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Resumo
O presente trabalho trata de uma pesquisa em andamento sobre corpo, gênero e envelhecimento.
Considerando que o envelhecimento do corpo implica além de investimentos financeiros e
emocionais, também adesão a padrões normativos de como se deve apresentar socialmente a
partir da geração e do gênero. Partindo desta perspectiva, este trabalho visa compreender a partir
do ponto de vista do gênero os cuidados que homens e mulheres de diferentes gerações têm feito
para lidar com o processo de envelhecimento de seus corpos. Para tanto, realizamos observação
de campo em uma instituição asilar e no Programa Longevidade Saudável durante o período de
março a julho de 2015. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas em caráter de
profundidade. A partir de memórias, diálogos e o convívio com os idosos, verificaram-se os
discursos e seus significados compartilhados como “verdades” sobre o processo de
envelhecimento e o cuidado com o corpo.
INTRODUÇÃO
O destino biológico torna o idoso improdutivo, logo, em uma sociedade capitalista onde o
lucro e os rendimentos fazem parte da lógica do sistema econômico, ser improdutivo não condiz
com os interesses desta sociedade (Beauvoir, 1990).
Nesta perspectiva de representação estigmatizadora, o corpo é visto como aquele que não
se enquadra no ideal de corpo jovem, não suporta o trabalho, está tomado pelo cansaço, pelas
doenças, ou seja, fadado à morte. Muitas vezes, os idosos não podem mais sustentar-se por si só,
o único recurso é o asilo. Em alguns lugares o asilo é um “lugar para esperar a morte” (Beauvoir,
1990, p. 312).
Alguns autores (Barros, 2011; Giddens, 2005; Goldenberg, 2011) apontam mudanças nos
discursos em relação às formas como o envelhecimento tem sido apresentado pela sociedade.
Segundo Giddens (2005), os avanços da Medicina vêm possibilitando o retardo dos sinais da
idade avançada, e cada vez mais envelhecer não é algo admitido como natural. Médicos
especialistas no antienvelhecimento, afirmam que as novas tecnologias já possibilitam uma
sociedade que permaneça sempre jovem, isto reflete a leitura do envelhecimento como “uma
doença que pode ser tratada” (Giddens, 2005, p. 146).
Conforme Foucault (2005), desde a época clássica, a Medicina ocidental foi estabelecida
como um conjunto de saberes e regras que orientam a relação do sujeito com o próprio corpo,
com o alimento, com a vigília, com o sono, com as atividades e com o meio. A existência
racional está intimamente ligada às “práticas de saúde” e de cuidado com o corpo. Nesse sentido,
o controle da sociedade inicia a partir do corpo, uma vez que o sistema econômico e social
vigente depende deste para sua funcionalidade. Portanto, o corpo é uma realidade biopolítica,
enquanto a Medicina, pautada no discurso biológico, exerce uma estratégia de controle e
disciplinamento sobre os corpos, produzindo novos discursos compartilhados como “verdades” e
vinculados ao poder (Foucault, 1979).
Os novos discursos sobre o envelhecimento, acompanhados dos avanços científicos e
tecnológicos, estimulam a procura por métodos de rejuvenescimento e a adequação ao modelo do
envelhecimento ativo promovido pela vigilância e o domínio sobre o corpo e a mente por meio de
intervenções (Barros, 2011). Os métodos que retardam os sinais da velhice garantem um
envelhecimento considerado saudável. Segundo Barros (2011), o corpo feminino está mais
sujeito aos investimentos especializados médicos e estéticos, em vista de uma continuidade ao
cuidado e à intervenção que se iniciam muito cedo na vida das mulheres. Barros (2011) ainda
argumenta que as intervenções no corpo a partir do controle dos sinais que delatam a velhice,
assim como a ideia da atividade e de responsabilidade pessoal constituem as bases da “ideologia
da terceira idade” (Barros, 2011, p. 49).
Nesse sentido, homens e mulheres tendem a sofrer influências do discurso que fortalece
“verdades” sobre a “saúde do corpo” e “qualidade de vida”, estes que demandam investimentos:
prática de exercícios físicos, alimentação regulada, reposições hormonais, sociabilidade, cirurgias
plásticas, entre outras. Da mesma forma, o discurso que compreende o envelhecimento como
doença e por isso requer provimentos para aqueles que são incapazes de cuidar do próprio corpo,
muitas vezes encontra no asilo o único destino.
Estes modelos de envelhecimento podem interferir na construção de identidades tanto
individuais quanto coletivas a partir de um universo simbólico compartilhado por seus adeptos.
