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Teoria da literatura

em suas fontes
Vol. 1
Luiz Costa Lima
,
Organização seleção e introdução

Teoria da literatura
em suas fontes
l/o/. 1

3- edição

CIVILIZAÇÃO B R AS I L E I R A

Rio de Janeiro
2002
COPYRIGHT © Luiz. Cosrn Lima, 2002
* . 0 6
CAPA
Euclyn G rum ach

PROJETO GRAFICO
Evclyn Grumach c João dc Souza Lcitc
... ã Ò l l C Â - 2 â ^ .

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

^ 2 9 Teoria da literatura em suas fontes, vol. 1 / seleção, introdu-


1 ção e revisão técnica, Luiz Costa Lima. - Rio de Janeiro:
V* Civilização Brasileira, 2002.

Inclui bibliografia
ISBN 85-200-0562-4

1. Literatura - Filosofia. 2. Literatura - H istória e


crítica. I. Lima, Luiz Costa, 1937-

CDD 801
01-0620 CDU 82.01

T odos os direitos reservados. Proibida a reprodução, arm azenam ento ou


transm issão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia
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Im presso no Brasil
2002
Sumário

NOTA À 3 a EDIÇÃO ' 7


NOTA À 2a EDIÇÃO 9

A. QUESTÕES PRELIMINARES

CAPÍTULO 1 15
Discurso sobre a estética
PAUL VALÉRY

CAPÍTULO 2 35
Em prol da poética
HENRI MESCHONNIC

CAPÍTULO 3 63
Hermenêutica e abordagem literária
LUIZ COSTA LIM A

CAPÍTULO 4 97
Literatura e história: desenvolvimento das forças produtivas
e autonomia da arte. Sobre a substituição de premissas estamentais na
teoria da literatura
MARTIN FONTIUS

CAPÍTULO 5 199
Literatura e filosofia: (Grande sertão: veredas)
BENEDITO NUNES

CAPÍTULO 6 221
Literatura e psicanálise: a desligação
ANDRÉ GREEN

CAPÍTULO 7 253
A questão dos gêneros
LUIZ COSTA LIM A

5
LU 12 C O S T A LIMA

B. A ESTILÍSTICA

CAPÍTULO 8 295
Sobre o lugar do estilo em algumas teorias lingüísticas
NILS ERIK ENKVIST

CAPÍTULO 9 317
Táticas dos conjuntos semelhantes na expressão literária
D ÁM ASO ALONSO

CAPÍTULO 10 341
A “Ode sobre uma urna grega” ou conteúdo versus metagramática
LEO SPITZER

CAPÍTULO 11 377
A Poesia espanola de Dámaso Alonso
LEO SPITZER

C. O FORMALISMO RUSSO

CAPÍTULO 12 411
Sobre a teoria formalista da linguagem poética
W OLF-DIETER STEMPEL

CAPÍTULO 13 459
As tarefas da poética
VIKTOR JIRMUNSKI

CAPÍTULO 14 473
O ritmo como fator construtivo do verso
IURI TINIANOV

CAPÍTULO 15 487
A tipologia do discurso na prosa
MIKHAIL BAKHTIN

CAPÍTULO 16 511
O dominante
ROM AN JAKOBSON

ÍNDICE DE NOM ES 519

6
Nota à 3a edição

LUIZ COSTA LIMA

O Teoria da literatura em suas fontes foi o primeiro e, até o momento, o único


reader em língua portuguesa que se propôs apresentar um panorama da re­
flexão teórica sobre a literatura, desenvolvida no século que finda. Ao passo
que, entre a primeira (1975) e a segunda edição (1983), as diferenças foram
drásticas, esta terceira se distingue apenas pelo mais acurado trabalho de
revisão dos textos e das traduções.
A principal razão da mudança tem a ver com a própria reflexão teórica.
Ao passo que as décadas de 1960 a 1980 conheceram uma fantástica prolife­
ração de direções teóricas, ao lado da não menos notável ressurreição de
nomes que haviam estado esquecidos, sobretudo por motivos políticos (Walter
Benjamín, os formalistas russos e tchecos), a década de 1990 tem-se caracte­
rizado ou pela consolidação ou desdobramento daquelas correntes ou pelo
surgimento de rumos — os estudos sobre gênero, sobre as minorias sexuais,
a literatura pós-colonial, o papel dos mediãj os genericamente chamados
“cultural studíes” — que não se notabilizam particularmente por algum vi­
gor teórico. Pode-se mesmo afirmar que a reflexão teórica do objeto literá­
rio deixou de estar na crista da onda, passando a ser vista sob a suspeita de
não ser politicamente correta.
Isso não significa que, entre as décadas de 1980 e 1990, não tenham se
difundido oe aparecido novos nomes de extremo relevo, a exemplo de
Albrecht Wellmer, Davld Wellbery, Friedrlch Kittler, Karl Heinz Bohrer,
Winfried Menninghaus, Rainer Nãgele, TImothy Reiss, Gabrielle Schwab e
Soshana Felman. Contudo o declínio do Interesse pela literatura, evidencia­
do desde o fim da Segunda Grande Guerra, assumiu outra Inflexão. Ao pas­
so que o Incremento da teoria decorrera da consciência de exaustão dos velhos
métodos de análise e da necessidade de refletir, em plano teórico-filosófico,
a especificidade de sua linguagem, e dentro dela, a especificidade da moder­
LUI Z COSTA LIMA

nidade, a razão e as conseqüências da complexificação progressiva, desde


Hõlderlin e Kleist, Flaubert e Mallarmé, do texto literário, mais recentemente
como que os professores passaram a temer a complexificação com que se
defrontavam. Por ela, o objeto literário não recuperava seu prestígio — como
alguns talvez tenham pensado que sucederia — e, agora, ainda por cima, os
departamentos de literatura corriam o risco de perder alunos! Daí que a tô ­
nica passou para assuntos mais leves ou de interesse mais imediato — a ex­
pressão das minorias, a questão do cânone, a inter-relação mais ampla da
literatura com o que tradicionalmente fora objeto da antropologia, a volta à
pesquisa histórica de movimentos, que haviam sido relegados a segundo pla­
no. Nessa mudança de direção, influíram, ademais, questões contingentes
porém particularmente sensíveis nos dois países em que a reflexão teórica
mais avançara: nos Estados Unidos, a descoberta de que Paul de Man, o grande
fecundador da renovação dos estudos literários norte-americanos, havia sido,
durante a guerra, um colaboracionista [a propósito do clima norte-america­
no, criado em torno da obra do belga de Man é bastante útil a leitura de The
Culture o f literacy (1994), de Wlad Godzich] e, em data mais recente, na
Alemanha, a divulgação de que Hans Robert Jauss tivera um papel ativo nos
exércitos nazistas. Nenhum dos dois fatos teria o impacto que conheceu se
se tratasse de uma área já consolidada. (Assim a confirmação de que Heidegger
fora um nacional-socialista “de carteirinha” em nenhum momento abalou o
reconhecimento de sua qualidade de filósofo.) Mas a reflexão teórica con­
trariava o hábito de supor um Estado-nação por detrás dos autores, o arrola-
mento histórico, o contextualismo sociológico e a prática do mero comentário
de textos, acumulados desde o século passado. A reflexão teórica “ameaça­
va” talhar um aluno doutro tipo: aquele que não só “gostasse” de literatura
mas que entendesse que faz a literatura. E por exigir outro tipo de professor,
mais interessado em pensar do que em tornar interessantes as vidas dos auto­
res ou em apenas contextualizá-los.
Por essas razões, das quais damos apenas uma breve notícia, a teoria da
literatura deixou de atrair o interesse que conhecera desde o estruturalismo,
com Roland Barthes — em oposição aos sorbonnards —, a primeira geração
da Escola de Konstanz ou os discípulos de Paul de Man. Por isso então pre­
ferimos não aumentar o tamanho deste reading3 mas apenas aperfeiçoá-lo
como instrumento confiável de trabalho.

Rio de Janeiro, abril de 1999

8
Nota à 2a edição

LUIZ COSTA LIM A

A primeira edição de Teoria da literatura em suas fontes apareceu em 1975.


Uma introdução geral, assinada por este organizador, antecedia a coleção de
23 textos, distribuídos em seis seções (problemas gerais, a estilística, o
formalismo russo, o new criticism, a análise sociológica, o estruturalismo),
compondo um volume de 490 páginas.
As modificações agora introduzidas são de diversas ordens, desde as de
caráter gráfico — a adoção de um tipo menos incômodo para a leitura, a divi­
são em dois volumes autônomos — até as de conteúdo — o aumento radical
da primeira seção, a introdução doutra sobre as estéticas da recepção e do efeito,
a substituição de textos antes incluídos e o “expurgo” da introdução geral, tanto
por apresentar uma visão demasiado particularizada da teoria da literatura,
quanto por conter uma reflexão hoje demasiado datada. Assim, do total dos
24 textos da primeira edição, são mantidos 19, alguns seriamente revisados, e
acrescentados outros 13, que, não contando o posfácio, formam um conjunto
de 32 textos. Esperamos que assim melhor se cumpra o propósito didático-
informativo desta obra. Este se torna imprescindível, dada a situação calami­
tosa do ensino de teoria da literatura em nossos cursos de letras. Sua inclusão
facultativa, sem dúvida positiva e extremamente necessária, praticamente
coincidiu com uma reforma dos cursos de literatura que, possibilitando ao aluno
formar-se tendo contato apenas com as literaturas de língua portuguesa, im­
pede um ensino eficiente da teoria.* Como é possível teorizar-se sobre algo de

*A teoria da literatura passou a fazer parte do elenco de matérias passíveis de integrar o currículo
de letras por efeito da Resolução de 19-10-62, do Conselho Federal de Educação. A nteriorm en­
te, ela foi ensinada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Instituto Lafayete, pelo prof.
Afrânio Coutinho, a partir de 1950. Depois, o curso foi ainda oferecido pela Faculdade de Filo­
sofia da Universidade Nacional, a partir de 1953, ensinada pelo prof. Augusto Meyer. N os pri­
meiros anos da década de 60, foi introduzida nos cursos de letras da USP, tendo à frente o professor
A ntonio Cândido, e da Universidade de Brasília, contando com o professor H élcio M artins.

9
LUI Z COSTA LIMA

que não se tem experiência ou experiência bastante limitada? Nesta con­


juntura, os cursos de teoria tornam-se no máximo propedêuticas à litera­
tura, que, na prática, apenas visariam cobrir as lacunas de informação,
anteriormente preenchidas pelas histórias gerais da literatura. Junte-se a
isso o fato de o aluno de literatura ser hoje, entre nós, normalmente inca­
paz de ler em língua estrangeira e compreender-se-á por que os cursos de
teoria se tornam ou ociosos ou incompreensíveis ou deformadores. Ocio­
sos porque, para que se ponham no nível do entendimento geral, não po­
dem passar de uma coletânea de dados, fatos e nomes a serem pregui­
çosamente repetidos pelos alunos; incompreensíveis quando, reconhecido
o perigo anterior, supõem o contato com suas fontes efetivas, a que os alu­
nos terão pouco acesso — ou nenhum — por se encontrarem em línguas
que eles não dominam; deformadores, e este tem sido o caso mais comum,
porque, não tendo tido os próprios professores uma formação teórica efe­
tiva, a apresentação das teorias passa a se confundir com a apresentação de
caixas de ferramentas a serem “aplicadas” aos textos! Não é ocasional ser
este o entendimento mais comum do que seja uma teoria. Por certo tam­
bém estes males não resultam apenas da organização dos currículos de le­
tras. Não é novidade dizer-se que não temos formação teórica e que nossa
organização social não estimula nenhum espírito crítico. Não será então
por uma reforma dos currículos dos cursos destinados a futuros professo­
res de língua e literatura que serão sanados os problemas que apontamos.
Mas, de imediato, eles aí incidem.
E no interior deste círculo de carências que este livro pretende atuar,
pondo à disposição do aluno interessado textos relevantes das diversas ma­
neiras de refletir sobre a literatura. Por certo, nas dimensões desta obra —
mesmo que a escolha que a compõe fosse hipoteticamente melhor — seria
ilusório supor que ela já habilite suficientemente seu leitor a ponto de ele,
terminada cada uma das seções, poder dizer que agora já conhece o tema
tratado. Isso seria demasiada ingenuidade. Cada um dos tópicos apresenta­
dos desde a primeira seção permitiria pelo menos um volume da extensão
desta obra inteira. Isso para não falar de vários temas fundamentais que não
foram aqui sequer abordados. Não escrevemos as últimas frases como uma
espécie de desculpa prévia, mas para introduzir uma idéia óbvia: o ideal
mediato que move esta coletânea é o de, dependendo da reação positiva do
mercado, estimular os editores a empreenderem readers mais específicos, a
exemplo do que já é quase rotina em língua inglesa e alemã. Assim poderemos

1o
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

começar a pensar em interromper a corrida de mediocridades que ainda ca­


racteriza a área da pesquisa em literatura no Brasil. Pois, se é importante a
politização do aluno universitário brasileiro, do contrário vítima de e candi­
dato a agente do consumismo colorido de nosso capitalismo selvagem, por
certo, entretanto, este se manterá em um nível apenas formal e abstrato, se
não for acompanhado de uma competência efetiva e específica. Neste senti­
do, trabalhar por sua competência profissional é também uma exigência
política e uma maneira de “empregar” politicamente nossos poucos especia­
listas em alguma coisa.
Uma última observação: embora seja de esperar que cada texto seja sufi­
ciente em si mesmo, i. e., capaz de bem expor o objeto que se propôs e/ou de
justificar a linha que o guia, a retirada da introdução geral -— retirada que
preferimos à sua modificação — pode dar a alguns a impressão de faltar ao
livro uma espinha dorsal. Para evitá-lo, o segundo volume contém um
posfácio, onde se busca uma reflexão crítica abrangente dos temas percorri­
dos pela obra.

Rio, novembro de 1981

1 1
QUESTÕES PRELIMINARES
c a p ít u l o 1 Discurso sobre a estética
PAUL V A LÉRY

Discurso pronunciado no Segundo Congresso Internacional de Estética e de Ciência da Arte,


a 8 de agosto de 1937, publicado nas atas do D euxièm e Congrès..., Alcan, 1937, tom o I, pp.
IX — XXXIII. Republicado em Variété IV (1938). Traduzido a partir do texto em Paul Valéry,
O euires, tom o I, Pléiade, Paris, 1957.

1 5
Senhores,

Vossa comissão não teme o paradoxo, posto que decidiu fazer falar aqui
— como se uma fantasia musical fosse program ada na abertura de uma
grande ópera — um simples amador, muito envergonhado de si mesmo
diante dos mais eminentes representantes da Estética, delegados de todas
as nações,
Mas talvez este ato soberano, e a princípio bastante surpreendente, de
vossos organizadores se explique por uma consideração que vos submeto,
permitindo transformar o paradoxo de minha presença falante neste lugar,
no momento solene da abertura dos debates deste Congresso, em uma medi­
da de significação e alcance assaz profundos.
Ocorre-me freqüentemente que, no desenvolvimento de toda ciência
constituída e já bem distanciada de suas origens, poderia às vezes ser útil, e
quase sempre interessante, interpelar um mortal dentre os mortais, invo­
car um homem suficientemente estranho a esta ciência e interrogá-lo sobre
se tem alguma idéia do objeto, dos meios, dos resultados, das aplicações
possíveis de uma disciplina, de que admito conheça o nome. O que ele res­
pondesse não teria em geral nenhuma importância; mas estou certo de que
tais questões, dirigidas a um indivíduo que não tem de seu mais que a sim­
plicidade e a boa-fé, refletir-se-iam de algum modo em sua ingenuidade e
retornariam aos doutores que o interrogam, reavivando nestes certas difi­
culdades elementares ou certas convenções iniciais, daquelas que se fazem
esquecer, apagando-se tão facilmente do espírito quando nos envolvemos
nas sutilezas e na estrutura fina de uma pesquisa apaixonadamente empre­
endida e aprofundada,
Uma pessoa qualquer que dissesse a outra (pela qual represento uma ciên­
cia): O que faz você? O que procura? O que quer? Aonde pensa chegar? E afi-

1 7
LUI Z COSTA LIMA

nals quem é você} obrigaria, sem dúvida, o espírito interrogado a um retorno


fecundo às intenções primeiras e aos seus fins últimos, às raízes e ao princí­
pio motor de sua curiosidade e, enfim, à própria substância de seu saber. E
isto talvez não deixasse de ser interessante.
Se é realmente este, Senhores, o papel de ingênuo a que a Comissão me
destina, já me sinto à vontade, e sei a que venho: venho ignorar tudo.
Eu vos declaro, antes de mais nada, que o simples nome da Estética, na
verdade, sempre me fascinou e que ainda produz em mim um efeito de des­
lumbramento, quando não de intimidação. Ele faz meu espírito hesitar entre
a idéia estranhamente sedutora de uma “Ciência do Belo”, a qual, por um
lado, nos faria discernir com segurança o que é preciso amar, o que é preciso
odiar, o que é preciso aclamar, o que é preciso destruir; e que, por outro
lado, nos ensinaria a produzir, com segurança, obras de arte de um valor in­
contestável. Ou então, em vez desta primeira idéia, a idéia de uma “Ciência
das Sensações”, não menos sedutora, talvez mesmo mais sedutora ainda que
a primeira. Se eu tivesse que escolher entre o destino de ser um homem que
sabe como e por que uma coisa é o que se chama de “belo” e o de saber o que
é sentir, tenho certeza de que escolheria o segundo, confiando que este co­
nhecimento, se fosse possível (e temo que não seja nem mesmo concebível),
logo me franquearia todos os segredos da arte.
Mas, em meio a esta perplexidade, socorre-me a lembrança de um méto­
do bem cartesiano (pois este ano se deve honrar e seguir Descartes) que,
baseando-se na observação pura, dar-me-á da Estética uma noção precisa e
irrepreensível.
Dedicar-me-ei a fazer uma “enumeração muito completa” e um exame
dos mais gerais, como é aconselhado pelo Discurso do método. Coloco-me
(mas é aí que já estou) fora do círculo onde se elabora a Estética, observando
o que dele emana. Daí saem inúmeras produções de inúmeros espíritos. Pro­
curo fazer um levantamento dos temas; tento classificá-los, considerando que
o número de minhas observações bastará a meu intento quando perceber que
não preciso mais formar uma nova classe. Então decretarei para mim mesmo
que a Estética, em tal momento, é o conjunto assim reunido e ordenado.
Afinal, o que mais ela pode ser, e posso fazer algo mais seguro e mais judicio-
so? Mas o que é seguro e judicioso nem sempre é o mais conveniente e o
mais claro e percebo que devo aqui, para construir uma noção de Estética
que me seja de alguma utilidade, tentar resumir em poucas palavras o objeto

1 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

comum de todos estes produtos do espírito. Minha tarefa é consumir esta


matéria imensa... Examino; folheio... Que encontro, então? O acaso me ofe­
rece primeiramente uma página de Geometria pura; uma outra que pertence
à Morfologia biológica. Eis aqui um número muito grande de livros de His­
tória. E nem a Anatomia, nem a Fisiologia, nem a Cristalografia estão ausen­
tes da coleção; seja por um capítulo, seja por um parágrafo, quase não há
ciência que não pague tributo.
E ainda estou longe de acabar!... Enfrento a incontável infinidade das téc­
nicas. Da lapidação das gemas à ginástica das bailarinas, dos segredos do vitral
aos mistérios dos vernizes de violino, dos cânones da fuga à feitura do molde
em cera,* da dicção dos versos à pintura encáustica, ao corte dos vestidos, à
marchetaria, ao traçado dos jardins — quantos tratados, álbuns, teses, traba­
lhos de todo tamanho, idade e formato!... A enumeração cartesiana se mostra
ilusória diante desta prodigiosa diversidade, onde a destreza (tour-de-main) é
vizinha ao segmento áureo. Parece não haver limite para esta proliferação de
pesquisas, de procedimentos, de contribuições, todos os quais, entretanto,
mantêm alguma relação com o objeto que tenho em mente e do qual pretendo
uma idéia clara. Meio desencorajado, abandono a explicação da infinidade das
técnicas... O que me sobra para consultar? Dois conjuntos de importância
desigual: um deles me parece formado de obras onde a moral desempenha um
grande papel. Percebo que aí se trata das relações intermitentes da Arte com o
Bem, e logo abandono esse amontoado, atraído que sou por um outro bem
mais importante. Alguma coisa me diz que ali jaz minha última esperança de
forjar em algumas palavras uma boa definição da Estética...
Reúno minhas forças e ataco este lote poupado, que é uma pirâmide de
produções metafísicas.
É aí, Senhores, que creio que encontrarei o germe e o primeiro balbucio
de vossa ciência. Todas as vossas pesquisas, na medida em que é possível
agrupá-las, remetem a um ato inicial da curiosidade filosófica. A Estética
nasceu de uma observação e de uma fome de filósofo. Tal acontecimento,
sem dúvida, não foi de modo algum acidental Era quase inevitável que o
filósofo, em sua empresa de ataque geral das coisas e de transformação sis­

*Valéry se refere ao processo de fabricação de m oldes “à cire p e rd u e ” : m odelo em cera so­


bre o qual se aplica argila e que se derrete (cire perdue) ao contato com o m etal fundente.
(N. do Org.)

1 9
LUiZ COSTA LIMA

temática de tudo o que se produz no espírito, caminhando de pergunta em


resposta, esforçando-se em assimilar e reduzir a um tipo de expressão coe­
rente, que está em si, a variedade do conhecimento, encontrasse certas ques­
tões que não se situam nem entre as da inteligência pura, nem na esfera da
sensibilidade apenas, nem tampouco nos domínios da ação comum dos ho­
mens, mas que concernem a estes diversos modos, combinando-os tão inti­
mamente que foi preciso considerar estas questões separadamente dos outros
objetos de estudo, atribuir-lhes um valor e uma significação irredutíveis e
assim dar-lhes um destino, encontrar-lhes uma justificativa diante da razão,
um fim bem como uma necessidade, dentro do plano de um bom sistema do
mundo.
A Estética, assim definida, a princípio e durante muito tempo, desenvol­
veu-se in ahstracto no espaço do pensamento puro, sendo construída por
assentadas, a partir dos materiais brutos da linguagem comum, pelo bizarro
e industrioso animal dialético que os decompõe como pode, isolando os ele­
mentos que crê simples e se ocupando em edificar, através do contraste dos
inteligíveis, a morada da vida especulativa.
Na raiz dos problemas que considerava seus, a Estética nascente coloca­
va um certo gênero de prazer.
O prazer e a dor (aproximo ambos apenas para me conformar ao costu­
me retórico, mas suas relações, se é que existem, devem ser bem mais sutis
que a de se “responderem”) são elementos sempre bem incômodos em uma
construção intelectual. Eles são indefiníveis, incomensuráveis, incomparáveis
sob qualquer aspecto. Representam o próprio modelo desta confusão ou desta
dependência recíproca do observador e da coisa observada que está desespe­
rando a física teórica.
O prazer de tipo comum, o fato puramente sensorial, entretanto, rece­
bera sem dificuldade um papel funcional honroso e limitado: fora-lhe atri­
buído um emprego em geral útil dentro do mecanismo de conservação do
indivíduo e um fundamental dentro do da propagação da raça. Nada objeto
a isto. Em suma, o fenômeno Prazer se justificara aos olhos da razão, através
de argumentos de finalidade outrora bastante sólidos...
Mas há prazer e prazer. Nem todo prazer se deixa guiar tão facilmente
para um lugar bem determinado dentro de uma boa ordem das coisas. Há
alguns que não servem para nada dentro da economia da vida e que não po­
dem, por outro lado, ser encarados como simples aberrações de uma facul­
dade de sentir necessária ao ser vivo. Nem a utilidade nem o abuso os

2 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — WOl . 1

explicam. E Isto não é tudo. Esta espécie de prazer ê Inseparável de desen­


volvimentos que excedem o domínio da sensibilidade e que a ligam sempre
à produção de modificações afetivas, daquelas que se prolongam e se enri­
quecem na direção do intelecto, levando às vezes à realização de ações exte­
riores sobre a matéria, sobre os sentidos e sobre o espírito de outrem, e
exigindo o exercício articulado de todas as potências humanas.
Este é o ponto. Um prazer que às vezes se desenvolve até comunicar uma
ilusão de compreensão íntima do objeto que o causa; um prazer que excita a
inteligência, a desafia e a faz amar sua derrota; mais ainda, um prazer que
pode despertar a estranha necessidade de produzir, ou reproduzir, a coisa, o
acontecimento, o objeto ou o estado ao qual ele parece vinculado, tom an­
do-se por causa disso a fonte de uma atividade sem limite determinado, ca­
paz de Impor uma disciplina, um cuidado, tormentos a toda uma vida, capaz
de preenchê-la, quando não de excedê-la — tal prazer propõe ao pensamen­
to um enigma particularmente especioso, que não poderia escapar ao desejo
e ao abraço da hidra metafísica. Nada mais digno da vontade de potência do
filósofo que essa ordem de fatos na qual ele encontrava o sentir, o aprender,
o querer e o fazer ligados por um laço essencial, que acusava uma reciproci­
dade notável entre esses termos e que se opunha ao esforço escolástico, se*
não cartesiano, de divisão da dificuldade. A aliança de uma forma, de uma
matéria, de um pensamento, de uma ação e de uma paixão; a ausência de um
fim bem determinado e de qualquer acabamento que se pudesse exprimir
em noções finitas; um desejo e sua recompensa regenerando-se mutuamen­
te; este desejo se tornando criador e, assim, causa de si mesmo; destacando-
se às vezes de qualquer criação particular e de qualquer satisfação última,
para se revelar desejo de criar por criar — tudo isto animou o espírito do
metafísico: aplicou aí toda a atenção que aplica a todos os outros problemas
que costuma fabricar no exercício de sua função de reconstrutor do conhe­
cimento em forma universal
Mas um espírito que almeja este estágio sublime, onde espera estabele­
cer-se com supremacia, modela o mundo que pensa estar apenas represen­
tando. Ele é poderoso demais para ver apenas o visível Ele é levado a se
afastar Insensivelmente de seu modelo, cujo verdadeiro rosto recusa, pois
este lhe propõe somente o caos, a desordem Instantânea das coisas observáveis:
ele é tentado a negligenciar as singularidades e Irregularidades que se expri­
mem desajeitadamente, tumultuando a uniformidade distributiva dos méto­
dos. Ele analisa logicamente o que é dito, extraindo, do próprio adversário,

2 1
LUI Z COSTA LIMA

o que este nem desconfiava que pensava. Ele lhe mostra uma invisível subs­
tância sob o visível (que é acidente); muda-lhe o real em aparência; compraz-
se em criar nomes que faltam à linguagem para satisfazer os equilíbrios formais
das proposições: se carece de algum sujeito, engendra-o por um atributo; se
a contradição ameaça, a distinção se insinua no jogo, salvando a partida...
E tudo isto vai bem — até um certo ponto.
Assim, diante do mistério do prazer de que falo, o filósofo, justamente
preocupado em lhe encontrar um lugar categorial, um sentido universal, uma
função inteligível; seduzido, mas intrigado, pela combinação de volúpia, de
fecundidade e de uma energia comparável à que se desprende do amor, que
aí encontrava; não podendo separar, neste novo objeto de seu olhar, a ne­
cessidade do arbitrário, a contemplação da ação, nem a matéria do espírito,
o filósofo, não obstante, não deixou de querer reduzir, por seus processos
ordinários de exaustão e de divisão progressiva, este monstro da Fábula In­
telectual, esfinge ou grifo, sereia ou centauro, em quem a sensação, a ação, o
sonho, o instinto, as reflexões, o ritmo e a desproporção se compõem tão
intimamente quanto os elementos químicos nos corpos vivos; monstro este
que às vezes nos é oferecido pela natureza, mas como que ao acaso, e, outras
vezes, formado à custa de imensos esforços do homem, que o produz com
tudo o que pode despender de espírito, de tempo, de obstinação e, em suma,
de vida.
A Dialética, ao perseguir apaixonadamente esta presa maravilhosa, acos­
sou-a, acuou-a, forçou-a para dentro do bosque das Noções Puras.
Foi aí que ela apreendeu a Idéia do Belo.
Mas a caça dialética é uma caça mágica. Na floresta encantada da Lingua­
gem, os poetas entram expressamente para se perder, se embriagar de extra­
vio, buscando as encruzilhadas de significação, os ecos imprevistos, os encontros
estranhos; não temem os desvios, nem as surpresas, nem as trevas — mas o
visitante que se afana em perseguir a “verdade”, em seguir uma via única e
contínua, onde cada elemento é o único que deve tomar para não perder a
pista nem anular a distância percorrida, está exposto a não capturar, afinal,
senão sua própria sombra. Gigantesca, às vezes; mas sempre sombra.
Era fatal, sem dúvida, que a aplicação da análise dialética a problemas
que não se encerram em um domínio bem determinado, que não se expri­
mem em termos exatos, produzisse apenas “verdades” interiores ao círculo
convencional de uma doutrina e que belas realidades insubmissas viessem
sempre perturbar a soberania do Belo Ideal e a serenidade de sua definição.
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

Não estou dizendo que a descoberta da Idéia do Belo não tenha sido um
acontecimento extraordinário e que ela não tenha engendrado conseqüências
positivas de importância considerável. Toda a história da Arte ocidental
manifesta o que se lhe deve, ao longo de mais de vinte séculos, através de
estilos e obras de primeira linha. O pensamento abstrato mostrou-se aqui
não menos fecundo do que o foi na edificação da ciência. Mas essa idéia tra­
zia em si o vício original e inevitável a que acabo de aludir.
Pureza, generalidade, rigor, lógica eram, neste assunto, virtudes que ge­
ravam paradoxos, dos quais este é o mais admirável: a Estética dos metafísicos
exigia que se separasse o Belo das coisas belasl...
Ora, se é verdade que não há nunca ciência do particular, não há, ao
contrário, ação ou produção que não seja essencialmente particular e não há
sensação que subsista no universal. O real recusa a ordem e a unidade que o
pensamento lhe quer infligir. A unidade da natureza só aparece em sistemas
de signos fabricados expressamente para tal fim e o universo não passa de
uma invenção mais ou menos cômoda.
O prazer, enfim, só existe no instante e nada de mais individual, de mais
incerto, de mais incomunicável. Os juízos a seu respeito não permitem ne­
nhum raciocínio, pois, longe de analisar seu objeto, o que eles fazem é acres-
centar-lhe um atributo de indeterminação: dizer que um objeto é belo é
conceder-lhe valor de enigma.
Mas não haverá nem mesmo por que falar de um belo objeto, já que iso­
lamos o Belo das coisas belas. Não sei se foi suficientemente observada esta
conseqüência espantosa: a dedução de uma Estética metafísica, tendendo a
substituir por um conhecimento intelectual o efeito imediato e singular dos
fenômenos e sua ressonância específica, tende a nos dispensar da experiên­
cia do Belo, na medida em que este se encontra no mundo sensível. Tendo
sido a essência da beleza obtida, suas fórmulas gerais escritas, a natureza e a
arte esgotadas, superadas, substituídas pela posse do princípio e pela certeza
de seus desenvolvimentos, todas as obras e todos os aspectos que nos encan­
tavam podem perfeitamente desaparecer ou servir apenas de exemplos, de
meios didáticos provisoriamente exibidos.
Tal conseqüência não é confessada —- não tenho dúvidas, ela não chega
a ser confessável. Nenhum dos dialéticos da Estética concordaria que não
mais precisa de seus olhos nem de seus ouvidos fora das exigências da vida
prática. Além disso, nenhum deles sustentaria poder, graças às suas fórmu­
las, divertir-se em executar — ou definir com toda a precisão, pelo menos —

2 3
LUI Z COSTA LIMA

obras-primas Incontestáveis, sem precisar aplicar algo de si além de um es­


forço de cálculo.
Nem tudo, aliás, é Imaginário nesta suposição. Sabemos que algum so­
nho deste tipo insinuou-se em mais de uma cabeça, e não das menos dota­
das; e sabemos, por outro lado, o quanto a crítica, outrora, achando-se de
posse de preceitos infalíveis, usou e abusou, na estima das obras, da autori­
dade que pensava extrair de seus princípios. Pois não há maior tentação que
a de decidir soberanamente em matérias incertas.
O simples propósito de uma “Ciência do Belo” tinha fatalmente que
desmoronar diante da diversidade das belezas produzidas ou admitidas no
mundo e no tempo. Em se tratando de prazer, só há questões de fato. Os
indivíduos desfrutam do que podem e como podem; e a malícia da sensibili­
dade é infinita. Ela frustra os conselhos melhor fundados, mesmo que sejam
o fruto das observações mais sagazes e dos argumentos mais desprendidos.
O que pode ser mais justo, por exemplo, e mais satisfatório para o espí­
rito que a famosa regra das unidades, tão conforme às exigências da atenção
e tão favorável à solidez, à densidade da ação dramática? Mas um Shakespeare,
entre outros, a ignora e triunfa. Aqui me permitirei enunciar uma idéia que
me ocorre e que transmito como ela me chega, no estado frágil de fantasia:
Shakespeare, tão livre no teatro, compôs, por outro lado, ilustres sonetos,
feitos segundo todas as regras e visivelmente cuidados; quem sabe se esse
grande homem não dava muito mais valor a esses poemas estudados que às
tragédias e comédias que improvisava e modificava no próprio palco e para
um público ocasional?
Mas o desprezo ou o abandono que acabaram extenuando a Regra dos
Antigos não significa absolutamente que os preceitos que a compõem sejam
despidos de valor; mas somente que se lhes atribuía um valor que não passa­
va de imaginário, o das condições absolutas do efeito mais desejável de uma
obra. Entendo por “efeito mais desejável” (esta é uma definição de circuns­
tância) aquele que seria produzido por uma obra cuja impressão imediata
recebida, o choque inicial, e o julgamento que dela se faz com calma, refleti-
damente, examinando sua estrutura e sua forma, se oporiam entre si o me­
nos possível; mas que, ao contrário, se harmonizariam, com a análise e o
estudo confirmando e aumentando a satisfação do primeiro contato.
Acontece a muitas obras (sendo também o objeto único de certas artes)
não poderem criar outra coisa senão efeitos de primeira intenção. Se nos
detemos neles, descobrimos que não existem senão graças a alguma in-

2 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

conseqüência, alguma impossibilidade ou alguma prestidigitação, que um


olhar prolongado, questões indiscretas e uma curiosidade um pouco ex­
cessiva colocariam em perigo. Existem monumentos de arquitetura que
derivam do simples desejo de criar um ambiente impressionante, que seja
visto de um ponto escolhido; e esta tentação freqüentemente leva o cons­
trutor a sacrificar certas qualidades, cuja ausência aparece se nos afasta­
mos, por pouco que seja, do lugar favorável previsto. O público confunde
repetidamente a arte restrita da decoração, cujas condições se estabelecem
em relação a um lugar bem definido e limitado, exigindo uma perspectiva
única e uma iluminação determinada, com a arte completa em que a estru­
tura, as relações, tornadas sensíveis, da matéria, das formas e das forças
são dominantes, reconhecíveis de todos os pontos do espaço, introduzin­
do na visão, de alguma forma, uma não sei que presença do sentimento da
massa, da potência estática, do esforço e dos antagonismos musculares que
nos identificam com o edifício, através de uma certa consciência de nosso
corpo em sua totalidade.
Peço desculpas pela digressão. Volto àquela Estética, da qual dizia ter ela
recebido do acontecimento quase tantos desmentidos quanto ocasiões em
que acreditou poder dominar o gosto, julgar definitivamente o mérito das
obras, impor-se aos artistas e ao público e forçar as pessoas a amar o que não
amavam e abominar o que amavam.
Mas foi apenas sua pretensão que foi destruída. Ela valia mais que seu
sonho. Seu erro, a meu ver, só incidia sobre si própria e sua verdadeira natu­
reza; sobre seu verdadeiro valor e sua função. Ela se imaginava universal;
mas, ao contrário, era maravilhosamente ela mesma, quer dizer, original. O
que pode ser mais original que se opor à maioria das tendências, dos gostos
e das produções existentes ou possíveis, que condenar a índia e a China, o
“gótico” e o mourisco, e repudiar quase toda a riqueza do mundo para que­
rer e produzir outra coisa: um objeto sensível de delícia que concordasse
perfeitamente com os meandros e os juízos da razão e uma harmonia entre o
instante e o que o tempo descobre lentamente?
Na época (ainda não terminada) em que grandes debates elevaram-se entre
os poetas, uns defendendo os versos chamados “livres”, outros os versos tra­
dicionais, submetidos a diversas regras convencionais, eu me dizia às vezes
que a pretensa ousadia dos primeiros e a pretensa submissão dos segundos
não passavam de uma questão de pura cronologia, e que, se até então só
existisse a liberdade prosódlca e assistíssemos de repente à invenção, por

2 5
LUI Z COSTA LIMA

alguns espíritos absurdos, da rima e do alexandrino com cesura, ter-se-ia


denunciado a loucura ou a intenção de mistificar o leitor... E muito fácil, em
arte, conceber a inversão dos antigos e dos modernos, considerando Racine
como vindo um século depois de Victor Hugo...
Nossa Estética rigorosamente pura, então, se me afigura como uma in­
venção que se ignora enquanto tal, considerando-se dedução invencível a
partir de alguns princípios evidentes. Boileau pensava estar seguindo a ra­
zão: ele era insensível a toda bizarria e particularidade dos preceitos. Mas há
algo mais caprichoso que a proscrição do hiato? Mais sutil que a justificação
das vantagens da rima?
Observemos que nada mais natural e talvez mais inevitável que conside­
rar o que parece simples, evidente e geral como algo mais que o resultado
local de uma reflexão pessoal. Tudo o que se imagina universal é um efeito
particular. Todo universo que formamos é sustentado por um ponto único e
nos encerra.
Mas, muito longe de desconhecer a importância da Estética dedutiva, eu
lhe reservo, ao contrário, um papel positivo e gerador de grandes conse­
qüências reais. Uma Estética resultante da reflexão e de uma vontade segui­
da de compreensão dos fins da arte, levando sua pretensão até proibir certos
meios, ou a prescrever condições tanto para a fruição como para a produção
das obras, pode prestar, e realmente prestou, serviços imensos a determina­
do artista ou a determinada família de artistas, sob o modo de participação,
de conjuntos de regras de uma certa arte (e não de qualquer arte). Ela forne­
ce leis sob as quais é possível alinhar as inúmeras convenções e das quais se
podem derivar as decisões de detalhe que uma obra de arte reúne e coorde­
na. Semelhantes fórmulas podem, aliás, possuir em certos casos uma virtude
criadora, sugerindo muitas idéias que nunca surgiriam sem elas. A restrição é
inventiva, tanto quanto, pelo menos, a superabundância das liberdades pode
sê-lo. Não chego a dizer, como Joseph de Maistre, que tudo que incomoda o
homem o fortifica. De Maistre não Imaginava, talvez, que há sapatos muito
apertados. Mas, tratando-se de arte, ele me responderia muito bem, sem
dúvida, dizendo que sapatos demasiado apertados nos fariam inventar dan­
ças completamente novas.
Percebe-se que considero o que se chama de Arte clássica, que é a Arte
guiada pela Idéia do Belo, como uma singularidade, e nunca como a forma
de Arte mais geral e mais pura. Não digo que isto não seja um sentimento
pessoal meu; mas não dou outro valor a esta preferência que o de ser minha.

2 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

O termo parti pris que empreguei significa, para mim, que os preceitos
elaborados pelo teórico, o trabalho de análise conceituai que efetua visando
passar da desordem dos juízos à ordem, do fato ao direito, do relativo ao
absoluto, estabelecendo-se com soberania dogmática, no máximo da cons­
ciência do Belo, são utilizáveis na prática da Arte enquanto convenção esco­
lhida entre outras igualmente possíveis, por um ato não obrigatório e não
sob a pressão de uma necessidade intelectual inelutável, à qual não se pode
subtrair uma vez que se compreendeu de que se tratava.
Pois aquilo que exige razão nunca exige mais do que ela.
A razão é uma deusa que pensamos velar, mas que, na verdade, dorme,
em alguma gruta de nosso espírito: aparece diante de nós, às vezes, para nos
obrigar a calcular as diversas probabilidades das conseqüências de nossos atos.
Sugere-nos, de tempos em tempos (pois a lei dessas aparições da razão em
nossa consciência é completamente irracional), a simulação de uma perfeita
igualdade de nossos julgamentos, uma distribuição de previsão isenta de pre­
ferências secretas, um sóbrio equilíbrio de argumentos; e tudo isto exige de
nós o que mais repugna à nossa natureza — nossa ausência. Esta augusta Razão
gostaria que nos tentássemos identificar com o real a fim e dominá-lo, impe­
ram parendo; mas nós próprios somos reais (ou nada o é) e o somos sobretudo
quando agimos, o que implica uma tendência, quer dizer, uma desigualdade,
uma espécie de injustiça, cujo princípio, quase invencível, é nossa pessoa,
que é singular e diferente de todas as outras, o que é contrário à razão. A
razão ignora ou assimila as pessoas, que, às vezes, de bom grado a ela se en­
tregam. Está ocupada apenas com tipos e comparações sistemáticas, com
hierarquias ideais de valores, com a enumeração de hipóteses simétricas; e
tudo isto, cuja formação a define, desenrola-se na mente e não alhures.
Mas o trabalho do artista, mesmo em sua parte inteiramente mental, não
pode reduzir-se a operações guiadas pela razão. Por um lado, a matéria, os
meios, o próprio momento e uma multidão de acidentes (os quais caracteri­
zam o real, pelo menos para o não-filósofo) introduzem na fabricação da obra
uma série de condições que não só trazem o imprevisto e o indeterminado
para o drama da criação, mas que, ademais, concorrem para torná-lo racio­
nalmente inconcebível, pois elas o introduzem no domínio das coisas, onde
ele se faz coisa; e, de pensável, torna-se sensível.
Por outro lado, o artista, querendo ou não, não pode absolutamente
desligar-se do sentimento do arbitrário. Ele caminha do arbitrário em dire­
ção a uma certa necessidade, e de uma certa desordem a uma certa ordem; e

2 7
LUI Z COSTA 1IMA

não pode evitar a sensação constante deste arbitrário e desta desordem, que
se opõem ao que nasce de suas mãos e que lhe aparece como necessário e
ordenado. É este contraste que o faz sentir que cria, posto que ele não pode
deduzir o que lhe virá a partir do que tem.
Sua necessidade é, assim, completamente diferente da do lógico. Ela está
toda no Instante deste contraste, e retira sua força das propriedades deste
Instante de resolução, que se tratará de reencontrar em seguida ou de trans­
por ou de prolongar, secundum artem.
A necessidade do lógico resulta de uma certa impossibilidade de pen­
sar, que afeta a contradição: tem por fundamento a conservação rigorosa
das convenções de notação — das definições e dos postulados. Mas isto
exclui do domínio dialético tudo o que é Indefínível ou mal definível, tudo
o que não é essencialmente linguagem, nem redutível à expressão pela
linguagem. Não há contradição sem dicção, quer dizer, fora do discurso.
O discurso, portanto, é um fim para o metafísico, não passando de um
meio para o homem que visa a atos. Preocupando-se antes de tudo com o
Verdadeiro, no qual alocou todas as suas complacências, e que reconhece
através da ausência de contradição, o metafísico, quando descobre em
seguida a Idéia do Belo e quando quer desenvolver sua natureza e conse­
qüências, não pode deixar de lembrar-se da busca da sua Verdade; e ei-lo
a perseguir, sob o nome do Belo, algum Verdadeiro de segunda ordem:
inventa, sem hesitação, um Verdadeiro do Belo; e assim, como eu já disse,
separa o Belo dos momentos e das coisas, dentre os quais os belos mo­
mentos e as belas coisas...
Quando se volta para as obras de arte, sente-se tentado, então, a julgá-las
segundo princípios, pois seu espírito é talhado para buscar a conformidade.
Será preciso, antes de mais nada, traduzir sua impressão em palavras, para
que possa emitir seus juízos a partir de palavras e especular sobre a unidade,
a variedade e outros conceitos. Ele afirmará a existência de uma Verdade na
esfera do prazer, cognoscível e reconhecível por qualquer pessoa: decreta a
igualdade dos homens diante do prazer, decide que há prazeres verdadeiros
e falsos prazeres e que é possível formarem-se juizes para afirmar o direito
com absoluta infalibilidade.
Não estou exagerando. Não há dúvida de que a firme crença na possibi­
lidade de resolver o problema da subjetividade dos juízos, em matéria de arte
e de gostos, tenha-se mais ou menos estabelecido na mente de todos aqueles
que sonharam, tentaram ou levaram a cabo a edificação de uma Estética

2 8
TEORIA DA LITERATURA E M S U A S F O N T E S — VO L . 1

dogmática. Reconheçamos, Senhores, que nenhum de nós escapa a semelhante


tentação, deslizando freqüentemente do singular para o universal, fascinado
pelas promessas do demônio dialético. Este sedutor nos faz desejar que tudo
se reduza e se esgote em termos categóricos e que o Verbo esteja no fim de
todas as coisas. Mas devemos responder-lhe com esta simples observação: a
própria ação do Belo sobre alguém consiste em torná-lo mudo.
Mudo, a princípio; mas logo observamos uma notável seqüela do efeito
produzido: se, sem a menor intenção de julgar, tentamos descrever nossas
impressões imediatas do acontecimento de nossa sensibilidade que vem de
nos afetar, tal descrição exige o emprego da contradição. O fenômeno nos
obriga a estas expressões escandalosas: a necessidade do arbitrário; a necessi­
dade através do arbitrário.
Coloquemo-nos, portanto, no estado devido: o estado para onde nos
transporta uma obra, daquelas que nos obrigam a desejá-las tanto mais quanto
já as possuímos (confio que basta consultar nossa memória para encontrar o
modelo desse estado). Experimentamos aí uma curiosa mistura, ou melhor,
uma curiosa alternância de sentimentos nascentes, cuja presença e contraste
acredito serem característicos.
Sentimos, por um lado, que a fonte ou o objeto de nossa vontade nos
convém de tal modo que não podemos concebê-lo de outra forma. Mesmo
em certos casos de supremo contentamento, sentimos que nos transforma­
mos de algum modo profundo para nos tornarmos aquele cuja sensibilidade
geral é capaz de tais extremos ou tal plenitude de delícia. Mas sentimos tam­
bém, com a mesma força e como que através de outro sentido, que o fenô­
meno que causa e desenvolve em nós este estado, infligindo-nos seu poder
invisível, poderia não ter existido; ou até não deveria ter existido, pertencen­
do assim ao improvável. Ao passo que nosso gozo ou nossa alegria é forte
como um fato, a existência e a formação do meio, do instrumento gerador
de nossa sensação, nos parecem acidentais. Esta existência nos surge como
sendo o efeito de um acaso muito feliz, de uma oportunidade, de um dom
gratuito da Fortuna. Note-se que é a partir disso que pode ser descoberta
uma analogia particular entre o efeito de uma obra de arte e o de um aspecto
da natureza, devido a algum acidente geológico, a uma combinação fortuita
de luz e de vapor d’água no céu etc.
Não podemos às vezes imaginar que determinado homem igual a nós seja
o autor de um benefício tão extraordinário e a glória que lhe concedemos é
a expressão desta impotência.

2 9
LU 12 C O S T A L I M A

Ora, este sentimento contraditório existe em seu mais alto grau no artis­
ta; é uma condição de qualquer obra. O artista vive na intimidade de seu
arbitrário e na expectativa de sua necessidade. Ele reclama esta última a todo
momento, obtendo-a nas circunstâncias mais imprevistas, mais insignifican­
tes; e não há nenhuma proporção, nenhuma uniformidade de relação entre
a dimensão do efeito e a importância da causa. Ele espera uma resposta ab­
solutamente precisa (já que ela deve engendrar um ato de execução) a uma
questão essencialmente incompleta: deseja o efeito que será produzido nele
por aquilo que dele pode nascer. O dom às vezes precede a demanda, sur­
preendendo um homem que se vê, então, cumulado, sem preparação. Este
caso de uma graça súbita é o que manifesta mais fortemente o contraste, a
que acabei de me referir, entre as duas sensações que acompanham um mes­
mo fenômeno; o que nos parece poder não ter existido se nos Impõe com a
mesma força do que não podia deixar de ser, e que devia ser o que é.
Eu vos confesso, Senhores, que nunca pude Ir mais longe em minhas re­
flexões sobre estes problemas, sem me arriscar além das observações que podia
fazer sobre mim. Se me detlve na natureza da Estética propriamente filosófi­
ca, é porque ela nos oferece o próprio modelo de um desenvolvimento abs­
trato aplicado ou Infligido a uma diversidade infinita de impressões concretas
e complexas. Daí resulta que ela não fala do que pensa estar falando, não se
tendo demonstrado ainda, aliás, que disso se possa falar. Mas, mesmo assim,
foi incontestavelmente criadora. Quer se trate das regras do teatro, das da
poesia, dos cânones da arquitetura, do segmento áureo, a vontade de fazer
surgir uma Ciência da arte ou, pelo menos, de Instituir métodos e de organi­
zar, de certa forma, um terreno conquistado, ou que se Imagina definitiva­
mente conquistado, seduziu os maiores filósofos, Foi por isso que me
aconteceu, outrora, confundir estas duas raças e tal engano me valeu algu­
mas reprimendas bastante severas. Pensei ver em Leonardo um pensador; em
Spinoza, uma espécie de poeta ou de arquiteto. Estava errado, sem dúvida.
Parecia-me, entretanto, que a forma de expressão exterior de um ser fosse às
vezes menos Importante que a natureza de seu desejo e o modo de encadea-
mento de seus pensamentos»
Seja como for, não preciso acrescentar que não encontrei a definição que
buscava. Não desprezo este resultado negativo. Se eu tivesse encontrado
aquela boa definição, poderia ter-me sentido tentado a negar a existência de
um objeto que lhe correspondesse e a pretender que a Estética não existe.
Mas o que é indeflnível não é necessariamente negável. Ninguém, que eu

3 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. I

saiba, teve o mérito de definir a Matemática, e ninguém duvida de sua exis­


tência. Alguns tentaram definir a vida; se o resultado de seus esforços foi
sempre vão, a vida, contudo, não o é menos.
A Estética existe; existem até estetas. A estes quero propor, para termi­
nar, algumas Idéias ou sugestões, que eles haverão por bem considerar como
as de um ignorante ou de um ingênuo, ou a feliz combinação dos dois.
Volto ao monte de livros, de tratados ou de monografias que abordei e
explorei mais atrás e no qual encontrei a diversidade de que estais cientes.
Talvez seja possível classificá-los como o farei.
Eu constituiria um primeiro grupo, que batizaria Estésica, onde coloca­
ria tudo que se relaciona com o estudo das sensações; mais particularmente,
porém, aí estariam os trabalhos que têm como objeto as excitações e as rea­
ções sensíveis que não possuem um papel fisiológico uniforme e bem defini­
do. São estas, com efeito, as modificações sensoriais que o ser vivo pode
dispensar e cujo conjunto (que contém, como raridades, as sensações Indis­
pensáveis ou utilizáveis) é nosso tesouro. Nele reside nossa riqueza. Todo o
luxo de nossas artes é retirado desse veio Inesgotável.
Um outro grupo reuniria tudo o que concerne à produção das obras; e
uma idéia geral da ação humana completa, de suas raízes psíquicas e fisioló­
gicas até sua atualização sobre a matéria ou sobre os Indivíduos, permitiria
subdividir este segundo grupo, que eu denominaria Poética, ou antes, Poiética.
Por um lado, teríamos o estudo da invenção e da composição, o papel do
acaso, o da reflexão, o da Imitação, o da cultura e do melo ambiente; por
outro lado, o exame e a análise das técnicas, procedimentos, instrumentos,
materiais, meios e suportes da ação.
Esta classificação é bastante grosseira. É também Insuficiente. É preciso,
pelo menos, um terceiro grupo onde se acumulariam as obras que tratam
dos problemas nos quais minha Estésica e minha Poiética se confundem.
Mas esta observação me faz temer que meu objetivo não passe de ilusó­
rio e desconfio de que todas as comunicações que serão apresentadas aqui
demonstrarão sua Inanidade.
Que me resta, então, após minha tentativa de reflexão sobre o pensa­
mento estético, e será que posso, pelo menos, na falta de uma idéia distinta
e decisiva, resumir a multiplicidade de minhas tentativas?
O balanço de minhas reflexões me dá apenas proposições negativas; re­
sultado notável, afinal de contas. Pois não há números que a análise só defi­
ne por negações?

3 1
LUI Z COSTA LIMA

Eis então o que digo a mim mesmo:


Existe uma forma de prazer que não se explica; que não se circunscreve;
que não fica restrita ao órgão do sentido onde nasce, e nem mesmo ao domí­
nio da sensibilidade; que difere de natureza, ou de motivo, de intensidade,
de importância e de conseqüência segundo as pessoas, as circunstâncias, as
épocas, a cultura, a idade e o meio ambiente; que induz a ações sem causa
universalmente válida, ordenadas segundo fins incertos, de indivíduos dis­
tribuídos como que ao acaso dentro do conjunto de um povo; e essas ações
engendram produtos de diversas categorias, cujo valor de uso e de troca
dependem muito pouco do que eles são realmente. Finalmente, última nega­
tiva: todos os esforços feitos para definir, regularizar, regulamentar, medir,
estabilizar ou garantir esse prazer e sua produção foram, até agora, vãos e
infrutíferos; mas como acontece que tudo, neste domínio, é impossível de
circunscrever, só foram vãos de modo imperfeito e seu fracasso não deixou
de ser, às vezes, curiosamente criador e fecundo...
Não ouso dizer que a Estética é o estudo de um sistema de negações, se
bem que haja uma certa dose de verdade nestas palavras. Se abordamos os
problemas de frente, como que corpo a corpo e se esses problemas são o da
fruição e o do poder de produzir a fruição, quaisquer soluções positivas, ou
simplesmente os enunciados dos problemas, são um desafio para nós.
Pretendo, ao contrário, exprimir uma idéia completamente diferente.
Posso divisar um futuro maravilhosamente vasto e luminoso para vossas pes­
quisas.
Levai isto em conta: todas as ciências mais desenvolvidas invocam ou
reclamam, atualmente, mesmo em sua técnica, o socorro ou o concurso de
considerações ou de conhecimentos cujo estudo legítimo vos pertence. Os
matemáticos não falam em outra coisa senão na beleza da estrutura de seus
raciocínios e de suas demonstrações. Suas descobertas se desenvolvem atra­
vés da percepção de analogias entre formas. No fim de uma conferência rea­
lizada no Instituto Poincaré, Einstein dizia que, para acabar sua construção
ideal dos símbolos, tinha sido obrigado “a introduzir alguns pontos de vista
arquitetônicos”...
A Física, por outro lado, acha-se presentemente diante da crise das ima­
gens imemoriais que a matéria e o movimento, enquanto entidades bem dis­
tintas, vinham-lhe oferecendo desde sempre; a mesma coisa para o lugar e o
tempo, bem discerníveis e observáveis em qualquer escala; e ela dispunha
das grandes facilidades oferecidas pelo contínuo e a semelhança. Mas seus

3 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

poderes de ação ultrapassaram qualquer previsão, excedendo todos os nos­


so meios de representação figurada, chegando a derrubar até nossas venerá­
veis categorias. Entretanto, o objeto fundamental da Física são nossas
sensações e nossas percepções. Ela as considera, porém, como substância de
um universo exterior sobre o qual somos capazes de alguma ação, repudian­
do ou desprezando aquelas impressões nossas imediatas, que não pode fazer
corresponder a uma operação que permita reproduzi-las em condições
“mensuráveis”, isto é, ligadas à permanência que atribuímos aos corpos sóli­
dos. A cor, por exemplo, não passa de uma circunstância acessória, para o
físico; não retém dela senão uma indicação grosseira de freqüência. Quanto
aos efeitos de contraste, cores complementares e outros fenômenos do mes­
mo tipo, ele os afasta de seu caminho. Pode-se chegar, assim, a esta interes­
sante constatação: enquanto que para o pensamento do físico a impressão
colorida tem o caráter de um acidente que se produz para este ou aquele
valor e uma seqüência crescente e indefinida de números, o olho do mesmo
sábio lhe oferece um conjunto restrito e fechado de sensações que se cor­
respondem duas a duas, de tal forma que se uma é dada com uma certa in­
tensidade e duração, será imediatamente seguida da produção da outra. Se
alguém nunca tivesse visto o verde, bastaria ver o vermelho para conhecer o
primeiro.
Costumo perguntar-me, pensando nas recentes dificuldades da Física e
em todas as criações bastante incertas, meio entidades, meio realidades, que
está obrigada a fazer e remanejar cotidianamente, se, afinal de contas, tam­
bém a retina não teria opiniões próprias sobre os fótons e uma teoria da luz
só sua, e se os corpúsculos do tato e as maravilhosas propriedades da fibra
muscular e de sua inervação não seriam parte interessada importante, na
grande tarefa de fabricação do tempo, do espaço e da matéria? A Física de­
veria voltar ao estudo da sensação e de seus órgãos.
Mas tudo isto não é Estésica? E se, na Estésica, introduzíssemos por fim
certas desigualdades e certas relações, não nos estaríamos aproximando de
nossa indefinível Estética}
Acabo de invocar, diante de vós, o fenômeno das cores complementares,
que nos mostra, do modo mais simples e mais fácil de observar, uma verda­
deira criação. Um órgão fatigado por uma sensação parece fugir dela emitindo
uma sensação simétrica. Poderemos encontrar, igualmente, uma quantidade
de produções espontâneas, que se apresentam a nós enquanto complemen­
tos de um sistema de impressões sentido como sendo insuficiente. Não po­

3 3
LUI Z COSTA LIMA

demos ver uma constelação no céu sem que logo forneçamos as linhas que
ligam os astros e não podemos ouvir sons suficientemente aproximados sem
que procedamos à sua continuação, encontrando para eles uma ação em
nossos aparelhos musculares que substitua a pluralidade desses acontecimen­
tos distintos por um processo de geração mais ou menos complicado.
Todos esses fatos não passam de obras elementares. Talvez a Arte não seja
feita senão da combinação de tais elementos. A necessidade de completar, de
responder pelo simétrico ou pelo semelhante, de mobiliar um compasso vago
ou um espaço nu, de preencher uma lacuna, uma expectativa, ou de escon­
der o presente fastidioso por meio de imagens favoráveis, são as múltiplas
manifestações de um poder que, desdobrado pelas transformações que o
intelecto sabe efetuar, armado de uma variedade de procedimentos e meios
tomados de empréstimo à experiência da ação prática, pôde elevar-se a estas
grandes obras de alguns indivíduos que conseguem atingir, vez por outra, o
mais alto grau de necessidade que a natureza humana pode obter da posse de
seu arbitrário, como que respondendo à própria variedade e indeterminação
de todo o possível que está em nós.

Tradução
E d u a r d o V iv e ir o s d e C a s t r o

Revisão
F e r n a n d o A u g u s t o R o d r ig u e s

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c a p ít u l o 2 Em prol da poética
H EN RI M E S C H O N N IC

“Se há alguns críticos que ainda duvidam da com petência da lingüísti­


ca em abarcar o campo da poética, tenho para mim que a incom petên­
cia poética de alguns lingüistas intolerantes deve ter sido tom ada por
em a incapacidade da própria ciência lingüística. Todos nós que aqui
estamos, todavia, com preendem os definitivamente que um lingüista
surdo à função poética da linguagem e um especialista de literatura
indiferente aos problemas lingüísticos e ignorante dos métodos lingüís­
ticos sao, um e outro, flagrantes anacronism os.”

Roman JAKOBSON, “Linguístíque et poétíque”,


Essais de linguistique générale, Ed. de M inuit, p. 248.

Tradução do original “Pour la poétique”, in Langue françatse, 3, setem bro, n.° sobre a estilística,
Larousse, Paris, 1969.

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A POÉTICA

A lingüística moderna modificou irreversivelmente as condições de estudo


da literatura. E desde os formalistas russos, os estruturalistas de Praga e o
N ew Criticism, a teoria da literatura se desenvolveu mais que durante toda a
era aristotélica. Mas as relações entre lingüística e literatura são, hoje em dia,
uma área de mal-entendidos; tudo está neste “e” que as confronta, e que não
pode deixar de transformá-las. É que esta área se acha ainda em exploração,
enquanto que o rendimento da lingüística no ensino das línguas (na renova­
ção da pedagogia do francês, por exemplo), cujo único obstáculo é apenas
uma ignorância desprovida de doutrina, já tem garantido seu sucesso, apesar
da resistência da rotina.
Tal exploração em curso, que não avança sem divergências e regres­
sões, deveria o quanto antes eliminar suas fraquezas, assegurar-se de seu
objetivo e de seus métodos, para vencer uma resistência mais obstinada
que a presente no estudo da gramática. Pois ainda existem alguns indiví­
duos respeitáveis que, quando falam ou escrevem sobre literatura, e quan­
do a ensinam, se vangloriam de não possuir método. Como se ausência
de método fosse presença humana. Sua “sensibilidade” aos textos demons­
tra o quanto sua cultura geral é uma herança passiva e não uma criação (e
a prova disso é que eles se vêem despreparados diante da m odernidade);
seu amável liberalism o não passa de um etnocentrism o e de um lo-
gocentrismo arrogantes; e são estes indivíduos que denunciam o terroris­
mo totalitário, a “desumanização”. Eles jamais se colocaram as poucas
questões primeiras que os teriam inquietado quanto ao papel que desem­
penham. Eles são ecléticos. Afirmam que todo método mata seu objeto,
dado que o cria e dá sempre razão a quem o aplica; afirmam, com bastan­
te ignorância, que uma estrutura é um esqueleto e, com bastante confu­

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LUI Z COSTA LIMA

são, que a linguagem não tem quase nada a ver com a literatura; que a
formalização é impossível no que pertence à axiologia e ao arbitrário, mas
crêem numa verdade do texto, pois acusam alguns de contra-senso. Às
vezes, é difícil, aliás, entender suas queixas, porque os termos de que se
servem são nebulosos — mas é que a palavra, dizem, é enganadora. Na
verdade, e eles o confessam, são hedonistas. Pensam o belo, meditam so­
bre o eu. Percebemo-los pouco à vontade por não serem seus próprios
contemporâneos.
Contudo, não se pode evitar a lingüística. O estudo da linguagem não
pode deixar de interrogar a literatura, que é linguagem e comunicação. E, se
ela é linguagem, uma primeira ilusão consistiria em estabelecer um privilé­
gio exclusivo da lingüística sobre a literatura — e daí até a ilusão dos mode­
los que esgotariam a obra. Nem tudo se reduz ao lingüístico. O texto é uma
relação com o mundo e com a história. Uma ilusão oposta seria considerar a
lingüística como uma auxiliar que forneceria o material a ser elaborado, como
uma etapa, em suma, antes de se chegar aos constituintes fundamentais da
literatura (o conhecimento psicológico, sociológico...); e eis, então, o dualismo
dos “literários”. Na verdade, a lingüística é o ponto de partida de um rigor e
de um funcionalismo que permitem colocar, em termos nem estéticos nem
redutores (sociologismo, biografismo, experiência do tempo ou do imaginá­
rio, psicocrítica...), mas em termos sintéticos, a questão de seu ser para a li­
teratura, eliminando, assim, todo dualismo, evitando o falso dilema da análise
formal ou da temática (que, ambas, matam o escrito), e todo procedimento
que “atravesse” a obra.
O estudo das obras é então uma poética. Ela não elimina os outros pro­
cessos exploratórios, posto que se visa à descoberta e não à tautologia. Não
quer senão pensar eficazmente sua questão. Uma questão que só parece coi­
sa de esteta aos historicistas e sociologizantes. Ela visa à forma como vivido,
o “signo” se fazendo “texto”.1 Ela não é separável de uma prática da escrita:
é a consciência desta. Não se trata de uma teorização no abstrato: tal ques­
tão é uma atitude frente ao escrito, uma conseqüência de uma filosofia (ou
melhor, de uma prática materialista do escrito), que pode não interessar igual­
mente a outras leituras, como a do texto na sociedade, a da literatura como
documento — leituras movidas por outras filosofias do escrever. Não há por
que julgar um procedim ento superior aos outros, nem exclusivo. Só o
empirismo de um Eu vibrátil se afigura insustentável. Não há “verdade” ob*

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^ U í o t e c a - r T ^ f t . ',
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1 -

jetiva, eterna, nem da obra nem do ler. Não há complementaridade das leitu­
ras. Mas seria bom para todos que cada método fosse explicitamente ligado
à filosofia, à ideologia, que implica. Não se pode separar o estudo de um
objeto do estudo da metodologia da descoberta desse objeto; e não se pode
separar saber de epistemologia: o estudo do escrito de uma reflexão sobre as
condições de estudo do escrito.
Para muita gente ainda, poética é apenas um adjetivo, ou, se é substanti­
vo, evoca somente a poesia, o versificado. Sem dúvida, isto traduz uma certa
ignorância a respeito da reflexão contemporânea. Mas essa própria reflexão,
saída da poesia para o estudo de todo discurso literário, não fez desaparecer
semelhante ambigüidade, retirando seus exemplos só da poesia, ou ainda
tomando esta como uma linguagem limite. A incerteza domina a orientação
da poética, se considerarmos pesquisas recentes. Mas a contribuição mais
segura até agora obtida é certamente a indistinção formal entre “prosa” e
“poesia”, que surgem como as ferramentas conceituais as mais grosseiras para
se apreender a literatura, e como sobrevivêncías de difícil abandono, diante
da noção de texto (mas que, decerto, são mais operatórias que esta última).
O livro de Jean Cohen2 não contribuiu para desfazer o equívoco, redu­
zindo por regressão e confusão a poética a uma ciência da poesia. Tais pro­
blemas da constituição de uma poética se situam, ao mesmo tempo, no plano
da crítica da linguagem crítica e no plano da própria concepção do que é
poesia, obra, texto. E eles redobram de importância nos debates atuais.3
Edificando uma ciência, Jean Cohen estuda e classifica até mesmo o que não
existe (“traçar a priori o quadro das formas poéticas virtuais”), e como ele
está de posse de todas as possibilidades, “o problema da verificação, portan­
to, não se coloca”. O anjo do bizarro é, para ele, a poesia, “a realização de
todas as combinações possíveis, com exceção precisamente daquelas que são
permitidas.”4 É a “antiprosa”, como sempre. E para N. Ruwet, também: “A
poesia se caracteriza correntemente pela violação de certas regras normal­
mente obrigatórias.”5 Vai comungar, portanto, com Todorov, quando este
analisava a poesia.6 Mas será que uma incompreensão individual da poesia
pode constituir uma corrente de pensamento? Pelo menos, é isso que as apa­
rências indicavam num certo momento. Recentemente, é numa direção con­
trária que Todorov parece orientar a poética, restringindo-a a uma gramática
da narrativa.7Recolher-se a uma sintagmática faria parte da poética; mas isso
não é tudo. Tratar-se-á, sobretudo, de uma atenção abstrata ao modelo, que
se desinteressa das obras: “A poética trata apenas dos virtuais, não os reais.”8
LUI Z COSTA LIMA

A obra é “uma manifestação mais ou menos ‘impura”99 — escorregão reve­


lador do discurso científico em direção ao discurso normativo: “A obra par­
ticular se submete (...) às leis do discurso literário”,10 a tal ponto que, em sua
abstração, essa busca do gênero esvazia a obra, quando de fato é a obra que
esvazia o gênero. Semelhante poética curva as obras diante de sua teoria, em
vez de se curvar às obras. Ela o sabe: “O gênero não possui realidade fora da
reflexão teórica”, mas afirma, apesar disso, que “toda obra pode ser consi­
derada como uma instância particular quanto a um gênero geral (sic), mes­
mo que este contenha apenas tal obra.”11 Afirmo, então, que o particular, o
“concreto não-individual”,12 Todorov não pode conhecê-lo, e que só o gê­
nero lhe interessa, mesmo se o gênero não existe. E compreensível, por isso,
que o problema do valor seja elidido.13 Assim, atraída pela poesia ou voltada
para a gramática da narrativa, a poética está ainda por se definir. Seu objeto,
diz Todorov, “é precisamente seu método”.14 Mas, para falar dos textos, e
não para falar de si mesma. Ela só poderá saber algo de si se procurar saber
o que é uma obra. Iuri Lotman,15 embora mais sob forma de programa que
de realização, é o único que parece abrir para a poética um campo de explo­
ração que abarque todo o fato literário, orientando-se para uma nova
metodologia das ciências humanas, ao repetir o que até agora continua sen­
do uma profissão de fé tão banal que virou chavão, mas que, enfim, não é
praticada por ninguém: “Diferentemente dos sistemas semióticos de tipo
lingüístico, é impossível, em arte, o estudo separado dos planos do conteúdo
e da expressão.”16 Daí, as delimitações que devem ser estabelecidas entre a
poética e a lingüística, a estilística e os estudos literários.
A poética está essencialmente ligada à prática da escrita. Assim como esta
prática é consciência da linguagem,17 a poética é a consciência desta consciên­
cia: “Falar da poesia é para nós uma parte, uma extensão da experiência que
temos dela.”18 E T S. Eliot acrescenta: “A crítica, como toda atividade filosó­
fica, é inevitável e não requer nenhuma justificação. Perguntar ‘O que é a
poesia?’, é situar a função crítica.”19 Daí o elo entre um tal modo de reflexão
e uma prática da escrita contem porânea — seu melhor exercício é em
sincronia.20 Ambos são o laboratório comum da modernidade. Esta limita­
ção inicial não é um empobrecimento. Ela remete ao problema da relativida­
de das estéticas e, portanto, das concepções e das práticas da metáfora; e,
mais além, ao problema do alcance de uma poética moderna quanto a textos
de outras eras metafóricas. A poética tem essa superioridade sobre o antigo
pensamento aristotélico da literatura: ela leva o escrito a sério — como um
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL, 1

vivido. É o exemplo de Kafka.21 Não ornamento, mas vida. A poética tem


talvez como tarefa, após seu período formalista, criar uma linguagem crítica
que sustente a tensão do conflito que um texto é, sem nada reduzir dele. Da
contradição da poesia como genérico concreto22 até a sua própria contradi­
ção como ciência do particular ■ — t é uma mesma contradição, um mesmo
movimento de criação crítica—, a poética nada deve elidir, ou estaria imedia­
tamente repetindo os procedimentos antigos tão gratificantes para o espíri­
to. Ao abandono moderno do etnocentrismo pela lingüística, começa a
corresponder o abandono do logocentrismo pela poética — este mesmo
logocentrismo que em Platão bania o poeta da cidade, e em Aristóteles fazia
da poesia uma figura.
Elaborar uma linguagem crítica monista e não-dualista, contra dois mil
anos de pensamento dualista e espiritualista, parece ser a tarefa de tal poéti­
ca. A prática da escrita, seja qual for a sua ideologia, é um monismo, E pre­
ciso que a crítica seja homogênea a seu objeto, um objeto não-objeto, posto
que é o lugar do valor. Situar assim a poética, elimina o cientificismo, o qual
não é senão uma máscara (ao avesso) do subjetivismo. Trata-se de encontrar
conceitos operatórios para a análise do funcionamento da conotação,23 con­
ceitos que compreendam o texto como forma-sentido, da prosódia-metáfo-
ra à composição-sintaxe, sentido em todos os sentidos e sem hierarquia do
sentido, fora das categorias antigas de “prosa” ou “poesia”. Faz-se desapare­
cer, assim, qualquer distância entre descrição e interpretação. Não há descri­
ção inocente. Não se pretende a redução da obra a fórmulas; mas a relação
homológica entre as grandes e pequenas unidades, a transposição da noção
de shifters (conectores) para o nível dessas unidades, a projeção do para­
digmático sobre o sintagmático neste mesmo nível24 definem um procedi­
mento. E preciso desenvolver o estudo da prosódia, mesmo e sobretudo na
prosa, para melhor estabelecer as condições de uma forma-sentido. O
aguçamento da linguagem da poética deveria evitar o metaforismo.25 Esta
exigência monista leva a poética a ser um estudo da literariedade em obras,
não em virtualidades. O que tem realidade apenas em cada obra, e o que tem
realidade apenas no pensamento sobre as obras: dois tipos de realidade, dois
estatutos da linguagem crítica, confrontados, reagindo um sobre o outro. E
preciso não misturá-los como se fossem homogêneos. A realidade da obra
realiza; a do modelo virtualiza. Analisar a literatura-modelo é voltar as cos­
tas para a literatura em obra, não ver senão o adquirido: é a segurança e a
atitude professoral. Uma “poética geral”, tomando-se por uma ciência,

4 1
LUI Z COSTA LIMA

termina sendo a antiga retórica, teorização de modelos simplistas, apoian­


do-se em idéias recebidas. Mas a poética não se esgota tampouco numa obra.
Ela é o pensamento das formas numa obra. Sua linguagem transcendentalista
deve ser incessantemente corrigida, recriada pelo estudo imanente, para não
ser verificação, ou taxinomia, formas da velha incompreensão dualista do
escrever.
A poética deveria conduzir a uma nova pedagogia da literatura: a previs­
ta por Ezra Pound em Como ler e no ABC da literatura — a pedagogia do
escrever como um dos funcionamentos da linguagem e não como atividade
estética (do “belo”, do “difícil”), da prática do escritor como homogênea ao
viver, da crítica como homogênea à escrita. Um ensino materialista do dizer
e do ler como forma do vivido confirmaria as palavras de alguém: “A poesia
deve ser feita por todos, não por um” — uma cultura homogênea à vida.
Este ensino da literatura, em continuidade com um ensino da língua enquanto
produção e não gramática abstrata, integrando os textos do passado como
produções e não modelos sacralízados, faria da cultura uma criação crítica.
Mas o ensino reinante não passa do exercício e da solidificação de uma
esquizofrenia cultural: o livro ao lado da vida, e mesmo oposto a ela. A
homogeneidade de uma Idade Média, das civilizações orais ou iniciáticas,
não está mais a nosso alcance. O abandono do folclore pela cultura erudita
(de Nerval a Van Gennep, história de uma especialização que é uma morte)
— e o folclore atualmente, mesmo para as culturas africanas, é uma contra­
fação —, esse abandono é um dos sinais do viver dividido. Um esforço de
unificação ergue-se, talvez, contra dois mil anos presentes de civilização oci­
dental duplamente dualista, cristã e arístotélíca. Daí o sentido crítico de tal
estudo e ensino da literatura.

0 SISTEMA

O princípio de trabalho que cada vez mais se depreende das pesquisas, dos
êxitos e dos fracassos, mas que, embora se comece a enunciá-lo, não é ainda
aplicado integralmente em lugar nenhum, é: não partir mais do estilo como
afastamento, escolha sobre a língua, originalidade, mas partir da obra intei­
ra, como sistema gerador de formas profundas, fechamento e abertura, como
ela acaba de ser definida. A visão de Jakobson é transcendentalista. A única
via proveitosa é a abordagem imanente, para penetrar em um ato poético

4 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

que se constitui — para sermos breves, em termos tomados de Chomsky —


em desempenho (performance) e competência. A competência surge enquanto
sistema que cria a forma, enquanto impossibilidade, portanto, de separar a
“forma” do “fundo”.26 Abordagem imanente é a crítica feita por escritores,
como a de Proust, por exemplo, quando analisa, em sua carta a Thibaudet
em 1920, o estilo de Flaubert. O estudo dos diferentes níveis não pode se
realizar separadamente, e não só não há outra hierarquia entre estes níveis e
redes de significação, que não seja a do sentido ou sentidos da obra, como
também a obra não é linear, as correspondências se fazendo “fora da ordem
temporal seguida pelos elementos”.27
Entretanto, a estilística e a poética têm sido montadas, até agora, antes
de tudo sobre a diferença, sobre a surpresa — o estilo concebido como infor­
mação nova, deslocamento de uma expectativa: é o conceito de estranhamento
(ostranenie) dos formalistas28 e de desautomatização da Escola de Praga, apesar
do caráter empírico e vago assim atribuído a uma noção referida a uma nor­
ma cientificamente incognoscível.29 Antes de se “superar” a noção estática
do sistema saussuriano, seria preciso integrá-la numa lingüística dinâmica e
não abandoná-la em favor de uma miragem. Mas é isto o que faz a maioria
dos lingüistas que recentemente se ocuparam de textos poéticos. Fonagy30
vê no estilo uma distorção da “mensagem natural”, ele é “o que foge à con­
venção” — retoma-se o velho mal-entendido sobre a frase de Buffon, fazendo
do estilo o caráter, o “próprio homem”.31 Riffaterre entende o “estímulo
estilístico” como sendo o elemento “imprevisível” que destrói o esperado —
chamado “contexto”32 —; daí a única concepção possível de procedimentos
(procédés) e, depois de um pesado aparato de crítica e de experimentação, a
mediocridade do resultado, a apreensão unicamente das aparências —• da
língua e não do estilo. E o que ocorre igualmente com P. Guiraud.33 E é ainda
esta mesma concepção da poesia como afastamento, desvio, que prevalece
até agora em todos os trabalhos inspirados na lingüística gerativa. Tal é o
pressuposto fundamental de Levin:34 liberdades ou restrições (2.3), a poesia
é entendida como uma diferença, e tudo acaba sendo uma especialização (no
plano da sintaxe e da sintagmática) do velho afastamento.35 Um simplismo
apressado e primário é, assim, o vício fundamental da “normalização” dos
poemas e das “transformações”, a noção de “emparelhamento” (acouplagen)
e alguns estudos sobre a posição não trazendo, em si, nada de novo quanto
à poética sintagmática dejakobson. Eis como Levin justifica o uso das transfor­
mações: “O uso das transformações nesta análise —■implicando, essen­

4 3
ÍJJIZ COSTA LIMA

cialmente, que se compare alguma coisa no poema com alguma coisa que o
poeta teria podido escrever mas não o fez — pode-se justificar a priori, visto
que duas frases, que são transformações uma da outra, estão vinculadas es­
trita e integralmente55 (p. 37, nota 7. Ver também p. 54, 6-3). Dessa forma, a
análise pode incidir sobre uma normalização do poema e não sobre o pró­
prio texto: mais uma vez apreende-se a língua e não o segredo da obra.36 É
verdade que não se estava preocupado com isso. Assim faz N. Ruwet.37 As­
sim faz Walter A. Koch:38 “Tkere is agreemení in that €style3 is somehow
connected with DEVIATIOW9 (p. 44), e sua análise da tópica (ele traduz o
verso de Shelley “Vai lentamente sobre a vaga do poente, Espírito da Noite”
por seu resultado em Eu (autor) amo a noite3 além de critérios metalín-
güísticos, tais como a personificação, a concretização etc.) revela uma con­
cepção irremediavelmente ornamental do estilo, e só consegue atingir um
nível empobrecido da comunicação própria da obra,
Era inevitável que concepções (de origem diversa) do estilo como desvio
(frustração ou recompensa, tanto faz) culminassem no desvio quantitativo
(para falar como os formalistas de 1923, acusando Grammont de “desvio
emocionalista”). Não é preciso repetir as críticas de Gérald Antoine39 sobre
as conclusões de Guiraud em seu antigo livro Les caractères statistiques du
vocabulaire. A palavra é contexto, e apenas conjuntos podem ser confronta­
dos.40 Em termos de lingüística gerativa, contar palavras implica confundir o
desempenho e a competência; e é esta última que importa. A fascinação pela
freqüência, o gosto fácil da abordagem através de palavras-tema e palavras-
chave, ocultou também a importância do critério de distribuição, sem falar
no critério de posição. O próprio P. Guiraud retomou a questão de utiliza­
ção de estatísticas para mostrar a sua quase inutilidade: “Sem me contradi­
zer, devo insistir na extrema complexidade do problema; a maioria dos
numerosos estudos feitos em vários lugares sobre palavras-chave ou afasta­
mentos no emprego das formas e das construções são em geral simples in­
ventários, passivos, chegando a conclusões vãs ou tautológicas.”41 Outra
atitude probabílista, igualmente, em Max Bense.42 Fonagy funda análises
fonemáticas sobre estatísticas, o que é contestado por Bresson.43 A estatística
ignora o valor. Mas só os entusiasmos desajeitados, atualmente caducos, in­
sistiram num uso primário do quantitativo.44 Baudelaire já mostrara com ele­
gância, desde seu artigo sobre Th. de Banville, o manuseio e a interpretação
do critério de freqüência. Assim como o valor não é quantificável, não é tam­
bém apreensível por sondagens, pois ele é funcionamento num todo orgânico,

4 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VO L 1

A sondagem só pode captar uma informação em fragmentos, desconhecen­


do a natureza pluridimensional do fato literário, que é valor e não informa­
ção. A exaustividade, se fosse possível, a desconheceria do mesmo modo: ela
nivela, forçosamente, o pertinente e não-pertinente, não correspondendo a
nenhum tipo de leitura. Apenas o feixe dos traços pertinentes, que depen­
dem da descoberta e não da invenção (exceto para o cientista ingênuo que
gostaria de eliminar o observador), por sua própria convergência em todo
delimitado, revela a obra.
A raiz do erro estaria num uso metafórico da palavra sistema, tomada
num sentido por Saussure e num outro para a obra. A língua é um sistema:
ela é um código estável, transmitido, feito de redes interdependentes. A obra
depende dele, ela depende do coletivo porque é significação, comunicação;
e, por um outro lado (o dos valores), ela possuí seu código45 — “a revelação
do universo particular que cada um de nós vê e que os outros não vêem”, diz
Proust. Mas as diferenças, tanto na obra como na língua, não incidem sobre
o que é exterior ao sistema (o que não seria mais que dizer que certa coisa é
diferente de outra, retomando-se a relação “língua e estilo”) — o que tanto
espanta os “desviacionistas” —, mas são interiores ao sistema, oposições e
relações funcionando das grandes às pequenas unídades? automotivadas,
autodeterminadas, porque elas são a obra, e não o fragmentário e o indeter­
minado. Há transferência de domínio, e não transferência de sentido: a lín­
gua é sistema na informação, a obra é sistema no valor. Um valor, ao mesmo
tempo no sentido de princípio de organização do mundo (um sentido que
criou sua forma) e no sentido saussuríano de uma reciprocidade interna in­
finita. O sistema-língua repousa sobre um código estabelecido, transmitido.
O sistema-obra também. Mas ao contrário da língua caracterizada por uma
estabilidade, por uma comunidade relativa dos valores-diferenças, o valor-
obra não vive senão do conflito entre a necessidade interior da mensagem
individual (que é criatividade) e o código (gênero, linguagem literária de uma
época etc.) comum a uma sociedade ou a um grupo, código que é o conjunto
dos valores usados, existentes — “lugares-comuns”. Está morto o escritor
que fala o código: é tão transitório quanto este. O “verdadeiro” fala o valor.
E a mensagem não mais possui, num e noutro, o mesmo sentido. Em poéti­
ca, só seria preciso utilizar a palavra “mensagem” quando um valor se impõe,
e não uma informação ou significação: na mensagem literária, e não lingüís­
tica, o conteúdo nocional (a mensagem no sentido corrente) não pode sepa­
rar-se do valor, significativo do sistema — não se pode estudar a mensagem

4 5
LUI Z COSTA LIMA

fora do sistema, nem o sistema sem sua mensagem (é o erro daqueles que
definem atualmente a poesia apenas no nível sintagmático). Tudo isto levan­
ta o problema do modo de existência do valor no código (da obra no, diga­
mos, “gênero”) e de sua abordagem.

A OBRA E A PALAVRA POÉTICA

A base dessa intuição ingênua do afastamento (não se trata de recusá-lo: cer­


tamente Lamartine não é Musset, e ambos se afastam da prosa do Moniteur
e de muitas outras coisas) não é apenas a consciência admirativa e humilha­
da da originalidade (originalidade fugitiva, existente sempre em relação aos
outros, cuja perseguição é uma fuga para fora da obra — daí, o furor das
chaves que Julien Gracq denunciava, ironizando aqueles que não se acalmam
enquanto não transformam as obras em fechaduras). Se esta intuição comum
prolifera em tentativas para estudar os “desvios”, é porque ela opera uma
dupla redução, realiza uma dupla tentação (e uma facilidade): remete o esti­
lo ao estilo, e nada além do estilo, a nada além do lingüístico, e reduz o escri­
tor a um ser circunscrito à linguagem — não está, assim, isolada, mas participa
de uma filosofia implícita do dizer e do ler.
Pragmaticamente, a originalidade deve estar na chegada e não na parti­
da. A originalidade não pode fundar uma metodologia.46 Não se pode redu­
zir a obra ao lingüístico: ela é um valor no mundo. O estilo é a própria obra.47
Seu fechamento, sublinhado por Max Jacob no prefácio do Cornet à dés (não
lhe foi preciso extrair de suas agudas palavras um método), é o que situa e
organiza esta pesquisa das correspondências entre as grandes e pequenas
unidades, das estruturas da narrativa às estruturas prosódicas, feixes de con­
vergências singulares, linguagem e visão,48 onde é capital não se abstrair um
formal qualquer de um temático qualquer. Repetindo Flaubert: “A continui­
dade constitui o estilo.”49
É notável que quase toda a reflexão dos formalistas se tenha exercido
sobre obras individuais, das quais eles deduziram os problemas da escrita ou
do gênero. Mas já se pode encontrar neles uma tendência à abstração, que,
hoje em dia, prevalece em alguns. Assim, S. R. Levin escreve: “Dado que nos
interessamos, no presente estudo, pela descrição da estrutura em poesia, e
não na obra de poetas individuais...” (p. 16-17). A conseqüência geral e ine­
vitável, Levin a oferece no segundo lance da frase: “O conjunto da discussão

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TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

dirá respeito às relações entre elementos lingüísticos nos poemas.” Ele acer­
ta, ao dizer que não apreende senão o lingüístico; e na melhor das retóricas.
Paradoxo de uma crítica (é verdade que ela não se quer crítica, mas ciência)
que reencontra uma poética dos gêneros, no momento em que a literatura se
despojou deles. Ela só poderá se aplicar bem a uma tradição literária funda­
da nos gêneros; muito menos eficazmente, à modernidade.50 Na verdade, não
apenas a obra moderna, mas a obra (no sentido absoluto: a obra forte,
marcante), não “preenche” uma forma predeterminada, preexistente — ela
a cria. Que poesia pode haver fora da “obra dos poetas individuais”? E, so­
bretudo, que estruturas? Só convenções poderão ser apreendidas. Não exis­
te a linguagem poética, mas a linguagem de Eluard, que não é a de Desnos,
que não é a de Breton... E, entretanto, aí nesse grupo surrealista, as condi­
ções de uma escrita eram únicas... Que confusão, a que considera “prosa” e
“poesia” como gêneros!51 Confusão entre uma tópica e uma escrita. O que é
visado é uma escrita, bem como uma retórica — são universais da escrita.
Assim, Todorov escreve: “Estuda-se não a obra, mas as virtualidades do dis­
curso literário.”52 Jean Cohen procura “um operador poético geral de que
todas as figuras não seriam mais que outras tantas realizações virtuais parti­
culares”.53 Mas a obra, e toda a literatura, não é senão atualização. Onde
está o virtual? A obra é a antiescrita, o antigênero. Cada obra modifica, atua-
lizando-os, a escrita e o gênero, e só nela eles existem. Desde que o gênero
tem a mesma realidade que a obra, temos a tragédia segundo o abade
d’Aubignac. Chklovski, numa entrevista recente, declarava que o romance
sempre foi o anti-romance. O gênero não passa, então, de um retrato mecâ­
nico: a reunião, por seu denominador comum, dos romances de Balzac, de
Stendhal, de Hugo, de Zola, de Dostoievski, de Tolstoi, de outros. Ele con­
segue fazer com que não se entenda nada dos romances de Hugo, ao lê-los
através de Balzac ou Flaubert (que nada compreendia dos Miseráveis). A es­
crita será, por exemplo, o estilo substantivo na poesia moderna: nada que já
não seja sabido. O problema é a possibilidade ou não de uma poética dos
gêneros ou da escrita. E uma ilusão dar-se à escrita a mesma realidade que à
obra... Por um lado, as questões teóricas e práticas levantadas por uma tal
poética são de uma relativa complexidade. A via transcendentalista requer
uma certa mestria, para, por exemplo, não se confundir a poesia e o estado
poético, o verso e a poesia, o verso dramático e o verso lírico; registro, escri­
ta e estilo; prosa, linguagem corrente e prosa científica; sentido e denota-
ção, significado e referente... — o que faz Jean Cohen. Por outro lado, e este

4 7
LUI Z COSTA LIMA

é o verdadeiro terreno do problema, semelhante estudo — “A poética é uma


ciência de que a poesia é o objeto”, afirma Jean Cohen — remete ao realis­
mo metafísico da controvérsia medieval entre realistas e nominalistas (don­
de a confusão entre os planos diacrônico e sincrônico no livro de Cohen), e
não se apreendem mais que antes da razão: “O estilo poético será o afasta­
mento médio do conjunto dos poemas, a partir do qual seria teoricamente
possível medir a taxa de poesia em um poema dado” (p. 15). Isto, a partir de
um corpus heterogêneo, em termos justamente de diacronia e de “gêneros”,
raciocinando-se, assim, sobre versos isolados ou poemas isolados (o que já
revela uma concepção ultrapassada, fonte de erros, levando à poesia pura);
através de esboços e sondagens, cujo próprio procedimento é às vezes errô­
neo; apoiando-se numa análise quantitativa de inutilidade notória. Há aí (sem
falar da ilusória “involução” da poesia moderna) um idealismo cuja lógica
implicaria uma conduta não lingüística, forçando tal poética a situar a poe­
sia entre as coisas. O que ela faz: “A poesia não se conforma em ser apenas
uma forma de linguagem” (p. 47); e, na página 206, ele reserva Cía possibili­
dade de uma poética das coisas”. O paradoxo de uma poética da linguagem
poética em geral é que ela não pode apreender a especificidade dessa lingua­
gem, condenando-se à abstração, não superando a contradição entre uma
retórica aristotélica e uma metafísica substancialista. É significativo que tal
poética formal demonstre incompreensão diante do surrealismo. Novamen­
te, mas já não só do ponto de vista pragmático e sim porque isso corresponde
à experiência da criação literária, a poética não pode, pelo menos provisoria­
mente, ter êxito em seu projeto com algum rigor se ela não for, ao mesmo
tempo que lingüística, participação em um todo, ela própria um todo (e não
uma “ciência”: “não crítica e ingênua”),54 e se ela não se der como objeto
uma obra precisa, em vez da poesia.
Os poetas e os lingüistas não se aproximam do mesmo modo de uma
definição operatória da poesia. E as definições dos poetas são, antes de tudo,
uma recusa do “jeito professoral”. Aragon escreve: “O exame das imagens
de Éluard não é concebível se as consideramos professoralmente como ima­
gens.”55 Recusa esta que toma o aspecto de um Terror contra as racionaliza­
ções: “Explicar o quê? Não há o que explicar em poesia, há o que receber. A
poesia é única, íntegra, aberta a todos. Cabe a você recebê-la. Não há regras,
nem leis, há o funcionamento real do pensamento.”56 As definições dos poe­
tas protestam contra o formalismo. Claudel escreve ao abade Bremond: “Um
poema não é uma fria relojoaria ajustada do exterior.” O poetas ligam a poesia

4 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VO L. 1

ao estado poético/ 7 enraizando-a num vivido do qual ela é uma forma, for­
ma profunda no sentido em que Baudelaire fala da “retórica profunda”, donde
seu contato com a fábula/ 8 sua iluminação das coisas ocultas59 (que um poe­
ta pouco profundo irá somente buscar no passado das palavras), que fazem
com que a poesia seja uma etnologia do indivíduo: “A poesia vive nas cama­
das mais profundas do ser, enquanto a ideologia e tudo o que chamamos idéias
e opiniões formam os estratos mais superficiais da consciência. O poema se
nutre da linguagem viva de uma comunidade, de seus mitos, de seus sonhos
e de suas paixões, ou seja, de suas tendências mais fortes e mais secretas.”60 E
é por isso que etnólogos iluminam, enquanto lingüistas e historiadores da
literatura não enxergam.61 Não é necessário separar os textos de sua inten-
cionalidade. Como o diz Tristan Tzara: UA poesia não é apenas um produto
escrito, uma sucessão de imagens e de sons, mas um a maneira de viver”62
Contudo, a poesia é linguagem, e a lingüística vê aí justamente uma virtua-
lidade de toda linguagem ,63 O erro de uns ou de outros é somente o de tran­
car o ato poético. Mas não há nisso senão incompetências particulares,
marcando de futilidade o palavrório crítico denunciado por Georges Mounin.
Hoje em dia, a lingüística e a lógica64 são indispensáveis para uma justa apre­
ciação dos problemas da poesia e da retórica. E o que ocorre quanto à noção
capital de palavra poética.
O lingüista encontra o poeta quando este vê na poesia uma exploração
das possibilidades da língua, incluindo a técnica no conteúdo, identifican-
do-a ao conteúdo. E aqui o “problema da linguagem poética” não pode
situar-se num único plano.65 Se o contexto desempenha o papel de regula­
dor da polissemia (a isotopia de Greimas), não é suficiente para superar
uma representação vaga se a palavra a ser compreendida é um termo —
que se situa não como um signo em um enunciado, mas como uma peça de
um sistema nocional. E se um enunciado não é mais terminológico, mas
literário, a monossemia é o produto de um sistema de relações lingüísticas
e extralingüísticas — a história, a obra. A palavra numa obra está ao mes­
mo tempo em vários planos. Uma palavra rica de sentido não tem vários
sentidos, mas um sentido em vários planos. A estrutura verbal complexa é
o resultado de um pensamento que, desigual e fragmentariamente organi­
zado na linguagem de comunicação, está fortemente organizado em uma
obra: essa organização será, então, ao mesmo tempo a meta e o conteúdo.
A lingüística sozinha não pode apreender todo o fato literário, mas a poé­
tica tampouco pode dispensá-la.

4 9
LUI Z COSTA LIMA

As palavras poéticas são, para Yves Bonnefoy, as palavras que nomeiam


“essências”66 — beber, pedra —, e não essas palavras que “claramente perce­
bem do exterior o ato humano, descrevendo-o apenas, não tendo por con­
teúdo senão um aspecto” — bebericar, tijolo. E, definindo a poesia como sendo
a interiorização do real, ele nota a armadilha do francês, que nomeia “muito
comodamente” a árvore, a água, o fogo, a pedra — absolutos, abstrações. A
“beleza das palavras” não é mais que “o fantasma das coisas”. A palavra poética
é, para ele, a palavra não enquanto noção, mas enquanto presença, “como
um deus, ativo, dotado de poderes”. E verdade, nomem semelha numem.
Mas, porque sua idéia da língua e da lingüística é somente taxinômica, ele se
recusa a considerar a poesia como um “emprego” da língua, mas justamente
como uma “loucura dentro da língua. Mas que só pode ser compreendida
através de seus olhos de loucura”. Entretanto, vê na “experiência do absolu­
to ” e no “pressentimento de metamorfose”, que são para ele a poesia, “antes
de tudo uma experiência de linguagem”. O alçapão não pegou o pássaro. A
palavra poética não foi definida. O uso quotidiano, fragmentário, utilitário,
conhece tais palavras — presenças, potestades, deuses às vezes degenerados,
alguns sempre ativos, e é de tais deuses que ele tem sido criado desde sem­
pre. Sem eles, o eufemismo não existiria. Cada um de nós é habitado por
eles, e nem por isso é poeta. A atitude de Yves Bonnefoy continua metafísica
e não lingüística. Ele atribui virtudes a certas palavras e à língua francesa,
mas “esta existência por si” que aí vê não está nas palavras. Não há senão um
poder de interiorização variável, diversamente orientado, segundo os poe­
tas. Ele mesmo diz que “nem todas as palavras de uma língua se prestam no
mesmo grau à intenção poética”. Trata-se realmente de intenção poética ■ —■o
“país de nossas palavras” não é nem limitado nem uniforme. A aproximação
e os perigos descritos são antes de tudo uma descrição do país de Bonnefoy:
o sagrado, e o uso ou a armadilha dos definidos singulares — exorcismo. A
oposição entre as palavras de aspecto e as palavras de essência é de uma ver­
dade muito variável e aberta: pois “bastará que tenhamos vivido mesmo que
seja um pouco com estas realidades” para que o aspecto se torne essência.
Cada vida poética possui suas palavras. Toda palavra de aspecto pode virar
essência. Onde está a palavra poética? As palavras de uma tradição, com sua
sintaxe, desenham apenas uma retórica. Um poema é o exercício (e, se tem
êxito, a prova), do “amor da coisa mais diversa” — o que fica sendo a obser­
vação mais justa de Yves Bonnefoy. R. L. Wagner notara também que “o fran­
cês poetiza as palavras mais comuns, as palavras de todo dia”.67

5 o
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

A palavra poética não é uma bela palavra — nem essência nem Idéia. É
uma palavra como qualquer outra, sempre duplamente ligada: ao contexto
próximo por uma cadeia horizontal, aos longínquos por uma cadeia vertical
— sua memória. Cadeias associativas de sentidos e sons indissolúveis,68 ca­
deias mais ou menos percebidas, carregadas. As palavras mais poéticas não
são necessariamente as que têm mais memória, as mais carregadas. A palavra
poética é uma palavra que pertence a um sistema fechado de oposições e de
relações, tomando aí um valor que não tem, assim, em lugar nenhum, e que
só pode ser compreendido em tal escritor, em tal obra, e através do qual a
obra e o escritor se definem. Qualquer palavra pode ser poética, e pode sê-
lo diversamente. E, então, uma palavra deformada/reformada: arrebatada à
linguagem e a seguir trabalhada; sempre, aparentemente, a palavra da comu­
nicação; mas diferente, de uma diferença que não se aprecia por um afasta­
mento mensurável, mas por uma leitura imanente.69 Assim é para negro e
grande ou pois em Hugo,70 branco ou abelha em Apollinaire (“Queimaram-
se as colméias brancas...”, “Lembras-te do dia em que uma abelha caiu no
fogo”),71 ordenado ou dobrado em Eluard. Tal estudo dos campos lexicais (e
prosódicos, rítmicos, metafóricos) de certas palavras na obra se liga à busca
dos princípios de identificação do mundo em um escritor,72 imagens-mães,
formas (e não princípios simplesmente formais) profundas, contribuição ao
conhecimento da criação literária: é isto que deve ser a poética. É por ser
feita de suas palavras poéticas que uma obra tem sua densidade. (Ezra Pound
diz: “Carregar ao máximo possível as palavras de sentido.”) E estas palavras
poéticas (e, sendo a beleza a sua relação íntima, só pode ser tardia) não são
uma exploração da linguagem, senão porque são a procura de um homem.
Assim, o alvo de uma tal poética é a obra, no que sua linguagem tem de
único. E a obra como dupla articulação, jogo de dois princípios construti­
vos — a unidade de visão sintagmática e a unidade de dicção rítmica e
prosódica —, sistema e criatividade, objeto e sujeito, forma-sentido, for-
ma-história.

5 1
Notas

1. Ver adiante, p. 59 e seguintes as “Proposições para um glossário”, por Jean-Claude


Chevalier, Claude Duchet, Françoise Kerleroux e Henri Meschonnic.
2. Jean Cohen, Structure du langage poétique, Flammarion, 1966. Sua difusão o faz
desempenhar um papel vulgarizador, e, denunciando-o, ainda não se conseguiu
impedir que esse manual de erros e velharias cause danos.
3. No artigo de Julia Kristeva, “Poésie et negativité”, in Uhomme (VIII, 2), abril-ju­
nho 1968; o número Linguistique et littérature de La nouvelle critique, novembro
1968; o número Linguistique et littérature de Langages, 12, dezembro 1968; a seção
Poétique por Todorov in Q u’est-ce que le structuralisme?, Ed. Seuil, 1968; o livro
de G. Mounin, La communication poétique, Gallimard, 1969.
4. “La comparaison poétique, essai de systématique”, in Langages, 12.
5. “Limites de Panalyse linguistique en poétique”, in Langages, 12.
6. Em “Les anomalies sémantiques”, Langages, 1, março 1966. Ele aí considerava a
“violação da linguagem” como “denominador comum de todas as anomalias, de todos
os procedimentos poéticos”, fazendo da poesia um limite em vez de uma lingua­
gem, pela razão pouco convincente de que a linguagem seria sentida como um inter­
dito a ser transgredido. E, senão anomalia, a poesia estaria na “ambigüidade”, na
homonímia, na “débil ligação semântica entre as frases que se seguem”, donde no
difícil: “Compreendemos com dificuldade a mensagem poética.” Todorov extraía
de todo contexto, e de seu funcionamento, “traços da língua poética”, e, se reco­
nhecia que “todas as anomalias explicadas não nos levam à compreensão das obras
de Artaud, de Breton ou de Michaux”, interessando-se pouco pelo “valor das obras
literárias”, ele promovia, justamente a uma existência fictícia, esta “língua poética”
extraída das obras. Exemplos desnaturados, pelo próprio fato de serem exemplos.
Sua anomalia, Todorov o diz, não era mais uma anomalia em seu contexto: “Muitas
das frases que citamos eram as primeiras frases de um parágrafo; o que se segue ex­
plica, de uma forma ou de outra, a singular impressão que a primeira frase nos dei­
xou...” Não é portanto ao nível dos universais, mas obras, que é preciso tomá-los.
7. “La grammaire du récit”, in Langages, 12; Poétique in Q u’est-ce que le structu-
ralisme?; “La quête du récit”, in Critique, 262, março 1969.
8. Poétique, p. 163.
9. M , p. 105.
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

10. Id.y p. 147. B Íb lÍO tG C 2 h " T rrm v i


11. /d., p. 154. ' • • .... — — -
12. Julia Kristeva, “Poésie et negativité”, p. 41.
13. Poétique, pp. 157-163.
14. I d p. 163.
15. Iuri Lotman, Lektsii po strukturaVnoi poetike, Vvdenie, teoria stikha, Brown Univ. Press,
Providence, Rliode Island, 1968 (reimpressão fotomecânica da Éd. de Tartu, 1964).
16. Id., p. 43.
17. T. S. Eliot, in The use ofpoetry and the use ofcriticism (Faber, 1964, primeira ed.
1933), escrevia: “A poesia de um povo ganha sua vida no falar do povo e, por sua
vez, lhe dá vida; e representa seu mais alto ponto de consciência, seu maior poder
e sua mais delicada sensibilidade” (p. 15).
18. Id., p. 18.
19. Id., pp. 19-20.
20. E é Eliot que observava: “Afirmo somente que há uma relação significativa entre a
melhor poesia e a melhor crítica de uma mesma época. O século da crítica é tam­
bém século da poesia crítica. E quando falo da poesia moderna como sendo extre­
mamente crítica, quero dizer que o poeta contemporâneo, que não é simplesmente
um compositor de versos graciosos, deve forçosamente se colocar questões como:
‘Para que serve a poesia?’. Não apenas: ‘Que devo dizer?’, mas sobretudo: ‘Como
e a quem devo dizê-lo?,” (Id., p. 30).
21. Tentei demonstrá-lo em “La parabole ou Kafka”, Commerce, 13, primavera 1969.
22. Espaço paragramático, tal como começava a analisá-lo Saussure, e que Julia Kristeva
(art. citado) definiu bem como sendo um funcionamento e não um limite. Esta no­
ção faz parecer um tanto curto o racionalismo de George Mounin, que ainda fala
em “leitura unívoca do texto” (La communication poétique, p. 281), em “garantir a
leitura justa” (pp. 279, 284), e acredita na complementaridade das leituras (p. 285).
23. A conotação tem um funcionamento outro que o da denotação, mas não se opõe a
ela. Dizer, como Mounin (livro citado, p. 25), que ambas se opõem é se condenar
à retórica antiga, ao estilo-afastamento, desvio.
24. Como o sol, o riso das vendedoras de flores, entre a sentença e os juizes, entre os
jurados e a pedra, in Le dernier jour d 3un condamné, de Hugo.
25. Será científico comparar a poesia à mecânica ondulatória? (Julia Kristeva, “Poésie
et negativité”, p. 48) Ribemont-Dissaignes já o fez, e Aragon achou muita graça.
26. Ver também Pierre Francastel, “Art, forme, structure”, Revue internationale de
philosopbie, 1965, fase. 3-4, n.°s 73-74: “La notion de structure”.
27. J. Starobinski, “Les anagrammes de F. de Saussure”, Mercure de France, fevereiro
1963. Julia Kristeva desenvolve as conseqüências in “Pour une sémiologie des
paragrammes”, Tel quel, n.° 29, primavera 1967, ao mesmo tempo em que conce­
be, com penetração e sentido poético, a linguagem do poema não como desvio,
mas como “totalidade” do código.

5 3
LU I Z C O S T A LIMA

28. Primeiramente em Chklovski, “A arte como procedimento”, Poétikay Petrogrado,


1919, republicado in Théorie de la littérature, Paris, Edition du Seuil, 1965,
onde priom ostranenija, “processo de estranhamento”, é traduzido por Todorov
“singularização”; in Jan Mukarovsky, Standard language and poetic language,
p. 19, in A Prague school reader on esthetics, literary structure, and style, por P.
L. Garvin, Georgetown Un. P., 1964; em outros ainda, como Kolchanski, “O
prirode Konteksta”, Voprosy íazykoznania 1959, 4; em W. Gorny, “Text
structure against the back-ground of language structure”, Poetics, Poetika, Var-
sóvia, 1961.
29. Jean Cohen (livro cit., p 23) decide tranqüilamente: “cada usuário sendo juiz qua­
lificado a respeito do que é o uso” — o que significa dizer que a norma não é aqui
um conceito “científico”.
30. Fonagy, “Uinformation du style verbal”, Linguistics, 4.
31. Apesar do esclarecimento de Gérald Antoine, “La stylistique française, sa définition,
ses buts, ses méthodes”, Revue de Venseignement supérieur, n.° 1, 1959, p. 53, ci­
tando Max Jacob.
32. Art. citado, “Vers la définition linguistique du style”, e os artigos de Word de 1959
e 1960: E o contexto, cada contexto, que é a norma.” Riffaterre é criticado por
Jean Mourot in “La stylistique littéraire est-elle une illusion?” C. R. A. L., Nancy
1967. Não há por que opor uma “estilística das intenções” a uma “estilística dos
efeitos”: elas são igualmente parciais, cada qual escamoteando uma parte diferen­
te de seu “objeto”. Levada adiante, a lógica desta “estilística dos efeitos” faria de
Jean Lorrain o maior dos escritores; ela só pode orientar-se para a escrita “artísti­
ca” e para a identificação do belo com o estranho ou o bizarro.
33. P. Guiraud, Linguistique et critique littéraire, Université de Bucarest, Sinaia, Cours
d ’été et colloques scientifiques, 25 de julho-25 de agosto 1967: “A língua da obra,
concebida ou do ponto de vista genérico ou do funcional, apresenta-se como um
afastamento em relação à norma coletiva, não podendo, portanto, ser definida senão
por oposição a esta norma” (p. 4).
34. Samuel R. Levin, Linguistic structures in poetry, Mouton, 1962. Ele escreve (p.
16): “Por Êter um estilo’ queremos normalmente dizer que um texto se desvia, de
algum modo, das normas estatísticas da língua. As normas, é claro, serão determi­
nadas por um estudo preliminar da linguagem ordinária.” Já se viu que isso não é
tão simples. Assim, uma lista de freqüência de palavras, como a de Vander Beke,
não é em nada um critério de apreciação das estatísticas do Index do simbolismo
de P. Guiraud. O debate é velho e já foi decidido. O que espanta é que uma “van­
guarda” lingüística ainda arraste essas idéias mortas.
35. Jakobson, que tem, ao contrário de seus discípulos, o sentido da poesia, não opõe
em momento algum a gramática da poesia à gramática da linguagem corrente, in
Poesija grammatiki i grammatika poesii.

5 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

36. Sem insistirmos no fato de que o próprio sentido e a configuração metafórica não
são levados em conta senão no quadro estreito de uma demonstração de equiva-
lências (6.1). E ao mesmo tempo muita ambição e muito pouca; e é revelar que
não se possui o sentido do que se manipula — a coerência do código específico do
poema. Contudo, Levin escreve (p. 41): “O poema engendra seu próprio código,
cuja única mensagem é o poema.” Du Bellay dizia a alguns “que não traduzissem
os poetas”. Podemos acrescentar: “não comentem os poetas”. A verdade é que esses
textos poéticos não passam aqui de material exemplar (um caso-limite) para a lin­
güística, e que essas pessoas não estão construindo uma poética, mas sim verifi­
cando uma gramática e não a “literariedade” de um texto.
37. N. Ruwet, “Uanalyse structurale de la poésie”, Linguistics, 2, 1963; “Analyse
structurale d’un poème français: un sonnet de Louise Labé”, Linguistics, 3, 1964;
“Sur un vers de Charles Baudelaire”, Linguistics, 17, 1965.
38. Walter A. Koch, Recurrence and a tree-modal approach to poetry, Mouton, 1966.
“O prazer do estilo depende da tensão entre a expectativa (expectation) e o acon­
tecimento (ocurrence) e — para um estilo determinado pela tópica — da possibi­
lidade de uma informação suplementar” (p. 47).
39. Revue de Venseignement supérieur, 1959, art. citado.
40. E. R. L. Wagner, em “Le langage des poètes” (Mélanges Bruneau, 1954), escrevia:
“Tanto quanto a freqüência, a raridade é significativa” e “As significações de um
poema — não digo seu conteúdo nocional definível, muito secundário — nascem
de um jogo mais ou menos sutil de ambigüidades sucessivas”. Não se pode, por­
tanto, fundar nada a partir dessas contagens.
41. Conf. citada (p. 8).
42. Max Bense. Theorie der Texte, Colônia, 1962. Ver o exame de Todorov, “Procédés
mathématiques dans les études littéraires”, Annales, n.° 3, maio-junho 1965;
Todorov escreve: “abordagem racionalista, de alto a baixo, partindo de teorias
aprioristas para explicar os fatos”.
43. Bresson, “Langage et communication”, Traité de psychologie expérimentale, VIII,
P.U.F., 1965, pp. 71 e 81.
44. Como em Jean Cohen, cujos quadros estatísticos dão apenas uma informação ilu­
sória, devido à constituição dos corpus, sua heterogeneidade, os critérios escolhi­
dos, e devido ao seu próprio comparativismo.
45. A especificidade do fato literário impõe os limites naturais do estudo: a obra e as
obras que compõem uma obra — nem fragmentos (“extratos” para “explicação de
textos”) nem abstrações (temas ou procedimentos), que só podem dar lugar a uma
pesquisa parcial. Os livros de um escritor são vasos comunicantes, abertos e fecha­
dos uns sobre outros. O “sistema” do autor existe em evolução. Ele contém
subsistemas — que não têm nada a ver necessariamente com o que se costuma
chamar de gêneros.

5 5
LUI Z COSTA LIMA

46. Por motivos que deveriam agora ser banais. Ver o art. citado de Jean Mourot.
47. Richard A. Sayce (“The définition of the term style”, Actes du IIP congrès de Vass.
inter. de littér. comparée, 1962) o diz, mas no sentido insuficiente de estrutura artística.
48. O que tentei realizar, na análise do Dernierjour d ’un condamné, de Hugo, publicada
no estudo Vers le roman poème, ed. das Oeuvres complètes de V Hugo, Club Français
du Livre, 1967, t. III. Pode-se também demonstrá-lo facilmente no Finnegans wake
de Joyce; é a característica da obra total.
49. Carta a Louise Colet (18 de dezembro 1853), Extraits de la correspondance, Seuil,
1963, p. 159.
50. Raymond Jean observa, com efeito (“Lautréamont aujourd’hui”, LArc, n.° 33, 4.°
trim. 1967): “Les chants de Maldoror são romance, narrativa, poema? A questão...
não tem objeto”.
51. “Todorov, Littérature et signification, p. 116: “Em seguida existem os gêneros: a
prosa e a poesia...”, “depois os grandes gêneros da época clássica...”, isto é, os
gêneros propriamente ditos, comédia, tragédia etc. J. Cohen comete o mesmo erro
em Structure du langage poétique, propondo-se ao estudo “da linguagem poética
enquanto gênero”(p. 14). Uma abstração mais próxima da realidade lingüística
encontra-se na repartição dos três “grandes gêneros” (lirismo, drama, epopéia),
segundo as três pessoas (eu, tu, ele) e as três funções, emotiva, conativa e referencial,
da linguagem. Ver Edm. Stankiewicz, “Poetic and non poetic language”, Poetics,
Poetika, Varsóvia, 1961.
52. “Les catégories du récit littéraire”, Communication, n.° 8, p. 125.
53. Structure du langage poétique, p. 50.
54. O fim aqui perseguido e o método praticado não podem harmonizar-se com a inter­
pretação da “poética” ou “ciência da literatura” de Tzvetan Todorov, in Littérature
et signification (Larousse, 1967, pp. 7-9). Estudo que se pretende dos “possíveis”, e
não dos “reais” (“não as obras, mas o discurso literário”), não deixa, entretanto, de
passar por uma obra real, Les liaisons dangereuses, para realizar uma contribuição
ao que é, na verdade, uma retórica das grandes unidades; e isto seria o mais interes­
sante. Mas o que é “o estudo das condições que tornam possível a existência destas
obras”? O que teria podido levar a uma sociologia da escritura, orienta-se para uma
duvidosa abstração normativa, que usa as obras “para falar de si própria”. Como
sempre, é o sonho do esgotamento do possível (desta feita, no plano dos gêneros
literários) através do método estrutural. O poder de descoberta de tal formalização
parece ilusório: uma “tipologia” das narrativas literárias não passa de uma taxinomia.
55. Aragon, Lkomme communiste, I, 147.
56. Palavras de Robert Desnos, referidas por P Berger, “Pour un portrait de Max Jacob”,
in Europe, abril-maio 1958, p. 58.
57. Como Rilke nos Cabiers de Malte Laurids Brigge: “Pois os versos não são senti­
mentos, como crêem alguns... São experiências...”
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V 0 L. 1

58. O que procurei mostrar em “Apollinaire illuminé au millieu d’ombres”, Europe,


novembro-dezembro 1966.
59. “Existem grandes extensões de noite. O único mérito do raciocínio é utilizá-las.
Em seus bons momentos, ele as evita. A poesia as dissolve. Ela é a arte das luzes”
(Paul Eluard, Donner à voir3 p. 132).
60. Octavio Paz, LArc et la lyre, N. R. F., p. 47.
61. Poesia e etnologia são vasos comunicantes: basta pensar em Michel Leiris, em Miguel
Angel Asturias e na colaboração entre Cl. Lévi-Strauss e Roman Jakobson.
62. T. Tzara, Le surréalisme et Vaprès-guerre, Paris, Nagel, 1968, p. 14.
63. Georges Mounin, Poésie et societé, P.U.F., 1962, p. 104.
64. Como em Max Black, o autor de Models and metaphors, Nova York, 1962.
65. Como o demonstra Iuri Lotman, em “La délimitation de la notion de structure
en linguistique et en théorie de la littérature”. Voprosy lazykoznania, 1963, III,
pp. 44-52.
66. Yves Bonnefoy, “La poésie française et le principe d’identité”. Revue d ’estkétique,
n.° 34, 1965; “Esthétique de la langue française”, pp. 335-354 — “e com isso,
quero me referir simplesmente a essas coisas ou criaturas que parecem existir por
si, para nossa consciência ingênua no país de nossas palavras” (p. 342).
67. R. L. Wagner, “Langue poétique”, Studia romanica, “Gedenkschrift für Eugen
Lerch”, Stuttgart, 1955. “A partir daqui, evidentemente, nenhuma estatística é de
menor valia. Quando toda palavra pode ser assim transformada, catálogos são inú­
teis. O que se deve fazer é procurar o ponto em que as palavras menos capazes,
aparentemente, de se inserir no verso tornam-se de repente poesia.” Tais observa­
ções condenam de saída a idéia de um dicionário da “língua poética”, que reapa­
rece de tempos em tempos (como bem recentemente). Não existe “língua poética”.
68. T. S. Eliot observava, desde 1942, in The music ofpoetry, que a “música” de um
poema é a de suas imagens tanto quanto a dos sons, e que a “música de uma pala­
vra” é a sua riqueza de associação. O estudo dos contextos imediatos só pode ser
decepcionante, se não partir do sistema da obra. Ele tampouco pode separar a
sintagmática da prosódia e do ritmo.
69. Mas isto não faz da “linguagem poética” de um poeta ou de uma obra uma “língua
poética”, falso conceito que leva a afirmações como a de Todorov (“Les poètes
devant le bon usage”, Revue d 3esthétique, n.° 34, 1965, “Esthétique de la langue
française”): “A língua poética não é somente estranha ao bom uso, ela é sua antí­
tese. Sua essência consiste na violação das normas da linguagem.” Simplificação
que só vê uma parte do fenônemo, a primeira — a segunda é um retorno à lingua­
gem, comunicação aprofundada em diversos planos: a obra não é a “antítese” do
uso, ela é outra e não contrária. Tudo isto é tratado num nível estreitamente
sintagmático, e não passa da apreensão superficial de uma retórica, confundindo
estilo e escrita.

5 7
LUIZ COSTA U M A

70. O que tentei levar a cabo numa série de estudos sobre a poesia de Hugo antes do
exílio, ed. das Oeuvres complètes de V Hugo, Club Français du Livre, 1967-1968.
Assim, sombra muda de valor segundo as coletâneas, e se penetra tanto de luz que
Hugo tem que escrever “sombra obscura” — aparente e falsa redundância.
71. Exemplos retirados de “Apollinaire illuminé au milieu d’ombres”, Europe, novem-
bro-dezembro 1966.
72. Em “prosa” como em “poesia”: Hugo trabalha e vê através das mesmas palavras
nesses dois tipos de escrita. O verdadeiro terreno é a visão do mundo, não a escri­
ta, nem o gênero; é o mesmo tratamento da palavra estrelas, terminando um capí­
tulo em Les misêrables ou fechando poemas. Á diferença é de densidade, não de
natureza, e se deve ao espaço rítmico. Á definição de Riffaterre (“La poétisation
du mot chez V Hugo”, in Cabiers de Vassoc. intem. des études françaises, n.° 19,
março 1967, p. 178) é ao mesmo tempo tautológica e estreita, definindo a
poetização: “o processo pelo qual, em um contexto dado, uma palavra se impõe à
atenção do leitor como sendo não apenas poética, mas ainda característica da poe­
sia do autor”. Pois a “poética” não é definida. E a palavra em questão é, mais
amplamente, própria da obra, e não do espaço versificado. Enfim, a “estilística
dos efeitos” (psicologia da leitura, mais que da criação literária), apesar de suas
boas intenções, desfigura a líterariedade: não se trata de um processo exotérico de
imposição sobre a “atenção do leitor”, mas de um trabalho de visão através da
linguagem.
Proposições para um glossário

“Proponho que se joguem fora todos os críticos que empregam ter­


mos vagos, gerais. Não apenas os que utilizam termos vagos, porque
são tão ignorantes que não têm idéias; mas também os críticos que uti­
lizam termos vagos para dissimular seu pensamento e todos os críticos
que utilizam termos de maneira suficientemente vaga para que o leitor
possa crer que concorda com eles ou que admite as afirmações deles
quando não é verdade.
A primeira credencial que se deveria exigir de um crítico seria a
sua ideografia do que é bom; do que ele considera como um escrito
sólido e de fato, de todos os seus termos gerais. Então se saberá onde
se pisa”(Ezra Pound, “Como ler”, 1928 in Literary essays ofEzta Pound,
Faber, Londres).

INFORMAÇÃO — Relação referencial unívoca com o que não é a obra, inde­


pendentemente do sistema. Alusão ao acontecimento. Assim, a “fonte” é
posta em seu lugar: uma parte da história literária aí se encontra. A in­
formação é o grau zero do valor. Cada elemento de em texto pode ser ao
mesmo tempo informação e signo. Pode haver informação sem que haja
signo; a recíproca não é verdadeira. Há uma hierarquia dos níveis de lei­
tura: informação, signo, valor.
LIIERARIEDADE — Especificidade da obra enquanto texto; o que a define
como espaço literário orientado, isto é, uma configuração de elementos
regulada pelas leis de um sistema. Opõe-se à subliteratura, espaço literá­
rio não orientado; opõe-se ao falar quotidiano, espaço inteiramente aber­
to, ambíguo, cuja sistematização é indefinidamente questionada*
PALAVRA POÉTICA — Grau-valor de uma palavra que só se manifesta na obra.
Toda palavra pode ser poética. Exemplos: aranha, pois, alguém, em Hugo;
botãj em Flaubert; abelha, branco, masy em Apollinaire.

5 9
LUI Z COSTA LIMA

OBRA — Síntese vivida do signo e da literariedade, resultando num sistema


indissolúvel que é uma forma-sentido.
POÉTICA (a, uma) — Estudo da literariedade.
SIGNO — Tudo o que na obra é elemento de um sistema de representa­
ção, tudo o que não é literariedade; relação da obra com tudo o que
não é ela: História (biografia, psicanálise, idéias, estética etc.), Lín­
gua; inseparável do texto, na medida em que este é a organização dos
signos em sistema de valores. Pode haver signo sem que haja valor (ver
Subliteratura).
SUBLITERATURA — Escrito que, em diversos graus, é mais signo que texto,
signo e não texto. O critério não é estético (o “belo”), nem tampouco o
êxito contemporâneo. A subliteratura pertence à ideologia no sentido
amplo (p. ex., ideologia do gênero), enquanto que a obra se constrói
contra uma ideologia (ver Macherey).
ESTILO — A continuidade (ver Flaubert) dentro de uma forma-sentido; a re­
lação entre a pequena e a grande unidade, em um texto (p. ex., a corres­
pondência entre estruturas da narrativa e estrutura da frase); a relação
entre diferentes sistemas de textos. Cada obra possui seu estilo: o estilo
é a obra.
SISTEMA (de uma obra) — A obra (cada obra) enquanto totalidade caracteri­
zada por suas próprias transformações, que dependem de suas leis inter­
nas. Não é um ser estático; ele está ligado a uma intencionalidade
(mensagem), a uma criatividade. O sistema se revela ao leitor-ouvinte
como uma incessante estruturação.
TEXTO — Conjunto dos conflitos que existem em diferentes níveis entre sig­
no e literariedade. Ao mesmo tempo fechado e aberto (sobre a comuni­
cação, sobre a “língua”). Não é redutível a uma relação entre língua e
estilo, ou matéria e forma, ou forma e sentido. Esta definição implica um
questionamento da “explicação de texto” tradicional.
VALOR — Elemento do signo tanto quanto do texto, na medida em que sig­
no e texto são inseparáveis dentro da obra. Ele atinge seu grau máximo
no nível da literariedade. Aí, desempenha o papel de um elemento do
sistema da obra, na medida em que a obra se constitui através de diferen­
ças. Estas diferenças podem incidir sobre fonemas, palavras (ver Palavra
Poética), personagens, objetos, locações etc. Não existe valor em estado
puro, mas somente no interior de um sistema.

6 o
NOTA: Estas definições foram redigidas por Jean-Claude Chevalier, Claude
Duchet, Françoise Kerleroux e Henri Meschonnic, que propôs o primeiro
esboço de trabalho.

