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Capítulo 7

o quase-parentesco: xarás,
pais de criação e amigos

Introdução
Fortes sublinhou que a essência do parentesco reside na amililia e nJ
moralidade que detenninJ que os envolvidos partilhem a SUJ vida sem
"ca!culismos» (1969, 23&). Em dois artigos tornaclos cLíssicos (incluídos
em]. Goody 1973b), Maurice Bloch e Julian Pitt-Rivers trataram deta-
lhachmente dos conceitos de moralidade e amititia, respectivamente.
Bloch defende que os laços de parentesco, por causa da moralidade que
subjaz às rélações entre 'Parentes, são adaptáveis, «não específicos e de
longa duração» (1973, 86). Pitt-Rivers nota que o termo amililia tem
relação com a palavra «amizade» (1973, 89). Foi largamente devido a estas
sugestões que decidi incluir as instituições do xará e da amizade espe-
cial nesta parte m, que trata, em termos gerais, cio paren [esco. A institui-
ção do xad, em particular, tem aspectos que a assemelham JS Jlianças
formadas pelo casamento e as complementam, pelo que faz sentido que
seja tratJda logo depois do capítulo dedicado ao CJsamento e à aliança.
No «meio ambiente» dos chopes, estas duas instituições constituem
as componentes mais importantes das «estruturas alternativas» (ao pa-
rentesco agnático) disponíveis como recursos sociais. Dão origem a um
conjunto de relações sociais que, em alguns aspectos, se assemelham a
laços de parentesco e que, em consequência, são formuladas no idioma
do parentesco. A estrutura do parentesco é, 'lSSim, complementadJ por
essas instituições, que se lhe assemelham em aspectos importantes:
criam laços que têm J permanência e as bases morais características do
p;uentesco; tal como a a:finidacle ou JS normJS exogâmicJs, responsáveis
pela dispersão elas alianças, estes costumes constituem uma forma de es·
tabelecer novas alianças. No entanto, as duas instituições são significa-
tivamente diferentes do parentesco, pois, ao passo que os laços de
parentesco são (geralmente) herdados (ainda que no caso chope haja A atribuição do nome às crianças é feita numa cerimónia que ocorre
margem para a escolha e a manipulação na utilização desses parentes duas a três semanas depois do nascimento. Até esse momento a mãe e
atribuídos), os laços de quase-parentesco são alcançados. Não derivam o recém-nascido permanecem isolados e mesmo o marido deve evitar o
do nascimento, mas antes da acção voluntária dos envolvidos. contacto com eles durante essa fase. Na cerimónia, a que assistem pa-
As instituições do «xará» (que implica que as pessoas com o mesmo rentes e membros da vicinalidade, é distribuída comida e bebida e é
nome próprio se tratem entre si por nyadine) e da amizade especial (em nessa altura que a mãe e a criança saem da casa onde estavam retiradas.
que os amigos se tratam por ndom) podem ambas ser usadas como estra- O pai pega na criança e anuncia o nome próprio que esta tomará e que
tagemas no «jogo» social, já que a decisão sobre quem será o xará do terá sido decidido anteriormente por meio da consulta de um adivinho
filho ou filha costUll1õl resultar de uma consideração táctica baseada n~l (nyaris!J!o!o).
avaliação que a pessoa faz do estado da sua rede social nesse momento A cerimánia de atribuição do nome tem por objectivo a apresentação
determinado e, em particular, dos pontos onde esta poderá precisar de da criança à sociedade. É um rito de passagem, no qual, pela primeira j
reforço. I vez, a criança adquire a sua humanidade e a sua personalidade sociaL'
Contudo, há que reconhecer que a decisão pode não depender de Até este momento não passa de uma «coisa» sem estatuto, ao passo que
qualquer estratégia, já que o protagonista poderá não desempenhar . depois de lhe ser atribuído um nome passa a pertencer à f.1mília, ao
qualquer papel político - a escolha do amigo ou do xará dever-se-á grupo de descendência e à vicinalidade. A cerimónia integra um acto de
então unicamente a critérios de emoção e afeição. Não havendo qual- libação e o sacrificio de uma galinha aos antepassados do pai, feitos
quer propósito político neste último caso, e sendo assim formada uma junto ao altar que existe no domicílio. Nessa altura, a criança é apresen-
aliança, esta será considerada uma feliz coincidência. Neste sentido, não tada aos antepassados e é solicitada a protecção destes. 2 Todos os pre-
pretendo afirmar que estas instituições originam necessariamente sentes participam no ritual, aplaudem respeitosamente, invocam os
alianças cuidadosamente escolhidas com base em estratégias subja- nomes dos seus próprios antepassados e dedicam a sua atenção ao novo
centes. Limito-me a apresentar os dados, salientando que estas institui- membro da sociedade.
ções dão efectivamente azo a alianças, podendo de facto ser geridas e Entre os participantes estará em lugar de destaque a pessoa cujo
manipuladas, e que um indivíduo ambicioso tem consciência disso, nome a criança tomou (no caso de o adivinho ter indicado que a von-
pelo que as usa como recursos políticos. tade dos antepassados da criança incidia sobre ulTla pessoa viva, e não
Este capítulo encontra-se dividido em duas partes: a primeira, mais sobre um ascendente já falecido). Essa pessoa, que passa agora a ser o
vasta, é dedicada à instituição do xará, enquanto a segunda trata da elemento mais velho da díade de xarás, actuará a partir desse momento
amizade especial. A instituição da atribuição do nome próprio incor- como pai ou mãe suplementar da criança. Espera-se que ela seja extre-
pora uma espécie de co-parentalidade e guarda da criança, que anali~a- mamente indulgente para com a criança que recebeu o nome e, espe-
rei com algum detalhe, a par dos efeitos dessa forma de criação na SOCla- cialmente, que acompanhe o seu desenvolvimento, ofereça presentes e
lização da criança. As implicações estruturais do costume do xará, roupas aquando dos seus rituais de iniciação e dê apoio nos momentos
especialmente enquanto forma de aliança suplementar, serão também críticos do seu ciclo de desenvolvimento. O membro sénior da díade é
discutidas. A prática da amizade especial é, em vários aspectos, bastante uma espécie de patrono e, ideal mente, tornar-se-á pai ou mãe de criação
semelhante à instituição do xará, podendo também ser usada como do membro júnior, chamando-o para viver no seu domicílio.
mecanismo para a criação de uma aliança.

2 Depois disto, na primeira visita que a mulher fizer à casa do seu pai levará a
I As implicações estruturais lb (onnaç;lo das alianças siio abordadas adiante neste
cri3nça e apresentá-Ia-à também aos antepassados maten(os, numa cerimónia simples
capítulo. O conceito rle .força- ser.i aí explicitado.
em tomo de uma libação.
Durante o trabalho de campo comecei por notar a importância dos usado para as crianças do sexo masculino, o segundo para as do sexo
vários tipos de nomes quando estava a recolher as genealogias. feminino. Mas nem sempre assim acontece, pois o resultado deve soar
Surpreendeu-me o facto de os informantes, na enumeração dos descen- harmoniosamente. 4
dentes, se referirem quase sempre aos filhos mortos pelo nome do seu A criança recebe ainda dos pais outro nome próprio, geralmente da
xará, enquanto os filhos vivos eram geralmente identificados por um mãe, um nome relacionado com algum acontecimento ou alguma ideia
outro dos três ou quatro nomes próprios que cada indivíduo detém. que ocorreu quando a criança nasceu ou perto desse momento. Assim,
Tomou-se claro que o informante escolhia conscienciosamente o nome há urna mulher que se chama Rolwe (que vem de lar ro/wa, encontrar)
usado porque, em primeiro lugar, este era o nome que se consideraVa porque a mãe encontrou dinheiro na rua no dia em que ela nasceu; há
aprovndo pelos antepassados e, em segundo lugar, indicava o lugar do uma criança a que foi dado o nome Imani (que vem de imani, quem?)
descendente no sistema soci<ll e o seu papel numa rede de alianç<ls, porque se desconhecia a identidade do pai; um rapaz tem o nome
n~ste caso em tomo dos pais e do xará do filho. Quando este tipo de Kauwe (kau significa macaco) porque quando nasceu a mãe pensou que
aliança (com os xarás) acaba por morte da criança, não é normalmente a sua cara fazia lembrar um macaco. Este nome é uma espécie de nome
renovado com outra cri<lnça. Acredita-se que a morte ocorreu porque, carinhoso pelo qual a cria1"!çaé designada nos primeiros tempos de vida
por qualquer motivo, os antepassados não aprovaram a escolha do x<ld (em vez do nome do nYfldim) e é freqlJentemente usado como nome de
e, por conseguinte, a aliança que ele transmitia Vá que nem todas as referência quando se fala de alguém que não estiÍ presente. É este nome
atribuições do nome são sancionadas por um adivinho). Da mesma próprio, muitas vezes, que passa para o xará mais novo, com a adição
maneira, os homens referem-se geralmente às suas mulheres anteriores do sufixo adéquado (assim, para retomar os exemplos mencionados, o
(de quem se separaram por morte ou divórcio) apenas pelo nome do nome da xad de Rolwe é Rolwane, o xará de Imani é Imanyan e o xará
clã, recordando assim também a aliança formada pelo casamento. de K.1uwe chama-se Kauyan). Raramente é dado à criança o nome do
O indivíduo chope tem vários nomes (pelo menos seis). Quatro são nyadine (xará) do seu xará; trata-se de urna relação pessoal, diádica, que
nomes "próprios», aosquais são acrescentados, quando se d,í o nome termina com a morte de uma das partes e não é transmitida a outras
completo, um nome próprio do pai e um nome de clã (cbibongo), por gerações por meio da mesma instituição.
esta ordem. O nome dopai é referido porque é uma forma de indicar Dos dois nomes que o indivíduo escolhe para si mesmo, o primeiro
o lugar do indivíduo no 'grupo de parentesco. O cbibongo, herdado do é o rlina da k1t/cre (nome de circuncisão). É o nome escolhido pelo rapaz
pai, por vezes inclui a indicação da área de residência. Isto ocorre quando se encontra isolado na casa de iniciação 5 e pelo qual é tratado
~orque os clãs estão dispersas e, por vezes, é necessário (dependendo da depois de sair dos ritos da puberdade com o novo estatuto de jovem
sItuação) apresentar a localização - por exemplo, Nkome kfl Nj'fllsiku adulto. É significativo que seja ele próprio a escolher o nome, pois isto
(Nkome de Nyatsiku).
denota a sua independência e responsabilidade enquanto adulto. Este
Geralmente, os quatro nomes próprios consistem em dois atribuídos "nome de circuncisão" é frequentemente também o nome que é esco-
pelos pais e dois escolhidos pelo próprio indivíduo. Dos nomes rece- lhido para dar a um xará.
bidos, um é o dina da lis/;/olo, o nome dos ossos (oraculares), que quase O segundo dos nomes escolhidos pelos próprios indivíduos é o dilUi
sempre é também o nome do xará. Este nome é geralmente escolhido da mulungu (nome de branco) ou dina da chicolo (nome de escola). Se a
p.elos pais, .n~ maioria das vezes pelo pai, que depois consulta o seu n)Ja- crinnça vai à escola e/ou jfica sob a alçada de uma missão, frequente-
Ilsb!O/O (adlvmho) para sabcr se os antepassados consideram o nome
aceitável. 3 Se os ossos indicam que a criança deverá receber o nome da
irmã do pai, por exemplo, toma-se um dos nomes próprios dessa mu- 4 Nem sempre é possível formar um nomc que corresponda ao sexo da criança; por
exemplo, se a menina tomou o nome de uma mulher chamada l-!embi, çhamar-se-;Í
lher e acrescenta-se-Ihe o·sufixo -yane ou -"l.fJane; o primeiro é geralmente
l-Icmbiyane, porque o sufixo -Wilne n:io se adequaria foneticamente 01 raiz.
s Ás (';1<;1..1 ,Il- circlll1(is:in c't:ia a tornar-se cada vcz mais rar:l5, mas a maioria dos
hOJlll'I1S ;lilld,l prdl'rl' sn CinClltlci<i.ll/;l, adopt:IIHlo tllll HIHHt1l' de CirClltlcis;ioll, A inici:l-
J H:i :CrlOS eSlra!a~ernas que s:i<: empregues J este respeito e (jue Oln:lli.so ;ldi:lnte ç:io djs mulheres é hoje muito rara, mas também elas continuam '1 assulllir um novo
neste capitulo, na secç.\o sobre a "aiJo1l1ça".
nome n;l altura da puberdade.
mente toma um nome europeu, geralmente português, ou um nome de
baptismo da Igreja. A maioria dos homens que trabalham nas minas da
África do Sul também assume um «nome de branco» relacionado com
a experiência nas minas. Nomes como Kalichi (<<vagão»ou «coragem»), Tishlo!o (nome oracular; nome uo xará) Holoryane
Handele (<<manípulo"),Chipechelo (<<especial»)e Menete «<minuto») são Nome recebido j n;]scenç;\ Chindum,lne
comuns e por vezes usados como o nome a dar ao xará. Estes nomes Nome de circuncisão Ntumbetumbe
são geralmente assumidos como indicativos de que o homem provou o Mu!ungu (••nome de branco») Chipechelo
Nome do pai Saule
seu valor trabalhando nas minas.
