comoo Todo esse Pourchot tem um largo espaço na história do pensamento; mas ele
permanece de um cartesianismo sereno e firme.
significativaquenâoLání^fic?^
entre duas missões curs.^^ ^ Congregação.29 Determinação
praticava:em 1746,oficial
dando,e Ameaçava por esse fato a fé cristã? Seu "método" não consiste em derramar a
Afonso,como dese^l ^ofí ^ seus seminaristas reunidos em Deliceto, cesta das maçãs? —desculpem!o estoque das idéias recebidas;em examinar as frutas
fera armilar do sistema Ha reproduzirá, ampliando-a, a prancha 16: a es- uma por uma,e em não ficar senão com aquelas que estão evidentemente sem defeito?
Roma). Mas não vamos nnricc^®^ (Permanece preciosamente conservada em É justamente o princípio do livre pensamento!...
explicar essa visão "rel^ív^ retrógrado! Pourchot começa por
aparências,à ele
contrário expõe
física e ào sttAm A Ptolomeu a fim de
rejeitaria.
concluirSaindo
que eleem seguida das
é insustentável:
Matemático, Descartes cometeu o erro de pretender deduzir tudo a priori. Seu
desprezo pela experiência tomou sua teoria mecanicista um romance."Eu não forjo
atitude saborosa: '^onomia. Vmdo em seguida ao de Copémico, mostra esta hipóteses,objetou-lhe Newton;eu observo."Sua recusa da prova de autoridade deve
ria tê-lo conduzido também a negar a fé, pois a história como a Revelação só se
conhecem pelo testemunho.
hipótese: Descartes, pode ser sustentado a título de
demonstração e « aÍk° ^ física e com a astronomia. Foi feita a Mas Descartes dissocia os dois níveis. Seu"método" vale para a filosofia "natu
talhe). ' Djeçoes não são aceitáveis (ele vai demonstrá-lo em de- ral". As verdades da fé católica são e continuam sendo "as primeiras de sua crença".
Para ele,como para Pascal, Galileu ou Malebranche,os dogmas revelados pelos dois
Testamentos têm o mesmo valor do que seu "Eu penso" ou as experiências mais
porque par^e °como hipótese.Mas não se deve imporcomo tese... seguras. Ele viverá e morrerá católico praticante. Quando se achava próximo de
hnportantes
'w;!», pensem o contrário...Escritura,embora católicos,e não os menos
ha^ÃI descobrir o princípio da geometria analítica, comprometeu-se por voto, se conse
guisse,a fazer uma peregrinação ao santuário de Loreto,na Itália;e se o vemosrealizar
efetivamente essa peregrinação, não podemos dentmciá-la como uma simples ma
em 1616 haver sustentado essa opinião, Galileu foi condenado, nobra diplomática para desarmar a Inquisição. Quanto à prática, ele decidiu se
í' I
1633 sob o de UrSr^Srí ° pontificado de Paulo V,em conformar"com a religião de sua ama";quanto à teoria:"Eu não falei do infinito,disse
assim"; masahirwstA° defender sua tese, dizendo:"É ele, senão para ele me submeter."3^
abstendo-se dA dAm.
"-fe ae ^P®^
decretar: de fatos
"Assim é."^®bem estabelecidos e deles tira deduções,
Da mesma forma,Afonso de Ligório,"filósofo experimental",morrerá cartesiano
impenitente. Teólogo e moralista cristão, será fervoroso discípulo de Tomás de
Aquino. E isso em como crente e como filósofo.
sagacidade cás^tr^P^ Ofíciooimpunha
«tóuisra e fazia florescer humor. à fé uma rude prova! Mas aguçava
a

Mas primeiramente precisa enfrentar a imiversidade.

Nada havia para assustar o senhor Afonso. No dia 15 dejiüho de 1757 — ele
terá então sessenta o sennor iuonso.no uia 15 dejiüho de 175 / —eie Afonso de Ligório completará seus doze anos em setembro próximo (1708).
r)ós-e«!Aritn AAr« +• ^ — escreverá ao superior de seu seminário maior este
façam cair «« ^ "^ta ácida:"Ouço dizer que se critica Pourchot. Não quero que o
havArAm/^ d d Essa obra teve aprovação universal e somos nós que a
serXZiín
ser obedecido... VViva Jesus,
^euém
Maria,quiser
José ecriticá-lo,faça^ emseu foro interno;e quero
Teresa!"3i

, . mstitmção filosófica 32será pois o manualem ciências filosóficas dosjovens

enror^tas dos cinqüenta primeiros anos. Por uma escolha mais do que determi-
fundador.Será que é temerário dizer que sua edição de 1700, muito em moda
en o na Europa meridional33,foi inicialmente a obra que o senhor Rocco levou seu
jovem discípulo dos anos 1707-1708 a professar e amar? Vamos pois abri-la.
64 PARTE I Cap. 5

NOTA

1. Contributi, p. 113. Sobre o P. Buonaccia, cl SH 12 (1964). pp. 205-208.

2. M.Vaussard. La vie quotidienne en Italie au XVm® siècle, pp. 121-127; De Maio. op. cit., pp. 104-105,
111-112.
112.

3. Sermoni Compendiati, XXXVI,10, Ed. Marietti, t. m,p. 510.

4. Tannoia,I, p. 7; TeUeria, I, p. 13, nota 49.
5. Vaussard, op. cit., pp. 121-123.
6. Contributi, p. 121.
7. Tannoia, I, pp. 5-6.
8. Contribui!,p.116.Nos Tribunal!(palácio dejustiça)de Nápoles,ocorria,no século XVII,que as causas
espanhol: Giannone, Histoire civile du royaume de Naples, L. 38, cap. 4.
9. Giattini, op. cit., P.I, cap. n, p. 14; TeUeria, I, p. 13. 6. NAS GRANDES HORAS DE NÁPOLES
10. Tannoia, I, pp. 7-8.
(1707-1711)
1078.n*om mais amplidão:
DainviUe, L'éducation
Georges dessciences
Gusdorf, Les Jésuiteshumaines
(XVI® et XVIH® siècles),occidentale,
et Ia pensée Editions de7Minuit, Paris,
vols., Payot,
Pans, 1966-1976.
12. Delumeau, op. cit., p. 335. Tempo feliz em que,num país em guerra,a criança continuava seus estudossem
13. S. Alfonso, 13 (1942), pp. 17-20. sirenes nem bombardeios!Pois,desde 1701,os Habsburgos e os Bourbonsse dilacera
11 Alfonso
15. DamviUe, op. cit., p. 228.grammatico, Materdomini, 1938, p. 8. vam mutuamente pelas coroas do defunto Carlos n da Espanha.^

p. 933.^ compendiati,XXXVI,8;et Istruzioni ai popolo,P.I,cap.IV,19,Ed.Marietti. III, p.509 e IX, Por duas vezes o imperador Leopoldo e seus aliados conseguiram expulsar Filipe
17. Dainvüle, op. cit., pp. I73ss.
V de Madri e pensaram de fato entronizar o arquiduque Carlos da Áustria. Chegaram
até a estabelecê-lo em Barcelona de onde ele tenta reinar sobre a Catalunha, por não
20. DainviUe, op. cit., pp. 194ss. poder fazê-lo ainda sobre todas as Espanhas. Mas em 1705 o imperador completou
22! ^ PP- 24 (1976), p. 11, nota 44. sessenta e cinco anos; a morte o levou a se aposentar. Seu primogênito, José I
23.ct DainviUe, op. cit., p. 323. sucedeu-lhe no império.E também na luta contra os Bourbons. Uma luta em que ele
parece triunfar:os franco-espanhóis sofrem derrota sobre derrota enquanto o príncipe
25 cf
' 2^1' nota 44. Eugênio de Savóia progride na Lombardia.Chegou a hora de"pegar" Nápoles.José I
Alfonso de
' pp.145-149,151; Contributi, pp. 111-166; R.Bayon,Cómo escribió
lança contra ela "cinco mü homens de infantaria e três mü de cavalaria alemã sob as
27.Ib^pp*^"^"Í8 Vin, pp.458, 550, 559,565-566, 773, etc... ordens do conde von Daun"^. Estamos em junho de 1707.

II'aAITÍLS •P- pp- 52-54.

Generalium, pp. 17, 46. O duque de Escalona, vice-rei de FUipe V em Nápoles,se alvoroça para levantar
31. Lettere, PWlosophica..., 2.a ed.. Paris, 1700, tomo III, pp. 31-32. contra os invasores estes napolitanos que ele vem sugando com impostos, durante
seis anos, para a guerra. O punhado de soldados que consegue alistar "parte para a
33. Bayon,op. cit. o titulo está no plural: Institutiones philosophicae...
guerra"na direção do Norte;mas derrete como uma bola de neve antes de encontrar os
Paris, 1955, pp^m^^"^' P®®®®® «-eligieuse de Descartes, Vrin,Paris, 1924; A. Valensin, Regards,I, Aubler, alemães. Escalona corre então para sublevar, para a resistência, o Sacro Conselho
Real,depois os nobres das sedes,em seguida o povo do Mercado.É a mesma coisa que
querer pôr fogo no mar! Ninguém se mexe. A cavalo, ele percorre a "fldelíssima
Nápoles"e a chama às armas.Ela o olha passar,indiferente,discretamente irônica.No
dia 3 dejulho,os soldados do Imperador entram em Cãpua.No dia 7,o Vice-reifaz uma
última tentativa juntos das praças, do Conselho. De uma parte e de outra, recusa se
mexer. Só lhe resta embarcar precipitadamente a fim de ir se entrincheirar no forte de
Gaeta.3 Por seu lado, mensageiros da capital partem para oferecer as chaves da
cidade,como a libertadores, aos alemães que vêm à frente.Eles são comandados pelo
conde Jorge Adam von Martinitz, que o imperadorjá nomeou vice-rei de Nápoles. Na
tarde deste 7dejulho de 1707,as tropas imperiais penetram triimfalmente na cidade;o
general von Daun toma oficialmente posse do Reino em nome do arquiduque Carlos.
"Furioso de alegria", o povo desmonta a estátua eqüestre de Filipe V,a despedaça e
joga ao mar. "Poucos dias depois, os três castelos-fortalezas da cidade se tinham
rendido e a guarniçáo de Castel Nuovo, oficiais e soldados,espanhóis e napolitanos,
entravam a serviço do novo rei sem corar de sua inconstância.

L
66 PARTE I Cap. 6
TnfideMade da "Rdelíssima"? Nâo. Não se tratava de pátria. Em 1702, Nápoles
havia recebido Püipe de Ai\jou com um "sorriso amarelo";náo o havia adotado.Entre
patrão e patrão,os napolitanos —Ligórios e Cavalieriem primeiro lugar — preferiam
os Habsburgos. Eles voltavam para os Habsburgos.
Os novos senhores da bela Nápoles celebravam portanto ruidosamente sua
"conquista";a"Fidelíssima" vibrava de aclamações,cantos e cortejos para acolher o
feliz rival; Gastei Nuovo e a frota desencadeavam os ecos com suas salvas de artilha
ria... Era de despertar o Vesúvio!
Esse temível vizinho se encontrava então em período quente. De 1680 a 1701,
dezessete erupções — roncos, sacudidas, chamas, cinzas, lava, projeção de pedras
enormes —haviam alvoroçado a cidade e lançado a p>opulação nas igrejas,clamando
por misericórdia noite e dia.
Ora, no dia 28 de julho de 1707, o monstro entrou na festa, cuspindo chamas e
elevando sua voz. No sábado, 30, sua cratera de repente explodiu, espalhando nas
alturas do céu umadescarga dantesca de pedrasincandescentes.Domingo e segxmda:
fogo, roncos e lançamentos de pedras, com uma prodigiosa quantidade de cinzas.
Terça-feira 2 de agosto, até nas ruas se acendiam tochas e lanternas para não esbarrar
xms nos outros em pleno meio-dia. As pessoas soluçavam, com os olhos ardendo, na
poeira cinzenta. A camada de cinzas sobre o calçamento era suficiente para abafar o
rmdo das rodas e das ferraduras dos cavalos das raras carroças obrigadas a sair.
De terror, anxmcia-se para a tarde uma grande concentração na praça Santa
Catarina de Pormello(hoje praça Henrique de Nicola). Um altar foi erguido;o cardeal
Pignatelli vaitrazer,diante do Vesúvio quelançaflechase pedras de fogo,a estátua de
são Gennaro, último recmso dos napolitanos. Mas é o apóstolo vivo de Nápoles, o
padre Francisco de Jerônimo, quem chega em primeiro lugar. Sobe a escadaria do
Conservatório Santo Onofre, na frente da igreja santa Catarina; toca sua legendária
sineta; o silêncio se estende pela praça.
Nápoles, minha querida Nápoles, que horas são? lança o missionário.
Não se vê mais se é meio-dia ou meia-noite. Em todo caso, náo é mais a hora,
adivinha-se, nem dos franco-espanhóis, nem dos alemães!
— Eu quero dizer que horas são, continua Francisco: são 22 horas.(De fato, se
estava a duas horas do ângelus da tarde,que assinalava então o fim das vinte e quatro
horas.)São 22 horas.Estamos portanto quase na última hora...É a hora do arrependi
mento, da conversão...
E dxurante uma hora, o fogo de sua pregação faz esquecer o do vulcão. Por que
milagre ele respira?
Quando o cardeal chega com a relíquia de são Gennaro, a oração de todo esse
povo aterrado e contrito explode num longo clamor.A cratera lança ainda um terrível
urro. Foi o último.
PARTE I Cap. 6 67
Os Ligórios se encontravam na cidade,ou um pouco mais longe do monstro,em
Marianella? Afonso ia completar onze anos, a idade das fortes impressões e,já, das
reflexões definitivas..."Afonso,que horas são?"Ele viverá ainda exatamente oitenta
anosem volta desse Vesúvio fumegante e,então,freqüentemente encolerizado.Quan
tas horas para não perder durante esse tempo 1 Será essa corrida para o essencial,cedo
começada,todos os dias retomada,que o fará se esquecer do Vesúvio,mesmo em suas
erupções de 1737, 1760, 1767? No entanto, que belo tema de terror, a serviço do
missionário!... Nunca tocará nisso, nem em seus livros, nem em sua correspondência,
nem em suas pregações; nem mesmo em seus nove Discursos para o tempo das
calamidades (1758).
Na terça-feira, 3 de agosto de 1707, o sol se levantou num céu azul sobre \im
Vesúvio adormecido e sobre uma cidade ciJdas ruas e terraços se achavam enterrados
sob duas polegadas de cinzas.®
Cinzas do terror aplacado. Cinzas da penitência atendida.
Cinzas também do regime de Madri. Pois, seis anos antes do fim dessa triste
guerra da Sucessão da Espanha, é de fato 1707 que despoja para sempre Madri da
coroa das Duas Sicílias e instala a Áustria em Nápoles. É verdade que por algum
tempo o Estado ainda tem sua sede na Espanha:o arquiduque Carlos—"o rei Carlos
ni" — governa de Barcelona; ele se volta para oeste e se vê já "rei de todas as
Espanhas";seus decretos em favor de José de Ligõrio trazem:"Carlos, pela graça de
Deus rei de Castela, de Leão, de Aragão,etc... "Mas ainda não está ganho. A guerra
continua. E ela o expulsará da Espanha. Mas não da Itália. Portanto, desde 1707, e
durante muito tempo, a cidade partenopéia viverá pela hora de Viena. Chamado de
volta à Alemanha,o vice-rei, Martinitzé substituído no palácio real pelo generalconde
Wirick von Daim. A pressão fiscal espanhola foi substituída pela pressão fiscal aus
tríaca.
Nascido súdito espanhol, Afonso se toma, pois, em 1707, súdito austríaco. Du
rante vinte e sete anos(1707-1734). Vinte e sete anosem que seu paiserá um grande do
Reino.
Emjulho de 1707,José de Ligõrio tem trinta e sete anos.O ninho familiar goijeia
com todos estes pequeninos; o oitavo e último, Kfércules, não tem um ano. Quatro
nasceram num reino em guerra. Ora, José é oficial; seu ofício são as armas. Mas até
1707, a pólvora falou longe das Duas Sicílias: na Itália do Norte, na Alemanha, na
França,na Espanha.E não no mar.Parece portsmto que afamília tenha ficado apenas
no medo.
Mas nem por isso inativa.A fidelidade ancestral dos Ligórios e dos Cavalieri para
com os Habsbmgos da Espanha deve ter funcionado com zelo e habilidade pela causa
dos Habsburgos da Áustria,contra os Bourbons.Como explicar sua imediata promo
ção aos postos de comando se eles tivessem passado esses anos de guerra numa
cômoda neutralidade?® José Cavalieri, irmão de dona Ana,residia em Madri,justa
mente na corte, jimto de Filipe V que lhe confiara o alto cargo de Advogado dos
pobres;masele foi pronto em dar meia-voltae baterem retirada,o que logo lhe obterá,em
Nápoles, uma cadeira no Sacro Conselho Real e a pasta de conselheiro de Estado,como
Ministro da guerra.' Quanto a José de Ligõrio, sobe depressa e alto n£is boas
68 PARTE I Cap. 6 PARTE I Cap. 6 69

graçasdo vice-rei vonDaun.Desde 23 de dezembro de 1707,é promovido para"capitão
de infantaria espanhola com o comando interinamente da Padrona", a segunda embar
cação da esquadra real.("Espanhola" ainda, visto que, de Barcelona, o arquiduque
Carlos governa Nápoles atítulo de pretendente ao trono de Espanha.)O valoroso José
deixa,pois,a Capitana após mais de vinte anos,mas nela era apenas oficial;enquanto
sobre a Padrona se toma senhor depois de Deus. Aí remará até 1716.®
Nós náo fazemos mais idéia do prestígio que aureolava o titular dessa alta
graduação. No século XVm,a altiva embarcação, à vela e náo mais "a remo", atra
vessa o Atlântico e enfrenta as tempestades; olha por cima (como vun pássaro que
despreza;un réptil")a galera rente às águas,que aforte vaga submerge e que náo pode
portanto se a^tar das costas ou deixar o Mediterrâneo.Masem caso de calmaria ou
vento contrário,é a galera quem rie parte comoiimaflecha,sobretudo se é,como asda
esqua^a napolitana, um trirreme de quatrocentos remadores. Continua sendo por-
anto mcomparável para o transporte rápido, a patrulha ligeira, a persegmçáo e... a
^ por golpes
ftigirá, a valente. Elanáo
se abaterá
ansportada de remo quanto carregasobre
senãooreduzida
inimigo,tanto mais dois
artUharia: bem
pequenos canhões atrás, para a defesa, uma grande peça na frente, no eixo, e duas
^quenas,a^nas para um tiro de perto afim de abrir a passagem nacoltma de assalto.
ois a a a das galeras é uma batalha de infantaria,de pistola e arma branca; um
^rp^a-corpo.Tudo depende do valor pessoal:coragem, prontidão,esperteza, ardor,
wiín cruzm a espada E sobretudo eles, porque são os primeiros a
míii<! po antes que olham
motivo,OS oficiais das
altivamente paragaleras sãooutros
todos os todosoficiais
fidalgosda
das famílias
marinha.®
hniíimífr herdada pelo capitão Ligóriojánáo agüenta de velhice e de tanto
Dres«!innnm n morrem aos doze anos.Por isso os novos mestres
óPKpmhrn ivi eiros navais. Enquanto constróem outra, um decreto de 5 de
aduladores! — a niâos xuna montaria de melhor madeira. Foi batizada —
e contrab;^nri?i^^ campanha "como chefe" no mar Tirreno contra os corsários
d® trazendo de reboque, um navio de
corte aprecia A i^l^^^^trabando —capturado ao longo das costas da Calábria. A
creto de 26 de novembro^dpTvnr' conseqüénciá, a responsabüidade! Um de-
comboio extraordinária. confia ao capitão da Padrona — é o seu título — rnn
vão nara a<í ffiinmi - ^ coriduzir, através dos riscos da guerra, a Porto Santo Esté-
infnntario • ^^^^P^litanas(os"Presídios")daToscanameridional:tropas de
oracadeOrte^Si^pt' escudos, a serem entregues ao comandante da
moc "fndQc oo '. suas ordens,o senhor José náotem simplesmente a Daun,
linha" n p S^cras, Uma tartana carregada de pólvora e um navio de
Um geuovés e armado de sessenta canhões.
oniinadí?^ u Pcnínsula de desembarque, alcança o istmo que conduz a Orbe-
abre a passagem°^ ^^co-espanhóis. Do mar,ele manda disparar toda sua artilharia e
Da Sicília, ocupada pelo "inimigo", quatro trirremes "bem armadas" aterrori
zam as guas ca abresas e... os estados-maiores napolitanos.Em sua nova Padrona,
^ça a em se i^ro de 1711,tendo,sob seu comando uma galera de apoio, a Santa
iza e e, e e parte a fim de garantir a segurança dos comboios de trigo e outras
provisões vindas do Adriático através do estreito de Messina. As quatro pequenas
galeras bourbõnicas náo ousarão enfrentá-lo. Melhor: fica sabendo que há piratas
espoliando as ilhas Pontinas; imediatamente, só deixando no lugar o medo que
inspira, ele singra para o Norte, domina rapidamente uma galeota de sete canhões e
sessenta corsários,em seguida uma embarcação(saettia)de onze peçase cento e treze
homens,leva para Nápoles esse desp>ojo opulento e,sem perda de tempo,quatro horas
depois, corre para Messina a fim de retomar sua guarda.^®
Lendo-se os relatórios e despachos do tempo, tem-se a impressão de que, no
mar,Nápoles conta com um —e um só —oficial superior temível e temido:o cavaleiro
Ligório. Ele encarna o leão de suas armas familiares: vigilante, altivo, intrépido e
poderoso. Uma pata de aço, p>esada e ágil.
Temível para Afonso,esse leão. Mas que imagem prestigiosa do pai! Felizmente
cada vez mais longínquo.Pois"Carlos HI,pela graça de Deus rei de Castilha,de Liáo,
de Aragáo e de outros lugares" precisa dele.
— Perdão: Carlos VI,imperador da Alemanha e rei das Duas Sicílias,responde a
morte.
Porque o homem propõe.Deus dispõe...e a morte decompõe.Em 1711,aos trinta
e dois anos,o imperador José I partiu ao encontro de seu paiLeopoldo no túmulo.Sem
filho varão.Seu irmão,o arquiduque Carlos, partiu pois de Barcelona e foi para Viena
cingir a coroa imperial. O tratado de Utrecht (1713) lhe deixará Nápoles e Milão
enquanto a Espanha fica para o Bourbon Filipe V.Dessa forma,salvo a pausa bourbô-
nica de Filipe V, tão efêmera quanto sua estátua (1701-1707), Nápoles passou dos
Habsburgos da Espanha para os Habsburgos da Áustria. As ordens e os vice-reis virão do
Norte em lugar de vir do Oeste. E a capital partenopéia continuará sem seu rei. Por
enquanto.
O senhor José não tem pressa nenhuma: os Habsburgos da Áustria acabam de
colocá-lo por vinte e cinco anos (1709-1734) na órbita do poder e dos favores.
NOTA
1. Cf. acima, cap. 3.
2. P. Colletta, Histoire civile du royaume de Naples, L. I, cap. I, VI.
3. G. Coniglio, 1 vicere spagnoli di Napoli, Nápoles 1967, pp. 352-353.
4. Colletta, loco cit.
5. D'Aria, op. cit., pp. 457-462; Bach, op. cit., pp. 260-263.
6. S. Alfonso, 30(1959), p. 29.
7. ASN, Sezlone Giustizia, Pandetta Nuova 4a/107-18, fl. 166; cf. fls. 200-201; SH 7(1959), pp. 250-251.
8. SH 7 (1959), pp. 232, 244-245, 248. A nomeação vigora — cargo e soldo — desde dezembro de 1707; o
vice-rei adverte disso o arquiduque Carlos a 3 de março de 1708 e lhe pede confirmação por carta-patente;
"Carlos, rei de Castela etc..." assina-a de Barcelona a 29 de janeiro de 1709.
9. Roland Mousnier, Les XVI° et XVIP siècles (tomo IV da Histoire générale des civilisations), 5.® ed.,
PUF, Paris, 1967, pp. 142-144.
10. SH 7 (1959), pp. 231-251; S. Alfonso, 30 (1959), pp. 54-55.
 7 - RUA DOS TRIBUNAIS
(1708-1713)

Os anos de 1708-1713 são os anos de universidade de nosso Afonso. Sobre um

fündo de guerra longínqua. Sob a pressão um pouco afrouxada de um pai um tanto
mais ausente.

Nápoles se gloria de possuir um Studium —dizemos hoje em dia:uma"universi

dade" — das mais antigas do mundo: a quinta exatamente, depois de Bolonha,
Oxford, Falência e Paris. Fundada em 1224 pelo Imperador Frederico n de Hohens-
taufen, foi ele que beneficiou os dois últimos anos de ensino (1272-1274)do mestre
mais prestigioso quejamaisilustrou uma cátedra universitária.Tomásde Aquino,um
filho da região.

Por volta de 1600,Domingos Fontana(1543-1607)dotara essa universidade com

uma sóbria e harmoniosa arquitetura que formará coujunto com a basílica e com a
praça S. Domingos Maior. Masjá em 1708, Afonso já não podia contar nela, nem de
longe,os seis mU estudantes vistos por Cario Celano em sua infância, uns cinqüenta
anos antes.^ Quando nela se inscreveu, aos 25 de outubro, para seu primeiro ano, a
universidade napolitanajá estava gravemente enferma,necrosada em três quartos.

Primeiro sinal exterior de miséria: por ocasião da revolta abortada de 1701, o

vice-rei Medina Coeli havia transformado seu ediflcio em casema. O local vibrava mais
de blasfêmias espanholas, depois alemãs, do que de silogismos latinos. Os Studi
Pubblici tinham sido reduzidos a cinco pequenas salas do claustro dominicano.

Outra desgraça: o Capeláo-mor da Corte, de quem tudo dependia na universi

dade — professores, estudantes, programas, polícia, justiça — era então o senhor
Diogo Vicente Vidania, um aragonês puro-sangue, teimoso e indestrutível, vindo
das eras remotas,e que só pedirá demissão desse alto posto após cem anos completos,
em 1732. Uma múmia petrificada de reacionário.

Esses dois fatos revelam suficientemente a têmpera dos efetivos e a esclerose da

instituição.