Tradução
E d u a r d o V iv e ir o s d e C a s t r o
cap ítu lo 3 Hermenêutica e abordagem literária
LUIZ C O ST A L IM A

6 3
INFORMAÇÃO ENCICLOPÉDICA1

A palavra hermenêutica deriva de Hermes, aquele a que os deuses confia­


ram a transmissão de suas mensagens aos mortais. A partir mesmo de sua
etimologia, a hermenêutica aparece como uma atividade de mediação, tra-
dutora de uma linguagem incompreensível a seus destinatários. Entendida
como arte da interpretação, ela é conhecida desde a época clássica ateniense,
quando seus pensadores buscam apreender o significado da epopéia homérica,
já não mais diretamente captável pelos contemporâneos. O mesmo caráter
de tradução de textos cujo significado se perdia reaparece na filologia
alexandrina. Ele se modifica relativamente na Idade M édia, através da
hermenêutica teológica. Tratava-se no caso menos de restabelecer um signifi­
cado perempto do que de fixar o sentido dos textos sagrados. A hermenêutica
então se define como uma tradução normativa, a partir do conhecimento
metódico do texto sagrado, conhecimento notadamente sistematizado por
Agostinho, em De Doctrina christiana. Englobando quer a atividade dos
comentadores de Homero, quer a dos escolásticos, pode-se dizer que a
hermenêutica antiga se fundava na diferenciação dos sentidos da palavra, com
realce para a distinção entre o sentido literal (gramatical) e o figurado (ale­
górico). Conquanto a arte da interpretação seja assim conhecida desde a
antigüidade ateniense, a palavra só aparece como título de obra em 1654,
com a Hermeneutica sacra sive methodus exponendarum sacrarum litterarum,
de J. Dannhauser. Data de então a diferença entre a hermenêutica teológico-
filosófica e a jurídica.
Na história da disciplina, o impulso decisivo advirá com a Reforma, que
polemiza com a tradição da doutrina da Igreja e, particularmente, condena
o emprego do método alegórico. Seu propósito, contudo, permanecia de
ordem normativa; recuperar, pelo retorno às fontes, a interpretação cor­
reta dos textos, fossem os bíblicos, fossem os clássicos, adulterados pela
LUI Z COSTA LIMA

alegorização eclesiástica e escolástica, para que desta recuperação brotasse


um novo sentido para os novos tempos. O ataque então iniciado contra a
alegoria, no entanto, não viria a se restringir à frente religiosa. No campo
das artes, ela logo se faz presente com Galileu, que nas Considerazioni al Tasso
(depois de 1612), opunha o tratamento alegórico da pintura maneirista à
clareza da arte do Renascimento (cf. Panofsky, E.: 1954). Apesar desta ex­
pansão cedo acusada, o desenvolvimento da hermenêutica continuava então
ligado ao plano da luta religiosa. Assim, por exemplo, cabe aos pietistas a
distinção, dentro da hermenêutica, de três momentos, a subtilitas intelligendi,
a subtilitas explicandi e a subtilitas applicandi, correspondentes aos momen­
tos da compreensão, interpretação e aplicação do texto sagrado. Ao lado desta
condenação da alegoria e desta busca de criar uma consciência metodológica
captadora do espírito da letra, caracteriza a hermenêutica, neste princípio
dos tempos modernos, uma motivação de ordem formal, que a levava a ser
incluída como um capítulo da lógica. Neste particular, o papel decisivo cou­
be a Christian Wolff, que apresenta um capítulo hermenêutico em seu trata­
do sobre lógica, Pbilosopbia rationalis sive logica (1732). A dimensão
lógico-filosófica da hermenêutica desenvolveu-se a seguir com o Versuch einer
allgemeinen Auslegungskunst (1756) e, notadamente, com a Einleitung zur
richtigen Auslegung vernünftiger Reden und Schrifften (1742), de J. A.
Chladenius. De um modo geral, entretanto, até o século XVIII a hermenêutica
permaneceu uma disciplina fragmentária, subordinada à teologia e à filologia,
porquanto investida de finalidades apenas práticas e didáticas. Nesta posi­
ção subalterna, alimentava-se da gramática e da retórica antigas. Sua eman­
cipação, com efeito, só se dará com Fr. D. E. Schleiermacher (1768-1834).
Emancipando-a do serviço à teologia, Schleiermacher a entende como uma
teoria geral da compreensão e da interpretação, validando seu emprego
normativo apenas por sua utilização especial quanto aos textos bíblicos. A
essa mudança de foco corresponde o ressalte do fenômeno da compreensão
sobre a ênfase anterior no significado da palavra. De sua parte, o ato de
compreender é entendido como a “repetição reprodutiva da produção men­
tal original” (Gadamer), fundando-se pois na possibilidade de um intelecto,
ultrapassada a sua distância temporal, reviver a produção doutro, pela
revivificação de sua linguagem. Este realce da linguagem dará à hermenêutica
de Schleiermacher um alcance antes desconhecido. Ela agora aparece como
o fundamento para todas as ciências históricas e não só para a teologia. Dis­
sipa-se assim o pressuposto dogmático (ou normativo) que orientara a

6 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

hermenêutica teológica, jurídica, assim como a filologia humanista e, em seu


lugar, vislumbra-se o lugar que a hermenêutica geral terá com o historismo
(grosseiramente, podemos defini-lo como a descoberta dos condicionamen­
tos temporais e espaciais que diferenciam a humanidade e assim provocam a
relatividade dos valores).
O caráter de reconstituição psicológica, enfatizado pela hermenêutica
de Schleiermacher, tornar-se-á, principalmente com Dilthey, a base teórica
das ciências humanas. Com efeito, se no fundador da hermenêutica mo­
derna distinguiam-se dois tipos de interpretação, a gramatical e a técnica,
em Dilthey a primeira é suprimida, em favor do primado da segunda, en­
tendida como sinônima da apreensão psicológica. Em desenvolvimento a
esta, Dilthey estabelecerá o conceito de vivência (Erlebnis), como a base
do ato interpretativo. Ou seja, na busca de objetivar a compreensão dos
textos, o intérprete deverá vivenciar a intencionalidade autoral e, com ela,
a sua posição em um mundo, o do autor, que em princípio é distinto do
seu. Este acentuar a linha psicológica criava para Dilthey, no entanto, um
problema particularm ente espinhoso: como ele não endossava o mero
relativismo histórico sustentado pelo historismo, criava-se a dificuldade do
estabelecimento de uma mediação teórica entre a consciência histórica e a
exigência científica da verdade. Buscando então escapar do psicologismo e
do relativismo histórico, Dilthey tenta configurar um campo de constan­
tes, i. e., de elementos que, historicamente atualizados, ultrapassariam con­
tudo a incidência histórica particular. A este acordo pretende chegar por
sua teoria dos tipos (Typenlehre) de visões de mundo, que deveriam condi­
zer com a variabilidade das formas de vida. Tais concepções de mundo,
passíveis de serem partilhadas pelos homens, se resumiriam a três, a natu­
ralista, o idealismo subjetivo e o idealismo objetivo, encarnadoras de “mo­
dos de atitude” perante o mundo (cf. Dilthey, W: 1911, 109-146).
Do relativismo e da tipologia dogmática diltheyana, a hermenêutica sai­
rá, no século XX, pela obra de M. Heidegger e de seu discípulo H.-G.
Gadamer. Na obra capital do primeiro, Sein undZeit (1927), a compreensão
não é entendida como um dos modos, entre outros, do proceder mental
humano, pois ela se confunde com o próprio cerne da existência (Dasein).
Radicando a compreensão no Dasein, Heidegger conduz a vê-la como um
“momento” da existência e não algo que paira sobre ela. Por outro lado, a
compreensão e seu desideratum, a interpretação, não se confundem com uma
operação intelectual. A interpretação é uma aplicação do como em relação a

6 7
LU I Z C O S T A LIMA

uma tarefa: “O ‘como’ fixa a estrutura da expressividade de uma compreen­


são” (Heidegger, M.: 1927, 149). O fato de a interpretação não ser obriga­
toriamente intelectual explicita seu caráter antepredicativo e pré-conceitual,
o que levará Gadamer a insistir na diferença da arte da interpretação quanto
às preocupações de ordem metodológica.
Duas observações ainda se impõem. A prim eira concerne à relação
heideggeriana entre o Ser e a existência. “A essência do Dasein está em sua
existência” (Das Wesen des Daseins liegt in seiner Existenz) (Heidegger, M.:
idem, 42). Ou seja, sua essência consiste no como de sua existência e não
numa intemporalidade. Ainda noutras palavras, o Ser da existência consiste
em ser de tal modo; em ser dentro de uma inevitável parcialidade. Desta
maneira nega-se a idéia, herdada dos gregos, do Ser como substância e dota­
do de um recorte intemporal e absoluto que o tornaria modelo para o exame
e entendimento dos entes. O segundo esclarecimento diz respeito ao empre­
go desta concepção do Ser inclusa no Dasein quanto ao problema da com­
preensão. Se o Ser não é anterior ao existir, mas conforme a ele, se a
compreensão, ademais, não é uma faculdade entre outras dadas no Dasein,
toda compreensão não pode pretender alcançar uma substância imovível, que
lhe seria anterior. Há por certo uma anterioridade que guia a compreensão,
mas esta é histórica e não ontológica, i. e., é formada pelos condicionantes
históricos que presidem a compreensão: “Uma interpretação nunca é uma
apreensão de algo dado, realizada sem supostos. Toda interpretação que haja
de acarretar compreensão tem de haver compreendido o que trata de inter­
pretar” (Heidegger, M.: ibidem). Eis formulada a inevitabilidade do círculo
hermenêutico, do qual ainda dirá, no fundamental § 32 do Sein und Zeit>
que o decisivo não é sair dele, “mas sim nele entrar de modo justo”.
Este fundar a compreensão no mundo do Dasein provocou novas ques­
tões para a hermenêutica e, por extensão imediata, para o problema do co­
nhecimento operado pelas ciências humanas. Evidenciou-se assim o problema
da fundamentação psicológica da hermenêutica idealista: o sentido de um tex­
to de fato se encerra na intenção visada pelo autor? A compreensão não passa­
rá da reprodução de uma produção original? Mesmo em uma informação
despretensiosa como esta não parece necessário insistir sobre a importância
desta questão para a análise dos objetos de arte. Ao contrário da linha oriunda
de Schleiermacher e Dilthey, a orientação heideggeriana levará a afirmar a in­
certeza da validade da interpretação autoral, tão aproximativa e parcial quan­
to qualquer outra. Mas não ésó o primado psicologista que é abalado; o mesmo

6 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

se dá com o objetivismo pretendido pelo historismo. Os eventos históricos não


se dão no nível da consciência dos contemporâneos, como já se infere da afir­
mação de que o ato de compreender e interpretar não é necessariamente de
ordem intelectual. Os contemporâneos vivem os acontecimentos, como nou­
tro contexto Marx já postulara, sem saber exatamente o que lhes sucede. As­
sim o “mergulho” proposto pela empatia (Einfühlung) diltheyana na vivência
do autor conduzia à incompreensão da tarefa do historiador, por implicita­
mente julgá-lo capaz de suspender os condicionantes de seu próprio Dasein.
As implicações destas afirmações heideggerianas, assim como os ques­
tionamentos que elas provocam, serão desdobradas por Gadamer, a partir
de Wahrheit und Methode (1960). Sua afirmação básica — a contribuição
produtiva do intérprete pertence de modo irrevogável ao sentido da própria
compreensão —- conduz a ver a interpretação menos como um ato de restau­
ração do passado do que como ajuste ao presente; ajuste não arbitrário, i. e.,
que violenta a letra do texto, à medida que no presente continua o passado,
através das tradições que servem de ponte quanto ao contexto original do
objeto interpretado. Assim, para a perspectiva de Gadamer, a condição bási­
ca para que a interpretação não seja arbitrária está na congruência entre tem­
pos passado e presente, congruência de que seriamos beneficiários pelo
desdobramento da tradição. Ao exame minucioso de sua obra caberá verifi­
car, no entanto, se esta aposta na tradição não é por si mesma excessiva.

A HERMENÊUTICA DE SCHLEIERMACHER

Desde sua versão antiga, o aparecimento e/ou o florescimento da hermenêutica


coincide com momentos de crise, especificamente aqueles em que um tempo
já não se percebe imediatamente vinculado à produção oriunda de um certo
passado. Assim ocorre com os comentadores atenienses de Homero, com os
filólogos alexandrinos, com a patrística que trata de coadunar a tradição
veterotestamentária com o Novo Testamento, com a teologia luterana que
busca refutar a dogmática da Igreja e, modernamente, na época romântica,
quando a hermenêutica se desenvolveu como “conseqüência da dissolução
moderna dos laços firmes com a tradição” (Gadamer, H.-G.: 1967, 21). Daí
Szondi afirmar que a hermenêutica procura “reintegrar no presente um tex­
to canônico” (Szondi, P.: 1970, 141). Reintegração que não pode ser auto­
mática, haja vista a situação de crise acima aludida.

6 9
LUI Z COSTA LIMA

Em sua acepção atual, L e., não mais considerada mero corpo auxiliar de
teólogos, juristas ou filólogos, a hermenêutica “deve sua função central no
seio das ciências humanas” ao “nascimento da consciência histórica” (Ga­
damer, H.-G.: 1960, 157). Neste seu início moderno, da companhia de F.
Ast e F. A. Wolf destaca-se a contribuição de Schleiermacher, graças à
“virtuosidade combinada de interpretação filológica com genuína capacida­
de filosófica” (Dilthey, W.: 1900, 255). Schleiermacher, contudo, nunca es­
creveu de fato um tratado sobre hermenêutica. Seus textos sobre o tema são
uma coletânea de Randbemerkungeny de anotações à margem, destinadas a
seus cursos universitários. Observemos suas linhas principais.
Dos primeiros aforismos, resultantes de seus comentários ao Institutio
interpretis Novi Testamenti (1761), de J. A. Ernesti, deriva a idéia da infi­
nidade da tarefa hermenêutica. “No ato de compreender, diz o terceiro
aforismo, (há) duas máximas opostas: 1) compreendo tudo até que me de­
paro com uma contradição ou com uma falta de sentido; 2) nada com pre­
endo do que não reconheço como necessário e que não posso construir.
Segundo a últim a máxima, a compreensão é uma tarefa interm inável”
(Schleiermacher, Fr. D. E.: 1838, 31, grifo meu).2 Por outro lado, estas
primeiras anotações ainda ressaltam a universalidade da hermenêutica por­
quanto, escreve no aforismo seguinte, “a não compreensão de elementos
particulares não se dá apenas diante de uma língua estrangeira”, mas sur­
ge onde “nos contentamos apenas com certa particularidade” (idem, 31),
i. e., com certa significação parcial. A universalidade ainda acresce porque
a hermenêutica não se resume ao texto escrito e, principalmente, porque é
menos uma disciplina intelectual do que uma atividade que dá acesso ao
mundo humano: “Cada criança acede ao significado verbal apenas por meio
da hermenêutica” (40). A não limitação ao texto escrito se mostra ainda
mais clara no “Discurso à Academia, de 1829”: “(...) Sucede, muitas vezes,
que, numa conversa, me surpreendo realizando operações hermenêuticas,
quando não me contento com um grau corriqueiro de compreensão mas
me esforço em descobrir como o amigo faz a passagem de um pensamento
para o outro, ou quando procuro ver de que opiniões, julgamentos e aspi­
rações depende que ele se manifeste, acerca de certo objeto, desta maneira
e não de outra” (130).
Ainda nos apontamentos iniciais, datados de 1805 e 1809/10, encontra­
mos delimitados os dois tipos de interpretação sobre os quais o autor não
deixará de refletir, as interpretações gramatical e técnica: “A interpretação

7 o
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VO L . 1

gramatical é propriamente a objetiva; a técnica, a subjetiva. Assim, do ponto


de vista da construção, aquela (é) puramente negativa, fixadora dos limites,
esta a positiva” (32). Diz-se da primeira ser negativa, do ponto de vista da
construção interpretativa, porque se interessa apenas em captar os mecanis­
mos de expressão da língua. Daí se acrescentar que é ela que fixa os limites
dentro dos quais se realizará a obra individualizada. A esta, de sua parte, se
dedica a interpretação técnica, voltada para a apreensão do uso individual e
particularizado das normas da língua. A esta diferença corresponde a ho­
móloga entre o significado (Bedeutung) e o sentido (Sinn), respectivamente
entendidos como o significado lexicalizado da palavra e sua atualização
particularizadora (cf. ed. cit., 32). Essa distinção contudo é complicada por
anotação posterior: “Da relação do significado com o aumento da objetivi­
dade compreendida sob ele, quanto à interpretação jurídica. Da diferença
entre interpretação (Auslegung) e interpolação (Einlegen)” (38). Para o não
especialista em filosofia, a dificuldade de compreensão do aforismo acresce
por sua redação extremamente esquemática. Sem termos certeza quanto à
correção de nosso entendimento, exponhamos as razões de nossa interpre­
tação. Ela se funda em dois elementos: (a) a distinção há pouco referida entre
significado e sentido; (b) a negação do direito de existência da hermenêutica
jurídica, porque esta “tem principalmente a ver com a determinação do âmbito
da lei, ou seja, com a relação entre proposições gerais e o que nestas não era
determ inadam ente pensado”(126). Combinando as passagens: na her­
menêutica jurídica, torna-se pertinente diferençar entre interpretação e
interpolação. A distinção se faz mais nítida se pensamos nos vocábulos origi­
nalmente usados por Schleiermacher: Aus legung significa ao pé da letra pôr
(legen) a partir de (aus). Interpretar é entendido como um tematizar a partir
do que já estava textualmente tematizado. Ein legen, de sua parte, significa
um pôr em, ou seja, um tematizar o que não estava tematizado (determina­
do) no texto. A hermenêutica jurídica não tem pois validade, para Schleier­
macher, por esta interferência com o que fora “determinadamente pensado”
na proposição geral da lei. Deste exame parece plausível concluir-se que o
Sinn já não pode ser entendido mediante uma mera relação de implicação
lógica com o significado geral, lexicalizado, da Bedeutung. Noutros termos,
o seu centro não se pode encontrar no simples âmbito da língua, o que pro­
vocaria a subordinação da interpretação técnica à gramatical. Ora, esta su­
bordinação conflita com o próprio desenvolvimento do pensamento do autor,
não sendo portanto justo afirmá-la.

7 1
LUIZ COSTA LIMA

Á finalidade desta discussão é mostrar que a reflexão de Schleiermacher


se dirige ao destaque doutro centro que não o da língua, o centro constituí­
do pela psique do autor. Retomando pois a questão do sentido (Sinn): se ele
não se estabiliza em confronto com o significado geral, como então fixá-lo,
i e.3 conseguir interpretá-lo? Na maturidade de seu pensamento, em “Die
Kompendienartige Darstellung von 1819”, Schleiermacher responderá: pelo
método divinatório. Antes mesmo de entendermos em que ele consiste, res­
saltemos que a finalidade do divinatório é evitar a interpolação (Einlegen),
L e., impedir que o intérprete empreste ao texto o que originalmente ele não
continha. Isso posto, devemos entender que o método divinatório participa,
junto com o comparativo, da interpretação técnica: “O método divinatório
ê aquele que busca compreender o individual diretamente (iunmittelbar), à
medida que, por assim dizer, (o intérprete) se transforma a si mesmo no outro.
O comparativo busca primeiro compreender (a obra) como geral e depois
encontra sua peculiaridade, à medida que ela é comparada com outras, com­
preendidas como desse mesmo tipo. Aquela é a força feminina no conheci­
mento da humanidade, esta a masculina. (...) O divinatório antes de tudo
provém de que cada homem, além de sua particularidade, tem uma susce-
tibilidade para todos os outros. Este parece originar-se tão-só de que cada
homem traz em si um mínimo de cada outro e a adivinhação é por conse­
guinte provocada (aufgeregt) pela comparação consigo próprio” (105).
Através do realce do método divinatório, vemos o papel decisivo que,
nesta hermenêutica, desempenha a recuperação da poiesis autoral. Esta im­
portância decisiva da apreensão da finalidade autoral chega ao ponto de,
rompendo com o equilíbrio proposto na “Exposição de 1819”, vir depois a
postular a superioridade do divinatório sobre o comparativo. Este “pode ser
usado apenas como meio auxiliar para se poder reconhecer da melhor ma­
neira os traços particulares” (117). Em suma, a condição básica da interpre­
tação consiste em o intérprete se colocar na posição do autor, em conseguir
ser possuído por ela. Daí, ainda em seus aforismos, afirmar que “o máximo
do conhecimento é a imitação (Nachahmung)” (48). Como, entretanto, se
conjugava este louvor do indivíduo criador com a perspicácia filológica, a
que Dilthey se referira? Para compreendê-lo, devemos voltar aos dois méto­
dos indicados e então analisar o problema das relações entre parte e todo.
No “Primeiro esboço de 1809/10”, Schleiermacher definia a interpretação
gramatical como “a arte de encontrar, a partir da língua e com ajuda dela, o
sentido determinado de um certo discurso (Reden)” (57). E, na “Exposição

7 2
de 1819”, formulava seus dois cânones da seguinte maneira: “Primeiro
cânone: tudo que, em em dado discurso, necessita de uma determinação mais
acurada pode ser apreendido apenas pelo domínio verbal comum ao autor e
a seu público original” (86); “Segundo cânone: o sentido de cada palavra em
uma dada passagem deve ser determinado de acordo com sua conexão com
o que lhe circunda (m it denen die es umgeben)” (91). Se o primeiro cânone
enfatiza a necessidade do conhecimento da ambiência original da obra, o
segundo postula a circularidade entre parte e todo.
Vindo agora à interpretação técnica, é esclarecedor reproduzir o parale­
lo que Schleiermacher formula, na abertura de seu tratamento, na “Exposi­
ção de 1826/7”: “Interpretação gramatical O homem com sua atividade
desaparece e aparece apenas como órgão da língua. Interpretação técnica. A
língua com sua força determinante desaparece e aparece apenas como órgão
dos homens, a serviço de sua individualidade, assim como até a personalida­
de (se põe) a serviço da língua”(113). Claramente se vê que a diferença entre
os dois modos de interpretação resulta da ênfase respectivamente concedida
ou à língua ou à psique individual. Vigora em ambos os casos a mesma
circularidade. Enquanto na interpretação gramatical a circularidade se pro­
cessa entre parte e todo, na técnica ela se dá entre obra e autor (esta esclare­
ce aquela e vice-versa). Logo a seguir da passagem anteriormente citada, o
filósofo estabelece limites para cada um dos modos interpretativos, limites
que depois não serão respeitados: “A individualidade da língua de uma na­
ção se correlaciona com a individualidade de todos os seus outros produtos
comuns (gemeinschaftlichen Werke). Mas não temos a ver com esta conexão
e com seu centro comum. Assim também (sucede) com a (interpretação) téc­
nica. A individualidade da combinação e da exposição se correlaciona com
todas as outras manifestações da individualidade e quanto mais se conhece
alguém mais se descobre esta analogia. Mas não temos a ver com esta cone­
xão e com seu centro, mas apenas com a peculiaridade da constituição (da
obra) — estilo” (114, grifos meus).
As duas passagens grifadas indicam as fronteiras que o autor estabelecia
para as interpretações gramatical e técnica. Ambas serão rompidas. A pri­
meira por um Vossler da Frankreicbs Kultur im Spiegel seiner Sprachent-
wicklung (1913), a segunda por Dilthey.
Ainda a respeito da interpretação técnica, observe-se que, embora seja
freqüentemente tomada como sinônimo da interpretação psicológica, na
verdade Schleiermacher estabelecia uma diferença relativa entre as duas.
LUI Z COSTA LIMA

Lê-se, com efeito, nas observações de janeiro de 1833: “A primeira (a psico­


lógica) (tem) mais (a ver) com o nascimento das idéias, a partir da totalidade
do momento da vida. A última (a técnica), mais com a recondução a um pen­
samento ou a uma vontade de representação determinadas, a partir de que
se desenvolve uma série” (163). Só a psicológica, portanto, se confundiria
com o propósito de resgate da pura intenção autoral, ao passo que a técnica
manteria um compromisso com a indagação histórica. Contra ademais o do­
mínio exclusivo que a interpretação técnica, então confundida com a psico­
lógica, receberia com Dilthey, note-se que, no “Discurso à Academia, de
1829”, Schleiermacher, contraditando o realce que cada vez mais concedera
ao modo psicológico (no sentido amplo do termo), propunha uma espécie
de divisão liberal das áreas, sem subordinar um modo ao outro: “Poder-se-ia
ser tentado a afirmar que toda a práxis da interpretação deve se repartir de
modo que uma classe de intérpretes, voltada mais para a língua e para a his­
tória do que para as pessoas, examine proporcionalmente todos os escrito­
res de uma língua (...); a outra classe, mais voltada para a observação das
pessoas, considerando a língua apenas como o meio pelo qual elas se mani­
festam (e) a história apenas como a modalidade sob a qual elas existiram,
limitar-se-ia àqueles escritores que lhe fossem mais acessíveis” (133). Por certo,
contudo, não foi por esse liberalismo, hoje ressaltado por Szondi (art. cit.),
que se firmou o contributo de Schleiermacher à história da hermenêutica.
Ao contrário, seu nome foi praticamente integrado à empatia psicológica
propugnada por Dilthey e que, na crítica literária, encontra em G. Poulet
um de seus representantes mais conhecidos.
Chegamos por fim à idéia de circularidade. Ao invés do que se dará a
partir de Heidegger, ela tem aqui uma pretensão apenas metodológica. Já
nos aforismos encontramos a formulação que deverá ser validada pela inter­
pretação técnica: “Deve-se já conhecer o homem para compreender o (seu)
discurso, mas só a partir do discurso (é que) se pode conhecê-lo” (44). Se
esta circularidade corresponde à interpretação técnica, à gramatical cor­
responde a circularidade entre parte e todo, que o filósofo transpõe da retó­
rica antiga. Cada discurso pressupõe a totalidade da língua em que se realiza
e pode ser compreendido apenas a partir desta totalidade. E, como já acen­
tuamos, o mesmo vale para as divisões internas de um discurso em particular.
Em suma, para este que já foi chamado com razão o fundador da hermenêutica
moderna, a arte da interpretação aparece fundamentalmente como uma
metodologia contrária à incompreensão usual dos discursos escritos ou orais.

7 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

Fiel a seu postulado metodológico, Schleiermacher, no primeiro aforismo


que nos foi conservado, opunha-se a abrigar na hermenêutica a subtilitas
explicandi porque, pertencendo apenas “ao lado externo da compreensão”,
concerniria apenas à arte do bem expor. Muito menos se referindo à subtilitas
applicandiy tomava como específico à sua ciência tão-só a subtilitas intelli-
gendi. Ou seja, no esforço de ultrapassar o emprego utilitário da hermenêutica
por teólogos e pregadores, Schleiermacher concebe a arte da interpretação
como uma ciência pura, desligada (ou esquecida) dos interesses dos que a
punham em movimento. Daí, como muito bem observa Jauss, aplicada ao
campo da interpretação artística, a hermenêutica de Schleiermacher é equi­
valente aao ideal contemplativo da arte autônoma” (Jauss, H. R.: 1980,113).
Ao aceitarmos esta correspondência, compreendemos o profundo enraiza­
mento histórico da proposta do filósofo: realçando o aspecto metodológico
da hermenêutica, ele implicitamente acentua o brotar das ciências humanas;
ressaltando o dado psicológico, enfatiza o aparecimento liberado do indiví­
duo, destacado com o advento da ordem burguesa; enfatizando sua autono­
mia e pondo entre parêntesis sua aplicação, paralelamente privilegiava o
caráter contemplativo da especulação. Nada disso, por certo, diminui seu
mérito. Apenas o fato de hoje podermos constatá-lo mostra em atuação a
presença doutra mecânica histórica. E, como não poderia deixar de ser, suas
conseqüências se farão ainda sentir na teorização sobre a arte. Em síntese, a
Schleiermacher se vinculam duas orientações interpretativas vigentes no cam­
po da análise da literatura: diretamente, se lhe vincula a corrente que realça
na obra literária o uso efetivo da linguagem; indiretamente, aquela que,
embora reagindo contra o psicologismo, encara sua tarefa como a de apreen­
der objetivamente o significado do texto, a subtilitas intelligendi, deixando
assim de lado os móveis pragmáticos presentes na atuação e na escolha do
próprio analista. A primeira se vincula a estilística, à segunda as chamadas
práticas imanentistas.

A HERMENÊUTICA DE GADAMER

Do mesmo modo que no item anterior reservamos o espaço maior da expo­


sição ao próprio pensamento de Schleiermacher, só então apontando para
suas conseqüências quanto ao tratamento da arte, também aqui nosso inte­
resse maior está em discutir as proposições de Gadamer. Se, portanto, desde

7 5
LUI Z COSTA LIMA

o início falaremos da arte, será apenas porque esta se torna central em sua
obra. Com efeito, a primeira das três partes de Wahrheit undM ethode, “Des­
coberta da questão da verdade na experiência da arte”, tem por tema a ques­
tão da obra de arte do ponto de vista da teoria hermenêutica. A razão desta
primordialidade resulta de sua própria concepção da hermenêutica, como
assinala passagem do prefácio à 3.a edição de seu livro capital: “O sentido de
minhas pesquisas não é, de toda maneira, oferecer uma teoria geral da inter­
pretação e uma doutrina diferencial de seus métodos (...), mas sim investigar
as condições gerais de todos os modos de compreender e mostrar que a com­
preensão nunca é uma conduta subjetiva perante um dado ‘objeto’, mas que
pertence a uma história eficaz (Wirkungsgeschichte), o que significa: perten­
ce ao Ser que foi compreendido” (Gadamer, H.-G.: 1960, XIX).
O trecho acima explicita sua diferença quanto a Schleiermacher: enquanto
este era conduzido pelo propósito de estabelecer uma metodologia científica
da interpretação, Gadamer desvincula a hermenêutica da problemática
metodológica e científica e a enraíza na experiência geral do cotidiano. Mas
não se trata apenas de uma desvinculação; ela significa que não se toma a
tematização científica e os juízos reflexivos como hermeneuticamente privile­
giados. Muito ao contrário, a Gadamer interessa mostrar como o fenômeno
da compreensão resiste a toda tentativa de convertê-lo em abordagem cientí­
fica. Daí, em troca, o privilégio que concederá aos tipos de experiência que
a ciência não é capaz de absorver, as experiências da filosofia, da história e
da arte. São estas, e não a ciência, que representam para o autor os pontos
nodais da reflexão a estabelecer. A partir de que, entretanto, é legítimo dizer
que elas resistem à sua cientifização? O conceito de histórica eficaz (Wirkungs-
geschicbte) pode-nos servir de guia. Por história eficaz Gadamer designa o
fenômeno de manutenção do significado de textos passados no presente.
Noutras palavras, a história é eficaz por conta da permanência dos valores e
convenções subjacentes ao significado de um certo discurso. Víamos como
Schleiermacher respondia à descoberta da consciência histórica — sendo sem­
pre o mesmo, o homem é sempre diverso, pois diversos são os mundos his­
tóricos — pela potenciação do método divinatório, i. e., pela imitação da
psique autoral cumprida pelo intérprete. Gadamer rejeitará terminantemen-
te essa explicação, pois ela leva a crer na possibilidade de o intérprete sus­
pender o seu próprio condicionamento histórico, incorporando-se a uma
circunstância temporal que não é a sua. A interpretação, ao contrário, supõe
a presença da história eficaz, ou seja, nenhuma “reconstrução” interpretativa

7 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL 1

pode ser puramente objetiva; a interpretação atua através de uma “fusão de


horizontes”: é releítura do passado a partir de seu efeito (Wirkung) no pre­
sente. O que vale ainda dizer, a história nunca se congela de uma tal maneira
que os pósteros pudessem se curvar sobre o tempo e desencavar a história
deposta nas obras e objetos. E neste sentido que Gadamer fala da resistência
das experiências da filosofia, da arte e da história ao esforço de objetivação
da ciência. O ler dos pósteros, por conseguinte, é sempre um ler o estranho
a partir do que lhe é familiar (= as convenções de seu próprio tempo). Á
história eficaz diz deste trânsito entre o passado e o presente e pressupõe a
lição heideggeriana de que o compreender é sempre condicionado pela pré-
compreensão, anterior ao indivíduo e co-presente com seu tempo. E neste
sentido que, na passagem comentada, se declara que a compreensão não ê
nunca uma atividade meramente subjetiva. O problema que mais adiante
deverá ser posto é até que ponto essa explicitação da Wirkungsgeschichte arma
o intérprete contra a arbitrariedade subjetiva. Neste momento contudo bas­
ta-nos acentuar por que a hermenêutica de Gadamer começa com uma refle­
xão sobre a arte. Ela se impõe enquanto destaque do modo por excelência
de resistência ao objetivismo científico.
Dentro da exposição desta primeira parte de W ahrbeit u n d Methode,
destaca-se a comparação da obra de arte com o jogo. De seus vários argu­
mentos, ressaltemos o menos especulativo: “Seu modo de ser (do jogo) está
portanto em sua própria representação (Darstellung)” (Gadamer, H.-G.:
1960, 34). (Ou seja, seu modo de ser não se encontra em alguma finalidade,
de que ele fosse o meio de alcance.) Da mesma maneira, o modo de ser da
obra de arte está em sua apresentação efetiva, não havendo pois sentido dis-
tinguir-se, por exemplo, a partitura musical e sua apresentação em um con­
certo. Daí resulta que a interpretação — não se entenda apenas a feita por
profissionais — não se separa da obra, mas a integra. E ainda: como a essên­
cia da obra de arte está em sua Darstellung, é próprio dela ser sempre outra,
sem que essa alteridade negue a unidade que lhe subjaz e sem que esta unida­
de implique uma constante uniformidade.
O leitor que conheça Wabrheit und Methode notará como afastamos des­
ta exposição o ontologismo especulativo de Gadamer e procuramos ressal­
tar apenas o que parece operacionalizável. Mesmo que o parti pris nos leve
a deixar muita coisa de lado, o importante do que destacamos está no reco­
nhecimento de que o receptor da obra de arte não é um adendo à sua “essên­
cia”, mas, ao contrário, é por ela solicitado: “A temporalidade específica do

??
LUI Z COSTA LIMA

ser estético — ter o seu Ser em ser representado — faz-se existente no caso
da execução, como fenômeno autônomo e destacado” (WM, 127). Isso já o
levara a dizer que a arte se dirige a qualquer um, mesmo que não haja nin­
guém para escutá-la (WM, 105).
Dado esse passo, o autor procura aprofundar a idéia de ser na represen­
tação, comum ao jogo e à arte, tematizando a própria idéia de representa­
ção. E o que fará pela diferenciação entre imagem (Bild) e cópia (Abbild). E
próprio da cópia servir de mediador quanto a seu modelo, anulando-se a si
mesma nesta destinação: “Na natureza da cópia está que ela não tenha ne­
nhuma outra tarefa senão se assemelhar ao modelo” (WM, 131). Com a
imagem sucede o contrário. O espelho, por exemplo, reflete uma imagem e
não uma cópia. Se ele deforma a imagem, assim se dá apenas por defeito do
instrumento. “Nesta medida, o espelho confirma o que aqui se diz funda­
mentalmente: que à imagem, ao contrário (da cópia), cabe a intenção de
oferecer a unidade original e a não diferenciação entre representação e re­
presentado (die ursprünglicbe Einheit und Nichtunterscheidung von Dars-
tellung und Dargestelltem). O que se mostra no espelho é a imagem do
representado — é a sua ‘imagem’ (e não a do espelho)” (WM, 132). Por essa
distinção, Gadamer simultaneamente se afasta de duas interpretações do
produto mimético: da “realista” que, confundindo a natureza da imagem com
a da cópia, interpreta a primeira por seu ato de remeter a uma fonte original
representada; da inversa, que nega haver na representação algo de compará­
vel ao objeto representado. Ao contrário desta posição expressiva, para
Gadamer a função da imagem é trazer nela mesma aquilo que representa,
não se anulando diante de sua fonte, mas tampouco a abolindo. Isso pratica­
mente significa dizer que “apenas através da imagem o modelo (Urbild) se
torna propriamente um original (Ur-bilde), ou seja, só pelas imagens o re­
presentado se torna propriamente figurado (bildhaft)” (WM, 135). Assim
especificada, a imagem aparece como a base da especificidade da representa­
ção na obra de arte. A representação aí não remete a algo que lhe seja sim­
plesmente anterior, a que deveria refletir com fidelidade —■papel da cópia

— mas se funde com este anterior, concedendo-lhe a figuratividade que não
possuía. Entender a representação artística, portanto, é tanto um reconheci­
mento quanto uma descoberta. Desta maneira torna-se também mais claro
por que Gadamer afirma que a representação artística e, antes deia, o jogo,
exige o receptor, mesmo que eventualmente ele não esteja presente. Não é
então por coincidência que as idéias de Gadamer tenham tido um papel

7 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

primordial na elaboração das estéticas da recepção e do efeito, inauguradas


por H. R. Jauss e W. Iser, respectivamente. Contudo essa informação, muitas
vezes repetida, presta-se ao equívoco de não dar a perceber como a incorpo­
ração de Gadamer é em ambos os casos parcial. Notemo-lo de passagem. Pelos
termos de seu raciocínio, Gadamer concebe essa entrada do receptor como
forçosa pela própria natureza ontológica da obra de arte. Isso por certo não
impediria que, a partir daí, o autor viesse a operacionalizar a afirmação
ontológica, pelo exame histórico concreto da atuação do receptor. Mas, ao
invés disso, Gadamer prolonga seu ontocentrismo em reflexões meramente
especulativas. Daí a intemporalidade com que, paradoxalmente, vem a con­
siderar o papel do receptor: “As ruínas da vida passada, restos de constru­
ções, ferramentas, o conteúdo dos túmulos se desagregam pelas borrascas
do tempo, que as acediam — a transmissão escrita, ao invés, desde que deci­
frada e lida, é a tal ponto puro espírito que nos fala como se fosse atual. Por
isso a capacidade de ler, de compreender-se pelo escrito, é como uma arte
secreta, como um feitiço, que nos resgata e nos liga. No escrito, o espaço e o
tempo são ultrapassados (aufgehoben). Quem sabe ler o que se transmitiu
por escrito, testemunha e consuma a pura presença do passado” (WM, 156).
Se a Escola de Konstanz veio a ter um impacto que hoje começamos a absor­
ver, assim se deu tanto pelo que incorporou de Gadamer, quanto pelo que
dele soube descartar. Não se alegue que a intemporalidade há pouco referi­
da é ocasional. Muito ao contrário, ela resulta do culto da tradição pelo autor,
que, como veremos, o leva a pensar a história como um bloco contínuo, um
tecido nunca interrompido. Esta superestima da tradição compromete a sua
própria idéia da Wirkungsgeschichte, que não pode ser tomada como atuante
senão onde os efeitos da tradição realmente continuam presentes. Ora, na
medida em que o autor não empreende análises concretas, temos que refletir
com o que diz em plano apenas teórico. E, neste plano, nada leva a duvidar
da idéia de história como continuidade. A atemporalidade a que assim é
relegada a arte e o leitor conduz Gadamer ao elogio bem acadêmico do clás­
sico. Sem meias palavras, dele dirá: “O clássico é o que revoga a diferença
das mutações do tempo e sua oscilação do gosto; é acessível de maneira ime­
diata, não por aquela espécie de contato elétrico que de vez em quando
celebriza uma produção contemporânea, e na qual se consuma instantanea­
mente o vislumbre de sentido (Sinn-Abnung) superador de toda expectativa
consciente. Mais que nada, o clássico é a consciência da permanência, do
significado imperecível, independente de qualquer circunstância temporal,

7 9
LU I Z C O S T A LIMA

consciência na qual designamos algo como ‘clássico’. Ele é uma espécie de


presença intemporal (eine Art zeitloser Gegenwart), que concede contem-
poraneidade a cada um dos presentes (die für jede Gegenwart Gleicbzeitigkeit
bedeutety (WM, 272).
Assim identificamos a primeira contradição básica para um projeto de
operacionalização das idéias do autor. Se, por um lado, ele m ostra a
ilogicidade das definições imanentistas da arte e da literatura, que as pen­
sam produtos definíveis sem a entrada do receptor, por outro, é capaz de
cogitar de um tipo de objeto de arte, o clássico, como abolidor das dimen­
sões espaciais e temporais. Ora, estes dois resultados só podem ser tom a­
dos como contraditórios se não aceitarmos a suficiência do ontocentrismo,
de fato praticado por Gadamer. De acordo com este, o receptor se apre­
senta na obra de arte pela própria configuração desta — pura representa­
ção (Darstellung), ela é sempre presença para alguém, mesmo quando não
se acuse a figura concreta do receptor — daí, como corolário, torna-se
possível definir um tipo de objeto artístico que essencialmente dispensa o
receptor. Dispensabilidade que o leva a associar o clássico à sua força
normativa: “Assim o primeiro sentido do conceito de ‘clássico’ (o que tam­
bém corresponde ao uso verbal tanto antigo, quanto moderno) é o sentido
normativo” (WM, 272). Deste modo o ontocentrismo de Gadamer o con­
duz a uma variante do imanentismo: a obra por certo não se define por
meras propriedades formais, mas isso apenas porque já contém em si mes­
ma o pólo receptor. Assim a apropriação do pensamento de Gadamer por
métodos de análise operacional passa forçosamente pela reelaboração de
seu percurso, com o abandono do ontocentrismo e o desenvolvimento de
sua virtualidade histórica.
Qualquer que seja o peso de nossa objeção, o importante a assinalar é
por que a primeira parte de Wabrheit und Metbode lida centralmente com a
obra de arte. Explicada então a resistência que a obra de arte oferece ao
objetivismo científico, Gadamer passa a estar em condições de afirmar a su­
bordinação necessária da estética à hermenêutica: “A estética deve-se consu­
mar na hermenêutica” (WM, 157, grifo de G.). Subordinação de resultados
altamente duvidosos, dado o ontologismo em que se concentra esta herme­
nêutica. Se as obras dos membros da Escola de Konstanz implicitamente se
desligam da meta gadameriana, já as análises de Heidegger sobre a obra de
arte e alguns poetas mostram, ao contrário, o equívoco da especulação onto-
cêntrica em uma atividade positiva como a crítico-analítica.

8 o
TEORIA DA L I TE R ATU RA EM SUAS FONTES — V O L. 1

A primeira parte de Wabrheit und Methode termina pois com a proposi­


ção de que a estética deve desembocar (aufgehen) na hermenêutica. Entra-se
então na segunda parte da obra, “Ampliação da questão da verdade. A com­
preensão nas ciências humanas”, sem dúvida a mais relevante. Ela principia
com a pergunta: em que consiste a tarefa hermenêutica? O decisivo na res­
posta está na idéia de preconcepção (Vormeinung), que já encontramos em
Heidegger. Todo ato interpretativo não é nem o puro acesso a um significa­
do autoral — ou seja, um acesso às preconcepções de acordo com as quais a
obra foi gerada — nem muito menos uma simples apropriação, i. e., a aplica­
ção a um certo discurso das preconcepções próprias ao tempo histórico do
intérprete: “A compreensão só alcança sua própria possibilidade quando as
preconcepções, que ela instala, não são arbitrárias. Daí decorre que o intér­
prete não chega ao texto por assim dizer a partir da preconcepção nele (in­
térprete) já existente, mas ao contrário, examina a legitimação das suas
preconcepções, ou seja, sua origem e validade” (WM, 252).
Seria enganoso porém supor que ao intérprete fosse possível descartar-
se de sua preconcepção. Ou que o questionamento de sua legitimidade pu­
desse ser absoluto. Isso eqüivale a dizer: todo juízo interpretativo é parcial,
historicamente marcado e nunca capaz de apreender o em si da obra, em si
por sinal negado desde a refutação heideggeriana do Ser como substância.
Daí a leitura definir-se como apropriação (Aneignung) válida apenas se, em
vez de se impor sobre o texto, permite que o texto fale a partir da precon­
cepção que o intérprete traz e aplica: “Quem deseja compreender um texto,
está disposto a que algo de si seja dito por ele. Por isso uma consciência her-
meneuticamente formada deve de antemão ser suscetível à alteridade do texto.
Tal suscetibilidade não pressupõe nem a ‘neutralidade5 factual, nem muito
menos o apagamento de si próprio, mas compreende a apropriação ressalta­
da das próprias preconcepções e preconceitos {die abhebende Aneignung der
eigenen Vormeinungen und Vorurteile)” (WM, 253).
Em todo este desenvolvimento está obviamente presente a reflexão de
Heidegger (a “prisão” no círculo hermenêutico, a recusa de tomar o Ser como
substância, a idéia de antecipação (Vorstruktur), i. e., a idéia de que a estrutura
encontrada não pertence ao objeto, extirpada a subjetividade do intérprete,
mas resulta da presença anterior de condições de interpretabilidade interna­
lizadas pelo agente da interpretação, com as quais ele trabalha o discurso-ob-
jeto). E ainda a partir do pensamento heideggeriano que Gadamer desenvolve
a crítica do Iluminísmo* Ao passo que a tradição iluminista considera o

8 1
LUI Z COSTA LIMA

preconceito um elemento necessariamente negativo, como resultante da


oposição em abstrato da razão, privilegiada, face à autoridade, elemento
que deveria ser sempre ultrapassado, Gadamer parte da crítica à noção
iluminista de autoridade: “Por certo, a autoridade compete em primeiro
lugar às pessoas. Mas o fundamento último da autoridade das pessoas não
está em um ato de submissão e de abdicação da razão, mas sim em um ato
de aceitação e de reconhecimento — o reconhecimento de que o outro é
superior em julgamento e sagacidade e, daí, que seu julgamento tem a pre­
ferência, i. e., tem primazia sobre o nosso. (...) A autoridade repousa na
aceitação e, nesta medida, também ela é um ato de razão, que, sabedora de
seus limites, confia na maior perspicácia de outrem. O sentido corretamente
compreendido da autoridade nada tem a ver com a obediência cega. Ime­
diatamente, a autoridade não tem a ver com a obediência, mas sim com o
reconhecimento” (WM, 263-4). O raciocínio se apoia em um tour de force
que logo se evidencia: “Por certo que é preciso ter autoridade para poder
dar ordens e encontrar obediência. Mas isso é apenas a conseqüência da
autoridade que se tem” (WM, ibidem).
Colocada a autoridade sob nova legitimação, Gadamer se dirige aos pre­
conceitos e recusa a sua necessária negatividade. Se a autoridade do educa­
dor, do chefe, do especialista é reconhecida, “os preconceitos, que elas
implantam, são na verdade legitimados pela pessoa” (WM, ibidem). O que
vale dizer, o reconhecimento da autoridade torna legítimos os preconceitos
resultantes dela.
O raciocínio de Gadamer, que como logo veremos é severamente critica­
do por Habermas3, parece confundir a preconcepção com o preconceito
(yormeinung e Vorurteil). Assim como a primeira é ilegítima quando se apli­
ca automaticamente ao discurso alheio, tornando familiar o que deveria ser
recebido como alteridade, assim também o preconceito é arbitrário apenas
quando abafa a peculiaridade do discurso-objeto. Ou seja, para que o pre­
conceito seja salvo é preciso que ele seja confundido com o bias inevitável da
preconcepção; inevitável, porque negá-lo seria admitir ou que o objeto seja
passível de ser apreendido em sua qüididade ou que pudéssemos ter comple­
ta consciência dos valores que nos guiam. Mas no esforço de se contrapor
quer ao relativismo historicista, quer ao intuicionismo psicológico da Erlebnis
diltheyana, Gadamer endossa um conservadorismo quando nada latente. Este
resulta de seu excessivo apreço à tradição. A validade do fundamento dos
costumes e da tradição decorre de serem acolhidos “em toda liberdade” e de
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

maneira alguma criados por um discernimento individual (cf. WM, 2 5 6 ss).


O argumento, por certo, não pode ser afastado a priori. Justificar contudo a
tradição porque ela seria acolhida em plena liberdade é, quando nada, uma
abdicação ante a consciência ingênua, pois tal “liberdade” só perderia as as­
pas caso seu exercício decorresse de uma prévia atividade reflexiva. Não se
trata de manter o culto indiscriminado da razão, cujos limites são bem mais
extensos do que os iluministas poderiam saber ou admitir. A partir daí, con­
tudo, vir ao elogio dos preconceitos depurados é um contra-senso, que só
parece explicável pelo desprezo de Gadamer do exame concreto das situa­
ções históricas. Só tal exame permite compreender as razões que dão apa­
rência de liberdade na acolhida das tradições e dos costumes. Como entretanto
o autor trabalha com outros termos — a oposição entre o elogio iluminista
da razão e o que efetivamente se passa no plano da existência humana — ele
se entrega ao resgate dos preconceitos, desde que depurados. Mas quem os
depura e quem examina esta depuração? E, se ela é cumprida, o preconceito
continua a merecer esse nome? Raciocinando desta maneira, somos levados
a dizer que a pretensão de radicalidade do autor é comprometida pela estrei-
teza dos termos com que opera. Tal crítica, entretanto, não deve dissimular
o que é aceito de Gadamer: se a salvação dos preconceitos é no mínimo
questionável, isso não significa que possamos, escapando do círculo herme­
nêutico, ultrapassar as preconcepções que nos dirigem. Nestas está a nossa
historicidade. O que vale dizer, toda atividade compreensiva e interpretativa
é condicionada por nosso lugar temporal e por nossa posição espacial den­
tro da sociedade. Em suma, portanto, a reflexão de Gadamer contra o
objetivismo — representado na análise da literatura, por exemplo, pela dis­
tinção de Hirsch Jr. entre meaning e significance — é extremamente impor­
tante, desde que não confundamos preconcepção e preconceito. A primeira
é inconsciente, diz respeito ao uso de regras que aplicamos ao mundo ao redor
e que só temos condições de objetivar quando deixam de ser nossas. Ora,
essa propriedade de sermos movidos ou de podermos ver o que nos move
não depende do arbítrio individual, pois a finitude temporal do sujeito o
impede de fazer-se contemporâneo doutra época, i. e., de chegar a um tem­
po em que a compreensão depende doutra preconcepção. O preconceito, de
sua parte, é um elemento potencialmente passível de tornar-se consciente e,
assim, de ser reconhecido ao longo da existência. Radicalizando essa dife­
rença, afastamo-nos do pensamento gadameriano, para o qual a tradição se
manifesta na conduta histórico-hermenêutica pela “comunidade de precon­

8 3
LUI Z COSTA LIMA

ceitos fundamentais e condutores” (WM, 279). É de posse desta base comum


que a hermenêutica realizaria sua tarefa, que “não é desenvolver um proce­
dimento de compreensão, mas elucidar as condições pelas quais se dá a com­
preensão” (WM, ibidem). Como se vê, assim a hermenêutica é pensada numa
perfeita linha divisória que a separa da ciência; enquanto esta remete para a
idéia de método, a indagação da “verdade” leva o hermeneuta a repugnar
qualquer preocupação metodológica. O esforço que dele se exige é de or­
dem purificadora: reconhecer, dentro de sua preconcepção, o que o leva a
não entender devidamente o discurso que analisa, reconhecer, entre seus
preconceitos, os que são arbitrários. Gadamer assim professa o que chamaría­
mos de autocompreensão otimista. Suas páginas contudo não nos levam a
atinar quando e como esse otimismo mostra seus bons resultados. Na verda­
de, se é salutar a resistência ao domínio absoluto da atitude científica, não
parece que o caminho preferível seja o da negação absoluta de seus modos
de proceder, mesmo em relação às áreas pouco permeáveis à exigência cien­
tífica de objetividade. Mas alheio a esse tipo de réplica, Gadamer continua
sua empresa e, a seguir da parte comentada, se pergunta como a compreen­
são se realiza. Compreender, diz ele, é sempre entender doutra maneira o
objeto compreendido: “Basta dizer que se compreende doutro modo quando
enfim se compreende” (WM, 280, grifo de G.). A razão da afirmação é evi­
dente. O significado de um discurso não se estabelece senão através das con­
venções, valores e critérios de classificação que forjam a preconcepção
internalizada pelos sujeitos históricos. Uma época distinta carrega consigo,
portanto, uma forma nova de compreender os produtos doutra época (cf. a
idéia de e p is te m e de Foucault, em L es M o ts e t les ch o ses ). A necessária
alteridade contida no ato de compreender não é pois resultante das diferenças
individuais, mas sim históricas. Contrária à linha psicológica de Schleier-
macher-Dilthey, a indagação de Gadamer abole a idéia de individualização,
tomando-a como uma privatização descabida. Dentro de seus pressupostos,
a passagem do tempo não representa um obstáculo, mas, ao invés, é a condi­
ção para o aumento da compreensão: “Na verdade, importa reconhecer a
distância temporal como uma possibilidade positiva e produtora da compreen­
são” (WM, 281). E isso se dá por duas razões: (a) porque só a distância no
tempo possibilita a fixação de um contexto bem delimitado; (b) porque só
ela permite que o objeto não seja recebido com a mesma preconcepção de
seus contemporâneos, assim tornando possível o seu questionamento. E nes­
te momento que se mostra em atuação a história eficaz, estabelecendo como

8 4
TEORIA DA LITERATURA E M S U A S F ON T E S — VOL. 1

que um filtro que nos permite compreender um discurso, meio estranho aos
nossos valores, meio familiar a eles. Dizer pois que a compreensão favorecida
por certa distância temporal se realiza dentro da história eficaz significa que
o ato de compreender nunca é absoluto. Compreendo de acordo com e den­
tro dos limites possibilitados por minha situação. Nunca nos encontramos
diante da história, somos sempre por ela circundados. Assim, é próprio da
história eficaz que ela nunca seja totalmente captada, i. e., que nunca possamos
saber a totalidade da preconcepção que nos dirige — “ser histórico significa
nunca se resolver em saber de si mesmo” (WM, 285). A Wirkungsgescbichte
assim implicitamente coloca a questão da continuidade histórica ou de suas
rupturas. Só digo implicitamente porque em Gadamer nada leva a perceber
a segunda possibilidade. Ao contrário, taxativamente se afirma a constante
continuidade: “Há assim na verdade um único horizonte, que engloba tudo
o que em si contém a consciência histórica. O passado, tanto o próprio quanto
o alheio, a que nossa consciência histórica se filia, forma este horizonte
movediço, de que vive toda vida humana e que a determina como origem e
transmissão” (WM, 288). Assim o ontocentrismo vem em auxílio do autor
para diminuir a problematicidade contida na idéia de história eficaz. Digo
diminuir porque se, ao contrário, entendermos que a história é freqüen­
temente atravessada por rupturas — idéia que as pesquisas de Foucault tor­
naram familiar — o princípio da “fusão de horizontes”, contido na história
eficaz, se torna mais problemático do que Gadamer desejaria. Ou seja, quan­
do se trata de interpretar um discurso pertencente a época ou cultura dife­
rente da nossa, a idéia da fusão de horizontes pode-se acumpliciar com
facilidade à arbitrariedade. Por efeito de economia de espaço, lembro ape­
nas o ensaio de J.-P. Vernant sobre a leitura freudiana de Édipo rei (cf. Vernant,
J.-P.: 1972, 99-131). A partir dela podemos dizer que a interpretação
freudiana se apoia no princípio da continuidade histórica, com o que se
empresta ao mundo grego pressupostos que lhe são descabidos.
Sem a pretensão de seguir rigorosamente a ordem de exposição do au­
tor, destaca-se agora outro tópico decisivo, a lógica da questão e da resposta.
“Pode-se compreender um discurso apenas quando se compreendeu a per­
gunta da qual ele é uma resposta”(WM, 352). Partindo de Collingwood e,
ao mesmo tempo, retificando-o, a lógica da pergunta e da resposta é, na ver­
dade, o princípio básico pelo qual a hermenêutica gadameriana replica efi­
cazmente à introspecção divinatória de Schleiermacher e à empática de
Dilthey: “(...) A pergunta, de cuja reconstrução se trata, não concerne em

8 5
LUIZ CO í TA I I fVJ Ã

primeiro lugar às vivências mentais do autor mas sim apenas ao sentido do


próprio texto. Quando se compreendeu o sentido de uma frase, i. e., que se
reconstruiu a pergunta a que ela de fato responde, deve então ser possível
dirigir a pergunta àquele que a fez e à sua opinião, de que o texto talvez seja
uma possível resposta” (WM, 354). Não se trata, portanto, de primariamen­
te reconstruir a intenção autoral, mas de apreender, pelo próprio texto, o
clima histórico dentro do qual ela se situava. Assim entendida, a reconstru­
ção a realizar visa estabelecer o contexto histórico-social a que pertence o
discurso-objeto. Primeira parte da tarefa exegética, tal reconstrução não se
faz de um ponto de vista astronômico, i. e., desligado da preconcepção do
contexto do analista. Ao contrário, aquela primeira tarefa já é condicionada
pelo horizonte do intérprete, cujo esclarecimento, sempre relativo, constitui
a segunda etapa da lógica da questão e resposta. Enlaçando as duas etapas,
atua a história eficaz, através da Horizontverschmelzung (fusão de horizon­
tes). Pelas duas etapas, Gadamer procura escapar, de um lado, da clausura
do relativismo histórico — não podemos compreender senão os que nos são
contemporâneos — de outro, da arbitrariedade da interpretação apenas pes­
soal Assim entendendo, causa no mínimo estranheza o fato de Hirsch Jr.
igualar Barthes e Gadamer no mesmo tipo de crítica: “Teóricos como
Gadamer, por exemplo, ou como Barthes, corretamente objetam à narcose
cultural induzida por tais ‘reconstruções’ do passado. Mas como antídoto
recomendam que vitalizemos os textos inescrutáveis do passado, distorcendo-
os à nossa própria perspectiva” (Hirsch Jr., E. D.; 1976, 39). Mas o teórico
tem pelo menos o mérito de apontar para a margem de arbitrariedade subje­
tiva permitida pela linha de Heidegger e Gadamer.
Acrescentemos à reflexão até agora apresentada um último elemento. Vi­
mos como em Gadamer preconcepção e preconceito se acham a tal ponto
associados que não se pode descartar o segundo do primeiro. Em antítese ao
elogio iluminista da razão, então identificada com a via real contra os vícios
e as distorções, para Gadamer a solidariedade entre preconcepção e precon­
ceito resulta da própria inserção histórica e é tão indescartável quanto ela.
Acrescentemos agora: esta solidariedade circula na linguagem, habita-nos a
partir da linguagem. E a linguagem pois que, ao mesmo tempo, nos dá aces­
so ao mundo e nos restringe face a ele. Atmosfera que nos envolve enquanto
seres culturais, condição a partir da qual se realiza nossa socialização, a lin­
guagem é a declaradora de nosso limite. E como, para Gadamer, a herme­
nêutica não supõe um método, nem se aplica apenas ao cogitar-se de uma

8 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL, 1

indagação científica ou filosófica, sua extensão então passa a ser igual à da


linguagem. E ainda, como esta nos oferta nosso limite histórico, sua coinci­
dência com a tarefa hermenêutica fornece à última o caráter de universalida­
de. Assim, rebatendo a posição de Schleiermacher, escreve Gadamer: “(...)
Levanta-se também a questão de se o fenômeno da compreensão é definido
apropriadamente quando dizemos que compreender é evitar a má compre­
ensão. Não sucede de fato que cada incompreensão supõe um ‘consenso
profundo5?” (Gadamer, H.-G.: 1966, 7). O consenso exaltado obviamente é
o que deriva da tradição, traçada pela preconcepção e pelo preconceito, e
que circula pela linguagem. Deste modo, a universalidade da hermenêutica é
a chave da abóbada de uma construção cujas pilastras centrais são precon­
cepção e preconceito, linguagem, tradição e consenso. Contrapor-se portanto
à universalidade pretendida implica defrontar-se com o sistema inteiro da
construção. E o que Habermas empreende. Seu ataque não supõe que recuse
in totum a proposta da hermenêutica filosófica. Seu acordo contudo — por
ex., na crítica do objetivismo científico proposto como modelo para as ciên­
cias sociais — é menos decisivo que sua discordância. Limitando-nos a uma
referência sintética, vejamos em primeiro lugar o questionamento da univer­
salidade aludida. ÉÍA consciência hermenêutica é incompleta à medida que
não admite a reflexão sobre os limites da reflexão hermenêutica. A experiência
dos limites hermenêuticos se relaciona com manifestações de vida especifi­
camente incompreensíveis. Esta incompreensão específica não é sobrepuja­
da pelo exercício, conquanto engenhoso, da competência comunicativa
naturalmente adquirida; a tenacidade desta deve ser encarada como indício
de que não pode ser esclarecida somente pela estrutura da comunicação co­
tidiana, trazida à consciência pela hermenêutica. (...) Esta consciência
hermenêutica revela-se insuficiente no caso da comunicação sistematicamente
distorcida: a incompreensibilidade aqui resulta de uma organização defei­
tuosa do próprio discurso. (...) A área de aplicação da hermenêutica se con­
funde com os limites da comunicação cotidiana normal, afastados os casos
patológicos. A autoconsciência da hermenêutica pode ser abalada somente
quando se mostra que o padrão da comunicação sistematicamente distorcida
também é evidente no discurso ‘norm al’, no discurso patologicam ente
discreto”(Habermas, J.: 1970a, 133-4). Noutras palavras, no esforço de afas­
tar-se do modelo da ciência, internalizado na hermenêutica de Schleiermacher,
a versão de Gadamer se contenta em operar nos parâmetros da normalida­
de, sem que atente para o que esta exclui e mascara. Por isso, na passagem

8 7
LUI Z COSTA LIMA

acima citada, Habermas observa que a aplicabilidade da hermenêutica filosó­


fica se restringe ao normal que exclui de si o patológico. Daí o peso que o
pensador alemão concederá à psicanálise, instrumento então privilegiado na
tentativa de estabelecimento de uma hermenêutica crítica. Isso eqüivale a
dizer, Habermas não se contenta em descrever valorizações socialmente
consensualizadas, que se justificariam como produtos oriundos de uma
preconcepção historicamente vigente; não cabendo ao hermeneuta senão
mostrá-las. A pergunta que o move pode ser assim formulada: até que ponto
tais valorizações não resultam de uma comunicação distorcida por efeito da
repressão institucionalizada? Ela se expressa “no campo da conduta, (onde)
se torna observável um jogo de linguagem deformado pela rigidez e pela
compulsão à repetição (Wiederholungszwang)” (Habermas, J.: 1970a, 135).
Para que tais sintomas sejam captados não basta o poder inato para interpretar,
com que, expulsa a preocupação metodológica, se contenta a hermenêutica
filosófica, porquanto é necessária uma explícita construção teórica, no caso
a freudiana. Assim, tratando da cena psicanalítica, escreve: “(...) A compreen­
são cênica (i. e., que tende a levar o paciente à reconstituição da cena primária)
não pode ser encarada, a exemplo da hermenêutica, como uma aplicação não
teórica da competência comunicativa, de seu lado possibilitadora de teorias”
(Habermas, ibidem, 138). Como então assim se ataca o reclamo gadameriano
da universalidade hermenêutica? Ataca-se-lhe pelas seguintes frentes: (a) es­
tabelecer uma coincidência entre a “extensão” da linguagem e a extensão da
hermenêutica implica dar a esta o papel de corroboradora do status quo, desde
que fundado no consenso de uma tradição; (b) a comunicação sistematica­
mente distorcida, apreensível apenas pela “compreensão cênica” e não pela
usual, exige o emprego de uma construção teórica determinada, rompendo
assim a drástica separação romântica entre “verdade” e “método”.
Em suma, por essa compreensão aberta dos fatores ligados à linguagem, a
proposta habermasiana diferencia-se drasticamente da posição de Gadamer:
“A hermenêutica profunda, que elucida a incompreensão específica da comu­
nicação sistematicamente distorcida, a rigor não se deixa compreender, como
a compreensão hermenêutica simples, pelo modelo da tradição. (...) Na
hermenêutica profunda, a compreensão por isso requer uma pré-compreen-
são sistemática que se estende à linguagem em geral, enquanto a compreensão
hermenêutica sempre deriva de uma pré-compreensão determinada pela tra­
dição, que se forma e se modifica dentro da comunicação verbal” (Habermas,
ibidem, 147-8). Assim revista, a hermenêutica apresenta outra imagem para a

8 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

tarefa interpretativa da história, em seus diversos ramos: instrumento crítico e


voltado para a interferência na ação social e não meramente acolhedor do que
há. Por essa proposta, entende-se por que a discussão de Habermas apenas se
inicia na recusa da universalidade de padrão concedido à linguagem comum.
Na impossibilidade de um exame extenso, encerremos nosso exame com a re­
vista de dois pontos articulados ao primeiro: a oposição entre método e ver­
dade, o hipostasiar da linguagem, (a) A oposição entre experiência hermenêutica
e a totalidade do conhecimento metodológico: aA exigência de dar validade à
hermenêutica contra o absolutismo, de graves conseqüências também práti­
cas, de uma metodologia geral das ciências da experiência, não dispensa de
modo algum um comércio com a metodologia. Essa exigência se transforma, é
isso que devemos temer, ou nas ciências vigentes ou em nada” (Habermas, J.:
1971,46). Pois o bastar-se com a experiência hermenêutica conduz o autor ao
elogio da tradição tout court, não vendo o risco de aceitar seus preconceitos,
desde que estes, como vimos, não seriam necessariamente negativos. Essa não
negatividade a priori dos preconceitos, como também vimos, de sua parte se
relaciona com a afirmação de que a verdadeira autoridade não precisa se ma­
nifestar autoritariamente. Esse sistema de crenças, diz Habermas, sustenta a
absolutização da hermenêutica. Em oposição a ela, Habermas reflete como os
preconceitos adquirem vida social: “Gadamer pensa no tipo de processo edu­
cacional pelo qual a tradição oral se converte em processo de aprendizagem e
é apropriada como tradição. A pessoa do educador aqui legitima os precon­
ceitos, que serão transmitidos ao educando com autoridade, o que significa
(...): sob a ameaça potencial de sanções e com a esperança de gratificações. A
identificação com o modelo cria a autoridade, pela qual é possível unicamente
a internalização das normas e, enfim, a sedimentação dos preconceitos” (Ha­
bermas, J.: 1971, 48-9). Assim o reconhecimento incondicional da tradição
conduz praticamente ao esforço de apenas racionalizar a autoridade (cf.
Habermas: op. cit., 49).
Passemos ao segundo ponto da crítica: (b) Gadamer, principalmente na
terceira parte de seu livro, cuja exposição aqui seria ociosa,4 toma a linguagem
como uma espécie de metainstituição, da qual também dependeriam as insti­
tuições sociais. Ora, essa metainstituição é, na verdade, sujeita a processos
sociais: “A língua é também um meio de domínio e de poder social. Ela serve
à legitimação das relações da força organizada. Assim como as legitimações
das relações de força, cuja institucionalização elas possibilitam, não se mani­
festam, assim também as relações de força se expressam apenas nas legitimações.

8 9
LU I Z COSTA LIMA

Deste modo a língua é também ideológica” (Habermas: op. cit., 52-3). A lín­
gua, em suma, é hipostasiada, comprometendo-se o seu relevo efetivo, por­
quanto seu realce se fez deixando de lado os outros determinantes decisivos
para a interpretação das ações sociais: “A relação objetiva, unicamente a par­
tir da qual as ações sociais podem ser concebidas, constitui-se sobretudo pela
língua, pelo trabalho e pelo poder” (Habermas: 1970b, 289).
O endosso de tais críticas não nos leva a negar a relevância de uma obra
que, reagindo contra o objetivismo positivista, relegador de tudo que não se
assemelhe à metodologia científica, defende a especificidade de construção
das ciências humanas, sem por isso embarcar na oposição acadêmico-con-
servadora de ciência versus homem. Apesar desta relevância, Wahrheit und
Methode é prejudicado pelo ontocentrismo, que leva o autor à paradoxal
caracterização atemporal do clássico, ao desdém pela pesquisa histórica con­
creta, ao abandono de qualquer preocupação metodológica e à hipertrofia
idealística do papel da linguagem. Esse prejuízo se torna tanto maior quanto
as deficiências da colocação de Gadamer se dão pari passu às suas idéias mais
fecundas. Isso se torna visível no caso da análise literária que nele encontrou
uma de suas fontes. Se Iser e Jauss, notadamente o primeiro, expurgam o
especulativismo gadameriano, por outro lado, obrigados a desenvolver uma
metodologia de análise, aproveitam de seu ex-professor o encaminhamento
proposto pela idéia da Wirkungsgeschichte e pela lógica da questão e respos­
ta. E, ao fazê-lo, não podem se contentar com a teorização de Gadamer. Pois,
mesmo se aceitamos que a análise do discurso cumpre um trajeto que não se
confunde com o estritamente científico, enfatizar apenas esta oposição con­
duz a que se entenda a análise da literatura como um gênero ficcional. Com
efeito, a idéia da fusão de horizontes não representaria um obstáculo a esta
pretensão porque, se a obra ficcional não nasce da mera exploração das
virtualidades da psique do autor, se toda ela mantém um diálogo aberto com
as obras do passado e com o mundo envolvente, o que nos impedirá de dizer
que também ela é produto de uma Horizontsverschmelzung? Ora, à medida
que o conceito se estende até à interpretação ficcionalmente realizada, ele
não é suficiente para justificar-se o estatuto propriamente analítico da inter­
pretação do discurso literário. Contra essa in discriminação de fronteiras, é
oportuno acentuar com Habermas que a hermenêutica tem limites precisos:
“(...) A intersubjetividade da comunicação verbal comum é sempre ‘quebra­
da5. Ela existe porque a compreensão é em princípio possível e não existe
porque em princípio é necessário chegar-se à compreensão. A hermenêutica

9 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VO L . 1

se aplica ao ponto de ruptura. Ela compensa a ruptura da intersubjetividade”


(Habermas, J.: 19735 260). Restaurada essa comunicação interrompida, o
analista necessita de uma disciplina metodológica, da qual seria excessivo aqui
tratar. Apontemos apenas algumas questões que aí aparecem, direta ou indi­
retamente entrosadas com a problemática que Gadamer abordara.

A MUDANÇA DE PARADIGMA DA ANÁLISE LITERÁRIA

Com a herm enêutica de Schleiermacher, privilegiou-se a preocupação


metodológica e limitou-se a atividade interpretativa ao momento da com­
preensão [subtilitas intelligendi). Em Gadamer, ao contrário, a teoria herme­
nêutica desliga-se da preocupação metodológica e, ao lado do aspecto
compreensivo, enfatiza-se o momento de sua aplicação (applicatio). Como
já notamos, a partir de observação de Jauss, o sacrifício da applicatio por
Schleiermacher correspondia à idéia da arte e do conhecimento histórico
autônomos. Ora, é o caso de perguntar-se, até que ponto a reviravolta da
hermenêutica contemporânea não é também um sinal de mudanças paralela­
mente cumpridas no campo da expressão e da análise literárias? Note-se que
não indagamos quais os efeitos sobre a teorização da literatura da causa re­
presentada pela obra de Gadamer. Isso não teria sentido, pois esta influência
não é extensamente flagrante. Indiretamente, Hirsch Jr. confirma esta mu­
dança paralela quando acusa o retorno, que hoje estaria em processo, a “uma
concepção quase medieval de interpretação” (1976, 78). Com isso ele quer
dizer: a teoria contemporânea da interpretação renunciou à afirmação ro­
mântica de que podemos entender a pluralidade das culturas humanas e, em
seu lugar, passou a afirmar sermos prisioneiros de nossos próprios pressu­
postos. Deste modo a interpretação retornaria às paráfrases alegóricas medie­
vais, contra que se rebelara vitoriosamente a hermenêutica da Reforma. O
testemunho de Hirsch nos serve entretanto apenas como indicação de que a
mudança da teoria hermenêutica corre paralela ao que se verifica na teoria
da interpretação literária. Dizer contudo, como o faz o autor americano, que
há assim o retom o a uma concepção quase medieval seria correto apenas
quanto aos defensores da análise como gênero de ficção, pois aí o discurso
“analítico” toma o texto-objeto como sugestão para um novo desdobramen­
to poético-ficcional. E mais interessante, pois, verificarmos o significado da
reincorporação da applicatio à teoria hermenêutica.

9 1
LUI Z COSTA LIMA

A applicatio era eliminada da hermenêutica precedente porquanto se


entendia, de acordo com o privilégio concedido ao indivíduo-autor, que o
papel de seu praticante consistia em reproduzir a produção autoral. Desta
maneira o interesse do intérprete — i. e., quais suas motivações na escolha
de certo autor ou de certo tema, para não falar na escolha da própria disci­
plina — era tomado como inexistente ou irrelevante. E contemporânea a esta
posição o definir a experiência diante da arte como um prazer desinteressa­
do, uma “finalidade sem fim”. A medida, ao contrário, que sabemos inexistir
esta inocência do intérprete (ou do contemplador), é forçoso reconhecer que
todo ato de compreensão contém uma aplicação do que se compreende “à
situação presente do intérprete” (WM, 291). Posto em termos práticos, isso
significa que, ao analisarmos o modo como certo discurso foi interpretado,
temos de compreender as motivações e interesses que guiavam o intérprete
a vê-lo de certo modo e não de outro. A preocupação com a applicatio retira
a análise e a crítica literárias do pretenso neutralismo e da pretensa objetivi­
dade com que elas, freqüentemente, cogitam de se justificar. Noutras pala­
vras, nenhuma escolha estética é apenas estética e esta muito menos pode-se
definir como uma simpatia desinteressada. Não se trata de dizer que a análi­
se e a crítica são apenas veículos ideológicos. Mas, por certo, aquelas que se
querem neutras e apenas objetivas são, em primeiro lugar, principalmente
ou apenas ideológicas. Suspenso então o falso angelismo da análise e da crítica,
cai por terra a idéia da autonomia completa do texto poético. Com isso cai
ainda o dogma do dose reading, que não se restringia ao new criticism, i. e.,
de que apenas o texto interessava ao intérprete. Assim, por exemplo, se afas­
tamos o especulativismo de Gadamer, a lógica da questão e da resposta con­
duz o intérprete da literatura a repor as questões da intencionalidade autoral
e de seu contexto. Não se cogita de repropor os métodos biográficos e as
interpretações reducionistas. A intenção autoral importa como um dos ele­
mentos capazes de nos levar à reconstituição do propósito que originalmen­
te animava a obra. Não se pensa em privilegiar a interpretação autoral, mas
de, na medida do possível, conhecer seu propósito para nos habilitarmos ao
melhor conhecimento do destino da obra. “(...) Desde que a compreensão
do que o escritor está fazendo ao dizer o que diz é equivalente à compreen­
são tanto de suas intenções primárias ao escrever, quanto, em certa medida,
do significado do que ele escreve, segue-se que o conhecimento destas
intenções deve ser indispensável à interpretação do significado dos textos”
(Skinner, Q.: 1975, 214). Esta premissa geral, por sua vez, precisa ser com­

9 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V O L. 1

binada com o reconhecimento de que a intenção autoral não coincide com o


que efetivamente alcança em sua obra. Como observa o mesmo Quentin
Skinner, “isso transforma a análise do que o artista ou o escritor está fazendo
em algo diverso (...) do estudo de suas intenções no texto” (ídem, 219). Em
suma, a investigação da intenção não conduz a um centramento psicológico
no indivíduo criador; ela importa apenas enquanto apresenta um dos meios
para a reconstituição do ambiente histórico, das convenções literárias e so­
ciais, das forças que condicionavam o caráter que a obra assumiria. No caso
da literatura brasileira, isso é por exemplo evidente no tratamento ao mes­
mo tempo paternalista e irônico com que Machado se dirigia a seu leitor ou
na auto-ironia de Clarice Lispector quanto aos esforços do narrador em simpa­
tizar com Macabéa em A hora da estrela. Em síntese, a revalorização das in­
tenções autorais remete à revalorização da contextualidade, evidente na obra
de W. Iser.5 Mas, outra vez, não se trata de um revival, de um retorno ao
estudo do contexto na mera busca das causas condicionantes de certo gêne­
ro ou de certo modo de expressão. O texto passa a ser visto, “não em termos
causais e positivistas, como um precipitado de seu contexto, mas, em termos
circulares e hermenêuticos, como um item significativo, dentro de um con­
texto mais amplo de convenções e suposições (...)” (Skinner, Q.: 1975,216).
Estas indicações são suficientes para vermos como a ortodoxia, ainda há
pouco vigente, entra em descrédito, sem que por isso refloresçam formas de
abordagem — a psicológica e a causalista — efetivamente ultrapassadas.
Acentua-se por fim que não se cogita de tomar a teoria geral da interpreta­
ção fundada na hermenêutica como o campo teórico em que a análise da
literatura iria buscar sua justificativa. O grande serviço prestado pela herme­
nêutica contemporânea consiste em ultrapassar o psicologismo da Erlebnis
diltheyana, e, ao mesmo tempo, em demonstrar o falso problema do Ser como
substância apriorística, de que os entes seriam os “descendentes”.

Rio, janeiro de 1981


Notas

Esta informação enciclopédica, além das referências explicitamente citadas, se ba­


seia em tópicos do verbete “Hermeneutik”, da autoria de H.-G. Gadamer, in
Historiscbes Wõrterbuch der Philosophie, Ioachin Petter (org.), 3, Wissenschaftliche
Buchgesellschaft, Darmstadt 1974. Para o conhecimento de textos fundamentais
na história da hermenêutica, a partir da pré-história da hermenêutica romântica,
cf. a obra organizada por H.-G. Gadamer e G. Boehm, Seminar: Philosophiscbe
Hermeneutik, Suhrkamp Verlag, Frankfurt a/M. 1976.
A data de 1838 refere-se à primeira edição das obras completas de Schleiermacher.
Todas as citações deste filósofo têm por base a edição, organizada por H. Kimmerle,
Hermeneutik, 2.a edição, melhorada e ampliada, Carl Winter, Heidelberg 1974.
Para uma análise abrangente da discussão entre Gadamer e Habermas, cf. o ensaio
de D. Misgeld, “Discourse and conversation: the theory of communicative compe-
tence and hermeneutics in the light of the debate between Habermas and Gadamer”,
in Cultural hermeneutics, 4 (1977), D. Reidel Publ. Co., Dorderecht, Holanda. E
para a ampliação do debate, a totalidade dos artigos que forma Hermeneutik und
ídeologiekritik, Suhrkamp Verlag, Frankfurt a/M. 1971.
Especificamente sobre a terceira parte de Wahrheit und Methode, cf. de P. Fruchon,
“Herméneutique, langage et ontologie”, in Archives de philosophie, t. 36, cad. 4
(out.-dez. 1973), t. 37, cad. 2 (abril-junho 1974), t. 37, cad. 3 (julho-set. 1974), t
37, cad. 4 (out.-dez. 1974).
De Wolfgang Iser, há hoje em português as traduções de Der Art des Lesens (1976),
O ato da leitura, dois tomos, tradução de Johannes Kretschmer, Editora 34, São
Paulo (1996 e 1999), Das Fiktive und das Imaginâre. Literarischer Anthropologie
(1991), O fictício e o imaginário. Perspectivas de uma antropologia literária, tra­
dução de Johannes Kretschmer, EDUERJ, Rio de Janeiro (1996). Sobre o autor,
cf. o simpósio Teoria da ficção. Indagações à obra de Wolfgang Iser, J. C. de Castro
Rocha (org.), EDUERJ, Rio de Janeiro, 1999.
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Vernant, J.-P., 1972: “Ambigüité et renversement: sur la structure énigmatique ÜOedipe-
ro?\ in Mythe et tragédie en Grèce ancienne, Maspero, Paris.

9 5
c a p ít u l o 4 Literatura e história: desenvolvimento
das forças produtivas e autonomia da
arte. Sobre a substituição de premissas
estamentais na teoria da literatura
M A R T IN FO N TIU S

Do original “Produktivkraftentfaltung und Autonom ie der Kunst. Z ur Ablõsung stándischer


V oraussetzungen in der L ite ratu rth e o rie ”, in L iteratur im E pochenum bruch. F unktionen
europãiscber Literaturen im 18. und beginnenden 19. Jahrhundert (A Literatura na m udança
de épocas. Funções das literaturas européias no século X V III e começo do século XZX), org. de
G ünther Klotz, W infried. Schrõder e Peter Weber, Aufbau-Verlag, Berlin und W eimar, 1977.
As partes I a II.2 foram traduzidas por Peter N aum ann, da II.3 a V por H elena Floresta, a VI
p or Luiz Costa Lima, com revisão de H eidrun Krieger O linto. N ão incluím os nesta tradução
a parte VII do original. (N. do Org.)

9 7
São conhecidas as categorias estéticas, com as quais foi desenvolvida no séc.
XVIII a nova concepção, burguesa, de literatura. Contudo, autonomia e
originalidade, totalidade e gênio, organismo e criatividade, no passado pa­
lavras de ordem para batalhas ideológicas, já se transformaram há muito
em palavras claramente irritantes para uma análise materialista da literatu­
ra. Pois a partir do reconhecimento da impossibilidade de apreender as
realidades do séc. XX com a terminologia antiga, a partir do reconheci­
mento do abuso desenfreado da maioria destes termos por parte da indús­
tria cultural burguesa em geral e por parte do fascismo crescente em
particular, Benjamin e Brecht começaram nos anos 30 a proscrever conscien­
tem ente toda a terminologia estética tradicional. Ao programa de uma
“politização da arte”, que queria servir às lutas da classe operária, corres­
pondia a busca de conceitos fundamentais de uma nova teoria da arte, que
deveria refletir sobre esta funcionalização política da arte. Ao lado dos gran­
des ensaios de Benjamin sobre “O autor como produtor” e “A obra de arte
na época de sua reprodutibilidade técnica”, o “Processo dos três vinténs”
de Brecht representa talvez a tentativa mais im portante de derivar uma
concepção fundada no materialismo a partir da dissociação da práxis artís­
tica da teoria tradicional.
Brecht escreveu: “Arte é uma forma de comunicação humana e com isso
dependente dos fatores, que geralmente determinam a comunicação hu­
mana.”1 Daí resultou como tarefa principal a elaboração de uma teoria da
literatura a partir dos “fatores determinantes” do séc. XX: de uma teoria,
que estivesse a salvo do abuso dos inimigos do socialismo. A formulação
desta nova teoria em termos positivos parecia neste contexto mais urgente
do que a crítica da concepção antiga da arte. Por isso Brecht justificou a
tu I 2 C O S T A LIMA

soa posição e seu método no “Processo dos três vinténs” da seguinte ma­
neira: “Não é necessário dissolver em si e a partir dos seus próprios termos
esta concepção, à qual correspondem multas outras semelhantes, que pre­
cisamente constituem a visão de mundo aristotélico-medieval. E mais acer­
tado deixar esta dissolução a cargo do caminhar da realidade, não através
da simples espera, mas através de provocações da realidade por meio de
experimentos, através de moldagens mais visíveis do processo por melo da
aceleração e do resumo.”2
Aqui estão formuladas questões decisivas. Uma nova concepção da litera­
tura não surge simplesmente como resultado da destruição das teorias lite­
rárias tradicionais. Contrariando a análise espiritualista (geistesgeschichtlich)
da literatura, que parte até hoje da suposição de “uma dialética do con­
ceito”3 ou da suposição da lógica Interna da evolução das Idéias, o “Pro­
cesso dos três vinténs” é por assim dizer a peça didática (Lehrstück) que
exemplifica a evolução real da teorlzação sobre a literautra. Em Brecht as
novas idéias e os novos conceitos surgem a partir da reflexão sobre o
“caminhar da realidade”; diante disso a crítica das concepções literárias
tradicionais desempenha um papel secundário. A aparência de uma his­
tória autônom a da arte e da literatura não se pode configurar aqui. Se
isto vale para cada formação ideológica e para cada período, devemos fazer
aqui uma ressalva para os períodos históricos anteriores a M arx, na me­
dida em que neles se perfazia apenas inconscientemente o que acontece­
ria, mais tarde, conscientemente, no desenvolvimento da teoria socialista
da literatura. Somente uma visão de mundo materialista conduz ao se­
guinte postulado: “Devemos também perm itir a entrada abundante de
novos conceitos e assim multiplicar o material do pensamento, pois mul­
to depende da conservação demasiadamente obstinada do antigo m ate­
rial conceituai, que já não é mais capaz de apreender a realidade...”4
A afluência abundante de novo material conceituai no final do séc,
XVIII, já constatada há multo tempo, evidencia que também neste período
ocorreram tentativas de estabelecer novas funções da literatura a partir de
transformações sociais. No entanto, uma análise comparatista mostrará um
fenômeno estranho, que não surge a partir da ótica da historiografia nacio-
nal-literária: justamente com a passagem do séc. XVIII ao XIX, a França
cede a posição de liderança na área da teoria, mantida durante 150 anos, à
Alemanha. Será que a vitória da revolução burguesa não ensejou as condi­

1o o
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — ¥01- 1

ções mais favoráveis para uma substituição das premissas estamentais na


teoria da literatura?
Encontramos a orientação teórica, necessária para a resposta a esta
pergunta, no conceito de época. Com Isso aumenta o Interesse pelos p ro ­
cessos sociais abrangentes, paralelamente à periodização segundo revo­
luções políticas, que domina até hoje na historiografia literária marxista.
Ao lado da discussão de um fenômeno como a Revolução Francesa, urgia
ao final do séc. XVIII tomar posição diante dos processos Internacionais,
empenhados em desenvolver uma nova formação social, assim como diante
das tendências de transição do capitalismo de manufatura para o capita­
lismo Industrial, Identificáveis especialmente na Inglaterra. Urgia também
tom ar posição diante da ampliação do comércio de mercadorias, que já
tinha afetado consideravelmente a produção artística, Inclusive na Ale»
manha.
A simples tentativa de relacionar a história da estética e da teoria da
literatura no séc. XVIII com o desenvolvimento das forças produtivas mo­
difica substancialmente as nossas premissas teóricas, segundo as quais se
verifica “quase sempre uma forte influência direta da infra-estrutura so­
cial” apenas “nos pontos arquimédicos da evolução literária”, enquanto que
“na continuação da nova época (...) os impulsos Imediatos provenientes da
infra-estrutura são substituídos pela determinação apenas mediadora atra­
vés da vigência das formas e dos estilos literários.”5 Esta concepção, inte­
gralmente tributária do conceito político de revolução, exclui praticamente
do horizonte de investigações da ciência da literatura as profundas trans­
formações de uma parte das forças produtivas, cuja importância cresceu
cada vez mais desde o séc. XVIII. Pois uma das especificidades da técnica
está precisamente no fato de que as suas revoluções não ocorrem como
explosões, mas por meio do acúmulo paulatino de Inovações técnicas, se­
cundado pelo desaparecimento simultâneo de elementos da técnica anti­
ga.6A transição da técnica artesanal para a mecânica foi uma revolução deste
tipo, que se alastrou do último terço do séc. XVIII até os anos 70 do séc.
XIX. No entanto, seu caráter não-explosivo não altera em nada o fato de
que este fenômeno pouco espetacular tenha sido necessariamente refletido
pela teoria estética em um momento qualquer, no qual aas tempestades na
região das nuvens políticas” (Marx) não absorviam todas as atenções. A
técnica se caracteriza ainda por uma outra especificidade: enquanto parte

1o 1
LU I Z C O S T A LIMA

das forças produtivas, ela chega a estar numa determinada etapa em con­
tradição com as relações de produção dominantes; mas, diferentemente dos
outros fenômenos econômicos, a sua evolução não é interrom pida pela
sucessão das formações sociais, mas acelerada. Esta segunda especificidade
da técnica constitui, entre outros fenômenos, a base real para esta conti­
nuidade da reflexão teórica, à qual usualmente reservamos pouco espaço e
pouca im portância, em virtude dos critérios políticos em pregados na
periodização da história literária.
A abundância de investigações monográficas de cada uma das categorias
mencionadas no início não nos pode fazer esquecer que sabemos muito pou­
co sobre a sua relação oculta com o “caminhar da realidade” nesta época. A
razão deste desconhecimento está sobretudo no fato de que este tema até
agora quase nunca foi abordado. Enquanto a ciência burguesa da literatura
não se via obrigada a tematizar, além das suas fronteiras de disciplina especia­
lizada, as transformações ocorridas no processo de produção, a crítica mar­
xista aparentemente não teve tempo para uma releitura histórico-crítica da
concepção burguesa da literatura, com vistas ao seu material conceituai — e
isto na melhor das hipóteses, quando a crítica marxista reconhecia a impor­
tância deste temário. Assim Brecht subsumiu de maneira polêmica e primiti­
va a lógica aristotélica e a estética kantiana à visão de mundo da Idade Média,
numa atitude que poderia ser considerada por pessoas mal-intencionadas
como a realização do postulado benjaminiano do abandono da posição
contemplativa, própria do historismo. Ao mesmo tempo, Lukács, durante o
período da luta antifascista o grande antípoda de Brecht dentro do próprio
marxismo, continuava convencido da indelével potência revolucionária das
idéias centrais da estética burguesa. Lukács criticou a linha representada por
Brecht nos anos 30 pelo abandono radical dos “ideais” antigos; ele via ou
presumia uma queda recente em um apego naturalista à “experiência imediata
da vida média no capitalismo”, ele não via o fundamento histórico-dialético
do estilo brechtiano. Daí a sua conclusão: “... diante da representação de um
mundo tal, todas as categorias da estética antiga perdem efetivamente o seu
sentido”.7 Sem distinguir entre as obras e as teorias segundo o merecimento
da sua inclusão na herança cultural do proletariado, Lukács via na releitura
abrangente da história do pensmento estético, feita segundo critérios histó­
ricos e materialistas, a tarefa central da história da literatura, na medida em
que os grandes intelectuais do passado no fundo não teriam buscado outra

10 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

coisa senão o princípio do realismo, que deveria, naturalmente, ser liberado


dos seus “desvios idealistas ou mecânicos”. Esta convicção foi formulada
categoricamente por Lukács em 1946: “Assim podemos resumir a situação
da estética, da teoria da literatura e da história da literatura da seguinte
maneira: o marxismo eleva à esfera de conceitos clarificados aqueles princí­
pios fundamentais do trabalho criativo, que estão vivos nas obras dos maio­
res escritores e artistas há milhares de anos”.8
Hoje, quatro decênios após esta discussão sobre princípios, não pode­
mos afirmar que a pesquisa marxista chegou a um consenso com relação a
este problema. Muito pelo contrário, alguns dados indicam que esta contra­
dição nem foi conscientizada como necessitada de um esforço teórico de cla-
rificação.9
Assim a origem não desvelada das categorias e dos conceitos estéticos
desenvolvidos no séc. XVIII alimenta hoje ainda a visão idealista da literatu­
ra. E assim permanece a tarefa central de enfrentar esta visão com a dedução
destes conceitos a partir dos processos sociais básicos e desacreditar também
neste campo o idealismo. Fica, portanto, submetida ao debate a questão da
relação entre a evolução das teorias literárias e estéticas e a evolução das forças
produtivas.

II

OS MOMENTOS PRINCIPAIS DO PROCESSO ARTÍSTICO NA TEORIA ATÉ


A METADE DO SÉCULO XVIII

O reconhecimento do fato de que também na área da arte a produção e a


recepção devem ser, em princípio, analisadas em suas relações recíprocas não
é antigo. Por outro lado, o processo, que levou a produção e a recepção a
uma relação antagônica e que conduziu a este reconhecimento, igualmente
alcança mal duzentos anos de idade. Até este momento a história da teoria
da literatura se caracteriza por ser dominada sempre por um aspecto do pro­
cesso literário, sem no entanto apresentar uma tendência absolutizante, que
se expressou desde o fim do séc. XVIII na dogmática da estética da produ­
ção. Assim o princípio da imitação da natureza estava desde a Renascença no
centro de toda e qualquer reflexão poetológica, enquanto por outro lado o

10 3
LUIZ COSTA LIMA

momento do efeito da arte tinha importância apenas no contexto de certos


gêneros. O nome da poética clássica de modelos já mostra que a produção
artística ainda partia do pressuposto teórico de que a comparação de gran­
des obras de um gênero, de valor reconhecido, permitiria a formulação de
regras universalizantes e indicaria aos poetas o caminho para o seu trabalho
posterior. Assim não havia neste período espaço para uma supervalorização
da fantasia poética. O poeta conquistava o seu talento, assim como o artesão
aprendia as suas habilidades ou o homem erudito juntava os seus conheci­
mentos.
De maneira bem geral podemos dizer que regra, faculdade imaginativa
(Einbildungskraft) e gosto permaneceram no séc. XVIII como conceitos
fundamentais da discussão estética, com ajuda dos quais se refletia sobre as­
pectos específicos do fenômeno artístico. Se, portanto, compreendermos neste
sentido a doutrina da imitação com as suas regras como a categoria da rela­
ção com a realidade, o gosto como a categoria da recepção da arte e a ima­
ginação ou o gênio como a categoria das relações da arte com os seus
produtores, não ficaremos confundidos com as longas disputas acadêmicas
acerca dos traços fundamentais do Iluminismo, pois o Racionalismo, o
Sensualismo e a Estética do Gênio se ocuparam, a partir dos seus interesses,
com aspectos bem peculiares. Muito pelo contrário, a tarefa a ser cumprida
consiste em identificar as causas da absolutização da produção artística, que
surgiu em fins do séc. XVIII primeiramente na Alemanha e à qual seriam
sacrificados em grande escala e por muito tempo os momentos da relação
com a realidade e da recepção da arte.
No decurso do trabalho, o nosso método será determinado pelo propó­
sito de examinar as transformações ocorridas na esfera da produção com vistas
ao seu significado para a teoria literária: o tema central das nossas conside­
rações será a evolução da teoria da arte, na qual o processo econômico deve­
ria influir em primeira etapa, para através desta mediação se tornar relevante
também para a teoria da literatura. Consideraremos, pois, estas três catego­
rias na ordem de seqüência na qual elas se tomaram historicamente influen­
tes na França, i. e., imitação, gosto e gênio, na convicção de que a explicitação
das categorias deverá mostrar também o significado crescente de premissas
burguesas.

1 04
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — ¥01. 1

IMITAÇÃO

Numa retrospectiva em direção à concepção de literatura anterior ao séc.


XVIII, existente desde a Renascença, devemos primeiro esclarecer em mal­
entendido. Naturalmente, esta concepção de literatura era, enquanto mate*
rial preexistente do pensamento, o ponto de partida para o séc. XVIII. Uma
análise superficial poderia fazer crer que o período entre 1450 e 1750, do*
minado pela assim chamada poética aristotélica de regras, se caracterizaria
pelo dogmatismo mais estéril que se poderia imaginar. “Durante três sécu­
los” — assim René Wellek resume esta teoria amplamente difundida — “eram
repetidas, discutidas, impressas em manuais e decoradas as opiniões defen­
didas por Aristóteles e Horácio — e no entanto a criação propriamente ar­
tística evoluiu por caminhos independentes (...). Estilos literários sofreram
nestes três séculos transformações profundas, mas nunca se formulava uma
teoria nova ou diferente da teoria antiga.”10 Deve-se admitir, no entanto, que
uma das características das poéticas neo-aristotélicas está no fato de que a
discussão das necessidades espirituais da própria época sempre se fazia atra*
vés de comentários novos sobre o texto redescoberto da poética aristotélica,
Sob a influência do prestígio enorme devotado a Aristóteles como à suma
autoridade filosófica da Idade Média, a assimilação da sua poética se tornou
a via régia da reflexão teórica sobre a literatura. Daí advém a dificuldade
adicional, própria deste período, de identificar neste material de pensamen­
to, conservado por piedade histórica, aqueles critérios nos quais se encon­
tram formulados os interesses determinantes da evolução literária da época,
critérios que teriam justificado o esforço do comentário.
À fascinação exercida pelo texto aristotélico se torna compreensível ape­
nas se a idéia fundamental, a imitação da natureza, for relacionada à evolução
emancipatória das artes plásticas, iniciada com a Renascença. Até esta época a
pintura e a escultura tinham sido consideradas, tanto na Antigüidade quanto
na Idade Média, atividades artesanais socialmente inferiores. A literatura me*
dieval sobre a arte se restringia por isso a indicações práticas ou coleções de
receitas, que pertenciam integralmente ao universo mental das corporações. A
libertação destes vínculos, a ascensão dos pintores e escultores do estamento
de artesãos anônimos ao prestígio social dos poetas e dos homens eruditos,
revolucionou o sistema doutrinário tradicional: instituiu-se, ao lado da for­
mação prática na oficina, a formação teórica na escola, e a imitação dos mes­
tres e dos modelos foi substituída pelo princípio da imitação da natureza.

10 5
LU I Z C O S T A LIMA

Com esta virada naturalista, que foi refletida conscientemente pela pri­
meira vez por Leonardo da Vinci e que deveria também institucionalizar-se
na fundação de academias de pintura, foi proscrita a tradição dos ateliers e
nasceu a teoria da arte. Necessitava-se de uma teoria como bússola, para ini­
ciar a exploração da paisagem imensa da natureza. Necessitava-se da subor­
dinação da arte à ciência, para obter cópias do mundo real; esta subordinação
era incompatível com a representação de um mundo transcendente e com a
correspondente concepção simbólica da arte, própria da Idade Média. A
quebra do monopólio do ensino, antes em poder das corporações, é neste
sentido um processo que tornou necessária a teoria da arte. Surgira também
a necessidade de desenvolver um “ensino acadêmico, no qual novos ideais
igualmente severos, mas fundamentados pela ciência, ocupavam o lugar dos
velhos modelos, agora desacreditados”.11
Esta evolução, aqui apenas esboçada, descrita por Albert Dresdner em
uma obra até hoje fundamental,12 atingiu também a literatura, na medida em
que a concepção global da arte sofria modificações. Se a Antigüidade e a Idade
Média não tinham visto nenhum parentesco entre as artes plásticas e a poe­
sia, surgira agora uma situação na qual duas disciplinas artísticas se encon­
travam lado a lado, sendo que a mais jovem procurava naturalmente o apoio
da mais velha. Este apoio foi encontrado sobretudo no princípio da imitação
da natureza, enquanto que a fórmula horaciana “ut pictura poesis”, doravante
muito citada, legitimava a ligação espiritual entre as duas disciplinas.
O período da coexistência pacífica de teoria da arte e teoria da poesia,
cuja influência recíproca foi significativa sobretudo no séc. XVIII, sem que
se chegasse à formulação de um sistema estético abrangente, deveria sofrer
testes de resistência muito severos durante o desenvolvimento do absolutis-
mo. Na França se viu, melhor do que em qualquer outro lugar, quão bons
instrumentos da política estatal poderiam ser as academias. Assim Colbert, o
onipotente ministro de Luís XIV, dava à arte a função de “aumentar a glória
do rei, o esplendor da corte e o bem-estar do Estado”.13 Com esta finalidade
foram fundadas, subvencionadas e regulamentadas as academias. Arnold
Hauser descreveu de maneira inesquecível esta política do Estado absolutis-
ta na França: “Todas as leis e regras da estética classicista lembram parágra­
fos do código penal; a competência policial das academias faz parte das regras,
para garantir a sua vigência. A coação, que caracteriza a vida artística na Fran­
ça, expressa-se mais diretamente nestas academias. A união de todas as for­
ças disponíveis, a supressão de toda e qualquer manifestação individual, a
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOl. 1

glorificação superlativa da idéia do Estado, encarnada na pessoa do rei: estas


são as tarefas impostas às academias. O governo deseja dissolver as relações
pessoais dos artistas com o público e subordiná-los diretamente ao Estado.
Ele acabará tanto com o mecenato privado quanto com o fomento de inte­
resses e esforços privados pelos artistas e escritores. Artistas e escritores de­
verão, a partir de agora, servir unicamente ao Estado; e as academias terão o
encargo de educá-los e incentivá-los para esta tarefa.”14 Compreende-se que
as diferenças entre o modo de produção literário e artístico deveriam tor­
nar-se visíveis a partir do momento em que a centralização da produção ar­
tística por intermédio da real Manufacture des GobelitiSy fundada em 1662,
levou a uma padronização da produção artística, que não podia ser alcançada
nem de longe pela poesia das regras. Da mesma maneira compreende-se que
condições tão repressivas provocavam uma insatisfação crescente entre os
artistas e o público aristocrático, que se manifestava mais facilmente na poé­
tica do que na teoria da arte. A válvula de escape desta insatisfação era a
importância maior dada por um lado ao aspecto subjetivo da produção poé­
tica, por outro lado ao público enquanto órgão do efeito artístico a ser de­
terminado. Assim, as reflexões sobre imaginação e gosto contêm, a partir dos
anos de 1670, alusões indisfarçáveis de protesto contra o monopólio estatal
e a ditadura artística, cuja função social não é reconhecível em etiquetas do
tipo £irracionalista\”15

GOSTO

São claramente políticas as condições nas quais se deu na França o “golpe de


estado do sensualismo”16 na estética e nas quais surgiu a teoria do gosto. O
descalabro do regime despótico do rei-sol depois da derrota militar da Fran­
ça, infligida pelas nações aliadas na Guerra da Sucessão Espanhola, não cau­
sou apenas uma mudança de regime, por ocasião da morte do rei em 1715.
O início da época da regência equivaleu a uma “liquidação sistemática do
absolutismo”.17A introdução do sensualismo na discussão estética desta época,
realizada na França em 1719 pelas “Reflexões críticas sobre a poesia e a pin­
tura” (“Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture”) do abade Du
Bos assinalava apenas o fim do sistema absolutista também nesta área e a
restituição do público aristocrático e urbano a seus antigos direitos. A pro­
clamação da faculdade de sentimento do público como a verdadeira soberana

1 0 7
LUI Z COSTA LIMA

no reino da arte não tinha por fim desapropriar intelectualmente uma mino­
ria exclusiva no interesse de uma numerosa classe de burgueses; ela visava
impedir o retorno do Estado à prática do monopólio artístico. E Du Bos não
era mais do que coerente ao criticar nesta empresa todos os pontos de parti­
da para uma justificação teórica do antigo sistema. A possibilidade de utili­
zar para a mania da regulamentação, própria do Estado absolutista, a obsessão
pelas regras dos eruditos humanistas de formação neo-aristotélica era tão
patente e a dignificação das regras artísticas pela filosofia racionalista da his­
tória tão perigosa, que ambas tinham que sofrer críticas. A apreciação racio­
nal da arte ficava, assim, subordinada em princípio ao juízo de gosto, que ela
deveria explicar apenas ex post. Nesta medida condenava-se aqui não ape­
nas o privilégio da cultura e o saber humanista como pré-requisitos para um
posicionamento competente em questões de valoração estética; tampouco
se colocava apenas a percepção sensível no centro da discussão. Mostrava-
se, simultaneamente, que a arte e a literatura tinham voltado ao domínio da
sociedade, dos salões de Paris. Encerrara-se a época do protecionismo esta­
tal na área da arte; a relação do mecenato privado tornara-se novamente a
forma dominante da subvenção social para os artistas plásticos e os literatos.
Ora, a fruição de obras das belas-artes era de fato um dos elementos mais
importantes da “arte de viver” dos nobres na corte francesa, os quais tinham
sido obrigados pela monarquia absoluta a um estilo de vida representativo.
Mas uma coisa tinha sido negada ao “aluno da arte”, ao “estamento dotado
do privilégio de apenas fruir a vida”:18 a elaboração de uma teoria que
nobilitasse a própria vida cotidiana. Esta necessidade foi satisfeita pela esté­
tica sensualista com a sua “lógica do hedonismo”.19 Na medida em que ela
precisava recorrer, para tal fim, ao estilo mais abstrato de pensamento da
ideologia burguesa, surgiu a possibilidade de uma interpretação e de um efeito
democráticos, que se difundiram em larga escala e muito além das fronteiras
francesas depois da metade do século.
A natureza bifronte da estética sensualista se evidencia plenamente se
levarmos em consideração a análise por Marx da “filosofia do prazer”, de­
senvolvida no séc. XVIII na França: “A filosofia do prazer surgiu nos tempos
mais recentes com a decadência do feudalismo e a transformação da nobreza
feudal rural na nobreza alegre e esbanjadora da corte, ocorrida durante a
monarquia absoluta. A filosofia do prazer tem nesta nobreza ainda mais a
forma de uma visão ingênua e direta da vida, expressa nas memórias, nos
poemas, nos romances etc. Ela se torna filosofia propriamente dita apenas

108
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TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL 1 ------- - —

com alguns escritores da burguesia revolucionária, que por um lado partici­


pavam da cultura e da vida da nobreza cortesã e por outro lado compartilha­
vam a visão mais universal (allgemeinere Anschauungsweise) da burguesia,
decorrente das condições mais universais desta classe. Assim ela foi aceita
pelas duas classes, embora a partir de perspectivas bem diferentes. Se a no­
breza ainda limitava esta linguagem exclusivamente ao seu estamento e às
suas condições de vida, a burguesia universalizava-a e endereçava-a indistin­
tamente a todos os indivíduos, de sorte que ela abstraía das condições de
vida destes indivíduos e transformava assim a teoria do prazer em uma dou­
trina moralista insossa e hipócrita.”20
Este brilhante esboço do pensamento hedonista na França — a evolução
da poesia ligeira dos Chardieu, La Fare, La Chapelle, escrita para os círculos
libertinos da nobreza cortesã de Luís XIV, até os materialistas do séc. XVIII,
até a famigerada teoria do prazer de La Mettrie, protegido por Frederico II,
e até as idéias de Helvétius — certamente não pode ser aplicado sem mais
nem menos ao nascimento da estética. Pois para tal o sensualismo e o
hedonismo são demasiado diferentes, em que pesem as tendências materia­
listas comuns. Mesmo assim, a análise de Marx permanece importante por
uma razão metodológica. A contradição entre o postulado universalmente
humano da burguesia e as “condições de vida” reais dos indivíduos, contra­
dição reforçada na exposição de Marx, caracteriza também a estética sensua­
lista e explicita-se no decorrer do século nas antinomias, que aparecerão na
teoria estética no momento em que a abstração da natureza sensível, ineren­
te a cada indivíduo, não se coaduna, enquanto base da competência e juízo
estético, com a práxis da vida literária. Mais importante é ainda lembrar a
transformação qualitativa operada pela transmissão da idéia do prazer para
a ideologia burguesa. Du Bos coloca analogamente toda a problemática em
termos antropológicos ao ligar o gosto expressamente à natureza sensível do
homem. Parece que não se pergunta mais pela forma adequada de recepção
das obras de arte (que depende de certas premissas culturais e, com isso,
sociais), mas pela faculdade do sentimento, que é naturalmente inerente a
cada homem e que é suposta pela ideologia burguesa como premissa geral da
recepção e do efeito da arte.
A substituição de premissas estamentais na teoria da recepção se inicia
portanto não de maneira consciente, mas por meio de mediações, pela vira­
da psicológica. A força de atração, que parte da estética, nova disciplina filo­
sófica em rápida evolução no séc. XVIII, é determinada substancialmente pela

1o 9
LUI Z COSTA LIMA

possibilidade de alimentar a discussão em tom o da arte com esta “visão mais


universal” da psicologia.
Du Bos podia basear-se em trabalhos anteriores, realizados na Inglater»
ra. O sensualismo de Locke era a base da liderança da sua obra na Europa.
No entanto, a aplicação da pesquisa sistemática de Locke (sobre a importân­
cia do conhecimento sensorial no processo global do conhecimento) ao campo
da arte foi dificultada pelas tradições puritanas do século XVII, vigentes na
Inglaterra. Enquanto Hutcheson, cuja primeira obra “Sobre a origem das
nossas Idéias do belo e do virtuoso” (.Inquiry into the original o fo u r ideas o f
beauty and virtue) apareceu poucos anos depois (1725), se distanciava mui­
to da idéia básica do sensualismo, que continha a rejeição de todos os prin­
cípios inatos, o Essay concerning human understanding de Locke veio para
os franceses, também na discussão em torno da arte, “como que por enco­
menda do outro lado do canal” e “foi recebido entusiasticamente como um
hóspede ansiosamente esperado”.21

GÊNIO

Diferentemente do conceito de gosto, ao qual a Revolução Francesa tirou a


base social de função mais importante e que desaparece de fato no séc. XIX
do vocabulário crítico,22 o conceito de gênio conservou até hoje uma parte
da glória recebida no séc. XVIII. Isto nos faz perguntar pela função básica
que ele passou a desempenhar nesta época.
O conceito de gênio desempenhou um papel importante, se bem que
transitório, durante o fortalecimento da autoconsciência burguesa na sua luta
contra a autoconsciência estamental da aristocracia. Na fase da dissolução
do mecenato, o orgulho que tinham das próprias obras os “homens de gê­
nio”, como se passou a dizer desde a segunda metade do século, tornou-se
ao mesmo tem po denúncia de uma posição social obtida por herança.
Condillac esclarece esta atitude: “Seu nome não remonta aos séculos passa­
dos, mas se impõe aos que ainda estão por vir. Esta é a diferença entre o
grande homem e o gênio.”23
No conceito de gênio, “a idéia da criação por um sujeito transcendental
cedeu lugar a outra Idéia empírica, do artista como produtor”.24 Isto não deve
ser entendido apenas como “oposição burguesa”25 contra a ideologia abso-
lutista feudal. Essa mudança é expressão também de uma delimitação entre

11o
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

os produtores de arte e as massas que produzem, que a partir do capital trans­


formou os artesãos em operários. Ao processo ideológico de atribuir ao tra­
balho artístico uma força criativa sobrenatural correspondeu o processo real
do capital de se transformar ele mesmo em proprietário maciço “das condi­
ções concretas de trabalho”26 das forças produtoras, cuja única propriedade
era sua própria força de trabalho. Com a Estética do Gênio — que não deve
ser confundida com o período dos gênios da literatura alemã cujo líder teó­
rico, Herder, recebeu com desprezo a “Filosofia (...) do gênio”27 — fica as­
sim emancipada a arte espiritual do trabalho manual, emancipação que se
introduzira na Renascença.
Por enquanto não há muita perspectiva de isolar essas relações do mate­
rial histórico-literário até agora elaborado. A pesquisa continua a partir da
suposição não verificada de que “a nova estética surgiu da poética e não da
música ou da pintura”.28 Partindo desta premissa fecha-se de antemão o ca­
minho para uma verdadeira explicação dos fenômenos, o que Alfred Bãumler
deixou indicado num livro inspirador com o significativo título de D a s
Irra tio n a litã tsp ro b lem in d er A esth etik u n d L ogik des t S. Jabrhunderts bis zu r
K ritik des U rteilskraft (O p ro b lem a da irracion alidade na estética e lógica do
século 18 até à crítica da faculdade de julgar). O certo é que a poética
normativa e a poética do padrão (Regei- u n d M u sterp o etik ) tiveram fim no
século XVIII. Repentinamente ficou abalada a convicção de que se podia
ensinar a fazer versos e foram depreciadas a experiência e a observação que,
normalmente, se passavam às gerações futuras. O modo de criação literária
ficou cada vez mais como expressão espontânea de uma personalidade artís­
tica individual, cuja obrigação de originalidade, de ter um cunho pessoal in­
confundível, desacreditava cada idéia de uma relação de aprendizado ou de
ensino. O gênio, este novo conceito central que absorve toda a determina­
ção da produção estética até o momento, surge como “capacidade produtiva
inata do artista”. Segundo Kant, consiste numa feliz relação entre imagina­
ção e razão que “não pode ser ensinada por ciência alguma nem aprendida,
por maior que seja o empenho e diligência”.29 A união entre saber, capacida­
de e talento, cuja ação conjunta, no século XVII, era tida como necessária
para a criação de uma obra de arte, foi destruída. Em face do talento natural,
a facilidade resultante de uma longa prática técnica e o conhecimento teóri­
co das regras das artes e das leis do belo perderam toda a importância.
Essa mudança decisiva na concepção dos produtores literários, designa­
da por Estética do Gênio ou da Expressão, foi sintetizada por Sainte-Beuve,

1 1 1
LUI Z COSTA LIMA

nas seguintes palavras mordazes: “Antigamente, da maneira como era com­


preendido, o gênio era algo assim como um reservatório de razão, envolto
em brilho (...). Hoje isto mudou. É de grande vantagem para alguém que
queira se fazer valer como gênio junto ao homem comum não ter muito bom
senso (...).”3° Mais tarde ainda, quando o conhecimento teórico foi suprimi­
do do conceito de produtor de arte, tornam o-nos conscientes de outra
conseqüência, ligada ao abandono da teoria da imitação: a incompatibilida­
de da nova concepção de arte com a idéia de um manejo técnico adquirido
em anos de prática junto a um mestre. Paul Valéry enfatizou essa contradi­
ção: “Acho digno de nota que uma época que pode ser classificada como tendo
feito da técnica seu senhor, quase um ídolo, que (...) não fala de outra coisa
além de controle, testes, standards, especializações e especialistas, no exercí­
cio da literatura e das belas-artes, pelo contrário, repele todas as amplamen­
te reconhecidas condições de comparação e todos os padrões. Porém, na
opinião dos críticos modernos, a arte está tão estreitamente ligada a uma extra­
vagante idéia de espontaneidade ou a uma espécie de espiritualismo revolu­
cionário, que uma obra é considerada pouco interessante quando não traz
em si algo de rebelde e revolucionário.”31
Quando Valéry estende a questão literária ao campo das outras artes, o
foco passa para a decisiva relação social da ascensão do gênio artístico no
século XVIII: o gênio se alça nessa época a um modelo de poder criativo dos
homens, na medida em que também o conceito de arte recebeu enorme in­
cremento. A proporção que as assim chamadas “artes mecânicas” se desen­
volveram como empreendimentos capitalistas, o conceito mais amplo de arte
perdeu a base com que se exprimia na França, Inglaterra e Alemanha a ínti­
ma relação entre trabalho manual e arte, ou seja, entre arte e técnica. Uma
prova evidente de que até o século XVIII arte e técnica cabiam juntas sob o
conceito comum de arte é fornecida pela comparação entre os registros lite­
rários da antiga história da técnica e os livros didáticos sobre as belas-artes,
que tinham os mesmos títulos: Schauplatz der Künste und Handwerker (O
p a lco das a rtes e d o s a rtesã o s)y W erkstãtte d er beutigen K ü n ste o d e r die neue
K u n sth isto rie (O ficin a s das a rte s m o d e rn a s ou a n o v a h istó ria da a r te ),
Handwerker und Künste in Tabellen (Artesãos e artes em tabelas ),32 o que pode
apenas significar que naquele tempo “o ensino específico da arte” (Benja­
min) ainda não se estabelecera. Enquanto as artes mecânicas caíram sob o
domínio do capital, as chamadas belas-artes — termo diferencial criado no
século XVII — avançaram pura e simplesmente para o sta tu s de “arte vetda-
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V O L. 1

deira” (Goethe). Com isto, rege-se a relação entre as “belas” e as “tecnoló­


gicas” artes pelas mesmas leis que determinam a relação entre artesanato
manual e a manufatura progressivamente dominante.33 Este processo foi des­
crito por Marx como “uma separação e independência recíprocas”.34 A ten­
dência nascente no século XVIII para separar radicalmente as “belas-artes”
do “trabalho manual artesanal” partiu, entretanto, de um processo real, que
vem a ser “a divisão do trabalho em segmentos dentro da manufatura”.35
Em O Capital há uma célebre análise dedicada à divisão de trabalho “no
interior de uma fábrica”, análise esta que apresenta como algo histórica e
qualitativamente novo a entrada em cena dos “operários de linha de monta­
gem (Teilarbeiter) que fazem apenas um segmento do produto final”. Como
este tipo de operário não produz mercadoria, como a produzia o artesão
independente, mas sim “o conjunto produzido pelos operários é que se trans­
forma em mercadoria”,36 temos aí o fator que vai imprimir o caráter capita­
lista à manufatura. O que ficou porém registrado pelos contemporâneos foi
menos a relação com o capital que a patente atrofia do trabalho manual na
manufatura, “cuja arte não exige nenhum esforço mental”.37
Lendo Ferguson, que foi o primeiro a discutir detalhadamente o proble­
ma da divisão das artes no seu An Essay on the history o f civil society (1767)
(Ensaio sobre a história da sociedade civil), reconhece-se claramente a sepa­
ração entre trabalho manual e intelectual: “Muitos ofícios não exigem ne­
nhuma habilitação intelectual. Serão tanto melhor sucedidos quanto mais
reduzidos forem o sentimento e a razão; a ignorância é a mãe da operosidade,
assim como da superstição. O raciocínio e a fantasia estão sujeitos a erro,
mas o hábito de mover a mão ou o pé independe de ambos. Assim, prospe­
ram sobretudo as manufaturas onde o intelecto é menos necessário e onde as
fábricas podem ser consideradas como uma máquina, sem maiores apelos à
fantasia, máquinas estas cujas peças são homens.”38 Ferguson opõe a esta
atrofia do trabalhador de manufatura não apenas o aparentemente correlativo
aumento do saber em outros ofícios, como o “mestre de fabricação” (que
pode ter “ganho” o que aquele “perdeu”), mas examina também o problema
da subordinação como conseqüência dessa divisão, através da qual aquelas
formas de trabalho que pareciam preservar o sentido da dignidade humana
adquiriram uma atração especial. “As profissões que exigem mais preparo e
conhecimento, que provêm do exercício intelectual e do amor à perfeição,
que trazem aplauso e ganhos, colocam o artista em uma classe mais alta, avi-
zinhando-o daquela classe cujos representantes são tidos como entes supe­

1 13
LUIZ COSTA LIMA

riores porque não estão presos a nada, seguem suas inclinações e escolhem
na sociedade os papéis indicados por seus corações ou. destinados pelo cha­
mado do povo”.39 Embora a palavra “artista” ainda esteja sendo usada no
sentido de artesão, já se sente a polarização entre “habilidade artística” e “gê­
nio”. A concentração maciça de “ignorância” e “hábito” mecânico de um
lado causa ema demonstração acentuada de “conhecimento”, “exercício in­
telectual” e “amor à perfeição” do outro lado, pois acenam ao artista com a
promessa de ascensão social Para a maioria dos produtores, em contrapartida,
“a divisão de trabalho serve, (...) em ultima instância, para romper os laços
da sociedade, para impor formas vazias e regras de destreza em lugar da
genialidade, e para retirar os indivíduos do cenário de observação de suas
atividades”/ 0 isto é, para aliená-los dos acontecimentos públicos.
A contradição que Ferguson percebeu com a “divisão das artes” e que
Marx atribuiu à oposição entre capital e “força de trabalho combinada”41
teve uma importância decisiva para o novo sentido do conceito de gênio no
século XVIII. Forster, cujas virtudes revolucionárias obscureceram injusta­
mente seu valor quanto às discussões estéticas no classicismo alemão, cons­
tatou no final do século uma tendência básica da época, a “anulação da
individualidade”, tanto na esfera política como ea produção, e por meio disso
estabelece uma relação com o novo conceito. Escreve ele em 1791: “Não se
pode negar que começa a surgir um mecanismo anulador do bom senso e do
coração, que se adentra em todos os setores da vida. Através da pura forma
das leis espera-se tornar dispensáveis todos os suportes da moralidade e criar
à força uma virtude civil por meio de palavras áridas. Já se fundam até mes­
mo novas constituições sobre teorias imaginadas (...). E também evidente que
progredimos nas artes mecânicas e permanecemos atrasados nas outras. As
primeiras só têm a ganhar com o desenvolvimento da razão, as outras reti­
ram todo o seu valor da individualidade do mestre, de seu caráter e da ple­
nitude de sua vida que flui diretamente dos sentidos para as obras, através de
seu poder criativo. A anulação da individualidade é a tendência inevitável de
uma época que, com suas formas determinadas, tudo regula e restringe.
Quando as regras se multiplicam, surge nas pessoas uma uniformidade
escravizante, apequenante; a mediocridade e o vazio imperam em obras
modestas, feitas sob receita.”42
De maneira igualmente resoluta, Karl Philipp Moritz adota a “individua­
lidade” como critério decisivo para distinguir uma verdadeira obra de arte
da produção do mero artífice industrial. Lutando contra a moda de ordenar

1 1 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V O L 1

as artes em classes, através das quais o aspecto da valorização estética está


sendo posto em perigo, será atribuída uma decisiva força comprobatória à
idéia da reprodutibilidade técnica da obra de arte, idéia esta ligada ao nome
de Walter Benjamin, ainda que como indício de algo inimaginável: “Como
se uma obra da mente, uma vez produzida em caráter único, pudesse ser
comparada a qualquer engenho mecânico, que pode ser reproduzido segun­
do regras dadas, e pudesse vir a se tornar um novo ramo industrial. Pois,
basicamente, cada produto do espírito já é algo por si mesmo individual, cujo
próprio valor consiste na sua individualidade e cuja classe onde se enquadra
é meramente casual.”43
Para constituir o novo conceito de arte, o fator decisivo é que o traba­
lho do artista não era integrável ao crescente modo de produção capitalis­
ta. E para os apenas aparentemente paradoxais critérios da concepção de
arte burguesa, o que se viu foi a arte ser eliminada das relações de produ­
ção sociais dominantes.44 O processo de separação das artes — algo que
aparece com regularidade no período de transição do capitalismo manufa-
tureiro para o capitalismo industrial — também deixou traços na idéia trans­
mitida de produtor de arte. “A separação entre potência intelectual de um
lado e trabalho manual do outro, juntamente com a transformação deste
último em supremacia do capital sobre o trabalho, consolidou-se no século
XIX. No processo de produção, se tal evento constitui-se em fator decisi­
vo, o destino do indivíduo, do trabalhador mecânico (...) desaparece ante
a ciência como um minúsculo apêndice.”45 Desta forma, o artista, que une
trabalho mental ao físico, deveria ser o modelo não fragmentado do ho­
mem total Enquanto a ciência abrange sistematicamente o processo de
produção e o decompõe em seus fatores constituintes, o processo de pro­
dução artística fica envolto em mistério, pois à medida que se rejeitou o
conhecimento das normas e regras artísticas, valorizou-se a criação espon­
tânea individual como um ídolo.
A ascensão do gênio artístico, cujos atos e obras pareciam escapar à esfe­
ra humana, correspondeu portanto a uma conceitualização da arte que perdeu
seu significado técnico e tornou-se o mais evoluído símbolo da humanidade.
O que levou Brecht a denominá-lo “altamente antiprático”, por conta de seu
caráter “antitécnico” e de sua “hostilidade mecânica”.46 Assim, a estética da
técnica, inerente à área de mediação entre processo econômico e teoria da
arte, caiu no vazio. Porém, se a oposição entre belas-artes e artes mecânicas
foi a constelação básica do pensamento estético daquele período, devemos

1 15
LU I 2 C O S T A LIMA

entender a hipertrofia do gênio — que consumiu todas as regras e experiências


tradicionais e, cheio de si, as apresentou como sua natureza própria — como
um reflexo partido da “Martirologia dos produtores”.

lli

A CODIFICAÇÃO DE BATTEUX DO SISTEMA DE BELAS-ARTES

Se quisermos examinar mais exatamente o desenvolvimento esboçado de


forma genérica nos exemplos da França e da Alemanha, cabe imediatamente
uma pergunta: Por que foi problematizada a divisão entre artes mecânicas e
belas-artes apenas no século XVIII, isto é, perto do fim do período manu-
fatureiro? A resposta deve ser buscada na formação retardada do sistema das
belas-artes. “As diversas artes são certamente tão antigas quanto a civiliza­
ção; a maneira de agrupá-las, porém, e de dar-lhes um lugar em nossas vidas
e na cultura é comparativamente recente.”47
Paul Oskar Kristeller provou como esse processo surgiu no Iluminismo
francês. Antes que dança, música, escultura, arquitetura, pintura e poesia
fossem integradas como um sistema conjunto de artes, teve de ser vencido o
preconceito contra o trabalho manual, que se originou na classe de donos de
escravos. Enquanto vigorava a tradição do sistema antigo das artes liberales,
que repousava no desprezo contra o trabalho manual, sinal de escravidão,
não se podia falar em uma teoria estética abrangente. Para uma tal teoria
faltavam ainda as premissas básicas à Renascença, que elevou as artes visuais
do estado de artes mecânicas para o de artes livres. O modo como Da Vinci
defendia a pintura como “ciência” deixa isto bem claro. Diz ele em Paragone:
“A astronomia e outros ramos da ciência abrangem também o trabalho ma­
nual embora se originem na mente, assim como a pintura, que nasce do espí­
rito do pintor mas que sem uma operação manual não pode ser executada.
Os princípios verdadeiros e científicos da pintura (...) só podem ser compreen­
didos pelo espírito e não abarcam operações manuais; são eles que perfazem
a ciência da pintura, que permanece no espírito dos observadores.”48
Ainda se estava muito distante de uma relação de igualdade social entre
a desde sempre valorizada poesia e as artes figurativas, relação de igualdade
esta que possibilitou e até exigiu a construção de uma teoria estética. Somente

116
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

no século XVII é que os primeiros grandes êxitos científicos, provenientes


da ligação entre teoria e prática, tornaram a ideologia do desprezo pelo tra­
balho manual intolerável. A substituição do velho sistema de instrução pelos
partidários dos modernos naquela antiga luta francesa acarretou uma clara
diferenciação entre ciências e belas-artes, cujo desenvolvimento teria neces­
sariamente outras leis que não os mensuráveis progressos científicos. Com o
aparecimento do ensaio Les Beaux arts réduits à un même príncipe, de 1746,
foi enfim codificado o sistema das artes como é discutido esteticamente até
nosso século, isto é, até o aparecimento dos novos media.
Mesmo que Batteux tenha ficado malvisto na Alemanha porque neste país,
com raras exceções, não se pôde ou não se quis entender corretamente o
conceito de imitação, seu livro foi de fundamental importância, tanto na
França quanto na Alemanha. Quando Diderot repetidamente desenvolve sua
própria concepção sobre o conflito em um livro que, na Alemanha, ficou
conhecido — se bem que mal compreendido — por todos, de Lessing a
Goethe, passando por Mendelssohn e Herder, seus efeitos não deixam dúvi­
das. Batteux deve este êxito à tentativa de construir uma teoria da arte na
qual não se sente mais o primado da poesia, ou de qualquer outra das artes,
porque do desconcertante emaranhado de regras é pinçado um único prin­
cípio — a imitação da abela natureza”. Com isso, ele não tinha em mente
uma metafísica da arte e sim o processo de transformação da realidade em
um modelo interno, que o “gênio”, o artista criador, imagina em seu traba­
lho. O que era pouco usual e causou estranheza especialmente entre os artis­
tas foi a nova metodologia de se abstrair das particularidades das diversas
artes para poder formular as leis gerais da arte. O fato de ter reconhecido
isto como tarefa da teoria assegura a Batteux um lugar na história da estética.
O ponto de partida de suas considerações, que aqui só puderam ser apre­
ciadas sob o aspecto da separação entre artes mecânicas e belas-artes, é a
suposição de que toda arte surge da tentativa de preservar, isto é, de tornar
mais fácil a vida do homem; ou seja, de uma necessidade social. A formação
de diferentes formas de arte segue o progresso da história da humanidade.
Após as artes da “necessidade”, desenvolveram-se as artes do “conforto”, às
quais se seguiram finalmente as artes da “graça”, do “belo”. O fundamento
intencional do trabalho de Batteux não foi essa seqüência histórica falsa e
superficialmente esboçada, que na Alemanha foi criticada como “pagã”,49 mas
sim um simples esquema funcional das artes de seu tempo. Enquanto as artes
mecânicas beneficiavam a vida de toda a sociedade, as belas-artes serviam

1 1 7
LUIZ COSTA LIMA

apenas para o prazer de uma camada privilegiada. Como a arquitetura e a


eloqüência não se enquadram nesse esquema de utilidade ou prazer, consti­
tuem para Batteux um terceiro grupo de artes, no qual se unem os “objetivos
últimos” das artes mecânicas e belas: “As artes do primeiro tipo se utilizam
da natureza como ela é, apenas para uso do homem. As do terceiro tipo ser­
vem tanto à utilidade quanto à integração, mas voltam-se sobretudo para esta
última finalidade. As belas-artes não fazem uso da natureza, imitam-na ape­
nas, cada uma à sua maneira.”50
Há três coisas notáveis nesta concepção. A poética do classicismo fran­
cês havia postulado como missão da poesia unir a utilidade ao prazer: “O
objetivo da poesia é ser útil; atinge-se, porém, tal objetivo por meio do pra­
zer” (Chapelain).51 Como Batteux aplicou à poesia — cujo fundamento filo­
sófico ele inicialmente visava — o caráter geral de arte, rompeu-se a relação
funcional bidimensional. A comparação com a “utilidade” da construção de
navios, mineração e outras artes mecânicas fez desaparecer o aspecto utilitá­
rio das belas-artes e transformou o prazer estético em seu marco distintivo.
O preço pago por essa estética foi a renúncia à função educativa da arte que
até então, na frase “plaire et instruire” estava ligada à poesia. Perante esta
fundamentação das belas-artes, significa pouco que Batteux, tratando a poe­
sia como forma de arte, fale de sua missão moral. O pensamento sistemático
não é anulado; ao contrário, pelo próprio fato de Batteux eliminar a poesia
didática (Lehrgedicht) do campo das belas-artes, pôs em ação um desenvol­
vimento antididático de grandes conseqüências.
Do mesmo princípio metódico inexato provém o caráter atécnico que
Batteux atribui às belas-artes. Comparado com o sentido de “natureza” en­
quanto matéria-prima para as artes mecânicas (sob a forma de madeira, me­
tal etc.), pode parecer que “as belas-artes (...) não fazem uso da natureza”.
Na verdade, não há nenhuma forma de arte que possa atingir seus fins e
apresentar seja lá o que for sem algum manuseio da natureza. “Para criar uma
obra, a arte se serve sempre de dispositivos mecânicos, técnicos, materiais,
de um aparelho, de uma máquina; e o faz tão ostensivamente que justamen­
te este meio, esta materialidade do meio de expressão poderia ser sua marca
essencial.”52
Mesmo as mais primitivas formas de canto e poesia pressupõem a passa­
gem do grito animal à fala. Se, de um ponto de vista tecnológico, a fala é “a
mais fugidia das tecnologias”,53 “contém, por outra parte, a relação ativa entre
homem e natureza”.54

118
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

A função ideológica à qual deve ser atribuída a codificação das belas-ar­


tes não se deixa facilmente expressar como denominador homogêneo. A
princípio, a substituição terminológica do sistema das artes liberais pelo das
belas-artes representou um nítido progresso. O preconceito aristocrático
contra a atividade manual não é mais levado em conta, a ocupação com os
trabalhos artísticos torna-se acessível à comunidade. Mas, ao mesmo tempo,
a constituição da concepção burguesa de arte também representa o fim das
abertas e desmascaradas relações de domínio e servidão no pensamento es­
tético. Aquilo que ainda se podia ver no par conceituai “artes livres e artes
mecânicas”, a oposição social entre as nobres possibilidades de ocupação dos
dominadores e as necessidades vitais dos oprimidos foi eliminado na antíte­
se “belas-artes e artes mecânicas”. O que até então significava uma diferen­
ciação imediata de classe social parece agora objetivado, volatilizado enquanto
mera diferença nas profissões burguesas, que estão abertas a cada indivíduo,
conforme seu talento.