Nome do clã Nyakwaha
Para dar um exemplo do sistema de atribuição dos nomes, apresento
no quadro 7.1 o caso de Chipechelo Nyakwaha e de todos os seus
nomes. adivinho. Está a tornar-se cada vez mais frequente também que os pais
Pelo quadro 7.1 pode ver-se que a recolha das genealogias é por vezes se limitem a dar à criança o nome de alguém sem consultar um nytl-
dificil, pois quando um informante designa um parente pode escolher tishlolo. Não é necessário pedir permissão à pessoa de quem a criança to-
apenas um dos quatro nomes próprios (pode até só conhecer esse único mará o nome, mas considera-se que é de boa educação informá-Ia dessa
nome, se o parente for distante ou já tiver morrido). Outros informantes intenção, já que, de qualquer forma, se espera que o xará assista à ceri-
poderão seleccionar outro dos nomes próprios para referir a mesma pes- mónia de atribuição do nome. Não há memória de alguém ter recusa-
soa, o que se torna confuso quando se procura cruzar as genealogias.6 do um xará; considera-se que é uma honra, sancionada pelos antepas-
A escolha de um nome em detrimento dos outros quando a pessoa se sados, e que, de qualquer forma, traz algumas vantagens para o
dirige ou se refere a outra, ou mesmo quando fala de si mesma, é feita elemento mais velho.
em função da situação específica: a pessoa escolhe o nome que consi-
dera adequado naquela ocasião. 7 Na análise que desenvolvo neste capí-
tulo será tratado apenas o nome do xará. Os pais de criação
Qyando um homem pretende dar a um filho o nome de alguém, de-
verá procurar o acordo dos antepassados. Isto é feito por um adivinho, o que faz com que a instituição do xará não seja meramente um
que poderá dizer ao pai se o nome escolhido agrada ou não aos ante- meio particular de adquirir um nome (como acontece noutros casos de
passados. A autorização destes é necessária na medida em que não raras povos da África austral) 8 é o facto de, se a criança tomar o nome de uma
vezes a criança toma o nome de um antepassado já falecido e se con- pessoa viva, esta ter o direito de a reclamar como filho ou filha de cria-
sidera que adquire alguns traços de personalidade dessa pessoa (referi ção aos 4 ou 5 anos de idade. Se isto acontecer, a criança irá viver com
atrás, a este propósito, que, se o bebé chora constantemente, se julga o seu xará até à altura em que, como de costume, sairá para casar. Nem
que terá sido escolhido o nome errado). sempre o xará solicita a entrega da criança como filho de criação. Nesses
Se os pais pretendem dar um certo nome ao recém-nascido e o adivi- casos, a criança ficará com os «verdadeiros» pais, mas visitará frequente-
nho determina que esse nome é inaceitável, acontece com alguma rre- mente o xará, muitas vezes por períodos prolongados.
quência que os pais procurem obter o resultado desejado junto de outro Durante o período do meu trabalho de campo, 63%dos domicílios
da minha amostra tinham pelo menos um xará (que tomara o nome do
chefe de família ou de uma sua mulher) a viver com o grupo familiar.
6 Este é, sem dúvida, um factor que contribui para o facto de a amnésia genealógica Só lá estive durante um ano. No entanto, de modo a ter uma visão mais
começar num nível tão próximo de ego. Consequentemente, o sistema toma-se mais alargada, perguntei a todos os informantes a9u1tos se, quando crianças,
flexível, já que a possibilidade de cruzamento dos dados para avaliar o rigor das reivin-
dicações genealógicas é reduzida.
7 Quando estava a recolher as genealogias. quase lodos os informantes começavam
por indicar o seu .nome de branco», pois era o nome que julgavam apropriado quan-
do falavam com um ••branco-.
o quase-parentesco: xarás, pais de criaçiio e amigos

números dos que tomaram o nome de um antepassado ou de um dos


pais, teremos 26 casos, ou seja, 29% da amostra. Isto significa que 71 %
da amostra estavam em situação de poderem, eventualmente, ser
Número
chamados para viver com os xarás e ser seuS filhos de cr~ação. Se vol.tar-
Residiu com o xará moS ao quadro 7.2, verificamos que 57% da a~10stra vlver~m efectlva-
Não resiJiu com o xará
mente com o xará durante algum tempo. ASSim, dos 64 mfonnantes
que poderiam ter sido filhos de criação, SI (79,7%) tiveram efectiva-
mente os xarás como pais ,de criação (ou passaram com c1es longos
Quadro 7.3 - Crianças que tomaram o nome úe pessoas ~~d~. . . -
vivas ou já falecidas Antes de continuar, é necessário clarificar o que slgmfica a expressao
«filhos/pais de. criação», pois há tendência para confundir esta prática
com a da adopção. A diferença entre os dois conceitos reside no .carác-
Xará vivo ter da mudança por que passa a relação da criança com os pais. N.a
Xará j:í filecido adopção, a criança deixa de ter qua.is~uer direitos relativan:en;e aos pais
biológicos e adquire os mesmos dIreitos que um filho «blologlco" dos
seus pais adoptivos. Pelo contrário, a criança que se torna fllho ou fllha
tinham ido viver com os seus xarás Vá que todos eles tinh:lIn efectiva- de criação mantém a sua identidade, os seus direitos e obrigações para
mente, xarás). Como mostra o quadro 7.2, verifiquei que' mais de com os pais biológicos, só passando a estar (temporariamente) à guarda
metade da amostra o tinha feito. 9 de uma família de acolhimento. R. M. Keesing apresenta uma defmição
Na situação hipotétic'a de todas as crianças irem viver com os seus
mínima desta situação, afirmando que «Há acolhimento familiar [· .. 1
xarás, a f.1mília n.uc~ear ficaria desprovida dos seus filhos biológicos,
quando uma criança dependente vive num agregado que não é o da
s~ndo este.s SubStItUI dos pelos xarás do pai e da mãe que houvessem
mãe nem o do pai" (1970, 100S). .
sIdo a~olhldos com? filhos de criação. É claro que esta situação nunca
Keesing especifica ainda alguns dos direitos implicados por este tipO
se venfica, por dOIs motiv~s: de~de logo, porque algumas crianças
de acolhimento familiar: «O filho ele criação mantém aS suas relações
tomam o nome de parentes)a falecIdos; para além disso, algumas crian-
natais e os seus direitos relativamente à propriedade, aOS antepassados e
ças tomam o nome do próprio pai ou da própria mãe, o que significa,
aos parentes. Os pais de criação adquirem alguns dos direit~s, deveres e
em ambos os casos, que a criança ficará na casa onde nasceu. 10
obrigações relativos à criança que os pais biológicos exerciam': (1:70,
O quadro 7.3 mostra que em 13% dos casos efectivos a criança to-
1012).12 Contrastando coin esta descrição das implicações ~a mstltu~-
mou o nome de um antepassado, um parente já f..'llecido, pelo que não
ção dos pais de criação em termos jurídicos, surgem os direItos e obn-
haveria a possibilidade de ser chamada pelo xará como filho de criação.
gações que caracterizam a adopção. Mais uma vez, recorro à exposição
Em 14 outros casos 11 (16% da amostra), as crianças haviam tomado o
n~me de um dos pais, o que resulta também na impossibilidade de de Keesing:
salrem da casa p;lterna para irem viver com o xari Se somarmos os o estatuto juridico cri;lUo pe!;1«adopção» ~ muito diferente [do estatuto
do acolhimento bmiliar]. As relações natais da cri;lI1çae os seUSdireitos re\;)-
tivamente à propriedade, 'aos antepassados e aos parentes cessam. Os pais
adoptivos :ldquirem os direitos, deveres e obrigações para com a cri:lI1çaque
9 Quando perguntei ;10S m:smos. inrormantes se já tinham eles mcsmos consigo. ou
pensavam vir a_ter,o~seus xaras mais ~ovos, 48% responJeram afimlativalllcnle e 52% os pais naturais detinham originalmente [1970, 1013J.
disseram que nao. Nao podemos daqUIconcluir sobre uma tendência detemlinada pois
para alguns deles tratava-se de uma projecção hipotética para o ruturo '
10 .R e fi"
en atras que o d. ador do nome pode, de todos os modos, optar
. por não tomar 12 Embora Keesingse refira ~specificamente aos kwaios, as definiçües que apresenta
o xara como filho de cTl3ção. são aplidveis de rOrm;lgenérica e s:io certamente relevantes para o caso dos chopes.
11 No quadro 7.5 são discriminados todos os tipos estruturais nas relações entre X3rJS.
Com base neste critéri? de dilerenciação das duas categorias, No entJllto, I-Iembiyani, profundamente envorgonhada com a sua
po~emos afirmar que as obngaçãcs consuetudinárias envolvidas na ins- infertilidJde, começou a juntar dinheiro, que conseguia ganhJr apa-
tltUI~ão do xará são c1ar;llnente as do acolhimento familiar. Tanto quan- nhando peixe em redes, colocando armadilhas para crocodilos e cobras
to seI, a adopção não existe entre os chopes, o que corrobora a seguinte para vender as peles e produzindo sope, que vendia com lucro. Com o
afirmação de Jack Goody:
dinheiro ganho nessas suas ;lctividades conseguiu ao longo ele algum
tempo adquirir mais quatro mulheres para o marido, pagando ela mes-
Em Africa, a adopção é rara e o acolhimento familiar (que não implica ma o lobolo de cada uma delas. Três das quatro mulheres provaram ser
u~~ mudança permanente de IdentIdade) é comum. QJando se trocam os
férteis: duas tiveram três filhos e a terceira teve quatro. Um dos filhos
dIreItos a recursos específicos pelos direitos. de nascimento, terá de ocorrer
de cada uma dessas mulheres tomou o nome de Hembiyani: a duas
~ma mudança permanente, e não temporária. Em África não há a possibi-
IJda.d~ dessas trocas; portanto, o acolhimento familiar, combinado com a meninas foi dado o nome Rolwane, derivação de Rolwe (o seu segundo
polIgulla e a herança «corpórea», cumpre grande parte das funções que são nome), e a um rapaz chamou-se Ntsambiyane,que deriva do seu nome
r:servadas. noutros lugares à adopção. Especificamente, pode resolver situa- de clã. Duas dessas crianças vivem actualmente com Hembiyani, es-
çoes de cnse ao proporcionar pais substitutos ou de criação [1969, 75]. tando a terceira ainda com a respectiva mãe, que se separou do marido,
Balanyane (que entretanto morreu); esta vive a alguma distância e não
Pode a~rmar-se, como fez Jad< Goody (1969, 57), que a adopção na se sabe dela há algum tempo.
E~ropa OCIdental cumpre três funções principais: proporcionar um lar às Balanyane morreu em 1968, mas o seu domicílio não se desfez imedia-
c~anças neces.sitadas; proporcionar aos casais sem filhos uma prole «so- tamente. Nenhuma das mulheres foi reclamada com base no princípio de
CIal,,;proporCionar a estes últimos um herdeiro. A sociedade chope tem herança da viúva e Hembiyani tomou-se a chefe de família no domicílio
um Sistema. de parentesco que assume a primeira dessas funções, bem (na verdade, todos os filhos das outras mulheres a tratam por Ia/e, pai). As
como um sIstema de herança lateral que cumpre a terceira. ~anto à se- mulheres parecem ter aceitado esta situação por dois motivos: em primeiro
~nda, também relativa aos casais sem filhos, a instituição dos pais de cria- lugar, o seu preço da noiva havia sido pago por Hembiyani, pelo que, em-
çao ate~ua o. probJe.ma, mas não o resolve, já que os filhos de criação bora ela, enquanto mulher, não tivesse direitos legais sobre as outras, estas
nunca sao aceites SOCialmente como a sua prole «social", embora cumpram julgavam ter para consigo uma obrigação moral; em segundo lugar, para
todas as outras funções dos filhos: a presença nsica no domicílio a ajuda as duas mulheres cujos filho e filha eram xarás de Hembiyani, voltar para
necessária à pro:secuçã~ da actividadc económica, a companhia: AII:,'Uns a casa paterna significava deixar essas crianças para trás. Qlanto às restantes i
I

destes aspectos sao manIfestos no caso 10, qUe apresento de seguida. duas mulheres, uma havia anteriormente deixado o marido e a outra (que)'
não tivera filhos) abandonou o domicílio oito meses depois da morte de
• Caso 10- O caso de uma mulber eSléni e sms jiIlJOS de criação Balanyane. Ao fim de três anos, todas as mulheres haviam acabado por ir
A protagonista deste caso é Hembiyani Ntsambe, uma mulher com 50 embora, deixando Hembiyani com os seus dois xarás.
e tal a~?s, que na~ceu na povoação de Mangane e casou com Balanyane
Nyantm, de Nyatslku. IJ Após algum tempo verificou-se que um dos mem- Análise
bros do casal seri~ estéril; como nessas situações se considera que a culpa é Este é um caso algo excepcional, pois não encontrei mais exemplos
?a mulh.er, os paIs de Hembiyani teriam obrigação de disponibilizar uma de uma mulher estéril que tivesse pago o lobolo para adquirir outra mu-
mnã maIS nova ou uma outra parente próxima. Infelizmente, isto não era lher (na verdade, a protagonista deste caso, Hembiyani, é uma persona-
possível, pois Hembiyani não tinha irmãs e os irmãos do pai recusaram-se lidade notável). 14 Apesar disso, de acordo com os informantes, é comum
a separar-se das r~spectivas. filhas. Perante este impasse, Balanyane esqueceu '. ;
o assunto e contmuou a viver com a sua mulher. ; !