Como é possível? Nápoles não tem mais cérebros? Mais do que nunca, e eles
fervem com todas as febres de uma imensa curiosidade; mas quase que não podem se
exprimir e se informar a não ser nos salões e academias privadas. As solicitações de
72 PARTE I Cap. 7 PARTE I Cap. 7 73

refonnas apresentadas pelo Conselho central da cidade — a Città cs í^nrontram o
'^áo" de Vldanla e a indiferença do rei da Espanha, em seguida do imperador da
Alemanha.Resultado:a vida passa para mais adiante,o espírito vai soorax em outra
parte, o fogo choca em outro lugar. A universidade napolitana tomou.se mais ou
menos um ministério burocrático de matrículas e diplomas. Nele não i>õem os pés os
nobres; preferem os cursos particulares. Os burgueses sem bastante^inheiro para
pagá-los,nela váo buscar o instrumento indispensável do diploma de que precisam-
macáSa' ^ em volta de
°srego e alógica têm cada qual a sua.A
com aobrigaçâo.para essas duasfaculdades,de não
i®® ® enunciados escolásticos. As seis cátedras de medicina compor-
dois grandes medalhões-To^ Portão-
Nicofo um professor extraordinário.
cátedra de niedWna T Aforismos de Hipócrates: ocupa a única
Pascal e ^ ciências, além de Copémico. Galileu,
matemátic^dá^ ^ migalhas que caem das mesas das
Agostinho
om Sinal df^sp a"; mesas postas,é certo, pelos estimávels professores
Osjovensse amontoam em suas aulas. Não será
maesKsíI!^°y®® ^®Pos,sobretudo,o sucesso do raquítico João Batista Vico, o
fogo queouS^ í?®- °apelidou a população estudantU.Espada de
um século no poderoso visionário num corpo esgotado. A Europa levará
ama Deaueo^íT^i^®'^^^®°^dador da historiografia moderna;mas desde então
clarões sufipiA t espíritos e um grupo importante de alunosjá percebe nele
teria sur^^dfoo^®^ aproximarem dessa sarça ardente.Em Nápoles,o contrário
muitirta^^®®; ®i®8ria de viver. Clamores,tumulto. Nos becos tortuosos, a
sem im mundo.Uma vivacidade,uma curiosidade de espírito
bléiasSi^^^^"^®^®*^^de cultura.Conversas apaixonadas,assem-
saber nii «' ® <1^ carregam alegremente o peso de um imenso
as dnílíüf ^dosos problemascientíficos e filosóficos,examinam todas
chamo oe®®* recolhem todos os fatos. Em Nápoles, que recebe, porque as
gênio- Pm pensamento europeu, e que sabe adaptá-las a seu
símiv^i H ^ or^al e a tmnultuosa, que aparece aqui como um
Vico 4 Pcccr e de vitalidade,nasceu,aos 23 dejunho de 1668,João Batista
PBí. ri^eu,por sorte, de um dono de livraria; tendo caído aos sete anos de imia
de coma,prognóstico do médico:"Ou morte ou idiotice
Hn dosjesuítas,nove anos preceptor na portaria de um convento
Tomás
<4 de Aquino,
A ^os"novos
biblioteca; leu Gassendi
de tudo: Aristóteles e os gregos, Agostinho
filósofos" e Locke,Descartes e Spinoza, Male-e
branche e^ibniz.Sem ser escravo de ninguém.Tão pouco conformista que entrou
para a academia dos Infiuriati(os Furiosos). Tão profético que ninguém compreende as
visões já "hegelianas" que fosforescem nele e que preparam sua Ciência Nova (1725).
Mas há homens eminentes que o escutam e o convidam: um filósofo, Paulo Matteo
Doria,e os primeirosjuristas do Reino:Domingos Aulisio,Caetano Argento,Nicolaue
Domingos Caravita, Constantino Grimaldi, Nicolau Capasso,Pedro Giarmone.Uma
elite de homens de lei.
Homens de lei por que?Porque todo o movimento das Luzes,em Nápoles,nasceu
principalmente do grande advogado, recentemente desaparecido, que foi Francisco
d'Andrea (1625-1698). Espírito universal e vivo, manda pelos ares todas as rotinas e
explode todos os limites,em literatura,em ciências,em filosofia,em história e primei
ramente,é claro, no domínio do direito que é o seu próprio...Por isso foisobretudo no
mundo forense e das leis que formou escola. Mais do que em outra piarte, é aí que se
encontram portanto homens apaixonados por línguas, história, ciências, literatura
filosofia, política. Entre eles circulam jornais literários e livros estrangeiros: francês,
alemão,holandês.Longe do pântano onde resmimgam atolados montes de ignorantes
e os advogados da trapaça e do proveito,eles criaram uma corrente de inteligência,de
ciência e de honestidade.São as melhores esperanças dajurisprudência e da universi
dade napolitana.5 A esperança humana de nosso jovem estudante.
Nada dissemos ainda sobre as duas facilidades de direito. Das trinta cátedras
que comportam os Studi Pubblicl,elas açambarcam onze:cinco para o direito canô-
nico e seis para o direito civü. ® Não foi sem motivo que se chamou o direito de "a
ciência italiana". Mas mesmo dentro da Itália,Roma e Nápoles podiam se orgulhar,e
altamente,de sua elite dejuristas.Era nos Tribunali(o palácio dejustiça)que pulsava
o coração de Nápoles. Até o público, mulheres inclusive, participava pelo gesto e pela
voz nos intermináveis debates das questões em processo. Atavismo? Fineza de espí
rito? Temperamento inclinado para a discussão? Necessidade milenar de acomodar
legislações estrangeiras? Ou,maisjovialmente, gosto pelo jogo, prazer em manejar e
abater as cartas do baralho mais complicado do mimdo?
A fim de se ter uma idéia do inextrincável matagal em que se entrelaçavam as
leis, ordenações,prescrições e privilégios do direito do Reino,é preciso se lembrar que
durante mais de 2.500 anos, a cidade partenopéia mmca havia sido plenamente se
nhora de si mesma. Onze dinastias estrangeiras nela se sucederam, acrescentando
cada uma, aos direitos costumeiros locais, algumas malhas da rede de suas leis. Os
direitos romano, bizantino,lombardo,suábio, angevino, normando,aragonês,caste
lhano, austríaco,feudal, eclesiástico — onze legislações — se emaranhavam^ sem falar
das leis regionais e municipais que se enfiavam nesse labirinto. Perdição para os
ignorantes,quebra-cabeça para as pessoas honestas,essa confusão era o paraíso dos
malandros de todos os tipos, advogados e ricos clientes que se dedicavam de todo o
coração a roubar, piratear, despojar,arruinar seu próximo.Era também o triunfo dos
grandes legistas cuja mestria era admirada por toda a Europa."Depois do Tribimal
romano, mmca houve na Europa vuna ordem dos advogados mais numerosa, mais
poderosa, mais rica, mais considerada do que a de Nápoles."®
Diante das capacidades intelectuais de seu filho e seu ardor no trabalho,o senhor
José de Ligório não podia ambicionar outra coisa para ele.Deixando delado qualquer
idéia de fazer dele um soldado na trilha de seus antepassados paternos,o via brilhar na
alta magistratura, ao lado de seus primos e dos Cavalieri. Em seus Avvertimenti ai
nipoti, Francisco d'Andrea ammciava o iminente desmoronar da aristocracia e o
evento do médio ceto,o "terceiro-estado". A culturajurídica era a avenida que levava
aos postos de comando e aos ministérios. Por seu intermédio a burguesia podia
74 PARTE I Cap. 7
contornar a nobreza e confiscar o poder e o prestígio.® Que os cavaleiros napolitanos
interceptem a estrada a esses piratas. O senhor José resolve que seu Afonso será
advogado.^®
É portanto necessário que ele passe pela universidade:tenha êxito no exame de
admissão,inscreva-se pelo preço de dois carlinos para um primeiro ano escolar, siga
assiduamente os cursos dos mestres da faculdade nos locais dos Studi Pubblici.
Assim quer a lei, lembrada ainda em 1703 por uma prammatica — vun edito — do
vice-rei Villena. Mas completamente diferentes sáo os fatos.
As universidades da Idade Média constituíam uma vasta e sólida imidade orgâ
nica de pessoas —mestrese alimos —masnão de edifícios. As aulas eram geralmente
dispensadas na residência dos professores, nas salas ou capelas dos conventos, nos
"colégios"finalmente,isto é,asresidências para estudantes com bolsa.'^ Pelo contrá
rio,os Studinapolitanos dos anos 1700 pretendiam impor,a unidade de lugar,embora
oferecendo apenas cinco salas irrisórias para as trinta cátedras oficiais!
Na realidade, pela força das circunstâncias e para o contentamento de muitas
pessoas, havia professores mantendo cursos públicos em suas casas; outros, mal
pagos ou avarentos,davam aulas particulares e deixavam substitutos em seu lugar,
incapazes, que esvaziavam a classe; aliás, certos titulares não tinham nenhuma ne
cessidade de ^juda para serem pessoalmente incompetentes ou aborrecedores e, dessa
forma,criarem o deserto;sem falar daqueles —sim—quesó figuravam nos anuários e
folhas de pagamento.
Somente sete mestresem trinta eram de estatura e de consciência tmiversitária;
acontecia então de os estudantes assaltarem as salas e disputarem os lugares aos
socos. Entre os mais eminentes desses doutores — feliz Afonso! — quatro professores
detoeito:o sexagenário Domingos Aulisio(1639-1717),decano dafaculdade de direito
ciyü,que Vico nos apresenta como"vun homem vmiversal naslínguas e nas ciências";
Nicolau Caravita,conselheiro da Câmara Real,professor de direito feudal,para o qual
corriam os próprios magistradose advogados;Gennaro Cusano e Nicolau Capasso,da
faculdade de direito canônico,que partilhavam o ensino dasDecretais dos papas:dois
homens cijjo saber e pensamento atraíam uma multidão de jovens.
Quanto aos outrostitulares das cátedras de direito,fiquem em paz!Conhecemosseus
nomes, honorários e... sua carência. O Código de Justiniano, suas Institutas com
suas Glosas, Bartolo,os Digestos antigo e novo, para o direito civil, — o Decreto de
Graciano e as Instituições de Lancelloti,para o direito eclesiástico,quase nâo tinham
ressonância quando esses senhores se davam ao incômodo de comparecer, a nâo ser
para os ouvidos das paredes. Quando N. Caravita se retirou do ensino público, em
1711, no limiar de seus sessenta e cinco anos, seu sucessor na cátedra de direito
feudal, Antônio Capellari,só se apresentou uma única vez para dar aula nos dois anos
em que foi professor titular de Afonso. A 300 ducados por ano, era caro! Nada de
espantoso que os estudantes aplicados, ambiciosos e suficientemente endinheirados
recorressem às aulas particulares.'^
Aqui temos portanto o nosso jovem Ligório aos doze anos, transpondo o limiar
desses estranhos Studi Pubblici. Precisará primeiramente ser consagrado "bacha-
PARTE I Cap. 7 75
rei" pelo exame vestibular diante do professor de retórica. Afonso de Ligório diante
de João Batista Vico. Duas belas fisionomias de nariz aquilino: o do menino, ainda
bebê,boca pequena sorridente e olhar"azul claro"(TannoiaX dilatado pela confiança
e curiosidade diante da vida;o do homem de quarenta anos,magnificamente sulcado
pelo fogo das febres e do gênio. O jovem cartesiano diante do anti-Descartes; mas
talvez nâo tenham tratado de Descartes. Um perante o outro,os dois maiores gênios
italianos do século.
No dia 18 de outubro,festa de sâo Lucas,pelo sétimo ano consecutivo,o professor
de retórica,em virtude de seu cargo,pronimciará,diante de todo o Studium reunido,o
discurso inaugural do ano universitário 1708-1709.Foi um manifesto que ficou célebre
—De nostri temporisstudiorum ratione,"Quais as matérias para nosso tempo?"—e
que,diante da vmiversidade de Vidania,delineia as pistas do futuro na realidade viva
da história.
Eles se verão fireqüentemente, Vico e Afonso, nas reimiões acadêmicas com os
Caravitas.Terão se"encontrado"? Coitado do grande Vico!Nâo o compreendiam;mal
lhe davam ouvido; doentio e tímido, talvez falasse pouco? Salvo em suas aulas. Mas
Afonso não ctusou retórica.
As matrículas nos Studieram feitasentre afesta de são Lucase a de TodososSantos
para os seis meses letivos.'® Possuímos o certificado das matrículas regulares de
Afonso nas faculdades civil e canônica"da lei" — delia Legge — pelos cinco anos que
exigia o diploma do doutorado, de 1708 a 1712.'^
Mas uma coisa é se matricular, outra freqüentar os cursos. As autoridades aca
dêmicas bem o sabem,visto que exigem,antes de conceder o doutorado,um atestado
de duas testemimhas com juramento (cum juramento)confirmando a assiduidade
efetiva do candidato às aiQas dos mestres nos locais imiversitários.Esses dois atesta
dos,Afonso os obterá,na véspera de seuexame final,devidamentejuradose assinados
aos 17 de janeiro de 1713 por seu primo Francisco M.Cavaheri e seu amigo Conrado
Capace.Melhor!Serviço por serviço: no dia seguinte,18 dejaneiro,Afonso porsua vez
atestará "com juramento", em favor desse primo Cavalieri, que eles "estudaram
jimtos, durante cinco anos, a legislação civil e canônica nos Studi Pubblici e sob os
professores públicos desta Fidelíssima Cidade"; e assinará com sua caligrafia firme e
bela:"Eu,senhor Alfonso de Liguoro".'®
Depois disso,como duvidar de que Afonso tenha fi:eqúentado os cmsos universi
tários?
Mas como afirmar que ele os tenha fi*eqúentado todos? e assiduamente? Sabe
mos que os nobres quase não compareciam; que muitos só se apresentavam uma ou
duas vezes a fim de poderjurar em seguida que tinham estudado nos cursos públicos.
Por outro lado, o santo padre Tannoia, por ocasião do processo apostólico para a
canonização de Afonso,e também sob a fé do juramento,Tannoia afirmará ter ficado
sabendo por seus irmãos Hércules e Caetano que o servo de Deus fez todos os seus
estudos sem passar pelos cursos públicos,e sim em casa,com mestres particulares,
inclusive os de direito civU e canônico'®; ele é um pouco menos formal em sua Vita...
Por cúmulo de humor malicioso,o padre Ligório em pessoa acabará de embara
lhar as cartas ao explicar, em sua Teologia moral, HI, 166, que em Nápoles (é isso
76 PARTE I Cap. 7
mesmo que você está lendo,ele precisará o local:em Nápoles), os atestados "sob a fé
do juramento"(cum juramento), nas formalidades do doutorado, não sâo, por si
mesmosjuramentos,"porque essa fórmula náo é comumente considerada como um
verdadeiro juramento".
Mas de qualquer forma seria uma mentira. E o filho de Ana Cavalieri não teria
sancionado uma mentira com essa assinatura largae seguracomo um golpe de espada
de cavaleiro.
Então Tannoia,ele que jurou de fato com um verdadeiro juramento, teria sido
enganado pelos irmãos de Afonso?
Delícias da história em que, por vezes, os documentos mais oficiais zombam de
nós num nevoeiro de dúvida e de aparente contradição!
Simplesmente aparente? Pois, por que não pensar terem todos razão de seu
ponto de vista? Tannoia não se engana nesta afirmação circxmstanciada: "Afonso
teve(em casa)como professores(de direito)dois homens de valor cuja reputação era
muito grande em Nápoles."" Vêm então muito naturalmente os nomes de Nicolau
Capasso (1671-1745), esse jurista poeta que conservará para com seu aluno tomado
padre,uma amizade cada vez mais admirativa,e de Nicolau Caravita,dos duques de
Turitto (1647-1717), que introduzirá o jovem,um pouco comp seu filho, na academia
dos grandes espíritos do qual é o animador.
Mas como explicar, por outro lado,que o senhor José tenha,em 1708, deixado o
bairro das Virgens,onde todos os seus filhos haviam sido batizados, para instalar sua
família na ala principal de vuna residência alugada de Marco Cafaro,rua dos Tribxmais,no
bairro das Almas do Purgatório, a trezentos metros dos claustros universitá-
rios?^® Foi,sem dúvida nenhuma,a fim de facilitar a fi:eqüência de seu primogênito.
Portanto, cmsos públicos nos Studi,jimto às reputadas cátedras de A\alisio,
Caravita,Capasso,Cusano,de algrun outro talvez; aulas particulares em casa,na dos
mestres, para suprir os largos vazios acadêmicos e preencher as longas férias escola
res.Quandose conhece a ambição do cavaleiro Ligório e sua mão de ferro,a devorante
aplicação de Afonso e sua resistência no trabalho, não o vemos tomar parte nas
correrias tempestuosas,às vezes sangrentas,nem nos intermináveisjogos de baralho
em que muitos se esqueciam de Hipócrates ou de Justiniano.
Quer dizer que ele foi indiferente ao jogo?
Já dissemos: salvo uma elite, Nápoles se agitava num clima de famiente irri-
quieto. A ociosidade é a máe de todos os vícios; e o vício capital da ociosidade
napoUtanaera precisamente a paixão dojogo,a vertigem dojogo por dinheiro.O povo
se embrutecia jogando nas tavemas e esquinas das ruas; ignorava o alfabeto mas
conhecia as cartas!E gritarias,insultos,blasfêmias, brigas de pimhal. A aristocracia,
mais ainda,preenchia com ojogo sua ociosidade:nenhuma revmião sem baralho;com
isso atravessavam-se as noites;jogava-se em família,entre vizinhos,nas casas dejogo
que se encontravam em abundância na cidade apesar das leis. E o dinheiro corria;
famílias se arruinavam, outras se desfaziam; ódios inextinguíveis eram acesos, vin
ganças, duelos. Era assim que muitosjovens se tomavam trapaceiros e tratantes.^®
PARTE I Cap. 7 77
Afonso não chegou a isso,embora os Cavalierifossem animados pelojogo.®® "Ele
era todo aplicação,gosto pelo estudo,apetite de saber.E tinha em seu pai um estimu
lante impelindo-o sem descanso."®' A única trégua que lhe concedia era,de noite,uma
partida de baralho, em casa do magistrado senhor Carlos Cito, com alguns jovens ca
valheiros que lá marcavam encontro em volta do filho da casa, Baltazar. Era a casa
vizinha, a cinqüenta passos, no estreito beco de S. Nicolau de Nilo. Ia-se para lá sem
trocar de roupa nem alugar carruagem,talvez até passando pelo interior dos edificios.
Afonso deslizava, pois, rapidamente nessa direção todas as noites. Assim lhe havia
permitido o temívelcapitão."Somente por uma hora,não mais do que isso!"O senhor
José, quando se encontrava presente,raramente admitia que essa hora fosse prolon
gada. Ficava espreitando o relógio mais do que seu filho.
Uma noite — o atraso tinha sido maior ou o pai estava mais nervoso? — o senhor
José entra no quarto do estudante, retira todos os seus livros e os substitui pelo
mesmo número de baralhos. Devia ter ruminado esse golpe havia algum tempo para
ter toda essa "biblioteca" em mãos. O retardatário acabou por chegar. Entra no seu
quarto.Estupor.Masseu paiestá atrás dele:"São esses osseusestudos,exclama;aqui
estão os autores que o tomam tão exato no horário!" Afonso enmbesce, sem uma
palavra.Paciência,domínio de si, respeito pelo pai.E daí por diante só olhará para as
cartas com um dos olhos: o outro ficará espreitando o relógio ou a ampulheta.
Cinco anos de estudo não eram demais para inventariar — não falemos de
aprender—o Corpus Júris civilis:o direito romano ainda vigente então na Itália,o nó
de oito cordas do direito consuetudinário,finalmente o direito feudal. Teríamos ver
dadeiramente de acrescentar a enorme sobrecarga do Corpus Júris canoniei?
O direito eclesiástico tinha autoridade,no civil e no criminal,em toda causa em
que se achasse envolvido um clérigo, vuna moiya, um "firade" e, até certo ponto, um
batizado —e quem pelo menos não havia recebido um nome no batismo? Ele regia afé
e os costtunes. Sua exclusivajurisdição abrangia as igrejas, os mosteiros, as institui
ções de caridade e educação, as terras de Igreja e até o bandido que encontrara asüo
em lugar santo. Ora,no tempo de Monso,neste mimdo super-saturado de instituições
eclesiásticas e sacralizado por todos os lados, quase que não se podia tocar em nada
sem ficar "eletrizado" de sagrado.
O direito canônico tinha portanto o que dizerem quase todos oscasos;até tendia
a prevalecer sobre o direito civil.É assim que,em Nápoles,aIgreja contava no mínimo
sete importantes tribxmais: o do Provisorado metropolitano, os da Inquisição dioce
sana(um pela capitale um pelo Reino),o do núncio apostólico em nome da Santa Sé,o
do Capelão-mor para as "igrejas reais" e para a universidade, o da administração
apostólica representando o conselho paroquial de Sáo Pedro, o dos hospitalares de
Santo Antônio de Viena (no Delfinado).®® O advogado, o magistrado se esbarravam por
toda parte com as "cúrias" eclesiásticas: cúria episcopal aqui (três tribímais), cúria
romana mais adiante (dois tribimais), e esta do Capelão-mor, mais aquela de S.
Antônio de Viena. Como nos surpreender com o fato de, no começo do século das
Luzes, o direito, como a ciência, tenha querido se übertar da tutela da Igreja? Como
achar ruim que de tanto tropeçar com as cúrias eclesiásticas,osjuristas de Estado e os
governos da cidade política tenham sido acometidos por uma febre "anticurialista"e
tenham se tomado "regalistas", isto é, nesses tempos de realeza,tenham se tomado
partidários de uma sociedade civil independente?
78 PARTE I Cap. 7
^ Tanto maisque,ao contrário daInglaterra ouda Alemanha,porexemplo,a Itália
inteira se encontrava em "catolicidade": os Estados viviam totalmente na Igreja do
C^to.Portanto, concluía Roma,sob o domínio de Pedro. Para se compreender tal
situação, embora próxima, e já inverossímil, é preciso reler a famosa biola Unam
Saneiamfulminadaem 1302 porBonifácio vm contra Filipe,o Belo,e na qual se acha
afirmada a soberania papal universal:
As palavrasdo Evangelho no-lo ensinam:o poder do Cristo comporta duas
espadas, a espiritual e a temporal... Ambas estão portanto sob o domínio da
Igreja,tanto aespada espiritualquanto a material.Masesta deve ser manejada
para a ^reja,aquela pela ^teja. Aquela pela mão do sacerdote,esta pela dos reis
e soldados, mas por decisão do sacerdote ou, pelo menos, com seu assenti-
mento. A espada temporal deve portanto ficar subordinada à espiritual, e a
autoridade temporal submissa à espiritual... Assim atesta a verdade: cabe à
potência espiritual estabelecer a potência terrestre; cabe a ela igualmente
julgá-la se não é boa.
Segurança, nos dias de hoje, assombra.
O direito civil só poderá conquistar sua autonomia através de uma dessacraliza-
Çâo de ordem jurídica.Isso está longe de ter sido realizado no temix» de Afonso: para
pre nder o doutorado em direito, ele deverá primeiramente exibir um atestado do
casamento religioso de seus pais e um certificado de batismo.^^ Mas a legítima auto-
^sociedade secularfermenta nasurdina.Estudante de direito civil e também,
eManamente,de direito canônico, nosso jovem cavalheiro ouvirá, em ambas as
lovpn respeitosa mais firmemente anticurialistas. Com algims outros
resni f será integrado por esses, em volta dos Caravitas, numa academia
publfeação,emregalista. Nicolau
1707, de uma Caravitarigorosa
dissertação não acaba
quedesealcançar a celebridade
pode considerar comopela
um
PonMfi^^^ salão literário: Nullum jus Romani Pontificis in Begno Neapolitano("O
U4
histórico^ do anticmrialismo
não tem direito
colérico.algum sobre o Reino de Nápoles")? É o clamor
arün gritar muito.A leifísica que Newton descobre nestaépoca—"toda
ilação" —se verifica freqüente e normalmente no plano moral e
d ^Igreja haver mantido em tutela — oh!quantos! — as cabeças
nor«« ^® Poderes temporais,juristase governadores cristãos leigos pretenderam
Rpversão abusiva,certamente,
^sua vontade o poder
como haviaespiritual da Igreja.eclesiástica,
sido a dominação Cada tun por sua
mas vez!
que se
mpteende: não esperemos dos le^os que sejam menos pecadores do que os padres,
um clericalismo intolerávelcorresponderá pois um anticlericalismo intolerável.Ele
se encarnará, para o fUndador dos redentoristas, em Bernardo Tanucci (1698-1783).
Por enquanto, nosso estudante mergulha — alegremente, esperamos — no
unenso em^anhado das leis.É orientado por guias que deixarão \nn nome no pensa
mento e na hteraturajiuldicas. Aulisio e Caravita,Cusano e Capasso deixaram para
seus colegas das faculdades de filosofia e de teologia as elucubrações ocas, para
acompanhar com os pés no chão o nascimento e o encaminhamento histórico dos
costurnes e d^ leis. Trabalham em direito positivo como mais tarde se constituirá a
teologia positiva. Positivos, quer dizer históricos. Em sua escola, Afonso aprenderá
PARTE I Cap. 7 79
um pouco mais — Descartes o orientou nessa direção — a independência de espírito,o
horror pela inflação verbal;e também,o senso do concreto,dassituações;asegurança,
finalmente,de um julgamento estranho a qualquer paixão de escola e guiado primei
ramente pelo amor das pessoas. Isto é, no fundo, pelo Espírito Santo.
Não tenhamos medo, com efeito, que o jurista disseque e suplante o cristão,
como acontece com outros. Ao mesmo tempo em que ele progride na exploração das
leis, "o menino — (podemos dar ainda este nome a nosso universitário precoce) —
cresce em sabedoria e em estatura diante de Deus e diante dos homens"(Lc 2,52). O
senhor Buonaccia ainda pertence à família e garante a missa cotidiana na capela
doméstica. Além disso,o estudante tem todos os dias a hora de oração com sua mãe.
Finalmente e sobretudo,excetuada a refeição do meio-dia,seus domingos são passa
dos com osjerônimos,entre a absolvição matinal do padre Pagano e as laudes da tarde,no
fervor e na alegria da eucaristia solene e do Oratório de S. José. Desde 1707, ele faz
parte, nesta Confraria dos Jovens Nobres, da equipe dos responsáveis: sucessivamente
ecônomo e sacristão,organizador da liturgia,conselheiro,secretário e,finalmente,de
1711 a 1713,mestre dos noviços.Seu irmão Antônio,o futuro beneditino,lhe sucederá
neste cargo enquanto ele próprio passará para a Congregação dos Doutores (15 de
agosto de 1715).2'»
Porque Antônio e Caetano o acompanharão nos Jovens Nobres a partir de se
tembro de 1712.Em casa,eles vivem sob a bondosa palmatória de Buonaccia.Bárbara
e Aninha,entretanto, estão ausentes do lar: estão crescendo enclaxisuradas com as
franciscanas do mosteiro S. Jerônimo. Mas Maria Teresa rodopia balbuciando em
volta da mamãe.Com Hércules,o menorzinho,ela iliunina os dias daquele que corre o
risco de tomar-se sombrio entre as Pandectas e os Comentários dos grandes juris-
consultos.
Todo envolvido nos estudos do primogênito,olar vive portanto agora no coração
da cidade, na rua dos Tribunais, a cinco minutos de S. Domingos Maior e de seus StudL
Quase às portas dos Ligórios,está(no n.o 39)a igreja do Pinrgatório do Arco que deu
seu nome ao bairro. É uma igreja de confiraria das almas do pmgatório. A cinqüenta
passos daí(no n.o 44)a minúscula igreja paroquial S. Ângelo a Segno, hoje transfor
mada em vulgar armazém, acha-se esmagada entre dois enormes edifícios.
À fi:ente,na altura do Purgatório,começa o Arco cqjas curvas vão serpentear ao
longo de cento e cinqüenta metros da ma: velhas arcadas de comércio que Afonso
percorrerá diariamente durante vinte e um anos. Tudo permanece tão igual há séculos
que nós o imaginamos facilmente se esgueirando ou se detendo entre as bancas e o
povo, ao longo dos cestos que nos oferecem toda a gama multicor e perfumada da
fimta meridional: azeitonas e uvas, lararqas e limões, peras e maçãs, pêssegos e figos,
nozes e castanhas:os grãos(ervilhas,favas,feijão)—"a came dos pobres"—alternam
com a verdura das alfaces,repolho, saladas e o vermelho vivo dos tomates(a minestra
do Mezzogiomo ainda desconhece, no século XVm,o milho e a batata); aqui uma
barraca de came marmórea,e ali os reflexos prateados dos peixes e dos produtos do
mar com seu acre odor salgado.
Os Ligórios dispunham pois de um mercado permanentemente ao seu alcance e
bem provido. A longevidade, rara para a época, dos pais — eles festejarão seus cin
qüenta anos de casamento—e da maioria de seus filhos,leva a pensar que se alimen-
80 PARTE I Cap. 7
PARTE I Cap. 7 81

tavam bem,em igual distância dos excessos que matam e da parcimônia que leva ao
bocavam no Monte da Redenção dos Escravos.Uma vezrecolhidos osfundos,missões
depauperamento.
diplomáticas traziam de volta um lote de algumas dezenas — raramente de uma
centena — de "resgatados".
No extremo desse mercado coberto,encontra-se,do lado esquerdo,a imponente
igreja de S. Paiilo Maior, dos teatinos. Aí tinham ido viver e morrer dois santos
Em Nápoles, uma Conôraria havia surgido com um grande impulso,oficializada
recentes:Caetano da Thiene(t 1547)e André AveUino(t 1608).Essa vizinhança espiri
pelo papa Júlio m em 1549.Era ela que havia construído sua igreja e a sala de reunião
tual não deixará indiférente o nosso jovem.
sob o patrocínio de Nossa Senhora das Mercês.^® BYancisco de Jerônimo era seu mais
Dois passos adiante se ergue, à direita, S. Lourenço Maior, pmro momnnento ardoroso provedor. Precisamente por ser"pai" dos galerianos muçulmanos,era mais
gótico(1270)não fantasiado de barroco.Tem ao lado o mosteiro dos conventuais cuja sensível ainda à infelicidade dos cristãos cativos na Afi:ica do Norte.E não parava de
grande sala do capítulo abriga os conselhos da Città:Afonso aqui virá deliberar como fazer coletas, de "dar facadas" em seus amigos, de mobilizá-los eles próprios para
fazerem coletas. Não se resistia à sua santidade! Contribuía dessa forma com os
deputado de Portanova.
Confrades da Redenção por sua fervorosa eficácia. Ele os encontrava,com as mãos
Andando cinqüenta metros sobre as negras lajes desta rua dos Tribvmais cheias de dinheiro, com o coração cheio de oração, aos pês de Nossa Senhora das
teremos,à esquerda,osjerônimos,Ps^ano,o Oratório,depois,logo em seguida,a rua Mercês. A alguns passos apenas de sua residência de Gesü Nuovo.^^
Duomoe acatedral.Finalmente,um pouco maislonge,a rua vaide encontro à enorme
massa do Castelo Capuano:os Tribunais que deram seu nome a esse eixo vertebral da Nessa ação de resgate, os mais envolvidos eram os homens do mar e suas famí
cidade. Eles esperam nosso futuro advogado. lias.Porque os mais ameaçados.Sendo assim,como não pensar que o padre Jerônimo
tivesse primeiramente comunicado seu fogo sagrado ao senhor José e aos seus? Não
foi a vida das galeras e o drama dos escravos que, desde 1685, uniram suas vidas e
Rasgada de este a oeste pelos primeiros vice-reis espanhóis,quase retilínea mas
tão estreita a ponto de duas carroças quase não poderem se cruzar, essa rua dos forjaram sua amizade? S. Maria das Mercês era certamente, havia muito tempo,um
dos lugares aonde iam os Ligórios habitualmente para orar.Pena que esses arquivos
Tribunais mede pouco mais do que um quilômetro. Ela será no entanto a coluna
vertebral ao longo da qual estão daqui por diante agrupados, por quinze anos, os estejam perdidos.^®
centros nervosos da existência de Afonso: a casa, as faculdades de direito, a Igreja Nossa Senhora das Mercês os espera daqui por diante a cinco minutos de seu
paroquial,aCittàouAlto Conselho central da capital,oOratório,acatedral(tendo no novo domicílio.É,para Afonso,o santuário mais próximo desta Virgem e Mãe que ele
flanco norte o seminário, assim como o largo Dormaregma onde os Caravitas dão as ama a ponto de trazer sempre consigo sua imagem. Aí encontrará então, e até sua
recepções),e finalmente o Palácio de Justiça. velhice, a Senhora de sua "convivência". Nunca mais virá a Nápoles em sua vida,
Não nos esqueçamos,no outro extremo da rua,do pequeno santuário S. Maria mesmo como bispo, sem ir prostrar-se longamente a seus pês."Foi ela, dirá um dia ao
da Redenção dos Cativos,ou Nossa Senhora das Mercês: A menos de cinqüenta metros reitor dessa igreja, foi ela quem me livrou do mimdo."®®
dos Ligórios,ele forma um ângulo com a rua S.Pedro e com a rua S.Sebastião, perto
da Porta Alba. Por enquanto,a oração que lhe vem repetir, ardente,seujoveih cavaleiro,pode
mos adivinhar por este pequeno poema que lhe cantará um dia:
CattivI—cativos —tinha-se todosos diassob osolhos,não apenas nosremos das
galeras,masem todo o Reino.Eram numerosos escravos"turcos".Fáceis de reconhe Sai che vogrio, Eis meu desejo,
cer por seus crânios raspados e tufos de cabelo no alto. Na mentalidade do tempo, Dolce Maria? doce Maria:
capturá-los e fixá-los em terra católica era duplamente obra pia: era tirar-lhes a Speranza mia. A ti. Mãe pia,
possibilidade de prejudicar oscristãose oferecer-lhes oportimidade para a verdadeira Ti voglio amar. eu quero amar.
Voglio star sempre Quero estar sempre
A te vicina; a ti vizinha,
Mas, por outro lado, muitos cristãos raptados nas costas ou no mar gemiam no Bella regina, bela Rainha,
Islã e, embora atenuado, subsistia o perigo de incursões barbarescas para os mari Non mi cacciar. vem me acolher.
nheiros e para as populações do litoral,sobretudo nas Uhas do golfo. Os napolitanos, E poi tu dimmi. De mim,oh! dize,
cvtío bom coração e cvija alma religiosa se comoviam tão impetuosamente quanto o Vaga mia Rosa, sublime Rosa,
Vesúvio,davam enormes somas para o "resgate" — redenzione, mercede — de seus Madre amorosa, Mãe amorosa,
irmãos privados de liberdade e cuja fê se achava em perigo.^® Doações reais ou princi- Che vuoi da me? que queres tu?
pescas,subsídios dascidades e das instituições de beneficência,sermões e coletas dos
Piü non so darti Mas não sei dar-te,
religiosos trinitários, mercedârios (Ordem das Mercês), franciscanos, recoletos, jesuí
Eccoti il core: eis a minh'alma,
tas, atividades de confi:arias ct(jos membros contribuíam regularmente com toma
Per man d'amore do amor na palma
esmola e faziam circular na missa"a bandeja dos cativos": todos os recmsos desem-
Lo dono a te. Te entregarei.®"
82 PARTE I Cap. 7