IV

A REVALORIZAÇÃO DAS ARTES MECÂNICAS PELOS ENCICLOPEDISTAS E O


NASCIMENTO DA TECNOLOGIA NA ALEMANHA

Por importante que tenha sido o trabalho de Batteux como um passo na di­
reção de uma estética enquanto “disciplina científica autônoma”,55 mais im­
portante ainda que uma teoria das belas-artes foi, de um ponto de vista
burguês, uma teoria das artes mecbanicae que possibilitou uma visão sobre
as classes e as tendências no desenvolvimento das forças produtivas. Ao lado
da elaboração de uma visão de mundo materialista assim como de teorias
políticas e econômicas com as quais os fundamentos ideológicos da ordem
feudal puderam ser destruídos, esta foi a tarefa à qual se dedicaram prepon­
derantemente os enciclopedistas.
Quando começaram seu trabalho em 1746, que trouxe à luz a primeira
teoria das belas-artes, o desprezo tradicional pelas artes mecânicas, mantido
por Batteux, representava apenas um anacronismo grotesco. Contudo não
houve uma mudança radical com a substituição de artes “livres” por artes
“belas”, já que se mantinha o interesse prazeroso da aristocracia feudal.

119
LUI Z COSTA LIMA

Oposto a isso, o programa dos enciclopedistas — um balanço do saber em


todos os ramos — não deixou margem a uma separação privilegiada das be­
las-artes. “Todo o conteúdo da Enciclopédia”, diz o prospecto redigido por
Diderot em 1750, “pode ser reunido em grupos maiores: as ciências, as artes
liberais e as artes mecânicas.” De antemão, são colocadas em um vasto con­
junto de atividades sociais as “artes liberais — termo que precisaria de mui­
tas páginas para ser explicado —” que força a outra avaliação completamente
diferente. Examinando estes três grupos desde uma perspectiva de seu tem­
po, Diderot chega a esta conclusão: “Escreveu-se demais sobre as ciências
(Metafísica e Teologia), pouco sobre as artes liberais e quase nada sobre as
mecânicas.”56
O editor-chefe de todo o empreendimento, que tomou a si a descrição
das artes, não dissimulou o fato de que considerava, juntamente com Bacon,
a “teoria das artes mecânicas como o mais importante ramo da verdadeira
Filosofia”. Contudo, a diferença entre artes liberais e mecânicas se justifica
na medida em que o fator diferencial venha a ser o uso da cabeça ou da mão,
na sua produção. Infundada e funesta é a inerente ideologia dominante do
desprezo por aqueles que trabalham com as mãos, apoiada na argumentação
de que “se ocupar contínua e ininterruptamente com experimentos e objeti­
vos materiais significa um aviltamento do espírito e que a prática, e até mes­
mo o estudo das artes mecânicas, seria degradante porque a investigação destes
objetos é penosa, a reflexão sobre eles comezinha, sua apresentação difícil,
sua troca degradante, seu número inesgotável e seu valor diminuto”.57 Con­
tra isso opõe-se Diderot, em seus artigos “Arte” e “Enciclopédia”: “Se a his­
tória das artes não é nada mais que a história da natureza aplicada”,58 devem
ser reconhecidas como as mais confiáveis fontes de bem-estar social o desen­
volvimento da habilidade material e da manufatura, que pelo menos se igua­
lam na balança com as ciências e com as belas-artes. “Coloquem na balança,
de um lado, as reais vantagens das mais avançadas ciências e das refinadas
artes e, do outro, as reais vantagens das artes mecânicas. Verificarão que o
valor que lhes foi atribuído não corresponde corretamente às vantagens e
que os homens que quiseram nos convencer de que éramos felizes foram mais
louvados que aqueles que nos fizeram realmente felizes. Como são estranhos
nossos julgamentos! Incentivamos o homem a tornar-se útil e desprezamos o
homem útil.”59
O desejo central dos enciclopedistas pode ser deduzido diretamente da
impraticabilidade dessa maneira de ver as coisas. Diderot expressa-o conscien­

1 2 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL, 1

temente quando diz que a Enciclopédia é uma obra que só poderia ser exe­
cutada por “uma sociedade de cientistas e trabalhadores manuais”.60 Isto é,
por uma sociedade que não existia em parte alguma nas academias ou nas
corporações científicas da época. Mostrar a fecundação mútua entre teoria e
prática, “promover o apoio recíproco entre arte e ciência”,61 são postulados
nos quais a posição teórica fundamental dos enciclopedistas está contida.
Também no célebre “Díscours préliminaire” de d’Alembert, encontra-se no
centro a mesma exigência, de tal modo que aqui, “pela primeira vez na his­
tória da filosofia, se faz perceptível um cântico de louvor à prática da produ­
ção social, fato único até então”.62
Se a maioria dos trabalhadores manuais se entregou a seus ofícios força­
dos unicamente pela necessidade e os executou instintivamente, existe po­
rém na teoria a maior premência em esclarecê-los, em fornecer-lhes a
consciência de suas atividades e acabar com o secular estado de “mudez da
técnica”.63 Também para os teóricos será vantajosa a união com os que pra­
ticam, que facilitará seu confronto com a natureza. Diderot concentrou de
modo cristalino esta concepção em 1754, no ensaio De Vinterprétation de la
nature: “Parece-me que uns têm muitas ferramentas e poucas idéias e os ou­
tros, muitas idéias e nenhuma ferramenta. No interesse da verdade, seria bom
que os pensadores tratassem finalmente de se unir aos executores (...) para
que todos os nossos esforços conjuntos viessem a ser usados para combater
as resistências da natureza, e que, nesta reunião de força, cada um pudesse
exercer seu papeh”64
O impacto dessa campanha manufatureira-capitalista convinha à obsole­
ta política mercantil estatal, juntamente com as idéias nacionalistas exclusi­
vistas a ela correspondentes. E nos representantes desta ideologia que os
enciclopedistas reconhecem seus maiores adversários. No intuito de justifi­
car o aparecimento do “colossal panfleto em trinta volumes” (Heine), era
necessária uma alternativa, encontrada e propagada pelos enciclopedistas na
idéia de Humanismo. Aos olhos dos adversários, o fato de tornar públicos
inventos, conhecimentos e indústrias nacionais chega a ser traição da pátria.
Diderot externou francamente suas considerações sobre este tema: “Quan­
do os ouvimos falar, poder-se-ia pensar que uma enciclopédia pronta, uma
compilação geral de conhecimentos técnicos, não deveria ser nada além de
um manuscrito bem guardado na biblioteca do rei, acessível apenas aos olhos
reais, mas não aos dos homens comuns: um livro para o Estado e não para o
povo.”65 Aludia ao fato irritante de que a Academia de Ciências de Paris re­

12 1
LUIZ COSTA LIMA

cebera do Estado, desde 1695, a incumbência de apresentar uma descrição


científica detalhada dos procedimentos técnicos, escrita e ilustrada, para tor­
nar públicos processos pouco conhecidos, mas especialmente adequados ao
bem-estar da nação, apresentação esta da qual após cinqüenta anos nenhum
volume fora ainda publicado. As pesquisas da Academia Real também não
eram dirigidas à publicação, com o fito de manter a eficiência das manufatu­
ras do rei. Esta relação é claramente expressa na introdução à volumosa tra­
dução alemã da Description des arts et métiers que apareceu rapidamente em
1761, incentivada pela concorrência da Enciclopédia. Escreve o tradutor
alemão, o economista Johann Heinrich Gottlieb: “E certo que os produtos
manufaturados franceses são valorizados pelos estrangeiros em virtude so­
bretudo da beleza e durabilidade de suas cores, cuja perfeição se deve exclu­
sivamente aos esforços da Academia, onde o aperfeiçoamento das cores foi
legalmente disposto em regulamentos do Governo.”66
A idéia mercantilista de que o florescimento de uma nação se dê à custa
da ruína de seus vizinhos contraria a convicção iluminista de igualdade da
natureza humana em todas as partes. Com a ira dos justos, Diderot procurou
diminuir a influência dos opositores mercantilistas da Enciclopédia, levando
seus pensamentos básicos às mais absurdas conseqüências: “Eles dizem: para
que divulgar os conhecimentos de uma nação, seus segredos, sua ciência, suas
artes, toda a sua sabedoria? Pois não são estas coisas às quais a nação deve
em parte a superioridade sobre suas rivais vizinhas? Assim falam eles, ‘estes
nobres homens públicos’ e só lhes faltava acrescentar: Não seria desejável
que pudéssemos espalhar a escuridão sobre os outros países, ao invés de
esclarecê-los, e mergulhar a terra toda na barbárie, para estarmos mais cer­
tos de poder dominá-la? Eles não estão bem conscientes de que habitam
apenas um pequeno ponto no planeta e que só vivem por um breve momen­
to. A este ponto e a este momento sacrificam a felicidade dos séculos vin­
douros e de toda a espécie.”67
Diderot sabia que os limitados horizontes destes homens, a quem cha­
mou “nobres homens públicos” querendo dizer na verdade “homens vis”,
não poderiam ser fundamentalmente alargados: “A palavra humanidade pa­
rece não ter sentido para eles.”68 Além disso, Diderot sabia que a política
mercantilista do governo contrariava os interesses da burguesia manufatureira
francesa, que para ele personificava “o povo”. Na realidade, Diderot dedica­
va seus artigos técnicos às altamente qualificadas empresas artesanais priva­
das, que se destacavam por uma acentuada divisão de trabalho.
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOl. 1

As perspectivas da humanidade se abriram no Ilumínísmo francês à me­


dida que no país se traçavam novos caminhos teóricos ao liberalismo econô­
mico. Com a fusão imediata da Enciclopédia na luta de classes, Diderot foi
forçado a colocar o progresso e a felicidade da espécie humana como o valor
mais alto, acima das idéias nacionalistas. Observando mais de perto a “men­
talidade” da burguesia, comprova-se aqui também a validade da afirmação
encontrada na Ideologia alemã que dizia serem subjacentes às teorias dos
burgueses franceses “interesses materiais e uma certa Vontade’ determinada
pelas relações materiais de produção”.69
A importância que pode ser atribuída às belas-artes dentro de tal con­
cepção devia ser inicialmente de natureza restritiva. A relatividade e a parcia­
lidade da arte correspondiam ao primado da ciência e da técnica, fato
fundamental de onde partiram os enciclopedistas. Seria errado encobrir ou
até mesmo negar este estado de coisas. As artes mecânicas possuíam para
Diderot uma atração tal, que só muito mais tarde as belas-artes puderam exibir.
Daí a sempre repetida afirmação provocadora de que as artes, tal como as
ciências, também possuem “suas metafísicas”, com o que a técnica e especial­
mente o processo de descobertas técnicas deveriam ter o mesmo valor filo­
sófico que a ciência. Daí também a idéia original de apresentar uma “carta
de reparação” às privilegiadas belas-artes, em nome das artes mecânicas, que
não precisava excluir os conflitos intensivos com os problemas da estética,
mas que continha uma clara avaliação no sentido da subordinação. Se nos
livrarmos dos preconceitos estéticos, não aparece como tão estranho o fato
de um pensador materialista ter refletido sobre a arte inicialmente sob seu
aspecto tecnológico e só posteriormente sob o aspecto estético. Temos de
nos lembrar que naquele momento o processo de separação das artes ainda
estava em andamento, que a diferença conceituai entre o artesão e o artista
ainda não fora completada. O sintomático pronunciamento contido nesta
explanação deixa-se claramente formular para a burguesia alemã do século
XVIII, segundo a famosa frase de Mehring sobre a função de “pista de cor­
rida das artes”: para a burguesia francesa da época, a arte era apenas um dos
setores de interesse e nem sequer era o principal.
Se há a possibilidade de dizer de forma genérica que a reserva de Diderot
para com as belas-artes reflete, em essência, a função social da época, deve-
se então acrescentar uma significativa restrição, no que diz respeito à litera­
tura. Enquanto a pintura se preparava para entrar em cena como uma
instituição firme, deixando de ser uma arte sob encomenda para produzir

1 2 3
LUI Z COSTA LIMA

para um mercado próprio, com a ajuda de exposições em salões de arte, a ar­


quitetura e a escultura, a música e a ópera continuavam a depender das neces­
sidades da aristocracia. A literatura ocupou uma posição especial sendo na época
ainda conceituada como “bela ciência”»Com suas diversas formas de prosa e
poesia, constituía-se em fator decisivo da emancipação da burguesia, já no
período inicial do Iluminismo. Diderot postulou a “poética do gênero”, baseado
no quadro burguês do homem, universalmente estabelecido. Com isto ele en­
tendia, num sentido mais amplo, um sistema de regras que permitisse um bom
trabalho em qualquer gênero. As idéias de regra e de gênio estão aqui ainda
relacionadas a uma mútua complementação, onde o peso maior recai in­
dubitavelmente sobre uma metodologia elaborada da criação artística, em de­
trimento do trabalho genial individualizado. “O gênio não conhece as regras,
porém jamais se desvia delas em suas grandes obras. A filosofia só conhece as
regras apoiadas na natureza eterna e imutável das coisas. Coube ao século pas­
sado fornecer os modelos, cabe ao nosso estabelecer as regras.”70
Se bem que Diderot seja dado como um dos primeiros representantes da
concepção irracionalista de gênio, e o verbete “Gênio” da Enciclopédia, tes­
temunha desta concepção, na versão divulgada da moderna edição francesa,
dê a seus escritos estéticos uma posição de destaque — apesar de comprova-
damente não serem de sua autoria —, passou-se a dedicar mais atenção ao
conceito de regra. A linha de pensamento da passagem citada, que faz parte
do importante artigo “Encyclopédie”, estava determinada por dois fatores
decisivos. Diderot só estava consciente de um deles, da limitação da poética
normativa. A medida que esta era considerada como modelo insuperável para
a maior parte das obras antigas, era também retrospectivamente orientada e
insuficiente para as novas condições do presente. Contrário a isso, Diderot
representa o ponto de vista relativamente tecnológico defendido pelo parti­
do dos modernos, na querela dos antigos. Se os antigos forem considerados
como o ápice da perfeição e insuperáveis, o desenvolvimento de uma arte
contemporânea ficará inibido, pois todas as novas gerações ficarão reduzi­
das ao estado da imitação. A exigência de romper com o privilégio da Anti­
güidade na literatura é também fundamentada por Diderot com o progresso
do conhecimento de sua época. “Estava tardando a vinda de uma era judi-
ciosa, onde as regras não mais fossem buscadas nos escritores e sim na natureza
e que reconhecesse o falso e o verdadeiro nas muitas poéticas arbitrárias.”71
A consciência de um mundo historicamente mudado e as novas idéias psico­
lógicas sobre a maneira de operar da arte fundam as delimitações da poética
TEORIA DA LITERATU RA EM SUAS FONTES — VOL. 1

normativa tradicional. Porém a determinação da concepção de arte através


do conceito de trabalho, um dos fatores imanentes ao conceito de regra,
permanece irrefletido por Diderot. Se a “description des arts” servisse para
dar início a uma época de busca metódica de descobertas no campo técnico,
não deveria haver nada de estranho no estabelecimento de regras para en­
contrar uma solução feliz na criação artística. O esforço por uma conscien­
tização na esfera do trabalho impediu sobretudo que as artes proclamassem
uma teoria irracional da criação. Neste contexto, fica também explicado por
que Diderot, mais tarde, em seu programa de reforma teatral, reafirmou a
importância das regras.
Se era válido, por um lado, para vencer a atitude instintiva, “automáti­
ca”, dos trabalhadores interpenetrar a prática com uma teoria desenvolvida
a partir da prática, e popularizar os avanços tecnológicos, era, entretanto,
impedida a formulação da questão: “Deve-se ou não unificar as idéias ex­
pressas no verbete ‘A rte’ (...) cujos princípios fundamentais passam a ser de­
signados por ‘Estética’?”72 Essa questão sobre o posicionamento do valor
estético deturpa a verdadeira função do verbete “Arte” que Diderot, assim
como o “Discours préliminaire” de d’Alembert, desejava que fosse o cartão
de visita da Enciclopédia. Ele perseguia tanto com este como com o verbete
“Enciclopédia” o objetivo oposto ■ —- revalorizar teoricam ente as artes
mechanicae pela “reparação” por parte das belas-artes. Refletindo sobre este
tema, aproximou o mundo do trabalho do mundo do espírito, quando diz,
em 1754, que mesmo o mais primitivo dos mecânicos (manouvriers), através
de uma longa experiência com o lado prático da ciência, desenvolve uma
“capacidade intuitiva” que tem o caráter da “inspiração”. Sarcástico, estabe­
lece: “Bastaria que eles se iludissem sobre essa capacidade intuitiva, como
Sócrates, para chamá-la de ‘demônio interno’.”73 Como se julgavam as coi­
sas em torno de Diderot, naquela época, aparece de forma especialmente
nítida no prefácio ao Journal étranger (1754). Neste prefácio, assinado por
seu amigo Grimm, Diderot é apostrofado como um “daqueles raros homens”
que sabem ler o futuro no presente, certamente por causa de sua “Interpre­
tação da natureza”. Se bem que Grimm fosse um correspondente literário
profissional de várias cortes européias, muito mais que um simples diletante,
dedica ao recém-fundado jornal a incumbência de levar adiante o desenvol­
vimento internacional das ciências “úteis”. Sem uma palavra de pesar sobre
a expulsão das belas-artes do centro do interesse público, afirma: “Até agora
estávamos inteiramente adstritos às artes agradáveis e às ciências abstratas.

1 2 5
LUI Z COSTA LIMA

Agora surge o momento de entrarem em pauta as ciências úteis, a física,


química, história natural, filosofia aplicada, política, moral, a boa metafísica,
tão necessária em toda ciência; todas essas ramificações de um tronco co­
mum ocuparão em breve a mesma nação que hoje só parece pensar em pin­
tura, música e romance. Tempo virá em que a moda também exija do indivíduo
ser bem informado, observar, analisar e discutir os fatos da natureza, assim
como hoje se requer que ele conheça tudo o que diz respeito às artes agradá­
veis, que julgue uma poesia com sensibilidade, que possa falar de uma peça
de teatro.”74 O extraordinário alargamento do horizonte intelectual inclui
tão ostensívamentç uma crítica aguda à aristocracia que só o limitado entu­
siasmo pelas artes poderia fazer duvidar do caráter progressista dessa con­
cepção. Todos os desenvolvimentos literários burgueses devem mais cedo ou
mais tarde atravessar fases semelhantes de hostilidade à arte.
De um lado, é característico do desenvolvimento francês que tais ten­
dências tenham sido representadas enérgica e coletivamente por iluministas
ilustres como d’Alembert, Diderot e Grimm, enquanto manifestações cor­
respondentes na Alemanha só sejam encontradas esporadicamente em auto­
res obscuros. Assim Bertuch, quando entrou em 1783 para a redação do
Mercúrio Teutônico (Teutschen Merkur), até então dirigido unicamente por
Wieland, aponta como um dos motivos de sua decadência a mudança do
público, “que desde alguns anos perdera o interesse pela bela literatura para
sorver avidamente artigos estatísticos, mercantílistas, tecnológicos, econômi­
cos, filosófico-políticos e outros afins”.75 E no entanto, em 1785, já termina­
ra a fase voltada para as ciências naturais. Bertuch, o “espírito mercantilista”,
sai do Mercúrio, para grande alívio de Wieland. Em 1789, Campe informa à
Alemanha, em suas Cartas de Paris (Briefen aus Paris), sobre um traço essen­
cial do Iluminismo francês tardio, assim como de uma nova descoberta. Diz
ele sobre a preparação ideológica da Revolução: “Pois não havíamos perce­
bido que a atividade espiritual neste país tomara outra direção. Voltara-se
para a eloqüência política, em lugar da poesia; para a reflexão sobre os direi­
tos dos reis e dos súditos, em lugar do aprimoramento das belas ciências;
para a discussão de importantes questões de Estado, em lugar do prazer de ir
ao teatro (...). O povo foi esclarecido sobre seus direitos humanos e civis;
passou a conhecer seu interesse próprio.”76
De outro lado, é característico do percurso francês o interligamento com
uma teoria da utilidade idealizada, que corresponde “totalmente à posição
de oposição da burguesia francesa antes da Revolução”.77 Se se reduzem todas

12 6
TEORIA DA LITERATURA E M S U A S F ON T E S — VOL. 1

as relações a relações de utilidade ou de uso, enquanto ideologicamente


subsumidas às relações de exploração burguesas, então “aquilo que se desti­
na ao gozo exclusivo da classe privilegiada” passa a ser um fóssil da inutilida­
de. Por intermédio dessa função de liquidar teoricamente as classes feudais,
a teoria da utilidade dos iluministas franceses tinha um caráter revolucioná­
rio. Juntamente com a aristocracia, focalizou também a arte depreciada ou
teve de se ajustar à nova ideologia. À medida que a teoria da utilidade — que
nos artigos fisiocráticos da Enciclopédia começava a se transformar em ciên­
cia econômica — voltou-se para a arte, o aspecto educativo desta sofreu uma
radicalização.
Falava-se anteriormente, de modo geral, sobre a influência benéfica das
artes nos costumes. O motivo da não inclusão da utilidade da poesia devia-
se sobretudo àquelas situações em que os antiqüíssimos preconceitos da Igreja
católica contra o teatro inflamavam-se em ameaçadores ataques. Armados
com os critérios da utilidade, as exigências cresceram. Agora era possível
requerer efeitos da arte e da literatura, cujos padrões eram ditados pelos in­
teresses antifeudais. Fica bem claro que a França não era o local indicado
para o desenvolvimento de uma autonomia da arte, já que neste país o as­
pecto utilitário na discussão estética servia como o mais alto critério de ava­
liação. A tendência fundamental ativadora na qual se molda a produção
artística desse período pré-revolucionário correspondia à ênfase do caráter
instrumental da literatura, que jamais fora tão nítido e exposto. Para Mercier,
os critérios de julgamento são os efeitos sociais e o conteúdo ideológico, e
não o valor estético: “Não julgo ou aprecio os escritores pela dimensão maior
ou menor de seu gênio mas sim pelo efeito dramático, pelo proveito que se
pode tirar da moral de suas obras.”78
Examinando retrospectivamente o caráter literário específico do Ilumi-
nismo francês, Madame de Staél cunhou, em 1800, uma expressão muito
em voga desde então — “Literatura como arma”: “No tempo de Luís X iy a
maior perfeição era o objetivo primeiro do escritor, porém no século XVIII
vemos a literatura ganhar um caráter diferente. Ela não é mais apenas uma
arte e sim um meio, torna-se uma arma para o espírito do homem, que até
então tinha-se limitado a aprimorar e deleitar.”79

Na alemanha, temos de esperar até Heine e sua célebre tese do “fim do perío­
do de arte”, que irritou a Goethe em 1828, mas que encontrou algo seme­
lhante em um escritor igualmente importante na Enciclopédia: “Já passou

12 7
LUIZ COSTA LIMA

o tempo em que a vida espiritual (...) se desenvolvia sobretudo como arte e


literatura; o interesse está cada vez mais se deslocando para as questões da
ciência, da política e da economia (...); a idéia de arte não tem mais o lugar
que tinha no Classicismo e no Romantismo.”80
Sobre outras considerações repousa a tese de Hegel a respeito do fim da
arte, desenvolvida pouco antes nas conferências sobre a estética e que deve
ser vista contra o pano de fundo da “direção negativa” da filosofia iluminista
francesa, constatada nas Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie
(Conferências sobre a história da filosofia): esta seria “destruidora dos valores
positivos existentes, seria contra a religião, os costumes, a moral, as opiniões,
contra o mundo organizado e as instituições estatais (...), anticonstitucional
assim como antiartística”.81 Na verdade, Hegel marca também o momento
de transição histórica ao qual o capitalismo conduzira a arte, com seus nun­
ca vistos processos de socialização. Mas ele pensa em sua filosofia do espíri­
to absoluto quando diz que “a arte é a mais elevada maneira na qual a verdade
se produz”, o que não acontece nas absurdas e loucas ciências como a
tecnologia, a economia, a caça às borboletas e outras, cujo “extermínio” do
programa de ensino do Ginásio Humanístico da Baviera, em 1808, ele tivera
o prazer de constatar.82 Á convicção de que o estado do mundo em sua tota­
lidade não mais poderia ser apresentado pelos meios da arte aumentou aos
olhos de Hegel a importância da cultura grega, cuja aquisição via como pe­
nhor de todo novo florescer da arte e da ciência. Ás ciências da economia e
da tecnologia surgidas da nova feição do mundo lhe pareciam um mero
blablablá.
Seria confortável, porém enganoso, considerar a visão de Hegel como a
única maneira historicamente possível de julgar essas ciências numa Alema­
nha ainda atrasada. Na verdade, já naquela época não havia um só livro di­
dático de tecnologia que não apontasse o cientista de Gõttingen, Johann
Beckmann, como o fundador dessa nova disciplina, tanto no que concerne à
idéia quanto ao objeto. De fato, foi Beckmann, no livro A n le itu n g zu r Techno-
logie (M anual de tecn ologia), quem introduziu o novo termo, fazendo a se­
guinte observação: “Tive o atrevimento de usar tecnologia em lugar da
nomenclatura usual £hístória da arte5, o que é pelo menos tão inexato quan­
to o termo ‘história natural’ para designar a ciência da natureza. História da
arte pode significar o relato das descobertas, dos progressos e destinos de
uma arte ou artesanato; porém muito mais que isto é a tecnologia que ensina
clara, total e ordenadamente ao trabalhador o que fazer e por que fazê-lo.”83

1|8
TEORIA DA LITERATURA E M SUAS FONTES — V O L 1

O reconhecimento disso representou o momento histórico do fim da


relação de simbiose entre trabalho manual e técnica de um lado e as belas-
artes do outro, ainda que esta conseqüência não se fizesse imediatamente
visível e que Beckmann em Natürlichen Ordnungen derHandwerke u n d K ünste
(O rd em n atu ral d o s trabalh os m an u ais e das a rte s) dispusesse a fundição de
bombas e canhões lado a lado com a “fundição de esculturas e estátuas”. Pois
a idéia genial de uma ordem sistemática dos trabalhos manuais que Beckmann
retirara da bem-sucedida classificação botânica e zoológica de Lineu, permi­
tiu igualmente uma diferença de critério para os ofícios, assim como os estames
e ovários o haviam feito para as plantas. Com o mais promissor aspecto
tecnológico surge não a demarcação quanto à finalidade de uso, ao material
ou à divisão hierárquica no plano social, mas sim a classificação dos traba­
lhos de acordo com a “semelhança ou igualdade do procedimento técnico”.84
O que passou a ser pouco importante e até mesmo inibidor quanto à aplica­
ção da nova ciência foi a consideração do privilégio social, ligado à diferen­
ça entre aqueles que trabalham livremente e os que trabalham presos dentro
de uma fábrica. Da reflexão sobre a “igualdade e semelhança no procedi­
mento técnico” desenvolveu-se o princípio da nova ciência de que “cada
processo de produção tem em si e por si seu fator constituinte, sem conside­
rar a mão do homem”.85 Com o neologísmo “tecnologia”, “o ponto crítico
que representa os dez anos entre 1760 e 1770 na história da técnica”86 foi
levado a um conceito que abriu um abismo para as “belas-artes”.
Muitos séculos mais tarde, a partir de uma necessidade social totalmente
diferente, surgiu uma linha de desenvolvimento do trabalho manual que, para
as artes, começara na Renascença. Esta teoria renascentista das belas-artes sur­
giu quando pintura e escultura se libertaram dos grilhões das corporações e o
pensamento acadêmico se impôs em toda a Europa, a despeito de muita hos­
tilidade. Por sua vez, a teoria dos trabalhos manuais surgiu da função camerística
(kameralistichen Funktion) da economia alemã» O progresso técnico realizado
no estrangeiro pelo capital privado será posto a serviço do absolutismo feudal
dos pequenos estados. Não obstante, sucedeu que ao lado das “prescrições e
hábitos dos mestres”, que ensinavam como fazer uma mercadoria, a nova
tecnologia veio ordenar e analisar tão amplamente os procedimentos e aspec­
tos de todos os processos de trabalho que se tornou evidente, para o governo
da Alemanha, quais as indústrias que lhe faltavam e donde se poderia trazer
“os materiais necessários” e os “artistas”.87 Isso inaugurou o período em que a
ciência teve de se transformar em força produtiva.

12 9
LU I Z COSTA LIMA

Não são necessárias provas detalhadas para reconhecer a relação entre a nova
ciência da tecnologia e o programa dos enciclopedistas franceses. Apesar de
Beckmann, diferentemente dos franceses, não ter dedicado sua tecnologia aos
produtores e sim às necessidades da administração, mediante as seguintes pala­
vras — “Os trabalhadores manuais estão para os cameristas assim como os ser­
vos agrícolas para os donos de terras e os farmacêuticos para os médicos”88 —,
foi ele um dos que compreenderam o propósito central dos enciclopedistas. Na
Alemanha, a grande reserva contra a ideologia materialista dos franceses não
impediu que se reconhecesse a colossal empresa dos enciclopedistas em perce­
ber pela primeira vez a fundamental importância das desprezadas “artes mecâ­
nicas” para o desenvolvimento social e em propagar enfaticamente esta idéia.
Partes decisivas do “Discours préliminaire” de d5Alembert e do artigo pro-
gramático “Arte” de Diderot são citadas e, bem no espírito dos enciclopedistas,
aí aconselha ao cientista alemão o estudo da tecnologia, “mesmo que este cien­
tista esteja imbuído dos preconceitos das ciências especulativas”: “Pois os cien­
tistas ajudarão a soerguer as pequenas indústrias, sem as quais o Estado não pode
existir, mas que na Alemanha, por ignorância e preconceito, são ainda conside­
radas ocupações simples e pouco dignas, rebaixadas à classe dos mais miseráveis
e desfavorecidos povoados (...).”89
As ambiciosas expectativas de Beckmann não se deveriam realizar tão
rapidamente. Em face da gigantesca distância no campo técnico entre Ale­
manha e Inglaterra, ele se viu forçado a proferir trinta anos mais tarde a re­
signada afirmação: “A avaliação incorreta das pequenas indústrias pertence
à ordem do pecado original, que parece não ser capaz de purificação.”90

A POSIÇÃO ANTIENCICLOPEDISTA DE HERDER E A CRÍTICA


DO ABSOLUTISMO ALEMÃO

Para a legitimação da crítica de Beckmann à mentalidade dominante alemã,


presta-se mais o panfleto “Auch eine Philosophie zur Bildung der Menschheit”
(“Ainda uma filosofia para a educação da humanidade”) de Herder que a já
mencionada frase de Hegel, em 1776. Escrito contra o “espírito filosófico”
do século, o ataque de Herder é a mais representativa obra histórico-filosó-

1 30
TEORIA DA LI TE R ATU RA EM SUAS FONTES — VOL. 1

fica do período alemão do Sturm und Drang a conter as idéias e posições


fundamentais do programa poetológico de Herder. Além do mais pertence
aos inúmeros ataques aos enciclopedistas franceses e pode reivindicar o lu­
gar de honra nesta série, como o seu mais importante documento de repú­
dio. A existência de Beckmann prova aqui também que não nos devemos dar
por satisfeitos com a explicação da posição antienciclopedística de Herder
in puncto artes mechanicae, onde informa que a responsabilidade cabia às
diferenças histórico-nacionais. O que se reconhecia em Gõttingen também
deveria ser possível, em princípio, na vizinha Bückeburg. O atraso da base
material na Alemanha pode servir para a modificação da forma e aparência,
mas não para o domínio teórico do problema posto pelos enciclopedistas.
E difícil dizer se naquela época também houve escritores alemães que
se pronunciaram sobre a relação das artes, no sentido da E n c ic lo p é d ia .
Certa é apenas a relação entre nosso insatisfatório estágio de conhecimento
e uma uniformidade anacrônica na orientação das pesquisas alemãs, onde
“ainda predomina o preconceito de examinar todo o século XVIII sob a
perspectiva de uma preparação para o classicismo”.91 A absolutização da
assim chamada corrente literária Lessing — S tu rm und Drang — clas­
sicismo corresponde a uma perigosa simplificação da história da literatu­
ra alemã, na qual as contradições sociais só são, de certa forma, reconhecíveis
no fator temporal, como conseqüência de direções literárias, e não no
fator espacial, como contraste entre as posições e os interesses. Tendên­
cias absolutizantes análogas, que existiam nos textos histórico-literários
franceses no primeiro terço do nosso século, estão de há muito ultrapas­
sadas. Hoje ninguém mais pode se permitir avaliar o aparecimento do
dem ocrata revolucionário Rousseau como decorrência da retirada histó­
rica do ideólogo da alta burguesia, Voltaire. Tal procedim ento seria con­
siderado de indizível pobreza.
Lancemos um olhar rápido à posição desses dois renomados colabora­
dores da Enciclopédia, no referente às artes mecânicas, para podermos en­
tender melhor a posição de Herder. O contraste ideológico dos interesses
também aí é palpável.
Não seria de se esperar de Voltaire, figura dominante da literatura fran­
cesa no começo do Iluminismo, uma adesão irrestrita ao lema de reparação
da aguda hostilidade à arte representada pelo círculo de Diderot. Mas será
que o programa dos enciclopedistas não se deixava eficazmente vincular à
campanha contra uma visão do mundo metafísico-religiosa? Neste sentido,

13 1
LUI Z COSTA LIMA

lê-se no Dictionnaire philosophique: “Os inventores das artes mecânicas foram


muito mais úteis aos homens que os inventores do silogismo: aquele que
inventou o tear é infinitamente superior àquele que descobriu as idéias inatas.”
Mais sarcasticamente, exprime-se Voltaire no grande diálogo filosófico aO
A, B, C ”. Lê-se aí, sobre a teologia escolástica, cuja cidadela na época era a
Sorbonne: “Em várias artes ultrapassamos os gregos e os romanos; nesta
matéria somos (...) burros, essa escola de Bedlam (hospício londrino — M.F.)
é a que leva às honras e às riquezas. S. Tomás e S. Boaventura possuem altares,
os que inventaram o arado, o tear, a plaina e o serrote são desconhecidos.”92
Examinando claramente, os chamados instrumentos de produção não são
realizações da Idade Média e sim dos primórdios da humanidade; e Voltaire
sabia disso. Quase consternado, já escrevera na “Carta sobre Bacon”: Na pré-
história foram realizadas “as mais extraordinárias e úteis invenções”,93 que
não ficam longe em importância da bússola e da tipografia. Mas qual era o
prejuízo se o elogio das forças produtivas pôde ser usado para uma crítica
aos doctores ecchsiae? O desejo básico dos enciclopedistas estava preserva­
do , mesmo que se trocasse a crítica das belas-artes pela crítica da ideologia
da Igreja.
A tendência dos enciclopedistas aparece de forma radicalizada em
Rousseau, cujas idéias deveriam influenciar fortemente o jovem Herder. As­
sim diz ele em Emile: “Existe uma óbvia valorização das diferentes artes, que
está na razão inversa de sua verdadeira utilidade. Esta valorização se afirma
diretamente da inutilidade e isso deve ser assim. As artes mais úteis são as
que menos valem, já que o número dos trabalhadores se adapta às necessida­
des dos homens e o trabalho, necessário a todos, fica subordinado forçosa­
mente ao preço que os pobres podem pagar. Os presunçosos que se intitulam
artistas e não trabalhadores manuais, que trabalham para os ricos e ociosos,
dão a suas bagatelas um preço arbitrário. E como o valor deste trabalho inú­
til só existe na imaginação, seu preço vem exatamente deste valor, que, por
sua vez, é dado pelo que custa. O valor que os ricos lhe atribuem não pro­
vém de sua utilidade mas sim do fato de que os pobres não podem comprá-
lo.”94 Os produtos das belas-artes como símbolo de status e de classe — tal
fato corresponde integralmente à concepção histórica de Rousseau, segundo
a qual a história da humanidade se apresenta como opressão do homem pelo
homem desde os tempos do pastoreio. A posição crítica dos enciclopedistas
a respeito das belas-artes agravou-se em condenação global porque Rousseau
parte do caráter de classes da História e julga a partir do ponto de vista dos

13 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V OL. 1

exploradores para quem a arquitetura ainda não construíra palácios orna­


dos de pinturas e esculturas.
A relação imediata entre o processo de divisão das artes e o desenvolvi­
mento do pensamento econômico é evidente na argumentação de Rousseau.
Se traduzirmos o conceito de “utilidade” pelo “valor de uso”, do lado opos­
to estará não o valor de troca, mas algo assim como “valor de opinião”
(Proudhon). “Essa luta entre duas forças imensas, o uso e a opinião”,95 serve
de base ao “conceito conservador de uma economia freada” de Rousseau.96
No topo da hierarquia “natural” das artes estão as obras do agricultor, do
ferreiro e do marceneiro, pois correspondem ao ideal dos pequenos produ­
tores autárquicos, nos quais Rousseau via a premissa econômica para vencer
a desigualdade social. Por outro lado, as invenções e o progresso técnico —
tema dos enciclopedistas — são recusados como caminhos que aprofundam
a dependência e a desigualdade sociais: “Todos esses homens”, reflete o alu­
no ideal de Rousseau, Emile, “são estupidamente engenhosos: poder-se-ia
crer que têm medo que seus braços e dedos lhes sirvam para algo, tal a ma­
neira como inventam meios para poder dispensá-los. Para a prática de uma
única arte recorrem a mil outras e cada criador precisa de toda uma cidade a
seu dispor.”97
A crítica de Rousseau à ideologia dominante das artes não visa apenas à
análise da função social das belas-artes; contém também uma posição funda­
mental de repúdio à progressiva divisão de trabalho, de cujas conseqüências
deve ser resguardada sua sociedade ideal de cidadãos. O ideal anticapitalista
de democracia com relações econômicas não desenvolvidas, projetado por
Rousseau como modelo para a Suíça e não para a França, representa o pa­
drão que ele almeja também para o futuro da arte e da literatura. Herder
venerava em Rousseau o “santo e profeta”, mas nem a “lógica negativa” des­
te, de partir sempre do aspecto de classes da História, nem seu ideal de de­
mocracia, que Herder chama de “orgulhoso e altivo”,98 se constituíram em
ponto central de seu pensamento. Muito mais importante para ele, desde o
início, são as idéias de educação e formação, para as quais a teoria crítico-
cultural de Rousseau sobre o estado natural perdido do homem emprestou
os fundamentos histórico-filosóficos. Num esboço escrito em 1764/65,
Herder pergunta pelo método e “como preservar plenamente viva a força
natural do espírito humano, ou pelo menos de como poder usá-la”; em 1769
reforça seu propósito: “educar novamente a juventude da alma humana, oh
que trabalho!”99 No sentido de Rousseau, o conceito de natureza contido

i ? ?
LUI Z COSTA LIMA

nesse enunciado é tomado como saída histórico-genética do desenvolvimen­


to, o que está bem distante de sua análise detalhada sobre os processos so­
ciais contra a formulação antropológica.
De fato, Herder já havia estabelecido em Riga as linhas de seu interesse
maior, com a proposta de reduzir a filosofia à antropologia, onde visivel­
mente se apoia a rigidez da estrutura social alemã. Só pelas palavras-chaves
já se reconhecem os limites e a grandeza de seus questionamentos históricos:
aHistória da humanidade, não dos homens / não das regras / não das obras
da humanidade / mas sim da própria natureza —■núcleo psicológico — e o
grande cenário.”100A naturalidade com que são não apenas contrastados mas
também superiormente investidos os valores internos dos produtos e as rela­
ções externas, a formação espiritual do desenvolvimento político e material,
tudo isso indica uma linha central do pensamento idealista alemão que pode
ser seguido até o jovem Franz Mehring. Devemos a esta antropologização da
filosofia — vista por Herder como uma mudança copernicana — incontestá­
veis obras de arte e grandes projetos humanísticos. Mas não podemos deixar
de reconhecer que esta abstração das “regras” e “obras” em Herder fundava-
se num ponto de vista transcendental. A falta de uma determinação material
foi desta maneira incutida desde o berço à ideologia alemã da humanidade.
Vista sob este prisma, a ampla falta de receptividade para os conteúdos polí­
ticos e econômicos do tão intensamente receptivo mercado de idéias da Eu­
ropa ocidental é não apenas reflexo da enrijecida estrutura social alemã,
caracterizada por “estamentos (Stãnden) estanques e classes inatas”, como
também função desta orientação antropológica tenazmente perseguida por
Herder. É bem no espírito de Herder que, em 1786, Moritz diz (para citar
apenas um depoimento) que o enorme desenvolvimento das ciências natu­
rais devia ser visto como um caminho falso, que jamais atingiria o verdadei­
ro objetivo d e “aprimorar e elevar o espírito”: “Esqueceu-se o ponto central,
tão grande é o volume e a infinidade de detalhes impede a visão do resultado
como um todo. Assim, o estudo da história natural de um modo geral preju­
dicou o pensamento humano. O homem perdeu-se nos objetos e descuidou-
se da observação de sua própria existência subjetiva. Acostumou-se também
a tratar as ciências objetivamente e, com esta observação objetiva, toda a li­
teratura transformou-se num grande gabinete ‘natural’ onde se classifica e
compila, sem que nos aproximemos do verdadeiro objetivo dessas eternas
classificações e compilações.”101 Não faremos justiça a essa mudança antro­
pológica se a interpretarmos apenas como recusa da metafísica escolar e da

1 3 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOl. 1

tradição wolffiana»102 Pois, no mínimo, Herder visava também ao conceito


europeu-ocidental de filosofia, que “estava muito enfraquecido”, e dirige-se
aos enciclopedistas franceses: “Em lugar de palavras, apresente ao homem
ações; em vez de ler, deixe-o ver; em vez de querer formar sua cabeça, deixe-
o formar-se por conta própria e cuide apenas para que ele não se deforme.
As prescrições do método que fazem crer no mundo do trabalho manual não
passam de ilusão, que dá ao povo uma idéia falsa de um santo nome.” O
programa de educação que Rousseau projetou em É m ü e, no qual uma classe
toma o lugar do indivíduo e a relação entre educador e criança é transposta
para a sociedade, no sentido patriarcal, se transforma em fechadura ideoló­
gica com a qual o “povo” na Alemanha permanece trancado no status quo
de sua impotência: “Feliz é o povo ao qual a filosofia mostrou o caminho
onde se ensina a agir sem pensar, a ser virtuoso sem o saber, a ser cidadão
sem meditar sobre os princípios estatais, a ser cristão sem compreender a
metafísica teológica.”103 E evidente aqui a palavra do teólogo, que concebe o
povo como a classe da inocência à qual deve ser negada a fruição da árvore
da sabedoria; que, portanto, ainda parte de uma conceituação estamental do
povo.
Com esta interpretação do fragmento “como a filosofia pode-se tom ar
mais geral e útil para o bem do povo”, como Edith Braemer expôs, estão
claramente em desacordo as posições básicas do Sturm und Drang. Para se
objetar à “posição fundamental do anseio pela atividade”, bastaria constatar
que ela não se manifesta em 1769, como mostram as citações de 1764/65,
enquanto que, para se opor à posição central — “Tu filósofo e tu plebeu!
Uni-vos para serdes úteis” —, é preciso dizer que a “teoria filosófica (...) do
significado central das camadas inferiores do povo” só pode aparecer como
“algo absolutamente novo” quando se ignora a E n ciclopédia, juntamente com
o postulado de Diderot do ano de 1754, “de que os intelectuais finalmente
se dignem a unir-se aos que produzem”.104 Diferentemente da união entre
filosofia e trabalho manual na França, cujo resultado é a Enciclopédia, o pla­
no ambicioso de Herder apresenta um programa educativo unilateral, que
não deixa ao povo lugar para qualquer espécie de atividade. Não se pode
duvidar que o interesse do Sturm und Drang pelo povo começa a se esboçar
no fragmento mencionado — só que “união” e “solidariedade do povo” são
coisas bem diferentes.
Se nossos textos de história da literatura abandonarem o caminho de uma
concepção não dialética de progresso, onde se pôde ignorar os retrocessos e

1 3 5
LUI Z COSTA LIMA

qualificar o Iluminismo representado por Lessing como “uma preparação


necessária ao próximo período mais avançado”,105 como se o Sturm und Drang
alemão fosse uma nova formação social e não a manifestação artístico-ideo-
lógica de certas camadas pequeno-burguesas dentro dos partidos antifeudais,
teremos de dar mais atenção àquela direção que defendeu o conceito filosó­
fico iluminista contra a antropologização de Herder e contra a “revolução
científica”106 encetada por Kant. A filosofia popular mostrou freqüentemente
maior compreensão das relações essenciais da nova sociedade burguesa que
o “pensador original”. Teremos um quadro mais exato da significação do
Sturm und Drang e dos limites dos ideais do humanismo clássico assim que
for ultrapassada a altivez idealista face a estes homens; pesquisar a atividade
deles como “pioneiros da burguesia alemã” (Walter Benjamin) é ainda algo a
desejar da história da literatura.107
Se até agora praticamente não pudemos ver nem um pouco do aspec­
to antienciclopedista no escrito “Audi eine Philosophie zur Bildung der
M enschheit” (“Ainda uma filosofia para a educação da hum anidade”), tal
coisa não se deve ao fato de não devermos procurar tais ataques no jo­
vem Herder. Bem mais decisivo deveria ser o enorme prestígio do qual se
orgulhava “o extraordinário livro básico do historism o” na ciência histó­
rica alemã. M einecke, que cita elogiosam ente as opiniões de Rudolf
Stadelmann em seu Entstehung der Historismus (A origem do historismo),
julga o projeto de 1774 de H erder como “a mais alta síntese de seu pen­
samento histórico”. Nunca mais haveria H erder de fundir tão organica­
mente a “arte da sensibilidade estética, que desvenda para ele os segredos
da individualidade e do desenvolvimento”108 com a postulação de objeti­
vos éticos.
Por mais extraordinariamente bem construída que seja a visão histórico-
universal de Herder sobre o desenvolvimento da espécie — convincente es­
pecialmente na descrição da passagem do nomadismo dos habitantes do
Oriente para a agricultura no Egito e das nações comerciantes fenícias e gre­
gas para o domínio mundial dos romanos — face ao ceticismo de Voltaire
em Philosophie de Vhistoire de 1776, a não menção da índia, China, Austrá­
lia e América representa um retrocesso inevitável por conta do objetivo que
subjazia a tudo isso, a saber, demonstrar historicamente uma idéia unitária
cristã da salvação. Porém Herder elaborou para os tempos da Antigüidade
seu conceito metódico de “formação” — i. e., evidenciar a condição divina
da humanidade no que diz respeito ao processo histórico imanente — de
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL, 1

forma surpreendentemente abrangente, o que não se pode dizer das épocas


posteriores à Renascença. Neste ponto, a polêmica com os “filósofos de Pa­
ris” lhe arruma o conceito de tal modo que os fenômenos centrais da era
burguesa entram em cena de certo modo apenas como efeitos do princípio
maligno, do último refúgio da teologia.
Não sem conseqüências, tem início a observação dos tempos modernos
com uma indireta à introdução de d’Alembert à Enciclopédia, que finaliza
com um riso de escárnio ao artigo de fé “Encyclopédie” de Diderot.109 O
desprezo pelo trabalho manual herdado dos tempos feudais e escravocratas,
cujos paradoxos Diderot e d’Alembert acabavam de enunciar, atravessa como
uma linha vermelha o contraprojeto de Herder: “Quase sempre invenções
puramente mecânicas”, “nada além de simples mecânica”, “o novo artifício,
trabalho manual”, assim são mencionadas as grandes descobertas da Renas­
cença. “Mecânica” será a palavra de ordem que Herder alterna para denegrir
as realizações do século — “academias e sociedades agrícolas”, “dicionários
e filosofias”, “bibliotecas e salas de arte”, “conhecimento real” e “formação
do mundo” — porque todas essas coisas só representam para ele “engrena­
gens sem vida de uma enorme máquina não pensante”, isto é, elementos in­
tegrantes do Estado absolutista.110
A filosofia da história de Herder, que pretendia seguir os “passos divi­
nos”111 através da história universal, certamente entendia o Estado sem alma
do absolutismo como obra de Satã. A apresentação da Idade Média e dos
novos tempos levaram-no assim a um quadro de oposições radicais: lá, a “gran­
de cura de toda a espécie por meio de um movimento violento”, aqui apenas
“restos desolados” das forças então semeadas; lá, “a Europa habitada e
construída”, aqui o “doentio crescimento das cidades, esse abismo das for­
ças vitais da humanidade”; lá, por “falta de comércio e refinamento (...), a
humanidade simples — pureza e fertilidade no casamento, pobreza, faina e
aglomeração nos lares”, aqui “esgotamento devido à falta de fé, ao despotis­
mo e à voluptuosidade”.112 O quadro que Herder se fazia da Idade Média,
que viria a ser festejado pelo historismo alemão como marco de uma época,
foi conseguido graças à radical incompreensão do desenvolvimento burguês
desde a Renascença. Com o fito de humilhar sua época tão orgulhosa da
Razão, ele buscou e encontrou apenas “acaso, destino e devoção” na forma­
ção dos ofícios e das indústrias, do comércio e das relações entre as nações.
Afinal, as grandes mudanças dos tempos modernos são causadas apenas pela
“agudeza de duas ou três idéias mecânicas”.113

1 3 7
LUI Z COSTA LIMA

A tendência materialista que, apesar da fundamentação metafísica, liga-


se à concepção da história antiga de Herder, rompe-se assim no início da
Renascença. O aparelho de Estado absolutista, reconhecido por Ferguson
como produto do aumento dos interesses privados da sociedade burguesa,
transformar-se-á em inconcebível Leviatã. Contrariamente ao Herder das
Humanitàtsbriefe (Cartas humanísticas), que considera um progresso o de­
senvolvimento rumo a uma monarquia unitária, os olhos dos homens do
movimento Sturm und Drang se fecham para a relação entre desenvolvimen­
to das forças produtivas e desenvolvimento dos grandes Estados nacionais.
Os artigos redigidos por Diderot sobre trabalho manual na Enciclopédia, além
de serem chamados de altivos e ignorantes, são ainda considerados como
“improvisados num piscar d’olhos (...) Quem precisa trabalhar, tateando e
labutando na escuridão dos porões? Racionaliza-se! Em toda parte, dicioná­
rios e filosofias, sem se ter a mínima idéia do que fazer com a ferramenta que
se tem nas mãos (...)”.114
O julgamento do mundo especializado é outro, porém. Em uma resenha
dos registros publicados em 1780, dizia Beckmann: “No meio de incontáveis
erros grosseiros e coisas triviais, o dicionário de Diderot contém certamente
muitos tópicos importantes, dentre os quais os mais significativos vêm a ser
os artigos tecnológicos que, quero crer, não têm sido usados como mere­
cem.”115 Comparado à meta utópica de Herder de “restabelecer e reeducar a
juventude da alma humana”, o trabalho coletivo da época só poderia apare­
cer como o ápice de “uma cultura letrada”116 envelhecida, da qual, por isso
mesmo, não mais se podia esperar qualquer efeito vital, pois neste “monstro
literário”117 só se oferece um “intelecto esvaziado”.
Como na concepção vitalista de mundo da época de Herder “as novas
invenções, frias e mecânicas”,118 constituíam um corpo estranho, sua com­
preensão histórica repudiava a formação social nova, o Estado absoluto, criado
a partir de um processo de socialização capitalista, e que não se enquadrava
dentro de uma analogia orgânica.
Mais ou menos na mesma época em que Adam Smith transpôs o princí­
pio da divisão de trabalho do trabalho físico também para a esfera do traba­
lho intelectual e chamou a atenção para o fato de que o burguês médio deve
apenas uma parte mínima de “suas idéias sobre questões tais como religião,
moral e governo, sobre sua felicidade e a de seu país” à observação e refle­
xão próprias, que as “adquire da mesma maneira que compra sapatos e meias
(...), isto é, daqueles cuja profissão é produzi-los e lançá-los no mercado”;119
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V O L. 1

quando, mais ou menos nessa mesma época, Herder, em lugar disso, esboça
um programa nos moldes “daqueles tempos melhores, onde os homens não
falavam por palavras e sim recebiam múltiplas influências de atos, hábitos e
exemplos”,120 ainda assim não é suficiente acentuar apenas sua oposição à
teoria da sociedade burguesa de Smith. Pois Herder via esses tempos não
apenas no longínquo “mundo patriarcal” do Oriente, pintado com cores
idílicas. Ele tinha também consciência de que “a maioria das nações da Ter­
ra”121 nesta época ainda vivia no estágio infantil, onde língua, costumes e
grau de cultura estavam imersos naquela relação orgânica original com a arte
e a poesia que ele conhecia da Bíblia.
Visto desta perspectiva universal histórica, que também explica a dura
crítica ao comércio de escravos, seu conceito de poesia da natureza é algo
mais que uma mera recusa da cultura alemã de cunho aristocrático, prove­
niente da França. Contém de um lado o partidarism o dem ocrático de
H erder para com as nações oprimidas de todos os continentes, às quais
pertenciam também, sob alguns aspectos, os alemães do século XVIII, e,
por outro lado, tem o caráter de pôr em marcha uma tentativa de reno­
var a poesia contra as relações de comunicação desenvolvidas desde a
invenção da imprensa.
Com a frase epigramática “Poesia é literatura”, Herder faz um balanço
essencialmente negativo, em 1778, da via aberta por Gutenberg: “Agora o
poeta escreve, antes cantava; escreve devagar, para ser lido, antes recolhia
sons para fazer ressoar vivamente os corações. Agora devia escrever de modo
inteligível, vírgulas e pontos, rimas e períodos bem construídos, corretos e
medidos, para dizer o que antes era dito mil vezes melhor e mais expressiva­
mente pela voz viva. Em suma, agora havia de escrever por afeição seres e
obras clássicos e para a eternidade impressa em livros, quando o menestrel e
o bardo cantavam apenas para o momento presente, impressionando cora­
ções e memórias, em lugar de bibliotecas para os séculos vindouros”.122 Evi­
dentemente, Herder sabia que a “imprensa”, isto é, uma forma diferente de
produção trouxera, por um lado, muitas “coisas boas”; mas por outro, “rou­
bara à arte da declamação poética (...) muito de seu efeito vivo”.123 A medida
que a questão do efeito representava o princípio básico de seu pensamento
estético, achava-se ele do mesmo lado do Iluminismo. Porém, à medida que
se voltava para uma época já passada em relação ao “novo estado do mun­
do”,124 seu programa estético correspondia à sua crítica da posição enciclo­
pedista, frente às artes mecânicas e tem um caráter ambíguo.

13 9
LUI Z C O S T A L I M A

Os fatos até agora descritos unilateralmente como a posição antienci-


clopedista de Herder precisam de melhor explicação, pois são sintomáticos
quanto a vários eminentes pensadores das décadas seguintes, na Alemanha.
Que os assim chamados filósofos populares também demonstraram interes­
se pelos problemas econômico-tecnológicos, ao lado de especialistas como
Beckmann, proíbe qualquer derivação generalizada das relações alemães. Mas
já deveria ter havido condições favorecedoras nas relações de produção so­
ciais na Alemanha, para a evidente tendência a “uma visão puramente esté­
tica das coisas”, que Friedrich Schlegel em 1808 deplorava como sendo um
sinal incurável do desenvolvimento do jovem pensamento alemão.125 O cu­
nho específico desta estrutura econômica que consiste em sua imobilidade e
que resulta da “impotência de cada esfera da vida”126 emprestou poder a
apenas uma das esferas, o Estado absolutista e seus órgãos. Faltaram à Ale­
manha tanto a formação de interesses econômicos privados mais fortes quanto
a centralização política em um todo. O modo de existência enormemente
diversificado das esferas estatais teve de ser sentido como duplamente anor­
mal, à medida que, de um lado a economia política inglesa fornecia o mode­
lo de uma “ordem natural” da sociedade capitalista, e do outro, à medida
que os fortes empenhos dos estados particulares alemães para o desenvolvi­
mento econômico eram reconhecidos como um caminho contrário à econo­
mia estatal. Na Alemanha, os cameristas, para os quais foram criadas várias
cadeiras no século XVIII, ocuparam-se de questões econômicas, tendo em
vista os interesses econômicos do Estado.127
A verdadeira razão do evidente desconhecimento dos problemas eco­
nômicos e da cegueira para questões técnicas por parte de quase todos os
grandes escritores alemães da época deve ser vista na função social da ciên­
cia econômica e em sua integração ao mecanismo de Estado absolutista
feudal.
Tal como a veemência da crítica do Sturm und Drang ao absolutismo
correspondia a uma extensa cegueira face à importância das forças produti­
vas, assim a crítica do período seguinte ao Estado correspondeu a um extre­
mo individualismo, que se serviu da economia política inglesa para denunciar
a burocratização como mal social básico. Desta recepção na Alemanha da
teoria de Smith — após duzentos anos ainda uma terra incógnita da ciên­
cia,128 apesar de avaliada como premissa fundamental do desenvolvimento
da literatura e filosofia alemãs — vamos tentar nos aproximar, passando pelas
idéias liberais de 1790.
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V O L. 1

Justamente quando o Estado se preparava para assumir o governo de


“cada esfera da vida”, ameaçava tornar impossível em terras alemãs a auto­
nomia existente em outros lugares: “Agricultura, artesanato, indústrias de
qualquer tipo, comércio, arte e a própria ciência, tudo isto é conduzido e
recebe apoio do Estado.” Wilhelm von Humboldt apôs a esse diagnóstico
desiludido a exigência de uma delimitação precisa do alcance do Estado,
lição que aprendera com Smith. Transformou a base antropológica de
H erder em método histórico e em 1792 escreveu um artigo contra o cres­
cimento desmesurado do Estado: “Ideen zu einem Versuch, die Grenzen
der Wirksamkeit des Staates zu bestimmen” (“Idéias para a tentativa de uma
definição dos limites da eficácia do Estado”). Assim diz ele: “Entre homens
livres desenvolvem-se melhor todos os ofícios, florescem as artes e se am­
pliam as ciências.”129
Esboça-se assim a constelação geral sob a qual se desenvolveu a idéia de
autonomia. No fim do século XVIII, a demanda social de liberdade na Ale­
manha, cujo conteúdo instigaria a criação das relações de produção capita­
listas, só pode ser formulada contra a concorrência de um Estado onipotente.
O principal obstáculo ao desenvolvimento da “liberdade” da empresa priva­
da capitalista parece ser menos as estruturas sociais feudais, a exemplo dos
privilégios dos estamentos superiores, das corporações ou o mundo parasi­
tário das cortes, que o Estado ativo com seus “infindáveis decretos sobera­
nos”130 que se põe na posição de empresário universal. Consta laconicamente
dos Ansichten vom Niederrhein (Opiniões do baixo Reno): “As formas de go­
verno pecam contra a raça humana através do excesso de tudo que é positi­
vo.” E o democrata Forster, que viajara por todo o mundo, diferentemente
de Humboldt, inclinado a reformas liberais, não poupa do seu desprezo a
mesquinhez dos príncipes alemães que “metiam o nariz na panela de todos
os cidadãos”.131 O conceito negativo de Estado, típico da economia política
clássica, também aparece nitidamente em Forster, quando ele acrescenta à
guisa de esclarecimento: “Toda a arte consiste em que o governante saiba se
abster no momento certo do espalhafato destrutivo ao qual geralmente,
embora injustamente, chamam governar, e poupe a seu povo as elogiadas
artes governamentais de que alguns governantes se orgulham e querem fazer
parecer como a única alma da grande máquina estatal.” A pretensão da clas­
se burguesa à libertação da obsoleta prática econômica mercantilista de Es­
tado é esperada também na Alemanha à medida que “a concepção de interesse
econômico de Estado está sendo negada e se exige a mesma negação do poder

14 1
I t m COSTA U M A

governamental, isto é, que se limite apenas a vencer os obstáculos que se


interpõem à atividade livre, caprichosa, incondicional, de cada cidadão”.132
Por causa do atraso da base material na Alemanha, esta crítica ao Estado
proveniente da elaboração da economia política inglesa foi altamente preju­
dicada. Fica aí representada a visão social da classe burguesa revolucionária,
sem que tenha sido trazido à baila ou usado contra a máquina estatal o pon­
to de vista central do capital, a saber, a “diferenciação crítica entre trabalho
produtivo e trabalho improdutivo”.133 Face ao entrelaçamento mútuo entre
economia e Estado na Alemanha e ao subdesenvolvimento do setor econô­
mico privado, é claro que tal diferenciação não poderia ser corretamente
compreendida. O que faltava para tal compreensão não eram umas tantas
provas mas sim “a base decisiva de toda a economia burguesa”. Faltava tam­
bém ou estava presente apenas em estado rudimentar a função crítíco-ídeo-
lógica da economia inglesa, “aquela estranha desmistificação das funções, que
até então estavam cercadas de um halo de santidade”,134
Ficam evidentes os limites da crítica ao Absolutismo do Sturm und Drang
perante a idéia igualmente avançada da estrutura da nova sociedade burguesa
de Forster e Humboldt, também delineada por Beckmann. Sem um novo con­
ceito de Estado, fica faltando à sua crítica uma alternativa histórica e eles re­
caem sempre na tentação de defender as liberdades de estamento perante o
Poder absolutista, pois este só pode ser visto como uma fatalidade inconcebí­
vel Klinger define assim essas relações: “Todo Estado se constitui através de
algo chamado sistema, que os homens criaram para sua própria sobrevivência,
e este ‘algo’ tritura tudo que a ele se opõe. Fica então este ‘algo’ (...) como uma
canga imposta sobre os costados de todos.” Tudo isso se apresenta satirica-
mente condensado por Klinger da seguinte maneira: “Será que o rei P não terá
se eternizado porque no seu reinado inventou-se uma forma de sapatos para
os súditos que tinha de servir para todos, coubessem ou não?”135
Este caráter ambivalente permanece naturalmente mais disfarçado na poe­
sia, expressando-se com maior clareza nas obras filosóficas. Assim, na grande
via contrária aberta por Herder à progressista filosofia da história dos france­
ses, onde um Estado à la Moloch obscurece todo o processo de emancipação
burguesa: “Que cada um reflita! Luz, infinitamente propagada e elevada, quan­
do o motor para viver está debilitado! Elevam-se as idéias de amor entre ho­
mens, povos, inimigos, e se enfraquece o cálido sentimento de amizade pelo
pai, pela mãe, pelo irmão e pelo filho! Os princípios da liberdade, honra, virtude
tão difundidos que todos os reconhecem claramente, em certos países até

14 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V O L. 1

mesmo o mais humilde os tem na ponta da língua — e ao mesmo tempo cada


um deles está preso nas mais terríveis cadeias de covardia, vergonha, luxú-
ria, servilismo e desorientação; facilidades e instrumentos disponíveis, mas
apenas nas mãos de um ou de poucos que pensam sozinhos. Desapareceu da
máquina a vontade de viver, de trabalhar, de ser bom e nobre, de viver feliz;
haverá vida de todo? No todo e nas pequeninas partes o pensamento único
do amo.”136 Por mais que possamos compreender os sentimentos de profun­
do ódio pelo Estado, que destrói os antigos laços e quer integrar toda ativi­
dade humana a seu sistema, colocaremos em plano mais elevado aquelas
declarações onde se tenta encontrar o fio da regularidade histórica desse
fenômeno, acompanhado de críticas às propostas de mudança.
E da natureza das coisas que o objeto preferido da crítica fossem sobre­
tudo aquelas instituições que mais obviamente personificavam os aparelhos
repressores de Estado: o exército e o aparelho administrativo. “O exército
tornou-se uma máquina de soldados sem vontade, sem força e sem inteligên­
cia, que guia um homem através do capitão e lhe paga como a um fantoche,
um muro vivo, para atirar e apanhar balas.”137 Enquanto a crítica de Herder
ao exército mercenário absolutista exibe o que há de humanamente indigno
nesta instituição, Lenz se concentra na limitação funcional resultante da fal­
ta de liberdade. “A única razão que movimenta nossas tropas, (...) a alma de
nossa tática, é o medo.” O castigo corporal deve ser abolido se quisermos
transformar o soldado em verdadeiro cidadão de seu país. No sentido de uma
mudança necessária, Lenz coloca uma exigência: “Mas para sustentar os sol­
dados, deve haver uma idéia que possam admirar.”138 Assim Humboldt ima­
gina um exército de cidadãos; para ele, o argumento decisivo contra os
exércitos do Absolutismo era a inexistência de uma consciência nacional
desenvolvida em liberdade. “Além disso, este exército e a nova forma de guerra
estão bem distantes do Ideal mais proveitoso para a formação humana. Se o
guerreiro sacrificando sua liberdade se transforma em máquina, isto se dá
ainda em maior grau no nosso modo de guerra onde cada vez importa me­
nos a força, a coragem e a habilidade individual. Quão nocivo não deve ser
quando partes consideráveis das nações passam não apenas anos mas fre­
qüentemente toda uma vida mecanicamente, mantendo-se apenas para a
eventualidade de uma guerra?”139
Não obstante, não foi apenas no estamento dos soldados, com seu pro­
verbial treinamento de caserna prussiano, que se mostrou o extremo anseio
de liberdade através do Estado. Para os súditos em tempos de paz também se

14 3
LU I Z C O S T A LIMA

fazia sentir a presença do aparelho administrativo que transformava as leis


decretadas em prática. Os pensadores do Sturm und Drang sempre defende­
ram a “auto-estima, a autonomia, a dignidade pessoal e a autodeterminação”140
contra os efeitos niveladores radicais do mencionado aparelho administrati­
vo. “No fundo, as pessoas que estão na direção do Estado não devem ter um
sentimento de honra comum e encaram o restante dos mortais como um pu­
nhado de vermes.” Segundo Schubart, eles não entendem “a velha respeita­
bilidade (...), a seriedade, decência e dignidade que acompanham os patriarcas
dos trabalhadores manuais.”141 Herder pôs mais profundamente em dúvida,
no princípio de sua carreira, o processo de emancipação do indivíduo bur­
guês e focalizou a questão da “libertação” da Europa como um progresso
discutível frente à dissolução dos laços feudais por meio do Estado absolu­
tista. “As corporações e baronatos tornavam orgulhosos e cheios de si os
cavaleiros e artesãos, mas ao mesmo tempo lhes davam autoconfiança e fir­
meza e impediam a pior das pragas da humanidade, a canga imposta às almas
e às nações, que faz sucumbir a todos.”142 Do conflito com os ideólogos das
nações adiantadas da Europa ocidental, “os clássicos pensadores do belo, que
consideram o policiamento de seu século como o non plus ultra da humani­
dade”143, surge uma linha de pensamento que tem para com o “Santo Impé­
rio Romano” na Alemanha um caráter altamente discutível. Pois o impulso
para a luta contra o Absolutismo daquele tempo será exigido, em última ins­
tância, aos ainda existentes resíduos dos “estamentos mortos”. Para a argu­
mentação de Herder, que no fundo não era nem política nem econômica e
sim moral, os funcionários públicos modernos não passam de netos degene­
rados dos saqueadores de rua de outrora que se acomodaram às enervantes
circunstâncias e se deixam pagar pelo Estado por seus “crimes”. “Não temos
mais ladrões de rua — mas onde, como e por que os haveríamos de ter? Nossas
terras são tão bem policiadas, com barreiras nas estradas bem guarnecidas,
as terras judiciosamente divididas, a sábia justiça sempre atenta — onde po­
deria o bandido agir, ainda que tivesse força e coragem para essa dura profis­
são? E por que tentar? Pelos costumes do nosso século ele pode se transformar,
mais confortável, respeitável e até dignamente, em ladrão domesticado, e
nessas condições ainda ser pago. Por que então não se deixar pagar? Por que
escolher o trabalho manual mais incerto e para o qual ele não tem coragem,
nem força, nem oportunidade?”144
Neste pronunciamento sarcástico, cujas tendências já se fazem sentir em
outras obras do Sturm und Drang, nada transparece da função histórica da

14 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1 ------ —

burocracia, cca idéia de fazer valer a unidade de vários estados em um Estado


único” e assim propiciar “a verdadeira transformação dos estamentos políti­
cos em burgueses”.145
Christian Garve, porém, nada tinha a ganhar da onda patriótica de ser
“genuinamente alemão”146, pois estava movido pela convicção de que “mui­
tos fatos de verdade e utilidade universais” sobre política e economia esta­
tal podiam ser conhecidos através de livros ingleses. A realidade alemã não
fornecia essa utilidade e verdade, mas ensinava a reconhecer a “multipli­
cidade de suas circunstâncias”. Em 1785, encontramos a constatação sen­
sata de que, no processo produzido pela queda do feudalismo, deve-se
sempre observar dois fatos em relação causai: “Em primeiro lugar, o poder
aumentado do governo e diminuído da nobreza, de onde surgiram a paz
nacional, uma justiça igualitária e a possibilidade de uma polícia ostensiva,
e, em segundo lugar, a expansão da indústria, do comércio, das artes, das
ciências e do luxo.”147 Uma conscientização que pertence à pré-história do
materialismo histórico e que compreende o “jugo espiritual e nacional”
apostrofado pelo S tu rm und Drang como a “primeira ferramenta política
da burguesia contra o feudalismo”.148
Hum boldt se distingue de H erder à medida que quer ver a administra­
ção dos interesses estatais não propriamente negada mas sim reduzida ao
mínimo. A experiência prova que certas funções sociais da “união nacio­
nal” provenientes dos esforços espontâneos e livres dos burgueses são per­
cebidas como muito mais eficazes para os propósitos de formação, bem-estar
e comércio que os de um aparelho de Estado enfatuado. Os efeitos da
burocratização serão apresentados pelos futuros m inistros de Estado
prussianos como igualmente perigosos, tanto para a sociedade quanto para
o Estado. “Daí crescer de década para década o volume do funcionalismo
e das repartições enquanto a liberdade dos súditos diminui. Em tal tipo de
administração, tudo depende da mais exata fiscalização e do cuidado mais
preciso e honesto, já que as ocasiões de falha em ambos os aspectos são
múltiplas. Assim, não sem justa razão, tudo é processado por muitas mãos,
para afastar a possibilidade de erro ou corrupção. Mas também pelo mes­
mo motivo tornam-se os negócios quase completamente mecânicos e os
homens viram máquinas, a verdadeira habilidade e honradez diminuem,
juntamente com a confiança.”149 Ligado a isso. H um boldt constata: “Os
homens (...) estão sendo negligenciados em prol das coisas e as energias em
prol dos resultados.”150

1 45
LUI Z COSTA LIMA

De maneira notável, aparece aqui o distanciamento polítíco e econômi­


co, um no outro entrelaçados. O filósofo idealista alemão não descobre os
efeitos deste distanciam ento na esfera material da produção, como os
empiristas ingleses, mas sim na região mais elevada da administração estatal:
“Neste sistema, um Estado eqüivale mais a uma quantidade acumulada de
instrumentos inanimados e vivos da eficácia e do prazer que a uma quantida­
de de forças ativas e prazerosas.”151 Enquanto Ferguson, que cita Humboldt
elogiosamente, “vê a fábrica como uma máquina (...) cujas peças são ho­
mens”,152 na Alemanha a culpa pela invalidez das forças de trabalho cabe aos
burocratas. Enquanto para Adam Smith a formação do lucro era o ponto
central, para o Ideólogo alemão trata-se da “formação do homem”, e o qua­
dro principal surgido contra o despotismo estatal vem a ser “o desenvolvi­
mento mais alto e mais proporcional do potencial em suas características
individuais”.153 Em que se baseava esta diferença entre Inglaterra e Alema­
nha? De que premissa comum ter-se-iam desenvolvido tais posições?
Em todo o período do mercantilismo, desde Hobbes — que concebia o
Estado como “máquina”, na qual o governante figurava não mais como “ca­
beça” e sim como “alma” ou “principal força motriz” e os servidores públi­
cos, como “engrenagens” — têm sido descritos os fenômenos do exército e
da burocracia absolutista, desconhecidos da concepção orgânica de Estado
própria da Idade Média.154 Muito antes da invenção da máquina no sentido
moderno, o que notoriamente só se dá no último terço do século XVIII, trans­
formou-se a “máquina” em palavra-chave, usada pelos grandes escritores
franceses do século XVII para parafrasear o Estado, Estado este regido na
época pelo mais absoluto dos monarcas.155 O conteúdo conceituai que ficou
a Isso ligado, em 1751, ainda é aquele de uma complexa ferramenta ou siste­
ma, correspondendo ao estamento qualitativamente sem mudanças das for­
ças produtivas. D iderot tem esta definição no verbete “O Belo”: “Cada
máquina (...) pressupõe combinação, ordenação das partes para um único e
mesmo objetivo.”156 Em analogia “às duas bases materiais — relógio e moi­
nho”157 — que compõem no interior da manufatura a preparação para a in­
dústria de máquinas, concebia-se o aparelho de Estado como um sistema
artificial que deveria realizar um objetivo social. O príncipe fez o papel de
“primeiro impulsionador de toda a máquina da sociedade” (Turgot), assim
era propagado por vozes pró-governamentais. A lógica da mecânica ofere­
ceu também às posturas críticas do Absolutismo possibilidades de aplicação
opostas: desde a oposição constituída pela nobreza conservadora francesa, a
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES ¥01 1

administração passou a ser vista como algo Um êcaniquen (Boulainvillers); para


a perspectiva democrático-plebéia, o monarca absoluto aparecia como sim­
ples “ouvrier”. “Se é verdade que um grande príncipe raramente se faz no­
tar”, diz Rousseau no C o n tra to so cia l , “o que dizer de um grande legislador?
(...) Este é o mecânico que inventa a máquina, o outro é apenas o operário
que a põe em movimento.”158 Dessa maneira, surgiu todo um linguajar técni­
co específico da época, para exprimir relações políticas e eão econômicas.
Na obra de Ferguson, os “servidores de Estado” na política e na guerra são
também, neste sentido, comparados às “partes de uma máquina”. Assim como
“a arte do soldado se limita a alguns movimentos de mãos e pés”, o que ca­
racteriza o trabalhador da manufatura é “o hábito de mover a mão ou o pé”;159
ambos estão liberados de pensar por si próprios. Enquanto Ferguson agru­
pava conjuntamente do lado da expansão de conhecimento e poder o gene­
ral, o estadista e o empresário manufatureiro, e os contrastava com a perda
do pensamento do lado oposto5Smith elaborou a diferenciação entre traba­
lho produtivo e Improdutivo, o que constituiu uma decisiva Inovação e deu
à economia burguesa sua feição desenvolvida.
Será que a economia política clássica Inglesa desempenhou, para o Ideal
humanista do classicismo alemão, o papel de um substrato não compreendi­
do? Terá aparecido o antagonismo entre operário de linha de montagem e
capital na Alemanha como relação entre servidor público e Estado de modo
tal que a Idéia de liberdade Individual — que historicamente só se tornou
dominante como ideologia do liberalismo econômico — recebeu aqui aque­
le traço espiritual característico por lhe faltar a base material corresponden­
te? Não terá nascido do princípio econômico do “interesse evidente e claro
de cada um”,160 na Alemanha, o “princípio filosófico (...) da veneração pelo
individualismo dos seres autônomos”?161 Não terá sido, pois, a finalidade
positiva de tudo isso a “dignidade humana”,162 isto é, o ideal de liberdade
internalizado pelo indivíduo que se rebela contra o funcionamento “sem
alma”, o mecanismo estatal, diferentemente da Inglaterra, onde prevalecia a
liberdade advinda do desenvolvimento material do indivíduo que trocava
mercadorias? A estas interrogações — que não devem de modo algum ser
usadas pelo ideal humanístico alemão para contestar a função histórica de
um meio de luta eficaz contra o absolutismo alemão — poderia responder
uma história do pensamento econômico na Alemanha, se é que tais respostas
podem ser dadas. Assim como o julgamento de Hegel sobre “a degeneração
do pensamento até a filosofia de Kant”163 impediu qualquer exame sério da

14 ?
LUIZ COSTA LIMA

filosofia popular, assim também a autoridade de Marx impediu até agora uma
apresentação histórico-marxista do pensamento econômico dos alemães. “A
economia política na Alemanha permanece até esta data uma ciência estran­
geira”, assim consta do posfácio da segunda edição de O Capital.164 Ainda
hoje, para ocupar-se do camerismo é necessária uma desculpa, pois “a ciên­
cia econômica marxista-leninista não tem raízes teóricas nestes distantes
depósitos mortos da história das ciências alemã”.165
Se bem que a maneira deformada de receber as idéias de Smith na Ale­
manha não teve nenhuma importância para o desenvolvimento da econo­
mia política, para a história do pensamento e da literatura já não acontece o
mesmo. Se a ideologia liberal — comparada ao rigor dos impostos do siste­
ma fisiocrático cujo emprego pressupunha um Estado centralizado — pos­
suía de antemão uma afinidade que chegava na Alemanha a escabrosas
conseqüências, esta afinidade se explica pelo fato de que as assembléias dos
estamentos feudais reacionários pareciam tomar emprestado o papel de de­
fensor da liberdade nacional contra o aumento de poder do Estado. Neste
sentido, Christian Wilhelm Dohm — diplomata prussiano que Forster cha­
mava de “esplêndida cabeça” e a quem homenageou com uma citação nas
Ansichten vom Niederrhein — no artigo programático “Ueber das physio-
kratische System” (“Sobre o sistema fisiocrático”), aproveitou a crítica de
Smith à teoria francesa e com isto encerrou em 1778 uma longa discussão.166
Por haver mantido contato pessoal com Dohm, Forster, assim como o jovem
Humboldt, ficou seduzido pelas idéias dos economistas escoceses. Na leitura
do Tagebuch der Reise nacb Paris und der Schweiz 1789 (Diário das viagens a
Paris e à Suíça em 1789) transparece claramente a profunda impressão dei­
xada em Humboldt pelas “idéias básicas” de Dohm, a saber: que a única in­
cumbência positiva do Estado era com a segurança; todos os outros meios
para o aprimoramento do “bem-estar físico, moral e intelectual” passariam
melhor sem a intervenção do Estado.167
O que despertou mais interesse em Humboldt foi o fato de que seu ideal
humanista de colorido aristocrático parecia confirmado por uma ciência in­
teiramente nova. Sua norma de que “cada ser humano só deveria se desen­
volver por sua própria vontade”168 correspondia, se bem que em outro nível,
ao princípio fundamental de Smith do comércio orientado pelo interesse na
economia; a seu “anarquismo filosófico”169 correspondia o anarquismo eco­
nômico. Bem nitidamente formulado, Humboldt tomou de Smith os elemen­
tos históricos progressistas para sua crítica ao Estado, com a finalidade de

14 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V O L. 1

aplicar o raciocínio global basicamente antropológico de Smith contra o


Estado que chegava ao questionamento idealista “de qual é a posição mais
vantajosa para o homem no Estado”.170 Para o seu ponto de partida teórico,
relativo ao desenvolvimento e à harmonia do potencial humano, os conheci­
mentos de Smith assim como as teorias gerais do valor do trabalho permane­
ceram sem importância.
Não vale a pena, neste ensaio, determo-nos detalhadamente nos aspec­
tos absurdos da interpretação de Humboldt.171 Embora seja apenas uma fic­
ção deduzir uma objetivação dos “cuidados do Estado” e, desta maneira,
emprestar uma expressão capitalista à burocracia, se bem que esta não se trate
de uma classe produtiva e a relação entre governantes e burocratas esteja bem
distante da essência do capitalismo, ainda assim essa ficção nos informa sobre
o estado da sociedade. Segundo Marx, “opõe-se-nos aqui uma peculiaridade
que é característica de uma sociedade onde prepondera uma determinação
do modo de produção, embora nem todas as suas relações de produção este­
jam a ele subordinadas”.172
De uma perspectiva histórico-ideológica, esse processo é da maior impor­
tância. Ao mesmo tempo que o modo de produção capitalista na Inglaterra,
sob as condições específicas da Alemanha nos fins do século XVIII, foi pensado
e criticado como teoria do Estado, surgiu uma característica superposição de
níveis. A crítica ao absolutismo está saturada de imagens oriundas da manufa­
tura, e, no entanto, o processo de divisão do trabalho no interior da própria
manufatura só muito raramente é percebido. Por toda parte encontramos na
literatura alemã daquele tempo fórmulas e idéias que têm a aparência de uma
crítica à divisão de trabalho capitalista, mas que, na realidade, são apenas crí­
ticas ao absolutismo de Estado e à estrutura social feudal. A esta circunstância
deve-se o fato de até agora termos visto críticas ao capitalismo onde elas não
existem e não nos apercebermos delas, quando de fato existem.
Dentre os poucos que compreenderam os efeitos sociais “da divisão de
trabalho no plano individual”173 está Karl Philipp Moritz, desde os tempos
mais remotos valorizado como amigo de Goethe e autor de Anton Reiser,
porém dificilmente apreciado como pensador teórico independente. No
ensaio filosófico publicado em 178 6,Einheit— Mehrbeit— Menschliche Kraft
(Unidade, pluralidade, potencial humano) são enumeradas “coisas espanto­
sas” que surgiram através da “união de muitas forças humanas com um obje­
tivo único”: “Cidades, exércitos, constituições, diques, pirâmides egípcias,
canais subterrâneos, navios de guerra, poços, minas, manufaturas, fábricas.”

14 9
LUI Z COSTA LIMA

A descrição das desvantagens da socialização que conduz à separação entre


trabalho e pensamento é nitidamente influenciada por Ferguson: “O mal
reside sobretudo no fato de o indivíduo ter sido esquecido e descuidado, no
fato de não ser visto mais como um todo e sim como parte de um todo maior,
no fato de o homem ter de ser freqüentemente apenas mãos e pés, embora,
por determinação da natureza, ele também possua cabeça e deva ter oportu­
nidade e liberdade para pensar e refletir sobre si mesmo e suas relações.”174
Se bem que Moritz não explicite suas idéias com exemplos tirados do traba­
lho manufatureiro e sim da relação entre “ajudante” e “mestre-de-obras”,
sua resposta à indagação “Como é possível que o indivíduo abdique de sua
livre autonomia?” revela extraordinária agudez. “O objetivo astutamente im­
putado à inteligência é que o indivíduo seja obrigado a pensar, caso contrá­
rio não será capaz de apaziguar sua fome e de cobrir seu corpo.” A parte
mais astuta dos homens encontrou meios para (...) quase despojar os cândi­
dos de suas necessidades básicas e de só fazê-las chegar a eles sob a condição
de que se privem por um certo tempo da ligação natural entre seus poderes
físicos e intelectuais, e que, como simples máquinas obedecendo ao pensa­
mento de outro, estiquem braços e levantem pernas!”175 Indubitavelmente,
trata-se aqui do fenômeno capitalista da alienação, da separação entre pro­
dutores e meios de produção e Moritz orienta no sentido das associações
livres de produtores, onde “o objetivo é comum a todos”. Porém, Moritz,
idealista, tomou como ponto de partida de sua crítica a renúncia ao “poder
intelectual” do indivíduo e não a forma e o resultado do trabalho, o que fora
feito na mesma época por Salzmann. Este último já estava na pista das rela­
ções de exploração quando formulou a frase condicional do trabalhador
manual que trabalha para um empresário capitalista: “Se eu pudesse traba­
lhar para mim e vender, ao mesmo tempo, minha mercadoria.”176 Por causa
de sua postura idealista, a solução para Moritz permanece ainda como um
ato essencialmente intelectual, e não material.
Por experiência própria, Moritz sabia muito bem o que uma cidade, bela
ao longe, com suas torres e palácios, internamente abrigava como “morada
de suplícios, onde a roda de Ixion gira dia e noite”.177 Mas também conhecia
o romance Karl von Karlsberg, onde Salzmann tentara “ordenar em classes”
o sofrimento humano, a que contrapunha a frase experimentalmente vivida:
“que esteja dentro do poder do homem submeter-se livremente às necessida­
des; que seu verdadeiro Eu pensante não ofereça nenhum ponto de contato
com o infortúnio; que este toque apenas a seu ambiente, mas que não possa

1 5 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

abalá-lo”.178 Moritz aqui generaliza seu próprio difícil caminho no qual o


impulso especulativo para o “mundo espiritual”179 do idealismo foi capaz de
se firmar sob forma de uma necessidade vital. Na volta geral para o “Eu
pensante” como cerne da existência, reflete-se também o estado de coisas
real de que, para a maioria dos intelectuais alemães nesse meio tempo, o “po­
tencial intelectual” — palavras de Humboldt —■também se transformou em
“um dos produtos mais naturais”, isto é, em mercadoria.
A primeira vista também podemos encontrar uma polêmica contra o
“efeito mutilador da divisão de trabalho capitalista”180 nas célebres Briefen
über die ãsthetische Erziehung des Menscben” (Cartas sobre a educação esté­
tica dos homens). Schiller escreveu em períodos fluentes, que ficam na me­
mória: “(...) Não vemos apenas sujeitos Isolados e sim classes inteiras de
pessoas que só desenvolvem parte de seu potencial, enquanto dos restantes,
como plantas atrofiadas, mal se chega a perceber os traços.”181 Observando
mais detidamente, o panorama muda de figura.
Schiller emite julgamento a respeito de seus contemporâneos contrastan­
do-os histórica e filosoficamente com o “padrão grego de humanidade” ao
qual ele subordina uma “totalidade da espécie”, que nos homens modernos
só se encontra em “fragmentos”, de modo tal que “temos de investigar um
por um para obter uma leitura de toda a espécie”. Bipartida está não a rela­
ção entre potencial físico e intelectual, mas sim a “essência interna da natu­
reza humana, as forças de sua alma”. Constata ele, de um lado, uma “separação
pronunciada das ciências” à medida que “razão intuitiva e especulativa” se
defrontam hostilmente sob a forma de “poesia” e “especulação”, e, de outro
lado, como essa “desordem (...) no íntimo do homem”, iniciada “pela arte e
pela erudição”, firmada pelo “novo espírito do governo”, se torna plena e
geral.182 Enquanto a “divisão das ciências” é abertamente relacionada a seu
desenvolvimento desde a Renascença e Galileu, Newton e Kant são também
apostrofados,183 Schiller opõe de imediato, no nível político das antigas re­
públicas, “a rígida separação dos estamentos e dos negócios”, sem se preocu­
par com as contradições de sua argumentação. “O Estado e a Igreja, as leis e
os costumes se desgarraram; o prazer separa-se do trabalho, os meios dos
fins e o esforço da recompensa. Agrilhoado eternamente a um único frag­
mento do todo, o próprio homem se forma como fragmento; sempre o ba­
rulho monótono das engrenagens, sem poder jamais apurar os ouvidos para
a harmonia de seu próprio ser e em lugar de cunhar a humanidade em sua
natureza, será ele meramente uma cópia de seus negócios, de sua ciência.”184

1 5 1
LUIZ COSTA LIMA

Temos aí uma descrição da sociedade estamental como Schiller a encon­


trou, no estado de putrefação que apresentava na atualidade alemã. E critica
ainda o descaso com os “outros aspectos da alma para cuidar unicamente do
que traz honras e recompensas”.185 Tudo isto, evidentemente, não vai além
do horizonte da ordem feudal. Em contrapartida, o característico da nova
sociedade — e não foi só Ferguson a escrever sobre isso — é que o trabalho
nas manufaturas paga miseravelmente mal, denigre socialmente e faz daque­
le “aspecto da alma” uma qualidade altamente incômoda e supérflua do tra­
balhador.186 Em oposição, para Schiller o trabalho manual e mental ainda
convivem pacificamente lado a lado, como no período do artesanato, quan­
do cita como exemplo em favor do desenvolvimento extremo de um projeto
profissional a “memória” do cientista, a “compreensão de tabelas” do esta­
dista e do economista, a “habilidade mecânica” do artesão.187
O elemento moderno está assim representado, juntamente com a ciên­
cia, apenas pelo Estado, cuja forma absolutista, à imagem de “uma peça de
relojoaria (...) em cuja composição uma infinidade de partes inanimadas cons-
troem uma vida mecânica”,188 é tida como existente em todo o tempo exten­
sivo desde o declínio dos Estados gregos.
Se o “barulho monótono das engrenagens” só deve ser explicado como
referência à concepção fundamental do Estado como máquina, ou seja, se
foi usado metaforicamente e tem pouco a ver com “a divisão moderna de
trabalho e com a mecanização”189 do capitalismo industrial, então podemos
concluir que o programa utópico de Schiller contém uma educação estética,
a de “restabelecer a totalidade de nossa natureza, destruída pela arte, por
meio de uma arte mais elevada”,190 e não contém uma crítica à alienação
capitalista da essência do ser humano mas sim uma crítica ao estágio de divi­
são social do trabalho que antecede a uma divisão de tipo manufatureira.
Sua crítica constitui-se sobretudo em protesto político contra a essência des­
pótica do Estado absolutista.
O fato de a crítica marxista ter-se montado, com tanta obstinação, sobre
uma interpretação errônea, tem causas históricas que Rosa de Luxemburgo
já analisou magistralmente. Na luta pela emancipação do proletariado ale­
mão, coube a Schiller o papel de profeta da Revolução, cuja obra não se
adequava totalmente ao público operário que a “desfiou e relncorporou in­
conscientemente a seu próprio mundo de idéias e sentimentos revolucioná­
rios”. Este “singular processo de assimilação” foi avaliado por Rosa de
Luxemburgo como momento de um estágio ainda a ser vencido na luta do

15 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V O L. 1

proletariado: “O operariado alemão pode e deve hoje opor-se a Schiller de


modo objetivo, científico, na medida em que o poeta também é uma pode­
rosa figura da cultura burguesa, em lugar de subjetivamente absorver-se nele,
ou, melhor dito, deixar-se dissolver em sua concepção de m undo.”191 A
criticada lenda de Schiller passa a ser apenas o resíduo de um estado de cons­
ciência há muito ultrapassado pela classe operária alemã.
Finalizando esta excursão, o que teríamos a dizer da relação entre o mais
“fino dos poetas alemães”192 e a teoria de Adam Smith seria o seguinte: Schiller
estava familiarizado com determinadas idéias da economia política, pelo
menos com aquelas expressas por Humboldt e Garve.193 Toda a sua argu­
mentação prova, porém, que ele não as compreendeu em toda a sua signifi­
cação, mais que isso, considerou-as como o grande perigo de seu tempo, com
que devia se encontrar a “Arte do Ideal”. “A utilidade é o grande ídolo deste
tempo, a que todos os talentos devem homenagear”,194 diz Schiller na versão
final das Àsthetischen Briefe (Cartas estéticas). Mais clara e menos poetica­
mente escreve na segunda carta, ao duque de Augustenburg, datada de 13 de
julho de 1793: “Enquanto (...) o princípio supremo do Estado testemunhar
um egoísmo revoltante e a tendência dos cidadãos se limitar ao bem-estar
físico; enquanto isso perdurar, temo que a regeneração política que acredi­
távamos tão próxima não vá passar de um sonho filosófico.”195 A primeira
negativa refere-se à política de Estado mercantilista; a segunda à teoria do
interesse privado burguês, ambas igualmente nocivas ao olho moralista do
idealismo. Que a posteridade haveria de teimar em acrescentar aos louros
do poeta uma coroa de visão econômica teria deixado Schiller profundamente
embaraçado, para não mencionar seus contemporâneos alemães que o supe­
ravam amplamente em compreensão econômica. Pouco depois, em Über naive
und sentimentalische Dichtung (Sobre a poesia ingênua e sentimental), diri­
giu-se claramente aos economistas: “Enquanto (...) o realista visa em suas
tendências políticas ao bem-estar, mesmo que custe algo à independência
moral do povo, o idealista estará voltado para a liberdade, ainda que à custa
do bem-estar.”196
O problema fundamental da “educação estética” de Schiller, que ele
mesmo descrevia como “independente de sua verdadeira teoria do belo”,197
veio a ser a questão colocada pela Revolução Francesa: Como pode “uma
administração estatal agir sem ofender aos princípios morais”?198 Não se fará
justiça a esse questionamento se for julgado simplesmente como reação à
exacerbação do conflito de classes na França. Com a tomada das Tulherias

1 5 3
LUI Z COSTA LIMA

em agosto de 1792 começa em muitos alemães uma mudança de atitude frente


à Revolução. Mas teria sido necessário o destronamento do rei para tornar
céticas as mentes filosóficas fora da França a respeito da aproximação do
“reino da Razão”? O início do pensamento filosófico, com o qual a teoria
alemã podia não apenas acompanhar a práxis revolucionária na França mas
também antecipar seu desenvolvimento, deve ser novamente levado a sério
frente ao momento político. Se o estudo de Schiller sobre Kant — que ja­
mais poderia fornecer a chave para a educação estética — for considerado
como “a única possibilidade de superar a realidade alemã”,199 as verdadeiras
implicações, que antes do nascimento do neokantismo na Alemanha ainda
eram claras, se tornarão opacas. Por que a Revolução Francesa deixou tão
exaltadas até mesmo as cabeças menos interessadas em política na Alema­
nha, já foi brilhantemente exposto por Rudolf Haym em 1856: “Os aconte­
cimentos na França (...) tiveram um caráter totalmente diferente do caráter
habitual dos acontecimentos políticos. A filosofia — qualquer que seja seu
gênero — teve, de sua parte, uma co-participação na eclosão de todo o mo­
vimento, e se agora a Constituinte Nacional debate os direitos humanos, seus
debates poderiam ser melhor comparados aos de uma academia filosófica
que aos de uma corporação legislativa.”200 O caráter filosófico da Revolução
Francesa veio de encontro à inclinação dos teóricos alemães, inclinação esta
que consiste mais em apreciar o lado humano que o concreto político.
Neste sentido, Schiller, especialmente em sua segunda carta estética, fa­
lando de um “tribunal da Razão Pura” dirigiu-se também a Paris e incluiu-
se de certo modo nos debates da convenção parisiense, não apenas porque
estava envolvido no deflagrar dos acontecimentos franceses enquanto “ser
humano e cidadão do mundo”, mas também porque, por suas característi­
cas de “pensador independente”, poderia considerar-se “conselheiro da­
quele tribunal”, com o fito de discorrer sobre os “fundamentos políticos
da legislação”.201 “O credo político” de Schiller que, se apresentado peran­
te o forum parisiense, ter-lhe-ia custado a cabeça, não pode negar sua ori­
gem idealista. As palavras altivas do Rel-Sol, “O Estado sou eu”, aparecem
na visão de Estado antropológica de certo modo invertidas: O Eu, “o indi­
víduo será o Estado”.202 Porque Schiller não sabia distinguir Estado de so­
ciedade, precisava do “Estado estético”.203 Por conseguinte, em face da
Revolução Francesa — que ele saúda como “tentativa de transformar um
Estado natural em Estado moral por um povo que adquiriu sua maiorida­
de” —• surge o “grande momento de reflexão”, “que a sociedade corpórea

1 5 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V O L . 1

não pode deixar de existir temporalmente em nenhum momento, enquan­


to a sociedade moral que se forma no pensamento, não pode ser posta em
risco por causa da dignidade humana. Quando um artista tem de aperfei­
çoar o mecanismo de um relógio, deixa a corda acabar; mas o relógio vivo
do Estado tem de ser aperfeiçoado enquanto funciona e suas peças devem
ser trocadas com ele em movimento”.204
Para inferir a tarefa, partindo desse conceito nebuloso de Estado, de que
é amissão da beleza fazer-nos caminhar para a liberdade”,205 os objetivos do
reformismo político tinham de estar voltados só para a arte. Em forma ela­
borada, as idéias de Humboldt se punham perante Schiller no capítulo final,
no qual a “teoria de todas as reformas” estava condensada em dois princípi­
os: “1 — que os princípios teóricos sejam transpostos para a realidade, po­
rém nunca antes que esta, em sua abrangência, impeça a expansão total
daqueles e a expressão das conseqüências que se produziriam sem interfe­
rência externa; 2 — para realizar efetivamente a passagem do estado atual
para um novo estado de coisas, deixemos, tanto quanto possível, surgir cada
reforma das idéias e das cabeças dos homens.”206
O que Humboldt tinha em mente era uma mudança gradativa do estado
social vigente, na medida em que os indivíduos estivessem maduros para a li­
berdade e sentissem as restrições à liberdade como cadeias apertadas, de modo
tal que o Estado receberia o papel de “expectador” que deve esperar “um sinal
dos cidadãos” para entrar em ação.207 Na base desta expectativa utópica que
delineia o caráter apolítico do individualismo, encontrava-se a idéia de
Humboldt, desenvolvida já em 1791 numa carta dirigida a Gentz, segundo a
qual somente poderia prosperar uma organização estatal surgida da luta entre
o poder vigente e a “razão da oposição”. Mas está fora de cogitação que ime­
diatamente após o sistema do despotismo possa surgir uma “construção esta­
tal completamente nova, baseada unicamente em princípios racionalistas”.208
Em 1792, ao compilar essas idéias, Humboldt já dera a Schiller a deixa
para o conceito de educação estética, quando afirmou: A possibilidade de re­
forma repousa sobre “estarem os homens bastante receptivos para a liberdade
e (...) sobre a necessidade contrária de que esta liberdade repentinamente ad­
quirida não venha a destruir os resultados conquistados, sem os quais não apenas
qualquer progresso futuro mas também a própria existência será posta em
perigo.209 Como Schiller, que reivindica a “teoria da legislação” de Humboldt
para os artistas, em lugar dos estadistas, a emancipação humana, invertida
idealisticamente em condição de emancipação política, “eterniza teoricamente

15 5
10 12 C O S T A LIMA

a falta de liberdade dos homens em nome da liberdade”.210 O que temos de


agradecer a esse colossal engano histórico é o retom o de Schiller à prática
poética, de vez que ele aceitou como obrigação do artista o postulado de
Humboldt de “fomentar por todos os meios possíveis o amadurecimento para
a liberdade55.211 Vale ainda o juízo de Mehring: “As cartas estéticas desvendam
o segredo de nossa literatura clássica”, multo embora hoje não mais aceitemos
o apêndice esclarecedor: “que a luta libertadora burguesa do século XVIII na
Alemanha deveria obrigatoriamente processar-se eo campo da arte”,212 por
tratar-se de uma excessiva generalização de uma única direção literária.
Podemos extrair de tudo o que foi dito um clima extraordinariamente
propício que as condições alemãs ofereciam para o desenvolvimento das
Idéias de autonomia, em que os Indivíduos apareciam como meras peças
da maquinaria estatal Já que apenas raramente a liberdade do burguês é
exigida pelo poder estatal e que o que deveria ser respeitado é o “homem
enquanto sua própria finalidade” e não a Inspiração à realização do Ideal
democrático de tornar todos os homens cidadãos, esta crítica ao absolutis­
mo se entrelaça profundamente com uma negação da economia política bur­
guesa, sua aliada natural; a alternativa da “autonomia” dos Indivíduos fica
limitada à esfera estético-espiritual e se perde a oportunidade de fazer uma
crítica ao capitalismo,

VI

A IDÉIA DE AUTONOMIA EM MORITZ E AS ANTINOMIAS DA PRODUÇÃO DO


MERCADO LITERÁRIO

Destacamos até agora o desenvolvimento da produção e, sob este ponto de


vista, esboçamos a relação entre as belas-artes e as artes mecânicas, a
tecnologia, a economia e a crítica do Estado como os momentos essenciais
para o desenvolvimento da teoria estética do século XVIII Deve-se a seguir
destacar as principais idéias metodológicas que anunciavam o desenvolvimen­
to do comércio de bens e que agora também tratavam da literatura.
Tornou-se usual empregar os termos “teoria da literatura”, “crítica lite­
rária” e “estética” como quase sinônimos e abstralr-se de seus específicos
conteúdos conceituais. Do mesmo modo, poetologias, conceitos teóricos de

156
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — ¥OL. 1

gêneros particulares como drama, romance ou lírica foram incluídos sem mais
cuidados na teoria da literatura — a interpretação da catarse por Lukács é
um exemplo conhecido. Desta maneira é menos realçado o significado dos
momentos, que mudam de fato toda a compreensão da literatura. A idéia de
autonomia deve ser considerada como um destes momentos.
Kant introduziu-a na filosofia, por sua conversão, a partir da esfera jurí­
dica, em categoria política, e em correspondência, foi recebida pelas dife­
rentes ciências, com diversas variantes de significado.213
Com o conceito de autonomia, a estética alemã desenvolveu um concei­
to de arte, integrador da literatura, que, com a passagem da hegemonia da
teoria francesa da arte para a alemã, desempenhou uma função capital, no
início do século XIX. Por mais que o isolamento da França revolucionária e,
depois, napoleônica, contra a qual toda a Europa se coligou, possa esclare­
cer a superação, no campo cultural, da hegemonia francesa, o papel de lide­
rança espiritual de uma nação surge constantemente segundo um modelo
republicano, pela aclamação doutros povos e, daí, possui como pressuposto
realizações teóricas geralmente entendidas como progresso. E de se esclare­
cer, portanto, a contribuição histórica da teoria alemã no processo de subs­
tituição realizado entre 1789 e 1815. Em ampla medida, a estética alemã deve
sua ininterrupta repercussão internacional à constituição de um novo con­
ceito de arte, a que se liga o postulado da autonomia.
Sobre esta mudança no cenário europeu, baste-nos aqui um testemunho.
Em seu primeiro trabalho significativo, Belinski nomeia os anos entre 1817
e 1824 como aqueles em que, também na Rússia, se impõe a convicção “de
que Schlegel conhece mais sobre arte do que La Harpe”, enquanto “os mui
apreciados senhores Boileau, Batteux, La Harpe e Marmontel caluniam sem
escrúpulos a arte, por terem refletido incorretamente sobre seu significado.”214
No “Discurso sobre a arte”, consagrado ao democratismo revolucionário,
Belinski ressalta, como realização da teoria alemã, “justificar a beleza pelo
amor à beleza, a finalidade em si da arte” e ter daí efetuado o passo decisivo
de “captar a idéia da arte como um território de criação peculiar e sobera­
no”. Para isso a idéia de “que a arte contém sua própria finalidade, que a
poesia não tem nem deve ter uma finalidade fora de si”, realizou um traba­
lho preparatório tão significativo quanto necessário.215
Se os mesmos conceitos são destacados pelas forças conservadoras,
dentro da ciência literária da época, seus conteúdos entretanto se modi­
ficam. Pois o conceito de autonomia é vazio de conteúdo, enquanto per­

157
LUIZ COSTA LIMA

manece indeterm inado de qual heteronom ia se pretende a liberação. Para


Kant, que tomava a autonom ia da vontade como “o princípio superior à
moral em geral” e que, neste sentido, pôde dizer que “toda filosofia (...)
é autonom ia”, é suficiente, segundo a crítica que lhe faz o místico Baader,
que, na autodeterm inação da razão, se condene a conservação dos com­
promissos morais do ancien régime: “Todas as nossas recentes doutrinas
morais, construídas desde Kant a partir do conceito de uma autonomia
absoluta, são assim, em seu princípio, revolucionárias e mesmo tão
antimorais quanto anti^religiosas.”216 Quem fala de autonom ia para de­
nunciar217 o engajamento socialista alinha-se com o reacionário Baader,
mesmo se se apoia em Kant.
Com efeito, ainda não está claro em que sentido uma tendência histórica
progressista se enlaça com o postulado da posse pela arte de uma qualidade
a ela específica. A explicação usual de que esta visão supera a práxis moral
didática e a pragmática do iluminismo é pouco convincente. A arte pode ter
lucrado com isso, mas a sociedade pode ter perdido. Pois, por que não se
pode comprovar a desvalorização comparável do moral-didático, que Voltaire,
Diderot, Rousseau realizam na literatura da França pré-revolucionária? Bas­
ta formular a pergunta para compreender que também para a Alemanha não
é correto considerar a “superação” da literatura iluminista moralizante como
via regia do progresso.
A heteronomia, da qual a literatura devia se liberar, não podia encon­
trar-se primariamente dentro da própria arte, mas sim fora dela. Ela estava
ligada a um processo de transformação socialmente profundo, que, na se­
gunda metade do século XVIII, também afetou as obras literárias. Foi contra
sua pressão que primeiramente se desenvolveu a idéia de autonomia. Essa
heteronomia era o mecanismo de mercado.
Assim como o argumento de Kant e Fichte acerca da “dignidade dos
homens” e de sua “capacidade de liberdade”, há de ser visto contra o pano
de fundo do despotismo e assim, malgrado todo o idealismo, também se tor­
na um sinal de “que desaparece a auréola sobre a cabeça dos opressores e
dos deuses da terra”,218 assim também o argumento acerca da dignidade da
arte se origina da capitalização das relações literárias e a mudança básica na
apreciação literária, desde meados do século XVIII, no sentido de uma “au­
tonomia” da arte, é uma reação ao despotismo crescente no mercado. Como
Marx certa vez assinalou, “valor e dignidade {Wert und Würde) estão inter-
relacionados tanto pela etimologia, quanto pelo significado”.219 Logicamente,

1 5 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

põe-se no centro da reflexão estética a autonomia do belo, ou seja, o valor


da obra de arte que é entregue a este mecanismo.
No ensaio até hoje pouco considerado de Karl Phillips Moritz, publicado
em 1785, Versuch einer Vereinigungaller schònen Künste und Wissenscbaften
unter dem Begriff des in sich selbst Vollendeten (Ensaio de unificação de to­
das as artes e ciências sob o conceito da perfeição em si mesma), podemos
observar e acompanhar este desenvolvimento paradigmático e ver como as
categorias estéticas derivam do processo social. Ao mesmo tempo, o ensaio
de M oritz se presta para iluminar a problemática da articulação histórico-
literária habitual daquele tempo. Pois ele aparece em 1785, dedicado ao
“filósofo popular” Mendelssohn, no Berliniscben Monatsschrift, órgão dos
iluministas agrupados em volta de Nicolai, e, com a noção do belo pleno
em si mesmo, lança a pedra fundamental para a construção do programa
literário dos clássicos de Weimar, enquanto, em troca, na ciência literária
marxista o conteúdo “desta transformação da função da literatura, no iní­
cio do século XIX”,220 é usualmente etiquetado de estética romântica da
expressão. Não importa em qual destes três movimentos, em comum origi­
nados da ciência literária burguesa, Moritz se inclui. Neste contexto, basta
considerá-lo como o pensador que, de forma velada, descreveu o caráter
de mercadoria da produção artística e daí extraiu as conseqüências teóri­
cas que libertam o valor da obra de arte, por princípio, da dependência do
mercado. O ensaio apresenta, para nossa indagação, o interesse suplemen­
tar de ser um escrito programático. A princípio, apresenta um retrospecto
do desenvolvimento do pensamento estético na Alemanha, desde o princípio
da imitação de Batteux até a teoria sensualista do prazer, tal como exposta
por Mendelssohn. Como Moritz realizou exemplarmente o relacionamen­
to da crítica ao prazer, a categoria fundamental da estética sensualista, com
a busca do valor em si mesmo da obra artística, compreendemos o quanto
a questão sobre o efeito da arte ■ —•capital para o Iluminismo — dá lugar à
determinação de uma nova função, em que a criatividade do gênio supri­
me todos os outros aspectos.
“Condenou-se o princípio da imitação da natureza como a finalidade
principal das belas-artes e das ciências, e foi ele subordinado à finalidade do
prazer, que veio a ser tomado como a primeira lei básica das belas-artes. Es­
tas artes, diz-se, têm apenas em mira o prazer, como as mecânicas apenas a
utilidade. — Mas, se encontramos tanto prazer diante do belo quanto pe­
rante o útil, como um se distingue do outro?