14 Apesar da singu!ariuaue ueste caso e da força de car<Ícter ua protagonista. acreuito
que os princípios aqui postos em relevo são genéricos (o faclo de Hembiyani não ter
sido penalizada parece comprovar a sua aceitabilidade). Julgo que a nalureza dram:ítica
13 O domicílio de I3aiJnyane NY'lIltiri encontra-se no canto superior esquerdo do e incoll1um ueste caso serve para esclarecer alguns dos aspecto.s que de outro modo fi·
mapa 3.1.
cariam na sombr:1.
dar-se o nome de uma mulher infértil a uma criança para que aquela ali durante os três anos seguintes. A natureza destas rebçães (entre
não seja completamente destituída da experiência da maternidade. No Hembiyani e aS duas mulheres) era significativame~te diferente. s seus C:
caso que aqui nos ocupa, Hembiyani recebeu duas crianças (e poten- laços eram ele muito maior proximidade; não havIa apen'ls um vJI1culo
cialmente ainda uma terceira), que para todos os efeitos são seus filhos transaccional, já que o facto de ela «partilhap> com cada UIDa delas um
(pelo menos até à idade de casarem). Dormem com ela na sua palhota, dos filhos ac~escentava um elemento de maior durabilid.jde Ú relaçiío,
ajuda~ n.a cozinha, vão buscar água, trabalham nos campos. embora, sem dÍlvida, se inscreva na natureza de um contrato diádico
Hemblyal1l trata-os com firmeza, mas também com indulgência,' eàos (Foster 1961). Também é verdade que esta relação é ambivalente, pois a
serões entretém-nos com histórias e cantigas. As crianças mostram-se mãe «biológica» deve sentir algum ressentimento por perder (tempo-
satisfeitas e não parecem passar dificuldades. rariamente) um filho para o entregar a outra mulher.
Um aspecto que emerge claramente dos dados recolhidos é que o Outro aspecto que se manifesta neste caso, embora não decorra elos
acolhimento de filhos de criação pode ser um mecanismo para injectar anteriores é a flexibilidade do sistema de parentesco dos chopes, que
vida numa relação estéril. Hembiyani consegue obter todos os benefI- permite q~e a mulher tenha tanta liberdade para alcançar os. seus objec-
cios físicos, psicológicos e económicos que as crianças trazem e, apesar tivos económicos (os lucros das próprias actividades pertcncI~m a I-Ie:n-
de estas nunca passarem a ser consideradas inteiramente seus filhos em biyani, e não a toda a família composta ou sequer ao n:arrclo) .. A m-
termos legais, a relação atinge um certo grau de permanência e, portan- fluência e estatuto que as mulheres podem obter torna-se amc\a eVIdente
to, de segurança pelo [1Cto de ser uma forma institucionalizada de aco- no facto de um dos critérios para avaliar a «importância» das pessoas ser
lhimento f.'lmiliar. o número de xarás que elas adquirem. A acumubção de riqueza econç)- ,
As pessoas idosas também têm de lidar com os problemas da solidão mica, embora seja motivo de muita inveja, provoca um respeitO relu-
e vão tendo cada vez mais necessidade de apoio fisico. Não é de admi- tante, e Hembiyani não era excepção. 15
rar, portanto, que haja um nÍlmero significativo (30 na minha amostra É necessário analisar as funções da parentalidade para compreender
de 158 xarás, ou seja, 19%) de crianças que tomaram o nome de avós cabalmente os aspectos funcionais do acolhimento f~miliar ela crianç~
ou avós c1assificatórios. Verifiquei também que, frequentemente, havia que pode resultar da instituição do xará. Como notoll)E. N. Goody, «ha
netos que tinham ido viver com os avós, ainda que não existisse a ins- vários tipos de elementos a cimentar essa relação~mgLllarmente du-
titucionalização da atribuição do nome. Esta injecção de juveniJidade radoura que une os pais aos filhos (isto é, a parentalic1ac!e)>> (1971".332).
num domicílio que já passou a fase de poder ter filhos, ou que se reve- Os tipos de «cimento» a que a autora se refere são os varroS ]XIP,CIS quc
lou estéril, tem um efeito rejuvenescedor. Do ponto ele vista ela gcr;lção cacb pessoa desempenha \1a díade constituída por pai,ou mãe c fIlho ou
mais velha, não há dúvida de que esta solução é vantajosa. filha. Estes são múltiplos, pois a relação entre P;lIS e filhos cumpre qll;\-
Outro ponto que se reveja aqui é que, mesmo neste caso, em que o tro ou cinco funções da maior importância. Recorramos ainda ~1E. N.
bem-estar social foi obviamente considerado, a instituição do xará é Goody:
muito mais do que um mero exercício de altruísmo. Poder-se-ia afirmar
A relação entre pais e filhos implica vários bços, corrcspOIl~en.tcs ;lS
que Hembiyani «ganhou)) o direito a ter xarás ao ter pago o preço da
muitas funções que cumpre. Qlando a criança fica com os p.lIS bIOloglcos
noiva. A instituição implica reciprocidade; o marido estava em dívida
até à maturidade, estes desempenham todos estes papéis: são gellllar c gOI/-
para com ela pela aquisição das mulheres e procurou «equilibraf» as
lrix; são fonte de identidade e.\tatutária (paler/malo); garantem e dirigem a
obrigações recíprocas dando o seu nome a um dos filhos que teve de
cada uma das outras mulheres. Mesmo após a morte de Balanyane, as .
quatro mulheres que restavam continuaram a viver naquele domicílio IS A sociedade chope parece ter um modelo (mais estatístico do que mcdnico) qu,;
durante algum tempo. A mais nova das mulheres, que não tinha filhos, se Jprox.ima do conceito de Fost~r dJ il11Jgem do bem llf11ltJdo (1%7). I-kmbly~nl t:
ficou ainda oito meses (porque, segundo dizia, Hembiyani pagara o seu vistJ peb comunidade com um mIsto de temor, ll1velJ e respeito. Mllltos ~clecllt~m que
é feiliceirJ ou que tem o potencial para vir a sê-Ia. Tr~ta-se de um mecanismo restnllvo
preço da noiva), mas foi a primeira a sair. As outras duas mulheres, que que actuJ como penJlízaç30 90S indivíduos que St: tornam c.lcm'l\Llc1amCI1lCncos rela-
também se sentiam em dívida por ela ter pago o preço da noiva, ficaram tivamente ao seu meio social. .
formação primária das competências morais e técnicas; patrocinam a as- guma crise, como a morte ou o divórcio dos pais. O acolhimento vo-
sumpç3.odo estatuto de adulto [1971,332]. luntário ocorre no decurso normal dos acontecimentos (ou seja, não re-
sulta de uma situação de crise). O caso dos chopes é ligeiramente dife-
Goody not3 que serão todos esses p3péis e funções que irão consti- rente, pois a instituição do x:Jrá, que poderá eventualmente resultar no
tuir a rebção normal entre pais e filhos. O acolhimento numa família acolhimento, é posta em acção muito cedo na vida da criança e antes
de cri3ção implica geralmente a transmissão de alguns desses papéis para de surgir qualquer crise. Por esse motivo, entre os chopes trata-se quase
um3 outm peSS03 que não o pai ou a mãe biológicos. O laço biológico sempre do tipo voluntário.
entre pais e filhos (genilor/gmilrix) é o único que não pode ser tmnsferi- No entanto, uma vez dito isto, devemos notar que os direitos e obri-
do, pelo que só os pais biológicos podem desempenhar simultanea- gações desse acolhimento em famílias de criação se tornam muito úteis
. mente todos os pap~is menciof13dos. em momentos de crise, como o divórcio. Por exemplo, se um homem
Qzando um xará é tó'n~al1ocomo filh? de criação entre os chopes, a se divorcia de uma mulher e os filhos que tem com ela são ainda pe-
divisão dos papéis é a seguinte: idealmente, os pais «verdadeiros» são o quenos, ser-lhe-á dificil tomar conta deles (os filhos pertencem sempre
genitor e genilrix, sio a fonte de identidade estatutária (o filho pertence ao marido em caso de divórcio). Nessa situação, o homem pode pedir
ao grupo de parentesco do pai), asseguram o período inicial de for- aos xarás das crianças que fiquem com elas. Para além disso, se ele tiver
mação (a criança é criada até aos 4 ou 5 anos, só depois vai viver com outras mulheres em poliginia, estas terão tendência para tratar menos
o xará). Os país de criação assumem os papéis de garantes da subsistên- bem os filhos de uma ex-mulher do marido do que os próprios filhos.
cia e de formadores das competências morais e técnicas (como parte do Tendo em conta que os chopes têm uma elevada taxa de divórcio, o
processo de socialização e educação). O último dos papéis, relativo ao facto de os xarás tomarem as crianças como filhos de criação pode ser
patrocínio da passagem ao estatuto de adulto, é partilhado pelos pais visto, em parte.(e talvez esta seja uma consequência involuntária), como
biológicos e de criação. Esse «patrocínio» significa, neste caso, propor- um possível meio para lidar com as dificuldades decorrentes de uma
cionar ao xará mais novo os recursos sociais (e económicos) crise f:1miliar.
- como o acesso a potenciais relações de aliança, por exemplo, a ami- Em alguns aspectos, a instituição do xará assemelha-se bastante à co-
zade ou o casamento - de que este necessita para tomar o seu lugar na -parentalidade ritual (o compadrio), característica de muitos dos campe-
sociedade enquanto adulto. sinatos mediterrânicos e latino-americanos. 16 As semelhanças entre
Uma instituição como a do acolhimento familiar só é possível porque uma e outra são as seguintes: a formação de uma ligação forte entre os
a relação entre pais e filhos não consiste num único papel, mas efectiva- pais e os pais de criação, bem como entre quaisquer deles e os filhos; o
mente num «aglomerado» de papéis. Citemos ainda E. N. Goody a este [1ctO de essa ligação ser uma forma de aliança e poder ser criada hori-
propósito: «um ou mais elementos do conjunto total [de papéis] podem zontalmente (entre pessoas com estatuto idêntico); o facto de os laços
ser isolados e usados para criar um laço fictício de parentalidade, sem dis- efectivos serem estabelecidos a nível da geração mais velha, embora se
solver os restantes laços entre os pais verdadeiros e os filhos" (1971, 334- considere que a razão de ser da instituição é o bem-estar da criança. Por
-335). É isto, seguramente, que confere ao acolhimento familiar ou à fim, a co-parentalidade ritual e o acolhimento f.1miliar parecem desem-,
parentalidade fictícia o seu carácter singular. A sobreposição de tantos pa- penhar funções semelhantes a nível estrutural, ou subestrutural. Para!
péis na relação «verdadeira» entre pais e filhos implica que um ou vári~s citar E. N. Goody, estas instituições parecem: '
desses papéis poderão ser delegados, sem cortar por completo o laço on-
ginal. Ao partilh;>~em os laços com a criança, os pais e os pais de criação [...] estar concebidas de modo a preencherem as lacunas entre os elementos
adquirem uma r&lação de intimidade uns com os outros, o que reforça formais do sistema. Nenhuma das instituições afecta a identidade estatutária
imensamente "o I~ço que existia anteriormente entre eles.
E. N. Goody encontrou dois tipos de acolhimento familiar de crian-
ças entre os gonjas, a que ela chamou «voluntário» e «de crise,) (1970, 16 Apesardc isto sc aplicar,\ socicdadcportuguesa,que administraMoçambiquc,a
instituiçãodo xará parccescr indígcnac niio tcr qualquerrelaçãocom o apac.1rin1Ja-
58). O segunJo tipo caracteriza-se pelo facto de ser precipitado por al-
mcnto católico.
definida pela lei costumeira, mas ambas usam elementos do papel dos pais • CflSO11- A experiência de acolhimentoJlmiliar
para criar reciprocidades que formam a base das ligações entre indivíduos e de CIJi/<tIsiyaneNyang1lmbe. .
grupos [1971,339]. Chikasiyane Nyangumbe nasceu em Nyatsiku por volta do fim da
Primeira Guerra Mundial. Os pais deram-lhe o nome do irmão ela mãe,
É comum dizer-se que a socialização é um processo que decorre ao Chikasi, que vivia em Siboni, um grupo de povoações a .c~rca de 16
longo de toda a vida dei indivíduo, mas há dois períodos que são par- quilómetros a oeste de Nyatsiku. Aos 8 anos Chikasiyane fOI chamado
ticularmente cruciais nesse processo: o primeiro vai do nascimento até para viver com o seu xará e ficou com ele até aos ~9 anos, altura en; q.ue
cerca dos 5 anos, quando a criança depende (fisica e psicologica- teve a sua primeira experiência de trabalho nas mll1as d: ouro ela Afnca
mente) dos pais; o segundo vai mais ou menos dos 5 anos, cobrindo do Sul. Enquanto viveu com os seus pais de criação, Chlkaslyane voltou
a adolescência, até à idade adulta. Este período é importante, pois é frequentemente a casa dos pais verdadeiros ~ara os visitar, : de te.mp~s
nessa altura que o jovem ganha consciência da sua identidade social e a tempos estes visitavam-no também, especialmente a mae. O lrmao
aprende as regras do «jogo» social. Em suma, descobre o seu lugar na so- mais novo, que permaneceu com os pais verdadeiros, fez-lhe inúmeras
ciedade, as suas forças e fraquezas, as suas possibilidades e cons- visitas, ficando por vezes durante uma semana.
trangimentos. Durante o período em que esteve com o xará, Chikasiyane recebeu
Entre os chopes, o acolhimento noutra f:1mília cobre, quase precisa- dos pais de criação a sua instrução quanto às questões da etiqueta e do
mente, a segunda das fases referidas, pelo que é bastante relevante ana- costume e adquiriu competências técnicas (é carpinteiro amador, o q~e
lisar as consequências desta instituição para o processo de socialização é útil, e aprendeu o ofício com o seu xará). Entrou para a escola de Cir-
das crianças que crescem neste sistema. Como vimos no quadro 7.2, cuncisão de Siboni e nessa altura os pais verdadeiros apoiaram-no neste
57% dos informantes adultos em Nyatsiku tiveram, eles mesmos, pais caminho, comprando-lhe roupas novas e assistindo à cerimónia final.