NOTA

1. Citado por Telleria, I, p. 24, nota 8.

2. F. Nlcolini, citado por Telleria, I, p. 24, nota 10.
3. Giuseppe Ricuperati,"Napolieiviceré austriaci1707-1734"in StoriadiNapoli,Vn,pp.374-381; Biagio
De Giovanni,"La vita intellectuale a Napoli fra Ia metà der 1600 e Ia restaurazione dei regno", ibid^ VI. pp.
457-459.
4.Paul Hazard, La crise de ia conscience enropéenne (1680-1715), Paris. 1935, tomo II, p. 245.
5. Giannone,op. cit., L. XXXVin,cap. 4; B.Croce, op. cit., pp. 146-149.
6. Telleria, op. cit., I, p. 29.
7. CoUetta, op. cit., L. I, cap. 1, xn.
8. Maima,citado por A. Preda in Contributi, p.98. 8."DESENHO,PINTURA, ARQUITETURA,EM
9. De Giovanni, loco cit., pp. 438-440.
10. Tannoia, I, p. 9.
11. Encyclopaedia nniversalis, X,p. 725. QUE AFONSO FEZ MARAVILHAS..."
precedentes ct Contribnti, pp.91-96,104-108,134-137; TeUeria, I, 29-31; Ricuperati,
í14.
lá.SITi'
TeUena,I, p. 24; Ricuperati, loco cit, pp. 378-380.B<,u«e,.L.<r..g«e, «p. cit, pp,83«,
Contributi, pp. 87-88.
Se o senhor José e dona Ana faziam questão que seu filho brilhasse nas
letras e fosse um perfeito cristão, queriam vê-lo ornado também com a cultura
15. S. Alfonso,8(1937), pp. 214-215; Contributi, pp. 89 e 95. que constitui o fidalgo acabado. Desde sua infância lhe proporcionaram a
16. Siiminaniim, p. 69.
17. Tannoia, I, p. 99. domicílio professores de desenho, um para a pintura, o outro para a arquite
18.^ntributi, pp.73-75. 95; SH 20(1972), pp.325-326. tura.^

T I,
L. T cap. vn, vni; De Maio,op. cit,Rocco,
p. 127.Desclée de Brouwer,1887, pp.85-89,113-120; G.M.Galanti,op.cit.,
Seus pais queriam fazer de Afonso um "senhor",um grande senhor.Neles,sobre
21.TaSíLp'9 Nápoles, 1741, p. 11. tudo em José, essa ambição amanhecia todos os dias nova e forte. Ora, nessa socie
22. De Maio, op. cit, pp. 35-39. dade do prestígio e da aparência, precisava-se de "fachada" e de "douradura". As da bela
23. Contributi, p. 90; Telleria, I, p. 35
24. Analecta, 31 (1959), pp. 307-312 linguagem, da erudição fulgurante acima de todo o saber dispensado pela "filosofia".
Mais ainda, do palãcio de habitação, ciflo desconforto interior ficava escondido atrás
de dimensõesimponentes e do esplendor(que dava para a rua),faustuoso ou grotesco,
27 D'Arii " Napoli, Nápoles, 1692, Giomata seconda. barroco.O que o presidente de Brosses escreveu sobre o palácio Borghese valia para
28;SH7(1959),pp.?32?39.
29. Tannoia, I, p. 26. muitas outras residências:
30. Gregorio, Canzoniere alfonsiano, p. 264.
Todos esses grandes compartimentos,tão vastos,tão soberbos,só estão lá
para os estranhos: não são füncionais para os donos da casa,não tendo sanitá
rios, nem comodidades, nem móveis do dia-a-dia; e, quanto a isso, pouco se
encontra mesmo nos andares de cima, onde eles habitam.^

Acrescentemos: nem pintura, nem tapetes, nem venezianas, nem aquecimento

— explica^se que o fogo não é bom para a saúde! — a não ser os scaldini, pequenos
recipientes de louça cheios de brasas para degelar as mãos.O primeiro papel da casa
palazziata era apresentar uma aparência principesca.

Era portanto altamente interessante, para um homem de distinção, ser enten

dido em arquitetura. Poderia assim dirigir com gosto e competência as construções,
restaurações e embelezamentos de seus palácios e de suas dependências. Isto ê,
"cuidar de süa fachada", seu sinal de qualidade.

De fato, freqüentemente Afonso manejará a rêgua e o lápis. É verdade que não

ameaçará a glória de um Vanvitelli! Masfará ele próprio os projetos de seusconventos
ou de suas igrejas. Ouentão corrigirá com mão entendida os projetos de seus arquite-
tos.3
84 PARTE I Cap. 8
Tannoia nosinforma que o senhor José era apaixonado p>ela música. Nada diz —
e,no entanto! — sobre seu gosto pela pintura. Terá sido porque todo italiano já nasce
com pincelna mão eé vão mencionar esse gênio nacionalcomo um "sinal particular"?
Mas o mesmo não se dá quanto à música?
É ainda de Brosses que observa, na Península, essa paixão pela pintura:
Todo ornamento consiste em quadros,dos quais as quatro paredes ficam
cobertas de cima a baixo com tanta profusão e tão pouco intervalo que na
verdade os olhos ficam freqüentemente tão cansados quanto satisfeitos. Ainda
mais que eles não fazem quase despesa alguma com molduras, a maioria dos
quadros sendo velhos, escuros e mal acabados,e que, para poder pôr uma tão
furiosa quantidade,se é obrigado a mistxurar uma quantidade de coisas medío
cres entre as belas.^
De fato, os dois avós de Afonso haviam investido largamente nos quadros. O
senhor Domingos de Li^ório, ao morrer em 1728,deixará uns vinte, e de todos eles o
senhor José tomou posse autoritariamente. Quatro serão reclamados por sua irmã
Hipólita dei Balzo.Que fique sem eles! Seis meses de discussões não os arrancam do
capitão. Sovinice? Quem sabe, paixão i)ela pintura? Paixão certamente partühada
por sua esposa. Pois, por sua vez, o sogro, senhor Frederico Cavalieri, afirma, nvun
inventário de 1704, possuir uma centena de telas, uma parte de amadores e outra de
grandes mestres.Sem contar aquelascom que certamente presenteou sexis filhos ao se
casarem ou... ao se tomarem bispos. Tiago precisamente, bispo de Tróia e Foggia,
cederá,como uma fortuna,em 1723,em vista de uma fundação de jesuítas,"quatro
quadros de Solimena que ele possui em Foggia"®.
Solimena? Esse discípulo de Lucas Giordano (1634-1705)chegara a Nápoles na
surdina,em 1676. Ao mesmo tempo que ojesuíta,aindajovem —trinta e quatro anos
— Francisco de Jerônimo. E,como ele, a Gesü Nuovo.
Em Gesü Nuovo,com efeito, em 1676, os bons padres restauram a capela de S.
Ana.Projetam mandar pintar nela uma Assimção. Abriram pois lun concurso sobre
esse tema. O esboço escolhido entre cem foi o de um desconhecido que não ousou
apresentá-lo pessoalmente,temendo que suaidade o eliminasse sem sequer lun olhar.
Tmha dezenove anos e se chamava Francisco Solimena (1657-1747). Enquanto pin
tava sua capela,os confrades rejeitados passavam para vê-lo trabalhar,não sem uma
secreta inveja desse meninn que começava tão bem, ameaçando ultrapassá-los a
todos.®
Não deixou de fazê-lo. Os jesuítas o adotaram. E, em seguida, dentro em breve,
Nápoles em peso. Logo, o Reino. Será o último grande representante do barroco
napolitano, um dos raros artistas completos da história das artes plásticas. Como o
barroco é antes de tudo arquitetura, arquitetura pintada e esculpida, ele fará
genialmente a füsão dessas três dimensões da criação em seu pensamento, em sua
mão e em seu ensinamento.Arquiteto,pintor e modelador,esse prestigioso mágico do
barroco comunicou seu modo e seu movimento a toda a arte partenopéia do século
XVin, desde a arquitetura monumental até as imagenzinhas de terracota que po
voam os presépios.Passando,é claro,pela pintura:ele é sobretudo o chefe de escola da
Academia pictórica napolitana. Primeiramente por haver formado centenas de alu-
PARTE I Cap. 8 85
nos.Em seguida porque pintar à Solimenesca tomou-se a ambição de todo o século
XVm meridional.
No início desse século Solimena atinge oscinqüenta anos.Estava transbordante,
e por muito tempo ainda, de força e de glória.
Nem é preciso pergimtar como o encontrou o cavaleiro Ligório. Poderia se con
tentar com outro, senão o melhor, para o seu filho primogênito?
Mas tem mais.
Comojá dissemos,Solimena permanecerá ligado a estesjesuítas que lhe propor
cionaram a primeira oportunidade. Depois de uma célebre Madona e S.Inácio, pin
tará ainda para eles o tumultuoso afiresco de Heliodoro expulso do Templo que anima
o interior da parede de entrada de Gesü Nuovo. Imaginamos portanto naturalmente
Francisco de Jerônimo introduzindo seu amigo o senhor José no ateliê de Solimena.
Seja como for,B.de Dominici,que publicará,em 1745, Vite de'pittori,escreverá
esta surpreendente página:
O senhor José de Ligório, cavaleiro napolitano, também se aplicou à
pintura com grande talento. Fez questão de seguir a escola de Solimena. Sob
sua direção, executou cópias do mestre que não são sem valor. Mais tarde,
porém,deixando a pintura a óleo,especializou-se em miniaturas. Nesse gênero
produziu muitas obras apreciáveis. Adquiriu com o tempo uma tal perícia que
era chamado "o Virtuoso" e seu nome merece passar para a posteridade.
A fim de não ser importimado pelos mile lun negócios da casa,permanece
a maior parte do tempo em Marianella, vilarejo próximo de Nápoles. Onde,
apesar de sua idade,continua dedicando-se a suas miniaturas.Sua alegria é de
presentear com elas seus melhores amigos e pessoas de merecimento.^
Essa página de história regionalfoiescrita entusiasticamente com rima pontinha
de... hipérbole, ainda durante a vida do velho oficial. Ele morrerá ao ser publicado o
livro,em 1745,isto é, dois anos antes de Solimena.Se ela náo lhe abre as colimas das
enciclopédias de arte,abre para nós umajanela sobre seus gostos e cultura,sobre sua
tranqüila aposentadoria e, sobretudo, sobre a formação pictórica de seu filho mais
velho. Afonso cresceu portanto não apenas no meio de quadros,mas entre palhetas e
pincéis. E como deixar de coiyeturar, com toda probabilidade, que o professor de
pintura — e certamente de arquitetura — que seu pai lhe deu, não foi outro senão
aquele de quem ele próprio recebia aulas?
Em casa,o menino teve"professores"—vários professores —de desenho,relata o
minucioso Tannoia: um para iniciá-lo no desenho artístico, o outro na técnica e na
estética das plantas e dos estilos. Solimena e um adjimto? Por que não, quando se
sabe que o dinheiro,desde aquele tempo,era quem mandava;que o padre Francisco,
provavelmente,recomendava;e os Ligórios-Cavaüeri se tomavam grandes persona
lidades?
Mas chega lun momento em que o único lugar de trabalho eficaz é o ateliê do
mestre. De Dominici nos mostra o senhor José copiando aí as telas de Solimena.Nos
86 PARTE I Cap. 8
anos em que Afonso saía da infância,sua escola polivalente atraía niunerososjovens.
Foiele quem formou os melhores arquitetos,escultores e pintores do Reino,no século
XViii. Em particular os pintores Paulo De Maio (1703-1784) e Francisco De Mura
(1696-1782),contemporâneos e amigos por toda a vida de Afonso. Amizades nascidas
em tomo das palhetas e dos cavaletes.(Certamente na escola de Solimena.®
Em desenho, pintura, arquitetura, Afonso teve um êxito maravilhoso,
prossegue Tannoia.No tempo em que vivia entre nós,vimo-lo até na velhice, a
desenhar,sob a inspiração da piedade, variadas imagens do Menino Jesus, de
Jesus Cmciflcado,assim como de numerosas Madonas. Mandava-as gravar no
cobre para difundi-las no meio do público e levá-lo à piedade.
O fiel memorialista abre-nos aqui uma pista original, pouco explorada e que nos
levaria certamente muito longe.
i^im como seu pai, Afonso de Ligório não deixará seu nome em maiúscula na
história, mesmo regional, da pintura. Mas como bom alimo de Solimena, náo era
omem para enterrar um talento sem explorá-lo o mais possível para Deus, para
ana,para os outros,para si mesmo.Ele dirá, portanto,ele cantará,ele clamará sua
é,seu amor e sua contemplação através da pintura e do desenho, como através da
músicae da poesia,através da palavra e da escrita.Náo lhe bastarão todos os meios de
expressão para comunicar o fogo que o devora.
Se nos lembrarmos de seu fervor infantil, de sua emoção diante do pecado e de
Miradois,ficaremos menos surpresos ao saber que um dia de
,esse advogado de vinte e três anos tenha experimentado,diante do Crucificado,
mesmo choque que,em 1553,transtornou Teresa de Ahumada diante do Ecce Homo
e carnescinzentas,dilaceradas porenormesferimentos,num corredor de Ávila.A fim
e nunca m?ãs esquecê-lo, Afonso se apressou em fixar sobre uma grande tela de
proximadamente lmxl,5m, sua trágica visão de Jesus na cruz, arrasado em sua
"IO e amor,esfolado e sangrando. Aíjá se encontra o brado de estupor comovido
que seus escritos fireqüentemente irão fazer ressoar:
Minha alma, levante os olhos e considere este Crucificado; considere o
Cordeiro divino imolado no altar de seu sacrifício. Reflita que ele é o Füho
em-amado do Pai eterno! e que morreu por amor de você. Olhe seus braços
abertos parao acolher,suacabeçainclinada paralhe daro beijo de paz,seulado
transpassado para recebê-lo em seu coração.O que diz você diante desse Deus
tão amante? Merece ser amado?...E ele,que lhe diz do alto da cruz? O seguinte:
Procure, meu Füho,se existe alguém no mundo que o ame mais do que eu."®
Esse Cristo lancinante,ele o mandará reproduzir ampliado, por artistas amado
res, para todas as suas comunidades, para todos os seus grupos de missionários
itinerantes;ele o mandará multiplicar e difundir em estampas.^® Traído pelas lamen
táveis cópiasem vermelho berrante que foram feitase impressas,o original,admirado
em Ciorani,surpreende, pelo contrário,pela discrição dos tons e pela serena ternura
do Semblante.Não deixa de ser a morte atrozsob os golpes do pecado,mas no perdão,
na paz reavida com Deus,na Salvação.É meditada e expressa numa tela por Afonso,
aos vinte e três anos, a morte do Amor que nós matamos. Mas uma morte de amor,
vitoriosa. A morte de um Deus.
PARTE I Cap. 8 87
Uma vez afirmada essa firme esperança, será mais fácü do que mmca para ele
tratar, com realismo de hiunor macabro, a morte humana do pretensioso. Uma vez
padre e fundador—ainda é Tannoia quem o diz —"para mostrar que o homem em si
mesmo não passa de um monte de podridão, ele pintou com aquarela e carvão, o
cadáver de Alexandre Magno,decomposto e cercado de topeiras,tendo embaixo duas
estrofes" de uma de suas canções. A primeira podemos arriscar traduzir assim:
É aqui que termina toda grandeza humana,
Toda ostentação deste mundo e toda beleza vã.
Os vermes, o lodo, uma uma ou quatro pés de terra
Acabam para cada homem com sua vez de espetáculo.
Esse"sermão"será para seus noviços,em Ciorani. Agora este para seus estudan-
tes:
"No refeitório de Deliceto, prossegue Tannoia, pode-se ver (de sua mão), vun
grande esqueleto com cames roídas jazendo entre os ratos." Perto da cabeça, uma
ampulheta com esta inscrição:"Sua hora passou";no fundo do quadro,com grandes
letras ferindo a vista: "Você que está lendo, veja o que será um dia.""
Lançado no turbUhão fulgurante da nobreza, testemunha lúcida da corrida às
honras e do blefe universal, Afonso se encontra nas primeiras fileiras para observar
que "a fascinação do vício atira um véu sobre a beleza moral"(Sb 4,12). A ducha flria
que ele prescreverá,pelo pincel como pela pena,para esse gênero de loucura:dar uma
volta pelo cemitério:
Que sorte mais brilhante na terra do que a de Alexandre Magno,de César
Augusto? Já cessou há muitos séculos... A que se reduzem finalmente todas as
prosperidades da terra? A um cortejo fúnebre,a um túmul' à decomposição.A
sombra da morte oculta e obscurece as mais altas dignidades. Feliz somente
aquele que serve a Deus na terra e garante para si, por esse serviço cheio de
amor, a eterna bem-aventurança.^^
Desprezo de monge? Desüusão de velho? Muito pelo contrário: clara visão do
jovem habitado pelo Espírito.Quando esse belo rapaz,com um lacaio atrás, a não ser
que vá de carruagem,é obrigado a suportar o mundanismo de algum salão granfinp,
mostra-se em casa dos Salemos,dos CriveUi ou dos D'A£Qitto,mostra-se sobriamente
elegante e,com toda paciência, honra sua família e os que o recebem. Mas isso é um
suplício para ele. Ao voltar para casa,exausto,deixa escapar sua repugnância."Coi
tado do meu Afonso,diz-lhe então sua mãe,onde você quer que nós encontremos uma
companhia de seu agrado?"'®
Podemos apostar que uma vez dentro de seu quarto, o desenhista acalma os
nervos rabiscando,sem maldade,o esqueleto da bela duquesa ou o crânio,despojado
de sua peruca, do alto magistrado indispensável.
Entretanto, esse breve arrepio realista diante da morte significará menos para
ele do que acontemplação de Jesus na cruz!Não lhe ocorrerá aidéia de mandar gravar
e difundir estampas de Alexandre Magno.
 88
PARTE I Cap. 8
PARTE I Cap. 8 89
(M^to de Cto^está^inado.emcima àdireita.com asiniciais de seu autx>r: Nesse impacto santificante do visual, Afonso acredita porque o exnerimentou.
AJVI.U.U — Afonso Mana De Ligório.e traz a data: 1719.
poeira"palavra"de quaae todaa aa auaa obrasespWtual^^J^de
Km tratados dogmáücosserá uma gravura criada e desenhada por^^t^afim
Dtao^Síé wf? t l'® mesma época, a Madona de S. Afonso. A o coraçao e com a mao, duas versões de sua admirável Madona 0^750fíl^c^
^tSo
arte. Nenhum^vSrR^.ÍÍ''® » "o de vidaAureolado pelas dosea
Interior ultrapassa pnmeiro testemunho de perfeito amor. no Inicio de suas GWrlas diM.rií?» Sra-
"^«1 Virgem de Rafael dá essa vontade de silêncio e oraçáo, pnma do filho, do artista, o cavaleim. inspirada por sS^
para ela, realizada "da forma melhor que pôde". » Po ua Se ra,
dda
avrevi
P^^^erá°no mulher Assim que ele via Maria.
/«lecera no encantamento dessa visão de n
E por
n-o He
tuindo as estreii^3, ^ superá-la.subi selos. Afonso não assmará as suas.Por hunüldade.Como deixará de assinar também
nos apresentava ^ ^ a este oval que só or/'T"^
outra pessoa,eleObras. Mas,questão
tena feito pelo mesmo motivo,
de a elas se essas
atribuí-las gravJ^^^^S^ISo
explicitamente. A verdade nãodeo
divina
divina beleza: aa Madona
divina Kr.1.. de S. Afonso
^ «^"luianie. Mas «ate mesmo semblante de
permite. São criação sua e o de^nho a bfeo-de-pena é de sua mão. Entre as dezessete
grai^as examinadas, quatro têm o nome do gravador no cobre (sculpsit ou inciditX
Espírito Santo esboça uma Madona do nenhuma o do autor ou do desenhista(delineavit).E quantas outras santas gravu-
uma Divina Pastora.Virv a De Mura, outro amigo; pinta também 1 do bom povo napolitano!
figinativa, através DoutorComo
da Igreja,
não darvoarão
todo ouma
pesocomo pregação
ao testemunho
ele a desenhará no^me Menmo,que De Maio aperfeiçoará."Sua Virgem", de Ta^oia quando afirma que depois de seu episcopado, via-se ainda o ancião dese-
suas Glórias de ternura para o frontispício de
sobreatelasuaad^^^ ^^^^P^^^^^^^^^P^^é^-^^epetir sobre o papel ou diSrthnMaTÍ?^ de interessaria
distribuí-las? Que especialista se Maria e mandando gravá-las no cobre a fim de
em procmá-las?
comover os outros tP. °^ Pela"Máe Maria",a fim de com ela se encantar e
declaração de amni- «„ um sonho
nimca suficientemente que renasce sem cessar. Como uma
expressa. As estampas que temos de Afonso no cabeçalho de suas obras são de um simbo-
lismo evidente —falam aos simples — de um desenho preciso e belo,de grande finura,
animadas por aquele movimento soprado então pelo barroco e pela escola de Soli-
ele Tannoia no processo apostólico de Santa Ágata- mena.AIgrejadeseuTriunfodaIgreja(1772)érepresentadaporuma galeraem plena
Nossa SenhnJf ®°°®®SUiu pintar uma imagem táo bela, tão irradiante, de tempestade, erguida pelas vagas furiosas, na qual se percebe a observação meticu-
repetia." saciava de contemplá-la."Que linda!... Que linda!" losa... e a emoção filial.^®

Era um êxtase. Os biógrafos de Afonso mal sobrevoaram essas pistas precisas. Haverá talvez
quem lhes dê razão?"Um padre,um bispo —pior:um bispo resignatârio que perde
sobre a Redentón^^^^pública de Afonso sobre o Amorfeito homem,sobre o pecado, tempo manejando pincéis, lápis, pena e nanquim! Homem superficial!"
'^^eria é sua Man sua primeira palavra de ternura filialsobre
Os que assim pensaram esvoaçam,volúveis borboletas,nas esferas intelectuais.
também pelaTma"^ « criativo, sua intensa visão interior exige que saia Aluno de Solimena, Afonso desenvolve em si uma dimensão de humanidade que lhe
visual,todaimav ^ a fim de se projetar na pintura ou no desenho. Por ser ele um permitirá ir ao encontro da alma popular de modo mais adequado,comovendo-a pelos
bela Madona o la ®xpressiva ocomove vivamente;um presépio,um crucifixo,uma olhos,como o povo das catedrais,e não simplesmente pelas palavras, por mais ardo
Maria* como aVá bnediatamente num encontro vivo e caloroso com Jesus,com rosas que sejam; e antes de tudo uma dimensão pessoal que lhe permitirá pertencer
pessoas Pter * ° ° particularmente sensível ao encontro com as ele próprio a este povo para quem a imagem é o sacramento da presença. Nenhum
Crucificado Pàra "se enamorar" de um Deus Criança, de um Deus espírito elevado existe, se permaneceu humano,que náo tenha em grande apreço os
tueta de Jeai Maria,ele terá sempre a seu alcance uma comovedora esta- retratos daqueles que ama.Advogado,missionário,bispo,escritor de reputação euro
Leiamos'eníf ^"^^s^Pio. unicrucifixo realista,uma bela pintura de Nossa Senhora.
^outros, o testemunho de seu secretário episcopal, Felice Verzella: péia, Afonso nunca se separará daquilo que permanecerá sendo para ele "memorial"
dos encontros místicos de sua juventude: seu Cristo na cruz e sua Madona.
sempre sob os olhos sua imagem da Mãe do Bom Conselho, e
Ele se colocará, modestamente, entre os pintores diletantes. No entanto sua
tod ^vezeso vie ouvidirigir-lhe atos de amor,de confiança,etc.,e orações.A visão do Redentor e de sua Mãe forçará seu pincel a ultrapassar os grandes.É em suas
nal*'^ vinham vê-lo, dava uma imagem da Virgem Santíssima com uma telas e por seu contato de fogo que se inspirarão para o semblante da Virgem e do
nar^^p^^^ inculcar seu próprio fervor:"É nossa Mamãe:ela nos levará Cristo os dois pintores seus amigos que, por sua vez,caracterizarão a arte napolitana
"C liados
H ^de nós se não tivéssemos
aquela queesta
nostoda-poderosa
ajudará na horaMãe
da morte"; ou ainda:
de Deus!"^^ do século XVin, Paulo De Maio e Francisco De Mura.
90 PARTE I Cap. 8

Consciente de seuslimites,como seu pai,diante da palheta e do cavalete,Afonso

se sentirá mais à vontade com um lápisou uma pena na mão.O senhor José escolheu a
especialização no guache; Afonso se tomará lun virtuoso da gravura. "Até em sua
velhice." Com máo que não treme. E se náo adquiriu nome por seus desenhos, foi
porque não os assinou.

Como também não assinará suas composições musicais.

NOTA
)>

1.Tannoia, I, p. 8.
9."SOU DOIDO PELA MÚSICA!
2. Citado por Vaussard, op.cit., p. 36.
3. Tannoia, ibid.
4. Citado por Vaussard, ibid. Se por falta de uma santa Cecília legendária e sem voz—ela só cantava"em seu
9<!nin» 32(1960),pp.290-293.Hércules,o irmão mais novo de Afonso,que herdará coração"—se desse como padroeiro aos músicos aquele quejá protege os moralistase
unias MO telS ® Cavalieriassim comoo gosto pela pintura,deixaráem 1780 um"museu"com confessares, não seria sem humor. E levaria a refletir. Mas no entanto...
6. Bach,op.cit., pp. 584-585.
7. Citado por p. Capone, C.SS.R.. n voito di SanfAifonso. p. 4. Pintor amador,desenhista seguro do oficio, Afonso de Ligório terá,em música,a
8. Enciclopédia Cattolica, voL i2,art "Solimena"; Capone, op. cit., p. 5. classe de um mestre reconhecido. Deixou seu nome na história da música italiana: é
1 Siunmariuin,
10. falnte:
pp.Opere asceticlie,
263, 265, etc. X,pp. 214-215. encontrado em certas obras especializadas e atentas.^ Melhor: ele semeou seus poe
11. Ct Capone, op.cit., p. 6. mase suas melodias no folclore do povo maiscantante do mundo.Gravadas por ele no
12. Via delia salute: ibid., pp. 34.35. coração e na memória das multidões analfabetas,serão,depois de sua morte,recolhi
13. Citado por Capone, op.cit., p. 54. das, anotadas, publicadas e republicadas. Ele até comporá, com mais de sessenta
14. Capone,op.cit, pp. 111-112,129-145. anos, um Dueto para vozes e cordas que será editado em Londres, Viena, Paris e
15. Summarium,p. 296 e passim.
16. Capone, op. cit., pp. 120-128. Roma; voltaremos a falar disso. Será gravado em discos, programado em concertos;
passa pelas ondas do rádio^ e inesperadamente surge como fundo musical de certo
filme. Discretamente, às vezes sem "assinatura", como fisz propositadamente com
suas estampas. Mas é ele. Os conhecedores... o reconhecem.

