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FORMAÇÃO DOCENTE1
(REFLECTION ABOUT MULTICULTURALlSM IN SCHOOL ANO IN THE
FORMATION OF TEACHERS)
ANA CANEN"
k .ró: '10 hÁ VIO BARBOSA MOREIRA 3
RESUMO INTRODUÇÃO
o artigo focaliza o multiculturalismo e suas im- A pluralidade de culturas, etnias, religiões, visões de
plicações para o currículo da escola e da formação mundo e outras dimensões identitárias tem sido cada
docente. Apresenta a emergência de preocupações vez mais reconhecida nos di ersos campos da vida
multiculturais, examina abordagens teóricas, discute contemporânea. A complexidade das relações, tensões
princípios e estratégias de um enfoque multicultural e conflitos advindos de choques e entrechoques des-
na educação, bem como analisa questionamentos que sas identidades plurais e de suas lutas por afirmação e
têm sido feitos ao multiculturalismo. O argumento cen- representação em políticas e práticas sociais extrapola
tral é que as tensões e os questionamentos dirigidos ao o âmbito da mera reflexão acadêmica. Esse panorama
multiculturalismo não inviabilizam o projeto multi- invade nosso cotidiano, evidenciando-se nos noticiá-
cultural; ao contrário, podemfavorecer o avanço teó- rios repletos de preconceitos, xenofobia e guerras, nos
rico e o desenvolvimento de propostas curriculares espaços virtuais, em que cada vez mais se difundem
pautadas em uma orientação multicultural. mensagens racistas e discriminatórias, bem como em
qualquer local em que se expresse a face desumana
Palavras-chave: multiculturalismo, cultura, educa- do ódio, da exclusão ou do desprezo ao "outro", per-
ção multicultural, currículo, formação docente cebido e tratado como diferente.
Considerar a plural idade cultural no âmbito da
educação e da formação docente implica, portanto,
ABSTRACT pensar formas de se valorizar e se incorporar as iden-
tidades plurais em políticas e práticas curriculares.
The article focuses on multiculturalism and its Implica, também, refletir sobre mecanismos discrimi-
implications to school curriculum and teacher training natórios ou silenciadores da pluralidade cultural, que
courses curriculum. II presents the emergence of tanto negam voz a diferentes identidades culturais,
multicultural concerns, examines theoretical silenciando manifestações e conflitos culturais, como
approaches and discusses principies and strategies buscam homogeneizá-Ias em conformidade com uma
of a multiculturally oriented education. It also perspectiva monocultural. A partir de tais reflexões,
analyses main challenges to multiculturalism. 1t is ao mesmo tempo amplamente defendidas e criticadas,
argued that despite all the tensions and questionings constitui-se a base do que tem sido denominado de
involved in multicultural theorizing and practice, multiculturalismo em educação. Difundem-se, então,
mu/ticultural initiatives are feasible. The tensions and as discussões sobre os objetivos e as possibilidades
questionings are even seen as favouring both the de uma prática pedagógica multiculturalmente orien-
theoretical and practical development of the field. tada, sobre as divergências teóricas e metodológicas
referentes à própria concepção de multiculturalismo,
Keywords: multiculturalism - culture - multicultural bem como sobre os diversos contextos do multicultu-
education - curriculum - teacher training ralismo e suas especificidades.
I O presente texto constitui versão modificada de texto de apoio utilizado no minicurso Multiculturalismo, currículo e formação
docente, ministrado pelos autores na XXII Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, 26 a 30 de setembro de 1999
2 Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UFRJ. Doutora em Educação pela Universidade de Glasgow
3 Professor Titular da Faculdade de Educação da UFRJ. Doutor em Educação pela Universidade de Londres
BH/UFC
destacar o que a cultura é. Nessa mudança, efetua-se MULTICULTURALISMO: CONCEPÇÕES E
um movimento do quê para o como. Concebe-se, as- SUBSTRATOS TEÓRICOS
sim, a cultura como prática social, não como coisa
(artes) ou estado de ser (civilização). Nesse enfoque, Para Kincheloe e Steinberg (1997), o rnulticul-
coisas e eventos do mundo natural existem, mas não turalismo significa tudo e ao mesmo tempo nada.
