You are on page 1of 8

Celso Furtado:

criatividade e dependência na periferia


Rubens R. Sawaya

“Poucas pessoas são feitas para a independência, isto


é privilégio daqueles que têm personalidade forte.”
(Friedrich Nietzsche)

ESENHAR
um livro de Furtado é um se arrincoam as ditas ciências”; e o re-
R grande desafio, ainda mais o livro sultado são páginas escritas a partir dos
em questão. Dada a riqueza e a profun- diálogos que “mantemos incessante-
didade das discussões que propõe, certa- mente com as sombras que entrevemos”
mente cada leitor faria um recorte dife- (p.33).
rente com toda a propriedade. Furtado Esta é uma nova edição do livro escri-
é um autor que, cada vez que relemos, to em 1978. Apesar do seu óbvio valor
percebemos elementos que não tínha- histórico, o que o torna fundamental é
mos em conta antes. a atualidade das discussões. É uma obra
Criatividade e dependência da civili- essencial de Celso Furtado, republicada
zação industrial, como outros livros de exatamente em um momento em que a
Furtado, é uma obra nascida da alma do questão do desenvolvimento volta ao de-
autor, escrita com paixão e profundida- bate acadêmico e político diante da crise
de, surgida da necessidade de refletir e das políticas liberalizantes levadas a cabo
buscar respostas para o problema do de- ao longo dos anos 1990, crise essa con-
senvolvimento em economias periféricas. cretamente sentida nos mercados finan-
Trata-se de um trabalho reflexivo que ceiros norte-americanos e mundiais. Sua
envolve toda a complexidade e a contra- atualidade também se manifesta pelo fra-
dição presentes no tema, passando da casso das mesmas políticas em promover
razão instrumental civilizatória de Kant o desenvolvimento da América Latina.
à angústia de Nietzsche ante um mun- Torna-se um livro ainda mais funda-
do que “subordina os fins aos meios” mental diante do aparente sucesso da “via
(p.202-3). chinesa”, que constituiu uma estratégia
Furtado se pergunta – talvez vagando de construção do que Furtado chama
com um “andar sozinho, de vagabun- “civilização industrial” como nação so-
dear como um lobo solitário...” (Furta- berana, possibilidade que já apontou no
do, 1992, p.22), como um Jean-Jacques livro. Discute a já então conhecida estra-
Rousseau, refletindo nas ruas de Paris – tégia japonesa de desenvolvimento que
o que impedia as economias periféricas elevou o país ao rol dos desenvolvidos e,
latino-americanas de se desenvolverem como sabemos, constituiu o pólo hege-
plenamente. Como aponta no prefácio, mônico oriental do capitalismo mundial,
“O fio condutor é a perplexidade do au- lugar hoje disputado pela China. Assim,
tor em face do mundo de sombras que tem muito a contribuir com a discussão
contorna as minúsculas clareiras em que atual.