Primeiramente, mas de modo excelente, um italiano, um napolitano."O mais

napolitano dos santos".

Um viqjante firancés dos anos 1770,o padre Coyer,observará:"Malse transpõem

os Alpes... e a música se apresenta sem ir buscá-la. O violino, a harpa, o canto nos
detém nasruas...Quanto maisse avança naItália,mais avança a músicaem perfeição.
Nápoles é seu apogeu."^

Desde sempre Nápoles é célebre por seus cantores e por seu gênio lírico.

A música,escreverá La Lande em 1765,é sobretudo o triimfo dos napolita

nos. Tem-se a impressão de que, nesse país, as cordas vocais são mais temas,
mais harmônicas, mais sonoras do que no resto da Europa: a nação é toda
cantante: o gesto, a inflexão de voz,a prosódia das sílabas, a própria conversa,
tudo aí demonstra e respira a harmonia e a música. Por isso Nápoles é a fonte
principal da música italiana, dos grandes compositores e das excelentes ópe
ras."

Foi precisamente na idade de ouro do bel canto que Afonso veio ao mundo.Por
volta de 1700,como se sabe,Nápolesse tomao foco de onde aópera italiana,chegada a
seu zênite, brilha sobre toda a Europa. O que se sabe menos, é a amplidão e a
92 PARTE I Cap. 9
qualidade de sua música religiosa vocal. O inestimável tesouro esquecido só foi
descoberto cerca de 1930.E em que fundo ele dormia? No Arquivo musical do Orató
rio filipino: o musicólogo Guido Paimain(t 1977)descobriu,com osjerônimos, uma
riqueza de partituras abandonadas,de tal importância pelo número e qualidade das
obras, que revoluciona a história da música religiosa vocal dos séculos XVI e XVU:
missas,hinos,motetes,salmos,paixões,responsórios—a 3,4,8 vozes — impressos ou
manuscritos, gastos por um longo uso,de autores até então ignorados, ou que só se
conhecia através de sua música profana.®
Mas por que,justamente,com os oratorianos?
Em nosso Ocidente platônico,sob pretexto de dignidade e de "espiritualidade",
nós desvitalizamos,dissecamoso homem;como uma flor colocada num herbário,nós
o rediizimos ao pensamento,à"razão".Filipe Néri(1515-1595)recusou essa caricatura
angélica do homem, do cristão, do santo. Restituiu à vitalidade encarnada sexis
direitos, assim como à expressão corporal e vocal. Ele dança, canta, quer que seus
irmãos"sejam estimulados à contemplação pelo concerto musical". ® Pois não foi o
mestre,o amigo e o confessor de Pierluigi da Palestrina(1525-1594)que compôs para
ele algumas laudi e motetes? Não viveu ele um estreito relacionamento com Tomás
Luís de Victoria(1549-1611)? Ele é todo músico e quer para Deus um povo cantante.O
oratorio,o oratorio volgare,isto é,com texto italiano, nasceu em Roma,no Oratório
de Fihpe Néri.Vaise tomar,no século XVm,umaespecialidade da escola napolitana
com Domingos Scarlatti, Porpora, Pergolesi — txês "condiscípulos" de Afonso —
Jommelli,Piccini, Paisiello...^
Foiem Nápoles,com efeito, que se implantou,em 1586, a segimda comimidade
oratoriana.Naequipe,um médico,o padre Giovenale Ancina(1545-1604),aeloqüência
e a música feitas homem. Nosjerônimos,logo explode a mesma animação cantante
que em ^ma,mas à altura da capacidade napolitana.Para alimentar as celebrações
e as atividades das confrarias do Oratório, Ancina reúne as composições de mestres:
ele as procura,suscita,adapta,imprime.Foilançado o ciclone sonoro dafé alegre.Isso
vai crescendo. O centro filipino se toma um foco ardente de animação musical. Sem
comparação,o maisimportante de Nápoles.O maisirradiante da Itália. Durante cem
anos e mais.
E nosso Afonso dentro dele. Criancinha, depois "irmão" da Congregação dos
17Jo Nobres
1723 pelo (1706-1714),
rnenos — é aí quee finalmente da dos
vem viver seus Doutorese(1715...)—portanto
domingos, certamente tambémdemuitas
1700 a
tardes,nos"concertos",ora religiosos,orarecreativos,queridos por doissantos,Nérie
Ancina, o bem-aventurado Giovenale Ancina.
Não tinha ainda doze anos,dizTannoia,ejá tocava cravo como um mestre.
Um dia os padres organizaram a representação, pela Confiraria dos Jovens
Nobres,de um drama musical de Bemardo Pasquini(1637-1710), S. Alessio. O
papel de Afonso era o diabo tocando cravo. Desempenhou-o com tal maestria
que toda a assistência ficou estupefata.®
"rt*
diamete^piorava, essada
, por detrás indolente nobreza,
educação que por detrás
intensamente musicaldados
virtuosidade inata
oratorianos, do
havia
também a mão de ferro do capitão de galera, título bem merecido como se verá!
PARTE I Cap. 9 93
O senhor José era doido por música,continua Taimoia. Queria então que
seu filho também fosse músico exímio.(Notemosesse"também"que afirma,no
pai,uma alta cultura musical.)Afonso tinha portanto de se exercitar,no quarto,
com um mestre, três horas por dia. O pai assistia habitualmente a lição. Caso
estivesse ocupado, punha alimo e professor trabalhando,fechava-os à chave e
ia para seus negócios."Que loucura!" gemerá um dia Afonso já velho,olhando
para o seu cravo, à lembrança do ardor que nele colocara."Que loucura,perder
tanto tempo!... Mas tinha de obedecer: era a vontade de meu pai".
Sabemos portanto que, ainda bem pequeno, o menino teve um professor de
músicacom o qualo senhor José,quando não estava no mar,colocava-o preso todos os
dias durante três horas em seu banco de "galeriano". Feliz galeriano, pensamos,mas
com essa idade,três horascustam a passar.Então,achave vinha impedir afuga parair
brincar. Sabemos igualmente que,desde doze anos,o menino era,no cravo,brilhante
virtuoso.(O cravo, esse primogênito do piano (1710), que belisca as cordas em vez de
martelá-las, e que os grandes fabricantes de hoje restituíram ao mercado. O cravo,
esse companheiro de quase toda sua vida e que parece esperá-lo ainda em PaganL)
Sabemos,finalmente,que durante seus anos de universidade ele estuda a harmonia e
a composição, certamente com outro professor.
Foram longe as suposições sobre esse professor de Afonso. Falou-se do presti
gioso Alexandre Scarlatti(1660-1725),mestre da capela real;maso mestre não ensinou
em nenhum conservatório nem se encarregou de alunos particulares a não serseufilho
Domingos (1685-1757), salvo para preencher a solidão de seus três últimos anos.
Afirmou-se com uma bela segurança que nossojovem cavaleiro foi"certamente alvmo
de algum'conservatório napolitano'"®.Só pode ser um erro para quem sabe o que era
um "conservatório napolitano." Mas não deixa de ser verdade que a "miisicalidade" de
Afonso, além de seu gênio próprio, é devida a estas três realidades cqjos reciursos,
então em seu apogeu,se somam nele num maravilhoso encontro: Napolitano,Orató
rio, Conservatório —ele é napolitano no ambiente do Oratório, na idade de ouro dos
conservatórios.
"Conservatório",a palavra indica bem a origem da instituição.Conota.as idéias
de preservação e de internação.De casafechada,mas anti-prostituição.Compreendia
desde o intemato de luxo para filhas de ricos(as famílias nobres tinham "seu" con
vento para "suas" meninas)até os refúgios para arrependidas, passando pelas casas
de retiro para anciãos e,sobretudo,no outro extremo da vida,pelos orfanatos para os
scugnizzi: crianças pobres, meninas ou moleques da rua e esfomeados.^® É através
desses últimos que a palavra napolitana "conservatório" passará para a história e
para a linguagem internacionais com o sentido de escola de música.
Nápoles, com efeito, não devemos esquecer, é o paraíso da musa Polímnia. A
música é aí, para o povo, uma segunda língua. Esses intematos vão pois se tomar
"gaiolas de rouxinóis". Seguindo esse rumo e dispondo de muito tempo livre, os
conservatórios evoluirão progressivamente, através do século XVn,para um ensino
musical cada vez mais profundo e completo — canto e suono di tutto: a famosa
impostação de voz (messa di voce), toda a panópia de instrumentos, a harmonia, a
composição e até a redação de opúsculos que fornecerão uma rica literatura.
Ora,em 1700,Nápoles possuiquatro conservatórios de meninosno apogeu de seu
prestígio,tão célebres são seus métodos pedagógicose os grandes maestros que deles
94 PARTE I Cap. 9
saem.Disto até supor que o altivo capitão Ligório aí coloqiie seu herdeiro lado a lado
com os"moleques da rua" vão cem léguas de distância! Ainda mais que os meninos
entram para lá antes dos dez anos e seus pais, caso os tenham, se comprometem a
mantê-los no intemato pelo menos durante oito anos." Completamente contrário a
tudo o que sabemos sobre a educação de Afonso.
Masfoi o Conservatório dos Pobres de Jesus Cristo que lhe enviou,como profes
sor particular, nada menos do que seu mestre de capela."Durante três anos, Afonso
recebeu lições de contraponto do célebre Caetano Greco." É uma testemunha no
Processo apostólico de canonização que nos fornece essa preciosa informação.^^
Caetano Greco (cerca de 1650-1728)havia sido alimo do Conservatório dos Po
bres.Era seu mestre de capela desde 1685.Lá ensinava violino,contraponto e compo
sição.Deixará respeitadas obras para voz,para cravo e para órgão.Deixará sobretudo
^andes músicos: poucos mestres terão formado tantos alimos para a história: Fran
cisco Dmante (1684-1755), Domingos Scarlatti (1685-1757), Nicolau Porpora (1686-
1768), l^naido da Vinci (1696-1730), João Batista Pergolesi (1710-1736), p>ara citar so
mente as estrelas.Elesforam os irmãos mai.*; velhos ou os"condiscípulos" de Afonso.
Por que não seus amigos de juventude e de música, na irradiação de seu mestre
comum?
Tal foi o ambiente de grande intensidade artística que freqüentou e respirou
nosso cravista e compositor. Melhor ainda, ele vivia na fonte:
Conservatórios,capelas,teatros foram o campx)de ação de uma Escola de
música de renome europeu,na órbita espiritual do Oratório que"dava o tom"a
toda a atividade musical da Cidade.^^
Através de sua longa vida,Afonso nada deixará infrutífero de tudo aquilo que o
Senhor terá feito germinar em seu jardim. Todo talento será ativamente investido
para a glória de Deus.Nenhum instrumento de trabalho enferrujará em sua cabeça ou
em seus dedos.Perito em ciênciasjurídicas,traçará para a moral vias novas na qual a
ternura de Deusencontrará o pobre amor dos homens:"Com uma clareza e uma força
incomparáyeis, confessa o grande historiador protestante Hamack (1851-1930), ele
fará do direito,o aliado da liberdade cristã"",e não maisseu acusador.Mas também,
aluno de Solimena,somente a morte lhe arrancará seu creiom, amoroso desenhista de
Jesus e de Maria; discípulo de Filip» Néri, aluno de Caetano Greco, viverá e envelhe
cerá na música.
Brincando sem cessar diante de Deus,brincando na superfície da terra e
esparramando sua felicidade entre os homens.(Pr 8,30-31)
Ele só deixará delado seucravo durante os treze anos de seu episcopado."Até em
sua velhice, era maravilhoso vê-lo lançar sobre o pai)el as notas de suas composi
ções.""
Por que então,irnia vez padre e bispo,limitará ele as religiosas ao canto grego-
rlano? Contradição? De forma alguma Simplesmente ele não admitirá que se con-
fünda o coro das moryas com o teatro S. Cario.
PARTE I Cap. 9 95
Em 1760, publicará para as moiyas esta página em que aflora sua experiência de
músico "profissional" e seu fino conhecimento dos meios religiosos de seu tempo:
Uma palavra sobre a música e sobre o canto.O canto na igreja,em si,está
certo: é louvor de Deus. Mas nos mosteiros, a vaidade e o demônio têm mais a
ganhar com isso do que o Senhor.
—Como?1 dirão vocês,que mal pode haver em cantar? Porfavor,diga,que
mal?
— Primeiramente perda de tempo, perde-se muito tempo. Porque a mú
sica é uma arte que se deve dominar para nela encontrar alegria, senão ela
desagrada...
(Isto é: Minhas irmãs,já que vocês chamam jovens maestros para treiná-las, que
vocês acham nisso tanta alegria, que o p)ovo vem em suas capielas aplaudir suas
"cantoras",é sinal que vocês se dissipam,cultivando sua voz, durante muitas horas,
quando têm mais e coisa melhor que fazer.)
Ao me ouvirem falar assim,não vão pensar que sou um inimigo da música!
Pelo contrário, sou doido por música! Quando ainda estava no mundo, a ela
dediquei-me enormemente.Melhor teria feito em me aplicar no amor de Deus!^ ®
NOTA
1. Por exemplo,Dizionario deíMusicisti,MUâo.1937;C.Bellaigue,Portraitset silhouettes de musiciens.
Paris, 1896.
2. SH 17 (1969), pp. 158-159.
3. Citado por Vaussard, op. cit., pp. 183-184.
4. Citado por Bouvler-Laffargue, op. cit., p. 89.
5. Guldo Pannain,"La musica a Napoii dali '500 al tutto li '700", in Storia dl Napoli, Vm,pp. 725ss.
6. Constituições De Oratório, I.
7. Roiand de Cande, Histoire universelie de ia musique, 2v., SeuU, Paris, 1978,1.1, pp. 487-490.
8. Tannoia,I, p.8;cf.Paoio Saturno,un musicista sconosciuto dei'700 napoietano,S.Aifonso de Liguori,
mimeografado, Pagani, 1977.
9. Cf. S. Aifonso, 31 (1960), p. 83.
10. Galanti,op.cit., L.IV.cap.IV,§ 1.; De Maio,op.cit., pp.58,129e 137;Pannain,ioco cit., p.752;sobre os
"conservatórios", ver todo o capítulo V, pp. 745ss.
11. Bouvier-Laffargue, op. cit., p. 92.
12. SH 7(1959), p. 241, nota 44.
13. Pannain, loco cit., p. 784.
14. Citado por J. L. Jansen, Testimonia de S. Aifonso de Liguori, p. 94.
15. Tannoia, I, p. 9.
16. La vera Sposa di Gesü Cristo,cap. XXm,Vm:Opere ascetictae XV,pp.378-379;c£ Lettere,L p. 124.
 10. ADVOGADO AOS DEZESSEIS ANOS
(1713-1723)

Submetido por seu pai a um esforço intelectual e artístico, Afonso só terá sabo
reado com a ponta da língua sua infância ejuventude.Os biógrafos decidiram que ele
não as teria gozado.Não creiam.Seu gosto pelojogo,tão estritamente entravado pelo
temível capitão, permite que esperemos o contrário.

Jovem e napolitano, ele devia amar duplamente a vida.

Somente que ele a amava para plenificá-la, não para perdê-la. Desde sua infân
cia, aprendeu com seus pais — e com o Espírito vivendo nele — a ter horror deste
famiente de classe que os üdalgos ostentavam. Nesse ponto ele não era cavaleiro. Na
veia ancestral da nobiltà generosa, "levava vida laboriosa, como qualquer outro
estudante de condição inferior."^ Esse aristocrata em quem habitará a angústia dos
pobres seguiu por instinto o ritmo de trabalho dos pobres.

Entre uma "monja" — sua mãe — e um müitar, Afonso aprende o poder da

regularidade. Uma vida dirigida "a toque de tambor": exercícios de fé numa oração
amadurecida,exercícios do espírito no intenso esforço intelectual e artístico, exercí
cios do corpo — somente nos dias de folga! na... caça.

É o próprio Afonso quem evocará, na velhice,"sua paixão pela caça". Lamentará

então o tempo perdido correndo pelos campos e brejos:"A procura das^masdá mais
alegria a Deus e felicidade àquele que nela se fatiga. Pelo menos não terá nenhum
remorso ecológico: por mais que se esforçasse,contará rindo,seu tiro de fusal garantia
a vida salva à feliz perdiz em que mirara.^ Sua miopia precoce com certeza era a
culpada.

Caça é divertimento de homem.Exatamente a sociedade daquele tempo pede

muito cedo aojovem nobre —como aliás ao camponês ou ao artesão para amadure
cer e passar às tarefas adultas. Ainda náo foi inventada a adolescência.

Assim,no mesmo mêsem que completa quatorze anos,Afonso toma posse de sua
cadeira no conselho regional—a piazza—de Portanova.Logo que atingiram a mesma
idade, seus irmãos Antônio, Caetano e Hércules também vieram a seu lado,em 1712,
1715 e 1721.
98 PARTE I Cap. 10
Neste 5de setembro de 1710 portanto,o senhor José está orgulhoso de apresentar
seu primogênito às famflias patrícias, umas dezessete que,com os Ligórios, ocupam
por direito as cadeiras da praça de Portanova. O novo conselheiro se acha vestido a
rigor: peruca ondulada,jaqueta fechada no pescoço e cravada de luxuosos botões,
calças de veludo combinando, meias de seda branca sobre botinas com fivelas de
prata; tendo na mão o tricómio protocolar e luvas, esse luxo da alta sociedade;
finalmente, ao lado a pequena espada de prata — 48 centímetros — atributo do
cavaleiro.® Não poderá mais tirá-la a náo ser para dormir ou entrar no pretório,as duas
ocasiões em que se é obrigado a deixar as facas no vestiário.
De 1710 a 1723, os protocolos das sessões atestam a participação doravante
assídua do novo magistrado." Todos os problemas de uma administração mimicipal
se tomam os dele:impostos—no começo era o imposto! — abastecimento da popula
ção,controle dos preços,conservação do registro dos imóveis e escritura das compras
e vendas, arrendamento dos bens e direitos comunais, atribuição dos beneficiados ecle
siásticos dependentes do patronato de Portanova,manutenção do registro civU e das
árvores genealógicas dos cavaleiros,levantamento e distribuição das coletas para os
pobres envergonhados da nobreza, conservação e administração das ruas, praças,
fontes e prédios públicos, bons costumes, polícia urbana e justiça de paz, enfim,
organização e financiamento das manifestações religiosas e civis, quer se trate de
festejar são Caetano, quer da recepção do vice-rei. (Ousaremos dizê-lo: as contas
revelam que, para são Caetano, o capitão de galera dava pouco, muito pouco...)
Cada uma das seis sedes,ou conselhos regionais de Nãpoles,elegia por lom ano
um comitê permanente de seis cavalheiros, os "deputados", que acompanhavam os
negócios e convocavam as assembléias. Esse enviava também um eleito — eleito —
para constituir, com os eletti das cinco outras sedes, o poder central da cidade, o
"Tnbimal de S.Lourenço" como se dizia, ou,simplesmente,a Città,a Câmara m\mi-
cipal! A Cittàse reunia com efeito na sala do capítulo dos conventuais de S.Lourenço,
no número 316 atual da rua dos Tribunais.Duas grandes aberturas góticas com cinco
janelas flamboyantes aí iluminam,sobre as paredes da sala abobadada, as galerias dos
santos, dos papas e dos cardeais da Ordem franciscana. Se Francisco de Assis e
Boaventura inspiraram pouco — muito longe disso! — Aos eleitos da Città a modera
ção fiscal e o desinteresse que convém aos magistrados, certamente esses pobres
falaram silenciosamente ao coração de Afonso.®
Os múftiplos aspectos da vida de um povo se impõem portanto à consciência do
jovem magistrado e revestem de came e sangue os textos das leis que ainda estã
aprendendo nos bancos da universidade. Podemos imaginá-lo, nos primeiros anos,
atento e discreto, surpreendido, por vezes chocado. Aprende a gestão dos negócios e
sobretudo a vida dos homens. E a miséria dos pobres. E a grosseria dos ricos. E
fteqüentemente a trapaça de ambos.Sua"classe"e sua competência lhe valerão logo
responsabilidades lisonjeiras. Mas precisa primeiramente terminar seus estudos e
conquistar o doutorado.
Será em janeiro de 1713.
A imiversidade preparava para os três doutorados — teologia, direito, medicina
— mas não os conferia. Esse privilégio cabia, para cada disciplina, ao Colégio dos
Doutores,sob a autoridade do Grão-chanceler do Reino. Era então o senhor Marino
PARTE I Cap. 10 99
Francisco Maria Caracciolo, príncipe de Avellino. Na realidade, ele delegava para as
provas um de seus vice-chanceleres, mas era ele quem entregava os preciosos perga-
minhos. As teses eram sustentadas em seu palácio,salvo as de teologia, para as quais
se emigrava para uma igreja de uma das quatro Ordens mendicantes da capital.®
Como por toda parte em outros lugares—mais do que em outros lugares,quem
poderia dizê-lo? — a justiça,em Nápoles,se vendia bem. A começar pelo diploma de
doutor em direito: como o de medicina,muito cobiçado também,ele permitia recupe
rar rapidamente o investimento mesmo elevado de um comércio simoníaco;a teologia
oferecia menos recursos!... Maso senhor José não gostava de abrir a carteira.E Afonso,
por seu diploma,tinha coisa melhor a oferecer do que dinheiro à vista. Ahãs sabemos
das condições precisas — e rigorosas —,que na realidade,lhe foram impostas apesar
de sua pouca idade, ou talvez por esse motivo mesmo.^
A lei exigia do candidato que tivesse vinte anos completos de idade,cinco anos
de matrícula e dez semestres de estudos na imiversidade. As dispensas, é verdade,
eram fireqüentemente concedidas. Mas a de Afonso é um caso limite. No dia 10 de
janeiro de 1713,em nome do arquiduque "Carlos, rei das Espanhas e imperador dos
Romanos","visto que ele estudou a totalidade do programa e fez todas as matrículas
requeridas", o vice-rei Carlos Borromeo Ares lhe concede dispensa de três anos,oito
mesese vinte e um dias de idade,assim como do semestre de estudos que lhe falta para
ter licença de se apresentar ao doutorado.
A prova comportava duas etapas.
Um exame "eliminatório" afastava os incapazes que não se queria ver envergo
nhados na prova pública.Isso se dava diante de doisjuristas designados pelo prior do
Colégáo dos Doutores. Esse prior outro não era senão o famoso José Valletta (1636-
1714), escritor onisciente, ponto cardeal da Nápoles das Luzes e da Europa das ciên
cias, que tinha na cabeça e em sua casa a biblioteca mais"avançada" do Reino.® No
dia 17 dejaneiro de 1713, Valletta dá pois mandato aos doutores José Porpora e Jacinto
de Baucio para comunicar ao "Magnífico senhor Afonso de Ligório" os dois pontos —
canônico e civil—sobre os quaisterá de mostrar seu desembaraço:tem vinte e quatro horas
para preparar suas exposições e prever o debate que se seguirá. Sabemos quais
foram esses puncta tentativa com os quais com certeza nosso candidato perdeu
muitas calorias: para o direito canônico:"Dos clérigos casados"; para o direito civil:
"Dassegundas núpcias".Ele transpôs sem tropeçar a primeira cerca:"Nós o ouvimos
nesse exame preliminar; podem-se fixar-lhe os pontos de seu exame propriamente
dito." Assinado: Porpora e Valletta, dia 18 de janeiro de 1713.
Porpora e o prestigioso Valletta são seus padrinhos — promotores — do grande
dia: o debate público.Estamos aos 21 dejaneiro, de manhã.O frio e a gripe reinam na
cidade. Isso deve ter retido alguns torcedores tiritando em suas geladeiras ou to
mando chá em suas camas.No entanto não faltou animação no bairro da Anticaglia:
parentes,amigos,condiscípulos,juristas confluem para a grande escadaria que leva à
sala de honra do palácio Caracciolo. O candidato está com a cabeça cheia das quatro
"leis" que lhe deram na véspera para preparar: a transferência dos clérigos, as
doações pias, para o direito canônico; os contratos, a primazia da justiça e da eqüi
dade sobre a letra do direito, para o civil. Confrontos estranhos: é esse último ponto,
tirado do Código Justiniano,que lhe fará perder o processo da sua vida;é ele também