de criação; já havia afirmado anteriormente que em 53% dos domicílios Enquanto viveu em Siboni, Chikasiyane tomou-se amigo de um rapaz
de Nyatsiku havia, em 1969, pelo menos lIm xad mais novo. Podemos da sua id3de. Esta amizade cresceu e hoje é considerada uma relação
deduzir destes números que, embora só pouco mais de metade dos in- entre ndoni (<<melhores» amigos, ou amigos «especiais)').
formantes tivessem tido pais de criação, a probabilidade de um dos ir- QJando regressou do SeU primeiro contrato nas minas, Chikasiyane
mãos germanos dos restantes ter saído de casa para viver com o seu xad estava já em condições de pagar uma grande parte do preço ela noiva de
é extremamente elevada. O resultado disto é que quase todos os infor- uma mulher e, com o auxílio financeiro do pai, pagou o lob% e casou
mantes tiveram uma experiência directa do acolhimento noutra família, com uma mulher que conhecera em Siboni. Uma vez casado, voltou a
fosse pessoalmente ou pela proximid:lde com alguém nessa situação; Nyatsiku, onde o pai lhe cedeu um terreno para a instalação do do-
assim, a instituição e as sllas consequências (em termos de socialização micílio e campos de cultivo. Durante a sua vida de casado deixou Nyat-
e aliança) afectam praticamente toda a gente. siku uma vez para ir viver em Siboni, junto do seu xará (que era tam-'
O processo de socialização depois de cerca dos 5 anos torna-se im- bém parente da sua mulher), mas ;Ia fim de cinco anos voltou com a
portante porque a criança, que já não depende fisicamente da mãe, co- família para Nyatsiku. Actualmente é um homem de alguma influência,
meça a assumir o seu lugar na sociedade enquanto indivíduo. Por volta já que é o líder dos Nyangumbe em Nyatsiku (v. mapa 3.1), para além
dos 8 ou 9 anos cria amizades que serão mantidas durante quase toda a de ser indllna do régulo Nkumbi (posição importante nos assuntos do
vida. É nesta altura também que passará a ter relações mais próximas regulado) e de nos últimos vinte e três anos ter sido empregado como
com uns parentes do que com outros e essas preferências terão, pos- boss boy (o lugar de maior estatuto e que impl!ca liderança nas minas)
sivelmente, continuidade na vida adulta. O processo educativo, que in- sempre que esteve em trabalho migratório na Afi-ica do Sul.
clui as experiências do próprio indivíduo, bem como as experiências
dos seus pares, que de algum modo partilha, ou ainda as lições apren- Análise
didas com os adultos, tem também um enorme impaete durante este Devemos notar que, ao longo dos primeiros vinte e cinco anos da sua
período, vida, Chikasiyane passou 'por três mudanças radicais da sua vida social.
Nasceu na casa dos pais verdadeiros e ali passou os primeiros anos de As relações que Chikasiyane construiu durante a estada em Siboni
vida, cruciais. Aos 8 anos mudou de casa e foi confrontado com um com os seus pais de criação parecem ter diminuído ao longo dos anos,
conjunto de pessoas e relações totalmente novas: os seus pais de criação tanto em força como em número. Embora continue casado com a
e a respectiva rede de parentes e vizinhos (supostamente não eram primeira m~lher, cujos parentes vivem em Siboni, e mantenha relações
completos estranhos, já que eram parentes matrilaterais, mas a mudança próximas com os seus vandoni na zona, na sua maior parte os laços
não deixou de ser drástica). Aos 19 anos Chikasiyane foi para as minas, foram desaparecendo por falta de uso. Chikasiyane procurou mobilizá-
onde encontrou um ambiente fisico e social totalmente novo, e ali -Ios quando foi viver para Siboni, mas, embora tenha ali permanecido
viveu durante cerca de dois anos (os contratos nessa altura eram mais cinco anos, não considera que a sua estada tenha corrido bem. Assim,
flexíveis do que são actualmente). Por fim, quando regressou das minas, muitos dos laços criados nesta situação móvel e fl.uida tendem a ser tem-
casou e passou a residir em Nyatsiku, que, apesar de ser a sua terra natal, porários.
abandonara treze anos antes. Teve aí de construir a sua rede social prati- Significativamente, Chikasiyane é hoje um homem influente: em
camente a partir do nada. Nyatsiku é «homem grande» (líder de um grupo que pode tornar-se
Esta experiência acumulada resulta em v;írias mudanças quanto às poderoso); no regulado é um dos oito linduna escolhidos pelo régulo
pessoas que têm o papel de agentes socializadores do indivíduo - os Samusson Nkumbi; perante os europeus, provou ter qualidades de lide-
pais ou os seus substitutos. Mais do que isso, do ponto de vista de ego, rança na situação de trabalho nas minas. Fica claro, portanto, que o facto
há que aprender, necessariamente, a adaptar-se rapidamente a novas de ter tido pais de criação não prejudicou o êxito de Chikasiyane na so-
situações, sejam fisicas ou sociais; desde muito cedo, quando a criança ciedade dlOpe; na verdade, poderá mesmo tê-Ia ajudado, ao assegurar a
está ainda em formação, conrronta-se com um microcosmos da maior sua capacidade de adaptação às situações sociais. Não recolhi dados sis-
parte dos princípios estruturais, bem como das dificuldades da vida so- temáticos sobre a relação entre o sucesso dos dlopes e o facto de terem
cial chope. De cada vez que muda o ambiente em que o indivíduo se sido ou não filhos de criação, mas as minhas notas de campo permitem-
encontra, este tem forçosamente de accionar os seus próprios recursos, -me afirmar que quatro dos sete «homens grandes» de Nyatsiku tiveram
há que construir uma rede social inteiramente nova (ou, mesmo que efectivamente pais de criação. .
não seja nova, nunca utilizada até então) e o indivíduo tem de conseguir Por vezes é dado à criança o nome de alguém com competências es-
fazê-Io pelo seu esforço, com recurso ao material humano que o pecíficas, como um escultor de madeira, um adivinho, ou talvez um
ambiente proporcione: a todos os parentes (agnáticos ou matrilaterais) músico e construtor de timbila. Se a criança for depois acolhida noutra
que tenha à sua disposição e, à falta destes, às amizades, que de qual- família, é muito provável que aprenda essas competências com o seu pai
quer modo complementam geralmente os laços de parentesco. de criação. No entanto, não fiquei com a ideia de que o potencial dessa
Chikasiyane e o seu irmão, apesar da distância que os separava, visita- situação fosse conscientemente manipulado. Por exemplo, se uma
ram-se rrequentemente, o que teve como efeito a abertura de uma nova criança tomar o nome de um músico destacado, isto parece ser feito
área de possíveis ligações sociais para o mais novo e, simultaneamente, a devido à existência de uma relação pessoal ou aliança ao nível da gera-
manutenção do contacto de Chikasiyane com a sua zona de origem. ção dos pais, e não com vista ao possível ben~ficio futuro para a criança.
Assim, o acolhimento numa família de criação é rrequentemente uma ex- De acordo com o que foi dito, a instituição do xará e a concomitante
periência partilhada entre irmãos gennanos, com o resultado de alargar as do acolhimento das crianças como filhos de criação, quando vistas do
redes pessoais. A este propósito, E. N. Goody afirma o seguinte: ponto de vista do processo de socialização, adequam-se conceptual-
mente às características gerais da organização social chope, entrelaçam-
[...] se o adolescente adquire a sua auto-imagem em relação à sociedade por -se com elas - as linhagens, se é que pode dizer-se que existem, têm
meio da participação em grupos prim~rios,e se os seus grupos primários não pouca profundidade genealógica, os padrões de sucessão são laterais cl
são os mesmos que os dos seus irmãos germanos, mas obviamente têm áreas
as alianças tendem a ser efémeras.'
de sobreposição, então tanto para os irmãos que vão viver com pais de cria-
O processo de socialização que resulta do acolhimento da criança
ção como para os que ficam em casa a experiência alarga-se11970, 56J.
noutra família oferece uma primeira experiência, num microcosmos,
d?s tipos de situ~çõ.es que mais tarde serão encontradas ao longo da vista a uma nova possível aliança. Na análise que agora desenvolvo
vIda (adulta). O mdlvíduo tem de aprender a adaptar-se às mudanças refiro-me, portanto, só aos restantes 71% dos casos, em que as crianças
que ocorrem no seu meio flsico e social e, em consequência, a activar tomaram o nome de um adulto vivo e de que resultou, intencional-
os !aços de parClltesco de que possa dispor e a criar novos laços através mente ou não, uma aliança. Esta aliança pode ser deixada em estado
da ~mizade; também é neste contexto que se aprende a lição de que latente ou pode ser activada, dependendo da utilidade que possa ter
mUltas relações são transitórias. Por fim, tendo em conta que o meio so- para o indivíduo concreto e para a sua rede social em determinado mo-
cial dá primazia às redes individuais de relações com outros indivíduos mento.
recrutados através da activação de diversos princípios, o acolhimento O acto de dar o nome a uma criança, que ideal mente tem por base a
~omo filho de criação proporciona uma série de laços potencialmente sanção de um adivinho que determina se o nome sugerido ~ aceite pelos
fortes e prontos a serem mobilizados, constituindo recursos valiosos no antepassados, é, na realidade, muito mais manipu!ável do que este pro-
«reservatório» de relações sociais do indivíduo. cesso sugere. O que acontece é que, depois de o pai ter decidido que:
nome pretende dar ao filho, consulta um nyatisMolo para obter a apro-
vação dos antepassados. Assisti a quatro casos de adivinhação em que
A dimensão estrutural da instituição isto se passou. Em três desses casos, o adivinho tentou, aparentemente,
do xará (rryadine) agradar ao homem que o consultara, procurando obter indirectamente
a informação desejada. No outro caso, o adivinho procurou impor a sua
Dar o n?n:e de uma pessoa viva a uma criança origina uma série com- vontade (ou a dos antepassados, melhor dizendo) ao homem que pediu
plexa de direItos e deveres entre os pais e o xará, para além dos que exis- a consulta. Este, porém, procurou imediatamente outro adivinho, que
tem entre a própria criança e este último. A relação entre os membros da lhe deu a resposta que ele queria ouvir. Os informantes salientavam
ger~ção mais velha assu:ne a natureza de uma aliança, pois ou reforça re- geralmente a sanção mística do processo de atribuição do nome, mas o
Iaçoes de parentesco eXistentes ou formaliza laços entre pessoas que não momento em que o nome é dado II criança é cuidadosamente prepara-
são parentes. 17 Esta instituição é, pois, um recurso sacia! muito usado que do, pelo que só raramente os adivinhos oferecem interpretações con-
pode ser empregue de modo estratégíco pelos indivíduos. Mais uma vez, trárias à desejada.
devo lembrar que não pretendo com isto afim1ar que todos os indivíduos Uma vez verificado que os pais têm quase total liberdade na escolha
fazem o seu «balancete social» e agem sistematicamente de modo a maxi- da pessoa cujo nome o filho ou filha tomará, e sabendo já que isto é por
mizarem os seus beneficias próprios, em tem10S políticos ou outros' tal vezes usado estrategicamente, toma-se necessário JnaJisar os dados em-
afirmação s:ri~ exr:emamente redutora. Pretendo antes afirmar que ~ma píricos relacionados com a instituição do xará, pois as relações estrutu-
das ~aractenstlcas Importantes da illStitllição é o flcto de criar alianças, rais entre os participantes serão, provavelmente, reveladoras de outros
prev.lsta: ou não, e que este é, portanto, um recurso social ;1 disposição aspectos acerca do sistema social chope - a atribuição do nome tem
dos mdlvíduos que queiram utilizá-Ia. reverberações que ultrapassam os limites da instituição em si mesma.
Esta sec~ão t:ata, especificamente, da instituição do xará como aliança Trata-se de uma forma de aliança que, como tal, proporciona uma rela-
~ das suas ImphcJções estrutu:~is. C~mo atrás referi, há cnançJs a quem ção alternativa (e suplementar) que pode ser posta em acção entre os in-
e. dado o nome de parentes J3 faleCidos (ou seja, de antepJssados) ou divíduos quando é preciso recrutar alguém para um conjunto de acção.
JlI1dJ de um dos próprios pais. Em ambos estes casos (que representam Autores como Gudeman (1972), Foster (1963), Hammcl (1968) ou
29% dos casos registados, como vimos), o nome não foi escolhido com E. Goody (1971) defenderam que a instituição da quase-parentalidade
ou do apadrlnhJmento (especialmente em várias sociedades campone-
sas) tem por consequêncía a formação de alianças, "
17 Ncs~c COnt~xto. c até ~o final deste capítulo, uso o temlO "Jlianç;]h p;]r;] designar Mesmo quando o sistema de .parenresco tem aiflexibilidade verifica-
)
uma rela~Jo que Integra e da ongem, afaços de confiança e obrigação recíproca. Obvia-
mente, nao se trata do s~ntldo que Levl-Strauss deu ao termo, rererindo-se ao casamento
da entre os chopes, há algumas relações imutáveis que constituem re-
prescnllvo ou prcrerel1C1alque é rcnov~vcI ;]0 longo ek v;íri,1, ger;I~·ões. lações atribuídas. O indivíduo nasce com um conjunto de p;lrentes con-
sanguíneos para com os quais a sociedade prescreve padrões de com- A troca efectiva passa pelo facto de ser uma honra para o xará que a
portamento. Esta rede de parentes só aumenta por multiplicação natu- criança tome o seu nome (pois é sinal de estima), assim como de haver
ral e a única área em que a pessoa pode optar é a escolha do cônjuge. beneficios económicos decorrentes do acolhimento da criança, para
Por outro lado, como notou Foster, a rede de laços de parentesco de ego além de que, está claro, a criança se tomará futuramente um aliado
é, provavelmente, demasiado vasta para que ele possa exercer todos os próximo. Visto do outro lado, a «oferta do nome» é retribuída pelo es-
direitos e obrigações relativos a cada um dos parentes: treitamento das relações, ou seja, pela aliança com uma pessoa com a
qual ego poderá sentir necessidade de ter uma relação mais próxima (a
A única escolha verdadeira de ego diz respeito ao ponto até ao qual irá
pessoa pode ter acesso a mais recursos ou ter um estatuto mais elevado
honrar as obrigações inerentes aos seus vários papéis (e esperar a retribuição
do que ego, que poderá esperar que algum do prestígio dessa pessoa
correspondente), bem como à selecção dos indivíduos com quem o fará.