Considerando que: o envelhecimento do corpo carrega diversos significados produzidos a partir
de abordagens que buscam definir o que é envelhecer e qual a melhor forma de vivenciá-lo, este
trabalho visa compreender, a partir do ponto de vista do gênero, os cuidados que homens e
mulheres têm para lidar com o processo de envelhecimento de seus corpos a partir dos discursos
aqui já mencionados. Para tanto, buscamos compreender as motivações dos integrantes do grupo
de idosos do asilo e do grupo de idosos do Programa Longevidade Saudável em recorrerem a
estas instituições neste momento de suas vidas, bem como compreender a percepção que estes
têm sobre o processo de envelhecimento.
METODOLOGIA
Para o presente estudo realizamos pesquisa de campo durante o período de março a julho
de 2015 em uma instituição asilar de caráter filantrópico, onde estão abrigados 98 homens e
mulheres idosos; a pesquisa também teve enfoque nas atividades do “Programa Longevidade
Saudável” (PLS), um projeto desenvolvido pela Universidade Federal de Mato Grosso que
propõe maior expectativa de vida aos funcionários aposentados da Universidade, assim como, aos
idosos da comunidade externa. O Programa oferece uma série de aulas de exercícios físicos e de
estímulo cognitivo. Escolhemos as aulas de musculação e hidroginástica por se enquadrarem no
perfil desta pesquisa.
No âmbito do asilo, foi realizada a identificação e mapeamento de pessoas que pudessem
contribuir com a pesquisa. A partir do contato com a coordenadora e psicóloga da instituição, foi
possível identificar os idosos lúcidos e com capacidades de ouvir e falar sem tamanhas
dificuldades. Conversas informais e entrevistas semi-estruturadas foram realizadas com homens e
mulheres 1 . A memória foi o “fio condutor” das conversas com os informantes da pesquisa.
Adentrar o universo, as lembranças, o cotidiano destes idosos implicou em estabelecer um
vínculo de amizade e principalmente de confiança entre a pesquisadora e os sujeitos em foco.
A INSTITUIÇÃO ASILAR
1
Este estudo encontra-se em andamento, e por isso, até o momento não foi possível realizar entrevistas com os idosos
do PLS. No entanto, os dados das observações de campo tem se mostrado significativos para uma análise inicial.
aos idosos ainda continuam sob responsabilidade da família. E, isto tende a ser reforçado na
medida em que as mulheres ainda são representadas como as cuidadoras em potencial das
gerações mais novas quando mães, e mais velhas, quando filhas. Partindo deste ponto de vista, as
políticas de cuidado tendem a ser silenciadas por meio de representações de gênero dicotômicas e
desiguais (Camarano e Mello, 2010).
Contudo, as transformações nos arranjos familiares e a entrada das mulheres no mercado
de trabalho refletiram no tempo dedicado para o cuidado no ambiente familiar, o que contribui
para a família não assumir a responsabilidade com os seus familiares idosos. Neste sentido, esta
responsabilidade com o cuidado passou a ser uma demanda também do Estado por meio das
políticas públicas.
As autoras Ana Amélia Camarano e Juliana Melo (2010) salientam que: o Estado não tem
avançado nestas políticas de cuidado, exemplo disso é que ainda as instituições de longa
permanência apresentam condições bastante precárias para lidar com este público, especialmente
se nos remetermos ao corpo de profissionais que prestam serviços de cuidados, saúde, assim
como, a administração dos recursos repassados pelo Estado para os municípios.
Vale a pena ressaltar que a constituição federal de 1988 que formulou o sistema de
proteção social brasileiro não foi suficiente em suas políticas de cuidado centrada nas instituições
de longa permanência com os princípios do SUS, pois o público idoso especialmente aqueles com
idade avançada, muitos com debilidades físicas e mentais são destinados aos asilos, sendo que
estas instituições ainda carregam parte de um simbólico negativo vinculado ao sujeito que foi
abandonado pela família.
A estrutura do asilo no qual realizamos a pesquisa de campo é formada por um pátio,
algumas árvores, um piso antiderrapante, um grande saguão com pequenas mesas, banheiros, e
um refeitório. Ao redor do pátio estão dispostas inúmeras cadeiras de balanço, uma ao lado da
outra. Estas cadeiras são o ponto de encontro dos idosos e das visitas, sendo, portanto, nosso
ponto de encontro durante as visitas no período da pesquisa. Este foi o local onde mantivemos
diálogos com os idosos que ali residem.