PARTE I Cap. 10
100
que traz a idéia-máe da qual nascerá sua obra revolucionária de "Mestre da teologia
moral".
Chegou a hora. G. Porpora e o grande Valletta apresentam e afiançam seu
candidato diante do vice-chanceler André Botteglieri e do júri por ele presidido:
quatro doutores requeridos,e outrosespontâneos."As portasestão abertas": a sessão
é pública.Afonso de Ligório,dezesseis anos,pretende ganhar sua primeira causa:seu
doutorado em direitos canônico e civil.
A prova consiste numa sustentação oralregulada como uma sinfonia,segundo o
método das teses escolásticas: osjuristas europeus a conservarão até o século XIX.
Sobre umadasleisindicadas na véspera,Afonso dá poissua"Ução":exposição,defesa
e üustraçáo do texto legislativo — interrogações e objeções dos examinadoras —
respostas feitas de distinções sutis, de refutações e concessões — finalmente, amplo
resumo finai Tudo isso, naturalmente, na língua universitária, o latim.
"Unanimemente,sem uma única voz discordante", esse menino — ainda tem o
aspecto e tamanho de uma criança — é proclamado Doutor in utroque jure, com a
menção muito bem:"summo cum honore maximisque laudibus et admiratione".
Vem então a liturgia doutorai de costume. Enfiam-lhe uma toga de advogado
na qual desaparece inteiramente, o pequeno (Feliz toga, que o vai tirar do embara
ço quando, mais tarde, evocarem o sucesso de sua juventude: "Ah! sim, ele dirã,
enfiaram-me numa grande casaca na qual embaracei os pés!" E ria, passando para
outro assunto...®);instalam-no na cátedra doutorai,diante do livro fechado do Corpus
Juris canonici que abrem solenemente diante dele; mesma cerimônia para o Corpus
Júris civilis; colocam-lhe no dedo um anel de ouro que o casa com a sabedoria;
impõem-lhe o barrete doutorai e judiciário. Fórmulas consagradas acompanham os
ritos e detalham seus poderes:"ler,comentar,interpretar,ensinar do alto da cátedra
magistral,fazer e exercer publicamente,aquie por toda parte,todos os outros atos da
competência dos Doutores". Seus futuros"confrades" dão-lhe então o beijo de paz e
chamam sobre ele a bênção do Pai, do Filho e do Espírito.
Falta a nosso neófito realizar um duplo gesto religioso. De joelhos, na presença
daqueles que são agora seus pares,ele fáz primeiramente sua profissão de fé católica
nos termos da fórmula dita "tridentina" ou"de Pio IV".io Em seguida,ele se compro
mete solenemente quanto ao dogma,então não ainda definido,da Imaculada Concei
ção da Virgem Maria Nesse sábado,21 dejaneiro de 1713, portanto, Afonso Maria de
Ligório pronuncia este texto,certamente oficial, mas que cada novo doutor escrevia e
assinava do próprio pimho, às vezes com seu sangue:
Eu, Afonso Maria de Ligório, muito humilde servo de Maria, sempre Vir
gem, Mãe de Deus, prostrado aos pés da Divina Mqjestade, em presença da
inefável Trindade de um só Deus Pai, Filho e Espírito Santo, tomando como
testemmihastodos os habitantes da Jerusalém celeste,creio fielmente de espí
rito, abraço verdadeiramente de coração e proclamo firmemente de boca que a
Senhora, Mâe de Deus, sempre Virgem, a Senhora foi objeto, por parte desse
Deus que tudo pode, de um privilégio absolutamente único: foi inteiramente
preservada de qualquer mácula do pecado original desde o primeiro instante de
sua conceição, isto é, da imiâo de seu corpo e de sua alma. Em público e em
PARTE I Cap. 10 101
particular, até o último suspiro de minha vida,ensinarei essa doutrina e traba
lharei com todas as minha.s forças para que os outros a aceitem e a ensinem.
Assim atesto, assim prometo, assim juro; e que assim Deus venha em meu
auxílio e seus Santos Evangelhos.
Esse juramento não era um gesto da Contra-reforma. Sua prática nascera em
1497, na fé e fervor da Sorbona. Progressivamente, do Norte ao Sul, ela havia se
espalhado por cento e cinqüenta imiversidades da Europa. Foi o vice-rei espanhol
Pedro Giron, duque de Ossuna, que o impôs, em 1618, aos magistrados, barões,
doutores e professores do reino de Nápoles."
Uma formalidade convencional? Para outros, certamente. Mas, nesse engaja
mento de fé e de amor, ninguém esteve mais livre e mais feliz do que nosso jovem
cavalheiro. Trinta e sete anos mais tarde,escrevendo nove sermões para as festas de
Nossa Senhora, concluirá assim o da Imaculada Conceição:
Terminemos esta pregação.Prolonguei mais do que as outras porque nossa
pequena Congregação de redentoristas tem como padroeira principal a Virgem
Maria sob o título, precisamente, de sua Imaculada Conceição.
E ele renovará nestes termos o juramento de seus dezesseis anos:
Ó minhfl Rainha imaculada, é imensa a minha alegria vendo-a enrique
cida por uma tão grande pureza! Agradeço e sempre agradecerei a nosso
comum Criador tê-la preservado de qualquer mancha de pecado!Sim,eu o creio
certamente;e para defender esse grande,esse singular privüégio de sua concei
ção imaculada, estou pronto e me comprometo por juramento a dar, se for
preciso, minha própria vida.^®
No dia de sua investidura na roupa comprida demais dos advogados,o pequeno
Afonso tem dezesseis anos, três meses e vinte e cinco dias. O imenso pergaminho
(GOxBOcm)que,a 13 de março seguinte,o Grão-chanceler Caracciolo oficializará com o
selo real, autoriza o doutor Ligório a se ocupar doravante dos negócios dos outros,
quando ainda é menor e deveria esperar ainda dois anos para ficar habilitado na
gestão de seus próprios negócios.
Toda Nápoles ficará em breve tomada de smT)resa admirativa ao ver o
advogado novato — um jovenzinho,quase uma criança — subir a grande esca
daria do Palácio da Justiça, os Tribunali, para seguir, com a ansiosa curiosi
dade do noviço,os debates e vereditos das veneráveis instâncias judiciárias.^®
Asjurisdições reais, de competência nacional,enchem com seu sussurro todo o
quadrilátero da fortaleza massiva, de três andares — o Castelo Capuano, chamado
também "Viçaria" — onde termina a rua que dele recebe seu nome,a rua dos Tribu
nais.Afonso vaiconsumir aí dezanos de sua atividade profissional—suajuventude!—
cruzando espada diante de três altas cortes de justiça.
Aítêm assento com efeito as duasinstâncias soberanas ordinárias: a mais antiga
(1162), que deu seu nome ao palácio, a Grande Corte da Viçaria, é inna corte de
apelação,civil e criminal, para todo o reino; a Câmara Real da Sommariajulga toda
102 PARTE I Cap. 10
causa referente ao Patrimônio real e às Finanças.O regente da Viçaria é, por direito,
governador e chefe de Polícia da capital e de seus vinte e sete casal!(vilarejos)."Uma
cadeira para meu filho!" acha você que o senhor José está pensando? — Ohl Não. Há
coisa melhor! A Viçaria e a Sommaria são presididas e formadas por conselheiros do
Sacro Conselho Real de Santa Clara,tribunal dos tribimais e conselho dos ministros.
O Conselho Real havia sido criado em 1444 a fim dejulgar causas dirigidas ao rei
da Espanha pessoalmente. Fimcionava primitivamente no mosteiro de Santa Clara.
Conservou seu nome depois de se ter jimtado com a Viçaria e com a Sommaria no
Castelo Capuano, em 1537. Ele é o supremo tribimal de apelação para toda causa
fiscal, civil ou criminal. Os casos mais importantes lhe ficam reservados: causas em
que entram mais de 500 ducados,processos feudais,litígios entre nobres.Seus vinte e
quatro "ministros", distribuídos em quatro sessões por revezamento, "rotação"
(mota, rota), constituem a magistratura soberana vitalícia, cumulada de honra, de
poderes,de privilégios e de dinheiro. Pleitear diante do Conselho Real é o orgulho de
todo advogado: nele ter assento é o cume sonhado de sua ascensão. Algims a ele se
elevam pela competência, outros são puxados pelos pistolões e outros finalmente
trepam escalando uma pilha de dinheiro.^''
Os Cavalieri aí se sucedem de pai para filho: ontem o avô Frederico, hoje o tio
José,secretário de Estado da Guerra,onde aliás é cordialmente detestado por causa
de seu orgulho,amanhã Francisco Maria,o primo e camarada de promoção de Afonso
que,por falta de ciência e de talento,colocará na balança seu peso de ducados.Isso o
tomará mais altivo ainda. A ponto de se tomar odioso até a seus amigos.^s Não eram
dos mais amáveis esses Cavalieri — nem parece que Afonso é seu parente — exceto
este milagre de doçura amante que é dona Ana, a rosa desses espinhos.
Por enquanto,nosso Afonso, seu primo Francisco, seu amigo Conrado Capace,
seu vizinho Baltazar Cito,e alguns outrosse encontram nalinha de partida,na direção
de um trajeto tradicional.
A jovem nobreza,já observava em 1632 um viqjante parisiense, se dedica
às leis para poder ter acesso às magistraturas e ofícios de roupa comprida
conferidos pelo rei; quase todosse tomam magistradose procuradores que vêm
a ser a mesma coisa naquele país:e é divertido vê-los de manhã,na Viçaria,com
a pequena toga de doutor, o manto suspenso pela espada e até mesmo furado
para deixar à vista o cabo do punhal, que é a marca essencial do cavaleiro de
sede. Na Viçaria, ê proibido usar espada e punhal, mas eles ficam pelo menos
com a bainha vazia do punhal.^®
"A fim de iniciar Afonso na prática do oficio, diz Tannoia, seu pai o coloca em
estágio com uma celebridade do tempo,o advogado Luís Perrone, depois, tendo esse
passado para uma vida melhor, com um jurisconsulto de renome, o senhor André
Jovene." Uma competência universal, esse Jovene: a confiança de Filipe V o havia
chamado para presidir a Sommaria, a do imperador acaba de colocá-lo à frente da
Vicaria.^^ Não há dúvidas de que para garantir a carreira de seu primogênito,o senhor
José de Ligôrio sô se contenta com o que há de melhor.
O palácio de justiça era — e ainda é — um formigueiro barulhento e disparatado
de magistrados, cocheiros, lacaios em librés de todas as cores, aproveitadores de varia-
PARTE I Cap. 10 103
das qualidades,e do infalível exército dos desocupados.Dentro dessas paredesespes
sas funcionava a maior empresa do Reino.Ela dava de comer a cinqüenta mil napoli
tanos: uns quinze mil juizes, advogados, procuradores, notários, tabeliães, copistas,
porteiros, esbirros e cavalos se defirontavam e se agitavam; uma nuvem de testemu
nhas...e de falsas testemimhas—era uma profissão,umaindústria—comerciavam ou
negociavam; por toda parte gatimos espreitavam os bolsos e as bolsas; inúmeros
mascates gritavam fazendo propaganda de suas bugigangas pelos corredores e ante-
câmaras;finalmente uma revoada de mendigosem busca de suas moedascotidianas.
Por tal motivo,esse "palácio da tramóia" excita a pena dos turistas do tempo. A
ponto de seus diários de viagem caírem fiieqüentemente—desde então—num"jorna
lismo sensacionalista": notarem somente o que choca,exagerarem a pimenta do que já é
picante. Mas então, que raio de coisa ia fazer um honesto cavaleiro nessa galera?...
Felizmente,sem deixar de lado a realidade pitoresca ou escandalosa,a história mata a
sede também em outras fontes. Os arquivos nos garantem:em Nápoles, nesse século
XVIII que começa, as três cortes de justiça e o Colégio dos advogados de onde são
recrutados, não deixam de ter, na verdade, magistrados ignorantes, preguiçosos,
venais,vendidos,e generosamente providos dos outros vícios da miséria humana.Mas
também,como no corpo docente das faculdades, há homens de ciência, de trabalho,
de sabedoria e de integridade.Entre os mais eminentes e que serão,a títulos diversos,
próximos de Afonso, encontramos o pretigioso Valleta e o Regente Jovene; mas eis
também o escritor Constantino Grimaldi e seu amigo, o presidente Domingos Cara-
vita;osirmãos Afonso e Francisco Crivelique terão pelojovem uma patemal amizade;
Tiago Salemo que se casou com sua prima Antónia de Ligório, a delicada pintora de
Marianella; Domingos Bruno que o jovem enfirentará e abaterã no pretório; Antônio
Maggiocchi (ou Maioca) que, pelo contrário, lhe infligirá sua primeira... e última
derrota. Todos esses homens chegarão ao Conselho Real; por esse título, serão obje
to de secretos inquéritos que chegaram até nós: atestam imanimemente a compe
tência e a integridade. Aliás, nesse início do século XVm, as sentenças do Sacro
Conselho Real irradiam longe,fora da Itália, e são invocadas nos tribimais de toda a
Europa. Têm peso nas Duas Sicílias, sendo tidas como jurisprudência.^® Ainda não
chegou o tempo em que o economista Antônio Genovesi (1713-1769) condenará a
administraçãojudiciária de Nápoles como incompatível com os princípios cristãos.^®
Não é pois absurdo ou ingênuo,em 1713, entrar nesse torneio e pretender lutar
pelajustiça. Um humorista se perguntou se Afonso foi santo por ter sido advogado ou
por ter fugido dos tribunais? Por que não por ambos os motivos? Seja como for,ele se
apresenta para o combate com os olhos abertos para as tentações da profitssão e com o
olhar firme em seus deveres. Disso dão testemunho estes doze mandamentos do advo
gado que escreve para si, certamente ggudado pelo padre Pagano.
Conserva-os a seu alcance e medita fireqüentemente:
1. Nunca servir uma causa injusta: nisso se perde tanto a própria consciência
quanto a reputação.
2. Para uma causa, mesmo justa, abster-se de qualquer manobra ilegal ou
injusta.
104 PARTE I Cap. 10
3. Não sobrecarregar seu cliente de despesas supérfluas; senão o advogado
estaria obrigado a restituílas.
4. Tratar dos interesses de seus clientes com todo o cuidado que se tem com
seus próprios negócios.
5.Estudar os documentos, a fim de tirar deles argumentos sólidos.
6. Osatrasose anegligência do advogado flreqüentemente prejudicam o cliente;
há, então, o dever em justiça de reparar.
7.0 advogado deve implorar a íguda de Deus:Deus não é o primeiro protetor da
justiça?
8. Está errado aquele que se encarrega de mais negócios do que seus talentos,
suas forças ou seu tempo podem defender eficazmente.
9. Justiça e probidade são as duas companheiras inseparáveis do advogado;
cuidar disso como das pupilas de seus olhos.
10. Um advogado que perde uma causa por negligência sua,incorre na obriga
ção de reparar todos os prejuízos sofiridos por seu cliente.
11. Na defesa de uma causa,nada dizer que não seja verdadeiro, nada esconder
tampouco,respeitar o adversário, apoiar-se unicamente na razão.
12. Afinal de contas, as virtudes que constituem o advogado são a ciência, a
aplicação (diligenza), a verdade, a fidelidade e a justiça.^o
De forma alguma está ultrapassado esse pequeno tratado de moral profissional.
E nada fácil. Por conseguinte, diz Tannoia, adeus todo divertimento, sim, mesmo o
baralho com os vizinhos Cito!É substituído pelasreuniões que o presidente Domingos
Caravita faz em sua casa.
Como já dissemos, o cadinho onde se refinava a elite intelectual e política de
Nápoles não era uma universidade abafada pelo poder, mas umas vinte "academias"
privadas onde refletiam, pesquisavam,dialogavam livremente os grandes espíritos e
os homens — e mulheres — de caráter, padres e leigos. Direito, política, literatura,
filosofia, ciência, história. Escritura, teologia, toda matéria dava chama nesses focos
de onde se Uuminava o futuro. Aquele que dispunha de tempo,participava de vários
desses círculos "esclarecidos".^^
Todos os dias portanto nosso novo advogado avidamente se dirige para o seu,no
largo Dona Regina, atrás da catedral. Por que na casa dos Caravitas? O patriarca
dessafamíUa ducal,o senhor Nicolau,acaba de ser seu prestigioso professor de direito
feudal; a academia por ele fundada é então a mais cotada da cidade; finalmente seu
filho,o senhor Domingos,é o mgiR alto magistrado do Reino depois do vice-rei. Aí foi
formado Luís Perrone de quem Afonso é estagiário.Aíse encontram Caetano Argento,
Constantino Grimaldi,Alexandre Riccardi,J B. Vico,Pedro Giannone. Grandes nomes.
Grandes cristãos dilacerados: tão cheios de fé quanto anticiurialistas militantes.
PARTE I Cap. 10 105
Foi dramático o recente combate desses homens contra as usurpações do clero,
pela autonomia do Estado.Pela verdadeira liberdade da Igreja fiente a suas riquezase
a seu poder. Escreveram,sem parar, entre 1707 e 1710; contra a suserania política do
papa sobre Nápoles, contra a atribuição no estrangeiro das rendas eclesiásticas do
Reino, contra os bens inalienáveis da Igreja imobilizando um terço da propriedade
nacional,contra um escandaloso direito de asilo que toma oslugares santos uma toca
paradisíaca para vagabundos e prostitutas jimtos. Um depois do outro, N.Caravita,
Riccardi, Argento, Grimaldi se fizeram inscrever no Index por Roma e condenar ao
inferno por dois canonistas napolitanos à espera da mitra. (Eles a receberão!)
Ouvindo-os Giannone, mais jovem (1676-1748), aplica a pena em sua História civil do
reino de Nápoles(1723)e em seu Triregno(A"Tiara"),que lhe valerá a excomunhão,o
exílio e a morte em prisão piemontesa.^^
Durante dez anos Afonso vai respirar, entre as comunicações apaixonantes e os
debates jurídicos, nos salões Caravita, esse clima capcioso às vezes cheirando à
põlvora. Ouvirá por muito tempo esta contestação, por católicos fiéis, de uma Igreja
de dominação e de privilégios.E ei-lo por toda a vida cmado da tentação curialista de
defendê-la. Mas onde está o meio termo? Foiem 1713,precisamente,a6de agosto,que
o imperador Carlos VI ultrapassando os limites da"legítima defesa" usurpou por sua
vez o direito da Igreja decretando que todos os rescritos, breves, éditos e bulas de
Roma só teriam valor no Reino depois de haver obtido o"cumpra-se"real.Será,pobre
Afonso,um dos dramas de sua vida:essa"guerra de cem anos"nasfronteiras daIgreja
e do Estado.
Ainda não é essa a sua preocupação.Com certeza ele só entrará completamente
na academia desses "anciãos" após seus dois anos de estágio. Presentemente, ele se
acha mais sobrecarregado pelas discussões de pretório organizadas todas as tardes
pelo filho Caravita, o senhor Domingos. Com pouco mais de quarenta anos, "esse
homem sábio e temente a Deus" —(Tannoia dixit e não são para um legista epítetos
de praxe)—já é presidente do Sacro Conselho Real. Um círculo constitui-se em tomo
dele formado por uma juventude ávida de saber: a elite moral e intelectual dos
advogados que estão estreando. Sobre os art^s mais intrincados da legislação, ele
organiza processos imaginários nos quais os pleiteantes se enfrentam enquanto ele faz
função dejuiz, marcando os pontos.É para ele uma grande alegria,e osjovenslucram
mais do que com o jogo de baralho.^^
Lucra com efeito o senhor Afonso.Sua fama não tarda a percorrer os corredores
dos Tribunais e os salões da capital: como é competente este advogado novato!
Trabalhador,hábile—maravilha:—honesto como não é permitido ser quando se tem
a oportunidade de roubar.E além disso,por parte de mãe,é um Cavalieri;e,através de
gerações,os Cavalierisão os reis no palácio;e bem vistos na corte em Viena desde 1707.
O tio José é ministro. Seus melhores amigos — tem poucos, mas bem colocados —
Muzio di Maio e Vicente di Miro,são como ele do Sacro Conselho Real Consiglio;esse
último estima Afonso como um filho. Juntam seus esforços a fim de lhe proporcionar
uma clientela seleta. Tanto assim, afirma Tannoia,que ojovem advogado ainda não
tem vinte anos e as causas já afiuem. E em breve, causas de maior relevância.
Que causas? Nenhum documento revela esse segredo. Alguém concluiu que esse
grandejurista se teria limitado ao papel de advogado-consultor e talvez mmca tivesse
 106 PARTE I Cap. 10
pleiteado, nem mesmo por um cão atropelado por uma carruagem! De acordo, com a
condição de dizer o mesmo de todos os outros advogados nap>olitanos de seu temp>o,
pois os arquivos de Estado guardam a respeito de todos o mesmo silêncio. Na seção
Giustizia, felizmente conservada, cada dossiê comporta a exposição da causa, as
decisões tomadas e as razões de fato e de direito que a justificaram, e tudo isso
assinado pelo tabelião; mas o nome dos advogados nimca ê mencionado. A história ê
de quem escreve e não dos oradores. Verba volant, scripta manent.
Não, Tannoia não inventou nada. Ele que se cansou durante cinqüenta anos
percorrendo as testemunhas para interrogá-las, refere-se "aos testemimhos ouvidos,
'diz ele, dos lábios de nossos antigos padres". Os redentoristas Jannuário Samelli
(1702-1744)e César Sportelli(1701-1750), antes de seguir Afonso fundador, primeira
mente foram seus colegas no tribvmal de Nápoles; Gaspar Cajone(1722-1809)e Celes
tino de Robertis(1719-1807)lá serão advogados depois dele e recolherão os comentá
rios vivos, antes de segui-lo também eles em suas missões. Tannoia (1727-1808), que
conheceu SporteUi, era da geração desses últimos; eles inspiraram e puderam ler suas
"memórias".E não podemos nos esquecer de João Mazzini(1704-1792), esse amigo de
juventude de Afonso antes de ser, ainda ele, seu companheiro dos primeiros anos.
Mazzini não morava no Castelo Capuano:era seminarista napolitano; mas"ê Nápoles
inteira,precisamente,garante Tannoia,que estava estupefatacom a importância das
paradas" entregues a esse principiante fora de série.
Fora de série,com efeito, pois segxmdo esses padres antigos, foi um advo
gado excepcional em todos os sentidos: na amplidão do saber, na clareza de
espírito,na precisão de suas exposições,na soberana honestidade,no horror da
trapaça,na recusa de todo negõcio discutível no mínimo ponto;ele era repleto
de humanidade com seus clientes, e de desinteresse; era tal a sua infiuéncia
sobre os corações que suas defesas enfeitiçavam e deixavam seus adversários
sem palavra. Por isso, todos queriam colocar seus interesses em semelhantes
mãos.
Não temos fundamento para contestar o que escreveu,em 1834, um dos primei
ros biõgrafos do santo, em boas condições para conhecé-lo: "Podemos verificar no
Catálogo das sentenças que, de 1715 a 1723, tempo durante o qual(terminados seus
estágios), Afonso exerceu a profissão de advogado, mmca perdeu um processo."2''
Nõs é que perdemos esse Catálogo das sentenças. Mas a história nos transmitiu
este fato25, significativo quanto à mestria do pleiteante e... seu progressivo aborreci
mento pela advocacia.No decorrer de 1720, Afonso ganhará,contra Domingos Bruno,
num importante negócio de família."Um advogado célebre" este Domingos Bruno;
ele terá sua cadeira no Sacro Conselho Real; os relatórios secretos assim o qualifica
rão: "Sábio, honesto e pontual. Foi a honra do Colégio dos Advogados... Apreciado
pela gentileza de sxias maneiras."^® Pois bem!O grande Bruno,esgotando trabalhos e
esforços,morderá o pó sob alguém maisforte do que ele. Alguns anos depois,extinto
todo rancor. Domingos Bnmo encontra seu vencedor, agora o padre dos lazzaroni.
Exclama rindo:
—Ah!Padre Afonso,Deus lhe perdoe! Se você tivesse dado esse passo três anos
antes,não me teriafeito perder acabeça,nem arrebatado esse troféu aos meuslouros!
Um troféu de belos ducados tilintantes, precisa Rispoli.
PARTE I Cap. 10 107
—Eudefendido melhor modo possível meusclientes,responderá o ex-advogado,
sem lhe terfaltado respeito,espero.Mas,posso lhe afirmar,já tinha a impressão de que
havia mil anos aspirava fugir da barulhada e dos perigos do pretório!
— Teve sorte, padre Afonso! Escolheu bem!
E o velho abraçou o jovem padre.
A atmosfera de incenso e de sucesso respirada nos Tribimais não embriagava
portanto Ligório.Seu pai o quis advogado com a perspectiva de opulentos honorários
e de altas magistraturas. Ele obedecera — e que poderia fazer aos doze anos contra
esse danado de homem? Mas seu coração não se aclimatava com a febre, amiúde
maligna, do palácio. O que queria dele o Senhor? Padre? Nápoles estava cheia deles,
dos melhores e dos piores... Um a mais? Para quê?
Enquanto esperava — "Esperava o quê. Senhor?" — ali estava a vida, devora-
dora. No Castelo Capuano todos disputam o advogado; mas a câmara mimicipal — a
Città—não se esquece de que ele é primeiramente cavaleiro da sede de Portanova:ela
se apressa em recorrer a ele antes que os processos o monopolizem.
Ele completou seus vinte e um anos no dia 27de setembro de 1717.Em dezembro,
por ocasião da renovação anual dos mandatos para 1718,nossojmista,magistrado de
pé nosjulgamentos do Reino,será magistrado sentado no Tribimal de S.Lourenço.E
por duplo título:
— A praça do Popolo o reclama como "juiz do arrendamento do pão". A de
Portanova, sendo sua vez de ocupar tal função, confinna essa escolha por votação de 4
de dezembro. Afonso terá de decidir, por toda a cidade, o litigioso civil e criminal
relativo ao abastecimento de pão e das padarias públicas.
— Paralelamente,no dia 18 de dezembro,é a praça de Montagna que lhe concede
seus sufrágios a fim de dar à cidade o juiz do Reggio Portulano Maggiore. Não se
encontra homem capaz em seu seio, ou ela pensa que o filho de um comandante de
galera é mais qualificado? O fato é que ela escolhe o cavaleiro Ligório. O Portulano
Maggiore tinha com feito a gestão e a vigilância do solo público"marítimo",por assim
dizer: praças e ruas ao longo do mar, portos, praias e águas à beira-mar. O juiz
deparou-se pois com casos de contestação, de usurpação, de deterioração culpável
nesse vasto domínio mimicipal, e muito especialmente do contrabando do sal, do
fumo, do chocolate e outras mercadorias que aí transitavam abundantemente. Nos
anos 1930 descobriram,nos Arquivos mimicipais de Nápoles,o dossiê das sentenças de
nosso juiz. Infelizmente acabou em fumaça no incêndio ocorrido com esses arquivos,
em 1946.0 fogo chegou mais depressa do que a publicação ammciada.^^ Os arquivis-
tas não descobriram o fogo, mas o fogo acaba freqüentemente descobrindo os arqui
vos...
Sobre as sentenças feitas pelo magistrado, nada sabemos portanto de preciso.
Nada tampouco sobre o que ele fez dos "proventos, custas e emolumentos" que lhe
valeram suasfunções municipaise seus processos ganhos.Qualfoi a parte dos pobres?
A do resgate dos cativos? Ou a totalidade ia para os negócios de seu pai,que se lançou
nos investimentos precisamente a partir de 17152®, ano em que Afonso, terminados
todos os estágios, se toma advogado de pleno exercício... e de pleno rendimento?
108 PARTE I Cap. 10
É aépocaem que o senhor José alcança o auge desua carreirae de suas ambições.
Um decreto imperial de 27 dejunho de 1716 o transfere do comando da Padrona para o
da Capitana,com o grau de tenente-coronele o soldo maisrecheado de toda a Marinha
ativa;55 ducados por mês.Volta pois para a Capitana,a nau de suajuventude e de sua
vida. Outras madeiras, três vezes renovadas, mas a mesma trirreme-almtrante. Ei-la
doravante sob seu comando,a rainha das galeras.E freqüentemente,na realidade,da
pequena esquadra inteira. Pois o Capitão Geral das galeras, o marquês de Fuenca-
lada,nada tem de um lobo do mar:é um homem de administração,de corte e... de água
doce.2®
Uma tristeza sobre essa glória:o velho amigo de trinta anos,o paidos galerianos,
não subirá mais abordo durante asescalas no porto:são Francisco de Jerônimo acaba
de morrer, no dia 11 de maio precedente, em Gesü Nuovo.
— "Esse santo jesuíta, deve ter pensado o senhor José com um sorriso enlutado,
predisse que meu filho mais velho seria bispo e nonagenário!... Ele tinha o dom dos
milagres, o padre Francisco, mas certamente não o da profecia! Nonagenário, meu
Afonso? Queira Deus! E por que não centenário? Mas bispo? O país já tem cento e
cinqüenta,enquanto só há um presidente do Sacro Conselho Real... Você está come
çando bem a caminhada, meu grande, para suceder ao presidente Domingos Cara-
vita!"
Meu coronel. Deus se diverte escondendo seujogo.É Domingos Caravita que se
tomará centenário (1670-1770), e depois dele, a suprema magistratura será para o vi
zinho e anügo de Afonso,o companheiro das tardes de baralho de outrora, o senhor
Baltasar Cito. Centenário ele também e ainda presidente, interrogaram-no sobre
aquele que foi seu companheiro de jogo, de estudos e de pretório:
— O senhor que viveu quinze anos de suajuventude com o monsenhor Ligório,
lembra-se:no tempo em que ele era advogado,deve-lhe ter acontecido deixar escapar
alguma falha, alguma leviandade?...
O velho magistrado se recolhe, com a cabeça profundamente inclinada. Em
seguida, com um respeito sagrado, protesta:
— Não. Não.Ele era perfeito. Nem um só gesto, uma só atitude, uma só palavra
que não fosse irrepreensível. Eu blasfemaria, sim, blasfemaria contra iim santo se
dissesse o contrário.^®
Que segredo habitava pois no advogado Afonso de Ligório?
PARTE I Cap. 10 109
NOTA
1. Tannoia, I, p. 9.
2. Tannoia, I, p. 10.
3. Telleria,I, p. 43; Adelaide Cirillo Mastrocinque,"Moda e costume"in Storia di Napoli, VI, pp.774-785.
4. Nâo adianta procurar, nem no Archivio di Stato, nem no Archivio municipale de Nápoles, esses
registros que foram vasculhados pelo P. Oreste Gregorio (cf. S. Alfonso,6(1935). pp. 202-207. Contributi, pp.
41-48): eles desapareceram em seus incêndios, respectivamente, de 1943 e 1946.
5. Aurélio Romano. La città e il commune di Napoli, Notizie storiche 1131-1904, Nápoles. 1909, pp. 26,
36-42,83. Michelangelo Schipa.II regno di Napoli ai tempo de Cario di Borbone,1.1.. pp.29-33; Contributi,pp.
42-45; S. Alfonso,6 (1935), pp. 202-207; Telleria, I, pp. 45-48.
6. Telleria. I. p. 36.
7. S. Alfonso,8(1937), pp.210-216; Contributi, pp.87-91; Telleria. I. pp.36-40; e sobretudo SH1(1953). pp.
61-66.
8. Cf. Croce, op. cit., pp. 145-146.
9. Summarium, p. 72, § 87.
10. Foi reproduzido no início do Código de Direito Canônico de 1917.
11. SH3(1955), pp. 199-201;cf. Dictionnaire de théologie catholique.Paris,art."Immaculée Conception".
coU. 1126SS.
12. Le Glorie di Maria: Opere ascetiche VII, pp. 32, 42.
13. Tannoia, I, p. 11.
14. Galanti, op. cit., 1.1, pp. 240ss.; Schipa, op. cit., 1.1, pp. 54ss.; Telleria. I, pp. 54-55.
15. ASN (Archivio di Stato Napoli). Sezione Giustizia. Pandetta Nuova 4a/107-18. fls. 22ss.. 166, 200-201.
172.
16. J.-J. Bouchard, citado por J. Angot des Rotours. St. Alphonse de Liguori, p. 22.
17. Tannoia, I, p. 11; Telleria, I, p. 53.
18. ASN, ibid., fls. 22-48; TeUeria, I, p. 53; Galanti, ibid., pp. 245-246.
19. Citado por De Maio, op. cit., p. 336.
20. Rispoli. Vita dei B. Alfonso M. de Liguori, p. 16.
21. De Maio, op. cit., 69-73.
22. De Giovanni, loco cit., pp. 403ss., 465ss.; Contributi, pp. 139-142; Croce. Bibliografia Vichiana,
Nápoles, 1948, t. H. p. 903; De Maio, op. cit., pp. 88-95, 131-132.
23. Tannoia, I, p. 11; Telleria, I, p. 53.
24. Rispoli, op. cit., p. 19.
25. Tannoia, I, p. 30; Rispoli, op. cit., pp. 19-20; S. Alfonso, 37 (1966), pp. 5-7.
26. ASN, ibid., n. 14.
27. S.Alfonso,6 (1935), pp. 202-207; Contributi, pp. 41-42; TeUeria, I, pp. 45-47.
28. Ver iBm do cap. 2.
29. SH 7(1959), pp. 231-233, 245-246; S. Alfonso, 30(1959), pp. 54-56.
30. Tannoia, I, pp. 9-10; Summarium, p. 71.
 11. Ó MUNDO,OFERECE-ME TTOO,
TUA OFERTA SERÁ VA
(1710-1723)

Ela era filha do senhor Francisco de Ligório e de dona Virgínia Raitano,

príncipes de Presiccio...Seu nome:Teresa. Generosamente dotada de qualida
des naturais que a tomavam agradável ao mundo, era, por acréscimo, rica
herdeira.'