Assim, ao escolher relativamente poucos parentes de entre toda a família [00'] possa ser transferido para si). Entre os chopes, estas transacções, que se
cgo estabelece de facto contratos diádicos que determinam o seu compor- assemelham à relação entre patrono e cliente, são, na verdade, menos
tamento efeclivo [Foster 1961, 1181]. frequentes do que as que ocorrem entre iguais e que resultam no reforço
de um laço preexistente.
Levando o argumento de Foster ainda mais longe, diria que não só Numa fase posterior da vida dos envolvidos é possível que a relação
ego escolhe realmente interagir apenas com uma selecção de entre o es- entre os pais e o xará seja menos relevante do que a relação entre os dois
pectro total dos seus parentes, como também, mesmo entre estes paren- xarás. Assim, se a criança deixar a casa dos pais para ir viver com o xará,
tes escolhidos, haverá um ou dois que ele pode destacar e com quem esta tomar-se-á uma relação intensa e contínua de quase-parentalidade.
terá, ou desejará ter, uma relação especialmente forte. É este tipo de pa- A relação prolonga-se pela vida adulta do xará mais novo, pois este
rentes que ego tenderá a escolher como nyadinc (xará) para os seus fi- cresceu com os scus pais dc criaç:ío e passou a tcr uma relação de grandc
lhos, conferindo assim maior força ao laço que já existe. proximidade com estes; muitas das relações qu'e usará mais tarde foram
Diria ainda que é especialmente devido à flexibilidade do sistema de formadas durante este período, devendo-as ao seu patrono.
parentesco chope e do seu sistema social, em geral, que a vertente de Mas voltemos ao momento da criação da ligação com o xará (o laço
aliança da instituição do xará ganha importância. Se existe um grau ele- entre o pai ou a mãe e a pessoa cujo nome a criança tomará). Referi no
vado de escolha quanto aos laços que ego acaba por mobilizar, então o início desta secção a natureza dupla da aliança: ela pode ser usada como
contrário também é verdadeiro: a pessoa com quem ego pretende re- meio para reforçar laços preexistentes (e neste caso é voltada para den-
forçar a sua relação pode, nesse momento, escolher atenuar a relação ou tro, a rede de ego continua a estar circunscrita) ou pode ser voltada para
mesmo terminá-Ia. Deste modo, a rede pessoal de ego é sempre fluida: fora, fazendo com que a rede se alargue a novos membros.
há sempre um núcleo de apoio continuado, mas também há sempre Em termos estruturais, o tipo que é voltado para dentro é especial-
uma mudança regular das pessoas na periferia do campo de relações. mente interessante. Se tanto o casamento como a instituição do xará
A instituição do xará constitui um meio para a institucionalização de são tipos de aliança, será importante notar o que os diferencia. As nor-
um laço potencialmente temporário, tomando-o mais permanente. mas exogâmicas exigem que o indivíduo não case no clã da mãe nem
A síndrome do xará é composta por um trio de relações diádicas: no clã do pai; as alianças matrimoniais são, por isso, amplamente es-
entre os pais e o filho; entre a criança e o xará; entre os pais e o xará do palhadas e o homem pode casar com uma mulher que mal conhece ou
filho. Esta última é, de início, a díade mais importante, pois é a este que nunca viu. Mas a atribuição do nome que ocorrc no interior da redc
nível que a aliança é cimentada. Afinal, na cerimónia de atribuição do social e familiar de ego actua de modo contrário: enquanto as normas
nome a criança é ainda uma não-entidade social, sem quaisquer recur- exogâmicas tomam centrífugas as alianças qué delas resultam, cste tipo
sos próprios. O verdadeiro propósito da instituição nesta fase é o re- de atribuição do nome tem um cfeito centrípeto no padrão de alianças.
forço de um laço já existente ou a criação de um novo laço, que ocorre Assim, a instituição do xará pode manter-se, e em geral mantém-se, pre-
a nível dos membros das gerações mais velhas e pode ser visto como um cisamente no âmbito dos mesmos grupos de parentesco com os quais
contrato diádico entre eles. o casamento é proscrito; ela desempenha no interior dos dois clãs as
rias de pessoas envolvidas nas relações entre os xarás. Verificamos que
predominam os parentes agnáticos, constituindo 42% do total; é preciso
explicar este fàcto, pois se, como defendo, a instituição dá origem a
Parente agn,ítico
alianças, pJreceriJ tratar-se de uma duplicJção desnecessária de ligações.
Parente matriLltera\ Como afirmei anteriormente, o propósito dos capítulos precedentes
Afim era demonstrar a natureza plástica do parentesco chope. A fluidez do
Amigo sistema resulta da mobilidade dos indivíduos, da falta de profundidade
N'{/!/gtl
do conhecimento genealógico e da ausência ele uma forma corpórea de
detenção ela proprieelJele, ou mesmo ele grupos corpórcos d<.:paren-
tesco. Perante umJ situação em muito semelhJnte junto dos gonjas,
E. N. Goody afirma que "há uma tendência centrífuga constante entre
os parentes» (1970, 63). Nesta situação, não é surpreendente verificar
que os laços de parentesco, mesmo de parentesco agnático, são facil-
mente postos em causa. Em tais circunstâncias, o indivíduo pode que-
Parente agnático rer cimentar um laço potencialmente fIssil ou reconhecer o valor de
Parente matrilateral uma relação tênue que, dessa forma, fica reforçada.
Afim
Esta linha de raciocínio aplica-se, em grande medida, às categorias de
Amigo
N'flIWI
parentes por afinidade e parentes matrilaterais, que perf:lzem 34% da
amostra. Todos os parentes são potencialmente membros úteis na reele
social do indivíduo. No entanto, como já demonstrei, as alianças forma-
mesmas funções de estabelecimento de relações fortes que o casamen- das pelo casamento têm ~m carácter extremamente quebradiço. É claro
to desempenha para lá desses clãs. 18 que os afins de uma geração são parentes matrilaterais da seguinte;
O quadro 7.4 representa a relação que existe entre o pai ou a mãe e a tendo em conta que a aliança, na prática, é temporária, o homem pode
pessoa cujo nome a criança toma. Note-se que a categoria com o maior tentar segurar os laços importantes com os parentes da mulher ou com
número de laços com os xarás é de longe a dos parentes agnáticos, mas os parentes da mulher do seu pai, formalizando ligações diádicas através
é significativo que mais de metade (58%) sejam não-agnatas. da relação com um xará. Estes contratos diádicos manter-se-ão na even-
A categoria dos «amigos» refere-se a pessoas com as quais ego não tem tualidade de haver um divórcio, após o qual o laço forte e normativo
relações de parentesco, mas que são consideradas amigas, quer do tipo que liga os três indivíduos implicados continua a existir.
ndoni (que denota uma amizade muito forte), quer do tipo mais infor- A categoria «amigos» nos quadros 7.4 e 7.5 é um pouco ambígua, pois
ma! nyaIJa. Há ainda um número surpreendentemente alto de médiuns é usada aqui para cobrirtodos os que não são parentes nem tin'anga.
(tin'anga) que aparecem também como xarás, fenómeno que procurarei A ambiguidade reside em que estes indivíduos poderiam ser reconheci-
explicar adiante. dos ou não como amigos do pai antes de a crianç.6 tomar o seu nome.
A comparação dos quadros 7.4 e 7.5 mostra que as ligações são. efecti- Em dois casos de que tenho conhecimento, estes' indivíduos eram ape-
vamente idênticas, excepto no que diz respeito às categorias dos parentes nas conhecidos do pai (um deles era "homem grande» da vicin:llidac!e,
matrilaterais e por afinidade. A discrepância justifica-se principalmente o outro era um empreendedor rico), mas, depois de se optar por dar o
peJo facto de os parentes por afinidade de um determinado homem seu nome à criança, a relação tomou-se, em ambos os casos, muito mais
serem parentes m:ltrilaterais do seu filho. Vejamos :lgora as várias catego- próxima. Com a excepção de casos como estes, a linha de raciocínio an-
teriormente desenvolvida para os parentes pode ser aqui aplicada: uma
relação já valoriz<lda é cOIlsolidad:l através da SllJ form:lliZ<lção, ou seja,
IR Por outro lado, o tipo de atribuição do nome .vo\t~da p~r~ fora ••tem obviamente
através da homenagem implícita na escolha do nome.
efeitos (estruturais) idênticos aos d~ aliança matrimonial. ' ,
~adro 7.6- Nível relativo da geração do pai ou da mãe no total, seguindo-se a escolha do nome do pai da criança (19 casos), ou
e da pessoa cujo nome é dado à criança da mãe (15), de um tio paterno (FB, ~2), de uma tia paterna (FZ, 13), de
um tio matemo (MB, 11), de um avô matemo (MF, 8) e de outras re-
lações variadas em menor número de casos.
Duas gerações acima do pai/da mãe 5 Não se verifica, portanto, a emergência de um padrão claro na com-
Uma geração acima do pai/da mãe 40 paração entre verdadeiros parentes e outras relações representadas na
Da geração dos pais 105
amostra. A este nível de distribuição, a categoria «amigos» é a mais vasta,
Uma geração abaixo dos pais 10
seguida pelo círculo mais próximo de paren'tes, representado pela
160
família alargada e pelos parentes da mulher de um dado indivíduo. Se
quiséssemos fazer uma generalização baseada nos números dos quadros
Os quadros 7.4 e 7.5 mostram que em 5% dos casos se deu à criança 7.4-7.6, os dados apresentados nos capítulos anteriores parecem ser aqui
o nome de um médium. As razões apontadas pelas pessoas iam da confirmados e reflectidos: os indivíduos tendem a dar aos filhos o nome
gratidão por um tratamento durante a gravidez a uma invocação de das pessoas com quem têm uma relação a que dão grande valor ou rela-
afecto bastante vaga. Um n'anga reputado inspira temor e pode até exer- tivamente às quais se sentem devedores; a natureza efémera da maior
cer um poder considerável. O n'anga é geralmente "uma pessoa de pos- parte das relações pode ser parcialmente melhorada por meio do suple-
ses que tem estranhos poderes - em suma, é um aliado útil. mento constituído pelo conjunto mais formal de direitos e obrigações
Outra característica notória da síndrome do xará é o facto de ela ter criados pela instituição do xará. Assim, se observarmos as estatísticas
sobretudo, um carácter existencial: tem que ver com o aqui e o agora: aqui apresentadas, mais uma vez temos a imagem de uma situação em
Como demonstra o quadro 7.6, o leque total de relações entre os pais e que todos os tipos de parentes, cognáticos e afins, bem como os indiví-
os xarás cobre apenas quatro gerações egocêntricas (ou seja, duas gera- duos classificados como amigos, são vistos como sendo importantes
ções acima de ego, a geração do próprio e a geração seguinte). Dito de para os chopes, embora haja uma tendência para privilegiar os parentes
outro modo, é muito provável que ego tenha conhecido pessoalmente agnáticos (42%).
a pessoa cujo nome o seu filho tomou, mesmo que se trate de um pJ- A ausência de um padrão distintivo na instituição da atribuição do
rente já f.1Iecido. nome leva-me a considerar de novo o modelo 'centrado no indivíduo,
Dois terços dos xarás da amostrJ são indivíduos da mesmJ geração de acordo com o qual é necessário focar a nossa atenção numa rede so-
que o pai ou a mãe da criança, o que revela o enfoque presentista. cial centrada num ego (Boissevain 1968). De cada vez que uma criança
Afinal, o indivíduo tem de viver a sua vida no aqui e agora e, conse- nasce numa dada família, os pais tomam uma decisão ad hoc sobre a pes-
quentemente, os laços gerados pela instituição do xará renectem essa soa que devem escolher como xará. Nesta perspectiva, os pais fazem o
balanço da sua situação social, decidindo quem, naquele momento, será
preocupação. No quadro 7.3, que se baseia numa amostra de 90 infor-
o patrono mais apropriado. A decisão dos pais é determinada pela situa-
mantes, a preocupação com os laços activos do momento reflecte-se na
ção concreta e é tomada em função dJ interpretação que fazem do es-
elevada percentagem de casos em que a criança tomou o nome de uma
tado presente da sua posição e das necessidades daí decorrentes. É isto
pessoa viva.
que explica o padrão quase aleatório que emerge das estatísticas acima
O passo seguinte nesta análise seria, logicamente, a especificação rigo-
rosa de quem são as pessoas cujo nome foi dado a cada uma das crian- apresentadas.