Elementos como o cheiro, o cenário e a rotina são característicos no asilo “Quatro
Estações” 2. Os idosos se deslocam de seus quartos para o pátio ou refeitório, e permanecem
horas nas cadeiras de balanço ou em suas cadeiras de rodas. Aqueles que ainda caminham
conseguem se deslocar de um cômodo a outro a passos lentos, ou aqueles que não são mais
2
“Quatro Estações” se refere ao nome fictício que utilizamos a fim de manter em sigilo o nome real da instituição.
Este nome foi escolhido porque remete à ideia de uma temporalidade sujeita a rotina, à naturalidade do passar lento
do tempo.
capazes de sustentar o corpo, empurram lentamente as cadeiras de rodas. Cuidadores, auxiliares
de limpeza e profissionais de saúde que ali trabalham, circulam constantemente pelo local,
fornecendo suporte aos idosos que precisam de ajuda, ou em função de outras demandas que
aparecem no cotidiano do asilo. Existem duas alas compostas por quartos e salas. Os idosos
considerados “dependentes” residem na ala esquerda, e os idosos considerados “independentes”
residem na ala direita. Além de quartos, a ala esquerda ainda conta com uma sala de TV, um
salão de beleza e a sala do fisioterapeuta. Na ala direita está a sala de atendimento à saúde e uma
pequena farmácia. A administração e recepção da instituição estão localizadas na entrada do
asilo.
No decorrer dos dias do trabalho de campo, a partir de conversas informais descobrimos
algumas histórias de vida dos idosos que ali vivem. Acompanhamos o cotidiano destes sujeitos
em um cenário que se mantém quase intacto pela rotina.
O pátio do asilo “Quatro Estações” nos conduz à reflexão do ambiente asilar enquanto um
lugar de espera. Seja a espera por uma visita, a espera do retorno ao convívio social, ou a espera
da morte. As falas dos idosos revelam a representação que estes têm sobre estar na instituição.
Dentre os moradores, conhecemos José, morador do asilo há dois anos e meio. Com 80
anos de idade, orgulha-se de sua memória conservada. Quando jovem, conta ter sido um homem
independente e trabalhador. Pelo fato de ter exercido diversas profissões durante a vida, afirma
ser “uma pessoa muito conhecida em Cuiabá”. Antes de ingressar no asilo, trabalhou na lavoura,
foi “comerciário”, e também “raízeiro”. Foi casado durante 46 anos, teve quatro filhos. José conta
que sua vida mudou após a morte de sua esposa. Adentrar o período da velhice foi um processo
que lhe trouxe complicações de saúde, impossibilitando-o de trabalhar, o que levou ao
distanciamento dos laços familiares e o sofrimento pela perda de sua esposa. O asilo foi a única
solução encontrada. Devido a um acidente que lhe fez perder os movimentos da perna, passou a
depender da cadeira de rodas, o que impediu José de morar com os filhos. Dessa forma, a
instituição poderia lhe oferecer o mínimo de conforto necessário. Porém, acredita que ainda
voltará a andar e por isso planeja, no futuro, alugar uma banca e vender remédios naturais:
“[...] não demora muito tempo e eu vou andar. E aí pra mim ta uma maravilha, to
andando, to trabalhando, nem que seja parado. Ponho ali uma banca ali, meus
remédios, vendo três, quatro pacotes por dia ta bom demais”. (José)
De acordo com Bosi (1994), para o homem, perder a força de trabalho significa não ser
mais produtor nem reprodutor. As propriedades adquiridas compensam a desvalorização sobre si.
O velho passa a ser tutelado como criança, é privado de sua liberdade de escolha, e, muitas vezes
é obrigado por seus familiares a sair de casa, ficando sujeito aos cuidados de instituições. Para
José, resgatar suas antigas funções de trabalho e sua convivência social é um propósito que ainda
pretende alcançar como forma de reconstruir novamente sua vida.
A idosa Carmen reside no asilo há aproximadamente um ano. Carmen não mantém
relações afetivas com outros asilados. Não fez amigos e não confia nos demais que ali estão;
acredita que aquele é um ambiente “perigoso” para manter relações de amizade. Além disso, é
improvável fazer amigos com “aqueles loucos”, se referindo aos demais idosos. As falas de
Carmen expressam um tom de amargura. Diferente dos outros idosos com quem conversamos,
não vê perspectivas em deixar o asilo e diz estar conformada com a condição de velha debilitada:
“acabou minha vida. Eu não tenho esperança mais de nada. Só aguardo o dia da minha morte” é
uma frase recorrente nas falas de Carmen.