É o próprio Afonso quem,em 1761,evocará nesses termos discretos mas sugesti

vossua prima afastada Teresinha.Afastada no parentesco,mas próxima pelaidade—
nascera em 1704 — e sobretudo pela amizade que ligava as duas famílias. Eram
vizinhos no bairro das Virgens;continuaram a se fi:eqüentar depois da instalação dos
Ligório-Cavalieri no bairro do Purgatório.

E que fazem os pais,senão fazer grandes e belos projetos para seus filhos? Muito
cedo portanto—antes de 1710—José e Ana de um lado,Francisco e Virgínia do outro,
haviam sonhado,depois discretamente falado e finalmente decidido — mas psiu! que
as crianças não saibam de nada! — um casamento Afonso-Teresinha.Os dois inocen
tes —no máximo com treze e cinco anos—estavam,ele em seus estudos de direito,ela
em seus brinquedos infantis no colégio interno das carmelitas do SS. Sacramento.
Quando ficou ela sabendo? E o menino, não é sua própria experiência que estará
evocando quando,mais tarde,repreenderá seu irmão Hércules,tratando,ele também,
do noivado prematuro de seu primogênito José:"Zezinho ainda é tão pequeno!" — o
pobrezinho tinha exatamente treze anos—"a menina também é pequena demais para
que já se pense em casá-los. É horrível planejar desde já uma união que só poderá
se efetuar pelo menos dentro de uns seis ou sete anos... Por favor! Não digam nada
sobre esse casamento ao Zé!"^ De fato,o Zé,no tempo devido,se casará com outra.E
"eles não terão muitos filhos".

Em todo caso,o projeto de casamento Afonso-Teresinha, tramado desde 1709 e

durante muito tempo acariciado por seus pais, impor-se-á tanto à tradição familiar
e redentorista que cristalizará uma versão legendária à qual Tannoia dará crédito...e
longa vida. Ei-la em poucas palavras, a fim de destruí-la melhor.

A todos seus dons,títulos e ducados,a princezinha acrescenta um zero à direita

que multiplica o total por dez: aos cinco anos, ela é filha única! E o senhor José se
apressa; e as delicadezas prosseguem maravilhosamente entre as duas famílias; a
112 PARTE I Cap. 11
temperatura subindo calorosamente, de ambas as partes, entre os pais. Pois esse
juristaem botão é também um partido encantador...até o dia em que,desgraça!dona
Virgínia está manifestamente grávida — e as relações passam para um clima de
outono! — em seguida,maldição!ela dá à luz um filho, um maldito pequeno de nome
César. Adeus terras, dinheiro, casamento! Adeus um José arruinado que agora só
fi^qüenta...sua galera.Um frio de inverno gelou a amizade e cortou as pontes entre os
dois palácios...
Neutralidade indiferente de Afonso. Surpresa desapontada de sua tema prome
tida. Irritação dos príncipes de Presiccio, desprezados em seu orgulho senhorial e
feridos em suas esperanças para com Teresinha...
Durante alguns meses somente. Pois o herdeiro morre oportunamente, resti-
tuindo a sua irmá todos os seus "encantos". O capitão reaparece; mostra-se pressu-
roso:
Em que pé está esse casamento?
A primavera volta a florescer porque os Presiccio, sofrendo dentro deles mas
felizes por sua abrem-se a esse novo sol. Mas é a florzinha que se fecha, altiva:
— Então era a minha herança que queriam e não a herdeira! diz. Que o mundo
fique para lá! Meu esposo será Jesus Cristo!
E ela volta paraoseu carmelo ondefalece aos vinte anos,"em odor de santidade",
no dia 30 de outubro de 1724.
Um libreto de ópera-cômica em três atos por N.Piccinni! Mas a verdadeira histó
ria vem esclarecer muito melhoro papeldo próprio Afonso nesse episódio.E mostra-se
menos cruel para o senhor José, assim como muitíssimo mais graciosa para Tere
sinha... e para Jesus Cristo.
Na realidade^, Virgínia Raitano tinha um filho de um primeiro casamento: Vi
cente BartUotti,era ele o príncipe de Presiccio,duque de Puzzomauro e único herdeiro
dos feudos e da fortuna de seu pai defünto e de sua mãe. No ano seguinte ao de seu
casamento com o senhor Francisco de Ligório,nascia nossa Teresa(3 de abril de 1704),
depois uma Antônia (1707),e finalmente o famoso César(1711). Quem morre então é
Vicente BartUotti,em 1709 precisamente,deixando títulos, domínios e dinheiro para
Teresinha de Ligório.
Que importa o nascimento de Antônia e de César?! A primogenitura napolitana
daquele tempo — o maggiorasco semplice — não é antifeminista: os direitos de
Vicente vêm para Teresa. E continuarão sendo seus, mesmo se lhe nascesse lun
regimento de irmãos. Ela será, pois, aos dez anos, princesa e duquesa dourada.
O senhor José, cqjo olhar marqjo vê longe no horizonte, singra com todos os
remos na direção do"cabo da Boa Esperança"e,com a autoridade paterna da época,
"conclui" o futuro casamento. É o termo empregado por quatro testemunhas no
processo apostólico.
PARTE I Cap. 11 113
Mas os mesmos relatarão "a constante recusa" de Afonso.E a testemunha mais
bem situada entre elas,Alessio PoUio(1742-1813),que durante vinte e cinco anosserão
empregado doméstico do bispo,afirmará ter ouvido "dos próprios lábios do Servo de
Deus" que foi ele quem levou sua noivazinha a "escolher" se dedicar também a um
Amor Maior.'» De feto, como Teresa de Lisieux, Teresinha de Ligório entra para o
carmelo aos quinze anos,depois de haver remmciado, por ato de 21 de abrü de 1719,a
seus feudos em favor de seu irmão César,"a fim de que ele possa realizar um casa
mento digno da nobreza de sua família".®
O ano de 1719é o ano em que,jovem advogado de vinte e três anos,em pleno êxito
profissional, Afonso arranca de seu coração e de seus pincéis o impressionante quadro
de seu Cristo na cruz e o rosto de pura beleza da "Mulher de sua vida", a Madona.
Quarenta e dois anos mais tarde,o padre Ligório escreverá,em treze pequenoscapítu
los, A vida e a morte da serva de Deus, soror Maria Teresa de Ligório, monja do
venerável mosteiro do Santíssimo Sacramento em Nápoles, da Ordem de S. Maria
Madalena de Pazzi,e falecida em 1724. Com vinte anos e sete meses. De tuberculose
como Teresa de Lisieux. Como ela na paz e no amor. Após cinco anos ardentes de
oração,de pobreza e de humildade,de obediênciae de provações,de amor ao próximo
e de tmião com Deus. "Tenho um grande desejo de morrer", dirá ela em seu entu
siasmo, para se juntar plenamente àquele que Afonso lhe ensinara a amar.
O senhor José não se deu por vencido. Aliás Afonso era um brilhante partido
disputado pelas mais importantes famihas para suas filhas. As testemunhas do pro
cesso apostólico fazem menção de outros"casamentos vantajosos" que o pai teimou
em contratar para seu filho,continuando este na mesma obstinação em desprezá-los.
Tannoia arrisca um nome — sem prenome: a filha do senhor Domingos dei Balzo,
duque de Presenzano; mas a pista se revela falsa: esse Domingos dei Bazo não tinha
filhos de um fugaz primeiro casamento quando desposou,em 1720, aos trinta anos,a
própria irmã de Afonso, Maria Teresa.®
Nada sabemos portanto sobre essas outras pretendentes, a não ser que ele se
deixava arrastar ao convívio com elas,como a um suplício, para poupar a seu pai o
desgosto de uma recusa categórica. Às vezes, no entanto, dava como pretexto uma
crise de asma ou desse "catarro" que o tomará nonagenário:"O senhor está vendo,
papai, arriscava ele, que não fui feito para o casamento."
O cravo,que ele tocava arrebatadoramente, permitia-lhe muitas vezes esquecer
os espinhos desses serões ambíguos.E às vezes eliminava definitivamente a ambigüi
dade.Ele contará rindo a cena da cantora que veio uma vez se encostar bem perto do
pianista, rosto contra rosto: o virtuoso inspirado vira a cabeça para o outro lado. A
senhorita se precipita para a esquerda: Afonso olha para a direita. A diva volta para a
direita: e ele para a esquerda.De tal forma que,despeitada de tanto correr de um lado
para o outro, nossa jovem beleza larga a partitura e o músico, exclamando furiosa:
"Paglietta!Que bicho te mordeu?"^ O povo dava aos advogados o apelido de paglietti
por causa do chapéu de palha que costumavam usar no tempo do calor.
Não é para se admirar de que com atitudes tão pouco cooperativas,Afonso tenha
podido declarar mais tarde a seus diretoresespirituais,André Villanie João Batista Di
Costanzo, a respeito desses serões mundanos; "Papai me levava; as pretendentes
114 PARTE I Cap. 11
não deixavam de fazer o que podiam para me encantar; mas, graças a Deus, nunca
cheguei a cometer um pecado venial."®
O pecado, durante toda sua vida, será o único medo de nosso cavaleiro. Essa
delicadeza de consciência deve ao Espírito Santo, à confissão semanal com o padre
Pagano e ã sua santa mãe.Infelizmente,essa lhe comimica também,por hereditarie-
dade psicológica e por educação, uma tendência para o escrúpulo que lhe valerá,
quando jovem padre, anos de rudes tormentos.
Nesse contexto materno de"inocência" —nadade menos"inocente"do que essa
palavra! — situa-se um detalhe, hoje chocante, contado pelo fiel Tannoia:
Impressionava de modo particular o soberano amor de Afonso pela casti-
dade. Ele a considerava como a jóia mais preciosa de sua alma. Em suas
relações, gestos, palavras, ele era a modéstia em pessoa. Os mais longínquos
perigos o encontravam de sobreaviso,tão ciumento era dela.Por isso,temendo
fazer involuntariamente, durante o sono, algum gesto pouco casto, tomava a
precaução, ao se deitar, de encerrar as mãos dentro de um estojo de papelão
grosso. Foi seu irmão Caetano quem me contou isso.®
Com certeza Afonso logo se libertou dessas "luvas". Somos nós que ficamos
embaraçados, por falta de informação.
Desde o século XV,com uma clarividéncia infelizmente exagerada,João Gerson
(1363-1429)havia tentado alarmar confessores, pais e educadores sobre as práticas e a
culpabilidade sexuais das crianças e adolescentes. Seus contemporâneos deixaram
esse precmsor escrever e discorrer no deserto.Massuasidéias voltaram à tona a partir
do século XVn.Elas cristalizaram, nos colégios e nas famílias dos ricos, tuna ansiosa
pedagogia da "modéstia": vigilância onipresente,"aprisionamento" dosjovens fora
do alcance dos empregados e da rua(nosso jovem Afonso foi vítima disso), suspeita
obsessiva,uso generoso do"pecado mortal"e do terror infernal.^® Toda essa assepsia
não deixava de ser fina, mas não era sem perigos: sensibilidade mais viva, fixação ao
mesmo tempo temerosa e fascinada, e portanto, finalmente, maior erotização.
A esse fato cultural muito conhecido, pois ainda dramatizou a primeira metade
de nosso século XX,acrescentemos o surgimento, precisamente nesses anos de 1700,
de um terrorismo médico,hoje inacreditável,sobre as"assustadoras conseqüências"'
feicas e mentais da masturbação entre os jovens: parada de crescimento, epilepsia,
impotência, histeria, deterioração da espinha dorsal, naufrágio da inteligência e da
memória... Um inferno neste mundo, antes do outro! As próprias mãos se tomaram
assim o inimigo mortal da criança e do adolescente,mesmo adormecido.A medicina...
e o comércio inventaram e puseram no mercado uma coleção de "algemas de casti-
dade" para mantê-las presas: caixas, sacos, regalos, ataduras, camisas-de-força, luvas
com pontas de metal (!) e outros "aparelhos de misericórdia". Mais tarde virão as
operações cirúrgicas que a Europa,esquecida de seu próximo passado,reprova hoje
no continente negro."
A partir de quando nossojovem advogado passou a dormir com as mãos livres?...
Homem de inteligência e de equilíbrio,deu placidamente a cada coisa sua verdadeira
importância: por um lado,não falará da masturbaçãojuvenil nem em seus tratados de
PARTE I Cap. 11 115
moral,nem em seus sermões sobre a impureza ou sobre os deveres dos pais; por outro
lado, permanecerá temamente grato para com sua mãe por havê-lo protegido e ar
mado contra o pecado: "Se não cometi nenhum mal em minha juventude, devo-o
inteiramente à solicitude de minha mãe", gostará de repetir.^®
Depois dela, a fonte viva de sua força espiritual continua sendo sempre a comu
nidade dos jerônimos: seu padre Pagano, sua vida litúrgica, suas confrarias. Havia
crescido,durante quase dez anos,na dos Jovens Nobres."No dia 15 de agosto de 1715,
aos dezenove anos, é admitido na dos doutores. Essa confraria constituía um am
biente de fervor intenso e ediQcava toda Nápoles. Fiéis à alma e aos métodos de seu
fundador,são Filipe Néri,os padres do Oratório nada negligenciavam a fim de pene
trar os "irmãos" com o espírito de Jesus Cristo; sua preocupação era fazer deles, ao
mesmo tempo,amigos de coração para Deus e servos eficazes para o Estado.Quando
criança, Afonso havia sido nutrido por esses padres com o leite da piedade; adulto,
queria morder alimentos fortes."
Todas as semanas,e mais vezes "ele vai,como sempre, ao quarto de seu diretor
espiritual, o padre Tomás Pagano. É o seu aixjo tutelar. Expõe-lhe suas dúvidas e
nunca se afasta de seus conselhos.Isso significa que seu fervor de adulto,de advogado,
longe de arrefecer, pelo contrário só está crescendo. Ele freqüenta os sacramentos,
assiste os doentes nos hospitais, gosta de mergulhar na oração, encontra sua alegria
na renúncia a seus sentidos e paixões. Não vai aos tribxmais sem antes ter assistido ã
santa missa"—o padre Buonaccia está lá presente —"e cumpre,na igreja, suas devo
ções habituais. De oito em oito dias ele convoca a Confraria dos Doutores e não se
dispensa de nenhuma de suas obrigações."'® Toma a encontrar, num outro nível, a
seqüência do oratório filipino que lhe é familiar desde a infância: oração e reflexão,
leitmas e conferências, vésperas e laudi, amizade e recreação.
Em sua Selva,o padre Ligório esboçará, para as missões, um sermão a ser feito
aos homens"sobre o bem trazido pela freqüência a uma confraria".Começará por este
texto do livro da Sabedoria(7,11):"Com ela me vieram todos os bens".É sua experiên
cia de vinte anose seu reconhecimento vivo que explodirão neste clamor: pela Palavra
de Deus ouvida, pela assiduidade aos sacramentos, sobretudo à Eucaristia, pela
devoção filial para com Nossa Senhora.Serão os três pontos de sua exortação.Ostrês
agradecimentos do congregado do Oratório.'^
A Confraria dos Doutores é patrocinada pela Virgem da Visitação. Por haver ela
assumido,como obra de caridade, a visita e o cuidado dos doentes do maior hospital
de Nápoles, Santa Maria do Povo, sinistramente chamado "Os Incuráveis".
Mil e trezentos leitos, mil e trezentas misérias: físicas e mentais, homens e
mulheres, a maioria para sempre: os Incuráveis. Todos pobres, porque os ricos eram
tratados a domicílio. O hospital era o abcesso de fixação de uma sociedade organica-
mente desigual e inconscientemente iixjusta. Lá apodrecia a escória da humanidade,
num mau cheiro e num contágio difíceis de se imaginar."As prisões e os hospitais são
cloacas de uma sociedade, escreverá Galanti. Desonram e degradam a espécie hu
mana." Quanto aos Incuráveis,"não passam de um lugar empestado onde todos os
males se acximulam e se multiplicam"'®.
A Confraria dos Doutores da Visitação nele mantém com suas esmolas quarenta
e oito lugarese oferece seus cuidados a trezentose dezdoentes.Nosso futmo moralista