ESTUDOS AVANÇADOS 22 (64), 2008 327


Em seus artigos dos anos 1950-19601 aprofundadas de forma madura nesse li-
sobre o tema do desenvolvimento, ain- vro escrito em 1978. Ao que parece, sua
da muito envolvido no pensamento ce- preocupação teve origem nos chama-
palino, Furtado estava preocupado em dos “debates de Santiago” (cf. Furtado,
justificar economicamente a necessida- 1992), onde se reuniam exilados da dita-
de da industrialização da periferia como dura para discutir os problemas que im-
uma forma de ingresso no mundo de- pediam o desenvolvimento. E, como o
senvolvido. Apontava ser essa a fórmula próprio Furtado aponta, foram questões
para a criação na periferia de um fluxo que o atormentaram em suas andanças
de acumulação dinâmico endógeno – na Europa e nos Estados Unidos. Havia
produção-renda-consumo –, o modo de ocorrido a industrialização, mas essa se
superar a lógica primário-exportadora constituiu em um acesso indireto à “ci-
que caracterizava as economias dos paí- vilização industrial”, vinculada a relações
ses latino-americanos, talvez capaz de internacionais e ao movimento do capital
torná-las desenvolvidas. mundial, com características específicas,
É interessante como, já a partir de que mantém a economia inserida em
meados dos anos 1960, após a enorme uma lógica dependente. O próprio esfor-
onda industrializante na periferia, Furta- ço de industrialização teria sido reflexo
do passa a se questionar sobre a estra- da expansão do capitalismo no centro do
tégia empreendida.2 Foi um sucesso em sistema para a periferia, e não a constitui-
industrializar a periferia, mas não havia ção soberana da “civilização industrial”.
eliminado as relações de dependência; Essa forma de inserção se materializa na
ao contrário, elevou-as a um novo pa- lógica industrializante fundada no pro-
tamar. A nova dependência configurava- cesso de transposição de grupos trans-
se como tecnológica e, como destacava, nacionais a partir do centro; portanto,
estava ligada a componentes culturais. A subordinada ao grande capital.
estrutura industrial criada por substitui- É por isso que a periferia não conse-
ção de importações, com tecnologia im- gue reconstituir a “civilização indus-
portada, baseava-se na produção de bens trial” e mantém-se como um apêndice
de consumo de elite, implicando uma dela. As estratégias japonesa e soviética
forte concentração de renda. A indus- foram diferentes. Segundo o autor, bus-
trialização da periferia teria entregado a caram uma via de desenvolvimento em
dinâmica industrial a grupos transnacio- razão de um projeto de afirmação na-
nais. Simplesmente transplantou estru- cional e, por isso, conseguiram assimilar
turas produtivas e tecnologias modernas de forma integrada e ao mesmo tempo
criadas no centro para a periferia sem soberana, pela força do Estado organi-
gerar mecanismos de apropriação sobre zador, as mesmas transformações sociais
essa tecnologia, sem recriar internamen- que constituíram as bases formadoras da
te a lógica central do que denomina, no estrutura produtiva e social européia. A
livro em tela, “civilização industrial”, periferia latino-americana não traça o
fundada em uma relação amalgamada mesmo caminho. Sua estratégia modi-
entre cultura, criatividade e tecnologia. fica a relação centro-periferia primário-
Talvez tenha sido a partir desse ponto exportadora, mas não consegue superar
que nasceram em Furtado as indagações a dependência.

328 ESTUDOS AVANÇADOS 22 (64), 2008


Furtado então se pergunta: em que de trabalho; toma a iniciativa da acumu-
se constitui a “civilização industrial” lação, orienta a criatividade para a mo-
que a periferia latino-americana pene- dernização constante, transformando-a
tra de forma indireta e subordinada? em tecnologia; e controla a comunidade
Claro, trata-se da base constitutiva da com fins da acumulação. Mas, aponta
sociedade burguesa capitalista, mas não Furtado, se a sociedade fosse constituída
basta colocar a questão dessa forma, é apenas pela existência da grande empre-
preciso aprofundá-la. Para Furtado, a sa, o resultado seria a concentração de
“civilização industrial” é o resultado de riqueza e poder e não se criaria o padrão
uma transformação social que subordina de consumo necessário à própria acumu-
a força física e a capacidade intelectual, lação. Assim, de outro lado estão as ins-
criativa, à lógica da acumulação de rique- tituições sociais constituídas pelos traba-
za. Está relacionada a uma estrutura de lhadores organizados em sindicatos que
poder ligada à ideologia da acumulação, lutam pela distribuição social dos frutos
à racionalidade instrumental para a orga- do crescimento da produtividade que a
nização da produção que condiciona o acumulação engendra. Portanto, avanço
desenvolvimento das forças produtivas e tecnológico e padrão de consumo andam
a própria sociedade. Assim, acumulação, juntos. Por fim, o Estado surge como
criatividade, técnica, cultura e padrão de elemento central. Constituído historica-
consumo constituem-se em um meca- mente, é o responsável pela articulação
nismo lógico fundador da organização desses dois sistemas de forças antagôni-
social criada pela civilização burguesa, cos que garantem a própria sustentação
pela Revolução Industrial. No desenvol- histórica da lógica capitalista (p.53).
vimento real, o fluxo dinâmico ultrapas- Essas são as bases da idéia de desen-
sa em muito seu aspecto simplesmente volvimento em que se funda a civilização
econômico presente em seus primeiros industrial. Desenvolvimento visto como
estudos. capacidade de criar soluções originais
Existe, portanto, nas sociedades sur- para problemas específicos que resultam
gidas do capitalismo industrial, uma em mudanças sociais e extração de ex-
relação estrutural entre o grau de acu-
cedente. É “um processo histórico cuja
mulação alcançado, o grau de sofis-
ticação das técnicas produtivas e o dinâmica se apóia na inovação técnica
nível de diversificação dos padrões de (fundada na experiência empírica ou em
consumo dos indivíduos e da coletivi- conhecimentos científicos) posto ao ser-
dade. (p.64) viço de um sistema de dominação social”,
A constituição material concreta dessa capaz, pela acumulação que daí resulta,
civilização industrial está estruturada na de transformar as estruturas sociais e as
relação entre a grande empresa, a organi- formas comportamento (p.83). Portan-
zação social e o Estado Nacional. A gran- to, é o resultado da subordinação da cria-
de empresa concentra o poder econômi- tividade – algo que não reproduz o exis-
co e o controle sobre os mercados. É tente, mas fundamenta-se em ampliar o
ela a responsável pela hierarquização das campo do possível – a uma racionalidade
relações sociais que condicionam o com- instrumental que amplia a acumulação.
portamento humano para a produção; Nesse sentido, desenvolvimento é o
disciplina, junto com o Estado, a força acesso à civilização industrial. Mas como