A representação da velhice na perspectiva dos idosos que vivem no asilo é de um período
marcado pelas dificuldades de lidar com o próprio corpo. A doença e seus reflexos é presente na
vida de muitos. A impossibilidade de exercer certas atividades que realizavam com facilidade na
juventude, é encarada como uma perda incalculável. José lamenta ter perdido certas habilidades,
como assinar o próprio nome ou andar de bicicleta. Estas eram funções de sua profissão, e não
colocá-las em prática devido às complicações de saúde significa tornar-se inativo, incapaz:
“[...] e outra coisa que eu fico triste é que eu não sei mais nem assinar meu
nome, né. Eu pego a caneta pra assinar meu nome, e não tem nem estabilidade.
[...] E lá fora quando eu trabalhava, eu escrevia 30, 40 talões do consumidor pro
freguês. Hoje não sou capaz de assinar meu nome, né. Isso pra mim é minha
maior tristeza.” (José)
No entanto, ao contar como se sente hoje em dia em relação ao seu corpo, Lúcia resume:
“Eu me sinto uma velha”. Ser velha, em sua concepção, é não cuidar da aparência como fazia em
sua época de juventude. Lúcia sente que seu corpo perdeu o valor social atribuído a ele quando
jovem. Historicamente, o corpo da mulher brasileira tem sido representado como um capital
físico, simbólico, econômico e social que depende de investimento financeiro, trabalho e
sacrifício para se manter nos padrões considerados “apropriados”: o corpo sexy, jovem, magro e
em boa forma (Goldenberg, 2008).
O contexto do asilo retrata a insatisfação que muitos sentem em permanecer no espaço e
compreendê-lo como uma residência. Alguns idosos contam que o processo de mudança para a
instituição significou um rompimento ou distanciamento com o vínculo familiar. Passaram a
viver sob as regras e a temporalidade do asilo: horário para comer, para tomar banho, para
acordar e para dormir. As mulheres apresentam maiores complicações de saúde física e cognitiva,
também sentem maior dificuldade de adaptação no ambiente. Os homens apresentam maior
conformidade com a situação de asilamento, estabelecendo algumas relações sociais com outros
moradores, além de se adaptarem mais facilmente as regras da instituição. Segundo Simone de
Beauvoir (1990), as mulheres estão muito mais envolvidas com o lar, e, portanto o ingresso na
instituição representa um choque psicológico particularmente violento a elas. Já os homens,
tomam para si um sentimento de decadência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho traz dois grupos de idosos vivendo em contextos sociais diferenciados,
alguns que com idades cronológicas muito próximas aparentam serem mais envelhecidos,
amargurados, tristes com a condição de seus corpos e sua realidade atual. O tempo no contexto
do asilo é vivenciado por meio de um tipo de controle, o controle das emoções, o controle dos
horários, aqui se encontra uma geração que envelhece sem vínculos com familiares, estes que
foram rompidos por diversas razões e que não foi possível investigar neste trabalho e nem vem ao
caso.
No outro grupo verificamos também controle a partir da promessa que o discurso médico
faz ao constatar que o idoso pode ser saudável e prevenir diversos problemas de saúde e assim
viver um envelhecimento feliz e independente.
A compreensão do envelhecimento do corpo aqui apresentada direciona a reflexão sobre
as relações de gênero e geracionais a partir das especificidades de cada contexto analisado. O
discurso dos idosos do asilo é construído por meio de suas emoções sentidas a partir da mulher
que “eu era”, ou seja, do corpo “que eu tinha” e dos idosos da afirmação da masculinidade a
partir do atributo do “ser trabalhador”, ou seja, ter um trabalho. Os asilados também apresentam
sentimentos negativos em relação ao envelhecimento e suas atuais condições. O sentimento de
infelicidade, amargura e frustração apareceu com mais frequência na fala das mulheres. Esta
evidência pode estar relacionada ao universo simbólico feminino desta geração pautada na esfera
doméstica, que ser mulher era ser esposa e mãe, neste sentido casar e ter uma casa.
Os idosos do Programa Longevidade Saudável aparentam ser mais “saudáveis”, logo
“menos velhos”, pois os significados do local que frequentam, este que não é permanente como o
asilo, contribui para muitos construírem laços de sociabilidade e sentimentos de autonomia aos
seus corpos, pois vão ao PLS com o objetivo de “se cuidar”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bosi, E. (1994). Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. Ed. São Paulo: Companhia das
letras.