116 PARTE I Cap. 11
fica particularmente impressionado ao ver as vítimas da síflIisJ® "Com caridade e
carinho, narra uma testemunha, Afonso, em tr^es de advogado, servia os doentes,
fázia suas camas,consolava-os, trazia-lhes as refeições."^^
Esse traje de advogado pode surpreender. Era como uma celebração em honra
do Cristo sofiredor que osconfrades da Visitação,na qualidade de doutores,assumiam
assim,durante asemana em revezamento e aos domingos todosjuntos.Essas"rotas"
da misericórdia entravam em função sem espada e de toga, como as da justiça no
Castelo Capuano. Esse mimdo do Regime Antigo não ficava de forma alguma cons
trangido de"ostentar,por um lado,o espetáculo da magnificência,do prazer e do luxo,
por outro,o da mendicidade, da miséria e do sofinmento"(Galanti). Inconsciente do
dever de eliminar esse fossos sociais, assumia-os como uma lei natural, mas
transpunha-os também com a maior naturalidade deste mimdo, num excêntrico
confironto,sem mal-estar nem de um lado nem de outro,das condições mais dispara
tadas.
Vivia-se no contraste;o grande nascimento ou afortima iam de parcom a
miséria... Apesar de suas estridéncias, essa miscelânea não surpreendia; ela
pertencia à diversidade do mimdo que convinha aceitar como um dado
natural. Um homem ou uma mulher de posição não experimentava nenhum
constrangimento em visitar com roupas simtuosas os miseráveis das prisões,
dos hospitais, ou das ruas, seminus sob seus farrapos. A justaposição desses
extremos não incomodava uns tanto quanto não humilhava os outros. Ainda
subsiste hoje algo desse clima moral na Itália meridional.^®
Encerrado em seu ambiente e mergulhado em seus estudos,o que percebera até
então nosso filho de família desse "imenso abismo" que separa desde este mimdo
Lázaro e o Rico? Sua entrada na Congregação da Visitação leva certamente F>ela
primeira vez nosso brilhante samaritano a se aproximar de perto, a encontrar longa
mente, a tocar com suas mãos,todas as semanas, durante anos, o homem no chão,
despojado,esfolado,que geme nafossa,à beira do caminho do rico.Durante oito anos
vai"se inclinar" sobre ele,com amor,com fé nesta palavra de Jesus:"O que você faz
com o mínimo dos meus,é a Mim que o faz." Este pobre,este crucificado, é o Cristo.
"Tive fome...Tive sede... Era Eu!"E,com efeito —como não ter pensado nisso antes?
—o Cristo escolheu ser pessoalmente da classe dos pohrese dos soflredores. O amor de
Deus não "se inclinou" sobre o homem:ele se fez homem; não transpôs provisoria
mente a distância que o separa dos pequenos: suprimiu-a estabelecendo-se do outro
lado. O amor não tolera distância.
Embora não possa revolucionar a sociedade — não parece que ele tenha entre
visto essa perspectiva — Afonso, esse contemplativo do Verbo encarnado e crucifi
cado,logo perceberá que o Evangelho não pode se acomodar com essa justaposição
das desigualdades institucionais e com a "caridade" dos ricos para com os pobres.
Nápoles,espantada, não vai demorar a ver esse elegante fidalgo resvalar definitiva
mente para o mimdo dos pobres. Quando o padre Ligório acabará de publicar, em
1758, o flnito de meio século de seus contatos com o Cristo — sua grande Novena de
Natal — será para desenvolver estes temas: "O Verbo eterno, sendo Deus se fez
homem;sendo grande se fez pequeno; sendo mestre,servo; sendo inocente,culpado;
sendo poderoso, fraco; sendo todo para si, todo para nós; sendo bem-aventurado,
sofiredor; sendo rico, pobre; sendo altíssimo, humUhado."^® Não irá esperar quarenta
anos para tirar as conseqüências.
PARTE I Cap. 11 117
Aos E>obres, dedica-se ainda nosso advogado numa outra confiraria com a qual os
Ligórios se acham muito comprometidos: a de Santa Maria da Misericórdia, chamada
Misericordiella. Sua sede se acha quase diante do Supportico Lopez, no bairro das
Virgens. Aí foi fundada em 1532 por são Caetano de Thiene. Um dia por mês, os
confrades se reúnem,depõem sua espada e revestem uma cogula branca com murça
vermelha. Têm então uma longa manhã de oração, de pregação e de eucaristia que
começa pelo Pequeno Oficio de Nossa Senhora.
Qual a sua obra de misericórdia? Enterram os indigentes do bairro; pelo menos
trinta os acompanham com sua presença e salmodia,até o local de sua sepultura.Mas
a obra principal e original da Misericordiella é outra. Mantém uma hospedaria que,
com fidalga cortesia, oferece durante três dias teto, mesa e leito gratuitos aos padres
peregrinos ou estrangeiros. A ponto de lhes lavar os pés se for preciso. Ao lado da
hospedaria,um abrigo acolhe e trata dos padresindigentes,e são essessenhores que aí
os servem com solicitude e respeito. Finalmente todas as semanas esses fidalgos
vestem alba e murça e partem em grupos de quatro através da cidade mendigando
para seus protegidos. Uma rude provação para sua altivez! Afonso não fará confidén-
cias pessoais; mas contará que Jannuário Samelli,seu confrade nos Tribimais depois
na congregação,"quando pedia esmolas para seus pobres através de Nápoles inteira,
confessava sentir uma repugnância de quase morrer de vergonha."®®
Uma parte do dinheiro assim recolhido ia aliviar também oseclesiásticos detidos
nas prisões do arcebispado e da nunciatura. O último domingo do mês era um pouco
de festa para esses pobres padres: os confrades da Misericordiella vinham visitá-los e
trazer-lhes em suas prisões um pouco de sol para o coração e para o estômago: uma
boa refeição e uma amizade!
Aqueles, que eram selecionados por um severo exame escrito e pelo voto da
assembléia geral, entravam para o noviciado da confraria aos dezoito anos. Durante
mais de dez anos —1714 a 1726 — Afonso de Ligório, de cogula branca e murça cor de
sangue, pedia esmola todas as semanas por Nápoles afora para os padres pobres, para
os padres culpados;durante mais de dezanos ele osserve com suas mãose de coração.
Acúmulo de experiências,de descobertas,de confidências,de amizades que marcam
um homem."Jesus morreu para fazer um padre"®\ escreverá ele. Por enquanto,não
escreve nada; fixa sobre a tela sua contemplação interior do Cristo morto de amor.
No dia 23 de março de 1726, quinze dias antes de seu diaconato, Afonso pedirá
demissão da confraria de Santa Maria da Misericórdia. Porque suas ocupações
teologia,catecismo,missões,breviário, pregação—"não lhe permitiam mais a neces
sária assiduidade".Leva consigo uma flor que só morrerá com ele:o Pequeno Ofício da
Santíssima Virgem,que celebrará filialmente até sua morte. Apesar de um breviário
então muito longo. Esse grande trabalhador será, mais ainda, um grande rezador.®®
Aos dezoito anos, seus estágios terminados, Afonso se havia tomado, para seu
pai,"um homem feito". Ele o havia introduzido,em sua companhia, na Misericordiella.
Levava-o a partir de então, todos os anos, para fazer seu retiro com os jesuítas da
Conocchia ou com os lazaristas do bairro das Virgens, seus antigos vizinhos. Mas o
iniciava também no teatro, nas recepções mundanas,e fazia questão de vê-lo brilhar
nas que não deixava de organizar em sua casa.
118 PARTE I Cap. 11
Tinha umjusto orgulho de seu filho. Visto a cotação dos Ligórios e dos Cavalieri
nacorte imperiale afulgurante estréia dojovem advogado,todos o viam promovido,e
em breve, ao senado do Reino, o Sacro Conselho Real de S. Clara.23
Afonso, porém,visava outros cimos."Entrara no palácio dejustiça com a ambi
ção de lá realizarsuacarreira,criando um renome de grandejurisconsulto",ao mesmo
tempo progredindo na vida interior e na intimidade divina.^^ Cristãos e santos são
necessáriosem toda parte.Mas a advocacia o havia decepcionado muito depressa e o
peso de Deus se fizera sentir mais pesado. Parece que desde seu primeiro retiro
fechado, na Conocchia, em 1714, o absoluto do Amor o tenha magnetizado e preso
irresistivelmente.Quarenta e quatro anos mais tarde,em 29 de agosto de 1758,numa
inversa com seus confrades, ele se lembrará ainda do pregador, o santo jesuíta
Nicolau Mam Boviglione, e da profunda impressão que lhe causou. Em todo caso,
data dessa época sua idéia, sua resolução — talvez mesmo seu voto — de se fazer
teatino,como seus dois primos e vizinhos,osirmãos Domingos e Emanuel de Ligório,
cuja irradiação apostólica já é considerável em S. Paulo Maior e na cidade.^s
Motivo deste grande drama de nove anos—1714-1723 —:recusa de todos os mirífi-
cos projetos de casamento que o senhor José não cessa de tramar, impossibilidade de
revelar seu segredo a esse pai dominador e colérico que não era capaz nem de
compreendê-lo nem de suportá-lo.
Afonso espera a hora de Deus. Enquanto espera, ele agüenta uma repressão
consentidae calculada.Com um apagamento discreto que aumentaseu encanto.Com
um respeito temeroso que nunca se desmente. Salvo uma vez.
Naquela noite, os Ligórios haviam dado* uma brilhante reunião a senhoras e
fidalgos. No momento deles se retirarem,um servo deixara de acorrer imediatamente
para iluminá-los com sua tocha. Esse arranhão da etiqueta feriu o amor-próprio do
comandante.Assim que os convidados saíram,ele caiu em cima do lacaio e o repreen
deu severamente.Fazendo um crime desse acontecimento fortuito,o senhor José fora
de si,ia e vinha vituperando,cada vez mais excitado num crescendo de intermináveis
recriminações. Afonso estava com pena desse pobre empregado. Não agüentando
mais:
— Mas que coisa! acabou por dizer. Pai, quando o senhor começa nunca mais
acaba!
A palavra era acertada demais para ser suportável. Afonso se encontrava ao
alcance da mão paterna: recebeu uma memorável bofetada. A mão de um capitão de
galera não era de forma alguma a mão de uma senhorita, podemos fazer uma idéia. E
um bofetão, na presença de um lacaio, num dos primeiros advogados do Reino,
cavaleiro ainda por cima, que ultraje!... Sem nada dizer, Afonso se retira para seu
qusirto.
Na hora do jantar, seu lugar fica vazio. A mãe vai chamá-lo; entra. Está em
lágrimas aos pés do crucifixo. Transtomado por causa da afronta sofrida? Por causa
da brutalidade do pai? Não, mas por lhe haver faltado com o respeito:
— Errei, mamãe. Peço-lhe, por favor, faça com que me perdoe!
PARTE I Cap. 11 119
Jimtos se apresentam ao irascível oficial. O filho se confunde em desculpas
comovidas. Muito feliz de que tudo tenha saido em seu proveito, o pai o abraça e
abençoa,secretamente envergonhado de si mesmo e transtomado de admiração:este
filho é maior do que ele; é mais fácü para um cavaleiro assaltar galeras turcas do que
dominar a própria cólera ou seu brio... Osservos da casa daí por diante terão de aturar
tempestades mais raras e menos estrondosas.
De qualquer forma, houve entre os escravos um que foi feliz. Havia nascido em
Rodes,cerca de 1697,e se chamava Abdala.Capturado durante uma caça aos piratas,
tinha acabado por ser incluído no grupo de escravos"turcos" a serviço dos Ligórios.É
fácil de imaginar que esses cativos não eram anjos da guarda: acontecia que um ou
outro matasse seu mestre. Por isso o senhor José escolhera um rapaz com evidentes
boas disposições para ser o lacaio pessoal de seu primogênito. Deslumbrado com sua
rica libré, Abdala servia seujovem mestre,seguia-o por toda parte aonde ia: tribimais,
igrejas, hospitais.
Ora,um belo dia,Abdala pede parase tomar cristão.Estupefação geral: nenhum
muçulmano a serviço dos Ligórios havia feito semelhante pedido,"e não foi por falta
de os terem convidado;ao passo que seu mestre sempre evitou prop)or isso a Abdala".
Assediado de pergimtas, o jovem mouro explica:
— Eu quero ser cristão por causa de meu mestre: certamente é verdadeira a
religião que o leva a viver com tanta virtude, piedade e bondade comigo.
Contentíssimo, Afonso leva seu catecúmeno para ser examinado por um orato-
riano seu parente, o padre Marcelo Mastrillo.
—Massim,é sério,conclui Mastrillo.Pode me dar seu servo que eu me encarrega
rei de instruí-lo na fé.
Encantado,o advogado lhe "dá" seu escravo. Tanto quanto está em seu poder
dá-lo, pois o padre Mastrillo paga um resgate às Galeras reais. O detalhe não deve
passar despercebido: como oficial superior,o senhor José não precisava comprar os
cativos mouros de que necessitava; ele os"tomava emprestados" à Marinha militar.
Com os jerónimos, Abdala cai doente. Seu novo mestre o hospitaliza com os
Irmãos de S.João de Deus. Uma noite,ele chama,chama:reclama o batismo imedia
tamente.Mandam buscar Mastrillo e o vigário da paróquia de São Tomás de Cápua.É
batizado com o nome de José Maria.
— Agora você está feliz, diz-lhe então o padre Mastrillo. Já pode descansar.
— Descansar agora? responde o neófito. Vou agora mesmo para o paraíso.
E morre,com efeito, imediatamente, num sorriso. Seu atestado de batismo — e
de entrada no céu — está datado de 20 de junho de 1715. Contava cerca de dezoito
anos.2®
Afonso não contava muito mais então; em 1715, doutor desde 1713, advogava
efetivamente havia um ano. Todo seu belo fervor de principiante teria podido arrefe-
120 PARTE I Cap. 11
cer como fogo de palha, mas nâo,resiste à prova do tempo.O choque das realidades
em nada embotou o gume afiado de suas primeiras resoluções. A missa e a oração
cotidianas,as prolongadas adorações eucarísticas,o amor da Virgem,a flreqüência ao
Oratõrio o mantiveram intato por mais de cinco anos.Poderíamos pensar que Afonso
foi fabricado com outro metal do que nõs. Bem informado e preciso, Tannoia nos
desengana e tranqüiliza.
Até então Afonso fora perfeito, perfeito demais; mas não existe nada que o
homem deva temer do que sua própria inconstância...
Quandojá idoso,ele confessará que por volta dos vinte e cinco anos,havia
esfriado bastante no fervor. A ponto de arriscar perder sua alma e Deus.Conti
nuamente seu paio levava de salão em salão;queria-o sempre no teatro.Afonso
gostava de se divertir em tomo das mesas de jogo e de procurá-las por conta
própria.E era assim que seu coração ia pouco a pouco se dissipando; seu ardor
para o bem se esfriando;o pão da oração perdendo seu sabor,depois de ter feito
suas delícias. Acrescentem-se a isso os aplausos que o encantavam por toda
parte,os pedidos de casamento, as mensagens aduladoras transmitidas pelos
criados, os elogios — e esses não faltavam — das senhoritas e seus pais. Suas
paixões foram tão ag^radavelmente excitadas que seu coração se perturbou e
arrefeceu seu ardor. Assim esfriado espiritualmente, ele facilmente se dispen
sava, pelo mais insignificante motivo, de exercícios de piedade. Ele pró
prio concordava; que se tivesse persistido por muito tempo nessa tibieza,
não teria deixado um dia ou outro de cometer alguma falta séria.^^
Naintrodução a suas Visitas ao SS.Sacramento(1745),o próprio Afonso confes
sará:"Por infelicidade,vivi no mundo até a idade de vinte e seis anos...Podem crer em
mim,tudo nele é loucura.Banquetes,teatros,salões, divertimentos,eis os bens deste
mundo. Mas não passam de espinhos e amarg^nra. Podem crer naquele que o experi
mentou e o lamenta."^®
Esses são os arrependimentos,à distância,de um santo cuja viva chama reduziu
a cinzas tudo de sua vida mundana.Vida de tempo perdido—o crime dos crimes para
Ligório! — sem dúvida. Vida de sortilégios, certamente. Vida de pecado? Julguemos
levando em conta aquele "espinho" que mais o encantou: o teatro.
Nessa época, os bispos italianos e de outros países, os poderes públicos eles
mesmos, mandavam perseguir os "atores ambulantes", por causa das "fagulhas de
impudicidade" divulgadas por esses saltimbancos de feira. Mas o grande teatro nunca
foi objeto das fulminaçóes da Igreja universal. Nos sécvdos XVII e XVIII, foram as
Igrejas reformadas da França, aqueles senhores de Port-Royal, o arcebispo e os vigá
rios de Paris, Bossuet e seu cortejo de seguidores que "excomungaram" os atores.
Afonso de Ligório, advogado,depois moralista,ignora essas disputas galicanas. Elas
atravessam o mar para a Nova França, mas não os Alpes para a Itália.®®
Nessa noite de 29 de agosto de 1758 em que, por milagre, ele deixou escapar
confidências,o padre Ligório lembrou-se de que,em suajuventude,freqüentou muito
o teatro S. Bartolomeu. A fim de encher os olhos com o vóo das baüarinas ou com as
opulências das primas-donas? Não: ele era muito míope e... tirava os óculos! Mais do
que isso! No teatro, com os olhos semicerrados e o oUiar no interior, ele ficava literal
mente à escuta. Porque o teatro napolitano, nesse século XVIII principiante, era a
ópera.
PARTE I Cap. 11 121
A ópera que cortava as últimas amarras da cena com o verossímil cantando até os
diálogos,submetendo as palavras,asfrasese a ação à música promovidasoberana A ópera
que desenrolava o drama com o risco aceito de afogá-lo nas v^as da orquestra e do bel
canto.
A musical Itália era, naturalmente,sua pátria. Era de Nápoles que ela irradiava
sobre o mundo,com Alexandre Scarlattie sua brilhante escola. Do teatro S. Bartolo
meu precisamente.Desse epicentro,a ópera havia conquistado a cada cidade italiana,
a cada capital européia.
Mas "o que a Europa adotava entusiasticamente era a ópera italiana. A Itália,
que forneceu o modelo do gênero, é a fonte inesgotável da qual brotam as ondas
sonoras; fomece a toda a Europa tanto a música quanto os executantes; ela é a
Melodia mesma. Assim seus melodramas invadem todas as nações vizinhas. Paris
quer lutar; mas o gênio que se opõe aos italianos, é italiano" — LuUi (1632-1687).
"Hamburgo permanece muito tempo fiel à música alemã, mas acaba por ceder. O
mundo da ópera não é mais do que uma colônia italiana.
Donde lhe vem por sua vezesse tratamento de favor,essa hegemonia?—A
literatura não era mais do que uma humilde serva, a quem a música impunha
suas leis. A música exigia aqui uma melodia, ah um duo, mais adiante um coro;
queria que tantos versosfossem reservados ao tenor,ao baixo;ela dirigia tudo,e até o
vocabulário, que nada deveria apresentar que não fosse fácil e harmonioso. Ao
escritorela só pedia maleabilidade e destreza:restava-lhe a arte de adaptar,a arte de
obedecer ao compositor, ao chefe de orquestra, à prima-dona. E a língua ita
liana, mais rica e mais sonora, mais harmoniosa e mais variada que todas as
outras línguas da Europa, recuperava aqui o prestígio que perdera quando se
tratava de exprimir idéias.
A música italiana, que delícia! que jorrar,escapando dos constrangimen
tos!que calorosa riqueza!que abvmdância!que triunfante facilidade! Generosa,
inesgotável,oferecia a um público quejá não podia dispensã-la o que a música
francesa não tinha,o que não tinha nenhxima música de nenhum país:a verve,o
brio, o caráter. Sim, o caráter, sempre marcado, seja para a vivacidade, seja
para a ternura. Ela não buscava uma harmonia doce, igual, unida, só proce
dendo por transições, prudente,lógica:era ousada;arriscava;e exatamente por
seus atrevimentos, embriagava a alma.®°
Foi a única embriaguez à qual se entregou verdadeiramente o alimo de Caetano
Greco.E ela o salvou das outras. Falando um dia dos perigos do mxmdo a um jovem
discípulo, Bernardo Maria Ápice, deixará escapar esta confidência:
— Freqüentei os teatros. Mas, graças a Deus, aí não cometi nem um só pecado
venial. Só ia para me encantar com a música; ela me tomava todo inteiro e eu não
pensava mais em outra coisa.®'
Mas é Deus quem vaiem breve tomá-lo inteiramente.E ele não pensará mais em
outra coisa.
Na tarde do sábado de 28de março de 1722,nas primeiras vésperas de Ramos,uns
quarenta senhores entram em pequenos grupos no convento dos Padres da Missão —
os lazaristas — da praça das Virgens: eram das famílias Carafa, Filomarino, Spinelli,
122 PARTE I Cap. 11
Ruffo, OS trêsjovens irmãos Capecelatro: José, Carlos e Francisco,o "senhor José de
Ligório e Afonso, seu filho". Para oito dias de retiro fechado, no silêncio, diante de
Deus só. Foi Francisco Capecelatro, duque de Casabona,íntimo de Afonso, quem o
animou a ir. Simples desejo de partühar com um amigo um tempo forte da fé, ou mão
estendida a um irmão que sente escorregar? A vida dos santos está tecida de graças
decisivas que trazem nomes e rostos humanos.
Ao nome de Francisco Capecelatro,temos de acrescentar aqui o do pregador, o
padre Vicente Cuttica,cinqüenta anos,superior da casa."Um homem que trazia Deus
no coração e sobre os lábios", diz Tannoia.
A Graça, que perseguia Afonso — e recusava largá-lo, não cessando de bater a
porta de seu coração — a Graça fez-lhe ver quanto estava decaído do seu primeiro
amor;e como o mimdo não o saciava nem mesmo com as bolotas da parábola;como
Deus havia passado para o segundo lugarem suas afeições;e que ele só participava da
Santa Mesa como conviva farto com outra coisa e sem desejo.
Foi a chuva da tarde sobre uma terra ressecada,mas não queimada.E eis
que recuperam vigor os germes de piedade que os espinhos das paixões come
çavam a abafar. Imediatamente, a luz de Deus invade Afonso; ele chora seu
desvio e,resolutamente,promete ao Senhor deixar o caminho pelo qual incon-
sideradamente se tinha engajado. Esse ano e meio que ele amaldiçoa e chora
então aos pés do Crucifixo, vai detestá-lo com lágrimas até sua velhice.
Osfilhos de são Vicente de Paulo,que alimentavam seus retirantes com a espiri
tualidade muito positiva da Escola fi^ancesa — "as verdades e excelências de Jesus
Cristo Nosso Senhor" — não negligenciavam nem por isso o triunfo do medo.Em seu
sermão sobre o inferno, o padre Cuttica obteve grande efeito do quadro da alma
condenada que se vê ainda hoje com os lazaristas de Nápoles:uma grande imagem do
Ciwifixo, de papel colado na tela. Está queimada em seu bordo inferior pelas duas
mãos de fogo de uma condenada que teria aparecido a seu amante,em Florença,em
1711. Trazida para Nápoles em novembro de 1712 pelo padre Bernardo José Scara-
melli,essa gravura era mostradaem todosos retiros.Os Ligóriosjâ a haviam portanto
visto em cada um dos retiros que tinham feito na praça das Virgens.Terá impressio
nado mais o nosso advogado, pelo fato de sua tibieza? Somos obrigados a constatar
que,em seus sermões ou meditações sobre o inferno que nos deixou, não faz menção
dessa história nem desse quadro.
Entretanto, no Sábado Santo,4 de abril, os sinos do Glória ressoavam sobre um
outro Afonso: ele dissera um adeus definitivo ao mundo e a suas vaidades, até ao
teatro; prometera aos pés do Crucifixo: viveria no celibato, para Deus só e sua salva
ção; suas "convivências" seriam agora os Incuráveis e o SS. Sacramento.
Seus Cânticos espirituais estarão cheios dalembrança desse arranque vitorioso.
Uma estrofe entre cem outras:
Ó mundo, oferece-me tudo, tua oferta será vã;
Vai, lança aos insensatos o objeto de seus desejos.
Louca embriaguez do século e culpáveis prazeres,
Não tereis meu coração: outro Bem o aprisiona 33
PARTE I Cap. 11 123
Até sua morte ele proclamará que esses santos exercícios de 1722 foram a maior
misericórdia de Deus em sua vida. E sua ação de graças não se estanca para com o
Senhor e para com seu amigo, o cavaleiro Capecelatro.^"
Seis meses mais tarde, em 21 de setembro de 1722, no fervor desse retiro e sem
dúvida para se fortificar nas lutas sem tréguas em que o engqjam esse ponto de
não-retomo,ele recebe a confirmação das mãos de monsenhor José Maria Positano,
bispo de Acerra. Aos vinte e seis anos!
Por que tão tarde? Ossínodossucessivos da diocese nada diziam sobre a idade da
confirmação e aliás nada tinham a assinalar sobre esse sacramento. O uso era de só
conferi-lo aos adultos de vinte, trinta ou... sessenta anos.^®
A partir de sua experiência e de suas reflexões sobre as Vitórias dos mártires,a
confirmação será, para Afonso teólogo, o sacramento do Espírito de força: "força da
alma","força no combate" espiritual,"força de amar com um amor mais forte que a
morte","força de tudo sofirer por Deus e de tudo enfirentar pela fé".®®
A força de amar, Afonso vai também hauri-la abundantemente na eucaristia:
comunhão várias vezes por semana, visitas cotidianas ao SS.Sacramento "na igreja
da cidade onde se fazia, naquele dia, a exposição das Quarenta Horas, por mais
afastada que fosse de seu domicílio. Não por alguns instantes, como faz a maioria:
demorava-se horas todos os dias, perdido numa intimidade contemplativa e feliz. Era
belo vê-lo, freqüentemente com trajes de solenidade,fazer assim a corte ao Hóspede
divino dos altares."®' Fogo de palha de alguns meses?
Enquanto residir em Nápoles, como leigo, em seguida como padre, irá
todos os dias manter sua guarda apaixonada da eucaristia. Tomarão a
encontrá-lo aí mais tarde todas as vezes em que passar pela capital. João
Mazzim relata que ele via ojovem advogado, prostrado durante horas aos pés do
SS.Sacramento,extático.Com os olhos fixos no ostensório e como que fora dos
sentidos, nem mesmo percebia às vezes que sua peruca tinha escorregado para o
lado. O fervor desse leigo excitava a admiração e... a confusão de padres no
entanto fervorosos. — De quem se trata? perguntavam.
Vinha-se para vê-lo. Voltava-se para revê-lo. Invejava-se seu fervor; ficava-se
contagiado por ele.Santas amizades assim nasceram.Entre outras,a desse J.Mazzini,
então seminarista de dezoito anos.®®
O enamorado traz flores para sua bem-amada. Na paróquia bem próxima de S.
Ângelo a Segno, o altar estava sempre ricamente florido ã sua custa.
Oferecer ramalhetes a sua mulher durante a lua-de-mel, é ser recém-casado;
trazer-lhe ainda ramalhetes depois de trinta anos de casamento,é estar enamorado.
Durante toda sua vida Afonso f£irá questão de florir seu Bem-Amado do
tabemáculo com toda a variedade da flora meridional. Nos conventos em que
residirá, obterá as mais raras sementes, depois irá colher as flores com suas
mãos a fim de ornar o altar.Invejava essas inocentes criaturas pela felicidade de
permanecer dia e noite junto de seu Criador. É assim que o exprime em seus
Cânticos espirituais®®:
124 PARTE I Cap. 11

Felizes flores, vós que noite e dia Oh! pudesse fazer eu de moradia
pertinho sempre estais de meu Amado! o templo que por vós é perfumado!
Oh! não o abandoneis até que um dia Que ventura teria e quanta sorte,
termine vossa vida aqui a seu lado. aos pés de minha vida achar a morte!