A relação com o nyadine (xará), devido ao conjunto de direitos e obri-
ças desta amostra, bem como da relação entre elas ou entre os pais e o
gações recíprocos que lhe é inerente, tem uma vasta base mora! que
xará. No entanto, tal exercício seria rutil, porque há 24 tipos de relações
pode ser usada como recurso social e político. Mais uma vez, o mode-
a enumerar, que vão de um dos pais ou pais destes até amigos e mé-
lo tem de ser orientado para o indivíduo e é necessário analisar as estra-
diuns, passando por irmãos ou outros parentes consanguíneos ou 3f1ns
tégias que poderão estar envolvidas na escolha do nome a daraos filhos.
mais distantes. Não há uma categoria que pareça ser especialmente fa-
Referi atrás que a direcção da aliança com o xará (se é voltada para dcn-
vorecida; a maior parte dos casos registados diz respeito a «amigos", 30
Q!Jadro 7.7 - Direcção da aliança com o xará:
• Caso 12 - O padrão de atn'bJliçdo do nome dos filhos
redes internas c externas ao parentesco
de NSl/mlmT/lIlmJIlT/e ~mi NYfllsikll
Escolhi este caso porque Nsumbunukwane tem seis filhos e o padrão
de atribuição dos nomes é nítido, mJS também porque o seu caso
Redes internas ao parentesco
Redes externas ao pJrentesco
parece ser bastante típico. Nos seus seis filhos é possível encontrar um
exemplo de cada um dos tipos estruturais rebtivos à atribuição do
nome que acima referi: a escolha de um xad externo ao parentesco, de
outros internos ao parentesco e, dentro do último tipo, um caso de re-
tro ou para fora relativamente à rede de parentes de ego) poderia ser forço de laços fracos, para além dos casos neutros de dJr a um filho o
relevante. O quadro 7.7 mostra a proporção de ligações com os xarás nome de um dos pais ou de um parente já falecido.
que eram voltadas para dentro ou para fora relativamente aos laços de Analisando separadJmente os casos de cada um dos filhos de
parentesco preexistentes. Nsumbunukwane (v. figura 7.1), verificamos que o primeiro filho da
Os quadros 7.4 e 7.7 mostram que, em cerca de um quarto dos casos primeira mulher, Chik'Wane, é um rapaz e tomou o nome de Chikwe
a ligação ao xará foi contraída fora do círculo de parentes. Estes 38 caso~ Homu, um homem de uma povoação vizinha cuja relação com Nsum-
(24%) podem, pois, ser vistos como tentativas, por parte dos indivíduos bunukwane é apenas de amizade. Os dois homens conheceram-se du-
pa~a <:abrip>~ Sua rede s.ocial a pessoas que não são parentes e para con~ rante o seu primeiro contrato nas minas, m:!s a relação entre eles m:!n-
fem a relaçao algum tIpo de permanência. Uma relação de amizade teve-se ao longo dos anos, talvez (pelo menos em parte) com base no
pode, afinal, ser facilmente abandonada e é potencialmente mais frágil laço da co-parentalidade, que faz com que se encontrem regularmente,
do que. a relaçã.o ?e parentesco, já que não existe qualquer conjunto embora com pouca frequência.
normatlvo ~e dueltos e ob~gações a ligar a díade. Nesses casos, o laço Nsumbunukwane deu ao segundo descendente, uma filha, o nome
com o nyarlme fornece o «Clmento" social em falta. de Masangwane, em homenagem à avó paterna do pai, Masango, que
Os 122 c~s~s .em que o laço com o nyadine foi dirigido para dentro morrera antes de a criança nascer. Contrariamente ao caso de
pode~ ser dIVIdIdos e~ três tipos principais. O primeiro diz respeito às Chikwane, que era voltado para fora, trat:!-se aqui de uma introversão
sltuaçoes em que os paIs estão apenas a assumir uma dívida ou se limi- estrutural, pois, para além de a criança ter tomado o nome de uma pa-
tam talvez a conferir reconhecimento social a um laço afectivo forte' rente, tomou o nome de uma parente com a qual já não haveria possi-
não há aqui necessariamente implicações estratégicas. O segundo tip~ bilidade de aliança ou acolhimento da menina. Assim, no que diz res-
ocorre quando há um propósito estratégico que é importante, como peito aos filhos da primeira mulher, um foi acolhido por pais ele criação
acontece n,? caso hipotético do indivíduo que poded pretender reforçar e a outra não; estruturalmente, um deu origem á uma aliança (voltada
a sua relaçao com um parente que lhe possa ser útil ou que pode estar para fora), ao passo que a outra (voltada para dentro e neutra) não teve
a afastar-se e com o qua~ ego não q~er perder o contacto. A estratégia esse efeito.
desempen~a um papel Igualmente Importante no terceiro tipo, mas O primeiro filho de Nsumbunukwane com a sua segunda mulher
pel~ n~gatlva: acontece quando ego não quer comprometer-se com tomou o nome de Chipencte, irmãomaÍs velho do pai. Estamos peran-
mais alIanças e obrigações delas decorrentes, pelo que faz recair o pro- te um caso em que cbramente o nome foi escolhido dentro do con-
cesso de escolha do nome sobre algumas relações preexistentes. Por junto de parentes, sendo, para mais, o de um membro próximo. No en-
exe~plo, poderá dar à criança o seu próprio nome ou o da Sua mulher, t:!nto, um aspecto que o diagrama não evidencia é que Chipenete vive
ou a1l1da o de um parente já falecido (20% das crianças da amostra . num outro regulado. Chipenete for:! acolhido pelo seu xará, que vivia
tomaram o nome de um dos pais e, como mostra o quadro 7.3, 13% no regulado Banguza, a cerca de 20 quilómetros, e depois de casar ins-
ficaram com o nome de alguém que já tinha morrido). O GISO 12 d;í talou-se perto do seu patrono. Dito de outro modo, havia a possibili-
uma noção mJis clara do funcionamento efectivo da instituição. dade de a ligação entre Nsumbunukwane e o seu irmão germano, pró-
pria deste tipo de relação, se ver enfraquecida por falta de interacção.
A quinta criança (o terceiro filho da sua segunda mulher) é do sexo
feminino e foi-lhe dado o nome Amelinyane, em honra de Amelina,
primeira mulher de Nsumbunukwane. Trata-se de um exemplo intros-
pectivo em que um filho de uma mulher toma o nome de uma outra
61
Chikwe
mulher do mesmo homem. Nas sociedades poligínicas, a relação entre
Ar--6~-I&-=-11 (amigo de as várias mulheres tende a ser tensa ou mesmo:frágil; neste contexto, a
Nsumbunuk\vane) partilha dos papéis maternais é, muito possivelmente, um meio para
Nmmb"]" ~M~""gO mitigar a hostilidade potencial entre' elas. '
Por fim, o sexto filho, Wanyane, tomou o nome do pai de Nsum-
,....•
bunukwane, que se chamava Wani. Trata-se mais uma vez de uma
64
aliança introspectiva, no âmbito da qual Wanya,ne foi acolhido pelo seu
Wani I Amelina
II
i (-homem
W llsen
avô paterno e xará. Aparentemente, haveria nesta escolha poucas con-
d--1 =05=0=0·
Chipenete I Nsumbunukwanc
I.
grande"
i dos Nyangumbe)
siderações estratégicas, se é que havia algumas, já que Nsumbunukwane
e o seu pai são vizinhos e têm uma ligação social e afectiva de grande

do ~-A--3~~-I&-
Chikwane 2
---6~5-1
Chipenctiyane 4 Amclinyane 6
proximidade. Na altura em que Wanyane nasceu, Wani e a mulher vi-
viam sozinhos, uma vez que os filhos eram adultos e tinham já saído da
sua casa. O jovem xará, quando atingiu a idade de poder ser acolhido
noutra família, tomou-se uma espécie de novo filho da velha casa, reju-
Masangwane Wilsenyane Wanyane venescendo-a, já que o rapaz conseguia realizar muitas das tarefas que
os dois idosos não podiam já fazer por si sós.
Nsumbunukwane valorizava, obviamente, esta relação e aproveitou a Vejamos agora os vários exemplos deste caso no seu conjunto. Os seis
oportunidade para dar ao seu terceiro filho o nome Chipenetiyane, em filhos proporcionam-nos um leque interessante de tipos estruturais: a
honra do seu irmão (que, acrescente-se, aceitou esse gesto e acolheu o escolha do nome de dois deles (o primeiro e o quarto) foi voltada para
seu xará como filho de criação). fora, nos restantes quatro casos (a segunda, o terceiro, a quinta e o sexto)
O quarto filho de Nsumbunukwane é também um rapaz e foi-lhe foi voltada para dentro. Destes últimos, houve uma filha (a segunda des-
dado o nome de Wilsenyane, derivado de Wilsen (Chikasiyane) Nyan- cendente) a quem foi dJdo o nome de umJ parente matrilateral e uma
gu~be, que é o wahombe da poderosa facção Nyangumbe, da vici- outrn (a quinta) que tomou o nome de uma parente por afinidade; os
nabdade Masakula. Nsumbunukwane pertence ao clã Nyatsiku e pode restantes dois filhos (o terceiro e o sexto) tomJram o nome de parentes
aspirar, ainda que a possibilidJde seja remota, a vir a ser chefe de agnáticos. Em pelo menos dois casos (a segunda e a quinta filhas), o po-
povoação no futuro. Se chegar a Jcontecer que Nsumbunukwane lute tenciJ! para o acolhimento como filhas de criação não existia ou era
pela chefia, a lealdade da facção Nyangumbe pode ser um trunfo impor- desnecessário; em três outros casos (o primeiro, o terceiro e o sexto), as
tante. Não há, obviamente, qualquer garantia de que Wilsen não venha crianças foram acolhidas pelos xarás em alturas diferentes, por períodos
a transferir o apoio das suas gentes nas costas de Nsumbunukwane, pois, de tempo diversos. No último caso (o do quarto filho) havia potencial
se a situação vier a concretizar-se, Wilsen tem outro xará que é filho de para este tipo de acolhimento, mas o xará mais, velho não reclamou a
Germani Nyakwaha e que entraria em competição com Nsumbunu- criança como filho de criação.
kwane. De qualquer forma, não é certo que Nsumbunukwane tivesse Também a ordem pela qual os nomes foram dados aos filhos é reve-
em mente estas questões quando escolheu O nome para o filho, embo- ladora. O primeiro a nascer tomou o nome de uma pessoa exterior JO
ra as possibilidades estratégicas existam, se ele pretender explorá-Ias. universo de parentes de Nsumbunukwane. Estando ainda a iniciar a sua
Estruturalmente, estc contrato com o xará foi voltado para fora, alar- vida de casados, Nsumbunukwane e a mulher estariam, supomos,
gando a rede social de Nsumbunukw:1l1c. ansiosos por alargar a sua rede social, pelo que a expandiram. O facto
torn:u-se bastante independente, o padrão de escolha do x~r;Í tornou-se
de terem montado a sua Clsa muito perto d;l C;lS;l do pai ele Nsum-
bunukwane significa que não tinlum grande necessidade de entàtizar os introspectivo.
Neste sentido, em termos ger~is, poder-se-ia dizer que o padrão de es-
laços de proximidade que já existiam e que esta contiguidade esp;lcial
colha dos nomes numa dada família parece depender da avaliação ar!
implicava. A segunda criança tornou o nome da avó de Nsumbu-
nukw;lne, já falecida, e tratou-se de um caso «neutro». Isto é um pouco
hac que os pais fazem cada vez que nasce um tilho, do estado ~a sua
rede social e das suas necessidades. O caso de Nsumbunukwane Ilustra
m;lis difícil de explicar, m;lS t;llvez se possa compreender na medida em
uma tendência que parece verificar-se na maioria das vezes: é a necessi-
que não é desejável que todas as crianças vão viver com o xará, situação
dade, no início da vida do casal, que dita o alargamento e a expansã?
em que os pais ficariam sem nenhum dos próprios filhos em casa; é pre-
das redes de aliança, ao passo que mais tarde, no ciclo de desenvolVI-
ciso encontrar uma solução equilibrada entre as várias possibilidades,
mento, quando estão já estabeleci das redes especiais, serão us~das. ten-
que faça com que seja improvável ou impossível que todos os filhos
dencialmente as alianças introspectivas, aquelas que eXistem no sela da
sejam chamados para viver com o xará. Neste caso, era muito provável
rede de parentes. Estas poderão servir para reforçar laços mais frágeis ou
que o primeiro filho a nascer fosse tomado como filho de criação, pelo
podem ser «neutras" em termos de aliança, como acontece quando ape-
que quando nasceu o segundo, uma filha, se contrabalançou essa si-
nas duplicam a carga de um laço de parentesco já existe~te ou, mars
tuação.
Quando nasceu o terceiro filho, deu-se-Ihe o nome de um irmão do especificamente, quando é escolhido para xará um dos pais ou um pa-
pai e, embora este fosse um caso em que o nome foi encontrado den- rente j;í morto.
Antes de passar à análise de alguns aspectos estruturais é necessário
tro do grupo de parentes, em certo sentido a escolha foi voltada para
retomar uma questão que foi apenas aflorada atrás. Referi que o quarto
fora, porque o irmão de Nsumbunukwane vivia a alguma distância e o
filho de Nsumbunukwane tomou o nome de Wi!sen (Chikasiyane)
contacto com ele era mais ou menos esporádico e ténue. O nome do
quarto filho a nascer é um exemplo claro de uma escolha voltada para Nyangumbe, o «homem grande» da poderosa facçroNyangumbe. ~ão
há dúvidas de que há vantagens políticas, e muit:ls vezes económlcas,
fora, que parece ter implicações políticas claras (embora, aparente-
em contrair uma aliança com homens influentes. Estes p~derão ser «ho-
mente, tendo em conta que Wilsen não acolheu o seu xará, este último
mens grandes» tradicionais ou podem pertencer aos "homens novOS»
não tenha aceite a aliança com grande empenho). No quinto caso, a es-
colha do nome foi introspectiva, mas teve o efeito positivo de cimentar (Kuper 1970), que são geralmente jovens empreendedores q~e a~umu-
Iam riqueza e influência ao actuarem como «corretores" na area lI1ters-
a relação potencialmente fTágil entre duas mulheres que partilhavam
Nsumbunukw;me como marido; deve-se considerar aqui também o ticial entre a tradição e as estruturas político-económicas mo de mas
facto de este tipo de escolha não implicar a mudança de residência da portuguesas. Um desses homens, Pedro Nkome, tem nada menos do
que seis xarás mais novos. Este é um indicador útil da consideração que
criança. No último caso, a escolha foi ainda introspectiva, sem que hou-
vesse aparentemente a intenção de criar uma aliança activa; Wanyane lhe é votada - retomarei esta questão num outro capítulo. Voltando à
conseguiu preencher uma lacuna no domicílio do seu avô e, embora literatura relacionada com o apadrinhamento, vemos que esta institui-
tenha sido acolhido nesta casa, vivia, literalmente, a 200 metros da sua ção pode ser usada para reunir pessoas com estatuto idêntico, de forma
casa natal. horizontal, tanto quantoipara ligar verticalmente pessoas com estatutos
O padrão geral que emerge do ciclo de desenvolvimento da família desiguais (Mintz e Wolf 1950). Quando se dá o caso de um homem ~er
e grupo doméstico de Nsumbunukwane é que no início da sua vida de muitos xarás, isto é geralmente indicador do seu grande estatuto ou JIl-
cas~do houve uma tendência para espalhar amplamente ~s ligações fluência; trata-se, portanto, do tipo vertical.