apresentam sentidos intrínsecos: os significados são Segundo os autores. não se pode falar de multicul-
atribuídos a partir da linguagem. Quando um grupo turalismo, neste final de século, sem se especificar
compartilha uma cultura, compartilha um conjunto com clareza o sentido atribuído ao termo. Falar em
de significados, construídos, ensinados e aprendidos multiculturalismo pode indicar diferentes ênfases: (a)
nas práticas de utilização da linguagem. A palavra cul- uma atitude que se pretenda ver desenvolvida em re-
tura evoca, portanto, o conjunto de práticas por meio lação à diversidade cultural; (b) uma meta a ser
das quais significados são produzidos e compartilha- alcançada em um determinado espaço social; (c) um
dos em um grupo. São os arranjos e as relações en- valor (de tolerância, de respeito) a ser desenvolvido
volvidas em um evento que passam, dominantemente, entre indivíduos; (d) uma estratégia política de reco-
a despertar a atenção dos que analisam a cultura a nhecimento da diversidade cultural e esforços de re-
partir dessa quinta perspectiva, passível de ser resu- presentação política das mesmas; (e) um corpo teórico
mida na idéia de que cultura representa um conjunto de conhecimentos que buscam entender a realidade
de práticas significantes. cultural contemporânea; (f) uma visão crítica do co-
Se entendermos o currículo, como propõe nhecimento transm itido pelas instituições organi-
Williams (1984), como uma seleção da cultura, pode- zadoras da cultura; (g) o atual caráter das sociedades
mos concebê-lo, também, como conjunto de práticas ocidentais (Kincheloe e Steinberg, 1997 ; McLaren,
que produzem significados. Nesse sentido, conside- 1997; Gonçalves e Silva, 1998).
rações de Silva (1997) podem ser úteis. Segundo o Essa última perspectiva é adotada por
autor, o currículo é o espaço em que se concentram e Kincheloe e Steinberg (1997), para quem o
se desdobram as lutas em tomo dos diferentes signifi- multiculturalismo não é algo em que se acredite ou
cados sobre o social e sobre o político. É por meio do com o qual se concorde: é algo que simplesmente é.
currículo que diferentes grupos sociais, especialmen- É a inevitável condição da vida ocidental contempo-
te os dominantes, expressam sua visão de mundo, seu rânea. Pode-se responder a essa realidade de diferen-
projeto social, sua "verdade". tes modos, mas não se pode negá-Ia ou apagá-Ia.
Apoiando-se no pensamento pós-estrutural, Multiculturalismo representa a natureza dessa respos-
Silva discute as relações entre cultura e currículo, ta, que envolve a formulação de definições conflitantes
acentuando que cultura deve ser compreendida mais de mundo social decorrentes de distintos interesses
como produção, como criação, como trabalho, e econômicos, políticos e sociais particulares. Nessa
menos como produto, como algo pronto, acabado. formulação, as relações de poder desempenham pa-
Destaca, então, a produtividade da cultura, sua ca- pel crucial, auxiliando a conformar o modo como in-
pacidade de trabalhar, constantemente, inúmeros divíduos, grupos e instituições reagem à realidade
materiais. Todo esse trabalho de desmontagem e cultural. O multiculturalismo em educação envolve a
desconstrução, bem como de remontagem e recons- natureza dessa resposta em espaços educacionais.
trução, ocorre, acrescenta o autor, em um contexto Trata-se, nesse caso, de contextualizar e de compre-
de relações sociais que envolvem conflitos, nego- ender a produção das diferenças.
ciações, acordos. Em síntese, como a cultura, o cur- O foco nas diferenças é também defendido por
rículo pode ser concebido como: (a) uma prática de Gonçalves e Silva (1998), para quem falar do multi-
significação; (b) uma prática produtiva; (c) uma re- culturalismo implica falar do jogo das diferenças, cujas
lação social; (d) uma relação de poder; (e) uma prá- regras são definidas nas lutas sociais por atores que,
tica que produz identidades sociais. por uma razão ou outra, experimentam o gosto amar-
Se o currículo constitui o cerne da relação go da discriminação e do preconceito no interior das
educativa, corporificando os nexos entre saber, poder sociedades em que vivem. Não pode haver, então,
e identidade, será em grande parte por seu intermédio educação multicultural separada dos contextos das
que as escolas buscarão atribuir novos sentidos e pro- lutas de grupos culturalmente dominados, que bus-
duzir novas identidades culturais, auxiliando a confor- cam modificar, por meio de suas ações, a lógica pela
mar novos modos de reação à realidade social qual, na sociedade, os significados são atribuídos. As
contemporânea, inescapavelmente multicultural. abordagens pedagógicas do multiculturalismo preci-
L .'1M.
da população. Vale envidar esforços no sentido de nâmicas que visem a sensibilizar discentes e futuros
engajar docentes e discentes no questionamento da docentes para os diferentes aspectos envolvidos na
inserção de suas identidades culturais nesse quadro construção identitária (em contraposição a uma visão
mais amplo, analisando as desigualdades, os silêncios essencializada da mesma), ou em discussões desafia-
e as exclusões nele presentes. Pesquisar os universos doras de visões estereotipadas de grupos distintos, o
culturais dos estudantes passa, então, a ser tarefa in- diálogo oferece a base indispensável para o desenvol-
dispensável nessa abordagem, a fim de que intenções vimento de uma perspectiva multicultural no currícu-
multiculturais críticas não redundem em práticas pe- lo em ação.