1 5 9
LUI Z COSTA LIMA

“Pelo apenas útil não me encontro tanto diante do próprio objeto, quan­
to, ao invés, diante da representação do que é conveniente ou agradável, que
causa prazer a mim ou a outrem pelo uso que dele se faz. Converto-me, por
assim dizer, em centro a que se endereçam as partes do objeto, i. e., encaro-
os apenas como meios de que eu próprio, na medida em que minha perfei­
ção é assim fomentada, sou a meta. O objeto apenas útil, assim, não é em si
um todo ou uma plenitude, mas o é apenas quando alcança em mim sua fina­
lidade ou quando é em mim completado. — Pela contemplação do belo,
contudo, aparto a finalidade de mim e a reconduzo ao próprio objeto: con­
templo-o como algo pleno, não em mim, mas em si mesmo, que assim, em si
mesmo, constitui um todo e que me concede prazer graças a si mesmo”, isso
porquanto não tomo o belo tanto em relação a mim, quanto, ao invés, me
tomo em relação a ele.”221
A partir da oposição entre as belas-artes e as artes mecânicas, Moritz erige
o “pleno em si mesmo” em critério do belo, à medida que emprega a dialética
pré-hegeliana de meio e fim, por nós conhecida a partir da discussão políti­
ca. O que ele assim desenvolveu foi um novo método de reflexão das obras
de arte. Do mesmo modo que na filosofia antiga — que, por tomar o bios
theoretikos como o supremo valor, estabelecera a diferença entre autovalores
e valores de uso — o puro conhecimento tinha o ócio por condição, assim
também na estética de Moritz o belo exigia a entrega de si. Para experimen­
tar o prazer, o observador deve não se tomar como centro, mas entregar-se
a um “relacionamento” com o “objeto belo”. Era deste modo introduzido
um momento contemplativo na reflexão artística, que Kant converterá em
conceito. O juízo do gosto é, na Kritik der Urteilkraft (Crítica da faculdade
de julgar), em conseqüência, “apenas contemplativo, i. e., um juízo que, in­
diferente quanto à existência do objeto, apenas liga seu modo de ser ao sen­
timento de agrado ou desagrado”.222 Friedrich Theodor Vischer formulou
expressivamente, em 1870, o que isso significa: “(...) No estado de ânimo
estético, deixamos o mundo estar como é. Pois não desejamos mudá-lo. (...)
Apesar de todas as suas carências, ele provoca o nosso agrado.”223 “A norma
do trato científico com a arte, adotada pelas posições burguesas pós-revolu-
cionárias”, é “a contemplação”.224 Assim, para falarmos de uma estética pós-
revolucionária, realizada pelos filósofos burgueses alemães antes mesmo da
Revolução Francesa, são aproximáveís a fórmula do “prazer puro e gratui­
to ” de Moritz e o conceito do “prazer desinteressado” de Kant. A frase ga­
nha sentido e perde sua aparência de paradoxo se a relacionamos com a

1 60
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VO L . 1

subversão nas relações de produção literária. Para Moritz e Kant, não se tra­
ta mais de diferençar a natureza e o artefato, sobre a qual tanto trabalhara a
teoria estética, mas sim da diferenciação categorial entre beleza e utilidade.
Daí que, em 1788, Moritz tenha extremado a posição em um arriscado pa­
radoxo: “Os conceitos de belo e inútil não só não são mutuamente exclu-
dentes, como até mesmo são conformes entre si.”225 Com isso se dava um
exemplo que faria escola. Com a resolução deste problema básico da estéti­
ca, resultante da “separação das artes” quanto aos valores do cotidiano, des­
terrava-se do campo da verdadeira arte notadameete a literatura didática e
moral
Se procurarmos determinar a base real do puro procedimento didático-
conceitual de Moritz, veremos que ele se encontra no antagonismo entre o
belo e o útil, que, de seu lado, depende da oposição entre belas-artes e artes
mecânicas. No fim do século XVIII, precisava-se, na Alemanha, estabelecer
um abismo entre o conhecimento do belo e o conhecimento de sua função
social que pusesse em dúvida qualquer fixação dos fins imediatos da arte e5
só a partir daí, permitisse pensar-se em um efeito geral do belo. Como que
enfeitiçado por mão mágica, o pensamento estético gira em torno da idéia
da totalidade da obra de arte, de que o princípio da contemplação constitui
apenas a determinação complementar ao lado da recepção. E na formação
do mercado literário que percebemos o processo histórico motivador desta
teoria.
Com a institucionalização de uma esfera de mediação entre o autor e os
receptores, dão-se para ambos mudanças fundamentais, sobre as quais não
há diferenças de opinião significativas. A medida que o mercado literário se
estabiliza e conduz a uma demanda metódica de produtos literários, o autor
tem a possibilidade de transformar sua dependência pessoal ante um mecenas
na existência de um escritor independente, que procurava viver da venda de
suas obras. Daí que, como nota a aguda observação econômica de Garve5 a
tradução tenha desempenhado um papel decisivo e tenha, no sentido pró-
prio do termo, “introduzido o ofício do escritor. Pois cada um pode-se apres­
sar quanto queira: a obra própria é escrita apenas quando se p o d e ”.116 Este
fenômeno que, de imediato, afetou apenas um número limitado de escrito­
res, alcançou no século XVIII, tanto na Inglaterra quanto na França e na
Alemanha, uma rápida aceleração. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se, a partir
de um círculo relativamente estreito de receptores privilegiados, um público
moderno de massa. A forma de mediação da produção poética, concretizada

1 6 1
LUI Z COSTA LIMA

por meio do mercado, implicava, do ponto de vista dos receptores, um imenso


progresso e possibilitou antes de tudo a libertação do escritor das relações
de dependência pessoal. Em troca, é uma questão controversa a resposta à
questão sobre as conseqüências para a própria literatura da formação do
mercado literário. As posições opostas assim se formulam: há de se compre­
ender a inclusão da literatura no espaço do mercado como a “comercialização
da criação literária”,227 ou, “com tal formulação, estabelece-se uma analogia
precipitada entre os processos histórico-literário e econômico”.228 A primei­
ra posição se apoia na convicção de que “não é de se refutar, ou de descurar,
que todos os produtos em uma economia capitalista (e na socialista que ainda
trabalha com o equivalente do dinheiro) portam o caráter de mercadoria”.229
“O livro, no mercado literário, é o invólucro comercial (Warenhülle) da lite­
ratura, a expressão de uma certa forma histórico-social de mediação, pela
qual o resultado do trabalho improdutivo (sic) — o conteúdo estético-literá-
rio, a determinação material da produção literária — alcança o leitor. (...)
Em conseqüência, o caráter de mercadoria do livro influencia a relação de
comunicação, mas não é uma propriedade do objeto da literatura”,230 escre­
vem contrariam ente e em polêmica direta os autores de Gesellschaft —
Literatur — Lesen (,Sociedade — literatura — leitura). Procuremos esclarecer
esta complexa problemática da atualidade, a partir de sua origem histórica,
quando as coisas eram menos intrincadas.
Enquanto as obras literárias foram escritas a partir de demandas concre­
tas ou para fins determinados, as esferas de mediação eram desnecessárias.
O autor então compunha uma obra que “se ajustava a condições específicas
(...) externas”.231 Assim sucedera com Píndaro e seus cantos triunfais ou ain­
da com grande parte das peças de Molière, destinadas às festas do rei, em
Versailles ou em Chambord. O texto era apenas um elemento dentro do con­
junto de decoração, vestuário, música e dança. Daí a extrema hesitação de
Molière em permitir a impressão de suas tão admiradas criações. No prefá­
cio às Précieuses ridicules (1660), a primeira peça por ele mesmo editada,
aparece a seguinte declaração: “Como uma grande parte das graças que aí se
encontram depende da ação e do tom de voz, importou-me que se não lhes
despojasse destes ornamentos e concluí que o êxito que tiveram na represen­
tação era bastante belo para que restassem aí.”232 Como Molière faleceu em
1673, sete de suas peças permaneceram inéditas. Por conseguinte, a glória
póstuma interessava a Molière menos que o pronto cumprimento dos dese­
jos de seu senhor, cuja realização exitosa o enchia de orgulho. Seria diversa

16 2
.. , -.J
a situação se ainda no século XVII aa ocasião (pudesse) determinar o talen­
to”,233 como escrevia nostalgicamente Goethe a Schiller, no início do século
seguinte. Apenas em casos isolados, as oportunidades concretas e os fins
determinados ofereciam a ocasião para a constituição de obras de arte. A
produção da arte tornara-se normalmente dirigida para o mercado literário
anônimo; estabelecera-se a “produção da arte como tal” (Marx).234
Deste modo, a causa da mudança na situação do escritor caracteriza-se
pelo seguinte ponto: o êxito, de que Molière ainda falava com absoluta na­
turalidade, tornou-se agora problemático. O mais genial prosador prussiano
daquele tempo, Georg Forster, fixou em frase afiada a absoluta novidade da
relação do escritor quanto ao efeito de sua obra: “O artista, que trabalha
apenas pelo entusiasmo, mal ainda é merecedor de admiração.”235 A relação
com o êxito e o entusiasmo pela própria criação são agora quebrados, pois a
mediação do mercado anônimo não só cortara praticamente as relações pes­
soais do artista com os receptores, quanto se tornara conscientemente uma
relação com a “forma equivalente geral”, ou seja, com o dinheiro.
Kant descreveu secamente esta situação pela distinção entre “arte livre”,
dotada de seu próprio fim, e “arte paga”, trabalho ou meio para um fim:
“Encara-se a primeira como passível de ter êxito apenas como jogo, i. e., como
uma ocupação agradável em si mesma; a segunda, porquanto é reclamada
como trabalho, i. e., como ocupação em si mesma molesta, é apenas por seu
efeito (i. e., a sua paga), pode ser coercitivamente imposta.”236 Em Forster, a
mesma situação aparece com a paráfrase do “trabalhar apenas pelo entusias­
mo”. “Entretanto”, diz ele, considerando esta concepção de arte como sua
“frase favorita”, “a alma (do artista) era tão rica e seu impulso de criar tão
forte que aquele motivo se dissipou ou pelo menos jamais o incomodou em
sua espontaneidade, de forma que ele pinta com o sentimento de sua exube­
rante força criativa; não me espanta assim que sua obra não seja dotada da
marca de si mesmo e não tenha as características do gênio.”237 Se, no entan­
to, a idéia de “entusiasmo” ou de “paga” pelo trabalho deviam ser abando­
nadas para que a obra tivesse êxito, isso só pode significar que o artista
tornou-se consciente de sua nova relação com a sociedade, enquanto produ­
tor de mercadorias.
Não faltam testemunhos que comprovam que os escritores alemães com­
preenderam, no último terço do século, sua nova situação de forma cada vez
mais clara. Por volta de 1772, Lessing, no fragmento (“Projekt für Schriftsteller
und Buchhándler” (“Projeto para o escritor e o livreiro”), não quer mais saber

1 6 3
LUI Z COSTA LIMA

da validade do lema luterano “dai e recebei sem paga”. Para romper com
este muito difundido preconceito, que expressava a manutenção da depen­
dência social dos literatos quanto aos mecenas nobres, não parece a Lessing
que o rebaixamento oriundo da comparação proposital com o mais baixo
trabalho assalariado seja um preço demasiado alto: “Como? Devia-se levar a
mal o escritor que busca tornar os produtos de sua cabeça tão lucrativos
quanto possível? Se ele trabalha com suas forças mais nobres não deve gozar
da satisfação que tem o mais bronco dos ajudantes de pedreiro, i. e., de con­
seguir seu sustento por sua própria diligência?”238
Também Wieland, tão logo abandonou na Suíça o período seráfico, de­
fendeu constantemente o direito ao controvertido honorário como base para
a independência do escritor. A censura de mentalidade baixa, contra ele
lançada pela “fábrica mercurial”, o editor do Teutschen Merkur (Mercúrio
Teutônico) opunha, em 1777, um parecer singular: seria “de fato uma coisa
maravilhosa deixar que sua luz brilhasse gratuitamente, como o sol”; no
entanto, quem se encontre “na situação de ter de viver de seu trabalho ou de
seu talento, deve também poder viver disso”. Mesmo se se reconhece como
profundamente correto que “nenhum verdadeiro intelectual ainda deva es­
crever para ganhar o pão”, sucede entretanto que “alguns verdadeiros inte­
lectuais (...) têm, na Alemanha, de escrever para seu ganha-pão”. A consciência
do valor da obra literária no mercado assim caminha paralelamente à cons­
ciência de seu valor artístico: “A menor obra do gênio e da arte”, ainda afir­
ma Wieland, “que a seu modo seja perfeita, é, de fato, sem preço, do ponto
de vista de seu valor interno.”239
Também Garve se inclui entre aqueles que encaram positivamente a nova
relação. Com uma precisão não encontrável noutro escritor da Alemanha da
época, escreve em 1791 ao dramaturgo Weisse: “Eles estão certos. Um escri­
tor tem tão pouca razão de se envergonhar por vender seu livro quanto um
advogado ou médico por ser pago pela condução do processo de um cliente
ou por curar suas enfermidades, pois realizam um trabalho intelectual tão bom
quanto aqueles. Mesmo os funcionários do Estado, inclusive os mais altos, são
pagos por seu trabalho.” E, depois de haver realçado a diferença entre a paga
pelo serviço prestado ao Estado e a paga pelo manuscrito de destino incerto,
Garve generaliza: “Como o preço do mercado para cada mercadoria é distin­
to de seu valor interno, aquele pela concorrência e pela demanda do compra­
dor, este pelo tempo e energias despendidas, daí resultam relações entre o
escritor e o editor que às vezes são desvantajosas para o primeiro.”240

1 6 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL, 1

Já destas provas é de se concluir que a reflexão sobre a inédita natureza


dupla de produtores de arte e de mercadorias devia também influir sobre a
criação literária. Lessing manifesta em uma carta que “escrever por dinhei­
ro, naturalmente, (...) tem influência sobre a matéria”.241 Schiller conheceu a
verdade desta frase a partir de uma experiência pessoal dolorosa: “Sei por
fim”, confessa em 1791, “que em nosso mundo literário é incompatível sa­
tisfazer ao mesmo tempo os reclamos exigentes da arte e proporcionar à sua
atividade letrada a sustentação necessária. Há dez anos que me esforço em
fundi-los, mas, para consegui-lo apenas em certa medida, sacrifiquei a mi­
nha saúde.”242
Em face de tão autorizados testemunhos, por que condenar globalmen­
te, tomando-a como analogia precipitada entre os processos histórico-literá-
rio e econômico, que se fale do caráter de mercadoria da literatura sob as
relações de mercado? Como mostra a dissensão presente na consciência de
Schiller, assim se opera com uma análise extremamente superficial, que ape­
nas trata da literatura e que termina por escamotear o verdadeiro problema.
Pois Schiller não faz nenhum segredo sobre quais são suas obras que consi­
dera como “trabalhos literários” escritos para sua sobrevivência, e quais as
que julgava obras de arte, “trabalhos preferidos” com que podia ganhar
“menos”. A questão sobre o “que na literatura deriva ou é oposto ao caráter
de mercadoria”243 é, por conseguinte, legítima, mesmo se não aceitarmos o
critério próprio de Schiller, que diferencia rigorosamente criação poética de
“escritos econômicos”.244
Devemos a seguir nos ocupar apenas das concepções de que historica­
mente derivou, na história da arte, o reconhecimento de que a forma de
mercadoria das obras de arte daqui em diante acompanhará a produção ar­
tística, como uma tentação cada vez mais atraente.
O que na época estimula os espíritos não é o “valor de uso do bem lite­
ratura”, mas o novo fenômeno econômico dominante, seu valor de troca.
Assim vistos, a formação de um mercado literário e o período de florescência
da estética na Alemanha não são fenômenos mutuamente independentes.
Põem-se, ao contrário, em uma relação de causalidade, descoberta por M arx
em sua análise do caráter de fetiche da mercadoria. “E apenas em sua troca
que os produtos do trabalho adquirem, como valores, uma existência social
idêntica e uniforme, distinta de sua existência material e multiforme, como
objetos de utilidade. Esta divisão do produto do trabalho em objeto útil e
em objeto de valor se amplia na prática tão logo a troca alcançou bastante

1 6 5
LUI Z COSTA LIMA

extensão e importância para que coisas úteis sejam produzidas para a troca,
de tal modo que o caráter de valor destes objetos já é levado em conta em
sua própria produção. A partir deste momento, os trabalhos privados dos
produtores adquirem, de fato, um duplo caráter social. De um lado, devem
ser trabalho útil, satisfazer necessidades sociais e afirmar-se assim como par­
tes integrantes do trabalho geral, de um sistema de divisão social do trabalho
que se forma espontaneamente; doutro lado, satisfazem as necessidades di­
versas dos próprios produtores apenas na medida em que cada espécie de
trabalho privado útil é permutável com todas as outras espécies de trabalho
privado útil, assim reputado seu igual.”245
Na segunda metade do século XVIII, a produção artística e literária atin­
giu, em escala histórico-mundial, este ponto de inflexão. Tão logo o “cará­
ter de mercadoria” da obra de arte “já é levado em conta em sua própria
produção”, realiza-se a separação da obra de arte “em objeto útil e objeto de
valor”. Abriu-se desta maneira um campo incalculável para a reflexão estéti­
ca que aguardava sua transformação.
Se, a partir deste fundamento marxista, observamos a determinação das
belas-artes por Moritz, tornar-se-á compreensível o filão mlstificante. Isso não
resulta da origem teológica dos conceitos aplicados,246 riias do “caráter místico
da mercadoria”. Pois “o valor não traz escrito na testa o que é. O valor converte
ao contrário cada produto do trabalho em um hieróglifo social”.247 O mesmo
se passa com os resultados da produção intelectual e artística.
No esforço de captar a obra de arte como “um todo em si”, ou seja, “per­
feito em si mesmo”, para ressaltar seu valor interno, pelo qual ela é diferen­
ciada dos produtos apenas úteis das artes mecânicas, delineia-se claramente
o desenvolvimento da chamada concepção romântica da obra de arte orgâ­
nica.™ Pois, na medida em que a finalidade é deslocada “para o próprio
objeto”, a idéia de vida se torna subordinada ao objeto.
“Com o conceito de finalidade interna”, lê-se na Enzyklopãedie der
philosophischen Wissenschaften (Enciclopédia das ciências filosóficas), Kant
ressuscitou a idéia em geral e, particularmente, a idéia da vida. A determina­
ção da vida por Aristóteles já continha a finalidade Interna e, por Isso, ultra­
passa de muito os conceitos da teologia moderna, que leva em conta apenas
as finalidades finita e aparente*249 A crítica de Hegel não alcança pois Moritz,
mas sua interpretação pelos filósofos burgueses, como Baumgãrtner, para
quem representa “a estética de Moritz (...) não outra coisa” senão “um tras­
lado do conceito de mundo da metafísica de seu tem po para a esfera
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VO L . 1

estética”.250 No entanto, não foi apenas na escola metafísica alemã que a “fi­
nalidade” se tornou uma fórmula mágica, com que estava pronto, para cada
problema, o decreto impenetrável da divindade. Assim como Wolff justifica­
ra a luz do dia por ser necessária para a leitura, assim também o escocês Home
observava que o sentido do belo foi adquirido pelos homens para tornar
agradáveis os objetos do mundo ambiente. Home escreveu: “Como o belo é
muitas vezes também o útil, esta tendência para o belo nos estimula a culti­
var nossos campos e a melhorar nossas manufaturas.” A observação, a ser
escocesamente considerada, irritou A. W. Schlegel, que contestava ironica­
mente: “A beleza deve então prestar serviços econômicos e, por Sua criação,
Deus deve ter-se preocupado com a florescência das manufaturas inglesas.”251
Talvez também para Moritz a pedra fundamental tenha sido a teoria desen­
volvida pelo esteta berlinense Sulzer sobre a origem das artes, na medida em
que este definia sua natureza como o “entrelaçamento do agradável com o
útil”. Sulzer entendia a inclinação para o “embelezamento como a mais ne­
cessária para os homens”.252 Seguia assim um caminho cuja questão central
consistia em indagar a relação entre as coisas de uso cotidiano e o belo, muito
embora isso não se destaque na recensão excessivamente famosa do jovem
Goethe.253 Qualquer que tenha sido a variante da teologia ou da estética da
época levada em conta por Moritz, à sua concepção distinta se integraram as
novas condições de mercado, por meio da introdução do útil como catego­
ria. Já não se dirigia a discussão pela diferença entre arte e natureza ou pela
distinção entre arte e ciência, pois ela se deslocara para a consideração da
oferta de bens produzidos pela sociedade e mediados pelo mercado.
As últimas considerações do pequeno ensaio mostram que M oritz de
fato se preocupava com a problemática da mercadoria e que seu texto não
poderia ser interpretado apenas a partir da comparação com as artes. A
objeção de que seria impossível que o inútil ou o sem finalidade causasse
prazer a um ser racional, M oritz contestava recorrendo à finalidade da
forma: “Onde (...) falte a um objeto uma utilidade ou fim externo, este deve
ser buscado no próprio objeto, tão logo ele desperte prazer em mim. Ou:
devo encontrar nas partes isoladas do mesmo tanta adequabilidade que es­
queça de perguntar para que deve servir propriamente o todo ? Com outras
palavras: diante de um objeto belo, devo encontrar prazer graças a si mes­
mo; para este objetivo, a carência de adequação externa deve ser substituí­
da por sua adequação interna; o objeto deve ser de algum modo perfeito
em si mesmo.”254

16 7
LUI Z COSTA LIMA

Manifesta-se aqui a raiz social da tendência da compreensão burguesa da


literatura, consistente em supervalorizar o lado formal. Do mesmo modo que
a forma da mercadoria apresenta como caráter concreto o seu caráter social
dos produtos do trabalho, assim também a forma da mercadoria espelha o
caráter social das obras de arte como sua qualidade natural. Daí que ao cará­
ter de fetiche do mundo das mercadorias corresponda, como uma fantasma-
goria especificamente estética, o formalismo na teoria da arte. Por esse motivo,
as mediações sociais do mercado provocam uma eficácia específica da obra
de arte sobre certas necessidades pessoais. Neste sentido, “se falta uma utili­
dade externa ou um fim, (...) este deve ser buscado no próprio objeto”. Por
isso, em Moritz, “à regressão e à limitação das pretensões artísticas quanto à
concretização do conteúdo das exigências da arte” corresponde “uma verda­
deira hipertrofia das formas simbólicas, que serão atribuídas à forma da
arte”.255
A reflexão sobre as idéias de “adequação interna”, do “pleno em si mes­
mo”, i. e., sobre a “totalidade” da obra de arte e sobre as relações sociais que
assim se faziam obscuras — relações nas quais os autores são obrigados a
produzir para um público anônimo — levava a uma tarefa problemática:
contrapor-se à crescente orientação sociológica e proclamar “a obra de arte
como valor próprio”. Pois a objeção principal de Alfred Kurella: “Este pro­
cedimento, que reduz a totalidade da obra de arte objetiva a seu efeito, é,
por assim dizer, a teoria de mercado da criação artística”,256 não considera
que a ideologia da totalidade adere às obras “tão logo elas são produzidas
como mercadorias”.
Desde a famosa condenação do Cid de Corneille pela Academia France­
sa, a consideração da arte tem pressuposto que também as obras-primas re­
conhecidas não são absolutas ou plenas se não contiverem, ao lado das
qualidades exaltadas, também debilidades. Para mostrar adequadamente os
dois aspectos, o bom a ser louvado e o mau a censurar, cabe ao crítico — que
precisa as regras mais genéricas pela comparação das obras pertencentes a
um gênero — analisar a obra de arte sob os diversos aspectos e segundo suas
partes componentes. Ao passo que a atividade de Lessing ainda era determi­
nada por esta concepção da crítica, Fríedrlch Schlegel destacava a “constru­
ção e o reconhecimento do todo” na arte como “a condição única e a mais
essencial de um crítico”257 — razão pela qual Moritz trazia em si as condi­
ções de tornar-se “o Wínckelmann da filosofia”.258 Moritz desempenhou um
papel decisivo, nessa importante viragem, pela consideração estritamente
TEORIA DA LITERATURA E M S U A S F ON T E S — VO L . 1

imanente das obras isoladas, que já não são consideradas do ponto de vista
de seu efeito poético, mas sim de sua poeticidade. A nova crítica, ele ofere­
ceu seu fundamento teórico com a frase: “Para observarmos, entretanto, cada
obra de arte como um todo em si mesmo é necessário descobrir na própria
obra o seu ponto de vista (Gesichtspunkt), por meio do qual todas as partes
se representam em suas necessárias relações com o todo e por meio de que
nos é evidenciado que na obra nem algo é supérfluo, nem falta algo.”259 Desta
maneira não era apenas realizado um afastamento radical da compreensão
da crítica de até então. Com o postulado da construção do todo, liga-se em
Moritz também a idéia de que, desta maneira, “deve ser dito algo de digno
sobre as obras de arte”.260 Introduzia-se assim uma estetização da crítica, “que,
na verdade, não desejará ser propriamente uma obra de arte, que, entretan­
to, permanece na esfera da arte, partilhando da dignidade desta por seu re­
lacionamento com o obra de arte”.261
Com efeito, o pressuposto da nova concepção da crítica era a obra de
arte, a qual ainda justificava a conduta contemplativa e o aprofundamento.
Quando este pressuposto não se realizava, o objeto não correspondia à mais
elevada exigência da arte e a conduta descrita do crítico assumia a mais agu­
da polêmica.
O próprio Moritz ofereceu exemplos brilhantes para as duas possibilida­
des. Na resenha “Über ein Gemàlde von Goethe” (“Sobre um retrato de
Goethe”), de 1792, reconhecia uma parte do Werther como “um padrão in­
superável” de expressão poética, no gênero em pauta. Ao invés, os dramas
da mocidade de Schiller receberam, em 1794, um julgamento arrasador. Numa
resenha concisa de Kabale und Liebe (Cabala e amor), Moritz, irritado, ex­
cluía qualquer exame mais detalhado — “Na verdade, mais um produto que
faz vergonha a nossos tempos! Como pode um homem escrever e deixar que
se imprimam tais disparates (...)”. A seguir, Moritz desenvolvia um arrazoa-
do minucioso, em que devia “apenas apontar (...) todas as contradições e
absurdos dos personagens schillerianos”, chegando à seguinte conclusão:
“Mas agora basta, lavo minhas mãos desta sujeira schilleriana e prometo a
mim mesmo nunca mais delas me ocupar”.262 Nenhuma sílaba em crítica tão
feroz denuncia que na peça se trata de uma “sátira política violenta” (Hettner)
da imediata atualidade alemã, de “o primeiro drama político alemão”, juízo
ao qual Engels entretanto acrescenta ser isto “o melhor que se pode dizer da
peça de Schiller”.263 Como não há em Moritz nenhuma referência a manei­
ras políticas de pensar, é inadmissível a suspeita de uma intenção denuncia-

16 9
LUI Z COSTA LIMA

dora por parte do resenhador. O que o determinava era aplicar os princípios


de sua teoria do belo pleno a um caso concreto: a obra de arte não é mais
valorizada pela utilidade social que ocasiona, mas por sua plenitude Interna.
O critério decisivo é a sua ausência de contradição Interna e a mensagem
nada vale onde falta a plenitude.
Pertence à natureza das coisas que os métodos de análise literária e artís­
tica, uma vez desenvolvidos, possam também servir a metas Ideológicas mais
amplas. A enorme repercussão das Vorlesungen über dramatiscbe Kunst (Pre-
leções sobre a arte dramática) de A. W. Schlegel relaciona-se, sem dúvida, com
o fato de que os conceitos de totalidade e liberdade de fim (Zweckfreiheit)
fossem empregados como armas eficazes para o descrédito estétlco-ideoló-
gico da literatura iluminista em geral. Diderot, que era para Lessing o me­
lhor crítico francês da arte, para Schlegel não é “nada”, pois a finalidade da
poesia não é apenas a moral. Sobre as tragédias de Voltaire, que se converte­
ram em sinônimo da propaganda filosófica via teatro, diz que “utilizava a
poesia como meio para finalidades estranhas”. O julgamento de Voltaire, que
considerava o quinto ato de Rodogune de Corneille um dos melhores do dra­
maturgo francês, recebeu o seguinte comentário: “Esta apreciação das obras
artísticas por partes, que elogia partes em contradição com o todo sem o qual
elas não podem ser apreciadas, nos é bastante estranha.”264 O prejuízo que o
novo ideal de arte causou aos iluministas franceses não foi menor que o cau­
sado aos alemães. Assim, August Wilhelm Schlegel considerava que Lessing
“não indagara o mistério da poesia”. Seu irmão Friedrich negava a Forster
“sentimento artístico apropriado para as representações do belo”, sob o fun­
damento de que “nenhuma plenitude da representação podia reconciliá-lo
com uma matéria que feria sua delicadeza, ofendia sua moralidade ou deixa­
va seu espírito descontente”.265
Moritz não se afastou das conseqüências que tal ponto de vista causava
para os produtores de arte. O artista que não desejasse “fazer obras conscien­
temente imperfeitas”, por concessão ao “gosto talvez estragado” de um pú­
blico anônimo, deveria levar em conta apenas a “plenitude”266 interna da obra.
O prazer, outrora tomado como o “fim principal” da arte, é deste modo
suprimido do horizonte do artista e depreciado como uma conseqüência
ocasional. O êxito de uma obra de arte “talvez possa ser um sinal”267 de que
o alvo foi alcançado; mas não deve ser a priori programado e é de antemão
suspeitoso, se “é levado em conta já em sua própria produção” (Marx). A
“conspiração ‘Idealista5contra o público”,268 de que falava Brecht a propósito

1 ? o
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOl. 1

da leitura do Briefwechsel zwischen Goethe und Schiller (Correspondência entre


Goethe e Schiller), encontrou nesta convicção o seu ponto de partida. A nova
imagem condutora que Moritz estabelece para o artista, em que, pela pri­
meira vez na história, a plenitude estética e o efeito social concreto da obra
de arte são postos em uma relação de contraditoríedade, há portanto de ser
vista como a expressão teórica da nova posição social do escritor enquanto
produtor para um mercado anônimo. Relaciona-se com a contradição cen­
tral à história literária burguesa — apresentada, em sua forma desenvolvida,
por Adorno e Horkheimer como oposição entre as funções estética e social
da literatura e que atribuímos à “separação entre os métodos de análise esté­
tica e social”269 — o fato de Moritz oferecer ao artista como modelo para sua
criação as seguintes frases simplistas: “Anime-te sempre a idéia da aprovação
de tua obra pelos nobres; mas não a convertas em teu supremo alvo, do con­
trário serás o primeiro a errar. Mesmo o mais entusiasta dos aplausos não
deve ser forçado, mas apenas eventualmente alcançado.” Como Forster, tam­
bém Moritz insiste em que a idéia de êxito ou glória, enquanto motivo para
a criação, é uma traição à arte: “Se tua idéia básica é (...) a imagem do aplau­
so e se tua obra é digna apenas na medida em que te propicia a glória, renun­
cies então à aprovação dos nobres. Trabalhas segundo uma meta pessoal: o
núcleo da obra estará fora dela, não a produzirás para que ela seja graças a si
mesma e assim tampouco produzirás um todo pleno em si mesmo.”270
Sintoma da nova relação social do “artista estimado” é o fenômeno que
se denominou de a “forma dupla do leitor”. Ao lado dos receptores concre­
tos, entra o leitor idealizado, considerado pelo autor, durante o trabalho,
como o verdadeiro destinatário e cujo ingresso posterior no público real é
valorizado. Isso deve provocar um resultado necessariamente insatisfatório.
A mediação do mercado assim penetra, de forma alterada, na psique do ar­
tista. Por certo, quanto mais a idealização do leitor contribui para elevar o
valor artístico de uma obra, na medida em que se torna mais rigorosa a exi­
gência social do escritor, tanto mais dolorosa será a sensação de que “tais
obras se transformarão nas mercadorias de um negociante”.271
Estão deste modo esboçados os aspectos essenciais da idéia de autono­
mia de Moritz, que patentemente se tornarão as antinomias do conceito
burguês de literatura dos séculos XIX e XX. Por conseguinte, a significação
histórica do ensaio de Moritz está em haver oferecido o primeiro esboço de
uma teoria da arte, sob as condições de um intercâmbio comercial em avan­
ço. Deste ponto de vista, é característico que as novas conseqüências sociais

1 7 1
LU I Z COSTA LIMA

da produção artística sejam refletidas quanto à obra, quanto ao autor e quanto


aos receptores, sem entretanto tratar da mediação do mercado, i. e., da cir­
culação e da distribuição. Desta maneira, a análise empreendida por Moritz
afasta da produção artística justamente o aspecto principal, desde o princí­
pio determinador de sua função. A medida que cala sobre seu caráter de
mercadoria, abstrai-se daquela determinação concreta pela qual as obras de
arte fazem parte da sociedade burguesa. Se, no entanto, esta particularidade
dos produtos artísticos é relegada a segundo plano e se põe, em seu lugar, a
ficção de uma independência social, “a dependência real — que neles se
corporifica desde o início conquanto seja conscientemente ‘ignorada’ —
aparecerá também como ficção, como um abstrato peculiar”.272 O valor daí
se converte na idéia dominante da reflexão estética tão logo a relação entre
obra de arte e dinheiro é a tal ponto mistificada que a análise da obra de arte
é separada das mediações sociais do mercado.
A aparência assim resultante da autonomia da arte faz necessário um
exame diferenciado. Ao se captarem os conceitos de “totalidade”, de “pleno
em si mesmo” e de “adequação interna” como expressões objetivas de idéias
acerca da produção artística sob as relações de mercado, não se esclarece
apenas o triunfo europeu da filosofia alemã da arte, em princípios do século
XIX, e sua validade para todo o tempo histórico da burguesia. Tanto nas
relações capitalistas de então, como de agora, introduz-se, sob o distancia­
mento do público anônimo, não só um “complô” aristocrático-intelectual,
quanto, ao mesmo tempo, a negação de a produção artística estar submetida
às leis capitalistas de mercado. Cabe a cada crítico do conceito de autonomia
refletir sobre isso. Caso contrário, corre-se o risco de que a exposição feita
com um conceito burguês amplie efetivamente a literatura de manipulação
imperialista, excluindo-se assim um mecanismo de defesa ideológico elabo­
rado contra o uso do capital.
Também se deveria levar em conta, com sangue-frio, a função contradi­
tória da esfera de mediação na sociedade socialista. Infelizmente, Lukács
enunciou apenas uma meia-verdade quando, da verificação de que o desen­
volvimento capitalista “destruiu quase por completo a relação imediata en­
tre o artista e o público”, enunciou, em 1947, a tese segundo a qual é uma
“possibilidade social efetiva” o restabelecimento da imediatidade entre o
artista e o público, anulada pela “mediação capitalista”.273 Pois, se é certo
que o socialismo combate a ideologia da torre de marfim e cria múltiplas
possibilidades de encontro imediato do artista com o público, não suprime,

1 7 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

entretanto, o processo de socialização da arte, consumado pelo capital. Em


vez de suprimi-lo, ele o impulsiona. Os editores, as agências de arte e de
concertos de música, afastam-se, de fato, da busca capitalista de lucro, mas
não são “expurgados”. Em conseqüência, a “mediação”, porquanto inse­
parável da socialização, é apenas em certa medida superada. Porque Lukács
condena globalmente a mediação capitalista, em vez de negar dialeticamente
apenas sua forma mesquinha, pode chegar a um juízo demasiado formal, que
não considera as mudanças históricas dentro dos pressupostos materiais da
história da literatura: “A relação da obra de arte com esta ou aquela classe
social, historicamente determinada, não é algo que faz parte a posteriori, em
grau maior ou menor, da obra subjetivamente concebida e objetivamente exis­
tente. Ao contrário, esta relação é o fundamento constitutivo de sua gênese
e de sua estética. Isso tanto vale para a arte antiga, quanto para a moder­
na.”274 A partir de tal abstração, que perverte um começo correto pela
abstratização em que cai, não mais se pode perceber a mudança histórica da
concepção da arte, iniciada há duzentos anos. Não data de hoje, mas sim de
então, que o artista, enquanto produtor de bens, “tenha diante de si, objeti­
vamente, na medida em que considera a função social da arte, o mercado
abstrato”.275 Por essa razão o sensualismo do período iluminista teve de ce­
der ao dogmatismo da chamada produção estética romântica. E por isso, na
teoria estética, a função da arte face ao público foi quase esquecida, em fa­
vor do conceito da obra de arte como expressão sem fim do indivíduo (ais
zweckfreien Ausdruck des Individuums).
Ao processo pelo qual “o público se tornou anônimo, amorfo e sem
fisionomia”276 e o efeito sobre o público assumiu para a consciência artística
um significado secundário, logo convertendo-se, por influência do merca­
do, em autonomia, correspondeu, até o fim do século XVIII, a ascensão da
fantasia artística ao posto de momento determinante na relação das diversas
partes do processo literário. A valorização do gênio e da imaginação reflete
não só o fato de que com o fim da arte de encomenda e a ampliação das
possibilidades de venda podia “o produtor dar vazão às suas fantasias cria­
doras, a seus caprichos individuais”,277 como, simultaneamente, a situação
criada para o artista que, sem ocasião e motivação imediatas, devia criar
permanentemente a partir tão-só de seu próprio estímulo. Como Brentano
certa vez se queixou, o artista era agora coagido “a transformar-se por força
em poemas, para adornar os ingratos aficionados em seus dias de festas, os
quais nem por isso se mostravam agradecidos”.278

17 3
LUIZ COSTA LIMA

Resulta daí que, nestas condições, a observação do talento artístico devia


ocupar um posto central em todas as reflexões estéticas. “A mistificação do
sujeito artístico implicada no conceito de autor das ciências do espírito”279
encontrava aqui seu verdadeiro solo. Porquanto, através do mercado, as rela­
ções do artista com seu trabalho e com seus resultados não mais “transparecem
simplesmente na produção, pois ainda se mostram na distribuição”,280 o ar­
tista se torna de natureza semelhante à divina, que produz “apenas com o
sentimento de sua inflamada criatividade” e encontra a máxima satisfação
no “autodeleite” de suas obras. Em um estilo messiânico, Forster explicava
para os artistas a lei do momento histórico: “Na verdade, fosse o reconheci­
mento alheio do mérito próprio o galardão singular pelo qual trabalhasse o
grande artista, duvido que jamais teríamos visto uma obra-prima. Ao contrá­
rio, a exemplo da divindade, a ele deve animar e satisfazer o autodeleite que
sua própria obra causa. Deve-lhe bastar que a sua grande alma transpareça
no bronze, no mármore, na tela ou nas letras. Aqui concebo quem possa
concebê-la.”281
Moritz tivera a mesma idéia no fecho de seu ensaio de 1785: “O verda­
deiro artista procurará trazer a máxima adequação interna ou perfeição à
sua obra; e se é admirado, alegra-se, mas sua finalidade própria já foi atingi­
da com a perfeição da obra.”282
No ensaio publicado em 1788, Über die bildende Nachahm ung des
Schõnen (Sobre a imitação plástica do belo), cuja importância foi exagerada
por causa da colaboração de Goethe, M oritz desenvolveu mais detalha­
damente seu ponto de vista. O deslocamento do centro de gravidade na con­
sideração da arte, com o abandono do prazer na arte em favor da criatividade
da arte, inclui-se agora no contexto hístórlco-ídeológíco da recepção alemã
de Spinoza e, assim, se mostra como a conseqüência ideológica do conceito
de “gênio criador”. Pelas reflexões sobre a imitação plástica do belo, nossa
sensibilidade poderia ser de fato aguçada e nosso prazer ser cumulado. “En­
tretanto, como nossa suprema fruição do belo não inclui a capacidade de criá-
lo a partir de nossa própria força, a única fruição suprema deste belo será
sempre a do próprio gênio criador. O belo já atingiu sua finalidade suprema
no momento de seu nascimento, de sua criação: a nossa fruição posterior
(Nachgenuss) é tão-somente conseqüência de sua existência. Assim, o gênio
plástico, no grande plano da natureza, antes de mais nada existe para si mesmo
e só depois para os outros, já que há à sua volta seres que, incapazes de criar,
são contudo capazes de compreender com a sua imaginação (Einbildungskraft)

174
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

os produtos da criação.”283 Malgrado as vestes spinozianas, é Inequívoco o


reflexo contraditório da produção artística sob as condições de mercado. Pois,
por um lado, a separação do mercado parece levada ao extremo: a recepção
da arte, como tal, é desvalorizada como um prazer secundário (Nachgenuss),
jamais atingindo o “autodeleite” do criador. Por outro lado, a Idéia de cria­
ção “a partir de nossa própria força” e da autoflnalídade da obra de arte,
bem como a idéia do gênio plástico seriam inimagináveis sem a pressuposta
libertação do mecenato e sem a formação de um mercado — mesmo que
Moritz pareça considerar o “gênio plástico” como um fenômeno da natureza.
Não é aqui o lugar de tratarmos da recepção alemã de Splnoza em sua
relevância estética e de analisarmos a chamada doutrina panteísta da arte.
Muita coisa entretanto já está clara: o ensaio precedente de Moritz, ainda
eão escrito na proximidade de Goethe e ainda não no estilo do “rapsodo
filosófico” (A. W. Schlegel), mostra-se ainda isento das mistificadoras frases
panteístas. Daí que a pergunta sobre a origem da Ideologia estética da tota­
lidade não conduza ao céu harmônico dos panteístas, mas sim ao solo pro­
saico dos fatos de que partiu. Com a categoria da totalidade, cuja intrincada
pré-história não é aqui discutida, reflete-se a nova forma social de mediação
da arte na estética burguesa. Daí que se eternallze uma relação social, histo­
ricamente originada e ligada ao mercado de produção, quando se sustenta, a
propósito da obra de arte, que “a totalidade e a harmonia de sua manifesta­
ção” pertencem “à natureza das coisas”.284 Assim como as categorias econô­
micas, as categorias estéticas não são entidades metafísicas mas apenas
abstrações do desenvolvimento real das artes e de suas conexões fundamentais.
Através do distanciamento do conceito instrumental de literatura do
iluminismo, distanciamento decisivamente impulsionado por Moritz, o modo
de ação da arte na sociedade transformou-se em um problema manifesto,
requerente de uma nova resposta. Mas em que sentido podia o belo pleno
em si mesmo, “nascido sem atentar para os proveitos ou danos que pode­
riam fundá-lo”,285 conter ainda uma função social produtiva? A absolutização
do ato criador, justificada com a frase “a produção do belo” é “a suprema
realização de nossa força ativa”,286 não apresenta uma norma insuperável? A
solução que Moritz encontra poderia ser assinalada como modelo para o
estudo da cultura afirmativa, para o qual o próprio Marcuse deu apenas uns
poucos exemplos concretos.
No ensaio Über den affirmatíven Charakter der Kultur [Sobre o caráter
afirmativo da cultura) — cujo mérito científico não se esgota com a verificação

1? s
LUIZ COSTA LIMA

de que, no tempo de sua publicação, 1938, significava uma recusa da políti­


ca cultural do front popular287 — Herbert Marcuse descreveu o processo
ideológico, principiado em Aristóteles, de “separação entre o útil e necessá­
rio e o belo e prazeroso”, que culminaria, na filosofia burguesa, no realce
positivo e unilateral do mundo espiritual contra o mundo material, porquanto
“a cultura, como o império dos verdadeiros valores e da autofinalidade, era
confrontada com o mundo do útil e dos meios” ou seja, com a assim chama­
da civilização. Segundo Marcuse, o traço fundamental da cultura afirmativa
é “a afirmação de um mundo valioso, universalmente obrigatório, incondi­
cionalmente afirmativo, a ser permanentemente melhorado, distinto do
mundo efetivo da luta diária pela existência, que há de modificar cada indi­
víduo ‘de dentro5, sem que mexa no mundo efetivo, para que ele se realize”.
O idealismo se revela como a essência da cultura afirmativa: “A necessidade
do indivíduo em particular responde-se com a humanidade em geral, à po­
breza material com a beleza da alma, à escravidão externa com a liberdade
interior, ao egoísmo brutal com a virtude do dever.” Estas respostas, que
impulsionam o anelo de uma vida humana digna e, ao mesmo tempo, conce­
bem a humanidade como “condição interna”, mostram apenas, como assi­
nala Marcuse, a contradição interna da cultura afirmativa, mesmo em sua
florescência clássica.288
Partindo da convicção iluminista de que o gênero humano traz o sentido
de sua existência “em si e não fora de si”, a análise de Moritz da eficácia da
arte é uma análise da idéia “e o indivíduo deve sofrer se o gênero deve-se
elevar”. O progresso do gênero, “o desenvolvimento de todas as forças nele
adormecidas”, inclui, conforme Moritz, “o próprio indivíduo sofredor, cujo
sofrimento, mesmo se ocasional, avança, ao mesmo tempo, através da repre­
sentação (Darstellung), ao ponto mais alto da perfeição do belo”.289 Deste
modo, dois momentos são considerados constitutivos para a função da arte:
a dor individual “resolve-se na manifestação (.Erscheinung)n e remata, tão
logo esta encontra seu observador, na representação (Darstellung)3“na com­
paixão sublime pela qual o indivíduo é arrancado de si mesmo e o gênero
outra vez se plenifica em si próprio”.290 Por conseguinte, cada sofrimento
adquire sentido apenas encontre seu cantor, por meio do qual a bela repre­
sentação propicia às gerações futuras “momentos de elevado sentimento de
dignidade pessoal”.291 Basta o obscuro impulso do indivíduo receptor em prol
da identificação com o gênero, “o desejo de identificar-se com o todo da
humanidade”,292 para que o ciclo se feche e “o gênero” se “eleve”.

1 7 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

Em Moritz, a perfeição do belo e a perfeição do gênero são fundamen­


talmente idênticos: aMas a humanidade não pode se elevar além do ponto
em que, pela nobreza na ação e pelo belo na observação, o próprio indiví­
duo ultrapassa a sua individualidade e se plenlfica nas belas almas, que são
capazes de, indo além da estreiteza do eu, abrirem-se para o interesse da hu­
manidade e se perderem no gênero.”293 Para os iluministas, a alma era o grande
instrumento para que fosse demonstrada a igualdade dos homens e, por an­
tecipação, fosse suprimido o mundo das castas. Em troca, ela aqui se conver­
teu no meio para a mera auto-elevação do indivíduo, porquanto o interesse
concreto da sociedade real foi sacrificado em favor do interesse abstrato do
gênero ideal. Contra Lessing que, por sua dramaturgia, buscava uma arte que
repercutisse no cotidiano e além da fase da recepção imediata, esta estética
representava um retrocesso, pois do efeito da arte levava em conta apenas o
começo, o instante fugitivo da “bela alma”. O “jogo de idéias”, sem solo
concreto do idealismo alemão, triunfa na sentença: “Tão logo a manifesta­
ção (Erscheinung) triunfa no gênero sobre a realidade do individuo, a mais
amarga das dores, através da compaixão sublime e super adora da individua­
lidade, se transforma em doce melancolia; e o conceito da nocividade máxima
no plano do real é resgatado no conceito do belo supremo na manifestação.”294
Idealisticamente alçada à condição de símbolo máximo da humanidade, a
arte impõe o seu preço: assim como as massas são sacrificadas em favor do
progresso, assim também a realidade é sacrificada em prol da beleza da arte.
A sentença pronunciada por Claus Trãger, em 1959, a propósito de Schiller,
também é válida para Moritz: “O destino de todo idealismo é terminar por
tornar-se inumano.”29S
Como já se mencionou, uma reflexão tão ampla da estética antiutilitária
de Moritz parece ser defensável, também do ponto de vista histórico-literá-
rio, uma vez que até o maior poeta alemão dela participou. Quando, em 1816,
Goethe publicou as Italianische Reise (Viagens italianas), reconhecia nas idéias
fundamentais do ensaio Über die bildende Nachahmung des Schònen (Sobre
a imitação plástica do belo) o resultado das conversas mantidas com Moritz
em Roma. Adotou uma parte delas em sua própria obra, considerando o todo
como a primeira expressão histórica de idéias que, “posteriormente desen­
volvidas, examinadas, aplicadas e divulgadas, coincidiram de forma feliz com
o modo de pensar do século”.296 Como não se tem por que duvidar da parti­
cipação de Goethe neste ensaio, deve-se então admitir que Moritz, no en­
contro pessoal do inverno de 1786, tanto tenha dado quanto recebido,

17 7
LUI Z COSTA LIMA

porquanto as linhas mestras de sua teoria estética já estavam desenvolvidas.


Esta suposição é confirmada pelo diário escrito por Goethe para a senhora
von Stein: “O renascimento que se opera dentro de mim prospera. Pensei
bastante no que aprendi aqui; não pensara contudo em voltar tanto à escola,
que tivesse tanta coisa a aprender. Quanto mais me dedico, tantas mais coi­
sas me agradam e não se trata apenas do significado da arte, também o signi­
ficado moral sofre grandes mudanças. (...) Tischbein e Moritz são-me de grande
ajuda e desconhecem o que são para mim, pois também aqui é habitual que
os taciturnos se calem.”297 Durante toda a vida, para Goethe permaneceu
decisiva a mudança para o objetivismo, que se deu na Itália. Ainda em 1827,
após a Nachlese zu Aristóteles Poetik (Suplemento à Poética de Aristóteles),
reconhecia, na correspondência com Zelter: “A plenitude da obra de arte
em si mesma é a exigência permanente e imprescindível!” Tendo-se conven­
cido disso um dia, e não sem sofrimento, passou a tê-lo como verdade per­
manente: “Aristóteles, que tinha diante de si o mais perfeito, deve ter pensado
neste efeito! Que desgraça!”298
Por conseguinte, se o conceito estético do todo é um produto alemão,
no dizer de A. W Schlegel “procedente da liberdade original de nosso espí­
rito” — razão por que Mme. de Staêl censurava, ainda em 1800, a “atitude
curiosa” dos literatos alemães de prezar as “falhas” de seus escritores quase
tanto quanto as suas “belezas”, ao passo que Chateaubriand, vinte anos de­
pois e já mudada a frente de combate, aplicava à crítica francesa dos séculos
XVII e XVIII a famosa frase: “As lentes clássicas (...) microscópio imprestável
para a percepção do todo”299 —■esta questão passa a merecer uma observa­
ção final: por que, na Alemanha economicamente atrasada, nasceu uma teo­
ria da arte que espelha a “mediação capitalista”?
Embora a economia de mercado capitalista, globalmente considerada,
fosse muito mais desenvolvida na Inglaterra, na Holanda ou na França, o
comércio livreiro, a forma imediatamente relevante para a teoria estética, na
Alemanha era o mais avançado da Europa. A falta de uma capital como Paris
ou Londres, que monopolizasse a vida intelectual e cultural e degradasse as
demais regiões à condição de províncias, era compensada, no setor livreiro,
por uma organização que reunia todas as casas editoriais alemãs nas feiras,
realizadas duas vezes ao ano, em Frankfurt ou Leipzig. O resultado mais evi­
dente desta concentração eram os catálogos da feira, que, poucas semanas
após o evento, tornavam bibliograficamente acessível ao público interessado
de toda a Alemanha os elementos básicos relativos a todas as novidades lite­

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TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

rárias. Enquanto nos demais países europeus era muitas vezes difícil ao com­
prador potencial averiguar até mesmo o nome do editor de um livro deseja­
do, para que então pudesse encomendá-lo, o livreiro alemão dispunha, além
de outras vantagens, de que todas as firmas significativas dispusessem de uma
casa comissionada, que, entre as feiras, era administrada por uma casa co­
mercial localizada em cidade vizinha. Em qualquer momento, podia-se re­
correr a seus estoques. Daí que se encomendassem de Paris livros que, embora
aí editados, não eram no momento encontráveis senão em Estrasburgo, que,
apesar de sua vinculação política à França, no campo editorial mantinha re­
lações ainda mais estreitas com o comércio livreiro alemão. Com justo orgu­
lho, um jurista de Gõttingen, Pütter, constatava em 1774: “Esta grande
organização do comércio livreiro teutão é, para o público, muito mais do
que apenas possível, é extremamente conveniente e dela não se pode van­
gloriar nenhum outro país da Europa.”300
Já os contemporâneos estavam conscientes de que a condição de esti-
lhaçamento feudal favorecia particularmente o afluxo das publicações perió­
dicas na Alemanha. Calculava-se que só nas cidades imperiais alemãs se
publicavam mais periódicos ado que nos reinos da Espanha, de Portugal, da
França, da Suécia e da Dinamarca, onde com freqüência a razão de Estado
exigia que houvesse apenas uma lei e um jornal”.301 E essa impressão não era
falsa. Os números quanto às revistas novas, calculados pela história do jor­
nalismo, apresentam a seguinte contagem para a Alemanha e a França: 64:9,
na primeira década do século, 119:16, na seguinte; o balanço das novas
publicações de 1741 até 1750 apresenta a cifra de 260:44, e a referente a
1751 até 1760 é de 331:41.302
Não se poderia esquecer que o avanço nas relações de comunicação, re­
fletido na existência em massa de uma forma de literatura desde o início
submetida à lei do mercado, também se expressava na teoria literária. A con­
cepção do crítico, desenvolvida por Lessing nas Literaturbriefen (Cartas lite­
rárias) y na verdade de maneira não muito conseqüente, já reconhece a obra
literária como mercadoria destinada à oferta do mercado, sobre cuja quali­
dade o comprador há de ser informado: “Sempre acreditei ser dever do crí­
tico, tão logo se dedica a julgar uma obra, circunscrever-se apenas a esta obra;
não pensar no autor; não se preocupar em se o autor escrevera outros livros,
piores ou melhores; dizer-nos apenas, sinceramente, que conceito se pode­
ria fazer da presente obra. Isso eu disse que acreditava fosse o dever do crí­
tico. Mas não o é?”303 Recusa tão radical de qualquer deferência para com o

1 7 9
LUIZ COSTA LIMA

autor e para com o conjunto de sua obra não se encontra na literatura fran­
cesa da época. Pois aqui o crítico tinha sempre de levar em conta que cada
autor existente em Paris, e quase todos aí viviam, era, por suas obras, não só
reconhecido pela “boa sociedade”, quanto ganhava materialmente com ela,
até que sua reputação literária não fosse completamente destruída. Mesmo
o julgamento “de sua pior obra” não lhe devia “matar (...) a confiança que
merece por outras tantas razões”, que o autor estava acostumado a serem
levadas em conta, razões como “a sua propriedade, o seu castelo, a sua for­
tuna”.304
Por conseguinte, o fato de que na Alemanha faltasse “o centro de uma
forma de vida social em que os escritores se encontrassem”,305 falta de que
Goethe se queixava, no fim do século, como causadora de um freio para o
desenvolvimento de uma literatura nacional alemã, representava apenas um
dos lados da medalha. Não se verificava sobre o outro lado que se devia ao
comércio livreiro estendido, por toda a nação, uma crítica literária liberta de
quaisquer preconceitos constantes, que tivesse de contrapor as obras-primas
ao padrão de uma outra literatura nacional.

Tradução
PETER NAUMANM
H elena F loresta
Luiz C osta Lima

Revisão
H eidrun Krieger O linto
Notas

1. Brccht, “Der Dreigroschenprozess” (1931), in Brecht: Scbriften zur Literatur und


Kunst, vol. 1, Berlim, 1966, pág. 213 s.
2. Idem, pág. 247 s.
3. René Wellek, Geschichte derLiteraturkritik (1750-1830) (1955), Darmstadt, 1959,
pág. 22: “A reação contra um sistema crítico anterior ou já dominante é a força
impulsora mais genérica nas ciências do espírito.”
4. Brecht, Schriften zur Literatur und Kunst, vol. 1, pág. 248.
5. Werner Krauss, “Über den Anteil der Buchgeschichte an der literarischen Entfaltung
der Aufkàrung (1960), in Krauss: Studien zur deutschen und franzõsiscben Aufklã-
rung, Berlim, 1963, pág. 73.
6. Cf. Geschichte der Technik, Leipzig 1964, pág. 24.
7. Georg Lukács, “Das Ideal des harmonischen Menschen in der bürgerlichen Ãsthetik”
(1938), in Lukács: Probleme des Realismus, Berlim, 1955, pág. 57.
8. Georg Lukács, “Einführung in die ásthetischen Schriften von Marx und Engels
(1946), in Lukács: Beitràge zur Geschichte der Àsthetik, Berlim, 1954, pág. 204.
9. Cf. Klaus Stádtke, “Zur Methodologischen Diskussion in der sowietischen Litera-
turwissenschaft”, in Weimarer Beitràge 8/1974, pág. 133.
10. Wellek, Geschichte der Literaturkritik, pág. 20.
11. Arnold Hauser, Sozialgeschichte der Kunst und Literatur (1953), Munique 1969,
pág. 343.
12. Albert Dresdner, Die Kunstkritik, Ihre Geschichte und Theorie, Munique, 1915.
13. Idem, pág. 111.
14. Hauser, Sozialgeschichte der Kunst und Literatur, pág. 478 s.
15. Cf. Alfred Bãumler, Das Irrationalitàtsproblem in der Ãsthetik und Logik des 18.
Jahrhunderts bis zur Kritik der Urteilsraft (1923), Darmstadt, 1967, págs. 4 e 17.
16. Werner Krauss, “Der Weg der deutschen Aufklárung nach Frankreich” (1961), in
Krauss: Studien zur deutschen und franzõsiscben Àufklarung, pág. 422.
17. Werner Krauss, “Der Jahrhundertbegriff im 18. Jahrhundert” (1961), in idem,
pág. 24.
18. Marx/Engels, Die deutsche Ideologie (1845-46), in MEW, vol. 3, pág. 403.
19. Jacques Chouillet, LEsthétique des lumières, Paris, 1974, pág. 46.

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LUIZ COSTA LIMA

20. Marx/Engels, Die deutsche Ideologie, in MEW, vol. 2, pág. 135.


21. Marx/Engels, Die heilige Familie (1845), in MEW, vol. 2, pág. 135.
22. Jean-Bertrand Barrère, Lidée de goüt de Pascal à Valéry, Paris, 1972, pág. 99 ss.
23. Condillac, Cours d 3histoire, vol 2, pág. 55 apud G. Matoré e A. J. Greimas: “La
Naissance du ‘génie9au XVIIÍ siècle. Étude lexicologique”, in Le Français moderne,
vol 25, 1957, pág 269.
24. Theodor W Adorno: Àsthetische Tkeorie, Frankfurt, 1970, pág. 255.
25. Edith Braemer: Goethe3s Prometheus und die Grundpositionen des Sturm und Drang,
Weimar, 1959, pág. 184.
26. Marx, “Kritik des Gothaer Programms” (1875), in M E ^ vol. 19, pág. 15.
27. Herder: Von Erkennen und Empfinden der menschlichen Seele (1774), parte III, in
Herder: Werke, org. por Wilhelm Dobbeck, vol. 3, Berlim, 1964, pág. 59.
28. Báumler: Das Irrationalitãtsproblem in der Ãsthetik und Logik des 18. Jahrhunderts,
pág. 24 — expressa-se de modo semelhante Chouillet, in LEsthétique des lumièresy
pág. 19.
29. Kant: Kritik der Urteilskraft (1790), Parte 1, § 46 e 49, Leipzig, 1968, pág. 199 e
212 .
30. Sainte-Beuve: Histoire de Port-Royal (1840-1848), 2.a ed. vol 1, 1860. Apêndice:
apud Barrère, LTdée de goüt de Pascal à Valéry, pág. 161.
31. Paul Valéry: Pièces sur 1’art, vol. 2, pág. 1267 {Poèmes ckinois, 1929); apud: idem,
pág. 242.
32. Cf. Christian Friedrich Prange: Entwurfeiner Akademie der billdende Künste, vol.
2, Halle 1778, pág. 240 ss. Johann Beckmann: Anleitung zur Technologie, 3.a ed.
Gõttingen 1787, pág 36 ss. Johann Heinrich Moritz Poppe: Geschichte der
Technologie, vol. 1, Gõttingen, 1807, pág. 92.
33. Cf. Georges Matoré: “La Notion d5art et d’artiste à 1’époque romantique”, in Revue
des sciences humaines (1951), pág. 121.
34. Marx: Das Kapital, vol. 1, in MEW, vol. 23, pág. 374.
35. Idem, pág. 371.
36. Idem, pág. 376.
37. Adam Ferguson: Abhandlung über die Geschichte des bürgerlichen Gesellschaft
(1767), Jena, 1923, pág. 259.
38. Idem, pág. 256 s.
39. Idem, pág. 257. s.
40. Idem, págs. 258 ss e 306 s.
41. Marx, Das Kapital, vol. 1, in MEW, vol. 23, pág. 376.
42. Georg Forster: “Über lokale und allgemeine Bildung”, in Forster, Sãmtliche}
Schriften, ed. Gerhard Steiner, vol. 7, Berlim, 1963, pág. 51.
43. Moritz: “Vorlesungen über den Styl” (1793), in Moritz, Schriften zur Ãsthetik und
Poetik, org. por H. Schrimpf, Tübingen, 1964, pág. 268.

1 8 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

44. Berthold Hinz: “Zur Dialetik des bürgerlichen Autonomiebegriffs”, in Autonomie


der Kunst. Zur Genese und Kritik einer bürgerlichen Kategorie, Frankfurt a. M.,
1972, pág. 175.
45. Marx: Das Kapital, vol. 1, in MEW, vol. 23 pág. 446.
46. Brecht: Schriften zur Literatur und Kunst, vol. 1, págs. 180 e 254.
47. Paul Oskar Kristeller: “The modern system of the arts. A study in the history of
aesthetics”, in Journal of the history of ideas, vol. 13/1952, pág. 45.
48. Leonardo da Vinci: Der Paragone. Der Wertstreit der Künste, Düsseldorf, 1948,
pág. 123 s.: apud John Bernal, Die Wissenschaft in der Geschichte 1954, 3.a ed.,
Berlim, 1967, pág. 242.
49. Batteux: Einschrãnkung der schõnen Künste aufeinen ensingen Grundsatz. Tradu­
zido por Johann Elias Schlegel, 2.a ed., Leipzig, 1759, pág. 309.
50. Idem, pág. 5.
51. Apud: René Bray: “Des genres littéraires, de leur hiérarchie”, in Recueil de travaux
publiés à Voccasion du 4 f centenaire de la fondation de Vuniversité Lausanne, 1937,
pág. 108.
52. Hauser: Sozialgeschichte der Kunst und Literatur, pág. 873.
53. T. K. Derry/Trevor J. Williams: A short history of technology, Oxford, 1960, pág.
215.
54. Marx: Das Kapital, vol. 1, in MEW, vol. 23, pág. 393.
55. Moissej Kagan: Vorlesungen zur marxistisch-leninistischen Ãsthetik, 2.a ed., Berlim,
1971, pág. 17.
56. Diderot: Oeuvres complètes. Org. por Assézat-Tourneux, vol. 13, Paris 1876, págs.
136, 132 e 140 (Prospectus): compare com artigo da Enciclopédia publicada por
Diderot e d’Alembert. Ed. Manfred Naumann, Leipzig, 1972, págs. 32, 27 e 37.
57. Idem, pág 101 (Diderot, Oeuvres complètes, vol. 13, pág. 361).
58. Idem, pág. 504 (Diderot, Oeuvres complètes, vol. 14, pág. 490).
59. Idem, pág. 102 (Diderot, Oeuvres complètes, vol. 13, pág. 362).
60. Idem, pág. 405 (Diderot, Oeuvres complètes, vol. 14, pág. 420).
61. Idem, pág. 23 (Diderot, Oeuvres complètes, vol. 13, pág. 130).
62. Georg Klaus, em introdução a d’Alembert, Einleitende Abhandlung zur Enzyklopàdie
(1751), Berlim, 1958, pág. XXXIX, 51 e s.
63. Artigo da Enciclopédia, pág. 38 (Diderot, Oeuvres complètes, vol. 13, pág. 140);
Hans Blumenberg: “Nachahmung der Natur. Zur Vorgeschichte der Idee des
schõpferischen Menschen”, in Studium generale, vol. 10/1957, pág. 268.
64. Diderot: Zur Interpretation der Natur, Leipzig, 1965, pág. 27.
65. Artigo da Encyclopédie, pág. 507 ( Diderot, Oeuvres complètes, vol. 14, pág. 493).
66. Schauplatz der Künste und Handwerke, vol. 1, Leipzig 1762; apud Friedrich Klemm,
Technik. Eine Geschichte ihrer Probleme, Munique, 1954, pág. 245.
67. Artigo da Enciclopédia, pág. 507 (Diderot, Oeuvres complètes, vol. 14, pág. 493).

18 3
LUI Z COSTA UMA

68. Idem, pág. 508 (Diderot, Oeuvres complètes, vol. 14, pág. 493),
69. Marx/Engels: Die deutsche Ideologia} in MEW, vol. 3, pág. 178.
70. Artigo da Enciclopédia, pág. 412 (Diderot, Oeuvres complètes, vol. 14, pág. 425).
71. Idem, pág. 483 (Diderot, Oeuvres complètes» vol. 14, pág. 475).
72. Jacques Chouillet: La formation des idées estbétiques de Diderot, Paris, 1973»
pág. 373.
73. Diderot: Zur Interpretaiion der Natur, pág. 45»
74. Friedrich Melchior Grimm: Correspondance littéraire, org. por Maurice Torneux,
vol. 16, Paris, 1882, pág. 340.
75. Apud Hans Wahl, Geschichte des Teutschen Merkur. Ein Beitrag zur Geschichte des
Journalismus im 18. Jahrhundert, Berlim, 1914, pág. 161.
76. Johann Heinrich Campe: Briefe aus Paris (1789), Berlim 1961, págs. 208 e s.; apud
Wolfgang Heise, “Zur Krise des Klassizismus in Deutschland”, in Hellenische poleis.
Krise — Wandlung — Wirkung, vol. 3, Berlim, 1974, pág. 1689.
77. Marx/Engels: Die deutsche Ideologie3 in MEW, vol. 3, pág. 394.
78. Mercier: Neuer Versuch über die Schauspielkunst (1773), Leipzig, 1776, impresso
em fac-símile, Heidelberg 1967, pág. 37 e c.
79. Anne-Louise-Germaine de Staêl-Holstein: De la littérature, vol 2 , Paris, 1812,
pág. 73 .
80. Rainer Rosenberg: “Deutsche VormárzÜteratur in komparatistischer Sicht”, in
Weimarer Beitràge, caderno 2/1975, pág. 80.
81. Hegel: Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, vol. 3, Leipzig, 1971,
pág. 443,
82. Hegel: Ãsthetik, org. por Friedrich Bassenge, vol. 1, Berlim, 1965, pág. 110. “Hegel
an Niethammer”, in Briefe von und an Hegel, org., por Johannes Hoffmeister, vol.
1, Hamburgo, 1960, pág. 271; apud Arsen Gulyga, Georg Wilhelm Friedrich Hegel,
Leipzig, 1974, pág. 123.
83. Johann Beckmann: Anleitung zur Technologies 2 .® ed., Gõttingen 1780, impressão
fotomecânica, Leipzig, 1970, pág. 18.
84. Idem, pág. 19,
85. Marx: Das Kapital, vol. 1, in MEW, vol. 23, pág. 510.
86. John Bernal: Die Wissenschaft in der Geschichte, Berlim, 1967, pág. 322,
87. Beckmann: Anleitung zur Technologie, pág. 17,
88. Idem, Prefácio à l . a edição (s/pág.).
89. Idem,
90. Johann Beckmann: Entwurf der allgemeinen Technologie, Gõttingen, 1806, apud
Wilhelm Franz Exner: Johann Beckmann. Begründer der technologischen Wissens­
chaft, Wien, 1878, pág. 50 e ss.
91. Werner Krauss: Werk und Wort, Berlim, 1972, pág. 69.

18 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

92. Voltaire: Dictionnaire pbilosopbique (1765). Artigo: “Philosophie”, in Voltaire,


Oeuvres, org. por Adrien Beuchot, vol. 31, Paris, 1879? pág. 420; Dialogues
philosophiques, org. por Raymond Naves, Paris, 1966, pág. 307.
93. Voltaire: Lettres philosopbiques (1734), org. por Gustave Lanson, vol. 15Paris, 1964,
pág. 156.
94. Rousseau: Emile (1762), in Rousseau, Oeuvres complètes, vol. 4, Paris, 1969,
pág. 456 e s.
95. Marx: Das Elend der Philosophie (1847), in MEW, vol. 4, pág. 74.
96. Brigitte Burmeisten “Feudale Stãndeordnung und Menschenrechte” in Franzõsische
Aufklárung, Leipzig, 1974, pág. 318 e s,
97. Rousseau: Oeuvres complètes, vol. 4, pág. 460.
98. Herder: “Problem, wie die Philosophie zum besten des Volkes allgemeiner und
nützlicher werden kann” (1764/65), in Herder, Sâmtliche Werke, org. por Bernhard
Suphan, vol. 32, Berlim, 1899, p. 41: "Journal meiner Reise im Jahre 1769; apud
Arno Kosselek, “Persõnlichkeitsidee und Staatsanschauung in der deutschen Ge-
niezeit”, in Historische Vierteljahrsschrift, vol. 14/1927, pág. 46.
99. Herder: Sâmtliche Werke, vol. 32, pág. 41: “Journal meiner Reise”, Leipzig, 1972,
pág. 116.
100. Herder: Sâmtliche Werke, vol. 32, págs. 58 e 61.
101. Moritz: “Die Bibliotheken” in Moritz, Schriften zur Ãsthetik und Poetik, pág. 313.
102. Cf. Edith Braemer, Goethes Prometheus und die Grundpositionem des Sturm und
Drang, Weimar, 1959, pág. 71.
103. Herder: Sâmtliche Werke, vol. 32, págs. 52 e 53,
104. Braemer: Goethes Prometheus und die Grundpositionen des Sturm und Drang, pág.
71 e s.; Diderot, Zur ínterpretation der Natur, pág. 27.
105. Braemer: Goethes Prometheus und die Grundpositionen des Sturm und Drang,
pág. 51.
106. Christian Garve: “Briefe an Christian Felix Weisse und einige andere Freunde”,
vol. 1, Breslau, 1803, pág. 380.
107. Em contraste à tese fatal da “afirmação da tradicional ordem de classes” por meio
dos “filósofos populares idealistas” que enfeitiçados pelo “modelo da decrépita e
acanhada filosofia escolar”, segundo consta, “apesar de seus pensamentos inde­
pendentes e isolados, nunca quebraram o círculo mágico da ideologia cortesã e
respondiam conservadoramente a questões sociais usando os traços apologéticos
(...) da filosofia iluminista dos ingleses, como um todo ainda progressista” (Hans-
Günther Thalheim: Der junge Schiller: Historische Voraussetzung und weltans-
chaulick-künstlerische Entwicklung von 1759 bis 1780. Tese de habilitação,
Humboldt-Universitát Berlin, 1962, págs. 51 e 60). Cf. também Peter Müller,
Zeitkritik und Utopie in Goethes “Werther”, Berlim, 1969, pág. 297, nota 48, onde
se fala da “forte ligação da filosofia popular com a ideologia feudal”.

18 5
LUIZ COSTA LIMA

108. Friedrich Meinecke: Die Entstehung des Historismus (1936), 2.a ed., Munique,
1946, pág. 432.
109. Cf. Herder, Werke, vol. 2, pág. 347; pág. 327 contra d’Alembert — Diderot: “Le
moment le plus glorieux pour un ouvrage de cette nature, ce serait celui qui
succèderait immèdiatement à quelque grande révolution qui aurait suspendu les
progrès des sciences, interrompu les travaux des arts et replongé dans les ténèbres
une portion de notre hémisphère. Quelle reconnaissance la génération qui viendrait
après ces temps de trouble ne portérait-elle pas aux hommes qui les auraient
redoutés de loin, et en auraient prévenu le ravage, en mettant à Pabri les connais-
sances passées” (Oeuvres complètes, vol. 14, pág. 428).
110. Herder: Werke, vol. 2, págs. 330, 327, 342, 333, 338 e s., 380.
111. Idem, pág. 329.
112. Idem, págs. 321, 322 e 323.
113. Idem, págs. 328 e 330.
114. Idem, pág. 333.
115. Johnn Beckmann: Pbysikaliscb-õkonomiscbe Bibliothek, vol. 11, Gõttingen, 1781,
pág. 375 s.
116. Herder: Werke, vol. 2, pág. 337.
117. O conceito é de Kurt Wais, cunhado sobre a primeira obra volumosa do oponente
da Enciclopédia, Chassaignon: Cataractes de Vimagination, déluge de la scribomanies
vomissement littéraire, hémorrhagie encyclopédique, monstre des monstres... de
1779 (Kurt Wais, Das antipbilosopbiscbe Weltbild des franzõsiscben Sturm und
Drang 1760-1789, Berlim, 1934). A influência desses opositores do Iluminismo
(especialmente Clément e Fréron) sobre o jovem Herder é considerável; uma pes­
quisa ainda se faz necessária.
118. Herder: Werke, vol. 2, pág. 333.
119. Adam Smith: esboço inédito para Wealtb ofnations de 1763; impresso em: William
Robert Scott: Adam Smith as student and professor, 1937, pág. 344 s.; apud Francis
D. Klingender: Kunst und Industrielle Révolution (1947), Dresden, 1874, pág. 37.
120. Herder: Werke, vol. 2, pág. 339.
121. Idem, pág. 359.
122. Herder: “Über die Wirkung der Dichtkunst auf die Sitten der Võlker in alten und
neuen Zeiten”, in Herder: Über Literatur und Gesellscbaft. Ausgewãhlte Schriften,
org. por Claus Trãger, Leipzig, 1962, págs. 132 e 130 s
123. Idem, pág. 130.
124. Idem, pág. 146.
125. Friedrich Schlegel: “Rezension zu Adam Müller. Vorlesungen über die deutsche
Wissenschaft und Literatur” (1808), in Kritische Ausgabe, parte 1, vol. 3, Muni­
que, 1975, pág. 156.
126. Marx/Engels: Die deutsche Ideologie, in MEW, vol. 3, pág. 178.

18 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES —

127. Cf. Handbuch der deutschen Wirtschafts- und Sozialgeschichte, org. por Aubin/Zorn,
vol. í, Stuttgart, 1971, pág. 571.
128. Somente a história do efeito é conhecida, história esta ligada à história das univer­
sidades de Gõttingen e Kõnigsberg; o Handbuch der Staatswirtschaft (1796) de
Sartorius é considerado a primeira obra acadêmica que divulgou na Alemanha as
idéias básicas de Adam Smith. Cf. Wilhelm Treue: “Adam Smith in Deutschland,
Zum Problem des “Politischen Professors” zwischen 1776 und 1810”, in Deuts­
chland und Europa. Historische Studien zur Võlker- und Staatenordnung des
Abendlandes, Düsseldorf, 1951, págs. 101-134.
129. Wilhelm von Humboldt: “Ideen zu einem Versuch, die Grenzen der Wirksamkeit
des Staates zu bestimmen” (1792), in Humboldt, Werke, org. por Flitner/Giel, vol.
1, Berlim, 1960, págs. 86, 63 e 108.
130. Georg Forster: Ansichten vom Niederrbein (1791), in Forster, Sâmtliche Schriften,
vol. 9, Berlim, 1958, pág. 36.
131. Idem.
132. Idem, pág. 35.
133. Marx: Theorien über den Mehrwert, in MEW, vol. 26/1, pág. 127.
134. Idem, págs. 127 e 145.
135. Friedrich Maximilian Klinger: Orpheus, apud Kosselek: “Persõnlichkeitsidee und
Staatsanschauung in der deutschen Geniezeit”, in Historische Vierteljabrsschrift,
vol. 24/1927, pág. 43.
136. Herder: “Auch eine Philosophie zur Bildung der Menschheit”, in Herder, Werke,
vol. 2, pág. 334 s.
137. Idem, pág. 331 s.
138. Jakob Michael Reinhold Lenz: Von den Soldatenehen (1776), apud Kosselek,
“Persõnlichkeistsidee und Staatsanschauung in der deutschen Geniezeit” in
Historische Vierteljabrsschrift, vol 24/1927, pág. 56.
139. Humboldt: “Ideen zu einem Versuch...”, in Werke, vol. 1, pág. 100.
140. Herder: “Auch eine Philosophie zur Bildung der Menschheit” in Herder, Werke,
vol. 2, pág. 343.
141. Christian Friedrich Daniel Schubart: Deutsche Cbronik, apud Kosselek, “Persõn­
lichkeitsidee und Staatsanschauung in der deutschen Geniezeit”, in Historische
Vierteljahrsscbrift, vol. 24/1927, pág. 43.
142. Herder: “Auch eine Philosophie zur Bildung der Menschheit” in Herder, Sâmtliche
Werke, vol. 5, pág. 252.
143. Idem, pág. 524.
144. Idem, pág. 555 s.
145. Marx: Kritik des Hegelscben Staatsrechts (1843), in MEW, vol. 1, pág. 283.
146. Garve: Briefe an Weisse, vol. 1, pág. 77.

18 7
LUI Z COSTA LIMA

147» Garve: Ánbang einiger Betrachtungen über Johann Macfarlans üntersuchungen (über
dieArmuth) betreffend und über den Gegenstand s e l b s t Leipzig, 1785, págs. XIX
e 37 s. Seguindo o modelo dos ingleses, Garve também classifica economicamente
e não mais politicamente, e diferencia cinco “épocas”: a introdução da escravatu­
ra, do dinheiro, do cristianismo, o sistema feudal, o luxo moderno e a ampliação
do comércio a ele ligada. Assim como o autor inglês, Garve conhece e cita Smith.
As traduções alemãs da literatura sobre o problema da pobreza deveriam ser uma
fonte importante tanto para a forma de receber Smith quanto para a história da
ideologia alemã.
148. Lenin: “Der õkonomische Inhalt der Volksstümlerrichtung” (1895), in Lenin, Werke,
vol. 1, pág. 435.
149. Humboldt: “Ideen zu einem Versuch...”, in Werke, vol. 1, págs. 127 e 224.
150. Idem, pág. 86.
151. Idem.
152. Ferguson: Abhandlung über die Geschichte der bürgerlichen Gesellschaft, pág. 257.
153. Humboldt: “Ideen zu einem Versuch...”, in Werke, vol. 1, págs. 127 e 224.
154. Cf. Otto von Gierke: Die Staats- und Korporationslehre der Neuzeit, Berlim, 1913,
pág. 310 (Das deutsche Genossenschaftsrecht, vol. 4).
155. Cf. Emil Littré: Dictionnaire de la langue française, vol. 2, pág. 369 (machine, n.° 15).
156. Artigo da Encyclopédie, pág. 135 s.
157. “Marx an Engels”, 28 de janeiro de 1863, in MEW, vol. 30, pág. 321; apud
Wolfgang Jonas e outros: Die Produktivkrãfte in der Geschichte, vol. 1, Berlim,
1969, pág. 212.
158. Apud Ferdinand Brunot: Histoire de la langue française, vol. 6 : Le XVIII siècle. 1.°
tomo, fase. 1: Le mouvement des idées et le vocabulaire technique, Paris, 1966,
pág. 94.
159. Ferguson: Abhandlung über die Geschichte der bürgerlichen Gesellschaft, pág. 257.
160. Adam Smith: Eine Untersuchung über Natur und Wesen des Volkswohlstandes
(1776), vol. 2, Jena 1923, pág. 92; apud Hartmut Neuendorff: Der Begriff des
Interesses in den Theorien der bürgerlichen Gesellschaft von Hobbes, Smith und
Marx, Frankfurt a. M. 1973, pág. 86.
161. Humboldt: “Ideen zu einem Versuch...”, in Werke, vol. 1, pág. 222.
162. Idem, pág. 223.
163. Hegel: Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, vol. 3, pág. 412.
164. Marx: Das Kapital, vol. 1, in MEW, vol. 23, pág. 19.
165. Kurt Braunreuther: “Zur Geschichte des staatswissenschaftlichen Faches ander
Humboldts-Universitât zu Berlin im ersten Halbjahrhundert ihres Bestehens. Eine
theoriegeschichtliche Studie”, in Wissenschaftliche Zeitschrift der H um boldt-
Universitãt, Gesellscbafts-und sprachwissenschaftliche Reihe, caderno 4/1959/60,
pág. 433.

18 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL, 1

166. A apresentação de Kurt Braunreuther forneceu as fontes, mas foi levada a juízos
absurdos em geral e sobre a importância de Dohm, em particular, porque foi apre­
sentada sobre a tese básica de que a fisiocracia de então, na Alemanha, representava
“o mais alto grau do pensamento político e econômico” (Kurt Braunreuther: Die
Bedeutung der physiokratischen Bewegung in Deutschland in der 2. Hàlfte des 18.
Jahrbunderts. Ein geschichtlich-politõkonomischer Beitrag zur “Sturm-und-Drang”
Zeit. Diss. Humboldt-Universitát Berlin, 1954, pág. 193). Um quadro totalmente
diferente de Dohm fornece Walther Hofstaetter em Das deutsche Museum (1776-
1788) und Das neue deutsche Museum (1789-1791). Ein Beitrag zur Geschichte der
deutschen Zeitschriften im 18. Jahrhundert, Leipzig, 1908. Forster tornara-se amigo
de Dohm desde seu encontro em Kassel e já naquela época conhecia bem o trabalho
de Dohm; cf. “Brief an Jakobi” de 10 de outubro de 1779, in Forster: Werke in vier
Bãnde, org. por Gerhard Steiner, vol. 4. Leipzig, pág. 132 s. A opinião citada na
carta a Sõmmering de 14 de agosto de 1784, idem, pág. 289.
167. Wilhelm von Humboldt: Tagebücher, org. por Albert Leitzmann. vol. 1, Berlim, 1922,
pág. 90 (Gesammelte Schriften, vol. 14). Humboldt “no início, não entendeu Dohm
completamente”, mas depois reconheceu que “suas idéias não eram banais, pelo con­
trário, eram novas, bem esboçadas e altamente interessantes”. Quando compreendeu
que a função estatal da segurança era equivalente ao desenvolvimento independente
do Estado da “agricultura, fábricas, comércio, esclarecimento, moral”, tirou a seguin­
te conclusão: “Ele tinha, assim como eu, o maior cuidado com o bem do ser humano,
neste sentido, a liberdade de todos os atos.” O caráter de revelação que teve para o
jovem Humboldt seu contato com Dohm dirigiu necessariamente sua pesquisa para
Smith, pai espiritual das “principais idéias” de Dohm. Mas, na ciência histórica alemã,
Dohm ficou registrado como “fisiocrata convicto”. Cf. Siegfried A. Kãhler, Wilhelm
von Humboldt und der Staat (1927), 2.a ed., Gõttingen, 1963, pág. 140. O mesmo
desinteresse por Dohm aparece na pesquisa de Forster. Segundo Ludwig Uhlig, “seria
ocioso reconstruir exatamente o comércio espiritual entre Dohm, Humboldt e Forster”
(Uhlig: Georg Forster, Tübingen, 1965, pág. 164, cf. também pág. 162).
168. Humboldt: “Ideen zu einem Versuch...”, in Werke, vol. 1, pág. 67.
169. Kãhler: Wilhelm von Humboldt und der Staat, pág. 138.
170. “Humboldt 1793 an Brinkmann” (inédito n.° 27): apud Kãhler: Wilhelm von
Humboldt und der Staat, pág. 149.
171. É secundário para o exame da história do pensamento se Humboldt conheceu a
bíblia do liberalismo por intermédio de Dohm ou também diretamente. Parece que
sim, pela maneira como ele quer ver os operários na sua característica de proprie­
tários da força de trabalho sujeitos a impostos diretos: “Dentre os sistemas possí­
veis de tributos diretos, o sistema fisiocrático é indubitavelmente o mais simples.
Porém — e aí temos uma crítica freqüente — esqueceu-se um dos produtos naturais,
a saber, a força do homem, que com seu efeito e trabalho se transforma nas nossas

18 9
LU I Z C O S T A LIMA

organizações em mercadoria, e também fica sujeita a tributos” (Humboldt: Werke,


vol. 1, pág. 209). Adam Smith não poderia ter sido mais profundamente mal en­
tendido. Smith não se preocupava tanto com o fato de a economia escocesa ir para
o tesouro do Estado londrino e sim com as formas de trabalho interessantes para
o capital, ao censurar como erro principal do sistema fisiocrático “a classe dos
artesãos, manufatureiros e comerciantes como inteiramente estéreis e improduti­
vas”, identificadas ao empregado doméstico. O trabalho destes consiste em “servi­
ços que terminam normalmente no momento de sua prestação, não se fixam nem
se realizam em mercadoria vendável, que devolveria o valor do salário e do sus­
tento. O trabalho dos artesãos, manufatureiros e comerciantes, pelo contrário, (a
isso se reporta Humboldt, evidentemente) se fixa e realiza por si mesmo em mer­
cadoria vendável” (Smith: Eine Untersuchung über die Natur und Wesen des
Volkswoblstandes, vol. 2, págs. 538 e 539 — livro 4, capítulo 9).
172. Marx: Tbeorien über den Mebrwert, in MEW, vol. 26/1, pág. 383.
173. Marx: Das Kapital, vol. 1, in MEW, vol. 23, pág. 371.
174. Moritz: Schriften zur Ãsthetik und Poetik, pág. 28.
175. Idem, pág. 29 s.
176. Christian Gotthilf Salzmann: Carl von Carlsberg, vol. 1. Karlsruhe 1784, pág. 309;
apud Krauss, Studien zur deutschen und franzõsiscben Aufklãrung, pág. 344.
177. Moritz: “Die Unschuldswelt (Fragmente aus dem Tagebuch eines Geistersehers”,
(1787), in Moritz, Schriften zur Ãsthetik, pág. 56.
178. Moritz: “Das Menschliche Elend” (1786), in Moritz, Schriften zur Ãsthetik,
págs. 24 e 27.
179. Moritz: Anton Reiser. Ein psychologiscberRoman (1785/86). Berlim, 1952, pág. 207.
180. “Zur Tradition des Realismus und Humanismus”, in Weimarer Beitràge, cad. 10/
1970, pág. 84.
181. Schiller: Über die àsthetische Erziehung des Menscben, in Schiller, Gesammelte
Werke, org. por Alexander Abusch, vol. 8, Berlim, 1955, pág. 412.
182. Idem, pág. 412 s.
183. Cf. idem, pág. 417.
184. Idem, pág. 413.
185. Idem, pág. 414.
186. Cf. Garve: Anhang einiger Betrachtungen über Johann Macfarlans Untersuchungen
(über die Armutb)...: “Em nenhuma outra época houve criaturas tão pobres e des­
prezadas quanto nesta época em que, como um todo, a espécie humana está mais
rica e mais consciente de seus privilégios” (pág. 18). O “trabalho de primeira mão
nas manufaturas ou em todas as artes menores, tais como fiar, tecer, que entre nós
pagam tão mal às classes que delas se ocupam, que por isso mesmo são as classes
pobres” (pág. 25), antes era feito pelos escravos. Este “entre nós” não é apenas
maneira de dizer, temos exemplos concretos de Breslau, cf. pág. 71 ss.
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

187. Schiller: Gesammelte Werke, vol. 8, pág. 413. Por “compreensão de tabelas” tal­
vez houvesse uma alusão ao principal fisiocrata, Quesnay. No muito citado Elogio
a Quesnay, Mirabeau, em 1775, assinala como as três grandes descobertas da so­
ciedade burguesa a escrita, o dinheiro e as tabelas econômicas.
188. Schiller: Gesammelte Werke, vol. 8, pág. 415.
189. Hans-Dietrich Dahnke: “Zur weltanschaulich-ãsthetischen Konzeption von Goethe
und Schiller”, in Weimarer Beitràge, 8/1970, pág. 17.
190. Schiller: Gesammelte Werke, vol. 8, pág. 418.
191. Rosa Luxemburgo: “Rezension zu Franz Mehring, Schiller. Ein Lebensbild für
deutsche Arbeiter” (1904/05), in Luxemburg, Schrifen über Kunst und Literatur,
Dresden, 1972, pág. 20 s.
192. Claus Tráger: “Schiller ais Theoretiker des Übergangs vom Ideal zur Wirklichkeit
(1959), in Tráger: Studien zur Literaturtheorie und vergleichenden Literatur-
gescbicbte, Leipzig, 1970, pág. 74.
193. Na qualidade de editor do Neuen Tbalia, onde publicou um capítulo, Schiller esteve
de posse, durante meses, do manuscrito de Humboldt “Ideen zu einem Versuch...”,
publicado por inteiro apenas em 1851, e o conhecia a fundo. Inicialmente, optou
por uma “total reformulação”; “algumas idéias” do ensaio “não o deixaram desinte­
ressado”. Como Schiller na época se ocupava dos mesmos temas, Humboldt chegou
a pensar em um prefácio daquele (Der Briefwecbsel zwiscben Friedrich von Schiller
und Wilhelm von Humboldt, org. por Siegfried Seidel, vol. 1, Berlim, 1962, págs.
46, 48, 56). Como Schiller conhecia o Anhang einiger Betracbtungen zu Macfarlan,
pode-se, por um lado, supor por que Garve era “o predileto dentre os filósofos” e,
por outro, concluir por que dirigiu a Garve um convite para fornecer ao Horen um
artigo sobre “as relações do escritor com o público e do público com o escritor”.
Pois, no prefácio ao Anhang, Garve havia se expressado sobre a relação entre o de­
senvolvimento do escritor livre e o sistema de tradução — uma observação brilhan­
te que até hoje não foi superada. Altamente característica do altivo desprezo do
pensamento econômico é a opinião de Kerner sobre as exposições contidas nas cartas
de Garve: “Quase poderíamos pensar que ele se esforçou em produzir as mais chãs
e triviais páginas sobre este tema. Melhor para o Horen que ele não haja enviado
nada.” (“Brief an Schiller” de 20 de novembro de 1794, in “Briefe an Schiller 1794/
95”, org. por Schulz: Schillers Werke. Nationalausgabe, vol. 35, Weimar 1964, pág.
92; “Garve an Schiller”, 17 de outubro de 1794, idem, pág. 73 ss.; “Schiller an Garve”,
1.° de outubro de 1794, in Nationalausgabe, vol. 27, Weimar, 1958, pág. 57).
194. Schiller: Gesammelte Werke, vol. 8, pág. 401.
195. Schillers Briefe. Kritiscbe Gesamtausgabe, org. por F. Jonas, vol. 3, Stuttgart, 1893,
pág. 335 s.
196. Schiller: Über naive und sentimentaliscbe Dichtung (1795/96), in Gesammelte
Werke, vol. 8, pág. 626.

19 1
LUI Z COSTA LIMA

197» “Schiller an Kõrner, 12 de setembro de 1974, in Nationalausgabe, vol. 27, pág. 46.
198. Schiller: Gesammelte Werke, vol. 8, pág. 405.
199. Trãger: Studien zur Literaturtheorie und vergleichendeLiteraturgeschichte, pág. 70.
200. Rudolf Haym: Wilhelm von Humboldt. Lebensbild und Charakteristik, Berlim, 1856,
pág. 42.
201. Schiller: Gesammelte Werke, vol. 8, pág. 402.
202. Idem, pág. 406.
203. Idem, págs. 494 e 496.
204. Idem, pág. 404.
205. Idem, pág. 402.
206. Humboldt: “Ideen zu einem Versuch...”, in Werke, vol. 1, pág. 216.
207. Idem, pág. 220.
208. Humboldt: “Ideen über Staatsverfassung, durch die neue Franzõsische Constitution
veranlasst”, in Werke, vol. 1, pág. 34.
209. Humboldt: “Ideen zu einem Versuch...”, in Werke, vol. 1, pág. 221.
210. Tráger: Studien zur Literaturtheorie und vergleichenden Literaturgeschichte, pág. 75.
211. Humboldt: “Ideen zu einem Versuch...”, in Werke, vol. 1, pág. 218.
212. Franz Mehring: “Schiller, Ein Lebensbild für deutsche Arbeiter” (1905), in Mehring,
Gesammelte Schriften, vol. 10, Berlim 1961, pág. 190. Com isto, Mehring corri­
giu silenciosamente a interpretação que dera em “Ãsthetischen Streifzügen” (1898)
sobre a Ãsthetischen Erziehung, quando atribuiu à “vidência” de Schiller uma com­
preensão da essência da “sociedade burguesa naquela Alemanha que ainda nada
sabia da grande indústria e quase nada da manufatura” {Gesammelte Schriften, vol.
11, Berlim, 1961, pág. 157).
213. Cf. R. Pohlmann, “Autonomie”, in Historisches Wòrterbuch der Philosophie, org.
por Joachim Ritter, vol. 1, Basel 1971.
214. Belinski: “Literarische Tráumereien” (1834), cit. de acordo com: W. Belinski, der
Begründer der modernen Literaturkritik, Berlim, 1948, pág. 65.
215. Belinski: “Rede über die Kritik” (1842), in Meister der Kritik. Berlinski, Do-
broljubowy Tscbernyscbewski, Berlim, 1953, págs. 48 e 112.
216. Franz Xaver von Baader: “Fermenta cognitionis”, in Baader, eíSâmtliche Werke,
org. por von Hoffmann, vol. 2, Leipzig, 1851, pág. 414; cit. de acordo com
Pohlmann, “Autonomie” (op. cit.).
217. Benno von Wiese: “Dichter, Schriftsteller, Narren”, in Literatur und Dichtung, org.
por Horst Rüdiger, Stuttgart 1973, pág. 95; Kãte Hamburguer: “Das Wort
‘Dichtung’” (idem, pág. 42).
218. Hegel a Schelling, in Briefe von und an Hegel, vol. 1, Hamburgo, 1952, pág. 24;
cit. de acordo com Gulyga, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, pág. 31.
219. Marx: “Randglossen zu Adolph Wagners Lebrbuch der politischen Õkonomie”
(1879/80), in MEW, vol. 199, pág. 372.

1 9 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

220. Karlheinz Barck, in Gesellschaft — Literatur — Lesen. Literaturrezeption in


theoretischer Sicht, direção de Manfred Naumann, Berlim, 1973, pág. 104.
221. Moritz: Versuch einer Vereiningungaller schõnen Künste..., in Moritz, Schriften zur
Ãsthetik und Poetik, pág. 3.
222. Kant, Kritik der Urteilskraft (1790), Leipzig, 1968, pág. 61.
223. Friedrich Theodor Vischer: Das Schõne und die Kunst. Stuttgart, 1898 (conferên­
cias, vol. 1).
224. Norbert Krenzlin: “Bürgerliche Ideologieentwicklung und ásthetiche Theorie.
Untersucht an der phánomenologischen Konzeption der Ãsthetik”, in Deutsche
Zeitschrift für Philosophie, tomo 11/1969, pág. 1384.
225. Moritz: Über die bildende Nacbahmung des Schõnen (1788), in Moritz, Schriften
zur Ãsthetik und Poetik, pág. 70.
226. Carta de Garve a Schiller, 17 de outubro de 1794, in Schillers Werke, Natio­
nalausgabe, vol. 27, pág. 73 s.
227. Hans Jürgen Haferkorn: “Der freie Schriftsteller. Eine literatursoziologische Studie
über seine Entstehung und Lage in Deutschland zwischen 1750 und 1800”, inArchiv
für Geschichte des Buchwesens, vol. 5, Frankfurt a . M., 1964, esp. pág. 563.
228. Gesellschaft — Literatur — Lesen, pág. 209.
229. Gerhard Bauer: “Zum Gebrasschswert der Ware Literatur”, in Lili. Zeitschrift für
Literaturwissenschaft und Linguistik, tomo 1-2/1971, pág. 47.
230. Gesellschaft — Literatur — Lesen, pág. 212 s.
231. “Goethe an Schiller”, cit. de acordo com Georg Lukács: “Der Briefwechsel
zwischen Schiller und Goethe” (1934), in Lukács, Goethe und seine Zeit, Berlim,
1953, pág. 88.
232. Molière: Oeuvres complètes, org. de Robert Jouanny, vol. 1, Paris, 1962, pág. 193.
233. Apud Lukács, Goethe und seine Zeit, pág. 88.
234. Marx: Einleitung zur Kritik der Politischen Òkonomie (1857), in MEW, vol. 13,
pág. 646.
235. Forster: “Ansichten vom Niederrhein”, in Forster, Sâmtliche Schriften, vol. 9,
pág. 41.
236. Kant: Kritik der Urteilskraft, pág. 194 s.
237. Forster: “Ansichten vom Niederrhein”, op. cit., pág. 41.
238. Lessing: “Leben un leben lassen. Ein Projekt für Schriftsteller und Buchhándler”,
in Lessing: Gesammelte Werke, org. de Paul Rilla, vol. 6 , Berlim, 1968, pág. 537.
239. Teutscher Merkur, ano 1777, vol. 4, pág. 279 ss.; apud Wolfgang von Ungern-
Sternberg, “Ch. M. Wieland und das Verlagswesen seiner Zeit. Studien zur
Entstehung des freien Schriftstellertums in Deutschland, in Archiv für Geschichte
des Buchwesens, vol. 14, Frankfurt a. M., 1974, esp. pág. 1336.
240. Garve: Briefe an Christian Felix Weisse und einige andere Freunde, vol. 2, Breslau,
1803, pág. 9 s.

1 9 3
LUIZ COSTA LIMA

241. Lessing: Sâmtliche Werke, org. de Friedrich Muncker, 3.a ed., Leipzig 1904-1907,
vol. 17, pág. 348; vol. 18, págs. 67 s., 131; apud Haferkorn, “Der freie Schrifts­
teller”, in Archiv für Geschichte des Buchwesens, vol. 5, esp. pág. 621.
242. “Schiller an Baggesen”, 16 de dezembro de 1791, in Schillers Briefe, Kritische
Gesamtausgabe, vol. 3, pág. 179.
243. Gerhard Bauer (Lili, tomo 1-2/1970/71, pág. 47) nega esta questão.
244. Humboldt já observara que sem uma causa externa, como a de preencher os va­
zios de uma de suas revistas, e sem uma publicação periódica, não teriam nascido
alguns dos trabalhos schillerianos e mesmo alguns de “os mais belos”. Humboldt
chegou mesmo a formular a tese oposta à de Schiller: “Um trabalho levado a cabo
por uma finalidade externa não se torna menor”, in Der Briefwechsel zwischen
Friedrich Schiller und Wilhelm von Humboldt, vol. 2, Berlim, 1962, pág. 175,
carta de 5 de setembro de 1798.
245. Marx: Das Kapital, vol. I, in MEW, vol. 23, pág. 87.
246. Cf. M. H. Abrams: “What’s the use of theorizing about the arts?”, in In Search of
literary history, Bloomfield, Ithaca 1972, pág. 46.
247. Marx: Das Kapital, vol. I, in MEW, vol. 23, pág. 88.
248. “Estão mortos e restritos os trabalhos de arte mecânica; os trabalhos da mais alta
cultura do espírito estão vivos, movem-se em si mesmos e são inesgotáveis”, A. W
Schlegel: Vorlesungen über schõne Literatur und Kunst, org. de J. Minor, parte 1,
Die Kunstlehre (Berlim 1801/02), Heilbronn, 1884, pág. 8.
249. Hegel: Enzyklopãdie der pbilosophischen Wissenschaften im Grudrisse (1817),
in Hegel: Sâmtliche Werke, org. de Lasson/Hoffmeister, vol. 5, Leipzig, 1949,
pág. 182.
250. Baeumler: Das Irrationatitãtsproblem in der Ãsthetik und Logik des 18. Jahrhunderts
bis zur Kritik der Urteilskraft, pág. 250.
251. A. W Schlegel: Vorlesungen über schõne Literatur und Kunst, pág. 54.
252. Johann Georg Sulzer: Allgemeine Theorie der Schõnen Künste, parte 2, Leipzig,
1771, pág. 609.
253. Cf. Goethe: Kunsttheoretische Schriften und Übersetzungen. Schriften zur bildenden
Kunst, vol. 1, Berlim, 1972, pág. 22 ss. (Berliner Ausgabe, vol. 19).
254. Moritz: Versuch einer Vereinigung aller schõnen Künste..., in Moritz: Schriften zur
Ãsthetik, pág. 6.
255. Wolf Kaiser/Gert Mattenklott: “Ãsthetik ais Geschichtsphilosophie. Die Theorie
der Kunstautonomie in den Schriften Karl Philipp Moritzens”, in Westberliner
Projekt: Grundkurs 18. Jahrhundert. Die Funktion der Literatur bei der Formierung
der bürgerlichen Klasse Deutschlands im 18. Jahrhundert (análises), org. de Gert
Mattenklott e Klaus R. Scherpe, Kronberg/Ts. 1974, pág. 252 (Literatur im
historischen Prozess 4/1). O aspecto histórico-filosófico parece-me enganoso e
supervalorizado, como comprovaria uma análise do conceito de gênero em Moritz.
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

256. Alfred Kurella: “Kunstwerk ais Eigenwert”, in Sinn und Form, caderno 3/1969,
pág. 745.
257. Friedrich Schlegel: “Lessings Gedanken und Überlegungen”(1808), in Kritiscbe
Friedrich Schlegel Ausgabe, parte 1, vol. 3, org. por Hanns Eichner, Munique, 1975,
pág. 58.
258. “Friedrich Schlegel an A. W. Schlegel”, 26-8-1791, apud Heinz-Dieter Weber,
Friedrich Schlegels ‘Transzendentalpoesie’. Untersuchungen zum Funktionswandei
der Literaturkritik im 18. Jahrhundert, Munique, 1973, pág. 72.
259. Moritz: “Bestimmung des Zwecks einer Theorie der schõnen Künste” (1795), in
Moritz: Schriften zur Ãsthetik und Poetik, pág. 122.
260. Moritz: “Die Signatur des Schõnen. In wie fern Kunstwerke beschrieben werden
kõnnen?” (1788), in Moritz: Schcriften zur Ãsthetik und Poetik, pág. 103.
261. Weber: Friedrich Schlegels ‘Transzendentalpoesie, pág. 77...
262. Moritz: Schriften zur Àsthetik und Poetik, págs. 142, 301, 303 e 306.
263. Hermann Hettner: Geschichte der deutschen Literatur im 18. Jahrhundert (1856-
1883), vol. 2, Berlim, 1961, pág. 275. — Marx/Engels: Über Kunst und Literatur,
org. por Manfred Klien, vol. 1, Berlim, 1967, pág. 484.
264. August Wilhelm Schlegel: Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur, org.
por G. V Amoretti, vol. 2, Bonn, 1923, págs. 100 ss, 50 e 57.
265. Idem, pág. 7. — “Friedrich Schlegel, Georg Forster, Fragment einer Charakteristik
der deutschen Klassiker” (1797), in Meisterwerke deutscher Literaturkritik, org.
por Hans Mayer, 3.a edição, vol. 1, Berlim, 1963, pág. 520 s.
266. Moritz: Versuch einer Vereinigung aller schõnen Künste..., in Moritz: Schriften zur
Ãsthetik und Poetik, pág. 6 s.
267. Idem, pág. 7.
268. Brecht: Arbeitsjournal, 2-1-1948, apud Werner Mittenzwei: Brecbts Verhãltnism
zur Tradition, Berlim, 1972, pág. 175.
269. Gesellschaft — Literatur — Lesen, pág. 225.
270. Moritz: Versuch einer Vereinigung aller schõnen Künste..., in Moritz: Schriften zur
Àsthetik und Poetik, pág. 7 s.
271. Rudolf Zacharias Becker: Das Eigentumsrecht an Geisterwerken, Frankfurt, 1789,
pág. 18; apud Haferkorn: “Der freie Schriftsteller”, in Archiv für Geschichte des
Buchwesens, vol. 5, esp. pág. 571.
272. Geschichte der marxistischen Dialektik. Von der Entstehung des Marxismus bis zur
Lelinschen Etappe, Berlim, 1974, pág. 220.
273. Georg Lukács: “Frie oder gelenkte Kunst” (1947), in Lukács: Schriften zur Ideologie
und Politik, Neuwied-Berlim, 1967, págs. 446 e 460.
274. Idem, pág. 444.
275. Ibidem, pág. 448.
276. Ibidem.

19 5
LUI Z COSTA LIMA

277. Alfred Kurella, “Reichtum und Armut — neu betrachtet” (1947), in Kurella: Der
Mensch ais Schõpr seiner selbst, Berlim, 1958, pág. 99.
278. Clemens Brentano: Briefwechsel mit Sophie Mereau, org. por Amelung, Potsdam
1939, pág. 178 s., apud Haferkorn, “Der freie Schriftsteller”, op. cit.
279. Geselschaft — Literatur — Lesen, pág. 108.
280. Marx: Das Kapital, vol. 1, in MEW, vol. 23, pág. 93.
281. Forster: “Ansichten vom Niederrhein”, in Forster: Sâmtliche Schriften, vol. 9,
págs. 41 e 27.
282. Moritz: Versuch einer Vereinigung aller schõnen Künste..., in Moritz: Schriften zur
Àsthetik und Poetik, pág. 8.
283. Moritz: Über die bildende Nachahmung des Schõnens, in Moritz: Schriften zur
Àsthetik und Poetik, pág. 77.
284. Annemarie Auer: Die kritische Wãlder. Ein Essay über den Essay, Halle, 1975,
pág. 165.
285. Moritz: Über die bildende Nachahmung des Schõnen, in Moritz: Schriften zur
Àsthetik und Poetik, pág. 86.
286. Idem, pág. 87.
287. Cf. Dieter Schiller: Von Grund aufanders. Programmatik der Literatur im antifaschis-
tischen Kampf wahrend der dreissiger Jahre, Berlim 1972, pág. 192 ss. — Seme­
lhantemente, Werner Mittenzwei: Brechts Verhãltnis zur Tradition, Berlim, 1972,
pág. 60 ss.
288. Herbert Marcuse: “Über den affirmativen Charakter der Kultur”, in Zeitschrift für
Sozialforschung, caderno 1/1937, págs. 60, 62 (reimpresso em Munique, 1970).
289. Moritz: Über die bildende Nachahmung des Schõnen, in Moritz: Schriften zur
Àsthetik und Poetik, pág. 88.
290. Idem.
291. Alfred Kurella: “Reichtum und Armut — neu betrachtet”, op. cit. pág. 95.
292. Idem, pág. 96.
293. Moritz: Schriften zur Àsthetik und Poetik, pág. 88.
294. Idem, págs. 70 e 88.
295. Trãger: “Schiller ais Theoretiker des Übergangs vom Ideal zur Wirklichkeit”, in Tráger:
Studien zur Literaturtheorie und vergleichenden Literaturgeschichte, pág. 72.
296. Goethe: Berliner Ausgabe, vol. 14, Berlim, 1961, pág. 731. O destaque das partes
reproduzidas nas Italienische Reise já fora feito pelo próprio Moritz que as reim­
primiu em 1793, na miscelânea Die grosse Loge, sob o título de “Der bildende
Genius”. Não se pode assim falar de um afastamento tácito por Goethe de certas
teses moritzianas extremadas.
297. Goethe: Tagebucb an Frau von Stein, apud Sigmund Auerbach: introdução a Moritz,
Über die bildende Nachahmungs des Schõnen, Stutthgart, 1888, pág. XIX (grifo
do autor deste ensaio).

1 9 6
TEORIA DA LITERATURA E M S U A S F ONTE S — VOL. 1

298. “Goethe an Zelter”, 29 de março, 1827, in Goethe: Berliner Ausgabe, vol. 18,
pág. 740.
299. A. W Schlegel: Vorlesungen über dramatiscbe Kunst und Literatur, vol. 2, Bonn,
1923, pág. 13. — Madame de Staèl: De la littérature (1800), vol. 1, Paris, 1812,
pág. 268. — Chateaubriand: Essai sur la littérature anglaise (1836); apud Wellek:
Geschichte der Literaturkritik 1750-1830, pág. 693.
300. Johann Stephan Pütter: Der Büchernachdruck nach àchten Grundsãtzen des Rechts
geprüft, Gõttingen 1774, pág. 143; apud Albert Ward: Book production, fiction
and the german reading public 1740-1800, Oxford, 1974, pág. 39.
301. Le Courier du Bas-Rhin, eine in Kleve publizierte Zeitschrift; apud Eugène Hatin:
Les Gazettes de Hollande et la presse clandestine au X V lf et XVIlf siècles, Paris,
1865, pág. 50.
302. As informações referentes a Alemanha se baseiam em Joachim Kirchner, Die
Grundlagen des deutschen Zeitschriftenwesens, 2 volumes, Leipzig, 1928-1931. As
referentes à França se baseiam em Gabriel Bonno, Liste chronologique des pério-
diques de langue française du dix-buitième siècle, in Modem languages notes, 1944.
303. Lessing: Briefe, die neueste Literatur betreffend. Carta 105 (15 de maio, 1760), in
Lessing: Gesammelte Werke, org. por Paul Rilla, 2.a edição, vol. 4, Berlim, 1968,
pág. 381.
304. Moncrif: De Vesprit critique (1743), in Moncriff: Oeuvres, vol. 2, Paris, 1768,
pág. 217.
305. Goethe: “Literarischer Sansculottismus” (1795); apud Meisterwerke deutscher
Literaturkritik, vol. 1, pág. 363.

1 9 7
CAPÍTULO 5 Literatura e filosofia:
(Grande sertão: veredas)
BEN ED IT O N U N E S

199
PRÓLOGO NÃO MUITO CURTO

1 — De platão a hegel, numa trajetória que vai de A República à Enciclopédia


das Ciências Filosóficas, a filosofia afirmou-se como discurso privilegiado.
Nos Livros V e VI de A República, condensa-se o traçado, em que a perspec­
tiva metafísica do pensamento filosófico se fixou — perspectiva de que o
platonismo foi o conformador e o difusor históricos — da teoria como visão
do inteligível, como apreensão do verdadeiramente real, objeto último de
todo conhecimento, que informa ao mesmo tempo a realidade empírica
mutável e fundamenta a ordem dialética das idéias imutáveis. Mas antes de
estabelecer, para completar a educação do filósofo governante, as bases do
conhecimento superior, que completaria, determinando a verdade pela idéia
(orthotes), a conformação metafísica da filosofia —■depois ciência (episteme)
das primeiras causas e dos primeiros princípios, para Aristóteles —, Sócrates
não se esquece, no livro II do mesmo diálogo, de firmar radical diferença
entre duas espécies de discursos — a que já o autorizava a posse do discurso
racional, do logos absolutizado: os discursos verdadeiros e os discursos men­
tirosos.1 Ora, estes últimos são aqueles que os criadores de fábulas inventam
(e daí a necessidade de sobre eles exercer-se a permanente vigilância dos fun­
dadores da república platônica) quando, explica-nos passagem do Livro III,
abandonam a simples narração (diegesis) pela imitação (mimesis)2 Assim,
separado da filosofia e a ela subordinado, o domínio inteiro da poesia, ou do
que hoje chamamos de literatura — mas de modo especial a ficção —, in­
gressava na categoria do discurso mentiroso não-filosófico.
Para Hegel, entretanto, tal separação já apresenta grandes dificuldades.
No conjunto das formas pelas quais, a montante dos períodos históricos, o
Espírito se realiza a caminho da autoconsciência filosófica, de que a Enciclo­
pédia seria a completa explicitação, a poesia, síntese superadora, é a mais
espiritual de todas as artes.3 Utilizando a palavra, a poesia, que já faz parte

2 0 1
LUI Z COSTA LIMA

integrante do espírito, dá plena concreção aos interesses espirituais. Oposi­


ção e antagonismo se verificam entre poesia e prosa, e não entre filosofia e
poesia. Mas, não obstante reconhecesse afinidade entre o pensamento
especulativo e a imaginação poética — ou o modo poético de representação
—, para Hegel, no momento em que o excesso de subjetividade romântica se
aliava à prosificação do mundo — condenando a arte a tornar-se coisa do
passado, e assim a subsistir apenas na reflexão estética que a retoma —, so­
mente a filosofia é capaz de estabelecer as conexões do real e do racional. A
poesia supera-se na filosofia. Era então de uma outra maneira que se ultima­
va a discriminação metafísica da literatura iniciada com o platonismo, que
firmou o regime das relações entre literatura e filosofia. Dentro do sistema
hegeliano, a poesia deixava de ser, como para Platão, um discurso mentiroso
não-filosófico para revestir-se do estranho aspecto de um discurso não-filo-
sófico mas verdadeiro.

2 — Com a partilha do saber na Idade Moderna, depois da época clássica,


verifica-se, ao mesmo tempo que o aparecimento da literatura — “isolamen­
to de uma linguagem singular, cuja modalidade própria é ser literária”’ —
do qual nos fala Foucault,4 a organização das ciências humanas. Abrir-se-á, já
no ciclo da metafísica em crise — pela primeira vez posta globalmente em
questão na Crítica da Razão Pura (1781) — e da filosofia colocada em face
de sua originária historicidade — o perpétuo debate entre o conhecimento
filosófico e as ciências humanas, estas reivindicando, “como seu objeto pró­
prio, aquele que teria antes constituído o domínio da filosofia”.5

3 — Não é este, por certo, o debate que continuará aqui. Mas, até porque se
lhe concedeu prioridade, colocada que foi, nesse colóquio, à testa das disci­
plinas — Antropologia, Sociologia, Psicanálise e Lingüística — que deverão
investigar a literatura, de acordo com os objetos de conhecimento que lhes
são próprios, e das perspectivas metodológicas que as particularizam enquanto
ciências determinadas, a fiilosofia está confrontada às ciências humanas.
Cumpre-nos, assim, indagar qual seria, afinal, a competência da filosofia nessa
matéria.
Essa competência decorreu da discriminação metafísica de que falamos;
firmou-se através da Poética, disciplina que, ao lado da Lógica e da Ética, já
participava da configuração do conhecimento filosófico enquanto episteme,
conhecimento subordinativo dos domínios da ação e da atividade formadora,

202
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — ¥01. 1

do p rá tic o e do p o é tic o , ao objeto superior de ema ciência do ser. Na época


moderna, quando Kant estabeleceu a autonomia dos juízos estéticos,6 tal
competência passaria à Estética,
A primeira constatação que se pode fazer no preâmbulo de um con­
fronto com as ciências humanas, pertinente ao conhecimento da literatu­
ra, é o gradual esvaziamento da filosofia, de que a Teoria ou Ciência da
Literatura marcou o início em fase recente, ao absorver a Poética e a Reto*
rica, já colocadas sob o regime da Estética. As demais extensões do conhe­
cimento filosófico, que ao conhecimento da Literatura se aplicariam,
sofreram um contínuo processo de retração: a filosofia da linguagem dian­
te da Lingüística, a filosofia da arte diante da Sociologia e da Antropolo­
gia, a filosofia da Criação literária, de cunho psicologista, diante da
Psicanálise.
Como objeto teórico, o nível de inteligibilidade da Literatura está condi-
cionado e delimitado pela natureza e pela extensão dos aspectos lingüísticos
do discurso. E a conjunção da Lingüística e da Literatura, de que fala Barthes:
à ciência da linguagem compete estudar aquilo que é incontestavelmente lie*
guagem.7 Com fundamento na Lingüística, a Ciência ou Teoria da Literatura
torna-se possível8
As virtualidades interpretativas mais gerais da filosofia hegeliana da arte,
e o esquema sociológico de Marx, Inspiram a sociologia mais sutil com que
hoje podemos contar para o estudo das conexões Internas da obra literária
com a realidade histórico-social que nela se Inscreve. Por outro lado, fran­
queando uma redução do historicismo, que atinge o privilégio das formas
históricas, como último limite teórico da Inteligibilidade das formas literárias,
a Antropologia, associada à Lingüística, dentro de um quadro epistemológico
que encontra na existência dos signos o seu a priori constitutivo, e na diver­
sidade das culturas o sustento empírico de um novo humanismo etnológico
— capaz de absorver as anteriores expressões do humanismo ocidental —,
permite colocar a literatura, o poético em geral, na escala do funcionamento
lógico das estruturas do pensamento.
Finalmente, depois de irrigada pela Lingüística saussuriana, a Psicaná­
lise recebeu um novo registro, que a capacita para investigar a realidade
textual, subjacente, da obra literária, onde perdura, transformado pelos
mecanismos de que se origina, o dinamismo do ato de escrever. Em vez de
ser, como no passado, o instrumento suplementar de uma psicologia pro­
funda da criação, centrada no autor, ela tende, porque principal sustentá-

203
LUI Z COSTA LIMA

culo da noção de escrita, como perpétuo deslocamento de significações, a


iluminar o texto, objeto de uma decifração ou, conforme quer Paul Ricoeur,
de uma exegese, que se ocupa do jogo incessante dos significantes e dos
significados.9
Diante disso, que restou da Literatura para a Filosofia?

4 —■Restou muita coisa. Ao processo da filosofia, que a partilha do saber


na Idade M oderna e a crise da metafísica condicionam nos dias de hoje, é
inerente o conhecimento da Literatura, por via do mesmo caminho que
levou a reflexão filosófica a encontrar, desde a Fenomenologia, a presen­
ça, que em seguida tematizou, da linguagem enlaçada às próprias coisas —
a presença originária das coisas na experiência, a que Husserl pretendeu
voltar, no seu projeto de filosofia aals strenge Wissenschaffno A literatura é
objeto de conhecimento filosófico porque é uma forma simbólica, porque
há um domínio do simbólico, a que se atém o pensamento — ponto de con­
vergência e de divergência da filosofia com a linguagem: o domínio do sen­
tido das proposições, tal como especificado por Gilles Deleuze, em sua
Logique du Sens.u
Desse ponto de vista, a filosofia pode ocupar-se diretamente do poético,
da poiesis, da Dichtung inerente às formações verbais, e sua competência é
fundamental para o estabelecimento da possível Ciência da Literatura.

5 — No entanto, essa competência, muito geral, talvez faleça no caso parti­


cular de uma obra literária a ser examinada; e se essa obra é um romance, e
ainda se esse romance é Grande sertão: veredas, é quase certo que competên­
cia não haja fora do risco da subordinação da obra à perspectiva hermenêutica
de um determinado método, originariamente filosófico, ou do risco, ainda
maior, temido por Wellek,12 de se transformar o texto num breviário de idéias.
O risco de interpretar é o que assumimos aqui, precisando porém que cabe à
filosofia, no interesse do conhecimento da obra literária, refletir sob o foco
da interdisciplinaridade.
Refletir filosoficamente é sempre colocar o objeto sob a multiplicidade
dos nexos que o sustentam. Se a filosofia é abrangente, o seu ângulo de aber­
tura depende, em parte, das disciplinas, que podem considerar diversas es­
pécies de conexões. Num encontro interdisciplinar como este, a função da
filosofia talvez seja trazer à consideração, sob a forma de um não apenas isto,
mas também aquilo, a cláusula do ideal de inclusividade. Mas dado que

2 0 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOl. 1

inclusividade não quer dizer compreensão totalizada e exaustiva — porquanto


a filosofia se sabe um discurso sobre outros discursos — e levando em conta
o que da filosofia passou para as outras disciplinas, na abordagem filosófica
de uma obra literária, considerada como forma, seriam pontos de incidência
da reflexão: a) a linguagem; b) as conexões da obra com as linhas do pensa­
mento histórico-filosófico; c) a instância de questionamento que a forma re­
presenta, em função de idéias problemáticas, isto é, de idéias que são
problemas do e para o pensamento.

GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Tudo o que vai ser exposto acerca dessa obra tem o caráter de reflexão sobre
uma forma, reflexão que procurará acompanhar, na análise do romance de
Guimarães Rosa, os pontos de incidências antes referidos.
O primeiro ponto, a linguagem, leva-nos ao aspecto mais sistematicamente
estudado das novelas, dos contos, das histórias e do romance do escritor mi­
neiro, objeto de numerosas análises estilísticas que permitiram levantar os
recursos poéticos e retóricos aos quais essa obra, e de modo particular Gran­
de sertão: veredas, deve o seu poder verbal explosivo.
Depois que se conseguiu isolar as matrizes mínimas do idioma literário
de Guimarães Rosa, será conveniente considerar esse poder verbal em fun­
ção da própria narrativa como um todo. De tal ponto de vista, o que é que
peculiariza a linguagem de Grande sertão: veredas?
Já observara Mary L. Daniel que a maioria das histórias de Guimarães
Rosa e Grande sertão: veredas são estruturadas em forma de narrativa oral.13
Trata-se, portanto, como bem lembrou Walnice Nogueira Galvão, de uma
oralidade ficta, “criada a partir de modelos orais mediante a palavra escri­
ta”,14mas oralidade ficta que traduz um afastamento e um recuo: afastamen­
to em relação às tradições da escrita romanesca, particularmente a oriunda
do realismo, e recuo para estilo que já constitui o índice da mimese da lin­
guagem que se opera no romance.
Grande sertão: veredas é um romance polimórfico. As formas heterogê­
neas a ele incorporadas, por efeito desse recuo, que o nível de oralidade de
sua narrativa nos indica, apontam para toda uma atividade preliminar, for­
madora. Referimo-nos à atividade geradora de formas simples (Einfache
Formen) — a Lenda e a Saga, o Mito e a Adivinhação (Charada ou Enigma),

2 0 5
LUI Z COSTA LIMA

o Caso e a Sentença, o Conto e o Memorial — realizada fora das obras indi­


viduais e à margem do disciplinamento das poéticas e das retóricas, e que
André Jolles denomina o trabalho da linguagem — correlato ao da própria
cultura, em sua tríplice função de cultivar, fabricar e interpretar. Tudo o que
é criado, fabricado e interpretado é denominado pela linguagem.15 Mas a
própria linguagem, diz Jolles, é criação, fabricação e interpretação, na medi­
da em que ela ordena.
E para esse trabalho nativo da poiesis que se volta a mimese em Grande
sertão: veredas, quando incorpora, entre as suas formas heterogêneas, algu­
mas das chamadas formas simples, literariamente pré-históricas, isto é, ante­
riores à história da literatura, mas nela incidindo, na medida em que serviram
de suporte ao desenvolvimento das eruditas. O Caso (Kasus), a Adivinha ou
Enigma (Rãtsel) e a Sentença (Spruch) estão disseminados na forma do ro­
mance de Guimarães Rosa.
Uma das matrizes da novela, o Caso — questão embaraçosa ou dilemática
que exige resposta da parte de quem pode ou tem o dever de decidir — des­
ponta, logo ao iniciar-se a narrativa, assim que a temática do Mal é intro­
duzida, no relato de fatos cruéis (as histórias de Aleixo, de Pedro Pindó e do
menino Waltei), que intrigam Riobaldo, o personagem narrador, e de que
ele pede o sentido ao interlocutor ausente, mas implícito, a quem sempre se
dirige. Os filhos de Aleixo cegaram depois que ele, um dia, “só por graça
rústica, (...) matou um velhinho que por lá passou, desvalido rogando esmo­
la (...) Sem remediável (...) Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo
aqueles meninozinhos tinham?” (pág. 14). O menino Waltei, filho de Pedro
Pindó, “desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que
é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo
das espécies de sua natureza (...). Pois o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó,
modo de corrigir isso e a mãe, dão nele de miséria e mastro — (...) Não sen­
do como o compadre meu Quelemen quer, que explicação é que o senhor
dava?” (pág. 15).
A competência da decisão do Caso nem sempre é deferida ao destinatá­
rio da narração. Depois que, feito o pacto com o Demônio, Riobaldo assu­
me a chefia do bando, as questões embaraçosas se sucedem, dele exigindo,
conforme a honra e os caprichos do seu posto, decisão pronta e irrecorrível.
Caso é a história de Nho Constancio Alves, a quem Riobaldo condena à morte
no íntimo de seu pensamento, segundo o arbítrio dos altos e estranhos po­
deres que o inspiram, mas a quem, à última hora, por uma inspiração contrária,

206
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL* 1

acaba poupando; Caso é ainda a história do sujeito da égua, daquele viajor


aparecido no caminho do bando após o primeiro incidente, e que devendo
morrer em lugar do outro, é, finalmente, liberado por força de astuciosa
solução, fruto de um debate verdadeiramente casuístico, que faz recair a
execução da sentença já ditada no cachorrinho acompanhante da vítima: “Rai-
a-puta-pô! Não tenho que matar este desgraçado, porque minha palavra
prenhada não foi com ele: quem eu vi, primeiro, e avistei, foi esse cachorri­
nho!...” (pág. 449). Até certo ponto, o inteiro relato das aventuras de Riobaldo
parece enquadrar-se no espírito decisório da casuística, posto que, afinal, o
narrador insta, do princípio ao fim, com o imediato e oculto destinatário da
narrativa, para que ele se pronuncie, firmado em sua competência de ho­
mem instruído, acerca da existência real do Demônio.
Esparsos como os Casos, os Enigmas, enquanto questões a decifrar, e
das quais o conjunto da narrativa traz a chave completa, ponteiam alguns
momentos decisivos para o desenvolvimento da narração, por vezes como
parte do enigma das coisas circundantes, enigmas que elas mesmas propõem
ao dialogante silencioso ou ao seu substituto em potencial, o leitor, que
deverá decifrá-los. Assim, por exemplo, o canto de um pássaro contém uma
advertência, um sinal — sinal de sina ou destino: “Nada pega significado,
em certas horas. Saiba o que homem pensei. No seguinte: como é que
curiango canta. Que o curiango canta é: Curi-angu” (pág. 194). O sortilé­
gio do lugar denominado Coruja — próximo de Veredas-Mortas, onde o
Pacto se realizará —, lugar que “não desmentia nenhuma tristeza”, tam­
bém é demarcado por uma dupla charada, em que o Boi e o Buriti, elemen­
tos privilegiados no conjunto das transformações simbólicas da Natureza
que se operam no curso da narrativa, tomam a palavra, intercruzando os
seus dizeres: “Até os Buritis mesmo estavam presos. O que é que Buriti dis­
se; é: — eu sei e não sei... Que é que o Boi diz? — me ensina o que eu sabia”
(pág. 378). Igualmente, a glosa cantada pelo cego Borromeu, quando a tropa
do Urutu Branco se aproxima do Paredão, é uma “cita revelada”, de que
talvez só ele possui a chave: “Macambira das estrelas / quem te deu tantos
espinhos?” (pág. 526).
Se Casos e Adivinhas apenas limitada e esparsamente se registram, atua­
lizando-se de maneiras diversas, com ingredientes da narração, onde funcio­
nam com a autonomia de formas simples, dentro da forma completa do
romance — a qual também se ramifica em anedotas e em trechos novelescos
de extensão variável (a novela de Maria Mutema, as histórias de Jõe Bexi­

2 0 7
LU I Z C O S T A LIMA

guento, de José Misuso, do Davidão etc.) — as sentenças ou máximas, a modo


de provérbios, de que se pode colher um rico sortimento, se encontram dis­
seminados em quase toda a extensão do tecido narrativo. Ocorrem, aqui e
ali, respeitando o teor conclusivo das sentenças proverbiais, e até observan­
do a qualidade relevante característica dessa forma, sintática e ritmicamente
acentuada, esses pronunciamentos categóricos, dos quais o personagem pa­
rece ser, por vezes, o transmissor, repetindo ou transformando conceitos que
seriam partes de uma linguagem coletiva: aQue Jagunço amolece quando não
padece53 (pág. 278). “Só o que a gente pode pensar em pé — isso é que vale”
(pág. 276). “O que é de paz cresce por si” (pág. 272). “Quem vence, é custo­
so não ficar com a cara de demônio” (pág. 337). “Só quando se tem rio fun­
do ou cava de buraco, é que a gente por riba põe ponte” (pág. 436). “O que
nesta vida muda com mais presteza: é lufo de noruega, caminhos de anta em
setembro e outubro, e negócios dos sentimentos da gente” (pág. 435) etc.
Freqüentes, essas sentenças reforçam o nível de oralidade do relato de
Riobaldo, porque nele entreabrem, à custa da natureza circunstancial de di­
tos e ditados, os marcos de uma experiência em crescimento, auto-interpreta-
da por meio de juízos, válidos para cada momento e para cada situação.
Para Jolles, há correlação entre o Mito e a Adivinha ou Enigma. Nesta, a
linguagem faz uma pergunta, que somente os iniciados podem responder;
naquele, está respondida a pergunta que a linguagem já fez. O mito do Pacto
com o demônio — pacto que Riobaldo teria feito — excede, em Grande ser­
tão: veredas, o limite Adi forma simples respectiva, expressão que é, para Jolles,
de uma disposição mental ou de um gesto verbal, que cria, entre pergunta e
resposta, um objeto de conhecimento absoluto. Direção temática da narrati­
va, esse mito circunscreve-lhe o traçado épico. E sobredeterminante do epos
do próprio romance, isto é, de sua ação desdobrável em ações singulares
memoráveis — apresentadas pelo narrador na medida em que as vai reme­
morando: ações por ele e por outros cometidas, das quais foi entretanto o
principal agente, e que compreendem, entre andanças, proezas de amor e
feitos de guerra, um conjunto de peripécias desenroladas num ambiente na­
tural e humano de imediata referencialidade regional — o Sertão — geográ­
fica, social e politicamente demarcado — em função da história de jagunços
que constitui a matéria fabular. No entanto, o aproveitamento do mito que
sobredetermina o epos implicará, conforme veremos, em outra correlação,
por sua vez sobredeterminante do mito, dentro da estrutura polimórfica de
Grande sertão: veredas.
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

O m ito medieval do Pacto com o versátil Enganador pode ser filiado,


dentro da cadeia mitológica mais ampla a que pertence — relativa à origem
e à natureza do Mal —■ao mito adâmico da q u e d a 16 que concede especial
papel a um Tentador, espírito luminoso, superior, decaído das esferas celestiais,
onde pairava em meio às divinas coortes. De Lúcifer, esse espírito luminoso
mas decaído — para referirmo-nos tão-só ao ramo semita, hebraico-cristão,
de um dos personagens centrais do mito adâmico — descenderam, por esca­
las de degradação, os diabos hediondos do fabulário medieval — onde Goethe
foi buscar o seu Mefistófeles —, agentes hierárquicos do Anjo rebelde, que o
satanismo romântico cultivou. Riobaldo teria outrora cumprido, quando
jagunço, o ritual da espera e da invocação nas encruzilhadas, chamando, na
desolação das Veredas-Mortas, um desses agentes, O-que-Diga, o Capiroto,
a quem teve como aliado, parceiro invisível de um destino formado, instru­
mento da derrota de Hermógenes, e que coadjuva a sua ascensão à chefia do
bando, substituindo Zé Bebelo.
Mas para o narrador, estabelecido em fazenda própria de herança, o
Diabo, acólito e lambaio de Deus, conforme reza a tradição bíblica do Livro
de Job, e cuja ação sobre os homens é consentida e estimulada pela divinda­
de, vira daimon, na conotação que esse termo já recebia no século V a.C., à
época de Sócrates,17 e que Goethe adotaria no seu conhecido poema órfico
de 1817:18 a conotação de potencialidade desconhecida do indivíduo, mas
que a ele se manifesta como potência estranha, exterior, perturbadora e
incontrolável. O Ocultador, o Sujo, que “aceita as más palavras e completa
tudo em obra” (pág. 233), loucura da loucura, doido sem cura (pág. 223),
como o Hermógenes, é o negativo do Eu, o Eu solto, sozinho, neutro e im­
pessoal, que se converte num Ele, encoberto e desencoberto à sombra notur­
na das Veredas-Mortas: “Afora eu. Achado eu estava. A resolução final, que
tomei em consciência. O aquilo. Ah, que — agora eu ia! Um tinha de estar
por mim: o Pai do Mal, o Tendeiro, o Manfarro. Quem que não existe, o
Solto-Eu, o Ele...” (pág. 394). Razão forçosa de um intimado, voz da cons­
ciência falada pela voz do Outro, o Demônio se encobre como potência es­
tranha e tem a ambigüidade do sagrado: interdita, ela atrai chamando a alma;
mas desencoberta conflitivamente, sua interdição levantada se torna permis­
siva, suspendendo o efeito da interdição que a provocou.
A interdição pende sobre o poder e o desejo — sobre o poder do desejo
—■concentrados na figura de Diadorim, o Reinaldo. “Bem-querer de minha
mulher foi que auxiliou rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em

2 0 9
LUIZ COSTA LIMA

Diadorim, penso também — mas Diadorim é a minha neblina” (pág. 25).


Noutro passo, Diadorim é turbulência. “Tudo turbulindo. Esperei o que vi­
nha dele. De um acesso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião
era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim... Que mesmo no fim de tanta
exaltação, meu amor inchou de empapar todas as folhagens, e eu ambicio­
nando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as
muitas demais vezes, sempre” (pág. 39).
Neblina, turbulência, eis os elementos atmosféricos, um perturbador da
transparência, outro da quietude, que traduzem, para Riobaldo, no reconto
de sua paixão avessa, o encanto envolvente, diabólico, de sua exaltação amo­
rosa pelo companheiro “leal, duro, sério e bruto” (pág. 29), que conhecera,
como Menino bravo, à margem do De-Janeiro: encanto noturno, de turva
origem. Esse “mau amor oculto” (pág. 79), esse gostar “dum jeito condena­
do” (pág. 91), vem de longe, vem de fora; vem de uma distância sem passa­
do, que Riobaldo não sabe se foi sonhada ou real. “Mal que em minha vida
aprontei, foi numa certa meninice em sonhos — tudo corre e chega tão ligei­
ro... Se sonha, já se fez” (pág. 26).
Ao selar o pacto com o Demônio, Riobaldo assina o seu destino, ratifi­
cando o pacto do amor proibido: o amor a Diadorim, mediador de sua ade­
são ao bando de Joca Ramíro e de sua carreira de jagunço —•que já assinara
o destino dele. A potência estranha, demoníaca, quando evocada no desfio
das recordações de Riobaldo, revela-se como potência humana, que se atua­
lizara e se cumprira — essa potência do Desejo, o “ruim-querer”, que, care­
cendo de “dividimento”, leva o narrador a perguntar-se: “... o Demo então
era eu mesmo?” (pág. 443).
O aproveitamento do mito sobredeterminante do epos, do ciclo de aven­
turas narradas, é indissociável da indagação sobre a existência do Demônio,
do mal em si, e de seu oposto, Deus — contraponto a que incessantemente
se retorna.
Muito próximos se encontram Deus e o Demônio em Grande sertão:
veredas, a despeito das diferenças que os separam quanto ao estilo, ao modo
de ação. Deus é paciente, o Diabo é sôfrego; a vagarosidade divina não dis­
pensa o ardil (“... Deus é traiçoeiro!”, pág 24) de uma súbita mas disfarçada
interferência (como “pingado de pimenta”, cf. pág. 18). O Diabo vige mas
não rege; e Deus parece reger sem viger. O primeiro aceita as más palavras e
completa tudo em obra (pág. 233); e é por intermédio dele que o segundo
manobra com os homens. Chegamos à fronteira do paradoxo, que tudo con­
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES

funde, por não ser possível admitir a existência de um sem a existência do


outro. Deus existe mesmo quando não há; Demônio não há mesmo quando
existe.
Mas também o mito de referência do romance — o mito do Pacto —*
aparece conjugado a outro mito de origem — o mito do Andrógino, de difusa
procedência, representativo da unidade primigênia, da coincidentia opposi-
torum, a coincidência dos opostos, o masculino e o feminino. Esse mito tem
por função calcar a projeção mediadora de Diadorim na figura arquetípica,
estudada por Jung e Kerényi, da Criança Primordial, dotada de equívocos
poderes, ora benéfica ora maléfica, podendo ser a fonte do Bem ou a causa
do Mal.19 Pois Diadorim não é o Menino, assim expressamente chamado,
maiusculamente grafado, o Menino com a sua fluvial fluidez, imagem do rio
a que se identifica, e introdutor de Riobaldo no conhecimento do mundo,
no apreço da individualidade das coisas, de sua beleza —- o Menino que lhe
transtorna a existência? “Ah, lei ladra, o poder da vida. (...) Aquela mandan­
te amizade. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu
gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço?
Isso. Feito coisa feita!” (pág. 140). E não é ainda Diadorim, pelo efeito de
sua amizade — amizade inaceitável entre dois guerreiros (“Mas, dois guer­
reiros, como é, como iam poder se gostar, mesmo em singela conversação —
por detrás de tantos brios e armas?”, pág. 543) ■—, que ensina Riobaldo a
amar, por contraste, Nhorinhá, seu “amor de prata” e Otacilia, seu “amor de
ouro”? — “Ao crer, que soubesse mais do que eu mesmo o que eu produzia
no coração, o encoberto o esquecido” (pág. 356). Mas, nessa projeção media­
dora de Diadorim, por trás da Criança Mítica Primordial, verte-se o depósi­
to de malícia da própria narrativa. Dir-se-ia que o Pacto se infiltra na obra, e
que se firma, firmando a total ambigüidade do romance. Vejamos por quê.
E graças a esse segundo mito da Criança Primordial, colocado ao encontro
do anterior, relativo ao Demônio, que se produzem aquelas duas mediações
entrelaçadas, através de Diadorim — a do personagem protagonista consigo
mesmo e com os seus dois amores. Mas é ainda graças a ele que também se
produz, num jogo de dissimulações, feito e desfeito no final do romance, a
complementação do revestimento literário medieval da narrativa, que o pacto
com o Demônio iniciou. De fato, quando morre o Diadorim homem, quando
morre o mancebo Reinaldo, cuja dupla natureza, masculina e feminina, a
assegurada ambigüidade mercurial do Menino Mítico calcou, o “mau amor
oculto”, o amor de “jeito condenado”, impossível porque proibido, sublima-

211
LUI Z COSTA LIMA

se no amor permitido, mas impossível, pela mulher disfarçada que ele já era
em vida. E o travestimeeto da mulher combatente em trajes masculinos —
êmula das heroínas medievais, dos Romanceiros e epopéias de Cavalaria —-
que caí sobre a paixão perigosa que o mito permitiu condensar, ao desnu­
dar-se dama, aquele, aquela, que se chamava Maria Deodorina da Fé Betten-
court Marins — “que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e
mais para muito amar, sem gozo de amor...” (pág. 568). Á transfiguração
onírica cessa, o encanto demoníaco se quebra. Reinaldo Diadorim foi gosta­
do como homem, em dormência (pág. 276), de corpo a corpo (“Meu corpo
gostava de Diadorim”, pág. 273). Com a morte, a transfiguração onírica se
estanca; a neblina e a turbulência, a atmosfera de sonho, o pesadelo e o en­
cantamento, acentuados na parte final do romance, correspondente às proe­
zas de Urutu Branco, desapareceram. E enquanto o amor interdito se fixa e
se sublima na queda do disfarce, o cavaleiro corajoso e encoberto converti­
do em dama desnuda, o romance “de bel-ver, bel-fazer e bel-amar” (pág. 184)
perde o seu encanto de gesta medieval e também se desencanta; a mentira
romântica, a mentira do criador de fábulas, se transforma em verdade roma­
nesca *— nesse caso, a incompletude do sujeito narrador que se busca a si
mesmo, e que procura completar-se através da narração. Poderíamos dizer,
em linguagem hegeliana, que essa verdade romanesca, a verdade do roman­
ce moderno e a verdade do Grande sertão: veredas, é, para aproveitarmos o
conceito de Lukács, a necessidade, que marca a obra com a muito profunda
melancolia de todo grande romance autêntico,20 de uma contínua e intransfi-
gurável reflexão, jamais totalizada.

Passemos ao segundo ponto de incidência do exame da filosofia que nos


propusemos a considerar, ou seja, a conexão de Grande sertão: veredas, até
aqui sumariamente apreendido nos relevos épicos e míticos de sua lingua­
gem, com determinadas linhas do pensamento histórico-filosófico.
O alto nível de oralidade da narrativa, sustentado no recuo para o traba­
lho da linguagem, é inseparável de um alto nível reflexivo — nível reflexivo
de uma prosa entrançada, a que, muito a propósito, se referiu Luiz Costa
Lima.21 Mas o que é que a reflexividade da narração entrança?
Independentemente da articulação metafórica elaborada sobre o espaço
social e humano de imediata referencialidade regional — o Sertão —, a
reflexividade dominante da narração, isto é, do processo narrativo, do dis­
curso como tal, entrança metáforas que são top oi do pensamento. Despren­

2 12
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

didos de um enorme bloco da linguagem filosófica, que liga o neoplatonismo


à Patrística, e aquele às doutrinas hermético-alquímicas, esses veios concep-
tuais, esses filamentos teológico-místicos, distendem-se, disseminam-se, à
semelhança do que se verificou para as sentenças proverbiais, por todo o
tecido narrativo. Referir-nos-emos à presença de tais filamentos tão-só em
certas conceituações ou definições de Riobaldo.
A metáfora da alma espiritual como lugar recôndito, cara a Plotino, tal­
vez seja a mais importante. Liga-se à de visão interior, que passou à Mística:
“Vender sua própria alma... invencionice falsa! E, a alma, o que é? Alma tem
de ser coisa interna supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um
se pensa: ah! alma absoluta” (pág. 25). O conhecimento que mais vale surge
da maior ignorância, e se aparenta à iluminação súbita: “Sou um homem ig­
norante. Gosto de ser. Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha di­
vidida?” (pág. 292).
A oposição entre o escuro e o luminoso, entre sombra e luz, inerente à
metáfora platônica do trânsito entre o aparente e o verdadeiro, entre o irreal
e o real, está nestas e em outras imagens do conhecimento invocadas por
Riobaldo: “Mas, a brasinha de tudo é o mesmo carvão só” (pág. 200) — “A
luzinha dos santos arrependidos se acende é no escuro” (pág. 138). Mas aqui,
como em tudo desse romance, a mistura é a lei. Santo Agostinho comparece
na imagem dos palácios da memória — “dos meus grandes palácios, onde o
demônio não consegue entrar” (pág. 443) — extraída das Confissões, e a
tradição hermético-alquímica, que absorveu Heráclito, está presente na
equivalência entre o alto e o baixo do fragmento n.° 60 do filósofo pré-
socrático: “Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima, o
que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe” (pág. 217).22
No entanto, nem uma das linhas do pensamento histórico-filosófico — a
neoplatônica, a agostiniana, a heraclitiana, e até mesmo a gnóstica, que nos
pode sugerir a idéia da alma absoluta —, nem uma dessas linhas, que se
entrançam à reflexividade tensa, enfeixa a perspectiva do narrador e do ro ­
mance, reaberta a cada passo pelo dinamismo e pela mutabilidade da pró­
pria narração.
Ponteando opostos, como ele próprio diz, conhecendo a agudeza dos
contrastes, a reflexão de Riobaldo vai além dos topoi em que se apoia para
caminhar. Sem ter que fazer uma escolha maniqueísta, a suprema sabedoria
conquistada pelo narrador, ao coligir a experiência passada no ato de narrá-
la, é introduzir, sub-repticiam ente, um terceiro term o entre Deus e o

2 13
LUIZ COSTA LIMA

Demônio, já por ele tão aproximados. Não sendo nem um nem outro, esse
terceiro termo — o Grande sertão, Sertão-Mundo, Sertão supra-regional23
— é a diferença que os separa, e que os mantém como aspectos complemen­
tares de uma mesma realidade problemática.
Traiçoeiro como Deus, bruto como o Demônio, o Grande sertão sorra­
teiro, que “vai virando tigre debaixo da sela” (cf. pág. 324), o Grande ser­
tão certo e incerto (cf. pág. 149), onde não se pode saber o que vale e o
que não vale, antes da decisão e da ação, o Grande sertão que ninguém
encontra quando procura (cf. pág. 360), é o espaço de errância em que o
homem se perde para encontrar-se. “O sertão é bom: tudo aqui é perdido,
tudo aqui é achado” (pág. 427). Essa realidade problemática e onipresente
da existência humana e do mundo interligados, em que o sertão regional
se transforma, corresponde ao repetido motivo, que alenta a reflexão, do
viver perigoso, não só arriscado mas incerto, viver de que não há senão um
discernimento incompleto e limitado, e cuja regra certa, sempre visada e
pressentida, não se possui antecipadamente: “Viver — não é? —- é muito
perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o vi­
ver, mesmo” (pág. 550) — “Vivendo se aprende, mas o que se aprende,
mais, é só a fazer outras maiores perguntas” (pág. 389/390).
Ao começarmos a leitura de Grande sertão: veredas, é o epos que nos
envolve e nos entrega ao m ito; ao terminá-la, porém, é o mito, suspenso à
indagação reflexiva que foi capaz de neutralizá-lo, que nos entrega a um ethos,
quer dizer, à inquietação ética ou a uma ética da inquietação, e não a um
código moral. Se o mito sobredeterminou o epos, o ethos do viver perigoso
sobredetermina, por força da reflexividade dominante da narração, o pró­
prio mito, e o pacto com o Demônio assume então a forma do destino con­
tingente: a forma da existência que se temporaliza.