ESTUDOS AVANÇADOS 22 (64), 2008 329


os países de industrialização retardatária formado por oligopólios ou monopólios
poderiam construir essa ponte de acesso? controlados de fora. Funda-se, portanto,
Para Furtado, não existe uma tipologia em padrões culturais e de consumo que
ou uma fórmula preconcebida, um mo- não se constroem na periferia e aos quais
delo. Tomando os exemplos de acesso apenas uma elite tem acesso. Por isso,
soberano do Japão e da ex-União Sovié- convivem formas modernas transplan-
tica, o autor encontra alguns pontos em tadas do centro com atrasadas constitu-
comum importantes: a forte participação tivas da periferia; uma elite de padrões
do Estado Nacional dominado por uma europeus convive com uma população
ideologia modernizante, atuando com pobre em setores tradicionais. Assim, a
os mesmos critérios de racionalidade e relação empresas, organização social e
controle social presente na estratégia das Estado já nasce truncada.
grandes corporações, com toda a racio- Dessa forma, pode-se facilmente no-
nalidade instrumental que as caracteriza. tar que esse processo é totalmente dife-
Assim, esses países encontraram o cami- rente do que Furtado denomina civili-
nho mais curto para transplantar a civi- zação industrial constituída na Europa.
lização material já existente na Europa, “As transformações estruturais são um
construindo um acesso direto à civiliza- esforço de adaptação em face do trans-
ção industrial, não independente, mas plante maciço de técnicas geradas em so-
soberano, na medida em que internali- ciedades que se encontram em fase bem
zaram sua lógica por completo: acumu- mais avançada de acumulação” (p.109).
lação, criatividade, tecnologia, cultura e E por isso convivem padrões sociais das
padrão de consumo. Criaram estruturas sociedades avançadas com a pobreza pe-
industriais próprias a partir do controle riférica. Na periferia, a idéia de desen-
do Estado. volvimento fundou-se em uma forma
Essa não foi a estratégia e a história específica de aliança com a civilização
das periferias em situação de dependência industrial, elevando a dependência. Esse
que, como afirma Furtado, realizaram o processo foi, para Furtado, o resultado
“acesso indireto à civilização industrial”, de um pacto de interesses (interno e ex-
como uma decorrência das próprias re- terno) fundado numa idéia de progresso
lações históricas de dependência centro- que cimenta uma “superideologia” em
periferia. Esses países realizaram sua mo- defesa do desenvolvimento pela simples
dernização pela transposição da cultura atração de Investimento Direto Estran-
e da criatividade que se constituem em geiro, de empresas transacionais com
tecnologia, originárias do centro. A in- tecnologias prontas. Essa ideologia não
dustrialização tardia resultou na produ- leva em conta que desenvolvimento é o
ção local controlada por filiais e subsi- resultado de um processo cultural abran-
diárias de grandes grupos transnacionais gente. Tem por base a idéia de que a
que têm sua base de decisão e produção transferência pura e simples de tecnolo-
de tecnologia no centro, e que, na ver- gia recupera o tempo perdido.
dade, queriam, além dos mercados pe- A dependência deve ser percebida ini-
riféricos, se livrar do controle social ao cialmente como um conjunto de traços
qual estavam submetidos no centro. estruturais que emergem da história: a
Assim, o capitalismo periférico já nasce forma de inserção no sistema de divi-

330 ESTUDOS AVANÇADOS 22 (64), 2008


Foto Associated Press/John Rous - 14.7.1961
O presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy (1917-1963), e Celso Furtado (1920-2004),
então diretor da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), durante reunião
realizada em 14 de julho de 1961, na Casa Branca, Washington D.C. (EUA).