dagógicas distanciadas das vivências e das culturas Em quarto lugar, é necessário acentuar que os
de alunos e de futuros professores. aspectos cognitivos envolvidos na formação docente
Em segundo lugar, vale insistir que a educação não são suficientes para estimular de fato uma postu-
multicultural não pode ser reduzida ao espaço de uma ra multicultural, não podendo, portanto, ser separa-
disciplina a ser incluída no currículo (Canen, 1997a, dos de um concomitante envolvimento afetivo. Se a
1997b, 1999). Uma perspectiva multicultural deve intenção é desafiar e transformar percepções, valo-
informar os conteúdos selecionados em todas as áre- res, sentimentos, emoções, há que se procurar, cuida-
as do conhecimento, contribuindo para ilustrar con- dosa e adequadamente, organízar a prática pedagógica
ceitos e princípios com dados provenientes de culturas de modo a atingir tanto a "mente" como o "coração"
diversificadas, focalizar as diferenças como proces- do futuro docente.
sos de construção, decodificar teorias e conceitos na
perspectiva do outro, bem como desafiar mensagens
etnocêntricas, racistas e discriminatórias presentes nos CURRíCULO E FORMAÇÃO DOCENTE:
materiais didáticos e nos discursos da sala de aula. EXPERIÊNCIAS MULTICULTURAIS
Além dos conteúdos, há que se definir estraté-
gias adequadas ao trabalho multicultural na formação Experiências multiculturais têm sido desenvol-
de professores. Encontram-se na literatura especializa- vidas dentro e fora do espaço formal da escola. Algu-
da algumas sugestões: oferta de cursos que abordem mas das que se realizam fora da escola destinam-se a
questões culturais; discussões em tomo dos elementos grupos étnicos específicos, ou seja, a comunidades de
constitutivos das identidades dos professores; deba- negros, índios, imigrantes, ciganos etc. O perigo de
tes sobre questões polêmicas envolvendo pluralidade homogeneização identitária é, nesse caso, bastante
cultural e preconceitos a ela relacionados; críticas de real. Em nome, por exemplo, de uma suposta identi-
artigos polêmicos publicados na imprensa; análises dade negra, homogênea, identificável e localizável
de situações de discriminação e elaboração de ensai- pode-se minimizar a complexidade das identidades de
os sobre as mesmas com a utilização de diferentes diferentes mulheres e homens negros, com valores
fontes; reflexões pessoais sobre a própria identidade diferenciados, formas de vida e de inserção social
e sobre como diferentes aspectos dessa identidade in- variadas. Ainda vale ressaltar o perigo de uma pers-
fluenciam as experiências e as formas de significá- pectiva que busque falar sobre negros a partir da vi-
Ias; mesas-redondas com a participação de pessoas de são de mundo dos não-negros (Gonçalves e Silva.
padrões culturais diversos; desenhos do mapa-rnúndi 1998). Importa, então, distinguir estudos negros de
questionando sua construção e o etnocentrismo nele estudos sobre negros: estes últimos são construidos a
evidenciado; oferta de cursos sobre a história de um partir de uma perspectiva externa às concepções de
grupo oprimido; organização do currículo da forma- vida próprias dos membros do grupo cultural em pauta.
ção docente a partir de categorias como cultura, co- Também no caso dos índios o mesmo dilema se
nhecimento, poder, história, linguagem, diferença, apresenta. Distinguir "educação indígena' de "edu-
discriminação, identidade; análises de etnografias de cação para o índio" é central para o desenvolvimento
escolas que atendem a estudantes de distintos grupos de programas efetivos para essas identidades cultu-
culturais; análises de autobiografias, narrativas pes- rais. Kahn (1994) afirma que o que se tem feito é, na
soais, romances, poesias, músicas, filmes, anúncios' erdade. uma educação para o índio, cujo parârnetro,
participação em experiências comunitárias e assim por seja para reproduzir, seja para contestar, tem sido a
diante (Moreira, 1999). escola formal. A autora sugere que a educação indí-
Em terceiro lugar, destaque-se a importância do gena só será possível quando os intelectuais das pró-
diálogo como elemento delineador de uma prática prias comunidades indígenas assumirem a concepção
curricular multiculturalmente orientada. Seja em di- do processo pedagógico de suas escolas.
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