Chegamos ao terceiro e último ponto de incidência filosófica que pretende­


mos abordar: aquele em que a obra se converte numa instância de ques­
tionamento. Disse Walter Benjamin que toda a obra artística tem no domínio
da filosofia seus irmãos e suas irmãs.24 Nela está incluída, sob manifestações
diversas, o ideal do problema, isto é, a idéia de uma verdade, que, sendo da
própria obra como tal, é não um mero problema filosófico extrínseco e avul­
so por ela levantado, mas a intrínseca verdade que prenuncia, verdade que
por si só constitui, ainda que como interrogação expressa não se formule, e
independentemente de sua prévia aliança com o discurso característico da

2 14
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

filosofia, uma instância de questionamento. “Segue-se daí” — para retomar­


mos, embora num outro sentido, a reflexão de Walter Benjamin sobre as
Afinidades Eletivas, de Goethe, e aplicá-la, de imediato, a Grande sertão:
veredas — “que desde o momento em que, ultrapassando as fundações, nos
elevamos em nosso exame até à visão intuitiva do romance terminado, é a
filosofia —- e não o mito — que é chamada a nos servir de guia.”25
Segundo entendemos, essa filosofia, instância de questionamento, cha­
mada a servir-nos de guia, abre-se, em Grande sertão: veredas, em torno do
problema do tempo, porquanto é justamente o tempo aquele horizonte de
confluência da realidade problemática, que o tratamento do mito sobre-
determinado por um ethos permitiu entrever, com a função, também pro­
blemática, do ato de narrar, diretamente visada pelo narrador, e intrínseca
ao desenvolvimento do romance.
O uso da categoria do tempo, em Grande sertão: veredas, demandaria
um exame minucioso que não podemos fazer aqui. No entanto, algumas in­
dicações a respeito são necessárias a fim de concluirmos:

1.° — o tempo da narrativa se desenvolve em três unidades temporais


distintas: a unidade correspondente ao relato oral que está sendo feito (pre­
sente), a unidade dos acontecimentos épicos (passado), e a unidade corres­
pondente às lembranças evocadas (presente-passado);
2.° — o tempo do relato oral, de duração limitada — provavelmente três
dias e duas noites — situa o narrador e o dialogante no mesmo espaço, diri­
gindo, portanto, o fluxo da narração para o presente em que ambos se situam;
3.° — o tempo correspondente aos acontecimentos que já se consumaram
situa-se num pretérito perfeito das coisas transcorridas, que o epos retoma (a
sucessão ou passagem desse tempo sendo sustentada, em diversos momentos
da narrativa, por expressões determinadas);
4.° — o tempo da evocação, da lembrança, que leva o narrador a reatua-
lizar o presente do passado, e portanto a colocar-se como que diante dos
episódios de sua aventura finda, leva-o também, por força das expectativas,
aspirações e decisões tomadas, que a esses instantes remontam, a projetar o
futuro que neles se presentificou, gerando o passado.

Os três tempos — o passado, o presente e o futuro — formam um só


tempo que se distende, um só processo de temporalização, que conflui com o
processo da própria narrativa. As carências do narrar — e a sua forçosa

2 15
LUIZ COSTA LIMA

necessidade —, as carências desse contar dificultoso de Riobaldo, se desdizen­


do, depondo em falso, procurando o essencial e encontrando o acidental,
dando o verdadeiro como plausível; todo esse contar ansioso do narrador em
busca de si mesmo, que é contudo a única maneira que lhe permite ver e saber,
alcançar a matéria vertente na retaguarda dos fatos, dar formato à vida, reunir
e coligir o possível e o impossível, retraçar a ação e compreendê-la; toda essa
penúria e toda essa força do narrar depende do tempo como movimento da
existência finita em seu cuidado e em sua inquietude. Se o viver é perigoso, se
falta ao narrador, sempre no meio da travessia, “entretido na idéia dos lugares
de saída e de chegada” (pág. 35), o discernimento do princípio e do fim, é
porque o tempo, que de nós desborda, também nos limita. Mas assim compreen­
didos o viver e o narrar pelo mesmo fundamento, é tão perigoso um quanto o
outro. Narrar é perigoso, porque não se pode contar tudo — porque não se
pode contar certo — e porque se deve fazê-lo.
Aquelas três unidades temporais que se interligam no processo da narra­
ção, produzindo o tempo, enquanto a narrativa vai sendo produzida, traçam,
concomitantemente, ao sabor da reflexão e da experiência éticas, a trajetória
errante — mistura#do falso e do verdadeiro, do certo e do incerto —, do ho­
mem no conhecimento de si mesmo e do mundo. “O Diabo não há! E o que
digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.” A travessia é a existência
que se temporaliza, e revela, a cada volta do tempo, maiores questões e maio­
res problemas, sempre que pensada através das veredas poéticas da narrativa.

EPÍLOGO EM CENA ABERTA

Na temporalidade surpreendemos, pois, a instância questionante do rom an­


ce de Guimarães Rosa, propondo uma questão do e para o pensamento —
a ontologia da questão, como diria Deleuze26 —, que é por onde, em nossa
época, a literatura e a filosofia mais se aproximam. Desse ponto de vista,
para voltarmos à matéria do nosso prólogo, o conhecimento da literatura
pela filosofia acaba sendo ora um confronto, ora um encontro. Que, no
caso particular desta reflexão, o confronto e o encontro tenham se dado
num romance é altamente significativo. Pois é pelo romance — pela verda­
de romanesca — que podemos circunscrever um pequeno ou um grande
drama — talvez drama da cultura ou do pensamento — adiante resumido
em três breves atos.

2 1 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOl. 1

O primeiro já conhecemos: foi a discriminação da literatura pela filoso­


fia, mais propriamente da chamada ficção narrativa, em A República, de
Platão. O segundo ato desse mesmo drama começou com a vigência da esté­
tica moderna, de Kant a Hegel, quando o artístico ou o poético posto entre
a aparência e a essência, entre o concreto e o abstrato, naquela região que a
filosofia hegeliana autorizaria a chamar de ser espiritual (Geistigsein), entra
em cena um personagem novo, que mistura as realidades separadas, os gêne­
ros, os estilos, a narração e a reflexão: precisamente o romance, embaraçoso
para Hegel e inabsorvido pela referida estética moderna.
O terceiro ato ainda não acabou. Situamo-nos nele. Mas esse ato pode
ter começado com o grande embaraço — a “grosse Verlegenheif\ que
Nietzsche sentiu, e que já era um sinal do aguçamento da crise da metafísica
que despontara em Kant: o embaraço de saber se “a filosofia é uma arte ou
uma ciência”.27
Daí por diante, com a passagem da linguagem ao primeiro plano da re­
flexão — passagem que já se efetuara em Nietzsche —, descobre-se o solo
metafórico da filosofia, e pode-se então começar a perguntar se ela não é
uma certa espécie de literatura; daí por diante, desencobre-se a discrimina­
ção platônica: repassados na mesma vontade de verdade, o discurso verda­
deiro, filosófico, pode dissimular tanto quanto o discurso falso, literário, pode
revelar. Eis por que, ao conhecer a literatura, a filosofia tende a ir ao encon­
tro de si mesma, a fim de não somente interrogá-la, mas também, refletindo
sobre um objeto que passa a refleti-la, interrogar-se diante e dentro dela.

2 17
Notas

Para as citações do romance, intercaladas neste trabalho, ver João Guima­


rães Rosa, Grande sertão: veredas, 2 .a edição (texto definitivo), Livraria José
Olímpio Editora, Rio de Janeiro, 1958.

1. A República, XVII, 376, e.


2. A República, V-392, d, VII-394, d e VIII-395, b, c.
3. Hegel Esthétique (trad. de S. Jankélévitch), Tomo III (2.a parte). Les arts roman-
tiques} La Poésie, pág. 8, Ed. Aubier.
4. Michel Foucault, Les Mots et les Cboses, pág. 313, Gallimard.
5. Idem, pág. 357.
6. Como juízos de gosto estético, que correspondem a um modo de representação
por meio da satisfação desinteressada, e cujo objeto, representado sem conceito, é
o Belo. (cf. Crítica do Juízo, Primeira Parte; Crítica do Juízo Estético, Seção I, Li­
vro Primeiro, Analítica do Belo.)
7. Roland Barthes, Linguistique et Littérature, in Langages n.° 12. Didier/Larousse,
1968.
8. Roland Barthes, Crítica e Verdade, pág. 216, Editora Perspectiva.
9. Paul Ricoeur, Uart et la systhématique freudienne, Le Conflit des interprétations
(essais d 3herméneutique), pág. 204, Ed. Seuil, Paris, 1969.
10. E. Husserl, Philosophie ais strenge Wissenschaft (A filosofia como ciência rigorosa),
1911.
11. Seria, além da designação, da manifestação e da significação, a quarta dimensão
das proposições. Cf. De la Proposition, Troisième série, Logique du Sens.
12. René Wellek y Austin Warren, Teoria Literaria (Literatura y Ideas, Cap. X), Edito­
rial Gredos, Madri.
13. Mary L. Daniel, João Guimarães Rosa: Travessia Literária, pág. 138, Livraria José
Olímpio Editora, Rio, 1968.
14. Walnice Nogueira Galvão, As Formas do Falso, pág. 70. Editora Perspectiva, São
Paulo, 1972.
15. André Jolles, Einfache Formen, pág. 16, Max Niemeyer Verlag, Tübingen, 1968.
16. Cf. Paul Ricoeur, Finitude et Culpabilité, II, La Symbolique du Mal, Aubier.
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

17. Ver, a propósito, Xenofonte, Apologia, II, e Platão, Apologia de Sócrates, 28, e.
18. As quatro estrofes desse poema, que Goethe comentou em 1820, quando publica­
dos na Morpbologie e em Kunst und Altertum (II. 3), versam, sucessivamente, so­
bre as cinco palavras-chave Demônio, Acaso, Amor, Necessidade e Esperança. Cf.
Henri Lichtenberg, La Sagesse de Goethe, La Renaissance du livre, Paris.
19. Kerényi, Lenfant divin, Jung, Contribution à la psychologie de Varchétype de
Venfant, in C. G. Jung e Ch. Kerényi» Introduction à Vessence de la mythologie
(Uenfant divin — La jeune filie divine), Petite Bibliothèque Payot, Paris. Ver, tam­
bém, de Jung, Psicologia de la Transferencia, págs. 45/46, Buenos Aires, Paidos.
Acerca da androginia, particularmente, Mircea Eliade, Mytbes, Rêves et Mystères,
pág. 234, Gallimard.
20. Georges Lukács, La Théorie du roman, pág. 80. Editions Gonthier, 1963.
21. Luiz Costa Lima, O Sertão e o Mundo: Termos da Vida, Por que literatura, págs.
93/94, Petrópolis, Vozes, 1966.
22. “Um só e mesmo caminho para cima e para baixo” — Heráclito, Frag. 60. E o que
a Tábua Smaradigna, documento básico da tradição hermético-alquímica, repete
ampliando: “... o que está embaixo é como o que está em cima, o que está em cima
é como o que está embaixo...”.
23. Referiu-se Antonio Cândido ao supra-regionalismo de João Guimarães Rosa, no
quadro das tendências atuais da novelística da América Latina. Vide, do ensaísta,
Literatura y Subdesarrollo, América Latina en su literatura, Coordenação e intro­
dução por Cesar Fernandez Moreno, Siglo Veintiuno Editores.
24. Walter Benjamin, “Affinités Electives” de Goethe, Oeuvres Choisies, Julliard.
25. Op. cit., idem, pág. 151.
26. Gilles Deleuze, Différence et Répetition, págs. 252/253, Presses Universitaires de
France, 1968.
27. Nietzsche, Das Pbilosophenbuch, 53, pág. 69, Aubier-Flammarion.

2 1 9
cap ítu lo 6 Literatura e psicanálise
a desligação
A N D R É G R EEN

“La D éliaison”, in rev. Littérature >3 Larousse, Paris, 1971.


0 TRIÂNGULO LITERÁRIO E A PSICANÁLISE

O problema das relações entre a literatura e a psicanálise já rendeu muitas


páginas. Entretanto, parece que há sempre novas coisas a dizer, pois conti­
nua-se a chamar a juízo novas testemunhas. Acaso ou correlação significati­
va, o tema literatura-psicanálise nunca foi mais abundantemente tratado que
no momento em que um outro tema dissimuladamente assume uma insólita
insistência, o da morte da literatura. Enquanto alguns choram sobre esta
agonia, outros, que se querem à frente do combate (mas de que combate?), a
invocam. Esperam, sem dúvida, que este cadáver sirva de adubo a uma nova
cultura. Neste sentido, poder-se-ia pensar que a psicanálise seria um dos si­
nais da morte próxima de uma cultura senil da qual o definhamento da lite­
ratura é um dos aspectos e, se tendemos ao otimismo, o anúncio de um
pensamento em gestação que será uma das novas faces da cultura de ama­
nhã. De resto, pode-se igualmente sustentar que a morte da literatura prece­
deria de pouco a morte da psicanálise, que pertence à mesma cultura, apesar
das modificações profundas que imprimiu ao movimento de idéias. Se não
nos é possível ratificar sem nenhum exame julgamentos deste tipo, também
não nos é possível pensar que o acaso é o único responsável por este encon­
tro entre o desenvolvimento dos estudos sobre a psicanálise e a literatura e o
sentimento do declínio — provisório ou definitivo — da literatura.
Mas ao invés de falar da morte da literatura, já que não somos chamados
a constatar o enterro dela, consideremos em vez disso que há uma mutação
literária que só o futuro dirá se ela foi fatal à literatura. Esta mutação é con­
temporânea à eclosão e ao desenvolvimento da psicanálise. Além disso, é
importante notar que a enorme maioria das obras literárias que foram obje­
to de estudos psicanalíticos pertence a uma época anterior a esta mutação.
Como o terreno está mais claramente delimitado, é interessante interrogar-
se sobre este estado curioso no qual a psicanálise se dirige menos às obras de

2 2 3
LUI Z COSTA LIMA

seu tempo que às do passado, como se ela parecesse recuar diante daquelas,
ou até mesmo entregar os pontos diante da literatura que tem a sua mesma
idade.
Haveria então de algum modo um evitamento da psicanálise com rela­
ção à literatura de hoje, apesar de seu encontro ser patente, apesar de a psi­
canálise estar manifestamente presente nos três lados do triângulo literário:
lado do escritor, lado do leitor, lado do crítico. De fato, seria preciso inter­
rogar-se sobre o efeito de duplo sentido da relação entre literatura e psica­
nálise: efeito da psicanálise sobre a literatura e efeito da literatura sobre a
psicanálise. De Freud a Lacan, há uma marca do literário sobre a obra de
pensamento psicanalítico, um quadro formal da linguagem e da escrita, que
justificariam por si sós um estudo. Entretanto, nós nos ocuparemos do exa­
me, em mão única, do efeito da psicanálise sobre a literatura, deixando aos
mais letrados a outra tarefa.
Eis-nos com as mãos na massa. Uma divisão prévia se nos impõe. O efei­
to da psicanálise sobre a literatura pode ser o resultado quer do saber, quer
da verdade, isto é, da prova da experiência da psicanálise. Proceder a esta
dicotomia desperta suspeitas. Toda divisão do mundo literário em duas clas­
ses, a dos iniciados e a dos não-iniciados, provoca efeitos ambivalentes. A
legitimidade da distinção é criticada tão logo admitida. Vamos opor deter­
minada análise literária, notoriamente fraca, cuja responsabilidade recai so­
bre a pena de um analista, a um determinado ensaio brilhante cujo autor é
um não-analisado. O escandaloso ostracismo com que cumulamos os não-
iniciados não acarreta nenhuma proibição de direito ou de fato. Pensamos
apenas que se se pretende falar com conhecimento de causa, o saber sobre a
psicanálise não pode ocupar o lugar da formação na prática psicanalítica. E
claro que ter tido a experiência de uma psicanálise e mesmo ser psicanalista
não garante em nada a validade dos trabalhos que se é levado a produzir.
Praticar a psicanálise — ainda que seja a dos textos — necessita, em
nosso entender, que se tenha tido a experiência da psicanálise. Percebe-se
de imediato que esta cláusula concerne aos personagens do triângulo lite­
rário de uma maneira muito desigual. Embora leitura e escrita tenham sido
reunidas em uma prática única com duas faces, precisamos separá-las. Do
lado do escritor, a experiência da psicanálise só lhe diz respeito na medida
em que ele pretende escrever sobre a psicanálise ou dar uma orientação
abertamente psicanalítica a um trabalho literário, o que é muito raro. A
literatura atual é abundante em escritos cheios de um saber sobre a psica­

2 2 4
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES - VOL, 1

nálise que nem sempre melhora a produção literária. É um saber impossí­


vel de ser ignorado, que impregna o escritor contra a sua vontade e com o
qual ele terá de contar em seus embates com a escrita. Não há dúvida de
que as coisas eram mais simples para ele antes desse saber lhe ser lançado
“entre as pernas”. Ele agora está embaraçado por um olhar que lança sobre
seus próprios escritos — e que talvez aumente sua censura mais do que o
ajude a liberar-se dela. O desafio feito a este saber não deixará de consti­
tuir problema, quer o escritor prefira jogá-lo num laborioso esquecimen­
to, quer deseje ultrapassar-lhe os limites. Se o escritor toma o partido de
escrever com este saber, é então porque este revela ser apenas o que é, um
saber sem verdade.
Também do lado do leitor esta restrição é muito limitada; ela só se apli­
ca àquele que se atribui o objetivo de fazer uma leitura psicanalítica dos
escritos para os quais é levado por seu interesse. Na verdade, a difusão do
saber psicanalítico afeta uma massa cada vez maior de leitores, justamente
porque ela se faz pela leitura. Entretanto, é espantoso ver o quanto este
saber é precário quando é posto à prova. Por exemplo, quando o efeito de
uma leitura torna-se objeto de análise, ou mesmo de auto-análise. Portan­
to, sem exagerar, pode-se dizer que nem o escritor nem o leitor caem sob o
golpe do que nos apareceu como uma exigência, segundo muitos talvez
demasiado rigorosa.
Vê-se, no fundo, que o problema só recai sobre o crítico que quer se ser­
vir do método psicanalítico. E nesta posição terceira, que faz do crítico um
leitor-escritor e um escritor-leitor, que a fusão entre saber e verdade é inevi­
tável. O trabalho crítico dos últimos anos produziu ensaios onde a contri­
buição da psicanálise foi amplamente colocada, não faltando neles todas as
luzes do brilho. Examinadas de perto, estas jóias trazem, para os psicanalis­
tas, todos os defeitos aos quais um saber sem experiência pode dar origem. A
alta qualidade de abstração destas obras libera-se alegremente do mínimo de
imposição que limita toda experiência. A crítica psicanalítica é uma prática
teórica; isto quer dizer que ela se baseia numa prática e numa teoria que se
esclarecem reciprocamente. Ela não pode ser só uma pura teoria.
Este lembrete vem aqui no seu devido lugar e momento, precisamente
porque a prática psicanalítica, em todos os planos em que vem a se exercer,
é fundamentalmente suportada por uma atividade crítica, delimitando assim
o campo do que se poderia chamar provisoriamente, por falta de um melhor
termo, uma epistemologia subjetiva.

225
LUIZ COSTA LIMA

Teríamos então o direito de pedir, por uma questão de reciprocidade,


que o crítico psicanalista fosse também um literato, isto é, que ele praticasse
a literatura. Mas que é praticar a literatura? Em virtude do que foi dito an­
tes, não se pode possuir um saber sobre a literatura. Praticar a literatura sig­
nificaria que o crítico deve ser escritor? Sim, se se abole a distinção entre
escritor e crítico numa concepção extensiva da escrita. Não, se se mantém a
distinção. Neste caso, o crítico psicanalista está na interseção de dois con­
juntos: os psicanalistas e os críticos» Nesse segundo caso, pode-se dizer que
ele é um “escrevente”, segundo a terminologia de R. Barthes.1 Seria então
dentro destes limites que se poderia afirmar que ele pratica a literatura. O
crítico psicanalista seria um escrevente sobre a literatura. A prática literária
do crítico psicanalista visa ao estudo e à interpretação das relações entre o
texto literário e o inconsciente (no sentido que a teoria psicanalítica dá a
este termo),2 quer se trate da organização inconsciente do texto, do papel do
inconsciente na produção (e no consumo) dos textos etc. Circunscrevendo*
se assim este setor, vê-se que o crítico psicanalista só ocupa uma parte do
âmbito da crítica. O recorte de seu objeto permite ao psicanalista atingir um
aspecto do texto que outras atitudes não seriam capazes de revelar, mas em
contrapartida é este aspecto e só ele que será posto em evidência, deixando
aós outros setores da crítica o cuidado de desvelar os outros aspectos. Mas,
para desvelar os tesouros ocultos, importa, primeiro, que ele tenha feito in
vivo o percurso que o colocará com aquilo que sua consciência ignora neces­
sariamente para abrir-se ao âmbito do inconsciente, que é primeiro e antes
de tudo seu inconsciente, condição essencial para falar do inconsciente dos
outros, ainda que seja o dos textos literários.

0 PODER INTERPRETATIVO

Não é raro que o psicanalista encontre na relação analítica uma forma parti­
cular de resistência: aquela em que o analisando reage à interpretação que
acaba de lhe ser dada, não pelo efeito que ela produziu nele (prazer ou
desprazer, aceitação ou recusa, reconhecimento ou desconhecimento etc.),
mas sobretudo por um questionamento sobre o poder interpretativo do ana­
lista: “Eu me pergunto, diz ele, o que permitiu que você me dissesse isso.
Como é que você fez para, a partir do que eu disse, me dar esta interpreta­
ção? Através de que caminhos você passou? Baseado em quê você selecionou

2 2 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

este ou aquele traço; de que maneira você procedeu às aproximações entre


os elementos do meu discurso para reuni-los na sua interpretação? É isso o
que me interessa, mais do que o que você disse.” O analista não se detém
diante destas perguntas. Ele não responde ao desejo de saber, porque não é
o saber que está em jogo numa análise, não mais do que a confirmação ou a
anulação da interpretação. Toda interpretação é marcada pelo risco que cor­
re aquele que a enuncia, que pode fazer dela uma palavra vazia ou uma pala­
vra plena. Mas não depende só do analista, de seus dons e sua sagacidade,
que ela seja sempre eficaz. É preciso contar com o analisando. Importará
apenas a continuação do processo analítico, do qual o melhor testemunho ê
a seqüência associativa que segue a construção ínterpretativa proposta.
O crítico literário que não é analista responde muitas vezes às interpreta­
ções de seus pares psicanalistas como o analisando de que acabamos de falar.
“O que nos interessa é principalmente o seu método, dizem eles. Mostre-
nos como você procede. Diga-nos o que é que lhe permite aplicar a técnica
que você emprega com seus pacientes fora do ambiente dela para usá-la nos
textos.” Já que esta pergunta não vem do divã mas nasce de uma troca, po­
demos ser tentados a respondê-la. Mas então tudo se passa como se a expo­
sição de um material e de sua análise não pudesse bastar para estancar a sede
da pergunta. Ou como se o analista fosse mais ou menos suspeito de deter
em sua posse um procedimento secreto do qual só entrega os resultados sem
dizer em que consiste. A sede da pergunta não pode ser estancada, porque a
pergunta está num outro lugar.
O que pede o analisando de quem falamos ainda há pouco, no efeito de
transferência que inspira suas observações, é a transmissão de um poder de
que ele deseja se apropriar por meio de uma incorporação que resolveria to­
dos os seus problemas de uma só vez. Por um lado, evitará o desprazer que
podem lhe causar certas interpretações, cruéis para o seu narcisismo; dis­
pondo do poder de interpretar — o único de que dispõe o analista — dará
para si as interpretações menos verídicas, limitando-se àquelas que sua capa­
cidade de tolerância lhe permite fornecer. Por outro lado, utilizará este poder
interpretativo servindo-se dele como se fosse uma arma para os fins da aná­
lise selvagem com os outros. Pois este será o seu grande prazer. Por um refi­
namento suplementar, poderá inverter este prazer — mas será sempre um
prazer — degustando as delícias de um masoquismo intelectual.
Hoje, com a informação que circula, a difusão dos escritos psicanalíticos
— algumas tiragens fazem sonhar, quando se pergunta o quanto pode ser

227
LUIZ CO STA LIMA

assimilado — permite a expansão do saber psicanalítico que vem se colocar


em meio a outros saberes, que ninguém está autorizado a ignorar se não quer
correr o risco de passar por atrasado. O analisando de ainda há pouco pro­
curava a aquisição rápida e eficaz do poder interpretativo do analista, pou­
pando-se de atravessar as florestas negras ou os pântanos do inconsciente. O
consumidor do saber psicanalítico, quando é leitor e escritor, isto é, crítico,
procura enriquecer seus horizontes pela aquisição de um instrumento do qual
ele poderá se servir habilmente depois de alguns exercícios. No nível de uma
teoria da escrita, a psicanálise estará presente ao encontro, mas estará “ultra­
passada” num conjunto mais vasto. A psicanálise se baseia numa psicossíntese.
Se ainda há pouco parecemos muito dogmáticos ao pedir que quem preten­
de analisar os textos tenha uma experiência da psicanálise, não era por pre­
conceito, mas porque este pedido — que só tem o valor de um desejo fantasista
— nos parece justificado pelos desenvolvimentos da crítica e da teoria da
literatura. Levar em conta a psicanálise não é, com certeza, usá-la como se
faz hoje, acomodando-a a diversos molhos. Mais vale ignorá-la completa­
mente, se não podemos saltar a etapa que levaria a pô-la à prova primeiro
sobre si próprio, como faz todo analista. De nada serve esquivar-se preten­
dendo que aí não se trata da psicanálise propriamente dita, mas de uma in­
terpretação que leva em conta os ensinamentos da psicanálise sem por isso
nomear-se psicanalítica. Esta casuística só convencerá aqueles que precisam
de uma caução. Quem poderia contestar que há aí uma distorção intelectual,
já que a tese defendida utiliza a terminologia, os conceitos, os modos de pensar
da psicanálise, como se estes pudessem ter uma significação fora da experiên­
cia que os fundamenta?
Reconhecemos de boa vontade que a interpretação psicanalítica não é
exaustiva, ela é específica. E evidente que outros recortes podem levar a outras
interpretações. Mas que cada um prossiga seu caminho e coloque suas hipó­
teses de trabalho contra o muro, fazendo-as render tudo que podem dar. O
crítico psicanalista é às vezes tachado de intransigência. No entanto, ele só
impõe o rigor exigido por toda disciplina — a estranha palavra, mas tão ver­
dadeira — que não sofra de amadorismo, ainda que esclarecido. A necessi­
dade de uma articulação entre a psicanálise e outras ciências, nem todas elas
humanas, é incontestável. Mas ela não se pode fazer do exterior, nem prin­
cipalmente por aqueles que só conhecem a psicanálise através dos livros,
mesmo se sua profissão é ler livros, pensar sobre eles e escrever o produto
desta reflexão. Cedo ou tarde, serão construídas as pontes por aqueles que

2 2 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

são os artesãos de suas disciplinas, que conhecem os recursos e os limites delas.


Elogio da técnica? Se o psicanalista só fosse um técnico, ele se contentaria
com a psicanálise que pratica com os analisandos e não sentiria a necessida­
de de se perder, como Dom Quixote, no universo dos livros.

A DESL1GAÇÃO

Que faz o psicanalista diante de um texto? Procede a uma transformação —


na verdade não faz isso deliberadamente, é a transformação que se impõe a
ele — pela qual não lê o texto mas o escuta. Evidentemente isso não quer
dizer que o leiam para ele ou que ele o leia em voz alta. Ele o escuta segundo
as modalidades que são específicas da escuta psicanalítica. Eis o paradoxo: a
leitura rigorosa se duplica aqui de uma escuta relaxada, uma leitura flutuan­
te. A leitura flutuante não é uma leitura negligente, ao contrário. E atenta a
tudo o que supõe perturbar a expectativa do leitor. Segue os fios do texto
(texto = tecido, admite-se hoje), mas recusando o fio de Ariadne que o tex­
to propõe ao leitor. Este fio é aquele que estende o texto até o seu objetivo,
aquele que tem a última palavra, que é o termo de seu sentido manifesto. Ele
aplica, então, ao texto o tratamento que aplica ao discurso consciente que
recobre o discurso inconsciente. O psicanalista não dispõe, no caso do texto
literário, das mesmas vantagens que diante do texto manifesto do sonho, pois
não pode aqui avaliar o trabalho do sonho a partir das associações que vão
liberar os restos diurnos e levar dos pensamentos do sonho ao desejo do
sonho. O texto literário e o texto do sonho só se aproximam num ponto: os
dois são apresentados através da elaboração secundária. Por isso talvez seja
mais exato comparar o texto literário ao fantasma (consciente), na medida
em que no fantasma se misturam estreitamente os processos primários e os
processos secundários, sendo que estes modelam os primeiros dotando-os
de um grande número de atributos pertencentes à secundariedade. De todas
as características da secundariedade, é ainda a ligação que talvez seja o ele­
mento mais marcado: uma energia livre (não ligada) tendendo para a descar­
ga, utilizando os compromissos da condensação e do deslocamento, fazendo
coexistir os contrários e indiferente à temporalização, transformando-se em
energia ligada cuja descarga é adiada, contida e limitada, obedecendo às leis
da lógica e da sucessão temporal.3 Mas o fantasma, tal como o texto, mesmo
quando se esforça para se enfeitar com as características da secundariedade

2 2 9
LUI Z COSTA LIMA

deixa aqui e ali, pelo fato mesmo de ser uma obra de ficção, portanto gover­
nada pelo desejo, vestígios dos processos prim ários sobre os quais foi
edificado. Estes vestígios sempre se traem, atrás da construção necessária do
texto, por seu caráter acessório, adventício, contingente. O olho neles es­
barra sem se deter, mas o inconsciente do leitor os percebe e os registra.
Donde, diante de todo texto literário — e quanto mais o texto é forte, mais
este efeito é marcado, nos dois sentidos do termo — o aparecimento de uma
idéia e de um afeto. A idéia é a de um enigma e o afeto, o da fascinação do
texto enquanto emissor. Ambos criam problemas e levam o analista a fazer
esta pergunta, a analisar a fascinação. Em suma, o analista reage ao texto
como a uma produção do inconsciente. O analista torna-se então o analisa­
do do texto. E nele que é preciso encontrar uma resposta para esta pergunta,
e ainda mais no caso do texto literário, onde ele só pode contar com as suas
próprias associações. A interpretação do texto torna-se a interpretação que
o analista deve fornecer sobre o texto, mas afinal de contas é a interpretação
que ele deve dar a si próprio dos efeitos do texto sobre seu próprio incons­
ciente. Por isso, importa que este exercício de auto-análise seja precedido de
uma análise por um outro, ou, se preferirem, de uma análise do Outro. O
analista põe esta interpretação à prova ao comunicá-la. Trata-se exatamente
de uma prova, pois ele revela abertamente as falhas de sua leitura e os limites
de sua auto-análise. É certo que ele corre o risco de perder o sentido incons­
ciente do texto, mas principalmente de desvelar as resistências que encontra
ao desvelamento de seu próprio inconsciente. Aqui uma colocação muito
superficial colocará em evidência a racionalização do analista; lá uma cons­
trução artificiosa indicará que ele está “fora de foco”, o que se chama em
jargão analítico uma interpretação “chutada”. Interpretar é sempre assumir
o risco interpretativo.
A credibilidade da interpretação não está em causa. A aceitação ou a re­
jeição não têm nenhuma utilidade para julgar sobre o valor da interpretação.
Se se diz que o delírio é da interpretação, é preciso aceitar em troca a idéia
que a interpretação do psicanalista aos olhos dos outros é também um delí­
rio. Mas a força de resposta provocada pela interpretação testemunha sua
fecundidade ou sua esterilidade. O analista, a partir dos vestígios (traces) que
permanecem abertos a seu olhar-escuta, não lê o texto, ele o desliga. Quebra
a secundariedade para encontrar, aquém dos processos de ligação, a desligação
que a ligação encobriu. A interpretação psicanalítica tira o texto de seu sulco
(delirar = colocar fora do sulco). O analista desliga o texto e o “delira”. Donde

23 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS f OWTES — VOl, 1

os protestos dos críticos tradicionalistas, que se juntam ao do analisando


recente: “Você está delirando!” Freud não se contentou em elucidar o senti­
do do sintoma neurótico, que participa mais ou menos da loucura, mas que
se distingue dela porque seu caráter “anormal” é reconhecido pelo paciente.
Levou esta análise até às formas mais alienadas do pensamento, ao sintoma
psicótico, do qual o delírio é uma das peças principais. Que o sonho tenha
um sentido oculto já se sabe desde a mais alta Antigüidade. Freud deu a este
sentido uma estrutura e ligou-o ao desejo. Mas e o delírio? Desejo e delírio
agora se remetem um ao outro. Freud reconheceu que o delírio é construído
em torno de um núcleo de verdade. O delírio da interpretação psicanalítica
— que alguns preferirão chamar de delírio de interpretação psicanalítica —-
descobre no texto um núcleo de verdade. Seria melhor dizer mais modesta­
mente hoje um núcleo de verdades:
— verdade do desejo, pois o texto concerne ao desejo de escrever e, para
o escritor, o desejo de ser lido. Para o leitor, o desejo de ler, longínquo subs­
tituto de um desejo de ver e de saber, que se prende em parte a toda curiosi­
dade sexual;
— verdade do fantasma, que habita o texto, que faz do texto o pré-tex-
to do fantasma (e inversamente); o pré-texto do fantasma, comum ao que
escreve e ao que lê, numa relação mutuamente narcísica; o texto é um objeto
transnarcísico;
— verdade da ilusão, que confere a este ser de ficção que é o texto lite­
rário um valor ao qual se pode até mesmo sacrificar o real e o desejo de viver;
— verdade histórica, enfim, que faz do texto um produto da história
daquele que o criou, que fala à história daquele que o consome. Pois ne­
nhum psicanalista pode renunciar ao estudo das relações entre a história
de uma vida (que não é uma biografia, ainda que psicobiografia) e a histó­
ria de uma obra. Do mesmo modo que o efeito desta obra sobre o leitor vai
bater em algo que toca na história de sua vida.
Este núcleo de verdade, no singular ou no plural, se elabora, se transfor­
ma e atinge os processos de ligação que edificam a construção do delírio para
o delirante, do texto para o escritor, da interpretação para o psicanalista. A
aproximação insólita que esboçamos aqui, evidentemente, não é clara. O
trabalho do delírio, o do texto, e o da interpretação não são redutíveis entre
si. O que justifica o trabalho da interpretação não é apenas o desvelar dos
efeitos do texto, nem mesmo sua organização latente. O delírio, tal como o
texto, constrói, mas, é preciso dizer, no desconhecimento do que ambos

2 3 1
LUI Z COSTA LIMA

constroem. É certo que o escritor opera com conhecimento de causa, mas o


trabalho que é objeto de sua consciência e de sua profissão incide sobre a
secundariedade do texto, sobre o que funciona para atingir uma obliteração
do inconsciente que ele se esforça em encobrir. Ou, mais precisamente, so­
bre um jogo de claro-escuro pelo qual a relação do velar-desvelar do incons­
ciente deixa sempre na sombra a eficácia dinâmica do texto, para só se prender
à sua eficácia literária. Sabe-se quanta irritação os escritores manifestam diante
das interpretações que são feitas de seus textos, apesar do orgulho que sen­
tem pelo reconhecimento de que são objeto. Esta irritação se manifesta quanto
a todas as interpretações e não apenas quanto àquelas de cunho psicanalítico,
ainda que neste caso elas sejam levadas ao máximo. Assim como o delirante
ase atém” ao seu delírio, à sua não-interpretabilidade por um outro que pouco
ou nada questiona o sentido fechado que ele lhe confere, o escritor se atém
à literariedade de seu texto que só deve dizer o que ele diz. Tal como o deli­
rante, o escritor “não quer saber de nada”. Tudo se passa como se uma
clivagem devesse necessariamente garantir uma relativa separação entre a
construção do texto e seus fundamentos, principalmente se se trata de fun­
damentos não literários. Alguns críticos, defensores do mistério da criação,
chegam até a falar de profanação diante da interpretação psicanalítica.
O analista continua seu trabalho de desconstrução-construção, freqüen­
temente sem rodeios, às vezes, muito raramente, é preciso dizer, com felici­
dade, quando a censura não endivida suas próprias análises. Pois esta
desligação é a etapa necessária para uma nova ligação, diferente da cumpri­
da pela obra, ligação que obedece à lógica do processo primário, que ilumi­
na relações do texto com o núcleo de verdade. Ele produz então, por sua
vez, um texto: o de sua construção. Ao escritor é atribuída a tarefa de “fazer
ver”. De fato, ao mesmo tempo que mostra, ele esconde para mostrar outra
coisa pela escrita. Esta é ao mesmo tempo conversão e diversão para a eficá­
cia do texto. O crítico psicanalista por sua vez propõe que veja sua constru­
ção. Mas o que o escritor produziu é um objeto de fascinação captadora, que
ofusca e cega ao mesmo tempo quando a eficácia do texto atua por inteiro.
O que o crítico mostrou a nossos olhos por sua interpretação rompe o en­
canto, mesmo quando aquela revela as riquezas ocultas do texto. Por mais
parcial que seja a interpretação psicanalítica, ela é recebida com uma certa
tristeza, porque engendra um sentimento de desilusão, de lesa-majestade. A
consolação que se pode tirar de uma maior inteligibilidade do texto com­
pensa mal a perda de seu mistério. A luz fornecida pela interpretação ilumina

2 3 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

o texto com uma claridade muito crua, despoja-o do halo de sua leitura ori­
ginária. Recrimina-se o psicanalista porque tocou na santa penumbra do texto,
propícia ao nascimento dos fantasmas que acompanham a leitura.
Todo saber verídico é acompanhado de uma perda irrecuperável. Uma
ferida narcísica infligida a quem quer levantar o véu da ilusão Assim o anali­
sando, ao termo de sua análise, lastima às vezes a sua neurose, pois ela lhe
dava a impressão de se sentir um ser de exceção, mesmo que fosse preciso
pagar o preço com a angústia e o sofrimento.

LER E ESCREVER

Ao desligar o texto, o crítico psicanalista não se limita a descentrá-lo — como


se diz. Ele o faz sair do sulco e ao mesmo tempo transporta-o para um outro
campo, o qual se pode dizer que não é mais o da literatura. E isso em parte
é verdade. Se, no desvelar das relações que o texto entretém com o incons­
ciente, uma outra realidade aparece, é com efeito uma realidade não literá­
ria. O escritor e o crítico não analista dificilmente consentem nisso. Pre­
feririam que a saída do sulco permanecesse no campo da literatura e, no
entanto, é inegável que uma obra literária não pode deixar de remeter a uma
realidade extraliterária, já que se pode sustentar que o papel da literatura é
justamente converter um setor da realidade (psíquica ou externa) em reali­
dade literária. Esta neo-realidade — é a mesma palavra que Freud emprega
para designar o delírio — tem justamente o caráter de pretender se bastar a
si mesma e ter uma importância igual à da realidade da qual é o produto de
transformação. Vê-se que é melhor empregar a palavra realidade no plural
do que no singular. Assim, hoje em dia a crítica literária se duplica de dimen­
sões diversas, sendo uma delas a psicanálise.
Ao invés de procurar os temas de desejo mais freqüentemente tratados
pela literatura, orientemo-nos para a interpretação psicanalítica da ativida­
de de leitura-escrita. Iremos assim em direção ao mais geral e, ao mesmo
tempo, ao mais vivo. Ler e escrever, aos olhos da psicanálise, não são ativi­
dades primeiras, mas produtos de aquisição tardia, oriundos da aprendiza­
gem que utiliza pulsões parciais domesticadas pela educação e pela ação
“civilizadora”. Ler e escrever são sublimações, quer dizer as pulsões parciais
são inibidas quanto ao objetivo, deslocadas e dessexualizadas. Trazidas assim
a seus constituintes fundamentais, as pulsões parciais em causa são aquelas

2 3 3
LUI Z COSTA LIMA

que se relacionam com a escoptofilía. O desejo de ver está patente na leitura.


A capa, a encadernação de um livro são sua roupa. Indicam um nome, um
título, um pertencer (a casa editora) que se propõem ao olhar e o atraem.
Quando o livro está na estante de uma biblioteca, seu acesso é fácil para o
olhar em busca de prazer; quando está posto na vitrine de uma livraria, esta
barreira transparente aumenta nossa curiosidade. Entramos na livraria para
“dar uma olhada”. Exceto no caso em que já sabemos o que queremos e pe­
dimos ao livreiro, não gostamos de ser perturbados em nossa inspeção.
Fuçamos até que, atraídos por um vago indício, seguramos um livro. Aí co­
meça o prazer, quando o abrimos, tocamos, folheamos, sondamos aqui e ali.
Se o livro não está com as páginas cortadas, às vezes somos obrigados a fazer
uma pequena acrobacia ocular para ler uma página pregada por cima ou pelo
lado, pois é justamente aquela passagem que nos interessa. Enfim, é preciso
escolher. Se a promessa de prazer nos parece que vai poder ser mantida,
pagamos o preço do livro e partimos abraçados com ele. Dependendo de se
não nos desagrada mostrá-lo em nossa posse ou se algum pudor nos leva a
esconder a sua identidade, o mostraremos nu ou embrulhado. Para ler, pre­
cisamos nos isolar com o livro — em público ou em particular — e às vezes
em lugares bem estranhos e a priori pouco propícios a este tipo de exercício.4
O que é que nos leva a ler? A busca de um prazer pela introjeção visual
que satisfaz uma curiosidade. O prazer é evidentemente mais disfarçado se
se lê para estudar, trabalhar ou tomar consciência de textos úteis ou mesmo
indispensáveis. Mas aqui saímos do âmbito da literatura. Pode-se até mes­
mo perguntar se o critério da literatura não é justamente produzir escritos
que não podem sofismar sua relação com o prazer. Trata-se então de um prazer
tido pelo/com o olhar. É claro que se pode pedir para nos lerem textos, mas
este é um uso derivado, pois escutar um texto (no sentido não psicanalítico)
não é lê-lo. Nesse último caso, quem escuta se apoia sobre quem lê, por iden­
tificação. Portanto ler liga-se ao prazer de ver, o que implica que uma certa
curiosidade anima o leitor. Mas esta curiosidade, se a leitura deixa pensar
que ela comporta uma certa abstração, fica longe no entanto do que se cha­
ma curiosidade intelectual, pois é muito mais “sensual” que esta última. E
toda a distância que separa a escoptofilia da epistemofilia. A epistemofilia é
mais uma busca de uma “teoria” explicativa, como mostram as teorias sexuais
que as crianças constroem para explicar a si mesmas como os bebês vêm ao
mundo. A escoptofilia é a procura de um prazer menos inibido, menos des­
locado, menos dessexualizado. Mais afetivo que intelectual. Uma obra lite­

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TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

rária é apreciada conforme o efeito emocional que provoca no leitor, mais


do que pela inteligência que dela emana, mesmo se for preciso muita inteli­
gência por parte do escritor para produzir este efeito.5 Portanto, mais
escoptofilia do que epistemologia, o que nos faz sentir a necessidade de uma
escoptologia, ao passo que hoje nós estamos tão preocupados com a epis­
temologia. Então, digamos sem rodeios, a leitura se prende ao voyeurismo.
Vamos então agora procurar o que é mais específico do voyeurismo lite­
rário. O prazer de ler é diferente do prazer que se sente em olhar um conjun­
to de reproduções, um álbum de fotos, um filme, uma exposição de pintura,
um corpo nu. A especificade do prazer de ler é que ele há de passar pela
mediação da escrita.
Ora, a escrita supõe a ausência da representação. A representação que
não está diretamente presente no texto pode reinvestir a escrita. A fabrica­
ção do livro utilizará todos os recursos da arte da impressão, mesmo quando
o texto não é acompanhado por nenhuma imagem, como nas edições para
crianças e nas edições de luxo. A impressão pode procurar todos os meios
para causar impressão. Aí está ainda um uso derivado da escrita. No essencial,
a escrita (écrituré) é uma representação (gráfica) da ausência de representa­
ção (imaginária). A percepção da escrita em si só remete a ela mesma, só o
deciframento da escrita dará acesso a uma representação. Ler um texto é,
pois, traduzir um conjunto sistemático de caracteres tipográficos que não
representam nada por si sós. Ou seja, a escrita, no nível do conjunto dos
caracteres tipográficos, não mostra nada: é a experiência que somos levados
a ter quando um livro escrito numa língua inteiramente estranha nos cai nas
mãos. Assim, se o leitor é um voyeur, o que ele vê no livro é um conjunto de
sinais que não representam diretamente nenhum objeto. Para ver será preci­
so ler, isto é, ligar os caracteres tipográficos,6 respeitar os intervalos entre as
palavras, reconhecer a pontuação e enfim dar o tom que indica que o reco­
nhecimento passou dos elementos para a configuração do sentido. A articu­
lação das palavras, dos sintagmas, das frases — enfim, do texto —, tudo isso
depende de um intenso consumo de energia visual e, claro, intelectual. En­
tretanto, à medida que lê, o leitor vê, isto é, representa para si aquilo de que
o texto trata. Assim, é agora o texto que olha o leitor -— nos dois sentidos do
term o —, pois é nele que ele vê esta segunda visão, não no texto. N o
voyeurismo, ele passou da posição ativa à posição passiva. Pode-se enrubescer
diante da leitura, como se alguém olhasse e adivinhasse o que você está
sentindo. A voz média junta as duas posições em que o voyeur-visto se encontra

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LUI Z COSTA LIMA

na mesma pessoa, funcionando o texto como o espelho do leitor. A ausência


de representação do texto conduziu o leitor a ligá-lo a uma cadeia de repre­
sentações, que é sua e não do texto, ao mesmo tempo em que ligou os
caracteres tipográficos para decifrá-los. “A marquesa saiu às cinco horas.”
Apesar das mais explícitas indicações do texto, esta marquesa só é e só pode
ser a do leitor.
Em que medida coincidem a representação do leitor e a que, antes de ser
escrita, foi a do escritor? E um problema insolúvel. Primeiro porque na maioria
das vezes o escritor jamais responderá; em seguida, mesmo que responda,
nada garante que diga a verdade; enfim, porque mesmo que afirme dizer a
verdade, ultrapassando os limites da censura do pré-consciente, a censura
do inconsciente permanece intacta. No fundo, é mais justo pensar que não
pode dizer nada porque não sabe nada. Ao escrever, o escrito mostra algo
que transcreve em caracteres tipográficos e converte em representações da
escrita. Mas ele oculta de onde vêm as representações e só entrega aquelas
que quer transmitir convertidas em escrita. Há então vários níveis a conside­
rar: a escrita como ausência de representação, as representações (incons­
cientes) recalcadas e apagadas pelo processo da escrita. As representações
propriamente ditas (pré-conscientes), às quais ele remete a escrita, estão pois
entre duas não-representações: as da escrita e as do inconsciente.7
Afinal de contas, se o escritor exibe algo ao escrever, o que mostra será
exatamente a escrita: isto é, a especificidade literária. Então é parcialmente
justo dizer que ele não mostra nada pela escrita: na verdade, ele deixa ver
sua construção da escrita. A exibição limita-se ao texto. O jogo da escrita
consistiu aqui em ocultar as representações pré-conscientes, que ele sempre
poderá dizer que são as do leitor, e só mostrar a construção da escrita: uma
forma. Hamlet responde a Polônius quando perguntado sobre o que lê: “Pa­
lavras, palavras, palavras.”
No voyeurismo e no exibicionismo, o objeto da pulsão é originariamen-
te o pênis. Mas assim como as pulsões parciais são transformadas na leitura
e na escrita, também o objeto não é o objeto originário. As representaçõe5
que levamos em conta não permanecem em estado inerte: se agrupam, se
condensam, se deformam, para constituir organizações fantasmáticas. Assim
as representações pré-conscientes se organizam em fantasmas pré-conscien­
tes, já que todo texto, por mais realista que se pretenda, continua um ser de
ficção, o que o prende ao fantasma. Do mesmo modo, as representações in­
conscientes, por serem ocultadas ao olhar, não são menos ativamente elabo­

236
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

radas em fantasmas inconscientes. É principalmente no nível da comunica­


ção dos fantasmas inconscientes entre o escritor e o leitor que a cumplicida­
de do par se estabelece. No nível do fantasma inconsciente, o objeto não é
representável, mais precisamente ele só é representável na outra cena em que
vamos procurá-lo deduzindo-o, isto é, despojando-o, de seus disfarces
fregolianos.* E no nível pré-consciente que o objeto toma a forma de uma
representação disfarçada que permite ligá-lo à série de objetos: criança-
excremento-pênis, que são todos “pequenas coisas destacadas do corpo”,
conforme a expressão de Freud que as articulou nesta cadeia. A obra deverá
ser importante, notada, admirada, capaz de grandes desenvolvimentos etc.
No nível consciente, o objeto torna-se verdadeiramente texto, escrito. Dre­
na os mesmos desejos que aqueles que levamos em conta ainda há pouco.
Mas estes desejos são silenciosos, e o motivo pelo qual o objeto reclama nossa
atenção não está mais no nível da representação, porém no da escrita. E aí
que ele quer valer. A escrita tornou-se um fetiche invisível, tão indispensável
ao prazer quanto o fetiche para o fetichista. Fetiche com duas faces, que olha
ao mesmo tempo o escritor e o leitor. O leitor diz ao escritor: “Mostre-se”
no momento em que este interpela aquele para dizer: “Olhe-me”. Proposi­
ção que sem dúvida se pode inverter sem mudar nada de fundamental fazen­
do o leitor dizer “Mostre me”, no momento em que ele encontra o apelo do
escritor “Olhe se” ** utilizando todos os recursos polissêmicos desta inversão.
O objeto que é mostrado pelo escritor, entretanto, não está presente no
seu corpo — é um objeto criado. Então precisamos considerar aqui uma nova
transformação. O escritor mostra o resultado do processo de criação, como
a criança da família real é mostrada ao povo para atestar que o nascimento
realmente ocorreu.
Compreende-se então melhor que não se trata somente do pênis, mas da
série pênis-excremento-criança. Uma criança que o escritor deu à luz sozi­
nho, sem o auxílio de ninguém, pois se ele reconhece que teve alguns mes­
tres, agora é o único criador, o único pai. E até ao mesmo tempo o pai e a
mãe. Vê-se como num mesmo lance estão reunidos os dois aspectos da curio­

*Fregoliano: de Leopoldo Fregoli, ator italiano (Roma 1867 — Viareggio 1936), n o tab ili­
zado pela variabilidade de papéis por ele desem penhados, chegou a encarnar m ais de 60
papéis. (N. do Org.)
**No original: “M ontre-toi”, “regarde-m oi” e “m ontre tnoi” “regarde toin. Os dois últim os
indicam jogos de palavra intraduziveis, onde o m oi corresponde ao Eu (no alem ão Ich) ou
ego, enquanto conceito psicanalítico. (N. do T.)

137
LUI Z COSTA LIMA

sidade sexual, o desejo de mostrar-ver um pênis e o desejo de encontrar uma


explicação para o mistério do nascimento. O escritor deixa de lado qualquer
teoria sexual ao fazer intervir os pais, pois ele é ao mesmo tempo os dois pais
reunidos para a procriação da criança que produziu.8
A este respeito ainda é preciso contar com a cumplicidade do leitor. Pois
todo leitor sonha escrever o livro de que gostou e que o despertou para o
prazer, como todo escritor frui, por identificação, o prazer que provocou.
Entre leitor e escritor constituiu-se um espaço metafórico, um espaço poten­
cial, como diz Wínnícott, constitutivo do campo da ilusão na veneração de
um objeto transicional transnarcísico. Este lugar metafórico é um daqueles
que o fantasma inconsciente ocupa, não representado e sem dúvida não
representável. Esta não-representabilidade do fantasma inconsciente dupli­
ca-se, como vimos, da não-representabilidade da escrita.9 Assim, nos dois
extremos do processo da escrita (fantasma inconsciente e texto) a represen­
tação é abolida. Contudo, o mais difícil, como diz Freud, é suprimir os ves­
tígios (traces) desta abolição. No nível do fantasma inconsciente, os vestígios
se manifestam por meio de um vazio, um branco, uma “ausência”, quando,
apesar das deformações, os disfarces reveladores ainda falam muito deles.
No nível do escrito, este vestígio é exatamente aquele que a escrita deixa
quando o significado inconsciente passa para o significante. Mas a literatu­
ra, como toda criação, tem suas mutações. Porque ela vive, ela muda, mesmo
se estas mudanças correm o risco de levá-la à morte. Será ainda do destino
da representação de que nos ocuparemos ao tratar da direção que lhe impri­
mirá a escrita da modernidade.

AS TRANSFORMAÇÕES DA ESCRITA

Escrever, assim, é antes de tudo transformar. Fazer passar a não-represen­


tabilidade do fantasma inconsciente para a não-representabilidade da escri­
ta, passando pelas representações pré-conscientes. Quando Puschkin escreveu
A dama de espadas, a Corte reconheceu na velha condessa a Condessa Natá-
lia Petrovna Golytsina, chamada a “Princesa Bigode”, a qual, acreditando ou
fingindo acreditar na virtude das três cartas que ganham, lança o três, o sete
e o ás. Puschkin não desmente. Entretanto, só os íntimos sabem que uma
outra princesa Golytsina (Eudóxia), apelidada a Princesa Noturna, foi um
amor de Puschkin quando ela tinha trinta e sete anos e ele, dezessete. A
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

maneira pela qual Hermann se introduz na casa da velha condessa lembra,


por muitos detalhes, sua própria aventura com Dolly Ficquelmont, filha de
Lisa Khitrovo, que amava Puschkin com um amor algo incestuoso e de quem
ele também foi amante. Mas será preciso fazer a investigação analítica do
texto para descobrir, por trás do fantasma da riqueza adquirida pelo jogo
sem risco, um outro fantasma mais ou menos mudo, o da geração e o das
origens. Não cabe aqui demonstrar isso, voltaremos a isso noutro lugar. Este
fantasma não foi representado no nível do texto, só vestígios permitem de­
duzi-lo por causa de seu acúmulo. Mas também não é representável a escrita
puschkiniana. Se devem ser tecidas relações entre a vida e a obra, elas proí­
bem toda inferência direta com a escrita. Não existe nada mais rascunho,
mais desordenado, mais prolixo que a existência de Alexandre Puschkin; e
nada mais bem realizado, mais ordenado, mais econômico que sua escrita.
Sua concisão, sua clareza incisiva e seu despojamento levaram Flaubert a dizer
que este poeta era plano, o que faria enrubescer de cólera qualquer russo. Se
se quiser analisar esta escrita, não é com certeza o auxílio da representação
que pode ajudar: a análise da linguagem de Puschkin implica uma análise
estritamente literária. O âmbito do psicanalista pára talvez aí. O sistema de
transformações do fantasma inconsciente no escrito resultou na substituição
de uma organização dinâmica, móvel, abundante, emaranhada, que se de­
senvolve em vários planos (o da representação, em parte, mas também o dos
afetos, do corpo, da indução à descarga pela passagem ao ato etc.) por uma
organização estável, constante, despojada, e, sobretudo, linear. Aí reside o
princípio mesmo da escrita: transformar algo vindo do corpo desejante em
uma atividade de ligação, exclusivamente formada de caracteres da lingua­
gem, unidos por uma cadeia orientada e obedecendo às leis da gramati-
calidade. A invenção da escrita pode fazer variar um número restrito de
parâmetros, mas obedece à maioria deles. Em todo caso, o vestígio escrito
como núcleo exclusivo de transmissão da mensagem permanece como a exi­
gência fundamental.
Inversamente, a leitura pela decifração dos caracteres escritos, por um
lado, traduz o que há de mais especificamente literário em um texto (sua
escrita) e, por outro, recria no leitor todos os planos presentes no escritor
mas abolidos pela escrita: plano das representações pré-conscientes e incons­
cientes e os fantasmas correspondentes. O trabalho do crítico analista é faci­
litado por esta dupla ligação, já que o respeito pela ordenação dos planos é
propício à decifração que ele se propõe a operar, a escrita remetendo às

2 3 9
LUI Z COSTA LIMA

representações pré-conscientes, estas permitindo deduzir, graças aos traços


(traces) da escrita, o fantasma inconsciente. Isto explica que a crítica psica­
nalítica se tenha consagrado em grande parte às obras do passado, pois a
escrita clássica obedece a este esquema geraL
A escrita moderna revolucionou este quadro ao proceder a uma muta­
ção cujos equivalentes se encontram na pintura não figurativa e na música
serial Claro que é arbitrário falar da escrita moderna, como se ela fosse sem­
pre governada pelos mesmos princípios. É preciso retomar alguns traços gerais
mesmo esquematizando um pouco. Seria um erro acreditar que a produção
literária obedeceu a princípios colocados como regras às quais os escritores
decidiram se submeter. De fato, como muitas vezes, para não dizer sempre,
a teoria tem sido elaborada a posteriori, a partir das obras já existentes. Pare-
ce-me que esta evolução, ou revolução, consistiu, de uma maneira geral, em
romper com uma certa concepção da ligação, na medida em que ela obede­
cia aos critérios que definiam os laços da secundariedade com os processos
primários. Esta ruptura da ligação e da secundariedade dará lugar a dois ti­
pos de empreendimentos: de um lado o recurso a um modo de escrita muito
mais próximo do fantasma inconsciente em seus aspectos menos representa­
tivos, de outro um esvaziamento da remissão à representação na escrita. Em
suma, deve desaparecer uma forma de representação como a que aparece no
roteiro do fantasma pré-consciente. Assim, duas vias se abrem: a formulação
inconsciente em seus aspectos mais violentos, menos discursivos, mais selva­
gens e o processo do pensamento escrevente, como se pensar e escrever se
tornassem uma única e mesma atitude. Neste último caso principalmente, a
escrita torna-se quase integralmente seu próprio objeto, sua própria repre­
sentação. Poder-se-ia dizer que se passou da escrita da representação à re­
presentação da escrita.
A distinção que acabamos de fazer entre a escrita clássica e a escrita
moderna é sem dúvida muito demarcada. No entanto, ela corresponde a uma
realidade. Poder-se-ia opô-las dizendo que são respectivamente escrita figu­
rativa e escrita não figurativa. Não desconhecemos que existem quiasmos
entre ambas num mesmo escritor e num mesmo texto. Poder-se-ia contestar
que existe uma escrita figurativa, pois toda escrita é por essência não figura­
tiva, uma vez que a especificidade literária não é figurável. Todavia, deve-se
admitir que se pode, nesse sentido, suprimir toda distinção entre os escritos
de Chateaubriand ou de Flaubert, de Malraux ou de Camus, e os de Artaud
ou de Beckett, de Blanchot ou de Laporte para nos determos em exemplos

240
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

escolhidos por seu valor Ilustrativo. Marthe Robert soube mostrar multo bem
que o Dom Quixote é um livro sobre os livros, sobre a literatura. Esta obra
exemplar só pode ser lida com os olhos da representação, porque ela é
construída em “quadros” de aventuras do herói principal ou dos persona­
gens secundários, de modo que a narrativa faz aparecer e desaparecer o tem­
po da história que os faz viver “no papel”.
Na escrita figurativa, a especificidade do literário preenchia uma função
entre outras. Ela servia ao mesmo tempo de tampão, de filtro e de conversor.
A literalidade do texto se abeberava do sangue, do suor e das lágrimas que
alimentavam o texto para lhe dar uma outra figura na criação do escrito. O
significado passava em parte no significado literário (as representações pré-
conscientes evocadas pelo texto) e em parte no significante escrito. O valor
funcional e econômico do significante era a relação do velar-desvelar,
ocultamento furtivo da coisa mostrada, cintilante e evanescente, objeto da
captação imaginária. A escrita era a passagem, a leitura descoberta do per­
curso que constituiu a passagem. Por mais explícito que se quisesse na apa­
rência, o texto era sempre lacunar. Quanto mais ele pretendesse aproximar-se
do explícito, mais ainda ele aumentaria a distância do explícito ao implícito,
porque mais ainda se colocaria a pergunta de como uma obra escrita, um ser
de ficção, podia insuflar vida. Para bem compreender o que é um escrito em
que tudo é explícito, em que a representação é integralmente restituída, se­
ria preciso abandonar o campo da literatura e abrir o tratado de anatomia.
Ora, o tratado de anatomia visa à descrição do corpo vivo, mas é escrito a
partir da descrição do cadáver. Ainda que se trate de um cadáver “tratado”,
no qual a preparação deteve o processo de decomposição da morte. Escre­
ver é o contrário de descrever. Descrever supõe o desvelar total, a nudez
absoluta da morte. A morte do objeto da descrição corresponde paralela­
mente à morte da escrita na descrição.
Portanto, uma clivagem separa sempre o texto da representação. E não é
à toa que Freud tinha adiantado que o que caracteriza o inconsciente é que
nele só reina a representação de coisa, ao passo que o consciente e o pré-
consciente compreendem a representação de coisa e a representação de pa­
lavra. Mas é preciso acrescentar que o núcleo do inconsciente é inacessível,
isto é, que certas representações permanecerão para sempre inconscientes,
não representáveis, e que entre a representação de coisa e a representação
de palavra persiste uma distância. Se tornar consciente consiste em relacio­
nar a representação de coisa e a representação de palavra, há uma ordem

2 A %
LUIZ COSTA LIMA

própria para a representação de palavra de que a escrita é a manifestação.


No escrito, a relação representação de coisa/representação de palavra balan­
ça do lado da representação de palavra. Se o texto remete a representações
de coisa, ele vive principalmente das relações entre as representações de
palavra, o que constitui um passo a mais no desequilíbrio dessa relação já
presente na linguagem. No escrito, a articulação entre a esfera das coisas e a
das palavras se modifica topicamente, dinamicamente, economicamente. A
escrita cria seu espaço próprio, seu movimento autônomo, sua economia
específica. Sem que seja rompida a relação entre representação de coisa e
representação de palavra, mudou a vetorização deste equilíbrio. A relação
volta-se cada vez mais para uma idealidade (ou materialidade) em que a re­
presentação de coisa diminui em favor da representação de palavra, até o
ponto em que a representação de palavra substitui a representação de coisa.
Ela ocupa uma posição intermediária, pois é o meio pelo qual se dá o trânsi­
to para a representação de palavra no processo de escrita. Mas ela própria é
uma mediação para o corpo, sendo estreitamente intrincada com a moção
pulsional que é a forma mais elementar da pulsão, ou o que Freud chama a
representação psíquica da pulsão, que não é o representante-representação
(de coisa ou de palavra). Do mesmo modo, a representação de palavra é o
intermediário pelo qual se atualiza o pensamento. Assim, as representações
(de coisa ou de palavra) são meios-termos entre o corpo e o pensamento.
Elas são produtos já transformados (em relação ao corpo) e solicitando ou­
tras transformações (em relação ao pensamento). Aí reside o interesse do
conceito de pulsão como conceito-encruzilhada entre o somático e o psíqui­
co, aí está a sua estrutura que faz da pulsão uma delegação do corpo (o cor­
po pulsional não é o corpo bruto), porém dotado de um certo pensamento
(a lógica do processo primário). Esta contradição é a sua própria fecundidade,
pois nela se misturam uma ausência de organização em relação ao pensamento
e uma organização embrionária em relação ao corpo.
A escrita moderna desloca-se para os dois pólos desta alternativa. Quer
dizer que ela vai se dividir entre uma escrita do corpo e uma escrita do pen­
samento. Do lado da escrita do corpo, a representação deixa de organizar
um fantasma construído para se fragmentar em estados corporais fugazes,
inapreensíveis, em que o escritor obstina-se sempre na comunicação por es­
crito de uma realidade in transmissível, porque nem a palavra nem a escrita
podem-lhe dar o equivalente. Aqui, nem mesmo o afeto é mais o objeto da
escrita, ou pelo menos não mais sob as formas sutis que um Proust lhe dá.

2 4 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

mas o estado do corpo próprio na sua manifestação mais violenta. Além dis­
so, nota-se que se opera entre o corpo e o pensamento um curto-circuito,
que faz do pensamento um órgão corporal. Deve-se ler Artaud e Beckett sob
este ângulo. Quanto ao primeiro, ele não parou de repetir o quanto a “lite­
ratura” lhe era indiferente, que só lhe importava a realidade extraliterária
evidenciada através do que escrevia. Toda a sua correspondência traz esta
marca. E se durante toda a sua vida Artaud não deixou de relacionar-se com
os psiquiatras, os taumaturgos, os videntes, foi porque expunha-lhes o cor­
po fervilhante de miasmas que ele próprio convocava, pois seu pensamento
é um corpo e, bem entendido, um corpo sexuado. Desde os primeiros anos
em que escreve, solicita “injeções de suco testicular”. Só lhe importa o con­
tato com as “potências do espírito”, mas as concebe como as potências de
um sexo corporal. Quando Artaud descreve os fenômenos múltiplos que o
impedem de pensar, usa uma escrita que lembra a de Gaetan Gatian de
Clérambault, o mais brilhante representante do organicismo em psiquiatria,
o qual, salvo engano, ele nunca conhecera. E quando seus êmulos e amigos,
a começar por Jacques Rivière, recomendam-lhe que retoque alguns deta­
lhes em seus escritos, ele recusa qualquer modificação, pois não lhe interessa
o valor literário do texto, mas a transmissão de um estado corporal, de um
momento de tensão “incorrigível”. Não é proibido pensar que esbravejaria
ante a leitura da utilização que hoje se faz de suas obras. Só nos detivemos
neste exemplo porque o pensamos particularmente demonstrativo. Toda uma
literatura se desenvolve a partir deste impulso, com menos felicidade nos
resultados porque menos bem resolvida a pagar o preço das atitudes que
guiavam Artaud e Daumal, que por elas pagaram bem caro.
Não há “imitação” de Artaud. Há apenas alguns corvos que tentam en­
contrar o olhar —- mas amarrando previamente os cintos de segurança —
incapaz de sustentar a contemplação dos corvos que Van Gogh pintou.
No outro pólo, desenvolve-se uma literatura que chamarei aqui de lite­
ratura do escrito sublimado. Escrito despojado de toda representação, de toda
significação. Escrito que se esforça por não dizer mais nada além do que é o
processo de escrita. Esta escrita é não figurativa tal como a precedente, pois
nesta última trata-se menos de representar o corpo do que fazê-lo viver em
estilhaços, fragmentados e despedaçados. Aqui a ausência de figurabilidade
faz da escrita a única representação. Esta escrita tira sua opacidade e sua trans­
parência dela mesma. Ela é sua própria causa. Seu fim último é chegar a uma
escrita branca, abolindo qualquer vestígio da representação. Ela apaga à

2 4 3
LU I Z COSTA LIMA

medida que traça. Á deriva de um texto, seu afastamento progressivo da re­


presentação inconsciente que faz do texto um produto de transformação de
um fantasma, desapareceu para só deixar lugar a um texto ausente. O texto
sobre a ausência tornou-se a ausência de texto. Todo texto é absolutamente,
integralmente, texto infletido para seu silêncio.10 Tudo o que não é do texto
está fora dele, é não-texto.
Compreende-se facilmente que por esta escrita tenta-se esvaziar a rela­
ção com o significado em prol do significante apenas. A escrita pura, libera­
da do significado, liberada da representação, rompeu as amarras para com o
objeto; ela é seu próprio objeto. Por uma comparação que, como todas as
comparações, é imperfeita, diremos que a realização alucinatória do desejo
que faz aparecer o objeto ausente cedeu o lugar à alucinação negativa. Trata-
se não só de matar no ovo a representação do objeto, mas também aquele
para quem um objeto existe como objeto de desejo. O único desejo é o dese­
jo de escrever, sem objeto. Na atitude anterior, tratava-se de não esconder
mais nada dos reflexos mais escondidos do corpo, nesta não há mais nada a
ver, porque não há mais nada a mostrar a não ser a escrita. Há apenas escre-
ver-pensar e pensar-escrever. A obra é um livro branco.
Estas duas atitudes têm em comum o fato de terem suprimido a dimen­
são da figurabilidade. E do mesmo modo romperam a cadeia das operações
da escrita clássica. Do mesmo modo, a crítica psicanalítica, por sua vez, acha-
se transformada. Ela não pode mais continuar a proceder conforme os crité­
rios que lhe guiavam a ação e que correspondiam a uma aplicação do método
freudiano. Se ela desejar abordar estas obras, terá que modificar seus proce­
dimentos de análise. Terá que se servir de demarcações metapsicológicas di­
ferentes, que encontrará nos autores pós-freudianos, como Melanie Klein
ou Lacan, por exemplo. Tudo ainda resta fazer neste setor, mas já se podem
abrir vias que permitem levantar a constatação de carência atual. Estas aber­
turas são arriscadas, mas talvez a teorização de um Bion,11 por exemplo,
pudesse ser muito útil, na medida em que ela alia a preocupação de uma teo­
ria que Incide ao mesmo tempo sobre os aspectos mais elementares e mais
diferenciados do psiquismo. Disporemos então de uma “grade (“g rille ”) efi­
caz para a sondagem de textos que testemunham o processo de transforma­
ções da função alfa, que visa à elaboração dos materiais primitivos da atividade
psíquica em materiais utilizáveis pelo inconsciente, tanto quanto à elabora­
ção das preconcepções em concepções e em conceitos. Mas estas são apenas
esperanças para o futuro.

2 44
TEORIA OA LITERATURA EM SUAS FONTES — ¥ O L. 1

O RETORNO DA REPRESENTAÇÃO

Assim, tanto de uma maneira como de outra, a escrita moderna não quer
mais se deixar prender à representação. Concreta ou abstrata, ela se quer
não figurativa, mas por este fato o texto está sempre numa situação em que
falha à sua função. Para a escrita do corpo, o texto nunca vive bastante, está
sempre aquém do que se trata de transmitir, e conseqüentemente pensa de­
mais. Para a escrita do pensamento, o texto fala demais, ele ainda está muito
ligado à materialidade pela qual deve passar, ele não pensa bastante. Mas aí
não está a falha da escrita moderna em seu combate contra a representação,
Porque escrever, pelo próprio fato de que toda escrita é um vestígio visível já
que legível, e é seu destino ser lida, ainda é representar. Escrever coloca-se
entre a não-representabilidade da escritura e sua inevitável representação.
Um livro branco é ainda um livro, mesmo que sem escritor, sem título e sem
caracteres tipográficos, é um objeto que tem seu lugar numa biblioteca ou
numa livraria. Não e fácil libertar-se da representação; esta exige que lhe seja
pago o tributo de um mínimo vital, sem o que ela deixa de ser escrita. E de
fato, quanto menos o texto ancora na representação, mais ele faz ver, ou pelo
menos representar. Os textos mais vagos são aqueles que solicitam mais nos­
sa imaginação. Todo o esforço da literatura é um movimento que aos poucos
a afasta e a aproxima de seu foco. Na escrita corporal, a que zomba da lite­
ratura para atingir uma realidade viva, pois optou dizer pela literatura, so­
mos levados de volta para a escrita. Assim, os que queriam ir além da literatura
tornaram-se modelos de literatura. Na escrita intelectual, todo o esforço de
identificação entre pensar e escrever acaba por deixar um inevitável hiato
entre um e outro, por causa da especificidade da escrita que é assim realçada.
Neste vaivém da escrita, encontramos o mesmo movimento em duas dire­
ções opostas para esvaziar a representação. Em direção ao corpo, a escrita
gostaria de dizer o corporal bruto, mas só pode representá-lo, do mesmo
modo que a atividade corporal deve ser transcrita na linguagem da represen­
tação para se comunicar. Afinal, a escrita de Artaud é a mais representativa,
quando fala de seu corpo ou de seus estados de espírito. A sucessão das metá­
foras ocupa um lugar central. Impossível fazer falar o corpo ou escrevê-lo
sem recorrer a modos de representação. Os afetos podem-se comunicar no
silêncio, podem ser adivinhados em sinais fora da linguagem. A emoção
amorosa ou agressiva, o prazer, o desprazer não precisam da linguagem para
ser adivinhados mutuamente, ser partilhados, ser contrariados. Mas desde

24 5
LUIZ COSTA LIMA

que se toma o partido de comunicar pela palavra ou pelo escrito, o recurso


à representação é inevitável, sobretudo se esta só revela obliquamente sua
função de transcrição. Mesmo o desinvestimento representativo que acom­
panha a angústia (dita sem objeto), deverá converter em representação o puro
afeto, mesmo quando dá lugar a uma comunicação. As representações que
traduzem o afeto serão certamente investidas de uma tal carga que será im­
possível tomá-las como equivalentes de outras representações menos afetivas,
o que mostra de passagem a insuficiência de uma concepção unicamente
baseada na combinatória das representações; mas a comunicação exige que
aquele que deseja transmitir os estados do corpo os metaforize.
No extremo oposto, a transmissão do pensamento obedece a um proces­
so comparável. Freud sustentou que o papel da linguagem é dar aos processos
de pensamento que são por essência desprovidos de qualidades sensíveis, uma
vez que são relações, um reinvestimento perceptivo que os torna assim co­
municáveis. Isto é manifesto quando se trata de transcrever pensamentos em
palavras, isto é, emitir sons significativos pela via da linguagem. Para que o
pensamento passe do estado inconsciente ao estado consciente, deve inter­
vir um novo investimento, pelo qual o pensamento passa de uma forma abs­
trata de relações a uma forma concreta pela linguagem que lhe assegura a
consciência. Se em relação à representação de coisa a representação de pala­
vra pode ser considerada como uma transformação em que a coisa se ausen­
ta em prol da linguagem, em relação ao pensamento a linguagem, ao contrário,
lhe oferece uma presença. A escrita institui uma nova relação. J. Derrida
mostrou a solidariedade entre a linguagem e a presença, por um lado, e a
escrita e a ausência, por outro. Falar e escrever são coisas diferentes, e sabe-
se o quanto a escrita é pobre em estilo “falado”. Porém, por mais longe que
se deseje levar esta ausência na escrita, restará o fato de que escrever deverá
recorrer à representação, pelo menos sob a forma de vestígios constitutivos
da escrita. A percepção dos vestígios é necessária para a inteligência da trans­
crição. A fusão da escrita e do pensamento não escapa à transformação do
invisível em visível. Assim pois, se a escrita visa ao mais extremo despojamento
diante da representação, escrever permanece inelutavelmente ligado a repre­
sentar. Pois a representação não se opera apenas no nível dos traços da
materialidade dos signos, mas também no da representação do sentido. E
nisso que talvez o texto literário difira do texto filosófico. Se o conceito de
traço se esforça para ultrapassar a dicotomia do significante-significado, é
porque pretende juntar o efeito de ambos através de uma simbolização única.

2 4 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

Portanto, inscrever traços ou decifrá-los é ainda usar representações, mesmo


quando se queria deixá-las de lado.
Que ocorre quando a escrita se decide a fazer esta dupla evacuação da
representação —*e, conseqüentemente, do conteúdo? Parece-nos que tal
programa, longe de atingir uma autonomia da escrita que levaria enfim ao
interesse exclusivo pelo literal, está votado a um retorno maciço da repre­
sentação não só no nível do texto, mas também porque se enxerta sobre a
literatura uma ideologia na qual os referentes não literários se precipitam
aos borbotões. A revolução da escrita torna-se um dos aspectos de uma revo­
lução cultural por vir, de que se espera uma forma que ultrapasse a morte da
literatura. A literatura clássica, mesmo se continuamos a lhe devotar um apego
sentimental, continua a expressão de um passado terminado. Poder-se-ia
interpretar esta vocação revolucionária como um esforço contraditório para
afirmar o caráter específico do ato literário como ato revolucionário e ao
mesmo tempo para fundir os objetivos da revolução literária na revolução
cultural. Juntando-nos às aspirações das massas revolucionárias, encontra­
mos um contato com uma massa de leitores dentre os quais bem poucos acom­
panham a evolução literária. De fato, qualquer que seja a especificidade
literária, permanece a questão de saber se a literatura pode-se bastar a si pró­
pria e levar em conta apenas os valores literários; se precisamente a literatu­
ra não é por essência esta relação com uma realidade extraliterária a ser sempre
transformada para fazê-la falar doutra linguagem, mas nunca deixando de
visá-la. A literatura é uma máquina para elaborar a relação com a realidade
externa e com a realidade psíquica que lhe é devolvida, interpretada e neces­
sariamente deformada. Ao não se submeter a este intercâmbio, torna-se letra
morta. Ora, nesta comunicação, nos dois sentidos, a representação é uma
espécie de núcleo suscetível de desenvolver-se em uma multiplicidade de
fórmulas, das quais umas remetem ao corpo, outras ao pensamento. Assim
ela remete às relações da realidade psíquica com a realidade externa. Ela se
situa no espaço potencial do quiasmo: o campo da ilusão. O combate por
uma desmistificação da literatura é um combate manchado por um falso reco­
nhecimento. Uma literatura não pode ser científica ou filosófica. Ela se baseia
na ilusão, porque os escritos literários são simulacros, seres de ficção. Mas
são tão “verdadeiros” que pessoas podem se apaixonar e mesmo lutar ao ponto
de pôr em jogo a própria vida para defender seu escrito, e mesmo seu amor
ou seu ódio pelos escritos de uma outra. Nada choca mais a quem ama os
livros do que o auto-da-fé que antecipa de pouco os campos de extermínio.

24 7
LUI Z COSTA LIMA

A vida do texto e o texto da vida estão tão necessariamente emparelhados


um com o outro que qualquer ataque a um significa risco para o outro. Acho
que foi Sartre quem disse um dia: “Que é a literatura diante da morte de
uma criança?” Mas o que é a vida de uma criança num mundo sem literatura?
Resta apenas exprimir um desejo que o futuro dirá se é ilusório: que a
revolução cultural tolere que a revolução literária possa continuar a se man­
ter no campo da ilusão literária e não a obrigue a desaparecer na função em
que seu papel será alimentar as ilusões da revolução cultural. Mas quem pode
dizer que será o futuro?
Para terminar, cabe-nos perguntar que papel teve a psicanálise na morte
da literatura. Não faltam argumentos para pensar que esta morte que se anun­
cia, se é que já não ocorreu, faz companhia a muitas outras. Há numerosos
agonizantes no que se chama a crise da civilização atual. Como se o desvelar
do inconsciente por meio da análise das representações houvesse levado a
literatura a um velar ainda mais radical, que chegou a uma verdadeira rejei­
ção (Verwerfung) da representação. Esta é apenas uma hipótese — que talvez
superestime a influência da psicanálise sobre uma evolução que a ultrapassa
em muito e que depende sem dúvida de muitos outros fatores. Não é talvez
à toa que a escrita de hoje sugere a analogia com a linguagem psicótica. Nes­
se sentido, ela é bem a escrita do seu tempo, como a época do nascimento da
psicanálise foi talvez principalmente a da neurose. Não faltam vozes para
clamar bem alto que o mundo de hoje é psicótico e conseqüentemente
psicotizante. Assim, em tensão entre a escrita do corpo e a escrita do pensa­
mento, a literatura se debate num universo em que a mediação da represen­
tação é recusada. A linguagem do corpo invade o pensamento, transborda-o
e com o tempo impede-o de se constituir como tal. A linguagem do pensa­
mento se corta totalmente do corpo para se abrir num espaço desértico. Poder-
se-ia dizer que nos dois casos operou-se uma vez mais a desligação. Na
linguagem corporal, é no nível de uma escrita estilhaçada que o processo de
ligação foi quebrado para só deixar aparecer um fragmento ou uma disper­
são. Na linguagem intelectual, a ênfase da ligação no nível da secundariedade
que dá a esta literatura seu estilo ao mesmo tempo conciso e glacial rompeu
seu laço com o processo primário, cujos vestígios ela se esforça por apagar.
No primeiro caso, a desligação visível é “horizontal”, no segundo ela é “ver­
tical”. A escrita clássica se esforçava para impor uma ordem suficientemente
impositiva para que a ligação se operasse na superfície, deixando de vez em
quando passar vestígios da profundidade12 que o texto recalcava, mas com a

2 4 8
TEORIA DA LITERATU RA EM SUAS FONTES — VOL. 1

qual mantinha comunicação. Será preciso então ceder a uma nostalgia de uma
“bela época” desaparecida para sempre? Claro que não. Mas talvez também
não se deva ceder a um pessimismo fatalista. Talvez a literatura morra, mas
talvez também uma mutação que nossa imaginação não é capaz de conceber
lhe dê um novo rosto. Nosso horizonte atual é limitado por nossos modos
de pensar. Afinal de contas, nós não somos mais capazes de imaginar o que
sucederá à psicanálise do que éramos capazes, em 1880, de imaginar o que
Freud nos permitiria ver, e que estava ali diante de nossos olhos, desde sem­
pre. Só um é bastante.

Tradução
LÍGIA VASSALLO

Revisão
L u iz C o st a L im a

2 4 9
Notas

1. O que não significa que ele não possa de quebra ser escritor. Lembremos que Freud
recebeu o prêmio Goethe.
2. Pois há outros, como por exemplo os que usam Lévi-Strauss e Lacan.
3. Excluo aqui a poesia, que coloca muitos problemas particulares nesse sentido.
4. E inútil insistir sobre estas banheiras que são, por um consenso familiar tácito,
transformadas em verdadeira biblioteca, fazendo da leitura um ritual escato-
lógico.
5. Secundariamente, o desejo de ver que subjaz à leitura se duplica por um desejo de
saber, saber o que contêm os outros livros, literários ou não, aumentar sua baga­
gem literária e intelectual até à erudição. Itinerário que muitas vezes leva o ama­
dor de livros ao nível profissional: professor, crítico, escritor etc.
6. Todo mundo sabe que a principal dificuldade na aprendizagem da leitura é fazer
uma criança admitir que o b seguido do a sem intervalo faz ba. Dificuldade que a
leitura global tenta contornar, poupando à criança um esforço intelectual que, no
entanto, é essencial.
7. Notemos que se pode estabelecer um esquema homólogo para o leitor, com a dife­
rença que este consome uma escrita produzida por um outro que faz o papel de
indutor sobre os dois outros níveis, ao passo que são os dois outros níveis que
induzem o escritor à escrita.
8. Marthe Robert mostrou os elos que unem o romance familial e a criação romanes­
ca (“Raconter des histoires”, LEpbémère, 13, 1970). O crítico psicanalista analisa
o fantasma da autocriação e comete então um crime de lesa-majestade. Sarah
Kofman tratou deste tema em LEnfance de Vart, Payot, 1970.
9. O conceito de fantasma inconsciente é de uma tal complexidade que faz a análise
recuar. Já sustentamos, noutra oportunidade, a idéia de que se os fantasmas in­
conscientes são inacessíveis à consciência e devem pois ser deduzidos através de
seus rebentos, sua estrutura só parcialmente é da ordem da representação no nível
do inconsciente. A parte mais inconsciente do fantasma inconsciente não é repre­
sentativa porque ela é soldada com a moção pulsional que a constitui. Cf. Revue
française de psycbanalyse, 1970, t. XXXIX, p. 1143-1169.
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

10. Coube a Maurice Blanchot mostrar como toda produção do espaço literário ten­
de, sem jamais o atingir, para o ponto de silêncio que constitui ao mesmo tempo
sua origem e seu fim. Resta saber se este ponto só pode ser notado quando recupe­
rado por um silêncio calado. Mas, desde que Blanchot o nomeia para nós, a recu­
peração literária se esgota em fazê-lo falar. Daí resulta não tanto que o silêncio se
desloque para “um pouco mais longe”, mas que ele está investido desta nomeação,
em favor — ou desfavor — da qual ele se torna mutismo vestido com os trajos do
silêncio. Não queremos dizer com isso que o resultado não diz nada, mas, pelo
contrário, que se extenua ao fazê-lo.
11. Bion é o autor que levou mais longe a noção freudiana de ligação. Cf. Elements o f
Psychoanalysis, Londres, Heinnemann.
12. Os textos de hoje devem ser considerados sem profundidade, conforme a vanguarda
literária. Não são mais explorados na verticalidade, são colocados “em abismo”
(en abyme). Condensação bem-sucedida entre abismo (abime) e abissal (abysse)
que remete às maiores profundezas oceânicas. Como poderá a intertextualidade
transversal vir comunicar-se com o abismo em questão? E o que me parece difícil
de conceber sem passar pela mediação dos inconscientes, a menos que se caia numa
mística da linguagem ou da História.

2 5 1
CAPÍTULO 7 A questão dos gêneros
LU IZ C O ST A L IM A

253
No ocidente, cabe a Platão a primeira referência sobre a questão dos gêne­
ros. E sintomático que ela apareça em um contexto onde o filósofo se esforça
em caracterizar o modo de operação do poeta, o modo mimétlco, caracteri­
zação que constitui o primeiro passo para sua condenação posterior* O pro­
tagonista do diálogo nada tem contra a “narração simples”, aquela em que o
autor não finge que empresta suas palavras a outrem: “(...) Sem nenhuma
imitação, é que se faz uma narração simples” (Rep. III, 394b). O poeta só se
torna condenável pela autonomia que concederá à voz dos “fantasmas”, suas
personagens. A maneira como atuará a relação poeta-personagens determi­
nará a possibilidade de três gêneros: “(...) A poesia e a mitologia podem cons­
tar inteiramente de Imitação, tal como se dá na tragédia e na comédia (...),
ou apenas da exposição do poeta. Os melhores exemplos desse tipo de com­
posição encontrarás nos ditirambos; há uma terceira modalidade, em que se
dá a combinação dos dois processos: é o que se verifica na epopéia e em multas
outras formas de poesia” (Rep. III, 394c).
E sabido que esta consideração do poeta e sua obra será drasticamente
modificada com a Poética aristotélica, onde não só será afirmada a dignidade
do fazer poético, quanto será diversa a classificação de seus gêneros. A expo­
sição direta, encarnada pela lírica coral do ditirambo, deixará o primeiro pla­
no, que será formado por distinta trindade, a tragédia, a comédia e a epopéia*
Como ela é bem conhecida, limitamo-nos a seus pontos básicos. Assinale-se,
em primeiro lugar, que, em vez de um princípio concorrente da m im esis, con­
forme aparecia em Platão, em Aristóteles “o modo da imitação” abrange as
três modalidades de sua realização (Poét. 4, 20 ss). Entre estas modalidades,
ressalta a tragédia como o gênero culminante, entendendo-se por ela “a imita­
ção de uma ação de caráter sério e completo, de uma certa extensão, em uma
linguagem assinalada por temperos de uma espécie particular conforme com
as diversas partes, imitação que é realizada por personagens em ação e não por
meio de uma narrativa e que, suscitando piedade e temor, opera a purgação

2 5 5
LUI Z COSTA LIMA

própria a emoções semelhantes” (Poét. 6, 24-28). (Não nos interessam aqui a


descrição de suas partes, a superioridade concedida ao mythos — fábula ou
trama — ou mesmo a discussão de termos decisivos como a anagnoresis —
reconhecimento —■e a hamartia — falha ou falta de conseqüências trágicas.)
Na falta do segundo livro da Poética, provavelmente perdido, têm os
comentaristas de Aristóteles de se contentar com a caracterização mais ligei­
ra da comédia: “imitação de pessoas que são inferiores; não, contudo, che­
gando à plena vilania, mas imitando o feio, do qual o burlesco é uma parte”
(Poét 5, 32-3, conforme a trad. de G. Else). Limitemo-nos a respeito a duas
observações: o efeito cômico resulta de uma falha ou defeito (hamartema)
da personagem, à semelhança pois do que se dá no caso do trágico, falha
que, entretanto, não causa dor ou destruição. Ou seja, não é provocadora de
catarse. O fato de não concordarmos com a argumentação de Gerald Else,
que vê a catarse como um efeito interno à peça trágica, i. e., que age sobre os
próprios personagens e não sobre a audiência, não nos impede de aceitar aí
seu comentário: “A comédia não nos envolve nas emoções dolorosas de in­
veja, raiva, malícia e semelhantes; e não envolve as personagens cômicas em
dor, morte e destruição. Ambos os aspectos são pertinentes para a definição
do gênero e para sua história” (Else, G. F.: 1957, 189). A comédia pois é a
contraface da tragédia, quer se assuma uma interpretação imediata e direta­
mente ética (personagens moralmente superiores/inferiores à média dos ho­
mens), quer uma interpretação, apenas relativamente ética (personagens em
ações “superiores” ou não, podendo a mesma personagem ingressar no cír­
culo destas e daquelas). A diferença entre as duas interpretações é bastante
grande, pois, se destacarmos a primeira, estaremos a um passo de conceder
à descrição aristotélica um caráter normativo, que, como se sabe, veio de
fato a prejudicá-la, desde sua redescoberta renascentista. Por esta razão, é
preferível entender-se a diferença entre tragédia e comédia fora do estrito
circuito ético e ressaltá-la a partir do tratamento diverso que receberá a fa­
lha da personagem (hamartia) para a tragédia, hamartema para a comédia:
“A tragédia toma hamartia literalmente, mas amplia a sua punição — e é as­
sim causadora de terror e piedade. A comédia distorce hamartia pela carica­
tura, reduz a punição a malogro e mortificação e é assim ridícula. (...)
Enquanto os heróis trágicos sofrem a morte e a cegueira que se auto-infli-
gem, o soldado fanfarrão se depara com a catástrofe de uma surra ignomi-
niosa, a que reage com a confissão aos gritos de seus vários erros” (Wimsatt,
Jr. W K. e Brooks, C.: 1964, 50).

256
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

Ao lado destas duas espécies, a épica, representada supremamente por


Homero, intervém como o gênero mais antigo. Mais próxima da tragédia
que da comédia, contém as mesmas partes que aquela, exceto no que se refe­
re ao acompanhamento do canto e ao próprio espetáculo (Poét. 59b, 10 ss).
Não é por este aspecto, no entanto, que se diferencia, mas pelo metro e pela
extensão. Ao invés do tetrâmetro trocaico e do jâmbico, é o hexâmetro ou
metro heróico aquele que melhor se ajusta ao épico (Poét. 59b, 30 ss). Con­
tudo, fora da comunidade da língua grega antiga, esse aspecto é menos rele­
vante que o outro. Por sua própria forma de apresentação, i. e., por não
implicar uma ação encenada, mas uma narrativa, a épica “pode tratar várias
partes simultâneas da ação, e estas, se são apropriadas ao tema, acrescentam
grandeza ao poema” (Poét. 59b, 27 ss). Se estas diferenças especificam o épico,
mais importante que elas é o traço comum pelo qual, indiretamente, os gê­
neros se associam. Dizemos indiretamente, pois a causa do elogio feito a
Homero valeria de igual, do ponto de vista de Aristóteles, para as outras duas
formas: a capacidade de o poeta logo deixar de falar em nome pessoal, ce­
dendo a narrativa ou a cena para suas personagens: “Com efeito, pessoal­
mente o poeta não deve dizer senão poucas coisas, pois não e nisso que é
Imitador” (Poét. 60a, 7 ss).
Através destas espécies, Aristóteles pretendia dar conta do campo da arte
verbal. A abrangência da arte, portanto, supunha duas decisões fundamentais:
(a) a de caracterizá-la como mimesis, (b) a de discriminar seus modos constituin­
tes. Infelizmente, contudo, seja pelos azares da história, seja pelos limites do
pensador, ambas as questões se mantiveram mais importantes como questões
do que pelas respostas que Aristóteles avançara. Quanto à primeira, todo leitor
da Poética sabe que aí falta a formulação explícita do que seu autor entendia
por mimesis. Há por certo indicações preciosas: o fato de o seu inteiro sistema
filosófico recusar a hierarquia platônica entre a esfera imovível e incorruptível
das Idéias, superior ao plano da realidade empírica, por sua vez superior ao
plano dos objetos imitados; a passagem onde nega que o prazer da mimesis se
possa explicar como desdobramento de uma sensação encontrável na realidade:
“Há coisas que, no que diz respeito a elas mesmas, são vistas com desagrado,
cujas imagens, entretanto, mesmo quando minuciosamente executadas, vemos
com prazer. E o caso por exemplo das representações dos mais repelentes dos
animais ou dos cadáveres” (Poét. 48b, 9-11, conforme trad. de Else). Ou seja,
se vemos com asco certos animais ou com dor coisas como um cadáver e, no
entanto, sentimos prazer ante suas imagens, mesmo as mais detalhadas, sucede

2 5 7
LUI Z COSTA LIMA

então que essa diferença de reações é possível porque não tematízamos os dois
tipos de objetos do mesmo modo. O mundo empírico não é tematizado da
mesma maneira que o mundo das imagens. Conseqüentemente, não se pode
estabelecer uma linha contínua entre a recepção do mundo real e a recepção
dos objetos da arte. Daí Koller, o primeiro a retomar contemporaneamente a
questão da mimesis entre os gregos, escrever sobre aquela passagem: “Apreen­
de-se univocamente aqui a mimesis como imitação; até o momento, esta é a
única passagem em que ela é vislumbrada em todo o seu processo mental e na
unidade de sua formulação” (Koller, H.: 1954, 108).1
Só aparentemente a questão dos gêneros teve melhor fortuna. E certo
que não nos poderíamos queixar de Aristóteles haver sido aí pouco explíci­
to. A questão se torna outra. Considerando a maneira como a Poética veio a
ser lida, o problema consiste em saber se a diferenciação aristotélica era ape­
nas (ou dominantemente) descritiva ou, ao invés, de ordem normativa. E
bastante sabido que, desde seu revival no século XVI até os preceptistas,
principalmente franceses, a Poética foi utilizada para a confecção de cânones
a que as obras deveriam se ajustar. Também sabemos que o próprio Aristóteles
não seria responsável por essa utilização. Mas seu tratado impugnaria a priori
semelhante leitura? Como negá-lo diante de passagens como aquela em que
destaca a mais importante das propriedades a que as personagens trágicas
deveriam se submeter: “Quanto aos caracteres, há quatro coisas a serem vi­
sadas. A primeira e mais importante é que devem ser bons. As pessoas terão
caráter (...) se sua fala ou sua ação revela a qualidade moral de certa escolha
(...)” (Poét. 54a, 16 ss). Tomadas em separado, passagens desta ordem são
diretamente normativas. Contudo, sem procurar salvar Aristóteles a todo
custo, convém destacar que a questão não é tão simples. Ela, na verdade,
depende do critério e interpretação anteriormente adotados. Quero dizer,
se se encara a Poética como voltada para a caracterização do produto a par­
tir de propriedades que lhe seriam inerentes — i. e., se a tomamos como a
primeira manifestação de uma poética imanentista — ou, ao contrário, a en­
caramos como uma reflexão que caracteriza a mimesis pela conjunção de pro­
priedades do objeto com uma disposição específica do receptor. Ora, muito
antes da teoria do papel do receptor pela estética da recepção, já podíamos
ouvir o comentário de um dos mais finos intérpretes do filósofo grego: “Não
há para Aristóteles nenhuma separação entre a perfeição da obra de arte trá­
gica em si e os efeitos dela resultantes sobre o expectador. O modo de ser da
tragédia se realiza na comoção trágica particular e desta deriva seu traço

2 5 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL I

característico5’ (Kommerell, ML: 1940, 63). Ora, se a perfeição da obra não


está em si, mas no efeito que provoca, a questão da normatividade se tom a
secundária: mesmo que o autor da Poética a tenha Inscrito em seu tratado, à
medida que torna a obra dependente da conduta do receptor automatica­
mente dá condições de liberar o gênero da uniformidade normativa. Mas
essa foi com efeito a leitura prevalente. Já dentro da Antigüidade, a Ars poética
horaciana Indicava o rumo que Iria dominar:

Por que me aclamas poeta se não capturo


as gradações do estilo, suas fixas propriedades? (111-2)

Pelo metro, Homero mostra-te como escrever


feitos heróicos e Incidentes de combate (97-8)

Os deuses não devem falar como heróis, nem


o jovem impetuoso como homens graves e reverendos (148-9)

Os gêneros, os estilos são nitidamente demarcados. A reflexão teórica


grega cede o passo à disposição pragmática romana» O decoro se tom a o
princípio do poeta e do homem culto em geral. Muito menos diversa será a
orientação assumida pela erudição alexandrina. Multiplicavam-se os gêne­
ros — no século II a. C., o gramático Dionysius Thrax enumerava uma relação
constante de tragédia, comédia, elegia, epos, lírica e treno, a que adiante se
acrescentam o idílio, a pastoral e a ficção em prosa — e a cada um se associa­
vam seus mais ilustres representantes. Transtornara-se, em suma, a primitiva
orientação grega. Enquanto em Platão e em Aristóteles a distinção dos gêneros
era feita levando em conta a caracterização da linguagem poética, entre os
alexandrinos e os romanos o problema teórico é abafado e, em seu lugar, é
posta a preocupação de diferençar para bem legislar. Ambas as linhagens
referidas calar-se-ão na Idade Média, onde os gêneros receberão outros con­
teúdos, principalmente por efeito da ruptura com a tradição clássica, mas
também por conta do desaparecimento dos teatros. Sirva de exemplo o caso
de Dante. Para ele, o estilo admite as modalidades nobre, médio e humilde.
Cabem ao primeiro o épico e o trágico, o elegíaco ao último. A comédia en-
caixa-se no segundo tipo, sendo ademais caracterizada, em oposição ao trá­
gico, por seu desfecho feliz (cf. Alighleri, Dante: 1316/7). Quando a tradição
clássica for retomada, com os humanistas do Renascimento, a questão dos

259
LUI Z COSTA LIMA

gêneros não receberá melhor tratamento. Muito ao contrário, a tradição que


se firmará será a do rigor preceptístico, a que o próprio Aristóteles será sub­
metido. Como não pretendemos oferecer uma história da questão dos gêne­
ros, os apontamentos históricos apenas nos servindo de orientação, mantemos
a seu respeito o ritmo de superficial resenha. Na verdade, entre a época de
Valia, Robortello, Scaligero e Castelvetro e as artes poéticas do século XVIII
não se modifica o tom preceptístico a que o tratamento dos gêneros se asso­
ciava. E, enlace maior, tanto em um pólo quanto no outro, a normatividade
era acompanhada pela idéia de imitatio quanto à natureza da obra de arte.
Ou seja, conforme já acentuáramos a propósito de Aristóteles, a concepção
dos gêneros liga-se diretamente à própria concepção quanto ao modo de
realidade do poético. Em Aristóteles, onde a mimesis nada tem a ver com a
idéia de imitação da realidade (empírica ou transcendental), a doutrina dos
gêneros não é normativa, ou melhor, a normatividade emprestada por sua
visão ética é neutralizada por sua concepção do papel ativo cumprido pelo
receptor. Ao invés, no período que se desenrola do primeiro comentarista
renascentista da Poética ao de maturidade dos Dryden e dos Boileau, a mimesis
assume o significado de imitação da natureza e os gêneros carreiam normas
e preceitos. Quanto à idéia de imitatio, lembremos que na Poética (1536) de
Daniello, glosa-se a comparação aristotélica do poeta com o historiador de
maneira que discrepa totalmente do Estagirita. Nas palavras de Spingarn: “(...)
O poeta e o historiador têm muito em comum; em ambos há descrições de
lugares, de pessoas, de leis; ambos contêm a representação de vícios e virtu­
des; em ambos, a amplificação, a variedade e as digressões são apropriadas;
e ambos ensinam, deleitam e, ao mesmo tempo, beneficiam. Diferem, contu­
do, em que o historiador, ao narrar sua história, conta-a exatamente como
sucedeu e nada acrescenta, ao passo que ao poeta é permitido acrescentar o
que deseje, na medida em que os acontecimentos fictícios tenham toda a
aparência de verdade” (Spingarn, J.: 1899, 19). No que respeita aos gêne­
ros, a mudança é tanto mais visível quanto maior é a necessidade de apresentá-
los com termos semelhantes aos empregados pela Poética. Assim, enquanto
nesta a tragédia era definida como “uma ação de caráter sério”, entre os
humanistas ‘sério’, cgrave’ passam a designar a personagem, que, para mere­
cer a qualificação, deve ser proeminente na escala social. Deste modo, para
Castelvetro, “a poesia, como na verdade o próprio Aristóteles reconhece,
não é uma imitação do caráter ou da bondade e da maldade, mas de homens
em ação; e os diferentes tipos de poesia são diferenciados, não pela bondade

2 6 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

e maldade ou pelo caráter das pessoas selecionadas para a imitação, mas por
seu nível (rank) ou por sua condição apenas” (Spingarn, J.: Idem, 46).
Se passarmos ao outro extremo do período, veremos mais largamente a
articulação entre imitatio e normatividade. Há apenas a observar que, para os
neoclássicos, a imitação nos entregava uma realidade polida e depurada. E a
esta que se refere “the lively imitation ofNature”, tomada por Dryden como
a própria definição da peça teatral: “Pois, estando a viva Imitação da Natureza
na definição de uma peça, aqueles que melhor cumprem esta lei devem ser
estimados superiores aos demais” (Dryden, J.: 1668,185). Que esta idealização
continuava a ser cogitada em termos de realidade empírica mostra passagem
anterior, onde Dryden justifica a lei das unidades de tempo, lugar e ação. Tra-
tava-se por elas de naturalizar a encenação, tornando-a servil a athe compass
o f a natural day” e à própria materialidade do palco que, sendo “one and the
same place, it is unnatural to conceive it many” (Dryden, J.: idem, 179).
O mesmo princípio de decoro, i. e., de imitação idealizada, é pressupos­
to em Boileau, onde se rejeita que o alto seja expresso com a linguagem do
baixo, conforme se dava nos poetas que condenava porque

Le Parnasse parla le langage des halles (Art. Poétique, I, v. 84)

Cada gênero assim deverá brilhar com uma dicção peculiar

Tout poème est brillant de sa propre beauté.


Le Rondeau, né gaulois>a la naiveté:
La Ballade, asservie à ses vieilles maximes,

Souvent doit tout son lustre au caprice des rimes;


Le Madrigal, plus simple et plus nobre en son tour,
Respire la douceur, la tendresse et Vamour.

Eardeus de se montrer, et non pas de médire, .


Arma la Vérité du vers de la Satire (Art. Poétique, II, 139 ss)

Dentro por fim do século XVIII o Dr. Johnson, se bem que ironizasse a
lei das três unidades e a rejeição por Dryden da tragicomédia, se bem que
sua concepção da natureza o afastasse do decoro de salão, ainda mantém a
unidade de ação e a unicidade do herói.

2 6 1
LUIZ COSTA LIMA

Mais importante contudo que o enlace da imitatio idealizada com a


normatividade dos gêneros é o fato de essa aliança prolongar o veio pragmá­
tico, antiteórico, que notáramos a propósito de Horácio. Com efeito, embo­
ra muito se reflita, no século XVIII, sobre a poesia — fora da reflexão
filosófica, recordem-se apenas na França Fontenelle, Louis Racine, La Motte,
Voltaire — a teoria dos gêneros tem pouca significação. Uma explicação
possível poderia ser retirada de uma observação de M. H. Abrams: “Enfatizar
as regras e as máximas de uma arte é conatural a toda crítica que se funde nas
demandas do auditório (...)” (Abrams, M. H.: 1953, 31). A literatura do sé­
culo XVIII é dirigida a poucos, que estão previamente convencidos de sua
importância como veículo. Aos teóricos então não importa tanto teorizar
quanto disciplinar, i. e., ajustar a expressão às convenções da sociedade su­
perior. Embora esta seja uma explicação tosca e primária, ela se conforma
com um fato que é válido para a literatura ocidental até a entrada do Ro­
mantismo: “Ao largo da primeira metade do século XVIII o poeta podia con­
fiar no gosto experimentado de especialistas conhecedores que constituíam
o círculo limitado dos leitores (...)” (Abrams, M. H.: idem, 32). Não estra­
nha, por conseguinte, que ao advento do Romantismo tenha correspondido
a falência das preceptísticas, a morte reservada aos gemes bien tranchés e,
paralelamente, o ocaso da mimesis como imitação idealizada. Abre-se agora
um verdadeiro hiato: em lugar da imitação, a poesia se justifica como ex­
pressão de uma alma superior, que não tem modelos a seguir, nem outras
regras senão as que demanda sua inspiração. A literatura deixa de ser um
jogo de salão para tornar-se a manifestação sincera de uma alma desconfor-
me. A imitação é vista como um artifício, ao passo que a metáfora dominan­
te, a partir do idealismo alemão e propagando-se por meio de um Coleridge,
será a do corpo vivo, planta ou organismo, a que o poema será comparado.
Daí a importância saliente que terá o poema lírico, forma mais aclimatada à
pessoalização do poético em que o Romantismo primará. Daí o ataque à se­
paração dos gêneros, com a difusão de Shakespeare e do teatro espanhol em
detrimento do clássico francês; daí, em suma, Hugo propor caracterizar a
cena romântica pela própria mistura dos gêneros: “(...) O drama é o grotes­
co com o sublime, a alma sob o corpo, é uma tragédia sob uma comédia”
(Hugo, V: 1827, 84).
Enquanto dura o Romantismo e reina inquestionável a concepção da
poesia como expressão do individual, a questão dos gêneros é vista como
uma antiqualha. Com efeito, ao longo do século XIX a única teorização usual­

26 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

mente lembrada é a de Brunetière. Não por acaso, ainda que ela se fizesse
com termos da ciência contemporânea, sua imagem favorita de literatura
mantinha o desenho do classicismo. As páginas em que o autor a formula
deveriam constituir apenas a apresentação introdutória de uma obra que
deveria estender-se por três volumes. O projeto contudo não se realizou e as
idéias do crítico não vão além de 31 páginas. Nelas, Brunetière enuncia a
propósito de um gênero como o romance francês sua idéia evolucionista. O
romance teria nascido da epopéia ou canção de gesta, que levaria aos ro­
mances de aventura, aos romances épicos, aos romances de costume, cujas
espécies — de costumes gerais, de costumes íntimos, de costumes exóticos
— também se sucederiam temporalmente. Tais transformações seriam natu­
rais, i. e., tão determinadas quanto as que a história natural apresenta, onde
“de um mesmo fundo de ser ou de substância, comum e homogênea, os indi­
víduos se destacam com suas formas particulares e assim se tornam a base
sucessiva das variedades, das raças, das espécies” (Brunetière, F.: 1890, 11).
Há portanto leis que presidem a transformação dos gêneros. Estas são tão
inelutáveis quanto as leis biológicas: “(...) A diferenciação dos gêneros se opera
na história como a das espécies na natureza (...)” (Brunetière, F.: idem, 20).
Daí, recorrendo ao exemplo da tragédia, exemplo privilegiado porque se
trataria de um gênero já morto, Brunetière escrever a frase pela qual é mais
lembrado: “(...) Um gênero nasce, cresce, alcança sua perfeição, declina e enfim
morre” (ibidem, 13). Neste processo de diferenciação, são determinantes a
raça ou herança, as condições (geográficas ou climatológicas, sociais e histó­
ricas) e a individualidade.
Toda essa mascarada biológica, que se pretende fundada em Darwin e
Haeckel, poderia ser deixada entre as sombras dos livros que não mais se lêem
caso não tivesse o privilégio de revelar o princípio de que se alimentam as inter­
pretações normativas: os gêneros existem, não são simples etiquetas e sua reali­
dade é inquestionável: “(...) Não vejo como se lhe negaria — pois enfim uma
Ode, que a rigor se pode confundir com uma Canção, não é uma Comédia de
caracteres, por exemplo” (ibidem, 11). Por isso Victor Basch lembrava a pro­
pósito da posição de Brunetière o realismo da escolástica: “Considerar os gê­
neros literários como entidades existentes em si, fora e acima dos que os criam
e os modificam como por um decreto imprevisível de sua individualidade ar­
tística, não é retornar ao realismo dos escolásticos?” (Basch, V: 1899, 344).
Depreende-se, portanto, um primeiro tipo de teorização sobre os gêne­
ros: sua descrição corresponde a uma substância ou realidade que o analista

2 63
LUI Z COSTA LIMA

captaria. Essa concepção substancialista prestava ao autor da classificação (ou


a seu seguidor) o serviço de aliviá-lo do esforço de perguntar-se sobre a
especificidade do discurso literário, pois esta já estava suficientemente de­
clarada pela descoberta da realidade de seus gêneros. Mesmo por aí se nota
a diferença que as preceptísticas conservam, desde Horácio, frente ao cará­
ter da reflexão aristotélica. As idéias de Brunetière parecem caricatas apenas
porque se torna demasiado evidente a concepção realista dos gêneros. Con­
tudo, ela é a justificativa primordial de todos os normativos. Pois, se não
afirmarem que os gêneros, tão bem separados, correspondem a realidades,
como justificariam sua própria autoridade?
A concepção normativa dos gêneros, por extensão da poesia, encontrará
em Croce seu grande adversário. E, associando-se ela à idéia de imitatio,
formando imitatio e normatividade os princípios básicos com que a historio­
grafia literária operava, o ataque de Croce simultaneamente combaterá a
imitatio, a idéia de gênero e a abordagem historiográfica. Neste sentido, Croce
representa o antípoda de Brunetière: para este, a idéia de literatura se con­
fundia com o perfil do classicismo francês, a que exaltava mediante um modelo
analítico de inspiração cientificista; para Croce, o Romantismo era o padrão
e a abordagem analítica não tinha de se preocupar com a via científica senão
para afastá-la. Ciência e poesia são, com efeito, tomadas como produtos tan­
to mais antagônicos, quanto mais resultantes de formas de conhecimento
opostas, o conceituai e o intuitivo, respectivamente. “O conhecimento tem
duas formas. E ou conhecimento intuitivo ou conhecimento lógico; conhe­
cimento pela fantasia ou conhecimento pelo intelecto; conhecimento do
individual ou conhecimento do universal, das coisas particulares ou de suas
relações. E, em síntese, ou produtor de imagens ou produtor de conceitos”
(Croce, B.: 1902, 85). A via intutiva se distingue da conceituai porque é in­
timamente associada à idéia de expressão: “Toda verdadeira intuição ou re­
presentação é, ao mesmo tempo, expressão. O que não se objetiva em uma
expressão não é intuição ou representação, mas sensação e naturalidade”
(Croce, B.: 1902, 92). Assim, o que se chama intuição-confusão não passa
de uma designação errônea. A intuição é o que nos liberta da sujeição
intelectualista que, nos prendendo às categorias de tempo e espaço, nos su­
bordina ao campo da realidade. Se o próprio do conceito é apontar para li­
mites, limites qualificados dentro do real, a via intuitiva, ao contrário, é
liberadora: “A intuição é a unidade não diferenciada da percepção do real e
da simples imagem do possível. Na intuição, não nos contrapomos como seres

2 6 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL 1

empíricos à realidade externa, mas objetivamos simplesmente nossas impres­


sões, quaisquer que elas sejam” (Croce, B.: idem, 88).
Já por essas observações notamos como Croce tem consciência da ampli­
tude do combate contra a idéia de gêneros. As preceptísticas não o incomo­
dam por si mesmas, mas enquanto sobredeterminadas por uma concepção
do fazer poético que o sujeitaria à realidade. Por essa trilha então se percebe
por que não se trata no filósofo italiano de diferençar imitatio e mimesis.
Como será costumeiro também nas décadas seguintes, uma será jogada fora
com a outra. O primado da intuição-expressão justifica o desterro da mimesis.
Centralmente por aí Croce se filia à linhagem dos teóricos românticos. Daí
vermos ressurgir em sua concepção a idéia organicista da obra de arte: “Ou­
tro corolário da concepção da expressão como atividade é a indivisibilidade
da obra de arte. Cada expressão é uma única expressão. A atividade estética
é fusão das impressões em um todo orgânico” (idem, 105). Mas não pode­
ríamos considerá-lo um epígono de Schlegel ou de Coleridge, sua estética
emprestará a estas um princípio de força antes desconhecido. Desde logo, se
da teoria da expressão os românticos extraíram o princípio da mistura dos
gêneros, em Croce a conseqüência será de imediato muito mais radical: a
individualidade da obra de arte, se delas não desterra toda e qualquer seme­
lhança, torna a esta um fator secundário, que não poderia declarar o modo
apropriado de aproximarmo-nos da obra: “(...) São semelhanças como as que
se advertem nos indivíduos e que não é dado fixar com determinações
conceituais: ou seja, semelhanças às quais se aplica mal a identificação, a
subordinação, a coordenação e outras relações de conceitos, pois consistem
apenas no que se chama ar de família e que deriva das condições históricas
em que nascem as distintas obras ou do parentesco espiritual dos artistas”
(ibidem, 159). O julgamento artístico se converte em tão individual e inefá­
vel quanto a própria atividade criadora: “A atividade que julga se chama gosto;
a atividade produtora, g ê n io : gênio e gosto são portanto substancialmente
idênticos” (ibidem, 207). Contra o autoritarismo normativo, estabelece-se o
autoritarismo do investido de gosto: “(...) O critério do gosto é absoluto,
mas diverso do absoluto do intelecto, que se desenvolve no raciocínio; é
absoluto com o absoluto intuitivo da fantasia” (ibidem, 209).
Coerente consigo mesmo, Croce viria a escrever monografias sobre auto­
res individualizados (G o eth e , 1919, A rio sto y Shakespeare e C orneille , 1920).
Pois a poesia não exigiria menos que sua separação “dos trabalhos históricos
que se servem das obras de arte com finalidades estranhas (biografia, história

2 6 5
LUI Z COSTA LIMA

civil, religiosa, política etc.)”. A história da literatura deveria, portanto, constar


de uma reunião de monografias sobre as figuras exemplares: “A história artís­
tica e literária tem por sujeito principal as próprias obras de arte; os outros
trabalhos chamam e interrogam as obras de arte somente como testemunhos e
documentos para a dedução da verdade de fatos não estéticos” (ibidem, 217).
Afastada in limine a questão da mimesis, rechaçada para o domínio me­
nor dos eruditos a idéia de historiografia literária, restava justificar o repú­
dio aos gêneros. Fiel à grande separação entre conceito e intuição, Croce
considera a voga dos gêneros como resultante do “erro intelectualista”, que
“começa quando do conceito quer se deduzir a expressão ou no fato substi-
tuinte encontrar as leis do fato substituído” (ib., 121). E, antecipando a for­
tuna que o princípio do desvio terá com os formalistas russos: “Toda
verdadeira obra de arte violou um gênero estabelecido, vindo assim a
embaralhar as idéias dos críticos, que se viram obrigados a ampliar o gênero,
sem poderem impedir que o gênero assim ampliado pareça demasiado es­
treito em virtude do nascimento de novas obras de arte, seguidas, como é
natural, de novos escândalos, novos desajustes e novas ampliações” (ib., 122).
Em conseqüência, os gêneros se confundiriam com os conceitos que, freqüen­
temente presentes nos tratados de estética — belo, sublime, majestoso, feio,
horrendo, cômico etc. —, não passam, na verdade, de definições empíricas,
as quais “nunca são únicas, mas inumeráveis e que variam segundo os casos
e os intentos para os quais se forjam” (ib., 175).
Croce não se afastará das bases expostas na obra de 1902. Apenas uma
leve insinuação de mudança quanto à questão dos gêneros aparece em en­
saio de 1922: “(...) Nos tempos em que (...) a crítica não se atém a modelos
fixos de beleza e busca a individualidade nas obras de arte particulares como
outras tantas fulgurações e momentos da história do espírito humano, aque­
les conceitos empíricos, aqueles gêneros literários, de diversa e remota pro-
veniência, devem ser em grande parte refeitos sobre novos pressupostos”
(Croce, B.: 1922, 4-5). Mas quais serão esses novos pressupostos se se man­
tém o princípio de individualidade das obras? Croce limita-os a dois grandes
princípios: os de valoração e de qualificação (valutazione e qualificazione).
O primeiro forneceria “gêneros” como poesia clássica ou romântica, poesia
fragmentária, futurista etc. e o segundo, poesia trágica, desconsolada, sere­
na, poesia pequena, grandiosa etc. Em ambos os casos, as designações não
passam de etiquetas úteis, ou seja, segundo passagem há pouco citada, não
passariam de definições “empíricas”.