são internacional do trabalho gerando processo antes exposto, o controle ins-


atraso relativo no desenvolvimento das trumental sobre a criatividade e a cultura
forças produtivas; a industrialização em escala global. A industrialização sob
supeditada pela modernização refor- essa estrutura só poderia ter conduzido à
çando as tendências à concentração de periferia a formas modernas de servidão,
renda; a necessidade de importar cer- como aponta o autor, fornecendo com
tas técnicas facilitando o controle das sua mão-de-obra barata, avaliada na pe-
atividades econômicas pelas empresas
riferia, produtos sofisticados ao centro,
transnacionais. (p.146)
com valor social definido por padrões
Essa forma de inserção da periferia só dos países desenvolvidos.
poderia resultar na ampliação da depen- E como superar essa situação de de-
dência cultural, da criatividade dada por pendência que se emaranha na cultura,
outros, transpondo para a periferia tec- mas que está concretamente dada pela
nologia e produtividade do centro. Ain- estrutura? Essa é a questão central posta
da mais, aponta Furtado, tem sua lógica por Furtado, extremamente atual. Seria a
totalmente fundada em capitais trans- solução elevar a subordinação e aprofun-
nacionais que detêm, pela natureza do dar o mecanismo como, aliás, proposto

ESTUDOS AVANÇADOS 22 (64), 2008 331


por um dos membros presentes nas dis- dependência não é senão um aspecto do
cussões do grupo de Santiago, e que, ao processo de desenvolvimento, e este não
tornar-se presidente do Brasil nos anos existe sem a liberação da capacidade cria-
1990, aprofundou as relações de depen- dora de um povo.” Como a tecnologia
dência? Mas, pergunta-se Furtado, seria constitui a expressão final da criativida-
solução isolar-se? Sua resposta é direta: de humana, sua libertação constituiria o
não existe essa possibilidade. Tampouco caminho. Mas como confrontar a forma
seria a subordinação completa (finamen- como essa criatividade é na civilização
te denominada “associada”). A solução industrial apropriada e monopolizada
para ele é “modificar as relações de força pela grande empresa transnacional? Co-
que são substrato da ordem econômica mo libertar-se desse fato? Essas não são
internacional. A luta contra a dependên- questões resolvidas por Furtado. Ele crê
cia passa [...] por um esforço para modi- que seja possível diminuir a dependên-
ficar a conformação global do sistema” cia “mediante a utilização de combina-
(p.149), o que seria possível dado o lu- ções adequadas de outros recursos, ou
gar importante que a periferia ocupa no da massa crítica”. Talvez a resposta que
sistema. Furtado nos daria seja: precisamos des-
A estratégia passa pelo controle sobre cobrir pela criatividade.
recursos de O mais interessante é que Furtado
poder em que se assenta a chamada termina o livro com uma última reflexão
ordem econômica internacional: a) o fundamental evocando Kant e Nietzs-
controle da tecnologia; b) o controle che. Pergunta-se: é isso mesmo? A ins-
das finanças; c) o controle dos merca- talação da civilização industrial é mesmo
dos; d) o controle do acesso às fontes um fim? Subordinar toda a sociedade a
de recursos não renováveis; e e) o con- essa lógica não a estaria levando a um
trole do acesso à mão-de-obra barata. despenhadeiro que suprime a própria
[...] A luta contra a dependência não criatividade humana já subordinada à
é outra coisa senão um esforço dos razão instrumental, ou o homem, ao
países periféricos para modificar essa
processo de acumulação de capital? Não
estrutura. (p.151)3
se estaria conduzindo à “mediocrização
Pode-se dizer que o controle da tec- da sabedoria e ao empobrecimento da
nologia está no centro da questão, dado vida”? “As forças que em nossa civiliza-
que “é o recurso mais nobre” e no qual ção engendra a difusão da racionalidade”
se fundamenta a dependência; é a “trava não estariam conduzindo “concomitan-
mestra da estrutura de poder internacio- temente à destruição da criatividade hu-
nal”. Mas controlar os outros elemen- mana”?
tos favorece essa empreitada. A saída é Apesar de colocar essas questões di-
reunir “recursos de poder para neutra- retamente como riscos em operação na
lizar ainda que parcialmente o peso da civilização industrial, talvez sua resposta
dependência tecnológica – eis a essência seja negativa a todas elas. Acompanhan-
do esforço que realizam os países perifé- do Nietzsche, aponta a condição supe-
ricos para avançar pela via do desenvolvi- rior do homem – um criador por natu-
mento” (p.160). Resgatar a criatividade reza – como a chave para a capacidade
é o elemento central. “A luta contra a de libertar-se daquilo que constrange,