(assim, a escolha elo xará de dois elos primeiros quatro filhos Cai volta- Os usos estratégicos que podem ser Ceitos da aliança com o xará são
da para fora e o terceiro, embora fosse introspectivo relativamente aos claramente ilustrados pelo caso de David Masiya, um homem que se
laços de parentesco, estava geogr:tficamente ar.lst~C!O); mais t:trc!e, nllma instalou em NY;ltsiku no pass;lc!o recente. Dos sells cinco filhos, os úl-
fase mais madura da vida ele Nsumbunukwane, em que este já tinha for- timos dois nasceram já ~Jepois de se ter mudado par;) esta povoação.
jado o seu nicho na sociedade, quando o seu grupo familiar estava a Ambos esses filhos tonúr:lm o nome de vizinhos com os quais não
havia anteriormente laços de parentesco. O primeiro chama-se Ger- A aliança que é gerada pela instituição do xará é semelhante, em ter-
manyane, derIvação de Germani, que foi o patrono de David, a pessoa mos estruturais, aos v~rios outros tipos de aliança na sociedade chope,
que lhe permitiu a entrada na povoação, e a segunda recebeu o nome o que é intrigante. Em primeiro lugar, essa aliança é de natureza lateral,
da mulher de um outro membro da mesma vicinalidade. Estamos pe- sendo geralmente contraída entre pares; para além disso, é efémera e al-
rante um caso em que a estratégia foi definida em função da situação cançada individualmente. Se, por exemplo, um homem escolhe para o
concreta: David era novo naquela zona e não tinha ali uma rede social filho o nome de um amigo, cria uma aliança entre ele mesmo (o pai) e
na qual pudesse apoiar-se; optou, em consequência, pelo tipo de aliança esse amigo; no entanto, esta aliança cria, por seu ·tumo, uma outra entre
voltada para fora, expandindo a sua rede social e de alianças e assim o xará e o filho. Este último laço não pode, contudo, ser transmitido à
consolidando a sua posição naquele lugar.'> geração seguinte, dissolve-se no momento em que morre um dos ele-
Concluindo esta secção sobre os xarás, em particular a vertente da mentos da díade. Tudo isto se assemelha à aliança criada pelo casamen-
aliança, quero chamar a atenção para a forma como esta instituição to, em que O homem escolhe uma mulher (a ligação é alcançada e de
complementa a do parentesco. Embora o sistema de parentesco chope natureza lateral): obviamente, o filho deles terá laços com o pai e a mãe
seja flexivel, há dois problemas que dele derivam: em primeiro lugar, há (c parentes desta), mas as normas exogâmicas proscrevem a renovação
os constrangimentos da consanguinidade e da afinidade, ou seja, o uni- da aliança com o grupo da mãe. Deste modo, em ambos os casos, as
verso de parentes de uma dada pessoa é finito; em segundo lugar, a alianças são alcançadas a nível da geração mais velha e não são reno-
própria flexibilidade do sistema faz com que as ligações com base no váveis na terceira geração - têm uma esperança de vida de apenas duas
parentesco sejam facilmente negligenciadas ou mesmo desfeitas. A ins- gerações.
tituição do xará tem uma utilidade táctica que pode ajudar a ultrapassar Como aliança, a instituição do xará actua de. um modo muito dife-
esses problemas: por um lado, pode ser usada para criar laços do mesmo rente das outras instituições que originam alianças e são melhor co-
tipo que os do parentesco, para lá do universo circunscrito de parentes; nhecidas pela antropologia, tais como o casamento. Enquanto a aliança
por outro lado, pode ser usada dentro da rede de parentesco para re- do casamento é contraída entre grupos estruturalmente bem definidos,
forçar laços potencialmente frágeis, de modo a conferir um certo grau a aliança com o xará actua a um nível subestrutural e é orientada para o
de permanência a uma relação que se valoriza. indivíduo. Assim, embora se verifique que um grupo de irmãos ger-
Encontramos um exemplo desta utilidade no caso de um homem manos partilha os mesmos pais e o mesmo universo de parentes, cada
que estava insatisfeito com a sua posição na vicinalidade Ntsambe e um deles tem alianças individuais com os seus próprios xarás. Tal como
punha a hipótese de mudar de residência. Mais ou menos na mesma al- a maior parte. das alianças na sociedade chope, 'o laço com o xará é
tura, Chipanyelo, que era então líder da vicinalidade, deu à filha recém- efémero, já que dura apenas enquanto os envolvidos estão vivos e não
-nascida o nome do dissidente, que depois disso decidiu ficar. ~ando pode ser herdado.
perguntámos a Chipanyelo a razão por que dera à filha o nome desse
outro homem, respondeu: «Balanyane parecia infeliz e eu gosto dele;
procurei f.1zê-lo feliz dando à minha filha o nome Peniselwane» (que o amigo especial (ndoni)
deriva de Penisali, o nome «de escola» de Balanyane). Este parece ser um
caso nítido de um homem com autoridade que se apercebe do perigo Num sistema social dominado por relações de parentesco, que na sua
de o seu apoio se ver diminuído pelo possível afastamento de um outro maioria são atribuídas, há sempre uma área jntersti~ial que pode ser explo-
homem claramente insatisfeito e que, em consequência, usa a institui- rada por relações alcançadas, como é o caso do co~plexo do xará. Outro
ção do xará como táctica para reddinir e reforçar a sua relação com O laço também voluntoírio que actua nas «lacunas» crltrc as estruturas é o da
dissidente. Neste caso resultou. . amizade. Efectivamente, a flexibilidade do parentesco dlOpe faz com que
o sistema possa ser adaptado a várias situações c, em certo sentido, muitos
laços de parentesco não são meramente atribuídos, mas, pelo contrário,
• Algumas passagens do texto original de carácter mais teórico e menor rcieváncia
etnográfica não (oram tracJuzidas. (N. do E.)
devem ser mobilizados e activados. Todavia, a ,!lObilidade elevada da
Tomwane Ntsambe explicou-me que, em criança, fora acolhido em casa
maioria dos indivíduos chopes e a ênfase em coalizões centradas no indi-
víduo, como os conjuntos de acção, fazem com que a flexibilidade do sis- do seu xará, Tom, que vivia na povoação vizinha de Mangane. Enquanto
tema de parentesco não seja suficiente para responder a todas as con- viveu ali, a alguma distância da sua casa, Tomwane tom.ou-se ar:-llgo de um
tingências - por isso são tão importantes as instituições menos formais do rapaz da sua idade, Menetiyane Nyakwaha. A sua anllZade fOI cresc~ndo

xará, da amizade ou mesmo da vizinhança. ao longo dos anos, até que chegou um momento em que Mene.tlyane
Os chopes reconhecem vários tipos de amizade, sendo os mais co- pediu a Tomwane que fosse seu Itdoni e este aceitou. Não foram rea1tzados
muns e de maior utilidade os tipos nya1Ja e ndoni. A amizade nya!Ja rituais especiais, mas houve uma troca de pequenas ofertas (uma navalha
tende a basear-se num sentimento generalizado de boa vontade e sim- e um par de sapatos) e desde então os dois homens mantiveram .um ~on-
patia e o termo pode ser aplicado a qualquer pessoa com quem ego sinta tacto próximo, embora vivam a cerca de 5 quilómetros de distânCia. Ai~da
ter laços de amizade. A saudação dichirle nya1Ja (o Sol já nasceu, amigo) hoje trocam pequenas ofertas e partilham as refeições que as respectivas
é usada com rrequência entre indivíduos que não têm relações de paren- mulheres preparam para eles quando viajam jun.tos. Sempre que ~m deles
convoca um rancho de trabalho (didimwa), reahza um ntual, assiste a um
tesco ou afinidade mas que, mesmo assim, pretendem manifestar algum
tipo de relação, por ténue que seja. Essa saudação pode também ser julgamento ou faz uma festa, o outro está presente; quando a mulher d~
usada entre estranhos que tenham mais ou menos a mesma idade; em Tomwane morreu repentinamente, a primeira pesso~ que se procurou fOI
suma, o termo veicula um sentimento de compatibilidade em situações Menetiyane para apoiar o amigo nesse momento d~idor. Menetiyane~ que
em que não existe um laço mais formal. pertence à povoaçãode Mangane, toca mbila na orquestra da po~oaçao de
A amizade ndoni, embora seja também uma relação alcançada, cons- Nyatsíku. A sua presença é aceite devido à sua relação próxIma com
titui um laço mais formal. As pessoas podem ter muitos amigos do tipo Tomwane, que é o dirigente (7tJa!Jombe) da orquestra.
nyaha, mas, geralmente, têm apenas um ou talvez dois amigos do tipo Embora este caso seja simultaneamente breve e idiossincdtico, de-
nrloni. Indivíduos excepcionais, de algum modo influentes, poderão monstra algumas das características do ideal (aos olhos dos chopes) da
dlegar a ter seis vanrloni (na verdade, isso pode ser visto pelos outros amizade ndoni: o facto de se ter desenvolvido a p:utir ele uma relação ele
como um indicador do seu prestígio). O ndoni é um amigo especial; o familiaridade, tomando-se uma ligação forte e quase formal; a troca
termo pode ser aproximadamente traduzido por «melhor amigo». A re- contínua de ofertas; a presença de um nas celebrações e nos momentos
lação com um mlom' é uma forma de contrato diádico na medida em que de crise do outro; a participação regular nos conjuntos de acção um do
se trata de uma relação próxima entre dois indivíduos, caracterizada por outro. Todos estes elementos fazem parte do padrão de interacção es-
uma série contínua de trocas de ofertas, bens e serviços, ao longo da vida perado entre este tipo de amigos (desde que a distânci~ não se tome um
dos envolvidos ou enquanto dure a relação entre eles, Contrariamente ao facto r de inibição). O nrloni é potencialmente um aliado de peso que
laço com o xará, em que este não é necessariamente consultado antes de ofúecerá um apoio importante se este for necessário,
ser dado o seu nome à criança, a relação com o «amigo especial» só passa As obrigações que derivam da amizade variam grandemente em
a existir formalmente quando um indivíduo se aproxima de um outro e funç;\o da força da relaç;\o e esta depende em grande medida de quan-
lhe pede que seja seu nrioni. Os vrmrioni devem ser do mesmo sexo (mais to os indivíduos. envolvidos nas várias díades valorizam a ligação num
uma vez, contrariamente ao laço com o xará, já que neste a criança pode dado momento, bem como de outros factores, de que é exemplo a con-
eventualmente tomar o nome de uma pessoa do sexo oposto). Não en- tiguidade. No entanto, de uma maneira geral, pode afirmar-se que as
contrei nenhum caso de uma relação ndoni entre um homem e uma mu- obrigações decorrentes d~ amizade são menos específicas do que as re-
lher. As pessoas que consultei sobre o assunto afirmaram que um;] relação sultantes do parentesco e que a sua manutenção implica menos
desse tipo exporia o casal .1 suspeita de adultério. sanções. Podemos compreender melhor esta relação se observarmos os
tipos de reciprocidade que existem entre amigos em termos do enqua-
• Caso J 3 - A amizade de Tom7lNl11ee Menetiyafll' dramento proposto por Sahlins (1965).