266
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

Desenvolvendo pois a oposição à linhagem aqui exemplificada com


Brunetière, a estética crociana representa a quintessência da posição nomina-
lista. Os gêneros são o oposto de objetos reais; fantasmagorias tomadas como
substâncias por decorrência do vício de confundir-se o conhecimento com a
produção conceituai. A máxima concessão legítima consistiria em tomá-los
como conceitos “empíricos”, designação apenas concessiva cujo possível ren­
dimento prático não deve fazer com que se perca de vista ser o seu valor
extremamente parco.
As idéias de Croce tiveram uma repercussão cuja análise apenas começa a
ser sistematizada.2 E bastante conhecida sua influência sobre a estilística ale­
mã, através do impacto sobre Vossler.3 Contudo, elas não repercutem apenas
na obra deste, pois, como bem escreve Jauss, “a 'solução5 de Croce não teria
certamente conhecido um êxito tão durável junto a seus partidários e adversá­
rios, se esta contestação do conceito normativo de gênero não tivesse sido
acompanhada pelo nascimento da estilística moderna, que estabelece ao mes­
mo tempo a autonomia da 'obra de arte literária’ e desenvolve métodos de
interpretação a-históricos, que tornavam supérfluo um estudo prévio das for­
mas e dos gêneros na história” (Jauss, H. R.: 1970, 80). A argumentação po­
derá ser estendida com validez também até os n ew critics e é reconhecida ainda
pelo menos na primeira fase dos formalistas russos. Em nenhum dos dois ca­
sos, porém, parece legítimo falar-se numa direta influência crociana.4 Na ver­
dade, o “ar de família” que estas direções mantêm com Croce resulta de
assumirem uma mesma posição nominalista quanto aos gêneros. Como exem­
plo da posição do N e w criticism, consideremos um ensaio da qualidade de
“Longinus and the Énew criticism”’ (1948) de Allen Tate. Escolhemos o ensaio
porque ele assume o caráter de uma espécie de manifesto tardio da corrente.
Para o sulista norte-americano, Longino merece ser destacado, entre seus pa­
res antigos, por haver chegado mais próximo que qualquer outro de “uma teoria
abrangente da forma literária” (Tate, A.: 1948,198). Sintomaticamente, o autor
justifica suas palavras pelo realce que Longino teria assegurado à estrutura
formal do poema, em detrimento de sua caracterização como membro de um
gênero: “(...) Longino está bem preparado para pôr o dedo diretamente no
problema da estrutura e, por implicação, em dizer-nos que a estrutura não está
no etipo’ formal ou gênero, um corpo viável de convenções especiais, tal como
fornecidos pela lírica, pela ode ou pela épica, mas existe na linguagem do poe­
ma” (Tate, A.: idem, 184). Mas o parentesco com Croce não se resume à opo­
sição entre a organização formal privilegiada e o olhar desdenhoso para as

2 67
LUI Z COSTA LIMA

“convenções especiais59que formam os gêneros. Como conseqüência imediata


da oposição aponta uma coincidência surpreendente. Â zelosa atenção exigida
pelo texto literário permitiria ao analista perceber o papel desempenhado,
no precipitado verbal, por dois fatores que Longino já destacava, a “emo­
ção” e o “tema”. Fatores que agora assumem, com Tate, uma força operacional
para o ato judicativo: “Sem dúvida, qualquer leitor experiente da literatura
pode apontar as falhas de grandes escritores nos dois extremos de despro­
porção correspondentes a duas formas de orgulho que Impedem a completa
descoberta do tema: o orgulho do Intelecto e o orgulho do sentimento, o
orgulho da vontade e o orgulho do Instinto” (Tate, A.: Ibidem, 181). Ou seja,
deixando o cuidado com as convenções para os eruditos secundários, o ana­
lista encontraria em Longino uma proporção, mesmo se impredizível — a
just, if unpredictable, proportion — capaz de guiá-lo em seu juízo valor ativo.
Curiosamente, em um crítico pertencente a um grupo que buscava a objeti­
vidade analítica, a proporção exaltada servia de base para julgamentos que,
mesmo por efeito da impredizibilidade da exaltada proporção, assim se tor­
navam arbitrários. Ora, o mesmo resultado levava o realce croclano da in-
tuição-expressão: “A arte é independente tanto da ciência quanto do útil e
da moral. Não se abrigue o temor de que com isso se chegue a justificar a
arte frívola e fria, porque o que é verdadeiramente frio e frívolo o é porque
não soube elevar-se à expressão” (Croce, B.: 1902, 138). “O artista purifica
seu outro eu, charlatão, embusteiro, malvado, quando sabe expressá-lo ar­
tisticamente” (idem, 140). Isto é5se a expressão é o lado visível da intuição,
o artista verdadeiro não pode ser, por definição, frio ou frívolo. Mas de onde
deriva esta sua justificação senão de algo tão impredizível quanto o gosto do
analista? Assim, a partir de uma base correta — a luta comum contra a
preceptística e as generalizações historicistas ou deterministas — chegava-
se, contudo, à mesma justificação da arbitrariedade interpretativa e valorativa.
Será esta a sina de toda atividade analítica em arte ou apenas a resultante de
certa posição? A pergunta não é feita para ser respondida de imediato (e
mesmo quando o seja não pretenderá ser definitiva). Ela aqui se coloca para
vermos seu rendimento no contexto das considerações sobre o formalismo
russo.
O parentesco com Croce dura, no formalismo russo, bem menos tem ­
po do que se dá em relação à estilística ou ao new criticism, pois se resume
a seu período inicial, onde os papéis principais eram desempenhados pelos
princípios do desvio, do estranhamento e do procedimento. Se o “caráter

268
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

estético” “é criado conscientemente para liberar a percepção do auto»


matismo” (Chklovski, V: 1917, 94), pois í£a finalidade da arte é de dar uma
sensação do objeto como visão e não como reconhecimento” (idem, 83), a
idéia de gênero é considerada senão como um peso negativo. Contudo, a
partir dos anos 20, sobretudo pela obra de Tinianov, o formalismo ultra­
passou a identificação chklovskiana da obra com a soma de seus procedi­
mentos e buscou aproximar a série literária das não-literárias (cf. Ambrogio,
L: 1968, 207). Através desta segunda meta, lançavam-se os fundamentos
de uma nova história da literatura. Os princípios do desvio e do procedi­
mento eram relegados pelos de função e sistema, e a soma dos procedi­
mentos, pelo de dominante. Paralelamente a essa novas metas — que não
rompiam mas imprimiam outro curso ao combate contra a linguagem este­
reotipada, canonizada como poética —, reintroduzia-se a idéia de gênero,
de um modo cujo alcance estamos hoje em condições de melhor apreciar.
Os gêneros, bem como a própria idéia de literatura, são fenômenos dinâ­
micos, em constante processo de mudança. Assim, opondo-se à caracteri­
zação ontológica da literatura, Tinianov escrevia: “As definições de
literatura, que operam com suas manifestações ‘fundamentais’, chocam-se
com o fato literário vivo” (Tinianov, Y: 1924, 399). Contrapondo-se à tra­
dição clássica, notadamente alemã, que longe estava de extinta — cf. o que
depois é escrito sobre Staiger —, Tinianov via a caracterização da literatu­
ra como uma constante função histórica. E o mesmo valia para os gêneros,
a que o ensaio citado fazia mais ampla referência: “Também o gênero como
tal não é um sistema constante, imutável. E interessante como o conceito
de gênero oscila se examinamos um fragmento, um trecho. O trecho de
um poema pode ser experimentado como parte de um poema e assim como
poema, mas também como fragmento, ou seja, o fragmento pode ser con­
cebido como um gênero. Este reconhecimento do gênero não depende da
vontade dos receptores, mas sim da supremacia ou, afinal de contas, da
presença de um determinado gênero: no século XVIII, o trecho de uma
poesia é tomado como um fragmento, no tempo de Puschkin, como poe­
ma. E interessante que as funções de todos os meios estilísticos e procedi­
mentos se acham na dependência da definição de gênero: no poema, estas
funções são diversas das do fragmento” (Tinianov, Y.: 1924, 398, grifo nos­
so). A experiência ou reconhecimento do gênero se impõe previamente tanto
ao produtor quanto ao receptor, pois está entranhada na própria expecta­
tiva histórica do fato literário. Como tal, é necessariamente mutável e em

2 6 9
LUIZ COSTA LIMA

consonância quer com os outros elementos constitutivos do fato literário,


quer com os elementos de ordem histórica geral. Como exemplo da pri­
meira situação: “Para nós, as charadas e os logogrifos são um jogo para crian­
ças, na época de Karamzin, com seu realce das minudências verbais e seus
jogos com os procedimentos, este jogo era um gênero literário” (idem, 399).
A valorização das minudências verbais por N. M. Karamzin (1766-1826)
se relacionava à adoção de uma prosa fluida e elegante, assim como à sua
rejeição da divisão dos três estilos, codificada para o russo por Lomonossov.
Como exemplo da interdependência com os fatores históricos gerais,
restrinjamo-nos a um caso: “(...) A écloga pastoral não poderia sobreviver
às mudanças na relação da cidade com o campo que se seguiram ao desen­
volvimento urbano” (Fowler, A.: 1971, 85). Lembremo-nos ainda de um
exemplo recolhido em obra anterior ao ensaio de Tinianov. Refiro-me à
famosa passagem em que o Lukács “idealista” explicava o romance a partir
da impossibilidade histórica de permanência da epopéia: “O romance é a
epopéia de um tempo em que a totalidade extensiva da vida não é mais
dada de maneira imediata, de um tempo para o qual a imanência do senti­
do da vida se tornou problemática, mas que não cessou de visar à totalida­
de” (Lukács, G.: 1920, 49). Embora essa formulação nunca pudesse ter sido
de Tinianov, que nunca fora seduzido pelo feitiço hegeliano da totalidade,
nem sofrerá o pathos metafísico da filosofia alemã do fim do século XIX,
não parece acidental que o autor russo só exemplificasse com casos exclu­
sivamente literários. Embora ultrapassada por teorização mais sofisticada,
a idéia do procedimento literário permanecera o traço preliminar com que
os formalistas sempre trabalhavam. Testemunha-o passagem de companheiro
menos brilhante de escola, onde a idéia dinâmica de gênero é extremamente
limitada às suas marcas literárias: “Assim se criam classes particulares de
obras (os gêneros) que se caracterizam por um agrupamento de procedi­
mentos em torno dos procedimentos perceptíveis, que chamamos os tra­
ços do gênero” (Tomachevski, B.: 1925, 302). Contudo, não era apenas ou
sobretudo o dado preliminar do procedimento que restringia a fecundidade
da reflexão de Tinianov sobre o modo de ser dos gêneros. Anterior e mais
importante era o fato de o formalismo haver-se mantido nos parâmetros
do que hoje se chama a estética da produção. Ou seja, na consideração do
fenômeno literário, os formalistas se ativeram ao binômio produtor-pro-
dução, com ênfase sobre esta — as propriedades da obra, como elas se ar­
ticulam, o que converte um texto em obra literária. Embora o fator paralelo

2 7 0
a

TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES

e complementar da recepção já aparecesse no meio de seu caminho crítico,


como bem nota Stempel em texto incluído neste volume, não chegaram a
atinar com toda a sua importância. Para vermos que essa crítica não é ana­
crônica, querendo emprestar a uma reflexão cuidado que não estava no
horizonte de sua época, lembremos as críticas que, em 1928, Medvedev e
Bakhtin endereçavam aos formalistas, no tópico específico à questão dos
gêneros.
Para Medvedev e Bakhtin, as dificuldades encontradas pelos formalistas
resultavam de seu ponto de partida, concentrando-se nas propriedades da
linguagem poeticamente usada e não se preocupando com a “construção
da obra”. A linguagem em si não seria capaz de oferecer o rendim ento
analiticamente desejável porque apenas por ela não se descobre a dupla
orientação contida em qualquer gênero: “Em primeiro lugar, a obra é ori­
entada para o ouvinte e perceptor e para as condições definidas de execu­
ção e percepção. Em segundo lugar, a obra é orientada na vida, a partir de
dentro, poder-se-ia dizer, por seu conteúdo temático. Cada gênero possui
sua própria orientação na vida, com referência a seus eventos, problemas
e t c ” (Medvedev, P. N./ Bakhtin, M. M.: 1928, 131).
O primeiro fator reitera o que já era notado em “O fato literário” de
Tinianov. Estranhamente, conquanto Medvedev e Bakhtin se refiram ao en­
saio de Tinianov, não indicam a coincidência das colocações. Ao contrário,
abonam a posição dos formalistas sobre os gêneros quase exclusivamente
com passagens de Chklovski, tendo assim facilitada sua contra-argumenta-
ção. O decisivo contudo é que a posição dos autores não é idêntica à de
Tinianov. Vemo-lo pelo exame do segundo fator e, daí, pela inter-relação
que estabelecerá com o primeiro. Um gênero não pode ser bem captado
mediante a pura inspeção verbal ■ —■com que Tinianov ainda se contenta­
va — seja porque é “program ado” de acordo com as expectativas do re­
ceptor, seja porque seleciona a realidade de uma m aneira que lhe é
exclusiva ou pelo menos diferenciada da dos outros gêneros. O exemplo
seguinte torna mais nítido o ponto de vista: “(...) A lírica (...) tem acesso
a aspectos da realidade e da vida que não são nem inacessíveis nem aces­
síveis em um grau menor à novela ou ao drama. Os gêneros dramáticos,
por sua vez, possuem meios de ver e dem onstrar aspectos do caráter hu­
mano e de seu destino que os meios do romance podem apenas revelar e
iluminar em um menor grau, se é que o podem” (Medvedev, P. N./ Bakhtin,
M. M.: 1928,133). O que vale dizer, entre o mundo da realidade empírica

27 1
LUI Z COSTA LIMA

e a dimensão das obras literárias há como uma série reduzida de grilles


que deixariam passar diversamente a matéria do real, selecionando-a de
formas distintas. Assim com preendendo, verificamos haver de fato um
avanço sobre a tese de Tinianov, muito embora este avanço não signifi­
que uma ruptura com sua posição. Os gêneros já não se confundem com
uma função única: a de criar entre produtos e receptores a expectativa
de um texto literário. A imagem de sua unicidade funcional agora se
metamorfoseia na imagem de filtros, que não só separam o literário do
não-literário, quanto, dentro deste, contêm ajustadores especiais, quali­
ficando certo tratam ento para certo gênero e o impugnando para aquele
outro. “O artista”, dirão os autores logo a seguir, “deve aprender a ver a
realidade com os olhos do gênero” (p. 134).
Em avanço e não em discrepância quanto à posição de Tinianov, a re­
flexão dos autores era virulentamente contrária à marxista (pelo menos
da época): “E tão ingênuo pensar que obras separadas, arrancadas da
unidade do mundo ideológico, são, em seu isolamento, diretam ente de­
term inadas por fatores econômicos, quanto o é pensar que as rimas e as
estrofes de um poema são conformadas de acordo com a causalidade eco­
nôm ica” (Medvedev/Bakhtin: idem, 15). A solução marxista “resolvia”
tão bem a questão dos gêneros e da imitação quanto as preceptísticas
neoclássicas ou quanto permitia, para os historicistas e deterministas, a
idéia de história como animada por um motor. A solução contrária, re­
presentada entre os formalistas por Chklovski, “resolvia” o problema por
sua mera eliminação. Tinianov indica um caminho que, com interrupções,
volta hoje ao centro do debate. Medvedev e Bakhtin, de sua parte, nos
m ostram como o passo de Tinianov podia ser melhorado. Conquanto de
forma apenas especulativa, precisam melhor o acerto de seu contem po­
râneo, a que, talvez por motivos políticos, não prestavam a justa hom e­
nagem. Os gêneros não são nem realidades em si mesmas, nem meras
convenções descartáveis ou utilizáveis ad libitum . São sim quadros de
referência, de existência histórica e tão-só histórica; variáveis e mutáveis,
estão sintonizados com o sistema da literatura, com a conjuntura social e
com os valores de uma cultura. Estes últimos tanto acolhem ou modifi­
cam o perfil dos gêneros em função de mudanças históricas — seja o exem­
plo da écloga atrás transcrito — quanto simplesmente rejeitam certa
espécie sua, obrigando aos restantes terem um rendim ento diverso: “A
ausência total, por ex., do gênero dramático no âmbito cultural arábico

2 7 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VO l . 1

empresta, como contrapartida, à lírica e à épica daquela literatura um valor


posicionai bem distinto” (Trabant, J.: 1970, 310). Cabe ainda reiterar:
form adores deste campo mediador entre a realidade e a literatura, os
gêneros não se confundem com a prenoção generalizada do que é histo­
ricamente tomado como literário, por implicarem filtros particularizantes.
Mas até que ponto este avanço não é apenas milimétrico quanto ao enun­
ciado de Tinianov? E, se ele não passou do estágio de hipótese especulativa,
por que lhe concedemos relativamente tanto espaço? Fazemo-lo porque
alarga a via que ainda agora necessita ser melhor batida: a via de uma
indagação que, rompendo com qualquer resquício reflexológico, causalista
ou determinista, venha a demonstrar a articulação da realidade do poético
com a realidade do social. Em palavras mais diretas: para sair da estreiteza
do quadro teórico constituído por desvio-estranhamento-procedim ento,
Tinianov teve de abandonar a exclusividade do binômio produtor-pro-
dução e introduzir a presença implícita do receptor. A atuação deste se
torna mais manifesta quando Medvedev e Bakhtin assinalam que cada
gênero traz consigo um feixe de expectativas e de seleção possíveis da
realidade. Ora, se não é o gênero em si que carrega este repertório (!),
onde ele localizaria sua existência senão nos leitores? Daí podermos en­
tender melhor o alcance desta frase conclusiva: “Por isso, uma genuína
poética do gênero apenas pode ser uma sociologia do gênero” (Medvedev/
Bakhtin: ibidem, 135). Ela não corrobora a antítese estereotipada “análi­
se sociológica versus análise formal”. M uito ao contrário, indica-nos que
o dilema observável na história da questão dos gêneros — o enfrentamento
de posições realistas com posições nominalistas — só é ultrapassável se
abandonarmos a premissa da poética imanentista, com seu axioma: o dis­
curso literário existe em si, constituindo uma função verbal diferenciada
das outras. A poética imanentista contem porânea é um derivado da teo­
ria da expressão com que, originalmente, os românticos se descartaram
da opressão neoclássica da teoria da imitatio idealizada. “Em termos ge­
rais, a tendência central da teoria expressiva pode-se resumir assim: uma
obra de arte é, essencialmente, algo interno que se faz externo, resultante
de um processo criador que opera sob o impulso do sentimento e no qual
toma corpo o produto combinado das percepções, pensamentos e senti­
mentos do poeta” (Abrams, M. H.: 1953, 39). Sua versão m oderna dis­
tingue-se quer da romântica, quer da crociana por não se interessar pelo
poeta. Assim, a justificação da verdade contida no poema pela sinceridade

21 3
LUIZ COSTA LIMA

com que aí o autor se confessava é abolida seja pela idéia eliotiana da


impessoalidade exigida pelo poema, seja pela idéia de persona que Fer­
nando Pessoa consagraria por seus heterônimos. Na versão contem porâ­
nea, e hoje altamente majoritária, o poema se justifica por seu próprio
arranjo verbal. Com isso, quer a questão da mimesis é mantida no ostra­
cismo, quer a questão dos gêneros se mantém como um tema quando nada
tedioso. Contudo, mesmo o tratam ento mais individualizado das obras,
como mostram os inúmeros ensaios dos nem critics, é obrigado a falar em
gêneros, pelo menos na lírica. (Como hum oristicam ente escreve Paul
Hernadi: “Pace Croce, cada peça de crítica literária envolve alguma con­
sideração sobre gênero” (Hernadi, R: 1978, 192). Note-se de passagem
que, no instante máximo da poética im anentista, quando Jakobson se
propõe revelar a pura imanência do poético — a superposição dos eixos
da seleção e da combinação — é levado a recorrer à mais clássica das idéias
sobre os gêneros: “As particularidades dos diversos gêneros poéticos im­
plicam a participação, diferentem ente escalonada, das outras funções
verbais, ao lado da função poética dominante. A poesia épica, centrada
na terceira pessoa, envolve m arcantem ente a função referencial da
linguagem; a lírica, orientada para a primeira pessoa, está intimamente
ligada à função emotiva; a poesia da segunda pessoa é marcada pela fun­
ção conativa e é suplicatória ou exortativa, dependendo de se a primeira
pessoa está subordinada à segunda ou a segunda à prim eira” (Jakobson,
R.: 1960, 357). A alternativa ao imanentismo principia com a retificação
de Tinianov, em seu “O fato literário”. A contribuição de Medvedev e
Bakhtin tornou a direção mais precisa. Os três, contudo, foram abafados
pela conjuntura política do momento. As contribuições imediatamente
mais próximas que recordaremos não vislumbram sequer este passo, que
só será retom ado em décadas mais próximas.
Na verdade, na primeira metade do século XX não é a abordagem socio­
lógica dos gêneros que predomina, mas, ao contrário, o que se poderia, com
Goethe, chamar de direção morfológica. Assim, o jovem Stephen Dedalus,
recordando a escolástica de seus mestres jesuítas, afirmava que “a arte neces­
sariamente se divide em três formas, que progridem de uma até a próxima.
Estas formas são: a forma lírica, a forma em que o artista apresenta sua ima­
gem em imediata relação consigo mesmo; a forma épica, a forma em que
apresenta sua imagem em relação mediata consigo mesmo e com os outros;
a forma dramática, a forma em que apresenta sua imagem em imediata relação

2 7 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

com os outros” (Joyce, J.: 1916, cap. V). Ao que eu saiba, contudo, as fontes
desta classificação não estimularam nenhuma reflexão contemporânea. Me­
lhor sorte encontrou passagem de Goethe, nas “Noten und Abhandlungen”
ao ciclo de poemas do West-õstlicher Divan (1816). Depois de apontar que
as inúmeras variedades poéticas — alegoria, balada, cantata, drama, elegia,
fábula, narração etc. — concernem a propriedades externas e raras vezes se
atêm à sua “forma essencial”, Goethe apresenta as “formas naturais do poé­
tico” (Naturformen der Dichtung), que seriam de alcance universal: “Há
apenas três formas naturais autênticas de poesia: a claramente narrativa, a
que move o entusiasmo (die enthusiastisch aufgeregte) e a que age de modo
pessoal: epos, lírica e drama. Estas três formas poéticas podem agir juntas
ou separadamente” (Goethe, J. W. 1 8 1 6 ,1, 1673). A idéia das “formas na­
turais” do poético terá uma fortuna, mormente na reflexão alemã, de que
aqui se oferecerá apenas uma pálida idéia. Desde logo, ela prepondera nas
Einfache Formen de André Jolles, que, em seu prefácio, recorria a Goethe
para justificar o tipo de análise que se oporia ao instável, ao histórico:
“Eliminando-se tudo o que é condicionado pelo tempo ou individualmen­
te movediço, pode-se, na poesia no sentido mais amplo, estabelecer igual­
mente a forma, circunscrevê-la e conhecê-la em seu caráter fixo” (Jolles,
A.: 1930,15). Seu propósito é assim chegar, como declara, às “formas fun­
damentais” a que o homem teria acesso depois de intervir no caos do uni­
verso, de reunir e separar, alcançando por fim a permanência do essencial.
Estas formas elementares, em número de 9 — a lenda, a gesta, o mito, a
adivinhação, a locução, o caso, os memoráveis, o conto, o rasgo de espírito
— corresponderiam a uma “disposição mental” diferenciada, que perma­
neceria malgrado a diversidade das configurações histórico-culturais. Con­
sideradas deste modo, as formas fundamentais seriam entidades reais e
transistóricas.
Direção semelhante e igualmente inspirada em Goethe é assumida por
Vladimir Propp que, dois anos antes, publicara a Morfologia da fábula. Propp
contudo tivera pelo menos o cuidado de restringir a “universalidade” de
seus resultados. Como escreve ainda na abertura da obra: “(... E possível
examinar as formas da fábula com a mesma precisão com que se estuda a
morfologia das formações orgânicas. E se não se pode dizer isso da fábula
em geral, em toda a sua variedade, isto vale de todo modo para as chama­
das fábulas fide magia5, para as fábulas ‘no verdadeiro sentido da palavra’.
É a estas que é dedicado o nosso trabalho” (Propp, V.: 1928, 3). Redes-

2 7 5
LUI Z COSTA LIMA

coberto na época áurea do estruturalismo, que também aproveitou à difu­


são do livro de Jolles, a obra de Propp suscitou um notável estudo de Lévi-
Strauss, em que ao mesmo tempo que reconhecia o caráter de precursor do
folclorista russo mostrava por que sua abordagem não se confundia com a
proposta pelo estruturalismo (cf. Lévi-Strauss, C.: 1960). Comprovando o
quanto o estruturalismo, em sua matriz, divergia da maneira como se fez sua
aplicação à literatura, apesar das restrições lévi-straussianas, a obra de Propp
representou uma fonte importante para esforços como o de Barthes em ca­
racterizar as propriedades da narratívidade (cf. Barthes, R.: 1966). (Não
me refiro à relevância ainda maior de Propp para Greimas porque este não
cuidava da questão do gênero.)
Contudo, mais do que as obras de Jolles e de Propp, o autor que, inte­
grando-se à herança goethiana, exerceu maior influência foi Emil Staiger,
através dos Grundbegriffe der Poetik. Combinando a idéia das “formas
naturais”de Goethe com a filosofia existencial de Heidegger, Staiger pre­
tendeu lançar as bases novas da teoria dos gêneros, a p artir de uma
caracterização fundamentalmente ontológica. O seu propósito é determi­
nar as “qualidades simples” do poético, identificadas pelas formas do líri­
co, do épico e do dramático. São elas então tomadas como formas puras,
i. e., não se supõe que elas se realizem plena e exemplarmente por determi­
nadas obras ou autores: “Quando chamo um drama de lírico ou um ro­
mance de dramático (...) é porque sei o que quer dizer lírico e dramático.
Não passo a saber isso ao me recordar de todas as poesias líricas e de todos
os dramas que existem” (Staiger, E.: 1946, 14).
Os conceitos são independentes dos casos empíricos por se tratarem de
idéias a priori, que resistam à mudança de nossa opinião sobre as obras: “Es­
sas significações mantêm-se firmes; na opinião de Husserl, é absurdo dizer
que elas oscilam. O valor das obras que tentamos julgar de acordo com esta
idéia é que pode variar: uma pode ser mais ou menos lírica, épica ou dramá­
tica que a outra. Também os £atos que conferem a significação5podem apa­
rentar caráter dúbio. Todavia, uma vez captada a idéia do lírico 5, esta é tão
irremovível como a idéia do triângulo ou como a idéia do Vermelho5; é uma
idéia objetiva e foge a meu arbítrio” (Staiger, E.: 1946, 15). A significação
conceituai independe dos atos de valoração, o que valeria tanto para os gê­
neros quanto para a caracterização das cores. Mas aí se mostra a debilidade
do raciocínio: “Contra esta argumentação é (...) de se objetar que, na verdade,
é correto que, dentro de uma comunidade verbal, durante um certo tempo,

2 7 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

um predicado como Vermelho5apresenta um uso idêntico em grande exten­


são, mas daí não se pode deduzir nenhuma idéia preexistente e sempre válida
do vermelho, pois é um fato há muito conhecido em lingüística que a semân­
tica das cores é diferenciada de modos fundamentalmente distintos em cada
língua, que, em suma, a organização do mundo (die Gliederung der Welt) de­
pende decisivamente da língua correspondente” (Hempfer, K. W: 1973, 71).
Contudo, a falácia da ideação a priori não resulta apenas do errado apoio
lingüístico. Hempfer, autor da melhor sistemática do problema dos gêneros,
ainda acentua que a própria idéia de lírica com que Staiger opera toma como
transistórico o que é válido apenas no âmbito do alemão. E a seguinte a pas­
sagem dos Grundbegriffe: “(...) A idéia de lírico’ tem que corresponder ao
que geralmente denomina-se lírico, embora sem um conceito claro. Isso não
vem a ser a média do que é chamado de Lírica, de acordo com as caraterísticas
formais. Ao falar de êclima lírico5(lyrische Stimmung) ou de ctom lírico5, nin­
guém está pensando num epigrama; mas qualquer pessoa pensa imediata­
mente em uma canção (Lied)” (Staiger, E.: 1946, 15). Ante o que Hempfer
contrapõe: “Staiger crê que por lírico se pensa automaticamente no Lied;
um francês do século XVIII compreendia por poésie lyrique a ode solene e,
no melhor dos casos, ainda a elegia e de maneira alguma o Lied romântico
alemão” (Hempfer, K. W: 1973, 71).
Malgrado o arrepio que nos causa o jungianismo metafísico do autor,
vejamos se sua análise das categorias fundamentais não caracterizaria algo
de importante. A cada um dos gêneros básicos se associa uma disposição
anímica (Stimmung) determinada. Ao lírico cabe a recordação — Erinnerung
—*ao épico, a apresentação — Darstellung — ao dramático, a tensão —
Spannung. Pela Stimmung peculiar à lírica, é o passado que recorre. Mas não
para que se preste a uma informação referente ao eu do poeta. O vivido se
converte em enunciado que violenta o objetivo da linguagem: enquanto esta
visa a um confronto objetivo, de onde derivam as informações verbalmente
transmitidas sobre algo, a linguagem na lírica se mistura com a música, em­
bora nela nunca se dissolva. O lírico então declara um encontro hipotético
do eu com o outro, no qual a solidão da voz que fala conta, por assim dizer,
com a simpatia do que lhe escuta. Encontro de solidões, “o lírico nos é
instilado. Para que a sua persuasão tenha êxito, o leitor precisa estar aberto.
Está aberto quando sua alma está em sintonia com a alma do poeta. Assim, a
poesia lírica se manifesta como arte da solidão, que em sua pureza, é escutada
apenas por aqueles que estão de acordo na solidão (die rein nur von Gleichges-

27 7
LUIZ COSTA LIMA

tim m te n in der E in sa m k eit)” (Staiger, E.: 1946, 49). Desta solidariedade na


solidão resulta que o lírico não trabalhe com o distanciamento, que nele se
renuncie à “coerência gramatical, lógica e formal” (p. 51). De sua parte, o
épico também está voltado para o passado, mas, à diferença do lírico, o pas­
sado se guarda como distância a ser narrada: “O acontecimento permanece
de frente (Gegenüber) enquanto também é passado. O épico não se ensimesma,
evocativamente, no passado, como o lírico, mas sim o evoca. E na rememo-
ração é mantida a distância tanto temporal quanto espacial. O longínquo é
trazido ao presente, de modo que, e por isso mesmo, nos confrontamos com
ele como um mundo diverso, maravilhoso e maior” (Staiger, E.: 1946, 79).
Por efeito dessa distinta Stimmung a linguagem reassume sua força nomeante:
“A linguagem épica apresenta. Aponta alguma coisa. M ostra” (idem, 83). Por
fim, diante do quadro visualizado à distância, o épico não busca ressaltar os
instantes de clímax, mas demorar-se diante da cena: “(...) Se o dramaturgo
serve-se dos homens e das coisas apenas para expor grandes decisões, ao épico
as grandes decisões são apenas a ocasião, o quanto possível alongada, para
narrar o que houve. Ele não avança para alcançar um alvo, mas coloca-se um
alvo para caminhar e a tudo observar com cuidado” (ibidem, 93). Daí resul­
ta a diferença de conduta que as partes assumem nos três gêneros: “A auto­
nomia das partes corresponde à lei de gênero do épico, a funcionalidade das
partes à lei de gênero do dramático, a modificação individual do tipo orgâ­
nico ao lírico, que é sempre fortuito e singular” (ib., 116). No drama, por
fim, abarcando o trágico e o cômico, a Stimmung própria leva a ressaltar os
momentos de clímax, em que o homem se auto-supera (cf. p. 139). Ainda
que ele contenha momentos líricos ou épicos — pois, como já acentuamos,
as ideações a priori não implicam que as obras empíricas as realizem em sua
pureza —, sua definição corre por conta da centralidade da tensão. O dra­
mático se atualiza como trágico quando o autor radicaliza a pergunta sobre
a razão de ser de algo. O resultado aí será trágico porque “só perante um
deus desconhecido consuma-se o vivente. O trágico assim se mostra como o
resultado sempre possível, embora não obrigatório, do estilo dramático” (ib.,
149). Em troca, o cômico resulta de um modo específico de tratar a tensão:
“O autor cômico cria a tensão para desfazê-la. Age como se desejasse ir muito
longe para, no momento em que assim nos preparamos, nos poupar e nos
apresentar algo que se evidencia sem maiores esforços” (ib., 158).
Encerrado este resumo, cabe perguntar por seu resultado. Ele não parece
muito animador. Mesmo que em nossa síntese tenhamos procurado enxugar

2 7 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

o seu tom patético-metafísico, seu esqueleto não é nada diverso. Por isso,
não vejo melhor caminho senão corroborar o comentário final de Hempfer,
que o livro de Staiger representa um contributo importante para a teoria
dos gêneros, desde que se entenda ser um contributo ex n eg a tivo So h a t er
(...) ex negativo einen w ich tig en B eitrag zu r D isk u ssio n u m d ie ‘G a ttu n g e n 3
g e le is te t”). Contribuição pela negativa, porque aa contradição em que o
autor se enreda nos fa z ver co m o falsificada um a teoria dos gêneros que to m a
a tría d e das a titu d e s fu n d a m e n ta is n os gên eros esq u e m a tiza d o s c o m o p e r­
m a n en tem en te preex isten te nas idéias fun dadas no ser do h o m e m ” (Hempfer,
K. W.: 1973, 73, grifo nosso).
Esta conclusão, na medida em que se pode estender até à A n a to m y o f
criticism de N orthrop Frye, nos permite uma exposição também econômica.
A sistematização de Frye se apoia no legado das obras de Frazer, Jung,
Bachelard — na parte específica sobre a poética dos quatro elementos — e
Spengler. Já por este perfil se mostra a orientação estática do pensamento
abordado. Através dos quatro ensaios que formam a A n a to m y , Frye procu­
ra levantar as maneiras como a literatura tem sido e pode ser considerada.
Como diversos autores o têm criticado,5 as perspectivas dos ensaios não
são integralmente coincidentes, muito embora a teoria dos modos — o
mítico, o romanesco, o alto mimético (compreendendo a tragédia e a epo­
péia) e o baixo mimético (tratamento irônico e parodístico) escalonem os
modos fundamentais do trágico e do cômico, em um movimento simulta­
neamente diacrônico e circular — represente a disposição-pivô. Como, no
entanto, esta classificação não se confunde, para o autor, com a teoria dos
gêneros, não teria aqui sentido tentar mostrar a articulação geral buscada.
Mais modestamente, devemos então nos limitar ao que postula de forma
expressa sobre os gêneros.
Para Frye, há quatro gêneros básicos, cujo fundamento comum é o seu
modo de apresentação, ou seja, a forma pela qual se estabelece a relação entre
autor e público. Três dos gêneros básicos foram designados ainda pelos gre­
gos: o drama, o epo s, a lírica: aNo drama, as personagens hipotéticas ou in­
ternas da estória confrontam-se com a audiência diretamente; por isso, o
drama é caracterizado pelo ocultamento do autor, que não é visto por sua
audiência. (...) No epos, o autor defronta sua audiência diretamente, e as
personagens hipotéticas de sua estória estão escondidas. (...) O princípio de
apresentação na lírica é a forma hipotética daquilo que em religião é chamado

2 7 9
LUI Z COSTA LIMA

a relação <eu-tu\ O poeta, por assim dizer, volta as costas para seus ouvintes,
embora possa falar por eles e embora eles possam repetir algumas de suas
palavras atrás dele” (Frye, N.: 1957, 245). Para o quarto gênero básico, Frye
reserva o nome de ficção, que se diferencia do epos por ser este episódico,
enquanto aquela é contínua. A distinção é de fato muito fluida, pois facil­
mente um modo pode ser tomado como outro: aOs romances de Dickens,
como livros, são ficção; como folhetins seriados, numa publicação destinada
à leitura familiar, são ainda fundamentalmente ficção, embora muito próxima
do epos. Mas, quando Dickens começou a dar leituras de suas próprias obras,
o gênero mudou inteiramente para o epo s; a ênfase era então posta no
imediatismo do efeito ante uma audiência visível” (Frye, N.: 1957, 244-5).
De todo modo, a identidade da ficção ficará mais clara ao passarmos para a
caracterização de suas espécies.
Os quatro gêneros fundamentais se dispõem de uma maneira especial:
o e p o s e a ficção ocupam a área central da literatura, respectivam ente
flanqueadas pelo drama e pela lírica. Cada um deles representa uma forma
especial de m im esis: o ep o s é apresentado pela m im esis do discurso direto,
a ficção pela m im e sis da escrita assertiva, o drama pela m im esis externa ou
da convenção, a lírica pela m im esis interna. (Note-se que, à diferença dos
preceptistas, Frye não postula princípios rígidos para cada tipo. N a verda­
de, como sempre repetirá, o papel dos gêneros é de determinar a dominan­
te com que se realiza cada obra empírica.) A ficção, por sua vez, apresenta
quatro modalidades: o romanesco (rom an ce), o romance (n o vel), a forma
confessional e a sátira menipéia ou anatomia. Quanto à diferenciação en­
tre as duas primeiras: “A diferença essencial entre romance (n ovel) e estó­
ria romanesca (ro m a n ce) está na concepção de caracterização. O autor
romanesco não tenta criar ‘gente real5, tanto quanto figuras estilizadas que
se ampliam em arquétipos psicológicos. (...) O romancista (de sua parte)
lida com a personalidade, com personagens que usam p e rso n a e as máscaras
sociais” (Frye, N.: 1957, 299). Quanto à terceira modalidade, note-se que
o autor não a confunde com a autobiografia: “Não há motivo literário por
que o tema de uma confissão deva ser sempre o próprio autor (...)” (idem,
302). Por fim, a sátira menipéia ou anatomia “lida menos com pessoas como
tais do que com atitudes mentais. (...) A sátira menipéia assim se assemelha
à confissão por sua habilidade em lidar com idéias e teorias abstratas e di­
fere do romance (n ovel) em sua caracterização, que é antes estilizada do
que naturalista e apresenta as pessoas como porta-vozes das idéias que re­

2 8 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

presentam” (ibidem, 304). Muito menos aqui se há-de pensar em repre­


sentantes puros de cada modalidade. A dominância do romanesco se en­
contra, por ex., nas novelas de Boccaccio, a dominância do romance em A
P o rtra it de Joyce, a da forma confessional no E m ile de Rousseau, a da sáti­
ra menipéia em Petrônio, Rabelais, Swift e Sterne. Esquematicamente, as­
sim temos:

Forma da mimesis G êneros correspondentes


externa drama
discurso direto epos
estória romanesca (rom ance)
romance
escrita assertiva ficção <
confessional
^ sátira menipéia
mterna lírica

Quaisquer que sejam as objeções aos esquemas classificatórios transistó-


ricos de Frye, não é correto confundi-los com o desvario de Staiger — muito
menos com as tentativas aqui não estudadas de Káte Hamburger, dos neo-
aristotélicos de Chicago ou de E. D. Hirsch Jr. — nem tampouco menospre­
zar a fecundidade de observações particulares, como, por ex., a associação
do Tristram Shandy e do B ou vard e t P écuchet com o clima agressivo, de dis­
cussão parodística e intelectual da sátira menipéia. De mesmo teor é a passa­
gem em que explica a freqüente mistura de tipos de ficção: “De fato, a
demanda popular na ficção é sempre em favor de uma forma mista, de um
romance romanesco (a rom a n tic n ovel) bastante romanesco para que o lei­
tor projete sua libido no herói e sua a n im a na heroína e bastante novelesco
para que estas projeções se mantenham em um mundo familiar” (ibidem, 300).
(Em troca, a discordância seria bastante cabal se tivéssemos de analisar a
circularidade spengleriana saliente no primeiro ensaio.)
As objeções capitais se prendem a dois argumentos. A primeira endossa a
crítica feita por Alaister Fowler: ao passo que Frye distingue os gêneros em
função da altura do herói — o autor refere-se basicamente ao primeiro en­
saio —, seria mais fecundo enfatizar as “mudanças na dignidade dos próprios
gêneros”. “O sta tu s de um gênero — e daí a £altura5 do que comunica —

2 8 1
LUI Z COSTA LIMA

depende da apreciação corrente de seu tema. (Compare-se com a hierarquia


dos gêneros nas artes visuais, que foi reorganizada em detrimento dos temas
religiosos e históricos e com o proveito primeiro das paisagens e naturezas-
mortas, depois, da abstração.)” (Fowler, A.: 1971, 89.) O segundo argumen­
to deriva de Wayne C. Booth: “Como podemos aplicar a qualquer romance
os padrões adequados a qualquer um dos tipos definidos sem um decreto
divino autorizando-nos a considerar este romance como deste tipo?” (Booth,
W. C.: 1961, 37). As duas críticas apontam para uma mesma fraqueza: Frye
legisla sobre os gêneros como se eles pudessem ser descritos aprioristicamente,
sem que se considere fundamental a maneira como os receptores, concreta-
mente identificados, se comportam perante eles. É certo que Frye, desde o
íníclo de sua reflexão sobre o tema, acentuara que suas distinções resultam
do modo como autor e público por eles se apresentam. Com o desenrolar
contudo da reflexão, o segundo elemento desaparece e a caracterização das
formas se cumpre pela disposição interpretativa criada pelo teórico. Assim
eos parece suceder por sua concepção de ciência e pela tentativa de trazê-la
para a crítica literária. Na “Polemicai introduction” que abre seu livro, Frye
observa que uma crítica literária simplesmente baseada no gosto a converte
numa experiência discriminatória e, portanto, inútil, senão nociva. Os crité­
rios de gosto são resultantes da experiência Individual e, sendo a experiência
algo intransmissível, pretender ensinar ou analisar a literatura com base em
um efeito da experiência, o gosto, torna-se no mínimo uma atividade
impositiva. Isso é bom ou mau porque assim o experimento e, de acordo com
meu renome, da instituição que me acolhe ou do órgão em que escrevo, meu
gosto se torna mais socializável ou menos (no mesmo sentido, cf. 1.° cap. de
seu The C ritica i p a th ). Daí, por oposição à arbitrariedade legitimada como
crítica literária, Frye busca aproximar a atividade do analista da do matemá­
tico: “De início também pensamos na literatura como num comentário sobre
a Vida’ ou a 'realidade’ externa. Mas assim como na matemática temos de
passar de três maçãs ao conceito de três e de um campo quadrado ao conceito
de quadrado, assim também, ao ler um romance, temos de passar da
literatura como reflexo da vida à literatura como linguagem autônoma”
(Frye, N.: 1957, 342). Até aqui, não há por que negar a justeza da postura
de Frye. Seu equívoco consiste em não haver verificado que a comparação
com a matemática só é válida dentro de certo limite.6 O cientista em geral
pode determinar as propriedades do objeto que analisa sem o risco da
arbitrariedade porquanto suas hipóteses serão submetidas ao aparato da prova

? 82
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

e da experimentação. Como o objeto não fala, a experimentação verificará


se o que dele se diz é legítimo e coerente. A experimentação é a resposta
artificial do objeto à pergunta feita pela hipótese. Mas a análise literária se
defronta com outra realidade: o receptor aí ocupa o lugar que, na experi­
ência científica, é preenchido pelo teste das hipóteses. Em conseqüência, a
construção do analista não pode se impor senão como interpretação de
vivências e diferenciações historicamente concretizadas. O que vale dizer,
a construção dos gêneros não pode ser feita a p ro ri, pois esta construção,
mesmo supondo a presença implícita do receptor, passa a se impor sobre
ele, terminando tão arbitrária, tão crente em si como decreto divino, quanto
as classificações explicitamente autoritárias. Mesmo por esta via percebe­
mos que o trabalho de Frye, embora mais refinado e proveitoso, ainda
pertence à linhagem de Staiger. E possível que sua rede classificatória ve­
nha a servir de estímulo à pesquisa dos gêneros quando a análise sociológi­
ca tenha alcançado resultados empíricos mais amplos e então chegado a
problemas que não possa resolver. Mas não nos encontramos ainda neste
momento.

Antes de retornarmos ao fio que se desenrola com a exposição das idéias de


Tinianov, Medvedev e Bakhtin, procuremos responder a duas questões há
pouco postas. A primeira dizia respeito à solidariedade entre a afirmação da
literatura como mimesis e a visão realista, substancialista, dos gêneros. Esta
solidariedade se confirma pela análise da reflexão de Frye, com a ressalva de
que seu realismo não se desdobra necessariamente em normatividade. A se­
gunda questão concernia à arbitrariedade autoritária resultante da visão
transistórica dos gêneros, i. e., o analista os impõe e procura sujeitar os ob­
jetos empíricos à classificação apriorística. Vimos que ela aqui reaparece —
cf. citação de Booth — e a maneira de combatê-la consiste em realçar uma
concepção de ordem sociológica. Por certo, não poderemos de antemão as­
segurar que o remédio acabará com a doença, pois sempre uma margem de
autoritarismo poderá se atualizar. De qualquer modo, entretanto, o comba­
te será mais fácil pois sempre se poderá lançar mão do material empírico para
mostrar-se por que uma classificação proposta não é adequada ou suficiente.
Pelo próprio encaminhamento deste ensaio se tornou inevitável a reto­
mada de um caminho que vimos interrompido por volta dos anos de 1920.
Mas não se tratará de um mero adendo porque, neste entretempo, houve
uma mudança no próprio panorama teórico. Hoje, em vez de a análise socio­

2 8 3
LUI Z COSTA LIMA

lógica dos gêneros ter de se contrapor a uma teoria imanentista do poético


ou de ajustar-se a ela, pode-se beneficiar da reflexão que, em vez de partir da
linguagem em busca da identidade do literário, enfatiza a idéia de situação
na qual um certo discurso funciona, i. e., é reconhecido, como literário. Este
quadro teórico novo se origina das estéticas da recepção e do efeito. Não
seria próprio abrir-se aqui um parêntese para sua exposição. Notemos ape­
nas ser um absurdo supor que as aludidas teorias se diferenciam das ima-
nentistas por centrarem-se nas opiniões dos receptores! O que a elas é
fundamental é a observação de que o discurso literário — e ficcional, em
geral — se distingue dos demais porque, não sendo guiado por uma rede
conceituai orientadora de sua decodificação, nem por uma meta pragmática
que subordina os enunciados a uma certa meta, exige do leitor sua entrada
ativa, através da interpretação que suplementa o esquema trazido pela pró­
pria obra.7 Dito isso, não estranha que quase todos os pesquisadores a seguir
referidos estejam ligados a este quadro teórico.
Nas últimas décadas, a retomada da abordagem sociológica dos gêneros
foi de iniciativa do medievalista Hugo Kuhn. Analisando um momento his­
tórico, o da literatura medieval alemã, perante o qual o pesquisador não é
previamente amparado por uma arte poética disciplinadora, a que os gêne­
ros teriam se ajustado, Kuhn começa por rejeitar o esquema triádico de pro­
cedência idealista e por partir em busca do que chamava o “sistema natural”
do período estudado, i. e., seu desdobramento historicamente concretizado.
Para tanto, Kuhn achava necessário distinguir entre três problemas, os pro­
blemas de tipo, de camadas, de enteléquias (cf. Kuhn, H.: 1956, 46). Deixa­
remos aqui de lado o primeiro porque imediatamente menos importante. O
problema das camadas rompe com o isolamento da chamada literatura ele­
vada e mostra como para a Alta Idade Média existiam pelo menos três camadas
interagentes: uma pré e subliterária, que circula na literatura oral, ao lado de
uma “latina” e literária, composta em língua vulgar, ao lado ainda de uma
conscientemente literária e composta em língua vulgar (Kuhn, H 1956,52).
Acentue-se que estas camadas não são apreendidas exclusivamente a partir
dos produtores do textos, mas sim através de seu processo de recepção. A
este, correspondem conceitos como os de “representações da obra” (Werk-
vorstellungen) e de “modos de uso da obra” (Werkgebrauchsweisen). E por
efeito desta indagação dual e complementar que se captam as “formas natu­
rais” dominantes na literatura medieval considerada. Para Kuhn, eles eram o
romance cortês, a épica dos heróis e a lírica (Kuhn, H.: 1956, 58-61).

2 8 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

Embora pessoalmente desconheça o objeto de que trata Kuhn, seria


metodologicamente injustificável omiti-lo, ainda mais porque seu trabalho,
além de importar para a medievalística, é relevante do ponto de vista teóri­
co, por efeito de sua antecipação em uma década na valorização operacional
do receptor.
Ainda do campo da medievalística surgiu o segundo contributo funda­
mental. Em “Littérature médiévale et théorie des genres”, Hans Robert Jauss
apresentou o quadro mais abrangente da perspectiva que temos aqui privile­
giado. Socorreu-se para tanto da contribuição de dois lingüistas, Eugênio
Coseriu e Wolf-Dieter Stempel. Do primeiro aproveita o conceito de norma,
com que o lingüista romeno procura maleabilizar a dicotomia saussuriana de
langue/parole. Se a langue representa o plano mais abstrato da descrição lin­
güística, a norma é dotada de menor abstração, porque está mais próxima
do que a langue da realização concreta da parole. Por este conceito intermé­
dio, Coseriu pretende dar conta da presença do social no individual, que não
se limita a empregar as regras do sistema (langue) pois normalmente um siste­
ma permite variantes. A norma é a variante sistêmica institucionalizada den­
tro de um grupo (cf. Coseriu, E.: 1952, 11-113). A contribuição de Stempel
diz respeito mais precisamente à situação discursiva. “Todo ato de comuni­
cação lingüística é redutível a uma norma de gênero e convenção, cujos com­
ponentes, no plano da língua falada, são o índice social e o índice da situação
enquanto unidade de comportamento” (Stempel, W-D.: 1970/1,565). Ambas
as idéias estão na base da formulação de Jauss: “Assim como não existe co­
municação pela linguagem que não possa ser subordinada a uma norma ou a
uma convenção geral, social ou condicionada por uma situação, não se po­
deria imaginar uma obra literária que se colocasse em uma espécie de vazio
de informação e não dependesse de uma situação específica da compreen­
são. Nesta medida, toda obra literária pertence a um gênero, o que implica
afirmar pura e simplesmente que toda obra supõe o horizonte de uma ex­
pectativa, ou seja, um conjunto de regras preexistentes para orientar a com­
preensão do leitor (do público) e permitir-lhe uma recepção apreciativa”
(Jauss, H. R.: 1970, 81-2). O gênero portanto forma a camada de redundância
necessária para que o receptor tenha condições de receber e dar lugar a uma
certa obra. Este lugar por certo nada tem a ver com a intenção autoral — a
não ser quando se compõe uma obra de comportamento absolutamente pre­
visível, nem muito menos respeita leis que hipoteticamente a obra traria con­
sigo. A respeito, é oportuno lembrar a curiosa experiência relatada pela

2 8 5
LUI Z COSTA LIMA

antropóloga Laura Bohannan. Contando oralmente para uma comunidade


africana a história de Hamlet, logo de início ela é interrompida pelos anciãos
da tribo que não entendiam por que o filho ficara chocado com o casamento
da rainha viúva com Claudius. De acordo com as regras da comunidade, era
exatamente isso que deveria suceder. Outra vez a antropóloga será interrom­
pida ao falar do encontro com o fantasma do pai, pois o aparecimento de
um fantasma era sinal de um feitiço, o qual, este sim, deveria intrigar o jovem
príncipe. Em suma, o horizonte de expectativas da comunidade não podia
absorver a razão da peça inglesa e tantas foram as modificações introduzidas
pela intervenções interpretativas dos maiores da tribo que, ao fim de contas,
o seu Hamlet já nada teria a ver com a tragédia (Bohannan, L.: 1967, 43-
54). Ou, para oferecermos exemplo menos “exótico”, recordamos a observa­
ção seguinte: “(...) E possível que o Finnegans wake, ao se afastar radicalmente
das formas prevalecentes, se mostre inaceitável, até que subseqüentes imita­
ções mais diluídas forneçam ex post facto o tipo extrínseco faltoso” (Fowler,
A.: 1971, 93). Contra os valores de nossa sociedade individualista, a valori­
zação do receptor mostra como o puro sacrifício individual, desde que não
tenha uma mínima repercussão social, não passa de uma forma “nobre” de
suicídio.
Em vez, portanto, de tomar-se o gênero como uma entidade fechada, i. e.,
com um número determinado de traços, de que se pode ter consciência e a
partir dos quais são possíveis julgamentos de valor, o gênero apresenta uma
junção instável de marcas, nunca plenamente conscientes, que orientam a lei­
tura e a produção — sem que, entretanto, se presuma que as marcas orientadoras
sejam as mesmas. E pela impossibilidade de se definirem exaustivamente os
traços constitutivos de um gênero que Coseriu o toma como análogo das línguas
naturais: “A uma observação mais detalhada, os chamados gêneros literários
aparecem como análogos às línguas históricas. (...) E propriamente impossível
definir o romance, a tragédia como classes. Pode-se apenas descrever historica­
mente um certo romance, uma certa tragédia e pesquisar o seu desenvolvimento
histórico. O mesmo vale para as línguas históricas” (Coseriu, E.: 1971, 186-7).
O fato de os gêneros não serem assim formalizáveis, i. e., aptos a entrarem em
um modelo, não significa que devamos nos contentar com uma idéia nebulosa a
seu respeito. Seus perfis se apreendem pelo conhecimento das expectativas com
que são recebidos e/ou produzidos. E por ex. acentuável o papel que a expec­
tativa sobre o romance desempenha nas “recomendações” ao leitor feitas pelo
narrador machadiano, que, irônicas, dão a entender o desacordo entre o que

2 8 6
TEORIA DA LITERATURA E ÍV? S U A S FONTES — v/ O l . 1

o leitor esperava e o que Machado estava disposto a lhe oferecer. Do mesmo


modo, ea poesia brasileira mais recente, é importante notar que as referên­
cias negativas ao lirismo feitas por Cabral em seus próprios poemas indicam
o desacordo entre o que julga que o leitor esperaria de um “poeta” e o que
ele pretende oferecer. Considerando, em suma, o conjunto dos argumentos
aqui esboçados, podemos dizer que a questão dos gêneros, tal como reapa­
rece na teorização contemporânea, é Irreconhecível seja ante uma ótica
normativa, seja ante a crociana e estilística. “Aos autores e aos leitores dos
textos ficcionais são prê-dados esquemas de ação para a produção e para a
recepção textuais. Chamamos este esquemas de £convenções de gênero? e,
assim, compreendemos por gênero instituições de ação comunicativa reci­
procamente orientada” (Gumbrecht, H. U.: 1978, 33). Sem dúvida, esta
orientação apenas ainda se configura. Alguns dos resultados mais salientes se
encontram no ensaio de Karlheinz Stierle sobre Pleurs du mal, onde se mos­
tra que os poemas baudelairianos “dialogavam” com um gênero popular até
hoje pouco notado pelos historiadores, o gênero “tableau de Paris” (cf. Stierle,
JL: 1974, 285-322) e no capítulo IV do livro já citado de Hans Ulrich
Gumbrecht, Punktionen parlamentarischer Rheotorik in der Franzõsiscben
Révolution. Nele se discute uma questão fundamental para a teoria dos gê­
neros literários, a do discurso epidíctico.8 Como este não visa a ter um efeito
sobre o real, sem que por isso se torne ficcional, trata-se então de verificar
como ele alcança uma função social. Na impossibilidade de levar a cabo sua
discussão, limitemo-nos a transcrever o resultado da indagação: “O discurso
epidíctico fecha as aberturas, que lhe permitem evoluir, dos sistemas de senti­
do. A impressão que transmite de que seu lugar sistemático está entre os tex­
tos pragmáticos, dirigidos para a transformação do saber, e os ficcionais, que
não ocupam uma função institucional, nasce de que ele deva impedir a trans­
formação do saber e, desta maneira, a ação eventual. E exatamente esta
função que lhe assinala seu lugar no mundo do discurso” (Gumbrecht, H.
U.: 1978, 125). Sintomaticamente, a última frase da citação levanta o pro­
blema da função transistórica da formação discursiva analisada. Dizemo-la
sintomático porque ela parece anunciar que a indagação sociológica dos
gêneros poderá vir a retomar a questão dos universais. Mas como nenhum
analista é profeta, não podemos saber se e quando isso se realizará.

Rio, julho de 1981

28 7
Notas

1. Para maiores esclarecimentos, cf. Luiz Costa Lima, Mimesis e modernidade, cap. I,
Graal, Rio, 1980.
2. Ela se esboça de forma extremamente aguda na comunicação da Ulrich Schulz-
Buchhaus ao colóquio “The Discourse of the history of literature and language”
(Dubrovnik, 16-28 de março, 1981): “Benedetto Croce die Krise der Litera-
turgeschichte” in Der Diskurs der Literatur und Sprachhistorie, B. Carquiglini e H.
U. Gumbrecht (orgs.), Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1983, pp. 280-302.
3. Cf. especialmente o Carteggio Croce-Vossler, trad. argentina, Epistolario Croce-
Vossler, Guillermo Kraft, Buenos Aires, 1956.
4. Quanto aos formalistas, note-se desde logo que, como assinala W -D. Stempel, no
ensaio aqui incluído (cf. pp. 413 ss) a idéia de Croce sobre a poesia é criticada por
Vinogradov, em ensaio de 1925 (nota 25, p. XVI, no original). Quanto aos new
critics, é sabido que Spingarn exaltava o filósofo italiano em conferência de 1910,
publicada em 1917, curiosamente intitulada “The New Criticism”. Sua proposta
entretanto não se confundia com a efetiva realização posterior do new criticism
(cf. Walter Sutton, Modern american criticism, pág. 1, Prentice-Hall, Englewood
Cliffs, Nova Jersey, 163).
5. Cf. particularmente Northrop Frye in modern criticism, M. Krieger (org.), The
English Institute, Columbia University, Nova York, 1966, A. Fowler e P. Hernadi,
arts. cits., Hempfer, op. cit., espec. pp. 76-80.
6. Cf. Wolfgang Iser, Der Akt des Lesens, Fink Verlag, Munique, 1976, e a seção aqui
dedicada às estéticas da recepção e do efeito (vol. 2).
7. Coube a Richard Kuhns, in “Professor Frye’s criticism”, in The Journal ofphilosophy,
vol. LVI, n. 19, set. 1959, pp. 745-755, chamar a atenção para os equívocos oriun­
dos da falta de limite na comparação das atividades do matemático e do analista
da literatura. Embora nosso argumento seja independente, talvez não o tivésse­
mos pensado sem a iniciativa de Kuhns.
8. O discurso epidíctico constituía, ao lado dos discursos deliberativo e judicial, o
terceiro gênero do discurso, para Aristóteles (cf. Retórica I, 3 e II, 12). Caracteri­
zava-o ser próprio de uma situação de festa ou, a uma representação social, tendo
por função o elogio ou a censura. A distinção é retomada e retocada por Quintiliano,

288
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

porquanto, diz ele, todos eles são empregados tanto para tratar de “negócios”
quanto para “ostentar eloqüência” (negotia x ostentatio, cf. De Instit. orai., III, IV
14 ss). Ou seja, os traços distintivos dos três gêneros — respectivamente: aconse­
lhar ou desaconselhar (deliberativo), acusar ou defender (judicial), elogiar ou cen­
surar (epidíctico) — não marcam nitidamente suas fronteiras. Ora, se os dois
primeiros têm uma clara função pragmaticamente, o problema que Gumbrecht
supõe é qual a função do terceiro, o epidíctico, posto assim entre os discursos ni­
tidamente pragmáticos e o ficcional.

2 8 9
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292
B. A ESTILÍSTICA
CAPÍTULO 8 Sobre o lugar do estilo em algumas
teorias lingüísticas
NILS ERIK EN K VIST

Tradução do original inglês “On the place of style in some linguistic theories”, in Literary
style: a sym posium , ed. Seymour Chatm an, O xford University Press, Londres, 1971.
Não sei quantas pessoas levantariam objeções se se classificasse o estilo como
uma variante sistêmica da linguagem. Mas poucos, ao que presumo, dis­
cordariam da afirmação de que o estilo é um tipo de variação lingüística
sistemática.
Por mais simples e frágil que esta afirmação possa parecer, ainda as­
sim ela traz consigo uma série de corolários im portantes. Como uma ca­
tegoria de variação lingüística sistemática, o estilo é, e deve ser, um foco
da investigação lingüística (o que não significa dizer, evidentem ente, que
todos os demais, exceto o lingüista, dever-se-iam m anter afastados). De
início, todos os estudiosos da variação lingüística deveriam em preender
duas tarefas: a de descrever a linguagem variante, quer como um sistema
independente e auto-suficiente, quer como um subsistema derívável por
regras explícitas de algum sistema conhecido; e a de deixar claro quan­
do, onde e por quem esta variante em particular foi, ou é, usada.1 A de­
terminação destes parâmetros da variação lingüística envolve considerações
sociolingüísticas que não podem ser negligenciadas em qualquer estudo
completo das variedades da linguagem.
Além disso, como um estudo completo da linguagem deveria arcar com
o ônus de justificar os diferentes tipos de variação lingüística — dialetos
regionais, dialetos sociais, estilos, registros, idioletos •—■e distinguir, dentro
de cada um desses tipos, a variação sistemática e estruturalm ente signifi­
cativa da variação não-significativa ou aleatória, ela dificilmente poderia
deixar de oferecer estratégias quanto à hierarquização das variedades da
linguagem. Seria preciso ter à nossa disposição princípios que nos possi­
bilitassem distinguir que tipos e exemplos de variação se subordinam a
outros; noutras palavras, deveríamos saber quais deles constituem siste­
mas e quais são subsistemas. Tentei algumas vezes ilustrar este problema
pela comparação da linguagem com o conteúdo de um grande recipiente

2 9?
LU I Z C O S T A LIMA

ou tanque, do qual os textos emergissem através de uma sucessão de fil­


tros. Estes filtros impõem restrições à saída, representando deste modo o
lugar das regras. Alguns filtros são gramaticais: deixam passar as estrutu­
ras gramaticalmente bem construídas, prendendo outras mal formadas.
Outros são dialetais, e assim por diante. Tendo-se em conta um modelo
deste tipo, a questão das hierarquias pode ser traduzida em termos de
seleção e ordenam ento de filtros. Em que ordem entram os filtros? H á
filtros especiais de estilo que talvez mesmo formem uma seção estilística
especial do sistema de filtragem? Ou estariam os filtros estilísticos com­
primidos entre filtros de outros tipos — gramaticais, dialetais, idioletais,
e outros semelhantes? Ou deveria antes o estilo ser encarado como um
programa superior que dirigisse a seleção e o ordenam ento de filtros, mas
possuindo relativamente poucos ou talvez mesmo nenhum filtro que lhe
fosse próprio? Seria, assim, um dado estilo um subsistema de uma lingua­
gem, derivável daquela outra linguagem com a ajuda de um número limi­
tado de processos explícitos: a freqüência com que certas regras são
empregadas, e — para textos apresentando desvios — a omissão e a sus­
pensão de regras, mudanças na aplicabilidade (índice estrutural) destas,
alterações nas mudanças estruturais indicadas por elas, reordenam ento
de regras, e talvez soma de outras novas? Neste caso, os estilos descriti­
vos terão mais probabilidade de lucrar com os estudos recentes da
metodologia da sintaxe histórica,2 onde vem surgindo um aparato con­
ceituai para a descrição das mudanças de regras diacrônicas. M étodos
semelhantes podem muito bem se adequar à comparação de conjuntos de
regras inter-relacionados, ainda que diferentes, na descrição da variação
estilística.
Questões tão cruciais poderiam ser multiplicadas e reformuladas. Até que
ponto suas respostas podem variar de uma sociedade e de uma língua para
outra? Noutras palavras: se as variedades lingüísticas formam uma hierar­
quia, haverá um padrão universal desta hierarquia que se possa afirmar den­
tro de uma teoria geral da linguagem, ou estão estes temas de tal maneira
circunscritos a linguagens individuais e dialetos que as generalizações se tor­
nam sem sentido ou errôneas?
Tais questões podem embaraçar pessoas diferentes em graus extremamente
variáveis. Bem, a lingüística é, orgulhosa ou notoriamente, uma disciplina
teoricamente orientada. A maneira de qualquer cientista, o lingüista está
constantemente em busca de afirmativas gerais e potentes. O lingüista pro­

2 9 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

cura as estruturas subjacentes que expliquem aspectos de dialetos e de lin­


guagens integrais, ou mesmo os universais lingüísticos que caracterizem to­
das as linguagens. É possível que esta busca de afirmativas gerais afastem o
lingüista de detalhes de superfície em textos individuais, transformando-se
assim em motivo de irritação entre ele e seus colegas, especialistas em litera­
tura. Mas a necessidade de abstração não é, como algumas pessoas irritadas
tendem a pensar, um modismo elaborado por uma igrejinha de lingüistas
atuais. Pelo contrário, o princípio tem sido o mesmo através da história do
estudo da linguagem. Um modo excelente de abordar a história da lingüísti­
ca é verificar como estas categorias subjacentes foram procuradas desde Platão
até nossos dias. Contudo, generalizações como as que se seguem são, no
melhor dos casos, indicadoras das principais tendências, contendo entretan­
to muitas exceções: tal como hoje em dia, os hiatos de comunicação sempre
existiram, como, por exemplo, entre a pesquisa avançada e a prática didática.
Durante muitos séculos, o problema se assemelhava a um pêndulo que
oscilasse da filosofia e da lógica para as categorias da gramática latina, e de
novo para aquelas. Os gregos antigos baseavam sua gramática diretamente
na filosofia, enquanto os gregos posteriores e os romanos, como também seus
seguidores medievais, tendiam a se apoiar sobretudo nas distinções formais
realizadas na superfície da linguagem. Os escolásticos e os modistae remon­
tavam à lógica; as principais correntes da Renascença enfatizavam as formas
do latim. Diz-se que Scaliger, Sanctius, Descartes e os gramáticos de Port-
Royal marcaram outro retorno ao mentalismo. Quando se enfatizou a histó­
ria das línguas, as estruturas subjacentes foram freqüentemente definidas
através de estágios anteriores, atestados ou reconstruídos, da língua, como
mostram, por exemplo, todos os estudos dialetais que agrupam os sons do
inglês moderno sob os sons do inglês antigo ou médio. Em data mais recen­
te, os lingüistas aprenderam a agrupar a variedade surpreendente de sinais
de superfície em unidades funcionais como os fonemas e morfemas: todos
os aspectos que desempenham o mesmo papel pertencem à mesma classe. E
hoje, muitos lingüistas buscam representações semânticas profundas a partir
das quais se possam derivar as estruturas de superfície através de regras estri­
tas, explícitas e as mais econômicas possíveis. Contudo, por mais que tais
tentativas possam parecer diferentes, têm um denominador comum: a busca
de estruturas subjacentes. O que as torna diferentes é a orientação da busca
visando à lógica, à superfície do latim, à história lingüística, à função ou à
semântica profunda.

2 9 9
LUI Z COSTA LIMA

Em comparação e por contraste, o fílóiogo e o critico literário parecem


muito mais orientados para os dados e para o texto. Por definição, ambos
são presos ao texto: a tarefa do filólogo é o estudo da língua, do conteúdo e
da leitura textual de um corpo limitado de textos em uma língua estranha ou
antiga, enquanto a preocupação do crítico literário é correlacionar respostas
críticas com estímulos específicos que brotam de um texto ou de um corpo
de textos. Assim, os interesses dos filólogos e dos críticos literários facilmen­
te tendem a se tornar particulares, em vez de gerais; de modo mais acurado,
seus interesses quanto ao geral usualmente se subordinam ou são uma conse­
qüência de sua preocupação com o particular. Na esfera literária, precisa­
mos ir aos teóricos para encontrar um interesse na abstração que se compare
ao do lingüista.
Despendi alguns minutos com este assunto a fim de esboçar o quadro da
situação atual. Em suma, estilo e registro são tipos de variação lingüística
que os lingüistas tendem a negligenciar. Gastaram muito tempo e esforço com
os dialetos e o estudo dos estratos sociais em comunidades tais como as da
cidade de Nova York, que têm atraído grande parte do interesse atual. O tra­
balho de campo lingüístico também tem compelido o pesquisador a observa­
ções detalhadas de diferenças individuais e de aspectos paralingüísticos,
quando mais não seja para rejeitá-los como não-significativos para seu obje­
tivo particular e não merecedores de análises mais prolongadas e sistemáti­
cas. Mas por que a variação estilística desempenhou para o lingüista, com
tanta freqüência, e por tanto tempo, o papel de uma Gata Borralheira?
À primeira vista, a resposta deveria ser buscada em várias causas em lu­
gar de em uma única. Antes de tudo, o próprio conceito de “estilo” é noto­
riamente escorregadio e de difícil codificação em termos concretos que
permitam o estudo operacional. Em seguida, a estilística leva o lingüista a
campos nos quais ele hesita em penetrar. Se o estilo for definido como a área
estética ou emocional da linguagem, ou mesmo como um elo entre o texto e
a situação, o lingüista irá imediatamente deplorar a falta de classificações
firmes e universalmente aceitáveis das emoções, respostas estéticas ou situa­
ções de comunicação, sentido que tem pouco ou nada em que se basear.
Mesmo quanto aos dados estatísticos, o lingüista estaria se aventurando em
campos não muito pertinentes. E, quando estuda estilos escritos em línguas
com amplas tradições culturais, o lingüista deve atravessar outra perigosa
fronteira — aquela entre a lingüística e a literatura —, onde se expõe a obs­
táculos e a armadilhas. Finalmente, a assim chamada visão “orgânica” do estilo

3 0 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOl . 1

— a insistência na unidade inseparável do conteúdo ou significado e a forma


da superfície -— também pode ter tolhido os lingüistas na investigação do
estilo. Como já disse, o lingüista busca padrões subjacentes e pode muito bem
sentir-se desencorajado quando o organicista conservador lhe diz que a ver­
dade está na superfície e que a abstração não faz mais do que afastá-lo da
meta desejada.

11

Uma das formas de abordar a questão do lugar do estilo na teoria lingüística é


simplesmente observar as grandes teorias lingüísticas de hoje e descobrir quais
as suas implicações para o estudo do estilo. O problema aumenta porque pes­
soas diferentes entendem por “estilo” coisas distintas. O estilo de um homem
pode ser o registro de outro e mesmo o veneno de um terceiro. Daí não resul­
ta que aquelas teorias lingüísticas que parecem ignorar, a princípio, o estilo
sejam irrelevantes à estilística. De qualquer modo, se um tal levantamento fos­
se encetado em relação a alguns movimentos lingüísticos principais — diga­
mos, da gramática tradicional, da lingüística estruturalista-behaviorista, da
lingüística trans- formacional e da lingüística sistêmica inglesa —, suponho que
o seu resumo seria redigido do seguinte modo:
A gramática tradicional era suficientemente amorfa e flexível para en­
globar considerações estilísticas praticamente ad libitum. Com efeito, mui­
tas das regras das velhas gramáticas normativas eram, antes de mais nada,
estilísticas: defendiam a aplicação de uma seleção de usos que se considera­
vam adequados a uma série definida de situações e contextos. Eram manuais
de etiquetas lingüísticas aprovadas e, portanto, de estilo. E como a fronteira
entre gramática e retórica foi deixada em suspenso, as afirmações estilísticas
poderiam se insinuar livremente.
As gramáticas estruturalistas de tipo behaviorista se preocupavam usual­
mente com a parte mais superficial dentro da profundidade geral da lingüísti­
ca, com os fonemas, morfemas, padrões morfológicos e assim por diante.
Suas taxionomias dos padrões sintáticos nunca eram exaustivas. Contudo, a
ênfase nas categorias imanentes que emergiam de um texto e no trabalho de
campo tornou o estruturalista naturalmente pelo menos consciente da existên­
cia de estilos. Mesmo que a palavra “estilo” esteja evidentemente ausente do
clássico Language, de Bloomfield, muitos estruturalistas americanos falaram

30 1
LU I Z C O S T A LIMA

e escreveram sobre ela. Zellig Harrís, para citarmos um exemplo preeminente,


encontrou a chave para o estilo na distribuição: em elocuções isoladas ou
mesmo em discursos, o uso tende a ser consistente, de modo que estilos di­
ferentes não ocorrem concomitantemente.3 E a Bernard Bloch que devemos
a definição operacionalmente concreta, proveitosa e sugestiva do estilo de
um discurso com “a mensagem transmitida pelas distribuições de freqüência
e as probabilidades transicionais de seus traços lingüísticos, especialmente
quando diferem daquelas dos mesmos traços na linguagem como um todo”.4
O interesse de Kenneth Pike na linguagem como um subtipo do compor­
tamento humano o fez constituir um quadro behaviorista para todos os pa­
drões lingüísticos, incluindo o que eu chamo de estilo. The Five clocks,5 de
Martin Joos, ainda permanece uma leitura interessante, e Archibald Hill é
outro entre aqueles que escreveram extensiva e incisivamente sobre as abor­
dagens lingüísticas à literatura. Contudo, no estruturalismo behaviorista, o
estudo do estilo era em geral secundário e não uma busca central: o estilo
não fazia parte do cerne da teoria.
Na lingüística transformacional, a própria teoria básica também evitou
as discussões explícitas sobre estilo. Alguns transformacionalistas que negam
exemplos de variação como sendo estilísticos parecem fazê-lo para deixar
subentendido que a discussão do problema em maiores detalhes não lhes cabe,
mas sim a outros. Nem mesmo as considerações estatísticas, que foram tão
benéficas para a estilística, se acomodaram ao cerne da teoria transfor­
macional. Deve-se, entretanto, enfatizar imediatamente que isto não signifi­
ca que a gramática transformacional não seja pertinente para a estilística. Pelo
contrário, como Richard Ohmann e outros demonstraram, ela pode ser
empregada com grande vantagem na descrição estilo-lingüística e tem uma
série de potencialidades que apenas começamos a explorar. Deste modo, a
gramática transformacional é um modelo que poderá, em última análise,
produzir um inventário completo e ordenado de uma série amplamente
intrincada de escolhas sob o comando de um falante qualquer que deseje
expressar algo. Se o estilo é uma escolha, então a gramática transformacional
é, segundo presumo, o modelo gramatical que tem até agora organizado in­
tegralmente o sistema e o alcance desta escolha. Ao concretizar aspectos que
não aparecem realmente na superfície de um texto, a gramática transfor­
macional deve ser capaz de analisar figuras tais como a elipse, por exemplo,
com maior rigor. E as matrizes semânticas da recente gramática transfor­
macional podem contribuir para a definição e o estudo da metáfora, que tem

3 0 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

criado tantos obstáculos, até hoje, a tantos lingüistas. Na realidade, sinto-me


tentado a sugerir que um dos argumentos a favor da gramática trans­
formacional é sua aplicabilidade no estudo de uma série de problemas
estilísticos, mesmo que fosse destinada a propósitos estranhos ao estudo da
variação lingüística. Talvez também devesse acrescentar que é em oposição à
situação da lingüística gerativo-transformacional que meu modelo de lingua­
gem, como um tanque dotado de uma sucessão de filtros, assume sua com­
pleta significação.
Na lingüística britânica houve uma louvável preocupação com a inclu­
são do estilo na teoria lingüística, como poderíamos esperar de uma escola
que reconhece J. R. Firth como seu incentivador. Termos como “registro” e
“campo”, “modo” e “teor de discurso” têm dado uma precisão crescente ao
debate inglês. O trabalho inglês mais recente — especialmente as publica­
ções de Halliday sobre a transitividade e o tema6 — contém uma série de
pontos concretos e úteis para o analista do estilo.

III

Entretanto, um levantamento mecânico como este sobre o que os teóricos


lingüísticos fazem ou como operam com o estilo não deverá resolver todos
os problemas daqueles que desejem trabalhar com textos e não com teoria.
Seria bem mais adequado tentar descobrir como algumas escolas diferentes
de lingüistas têm respondido a alguns problemas concretos que assediam o
analista de estilos.
Para começar, o estudioso do estilo pode muito bem desejar reformular
as questões por nós colocadas, relativamente ao lugar do estilo na lingua­
gem, em termos mais centrados no estilo. Será este um nível hierárquico
separado da linguagem, implicando que a estilística seja a lingüística deste
nível particular, e, portanto, livre para fazer o que desejar, contanto que
não perturbe indevidamente os níveis vizinhos? A estilística consistirá tal­
vez de um conjunto de compartimentos separados, cada qual próprio a um
nível da linguagem? Ou será uma disciplina autônoma usando a lingüística
como auxiliar, como um servo que pode ser castigado à vontade? Tais ques­
tões reformulam, certamente, as que, pouco atrás, coloquei em termos de
filtros. E estas três visões têm tido seus advogados. Entre aqueles que têm
colocado a estilística como autônoma está o professor Galperin.7 Entre

3 0 3
LUI Z COSTA LIMA

aqueles que encontraram compartimentos estilísticos em todos os níveis da


linguagem está o professor Chatman, pelo menos enquanto opera com
conceitos tais como a fono-estilística, a morfoestilística, e a sintático-
estilística.8 Nestes quadros, a estilística se torna uma espécie de “lingüística
da oposição”, que, como um gabinete oposicionista, tem seus próprios
ministros para cada ministério. Se invertermos os papéis de governo e de
oposição, mudando a estilística para o governo oficial e a lingüística para
uma administração oposicionista, aproximamo-nos de uma estilística au­
tônom a que usaria a lingüística se precisasse dela. A analogia política tem
sido, com excessiva freqüência, até muito pertinente: como em qualquer
oposição, os lingüistas têm sido consultados apenas em caso de necessida­
de imediata.
Contudo, mesmo aqui, me refiro a abstrações. Para ser mais concreto,
mencionarei brevemente, como exemplos, dois problemas atuais e específi­
cos. Em primeiro lugar, que auxílio pode o estudioso de estilo conseguir da
lingüística quando discute textos com uma estrutura lingüística de desvio?
Em segundo lugar, que ajuda podem dar os lingüistas àqueles que desejam
analisar textos relacionados e atentar para unidades maiores que a sentença?
Escolhi formular os problemas do ponto de vista do estudioso do estilo de
um dado texto; é claro que este ponto de vista poderia ser permutado pelo
dos teóricos.

IV

Em primeiro lugar, portanto, o Problema do Desvio, familiar aos leitores de


publicações lingüísticas como o problema de A griefago (“Uma dor atrás”)
ou He danced bis did (“Ele dançou seu feito”).* Para introduzir uma versão
comum do problema — especificamente, a ligada ao desvio poético — cita­
rei Sol Saporta, na conferência Style in language:
“Ora, em teoria não faz sentido afirmar que os métodos lingüísticos po­
dem ser aplicados à poesia, uma vez que definimos poesia como uma
subclasse da linguagem. Entretanto, na prática, os lingüistas têm operado,
de um modo geral, precisamente com a afirmação oposta, a saber: uma

*0 autor se refere a exem plos de versos freqüentem ente repetidos na discussão lingüística da
questão do desvio na construção gramatical. (N . do Org.)

3 0 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

descrição gramatical não precisa se conciliar com mensagens poéticas. Real­


mente, na maioria das gramáticas, em geral se deixa implícito que basta a
ocorrência de apenas uma seqüência especial em poesia para fornecer base
suficiente para que seja classificada como ‘não-gramatical’ ou de alguma
forma marginal. O perigo da circularidade é óbvio. Como se sabe que esta
seqüência é não-gramatical? Porque ela ocorre apenas em poesia. Como se
sabe se isto é poesia? Porque onde mais seria possível encontrar uma se­
qüência tão pouco gramatical?”9
A formulação da Saporta foi influenciada aqui por seu interesse em defi­
nir a poesia por meios lingüísticos. O mesmo problema é importante no es­
tudo de todos os estilos que se caracterizam por um verdadeiro desvio (em
oposição a estilos marcados pelo uso mais ou menos freqüente de padrões
diferentes, mas sem desvio).
Na estilística behaviorista o Problema do Desvio foi de certa forma difí­
cil porque se aproximou muito do veio principal do método básico. O prin­
cípio prescrevia que um corpus ou texto devia ser descrito indutivamente
apenas em termos do próprio texto. Era proibido importar categorias de fora.
Bem, se Dylan Thomas e cummings são incluídos no corpus, sua gramática
*— inclusive em a griefago e em he danced his did — tornam-se parte da des­
crição, e portanto não constituem desvio. Se, pelo contrário, cummings e
Thomas são excluídos do corpus do inglês normal, sem desvio, e tratados
numa gramática à parte, esta gramática corre o risco de se tornar um todo
em si mesmo, sem um contato automático e solidamente definível com a
gramática dos textos sem desvios. Mas este raciocínio contraria nossa intui­
ção: frases como a griefago e he danced his did não têm eficácia devido à sua
estrutura como tal. Seu efeito se apoia precisamente no fato de registrarmos
e analisarmos seu desvio, comparando sua estrutura com a estrutura de fra­
ses sem desvio. Noutras palavras: elas pertencem a um subsistema, não a um
sistema do inglês.
Portanto, a comparação é necessária, se quisermos descrever a essência
das estruturas de desvio. Gostaria de acrescentar que a comparação é sem­
pre a essência de todo o estudo de estilo: o próprio conceito, a experiência
e a textura do estilo surgem através da comparação da estrutura do texto
que estudamos com a estrutura de outros textos. Isto ocorre sem levar em
conta se estes outros textos são enumerados explicitamente, se são lembra­
dos tacitamente ou se são fictícios, no sentido de terem sido criados na ima­
ginação de alguém.

3 05
LUIZ COSTA LIMA

Partindo-se do princípio de que a comparação é a base de todos os efei­


tos estilísticos, nossas próximas perguntas serão: ao estudar o desvio, o que
deverá ser comparado com quê e como? A definição mesma de desvio arti­
cula-se, é claro, com a definição operacional de linguagem bem constituída,
cotidiana, normal, gramatical, ou qualquer rótulo que lhe queiramos dar,
desdobrando assim o conhecido problema da gramaticalidade. Pelo menos
na prática, inúmeros gramáticos escaparam a este nó górdio definindo seu
corpus literário por métodos sociolingüísticos ou contextuais, estudando —
talvez por voto de maioria — a aceitabilidade de construções duvidosas,10
ou mesmo preferindo consultar a si mesmos e a mais ninguém como árbitros
decisivos do certo e do errado. A referência ao próprio idioleto é um meio
muito eficaz de evitar discussões sobre o uso! E assim que obtemos uma gra­
mática, também podemos definir o desvio, se concordarmos em analisar o
texto que apresenta desvio, não em termos imanentes de sua própria estru­
tura, mas em termos tais que permitam uma comparação detalhada com a
linguagem que não apresenta desvio.
A gramática transformacional é o modelo gramatical que mais tem ela­
borado o conceito de gramaticalidade e de boa constituição (well-formedness)
e que, portanto, mais elucida o problema do desvio. Tornou-se, efetivamen­
te, possível o reconhecimento de níveis de gramaticalidade e, portanto, de
desvio, ao descobrir em que profundidade de um processo gerativo uma dada
construção é desviante em relação à normal. Parece-me que este caminho
traz ao estudioso do desvio estilístico novas armas e os primeiros indícios de
resultados parecem realmente ser promissores. Também aqui podemos pros­
seguir de dois modos. Ou derivamos o texto com desvio de uma gramática já
existente da linguagem não-desviante, percebendo as regras que devem ser
mudadas no processo de derivação, ou escrevemos uma gramática nova e
completa para o texto desviante, comparando-a em seguida com a gramática
normal — sempre presumindo que as duas gramáticas são suficientemente
semelhantes para permitir esta comparação. Tais questões foram discutidas
por Samuel R. Levin, J. R. Thorne e outros, e não preciso aqui repetir quantos
esforços foram por eles despendidos.11 E, contudo, digno de nota que, se o
desvio gramatical é um artifício estilístico e se a linguagem de desvio é um
subsistema da linguagem de não-desvio, há a probabilidade de que o estilo se
transforme em um programa superior, a dirigir a escolha e a forma das re­
gras, em vez de se tomar um conjunto separado de regras, em um lugar espe­
cífico da série de regras gerativas.

3 0 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — ¥01. 1

A menos que alguém queira equiparar o desvio gramatical ao tipo de


desvio que deve sempre existir, já que um determinado estilo difere de ou­
tro, quero apontar mais uma distinção. O desvio gramatical — do tipo que
produz a g rie fa g o e he danced his did — representa realmente uma colcha de
retalhos a partir do sistema normal de regras. Esta colcha pode ser explicada
em termos de omissão ou suspensão de regras, mudanças de regras ou adi­
ção delas; já falei sobre isto em mais detalhes na primeira parte de meu tra­
balho. O desvio estilo-estatístico, por outro lado, envolve o uso de estoques
de regras acessíveis de não-desvio por meios específicos — por exemplo,
usando uma regra com muita freqüência e outra muito raramente ou nunca.
Presumo que este último tipo de desvio constitui uma característica de ubi­
qüidade de todos os estilos, enquanto apenas alguns deles — assim como
certos tipos de poesia — fazem uso da gramática de desvio. É outro proble­
ma saber com que extensão as definições de linguagem poética podem se
fundar no desvio, pois — infelizmente — nem toda linguagem de desvio
constitui poesia, assim como nem toda poesia constitui gramaticalmente um
desvio.

O estudioso do estilo que deseje descrever padrões de desvios deveria con­


sultar um lingüista, portanto. Mas em relação àqueles que não encontram
aspectos estilísticos apenas dentro de sentenças isoladas, mas no modo pelo
qual as sentenças se ligam em unidades maiores e no discurso? Que ajuda
podem encontrar na lingüística atual?
Para introduzir o que chamarei de Problema do Discurso, começarei com
um tipo de exemplo extremo:
“Vovó morreu ontem à noite. Eu almoçarei com ele amanhã. Mas é útil
como demonstração da tendência de Swift à irregularidade e como prova
suplementar de sua inclinação à redundância, mesmo inserindo enumerações
dentro de enumerações. Nesses debates foram considerados todos os meios
possíveis de que o Reino Unido era capaz para ajudar a trazer a paz».”
Mambo-jambo? Sim e não. Este pequeno fragmento consiste em uma
seqüência aleatória de sentenças, cada uma das quais está bem constituída
em si mesma. A maioria dos gramáticos passaria adiante, portanto, a respon­
sabilidade de dizer o que há de errado nesta seqüência de sentenças. Cada

3 0 7
LUI Z COSTA LIMA

uma delas — diria a maior parte deles — está correta, e aí termina a respon­
sabilidade do gramático. Mas então a quem cabe mostrar por que tais textos
constituem um desvio? Quem está melhor equipado para esta tarefa? Suge­
riria que ao menos parte desta responsabilidade deveria ficar com o estudio­
so de estilo.
De fato, e de um ângulo de certo modo diferente, os estudiosos de estilo
têm tido consciência do Problema do Discurso. Farei uma nova citação: “A
área da estilística é definida aqui como a das características que não podem
ser completamente elucidadas em uma única sentença, ou em sentenças se­
paradas sem se considerar as suas relações internas. A definição dada aqui se
baseia na convicção comumente aceita de que há uma área de estudo que
descreve temas dentro de sentenças, detendo-se nos limites da sentença. Esta
área pode ser chamada pelo termo de lingüística; a área maior do estudo da
linguagem que não é abarcada pelos limites da sentença é denominada aqui
a área da estilística.”12
“Sem se levar em conta as outras atribuições da crítica, esta deve inter­
pretar as obras literárias. A própria teoria em parte diz respeito à questão de
‘que coisas realmente interessam à interpretação crítica?’ Mas, fora de dúvi­
da, a interpretação começa pelas sentenças. Por mais complexa que seja a
apreensão de um crítico de toda a obra, esta compreensão se processa nor­
malmente, sentença por sentença (...). Eu diria ser no nível das sentenças que
a distinção entre forma e conteúdo se torna clara e que a intuição do estilo
tem seu equivalente formal (...). A análise adequada dos estilos resulta da
análise satisfatória das sentenças. Os problemas de retórica, tais como a ên­
fase e a ordem, também prometem se tornar mais claros à medida que com­
preendemos melhor as relações internas nas sentenças (,..).”13
Parece-me haver uma diferença genuína na ênfase, senão nos pontos de
vista mais básicos, entre o professor Hill e o professor Ohmann. Na verda­
de, ambas as citações são passíveis de discussão. A definição de estilística do
professor Hill como uma lingüística para além da sentença precisa ser
complementada em defesa de dois tipos de exemplos contrários. Em primei­
ro lugar, alguns assuntos de gramática, tais como a referência pronominal,
exigem que se vá além da sentença, sem serem, ao que eu saiba, estilísticos:
“My brother is eight. He/she/it goes to scbool every d a y ” (Meu irmão tem
oito anos. Ele/ela vai para a escola diariamente.) O tipo oposto de exemplo
contrário consiste em aspectos estilísticos que podem ser localizados dentro
de uma única sentença, sem um contexto ulterior. Certa vez ouvi um guia de

3 0 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

turismo brilhante dizer, grosso modo, o seguinte: “Peter the Great’s bold
venture was entirely successful, and his magnificent city, whose main drag the
Nevsky Prospekt you are now traversing, quickly realized Peterys ambitions o f
opening a window towards the W est”*
Aqui, a expressão main drag destaca-se dentro de sua própria sentença,
como sapatos marrons com gravata preta.
A ênfase do professor Ohmann na sentença como um portador de estilo
é, por certo, absolutamente correta: a estrutura da sentença é um aspecto
básico do estilo e o modo como as sentenças se ligam em um discurso coe­
rente pode ser, em última análise, descrito em termos de características den­
tro de sentenças. Até mesmo as pausas podem ser atribuídas a uma ou a outra
sentença. Continuo a me perguntar, contudo, se os fenômenos intersentenciais
do discurso não poderiam ser abordados como tal, desde o início. Seria real­
mente útil se possuíssemos um aparato para descrever indiretamente o modo
pelo qual as sentenças se interligam em unidades maiores, de modo que não
precisássemos realizar uma análise completa de cada sentença em nosso tex­
to e esperássemos que os aspectos intersentenciais emergissem deste labo­
rioso processo. Minha própria inclinação seria, portanto, realizar uma síntese
de Hill e Ohmann: um número amplo de aspectos estilísticos é, em última
análise, passível de ser descrito em termos de sentenças e comparações de
sentenças, mas muitos procedimentos intersentenciais também podem pos­
suir pertinência estilística e devem imediatamente ser indicados como tais.
A comparação de seqüências de sentenças aleatórias tais como a que citei
pouco atrás, com exemplificações de discurso coerente, sugere que a coe­
rência intersentencial se liga com um grande número de características que
se podem analisar e descrever em termos lingüísticos. Tais características
poderiam ser agrupadas, como hipótese, em três áreas principais: tópico, foco
e ligação. Sob tópico, colocaria aquelas características que pertencem ao as­
sunto principal da unidade discursiva, a coesão do vocabulário e o campo do
discurso. Por foco subentendo a escolha e a marcação de funções para pala­
vras e grupos de palavras em uma oração ou sentença; geralmente, os proce­
dimentos focais mais interessantes são os que marcam certos temas de modo
a ocuparem o centro da atenção ou estarem “em primeiro plano” (fore-

*“A mais audaz em presa de Pedro, o Grande, foi totalm ente bem -sucedida, e sua magnífica
cidade, cuja principal dragagem, o Nevsky Prospekt, vocês estão atravessando agora, realizou
rapidam ente as ambições de Pedro de abrir uma janela para o O cidente.” (N. da T.)

3 0 9
LUI Z COSTA LIMA

gmunded), para empregar um termo da Escola de Praga. O foco se manifesta


e o foco positivo é marcado através de um grande número de procedimentos
fonológicos, sintáticos e lexicais. Finalmente, por ligação entendo o uso da­
quelas expressões, conjunções, pronomes, exemplos de concordância e de
seqüência temporal etc. que formam a camada superficial das marcas for­
mais que ligam cada sentença a seu meio discursivo.
Se meu argumento estiver correto, com respeito ao Problema do Discur­
so, a estilística necessita do apoio de uma lingüística intersentencial capaz de
tratar de aspectos tais como os que classifiquei precariamente como tópico,
foco e ligação. De fato, a lingüística mais recente tem revelado um conside­
rável interesse não apenas pelo foco e a ligação, mas também, de modo mais
genérico, pelas pressuposições, que incluem não só questões de valor de ver­
dade como também a referência contextual e intersentencial. Resta pouca
dúvida quanto ao fato de que a lingüística do discurso deverá permanecer
conosco.
O aumento de interesse atual em uma “lingüística textual”, envolvendo
o estudo de unidades que ultrapassam a sentença, pode-se remontar a várias
origens. A gramática tradicional e a retórica tradicional são empregadas em
fenômenos como as espécies definida e indefinida, a referência pronominal
além das fronteiras da sentença, as conjunções assim como as adversativas,
cujo sinal de contraste ou surpresa só se torna claro através da referência
intersentencial, e a seqüência modal e temporal. De fato, a observação fre­
qüente de que a gramática supostamente apenas lidava com fenômenos den­
tro da sentença tem sido afirmada tanto no estudo da violação quanto no do
costume. Enquanto muitos gramáticos behavioristas tinham uma consciên­
cia aguda da necessidade de se trabalhar com um problema de cada vez e,
portanto, se cercavam de cuidados, o clima do estruturalismo behaviorista
ainda fomentava estudos como os de Kenneth Pike, Language in relation to
a unifield tbeory ofthe structure ofhum an behaviour, e como os trabalhos de
Zellig Harris sobre a análise do discurso, que aplicavam os critérios estrutu­
ralistas de função e distribuição a unidades que ultrapassam a sentença. Wilem
Mathesius de Praga, e seu seguidor, o professor Firbas de Brno, contribuí­
ram ao estudo da perspectiva funcional da sentença, constituindo por si
mesma um valioso integrante da análise do discurso. Os transformacionalistas
mostraram a necessidade dos aspectos intersentenciais na geração de senten­
ças até mesmo isoladas e dos simulacros ou elementos formativos, a fim de
se distinguir entre as coisas mencionadas e as coisas novas e de incorporar

3 1 0
>■ ;:

outros aspectos intersentenciais necessários em seus três diagramas. Podería­


mos ter melhores resultados com isto se a estrutura profunda se transfor­
masse em uma nova semântica profunda e se os problemas de pressuposição
continuassem ganhando interesse. No recente trabalho do professor Halliday
sobre transitividade e tema, por exemplo, o componente discursivo assume
sua posição correta em uma discussão integrada do inglês. Este estudo tem
probabilidades de abrir uma nova área de marcadores de estilo para a análise
qualitativa e quantitativa e aproximará a estilística do estudo da estrutura
literária, do desenvolvimento temático, e do ponto de vista, promovendo
assim contatos através de um hiato de comunicação.14 Isso tudo, portanto,
permanece como a tarefa da descrição da coerência intersentencial em ter­
mos de uma gramática de sentenças. A segunda alternativa implica a cons­
trução de uma gramática de discurso especial, que descreve explicitamente
ou gera unidades que ultrapassam a sentença — por exemplo, parágrafos
consistentes em muitas sentenças. A última solução é, evidentemente, muito
ambiciosa. Levanta imediatamente a questão de se as unidades gerativas
maiores que uma sentença fazem parte das atribuições da própria gramática,
ou de alguma outra área da lingüística, como a semântica, ou de uma nova
lógica ou retórica lingüística. Esta última estaria livre para lançar mão de ti­
pos de regras diferentes das gramaticais e seu rendimento de saída (output)
se transformaria em entrada (input) da parte estritamente gramatical da
máquina gerativa. O problema ganha ênfase no momento em que a estrutu­
ra profunda se identifica cada vez mais com, ou se transforma em, um gera­
dor semântico relacionado ao cálculo lógico dos predicados.
O significado estilístico da sentença como unidade e dos procedimentos
intersentenciais tem grande probabilidade de variar de um estilo para outro.
E bastante simples relembrar estilos nos quais a divisão de sentenças é pouco
clara ou ambígua. Se, por exemplo, um colecionador de contos folclóricos
se recorda de um texto como “... and then the girl entered her grandmother3s
house and then she saw her grandmother in bed with a shawl around her head
and then she went up to the old lady and then she said cHello!3 and then
grandmother sat up and th e n ..”* — podemos nos ver em dificuldade para
decidir se and then (e aí) marca os inícios de novas sentenças ou se toda a

e aí a m enina entrou na casa da sua avó? e aí ela viu sua avó na cam a com um xale em
volta da cabeça, e aí ela chegou perto da velhinha, e aí ela disse ‘O lá!’ e aí a avó sentou-se, e
aí...”. (N. da T.)
LUI Z COSTA LIMA

passagem consiste em uma sentença composta de muitas orações subordina­


das ligadas por parataxes e polissíndetos. Isto levanta uma advertência: em
textos em que a divisão de sentenças é ambígua, obviamente todas as medi­
das dos atributos da sentença, tais como o comprimento ou a complexidade,
dependerão da análise particular adotada.. Em outras palavras: há textos nos
quais as unidades mais significativas de análise não são, de modo algum, ne­
cessariamente sentenças, mas sim orações ou unidades de discurso. Estou to ­
mando o parágrafo como um exemplo de unidade de discurso significativo
em muitos tipos de textos. Repetindo: seria prudente questionar o significa­
do da sentença como base para qualquer análise estilística.

Vi

Em suma, meu argumento, de modo geral, se constitui da seguinte maneira:


embora uma teoria completa da linguagem devesse tratar explicitamente do
estilo, que é um tipo de variação lingüística sistemática, as teorias lingüísti­
cas atuais dificilmente poderiam oferecer uma teoria completa e explícita do
estilo e concomitantemente uma metodologia estilística uniforme para os
profissionais que desejem analisar e descrever os estilos de textos específi­
cos. Por outro lado, um número crescente de quadros e métodos lingüísticos
são acessíveis para um estudo de grande alcance de tipos específicos de pro­
blemas estilísticos. Mas, hoje, problemas diferentes são explicados de modo
diferente dentro de diferentes teorias lingüísticas. Por exemplo, o Problema
do Desvio parece, no momento, mais facilmente abordável através dos graus
de boa constituição dos transformacionalistas, enquanto o Problema do Dis­
curso tem sido até aqui considerado de forma mais pertinente pelos sistemas
de transitividade e, mais particularmente, de tema, do professor Halliday.
E claro que deveríamos continuar trabalhando e aspirando por teorias
lingüísticas completas que incorporassem também teorias completas de esti­
lo. Antes disso, contudo, muitas tarefas devem ser empreendidas. E minhas
perguntas finais num trabalho cheio de perguntas são: Não deveríamos defi­
nir como eclética a melhor abordagem atual para a descrição lingüística de
estilos? Não deveríamos encarar a estilística como um assunto livre para ti­
rar e escolher seus métodos lingüísticos de quaisquer procedências que pare­
çam mais promissoras? Mesmo se o estilo como tal ocupa um lugar muito
específico na hierarquia da variação lingüística, podemos legitimamente conti­

3 12
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

nuar a encarar a estilística como uma disciplina autônoma, ou pelo menos


eclética, até que seja mais vantajoso mudar de orientação. Mas a lingüística
é uma ciência em expansão que exige uma observância estrita e todos os que
se interessarem pelos estilos verbais não poderão, sem grave risco, ignorá-la.
Os estudos estilísticos estariam bem situados em um meio em que os estudiosos
da literatura e do estilo pudessem localizar os estímulos estilísticos em seus
textos, levá-los a um lingüista amigo e conseguissem explicitar novos qua­
dros para sua descrição lingüística, se os já existentes não podem ser obtidos
imediatamente. Se os resultados devem seguir o percurso formado pelo efei­
to estilístico até o estímulo textual, ou deste para aquele, é uma questão de
conveniência que não precisa refletir a ordem pela qual a obra foi concebida
e realizada.

Tradução
L u iz a L o b o

3 1 3
Notas

1. Omitirei aqui a questão de até que ponto um lingüista deveria se preocupar com os
efeitos do uso das variedades da linguagem.
2. Ver Paul Kiparsky, “Linguistic universais and linguistic change” in Emmoe Bach
and Robert T. Harms, eds., Universais in linguistic tbeory (Nova York, 1968).
3. Structural linguistics (Chicago, 1960), pp. 10-11. Sobre a ocorrência concomitante,
ver também Harris, “Co-occurence and transformation in linguistic structure”,
Language, 33 (1957), 283-340, também acessível em Jerry A. Fodor e Jerrold J.
Katz, The Structure of language (Englewood Cliffs, N. J., 1965), pp. 155-210.
4. In “Linguistic structure and linguistic analysis”, Archibald A. Hill, ed., Report on
the fourth annual round table meeting on linguistics and language teaching
(Washington, D. C., 1933), pp. 40 ss.
5. The Five clocks foi publicado pelo Indiana University Research Center in Anthro-
pology, folklore, and linguistics, publicação 22, 1962, e também como parte V do
International Journal of american linguistics, vol. 28 n.° 2.
6. In Journal o f linguistics, 3 (1967), 37^81 e 199-244; e 4 (1968), 179-216,
7. I. R. Galperin, “Javljaetsja li stilistika urovnem jazyka?” Abstracts of papers of the
Xth congress o f linguistics (Bucareste, 1967), p. 111, também na publicação do
congresso russo, Problemy jazykoznanija (Moscou, 1967), pp. 198-202. Cf. tam­
bém John Nist, “The Ontology of style”, Linguistics, 42 (1968), 44-47. A discus­
são torna-se mais complexa pelo fato de alguns lingüistas terem usado a palavra
“nível” (levei) para significar níveis ou sistemas não-hierárquicos.
8. In “Stylistics: quantitative and qualitative”, Style, 1 (1967), 29-43.
9. “The Application of linguistics to the study of poetic language”, in Style in language,
ed. Thomas A. Sebeok (Cambridge, Mass., 1960), p. 84. Ver também Archibald A,
Hill, “Some further thoughts on grammaticality and poetic language”, Style, 1
(1967), 81-91.
10, Sobre a aceitabilidade, ver Randolph Quirk e Jan Svartvik, Investigating linguistic
acceptability (The Hague, 1966), e Dale Elliott, Stanley Legum, and Sandra
Annear Thompson, “Syntatic variation as linguistic data”, in Robert I. Binnick
et al., eds., Papers from the fifth regional meeting ofthe Chicago linguistic society
(Chicago, 1969), pp. 52-59.

3 1 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

11. Samuel R. Levin, “Poetry and grammaticalness”, in Horace C. Lunt, ed., Proceedings
o f the ninth International congress o f linguistis (The Hague, 1964), pp. 308-15, e
J. P. Thorne, “Stylistics and generative grammars”, Journal o f linguistics, 1 (1965),
49-59. Uma vez terminado este trabalho, houve nova série de debates sobre o Pro­
blema do Desvio. Ver William O. Hendricks, “Three models for the description of
poetry Journal of linguistics, 5 (1969), 1-22; Roger Fowler, “On the interpretation
of nonsense strings”, ibid. 75-83; e J. P. Thorne, “Poetry, stylistics and imaginary
grammars”, ibid. 147-50,
12. “A programm for the définition of literature”, University ofTexas studies in literature
and language, 1 (1959), aqui citado a partir de Essays in literary analysis, ensaios
selecionados, de Hill (Austin, Texas, 1965), 69.
13. Richard Ohmann, “Literature as sentences”, College English, 1966, aqui citado a
partir da reedição em Seymour Chatman e Samuel R. Levin, eds,, Essays on the
language o f literature (Boston, 1967), pp. 232, 233 e 238.
14. Harris, “Discourse analysis”, Language, 23 (1952), 1-30, reedição in Fodor e Katz,
The structure o f language, pp. 355 ss.; e “Discourse analysis: a sample text”,
Language, 28 (1957), 474-94. Jan Firbas, “From comparative word-order studies”,
Brno studies in English, 4 (Praga, 1964), pp. 111-26, e “On the interplay of means
of functional sentence perspective”, Abstracts o f papers o f the Xth congress of
linguistics, pp. 94-95.
Uma introdução geral à abordagem intersentencial encontra-se em William O.
Hendricks, “On the notion ‘beyond the sentence’”, Linguistics, 37 (1967), 12-51,
que também trata das relações entre a lingüística intersentencial e a estrutura nar­
rativa. Muitos pontos pertinentes aparecem passim em vários volumes e trabalhos
de conferências recentes, publicadas ou não. Ver, por exemplo, Karel Hausenblas,
“On the characterization and classification of discourses”, Travaux linguistiques
dePrague, 1 (1966), 67-83: K. E. Heidolph, “Kontextbeziehungen zwischen Sátzen
in einer generativen Grammatik”, Kybernetik, 3 (1966), 97-109; B. Drubig, tese
de mestrado não publicada, “Kontextuelle Beziehungen zwischen Sátzen im
Englischen” (Kiel, 1967); Gerhard Nickel, “Some contextual relations between
sentences in english”, que constará da Acta o f the tenth international congress of
linguistic ocorrido em Bucareste em 1967; Ruqaiya Hasan, Grammatical cohesion
in spoken and written english (a primeira parte surgiu como artigo no n.° 7,
“Programme in linguistics and english teaching”, Londres: University College and
Longmans, Green and Co., 1968; a segunda parte será publicada nas mesmas sé*
ries); e a discussão entre Harald Weinrich e outros, publicada em Poética, 1 (1967),
pp. 109 ss. Muitos problemas pertinentes aparecem, implícita ou explicitamente,
em vários trabalhos sobre estilo-estatística, inclusive os de Gustav Herdan. Vários
trabalhos em andamento sobre gramática transformacional também se relacionam
aos problemas citados. Sobre a relação entre a análise intersentencial e a estrutura

315
LUIZ COSTA L I M A

literária, ver por exemplo Seymour Chatman, “New ways of analysing narrative
structure”, Language and style, 2 (1969), pp. 3-36. Outra relação existe entre foco
e ponto de vista; ver por exemplo John McH. Sinclair, “A Technique of stylistic
description”, Language and style, 1 (1968), especialmente pp. 223-24. Há bastan­
te possibilidade de as mudanças de ponto de vista poderem ser reformuladas em
parte como mudanças de foco, particularmente como foco do sujeito; cf. Alain
Renoir, “Point of view and design for terror”, Neupbilologiscbe Mitteilungen, 63
(1962), pp. 154-67, e Hakan Ringbom, Studies in the narrative technique ofBeowulf
and Lawman’s Brut, Acta Academiae Aboensis, A, vol. 36 n.° 2 (Abo, 1968). Uma
classificação de relações intersentenciais pode ser obtida na introdução de Louis
T. Milic a Stylists on style (Nova York, 1969).

3 1 6
CAPÍTULO 9 Táticas dos conjuntos semelhantes na
expressão literária
D Á M A SO ALO N SO

T raduzido de Seis calas en la expresión literaria espanola. Editorial G redos, M adri, 1956.

3 17
CONJUNTOS SEMELHANTES

A realidade física ou ultrafísica oferece, com muita freqüência, ao poeta (ou


seja, ao escritor) uma série de fenômenos semelhantes entre si. (No que se
segue,1 entendo por 'semelhança’ a vinculação a um mesmo gênero próxi­
mo.) Por exemplo (escolhendo um muito simples): aA fera (A1) corre (Bt)
pela terra (C^; a ave (A2) voa (B2) pelo ar (C2); o peixe (A3) nada (B3) pela
água (C3).” Dizemos que estes três fenômenos da realidade são semelhantes
entre si porque todos pertencem a um mesmo gênero próximo, ou seja: “O
animal (A) move-se (B) por seu elemento (C).” Chamamos conjunto à ex­
pressão lógica e gramatical de um fenômeno. Assim, a expressão dos três
fenômenos de nosso exemplo constitui uma série de três conjuntos, a saber:
A í B1 Cp A2 B2 C2; A3 B3 C3. Estes, por serem expressão de três fenômenos
semelhantes entre si, terão de ser semelhantes entre si: com efeito, são dife­
renças específicas de um mesmo gênero próximo (o conjunto ABC). Quan­
do vários conjuntos são rigorosamente semelhantes, por força, também hão
de ser semelhantes seus elementos homólogos. Isso eqüivale a dizer que A p
A2 e A3 são semelhantes entre si, pois são diferenças específicas de um mes­
mo gênero próximo A; Bp B2 e B3 o são enquanto espécies de um mesmo
gênero B; Cp C2 e C3, enquanto espécies de um gênero C. Em nosso exem­
plo, os conjuntos semelhantes foram três. Em geral, falaremos sempre de n
conjuntos (aos quais chamaremos, respectivamente, ‘conjunto 1’, ‘conjunto
2 ’, 'conjunto 3 ’ e assim sucessivamente até o último, a que chamaremos
‘conjunto rf).
Como se pode ordenar no poema — na expressão literária — uma série
de conjuntos semelhantes entre si? A Retórica, desde a Idade Média,2 desco­
briu e descreveu a seu modo um artificiosíssimo procedimento de ordenação,

3 1 9
LUI Z COSTA LIMA

de cujos nomes o mais generalizado foi o de 'correlação poética’. Vejamos


brevemente o que é um poema correlativo.3

CONJUNTOS EM ORDENAÇÃO CORRELATIVA

À frente da correlação, presidindo, pelo menos, sua tradução européia, en­


contra-se um famoso dístico latino, erradamente atribuído às vezes a Virgílio,
e na realidade, de época e autor incertos:

Pastor (At), a ra to r (A2), eques (A3), Pavi (Bt),


colui (B2), superavi (B3), capras (C^, rus (C2), hostes (C3),
fronde (D^, ligone (D2), manu (D3).

Caramuel, no século XVII, o traduziu em quatro versinhos castelhanos e


eu retoquei a tradução de Caramuel:

Pací (A,) cultivé (A2), venci (A3),


pastor (B,), labrador (b 2), soldado (b 3),
cabras (C,), campos (C2), enemigos (C3),
con hoja (D,), azadón (D2), y mano (D3).

Os três conjuntos (correspondentes a três fenômenos da realidade seme­


lhantes entre si), são P a d (A1), p a sto r (Bt), cabras (Ct) con hoja (Dt); c u ltivé
(A2), la brador (B2), cam p o s (C2) con a za d ó n (D2); ven c i (A3), so ld a d o (B3),
enemigos (C3) con (la) mano (D3).
Mas, em lugar desta ordem, na pequena copia espanhola4 encontramos a
seguinte:

A, a2 A3
B, B2 B3
c, C2 C3
D, D2 d3

Eis aqui um poema correlativo (assim chamado porque em cada linha


um elemento qualquer, por exemplo C2, é correlato dos demais elementos
de sua mesma coluna, a saber, A2 B2 e D2), Mas, às vezes, a estrutura de um

320
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

poema correlativo é muito mais complicada. Um poeta italiano, tão famoso


nos meados do século XVI quanto hoje obscuro, Domenico Veniero, fez
sonetos correlativos de endiabrada complicação. Como este, por exemplo:

N on punse (A^, arse (A2) o legò (A3), stral (Bl), fiamma (B2)
[o laccio (B3),
d 3Ámor giatnai si duro (Ct) e freddo (C2) e sciolto (C3)
cot; quanto7 wío, ferito (D^, acceso (D2) e9nvolto (D3),
misero pur ne Vamoroso impaccio.
Saldo (E^ e gelido (E2) piú che marmo e gbiaccio,
libero e franco (E3) i3non temeva, stolto,
piaga (Fj), incêndio (F2) o ritegno (F3): e pwr coito
/'tfrco (Gt) £ /'esoz (G2) e la rete (G3) in ch3io mi giaccio.
E trafitto (H^, distrutto (H2) e preso (H3) in modo
son, ch3altro cor non apre (Ia), avampa (I2) o cwge (I3)
dardo (J^), face (J2) o catena (J3) boggi si forte,
Nè fia, credo, ch3il sangue (Kt), il foco (K2), il nodo (K3)
che3l fianco allaga (Lt) e mi consuma (L2) e stringe (L3)
stagni (Mt), spenga (M2) o rallente (M3) altri che morte.5

Foi traduzido para o castelhano, provavelmente por Brocense:

N i flecha (At), llama (A2) o lazo (A3) de Cupido3


hirió (B^, quemó (B2) enlazó (B3), pecho más duro (C^,
frio (C2), suelto (C3) que el mio, cuando, puro,
herido (D^, ardido (D2) y preso (D3) se ha sentido.
Más firme (Ea), helado (E2) y libre (E3) ya se vido
que roca (F^, yelo (F2) y ave (F3), y bien seguro
de llaga (G^, incêndio (G2) o red (G3); mas ya este muro
con arco (H,), fuego (H2) y nudo (H3) está rendido.
Punzado (Ij), asado (I2) y preso (I3) ansí me siento,
que jara (J,), ni ascua (J2), ni cadena (J3) fuerte
no hiere (K,), inflama (K2), enreda (K3) amante alguno.
N i creo el golpe (L^), ardor (L2) y enlazamiento (L3)
que me trapasa (M,) y asa (M2) y liga (M3) en uno,
sane (N,), apague (N2) y desate (N3) otro que muerte.6

3 2 1
LUI Z C O S T A L I M A

Oferecemos um exemplo simples e outro complicado (porque extenso)


de correlação contínua; ou seja, que afeta a todo o corpo do poema. Mas a
correlação pode ser, às vezes, muito descontínua. Como neste soneto de
Góngora (no qual o leitor reconhecerá o tema fiera-ave-pez que antes nos
serviu para explicar a semelhança de conjuntos). Ressalto em cursivo os úni­
cos versos que trazem correlação:

Ni en este monte (At), este aire (A2), ni este rio (A3)


corre fiera (B^, vuela ave (B2), pece nada (B3),
de quién con atención no sea escuchada
la triste voz dei triste llanto mio;
y aunque en la fuerza sea dei estío
al viento mi querella encomendada,
cuando a cada cual de ellos más le agrada
fresca cueva (Ct), árbol verde (C2), arroyo frio (C3),
a compasión movidos de mi llanto
dejan la sombra (Da), el ramo (D2) y la hondura (D3),
cual ya por escuchar el dulce canto
de aquel que, de Strimón en la espesura,
los suspendia cien mil veces. /tanto
puede mi mal y pudo su dulzura!

Com o soneto de Veniero estávamos em um mundo de fria e extravagan­


te artificiosidade; com o de Góngora -— apesar da correlação — nos senti­
mos em uma região de arte e poesia.

FÓRMULA GERAL DO POEMA CORRELATIVO

A expressão mais geral das relações que se estabelecem em um poema


correlativo pode-se condensar na seguinte fórmula:

A, A2 a3 ....... An
B, B2 b3 ... Bn
c, C2 C3 ....... c„

P, Pa P3 ... ... P„

3 2 2
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

Chamamos ‘pluralidade de correlação’ (ou simplesmente ‘pluralidade’)


cada linha horizontal desta fórmula. Por exemplo: Bp B2, B3 ...... Bn é a se­
gunda pluralidade de correlação. A pluralidade que mais claramente permi­
te ver a relação entre os termos 1, 2, 3 ...... n a chamamos ‘pluralidade
básica’ ou ‘base’. Na tradução de Caramuel, a base é pastor-labrador-solda-
do; no soneto de Veniero, flecha-llama-lazo; no de Góngora, fiera-ave-pece.
A designa o conteúdo conceituai genérico da primeira pluralidade; B, o da
segunda; C, o da terceira;......P, o da última. O número de pluralidade é,
portanto, indeterminado. Quanto a n, ele designa o número de conjuntos
semelhantes; se são apenas dois, o poema será ‘bimembre’; se três, ‘trimembre’
etc. Os subíndices (1, 2, 3 ......n) indicam, pois, a modificação específica do
conceito genérico correspondente à esfera ideológica de cada um dos con­
juntos, desde 1 até n. Por exemplo, C4 designará o conteúdo conceituai ge­
nérico da terceira pluralidade com a modificação específica correspondente
à esfera ideológica do conjunto 4.7
A fórmula geral que acabamos de estabelecer é o que permite reconhecer
a vinculação a um mesmo sistema de uma enorme quantidade de fatos esté­
ticos que, de outro modo, nos pareceriam totalmente diferentes.
Em geral, A será diferente de B e este, de C, etc. Ou seja, em geral, os con­
teúdos conceituais das diferentes pluralidades serão diferentes. E o que pode­
mos considerar como caso normal. A correlação que preenche estas condições
(como nos dois exemplos até agora citados) chamamos ‘progressiva’.

UM TIPO ESPECIAL: A CORRELAÇÃO REITERATIVA

Mas nem sempre a correlação é progressiva. Imaginemos um poema sujeito à


fórmula geral, em que suceda que A = B = C ... = P (ou seja, que nele todas
as pluralidades tenham o mesmo conteúdo conceituai).
A fórmula geral se transformou então nesta outra (que não passa de um
caso especial da primeira):

A, a2 a3 ... A11
A, a2 a3 ... Ail
A, A2 A3 ... ... A,

Ai A2 A3

3 2 3
LUIZ COSTA LIMA

Esta fórmula, também de indeterminado número de pluralidades e de


indeterminado número de membros por pluralidade, cobre todos os poemas
que chamaremos de ‘correlação reiterativa5, ou mais brevemente, ‘reite-
rativos5.
Á poesia — e concretamente a espanhola — nos oferece, com efeito, abun­
dantes exemplos de correlação reiterativa. Eis aqui um soneto de Luis Martin
de la Plaza (ponho em cursivo as palavras que trazem a correlação reiterativa
trimembre e as coloco entre colchetes em duas ocasiões em que estão clara­
mente mentadas, embora não expressamente mencionadas):

Veo, senora3 al son de mi instrumento,


cuando entona mi voz tu nombre santo,
parar los rios a escucbar mi canto,
correr los montes y callar el viento.
Y, luego, su publico mi tormento,
huir los rios con temor y espanto,
y ser los montes sordos a mi llanto,
y el viento murmurar dei triste acento.
Y es porque haces sus arenas [de los rios] de oro,
traes a los montes um verano eterno,
y das olor al viento que te toca.
Yo deshago, llorando, su tesouro [de los rios],
traigo a los montes un helado invierno
y doy al viento el fuego de mi boca.

As pluralidades de correlação reiterativa são quatro: uma em cada um


dos quartetos e uma em cada um dos tercetos. As quatro pluralidades têm,
exatamente, o mesmo conteúdo conceituai: ríos-montes-vientos.8A fórmula
deste soneto seria pois:

A, a2
a2
A,
A] a2 A,

3 2 4
TEORIA DA LITERATURA EM S U A S FONTES — VOL. 1

OUTRO TIPO ESPECIAL


HIBRIDISMO PROGRESSIVO-REITERATIVO

Muito mais freqüente que este caso particular (correlação totalmente reiterativa)
é outro no qual não todas, mas sim apenas algumas pluralidades são iguais entre
si. Ou seja, em poemas desta classe há pluralidades que são ‘progressivas’ e ou­
tras que são ‘reiterativas’: surge, pois, neles como uma mistura do caso geral (‘cor­
relação progressiva’) e do particular que acabamos de explicar (‘correlação
reiterativa’). Chamamos os poemas deste tipo ‘mistos ou híbridos de progressão
e reiteração’. Estude-se este soneto bimembre de Pedro Espinosa:

El Sol (At) a noble furia se provoca


cuando sin luz lo dejas descontento,
y por gozarte enfrena el movimiento
el aura (A2) que de gloria se retoca.
Tus bellos ojos (Bt) y tu dulce boca (B2)
de luz (C^ divina u de oloroso aliento (C2)
envidia el claro Sol (A^ y adora el viento (A2),
por lo que el uno ve (D.,) y el otro toca (D2).
Ojos (B^, y boca (B2), que tenéis costumbre
de darme vida, honraos con más despojos;
mi ardiente amor vuestra piedad invoca.
Fáltame aliento (E2) y fáltame la lumbre (Et).
iPréstadme vuestra luz (C^, divinos ojos!
IBeba yo vuestro aliento (C2), dulce boca!9

A análise pode mudar algo segundo os critérios.10 Tal como registramos


no texto do próprio soneto, a fórmula é a seguinte:

A, a2
B2
c, C2
A, A2
D,
** B2
Et E2
c, C2

3 2 5
LUI Z COSTA LIMA

De suas oito pluralidades, cinco são progressivas (AB C D E); uma reite­
ra A; outra, B e outra, C. Este tipo híbrido aparece com grande freqüência
em todas as literaturas em que existem poemas correlativos de muitas
pluralidades (como a espanhola, a francesa, a italiana etc.).11

UM SUBTIPO: DiSSEMINATIVO-RECOLETIVO

Voltemos, porém, os olhos à pura correlação reiterativa. Partamos da fór­


mula do poema reiterativo, já acima consignada:

A, A2 a3 ....... A
A, A* a3 ... AI
A, a2 A3 ... Ai
At a3 ... AI

A 1 A 2 A 3 ....... A n

Nela, como dissemos, o número de pluralidade é indeterminado. Segun­


do isso, consideremos o caso em que em um poema deste tipo as pluralidades
sejam apenas duas: a dita fórmula (aplicada agora a este caso especial) ficará
transformada nesta outra:

Át A2 A3 ...... An
At A2 A3 ...... An

Com freqüência incrível e portentosamente grande, a literatura espa­


nhola oferece poemas que se ajustam a este esquema reiterativo em duas
pluralidades. Um exemplo, quatrimembre, de Lope de Vega:

Echado en este suelo, ioh luces bellas,


cuya piedad en mi medio invoco!>
con los suspiros de m í alma os toco,
que os igualan también en ser centellas.
iOh Bocina, famosa lumbre entre ellas,
y tú3 Lucero, que no amaste poco,

3 2 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES

si estrella eres de Venus, yo soy loco,


que a media noche cuento las estrellas!
iOh Carro celebrado! iOh lumbres puras!
iOh Norte hermoso, que en el alta corte
dei cielo estuvo, donde estáis segura!
De mi estrella la luz al sol importe;
ante su claridad serán oscuras3
la Bocina, el Lucero, el Carro, el N orte.12

(....)

Não há tipo mais fértil em nossa literatura; aos montões (do mesmo
modo que em sonetos, em canções, romances etc.) no-lo oferece Lope de
Vega, e conhecidíssimo do público é este tipo, em infinitas florescências líri­
cas do teatro de Calderón (monólogo de Sigismundo etc.) De seus muitos
subtipos não me posso ocupar agora. Sempre se ajusta à fórmula:

A, Ai ^ ... A,
Ai ^2 Aj ..... An

Mas sucede ser característico deste tipo que a primeira pluralidade esteja
“disseminada” ao largo de todo o poema ou de parte dele, e a segunda reu­
nida (“recoletada”) pelo final da composição, às vezes em um único verso.13
E este o tipo que chamamos "disseminativo-recoletivo’.

ORDENAÇÃO PARATÁT1CA E ORDENAÇÃO H1POTÁTICA

Voltemos agora a nossa fórmula geral (entendendo-a, porém, em sua moda­


lidade progressiva):

a2 a3 ... An
B, B2 B3 - Bil
C2 c3 ... Cll

P
11
P2 P
13

327
LUI Z COSTA LIMA

Se consideramos agora, de um ponto de vista gramatical, a relação mú­


tua entre os elementos de uma mesma linha, veremos que consiste em serem
eles todos membros de um mesmo sintagma não progressivo; chamamos
esta relação de ‘paratática’.
Mas a fórmula geral pode-se ler também, não no sentido de suas linhas,
como ocorre nos poemas correlativos (e como temos feito neste artigo desde
que a formulamos), mas sim no de suas colunas. Que relação mútua existe entre
os membros de uma mesma coluna? Simplesmente, a de pertencerem todos a
um mesmo sintagma progressivo:14 a esta relação chamamos ‘hipotética5.15

Na tradução já citada,

Pací, cultivé, venci


pastor; labrador.; soldado3
cabras, campos, enemigos,
con boja, azadón y mano.

os membros de uma linha (de uma pluralidade), por exemplo, “cabras, cam­
pos, enemigos”, estão mutuamente em relação paratática. Mas se lemos por
colunas, de cima para baixo (ou seja, “Pací, pastor, cabras, con hoja; cultivé,
labrador, campos [con] azadón; venci, soldado, enemigos [con la] mano”),
restabelecemos a ordem natural dos três conjuntos semelhantes. Pois bem,
dizemos que os membros de cada conjunto (ou, o que é o mesmo, de cada
coluna de nossa fórmula) estão entre si em relação hipotática.
A ordenação paratática de vários conjuntos semelhantes nos dá, como
vimos, o poema correlativo. Mas será que não existe em literatura a ordena­
ção hipotática de conjuntos semelhantes?
Sim, existe, e seu resultado é o poema paralelístico.

CONJUNTOS EM ORDENAÇÃO HIPOTÁTICA OU PARALELÍSTfCA

Na beatificación de san isidro,16 há uma pequena copia correlativa de três


pluralidades trimembres de correlação progressiva, ou seja:

A, A, A3
B, b2 B3
c, c2 C3

3 2 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

É a seguinte (fala Isidro):

Labré, cultivé, cogi


con piedad, con fe, con ceio,
tierras, virtudes y cielo.

Este poeminha poderia ser desenvolvido em ordenação hipotática (sen­


tido das colunas), até se as lemos de baixo para cima, sem perder a estrutura
octossilábica:17

Tierras (Ct) con piedad (B2) labré (At)


virtud (C2) con fe (B2) cultivé (A2)
cielo (C3) con ceio (B3) cogt (A3).

Assim modificado, é um simples exemplo de poema paralelístico.


E chamamos a estes poemas ‘paralelísticos5 porque, em primeiro lugar,
dentro de duas definições entram totalmente as formas chamadas ‘par ale-
lísticas5 na tradição hispânica (tanto ea castelhana quanto na portuguesa):

Madres un caballero (At)


que estaba en este corro (Bt)
a cada vuelta
hacíame dei o/o (Ct)
Yo como era bonica
teníaselo en poco (Dt),
Madre, un escudem (A2)
que estaba en esta huella (B2)
a cada vuelta
asíame de la manga (C2),
Yo como era bonica
teníaselo en nada (D2).18

Ou seja:19

A, a2
B,
c, C2
Di \ / D2 v

329
LUIZ COSTA LIMA

Mas se há de levar em conta que no paralelismo popular, em geral, as


diferenças entre os membros 1 e os membros 2 não são conceituais, mas sim
meramente fonéticas. Com efeito, “hacíame dei ojo (C ^” vale, de um ponto
de vista conceituai, aproximadamente o mesmo que “asíame de la manga
(C2)” e “teníaselo en poco (Dt)”, o mesmo que “teníaselo en nada (D2)”. Se
compararmos com a pequena copia de “Pací, cultivé, venci”, vemos que aí os
elementos do primeiro conjunto (primeira coluna) vinculam-se ao mundo
pastoril; os do segundo, ao agrícola; os do terceiro, ao militar. Já na canção
de Castillejo (ou por ele recolhida), os elementos do conjunto 1 só têm de
signo específico sua participação comum na assonância ó-o frente à assonância
á-a caracterizadora do conjunto 2.
Remontando-nos mais, teríamos de reconhecer que o paralelismo, so­
bretudo o binário, é um procedimento freqüente desde a origem de toda a
literatura. (...)
O paralelismo também serve para expressar, com perfeita correspondência,
um complicado fenômeno da realidade e uma rebuscada imagem que a ele se vai
amoldando, elemento a elemento. E prática bem conhecida da poesia árabe:

As rosas (At) se espalharam no rio (Bt) e os ventos (Cj)


ao passarem as escalonaram (Dt) com seu sopro,
como se o rio fosse a couraça (B2) de um herói, desgarrada pela
lança (C2) e na qual mana o sangue (A2) das feridas (D2).20

Também na Divina commedia:

Si come i peregrin pensosi (A^ fanno


giugnendo (B^ per cammin gente (Ct) non nota
che si volgono (Dt) ad essa e non restanno (Et),
cosi di retro a noi (C2) piü tosto mota,
venendo (B2) e trapassando (E2) ci ammirava (D2)
d ’anime turba tacita e devota (A2).21

D esta tradição , m uito passa à imagem prolongada dos poem as


renascentistas. Mas estes paralelismos, tanto o árabe como o de Dante, são
sempre binários (realidade = imagem).
Por que teríamos de nos restringir a chamar ‘paralelismo’ ao desenvolvi­
mento hipotático de apenas dois conjuntos semelhantes? Naturalmente, em

3 3 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

estética, a dualidade é a mais freqüente das pluralidades (porque nosso cére­


bro percebe com muito menor esforço as relações binárias). Também quan­
do pensamos em paralelas geométricas costumamos antes de tudo imaginar
apenas duas linhas que seguem “como os trilhos do trem ”. Mas as linhas
paralelas entre si podem, na realidade, ser cinco, ou vinte e sete, ou trezen­
tas... Do mesmo modo, o número de conjuntos semelhantes que podem ser
desenvolvidos paralelamente é indefinido. Ao lado do paralelismo binário
(sem dúvida, o mais freqüente) existe o ternário, o quaternário etc., tanto na
poesia culta quanto na poesia popular da maior parte dos povos.22
Considere-se esta belíssima canção de Gil Vicente23 (omito o estribilho):

Digas tú el marinero (Aa)


que en las naves vivías (Bt)
si la nave o la vela o la estrella (C2)
es tan bella.
Digas tú el caballero (A2)
que las armas vestías (B2)
si el caballo o las armas o la guerra (C2)
es tan bella.
Digas tú el pastorcico (A3)
que el ganadico guardas (B3)
si el ganado o las valles o la sierra (C3)
es tan bella.14

Ou seja:

A2 a3
b2
\, C3 V

O que vale dizer: trata-se de três conjuntos semelhantes, de três elemen­


tos cada um, dispostos em ordenação hipotática (paralelismo ternário). Esta
canção de Gil Vicente é um perfeito exemplo de poema paralelístico. Note-
se, porque é curioso: parece um desenvolvimento em sentido hipotático da
mesma base (as três atividades do homem) que em sentido paratático desenvol­
ve o famoso dístico “Pastor, arator, eques”. Mas o lavrador (arator) foi subs­
tituído... por quem? Por quem havia de ser em Portugal? Pelo “marinheiro”.

3 3 1
LUI Z COSTA LIMA

Teríamos de explorar cuidadosamente a literatura contemporânea. Uma


boa parte das Canciones de Federico Garcia Lorca tem estrutura paralelística
(binária como corresponde à sua provável relação com os antigos cancionei­
ros). O século XIX pode revelar insuspeitados conteúdos em poesia para­
lelística. E o que fazem entrever os descobrimentos de Carlos Bousono na
poesia de Bécquer.25

CORRELAÇÃO E PARALELISMO

Correlação e paralelismo são, portanto, as duas táticas (isto é, ordenações)


fundamentais que a elocução pode seguir para expressar uma série de n con­
juntos semelhantes.
A ordenação mais simples, a mais natural e imediata, é a hipotática ou
paralelística (A, B, C, .... P,); (A2 B2 C , .... P2); (A3 B3 C3 .... P3); ....; (A, Bn
Cn .... Pn), pois apresenta os fenômenos em sucessão (conjunto do fenôme­
no 1; conjunto do fenômeno 2; conjunto do fenômeno 3...; conjunto do
fenômeno ri), mostrando-os tal como a natureza, a história, a fantasia etc.
os pode oferecer (por ex.: “pací, pastor, cabras con boja-, cultivé, labrador,
campos con azadón; venci, soldado, enemigos con la m a n o ”). A ordenação
paratática ou correlativa, em troca, extrai, por assim dizer, os elementos
genéricos comuns a todas as partes de todos os conjuntos da série, agru­
pando as partes homólogas: A, em sua multiplicidade (Á t A2 A3 ... An); de­
pois B, em sua multiplicidade (B1B2 B3... Bn); depois C, em sua multiplicidade
(C1 C2 C3... Cn) etc.; enfim, P, em sua multiplicidade (Pa P2 P3 ... Pn). A série
já em sua expressão não aparece como uma sucessão de conjuntos, mas sim
como um conjunto único, do qual cada elemento tem uma natureza plu-
rimembre.
A ordenação hipotática ou paralelística é mais sensorial, como reflexo
não modificado de sucessões fenomênicas físicas ou ultrafísicas (não nos es­
tranha que certos tipos de paralelismo se dêem aqui e ali na poesia popular).
A ordenação paratática ou correlativa, em troca, tem um forte caráter inte­
lectual enquanto representa uma análise de fenômenos, uma ordenação do
mundo por suas categorias genéricas. E uma arte de momentos complexos e
refinados.

3 3 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL* 1

FORMAS HÍBRIDAS DE CORRELAÇÃO E PARALELISMO

Ocorre que, freqüentemente, vários conjuntos semelhantes são expressos por


uma ordenação mista de hipotaxe e parataxe. Em muitas ocasiões, a ordena­
ção hipotática precede a paratática, e os mesmos elementos, desenvolvidos
primeiro paralelisticamente, se recolhem no final em ordem correlativa. Neste
caso, a fórmula pode ser esta:

A ^C , ...p, a 2b 2c 2 ...P2 A 3 B 3 C 3 ...P3 ...AnB C11 1

A, A2 A3 A tl

Bi B2 b3 Bn
Ci C2 c3 C 11

P
1 1
P2 P3 Pn

Na realidade, todo o poema é correlativo; mas uma das pluralidades (na


fórmula que antecede, a primeira) tem seus membros formados por n con­
juntos semelhantes; ou seja, uma das pluralidades contém um desenvolvi­
mento paralelístico.
Estude-se a seguinte ampliação lírica em uma cena de Calderón:

Yo misma (iay de mí!) encendí (At)


el fuego (Bt) en que triste peno (Ct);
yo conficioné (A2) el veneno (B2)
que yo misma me bebi (C2);
yo misma desperté (A3), yo,
la fiera (B3) que me há deshecho (C3);
yo crié (A4) dentro dei pecho
el áspid (B4) que me mordió (C4).
Arda (C^, gima (C2), pene (C4), muera (C3)
quien sopló (At), conficionó (A2),
alimento (A4), desperto (A3),
Veneno (B2), ardor (B^, áspid (B4), fiera (B3).26

3 3 3
LUI Z COSTA LIMA

Ou seja:

A,B,Ct A2B2C2
c, c2
A1 A2
Bt B2

A pluralidade básica é fuego-veneno-fiera-áspid. Aqui, como quase


sempre em Calderón, a reiteração, às vezes, é só aproxim adam ente27
conceituai e não exatamente verbal. Ademais, a pluralidade de C, na rei­
teração (arda, gima, pene, muera), não mostra claramente as diferenças
específicas: se arda corresponde a encendí (conjunto 1), em troca, gima,
pene e muera não ficam bem determinados entre os conjuntos 2, 3 e 4.
Não cabe dúvida, porém, de que, intencionalmente (e também por sua
eficácia sobre o ouvinte do teatro), a passagem corresponde totalm ente à
fórmula transcrita.
Mas é necessário saber que há muitas variedades híbridas de parale­
lismo e correlação que não se ajustam à formulação que demos. No exem­
plo seguinte, a parte hipotática vem depois da paratática. O utra variação
que oferece, com entá-la-em os em seguida. E um soneto à Virgem de
M onteagudo:28

Selva (A^, viento (A2), corriente (A3), que jüeces


os mereció en mi mal el llanto mío;
verde calle (B^, luz tierna (B2), cristal frio (B3)
que a Feho (Ct), a amor (C2), a Diana (C3) gloria ofreces.
y a mi canto respondes dulces veces;
ancha selva (D^, aire fresco (D2), claro rio (D3),
de alta sombra (Et), luz nueva (E2), alegre brio (E3),
de animales (Ft), de pájaros (F2), de peces (F3):
Sin temor que a las lágrimas me vuelva,
vino mi amor, y en ella mi contento,
Virgen dei Norte, a quien el alma envio.
Las flores (Gt) tienes de sus labios (H^, selva (At);
la luz (G2) ganaste de sus ojos (H2), viento (A2);
el oro (G3) debes a su frente (H3), rio (A3).29

33 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

Fórmula:

a2 A3
** b2 Bs
c, C2 C3
D, D2 d3
E, E2 E3
F, F2 F3
G .H .A , g 2h 2a 2 g 3h 3a 3

Observe-se que, na breve parte paralelística com que termina, só os ele­


mentos A são reiteração de uma pluralidade da parte paratática.
Seria inútil querer agora apresentar aqui sequer um breve mostruário da
infinita variedade com que, na prática, podem-se matizar as formas híbridas
de correlação e paralelismo.
Estes híbridos eram interessantes porque eles mesmos confirmam a teo­
ria unitária do presente trabalho.