A Semana Santa de 1723 toma a ver Afonso no retiro do padre Cuttica, do

domingo de Ramos,20 de março,ao Aleluia pascal.Ele reaviva seu propósito de"não
ter mais em mente senão Deus e sua salvação e de nem querer mais ouvir falar em
casamento". Na lógica dessa opção que recusa garantir a linhagem dos Ligórios, dá
um grande passo amais:"decide remmciar a seu direito de primogenitura em favor de
seu irmão Hércules. Sem abandonar ainda a advocacia".'*" Não obtém ele a serviço
da justiça, constantes sucessos? 12. PROCESSO PERDIDO OU CAUSA GANHA?
NOTA (1723)
1. Vita e morte delia Suor Teresa M.de Lignori, Ed. Marietti, IV, p. 669.
2. Lettere, n, p. 504.
3. Contributi, pp. 48-58, corrigidos e completados por SH 6(1958), pp. 264-270; 7(1959), pp. 214-215. Dia 29 de agosto de 1758; trinta e cinco anos ontem * que nosso Pai se
4. Summarium, pp. 60, 61, 62, 66. entregou a Deus;ele se serviu da ocasião para nos dar algumas precisões...Erao
5. ASN, Manoscrítti 230, n. 5133. Este documento priva de toda a verossimilhança a hipótese de l^lleria — advogado do duque de Gravina,contra a Casa de Toscana, num processo em
SH 6(1958), p. 268 — de "noivado" de Afonso com a segunda filha dos Raltano-Ligório, Antônia: ela nâo foi que estavam emjogo 600.000 ducados.Como se tratasse de negócio importante,
herdeira. Os testemunhos, unânimes quanto a Teresa, sâo aliás Inexistentes com referência a Antônia
6. Tannola, I, pp. 14, 20-21; SH 6(1958), p. 270; S. Alfonso,23(1962), pp. 113-116. ele o havia estudado profunda e longamente—o objeto do litígio era um feudo
7. Summarium, p. 64, § 33. do qual se tratava de determinar se era "antigo" ou"novo". Nosso Pai susten
8. Tannoia, I, p. 20; Summarium, p. 62, § 22. tava que era antigo e sua defesa o havia abundantemente mostrado. Um dos
9. Tannoia, I, p. 13.
juizes, talvez Maggiocchi, mandou ler então o ato de concessão: a cláusula "in
10. Philipe Aries, L^enfant et Ia vie familiale sous TAneien Régime, Seuil, Paris, 1973, pp. 148-166.
11. Jos van Ussel, Histoire de Ia répressiom sexuelle. Paris 1972, pp. 198-231. novum"("um feudo novo") aí se encontrava expressamente formulada. Nosso
12. Tannoia, I, p. 7. Pai aliás lera muitas vezes esse documento...Foiele próprio quem nos deuesses
13. Tannoia, I, p. 12. detalhes quase com os mesmos termos e eu os anotei meia hora depois.
14. Selva dl matéria predicabili,P.m,cap. Vm,§ 2,Ed Marlettl, UI,pp.266-267; cf.: Le Glorie dl Maria,
P. rv,IV, ossequio 7: Opere ascetiehe, Vn, pp. 344-348.
15. Galanti, op. cit., L. IV, caps. IV, Vin.
Concedamos"a pena de ouro" ao jovem padre Pascal Bonassisa por essa confi-
16. Telleria, I, p. 67; S. Afonso, Sermoni Compendiati, XLV,10, Ed. Marietti, m,p. 553. dência apanhada no ar e fixada com precisão. Despertada uns duzentos anos mais
17. Tannoia, I, pp. 12-13. tarde do sono dos arquivos,sua humilde folha virájustificar umalongalenda sobre um
18. Aries, op. cit., pp. 315-316. acontecimento-chave da aventura de Afonso de L^ório.^
19. Novena de! Santo Natale: Opere ascetiehe, IV.
20. Riproduzione di tutte le opere dei S. di Dio P. Gennaro Samelli, Nápoles 1848 t I d 29
21. Selva..., P. I, cap. I, 4: ibid., p. 8. Com uma humildade astuciosa,o fundador dos redentoristas, nessa noite de 29
22. Contributi, pp. 58-64; Telleria, I, pp. 67-68. de agosto de 1758,dizo suficiente para associar seus filhos a sua ação de graçase pará
23. Tannoia, I, p. 14. lhes permitir...enganarem-se a respeito de sua competência profissional.Em busca de
24. Tannoia, I, p. 12.
explicações, Tannoia e seus outros biógrafos se extraviam no labirinto dos direitos
25. Tannoia, I, pp. 12-13; Telleria, I, pp. 62-63.
26. Tannoia, I, pp. 13-14; Summarium, p. 69, § 64; Contributi, p. 48, nota 2* Telleria I dd 69-70 lombardo e angevino. A peça principal do processo, ofuscante de evidência, teria,
27. Tannoia, I, p. 16. » ,, . . segvmdo eles, passado cem vezessob os olhos do advogado e...escapado asua atenção.
28. Opere ascetiehe, IV, pp. 296-297. Bastava portanto esse papel para,de uma feita lançar por terra,o castelo de pedras de
29. Ch. Urbain e E. Levesque, L'Eglise et le théáthe, Grasset, Paris, 1930:"Introduction", pp. 8-65; cf. J. uma advocacia muito segura de si mesma. Vencido, Afonso deixava para sempre o
Laflamme e R. Tourangeau, L'Eglise et le théâtre au Quebec, Montreal, 1979. pretório com uma apóstrofe comeliana, mas ridícula e incoerente, visto a situação —
30. P. Hazard, op.cit., t. II, pp. 206-207.
31. Tannoia, I, p. 18. "Mundo,eu te conheço!" — enquanto nos lábios de um adulto responsável,a palavra
32. Tannoia, I, p. 17. de circimstância deveria ter sido: "Afonso, eu o conheço! Você é um imperdoável
33. Gregorio, Canzoniere alfonsiano, p. 299, 3.® estrofe. distraído!"
34. Tannoia, I, pp. 17-18; Summarium, p. 70, § 72; Telleria, I, pp. 81-83; AGR, XXVH,33.
35. ASDN; Processo apostólico:"Responsio ad animadversiones", p. 19.
36. Istrazione al popolo,P.II,cap.in,6,Ed.Marietti,IX,p.954;Istruzionee pratica peiconfessori(Homo A cegueira"providencial" do grande advogado,depois o ilogismo de sua decisão
apostohcus), cap. XIV,53: ibid., p. 326; Novena deUo Spirito Santo, VI: Opere ascetiehe, I, p. 256. final lançam mais de umá dúvida sobre esse cenário. Mas como elucidá-lo?
37. Tannoia, I, p. 19.
38. Summarium, pp. 70-71, 72-73. Desse processo, Tannoia dá a data exata: 1723; — o que está em jogo: 500 a
39. Tannoia, I, p. 19; Gregorio, op. cit., p. 235. 600.000 ducados; — o nó do litígio: um feudo cig a concessão se devia determinar se era
40. Tannoia, I, pp. 19-20.
"antiga" ou"nova"; —e finalmente o nome de um dos protagonistas:o grande duque
126 PARTE I Cap. 12
de Toscana.Masse ele se perguntava sobre o cliente de Afonso: um Ruffo? um Orsini?
ou algum outro "magnata do Reino"?
Por felicidade, nos anos 1940, um pesquisador de sorte obtém dos Arquivos
Gerais dos Redentoristas a nota tomada ainda quente pelo padre Bonassisa na noite
de 29 de agosto de 1758.0 cliente de Afonso aíse encontra nomeado:trata-se do duque
de Gravina, naquela ocasião Püipe OrsinL Agora o quebra-cabeça está completo.
Como em 1723 não há trinta e seis processos do duque de Gravina contra a Casa
soberana de Plorença, toma-se finalmente possível a esperança de desvendar esse
enigma,mesmo se—náo o esqueçamos — os nomes dos advogados náo figurem nos
dossiês do tempo. Nos arquivos do Estado, em Nápoles, R. Telleria identifica com
efeito ofeudoem litígio —Amatrice—edescobre asreivindicações precisas dos Orsini
contra os Médicis. Por sua vez, O. Gregório pesquisa os Arquivos do Estado em
Plorença e traz à luz em toda sua amplidão as entradas e saídas daquilo que consti
tuirá, para o nosso advogado,o processo de sua vida.^
Para compreender sua trama, teremos de retroceder até Carlos V!
O grande imperador era perito em despojar seus contrários para dotar seus
valorosos capitães.É assim que em 1538 ele havia investido com o feudo de Amatrice
um certo Aexandre Vitelli, ele "e os legítimos herdeiros de seu sangue — homens e
mulheres — para sempre"(successoribus ex suo corpore legitime descendentibus...
in perpetuum).Amatrice é então uma pequena cidade de 1.216 famílias, no norte dos
Abruzos, na atual província de Rieti. Aexandre morre e seu filho Tiago lhe sucede.
Este tem duas filhas: Beatriz e Isabel. Coloquemos por enquanto a mais nova entre
parênteses, mas sem nos esquecermos dela: casa-se com Hipólito delia Rovere e sua
bisneta Vitória criará astuciosamente o embrulho que Afonso vai tentar desembru
lhar.
No entanto é amais velha.Beatriz Vitelli, quem herda,naturalmente, Amatrice.
Ela desposou, em 1586, Virgínio Orsini di Bracciano. Seu filho Latino lhe sucede;
depois seu neto Alexandre.
tudo se estragaem 1648,quandoesse Aexandre Orsini assassina sua mulher
eiMis de treze anos de casamento. Pega trinta anos de prisão com importantes
per as e danos a pagar aquie acolá. A fim de"acabar com ele",seu único filho,Félix,
exige, por viajudiciária,245.560 escudos para vingar a honra de sua mãe.Esse pobre
rap^ parte para morrer,sem filhos,na corte de Viena,onde lega todos os seus bens e
ireitos e portanto sua baronia de Amatrice — ao imperador Leopoldo I de Habs-
burgo.
"Sua"baronia? Desculpe!O criminoso,seu pai,lhe sobreviverá;sairá da prisão e
recuperará seu feudo.Só sobrarão para o imperador hipotecas difíceis de estabelecer
mais difíceis ainda de decifirar.
E aqui está um primeiro processo em perspectiva.
Agora um segundo.
PARTE I Cap. 12 127
Ao sair da prisão,Alexandre OrsinidiBracciano náo tem mais herdeiro,mastem
mais dívidas do que nunca. Deve em particular 150.000 ducados, além de uma renda
anual de 4.000 ducados a seu primo Domingos Orsini,duque de Gravina e Soloflra.Por
um ato lavrado em tabelião em 1688,confirmado com o assenso(acordo)real,cede-lhe
como penhor sua baronia de Amatrice, "garantindo-lhe o usuflnito, a ele e a seus
herdeiros, sem que ninguém possa ir perturbá-los, enquanto náo tiverem obtido a
totalidade do que lhes é devido". Foi assim que os Orsini di Gravina vieram ocupar o
lugar dos Orsini di Bracciano em Amatrice.
Náo gozarão por muito tempo de sua tranqüila posse. Quatro anos mais tarde,
em 1692, morre o príncipe Alexandre Orsini, extenuado de anos, de desgraças e de
dívidas. Desaba imediatamente sobre seus despojos mortais a horda dos credores.
Mas a Câmara Real da Sommaria vigiava como uma aranha no canto de sua teia.
Estabeleceu o acordo de todosesses apetites servindo-se em primeiro lugar:ofeudo de
Amatrice coube ao Domínio da Coroa(da Espanha),os outrosforam lançados na goela
insaciável do fisco, e náo sobrou um só carlino a ser partilhado entre os outros
credores. Afinal, nem o imperador da Aemanha,nem os Orsini di Gravina eram os
descendentes diretos — ex siro corpore — do capitão de Carlos V, Alexandre Vitelli..
Foi então que se manifestou a bisneta de Isabel VitelU, a grá-duquesa de Tos
cana, Vitória de Montefeltro delia Rovere, viúva do gráo-duque Ferdinando n de
Médicis.Também ela estava espreitando a taça montanhosa que Amatrice forma em
volta de seu lago ensolarado, porque ela sabia que era descendente direta do capitão
de Carlos V. Logo depois da morte de seu pobre primo Alexandre Orsini em 1692,
escolheu ojurisconsulto MiguelJerónimo Cattaneo para seu procuradorem Nápoles a
fim de defender seus direitos.
Mas, se ela o ignorava, logo ficou sabendo que Amatrice lhe traria também
pesados encargos, para com o fisco espanhol, para com o imperador e sobretudo para
com os Orsini di Gravina...
Náo seja por isso!Para umacabeça coroada,outra cabeça coroada pode rivalizar
em astúcias jurídicas!
— Grá-duquesa, a senhora náo tem outro título para reivindicar o feudo de
Amatrice a náo ser a antiga concessão feita por Carlos V a seu antepassado,Alexandre
Vitelli. E é de fato desse direito do sangue,desse direito antigo,que a senhora quer se
prevalecer a fim de reclamá-lo. Mas a senhora o haverá de querer livre de suas pesadas
hipotecas. Nós a compreendemos.Sereníssima;e náo vamos disputar a esse respeito.
Entregue pois ao fisco asoma de 28.000 ducados—precisamente a tarifa antiga—e lhe
será estabelecido um direito completamente novo,isento das dívidas de Alexandre
Orsini.
Injustiça berrante, mas oficial, contra os Orsini di Gravina!
O registro real que se pode ler nos Arquivos de Estado de Nápoles relata pois:
Aos 3 de maio de 1693, o Fisco cede como benefício à Sereníssima Grá-
duquesa de Toscana a cidade de Amatrice como feudo novo (in feudum no-
128 PARTE I Cap. 12
vum), com todos os direitos e deveras a ele ligados, ficando encarregada de
liberar o Fisco de qualquer evicçâo, restituição ou reclamação de outros inte
ressados.
Notemos bem,de passagem;o fisco teme ver voltarem-se contra si os credores de
Amatrice, os quais tenta dessa forma despojar.
Não, não. Vai-se sancionar esse malabarismo pelo assenso (acordo)real:
Aos 29 de maio de 1693, o conde de S. Estêvão, Francisco de Benavides,
Vice-Rei, concedeu a investidura de Amatrice,como feudo novo, ao Dr. M. J.
Cattaneo,em beneficio da Sereníssima Grã-duquesa de Toscana, Vitória delia
Rovere, ausente..."
Certamente com remorsos,e na esperança de evitar qualquer represália,o privi
légio de concessão, despachado a 4 de junho, vem em socorro com essa cláusula:
"Fica entendido que os bens, dívidas e direitos foram concedidos in novum
feudum,como feudo novo."
E um documento anexo a isso volta, como o criminoso ao lugar de seu delito:
"Embora a transação passada com a Sereníssima... tenha sido paga segundo a
antiga taxa,Amatrice nem por isso deixou de ser vendida in feudum novum et juxta
feudum novum,como feudo novo e segundo as leis que regem os feudos novos."
A portaficava assim quatro vezestrancada no narizdoscredores dofeudo antigo.
Traficava-se desse modo "o direito", mas e "a justiça"?
Os Orsini di Gravina bem que tentaram uma ofensiva, mas Cattaneo contestou
seus créditos,embaraçou-os no emaranhado das leis, conseguindo impor-lhes silên
cio. Vitória delia Rovere tomou-se assim baronesa de Amatrice. Por alguns meses
apenas. Sua morte(6 de março de 1694)transferiu esse feudo para seu filho, o grão-
duque Cosimo m de Médicis(16^-1723).E eis um negócio firaudulento que vai dormir,
como tantos outros, até o juízo final!... Que nada!
Em 1716 abre-se, em Nápoles, um longo processo. Um processo em tomo da
baronia de Amatxice.É o imperador Carlos VI em pessoa quem a reivindica contra
Cosimo m de Médicis.A que título? Do testamento de Félix Orsinifeito,em Viena,em
favor do imperador Leopoldo I, seu paL
E eis despertada a questão que debaterá, para um outro cliente, o advogado
Ligório:o feudo de Amatrice terá sido isento de seus encargos anteriores pela conces
são in feudum novum traficada pelo fisco com a grã-duquesa Vitória?
O procurador dosHabsburgosé José Sorge.Comojurisconsulto,"ele ultrapassa todos
os seus companheiros em crédito e notoriedade".^ E — felizmente para nós ele
tinha a rara paixão de escrever. Publicou duas Allegazioni(dossiês)e um Ristretto
(resumo)da causa de seu cliente imperial.Deixou até luna obra monumental® na qual
o debate recomeça. Sua argumentação resume-se em duas proposições:
PARTE I Cap. 12 129
"Um feudo antigo concedido, mesmo com assenso real, a quem o herda por
direito, não se toma, por isso, novo; continua sendo antigo." Esse primeiro ponto no
entanto não obtinha a unanimidade dos especialistas do direito feudal.
"Antigo igualmente, e não novo é o feudo que se possui em virtude de uma
transação com o fisco." Pois o fisco não dá posse de um feudo; ele o libera, contra
finanças, obrigações que o oneram eventualmente perante o Estado. Nada mais do que
isso. — Tal era de fato a opinião dos melhores especialistas.
Vé-se a força do ponto de vista de Sorge.
Contra ele, o procurador do grão-duque,o marquês João Batista Cecconi,esco
lhera dois excelentes advogados — Ruffo e Camarota—e mobilizado para assisti-los,
uma equipe "de músculo": O.Rocca,F.Jovino,D.Bruno, F.d'Onofido e... Domingos
Caravita, à sua frente. Deve ter corrido dinheiro, durante tantos anos (1716-1724),
entre tantos dedos!
Mas deixemos por aqui esse processo imperial. Ele só nos interessa, por en
quanto, por causa de dois fatos:
— J. Sorge, estrela do direito napolitano, sustenta o ponto de vista que Afonso
pleiteará:o feudo novamente vendido pelo fisco aos Médicis não ficoueximido de suas
antigas dividas.
— O presidente do Sacro Conselho Real, Domingos Caravita, está a favor do
feudo novo. Não se encontrará pois no campo de Afonso.
Porque Afonso de Ligório entra no torneio.
Filipe Orsini di Gravina terá sido excitado pelo banalho que fazia o processo
ünperial contra os Médicis? Afinal,esse feudo disputado por Viena e Florença,perten
cia a seu pai,o príncipe Domingos Orsini,que Vitória delia Rovere lhe havia usurpado.
Não sendo descendente de Alexandre Vitelli, sabia não ter nenhum direito de sangue
para reivindicá-lo; mas possuía a carta de crédito de 1688,reforçada pelo assenso real,
na qual Alexandre Orsini,o assassino,hipotecava Amatrice em favor de seu pai.Eram
150.000 ducados, mais 4.000 ducados de renda anual, mais os jmos acumulados a
partir de 1692, ano de sua evicção, o que se elevava entre 500 e 600.000 ducados. O
duque de Gravina recorria portanto,ele também,ã Câmara Real da Sommaria a fim
de obter a posse do feudo ou o pagamento dessa enorme dívida.
Os Arquivos de Estado de Florença conservaram a correspondência na qual
Cecconi e o grão-duque pressionam Mauleone, presidente da Sommaria,e o próprio
vice-rei, o cardeal d'Althann (Sua Eminência vai receber os dois ursinhos que cobiça!)
Influências políticas e "pistolões" são velhos como a "justiça".
Em 1719,0 negócio chega perante a Sommaria.Essa—que parece hesitar rejeitar
Carlos VI—despede de mãos vazias o duque de Gravina.Dois pesose duas medidas...
Esse último apela para o Sacro Conselho Real. O supremo tribimal.
130 PARTE I Cap. 12
Com O seu procurador Pulchiarelli, ele escolheu para advogado Afonso de Ligó-
rlo.É a seus olhos o melhor: nunca perdeu um processo.E uma sólida amizade liga as
duas famílias: Filipe Orsini di Gravina vem sustentando, desde 1715, Caetano de
Ligório com um benefício eclesiástico cpjo direito de nomeação lhe pertence.
Durante um mês inteiro, o advogado folheia peça por peça esse dossiê abarro
tado, compulsa o direito lombardo e angevino, informa-se minuciosamente sobre a
jurisprudência na matéria. Certamente trabalha com Sorge: eles têm causas idênti
cas,objetivo comum:Cosimo m de Médicis.Em sua alma e consciência formou essa
convicção:se aletra do direito,iniquamente maquiladaem 1693,ê aquicontrovertida,
quanto à eqüidade, não deixa escapatória: ninguém pode eximir Amatrice de suas
hipotecas de justiça Afonso estã certamente lembrado deste princípio superior do
Código Justiniano que lhe coube explicar em seu doutorado:"Em todas as coisas, a
justiça e a eqüidade prevalecem sobre a letra da lei." Ele formou dentro de si uma tão
forte convicção,construiu uma defesa tão evidente que jã"empimhava" sua vitória.
A causa é julgada em 1723, provavelmente no fim de julho.® Sua importância
exige que a corte trabalhe com duas "rotas" simultâneas, portanto, pelo menos dez
juizes.A trama,a qualidade dos parceiros,a dificuldade de um assimto emaranhado,a
reputação dos advogados atraem para esse processo "internacional" toda a Nápoles
dos legistas e dos príncipes. O adversário de Afonso é Antônio Maggiocchi, que as
informações secretas apresentam como uma"pessoa instruída, honesta,... indispen
sável; de grande bondade; muito aplaudida nos tribimais, bem vista pelo püblico."^
Um belo duelo em perspectiva!Por outro lado,ninguém ignora para que lado pendem
osfavores do poder.E os do próprio presidente Caravita.Certamente existe suspense
no ar. Todos admiram a coragem de Afonso e tremem um pouco por ele.
Quanto a Afonso, não treme. Acredita estar com a letra do direito há de
mostrá-lo em breve a seu próprio amigo Caravita! — e está certo de que a eqüidade
está do seu lado, ela que é a mais forte. Ele chega portanto, nesta manhã, tronfío e
pettoruto, diz Tannoia:"segtoro de si e peito estufado".
Está na hora.Segundo o costume,um juizcomissário apresenta os elementos do
litígio, sublinha sua excepcional importância.Em seguida dã a palavra ao advogado
dos Orsini. Afonso fala de pé.® Podemos imaginá-lo como que brincando, com inteli
gência e arte,com a profusão dos textos e das referências históricas,como era de uso,
para pôr em evidência o princípio que partühavam os melhoresjuristas:"Uma quali
dade nova afetando um feudo antigo nem por isso faz dele um feudo novo." Em
segmda deve ter sublinhado a denegação de justiça que havia privado os Orsini di
Gravina de seus direitos, credores hipotecários de Amatrice, não podendo o próprio
Soberano retirar a terceiros inocentes seus títulos de propriedade. A grã-duquesa
aliás, por sua investidura em 1693, havia pago a taxa mtiga.Por que? Senão porque
"uma qualidade nova não constitui um feudo novo"!?
A figurante e rigorosa argumentação de Afonso faz vibrar a assistência com
murmúrio admirativo. Uma vez mais ele ganhou. Que vai poder dizer Maggiocchi?
Maggiocchi se levanta. Nem ao menos toma o trabalho de advogar.
— O senhor Ligório, então, não sabe ler? Os textos são os textos...
PARTE I Cap. 12 131
Manda proceder a leitura, por um escrivão, da transação de 1693 com suas
cláusiilas. Ouve-se o in novum feudum cair quatro vezes como um dobre de sino sobre
Afonso e seu cliente.
Maggiocchi toma a se sentar. O Sacro Conselho Real anui como diante de uma
evidência...
Manifestamente,os jogos tinham sido feitos previamente,com a absolvição do
cardeal vice-rei. O poder arrasou o direito, espezinhou a eqüidade!
Como que atingido por um raio, o advogado de mãos puras fica xom instante
confuso.Em seguida,rubro de cólera, cheio de confusão pela veste que traz, surdo às
consolações hipócritas do Presidente Caravita, sai, de cabeça baixa, da sala de au
diência e do palácio, repetindo consigo mesmo interiormente:
— Mundo, eu te conheço... Adeus, tribunais!
Como um autômato — a pé? de carruagem? ele nem sabe — sobe de volta a rua
dos Tribunais e vaise trancar em seu quarto,sem ver ninguém.Não aparece nem para
a refeição do meio-dia nem à da tarde. Chamado insistentemente, permanece surdo.
Sua mãe e toda a casa ficam transtornadas. O pai ausente. Quando volta, no dia
seguinte,encontra o palácio em lágrimas,corre para a porta de seu filho,chama,bate,
insiste, ordena. Em vão. Sobe-lhe a cólera.
— Afonso está morrendo, geme dona Ana.
— Pois bem, que morra! responde o oficial fora de si.
No terceiro dia, Afonso não pode resistir por mais tempo aos clamores de sua
mãe. Abre. Acaba deixando que lhe enfiem uma fatia de melão éntre os dentes.Essa
delícia tão napolitana lhe pareceu mais amarga do que o fel, confessará mais tarde.
Os soluços da borrasca cessaram.E sobre esses destroços a doce força de Deus
concluiu seu triunfo. Um processo perdido, uma causa ganha. Afonso despediu todos
os seus clientes, rompeu suas relações mvmdanas. Seus amigos, seus parentes não o
viram mais chegar para uma partida de baralho ou um brühante recital de cravo.Seu
tempo se dividia entre a igreja, a Virgem das Mercês,o hospital dos Incuráveis e seu
quarto: aí mergulhava demoradamente na oração ou na vida dos santos.Encontrava
sobretudo seu paraíso deixando-se ficar duas ou três horas no santuário da cidade
onde se fizesse a adoração do SS. Sacramento.
De um dia para outro, não foi mais visto no palácio dejustiça. Sua ausência,nos
primeiros meses, não surpreendeu a ninguém, depois do estrondo do carvalho aba
tido. Alguns íntimos do tribxmal suspeitaram seu drama de consciência. "Muitas
causas se perdem,havia confiado a um confirade, por causa mesmo do cuidado em ser
exato e honesto por parte dos advogados. Osjuizes podem se enganar sobre os fatos:
nunca se acaba de inventariar as circunstâncias; ê preciso tão pouco para se enganar!
E quando se errou assim,como reparar? Nossa profissão é recheada de perigos. Para
obter a própria salvação se tem de abandoná-la." Nela ele entrara com ambição;
132 PARTE I Cap. 12
depressa se derretera ao fogo da realidade."Matar-se" neste mundo para arriscar sua
alma no outro, era pagar caro demais uma glória de fumaça. E por uma justiça
aleatória!... "Meu amigo, dissera um dia a José Capecelatro, seguimos um ofício
insuportável. Penoso demais e perigoso demais. Uma vida de danados para arriscar
uma morte má. Abandono; náo é meu lugar; porque quero salvar minha alma."®
Ao dizer isso,náo abandonava efetivamente.Por não saber que caminho tomar?
Talvez. Sobretudo medo do drama familiar. Seu pai faria uma desgraça.
Mas a trovoada do processo Orsini-Médicis anunciava ser a tempestade agora
inevitável.
— Afonso está preparando alguma coisa, diziam entre si os pais angustiados.
Mas surge a ocasião de recolocá-lo em seu bom senso: aparece oportunamente
um negócio muito caro ao senhor José.
— Amanhã mesmo você vai começar a se ocupar disso, disse ele a seu filho.
— Pai,responde o advogado,o senhor pode pedir a quem quiser. Quanto a mim,
os tribunais, é página virada. Agora só tenho um negócio: minha alma.
O coronel explode em soluços.Esse terremotojogou pois no chão a glória de seu
filho e a fortuna de sua casa!
— Esse momento de crise vai passar, insinua Ana.
— Não. Afonso é um cabeça dura. Não se consegue fazê-lo voltar atrás em suas
decisões.
Se o pai ainda as tivesse,o dia 29 de agosto lhe arrancaria as últimas Uusões.Era
um domingo. Na véspera, a imperatriz Isabel, esposa de Carlos VI, completara seus
trinta e dois anos.
O Vice-rei havia,esse ano,transferido para o domingo os festejose solenidades.^°
O comandante da Capitana tinha a obrigação de assistir à cerimônia do be^a-mâc.
Pediu a seu filho que o acompanhasse. Vaga desculpa de Afonso. Insistência do pai,
que já ferve interiormente.
— O que o senhor quer que eu vá fazer lá? Tudo isso é só vaidade.
José explode:
— Faça o que quiser e vá aonde bem entender!
Diante dessa fúria, Afonso bate em retirada:
— Não se perturbe, pai. Eu vou com o senhor.
— Faça o que quiser,já disse!
PARTE I Cap. 12 133
E deixando-o lá, José sobe na carruagem,foge do palácio real e lá se vai devorar
sua amargura no campo de Marianella.
Dilacerado entre seu pai e Deus, Afonso dirigiu-se também para a porta e foi
esquecer sua dorjunto dos pobres Incuráveis.Era aí seu palácio; longe das elegantes,
dos príncipes, do cardeal d'Althann, aí o esperavam seus vice-reis...
E foi aí,enquanto sua pobre chagase acalmava tratando das deles,que sobreveio
o acontecimento: viu-se de repente envolto p>or uma grande luz,o edifício lhe pareceu
completamente abalado, e seu coração ouviu uma voz, distintamente:
— Deixe o mundo e entregue-se a mim.
Por um instante confuso, o advogado volta a si e a seus doentes. Seu ofício de
samaritano terminado,saía do hospital quando,ao chegar no meio da grande escada
ria exterior, toda a casa lhe pareceu novamente desabar e foi a mesma Voz:
— Deixe o mundo e entregue-se a mim.
Afonso se detém, interiormente aterrado:
— Meu Deus, diz chorando, resisti demais a vossa graça. Eis-me aqui: fazei de
mim o que quiserdes...
Com esse ímpeto dirige-se a sua querida igreja da Redenção dos Cativos, a fim de
lançar-se aos pés de Nossa Senhora das Mercês. Abisma-se em súplica diante da Mãe
de Deus. Até que uma nova luz o envolve, uma força o ergue:
—Adeus,mimdo e vaidades! A vós minha vida.Senhor!Títulos e bens de minha
Casa, ei-los aqui em holocausto a meu Deus e a Maria...
Ele está de pé. Num gesto de cavaleiro que se rende, arranca para sempre sua
espadacom tudo o que representa e a depõe sobre o altar,aos pés de sua Soberanae de
seu divino Filho.^^ Eles o venceram:
— Eu me comprometo a me retirar com os padres jerônimos.
Esse 29 de agosto de 1723 ficará sendo para ele "o dia de sua conversão". Esse
santuário marial da"libertação dos Cativos"será o ponto de encontro de sua gratidão
pela vida inteira,cada vez que volta a Nápoles. Missionário, bispo,não poderá passar
pela capital sem ir longamente a esses dois pólos de sua vida de estudante e de
advogado:Nossa Senhora das Mercês e,a oitocentos metros de lá, a capela da Confira-
ria da Visitação dos jerônimos.
Paraosjerônimos,é paraláque se dirige ao sair da igrejinha das Mercês.Junto do
padre Pagano,lógico. Depois do drama dos Tribunais,o oratoriano ficou a par,cada
dia quase,do itinerário interior de seu penitente.Nessa tarde,ele o vê,rubro,surgindo
em seu quarto,transtornado,sem sua espada.O que está acontecendo? Ele,o assíduo,
não é visto durante o dia na Confraria dos Doutores... Rapidamente, Afonso conta: o
134 PARTE I Cap. 12
drama do beija-mâo fracassado, a Voz nos Incuráveis, a "rendição" nas Mercês:
—Aquiestou,padre: quero ser padre em sua comunidade.Diga-me "sim"logo.
—Calma,meu filho! Não é coisa que se possa decidir com essa pressa. Peço-lhe
pelo menos um ano para lhe dar uma resposta.
— Um ano! Não posso esperar mais. Nem um dia!
Deusé grande! pensa Pagano ao ouvir esse penitente que vê maravilhosamente
esculpido pela Graça durante mais de vinte anos. E conclui:
— Sendo assim, vamos ambos rezar intensamente a Jesus e Maria.
Afonso vai para casa... Sua casa? Não. A casa de seus pais. Seu corpo terá aí seu
viver e seu sustento; seu espírito e seu coração não deixam mais o Oratório. Sua
família não o verá, aliás, à mesa por três dias: como Paulo de Tarso abatido no
caminho de Damasco,ele fará questão de passá-los num jejum absoluto.Por três dias
alimentando e embriagado de alegria, em compensação dos três dias do mês prece
dente,mergulhado no despeito.Encontra pretextos para se desculpar de não compa
recer às refeições: a mãe faz de conta que acredita; o pai ainda não voltou de Maria-
nella.
Jejum de luzese de santos impulsos,confrontados todas as tardes com a sabedo
ria de Pagano.
—Firmemente deixo tudo a fim de ser todo de Jesus Cristo entre os filhos de são
Filipe!
—O que toda a comunidade só deseja é acolhê-lo imediatamente,mas a prudên
cia exige que se espere o consentimento de seu pai.
O paiacaba por voltar a Nápoles.E começa o regime da ducha escocesa:cenas de
ternura para Afonso"que esperdiça uma vida de futuro e arrasta em sua infelicidade
toda a casa"; explosões furiosas contra"o obstinado que sem dúvida nenhuma ficou
louco". Atroz provação para esse fifiio todo coração e finura.E,no entanto, ternura e
furor só servem para afirmá-lo em seu propósito.Como um nó que se puxa desespera-
damente pelas duas pontas do cordão.
Doravante,o senhor José só terá Caetano e Hércules—Antônio é monge — para
acompanhá-lo à corte,ao teatro,aos serões mundanos,aos conselhos da praça ances
tral. Nas sessões de Portanova, Afonso conservará, até a morte,direito de presença e
de voto; mas,depois de 10 dejunho de 1723,ele não será mais visto durante três anos e
meio...^2
Melhor seria que não o vissem mais no palácio dos Ligórios!Sua ruptura—sobre
a qual ainda não deu explicações a sua família — mergulha seu pai num estado de
visceral intolerância:
— Rogo a Deus,exclama um dia este último, para me retirar deste mundo ou
para retirá-lo, porque não tenho mais coragem de olhá-lo!
PARTE I Cap. 12 135
"Somente Deus nos cumula e somente ele nos ama,diz Afonso a si mesmo.Que
esperar do mundo se meu próprio pai não pode mais me ver?"
E ele decide dar o passo supremo:
— Pai,eu o estou vendo torturado por minha causa.Tenho de lhe dizer: não sou
mais deste mundo. Já decidi — e é Deus quem me inspira — entrar para o Oratório.
Rogo-lhe não levar a mal e me conceder sua bênção.
O senhor José, aterrado, explode em gemidos e desaparece em seu quarto.
Recusando aceitar o inaceitável,ei-lo recrutando parentes e amigos para abalar
seu filho. Vai até aos beneditinos dos Santos Severino e Sossio, onde Antônio de
Ligório recebeu o hábito com o nome de Benedito Maria.O abade do mosteiro é dom
João Batista di Miro,irmão do senhor Vicente do Sacro Conselho Real. Ele será um
maravilhoso advogado... do diabo:
— Meu caro Afonso,essa crise de melancolia vai passar!(Diria hoje de depressão
nervosa.) O senhor é o mais velho; o direito de "primogenitura" comporta seus
deveres;é uma vocação e uma responsabilidade.E esses talentos com os quais Deus o
cumulou,essa alta benevolência com a qual a corte de Viena cerca sua família e que
permite tudo esperar—tudo—parao senhor e para seus irmãos... Não pense somente
em você: não vá estragar tudo,para os outros e para si mesmo,por causa de pretensas
luzes de Deus que eu, padre abade,juro, não passam de ilusões do demônio.
É soprar o fogo!
— O senhor me fala de vocação!Pode estar certo,senhor padre,como eu próprio
estou persuadido,que Deus me quer fora do mundo,a serviço de sua Igreja.Tenho de
corresponder ao apelo de Deus e não aos desejos de meu pai. E assim farei.
"Deus me chama. Não posso resistir-lhe." Tal é sua resposta aos bons apóstolos
que o assaltam por todos os lados.
Seu tio materno, monsenhor Emílio Cavalieri, encontra-se então em Nápoles
por motivo de saúde e negócios de sua diocese.^^ Afonso o mobiliza para seu combate.
Seus pais o requisitam para o deles.
—Esta é muito boa!responde-lhes o tio Emílio.Eu próprio remmciei ao mundo e
a meu direito de primogenitura para garantir minha salvação, e querem que eu
trabalhe para a nossa perda, de meu sobrinho e a minha!
Mesmo apoio vigoroso para Afonso por parte do lazarista Cuttica—uma autori
dade para seu pai; do oratoriano Pagano — a própria voz de Deus para sua mãe; do
cónego Pedro Marco Gizzio, primo de dona Ana e oficial da diocese^ —um homem de
peso na Igreja e na família.
O senhor José é obrigado a se deixar vencer.E chega a um compromisso: Afonso
será padre, já que se obstina, mas não na comunidade dos jerônimos; na diocese;
permanecerá assim na casa paterna.
136 PARTE I Cap. 12
Na casa paternajá habita um clérigo tonsurado—não se assustem:tonsurava-se
discretamente... a peruca! —Caetano,"beneficiário" há oito anos,e que ainda não se
decidiu pelo seminário. Certamente o senhor José espera assim conservar alguma
esperança para o seu primogênito. Ou talvez ele o vê arcebispo? cardeal? vice-rei? No
espaço de um século houve cinco cardeais vice-reis. Quanto a Afonso,em sua alma e
consciência,só aceita esse compromisso como um primeiro passo para ir maislonge...
Falta o encontro com o arcebispo de Nápoles.E,há vinte anos,o cardeal teatino
Francisco Antônio Pignatelli, sobrinho do defunto "papa Pignatelli", Inocéncio XII
(1691-1700). Ele conhece, é claro, há muito tempo, o comandante da Capitana e o
brilhante advogado. Mas ele cai para trás ao saber o objeto de sua visita:
— Mas então! Seu filho quer ser padre?
—Quisesse Deus que assim não fosse.Eminência!Mas aí está o fato. Afonso está
bem decidido.
Foiassim que aos 27 de outubro de 1723,com a idade de vinte e sete anos,Afonso
de Ligório depõe a roupa secular e veste alegremente a batina que era usada pela
fração austera do clero napoütano."
Ora,durante esse trágico verão de 1723,a Câmara Realda Sommaria reativava o
processo imperial acerca da Amatrice.Em 31 de agosto de 1723,Cecconicomunicava
àcorte de Florença que a causa dos Médicis navegava entre os recifes:sua investidura
por Carlos V havia sido feita in perpetuum,"para sempre",em favor de seu antepas
sado e de seus descendentes. A Sereníssima Vitória a havia portanto recebido por
transmissão hereditária(in feudum ãntiquum)mais do que por transação(in feudum
novtim). Os Médicis estavam então obrigados em justiça a pagar as dívidas que
oneravam a baronia.
Vejam só! Exatamente a tese de Sorge e de Carlos VI! Exatamente a causa que
acaba de defender paralelamente — e de perdê-la — Afonso de Ligório!...
— Mas não tenham receio, acrescentava Cecconi. O cardeal vice-rei — (no en
tanto representante de Carlos VI,rei de Nápoles desde 1701!Estranho!Estranho!)—o
vice-rei apoiará magnanimamente o grão-duque. E nós garantimos o favor do mar
quês Mauleone, presidente do tribimal da Sommaria...
Enquanto Cecconi prepara assim seus clientes para ceder alguma coisa,o Impe
rador, por sua vez, aconselhado por Sorge e por uma comissão de altos funcionários
napolitanos, propõe ao grão-duque uma transação:
— Dê-me 90.000 ducados e estaremos quites quanto a Amatrice.
Florença começa por recusar firmemente, tachando de nulo o testEunento de
Felice Orsini em favor do Imperador. Sorge contra-ataca com segurança. Surpresa:
seu ponto de vista se impõe progressivamente; os advogados dos Médicis moderam a
voz;e o negócio é conduzido a uma"feliz"conclusão.Como num filme policial,são"os
cinco últimos minutos" nos quais o mistério se esclarece.
PARTE I Cap. 12 137
Na verdade, o único grande processo acerca de Amatrice era o que opunha o
duque de Gravina ao grão-duque de Toscana: 600.000 era a única dívida, evidente,
enorme,que onerava esse feudo antigo.O crédito dos Orsini di Gravina constituía um
título muito mais incontestável do que o testamento invocado por Carlos VI. O
Imperador,que parecia em conivência com ele contra os Médicis, tinha na realidade todo
interesse de que ele perdesse primeiramente e deixasse o terreno. Sem consideração
para com a justiça! Os partidários dos Habsburgos, os homens bem colocados, e
aqueles que queriam ser bem vistos na corte, acomodaram pois suas consciências
contra Gravina,começando pelo Vice-reL Parecendo,num primeiro tempo,trabalhar
contra seu mestre, a favor dos Médicis,ele o servia eficazmente — de acordo com ele,
não tenhamos dúvida — denegando Gravina. Uma vez este desapossado pelo Sacro
Conselho Real—tribimal de apelação,ele próprio sem apelação,não nosesqueçamos
— Amatrice tomava um amável negócio a ser acertado entre os Habsburgos e os
Médicis pela Câmara da Sommaria — e que deixava gracioso feudo para os Médicis; o
grão-duque Gian Gastone (1671-1737), que acaba de subir ao trono de Florença,
continuará como proprietário de Amatrice,mas terá de dar 90.000 ducados aos Habs
burgos. Prova de que a "novidade" do feudo não abolia as dívidas "antigas", como
sustentava firmemente o grande Sorge e com ele... o senhor Afonso de Ligório, antigo
advogado no tribunal de Nápoles.
NOTA
1. Esse "ontem" é um erro de memória de Afonso. Ver abaixo, nota 10.
2. P. Kunz, Commentaria de vita D. Alphonsi, VI, p. 73; AGR,XXVII, 33.
3. Telleria, I, pp. 88-90; O. Gregorio in Archivio storico per le provincie napoletane, Nuova serie 34
(1953-1954), pp. 181-203, e Asprenas,7(1960), pp. 117-121.
4. Traschini,Dizionario biografíco universale,Florença,1840, vol. V,p. 135,citado por O. Gregorio,loco
cit.
5. Jurisprudentia forensis, Nápoles, 1740-1744,11 tomos.O debate de Amatrice é tratado no tomo V,De
feudis;cf. L. Giustiniani, Memorie istoriche degli scrittori legali dei Regno di Napoli, Nápoles, 1788, t. 3:"G.
Sorge".
6. Contributi, p. 46.
7. ASN, Sezione Giustizia, Pandetta Nuova 4a/107-18.
8. Galanti, L. I, cap. IV; 1.1, pp. 244-245.
9. Rispoli, op. cit., p. 19.
10. Na perturbação daquele dia, esse pormenor escapará à memória de Afonso. Em sua lembrança, o
acontecimento permanecerá ligado à data do aniversário da rainha,28 de agosto. Cf.Telleria, I, p.91,nota 19,
SH 7(1959), p. 241. Ele arrastará seus confrades e seus biógrafos a esse pequeno erro de calendário.
11. O spadino que se vê hoje em S. Maria das Mercês é somente um fac-símüe daquele que ali foi
depositado por A. de Ligório. Este, infelizmente, foi vendido para comprar a coroa que orna a estátua. Cf. S.
Alfonso, 4(1933), p. 72.
12. S. Alfonso,6 (1935), pp. 204-205.
13. SH 14 (1966), pp. 385-386.
14. Analecta, 11 (1932), pp. 45-46; Contributi, p. 29.
15. Para todo este capítulo cf. Tannoia, I, pp. 21-29.
SEGUNDA PARTE
>>
"Vai, vende os teus bens e segue-me
(1723-1732)

Vai, vende o que tens.

Distribuí aos pobres.
E depois, vem e segue-me.
(Lcl8,22eMtl9,21)