De acordo com os informantes, muitas das relações ndoni, embora de No seu artigo «On the sociology of primitive exchangc», Sahlins de-
forma alguma a totalidade, surgem da relação infom1al do tipo nYfI/;a. fende que é possível distinguir três tipos de reciprocidade: equilibrada,
fi
generalizada e negativa; interessam-me aqui apenas os primeiros dois ca um grau elevado de confiança. Dada a natureza deste tipo de reci-
tipos. Resumidamente, a reciprocidade equilibrada significa que dois in- procidade, é muito mais diRcil «compensap> as trocas e assim acabar
divíduos trocam entre si bens e serviços que, embora possam ser muito com a relação, embora exista essa possibilidade teórica."
diferentes no conteúdo, têm um valor mais ou menos semelhante. A amizade nya!Ja, caracterizada pela sua vàga incidência afectiva,
O facto de as trocas serem saldadas, como numa contabilização de deve pode conter um elemento de instrumentalidade se, por exemplo, for
e haver, é um indicador da qualidade da relação entre os envolvidos. mais útil para um dos parceiros do que para o outro. Por outro lado, a
O tipo de amizade nyaba, bastante informal, caracteriza-se por uma relação ndoni não tem necessariamente qualquer pretensão de afecto à
reciprocidade deste tipo; o facto de os dois indivíduos trocarem efecti- partida, 19 embora se espere que a relação se desenvolva nesse sentido
vamente bens e serviços a um nível que ultrapassa a transacção comer- depois de duas pessoas se tornarem velllrioni.
cial é uma afirmação simbólica da igualdade e de que existe alguma con· No entanto, numa perspectiva geral, há indubitavelmente uma pre-
fiança. No entanto, os objectos de troca têm aproximadamente o dominância dos aspectos instrumentais da amizade no complexo ndoni,
mesmo valor e o ciclo de reciprocidade deve ser completado num perío- quanto mais não seja devido ao seu carácter mais formal, o que f.1Z com
do de tempo relativamente curto, o que indica que não há um empe- que seja mais susceptível (dado o seu maior grau de permanência) de
nho total na relação, que existe também uma certa falta de segurança e manipulação na sua qualidade de aliança. A amizade nyaba, por seu
confiança. A relação pode ser terminada por meio da «compensação» de lado, é constituída principalmente por e1emenios emocionais, embora
uma troca, sem que haja uma reabertura do ciclo. Na verdade, o tipo de possa vir a transformar-se nessa outra ligação mais forte. De qualquer
amizade nya!Ja tende a ser casual e transitório, já que é fácil criá-Io, mas modo, poderá haver algumas considerações tácticas na escolha de qual-
também é fácil desfazê-Io; ao longo da vida de uma pessoa poderá haver quer dos tipos de amigos."
um grande número dessas amizades casuais. Assim, a amizade «especial" nd.oni pode ser uma aliança, diádica por na-
A relação ndoni, pelo contrário, caracteriza-se idealmente pelo mo- tureza, mas com o efeito de criar vias de acesso a outros recursos sociais,
delo de Sahlins da reciprocidade generalizada (1965, 147). Há uma série Voltando ao caso de Tomwane e Menetiyanc: o último pertence à orques-
de trocas entre os indivíduos que têm este tipo de relação, algumas tra de Nyatsiku, embora viva em Mangane. Como se verá noutro capítu-
maiores, algumas menores, muitas intangíveis, como acontece quando lo, as letras das canções interpretadas pelos músicos de Nyatsiku ao som
se presta apoio num caso de tribunal ou se manifesta lealdade numa de- da orquestra são dirigidas sobretudo contra Seven Jack, a terceira das
savença. A partilha de refeições, o elogio mútuo nas canções, a caça povoações sob a autoridade do cabo Nyakwaha. A aliança informal entre
conjunta, o facto de estarem muitas vezes na companhia uma da outra, as povoações de Nyatsiku e Mangane, a despeito de algumas razões
são sinais, para o resto da comunidade, de que entre duas pessoas existe históricas e políticas, deve-se, pelo menos em parte, à amizade próxima
mais do que uma mera amizade comum. Assiste-se também à troca de que existe entre Tomwane e Menetiyane. Por esse motivo, considero que
presentes de valor variável. Tomwane, por exemplo, que é um hábil a amizade especial é um princípio estrutural alternativo aos outros tratados
construtor de xilofones, consertou a mbila de Menetiyane e seria para ele até aqui (o parentesco - agnático, matrilateral e por afinidade - ou as re-
impensável pedir ou aceitar qualquer pagamento por esse trabalho, que lações em tomo da instituição do xará). Os direitos e obrigações que lhe
normalmente seria caro. Uma vez que estes homens são vandoni, seria são inerentes podem ser activados como princípio de recrutamento para
inapropriado que Tomwane pedisse, ou que Menetiyane oferecesse, os conjuntos de acção.
qualquer pagamento pelo serviço. Na amizade especial, os custos não
são contabilizados nem há qualquer urgência na retribuição: podem • Algumas passagens do texto original de carácter mais teórico e menor relevância
etnográfica não foram traduzidas. (N. do E.)
passar semanas, meses ou mesmo anos; a compensação pode ser mone-
19 Algo que poderá ilustrar este aspecto é o facto de, pouco depois de chegarmos ao
tária ou pode consistir na oferta de um bem completamente diferente terreno, a minha mulher ter sido inundada de solicitações para se tomar ndol1i de várias
do que foi inicialmente oferecido. Como nota Sahlins (1965, 145 e mulheres que eram então totalmente desconhecidas. Dificilmente poderiahaver nestes
segs.), a reciprocidade generalizada permite que passe muito tempo, o casos uma ligação emocional. Aparentemente, julgava-se que ela era uma pessoa rica e
influente, que iria guarnecer esses amigos de bens «europeus», como sabão e tecidos, em
que indica a proximidade da relação entre os envolvidos, já que impli- troca de milho e mandioca, de vez em quando.

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o 'lI/me-parentesco: xartÍs, pais de criação e amigos

manência pela formalização de alguns dos laços, o que introduz os de-


. A amizade, especialmente a do tipo ndoni, é de grande utilidade em
veres e expectativas recíprocos mais firmes que se verificam no com-
situações em que outras estruturas poderão tàltar, pois é o mais flexível
plexo ndoni. Assim, neste contexto, a amizade especial é uma forma de
e adaptável, de tO,dos os laços. Assim, num contexto em que a mobili-
quase-parentesco que actua em seu lugar e desempenha as suas funções
dade geografica e e.levada e onde os parentes poder~o ser poucos ou
em situações em que o próprio parentesco não existe ou é insuficiente
estar ausen~es, ~ amIzade poderá ser invocada como um substituto para
os laços atnbuldos que estão em falta. O argumento mais claro a favor para cobrir todas as contingências.
A amizade é um recurso social imensamente valioso para os chopes:
do carácter de quase-parentesco da relação entre vandoni encontra-se
é, sem dúvida, a mais flexível das instituições, porque os direitos e de-
talvez nos padrões de comportamento das mulheres, especialmente das
veres que lhe são inerentes são indeterminados e c\ependem das situa-
casadas, na sociedade chope.
ções e dos indivíduos concretos. Trata-se de uma relação alcançada que
Tradicionalmente, as mulheres têm muitos mais vandoni do que os
pode ser adaptada às exigências de quase todos 0S ambientes sociais.
homens; na v~rdade, Santos, no seu dicionário de português-chope, des-
Especialmente relevante para a caracterização da relaç:io llya1Ja é a
creve o ndonr como sendo uma pessoa amiga e camarada, sobretudo
entre mulheres da mesma idade (Santos 1950, 180). seguinte afirmação de Foster:
Mas por que será que as mulheres têm mais amizades especiais do
A amizade difere dos outros sistemas (como o parentesco) na medida em
que ~s homens? Julgo que a resposta a esta quest~o se prende com os que dificilmente haved lugar para um desf.1samento duradouro entre o
pa~r~es de casamento dos chopes, que evidenciam as seguintes carac- comportamento ideal e o comportamento efectivo: quando os amigos dei-
tenstIcas: xam de ser amigáveis, a instituição dissolve-se[1961, 1184].

a) Os homens escolhem mulheres a alguma distância; A extrema flexibilidade presente neste tipo de amizade faz com que
b) O: homen~ não podem casar com mulheres do clã do pai ou da os laços sejam fáceis de estabelecer, mas também de desfazer - e daí a
mae (ou seja, a mulher não pertencerá certamente ao universo de necessidade do tipo ndolll' de amizade, que torna a relação um pouco
parentes);
mais fiável.
c) O casamento (especialmente de início) tende a ser patrivirilocal. Num sistema social que incide no indivíduo e no qual mesmo às es-
truturas mais formais falta força e profundidade a amizade consegue
Isto tem como consequência que a noiva, recém-<:asada, chega a uma «preencher as lacunas deixadas pelas imperfeições das outras» (Foster
zona que provavelmente desconhece, onde provavelmente não tem 1961, 1184). A mobilidade dos chopes, bem como as condições sociais
parentes, na qual passa a estar sob a autoridade de uma sogra hostil. Em radicalmente diferentes nos complexos mineiros, criam a necessidade
suma, está completamente sozinha e precisa desesperadamente de alia- de uma instituição como'a da amizade, que Foster caracteriza como «a
dos, O único meio de que dispõe para compensar essa ausência de lima mais vers;\til de entre (todas) as instituições" (Foster 1961, 1184).
rede pessoa! ~ a criação de numerosos laços de amizade, especialmente
alguns que se,am duradouros.
Muitas d~s relações ndoni são formadas por homens jovens que Conclusão: os xarás e os amigos
forama.colh~dos noutra família e vivem fora do seu local de origem.
Outra slt~açao qU,e ~requentemente gera uma amizade especial é a ida como quase-par~ntes
para as mmas da Afnca do Sul. ~alquer dessas situações é semelhante
Neste capítulo uso o tehno «quase-parentesco» para caracterizar as ins-
a da mulher, casada: há um indivíduo que se af.1stoll e está isolado da
tituições que, embora não sejam efectivamente de parentesco, desem-
sua. rede SOCialnormal, constituída por parentes, afins, vizinhos, xads e
penham muitas das funções que poderiam talvez caber a várias categorias
?n:l~OS. PeraI~te essa situação heterogénea, o indivíduo vê-se obrigado a
de parentes., Refiro-me, em especial, às funções de formação de laços e
mlClar a pa~lr d~ nada a construção de uma rede social, geralmente
alianças, que são vitais m~m sistema social relativamente fluido, como o
recorrendo a amlzade e à vizinhança. Esta rede ganha alguma per-
dos chopes, onde o indivíduo é livre de mobilizar todas as relações estru- circunscrever. Devemos ter em mente que a ligação com o xará pode es-
turais a que tem acesso, de modo a criar uma rede social eficaz. tender-se para além da rede existente, alargando-se a pessoas com as
Talvez seja útil lembrar que há abundância de terras no território quais não há laços de parentesco, ou pode estabilizar e reforçar laços
habitado pelos chopes e que este é um dos principais factores ambien- dentro do universo de parentes."
tais que contribuem para que seja possível uma elevada mobilidade, Por fim, devemos notar que as instituições da amizade e do xará são
pois, como afirmei noutro capítulo (de acordo com Meggitt 1965), a recursos sociais indispensáveis, oferecendo estruturas alternativas que
pressão fundiária tende a fazer com que os grupos se tornem exclusivis- podem ser accionadas nas situações mais dific~is, especialmente quan-
tas e recrutem apenas parentes patrilineares (se a sociedade tiver uma do se verificam rápidas mudanças sociais ou quando, por qualquer mo-
ideologia agnática). Em consequência, e apesar de os chopes professa- tivo, as instituições mais formais do parentesco estão ausentes. A sua
rem um sistema agnático, acabam por lhe prestar pouca atenção, pelo versatilidade baseia-se, sem dúvida, no seu carácter menos formal, o
que, na prática, o que se observa se parece mais com uma organização qual (pelo menos no caso da amizade) pode também implicar que
não linhageira com um pendor patrilinear. Os grupos de parentesco sejam intrinsecamente menos estáveis. Todavia, é indubitavelmente im-
chopes, se é que se pode considerar que existem, têm muito pouca pro- portante estudar essas instituições menos formais. Citando Wolf: "O an-
fundidade geracional, o que significa que o indivíduo tem menos paren- tropólogo tem uma licença profissional para estudar essas estruturas in-
tes a quem recorrer do que, por exemplo, na sociedade zulu, onde os tersticiais, suplementares e paralelas [... ] e para expor a relação que elas
grupos de parentesco são contabilizados linearmente ao longo de mais têm com as principais instituições estratégicas e globais» (1966, 2).
gerações e, portanto, têm uma base efectiva mais ampla. As instituições menos formais, como o quase-parentesco acima des-
Perante um sistema social caracterizado pela lateralidade, e no qual o crito, têm certamente possibilidades manipuiativas, mas é possível afir-
prestígio pode ser alcançado por meio da realização pessoal, o indivíduo mar que mesmo as estruturas aparentemente mais rígidas se prestam à
deve tentar reunir muitas alianças dispersas, o que resulta na formação manipulação, se o indivíduo assim o desejar. Uma dessas "estruturas» é
de coalizões centradas no próprio indivíduo. Wolf uescreveu esta situa- o sistema de c1assificaçiio do parentesco, que descreverei no próximo
ção em termos gerais: «A maior mobilidade [... ] traz um aumento do capítulo, o último dos que apresentam uma abordagem parcial de de-
número de combinações possíveis dos recursos, incluindo várias com- terminado ponto de vista, antes de. por fim, encerrarmos o ciclo da
binações de conhecimento e influência com o acesso a bens ou a pes- análise, mostrando como os indivíduos usam e "distorcem» o sistema
soas» (1966, 5). Verifica-se assim que estas coalizões centradas no indi- para o adequar às suas necessidades.
víduo compreendem pessoas que provêm de diferentes tipos de
relações; no entanto, como sugere o termo «coalizão», trata-se de uma
união temporária, pois, embora possa haver um núcleo constante de in-
divíduos, há uma substituição frequente dos membros mais periféricos.
As relações com o xará e os amigos são, portanto, recursos sociais no
processo de formação de coalizões, mas o seu funcionamento é mais
subtil do que parece à primeira vista. Para compreendermos inteira-
mente o papel que desempenham no sistema social é necessário basear-
mo-nos no modelo do indivíduo que faz as suas escolhas, as quais são
até certo ponto determinadas por uma situação social específica, bem
como pela interpretação que o indivíduo faz da mesma. É devido ao
carácter idiossincrático da maior parte dessas situações que não emerge
um padrão claro da análise das alianças com os xarás.
Tanto a instituição do xará como a da amizade podem ser usadas es-
'f Algunus passagens do texto original de car,íctcr mais teórico e menor rdevolIlcia
trategicamente, quer para «abri!', a rede social do indivíduo, quer para a ctnográfica nào foram traduzidas. (N. do E.)

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