FINAL

Não teremos uma visão clara nem da correlação nem do paralelismo se


não partirmos da noção de conjuntos semelhantes. Uma vez, contudo, que
ganhamos este conhecimento, tudo se aclara unitariam ente e uma imensa
zona da expressão literária fica articulada como um perfeito sistema cien­
tífico.
Desde a mais remota Antigüidade, muito antes de Teócrito, quando os
autênticos pastores cantavam alternadamente, até Federico Garcia Lorca, es­
tende-se o campo do paralelismo (que nunca se entendeu, porque só se viu o
binário, sem se colocar o problema em seus termos gerais). Quanto ao cam­
po da correlação, é enorme a quantidade de materiais, o que faz que nosso
livro ainda esteja inédito.30 Tenha-se, porém, em conta que, para oferecer­
mos exemplos rigorosos, escolhemos sempre poemas que seguem estritamente
(ou quase) sua norma correlativa ou paralelística. O mais interessante, con­
tudo, em literatura são precisamente as obras que trazem esquemas interio­
res, dissimulados, porque um comprimento frouxo, um esfumado superficial
oculta a estrutura íntima. (...)

3 3 5
LUI Z COSTA LIMA

Todo o tempo operamos com exemplos poéticos: mas tudo que se disse
tem aplicação imediata à prosa; aí está, se faltam exemplos próximos, a pro­
sa dos séculos XVI e XVII.31
E que a natureza física e o mundo moral oferecem constantemente ao
poeta séries de fenômenos semelhantes entre si, nos quais existe um princí­
pio formal (a própria semelhança) que seduz a imaginação, e mesmo esta
procurará imagens múltiplas semelhantes para expressar as realidades ime­
diatas. Assim, o trabalho da ordenação dos conjuntos semelhantes se apre­
sentou ao escritor em várias ocasiões na história da Humanidade: o modo
mais natural de ordenação era o paralelístico; mas logo se descobriu outro
mais artificioso e intelectual, o correlativo. Enfim, uma terceira oportunida­
de era oferecida pelas formas híbridas entre correlação e paralelismo. Vimos
que também elas foram freqüentemente usadas.
Eis aqui um imenso campo literário reduzido a rigoroso sistema. Pela
própria natureza do objeto essa redução era fácil.
Se tudo na matéria literária pudesse ser assim tratado, a constituição de
uma Ciência da Literatura não seria problema. No cosmo da Literatura (ou
seja, da poesia em seu sentido mais geral), há infelizmente, enormes zonas
nas quais, cremos, nunca será possível uma sistematização exata. E que a poesia
é um complexo dos materiais mais distintos, físicos e espirituais. Toda a
Geometria pode sair de uma única postulação a priori. Nada de semelhante
será o panorama da Ciência da Literatura, se algum dia se constituir.
Entre os setores, como o que estudamos, e estes outros que hoje vemos
como irredutíveis a uma organização científica, há muitos que esperam o
investigador e como que o estão convidando.
Este é o maior, o mais instigante trabalho no campo da investigação lite­
rária. E é por certo necessária a perspectiva histórica. Mas tenhamos concei­
tos um pouco claros: a Ciência da Literatura não será em si mesma uma ciência
histórica, embora assim pareçam hoje acreditar alguns ilustres investigadores.32

Tradução
L u iz C o st a L im a
Notas

1. Defino aqui o conceito de “semelhança” de um ponto de vista lógico (...)• Também


se observe que a semelhança de conjuntos pode estar baseada em condições clara­
mente encontráveis na realidade (como é o caso em nosso exemplo da fiera, da
ave e do pez); contudo, o mais freqüente é que seja a mente humana que tenha,
digamos, forçado os fenômenos a entrar ou aparecer em relação de semelhança,
mediante uma hábil análise de elementos. Este não é senão um aspecto da inclina­
ção do espírito humano para a ordenação mental do mundo.
2. Cf. E. Faral: Les arts poétiques du moyen age, passim.
3. Para a correlação considerem-se os seguintes trabalhos:
1) Johannes Boite: Die indische Redefigur “Yatha Samkbya” (Archiv Für das
Studium der neuren Spracben und Literaturen, CXII, 265; CLIX, 11).
2) Bruno Berger: Vers rapportés. Ein Beitrag zur Stilgeschicbte der franzõsiscben
Renaissancedichtung, Karlsuhe, 1930 (Tese doutorai da Universidade de Freiburg
im Breisgau).
3) Dámaso Alonso: “Versos plurimembres y poemas correlativos. Capítulo para
la estilística dei siglo de oro”, Madri, 1944, 112 pp., in 4.° (é, com pequenas va­
riações, separata da Revista de la biblioteca, arcbivo y musco, da Câmara de Ma­
dri, ano XIII, número 49, pp. 89-111).
4) Dámaso Alonso: “Versos correlativos y retórica tradicional” {Revista de filologia
espanola, 1944, pp. 139-153). Estudo reimpresso entre os apêndices de Seis calas
en la expresión literaria espanola, Editorial Gredos, Madri, 1956.
5) Agustín dei Campo: “Plurimembración y correlación en Francisco de Torre”
(Revista de filologia espanola, XXX, 1946, 385-392).
6) Dámaso Alonso: Vida y obra de Medrano, Madri, 1948, capítulo XVIII, “La
Correlación”, pp. 210-223.
7) Ernest Robert Curtius: Europãiscbe Literatur und lateiniscbes Mittelalter, Ber­
na, 1948, pp. 287-289.
8) Dámaso Alonso: “La correlacíon poética en Campanella” (Revista de ideas es­
téticas, 1949, julho-setembro, núm. 27, pp. 223-237). Reimpresso nos apêndices
de Seis calas.

3 3 7
L U i Z C O ST 1M A

9) Dámaso Alonso: Poesia espanola. Ensayo de métodos y limites estilísticos, Ma­


dri, 1950 (pp. 463-471, “Lope, manierista”).
10) Dámaso Alonso: Estilística dei petrarquismo y dei siglo de oro. (Inédito.
Redatado entre 1945 e 1950).
11) Dámaso Alonso: “Antecedentes griegos y latinos de la poesia correlativa mo­
derna” (.Estúdios dedicados a M. Pidal, Cons. s. de investigaciones científicas, t. IV,
Madri, 1953, pp. 3-26). Reimpresso in Seis calas, (...)
4. No original latino a fórmula teria um valor algo diverso (pois aí é A o que na tra­
dução é B e vice-versa).
5. Seguimos o texto de II primo volume delle rime scelte da diversi autori..., Veneza, 1565,
p. 419. Mas já aparece no Libro terzo delle rime di diversi autori, Veneza, 1550, foi.
198. Comp. Rime di Domenico Veniero, Bérgamo 1751, p. 31; aí é o soneto XXIV
6. Reproduzido por Rodríguez Marín em Pedro Espinosa, p. 379, nota 1 e por Alonso
Zamora Vicente em Francisco de la Torre. Poesias, Clásicos castellanos, 195 (...).
7. Em resumo: tanto as letras quanto os subíndices têm uma dupla função: 1.° desig­
nam um conteúdo conceituai; 2.° designam uma ordem. Leve-se, porém, em con­
ta que as letras (A, B, C ... P) só têm valor ordinal na correlação progressiva (e não
eos outros tipos e subtipos de que em seguida falaremos).
8. Observe-se o artificioso cuidado do poeta: conservou escrupulosamente a mesma
ordem nas quatro vezes. Com muita freqüência, na poesia correlativa, as plura­
lidades são desordenadas. Em nossas fórmulas, sempre as consideramos ordenadas.
9. Ed. Rodríguez Marín, p. 5.
10. Por exemplo: a última pluralidade (que é de um tipo especial que estudaremos
adiante), poderíamos tê-la considerado como constituída por ojos-boca e então
reiteraria B, Br Também se poderia pensar que a pluralidade que designamos por
E{ E2 (lumhre-aliento) não passa da reiteração da pluralidade Ct C2 (luz-aliento),
pois lumbre não é senão a variação verbal de luz. Mas não a consideramos
reiterativa, porque em C, C2 luz e aliento são da pessoa amada e em E, E2 lumbre
e aliento são as qualidades de que, em si, sente falta o poeta, Estas vacilações em
nada afetam a essência de nossa explicação.
11. Em confronto, por exemplo, à poesia árabe, que costuma ter apenas duas plura­
lidades. Comp. “Versos plurímembres”, pp. 153-155 (artigo citado na nota 3).
12. La escolâstica celosa, Ed. Acad. N. V, p. 444.
13. Veja-se no soneto de La escolâstica celosa; os quatro membros (bocina, lucero, carros
norte) estão primeiro ‘disseminados’ entre os versos quinto e décimo primeiro;
logo, ‘recoletados’ no último verso.
14. Esta proposição não é verdadeira em absoluto, mas sim o é nos casos normais de
correlação progressiva, como são os exemplos dados no princípio (pp. 54-58 do
original, passagem não traduzida, N. do T.). Não temos tempo para apresentar e
discutir agora as exceções.

3 3 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

15. Parataxe e hipotaxe são conceitos bem conhecidos em sintaxe. Leve-se em conta
que, sem nos determos agora em uma delimitação com o conceito normal em sin­
taxe, chamamos 'paratática’ a ordenação de um sintagma não-progressivo e
‘hipotática’, a de um sintagma progressivo; ou seja, simplesmente, a parataxe
corresponde à leitura de nossa fórmula em sentido horizontal; a hipotaxe, à leitu­
ra em sentido vertical Será 'paratática5 a relação entre os membros de uma linha;
“hipotática5, a relação entre os elementos de uma coluna.
16. Do ano de 1620. Pode-se ver nas Obras sueltas de Lope de Vega, tomo XI. A copia
se encontra no frontispício do livro.
17. Apenas com uma mudança: “virtud”, em vez de “virtudes”.
18. Cristóbal de Castillejo, Ed. Domínguez Bordona, II, 80*
19. As setas indicam que a fórmula há de ser lida por colunas e não por linhas.
20. As “heridas”, separadas umas das outras, correspondem no plano imaginário ao
“escalonado” das rosas no real. Este exemplo (do Libro de las banderas, ed. por
Garcia Gómez) foi por nós comentado, doutro ponto de vista, em Ensayos sobre
poesia espanola, p. 41.
21. Purg. XXIII, 16-21. Exemplo comunicado por meu amigo Cario Consiglio. O
paralelismo conceituai é perfeito, embora o mesmo não se dê com o sintático.
22. Analise-se por exemplo, na poesia alemã, “Das bucklicht Maennlein” ou “Es kamen
drei Diebe aus Morgenland”, composições anônimas que se podem encontrar em
Bofill e Gutiérrez, La poesia alemana, Barcelona, 1947, pp. 102 e 112. Na primei­
ra são oito os conjuntos paralelísticos; a segunda contém vários sistemas para-
lelísticos diferentes.
23. Considero “si la nave o la vela o la estrella” como um único elemento (C{); do
mesmo modo “si el caballo o las armas o !a guerra” como C2; e “se el ganado o las
valles o la sierra” como Cr E possível que se pudesse levar a análise adiante, mas
assim basta para nosso objetivo. Que o poeta sentiu uma maior correspondência o
prova, sem mais considerações, a natureza ternária de C.
24. Observe-se a anáfora (“Digas tú”) e também a reiteração final (“es tan bella”). Se
designamos por X e Y estes elementos que não têm diferenciação específica nos
diversos conjuntos, a expressão genérica dos três conjuntos desta composição de
Gil Vicente seria:

XABCY
A anáfora aparece, com enorme freqüência, nas ordenações paralelísticas. E ela (e,
em geral, os elementos invariáveis) costuma ter grande extensão no paralelismo
dos cancioneiros antigos.
25. Veja-se em Seis calas seu estudo “Los conjuntos paralelísticos de Bécquer”.
26. Mananas de abril y mayo, Rivad., IX, 29.

3 39
LUI Z COSTA LIMA

27. Por exemplo: sopló reitera aproximadamente encendí apesar da mudança de ver­
bo e de ser numa ocasião terceira pessoa e na outra primeira pessoa.
28. A Virgem venerada na localidade flamenga de Scherperheuvel (em francês,
Montaigu, em espanhol, Monteagudo), uma imagem da qual foi levada para
Antequera em 1608. Os poetas locais celebraram abundantemente a sua chegada.
Veja-se Cancionero antequerano, recogido por Ignacio de Toledo y Godoy, publica­
do por Dámaso Alonso e Rafael Ferreres, Madri, 1950, pp. XXXI-XXXIII e 449-
450.
29. Pedro Espinosa, Obras, ed. Rodríguez Marín, p. 34. Poderia também ter suposto
que a quarta pluralidade é reiteração da primeira; decido-me por considerá-la pro­
gressiva atendendo a que inova na adjetivação acrescentada. Se relemos agora o
soneto “El Sol a noble furia se provoca”, do mesmo Espinosa — considerado no §
IV — podemos agora analisá-lo com mais exatidão: a última pluralidade que en­
tão registramos como C, C2 é na realidade C,-Bj C2-B2. Ou seja, este soneto é misto,
contendo ao mesmo tempo progressão e reiteração, correlação e paralelismo.
30. Estilística dei petrarquismo y dei siglo de oro onde oferecemos, amplamente, exem­
plos espanhóis e, suficientemente, exemplos estrangeiros. No presente estudo se
tratava apenas de mostrar os exemplos indispensáveis para a articulação da teoria
(...).
31. Existem seja correlações, seja paralelismos em vários dos exemplos de prosa que,
ao falar das pluralidades, mencionei atrás: “alumbrará mi entendimiento (At) y
fortalecerá mi corazón (A2) de modo que quede único (Bj) y sin igual (B2) en la
discreción (Cj) u en la valentia (C2)” (Quijote). A primeira e a terceira dualidades
são evidentes; a segunda, duvidosa; embora único pareça aludir à inteligência (“úni­
ca Fénix” etc.) e sin igual ao valor do invencível cavalheiro (...).
32. Não negamos a “história” como “ciência”. Negamos sim que “História da literatu­
ra” seja igual a “Ciência da literatura”.

34 0
cap ítu lo 10 A “ Ode sobre uma urna grega” ou
conteúdo versus metagramática
LEO SPITZER

Áuream quisquis mediocritatem


Diligit, tutus caret obsoleti
Sordibus tecti, caret invidenda
Sobrius aula.

Horácio,
Carmina, 2, 10, 5

“The ‘O de on a G recian u m ’, or content vs m etagram m ar” foi publicado originalm ente em


C om parative Literature, 1955, VIL A presente tradução foi feita a p a rtir de sua reedição em
Essays on English and A m erican literature, P rinceton U niversity Press, N o v a Jersey, 1968
(2 .a edição).

3 4 1
No seu recente livro The fíner tone (1953), o professor Earl R. Wasserman
dedica cinqüenta páginas à famosa ode de Keats — exemplo notável de
pesquisa cuidadosa, de indagação refletida sobre o significado e sobre a
forma de um poema im portante, de desejo inquebrantável de penetrar
no íntimo de cada palavra e cada pensamento, de pertinentes observa­
ções que provavelmente ainda não haviam sido feitas, e de como formular
perguntas oportunas» O professor Wasserman é um espírito determ ina­
do, operoso, penetrante, que não se deixa vencer pelas dificuldades (nem
mesmo pelas que ele possa criar), que não está disposto a descansar antes
de encontrar uma solução que o satisfaça plenamente (este severíssimo
juiz fia-se no julgamento apenas dele mesmo — outras doutas opiniões
nem são levadas em conta).
E como se, das duas alternativas propostas por Keats nos versos de
Endymion,

...There are seats unscalable


But by a patient wing, a constant spell,
Or by ethereal things that, unconfiridy
Can make a ladder o fth e eternal wind...

o professor Wasserman tivesse escolhido a primeira como lema: o vôo


paciente, a constante magia. Nota-se ainda que o professor Wasserman
tem um desejo intenso de, na sua interpretação da poesia, superar a insi­
pidez da chamada escola histórica e de transpor o fosso que separa os
new critics dos “críticos acadêmicos”, adotando a doutrina, que de ne­
nhum modo é nova, dos primeiros (a de que um poema é, antes de mais
nada, não um documento histórico, mas um organismo de direito p ró ­
prio que deve ser recriado pelo crítico) sem abandonar os métodos tra-

S á 3
LUIZ COSTA LIMA

dlcionais de explicação (recurso à biografia, a passagens paralelas às do


poema que está sendo estudado extraídas de outros escritos do autor ou
dos seus contemporâneos etc.). Para um estudioso nascido na Europa,
nutrido por uma tradição secular de interpretação filológica e estética,
especialmente nos setores clássico e francês (e que só pode deplorar a
guerra exterminadora que vem sendo travada dentro de cada departam en­
to de inglês deste país, entre os “críticos” e os “humanistas” (scholars) —
como se um humanista, em literatura, não precisasse estar familiarizado
com as duas abordagens), é motivo de grande prazer e alívio o fato de o
professor Wasserman, humanista solidamente adestrado na história das
idéias e no método filológico, ter ido muito além do quadro de sua for­
mação original, chegando a usar recursos de crítica estética que podem
ser identificados com os dos críticos. Combinando assim as duas aborda­
gens, certamente atingiu o objetivo de mostrar que Keats não era poeta
de se entregar a “voluptuosas experiências sensoriais”, mas um artista da
palavra que nos seus poemas “usava tanto a cabeça como o coração”: dito
de outra maneira, que existem estruturas intelectuais por trás dos supos­
tos gorjeios deste rouxinol da poesia.
Se, a despeito de todas estas qualidades, o professor Wasserman nem
sempre conseguiu dar força de persuasão às suas interpretações, a falha
me parece residir talvez numa aceitação por demais apressada de certos
hábitos discutíveis da crítica contemporânea: por exemplo, a tendência a
fazer com que o texto poético pareça mais difícil, intrincado e paradoxal
do que na verdade ele é. Isto, por sua vez, acarreta da parte do crítico um
jogo metafísico-verbalístico, tornando hipermetafísico o poema. O que é
adequado a Donne pode nem sempre ser adequado a Keats, como o p ró ­
prio professor Wasserman observa, mas do que nem sempre parece lem­
brar-se. Regra geral, o crítico deveria atentar para a tirada espirituosa de
Croce, parodiando os nazistas: Mitsingen ist verboten (é proibido cantar).
Além disso, o professor Wasserman faz uso extenso de frases poéticas —•
que para o poeta foram criações de momentos inspirados — como ter­
mos técnicos, cabides recorrentes e sempre à mão para pendurar o co­
m entário crítico mais prosaico {v.g., “at heaven’s bourne”, “sphery
sessions"); dá destaque excessivo às imagens em detrim ento do tem a e
mesmo do conteúdo ideológico do poema; recorre a terminologia com­
plicada, como “sintaxe ímagística” (ou “metagramática”), “oxímoro mís­

3 44
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

tico”,1 etc., que talvez contribua menos para as nossas técnicas descriti­
vas do que parece prometer.
Não sendo eu especialista em Keats, mas apenas um praticante da
explication de texte à francesa, me posso permitir apresentar minha explica­
ção relativamente simples da “Ode sobre uma urna grega”, com a esperança
de que a diferença de método e talvez o tradicionalismo da minha aborda­
gem possam não ser destituídos de valor (mesmo que minha interpretação
tivesse sido proposta por outros especialistas do passado). Seja como for, creio
que a discussion de determinada teoria de um dado crítico pelos seus cole­
gas, a crítica pormenorizada de uma obra específica — costume que tende
cada vez mais a desaparecer das nossas publicações especializadas nestes dias
de anarquia, isolamento espiritual e linguagens exclusivas — ainda possa dar
resultados valiosos, da mesma forma que nos problemas estritamente lin­
güísticos. O consensus omnium é tanto um ideal para a explicação da poesia
como para a pesquisa etimológica. Um ensaio escrito com a energia mental
do professor Wasserman não só convida a que seus resultados sejam pesados
cuidadosamente pelo maior número possível de estudiosos da literatura, como
também o merece.

Thou still unravish’d bride o f quietness,


Thou foster-child o f silence and slow time,
Sylvan historian, who canst thus express
A flowery tale more sweetly than our rhyme:
What leaf-fring’d legend haunts about thy shape
O f deities or mortais, or o f both,
In Tempe or the dales o f Arcady?
What men or gods are these? What maidens loth?
What mad pursuit? What struggle to escape?
What pipes and timbreis? What wild ecstasy?

34 5
LUI Z COSTA LIMA

il

Heard melodies are sweet, but those unheard


Are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on;
N ot to the sensual ear, but, more endear’d,
Pipe to the spirit, ditties o f no tone:
Fair youth, beneath the trees, thou canst not leave
Thy song, nor ever can those trees be bare;
Bold Lover, never, never, canst thou kiss,
Though winning near the goal — yet, do not grieve;
She cannot fade, though thou hast not thy bliss,
For ever wilt thou love, and she be fair!

iii

Ah happy, happy boughs! that cannot shed


Your leaves, no ever bid the Spring adieu;
And, happy melodist, unwearied,
For ever piping songs for ever new;
More happy love! more happy, happy love!
For ever warm and still to be enjoy’d,
For ever panting, and for ever young;
Ali breathing human passion far above,
That leaves a heart high-sorrowful and cloysd,
A burning forehead, and a parching tongue.

IV

Who are these coming to the sacrifice?


To what green altar; O mysterious priest,
Lead3st thou that heifer lowing at the skies,
And ali her silken flanks with garlands drest?
What little town by river or sea shore,

3 4 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

Or mountain-built with peaceful citadel,


Is emptied ofth is folk, this pious morn?
And, little town, thy streets for evermore
Will silent be; and not a soul to tell
Why thou art desolate, can eyer return.

O Attic shape! Fair attitude! with brede


Ofmarble men and maidens overwrought,
With forest branches and the trodden weed;
Thou, silent form, dost tease us out o f thought
As do th eternity: Cold Pastoral!
When old age shall this generation waste,
Thou shalt remain, in midst ofother woe,
Than ours, a friend to man, to whom thou say3st,
Beauty is truth, truth beauty, — that is ali
Ye know on earth, and ali ye need to know.

(Tu, ainda inviolada noiva da quietude, / Tu, filha adotiva do silêncio e


do tempo vagaroso, / Silvestre historiadora, que podes assim narrar / Um conto
florido mais docemente do que os nossos versos: / Que legenda orlada de
folhas povoa teu contorno / De deidades ou mortais, ou de ambos, / No Tempe
ou nos vales da Arcádia? / Que homens ou deuses são estes? Que donzelas
relutantes? / Que louca perseguição? Que luta para escapar? / Que flautas e
pandeiros? Que desvairado êxtase?

II

Doces são as melodias ouvidas, mas as não ouvidas / São mais doces;
continuai, pois, a soar amenas flautas; / Não para o ouvido sensual, e sim, mais
gratas, / Tocai para o espírito canções insonoras: / Belo jovem sob as árvores,

347
LUI Z COSTA LIMA

tu não podes deixar / Tua canção, nem jamais poderão aquelas árvores desnu­
dar-se; / Ousado Amante, nunca, nunca, poderás beijar / Posto que te aproxi­
mes do alvo — mas não te lamentes; / Ela não pode esvaecer-se, ainda que não
alcances tua felicidade, / Para sempre haverás de amar, e ela será bela!

(li

Ah ditosos, ditosos ramos! que não podeis largar / Vossas folhas, nem ja­
mais dizer adeus à Primavera; / E, ditoso, infatigável melodista, / Para sempre
tangendo canções eternamente novas; / Mais ditoso amor! mais ditoso, ditoso
amor! / Para sempre ardente e ainda por fruir, / Para sempre ofegante e para
sempre juvenil: / Toda a palpitante e arrebatada paixão humana / Que deixa o
coração opresso e farto de pesar, / A fronte abrasada e a língua ressequida.

IV

Quem são esses que chegam para o sacrifício? / A que verde altar, ó miste­
rioso sacerdote, / Conduzes tu aquela novilha que muge aos céus, / Com suas
sedosas ilhargas ornadas de grinaldas? / Que vilarejo à beira-rio ou beira-mar,
/ Ou erguido na montanha com pacífica cidadela, / Está vazio de sua gente,
nesta pia manhã? / E, vilarejo, tuas ruas para todo o sempre / Silenciosas fica­
rão; e nem uma só alma para contar / Por que estás ermo, jamais regressará.

Ó ática forma! Bela atitude! com friso / De homens e donzelas no már­


more insculpidos, / Com ramagens de arvoredos e a erva pisada; / Tu, forma
silente, por zombaria nos desatinas / Como faz a eternidade: Fria Pastoral! /
Quando a velhice destruir esta geração, / Tu ainda serás, em meio a outras
aflições / Que não as nossas, uma amiga do homem, a quem dirás: / A beleza
é a verdade, a verdade beleza — eis tudo / Que sabeis na terra, e tudo que
precisais saber.)*

*Tradução de José Laurênio de Melo.

3 4 8
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

O professor Wasserman começa com a moldura metafísica do poema


que se reflete ostensivamente no primeiro verso, e com o “oxímoro místico”
ou “interfusão mística” supostamente contida na descrição da urna como
uma “still unravish’d bride”: “Embora a ode seja uma ação simbólica em
função de uma urna, seu tema intrínseco é aquela região que o terreno e o
etéreo, o tempo e o não-tempo se tornam um... Bride, sugerindo a primeira
fase do processo de geração, refere-se ao humano e ao mutável e, conse­
qüentemente, tem a mesma relação paradoxal com unravisb^d que amanhã
tem com meia-noite...2 Da mesma forma que a humanidade e/ou3 divindade
das figuras, como o casamento-castidade da urna e a virgindade-violação das
donzelas, a imortalidade da urna e a temporalidade das figuras estão delica­
damente equilibradas de cada lado dos domínios celestiais, tendendo para a
área da interfusão mística...”4
Em vez de começar como o professor Wasserman, primeiro perguntaria
a mim mesmo, à maneira “francesa”, terra-a-terra, factual: De que é que tra­
ta todo o poema, em seus termos mais óbvios, mais simples? É, em primeiro
lugar, a descrição de uma urna — isto é, pertence ao gênero, conhecido na
literatura ocidental de Homero e Teócrito até os parnasianos e a Rilke, da
ecphrasis, descrição poética de uma obra de arte pictórica ou escultural, des­
crição que implica, nas palavras de Théophile Gautier, “une transposition
d 3a r f \ a reprodução, por meio de palavras, de objets d 3art perceptíveis pelos
sentidos (“ut pictura poesis”). Sinto-me autorizado a começar com uma afir­
mação tão óbvia e “genérica” devido ao título do poema, “Ode sobre uma
urna grega”, que, embora situado fora do poema propriamente dito, ainda
lhe pertence, e encerra a orientação pretendida pelo poeta que, como sem­
pre ocorre, pelo título fala ao público como se fosse um crítico.
Desde que a ode é, então, uma transposição verbal da aparência sensível
de uma urna grega, a minha pergunta seguinte deve ser: O que foi que Keats
viu exatamente (ou escolheu para nos mostrar) retratado na urna que está
descrevendo? A resposta a esta pergunta nos dará um contorno firme não só
do objeto da sua descrição mas da descrição mesma, que, adiante, poderá
nos permitir separar as inferências simbólicas ou metafísicas extraídas pelo
poeta dos elementos visuais que ele percebeu. Além disso, no nosso caso,
esta resposta apontará para algumas incertezas de visão experimentadas pelo
poeta ao decifrar seu tema sensorial, incertezas que poderão, por fim, aju-
dar-nos a discernir que mensagem particular Keats deseja que vejamos
corporificada na urna, e qual excluir.

3 4 9
LUI Z COSTA LIMA

O poeta descreve uma urna (obviamente votada às cinzas de uma pessoa


morta), que, de maneira tipicamente grega, traz um friso circular leaf-fring’d
(orlado de folhas); (e adianto que é principalmente por essa razão que o poema
é circular ou “perfeitamente simétrico”, como disse o professor Wasserman,
na forma interior como na forma exterior, reproduzindo, desse modo, sim­
bolicamente, a forma do objet d"art que lhe serve de modelo).5 No interior
da franja de folhas, o friso representa três cenas “pastorais” gregas (exata­
mente como o friso da taça descrita no primeiro idílio de Teócrito represen­
ta três cenas pastorais emolduradas por uma guirlanda de hera): (1) estrofe
I: a selvagem perseguição de donzelas por seres alucinados de amor; (2) es­
trofes II-III: a terna sedução de uma donzela por um jovem; (3) estrofe IV: a
solene cerimônia de sacrifício celebrada por um sacerdote, num altar, peran­
te a comunidade de uma cidade. A forma circular do friso faz necessário que
os principais elementos da primeira cena reapareçam na V estrofe (“with brede
ofm arble men and maidens”, “forest branches and the trodden weed”).
A nossa próxima pergunta será: O que é que Keats não conseguiu discernir
claramente no friso? A verdade é que, em duas passagens, ele manifesta in­
certeza, uma hesitação que se torna mais evidente com a repetição da con­
junção or (ou): (1) “What leaffringyd legend... / Ofdeities or mortais or both,
/ In Tempe or the dales ofArcady? / What men or gods are these}” (estrofe I);
(2) “What little town by river or sea shore3/ Or mountain-built with peaceful
citadel...}” (estrofe IV).
Nos dois casos, quer dizer, nas cenas 1 e 3, diferentes da cena 2 na medi­
da em que nesta não se insinua nenhuma dessas incertezas, temos que nos
haver com a identificação de certos detalhes que não poderiam ser discernidos
pelo observador da urna. Não pode ser por acaso que as cenas 1 e 3 também
sejam aquelas em que os elementos enumerados do friso são introduzidos
por perguntas — What (Que), repetida sete vezes na estrofe I; who (quem),
to what (a que) e what (que), na estrofe IV — enquanto na cena 2 não são
formuladas perguntas desta natureza, relativas a uma identidade. Infiro que
tal incerteza quanto a uma identidade repetida circularmente é um dos prin­
cipais problemas do poema, e adianto ainda que esta incerteza diz respeito a
uma identidade histórica. Keats simplesmente ignora quem são precisamente
os protagonistas gregos das cenas de perseguição e sacrifício; esta questão
parece não surgir na cena 2 que, obviamente por tratar do eterno sentimen­
to do amor, não evoca nenhuma necessidade de identificação histórica espe­
cífica. Por outras palavras, muito prosaicas: para as cenas 1 e 3 — mas não

3 5 0
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

para a cena 2 — Keats precisaria de um arqueólogo especializado ou de um


historiador da civilização grega que lhe explicasse as possíveis referências
“factuais” implicadas, mitológicas ou teológicas.
A luz destas considerações, o primeiro verso do poema, “Thou still
unravish3d bride o f quietness”, torna-se claro; o mesmo não se dá com a in­
terpretação metafísica ou alegórica do professor Wasserman, que deixa em
dúvida o sentido literal exato das palavras bride e unravishyd\ “Como o casa-
mento-castidade da urna e a virgindade-castidade das donzelas, a imortali­
dade da urna e a temporalidade das figuras estão delicadamente equilibradas
de cada lado dos domínios celestiais”; “€bride\ sugerindo a primeira fase do
processo de geração, refere-se ao humano e ao mutável, e, conseqüentemen­
te, tem a mesma relação paradoxal com unravishyd que o amanhã tem com a
meia-noite: a urna pertence tanto ao devir como à imutabilidade”.
Interpretaria as palavras “still unravish3d bride ofquietness” como alusão
à serenidade da obra de arte representada pela urna, ainda não violada pela
erudição arqueológica ou histórica, pela explicação racionalizada. Devería­
mos acreditar, então, que o poeta, tendo-se deparado com uma urna grega
recém-descoberta, descreve o seu impacto direto nele mesmo, antes que os
profissionais da história e da filologia tenham violado (ravish’d) seu segredo,
o que infalivelmente farão com o tempo (still unravishyd).
O primeiro desejo do poeta deve ter sido, então, que a urna (por tanto
tempo a “foster-child o f silence and slow time”), agora lhe fale, lhe revele a
verdadeira história de que ela deve ter sido testemunha. E por isso que o
poeta se dirige à urna como a um sylvan historian; a palavra historian está
em contraste paradoxal com “unravishyd bride o f quietness”, pois um deve
revelar, a outra, reter. A urna, ainda não ferida pelos arqueólogos (anti­
quariam), é por si mesma um historian; é, contudo, um sylvan historian que
exprime “a flowery tale more sweetly our rhyme” em sua “leaf-fring3d legend”,
não um historiador profissional que nos desse detalhes factuais, o “quem” e
o “quê” da história passada da humanidade. O relato histórico, sylvan, da
urna revela-nos a história sob a forma da perene beleza natural das florestas,
folhas, flores, como normalmente acontece com os vasos gregos.6
Assim, a primeira estrofe contém uma série de oposições paradoxais
não resolvidas, como o mostram as sete perguntas perplexas, inquietas,
semi-angustiadas e ansiosas do poeta. Sua própria busca, neste mom ento,
da identidade histórica a ser arrancada à urna silenciosa ainda impede que
o poeta assimile toda a beleza da obra de arte, e ele sugere, sem qualquer

3 5 1
LUI Z COSTA LIMA

tentativa de resolução, as múltiplas contradições que o angustiam no pri­


meiro momento de contato com a obra de arte antiga: (1) slow time —
agora, o momento dramático da descoberta da urna e de sua decifração
definitiva; (2) o segredo inviolado da um a — o desejo que tem o poeta
de desvendá-lo (a curiosidade histórica que pode com partilhar com os
historiadores profissionais); (3) a história de que a urna é testemunha —
a beleza da natureza perene representada no friso; (4) o silêncio da obra
de arte — sua qualidade expressiva que “fala” a quem a contempla; (5) o
silêncio da urna — a bulha e a fúria sugeridas pela prim eira cena repre­
sentada no friso.7 São estes dois últimos contrastes, o paradoxo de um
silêncio falante e de sons que a obra de arte torna silenciosos, que vão ser
desenvolvidos na estrofe II:

Heard melodies are sweet, but those unheard


Áre sweeter; therefores ye soft pipes, play on;
N ot to the sensual ear3 but, more endear3d9
Pipe to the spirit ditties o f no tone...

Diria que o professor Wasserman não acentua devidamente o forte con­


traste entre wild ecstasy no final da estrofe I e soft pipes na estrofe II, ao
sugerir (p. 29) que o tema do ecstasy forma uma transição gradual entre as
estrofes I e II: no sentido de ‘a mais estranha paixão’, a palavra (ecstasy)
tende... a levar os símbolos mortais e imortais a um ponto de fusão de tal
sorte que, na estrofe seguinte, o poeta possa entrar em empatia com eles..,
Mas, no sentido de ‘externar a alma do eu’ (ek + istanai = trazer para
fora), descreve a consumação do ato empátíco dos símbolos. (Pergunta:
Poderão os símbolos mesmos consumar o ato empático?)... Á mesma pro­
gressão empática do poeta é externada, em parte, pela contradição da sua
atenção que se desloca da urna como um todo... para o friso da urna, para
a intensa atividade no friso.” Na minha maneira de ver, há uma quebra
total após a primeira estrofe; a perseguição e a luta selvagens passam por
nós, pelo poeta e por nós, sem o menor apelo à “empatia” do poeta (ape­
nas talvez à sua atenção); e o ecstasy aqui retratado, ocorrendo apenas nas
pessoas desenhadas, não no poeta e ainda menos nos “símbolos”, é tão
incompreensível como angustiante para o poeta, que registra a sua reação
em perguntas sem verbo, em staccato: “What maidens loth? What mad
pursuit?” (o clima, neste ponto, é inteiramente “dionisíaco”). Na segunda

3 5 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

estrofe temos um novo começo. O poeta está contemplando outra cena


que tem em comum com a primeira apenas a presença de instrumentos
musicais; agora serão expressos suaves sentimentos de amor e as flautas
serão tocadas com suavidade.
Neste momento, Keats compreendeu que, da mesma forma que é impos­
sível neste caso ouvir realmente os sons (duros ou suaves) dos instrumentos
representados no friso, da mesma forma poderá ser verdade que a própria
urna silenciosa possa conter, por assim dizer, sons congelados, quem sabe que
músicas e melodias audíveis apenas pelo “espírito”. Na verdade se lembrou,
muito adequadamente para um clima grego, dos ensinamentos pitagóricos a
respeito da harmonia do mundo: “Heard melodies are sweet, but those unheard
are sweeter”; quer dizer, desde que nós, seres terrenos, com nossos toscos
ouvidos, somos incapazes de ouvir a sutil harmonia (baseada em números e
proporções) da música das esferas, o que nós experimentamos como silêncio
pode ser nada menos do que aquela harmonia verdadeiramente celestial.
Sinto-me autorizado a lançar mão deste conceito grego (que, afinal, é do
conhecimento de todo leitor culto) para sobre ele apoiar o nosso poema,
pois é um topos de Keats, como infiro de quatro passagens keatsianas, cita­
das pelo professor Wasserman, que refletem o pensamento pitagórico. O
motto do livro de Wasserman é tirado de uma carta de Keats: “De agora em
diante nós nos divertiremos aqui tendo o que chamávamos felicidade na Terra,
repetida num tom mais sutil (finer tone), mas ainda assim repetida.” Na pá­
gina 50 são citadas duas passagens de Endymion: “Silence was music from
the holy spberes” e

Aye, €bove the withering old-lipp3d Fate


A thousand Powers keep religious state,
In water, fiery realm, and airy bourne;
And, silent as a consecrated urn,
Hold sphery sessions for a season due.
Ye few o f these far majesties, ah, few!
Have bared their operations to this globe.8

Na página 61 é citado um verso de “Bards of Passion and of M irth”; o rou­


xinol canta “divine melodious truth; / Philosophie numbers smooth”. (A re­
ferência a um topos de Keats é pelo menos tão legítima como a referência a
passagens paralelas de Keats, todas elas informadas pelo topos.)

3 53
LUI Z COSTA LIMA

Pela equação pitagórica do silêncio e da harmonia celestial que não é


ouvida pelo homem, Keats está em condições de resolver o paradoxo da urna
silenciosa mas “falante”, e também de encontrar a transição das coisas vistas
(com os olhos) para as coisas ouvidas (com o “espírito”). A frase “Heard
melodies are sw eet..” é de um conteúdo filosófico e reflexivo, e sua sintaxe
é a de uma tranqüila predicação filosófica (uma frase inteira declarativa em
oposição à pergunta sôfrega, sem verbo, da estrofe I e às exclamações
empáticas que seguem na segunda estrofe). Só com a exclamação “ye soft
pipes, play on” começa o “ato empático” do poeta, a identificação do poeta
com um desenho do friso: identificação exclusivamente limitada à cena 2 (a
cena do doce amor que se prolonga por duas estrofes).
Também é verdade que, com a exclamação play on, outro tema sugeri­
do no começo passa a ocupar o primeiro lugar: o do tempo. A urna perpe­
tua um momento fugaz do passado, aquele em que o ardente amor de um
jovem por uma linda donzela se manifesta através da canção e do toque de
flautas no meio da natureza, o momento antes da consumação, o momento
trovadoresco do amor, por assim dizer. Amor, árvore, canção, como o mos­
tra o professor Wasserman, foram arrancados ao fardo do tempo e torna-
ram-se happy, i. e., felizes em si mesmos, auto-suficientes, intemporais, como
o são todas as coisas belas (qualquer alemão se lembraria do verso de
Moerike: “aber das Scboene, selig scheint es in ihm selbst”).9A identificação
empática do poeta com o que vê na urna atinge o clímax10 na estrofe III,
como se vê pela repetição da palavra happy (seis vezes) e (for) ever (cinco
vezes): um ponto alto que só pode ser seguido pela desilusão dolorosa
quando o pensamento da realidade terrena e não artística do amor toma
conta do poeta (fim da estrofe III).11
A descrição da cena sacrificial na estrofe IV nos revela, como o sentiu o
professor Wasserman, um clima inteiramente em desacordo com o da se­
gunda cena,12 um clima de mistério e estranheza impenetráveis, de fria
desolação, aquilo a que eu chamaria “o silêncio da história”, sem possibili­
dade de comunicação. Volta de novo o padrão de perguntas perplexas re­
lativas à identidade, e as perguntas tornam-se mais conturbadas. A tentativa
que o poeta fez para preencher o relato histórico que está faltando (em
perguntas disjuntivas do tipo what...or....}) toma muito mais espaço do que
na estrofe I. Na verdade, como observa o professor Wasserman, a little town
com suas ruas solitárias existe, não no friso, mas apenas na imaginação do
poeta; deve seu aparecimeto apenas à inferência do poeta a partir da cena

3 5 4
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS F O N T E S — VOL. 1

do friso. Se toda a população da polis grega assiste à cerimônia do sacrifí­


cio, a cidade deve ter ficado vazia e “desolada”, e este vazio e desolação
(inferidos) fundem-se na mente do poeta àquele sentimento geralmente
suscitado em nós pelos locais históricos abandonados pelo homem, cida­
des em ruínas, escavações13 etc. Neste momento, o poeta chega a sentir o
abismo da história implícito num momento de uma civilização morta de
que não restam sobreviventes. Nem mesmo o monumento artístico em frente
dele — a urna — pode cumular esse abismo. Por mais próximo que se pos­
sa ter sentido da antiga civilização na segunda cena (tanto devido à posição
elevada que o doce amor ocupa no sistema de valores de Keats, como por­
que este sentimento transcende todas as idades), a cena 3 mostrou-lhe o
fracasso da urna enquanto historian. O fechamento hermético, a frieza não
comunicante da religião da civilização antiga que esta cena pretende reve­
lar aos seus olhos tornam-se claros para o seu espírito (e a sua capacidade
de empatia aproxima-se ainda menos da fruição do que na primeira cena,
que supostamente só implicava uma mitologia estranha, mas não retratava
estranhos ritos religiosos, como o faz a cena 3). Até mesmo o novilho
sacrificial “lowing at the skies” parece revoltar-se contra a cerimônia para
a qual deve contribuir, e interromper a harmonia das esferas que antes pre­
dominava.
Neste ponto, o mais baixo quanto à “compreensão histórica” — mais
baixo do que na cena 1, onde o êxtase selvagem da caçada dionisíaca tinha
pelo menos conseguido arrebatar consigo a imaginação do poeta, na falta
de identificar os participantes — neste momento em que a religião de uma
civilização passada não acorda resposta no poeta e em que nenhuma men­
sagem histórica se deixa ouvir, o conforto espiritual vem até ele quando,
afastando-se do detalhe das três cenas, olha para a beleza da urna como um
todo e do friso inteiro, “O Attic shape! Fair attitude!”; o primeiro vocativo
referindo-se à urna, o segundo às pessoas representadas no friso. A mensa­
gem arqueológica da urna está morta, a mensagem estética está viva for ever
(na verdade, a desolada terceira cena não era destituída de uma beleza pró­
pria: “green altar”, “ali her silken flanks with garlands drest”, “peaceful
citadel”, “pious morn”). O professor Wasserman parece não ter sentido a
súbita elevação da voz do poeta numa exaltação feliz, a poderosa onda de
sentimento assinalada por aquele verso mágico (“O Attic shape!..”) em que
a urna, depois de ter sido, por assim dizer, fragmentada em vários pedaços
sob o escrutínio microscópico do poeta curioso, subitamente reassume agora

3 5 5
LUIZ COSTA LIMA

sua integridade sem jaça, elevando-se perante seus olhos, renascida como
um todo perfeito! E esta visão da beleza orgânica da arte chega ao poeta
no m om ento da sua depressão mais profunda, como uma consolação
iluminadora: numa fórmula de invocação dirigida por assim dizer a uma
divindade cuja entidade de “edle Einfalt und stille Groesse” ele claramente
apercebeu. Notar-se-á que, enquanto o poema abre como se Keats não es­
tivesse começando, mas antes, continuando uma conversação com um thou
ao qual atribuiu epítetos descritivos (como “still unravishyd bride”, “foster-
ch ild ..”, “sylvan historian”), agora a definição final (tfiO Attic shape...”)
redunda na evocação de uma presença, de um numen (notar-se-á o “O ” da
invocação, único no poema); e o thou segue a predicação de ser. O começo
e o fim do poema constituem assim um padrão quiástico que acentua o seu
efeito cíclico.
Mas mesmo depois da revelação da mensagem estética da urna, o so­
pro de mortalidade que se eleva das seladas câmaras da história (o que
Goethe chamava as “Leichengeruch der Geschichte”), que regelava a empatia
do poeta, não declinou inteiramente; pois ele vê na “silent form ” da urna
“marble men and maidens”, uma “Cold Pastoral”, tão fria e monótona como
a idéia da eternidade (“... dost tease us out o f thought”). A frase “Cold Pas­
toral” corresponde a “sylvan historian” (da estrofe I) invertida; a urna co­
memora cenas silvestres (i. e., pastorais) e, embora ocasionalmente perpetue
o cálido amor humano, é, contudo, no fim de contas, tão fria como a his­
tória (ou o tempo, ou a eternidade). Assim, a obra de arte que sobrevive à
morte respiraria alguma coisa do ar da morte. Esta idéia (quem dentre nós,
ao contemplar a Vênus de Milo, não sentiu algo da presença da majestade
da morte!) não está expressa, embora possamos sentir que ela está latente
por baixo das verdadeiras palavras do poeta. Evitando sistematicamente a
palavra “morte”, ele prefere apegar-se às consoladoras mensagens apolíneas
como a da imperecibilidade da obra de arte enquanto um “friend to m an”
— e, naturalmente, a que está expressa nos dois últimos versos:

Beauty is truth, truth beauty, — that is ali


Ye know on earth, and ali ye need to know.

— passagem controvertida que, acredito eu, se tornará mais clara à luz da


interpretação já sugerida. O professor Wasserman comenta assim estes versos:
“Embora a urna possa revelar ao homem a unidade da beleza e da verda­

3 5 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

de, ela não está em condições de informá-lo de que isto ê a soma total do seu
conhecimento sobre a terra e de que isto é o bastante para a sua existência
terrena (6all ye need ot know'); porque ele obviamente conhece outras coisas
sobre a terra, como o fato de que, no mundo, beleza não é verdade, e isto
seria ainda mais valioso neste mundo do que o conhecimento de que as duas
coisas constituem uma só nos domínios do céu. Mas o que é mais importan­
te, a ação simbólica do drama em nenhum momento justifica esta mensagem
restritiva da urna; em nenhum lugar a urna explicitou o fato de que o ho­
mem nada mais conhece ea terra do que esta identidade beleza-verdade e de
que este conhecimento baste.
“Além disso, é significativo tratar-se de uma ode sobre (on) uma urna
grega. Se Keats tivesse desejado que fosse a (to), teria escrito assim, como
fez na cOde to a nightmgale’ (Ode a um rouxinol). Aí, o significado do
poema surge das relações dramáticas do poeta com o símbolo; mas sobre
(on) implica um comentário, e é Keats que deve fazer o com entário sobre
o drama que esteve observando e experimentando nos bastidores da um a.
É o poeta, portanto, que profere as palavras ethat is all/Ye know on eartb3
and ali ye need to k n o w \ e está se dirigindo ao homem, ao leitor. Daí o
deslocamento do referente de thou (urna) para ye (homem). N ão sinto a
objeção freqüentem ente formulada de que se o último verso e meio per­
tence ao poeta e é dirigido ao leitor, não é dramaticamente trabalhado
com esse objetivo. O poeta veio-se impondo gradualmente à consciência
do leitor nas últimas duas estrofes na medida em que se retirou da sua
experiência empática e assumiu sua identidade. Tornou-se claram ente
presente na última estrofe como alguém que se dirige à urna, e aos pou­
cos a urna foi se retirando do centro do interesse dramático; basta agora
um pequeno passo para que o poeta deixe de se dirigir à urna e se dirija
ao leitor. Este, por sua vez, também foi sutilmente introduzido na estro­
fe, pois o poeta acentua vivamente sua completa separação da essência
da urna pluralizando-se a si mesmo (cte ase u s \ 6other woe/Than ours’) e
assim pondo-se numa categoria inteiramente distinta da categoria da urna;
e, através deste recurso, Keats envolveu agora o leitor como terceiro
membro do drama. Finalmente, quando o leitor emergiu, através do plu­
ral us e om s pela referência a rnan (48), o poeta pode agora dirigir-lhe
suas considerações finais sobre o drama.
“Mas o poeta não está mais autorizado do que a urna para concluir que
a suma da sabedoria necessária na terra é a identidade beleza-verdade.

3 5 7
LUI Z COSTA LIMA

Decerto, quando ele voltou ao mundo das dimensões na estrofe IV, desco­
briu que as duas coisas são antitéticas, não idênticas. Parte das dificuldades
com que se defrontou Keats ao tentar orientar o seu significado pode ser
observada nas três versões dos versos finais que têm autoridade textual ou
manuscrita. O manuscrito de Keats e as transcrições feitas por seus amigos
trazem:

Beauty is truth, truth beauty — that is a li..

Nos Annals o f the fine arts de 1820, onde o poema foi publicado pela
primeira vez, o verso aparece como:

Beauty is Truth, Truth Beauty. — That is ali...

E no volume das poesias de Keats publicado em 1820 está:

“Beauty is truth, truth beauty,” — that is ali...

Nenhuma destas versões resolve o problema, embora todas sugiram a difi­


culdade. Cada uma se empenha claramente em separar o aforismo da afir­
mação seguinte do poeta; e ao mesmo tempo, cada uma tenta manter a relação
entre o pronome that (que) e alguma coisa que veio antes. Então, desde que
vimos que o antecedente de that não pode razoavelmente ser o aforismo —
pois nem a urna nem o poeta poderá afirmar que tudo o que o homem co­
nhece e necessita conhecer na terra é que a beleza é a verdade ■
— seu antece­
dente deve ser a frase anterior inteira.
“Tudo o que o homem conhece na terra, e tudo o que precisa conhecer,
é que

When old age shall this generation waste,


Thou (the urn) shalt remain, in midst ofother woe
Than ours, a friend to man, to whom thou sayyst,
Beauty is truth, truth beauty.

Só este significado pode ser consistente com a ação dramática do poema,


pois ele não só não nega que no mundo a beleza não é a verdade, mas tam­

3 5 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOl . 1

bém integra esse fato a uma verdade maior. A suma da sabedoria terrena é
que neste mundo de sofrimento e corrupção onde o amor não pode ser para
sempre cálido e onde até os mais elevados prazeres deixam necessariamente
ca burning forehead and a parching tongue’ (a fronte abrasada e a língua res­
sequida), a arte permanece, imutável na sua essência, porque essa essência
está encerrada numa 6Co Id Pastoral’... Esta arte está para sempre ao alcance
cdo homem como uma amiga’ (as ‘a friend to mari) uma potestade disposta
a admiti-lo às suas ‘sphery sessions’... O grande objetivo da poesia, escreveu
Keats, é ‘que ela seja um amigo/A suavizar os cuidados, e a elevar os pensa­
mentos do homem’, pois a arte... torna mais leve este fardo, oferecendo ao
homem a promessa de que, em algum lugar — nos domínios do céu, onde as
aflições deste mundo serão resolvidas — as canções são eternamente novas,
o amor é sempre jovem, a paixão humana é chuman passion far above\ a
beleza é a verdade; que, embora a beleza não seja a verdade neste mundo, o
que a imaginação apreende como beleza deve ser verdade — quer tenha
existido antes ou não (pp. 58-61).
“Pelo fato de a asserção de que a beleza é a verdade ter a aparência ilusó­
ria de ser a afirmação mais explícita e mais carregada de significado da ‘Ode
sobre uma urna grega’, quase todos os estudos do poema se concentraram
nos versos finais, apenas para descobrir que as abstrações aparentemente claras
são um ignis fatuus, dando para um pantanal da quase-filosofia... O aforismo
é tanto mais enganador quanto surge próximo ao final do poema, pois sua
posição aparentemente de clímax geralmente tem levado à suposição de que
ele é o resumo abstrato do poema, destacável dos primeiros 48 versos, e
equivalente a eles.
“Mas a ode não é uma sentença abstrata nem uma excursão pela filoso­
fia. É um poema sobre coisas: urna, flautas, árvores, amantes, um sacerdote,
uma cidade; e as imagens poéticas têm uma gramática própria, contida nas
suas ações dramáticas... Apenas uma leitura da gramática imagística total do
poema pode desvelar o seu propósito de um modo que os versos finais, to ­
mados isoladamente, não podem. Na verdade, através dessa leitura total, o
aforismo prova não ser um resumo do poema, nem mesmo um ponto alto
do seu propósito, mas apenas uma parte funcional subordinada da gramáti­
ca das imagens (pp. 13-14).”
Acreditando, como eu acredito, que os dois últimos versos inteiros
devem ser entendidos como palavras proferidas pela urna, tentarei refutar

3 5 9
LU I Z COSTA LIMA

pormenorizadamente a primeira passagem citada do professor Wasserman.


O primeiro argumento (a urna não pode dizer ao homem que a identida­
de beleza-verdade é o único conhecimento de que ele precisa na terra
porque “obviamente (!) ele conhece outras coisas sobre a te rra” etc.) faz
lembrar um pouco o comentário cáustico que ouvi em H opkins em rela­
ção ao nosso poema: “beleza não é verdade, e verdade não é beleza, e
você tem que saber uma pá de coisas mais do que isso na terra”. O argu­
mento do professor Wasserman parece-me um desnecessário endosso, por
parte de um crítico tão devotado ao espiritual, de um realismo crasso, ou
de uma visão radicalmente apoética do mundo que tem como sabido que
poesia é “apenas ilusão”, aberração da verdade “norm al”. Esta visão de
um paraíso irrem ediavelmente perdido neste mundo, discutível como
fundamento para a compreensão da poesia em geral, é ainda menos ade­
quada para se chegar à compreensão particular de um poeta para quem o
paraíso ainda estava perto desta terra e que, de acordo com a fé platôni­
ca,14 podia muito bem ter postulado a suficiência absoluta, “na terra”, desta
religião estética. Keats, no séc. XIX, acreditava que a verdade e a beleza
da idéia transcendental se revelam “na terra”, com tanta firmeza como
Du Bellay que, no séc. XVI, professara sua fé na “LTdée de la Beauté qu’en
ce monde j 3adore”.
O segundo argumento (o de que “a urna não explicitou o fato de que o
homem nada mais conhece na terra...”) deve ceder, no caso de eu estar certo
ao supor que a urna “explicitou”, por um lado, a insuficiência da verdade
histórica (nas cenas 1 e 3, a identidade histórica foi turvada; na cena 2 só o
meta-histórico foi atingido, e o friso inteiro reproduz basicamente não a his­
tória, mas a natureza); e, por outro lado, que explicitou a absoluta auto-su­
ficiência da mensagem estética — a equação platônica “beleza = verdade”
por si só é um precioso conhecimento, em contraste com a erudição históri­
ca (ou, talvez, com qualquer tipo de conhecimento racional que tenda a “vio­
lar” o segredo virginal da beleza). As questões relativas à identidade histórica,
com o seu tom de perplexidade e angústia (nas estrofes I e IV), dão lugar, na
estrofe final, a um tom polêmico contra a busca de conhecimento histórico
— pois tal exclusão está implícita nas palavras “and this is ali ye need to
know ”} 5
A inferência do professor Wasserman, feita a partir da observação cor­
reta de que a ode de que estamos tratando é sobre e não a uma urna grega,

3 6 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES —

de que é o poeta que deve fazer a observação “that is ali ye need to k n o w ..”9
é um evidente non sequitur. Note-se que, a despeito de estar escrevendo
sobre uma urna, o poeta, ao longo de todo o poema, falou à urna {thou) e
que ele pode muito bem sugerir suas próprias conclusões por meio de pa­
lavras emprestadas à urna. Na verdade, concordando com a interpretação
do professor Brooks, penso que está de acordo com passagens prévias so­
bre o “silêncio” da urna o fato de que ela está finalmente autorizada a fa-
lar, isto é, autorizada a formular a verdadeira mensagem que, segundo Keats,
se encontra corporificada nela, e da qual ele mesmo, por fim, se tornou
consciente. A ecphrasis, descrição de um objet d ’art por meio da palavra,
amplificou-se até atingir aqui o registro de uma experiência exemplar sen­
tida pelo poeta ao se confrontar com uma obra de arte antiga — experiên­
cia mostrada no desenvolvimento do poema — no momento em que as
aspirações puramente estéticas de Keats conseguem despojar-se de todos
os componentes não essenciais. Foi mérito de Keats o ter apresentado a
“ode sobre” sob a forma de “ode a”, isto é, de modo consoante com a
emoção elevada, tradicionalmente requerida pelo gênero da ode, o que teria
satisfeito até mesmo a Lessing — o ter transformado uma extensa enume­
ração de pormenores factuais, difíceis de visualizar, numa invocação contí­
nua, cheia de emoção, dirigida à u rn a,16 e num a busca dram ática da
mensagem nela contida.
Q uanto à alegação do professor Wasserman de que, nas últimas estro­
fes, o poeta se foi gradualmente impondo à consciência do leitor e aos
poucos a urna se foi retirando do centro do interesse —• já dissemos que
a urna, muito longe de se ter “afastado”, renasceu e se reform ou na últi­
ma estrofe — como poderia o poeta, nesse momento supremo, tê-la per­
dido de vista? Além disso, o suposto “pequeno passo” pelo qual o poeta
teria supostamente deslocado o seu discurso “da urna para o leito r” é ab­
solutamente impossível. Teria sido, sem dúvida, supremamente deselegante
e didático da parte do poeta terminar sua invocação à urna e nesse m o­
mento virar-se para nós e dizer: “e agora, meus companheiros humanos,
vou-me aproximar de vocês para dizer” ■ —■mas com tal transição, o des­
locamento sugerido por Wasserman teria sido, pelo menos, possível. De
qualquer modo, não houve aqui nenhuma transição dessa natureza, e um
súbito ye3 depois de uma série de thou3 não pode pertencer à mesma pes­
soa que está falando; ye sempre precisa de um antecedente (a referência,

3 61
LUI Z COSTA LIMA

poucos versos antes, a man de nenhum modo prepara esse deslocamento);


nenhum substantivo, a não ser no vocativo, pode servir de antecedente
de um pronome na segunda pessoa.
Além disso, Wasserman supõe que no último verso e meio o poeta está
ensinando uma lição aos seus companheiros humanos, quando na reali­
dade o próprio Keats, que antes “pecara” contra a obra de arte (pela cu­
riosidade histórica), só agora aprendeu a lição (sobre a sua mensagem
puram ente estética que permanece, quer a urna retrate “for ever” o cáli-
do amor humano ou uma civilização da qual “not a soul... can e ’er return”).
Deve ser a urna que formula para Keats a lição de que tanto ele como a
humanidade necessitam, e que ambos ficarão agradecidos de ouvir. A urna,
que na última estrofe teve o seu poder de presença aum entado a ponto
de falar, deve ter a última palavra, e esta última palavra deve ser amizade
pela e consolo para a comunidade humana. A própria experiência “numi-
nosa” de Keats quanto à urna foi uma experiência suprapessoal, e seu valor
exemplar pode ser comunicado à humanidade através do próprio numen
benévolo ao qual deve sua experiência e que, numa espécie de m etam or­
fose ovidiana às avessas, encontra uma voz humana para proferir cálidas
palavras humanas, arrancadas do mármore da arte e do silêncio da histó­
ria. Se a urna proferisse apenas o curto aforismo intelectual “Beleza é
verdade, verdade beleza”, sem o discurso pessoal à humanidade, como
sugere o professor Wasserman, isso não seria humano. E como imaginar
que, tendo por fim animado com uma voz a urna de pedra, Keats desfi­
zesse então o milagre que teceu, interrompesse (com cinco palavras!) o
fluxo de comunicação suprapessoal direta entre a obra de arte e a hum a­
nidade que tinha ajudado a criar (através da delicada transição do thou
para o us do verso 44, ao ours e man do verso 48) e ele mesmo viesse à
ribalta exatamente antes do baixar da cortina, despedindo o público com
a frase complacente: “Eu, o poeta, estou dizendo a vocês que tudo o que
acabei de dizer é tudo o que vocês precisam saber” ? Tudo isto, na minha
opinião, representaria uma inadmissível falta de gosto da parte de Keats.
Para com preender o desenvolvimento final de nosso poema, o crítico deve
ter experim entado religiosamente, como Keats fez, a qualidade numinosa
da obra de arte.
Ainda há outro motivo para atribuir os dois últimos versos inteiros à urna,
motivo evidente por si mesmo a todo aquele que estiver familiarizado com a
arte antiga. Uma urna grega geralmente traz uma inscrição ou legenda em

3 6 2
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM S U A S F O N T E S — VOL. 1

forma epigramática. Como nos diz Paul Friedlaender em seu livro Epi-
grammata (Berkeley — Los Angeles, 1948): “Os gregos, embora seguindo o
Oriente no costume de erigir monumentos com inscrições, gostavam de va­
zar uma inscrição sepulcral ou uma dedicatória a um deus no metro e no
estilo de Homero, ou no dos poetas elegíacos ou iâmbicos”, sendo o dístico
elegíaco a principal forma de epigrama inscrito. Estas inscrições poéticas, a
parte eloqüente das estátuas ou das lápides mudas, dirigiam-se supostamen­
te ao passante:

Tell them in Lacedaemon, passer-by,


that here obedient to their law we lie.

Stay, passenger, why goest thou by soe fast?

-— e eram para ser lidas por este, de tal sorte que monumento e viajante tra­
vassem um diálogo, “pois o ler dos antigos era sempre um ler em voz alta”.
Para citar as palavras de um epitáfio latino:

quodque meam retinet vocem data littera saxo,


voce tua vivet quisque leges titulos.
(e enquanto as letras na pedra contiverem minha voz,
elas virão à vida através da tua voz,
quem quer que sejas, ó tu que lês estes versos).

Até o final da ode, foi apenas Keats que falou à urna, isto é, pensou em voz
alta, interrogando-se sobre o seu sentido. Por que não teria pensado, num
poema que trata da ressurreição de uma obra de arte antiga, em um diálo­
go entre a obra de arte e os que a contemplassem, diálogo no qual a urna,
por um milagre ou metamorfose gregos, chegasse a verbalizar para eles (na
forma de ye3 que inclui o poeta) a sua inscrição, respondendo assim à bus­
ca, por parte do poeta, do significado como “a friend o f m an” — exata­
mente como as inscrições sepulcrais gregas recompensavam o passante que,
depois de olhar um monumento (urna, esteia etc.), tinha reverentemente
lido o nome do morto, com palavras consoladoras e votos amigáveis {“but
you farewell, o passerby!J\ “godspeed, o stranger!” — Friedlaender, n.° 168)
ou mesmo com advertências morais (gnoma ou parênese) desejando seu bem

3 63
LUI Z COSTA LIMA

espiritual duradouro? Note-se que a ênfase dada à beleza do m onum ento


sepulcral (que na intenção do artista e dos responsáveis pelo m onum en­
to corresponde à beleza da pessoa comemorada) é freqüente nas inscri­
ções gregas.
Assim, a idéia de que a beleza da obra de arte sobreviverá à dos modelos
que ela retrata está expressa no verdadeiro gênero literário grego a que Keats
se filia — combinando com essa idéia a idéia platônica da Idéia, que era o
seu próprio credo poético. E não só no conteúdo mas também na forma, o
dístico final de Keats parece estar ligado ao gênero grego do epigrama
sepulcral;17 seu dístico é na exata forma métrica (o verso de cinco pés) em
que é conhecido em inglês o epitáfio de Simônides para os trezentos espar­
tanos nas Termópilas; e a invocação ao passante (ye) encontra-se nos dois
últimos versos de Keats, isto é, exatamente na parte do dístico que cor­
responde ao pentâmetro grego em que usualmente são expressos os melhores
votos ao viajante. Devemos levar em consideração a qualidade basicamente
tópica do ye da inscrição e do diálogo entre monumento e viajante inerente
a uma urna grega inscrita; ao passo que, nas inscrições gregas, perguntas re­
lativas à identidade histórica são formuladas e respondidas, Keats, que fez à
urna perguntas de natureza histórica, recebe uma resposta, na forma grega
do epigrama histórico, mas encerrando uma mensagem de conteúdo não
histórico (estético). Enquanto o antigo epigrama sepulcral era dedicado à
comemoração de uma determinada pessoa morta, o epigrama da autoria de
Keats contém uma mensagem geral dirigida apenas aos vivos. Contrariamente
à afirmação do professor Wasserman, foi o poeta que, na última estrofe da
nossa ode, “se afastou” do quadro, e é a urna que conversará “for ever” com
os passantes — todos os leitores da ode de Keats deveriam tornar-se passantes,
parando diante da urna imortal e ouvindo sua mensagem consoladora.18
Voltando a problemas de natureza mais filológica, as três diferentes for­
mas de pontuação no penúltimo verso não servem, como o nosso crítico
pretende, para esclarecer a referência exata do pronome demonstrativo that.
Elas apenas mostram, acredito eu, a hesitação do poeta quanto à relação do
aforismo com o resto da legenda. Ele estava indeciso quanto ao fator de dever
ou não apresentar o epigrama intelectual como uma unidade auto-suficien­
te. Ela constitui mais claramente uma unidade auto-suficiente na versão do
volume de 1820: “Beauty is truth, truth beauty” — that is ali...; enquanto
na versão do manuscrito, geralmente e, acredito eu, corretamente reproduzida

3 6 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

em nossas edições correntes, Beauty is tru th , tru th beau ty, — th a t is ali...


(sem aspas), o fluxo do discurso dentro do dístico é menos interrompido e o
agudo intelectualismo da máxima — antiintelectual — pode ser contraba­
lançado pelo tom cordial com que a obra de arte mostra —•pelo pronome ye
— sua solicitude pelo m an.
Quanto à solução mesma proposta pelo professor Wasserman de que o
antecedente do pronome th a t é a sentença anterior inteira:

When old age shall this generation waste,


Thou sh a lt rem ain, in m id st o f o th e r woe
Than ours, a friend to man, to whom thou say9s t
B ea u ty is truth , tru th beau ty...

— pela qual se torna possível, para ele, sustentar o ponto de vista de que
não é a urna mas o poeta que estabelece a suficiência, para o homem, do
conhecimento da identidade beleza-verdade “nos domínios do céu” — con­
tra essa hipótese argumentaria primeiro que, para que th a t se refira a toda
a sentença desde “When old age” até “truth b e a u ty ” , o conteúdo desta sen­
tença não é suficientemente geral para ser considerado “a li y e k n o w on
e a r th ” (a experiência p a rtic u la r feita pelo poeta com esta urna particular
seria então chamada de ua ll y e k n o w o n earth”); segundo, que a idéia de
que para Keats “b e a u ty is tru th , tru th b e a u ty ” nos d o m ín io s do céu é co­
nhecida pelo professor Wasserman através da sua ampla leitura do poeta,
mas é óbvio que não está expressa no nosso poema; se, por um lado, os
leitores do poema são informados de que o fato de a urna ficar para sem­
pre “a friend ” para eles é o único conhecimento de que eles carecem na
terra , e, por outro lado, a urna proclama “B ea u ty is tr u th .,”, como pode­
riam eles deduzir que o aforismo “B ea u ty is tr u th ...” é válido somente “nos
d o m ín io s d o céu”} Esta “ajuda extrínseca” proporcionada pelo crítico des-
trói o organismo poético.19
Se, pelo contrário, se aceitar minha interpretação de que o conhecimen­
to histórico é a única coisa que está excluída daquilo que “ye n eed to k n o w ”
e que a experiência estética com a urna levou o poeta a exprimir (através do
dístico final) sua religião platônica da arte, creio que a unidade do poema
permanece intacta e que os versos finais são de fato a formulação abstrata da
experiência real da obra de arte, retratada dramaticamente pelo poeta nesta
ode de ecphrasis.

3 6 5
LUI Z GOSTA LIMA

Quanto à segunda passagem acima extraída dos comentários do profes­


sor Wasserman,, limitar-me-ei a dizer que me sinto incapaz de reconhecer a
evidência compulsória (ao menos na poesia romântica) de qualquer “gramá­
tica’9 (ou metagramática, ou sintaxe) “imagística”. O uso destas metáforas
aplicadas a uma seqüência de imagens pretende obviamente implicar um rigor
tradicionalmente associado a esses termos gramaticais; pois qualquer sentença
particular numa determinada linguagem “gramatical” requer o uso de certas
formas, um uso geral e automaticamente seguido por todos os praticantes da
língua:

L a grammaire qui sait rêgenter ju sq u 9au x mis


E t les fa it3 la main haute3 obêir à ses lois...

Com certeza* os que cunharam os termos “gramática (ou sintaxe) imagística”


não pretendiam transmitir-nos a idéia de que as imagens de um determinado
poema fossem prescritas ao poeta (pela poesia ou pelo gosto?) da mesma for­
ma que o modo, indicativo ou subjuntivo, de uma determinada sentença, é
ditado pelas regras da gramática da sua língua. Uma vez que Wasserman fala
da “gramática imagística de um p o em a p a rticu la r”, não deve, com isso, que­
rer referir-se a nada mais ambicioso do que a “evolução de imagens coeren­
tes e consistentes dentro da economia do poema particular”. Mas penso que
a im agery (termo técnico que não existe em outras línguas)* sempre foi um
tanto superestimada pelos críticos literários ingleses, que se comprazem ex­
cessivamente nesse elemento sensorial que, para eles, faz com que um poe­
ma seja um poema (atitude para cuja explicação existem razões históricas —
ver artigo de E. L. Stahl sobre a teoria poética de Coleridge in W eltliteratu r ;
F estgabe fü r F ritz Strich, Berna, 1952); e a idéia de Wasserman sobre a “gra­
mática imagística” vai ainda mais longe neste sentido, ao proclamar implici­
tamente uma autonomia das imagens — ele reivindica o ponto de vista de
que só a partir da “gramática imagística total do poema” se pode deduzir o
conteúdo (ou “intenção”). Segundo Wasserman, o aforismo “B e a u ty is
tr u th ...” não pode ser o ponto culminante do poema porque sua im agery
supostamente não “preparou” a máxima final. Mas como é que o crítico se
acha autorizado a não levar em conta o fio intelectual do pensamento assi­

*A proxim adam ente corresponde ao que cham aríam os jogo, ou com binaçã o, de imagens p ró ­
prio a um autor. (N. do Org.)

366
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

nalado pela seqüência das frases (ainda que em partes ímagístícas), “sylvan
h isto ria n ”, “ O Attic shape!”, c<silent f o r r r i\ “ Cold P astoral”, que culminam
no aforismo £íBeauty is truth...”? Eu sustentaria antes o ponto de vista se­
gundo o qual nenhuma seqüência imagística se poderia considerar válida a
menos que fosse confirmada pelo aforismo final
Nenhum mitologema do mundo, do tipo “gramática imagística”, nos
convencerá de que, na poesia européia anterior ao simbolismo e ao surrealis­
mo, as imagens tenham vida própria, não subordinadas às idéias. De fato,
foi em função da idéia do poema (“a mensagem estética, não histórica, da
obra de arte”) que Keats ofereceu à nossa contemplação as três cenas dife­
rentes (ou conjuntos de imagens) no friso, em que seus sentidos histórico e
estético não foram igualmente satisfeitos (atingindo o equilíbrio apenas na
cena 2, mas não nas cenas 1 e 3) — quer estas três cenas tenham existido
outrora num vaso grego que por acaso realmente viu, quer ele mesmo ti­
vesse inventado (ou modificado) as três cenas de modo a satisfazerem à sua
tese geral sobre a obra de arte. Assim, na minha opinião, os críticos, depois
de terem indicado os pormenores essenciais e delineado os claros contor­
nos da escultura descritos no nosso poema, deveriam estabelecer sua firme
arquitetura ideológica (o avanço particular ou nuance que ele representa
entre os poemas qu<* tratam da arte, ou filosofias da arte) antes de analisa­
rem a imagery (que, em nosso poema, é decerto subordinada). As imagens
do nosso poema não têm o poder de reduzir o aforismo final a uma posi­
ção subordinada; pelo contrário, o aforismo final, que tão claramente res­
salta para qualquer leitor de espírito não preconcebido, e que deve estar
ligado a idéias previamente sugeridas no poema, não pode deixar de redu­
zir as imagens a uma posição subordinada — a de corporificar a idéia.20 E
irônico que o professor Wasserman, discípulo do autor de The g rea t chain
o f beingj ao explicar um poema de idéias bastante simples, tenha abando­
nado o seu ponto forte, a história das idéias (que inclui a história das idéias
antigas).21
Estabelecer uma metagramática imagística, ignorando a “gramática in­
telectual” que controla totalmente o poema, seria acionar um perigoso
“aprendiz de feiticeiro”. Tenhamos, nas nossas explicações dos poemas
clássicos da literatura inglesa, menos magia ou alquimia imagísticas, que
cheiram a coisa fechada, e mais daquela lucidez cristalina de ar livre, em
relação à obra de arte — como está presente na ode de Keats, em que

3 6?
LUIZ COSTA LIMA

pensamento e imagem se tornaram naturalmente uma coisa só, porque a


imagem não usurpa os direitos do pensamento, porque o pensam ento
encontrou sua corporificação adequada. O belo verso aO A ttic shape! Fair
a t t i t u d e ! . . . ” é, em si mesmo, uma perfeita encarnação da imagem servin­
do ao pensamento.

Tradução
Álvaro M endes

Revisão
F ernando Augusto R odrigues

3 6 8
Notas

1. O professor Wasserman chega a cunhar uma palavra derivada deste termo clássico
da retórica: oxymoronic — formação que ofende igualmente o ouvido clássico e o
americano; em uma frase como “A natureza (de Pan) é oximorônica nos domínios
do céu”, a mistura de um neologismo com um solecismo é lamentável. O ouvido
latino torna a ser ferido pela cunhagem de coextential (p. 36); pretenderá ela ser
uma palavra portmanteau {coexistent + coextensive)?
2. Embora eu me oponha ao que o professor Wasserman chama corretamente o hábi­
to “autoflagelatório” que têm certos críticos extremistas de excluírem por princí­
pio, da explication de texte, todos os elementos exteriores ao poema, acredito que
o momento de fazer referências a elementos estranhos deve ser estabelecido com
todo o cuidado. Por exemplo, no caso da nossa ode, creio que seria melhor estra­
tégia crítica, em vez de citar logo de começo passagens de outros poemas (“There
is a budding morrow in midnigkt”, “at keaven’s bourne” etc.) ou idéias gerais de
Keats, reconstruir o poema para o leitor através de palavras e conceitos extraídos,
na medida do possível, do poema em estudo. O leitor deve ser levado a sentir o
poema como auto-explicativo e auto-suficiente (pois na maior parte das vezes é
isso que o poeta pretende), desdobrando-se organicamente aos olhos do leitor,
sem necessidade de comentador nenhum. Auxílio exterior introduzido cedo de­
mais, e como se indispensável, pode destruir a impressão da unicidade específica e
da totalidade da obra de arte. Só quando o leitor compreendeu inteiramente o
poema, auxiliado, talvez mais do que ele supõe, pela orientação invisível do críti­
co, poderá este elevar o seu vôo e exclamar: “Isto não é tudo o que vocês precisam
saber. Este poema também deve ser visto em ligação com toda a produção de Keats,
e com o seu sistema de idéias.”
3. Por que este recurso jurídico e comercial “nos domínios do céu”?
4. Passagens como estas, que nos apresentam como já conseguido pelo poeta, logo
no começo, o que é somente recompensa resultante de longa meditação, a unio
mystica, causam, no leitor não preparado, primeiro um leve sentimento de ver­
tigem, depois um sentimento de frustração diante da solução prematura de to­
dos os problemas, alcançada ostensivamente com tanta facilidade, tão sem
esforço.

3 6 9
LUI Z COSTA LIMA

5. Desde que já na Antigüidade a ecpbrasis poética era freqüentemente dedicada a


objetos circulares (escudos, taças etc.), tem sido tentador para os poetas imitar ver­
balmente este princípio construtivo em suas ecphraseis. O poema de Moerike so­
bre uma lâmpada antiga mostra a mesma circularidade formal motivada pela forma
do modelo, como ocorre na ode de Keats sobre a urna; cf. meu artigo em Trivium,
IX (1951), 134-47.
6. Não estou certo de que o professor Wasserman não tenha tomado demasiadamen­
te ao pé da letra a expressão “sylvan history”, contrapondo-a, de maneira desfa­
vorável, à “história factual” (à qual se sabe que Keats foi contrário); enquanto a
“história factual”, segundo Wasserman, “particulariza e por isso mesmo limita os
fatos ao mundo mortal”, a Uísylvan history’ capta as paixões humanas e torna-as
‘quase etéreas pelo poder do poeta’... A história humana registra o devir; porém a
urna é o historiador da essência e registra a essência do devir...”. Mas Keats criou
o termo “sylvan historian” (e não “sylvan history”\) apenas como palavra de oca­
sião, válida somente no contexto da nossa ode, para logo ser esquecida, perfeito
cristal de floco de neve que se desfaz no momento seguinte. Tem-se aqui a sensa­
ção desconfortável de que um analista hiperconsciencioso enumerou todas as pos­
síveis categorias de história; em acréscimo aos gêneros bem conhecidos de história
cultural, história social, história econômica, foi criado agora mais um ramo que,
doravante, será conhecido como “sylvan history”. E devemos lembrar-nos de que
a urna é chamada de “historian” por Keats apenas enquanto figura de estilo deno­
minada “lucus a non lucendo”, pois o fracasso da obra de arte como “historian”
será demonstrado no próprio poema (estrofe IV).
7. Seria de esperar que a urna que contém as cinzas do morto representasse, antes de
tudo, o silêncio e a quietude da morte — mas Keats, neste poema verdadeiramente
grego (pitagórico-platônico), evitou cuidadosamente qualquer alusão à morte, o que
aproximaria o poema da poesia do século XVIII sobre túmulos. A urna de Keats é,
desde o início, considerada apenas um monumento grego de beleza, de acordo com
a prática dos antigos, primeiro formulada por Lessing em seu tratado Wie die Alten
den Tode gebildet (Como os antigos conceberam a morte) e que Goethe considerou
de acordo com sua reflexão filosófica. Ver Venetianische Epigramme (1790), n.° 1:

Sarkopbagen und Urnen verzíerte der Heide mit Leben;


Faunen tanzen umber..,
Cymbeln, Trommeln erklingen; wir sehen und hoeren den Marmor,,.
So überwaeltiget Fülle den Tod; und die Ascbe da drinnen
Scbeint, im stillen Bezirk, noch sich des Lebens zu freun.

Notemos, circunstancialmente, a ênfase que dá Goethe, neste epigrama, à quali­


dade auditiva das cenas retratadas no antigo e silente monumento de arte.

370
TEORIA DA LITERATURA I M SUAS FONTES — VOL. 1

8. Os Poderes não terrenos corporificados em todos os elementos, exceto na terra, sus­


tentam as “spkery s e s s i o n s eles regem, por assim dizer, o concerto da harmonia
das esferas, que permanece inaudível para os ouvidos terrenos — um silêncio falan­
te que pode ser comparado ao de uma urna votada aos mortos (embora Keats, mais
uma vez, evite mencionar este conceito, é para a morte que apontam as alusões ao
destino e “a season due”). Para nós, é importante compreender a estreita associação,
no espírito de Keats, entre a urna silenciosa e a musical harmonia pitagórica do
mundo. Keats não é o primeiro a ter identificado o silêncio de um monumento his­
tórico, que por sua melodia transterrena supera a morte, com a música das esferas.
Quevedo, poeta barroco espanhol do século XVII, ouviu harmoniosa melodia nos
velhos livros. Eis as quadras de um soneto dirigido a seu editor:

Retirado en la paz de estos desiertos


con pocos, pero doctos libros juntos9
vivo en conversación con los difuntos
y escucho con mis ojos á los muertos;

Sino siempre entendidos3 siempre abiertos3


o enmiendan o secundan mis asuntos;
y en músicos cal lados contrapuntos
al sueno de la vida hablan despiertos.

Então, o silêncio do “livro douto” é uma música pitagórica contrapontística das


esferas que “secunda” o pensamento do poeta; mas o poeta barroco não teme
mencionar a morte; pelo contrário, está convencido de que os mortos estão “des­
pertos” e têm a verdade viva, enquanto a vida é sonho e ilusão. Seu paradoxal
pensamento cristão (“vida” = “sonho”) que é expresso em paradoxos verbais e
trocadilhos metafísicos (“escuto com meus olhos”, “os mortos falam despertos”,
“os livros secundam o pensamento do poeta”) está em desacordo com o paradoxo
platônico de Keats; em Quevedo, este mundo aparece mergulhado no desengano;
em Keats ele reflete (nas suas obras de arte) a luz celestial de Idéia,
9. Cf. as palavras de Schiller, “In sich selbst ruht und wohnt die ganze Gestalt, eine voellig
gescblossene Schoepfung... da ist keine Kraft, die mit Kraeften kaempfte, keine Bloesse>
wo die Zeitlicbkeit cinbrechen koenntey\ e outras passagens tiradas de Schiller citadas
por Ilse A. Graham, “Zu Moerikes Gedicht A u f eine Lampe’”, MLN, LXVIII, 331.
10. O professor Wasserman acredita (p. 37) que, “se a declaração de que beleza é ver­
dade for a intenção total do poema, então é aqui (lugar do clímax, na estrofe III)
a que ela pertence, e a nenhum outro lugar. Pois isto é o que o poema vem dizendo
até este ponto”. Na minha opinião, o aforismo pode vir apenas depois da estrofe
IV, na qual o poeta descobriu a impossibilidade da “empatia histórica”, chegando
então como alívio e consolo.

371
LUIZ COSTA LIMA

11. Acho um tanto arbitrária a sugestão do professor Wasserman (p. 30) de que nos
modos sintáticos usados nas estrofes I-III se registra um aumento de “empatia”; de
acordo com ele, o “menos empático” é manifestado pelo modo interrogativo (es­
trofe I), os dois modos mais empáticos que vêm a seguir (que aparecem combina­
dos na estrofe II) são indicativos e imperativos, sendo o clímax empático atingido
nas sentenças exclamativas (estrofe III). Isto é destituído de validade geral para a
linguagem e de pertinência para as nossas estrofes; com certeza, o modo inter­
rogativo pode ser altamente empático em perguntas como “Ah, did you once see
Shelley plain/And did he stop and speak to you...V\ Quanto à nossa estrofe I, as
perguntas são interrogativas apenas sob o aspecto formal; na realidade, têm o va­
lor emocional de exclamações (“What wild ecstasy?” poderia ser impresso como
“What wild ecstasy r . Com certeza, a exclamação como tal não “garante que o
sujeito esteja implicado na vida do predicado — se tenha fundido a ele — ‘tornan­
do-se assim parte dele”’). Além disso, o indicativo como tal não é nem deixa de ser
empático; “Heard melodies are sweet” não é empático, mas, como dissemos, filo­
soficamente meditativo, enquanto que “thou canst not leave / Thy song” é real­
mente empático. Por fim, exclamações como “Ah, happy, happy boughs\” são
empáticas, mas apenas devido ao adjetivo happy.
12. E lamentável que a terminologia metafísica do professor Wasserman, tanto aqui como
em outras passagens, dilua todo o concreto, mesmo quando ele está avançando na
direção certa: “Agora Keats faz três perguntas. A primeira, como as da primeira es­
trofe, refere-se à identidade: lWho are these coming to the sacrificeVMas decerto
não pode haver resposta, porque nos domínios do céu existe apenas ausência de
identidade. As duas perguntas seguintes... buscam direções... são perguntas espaciais,
e não podem ter mais respostas do que as relativas à identidade, porque os domínios
do céu são espaço essencial. No resultado da convivência com a essência é que nos
tornamos (Full alchemiz’d, and free of space'” (p. 41). Para mim, frases como essas
em destaque soam a pronunciamentos de uma espécie de burocracia fantasmal “nos
domínios do céu”, respondendo a perguntas com a auto-suficiência peremptória evi­
dentemente característica dos guardas de trânsito do céu. Mais uma vez, o que deve­
ríamos pensar de alegorizações como: “O altar do sacrifício em direção ao qual avança
a procissão é... dedicado ao céu, ao reino do puro espírito: imortal sem mortal, ver­
dade sem beleza. E a cidade que as almas abandonam é a cidade que todas as almas
abandonam em sua caminhada humana em direção ao altar-céu” (p. 42). Não, o
altar e a cidade são apenas um altar e uma cidade gregos não descritos, e esqueça­
mos “o reino do puro espírito” e o “altar-céu” para nos concentrarmos no único
problema imutável do poema: o que é que uma urna grega nos pode ensinar?
13. A associação estabelecida aqui entre o detalhe da cidade morta e o sentimento
da qualidade mortal da história é simetricamente paralela à associação, nas es­
trofes I-II, entre o detalhe das flautas e pandeiros representados no friso e a crença
do poeta na música pitagórica do silêncio.

3 7 2
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

14. O professor Wasserman citou de maneira pertinente, sem identificá-la com o


platonismo, a passagem de uma carta de Keats em que ele define o summum bonum
à maneira platônica: “O que a imaginação capta como Beleza deve ser verdadeiro,
quer tenha existido antes ou não.” Posso indicar uma identificação semelhante de
beleza com verdade no poema “Die Künstler”, de Schiller (1789); cf. passagens como:

Nur durch das Morgenthor des Schoenen


Drangst du in der Erkenntnis Land...
Was wir ais Schoenheit hier empfunden,
Wird einst ais Wabrbeit uns entgegengehn.
Der freisten Mutter freie Soehne,
Scbwingt euch mit festem Angesicbt
Zum Strablensitz der hoechsten Scboene!
Um andre Kronen bublet nicht!
Die Scbwester, die eucb bier verscbwunden,
Holt ibr im Scboos der Mutter ein;
Was scboene Seelen scboen empfunden,
Muss trefflicb und vollkommen sein.

15. Semelhante abordagem antiarqueológica encontra-se em “Kore”, poema curto e


menos ambicioso de Goethe, escrito aproximadamente pela mesma época (1819
ou 1821) que a ode de Keats (a virgem é Proserpina, de que Goethe vira algumas
antigas representações). Dando ao poema o subtítulo “Nicht gedeutet” (não ex­
plicado), Goethe escolheu afirmar, em contradição com interpretações da época
sobre antigas obras de arte, como as de Creuzer e Welcker, o direito da obra de
arte antiga à inviolabilidade. A primeira estrofe do poema escarnece de todas as
tentativas de identificação factual pelos arqueólogos:

O h Mutter? Tochter? Scbwester? Enkelin?


Von Helios gezeugt? Von tuer geboren?
Wohin gewandert? Wo versteckt? Verloren ?
Gefunden ? — Raetsel isfs dem Künstlersinn.

O “enigma” factual permanecerá, pois, insolúvel; o que é de toda a importância


para o “sentido artístico” é, como o proclama a segunda estrofe, a “natureza divi­
na” de Kore, isto é, a mensagem da beleza sempre autotranscendente corporificada
em Proserpina (e, supostamente, em suas representações):

Die Gott-Natur enthüllt sich zum Gewinn:


Nach boechster Schoenheit muss die ]ungfrau streben,
Sizilien verleiht ihr Goetterleben.

3 7 3
LUI Z COSTA LIMA

16. Só uma vez, na invocação à cidadezinha que Keats imaginou apenas por inferência,
a predicação hínica thou não se limita à urna e às coisas nela representadas. Neste
caso, o poeta se permitiu inserir a obra de arte na “história” — vício de sua imagi­
nação, por assim dizer, que é simbolizado pelo uso inadequado do thou e de que o
poeta será levado a retratar-se pela forma inteira da urna que se eleva diante do
seu olhar: “O Attic shape!..”
17. Deve ter-se em mente que, além das verdadeiras inscrições sepulcrais, os gregos
desenvolveram um gênero literário de pseudo-inscrições, dirigidas ao leitor, no
qual seria descrita a obra de arte. Hellmuth Rosenfeld, que no seu livro Das deutsche
Bildgedicht, Leipzig, 1935, trata principalmente da sobrevivência desse gênero na
poesia alemã, distingue os tipos antigos do Bildgedicht, aquela “forma híbrida es­
teticamente desafiadora, em que a obra de arte em seu repouso e a poesia que con­
siste em movimento são levadas a uma perfeita união”; tal gênero pode consistir
em: (1) um apelo objetivo ao leitor pela pessoa que doou a obra de arte como um
ex-voto; (2) um recurso ficcional pelo qual a própria obra de arte supostamente
fala para se apresentar, ou para responder a perguntas do leitor; (3) o desenvolvi­
mento posterior em que o poeta assume a parte do leitor no diálogo com a obra de
arte (neste caso, o diálogo pode tornar-se um monólogo do poeta); (4) finalmen­
te, a variante em que o poeta (que aponta para a obra de arte: “contempla... con­
templa!”) a descreve para um espectador ideal ou reinterpreta, como se fosse
pessoalmente movido a isso, a cena representada na obra de arte como ação dra­
mática. Rosenfeld, em lembrança da cena homérica, chama a este tipo de “teicos-
cópico”. Parece óbvio que a ode de Keats contém os elementos (2), (3) e (4)
ordenados de tal maneira que (2) (a resposta da obra de arte) e (3) (o apelo a um
espectador ideal) brotam organicamente de (4) (a apresentação “teicoscópica” da
urna). Acrescento ainda que na coletânea de Rosenfeld de “Bildgedichte” alemães
nada há que se compare à “apercepção estética desenvolvida no tempo”, tão ca­
racterística da ode de Keats.
18. Agora que vimos a correspondência entre os versos finais da ode e o costume gre­
go de inscrever monumentos sepulcrais, podemos ir mais além e perguntar-nos se
mesmo no começo deste poema não se pode notar já algo semelhante. As reitera­
das “perguntas quanto à identidade histórica” nas estrofes 1 e iy que aparecem
carregadas de uma emoção tão pessoal por parte do poeta, podem ter seus antece­
dentes em perguntas semelhantes inscritas em monumentos gregos e ostensivamente
dirigidas pelo passante ao monumento. Cf. a descrição de Friedlaender de uma
coluna encimada por uma Esfinge, e com a inscrição: “O Esfinge, cão do Hades, a
quem vigias, enquanto montas guarda aos mortos?” Segue-se, como resposta, o
nome de determinada pessoa morta. Mas as perguntas de Keats, dirigidas como o
são à Esfinge da História, não admitem resposta da História. O diálogo inerente à
inscrição sepulcral foi tornado explícito pelo poeta neolatino Pontanus que, em

3 7 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

seus Tumuli (1518), tantas vezes imitado pelos poetas franceses da Pléiade, fez
repetidamente um Viator formular perguntas (quanto à identidade histórica) que
eram respondidas pelo Genius ou pela umbra dos mortos. Nas Bergeries (1572) de
Remy Belleau encontramos descrições em prosa de suntuosos túmulos do Renas­
cimento, seguidas por epitáfios em verso que soam como respostas poéticas à si­
lenciosa pergunta do contemplador. Não pretendo, naturalmente, afirmar que Keats
tenha na realidade visto ou estudado alguma das inscrições gregas particulares
mencionadas acima (nem suas derivadas do Renascimento); mas o poema foi evi­
dentemente escrito por alguém que estava embebido daquela atmosfera particular
criada por qualquer museu de arte clássica.
19. Ver nota 2, acima.
20. Por outras palavras: as imagens do nosso poema não são de natureza associativa
(como o são, por exemplo, as do “Bateau ivre” de Rimbaud); somente se o fos­
sem, poderia justificar-se uma aproximação predominantemente imagística.
21. E paradoxal ver no trabalho do professor Wasserman duas tendências que parece­
riam excluir-se mutuamente: uma alegorização por demais ansiosamente metafísica,
de um lado; e uma subserviência à metagramática imagística, do outro; nos dois
casos existe evidentemente um excesso de meta, um afastamento daquela aurea
mediocritas que evita os extremos da crítica literária. (Mas estes “excessos” radi­
cam, sem dúvida, numa virtude nunca por demais elogiada: o desejo apaixonado
que tem o professor Wasserman de compreender inteiramente o poema.)

3 7 5
CAPÍTULO 11 A Poesia espanõla de
Dámaso Alonso
LEO SPITZER

Publicado, sob form a de resenha, in Romanische Forscbungen 34 (1952). (O título integral da


obra com entada é Poesia espanola, ensayo de m étodos y lim ites estilísticos, 1950. Em 1952,
foi ela reeditada com correções e ampliações). (N. do Org.)
Este importante livro se dedica à reflexão metodológica sobre a considera­
ção moderna da literatura, a um exame das possibilidades e limites da análi­
se da obra literária em seu ser material, i. e., verbal — o estilo. Este objetivo
e a sua realização com exemplos nos clássicos da lírica espanhola, influen­
ciados por Petrarca, transformam-no em um marco na estilística românica,
comparável, embora com características diferentes, ao Mimesis de E. Auer-
bach, que apresenta apenas análises estilísticas sem a justificativa de seus di­
versos passos. Na medida em que em sua consideração metodológico-teórica
considera explicitamente todos os passos do estilista quanto à obra aborda­
da e em seu significado pedagógico, o livro de Alonso está talvez mais próxi­
mo do livro Linguistics and Literary History (Princeton, 1948), com menos
detalhes e menos textos. Apresenta-se, entretanto, sob forma de livro com
uma estrutura coerente e não como uma coletânea de ensaios sobre alguns
grandes poetas, cuja unidade se revela a partir de um laço pedagógico inter­
no. Por sua sistemática rigorosa, apesar do detalhismo na interpretação, Poesia
espanola serve como introdução, especialmente ao leitor culto — contanto
que entenda espanhol —, tanto dos clássicos da poesia espanhola, quanto,
de modo geral, da pesquisa estilística moderna.
O livro apresenta uma construção clara: a introdução sobre Saussure e o
posfácio sobre Bally discutem teorias lingüísticas que servem de base para
teorias literárias. Este quadro, que será lembrado, na obra inteira, por incur­
sões teóricas, se constitui em três etapas da compreensão da obra literária: a
do leitor, a do crítico e a do estilista. O leitor é confrontado com Garcilaso
e Fray Luis, o crítico com San Juan e Góngora e o estilista com Lope e
Quevedo, a partir de textos característicos, detalhadamente explicados. Um
dos últimos capítulos estuda os “limites” da estilística, o indizível do indiví­
duo, em última análise inexplicável tanto para o leitor ingênuo, quanto para
I U I Z COSTA DMA

o critico apoiado em juízos de valor e para o estilista preocupado com a essên­


cia verbal da obra de arte.
Dámaso Alonso, que se tom ou famoso há 25 anos por fundar a com­
preensão moderna de Góngora, é hoje certamente o mais significativo re­
presentante da teoria da literatura hispânica no que diz respeito ao Século
de Ouro. Por sua própria criação poética, pela profunda compreensão da
técnica na criação de Góngora, muito próxima do seu próprio modo de
escrever (chamei de el conceptismo interior este tipo do fazer poético co­
mum a muitos poetas espanhóis modernos), por sua visão de outras litera­
turas e das mudanças estilísticas historicamente condicionadas, por sua
percepção material das qualidades formais da poesia, especialmente por seu
temperamento latino irrequieto e pela vivacidade de seu estilo quase cine­
matográfico, por seu entusiasmo tanto pelo fazer poético quanto pelo tra­
balho de explicação que se revela numa produtividade excepcional em
numerosos artigos e livros, como também pela versatilidade e permanente
disposição em abandonar teorias próprias em virtude de fatos novos ou em
adequá-las ao nível das pesquisas mais recentes — pela união feliz de todas
estas capacidades — ele ultrapassa significativamente o antiquado polígrafo
Menéndez y Pelayo, este árido enciclopedista literário espanhol do século
XIX, condicionado por dogmas e influências sociais, sem pátria literária
alguma. Alonso desconfia até de que ele tenha lido os autores estudados. O
próprio Dámaso Alonso se compara assim a seu inspirador, o mestre da
literatura espanhola antiga, Menéndez Pidal, em conhecimento enciclopé­
dico e específico, embora o temperamento expositivo destes dois grandes
críticos literários espanhóis seja tão diferente quanto são diferentes o eco­
nômico e solene Poema dei Cid e a vital e esfuziante Comedia de um Lope.
É possível que o leitor alemão tenha restrições à retórica esfuziante do mais
novo representante da teoria da literatura espanhola; é possível que o pú­
blico espanhol precise desta acrobacia encomiasta, deste esbanjamento de
adjetivos cultistas como máximo, virginal, lumínico, translúcido etc., deste
acúmulo de maneirismos e afetações de um prestidigitador hábil e cheio de
si em ensaios teóricos sobre literatura, enquanto um público alemão ou
inglês preferiria a serenidade e concentração de um E. Auerbach ou de um
T. S. Eliot. Será de fato que digressões preciosas e sentimentais e olhares
semípoéticos distraídos como à p. 135 (o sentimento lânguido de Fray Luis
ao avistar o Guadalquivir: “Como sempre quando poetas vêem rios, por­
que rios são irmãos dos poemas”) ou como à p. 84 (as ninfas de Garcilaso?

3 8 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

saindo da água e secando-se “fazem o que todas as ninfas e mulheres fa­


zem, sejam elas ninfas ou não”) ou como à p. 548 (um parágrafo inteiro
sobre as mulheres imortalizadas por um poeta lembra a beleza da vida e a
irreversibilidade da morte), ou ainda o humor duvidoso da página de me­
mórias do crítico dos dias em Cambridge à p. 327 (o internato e uma Miss
Fulton) sugerindo gosto cultivado, seriam necessários e esclarecedores quan­
do se pretende despertar no público o sentido pela qualidade literária? E
será que alegorias fracas, acentuadas pela mímica do parágrafo curto (p.
101), sobre um verso de Góngora ressaltando a beleza de uma ninfa que
chora uma companheira morta (“Este é um verso de beleza imortal; e a
oferenda da beleza humana face à m orte”), não soam também vazias e in­
sípidas como resquícios da panegírica das prolusiones acadêmicas h u ­
manistas?
Uma outra característica de nosso crítico pode causar estranheza —-
aquela que chamaria de “tautologia nacional”. Trata-se de um tipo de pen­
samento que se encontra mais em críticos literários alemães e franceses e
menos em italianos e ingleses, mas infelizmente em quase todos os eruditos
espanhóis. Refiro-me à afirmação implícita de que uma obra de arte espa­
nhola é grande porque genuinamente espanhola e genuinamente espanhola
quando grande — essa tendência nacional apologista que, fascinada pela
leyenda negra e educada pela escola dos regeneradores (Unamuno etc.), ain­
da se sente obrigada a acumular provas para um et ego in Arcadia, que hoje
ninguém negaria aos espanhóis.1 O capítulo sobre Lope de Vega termina de
forma bombástica, como se se tratasse de uma inscrição a gravar ao pé de
uma estátua. Um único parágrafo, segundo o qual a natureza complexa de
Lope é qualificada de incomparável quanto a qualquer outro escritor euro­
peu: Sí, Lope vínculo de Espana, nudo de Espana, símbolo de Espana. Surge
de imediato a pergunta: Cervantes, Calderón e Quevedo não são igualmente
símbolos da Espanha e a complexidade é uma característica peculiar dos es­
critores espanhóis (cf. Goethe, Dostoievski)? No dia em que os críticos lite­
rários espanhóis deixarem a política espiritual (Geistespolitik) para os
propagandistas políticos e para os jornalistas e usarem as palavras espanol,
Espana1 em sentido estritamente geográfico, surgirá uma nova dimensão para
a história literária espanhola nacional (a dimensão da especificidade científi­
ca e do distanciamento interessado). O hispanocentrismo dos estudiosos es­
panhóis da literatura só será superado no momento em que se colocarem, ao
lado dos grandes nomes da história da literatura espanhola (Menéndez Pidal

381
LUIZ COSTA LIMA

e Dámaso Alonso), grandes especialistas em outras literaturas européias: gran­


des germanistas, anglicistas e romanistas e sobretudo, em virtude dos parale-
lismos entre Espanha e Rússia, eslavistas. Na Alemanha, p. ex., germanistas
germanófilos foram postos em xeque por homens como Curtius, Vossler,
Dibelius, Geesemann e pelo maior estudioso da literatura alemã, Gundolf,
que era, ao mesmo tempo, um excelente comparatista...
Vamos agora abordar o método de Dámaso Alonso. Como ele próprio
nos assegura — e nós o sabemos —, foi ele mesmo o autor deste método. Já
nos dois trabalhos sobre Góngora temos um exemplo magnífico de sua per­
cepção específica da unidade de língua e conteúdo, da métrica, de colorido,
do concepto material-espiritual, da tensão sintática e, de modo geral, de toda
a técnica daquele poeta. Esta técnica de Alonso, que se caracteriza pela imi­
tação poética congenial à técnica dos poetas do Grande Século, encontra-se
também no presente livro, mas, como já dissemos, integrada no quadro teó-
rico-pedagógico da discussão com Saussure e Bally. Ela teria a aprovação de
qualquer estilista não-hispânico formado por Vossler, Croce, Walzel e pro­
vavelmente até de autodidatas. Alonso demonstra de forma magistral a
unilateralidade intelectualizada da definição do signo lingüístico de Saussure
(um conceito, significatum, e uma forma fonética como expressão do mes­
mo, significans)) porque a língua não expressa predominantemente concei­
tos puros, mas conceitos de coloração afetiva e imaginativa e mostra como
Bally concede uma “estilística” limitada ao atribuir ao estilo o afetivo e à
gramática o intelectual da língua, faltando-lhe tudo que se entende por “es­
tilo”, por estilo individual dos grandes poetas revelado tanto no conceituai
como no imaginativo. Pode parecer estranho que Alonso escolha os repre­
sentantes da lingüística genebrina, que não entendem de poesia, como por-
ta-vozes de sua polêmica (e talvez seja louvável o fato de ele advertir o grande
público para não supervalorizar suas realizações na pesquisa da língua como
fenômeno global), em vez de seguir as realizações positivas da estilística ale­
mã, russa e norte-americana dos últimos 30 anos, nem um pouco valoriza­
das na discussão teórica. Mas talvez esta polêmica forneça ao autor uma nova
possibilidade de emprego, fazendo com que suas idéias pareçam novas e um
esqueleto teórico (significatum-significans) que pode reorganizar, assegurando
assim o interesse do leitor estimulado a acompanhá-lo...
De que forma se realizou a integração das explications de texte de textos
exemplares dos seis poetas no tríptico pedagógico? Imagino que não foi sem
certa violência: nos capítulos dedicados à leitura intuitiva do leitor comum,

382
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

aprendemos determinados artifícios técnicos de Garcilaso (hipérbato, enjam•


bement, onomatopéia, ritmo), mas Alonso confessa, em última instância, que
a beleza de sua poesia é ininterpretável (p. 105: “Deus, meu Deus, por que
mexemos com nossas mãos inábeis na poesia, se nada sabemos de seu segre­
do, que é só Vosso?”). Penetramos ainda no universo poético de Fray Luis,
abordado pelo lado “interno” e “externo” (externo: a influência de Horácio,
especialmente com respeito à forma métrica da lira e suas exigências técni­
cas; interno: a polaridade do temperamento desarmônico do poeta patente
na sua biografia e a necessidade de harmonia exteriorizada na sua ode platô-
nico-cristã sobre a harmonia das esferas e nos seus escritos em prosa). Nos
capítulos sobre o crítico, é abordado o mistério técnico (!) da poesia lírica de
San Juan (a sublimação de certos poemas populares tradicionais ou petrar-
quistas profanos, por meio de pequenas alterações, processo que se chama
em espanhol a lo divino e em alemão Kontrafakte (contrafações). Aprendemos
ainda algumas particularidades estilísticas gramaticais: emprego parcimonioso
de verbos e de adjetivos ornamentais) e também é abordada a técnica de
Góngora na sua Fábula de Polifemo, um misto de narrativa e lírica que su­
bordina a duplicidade “monstruosidade e beleza”, à polaridade entre a bele­
za inexistente e a realidade estilizada em telúrica e estranha. Nos capítulos
sobre o estilista, diante da alternativa de um caminho do exterior ao interior
e do interior ao exterior, Lope é citado como símbolo do barroco pela sua
irrequieta força expressiva (em quatro grupos de poemas estilisticamente di­
ferentes: “humanos” — que tratam de sua vida particular; “petrarquistas”
— que usam o artifício dos versus rapportati; “gongoristas” — imitando cla­
ramente Góngora; “filosófico-esotéricos” — a resposta poética de Lope (ao
esoterismo de Góngora); e ainda Quevedo, em que a tensão obscura e telúrica
destrói a medida da beleza renascentista) em um desgarrón afectivo, sem
entretanto abandonar o comedimento necessário. Quevedo é mostrado nos
seus poemas petrarquistas, morais e burlescos, sem dúvida os dois últimos
sendo concebidos como do “interior ao exterior”.
A partir desta visão temática geral, forçosamente esquemática, podemos
concordar com a minha afirmação inicial de que o tríptico leitor-crítico-
estilista não dá conta integralmente da riqueza da obra: por certo, esperaria
uma demonstração gradativa de como o leitor, sem ser crítico ou estilista e
sem conhecer termos especializados, possa entender o poeta a partir de sua
leitura ingênua, e até onde pode chegar o crítico não-estilista com seus juízos
de valor declaradamente não-descritivos.

383
LU IZ COSTA LIMA

Na verdade, lidamos desde o início, já a partir de Garcílaso,3com estilística


(hipérbato, enjambement etc.) e juízos de valor dos críticos (um Lessing, um
Sainte-Beuve, um de Sanctis etc.) são curiosamente quase inexistentes; ape­
nas se alude aos juízos errôneos de um Menéndez y Pelayo. As três partes
principais tratam, na realidade, de uma análise pedagógica gradativa, da
manipulação cada vez mais complexa da estilística, em vista da escolha de
cada autor. Mas esta exposição coerente do método que o autor domina como
ninguém nos causa um prazer incondicional — não obstante o prejuízo da
arquitetura prometida. O nosso resumo também terá mostrado que esta obra
aborda mais o caminho do “exterior para o interior”, indo do detalhe para
o conjunto (da constituição material do verso para a inspiração) e menos o
caminho inverso. Parece-me que a melhor análise foi aquela com que Dámaso
Alonso iniciou sua obra e que pode ser chamada seu “destino”: Góngora.
Essas páginas são antológicas: nunca se mostrou com tanta mestria, verve e
clareza o jogo da unidade de forma e conteúdo e a criação do mundo poéti­
co a partir do mundo real — neste ponto o caminho “do exterior para o
interior” é magistral.4 Estamos diante de um fenômeno raro — o encontro
de um grande poeta e um crítico de igual valor. O mesmo não ocorre nos
estudos sobre Fray Luis, Lope e San Juan, onde o “interior” é mostrado a
partir da biografia (na realidade a desarmonia de Fray Luis não se revela na
sua poesia) e se perde em classificações literárias históricas (os conjuntos de
poemas de Lope e Quevedo)5 ou se transforma em pesquisa de fontes (p. ex.,
a idéia pitagórico-platônica6 da harmonia das esferas em Fray Luis e a técni­
ca do a lo divino7 não se identifica com a natureza interior de San Juan e, no
mais belo poema da língua espanhola, “En una noche escura”, fracassa a téc­
nica interpretativa de Alonso, que, aparentemente, é mais cartesiano do que
místico). O autor, em sua inteligente autocrítica, sabe naturalmente que teve
mais êxito no caminho do “exterior para o interior”, que pressupõe uma com­
preensão anterior intuitiva do “interior”, do que no caminho inverso: isso
fica claro tanto na inclusão de “limites” da estilística no título de sua Estilística
quanto na já citada evocação de Deus, face à impotência do crítico na com­
preensão do peculiar em Garcilaso, e ainda na explícita advertência face ao
charlatanismo e a intuições demasiado frágeis na discussão do terceiro passo
da compreensão poética, a crítica (p. 444): “quase não há tentativas de estu­
dar o significatum a partir de uma perspectiva interior (será?); para tanto o
estudioso da literatura deveria tornar-se um psicólogo”, porque precisaria
observar a evolução da essência da alma de um poeta. Para mim, esta divisão

3 8 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V OL , 1

entre externo e interno na criação poética é inadmissível, enquanto não


concerne à exposição do crítico estilista; na exposição, em princípio, poder-
se-ia proceder do externo para o interno ou do interno para o externo (já
que os dois juntos, segundo o próprio Alonso, devem ser intuídos pelo críti­
co antes de escrever o seu ensaio). Entretanto, isso não significa que a ima­
gem do crítico se tom e problemática se, em sua apreensão da obra, houver
partido e avançado pelo núcleo psicológico. Parece-me faltar em Alonso o
correto conceito de “círculo filológico”, elaborado por Schleiermacher,
Dilthey e Heidegger (partir do detalhe para uma intuição provisória do con­
junto, depois voltar, se possível, para todos os detalhes da obra de arte, com­
provando assim a consistência da situação inicial), em que se baseiam todos
os trabalhos estilísticos modernos, como mostrei minuciosamente em meu
livro de Princeton, Linguistics and literary history. O motivo de sua escolha
da alternativa externo-interno ou interno-externo (embora reconhecendo a
indispensável união entre um e outro na alma do crítico) deve-se, a meu ver,
especialmente ao seu campo de trabalho escolhido. Apesar da grandeza de
figuras individuais do Século de Ouro e apesar da facilidade com que sua
biografia possa ser relacionada com suas obras (em Quevedo e Lope mais do
que em Fray Luís e Góngora), suas poesias permanecem, em última análise,
impessoais para o leitor, a quem se permite conhecer o homem, mas não o
homem Lope ou Quevedo. O seu Eu Lírico é semelhante ao de Dante, didá­
tico e não-empírico como o de Rousseau. Por esta razão todas as tentativas
de explorar o Eu do poeta no período clássico da literatura espanhola termi­
narão numa mentalidade coletiva, concretizada numa determinada escola ou
forma poética (petrarquismo, a lo divino etc.) Eu iniciei os meus estudos esti­
lísticos de modo diferente, a partir de escritores modernos contemporâneos,
que apresentam divergências pessoais em estilo e pensamento (em seu pen­
samento estilístico) em comparação com o comum: Charles-Louis Philippe,
Péguy, Romains, Proust, e só posteriormente pesquisei estilos lingüísticos
impessoais mais antigos (Racine, Voltaire). Nesses estilos lingüísticos moder­
nos se revela mais facilmente a raiz psicológica individual, porque estes au­
tores a possuíam e valorizavam o ideal do original genius. Se houvesse
permanecido em Rabelais — tema de minha tese de doutorado — provavel­
mente não teria encontrado a raiz geral do Renascimento. (Naturalmente,
não pretendo negar que escritores modernos possam apresentar elementos
coletivos ou que autores do século XVI-XVII possam ter traços “pessoais”.)
Auerbach escolheu para os estudos prévios de Mimesis também escritores de

3 8 5
LUIZ COSTA LIMA

traços raarcadamente pessoais, cuja raiz psicológica se revelava com facilida­


de (e esta não precisa ser descrita geneticamente, como parece sugerir Alonso):
Montaigne, Rousseau, Vico, P. L. Courier, Proust etc., e também Dante, ape­
sar da objetividade e distância temporal. Noutras palavras, a especificidade
poética (que não se deve confundir com grandeza poética) se revela mais
facilmente nos períodos mais modernos do original genius (e só excepcio­
nalmente em escritores como Montaigne, que pressentem novos períodos
de forma genial) do que em tempos em que o gênio se encontra sujeito a
formas poéticas impessoais e a contingências do gosto. Dos poetas estuda­
dos por Alonso, na verdade só o barroco Góngora e, de forma menos acen­
tuada, Quevedo8 desenvolveram em sentido moderno um estilo pessoal.
Mesmo um San Juan segue basicamente o canto elevado. Um Lope possui,
na verdade, sempre traços gerais, mas pessoais, no domínio eclético de to ­
dos os gêneros. No pólo extremo do inexplicável se encontra o mestre
renascentista Garcilaso,9 cuja beleza é tão impessoal quanto a de Ariosto, que
Croce chama de forma vaga de “poeta da harmonia”. Não é de se estranhar
que Alonso, fundamentalmente barroco em sua sensibilidade dualista, só
pudesse dar uma expressão tão chocante e intelectualmente sincera à sua
impotência em explicar Garcilaso e tivesse se refugiado em técnicas um tan­
to insignificantes e mais ou menos comuns a todos os poetas renascentistas.10
Esta crítica a Dámaso Alonso não significa que seu método “do externo
para o interno” e sua verificação de grandes correntes coletivas da história das
idéias (petrarquismo, a lo divino, barroco etc.) não se justifiquem nos seus
autores. Pelo contrário! Os poetas do Século de Ouro devem ser lidos como
são interpretados por ele, pesando palavras, sílabas, frases, metáforas, à ma­
neira do próprio poeta renascentista e barroco (cf. os tratados de Pontanus
sobre aliteração ou os escritos teóricos sobre literatura de Tasso). Do mesmo
modo, devemos ao famoso livro de E. R. Curtius a idéia de que os topoi da
Idade Média, por ele revelados, eram traços presentes nos poetas daquele pe­
ríodo. A postura espiritual de Alonso se aproxima realmente da de Curtius.
Ambos, o literato alemão e o poeta espanhol, sentiram em nosso tempo de
decadência espiritual11 a necessidade de se distanciarem de sistemas vagos e
pseudocientíficos e de se dedicarem, mediante estudos rigorosamente delimi­
tados, ao racionalmente apreensível na literatura e na cultura. (Curtius se tor­
nou quase gramático e lexicólogo, Alonso escreveu recentemente estudos de
caráter lingüístico, lingüístico-geográfico e etimológico.) Em ambos, verifica­
mos uma volta à filologia positivista, no entanto mais abrangente; em ambos,

3 8 6
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS F O N T E S — VOL. 1

a compreensão da língua é mais íntima e mais crítica do que em outros críticos


literários; e ambos são a tal ponto fascinados pela técnica do fazer poético que
quase chegam (Alonso menos que Curtius) a confundir o seu prazer de desco­
berta de detalhes técnicos com o prazer estético da poesia como conjunto;
ambos supervalorizam de vez em quando a realização do poeta no emprego de
topoi e formas estilísticas dadas (como se harmonia de vogais, versus rapportati
e a lo divino sozinhos já fossem poesia) e atribuem à precisão dos modelos
gráficos na poesia antiga uma beleza quase “matemática”. Alonso emprega esta
palavra pretensiosa com demasiada freqüência12 e se mostra imensamente fe­
liz quando pode desenhar um esquema como o dos versus rapportati:

A, a3 ... A 11
Bt b2 b3 ... Bn
Cl c2 C3 - - c,

P2 P3 P 11

Este esquema elemenar não tem nada a ver com a matemática, apesar de
seus sinais algébricos (qualquer matemático se divertiria com isso!), nem se­
quer com a aritmética. Trata-se no máximo de um modelo gráfico cuja bele­
za individual, uma vez fixado o esquema, nada significa a priori. Mas para a
juventude desvairada de certos países é bom que mestres experientes da
filologia, dotados de conhecimento poético e técnico, possam mostrar os
elementos materiais e técnicos, o apreensível na grande literatura, sem que
este tipo de interpretação precise ser visto como “investigación rigurosamente
científica” ou “matemáticamente rigurosa” ou que seja necessária a compro­
vação matemática em considerações filológicas.
Apesar de todas as restrições,13 permanece inalterada minha admiração
face a uma obra filológica que realiza tão magistralmente os desejos de toda
a verdadeira filologia e que compreende com essa sensibilidade congenial
um período florescente da literatura românica.

* * *

A título de exemplo escolhi um poema que pessoalmente teria abordado


de modo diferente de Dámaso Alonso: o “Profecia dei Tajo”14 de Fray Luis

3 8 7
LUI Z COSTA LIMA

de León. Alonso já tinha feito nos seus Ensayos sobre poesia espanola (Buenos
Aires, 1946) uma comparação minuciosa do poema espanhol com o seu
modelo latino, a profecia de Nereu feita a Páris, seqüestrador da Helena, na
Ode I, 15, de Horácio e classifica a interpretação do poema espanhol, em
nosso livro, dentro do quadro do “externo ao interno”. Após ter chamado a
atenção sobre o tratamento que Fray Luis deu a uma saga nacional espanho­
la da Idade Média em forma de uma lira classicista, o equivalente da ode
horaciana, e dentro do espírito renascentista, em que os protagonistas do
poeta espanhol correspondem aos do poeta romano:

Nereu — Deus do Mar — Páris — Helena — destruição de Tróia


Tajo — Deus do Rio — Rodrigo — La Caba — destruição da Espanha

ele analisa as diversas estrofes segundo critérios formais (hipérbato, polis-


síndeto, assíndeto, harmonia vogal, sinestesia, ritmo e encadeamento das
estrofes), concluindo que o encadeamento das estrofes do poema horaciano
é numericamente maior e também sua força lírico-subjetiva (nem poderia ser
de outra forma num episódio da história nacional espanhola, diferente dos
nebulosos tempos mitológicos da pré-história), já que se encontra nas últi­
mas estrofes o anticlímax lírico-horaciano. Alonso defende ainda nos Ensayos
a idéia de que a ode de Fray Luis “supera” a horaciana em sua pluralidade
imagística e seu ritmo quase orquestral.
Além de não saber o que fazer com o conceito “superar” (duas obras de
arte perfeitas com pressupostos diferentes de formação e de sentimento são
dificilmente comparáveis: será que Hamlet supera o Edipo Rei?), me causa
estranheza que Alonso trate a comparação dos dois poemas de forma tão
“externa”, a partir do estilo métrico dentro do espírito da retórica, em vez
de deduzir os elementos externos das diferentes inspirações — mitologia e
sentimento nacional — que ele mesmo acentuou. Já as estrofes iniciais dos
dois poemas apresentam as seguintes diferenças:
1. Nereu faz uma profecia a Páris quando este comete o crime de raptar
Helena; o deus do Rio faz o mesmo ao rei dos godos, enquanto se perde em
amores com La Caba na beira do Tejo;
2. Não há em Fray Luis uma acentuação do mecanismo crime/castigo
(perfidus/fera fatal);
3. Nereu acalma os ventos para ser ouvido — o que não ocorre com Fray
Luis, que apresenta um excitado deus do Rio (1), que lembra por seu lado o
bramido do deus da Guerra.

3 8 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

Considerando os itens 2 e 3 , temos o clima moderado horaciano que apre­


senta o crime humano a partir da compreensão serena da fatalidade do desti­
no e a insensatez da Hybris (sic esto nequiquam, debalde!) — e da primeira até
a última estrofe a ação se desenrola em Horácio como esperado. Por seu lado,
Fray Luis evita sabiamente este encadeamento de crime e destino e dedica doze
estrofes a uma repreensão do deus do Rio ao rei, três estrofes a uma lamentação
da desgraça da Espanha, já esboçada na repreensão. Por conseguinte, não se
apresentam crime e destino mas crime e desgraça (desgraça da guerra), ou
melhor, a desgraça do crime. O antigo destino, cuja ação permanece desco­
nhecida do homem, é substituído pela participação do deus do Rio ■ — a sua
voz se fará ouvir com crescente angústia e dor ao compreender toda a situação.
A multiplicidade das imagens evocadas, anotadas por Alonso, revelam a an­
gústia e a dor do deus participante. A profecia de Nereu cumpre-se fatalmen­
te; o profeta, apenas voz da natureza e não uma individualidade, transforma-se
agora em visionário que revela suas visões ao leitor — uma figura emocionan­
te com afetos pessoais. Deixa de ser uma voz impassível da natureza para assu­
mir a voz do povo espanhol que sofre e se desespera. O espírito original
transformou-se em espírito deste povo — que interiorização e humanização!
Neste ponto surpreende-me que Alonso não tenha mostrado mais clara­
mente o valor funcional da repetição da interjeição Iay!3que permeia todo o
discurso do deus do Rio (oito vezes repetida, intensificada em iay triste! na
estrofe doze, no final da repreensão e mais uma vez ultrapassando a dor
contida sobre a Espanha, em oposição a um mero eheu ou heu heu, confor­
me o modo de ler ■—■e um heu em Horácio), caracterizando assim o discurso
como um treno, no estilo das Troianas de Eurípides.
O sentimento e a compaixão do deus do Rio espanhol para com a pátria
espanhola são portanto muito diferentes, confirmando a distinção que Alonso
faz entre a temática “semimítica” e racional nos dois poetas. (E claro que se
poderia alegar que o episódio se enquadra em Horácio dentro da sabedoria
intelectual-mitológica comum a qualquer poeta romano, familiarizado com
o mito grego, enquanto o poeta espanhol trabalha a mitologia com mais
parcimônia, apenas pretendendo a aproximação do espanhol com um mo­
delo da Antigüidade, procurando em compensação a sua força na expressão
do sentimento.)15
Vejamos agora a parte mais importante: o item 1. Deve ficar claro que existe
um abismo entre a situação do sedutor antigo em fuga, a quem o deus do Mar
profetiza desgraças (só o ouvimos e não o vemos), e a d o deus do Rio que surge

3 8 9
LUI Z COSTA LIMA

em pessoa ao lado do leito depravado do rei espanhol (el pecho sacó fuera)u
como testemunho indesejável (os amantes se acreditaram sin testigo): o mes­
mo abismo, que existe entre o mundo de Dante, que pode tornar um proble­
ma moral fisicamente verossímil e o cristianismo com sua herança de traços
judaicos. Vossler já descobriu no seu livro Fray Luis de León (1946) no poema
em questão a marca de um “profeta do Velho Testamento”, que pune a ceguei­
ra do apaixonado e a maldição da seduzida. Muitos detalhes do poema pode­
riam ser usados para apoiar esta observação dos sentimentos. Podemos ouvir
através das palavras da figura da Antigüidade, que surge do Tejo, a voz da cons­
ciência judaico-cristã, sempre “testemunha” quando o homem está só (cf. o
mito de Caim); esta voz, que mistura a sua ameaça ao prazer sexual, os muitos
iay! que fazem estremecer o sujeito no ato de pecar (relaciono assim os itens 1
e 3). Todas as outras revelações do crime (e da desgraça) se entendem a partir
do prazer, construídas como contraponto à maneira de um pregador como
Guevara, e nenhuma delas tem correspondência em Horácio.

Estrofe 2 En mal punto te goces, injusto forzador (Horácio diz: mala-


ducis ave donum, quam multo Graecia repetet milite, raptas-
te sob mau presságio a mulher que a Grécia buscará de volta
com muitos guerreiros, portanto não acentues o conflito mo­
ral do pecador, mas a inutilidade pragmática de tua ação).
Estrofe 3 iAy} esa alegria que llantos acarrea y esa hermosa que vi el sol
mal dia a Espana, ay cuan llorosa!
Estrofe 4 Llamas, dolores, guerras, muertes, asolamientos, fieros males
entre tus brazos cierras —

Em minha opinião, Alonso excede no uso do assíndeto. O essencial é o


conceito fieros males e a identificação deste mal — numa expressão sur­
preendentemente forte e dura — com a amante. Um pregador teria dito: “Tu,
presunçoso, imaginas abraçar a beleza e a felicidade, mas em verdade abraças
o mal e a desgraça.” Nos braços do cego, La Cava se transforma de repente
naquilo que realmente é: o espírito do mal ou a alegoria da “Senhora M undo”.

Estrofe 12 íAy triste! iy aún te tienne el mal dulce regazo!17

No oxímoro, a forma estilística do “desengano” (não mencionada por Alonso)


revela-se a face dupla do prazer: um doce sofrimento, um gozo sofrido. Este

390
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

é o tema interno de Fray Luis, que substitui o castigo exterior do pecador em


Horácio. Trata-se de uma compreensão cristã da essência do pecado e da
aparência enganosa dos sentidos e da dor da consciência culpada, castigo
máximo do pecador.
Fray Luis retringiu sua censura do prazer pecaminoso ao rei dos godos.
Já o catálogo dos pecados de Horácio é mais extenso: Páris não só é perfidus,
adulter, mas também femininamente caprichoso, vaidoso de sua beleza ex­
terna, estando mais inclinado a fazer versos e a entregar-se a jogos sexuais
do que à luta; é covarde (como um veado que se esquece de comer, na pressa
de fugir, e que perde o fôlego no momento em qee surge um lobo em algu­
ma parte do vale), esbanjador, jactancioso diante da amante (non haec
polliticus tuae)JBEsta concentração em um vício é naturalmente intencional
em Fray Luis (também inexíste a bela parábola do veado, que teria estimula­
do o imitador do canto elevado. Por que os nossos comparatistas salientam
apenas o que dois poemas têm em comum e deixam de lado aquilo que os
separa?).
Ao lado da análise do prazer sexual surge um novo elemento: o momen­
to temporal. O ser arrebatado pela paixão perde o senso do tempo. No proi­
bido jogo amoroso (lembro outra vez: somos testemunhos de um oaristo)
surge a história pela boca do deus do Rio com seu ya, mas os amantes, como
na trágica Alba, não dão atenção à voz do admoestador. Os críticos em geral
insinuaram a correspondência do ya de Fray Luis com o jam de Horácio,
mas não caracterizaram as diferentes motivações dos elementos temporais.
Em Horácio, estrofe 3,

Eheu quantus equis, quantus adest viris


sudor! quanta moret funera Dardanae
genti! jam galeam Pallas et egida
currusque et rabiem parat

encontram os uma representação da fera fata no conjunto das profecias.