332 ESTUDOS AVANÇADOS 22 (64), 2008


birinto borgiano”. O homem é afastado
de sua criação, o que constitui “a ma-
nifestação mais dramática de sua aliena-
ção” (p.208). Perdeu, assim, de fato, o
controle sobre sua criação. Está preso
nas engrenagens por ele mesmo criadas.
“É livre para se ver nas engrenagens, mas
não o suficiente para escapar delas.” Di-
ga-se de passagem que essas conjecturas
referem-se tanto ao centro como às con-
dições criadas na periferia.
A saída para Furtado está na organiza-
ção social, também um resultado da cria-
tividade humana. Ainda em plena ditadu-
ra militar e no exílio, Furtado acreditava
e defendia a ação política, como forma de
FURTADO, Celso. Criatividade e dependência
modificação do homem, do mundo, das
da civilização industrial. São Paulo:
Cia. das Letras, 2008. 224p.
relações de dependência, mas uma ação
pelo seu veículo fundamental: o Estado.
Para ele, a raiz dos problemas está na fal-
ta de coordenação que a transnaciona-
de romper com o estabelecido por meio lização, ou globalização, do capitalismo
da criatividade “que outra coisa não é se- cria no sistema, dificultando a ação cria-
não o verdadeiro humano” (p.206). “A tiva em busca de saídas, subordinando
liberdade humana projeta-se [...] num tudo à lógica da acumulação, no centro
plano epistemológico que escapa às ‘leis e na periferia. O homem depende, por-
naturais’ explicativas de uma realidade a tanto, da única coisa que lhe resta e que
priori reduzida...” O homem tem a fa- se manifesta como liberdade: a política,
culdade de transformar-se, afirma. o “único espaço em que a civilização
O fato de a criatividade gravitar em industrial floresceu autêntica atividade
torno da acumulação seria uma carac- criadora”. A única forma é conquistar o
terística específica dessa civilização in- controle político sobre as atividades eco-
dustrial, do capitalismo que transforma nômicas, e isso passa pelo Estado.
tudo em mercadoria e a criatividade em Segundo Furtado, é a própria capa-
meio de acumulação. Essa não é uma ca- cidade de percepção do homem, essa
racterística natural imutável. A própria situação de estranhamento em que se
inovação sempre teve como seu funda- encontra diante de sua criação, que lhe
mento original ampliar o horizonte e permite a capacidade de reação. Sua his-
as possibilidades humanas, afirma o au- tória não acabou. Talvez pudéssemos
tor. De forma contraditória, o sistema tomar a idéia de Nietzsche: o homem é
da civilização industrial se funda sobre predestinado a ser livre. Sua criatividade
a criatividade ao mesmo tempo que a não segue um determinismo causal; ao
restringe à criatividade utilitarista, apri- contrário, é capaz de eliminar todas as
sionando a liberdade humana “num la- formas de determinismo.

ESTUDOS AVANÇADOS 22 (64), 2008 333


Tudo se passa como se o homem hou-
vesse desesperado de “aperfeiçoar”
as engrenagens que criou, de criticar
a razão a partir da própria razão, de
defender-se da técnica com mais téc-
nica. E para mudar o rumo, volta às
próprias origens, retoma contato com
suas dimensões secretas, assume a ple-
na lucidez. E toma pé no fundamen-
tal, na essência humana, que é a ânsia
de ser livre. (p.229)

Notas
1 Cf. Furtado (2000), que agrega ensaios
escritos entre 1952 e 1966.
2 Cf. Furtado (1978), que agrega ensaios
escritos entre 1964 e 1968; e Furtado
(1996), com ensaios escritos entre 1972
e 1974 nos Estados Unidos.
3 Talvez, tudo o que a China esteja bus-
cando fazer.

Referências bibliográficas
FURTADO, C. A hegemonia dos Estados
Unidos e o subdesenvolvimento da América
Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 1978.
_______. Os ares do mundo. São Paulo: Paz
e Terra, 1992.
_______. O mito do desenvolvimento econô-
mico. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
_______. Teoria política do desenvolvimento
econômico. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

Rubens R. Sawaya é doutor em Ciência


Política, mestre em Economia Política,
professor do Departamento de Economia
da PUC-SP e autor do livro Subordinação
consentida: capital multinacional no pro-
cesso de acumulação da América Latina e
Brasil (Annablume, 2006).
@ – rsawaya@uol.com.br

334 ESTUDOS AVANÇADOS 22 (64), 2008

You might also like