Na estrofe citada, há uma alusão à inutilidade do rapto de H elena (os
gregos a trariam de volta com grande exército). Nessa mesma estrofe se
apresenta o esperado quadro da guerra (e, como era de esperar, os deuses
participam também da guerra, jam). A situação é muito diferente no poe­
ma espanhol, onde o deus é apresentado como um ente que fala, que sen­
te (.siento), e que vê (veo, estrofe 9); ele reconhece o “já”, o “tarde demais”,

3 9 1
LUI Z COSTA LIMA

a catástrofe nacional, enquanto o libidinoso ainda se dedica a seu gozo


pessoal, en mal punto:

En mal punto te goces,


injusto forzador: que ya el sonido
y las amargas voces,
y ya siento el bramido
de Marte...

O registro da freqüência de hipérbatos, polissíndetos e enjambements me


parece uma questão secundária, em comparação à violência catastrófica des­
te ya do adivinho,19 diante da qual o rei permanece cego e surdo. Além des­
tes dois ya, a mesma palavra do destino fora ouvida outras quatro vezes pelo
rei (um único jam em Horácio, e sobretudo numa função diferente!), adver­
tindo-o e revelando o crescente medo do visionário deus do Rio (há outras
alusões referentes ao desenrolar temporal: para tu dano no hay tardanza,
estrofe 6; innumerable cuentolde escuadras juntas veo en un momento, es­
trofe 8; ay que presurosos suben!..., estrofe 10). Estes advérbios temporais
culminam no aún da estrofe 12, que contrapõe o crime do rei à violência dos
acontecimentos que irrompem “Ainda, ainda” (continuas preso à tua ilusão?).

/Ay triste! y aún te tiene


el mal dulce regazo?...
no acorres?...
no ves ya el puerto...?

O deus do Rio ainda se encontra junto ao leito de prazer do rei,20 expondo-


lhe toda a visão épica da invasão do estreito de Gibraltar,21 mas o rei — to­
mado por sua sede de volúpia — não se emociona! Faz-se ouvir, então, a
seqüência selvagem de imperativos, que exigem desesperadamente ação:
Acude, acorre, vuela... (imitando modelos triádicos de Cícero como investi­
ga cognosce perspice ou urge insta perfice, e que se intensificam como que­
rendo tornar possível o impossível: traspasa, ocupa, no perdones, no des paz,
menea). Trata-se do lógico clímax final da “corrida contra o tempo” que o
criminoso esbanja no seu prazer (“uno de los mejores aciertos ritmicos”, “la
maravillosa estrofa imperativa en la que parece que se agolpa el anhelo de
Espana”, diz Alonso com toda razão. Mas Alonso não acentua na relação

3 9 2
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS F O N T E S — VOL. 1

temática com o ya t o aún os imperativos do desespero, que se tornam mais


positivos e passionais à medida que o locutor percebe ser tarde demais).
O patriótico deus do Rio esgotara toda a força de sua indignação com as
ordens estratégicas que vinham demasiado tarde para serem realistas. Inicia-se
então uma atmosfera mais calma, mais elegíaco-meditativa, como observa Alonso.
A cena “no leito do rei”, em que o criminoso é repreendido, termina. O deus
não mais se ocupará de Rodrigo e seu castigo (em oposição a Horácio, que mostra
os “cabelos adúlteros” de Páris morto, sendo arrastado por Menelau).22
Sua preocupação é diferente, é maior: é a Espanha. Somente nesta passa­
gem lírica mais serena o poeta espanhol usa os versos de Horácio; antes não
podiam ser usados por rpotivos históricos e poéticos:

Ay, cuánto de fatiga


Ay, cuánto de sudor está presente...
(= estr. 3: Eheu quantus equis...)

Quando o desespero pela invasão tomou conta do profeta da desgraça, ele


consegue pintar o quadro da batalha decisiva em tons dolorosos ainda que de
maneira moderada.23 Não podemos nos esquecer de que, nas passagens em
que o ya esteve presente, foi descrita a invasão do estreito de Gibraltar e não
a batalha decisiva de Guadalete: a invasão talvez ainda pudesse ser evitada por
um milagre (daí os imperativos irrealistas, mas psicologicamente compreensí­
veis acude, acorre, vuela) — a luta está decidida após a invasão; e predominam
a depressão desesperada, a tristeza, a resignação diante do destino cumprido.
O deus profeta, um homem como nós (e hoje nós, após tantas invasões sofri­
das, podemos compreender melhor do que as gerações anteriores esta escala
de sentimentos), fala sob o impacto de seus sentimentos. Na medida em que é
possível apontar um culpado, não se poupam esforços, mas diante do destino
pessoal só resta a resignação. A ira cede lugar à dor. Podemos ainda salientar
que o corrente uso do presente junto do uso do ya corresponde à excitação do
deus do Rio espanhol, enquanto o jam adest latino (como os dois presentes na
3.a estrofe de Horácio) como forma de presente é precedido por um futuro:
quam multo repetet Graecia milite. Em Fray Luis, em oposição às cinco formas
de futuro presentes em Horácio, existe apenas uma (darás), dita pelo deus do
Rio Betis na penúltima estrofe, que é relativamente tranqüila. Temos, assim,
uma medida da passionalidade do nosso poema espanhol, que se reflete na
passionalidade do discurso do deus do Rio.

3 9 3
LU 7. C O S TA i i SVi A

Finalmente, gostaria de divergir de Alonso no seguinte: “La estrofa final


es profundamente anticlimática, es de una frialdad fatídica. Escueta expresión
de h e c b o s q u e solo el (ay5dei verso penúltimo y el ‘ok cara patria3dei últi­
mo encienden en un fugaz destelloJ\ escreve Alonso literalmente e pretende
relacioná-lo com a técnica usual da ode horaciana, em que a um clímax se­
gue-se geralmente um anticlímax. Creio, entretanto, que não existe este tipo
de anticlímax na ode horaciana, modelo para Fray Luis: mesmo havendo uma
hesitação diante de uma decisão (provocada pela ira de Aquiles que atrasa a
tomada de Tróia) — segundo Alonso nos Ensayos — o destino acaba por se
cumprir com toda a força nos dois últimos versos do poema da Antigüidade:

Post certas hiemes uret acbaicus


ignis pergameas domos.

Pode existir imagem mais terrível do que o incêndio de Tróia? Chamas


no final de um poema, cujo herói infantil é um pastor! Até aqui soubemos da
guerra de vingança dos gregos, de atos heróicos individuais de guerreiros
gregos, mas somente post certas hiemes; após o prazo fixado pelo destino é
que Ilion é destruída pelo fogo, numa imagem de destruição total, intensifi­
cada pelo “impassível” Nereu na figura do destino inexorável. Segundo
Alonso, Fray Luis compôs dois versos (no início da última estrofe), em que a
sorte da batalha oscila durante cinco dias, até que nos dois últimos versos a
desgraça irrompe, de forma tão irremediável quanto em Horácio. Não há,
porém, traços de imparcialidade ou de objetividade fria nestes últimos ver­
sos do poema. O iya! final é uma última explosão de tristeza, dirigida não
mais ao rei culpado em seu leito de prazer mas à centenária vítima Espanha,
a que o deus se dirige diretamente com um patético e dilacerante oh cara
patria (antes ele falava da Espanha apenas na terceira pessoa; estrofe 3: A
Espana,, ay3 cuán llorosa; estrofe 5: a toda la espaciosa y triste Espana), no
momento do seu duro julgamento final: todo um país por centenas de anos
eos grilhões do bárbaro! — o que é ressaltado pelo sonoro trocadilho
condena24 cadena e a própria palavra bárbara que soa bárbara. Ainda hoje,
após quase 45 anos, me lembro de que maneira o leitor da Universidade de
Viena, Dr. Rudolf Beer, um conhecedor da Espanha, por meio de quem tive
o primeiro conhecimento do poema de Fray Luis, recitou estes últimos ver­
sos — ele mesmo como que sob pressão de um ódio impotente: os grilhões
se faziam ouvir no último verso. A relativa calma dos dois penúltimos versos
revela, portanto, tão-somente a calma antes da tempestade ou a efêmera

3 9 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

tranqüilidade do quarto ato de uma tragédia, quando por instantes pode


parecer que a desgraça ainda poderia ser evitada. Mas finalmente esta se
precipita com a violência de grilhões! A ufrialdad fatídica”, a aescueta
exposición” causa o impacto de certos desfechos de romances.25
Esta interpretação explica também a penúltima estrofe, de caráter me­
nos tenso: depois do poeta mostrar, em forma de uma elegia meditativa, o
quadro infeliz da batalha segundo o modelo horaciano (iAy cuánto de fun­
ga..., ay3 cuánto de sudor) deveria continuar — icuánto yelmo quebrado,
cuánto cuerpo de nobles destrozado! — com versos que, na realidade, se en­
contram no final da estrofe 15.26 Suponho que o motivo desta transposição
nada mais é do que o desejo do poeta de preparar o chocante tratamento
por “tu” na estrofe 16 ioh cara patria! pelo Y tú, Betis divino. O Tejo, dentre
os rios espanhóis aquele de mais longo percurso, dirige-se ao mais curto de­
les, o Guadalquivir, que pode carregar rapidamente para o mar, al mar vecino,
os cadáveres e as armas da infeliz batalha. Esta imagem da amplidão do mar
tranqüiliza um pouco a visão interior do leito, até os “grilhões do bárbaro”
acabarem também com ela. O Tejo pode, por outro lado, moderar o seu “tu ”
— até então só usado para o criminoso em relação ao Betis (Guadalquivir),
e este suave e doloroso “tu” prepara assim o “tu” desesperado e carinhoso
do oh cara patria. Trata-se de um brilhante exemplo de psicagogia e suavitas
aprendido em Horácio. O nosso poeta comete assim uma ousadia ao acres­
centar à primeira prosopopéia uma segunda, ao deixar de usar o “tu ” em
relação ao rei culpado para usá-lo de forma simples e humana em relação à
Espanha. Trata-se de um ousadia que estaria completamente fora de questão
para o impassível Horácio que nos mostra em Nereu nada mais do que a voz
da natureza transformada em destino ao se dirigir somente ao pastor adúlte­
ro Páris e não a Tróia. Como transformar o “tu” da repreensão em um “tu”
de dor compartilhada? Ao se dirigir com um “tu ” ao irmão-deus do Rio es­
panhol que compartilha o sofrimento (um “tu” de igualdade, porque tam­
bém o Betis é divino, também ele é “um espanhol”).27 Mas, no final, o deus
Tejo que fala despe-se de sua divindade e fala como qualquer espanhol co­
mum as palavras ioh cara patria!, simples mas ilimitadas em seu conteúdo.
(Lembro-me da imagem da última Guerra Mundial reproduzida em todos os
jornais, em que uma multidão de franceses acompanhava a descida de sua
bandeira nacional e o hasteamento da bandeira do vencedor, silenciosamen­
te e com lágrimas nos olhos. Do mesmo modo seus rostos expressam uOh
chère patrie”).28 Não posso entender como um patriota espanhol tão fervo­
roso quanto Dámaso Alonso29 só possa ver uma “chama” fugaz do sentimento

3 9 5
LUI Z COSTA LIMA

nestas palavras que ecoarão eternamente em nós.30 Não sentiu ele que nelas
se perdeu toda a força mitológica do poema ■— e que o deus do Rio, na gran­
deza de sua dor, não é mais um deus da Antigüidade mas apenas um homem
do povo, que não poderia se expressar senão como este?
Fray Luis transformou a profecia da Antigüidade de voz impessoal da
natureza, que anuncia o destino de forma patética e humana, em manifesta­
ção viva do homem hispano-cristão histórico que entende a desgraça nacio­
nal como falta. Em outras palavras, uma consciência humana hispano-cristã
esvaziou a mitologia da Antigüidade a partir do seu interior, dando-lhe ou­
tro conteúdo, conteúdo moderno de forma clássica,31 equivalente ao pro­
grama do teórico do Renascimento, Vida (Poetic. III. 257-8):

Saepe mihi placet antiquo alludere dictis


atque aliud longe verbis proferre sub iisdem,

ou, na formulação do teórico do classicismo francês Andre Chénier: sur des


pensers nouveaux formons des vers antiques. Fica evidente o cuidado com
que o poeta monástico renascentista do platonismo cristão considerou em
nosso poema todas as equivalências e homologias entre Antigüidade e
modernidade, todas as transferências e substituições tanto referentes ao con­
teúdo quanto ao aspecto técnico-estilístico.32 Esta forma de conteúdo do
poema deve ser acentuada pela união de conteúdo e forma, não pela substi­
tuição da forma pelo conteúdo, como forçosamente ocorre quando se arro­
lam apenas elementos estilísticos supra-individuais e gramaticalizados ou
artifícios que outros poemas possam apresentar em comum com o nosso.
Somente os traços estilísticos que acompanham a forma do conteúdo, ou
melhor, que a refletem, têm possibilidade de esclarecer a forma interna des­
te poema: foram basicamente os motivos individuais das palavras do nosso
poema, o Tu, o ya, o ay na sua concordância mais ou menos perfeita com os
modelos latinos tu, jam, heu, que completaram e comprovaram os motivos
do conteúdo a partir da forma externa.

Tradução:
H eidrun Krieger O linto

Revisão
Luiz C osta Lima

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Notas

1. Cabe acrescentar que Alonso raramente peca pela supervalorização de um poema


espanhol que analisa; pelo contrário, ocupa-se com poucos poemas, mas perfei­
tos. A meu ver há apenas um caso de supervalorização, se é que alguém de menta­
lidade não-espanhola possa dar um palpite. No poema de San Juan, analisado na
p. 301, acerca de uma contemplação extática, em que no tom repetitivo (como
uma balada de Villon) e na limitação racional do irracional (p. ex.: [a nuvem vaga­
mente iluminada clareava a noite] mas nem “por isso aquele que a reconheceu fi­
cou mais sábio”) não posso ver força criativa (“prazer embriagante”, segundo
Alonso), mas apenas uma pedante discussão do êxtase religioso.
2. Devo confessar que sempre apreciei o emprego norte-americano do this country:
como se o norte-americano entendesse o seu país como um entre os países possí­
veis, como se tivesse acabado de se estabelecer nele! Esta postura relativista, natu­
ralmente impossível no velho continente, é uma lição saudável para uma autocrítica
nacional.
3. No detalhado tratamento do enjambement parece-me faltar a linha histórica que
começa na Antigüidade (Horácio, Carm. 1 ,15: ut caneret fera/Nereus fata...) passa
por Petrarca (Son. 190: Una candida cerva sopra Verba / verde m sapparves con duo
corna d"oro, Sestina 8: Ella si sta pur com* aspfalpe a Vaura / dolce 7 qual ben
move frondi, e fiori: Son. 306: E formavi i sospiri e le parole / vive ch3ancor me
sonan nella mente) até chegar a Herrera (cuando con resonante / rayo e furor dei
brazo poderoso). Todos estes são, segundo Alonso, exemplos de enjambements
“suaves”. Os enjambements abruptos (também comuns na poesia germânica, cf.
Reallexikon de Sammler), que delia Casa introduziu no seu poema sobre o sono,
se referem à “ruptura de encadeamento” no modelo antigo de delia Casa. A.
Roncaglia comprovou em Giornale Storico 125 (1948) que o canto coral em
Hercules furens, versos 1054-1098, de Sêneca serviu de fonte ao soneto italiano.
É evidente que delia Casa imitou também a ruptura de encadeamento.

O Sonno, oh delia queta umida ombrosa


notte plácido figlio; / o des mortali
egri conforto / ...

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LUI Z COSTA LIMA

do modelo antigo:

Solvite tantis animum monstris,


solvite, superi, / rectam in melius
flectite mentem / tuque o domitor
Somne malorum /...

4. Pergunto-me apenas se o telúrico-demoníaco no Polifemo de Góngora antecipa real­


mente a característica do homem do século XX. Não se tratará de uma estilizaçao
(de forma negativa), semelhante à beleza da Galatéia? As duas estilizaçÕes não se
originam da vontade de transformar de forma fantástica o nosso mundo real e este
elemento (como em Donne) não é conforme ao sentimento moderno da arte (elimi­
nação de todos os modelos da natureza e uma nova construção a partir de fragmen­
tos da realidade concreta) ? Neste caso, parece-me adequada a fórmula estilística de
Góngora A, se não B e a troca dos epítetos (“[ela é] um pavão da Vênus, um cisne da
Juno”; “púrpura de neve ou neve purpúrea”). O poeta quer confundir a nossa sen­
sibilidade formal de ordem realista — não devemos ver nem A nem B, nem púrpura
nem neve na sua forma fixa, mas formas mescladas irreais (irreale Mischformen).
5. Podemos de fato acreditar que Lope começou a sua poesia filosófica e seu modo esotérico
por ciúme da popularidade de Góngora (se mordia Ias unas, p. 488)? Gênios univer­
sais, como Goethe ou Victor Hugo, p. ex., experimentaram todos os gêneros.
6. Creio que Alonso está duplamente errado ao afirmar, na p. 198, que no campo dos
estudos românticos somente o afectivo é objeto da pesquisa estilística e que ele,
Alonso, teria demonstrado na “Ode a Salinas” a unicidad , a especificidade da trans­
formação da idéia em forma plástica. Será que todos os intérpretes do soneto de
idéias de Du Bellay não partem da idéia platônica como elemento formal básico?
E por que fica comprovada a singularidade dos poemas de Fray Luis a partir do
tema pitagórico-platônico, se há tantos poemas, escritos em outras línguas, com o
mesmo tema (cf. meu trabalho sobre a harmonia universal cristã em Traditio III)?
Idéias da Antigüidade são tão “familiares” aos poetas do Renascimento como as
palavras de sua língua. Trata-se de topoi.
7. Também não vejo as seqüências exclamatórias como

iOh cauterio suave!


iOb regalada llagal
iOh mano blanda! ioh toque delicado!

representando apenas uma passagem “divinizada”de Garcilaso. Quem não conhe­


ce este tipo de seqüência no estilo dos padres da Igreja de Sto. Agostinho a São
Bernardo? Nestes casos, o estudo do gênero do estilo deveria preceder o estudo
individual dos poetas.

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TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL . 1

8. Alonso confessa o seu espanto diante dos poemas pagãos fúnebres de Quevedo,
em desarmonia com a sua postura cristã. Creio que são condicionados por te­
mas e gêneros como os de Ronstard, p. ex., que consegue ter uma postura cris­
tã em poemas fúnebres de tendência epicurista. “Más bien producto de un
mimetismo que de una convicción”, como sugere Alonso, à p. 563, não é uma
alternativa correta. Como “o mais belo soneto da língua espanhola” poderia
ser escrito “sem convicção”, apenas de forma mimética? Quevedo é extrema­
mente cioso de sua condição de poeta tanto nos poemas de inspiração antiga
quanto cristã. E, em períodos de ortodoxia, temos que.nos contentar com a
convicção poética do poeta, mesmo em poemas religiosos: quase nada sabe­
mos sobre a sua verdadeira fé.
9. Se fosse necessário inventar uma fórmula abrangente da especificidade deste poe­
ta, proporia como conceito geral “moderação clássica”. Esta característica está
presente em toda a sua poesia, principalmente na temática. O poeta apresenta desde
o início no seu poema de juventude “A la flor de Gnido” os sons como os de baja
lira, louvando uma dama perfeita, que só alguma vez se mostra arredia, já que o
destino da antiga Anaxarete lhe serve de advertência. O poeta não escreve para si
mas para um amigo, dela enamorado. Os cHticos não percebem que todos estes
elementos (escrever em nome de outro, classificação do poema numa categoria
modesta, exposição de uma única falta da dama, exemplo paradigmático da Anti­
güidade) precisam ser entendidos como intenção de moderação do sentimento: o
sentimento, em vez de fluir espontaneamente, deve ser moderado. Da mesma for­
ma, na terceira écloga, o poema mais maduro de Garcilaso, a unidade do poema se
revela pela atitude serena e prazerosa das ninfas na natureza, que abranda todos
os sentimentos: os quatro seres da natureza elegem o locus amoenus no Tejo como
local de sua siesta, fazendo bordados e ouvindo a mais bela cantoria dos pastores
antes de voltar para o elemento líquido, ao cair da noite. O tema deste poema
bucólico é a união entre natureza, arte e amor, a ponto de o amor parecer trans­
formado em obra de arte (os amantes mortos são motivos do bordado; os lamen­
tos amorosos dos pastores se transformaram em doces sons). Estas obras de arte se
revelam para nós a partir dos belos seres naturais no quadro de uma natureza en­
cantadora. Quando as ninfas desaparecem no seu elemento, deixando como vestí­
gio apenas espuma, desfaz-se a visão fugidia da arte e da beleza da natureza — e
com ela a lembrança do amor sofrido. A dor amorosa pessoal do poeta, que pre­
sencia a morte da amada que pertenceu a outro, se insere neste quadro de arte e
natureza, apresentado pelo autor como motivo do bordado da quarta ninfa, como
“imagem na imagem”, como disse Alonso corretamente. A meu ver, o estilista de­
veria persistir no estudo da moderação lingüística que corresponde à moderação
do conteúdo, e eu pessoalmente subordinaria todos os traços estilísticos particula­
res a este princípio abrangente da arte poética classicista.

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LUI Z COSTA LIMA

10. ... como também a uma feliz contraposição entre a descrição estática renascentista,
idílica e serena do Tejo em Toledo nas oitavas de Garcilaso e uma descrição
barroca, movimentada e apaixonada da mesma paisagem em duas passagens de
Góngora. A serenidade de Garcilaso corresponde, por assim dizer, ao dinamis­
mo de Góngora, como, no ensaio de Th. Spoerri, a serenidade de Ariosto ao
dinamismo de Tasso. Por outro lado, a comparação de dois quadros de El Greco
em Toledo com as duas passagens de Góngora parece-me ser um exemplo infeliz
do método de explicação recíproca das artes: a visão de Toledo, num dos qua­
dros (o do Metropolitan Museum) apresenta em verdade a idéia de movimento,
podendo talvez corresponder aos versos “Esa montaria que precipitante ha tan­
tos siglos que se viene abajo”. Mas este movimento se deve ao céu estrelado, que
ilumina fantasmagoricamente uma parte da paisagem (não se trata da precipita­
ção da montanha no rio). N o outro quadro (que se encontra na Casa dei Greco
em Toledo) temos uma visão emblemático-cartográfica, portanto estática, da ci­
dade (um plano é apresentado ao espectador por uma figura de primeiro plano),
ela mesma um complexo de muralhas, em que se destaca claramente o hospital
(Hospital de Afuera) como figura central do quadro. Não há vestígio da “viva
realidade cotidiana” das ruas, noites e praças de Toledo, e sobretudo por parte
da cidade uma atitude receptiva em relação à Madona, como nos referidos ver­
sos de Góngora (em que os velhos se preparam para receber no ar a rainha do
céu: de antigüedad salían coronados / por los campos dei aire a recibilla). No
quadro de El Greco a cidade é estática — dinâmicos são apenas os poderes so­
brenaturais e o construtor (invisível) do plano e do hospital. O fato de duas pas­
sagens em Góngora descreverem Toledo e dois quadros de El Greco retratarem
Toledo não é suficiente para uma explicação recíproca.
11. Foi esta a razão pela qual Alonso, ao rejeitar decididamente todo o simbolismo exage­
rado, reabilitou na sua pátria o “pesado” mas preciso Góngora -— quase simultanea­
mente com a reabilitação de Donne por T. S. Eliot nos países de língua inglesa. Os dois
acontecimentos podem até estar relacionados: o próprio Alonso menciona como a
leitura de Donne na Inglaterra facilitara para ele a reabilitação de Góngora. Os dois
poetas exigem esforço do leitor — para deleite dos filólogos acostumados a trabalhar!
12. P ex., em infame turba de nocturnas aves (com as duas sílabas — tur, e o acento nas 4.a
e 8.a sílabas) existe “matemático rigor”. O verso é realmente maravilhoso no seu sim­
bolismo fonético que recria o ambiente do gigante Polifemo — mas será que um fazedor
de versos contemporâneo de quinta categoria não poderia ter feito o mesmo?
13. Não concordo com a observação ocasional de Alonso: “Nada é mais tolo e desne­
cessário numa crítica do que a perfeita honestidade”, observação apropriada a in­
telectuais espanhóis que trabalham num espaço limitado sob severas condições, e
que precisam preocupar-se especialmente com a harmonia entre si, mas desacon-
selhável para os estudiosos hispânicos internacionais, que devem trabalhar com
juízos objetivos.

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TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

14. Muitas vezes se trata apenas de modificações de detalhes; mesmo assim, não creio
que a consideração crítica de todos os detalhes seja supérflua porque só assim se
chega àquele ideal de meticulosidade nos estudos estilísticos que tanto admiramos
nas realizações dos filólogos mais antigos.

Segue o texto:

1. Folgaba el Rey Rodrigo


con la bermosa Caba en la ribera
dei Tajo sin testigo;
el pecho sacó fuera
el rio y le habló de esta manera:

2. En mal punto te goces,


injusto forzador; que ya el sonido
y las amargas voces
y ya siento el bramido
de Marte, de furor y ardor cenido.

3. iAy, esa tu alegria


qué llantos acarrea; y esa bermosa,
que inó el sol en mal dia,
a Espana, ay, cuán llorosa,
y al cetro de los Godos tan costosa!

4. Llamas, dolores, guerras


muertes, asolamientos, fieros males
entre tus brazos cierras,
trabajos inmortales
a t i y a tus vasallos naturales.

5. A los que en Constantina


rompen el fértil suelo, a los que banã
el Ebro, a la vecina
Sansuena, a Lusitana,
a toda la espaciosa y triste Espana.

6. Ya dende Cádiz llama


el injuriado Conde, a la venganza
atento, y no a la fama,
la bárbara pujanza,
en quien para tu dano no bay tardanza.

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LUIZ COSTA L I M A

7. Oye que al cielo toca


con temoroso son la trompa fiera,
que en África convoca
el moro a la bandera,
que al aire desplegada va ligera.

8. La lanza ya blandea
el árabe cruel y hiere el viento,
Mamando à la pelea;
innumerable cuento
de escuadras juntas veo en un momento.

9. Cubre la gente el suelo


debajo de las velas desaparece
la mar; la voz al cielo
confusa y varia crece;
el polvo roba el dia y le oscurece.

10. lAy! que ya presurosas


suben las largas naves; ay que tienden
los brazos vigorosos
a los remos y encienden
las mares espumosas por do hienden.

11. El Eolo derecbo


hincbe la vela en popa, y larga entrada
por el hercúleo estrecho
con la punta acerada armada,
el gran padre Neptuno da a la

12. lAy triste! y aun te tiene


el mal dulce regazo f ni llamado
al mal que sobreviene
no acorres? ocupado
no ves ya el puerto a Hércules sagrado

13. iAcude, acorre, vuela,


traspasa la altra sierra, ocupa el llano,
no perdones la espuela,
no des paz a la mano,
menea fulminando el hierro insano!

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TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

14. iAys cuánto de fatiga,


ay, cuánto de sudor está presente
al que viste loriga,
al infante valiente,
a hombres y a caballos juntamente!

15. Y tú, Betis divinno,


de sangre ajena y tuya amancillado
darás al mar vecino
iquanto yelmo quebrado,
quanto cuerpo de nobles destrozado!

16. El furibondo Marte


cinco luces las baces desordena,
igual a cada parte,
la sexta ay! te condena,
ioh cara patria! A bárbara cadenna.

15. Temos aqui um clima estilístico fundamentalmente diferente. Horácio apresenta fi­
guras mitológicas originais, enquanto o poeta cita apenas elementos cristalizados ou
lexicalizados da mitologia: Marte (guerra), Eolo, Netuno, Hércules, o rei do Rio
Betis. Não há em Horácio constantes alusões ao conjunto da tradição mitológica
conhecida por seu público: mas Alonso se vê obrigado a vinte notas explicativas na
sua reprodução do poema latino nos Ensayos. Quanto à “frieza mitológica” do poe­
ma antigo, creio que se deve levar em conta o que chamaria de “alusão ao conjunto
da mitologia”: poetas da Antigüidade podem-se satisfazer com alusões esparsas a
fatos mitológicos, uma vez que tanto o leitor como o ouvinte conhecem o conjunto
do corpus mitológico. Nas alusões de cada verso se escondem epopéias ou tragédias
inteiras, como, p. ex., toda a Iltada em expressões de aparência puramente onomástica
nos dois últimos versos da ode de Horácio: iracunda classis Achil lei — matronae
Phrygum — achaicus ignis-pergamenos domos. O poder sugestivo do conjunto do
mito beneficia, portanto, o detalhe mitológico individual.
16. Em oposição à serenidade do rei (folgaba, imperfeito) está a abrupta aparição do
deus Tejo (el pecho saco fuera, pretérito. Há uma inversão do objetivo: vemos surgir
o peito antes que saibamos do deus). Fray Luis imita Horácio na exortação da di­
vindade guerreira, mas ele substitui conscientemente a sábia Pallas (rabies no verso
4 significa “tumulto de guerra” e não uma Pallas raivosa) pelo selvagem Marte que
urra descontroladamente. Esta alteração estratégica se reflete em todos os elementos
sensoriais e nas sinestesias, como salienta Alonso: trata-se de uma guerra elemen­
tar e justa, provocada pela falta do rei dos visigodos e não desejada pelo destino.

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LUI Z COSTA LIMA

17. O verso corresponde ao heu serusl do verso 19 em Horácio: aún retoma o elemento
temporal de serus; iya tristei reflete a interjeição heu, somado ao caráter pessoal do
adjetivo serus-. o adjetivo espanhol (tradicional nos romances de Rodrigo) se traduz
melhor por “desgraçado” — em que se combinam o significado de desgraça pessoal
e o de causador da desgraça. A diferença entre o poeta romano e o poeta cristão é
evidente: o primeiro fala ironicamente da vingança que chega demasiado tarde para
Páris; o segundo fala da desgraça do pecador, que já está suficientemente castigado
por seu sentimento de culpa; Fray Luis lamenta a Espanha e o criminoso — esta
compaixão inexistia em Horácio! Cf. minha observação posterior acerca de conde­
na. Atenção especial deve ser dada à palavra regazo, que se refere ao desejo carnal de
forma acertada e realista, aliás muito diferente da expressão erótica abrangente e
convencional do romano thalamus (associada a nuptiae e adulter).
18. Este tipo de ironia referente à relação dos dois amantes não seria naturalmente ade­
quado a Fray Luis, que entende o desejo como crime contra a pátria. Paradoxalmente,
o poeta da Antigüidade não menciona de modo expresso a beleza da Helena, enquan­
to o monge cristão precisa salientar a beleza da Cava para exacerbar sua periculosidade.
19. Nosso poema, na sua abundância de proféticos ya, é uma ilustração excelente daquilo
que eu chamo de “apresentação do fait-accompli” na língua espanhola (Stilstudien i),
e que se refere à capacidade do espanhol em apresentar o futuro como “já realizado”.
20. Alonso fala em “interrupcióny\ “rotura para dar salida a la indignación represada”,
“brusca transición”. Certamente trata-se de um rompante de indignação, mas não
vejo aqui uma interrupção. A visão se desenrola “junto do leito”, acentuando niti­
damente a trágica perda de tempo expressa pelo “folgar” do rei: este, já há tempo,
deveria ter “andado” (la espuela), “lutado” (... la mano... el hierro...).
21. Alonso chama atenção sobre a originalidade do relato da invasão, comparando-o
com a descrição dos acontecimentos feita por Horácio.

Se trata de una genial novedad de León. Esta visión actualizada, llena de movimiento,
de velocidad, de expresión rítmica, ocupa exactamente el centro de la oda. Nada
semejante en Horácio, o sólo el mínimo germen que senalábamos (os versos: jam
galeam Pallas et aegida / currusque et rabiem parat); qué de particular tiene que el
Latino haya sentido con frialdad e mito lo que el poeta castellano ha visto con ojos
de carne: iEse rasgar por el medio la oda de Horácio, para intercalar en unas cuantas
estrofas la visión rápida, turbulenta, arremolinada, de los ejércitos invasores, no sólo
introduce ese momento, que es una de las cimas de capacidad expresiva en poesia
espanola, sino que há sido lo que ha troquelado la estructura de la oda de Fray Luis!

Mas Alonso se esquece de dizer que Horácio só se ocupa com a repreensão feita a
Páris e não com o destino de Ilion, portanto, com uma tragédia nacional — as cha­
mas de Ilion só flamejam dramaticamente apenas no final para castigar com grande
efeito a irresponsabilidade do pastor perfidus. Fray se preocupa sobretudo com a

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TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

história da Espanha e não apenas com a repreensão ao causador da desgraça, vendo,


portanto, a historicidade concreta da desgraça nacional provocada por este com os
“olhos do espírito”, a serviço dos quais estão os “o/os de carne”. Quer dizer, todos
os detalhes sensoriais desta visão histórica mencionados por Alonso servem à apre­
sentação da desgraça, que ataca o “responsável pela história” da Espanha. A partir
deste contraste entre Horácio — repreensão atemporal de um irresponsável causa­
dor mítico da desgraça — e Fray Luis — evocação de uma desgraça histórica nacio­
nal concreta, representada por um rei criminoso ■ —, compreende-se a razão pela
qual Fray Luis não “partiu ao meio” a ode horaciana para nela inserir a sua visão,
mas substituiu a parte central por outra: em Horácio são oito heróis gregos compro­
vados que se preparam para se vingar do adúltero covarde e infantil, ou seja, o exér­
cito grego inteiro personificado à moda de Homero por estes guerreiros individuais
prontos à defesa de um aphisteiai. Em Fray Luis não existem guerreiros individuais,
mas o exército medieval inteiro armado (la bárbara pujanza), apresentado impessoal­
mente como “o inimigo” (el moro, el árabe cruel), com suas diferentes divisões, in­
fantaria e frota naval. Páris era a negação de todas as virtudes gregas do herói —
heróis personificados selecionados para afrontá-lo; o rei Rodrigo era apenas a per­
sonificação do prazer criminoso — o coletivo islâmico esmaga como um rolo com­
pressor (como diríamos hoje) o país que ele levou à desgraça.
Quanto à acentuação do simbólico da apresentação do exército maometano
feita por Alonso, creio que o nosso crítico se mostra talvez demasiado “parnasiano”,
demasiado “l3art pour Vart” na sua observação: como se o poeta se perdesse no
aspecto sensorial; após ter analisado gulosamente as qualidades vocálicas na frase
“... la bandera / que al aire desplegada va ligera”, Alonso acrescenta a observação:
“tan bella es la representación dei flamear de la bandera en el aire, que el poeta
parece como si por un instante se olvidara dei malaugurio.” Mas não, o poeta usa
a técnica épica da Antigüidade do supra-situacional “epitheton constans”: la bandera
que al aire ... va ligera é o equivalente artístico de “a bandeira ligeiramente tremu-
lante”, comparável a “los brazos vigorosos” (dos mouros), estrofe 10, “la tropa
fiera” (dos mouros, estrofe 7) e também a “las mares espumosas”, estrofe 10, “el
furibundo Marte”, estrofe 16, e talvez também a “trabajos immortales”, estrofe 4.
Conhecemos esta técnica a partir da épica francesa antiga (em que sarracenos fa­
lam da douce France). Devemos ainda levar em consideração que o tumulto da
guerra é belo em si, tanto para a Antigüidade quanto para a Idade Média (cf.
sirventés Bem platz lo gais tems de pascor de Bertran de Born) e que na poesia
medieval também o adversário não-crente possuía o direito de uma apresentação
objetiva (quer dizer “bela”): o árabe do nosso poema, como na Canção de Rolan­
do, por exemplo, é “cruel” e “bárbaro”, mas não lhe são negadas a audácia, a vir­
tude guerreira, a beleza. Trata-se em nosso verso, portanto, de uma dupla tradição
épica de estilização da obra.

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LUI Z COSTA LIMA

22. A punição de Páris teria ainda mais efeito, se, como alguns comentaristas de Horácio
acreditam, os versos 13-20 (com o nequiquam, o heu serus, que acentuam a puni­
ção pessoal como “há muito tempo necessária”) fossem posteriores ao verso 32: o
castigo do adúltero teria vindo antes do incêndio de Ilion: pois o mal que causa
não cessa com sua morte.
23. Observa-se que, apesar da limitação clara dos dois trechos: I (até estrofe 13) repreensão
de Rodrigo — a invasão; II (estrofe 14-16) Treno sobre a Espanha — a batalha decisi­
va; há entre eles um leve traço-de-união no sentido da suavitas horaciana: na estrofe
13 está claro o pedido de não poupar as esporas (no perdones la espuela) nem de apazi­
guar a mão armada (no des paz a la mano menea fulminando el hierro insano), e agora
persiste a idéia de não cessar a batalha (no perdones, no des paz) nas palavras fadiga,
sudor (e na estrofe 15 sangre) e a idéia da espuela em caballos e a da arma (hierro) em
loriga (e na estrofe 15 em yelmo). Temos portanto relações em que se unem o “brutal
contraste”t as “delicadas matizaciones y gradaciones” de que fala Alonso. Como tran­
sição “brutal” sem moderação, só aceito iAy, triste! s’y aún te tiene? na estrofe 12, mas
também esta exclamação brusca é preparada pelo iay! e ya, que já se esboçam no rela­
to precedente sobre a invasão. Esta erupção de sentimentos pode parecer brusca ao
leitor, mas ele já estava preparado para entender sua motivação psicológica.
24. Condena leva também a uma idéia paradoxal: não é o pecador Rodrigo que é condenado
ao castigo dos grilhões, mas a sua inocente pátria. Há uma união indissolúvel entre
culpa pessoal e destino nacional. Fray Luis não se importa com a punição do pecador.
25. Vossler acredita na possibilidade de influência do romance “Sueno dei rey Rodrigo”
(los Vientos eran contrários / la luna estaba crecida, / los peces (!) daban gemidos /
... cuando el buen rey don Rodrigo / junto a la Caba dormia) sobre o poema de
Fray Luis. Eu diria que especialmente seu início e seu fim lembram o romance: o
poema termina numa abreviação dramática como os romances — não há uma guerra
longa que, em Horácio, mesmo que tardia (heu serus!), traz a vingança do destino,
mas apenas uma batalha de seis dias (este último detalhe é, aliás, uma redução em
comparação com os oito dias de batalha do romance).
26. Este fato provoca, aliás, um deslocamento sintático: uma seqüência frasal que par­
te do suor dos nobres cavaleiros, passando por cavalos e terminando com arma­
mentos e cadáveres despedaçados.

iay cuánto de fatiga,


ay cuánto de sudor está presente!
icuánto yelmo quebrado,
cuánto cuerpo de nobles destrozado!

Neste exemplo, do ponto de vista sintático todas as expressões com cuánto deve­
riam ser sujeito do verbo está presente. Mas como a suavistas horaciana exigia a
introdução — quase de contrabando — do divino Betis, cuánto yelmo e cuánto

4 06
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

cuerpo precisavam se transformar em objetos (de y tú, Betis divino, darás), mas
mesmo assim a estrutura original (cf. o início desta nota) continua válida enquan­
to cuánto yelmo e cuánto cuerpo continuam exclamações, embora sejam objetos
numa frase de construção diferente:

/Y tú, Betis divino, darás


cuánto yelmo...
cuánto cuerpo...!

Em outras palavras: o poeta não hesitou em usar o anacoluto, que reflete o tom
exclamatório original (como nos modelos antigos: Ovídio, 1ristia, I, 4, 23: “dum
loquor... increpuit quantis viribus unda latus!). Podemos, sem precisar recorrer a
variantes, deduzir o procedimento poético a partir da própria formação da frase e
ter assim uma rápida visão da oficina poética de Fray Luis.
27. Creio que é essa a razão da inclusão da estrofe sobre o Guadalquivir e não o sen-
timentalismo de Alonso: “el dolor... se adulza en languidez como siempre que la
poesia se dirige a rios (porque los rios son hermanos de los poemas)”. Não creio que
o Betis seja “indiferente ante los dolores h u m a n o s pois ele se sente manchado
(amancillado) pelo sangue derramado.
28. Claro que não pretendo interpretar o poema renascentista a partir da Marseillaise.
Mas não custa lembrar que foi o Renascimento que introduziu a palavra romana
patria tanto no francês quanto no espanhol (a estilização, que assim se faz presen­
te em nosso poema, pode ser contrastada com o popular iMadre Espana, ay de ti!
no romance de Rodrigo “En Ceupta está don Julian”).
29. ...parece que o seu coração não vibra com o nosso poema: ele acredita poder jul­
gar o poema mais serenamente (“de modo más sereno”), porque não é “una [obra]
de esas prodigiosas conllevadoras de emoción, amplificadoras de espirito, como son
otras odas dei mismo poeta)”. Por que razão a transposição da natureza da Anti­
güidade para a história moderna e a representação do elemento nacional e religio­
so num indivíduo que vive as suas tensões não podem ser consideradas responsáveis
por um “crescimento do espírito e do sentimento”?
30. Este poema de Fray Luis, diferente dos demais, lhe parece estar subordinado à
lei geral do Século de Ouro espanhol, que consiste na união tipicamente espa­
nhola de elementos medievais e modernos, uma característica “que liga en
unidad la cultura de Espana, quizá sin paralelo en Europa” (o quizá se justifica

— por que os nossos hispanistas espanhóis não se preocupam um pouco tam­
bém com a Rússia?). Alonso parece pensar aqui apenas na escolha temática de
Fray Luis e não na criação do moderno sentimento nacionalista à maneira da
Antigüidade.

4 0 7
LUI Z COSTA LIMA

31. Entre os antigos empregos estilísticos latinizantes encontramos ainda, além dos
nomes mitológicos evidentes, o epitheton constans etc., e o adjetivo proléptico
(lat. Typus (...) inicere captivo bracchia caelo , Stolz-Schmalz, 5 § 199). Alonso apre­
senta um exemplo nos Ensayos à p. 161: a toda la espaciosa y triste Espana é con­
cebida pelos espanhóis, com a sensibilidade da “geração de 1898”, como uma
descrição eterna da essência da Espanha, mas Alonso explica, com toda a razão,
que wtriste ” apenas significa “triste por la invasión que espera”, ou seja, foi usado
à maneira latinizante-proléptica (suponho que o verso de Racine Dans VOriente
déserí quel ne fu t mon ennui, a que modernamente se dá uma outra interpretação,
contenha um adjetivo proléptico désert: = VOriente qui par mon ennui devint un
désert). Dois outros exemplos do nosso poema: estrofe 10: y encienden las mares
espumosas (o mar que fica espumoso pelo ato de remar); e estrofe 13: menea
fulminando el hierro insano (trabalhe o ferro para que se torne furioso).
32, Não tenho, portanto, a mesma opinião que Menéndez Pidal (Rodrigo el último
godo, II): “[Fray Luis] siguió poco a Horácio en los detalhes. Tomo de su modelo la
forma general de un vaticinio y algunas frases muy libremente recordadas. Una sóla
le cautivó fuertemente para la imitación” [Eheus quantus equis].

4 0 8
O FORMALISMO RUSSO
CAPÍTULO 12 Sobre a teoria formalista da
linguagem poética
WOLF-DIETER STEMPEL

Traduzido do original “Z ur form alistischen T heorie der poetischen Sprache”, introdução ao


livro Texte der russiscben Formalisten II, edição bilíngüe (russo-alemão), organizada pelo au­
tor, W ilhelm Fink Verlag, M unique, 1972.
i

Seguindo-se o desenvolvimento da moderna poesia desde o seu início (pri­


meira metade do século XIX) e comparando-a com as opiniões e os pon­
tos de vista hermenêuticos dos críticos contemporâneos, defronta-se com
um descompasso grosseiro que penetrou século XX adentro. Enquanto
os pioneiros e fundadores da lírica moderna abrem cada vez mais, em suas
obras, novas possibilidades ao poético e assim ampliam, e ao mesmo tem ­
po delimitam, as fronteiras da poesia, a crítica mostra desde o princípio
não estar, nem mesmo aproximadamente, apesar de alguns lampejos, em
condição de fazer justiça às produções poéticas novas. É bem verdade que
a poética ocidental até o século XVIII, no que se refere aos seus critérios
e padrões, estava muito atrás do que somos hoje capazes de descobrir e
determinar, graças aos novos conhecimentos atuais das obras poéticas, até
o início da modernidade. Entretanto, esse “atraso” não era real, já que a
teoria da criação e o grau de receptividade, sincronicamente considera­
dos, correspondiam-se quanto ao seu alcance; o excesso de experiências
que os próprios textos ofereciam não apresentava dessa forma perguntas
que uma teoria da poética pudesse ter resolvido. Esse excesso só pôde se
concretizar depois de enriquecido pelas conquistas da práxis poética,
quando adotou um caráter se não emancipado, pelo menos provocador
(o mais tardar desde Rimbaud e Mallarmé), mas principalm ente depois
que encontrou sua formulação teórica.
Abstraindo-se das diversas antecipações no século XVIII,1 pode-se dizer
que datam do início do século XIX as novas idéias teóricas sobre a criação
poética e as concepções poéticas programáticas, em geral muito avançadas
em relação à práxis. Consideradas retrospectivamente, essas concepções
antecipavam uma compreensão que ainda tem interesse e importância na

4 1 3
LUIZ COSTA LIMA

presente discussão. Apenas, em geral, provêm do próprio poeta e não exata­


mente das reflexões da crítica (não importa que disciplinas ela compreen­
da). A compreensão ousada da linguagem poética de Novalis (“linguagem
em segunda potência”),2 a “filosofia da composição” de Poe juntamente com
sua aceitação através de Baudelaire, a arte poética de Mallarmé dispersa em
inúmeras considerações isoladas, as contribuições de G. M. Hopkins (para
citar apenas alguns exemplos) indicam, além da própria situação histórica,
uma compreensão da poesia que no campo da crítica ninguém estava prepa­
rado para aceitar, elaborar e aproveitar eficientemente para uma análise cien­
tífica.3 E ninguém poderia mesmo estar preparado, considerando-se as
circunstâncias históricas e sobretudo as disciplinas acadêmicas em questão.
Certas concepções gerais sobre a poesia só adquiriram importância pela for­
ma como as defenderam a estética filosófica ou a filosofia da linguagem.
Quando, no princípio do século XX, essas idéias que datavam do romantis­
mo, em parte ainda do século XVIII, se desenvolveram em princípios de uma
crítica estético-literária (Croce), produziram algumas atitudes fundamentais
quanto ao fenômeno poesia, mas falharam diante da nova poética dos poe­
tas modernos, por causa de suas hipóteses idealistas (pode-se pensar na
incompreensão de Mallarmé por Croce),4 da mesma maneira como a estéti­
ca vivencial alemã (Erlebnisaesthetik) e seus desenvolvimentos posteriores
também falharam.
O descompasso referido que assim novamente se confirmou estendeu-
se logo em seguida, no século XX, por toda parte, talvez mais nitidamente
na França, onde a teoria poética de Valéry se afirmou em declarada oposi­
ção a uma obsoleta estilística de repertório, cujo poder de inércia durante
muito tempo desafiou todas as atitudes profundas acerca da essência da
poesia. Entretanto, nesse meio tempo, as condições da crítica já não eram
as mesmas do século XIX. Então esse atraso frente a uma estética de pro­
dução altamente desenvolvida foi ultrapassado por um novo impulso críti-
co-analítico que havia conseguido aceitação alhures. O que no século XIX
não podia acontecer e no século XX por mais de uma razão não devia acon­
tecer, encontrou na Rússia sua realização na escola formalista: o estabele­
cimento de novas orientações para a teoria da compreensão poética, sob a
influência direta de uma nova práxis poética. A estética de produção do
futurismo russo, sob muitos aspectos revolucionária, e quase insuperável
nas suas exigências, estimulou nova reflexão teórica sobre a constituição
verbal da poesia, que logo depois iria levar a uma nova forma de conside­

4 14
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

rar a literatura em geral. O fato de fazer justiça às construções do futuris­


mo russo, sob muitos aspectos extremas e líricas, que (como de certo modo
no caso de Khliebnikov) põem em questão o próprio conceito de poesia,
concedeu ao mesmo tempo uma compreensão nova e profunda da poesia
em geral. Não é pois de admirar que no campo de interesse da escola
formalista, depois de ampliado o horizonte de pesquisa, ainda se tenha
mantido a dedicação à poesia e sua linguagem. Era essa dedicação que fun­
daria a escola que, tendo criado, apesar de muitas discordâncias, objeções
e exageros iniciais, e dos poucos anos de que dispôs, novas hipóteses para
a consideração da literatura, encontrou no estruturalismo de Praga a sua
continuação e, ultrapassando-o, mantém sua influência até o presente. Pois
não só muita coisa do que se diz nas discussões de hoje sobre o tema da
linguagem e da poesia já se encontrava no início prenunciada nos escritos
dos formalistas, como também muita coisa exige crítica à luz dos conheci­
mentos formalistas.

il

Descreve-se com grande freqüência de que maneira o futurismo russo


contribuiu para a fundação da escola formalista.5 O futurismo russo foi
um dos movimentos literários da revolução formal que não só, como acon­
teceu com outros grupos literários comparáveis em outros países (futu­
rismo na Itália e mais tarde surrealismo na França), apresentou sua própria
poética em manifestos públicos, mas também em suas produções poéticas
muitas vezes se expressou de forma tão programática e sistemática que
Leon Trotski queria ver nele “mais uma filologia, e em parte talvez uma
poética, mas nunca uma poesia”.6 Esse aspecto pode-se verificar sobretu­
do em Krutchônikh e Khliebnikov, representantes de uma das duas cor­
rentes que distinguia o programa futurista “Slovo kak takovoe” (A palavra
como tal) (1913)7
O que vale notar neste contexto não é apenas a estreita correlação entre
a práxis poética e o programa teórico, mas também a atividade filológica si­
multânea de toda uma série de poetas russos do começo do século XX, ca­
racterística dos representantes das diversas escolas, e notavelmente objetiva,
sobretudo no caso dos trabalhos teóricos sobre o verso dos simbolistas Bieli
e Briusov.8 Desta forma, a ligação entre a práxis e as considerações teóricas,

4 15
LUI Z C O S T A ' LI M A

que mais tarde os formalistas iriam desenvolver, já tinha sido, de certo modo,
institucionalmente preparada. Além disso, é indicativo o fato de o primeiro
escrito de Chklovski, “Voskrechenie slova” (A ressurreição da palavra), em
1914, que fora interpretado como introdução ao formalismo,9 ainda se diri­
gir nitidamente ao programa futurista e só raras vezes deixar perceber os
primeiros impulsos da corrente formalista. Também o ensaio seguinte de
Chklovski dedicado ao xaum \ à “transcendência”, um dos pontos do pro­
grama futurista formulado por Krutchônikh,10 permanece ainda no plano dos
empreendimentos futuristas correspondentes, com sua tentativa de demons­
trar o zaurri nas cantigas infantis, nas glossalalias, testemunhos da lingua­
gem diária.11 Pois em Chklovski se mostra com freqüência a fascinação
futurista até mesmo na inconstância e na freqüente mudança de posição de
sua exposição.12
A revolução que o futurismo russo proclamava é, antes de tudo, muitas
vezes, em seus pontos básicos, uma ruidosa repetição daquilo que já tinha
sido trazido pela evolução da poesia moderna. A proclamada precedência da
forma sobre o conteúdo (“havendo uma nova forma, existirá também um
novo conteúdo; a forma condiciona desta maneira o conteúdo”)13 cor­
responde, em princípio, aos procedimentos conhecidos principalmente atra­
vés de Rimbaud e Mallarmé (formulação dos versos orientados a partir do
som ou por palavras rimadas previamente selecionadas entre outras). E a
conhecida sentença de Mallarmé de que não se faz poesia com idéias, mas
com palavras,14não deve ser compreendida apenas como uma boutade. Tam­
bém a tão alegada emancipação da palavra, sua liberação das aplicações an­
teriormente estipuladas ou da carga metafísica, alinha-se realmente, quanto
ao que ficou dito, contra o simbolismo russo, encontrando-se essa idéia,
entretanto, igualmente antecipada na concepção de Mallarmé sobre a libe­
ração do m ot na poesia. E assim, através de manifestos futuristas poder-se-ia
comprovar, ponto por ponto, que as exigências em questão já haviam sido
antecipadas em outras oportunidades, em teorias anteriores ou até mesmo
realizadas na prática. Também dentro da Rússia, o futurismo repousa numa
tradição respeitável. O esforço para retirar a linguagem de seus automatismos,
o desejo de, por meio da ruptura das relações convencionais da forma sono­
ra e do significado, produzir um estado original adâmico de criação da lin­
guagem, tem, em última análise, sua origem no dogma do caráter poético da
criatividade lingüística. Esse dogma, arrematando assim certas idéias corres­
pondentes do pré-romantismo e do romantismo, foi ensinado por Potebnia,

4 1 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

por volta do fim do século XIX, e posteriormente mais desenvolvido por


Bieli, tido nesse ponto como discípulo de Potebnia.15
Quando os futuristas, certamente nem muito unidos e nem sempre mui­
to conseqüentes, procuraram ultrapassar essa tradição, o fizeram principal­
mente através do desenvolvimento do programa.16 O pensamento já antigo
de uma nova visão do mundo transmitida por meio da arte ou da poesia,
estreitamente ligado à imagem da poeticidade da expressão figurada, ainda
no princípio do século tinha recebido novos impulsos, entre outros pela
doutrina de Bergson, que, na Rússia, não deixou de ter sua influência e ain­
da pode ser observada nos primeiros escritos de Chklovski.17Esse pensamento
ainda encontraria eco em programas futuristas.18 Apesar disso, o objetivo da
“desautomatização”, em grande parte, já não é mais a transmissão de uma
nova visão do mundo e de seus objetos. Os processos escolhidos para elabo­
ração do material verbal, i. e., o “dificultar” a expressão verbal, já não po­
dem muitas vezes servir a uma percepção atualizada do objeto e de sua
designação verbal; esse dificultar permanece, em sua caracterização extre­
ma, retraído em relação consigo mesmo (encontram se algumas provas disso
no ensaio de Jakobson sobre Khliebnikov) para se revelar como arte, como
fenômeno estético.
Essa separação entre a teoria da percepção poética e o figurativismo (que
já vinha se indicando, de outra forma, em Bieli)19 foi levada em casos isolados
até sua última conseqüência, mas no início, evidentemente, sem completa
consciência de Chklovski, pois, como já notara J. Striedter, nele se confundem
as duas concepções da teoria da percepção20 (in “Voskrechenie slova” e
“Iskusstvo kak priem”), e assim se fundem em uma unidade o que em princípio
se excluí. Entretanto, o aspecto absoluto não só da palavra, mas também com
freqüência do som, das letras, da forma gramatical, em suma, do material
verbal, e também das imagens verbais, não podia deixar qualquer dúvida de
que se tinha chegado a um ponto do desenvolvimento da técnica poética onde
as concepções tradicionais tinham de falhar. Ora, como na forma do za u n i
só restara um imperceptível resíduo de sentido, o poeta podia também se
despedir de sua obra, que só enunciava a si mesma. O antibiografismo notó­
rio de certos futuristas (por ex., o de Khliebnikov) constitui a sanção exter­
na de uma concepção artística que, ao se questionar a si mesma, se atribui,
ao mesmo tempo, a tarefa da determinação da arte e da poesia em absoluto.
A formulação do problema foi assim delimitada para a escola formalista,
tanto do ponto de vista positivo como negativo: definição do conceito de

4 1 7
LUI Z COSTA LIMA

poesia (ou de literatura) e pesquisa de sua articulação e organização lingüís­


ticas do ponto de vista da percepção, eliminação das considerações tanto
biográficas como produtivo-psicológicas (cf. a conhecida declaração de
Jakobson sobre a “literariedade” como único alvo legítimo da pesquisa, no
artigo “A mais recente poesia russa”). Veio ao encontro dessa tomada de
posição o fato — a que Jakobson na mesma obra se refere21 — de que a ciên­
cia da linguagem dentro e fora da Rússia começara a se libertar de sua
unilateralidade histórica, e a se voltar para os problemas sincrônico-funcio-
nais.22 Nesse contexto, adquirem importância as exposições de Baudouin de
Courtenay sobre as diferentes normas do uso da linguagem,23 que também
eram fundamentais para a estilística de Ch. Bally e que criaram as condições
para uma nova teoria dos gêneros literários. O conhecim ento de uma
“dialetologia” das formas do discurso foi, sob muitos aspectos, transcenden­
te para a teoria da percepção. Continha, de início, a possibilidade de uma
lingüística aplicada, cuja importância para a discussão do problema funda­
mental (relação entre a linguagem e a poesia) está ainda mais clara atualmen­
te. Essa lingüística aplicada dependia de um dos mais elementares padrões
de comunicação (emissor-texto como forma especial de discurso-receptor).24
Podemos daí compreender por que Croce, na Itália, não pôde, em última
análise, ultrapassar a posição de Potebnia: se abstrairmos do fato de que Croce
elaborara sua concepção bastante precocemente, i. e., antes do aparecimen­
to do futurismo italiano (que, além disso, não representava os mesmos princí­
pios poéticos do russo), então o que faltou aqui foi justamente a consideração
sobre a “lingüística aplicada” que incluiria a finalidade da comunicação. Uma
diferença característica entre poesia e não-poesia (ou literatura e não-litera-
tura) tinha portanto de ficar fora do alcance tanto para ele25 como para
Potebnia e, assim, associou-se a crítica formalista a Potebnia, logo em segui­
da também a Croce e a Vossler.26 Ainda falta demonstrar que, também na
teoria da poesia de Croce e na corrente por ele representada, se esconde um
início que pode ser esclarecedor para a avaliação das relações entre lingua­
gem poética e não-poética.
Na verdade, convém de antemão chamar a atenção para o fato (adequa­
damente valorizado por Ambrogio)27 de que não causara apenas benefícios a
ligação entre a colocação dos problemas estéticos e os lingüísticos, que, afi­
nal de contas, tanto reúne as pesquisas sobre a poesia de quase todos os
formalistas, como as separa, no sentido individual e restrito. No que se refe­
re às pesquisas da linguagem poética, nem os representantes individuais do
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

formalismo nem os continuadores da escola conseguiram atingir de forma


completa uma explicação do problema, apesar de terem elaborado reconhe­
cimentos fundamentais. A questão do statu s lingüístico da poesia permane­
ceu controversa até hoje,28 depois de ter passado pelo estruturalismo de Praga,
que logo se seguiu, e está justamente agora outra vez em destaque através de
contribuições ao debate fundadas em novas bases metodológicas da lingüís­
tica. Convém então compreender em suas idéias básicas a teoria do futuris­
mo russo, por mais heterogênea e ocasionalmente contraditória ela tenha
sido apresentada até agora, pois essas idéias básicas não só contribuem para
esclarecer a discussão, como também indicam determinadas perspectivas de
pesquisas que entrementes tinham sido abandonadas.

iil

A concepção que o espetáculo do futurismo russo proporcionava era real­


mente discrepante. Por um lado, os procedimentos poéticos elucidavam uma
outra maneira de ser da expressão poética, como alteração planejada da lin­
guagem que, fora da poesia, é familiar e habitual. Simultaneamente, entre­
tanto, o resultado desses procedimentos era tão su i gen eris que se devia
perguntar se uma comparação com a linguagem usual indicava realmente o
momento decisivo dessa espécie de linguagem, e não, muito pelo contrário,
se tinha de concluir por uma maneira diferente de ser da linguagem na poe­
sia, geral e apriorística. Essa discordância, na qual, considerada do ponto de
vista atual, se apresenta uma das faces do próprio problema, transmitiu-se
aos primeiros trabalhos dos formalistas, como se pode observar especialmente
no ensaio de Jakobson sobre Khliebnikov. Jakobson fala, por um lado, da
percepção de “todo fato da linguagem poética contemporânea” em confronto
com a linguagem prática do presente (in Texte der russiscben F orm alisten II,
p. 19 ss.) e trata, além disso, das manifestações do “estranhamento” (com­
preendido no sentido que lhe dava Chklovski de criar dificuldades à percep­
ção), como é característico pela maneira futurista de Khliebnikov tratar a
linguagem. Por outro lado, ele designa a poesia como “linguagem na sua
função estética” (in Texte der russiscben F orm alisten II, p. 31), definição em
que, neste contexto, não é o defin ien du m que interessa, mas a compreensão
funcional da linguagem poeticamente valorizada. Ainda com maior nitidez,
embora apenas incidentalmente, expressa-se ele a esse respeito em outra parte

4 1 9
LUI Z COSTA LIMA

(Texte der russiscben Formalisten II, p. 93): “Os modelos acima reunidos de
deformações semânticas e orais (...) são por assim dizer visíveis a olho nu,
mas, considerada em profundidade, cada palavra da linguagem poética em
comparação à linguagem prática encontra-se tanto oral como semanticamente
deformada.”
Está fora de dúvida qual das duas concepções, que se encontram neste
trabalho em contlgüidade imediata,29 é a mais disseminada e tradicional;
quando, inicialmente, se deixa de lado a colocação diacrônica do problema,
torna-se igualmente patente qual podemos considerar a mais interessante, e
a que conduz mais longe. Falando de modo bem geral, o dogma do “desvio”
da linguagem poética e de sua compreensão, como alteração material da lin­
guagem comum, constituía não só o método mais iminente, para não dizer o
mais primitivo de sua avaliação, como também a forma mais exigente de criar
poesia. Quando Valéry (cujas opiniões teóricas sobre esse problema não são
aliás menos controvertidas) designa o poeta como um “a g en t d ’é ca rts”,30 o
faz porque lhe parece impossível que uma frase como ail p le u t” possa ser
poeticamente concebida.31 Em suma, essa atitude está na origem do conceito
de Chklovski de estranhamento (“Iskusstvo kak p rie m ”), no que se refere à
dificultação das formas de linguagem e à eliminação do “automatismo” da
linguagem falada32 (expressão de que também se serviu Valéry).33 Podemos
dizer, de modo geral, que a poética de Valéry em muitos pontos se aproxima
da teoria dos formalistas: “por artístico, no sentido restrito, queremos de­
signar, portanto, as coisas que foram produzidas por métodos especiais, cuja
finalidade consistia em que, com a maior segurança possível, essas obras fos­
sem percebidas como artísticas”.34 O que ocorre, segundo Chklovski, atra­
vés dos fatores do desvio. Não cabe aqui ressaltar a base filosófica desse
dogma, que Chklovski relaciona à filosofia da arte (Philosophie der K u n st,
1909 — tradução russa em 1911) de Broder Christiansen (“qualidade de
divergência”, “impressões divergentes”).35 Talvez seja suficiente estabelecer
neste contexto que a concepção de Chklovski, pelo menos neste ponto, é
característica para o formalismo (e com isso se distingue da idéia da lingua­
gem classificatoriamente orientada), pelo menos devido ao fato de aqui, como
no texto citado de Jakobson, serem os desvios vistos ao mesmo tempo em
seu sentido construtivo (“A linguagem poética é uma linguagem de constru­
ção”).36 Quando, entretanto, nos trabalhos formalistas competentes, fala-se
com freqüência em “deformação” (deformada) com relação à linguagem
prática ou à prosa, então, em geral, esconde-se, por trás desse termo, o pen-

42 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

sarnento de uma heterogeneidade fundamental, não necessariamente de or­


dem material (isto é, sujeita a determinados elementos de desvio), hetero­
geneidade esta sujeita a leis especiais da linguagem poeticamente aplicada.
Esse fato encontra-se mais nitidamente apresentado por Tinianov em seu li­
vro Problema stichotvornogo iazika (O problema da linguagem poética), onde
se confere uma importância decisiva à deformação quanto à relação entre
verso e prosa: significa aqui submissão de um elemento ao princípio básico
construtivo dominante, devendo pois ser compreendido de forma imanente
e relativa.37 Além disso, toda a tendência funcional do livro apresenta uma
refutação da teoria do desvio, que Tinianov em certo lugar também refuta
explicitamente;38 é portanto conseqüente que Tinianov diga também da prosa
que ela “deforma” (o ritmo). Devido a isso, não se deve compreender como
fator de percepção a “orientação à linguagem e à linguagem cotidiana” como
o “sistema mais próximo fora da literatura” e da qual Tinianov fala em seu
ensaio sobre a ode.39 E ainda muito menos a orientação à declamação de
versos40 tem qualquer coisa a ver com a nossa questão. A idéia de que a lin­
guagem prática deve ser considerada a medida geral de comparação da per­
cepção para a expressão poética encontra-se expressa em diversos trabalhos
estilísticos de Vinogradov41 e também, ocasionalmente, em outros pesquisa­
dores,42 embora, em geral, apenas incidentalmente; mas, não há motivo para
ver nisso, como Erlich o faz,43 a característica de toda a teoria formalístlca.44
Constitui uma questão completamente diferente a utilização de uma forma
específica de falar ou de “dialetos” da linguagem cotidiana, que na poesia,
realmente, pode ser concebida como “estranhamento”, mas essa espécie de
desvio não é constitutiva para a poesia (cf. abaixo).
E exatamente essa diferenciação entre “desvio” geral do código poético
e a aplicação de elementos verbais em desvio da norma, de que se sente falta
em muitos artigos representativos sobre a linguagem poética, que a escola de
Praga fez surgir em continuação às idéias formalistas. Atendo-se a um dos
primeiros trabalhos de Mukarovsky sobre “linguagem padrão e linguagem
poética”,45 parece aqui que o dogma do desvio (no sentido de violação das
normas da linguagem cotidiana) transfere-se mais intensamente para o pri­
meiro plano (as teses de Praga não se declararam concordantes neste ponto).46
para Mukarovsky, “a linguagem padrão é o pano de fundo contra o qual se
destaca a deformação intencional estética dos componentes lingüísticos da
obra”; sem essa “violação da norma” a poesia não pode existir.47 Quanto
menos determinado for assim o padrão de uma certa linguagem, tanto menos

4 2 1
LUI Z COSTA UM A

possibilidades estão abertas à poesia, e vice-versa.48 Essa atualização (aktua-


lízace) é assim pensada, mais ainda do que em Chklovski, em termos de teo­
ria da Informação:49 enquanto a aplicação automatizada da linguagem possuí
u m menor valor de Informação, a “atualização” concede um rendimento
elevado de percepção. Por certo, Mukarovsky parece aqui dar ênfase princi­
palmente ao contraste “sintagmático”, imanente, na medida em que ele com­
preende como elemento de comparação a presença de componentes-padrão
na obra. Mas, num caso como no outro, as conseqüências que surgem daí
para a avaliação da linguagem poética não são sustentáveis, mesmo que
Mukarovsky dê ênfase ao caráter “consistente” ou “sistemático” que os des­
vios adquirem como partes constituintes da estrutura da obra. Contrariamente
a Isso, deve-se ressaltar a posição de Havránek, que distingue a aplicação da
linguagem em “linguagens funcionais”, das quais nenhuma pode reclamar o
status de critério de avaliação de outras.50 O efeito da atualização, que se
obtém utilizando elementos heterogêneos do “dialeto”, não tem portanto
nenhum significado Imediato para a determinação da linguagem poética.
Essa concepção (à qual aliás Mukarovsky mais tarde de aliou)503realmente
não foi coroada de êxito. Enquanto a orientação de Praga, tendo de um lado
o conceito funcional da norma e, do outro lado, o interesse estético (com­
preensão estrutural da obra em separado e de suas partes), ocupava uma
posição comparativamente rica, tornava-se perfeitamente claro o caráter
funesto da teoria do desvio, no momento em que o estruturalismo dela se
servia. O estruturalismo, seguindo a linha de Saussure, passou a dedicar-se à
lingüística da langue, à estrutura da língua, e não tomou consciência de que
a aplicação da língua é determinada por instâncias funcionais de distribui­
ção, compreensão que talvez fosse mais fácil alcançar em Ch. Bally, do que
nas obras correspondentes de origem russa ou tcheca.51 Partindo da estrutu­
ra da língua, de fato nada fica mais próximo do que compreender os desvios
de regras estruturais como “estilísticos” ou “expressivos”, Independentemente
pois do fato de essas infrações eventualmente serem de novo neutralizadas
nos diversos campos de utilização, e de lhe faltar, de modo geral, como par­
tes constituintes da norma, qualquer caráter expressivo.52 Não é pois de ad­
mirar que as mais recentes tentativas de descrever a linguagem poética a partir
da gramática já estivessem de antemão condenadas ao fracasso. Também aqui,
a visão está exclusivamente dirigida para a dicotomia entre a co m p e tên c ia e
a realização (correspondente em linhas gerais ao par langue/parole). Portan­
to, não se pode também prestar qualquer serviço ao problema da linguagem

42 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

poética com os empreendimentos da gramática gerativa quanto à formalização


e colocação dos desvios no processo criativo verbal,53 visto que a perspectiva
gerativa sob muitos aspectos é Inadequada para essa finalidade. Pois nem o
desvio nem a Infração contra as regras da língua significa o “poético” (sobre
o que todos concordam mais ou menos),54 nem são, em princípio, não poé­
ticas a correção e a regulamentação, e a formalização dos desvios num deter­
minado texto não atinge nada mais que essa mesma formalização.55 E evidente
que a Idéia de construir regras especiais do desvio poético não pode ser to ­
mada a sério.56
Essas poucas Indicações permitem trazer para um enfoque correto as
concepções formalistas relativas à linguagem poética. Desde o Início, a teo­
ria formalista criou uma posição de saída favorável, não estabelecendo a
correlação entre a linguagem poética e a “linguagem padrão” ou “linguagem
normativa”, mas adotando a “linguagem prática” como um melo de contras­
te. Esse termo, como se sabe, provém de Potebnia, mas recebeu dos formalistas
um novo sentido; o termo “prático55não significaria classificatoriamente um
padrão fictício (como a linguagem científica em Potebnia), mas todo enun­
ciado de discurso que tem como alvo principal comunicar o conteúdo
extrallngüístico. Em contraposição, a linguagem poética poderia ser defini­
da como “um enunciado que se orienta para a expressão’5 (mskazivanie s
ustanovkoi na virajenie),57 na qual a comunicação objetiva fica em segundo
plano. Assim, criou-se, como aliás desde o começo foi acentuado (L. Iaku-
binski, 1961),58 uma diferenciação em base inequivocamente funcional, por
vezes terminologicamente obscura, mas que não é posta fundamentalmente
em dúvida.59 Isso não era novo em princípio (lakubinski reporta-se a tenta­
tivas correspondentes no século XIX, especialmente às de Humboldt,60 mas
foi agora sistematicamente reunido sob novos pressupostos). De forma se­
melhante, Valéry estabeleceu mais tarde a diferença entre verso e prosa com
a comparação, tomada de Malherbe, entre la marche, como movimento de
caráter transitório dirigido para um alvo, e la danse3que em si mesma traz o
seu alvo.61
Estava de acordo com a orientação desse trabalho conceber, sob a Influên­
cia da poética futurista, a linguagem poética como uma manifestação estética,
i. e., como simplesmente uma arte, no sentido de um objeto fenomenológlco.62
Assim, também foi levado em consideração o ponto de vista da recepção,
tão Importante para uma diferenciação funcional. Esses pressupostos contri­
buíram para que fossem evitadas, desde o início, dicotomias Inadequadas

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LUIZ COSTA LIMA

como “intelectual” (“lógico59etc)/“afetivo” (“emocional” etc.) que, não sendo


funcionalmente orientadas, encaminhavam os que estavam de acordo com
elas para posições sem saída. Esses pressupostos não determinaram apenas
os primeiros passos incertos de uma ciência da linguagem interessada nas
descrições da literatura no início do século X X /3 mas também muitas con­
cepções que chegaram até ao presente.64 Realmente, Iakubinski atribuiu uma
importância especial em um dos seus primeiros artigos, já citado, à emocio-
nalidade dos sons na linguagem da poesia,65 mas a tomada de posição de
Jakobson frente ao manifesto futurista de Marinetti esclareceu a situação em
seu conjunto: a linguagem emocional e a poética também se distinguem fun­
cionalmente, na medida em que a comunicação permanece importante tan­
to para a linguagem emocional, como para a linguagem prática, que na poesia
está em segundo plano.66 Quando eventualmente em trabalhos formalistas
se falou mais tarde em “emocional”, foi então, principalmente, no sentido
conotativo (como, por exemplo, na teoria da declamação de S. Bernstein, in
Texte der russiscben Formalisten II —- Wilhelm Fink Verlag, p. 361); como
critério decisivo da linguagem poética, essa qualidade nunca mais foi posta
em questão desde Jakobson.
Levando-se em consideração o interesse lingüístico especial, principal­
mente do círculo formalista de Moscou, não é surpreendente que a perspec­
tiva funcional, que se escolheu para a diferenciação entre a linguagem prática
e a poética, se tenha muito simplesmente estendido ao conceito da lingua­
gem aplicada. Como já foi indicado, Iakubinski, apoiado em Baudoin de
Courtenay, desenvolveu, num ensaio notável, primeiro esboço de uma lin­
güística aplicada, as noções da ‘linguagem funcional5 (como Havránek a iria
designar mais tarde) e analisou as condições e fatores de uma comunicação
verbal eficaz.67 Com isso, deu-se um passo decisivo, mas não apenas do pon­
to de vista lingüístico.68 No momento em que, por um lado, a utilização da
linguagem é reconhecida como diferenciada em normas específicas e, por
outro lado, a comunicação emitida verbal e extraverbalmente entre locutor
e ouvinte foi posta no centro,69 o dogma do desvio ficou basicamente com­
prometido. Pois, entre as inúmeras normas da linguagem prática, qual lin­
guagem poética poderia infringir ou delas se destacar? E mesmo que diante
do exemplo futurista se aceite uma categoria de erros que transcendem as
normas, pelos quais as regras da estrutura da linguagem são afetadas e as
formas orais das palavras isoladas ficam alteradas etc. (exemplos na análise
sobre Khliebnikov por Jakobson, in Texte der russiscben Formalisten II,

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TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

Wilhelm Fink Verlag, p. 107 ss.), deve-se ainda assim considerar que, por
um lado, observado do ponto de vista da linguagem objetai, cada enunciado
lingüístico (livro, mesa, lima etc.), em si mesmo e Isolado da finalidade de
sua apresentação, não tem sentido,70 e que, por outro lado, só surge uma
compreensão adequada, também em sentido externo, quando o ouvinte ou
receptor se coloca em “sintonia” com o locutor ou o escritor. A conseqüên­
cia que daí resulta para a recepção da linguagem poética não foi especial­
mente formulada, nem talvez completamente compreendida pelo próprio
Iakubinski.71 Entretanto, ele criou aquilo que os sucessores inequivocamente
expressariam, como por exemplo W Nowottny: “We bring to poetry expec-
tations it has itself created and the aptitudes for understanding it that we have
developed in ourprevious encounters with it. The common reader, opening a
book ofpoem sy expects that the language used in the book will be fdifferent\
because in his experience the language used in poems usually is”.72
E claro que se está perfeitamente livre de analisar do outro lado da pers­
pectiva da percepção, i. e., do ponto de vista da metalinguagem, os even­
tuais atentados às regras estruturais da linguagem (por ex., “as crianças
dorme”). Mas com isso não se presta qualquer serviço à linguagem poética,73
pois essas operações podem ser empreendidas também com relação a textos
de telegramas, documentos de domínio incompleto da língua, ou outros. Por
outro lado, não se deve acentuar especialmente que o desvio dos cânones
apresentado pelos formalistas, i. e., dentro da “série”,74 apenas é reforçado
pelas ponderações, como as que se encontram na citação de W Nowottny.
Aqui, a “qualidade diferencial” é um dado inegável,75 “qualidade diferencial”
que está baseada na dialética do desenvolvimento da criação literária. Está
em conexão com a “perceptibilidade do procedimento” e com o caráter di­
nâmico, duas características que na teoria formalista estão intimamente liga­
das à qualidade da obra literária artística.
A qualidade diferencial torna-se agora importante ainda num outro con­
texto, que aqui se conecta. Já se tem falado que os “dialetos” ou normas como
“sistema” específico podem se tornar estranhos pela integração de normas
ou partes constituintes de normas que sejam heterogêneas, processo que Bally
já analisara como “évocation du milieu” no seu Traité de stylistique. Este se
fundamenta no fato de os automatismos do discurso restringirem-se especi­
ficamente às normas individuais (situações, estilo e outras), como se deduz
também da apresentação de Iakubinski, compreendida no sentido beha­
viorista. Decorre daí, entretanto, no que se refere às declarações globais de

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Nowottny, que se deve contar com duas posições: a perspectivista, catego-


rízadora (recepção “prática” versus “poética”), e a normativa, que se refere
às diversas normas ou espécies, tanto da linguagem prática como da poéti­
ca.76 Desse modo, a sintonia com a linguagem poética não nivela, de ante­
mão, uma combinação especial de normas heterogêneas, na medida em que
essa combinação já não tenha sido anteriormente frisada e seja característica
da espécie correspondente. Se esse não for o caso, surge então o efeito
atualizante, que, no entanto, em relação à sua gênese, é completamente in­
dependente de qualquer quadro perspectivista (“prática” ou “poeticamen­
te”). Cabe acentuar aqui esse fato, porque os formalistas, por vezes nem
sempre de forma congruente, confundiram as fronteiras entre poesia e prosa
com as combinações de normas,77 como de certo modo ocorreu com Tinianov
nos seus ensaios sobre “A ode como gênero oratório” e sobre a linguagem da
poesia.78 Neste contexto, surge mais outro problema quanto à possibilidade
da perspectiva do quadro se deixar comutar (“prática”/“poeticamente”) de
tal forma que, por exemplo, uma posição poética e um texto não-poético
(i. e., pretendido não-poético) estejam combinados. Chklovski referiu-se a
esse ponto em “Arte como procedimento”, onde chama a atenção para o
fato de uma “coisa prosaica” poder ser percebida como “poética” e uma
“coisa poética”, como “prosaica”. O problema deve, naturalmente, ser aqui
compreendido diacronicamente.79
Assim sendo, sob o aspecto formalista, também se encontra em quase sua
totalidade sob o signo do desenvolvimento histórico a determinação dos
gêneros literários, como Tinianov o analisou em “O fato literário”80 e em
seu ensaio sobre a ode. Essa idéia inicial sistemática, que se escondia no tra­
balho de Iakubinski sobre o discurso dialogado, não foi adequadamente de­
senvolvida pelos formalistas.

IV

Leve-se em conta que a distinção fundamentalmente funcional entre a lin­


guagem prática e poética, de que se apropriou o formalismo, não foi reco­
nhecida igualmente em todas as suas implicações. Culpar a escola por isso
seria ainda mais inoportuno, pelo fato de ainda hoje mal nos podermos ga­
bar de termos atingido resultados seguramente mais amplos nessa direção,
seja em relação à linguagem prática, seja quanto à linguagem poética. Esse

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fato se evidencia, principalmente nos critérios orientados para o processo da


comunicação.
A já mencionada “orientação para a expressão”,81 que distingue a poesia
da utilização prática da linguagem, pertence às acepções mais importantes
que os formalistas conquistaram. Nesse sentido, ressaltada por Iakubinski em
uma de suas primeiras publicações formalistas, formulada e mais desenvolvi­
da por Jakobson e respeitada por outros, essa concepção não só teve aceita­
ção nas teses da escola de Praga em 1929,82 mas, estendendo-se além delas,
manteve até hoje sua validez. Isso se deve em parte ao próprio Jakobson que,
de certo modo, encaminhou essa concepção a Praga (cf. seu ensaio uO que é
a poesia?” in Texte der russiscben Formalisten II, p. 392 ss.) e há alguns anos,
enriquecida de novos argumentos, a levou aos Estados Unidos.83 Entrementes,
foram porém defendidas, em uma série de trabalhos, opiniões semelhantes
que, embora de concepção menos ampla, indicavam mais ou menos o mes­
mo princípio como peculiaridade da linguagem poeticamente utilizada. Esse
fato também não era desconhecido de Valéry, que anotou nos seus Cahiers:
“Uart transforme les moyens et les change en fin . Áinsi le langage, les
sensations” (VI, p. 208).84 Entretanto, quanto mais essas diversas tentativas
se aproximavam, tanto mais se diferenciavam na apresentação Isolada, de­
monstrando assim a necessidade de novas considerações sobre esse ponto.
O espetáculo da poética futurista repercutiu em maior proporção sobre
a elaboração da teoria formalista exatamente nesse particular. A princípio,
Iakubinski só tinha em mira o lado sonoro que, na poesia, atrairia para si a
atenção e aí seria vivida em contraposição à utilização prática, sem, entre­
tanto, considerar suficientemente as conseqüências que daí surgiriam para o
lado do conteúdo.85 Também aqui era preciso recorrer ao conceito de
Jakobson (“Die neueste msslsche Poesíe”) para se poder compreender o
essencial A “orientação para a expressão” tem primeiramente o significado
genérico de que a comunicação, a raison d 3être da linguagem prática, na poesia
“fica reduzida a um mínimo” (in Texte der russiscben Formalisten II, p. 31)
í. e., a comunicação é “secundária”, como mais tarde se diria. Esse fato está
em relação Imediata com a compreensão de que um objeto extralingüístico
(denotatum, referent), que foi comunicado, não existe realmente (cf. “Die
neueste russische Poesie”, in Texte der russiscben Formalisten II, p. 93). As­
sim, se atingem duas coisas: por um lado, uma relação real entra no lugar
de uma relação automatizada através de convenções entre a forma oral e o
significado de uma palavra, caso essa relação não tenha até sido posta em

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LUIZ COSTA LIMA

questão ou voluntariamente dissociada, como Jakobson demonstrou (altera­


ção do acento das palavras, substituições de sons etc., cf. “Die neueste russische
Poesie”, in Texte der russiscben Formalisten il, p. 93); por outro lado, a pro­
núncia dos sons é, até certo ponto, deixada livre na poesia. Dessa forma, a
orientação para a expressão tanto permite manifestar os significados com­
plexos que ultrapassam a palavra isolada, como associa semanticamente, de
acordo com a lei da etimologia poética, palavras de som igual ou parecido
quando se encontram de algum modo combinadas ou relacionadas.86 Em casos
extremos da experiência futurista, os sons gozam de uma emancipação de
certa amplitude e são reduzidos ou (segundo a opinião dos futuristas e tam­
bém dos primeiros tempos de Jakobson)87 elevados a meros articuladores de
um zaum' que já não era perceptível. Abstraindo-se desta última conseqüên­
cia, surgem então, sob as condições mencionadas, manifestações de maior
alcance: ao “desnudamento da palavra” (de que já falara Iakubinski)88 asso­
cia-se uma imotivada “realização da estrutura verbal” (talvez por meio da
suspensão das fronteiras entre o significado real e o figurado), que indica
serem as combinações semânticas “postas a nu” quando lhes falta justificati­
va pela verossimilhança.
A compreensão da linguagem poética aqui determinada pela práxis
vanguardista indicou, além de seu ponto de referência, uma realidade fun­
damental. Em verdade, já no formalismo, a repressão ou a revogação do
referent vai encontrar uma justificativa um pouco diferente da “dificultação”
formal. Da mesma maneira, também outros cientistas (entre outros, A.
Pagllaro,89 D. Alonso, G. Genette)90 irão mais tarde pesquisar a atualização
da relação entre as formas sonoras e o significado, ou seja, a objetivação
(vivificação, motivação) dos signos lingüísticos; ou introduzirão essa atuali­
zação em determinações mais amplas da semântica poética. E assim que
Greimas vê na “coocorrência” das formas um momento decisivo da lingua­
gem poética no nível da expressão e do conteúdo, e o localiza “a meio cami­
nho entre a articulação simples e a dupla articulação”.91 No fundo, ele reata
a antiga tradição vinda de Vico através de Potebnia e Croce (Pagliaro o faz
conscientemente),92que compreende a linguagem poética como simplesmente
linguagem, e a utilização prática, ao contrário, como alguma coisa de secun­
dário. Essa concepção tem sido novamente defendida justamente nos últi­
mos tempos, em parte com grande determinação,93 depois de ter, no início
do formalismo russo, representado na teoria da percepção um papel se não
completamente esclarecido, pelo menos modificado.

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TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

Não se pode desconhecer que, se por um lado, de fato, se disse algo de


muito essencial com essa caracterização (“tematização”, “absolutização”,
“auto-apresentação” da linguagem poética), por outro, ainda foi relativa­
mente pouco. Quando essa caracterização foi por isso fundamentalmente
posta em dúvida,94 como aconteceu recentemente na discussão sobre o
conceito de Jakobson da “função poética”, ficou demonstrado quanto são
necessários maiores esclarecimentos sobre o tema. O ponto decisivo não é
tanto se a atualização dos signos verbais na linguagem poética anima real­
mente a nossa experiência da realidade ou até mesmo a modifica, como
não só Jakobson o ensina em “O que é a poesia?”,95 mas também ainda
Pagliaro96 (devemo-nos lembrar do entusiasmo de Chklovski pela arte fun­
dada na filosofia da vida in “Ressurreição da palavra” e a “Arte como pro­
cedim ento”). Podemos abandonar aqui essa acepção, que deveria ser
debatida no nível de uma teoria sociológico-histórico-receptiva. Mais peso
tem a pergunta sobre o que se deve compreender desse resto de comunica­
ção, o que se deve compreender precisamente sobre o seu papel secundá­
rio na poesia. Uma autonomia da palavra ocorre portanto, evidentemente,
quando o seu significado verbal fica liberado das combinações semânticas.
Nos casos raros em que isso acontece (hoje de certo modo na “poesia con­
creta”), a linguagem se encontra realmente em si mesma. Entretanto, logo
que a palavra entra em ligações semânticas, surge o problema da verbalidade
ou da imanência verbal daqueles complexos de significação (por ex., as sig­
nificações da frase). Nesse segundo caso, ter-se-ia de considerar realmente
a separação do conteúdo comunicativo; por outro lado, porém, não se deve
absolutamente pôr de lado a tese de Jakobson de que, na poesia, a função
poética torna a função referencial ou comunicativa ambivalente.97 Mas é
essa ambivalência que, em última análise, continua a dar um status verbal
aos conteúdos combinados, tornando visíveis em seus papéis os elementos
da linguagem que participam das combinações. A partir daí, não se deve
concordar (e aqui se pode quase impensadamente apoiar a teoria formalista)
que a utilização de frases de caráter de certo modo “apelativo” ou “repre­
sentativo” ultrapassa o limiar da comunicação da poesia, pois nada mais se
pode acrescentar à afirmação de que a poesia utiliza a linguagem emocio­
nal para seus próprios fins (e assim também a apelativa etc.). A dominante
orientação para a expressão não pode ser negada, na medida em que ela
está associada à percepção estética. Sendo esta abandonada, fica então o
texto à disposição de qualquer utilização ou recepção.98 O formalismo não

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LUI Z COSTA UMA

se contentou com a tese global da orientação para a expressão. Uma exati­


dão maior tornou-se possível, no momento em que a pesquisa da lingua­
gem poética adotou um caráter sistemático.

O livro de Iu. Tinianov, O problema da linguagem poética {Problema sti-


chotvornogo iazika, 1924), é uma das mais significativas realizações do
formalismo russo." Ele termina o período das primeiras tentativas despreo­
cupadas e já não dispersa, como ocorria com freqüência nos primeiros tex­
tos formalistas, acepções teóricas importantes numa onda de citações, mas
as desenvolve conseqüentemente e com grande capacidade de penetração.
A justificativa da diferença entre poesia versificada e prosa constitui o
ponto de partida de Tinianov. Essa atitude tem a grande vantagem de permi­
tir que o raciocínio se oriente num campo formalmente limitado, mas tinha,
como vai ser demonstrado, também sua desvantagem. E significativo o fato
dos formalistas localizarem suas reflexões sistemáticas sobre a “literariedade”
(que eles, entretanto, queriam pôr em principal destaque)100 de preferência
no campo diacrônico, o único, como eles acreditavam, em que essa questão
central podia ser respondida; ou então se restringiam à linguagem poética.
Os formalistas não empreenderam exatamente uma pesquisa dedicada em
especial à literariedade da linguagem em prosa, e apenas incidentalmente foi
abordada a questão da possibilidade de “a orientação para a expressão” tam­
bém se transpor para a prosa literária.101 O deslocamento da ênfase, que se
anunciava durante o desenvolvimento da teoria formal com a linguagem
poética de Tinianov, como também em outras contribuições da época, pode
ser observado na atitude diante do za u m \ ao qual renderam homenagem
(Chklovski em especial, e Jakobson, de outra forma) como o caso ideal da
poesia. Não só Tinianov, mas também Brik e Tomachevski indicam, daí por
diante, a existência de um significado como indispensável para a conserva­
ção da verbalidade da poesia, diante da qual a mera composição zaum J só
poderia valer como um caso trivial.102 O significado é necessário, porque só
ele em união com sua manifestação sonora, e não o som em si, assegura o
específico do material verbal em confrontação com as outras artes. O signi­
ficado oferece assim a condição pela qual a dialética da organização verbal e
não-verbal, que constitui a essência do verso, se torna efetiva. Sem significado,

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Jp -

TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

e isso quer dizer também sem sintaxe, como os formalistas o perceberam, o


ritmo e o metro tornam-se por assim dizer tautológicos, já que só se apresen­
tam a si mesmos. Com essa transformação das concepções, também se alte­
rou a relação com os teóricos da poesia do Ocidente (do lado dos alemães,
principalmente Sievers e Saran). A “análise do som” de Sievers103 veio de certo
modo ao encontro da obsessão pelos sons dos primeiros trabalhos forma­
listas.104 Sievers foi apresentado no segundo volume da antologia formalista
(1917)105 num artigo que perde agora em interesse, por outras razões, mas
também porque exatamente uma nova orientação semântica da teoria dos
versos fazia falta na concepção acústica do verso.106 Com isso, não se alterou
o benefício que a escola alemã conquistara para o conhecimento do ritmo
do verso.107
O ritmo, compreendido como fator construtivo do discurso versificado
e não como acessório ornamental, era de fato para os formalistas o símbolo
decisivo que, separado da métrica e colocado em oposição a ela, foi compreen­
dido como a base de toda a teoria do verso. Não é por acaso que também
datam do tempo do formalismo as primeiras concepções filosóficas da vida
de Ludwig Klages em relação à antinomia entre o ritmo e a cadência;108 elas
iluminam mais uma vez o bergsonismo como com ponente da tradição
vichiana, como ele era observado sobretudo em Chklovski. Mas essas colo­
cações perderam terreno perante as pesquisas conseqüentes da estrutura do
verso, que são representadas entre outros nos trabalhos de Brik e Tomachevski
(cf. Texte der russiscben Formalisten II, p. 163 ss, e 223 ss, respectivamente).
A antiga idéia da métrica dos teóricos do verso tinha de parecer invalida­
da em muitos pontos de vista. Não apenas pelo fato de figuras métricas terem
sido com freqüência demonstradas em exemplos de prosa,109 mas também
por só se poder imaginar o verso, do ponto de vista da métrica, como uma
série “automatizada”, por ser homogeneamente organizada,110 não podendo
entretanto, por sua vez, ser considerada um princípio decisivo da linguagem
poética (pense-se no verso livre).111 Sem ritmo não há poesia: isso significava,
no caso extremo da concordância do encadeamento da linguagem com a lin­
guagem em prosa e ausência de articulação métrica, atribuir ao ritmo o papel
exclusivo da separação da prosa. A problemática dessa concepção foi dissi­
mulada pela afirmação de que o impulso rítmico mostra tão mais nitidamen­
te a sua ação, quanto mais fracamente o elemento métrico for acentuado.112
A análise de Tinianov do elemento semântico na poesia versificada é de­
terminada pelo princípio que ele no fim de seu livro formula: “A perspectiva

43 1
LU I Z C O S T A L I M A

do verso quebra a perspectiva do assunto.”113 Isso significa isoladamente que,


na relação de tensão entre o momento verbal (semântico-sin tático) e o mo­
mento não-verbal (rítmico) no verso, o primeiro está sujeito ao segundo, en­
quanto na prosa é válida a predominância inversa.114 Submissão significa no
primeiro caso “deformação” do significado verbal por meio do ritmo,115 ten­
do diversos efeitos. Em primeiro lugar, o abrandamento do indício básico do
significado da palavra (osnovnoi priznak) indispensável à denotação, havendo
simultaneamente uma emancipação de sinais secundários como do índice de
um dicionário, que indica a “coloração” da palavra de acordo com o seu cam­
po de utilização originário (leksitcheskaia okraska, leksitcheskü priznak),116 ou
com outras conotações. Esse abrandamento ou mascaramento do sinal semân­
tico fundamental deixa a palavra livre para combinações fluidas com palavras
de seu contexto imediato, na medida em que se encontre um ponto de apoio
externo para isso (semelhança de som),117 mas, ao mesmo tempo, a torna “di­
fícil” como “resultante” da série poética e discursivo-gramatical.118
Tinianov consegue assim, também restringindo-se grandemente à pala­
vra poeticamente aplicada, esclarecer aspectos essenciais do problema do
significado. A articulação quase taxonômica dos conteúdos (destaque da
palavra por meio do rompimento da discursividade semântico-sintática, po­
sição secundária do processo do discurso),119 e ainda as estruturas de repeti­
ção em suas múltiplas características, indicam que a hermenêutica do texto
poético, em primeira linha, não deve ser baseada a partir da comunicação
objetiva, mas permanece determinada pelo princípio rítmico dominante.
Desse modo, a poesia versificada considerada do ponto de vista semântico
nunca poderá ser fragmentária em comparação com textos em prosa.120
Convertendo em positiva uma declaração de Goethe sobre a falta de sentido
que, na forma poética, parece plena de sentido,121 Tinianov reconhece a con­
seqüência mais extrema que daí resulta para o lado semântico: no verso,
empresta-se às palavras que são em grande parte “sem sentido” (i. e., com
conteúdo de certa forma insignificante ou perceptível) uma “aparência de
significado”, ou seja, um “equivalente de um significado” (vidimosf, ékviva-
lent znatcheniia).122
Sem que tivesse sido afirmada claramente, a ambigüidade é aqui trazida
para o primeiro plano como conceito central da poesia versificada e a frase
posterior de Jakobson sobre a “superposição” da contigüidade pela simila­
ridade123 encontra no livro de Tinianov tantos pontos de referência quanto
nas inúmeras considerações formalistas sobre o princípio da repetição.

4 3 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL . 1

O status semântico especial da poesia versificada também foi abordado


no artigo de O. Brik, que data de 1920. Brik encontrou na sintaxe a instância
intermediária entre o ritmo e a semântica (Texte der russiscben Formalisten
II, p. 189). A “figura rítmico-sintática” caracteriza um esquema adequado ao
movimento rítmico, cujo preenchimento ou substituição124 semântica é de
menor importância do que as diversas configurações sintáticas que ele permite
(cf. a concretização no lambo russo de quatro pés, in Texte der russiscben
Formalisten II, p. 196 ss.). Não é o material verbal que cria a formação da
unidade, mas o movimento rítmico, que se torna marcante no sistema das
diversas composições (de acordo com a palavra, a cesura, a linha etc.), pois
na poesia versificada todas essas marcações não são momentos estáticos e
sim dinâmicos (Texte der russiscben Formalisten II, p. 205). O “paralelismo
rítmico-sintático”, que Brik, a seu modo, justificou em seu trabalho, conseguiu
expressar talvez ainda mais nitidamente do que o pudera fazer Tinianov, a
ambivalência do encadeamento da linguagem na poesia versificada: progres­
são e regressão estão entrelaçadas e deixam o texto poético, do ponto de
vista estrutural, aparecer como um sistema tanto fechado como aberto (i. e.,
livre de ser continuado). Fica evidente que, exatamente por esta razão, tor­
na-se necessária outra função que, por assim dizer, limite essa continuação.
Não pode ser uma função em que predomine a natureza do conteúdo (como
ocorre amplamente no verso épico), antes deve ser esteticamente fundada.
Da mesma maneira, não deve ser a “orientação para a expressão”, de muito
maior alcance, apenas funcionalmente determinante (como “função poéti­
ca” da linguagem), mas deve ser compreendida em si mesma como funcio­
nalmente determinada.

Vi

Já não cabe aqui apresentar em separado quais foram as noções úteis que os
formalistas desenvolveram para a estrutura do verso.125 Na medida em que
foram postos em primeiro plano, por ex., o ponto de partida fonológico em
métrica e prosódia, que Jakobson tornou válido,126 a comparação entre métri­
ca e rima e entre métrica e ritmo por Tinianov127 e outras questões, esses resul­
tados foram incontestáveis. Mas, no momento em que se considera novamente
o problema vital do formalismo, a delimitação entre linguagem prática e lin­
guagem poética, os resultados já não têm o mesmo poder de convicção.

4 3 3
LUIZ COSTA LIMA

A tentativa de determ inar a linguagem versificada em com paração


contrastante com a prosa tinha que trazer obrigatoriamente para o primeiro
plano das considerações o chamado verso livre, já que é justamente nele que
se precisavam verificar as características da poesia versificada. Realmente, já
se levou em conta esse fato na afirmação de que o ritmo, como elemento
construtivo dominante, é atuante mesmo sem base métrica; mas subsiste a
pergunta: como o ritmo ainda se deixa indicar aqui quando de fato se toma
por base o tipo de verso livre completamente desligado da métrica? Toma-
chevski parece ter pressentido essa problemática: se a pergunta quanto ao
verso deve ser colocada independentemente da análise de sua medida inter­
na, de sua construção interior (que a poesia moderna russa permite), devem
ser levadas em consideração as circunstâncias da unidade do discurso, como
diz no seu artigo “Verso e ritmo”.128 Especialmente Tinianov e Brik conside­
ram a linha do verso que representa a unidade rítmico-sintática original como
uma circunstância decisiva dessa natureza129 (assim certamente pensa tam­
bém Tomachevski).130A linha do verso deve ser compreendida, evidentemen­
te, como sinal para a entoação rítmica, i. e., para a distribuição da “energia
de respiração dentro de uma única onda do verso”.131 Se essa entoação for
substituída por uma entoação de prosa (de acordo com o sentido), o verso
fica “poeticamente esvaziado de sentido”.132 Pelo visto, não se trata então
(supondo-se sempre o mencionado vers libre) de modo algum somente de
uma justificação imanente da poesia versificada, mas de uma indicação exte­
rior para a “realização” da linha do verso ou do caráter do verso. Foi Tinianov
quem mais nitidamente desenvolveu esse fato: só a fixação gráfica da linha
do verso assegura a presença dos “fatores rítmicos” da unidade do verso, da
“densidade” da série poética (tesnota) e a “dinamização”. Apagando-se a
apresentação gráfica do verso, escrevendo-se alegados vers libres como texto
corrido, eles se transformam em prosa; perderam sua raison d ’être3 ou, em
outras palavras, perderam seu caráter poético, e, na opinião de Tinianov,
muito provavelmente já não encontrarão muitos leitores.133
Ora, é sem dúvida mais fácil a partir dessa visão das relações decidir a
questão se, por ex., os encadeamentos de Helne no Ciclo aDIe Nordsee” são
versos livres ou não.134A observação de que os textos, sem maiores conside­
rações, poderiam ter sido escritos em seqüência como na prosa (o que, diga-
se de passagem, é de fato insignificante) não tem neste caso qualquer sentido,
pois a articulação dos versos já está escolhida.135 Em conseqüência dessa con­
cepção, ter-se-ia que ir mais longe do que J. Cohen que, não há muito tempo,

434
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM S U A S FONTES — VOL. 1

dividiu uma notícia banal de jornal sobre um acidente de carro em “versos


livres” e observou a respeito que isso “naturalmente não era poesia” e se­
riam necessárias “outras figuras” para criá-la. De qualquer modo, já não se
trataria também de prosa no texto artificialmente alterado, pois (e aqui sua
caracterização do evento fica muito próxima da definição formalista do rit­
mo): “Les mots s’animent, le courant passe, comme si la phrase, par la seule
vertu de son découpage aberrant, était près de se réveiller de son sommeil
prosaique”U6 Com efeito, o próprio Tinianov parece não ter considerado
essa conseqüência, já que em outro contexto, na divisão externa de um texto
corrido de Heine, fala apenas da “ilusão de ligações quantitativo-sintáticas”;
por ocasião da discussão dos versos livres, já não se fala mais disso137 (neste
ponto, Lotman foi mais longe com sua determinação do “H ino” de Heine).138
Entretanto, se a linha do verso decide, se, de resto, uma linha de verso é su­
ficiente como texto poético,139 a frase “Proletários de todos os países, uni-
vos!” deveria ser lida como verso, com a entonação rítmica correspondente.
(Brik justifica sabiamente a transformação poética dessa frase por meio do
verso anapesticamente orientado, numa poesia de Tan.)140 Pode-se ir mais
adiante perguntando por que a prosa de Bieli, que está organizada mais
“métrica” e sonoramente do que muitos vers libres, não deveria igualmente
permitir uma concepção de verso,141 evidentemente por causa do ponto de
vista do conteúdo ou mesmo devido à compreensão formal da prosa. Pois
não pode haver dúvida a que seriam atribuídas finalmente essas dificulda­
des: a dicotomia verso/prosa foi justificada do ponto de vista puramente
formal, principalmente por Tinianov, razão pela qual o verso e a prosa fo­
ram caracterizados como “duas espécies”, “duas séries construtivas” ou “duas
categorias semânticas fechadas”.142 Quanto mais seguramente se caracteri­
zam, por meio da diferença entre verso e prosa, duas formas antagônicas de
utilização da linguagem ou de seus procedimentos, tanto menos se atinge assim
a diferenciação entre poesia e não-poesia. Não haveria exatamente uma des­
vantagem, se a maneira de considerar formalista pudesse se tornar indepen­
dente, renunciando a esse alvo mais amplo. Mas desse assunto só se pode
falar condicionalmente.
Aqui também Tomachevski viu bem mais claro, e, no início de seu artigo
para o número dedicado a Lenin do Le/, assim se expressa sobre essa proble­
mática: “Logo que nos voltamos para a lingüística, substituímos a inequívo­
ca contraposição entre poesia e prosa, talvez terminologicamente não muito
feliz, com que nos deparamos na antiga ciência escolâstica, por uma nova

4 35
LUIZ C O f. T A L!MA

contraposição: entre linguagem prática e linguagem artística (...). Tal contra­


posição não [corresponde] às linhas de separação entre poesia e prosa, pois
a linguagem em prosa pode, tanto quanto a poética, ser oposta à linguagem
prática.”143
O voltar-se para a teoria do verso tem, portanto, como conseqüência,
pelo menos segundo a concepção de Tinianov, um recuo para aquém da pro­
missora posição de partida (embora não totalmente homogênea) do forma­
lismo, que tinha escolhido, e não por acaso, a diferença entre linguagem
poética e linguagem prática.144 Pois Tinianov não conseguiu naturalmente
resolver os casos do poema em prosa e dos romances versificados como es­
pécies de outra maneira, senão a de que tinham de ser atribuídos à prosa ou
à poesia versificada.145 A prosa deve ser, entretanto, a série sintático-seman-
ticamente orientada, discursiva, e isso significa a “série” não “compacta”, não
“dinamizada”, que só “referencialmente” pode conseguir a sua hermenêutica
— característica que dificilmente se coaduna com o poème en prose. Mas, de
acordo com a argumentação formal (ou estrutural), pode-se dizer que “uma
certa reação à forma versificada apenas ressalta a filiação desse gênero à pro­
sa (os poemas em prosa de Baudelaire, Turgueniev e outros)”.146 Com o caso
do romance em verso, ocorre coisa diferente. Aqui, o procedimento da
estruturação do verso realmente repercute de maneira caracterizante sobre
o conteúdo, enquanto no poema em prosa o princípio da estrutura dessa
categoria é muito menos marcante.
E, desse modo, a forma da argumentação estrutural também é a mais
adequada neste caso. Tinianov se serve dela também em sua exposição sobre
o desenvolvimento da ode russa: quando um novo tipo de ode, oposto ao de
Lomonossov, procura se transmitir por meio da prosa e se esforça por atin­
gir a clareza da semântica da prosa, pode, de fato, restringir um pouco a
dominância do princípio sonoro rítmico, mas não pode colocar em dúvida a
“deformação” semântica, à qual essa transmissão está sujeita.147 Em conjun­
to, pode-se afirmar que não se dá uma resposta à pergunta de como, no caso
do poema em prosa, a forma da prosa e a exigência poética deixam-se unir.
Finalmente, não se pode fugir também à pergunta inversa quanto à relação
entre verso e poesia.
Parece oportuno indicar aqui também que, nesse espaço de tempo, nos­
sas concepções relativas à diferenciação entre linguagem poética e lingua­
gem prática foram pouco além da situação esboçada. A comparação estrutural
entre verso e prosa nada perdeu de sua fascinação;148 entretanto, em geral,

4 3 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS PONTES — VOL, 1

restringindo-se à perspectiva, não se percebe que, com o recurso obrigatório


ao sinal exterior da organização gráfica/49 entra-se num campo que sugere
um deslocamento do ponto de partida para o plano do processo de comuni­
cação.150Abstraindo-se desse comentário, essas considerações são tão aceitá­
veis quanto produtivas, quando não estão ligadas a implicações semânticas
que se encontram no primeiro plano em Tinianov. Convém ressaltar que
também Tinianov não considerou o problema de forma substancialista, mas
funcional. Ele, como também Tomachevski e outros, notou que não entram
em cogitação nem a rima, nem a situação do estilo, nem a métrica como cri­
tério de delimitação.151 Mas essa forma funcional de considerar fica dimi­
nuída de uma dimensão.

¥11
Os pesquisadores atuais que se ocupam da questão da diferenciação entre
poesia/não-poesia ou literatura/não-literatura observam com freqüência que
os limites são “flexíveis”. Certamente sua consideração não é desprezível,
tanto mais que reconhecem não se tratar aqui de um problema de substân­
cia.152 Na realidade, ninguém mais hoje quer ou pode defender a concepção
de uma poeticidade temática ou ligada a elementos. Em conseqüência, não
se pode atribuir de antemão a característica 'poético5 a motivos determina­
dos ou talvez a palavras determinadas, a encadeamentos de palavras etc.
Jakobson está certamente com a razão quando, em seu artigo “O que é a
poesia?”, não aceita tampouco as restrições históricas, pois, nas épocas em
que se realizavam essas rotulações, os elementos correspondentes teriam sido
utilizados em contextos também não-poéticos (por ex., retóricos).153 E evi­
dente que com isso só se sublinhou a relativização histórica da linha de sepa­
ração entre poesia e não-poesia.
A questão formalista a respeito da literatura tem, entretanto, também o
seu reverso sistemático, na medida em que “a perceptibilidade do procedi­
mento” como condição para a qualidade da “obra de arte literária” tenha
sido justificada do ponto de vista histórico-dialético. O recurso a gêneros
não literários deve ser compreendido, em comparação com a renovação den­
tro de uma mesma série do gênero literário, como o caso máximo de um
processo dialético dessa natureza. Pois, neste caso, o destaque não ocorreu
no quadro existente, mas foi transmitida uma concepção de certo modo nova

43 7
LU I Z C O S T A LIMA

da literatura como momento de contraste. Por essa maneira de considerar,


permanece apenas uma pergunta em aberto, a saber, como um gênero fora
da literatura pode realmente ser aceito e recebido como literatura. No en­
tanto, precisava-se, evidentemente, de uma indicação correspondente, de um
sinal indicando que se devesse considerar daqui por diante essa espécie de
texto como literatura, quando se quisesse evitar a suposição de que a
literarização se deu exatamente pelo fato de serem introduzidos no gênero
extraliterário procedimentos marcados de forma especificamente literária,
elevando-o dessa forma ao nível da literatura. Ou talvez exista uma necessi­
dade de restringir o conceito da desautomatização à recusa dentro dos mar­
cos já estabelecidos do reino da literatura.
A questão aqui lançada ganha em interesse no contexto do já menciona­
do ensaio de Jakobson “O que é a poesia?”, que em certo sentido deve ser
considerado o resumo da teoria formal (e em especial do próprio Jakobson),
embora ele já esteja fora da época histórica da escola formalista. (...) Jakobson
em “O que é a poesia?” separou do conceito histórico “lábil” de poesia (com­
preendido em sentido mais lato) o aspecto sistemático de “poeticidade” ou,
em antecipação à terminologia posterior, a “função poética”. Vê-se, sem di­
ficuldade, que se trata aqui da nova acepção do conceito ustanovka de
Jakobson, que já não é mais categoricamente colocado em igualdade com a
“poesia”. Só se pode falar, segundo Jakobson, em poesia, quando a função
poética, que se introduz subsidiariamente em muitas atividades lingüísticas,
predomina numa obra. Reconhecemos aqui (como também em Poetics and
linguistic, de 1960) o mesmo dilema de que se fala no contexto da diferen­
ciação entre verso e prosa. Se a “função poética” em textos não-literários
(versos mnemotécnicos, slogans eleitorais — I like Ike —, versos de propa­
ganda, versos didáticos etc.)154 é secundária, então ela existe, por certo, pois
aqui se trata de figuras, do contrário essa função não se “realizaria”. Mas
isso não quer dizer que só os textos dotados de figuras sejam poéticos, e,
menos ainda, que todos aqueles especialmente ricos de figuras sejam poesia
ou se aproximem da compreensão poética. O que constitui a poesia, ou melhor
ainda, o que a torna possível não é a quantidade dos procedimentos, mas a
sua sintonia com o texto, reveladora das figuras e estruturas latentes ou po­
tenciais. Mas ela só permite isso porque a recepção por parte do leitor ou do
ouvinte está, em geral, orientada para esse tipo de percepção, i. e., para o
estético. Em suma, é esse modo de percepção, e não a função poética, que
determina que a mensagem, como Jakobson a apresentara em 1960, se torne

43 8
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS F O N T E S — VOL. 1

ambivalente. Falando de modo geral — e Bernstein já o reconhecera clara­


mente —, o objeto só é criado através do “ponto de vista”, que se constitui
assim num “fator” da estrutura do objeto.155 Sem uma indicação adequada
ao receptor de como ele tem que ler alguma coisa ou compreendê-la, o proces­
so de comunicação está condenado ao fracasso; sem uma pré-compreensão
(seja de que forma for), todo enunciado é obrigatoriamente absurdo.156
Somos, por essa razão, obrigados a separar nitidamente formas e figuras
dos dois modos categoriais de recepção, o modo “prático” e o “poético”;
fica assim mantida a possibilidade de aproximar a recepção estética da “sé­
rie” histórico-literária e extraliterária e compreender essa recepção como
função dela.157 Não importa o nome que damos às figuras. De todo modo,
convém recomendar aqui não se falar de uma função “poética”,158 mas tal­
vez, valendo-se da terminologia de Jakobson em 1921 e de Mukarovsky,159
de uma função estética. Vemos agora que a argumentação de Tinianov rela­
tiva à comparação entre poesia e prosa apenas na aparência se orientou por
um prisma formal, pois sua caracterização do verso se baseia na pressuposi­
ção tácita da percepção poética. Esta é, portanto, a dimensão que na teoria
inicial de Tinianov não foi desenvolvida.
De fato, o pensamento aqui estudado não é novo, pois já se encontram
indicações correspondentes em Aristóteles, se bem que não de forma explícita
(G. Morpurgo-Tagliabue se empenhou recentemente em demonstrar não ape­
nas os pontos principais da teoria formalista sobre a linguagem poética, mas
até mesmo as definições diferenciais de Jakobson em 1960).160Em dois pontos
se fala na Poética que não é decisiva para a poesia a utilização de versos, mas
sim a finalidade do discurso: “Na realidade, as pessoas compreendem, sob a
expressão fazer poesia, o fazer versos e chamam a uns poetas elegíacos, a ou­
tros poetas épicos, não do ponto de vista da imitação, mas, sumariamente, de
acordo com a medida do verso. Mesmo quando surgem temas médicos ou de
ciência natural em versos, costuma-se falar em poesia. Homero e Empédocles
nada tinham entretanto em comum, senão a medida dos versos. Seria, portan­
to, mais correto chamar um deles de poeta, mas o outro preferencialmente de
pesquisador da natureza, mas não de poeta (Poética, 1447b.13).”161 Em outra
parte, diz-se que a obra histórica de Heródoto, também em verso, permanece
entretanto sendo história (Poética, 1451a.38). Essa diferença certamente se
originou, como se pode ter observado no primeiro caso mencionado, da com­
preensão mimética da poesia.162 Mas esse critério é naturalmente um critério
finalista. Para nós, entretanto, é mais importante uma outra constatação. Tanto

43 9
LU IZ C O S I A LI MA

Chklovski como Jakobson recorreram em seus primeiros escritos a Aristóteles,


como testemunha de que se atinge a percepção artística pelo efeito de estra­
nhamento da linguagem.163 Atualmente, G. Morpurgo-Tagliabue chamou a
atenção para o fato de que esse pensamento também é tratado por Aristóteles
na Retórica, mas Aristóteles mantinha as duas disciplinas completamente se­
paradas.164 Certamente, não se trata aqui de demonstrar que a compreensão
de Aristóteles não era objetiva. Mas evidencia-se com isso que na fase inicial
do formalismo não foram observadas as conseqüências que resultaram da
dicotomia, concebida de forma acentuadamente funcional, entre a linguagem
poética e a linguagem prática. Da mesma forma, não foi claramente identificada
a relação entre poesia e retórica ao tempo do formalismo,165 embora a diferen­
ça tenha sido inequivocamente formulada, entre outros, por Hegel. Ele vê na
“conveniência prática” da arte do discurso a característica decisiva que a sepa­
ra da poesia e a atribuiu, por essa razão, à prosa.166 Teria sido necessária uma
utilização conseqüente dos princípios nessa direção para solucionar hipóteses
que, não só neste caso, não foram desenvolvidas pela teoria do formalismo,
pois nas diversas teorias ficou demonstrada uma base comum muito promis­
sora: na observação de Jakobson de que a poesia utiliza a linguagem emocio­
nal para seus fins, na referência à sinalização da forma de transmissão no caso
de prosa/verso, mas, acima de tudo, na teoria de Iakubinski que abriu a pers­
pectiva funcional para o lado da lingüística aplicada.
Essa utilização não foi realizada nem então, nem em verdade até hoje,
apesar dos mais esclarecedores artigos, entre outros, de Iu. Lotman. Basta
pensar na relação entre a prosa literária e a não-literária para se certificar
das grandes dificuldades nesse campo. A polarização entre a linguagem prá­
tica e a poética (i. e., em última análise, lírica) foi, sem dúvida, um avanço
útil para a definição da literariedade. Mas, mesmo que se tenha de admitir,
sob condições de modo geral definidoras, que o conceito da linguagem poé­
tica contém a linguagem da literatura em prosa,167dever-se-iam levar em conta,
por outro lado, certas propriedades, como, por ex., a da recitação em prosa,
que não cabe aqui ressaltar.168 Essa problemática subjazia à discussão formalista
sobre o verso e a prosa, pois Tinianov deixava em aberto, no caso da prosa,
em que tipo de recepção se haveria de pensar, se na recepção prática ou na
poética. O poema em prosa, certamente, poderia ter sofrido outra caracteri­
zação, se o modo de percepção poético fosse levado em conta. A ambigüida­
de da comunicação, que também aqui foi criada pelo “enfoque” poético, não
se ajusta bem à caracterização de Tinianov da prosa de “série construtiva”.

440
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

Não é sem razão que se acentua aqui, especialmente, o pensamento fun­


cional do formalismo. Nele está compreendido, em ultima análise, como
resultado, que a rigor não existe nem pode existir uma linguagem poética
como linguagem especial, pois nem está excluída da poesia qualquer mani­
festação lingüística, nem se pode admitir que ela dependa de determinadas
condições lingüísticas. Essa compreensão, já enunciada por Mukarovsky, e
que, justamente nos últimos tempos, tem sido apresentada de forma às vezes
categórica, às vezes hesitante/69 é tudo, menos negativa. Pois existe (e não se
trata aqui simplesmente de um esclarecimento terminológico) uma lingua­
gem poeticamente utilizada. Linguagem poeticamente utilizada significa que
o modo categórico da percepção estética deixa visíveis certas propriedades
da língua, sobretudo de tipo semântico, que lhe é vedado mostrar no uso
prático.170
Ninguém quererá hoje Identificar a linguagem poeticamente utilizada
como “poesia” em geral Pode-se dizer, porém, que a poesia não consiste em
si mesma, mas depende da decisão de como eós queremos utilizar um deter­
minado texto lingüístico. Se essa decisão for tomada a favor da posição esté­
tica, apresentará características específicas: por um lado, ela nos é exigida
pelo autor ou por sinais correspondentes, sob pena de não podermos “utili­
zar” o texto; por outro lado, nós próprios temos a possibilidade de escolher
a nossa posição estética, onde ela nem sequer fora exigida e, em circunstân­
cias a favor da prática, até mesmo onde não fora desejada. Foi dito com cer­
ta razão, no que se refere ao segundo caso, que a grande eficácia de Brecht
baseia-se na “falta de eficácia”.171 De fato, quando se nota uma tendência
para o gozo da criação literária ou para o entretenimento (volume de versos,
sala de espetáculos), toda Intenção prática de efeito, que esteja ligada ao tex­
to e figurativamente enriquecida, recai sobre si, L e., torna-se ela‘m esma um
objeto de percepção estética, a não ser que se possam Ignorar esses sinais ou
substituí-los por “práticos”. Correspondentemente, também é válido pode­
rem ser os textos publicitários lidos poeticamente, ocasião em que a Inten­
ção publicitária, juntamente com os meios e figuras para isso Introduzidos,
tem efeito conotativo. Aqui, já não se deve então dizer, em analogia com as
declarações de Jakobson sobre a linguagem emocional, que a linguagem poé­
tica utiliza a linguagem publicitária “para seus fins”, mas pelo contrário, são
fornecidos a finalidade formulada e os meios de percepção poética cor­
respondentemente estabelecidos. Ocorre o mesmo no primeiro caso. Quan­
do Peter Handke apresenta como trechos literários “a equipe do 1.° F. C. de

44 1
LUI Z COSTA LIMA

Nuremberg de 27-1-68”, a aHit~pamde japonesa do dia 25 de maio de 1968”


ou um recorte de crônica social de jornal (rubrica: “Nossos hóspedes”),172
nada impede, com exceção talvez de uma concepção tradicional demais de
literatura, de ler esses textos como estéticos (sem prejuízo da questão do
benefício correspondente, que não interessa aqui). A afirmação de Jakobson
de 1921 poderia ser assim ampliada para os casos mencionados: não é ape­
nas a linguagem que aqui se manifesta em sua função estética, mas também
e, principalmente, a utilização da linguagem. Uma leitura “prática” cai no
vazio, o que não significa que ela não seja permitida de modo geral. Essa
liberdade também fica ao alcance do leitor, mas ela então se expõe aos con­
troles segundo o critério da verdade.
Sob condições formalistas, a análise dos textos de Handke não apresenta
dificuldade: o momento construtivo, o desnudamento do procedimento, a
dificultação da forma são levados, no caso presente, até sua última conse­
qüência (entenda-se por momento construtivo a forma de separação de um
texto lingüístico de seu campo de aplicação original; lembre-se a respeito o
conceito da “coloração” de Tinianov, que vale aqui para todo o texto em
conjunto).173 Mas o entendimento quanto à forma de recepção ou de sua ins­
talação é inequívoca, a posição estética retira a fugacidade efêmera do texto
e o seu caráter transitório, e cuida de sua transformação, processo que nos é
bem conhecido do campo das artes plásticas dos últimos anos.174 Mas, justa­
mente também neste último ponto, vai se poder reviver a acepção formalista:
a poesia é arte que não é apenas uma arte da palavra ou da linguagem, mas
uma arte do material lingüístico (o que demonstram tanto os futuristas quanto
a vanguarda atual).*

Tradução
L u iz a R ib e ir o e R e g in a S u n k o

Revisão
F e r n a n d o A u g u s t o R o d r ig u e s

*A introdução do prof. Stempel ainda contém , no original, um a últim a parte sobre o proble­
m a da declam ação, que nos pareceu aqui dispensável. (N. do Org.)

44 2
Notas

1. Cf. H. Friedrich, Die Struktur der modernen Lyrik, nova edição ampliada, Ham­
burgo, 1967, p. 23 ss., há tradução brasileira (.N. do Org.).
2. Cf. S. Vietta, Sprache und Sprachreflexion in der modernen Lyrik, Bad Homburg,
1970, cap. 1, “Novalis”, p. 33 ss.
3. “Les critiques ont été retardataires par rapport aux poètes”, observa L. Spitzer nos
apontamentos à análise de Poe sobre “The raven”, e o trabalho de Eikhenbaum
sobre O capote de Gogol (“Les études de style et les différents pays”, in Langue et
littérature, Anais do VIII Congresso da FILLM, Paris, 1961, p. 35). Cf. também as
observações de R. Barthes relativas a Mallarmé in Langages 12 (1968), p. 5.
4. Cf. “Syntax in dunkler Lyrik”, in Poetik und Hermeneutik 2 (1966), pp. 36, 39.
5. V Jirmunski, “As tarefas da poética”, ensaio incluído neste volume (N. do Org.);
id., “Formprobleme in der russischen Literaturwissenschaft”, in Zeitschrift für
slavische Philologie 1 (1924), pp. 119, 127; B. Eikhenbaum, “Die Theorie der
formalen Methode” (1925), traduzido para o alemão in B. E,,Aufsaetze zur Theorie
und Geschichte der Literatur, Frankfurt, 1965 (ed. Suhrkamp 119), p. 11; V Erlich,
Russian formalism. History — doctrine, 2.a edição adaptada (Slavistic printings
and reprintings IV), Haia, 1965, pp. 42 ss., 63 ss., 184; I. Ambrogio, Formalismo
e avanguardia in Russia, Roma, 1968; K. Pomorska, Russian formalist theory and
its poetic ambiance (Slavistic printings and reprintings 82), Haia, 1968; T. Todorov,
“Formalistes et futuristes”, in Tel quel 35 (1968), p. 42 ss.
6. L. Trotski, Literatura i revolucia, Moscou, 1924, segundo a trad. alemã: Literatur
und Révolution, Berlim, 1968, p. 112.
7. Cf. V Markov, Russian futurism. A history, Berkeley, 1968, p. 129. Cf. também F.
Scholz, “Die Anfaenge des russischen Futurismus in sprachwissenschaftlicher Sicht”,
in Poética 2 (1968) p. 479 s.
8. Sobre o “poet-scholar” como manifestação característica da época na Rússia: K.
Pomorska, op. cit. p. 55; sobre a importância para o formalismo dos trabalhos
literário-científicos de Bieli: J. Striedter, “Transparenz und Verfremdung. Zur
Theorie des poetischen Bildes in der russischen Moderne”, in Poetik und Herme­
neutik 2 (1966), p. 276 ss.

443
LUI Z COSTA LIMA

9. Cf. P. Medvedev, Formalni metod v literaturovedenii (O método formal na ciência


da literatura), Leningrado, 1928, p. 77 s.
10. “O poèzii i zaumnon iazike” (Sobre a poesia e a linguagem transracional, na primei­
ra antologia formalista Sborniki po teorii poétitcbeskogo iazika, Petersburgo, 1916,
p. 1 ss., e depois in Poétika. Sborniki po teorii poétitcbeskogo iazika, Praga, 1919, p.
13 ss. Sobre o zaunf dos futuristas: V Markov, op. cit. p. 129 s.; F. Scholz, art. cit.
p. 479 ss. A variação das definições de Krutchônikh, na coletânea Troe (Os três) e no
manifesto “Slovo kak takovoe” (A palavra como tal), a diversidade dos métodos
escolhidos e o sentido não completamente unificado, com que, por exemplo,
Chklovski, Jakobson e Brik empregam zawrí e zaumni, tornam compreensíveis as
dificuldades de encontrar uma tradução adequada para a palavra (são utilizadas para
o adjetivo, entre outras, “irracional”, “transracional”, “transmental” e “metalógico”).
11. Também é de interesse, ainda hoje, a indicação de Chklovski sobre as peculiarida­
des lingüísticas do código poético de comunidades lingüísticas isoladas, que, des­
de J. Grimm, provocaram a atenção dos cientistas da linguagem (“Die Auferweckung
des Wortes”, in Texte der russischen Formalisten II, Wilhelm Fink Verlag, Muni­
que, p. 15). Sobre a utilização de fonemas especiais ou tipos de acentuação que
são estranhos aos sistemas da linguagem diária, cf. as observações de Sapir e Voegelin
sobre as línguas indígenas por E. Stankiewicz, “Linguistics and the study of poetic
language”, in Style in language, ed. Th. A. Sebeok, Cambridge (Mass.), 1960, p.
75. A esse respeito, o que importa realmente é uma interpretação adequada dessa
manifestação; o fato de “essa linguagem semicompreensiva parecer mais viva ao
leitor por causa de suas particularidades incomuns” é totalmente ilusório devido à
utilização ritualizada. Cf. também as elucidações de Chklovski em “A arte como
procedimento” (há tradução brasileira in Teoria da literatura — formalistas rus­
sos, N. do Org.).
12. Cf. a característica por J. Striedter na introdução ao Texte der russischen Formalisten
I, p. XV s. Sobre as ligações de Chklovski orientadas para o futurismo: R. Lachmann,
“Die ‘Verfremdung’ und das ‘neue Sehen’ bei Viktor Sklovskij”, in Poética 3 (1970),
p. 226, nota 2.
13. A. Krutchônikh, “Novie puti slova” (Novos caminhos da palavra) (Coletânea Troe).
A citação é encontrada em Jakobson, “Die neueste russische Poesie” (in Texte der
russischen Formalisten II, p. 27), como também in Manifesti i programtni russkich
futuristov — Die Manifeste und Programme der russischen Futuristen, edit. por V
Markov, Munique, 1967, p. 72. Igualmente em “Deklaraciia slova kak tagovogo”
(A proclamação da palavra como tal), na mesma coletânea, p. 64.
14. Cf. a citação de Jakobson, “Die neueste russische Poesie”, in Texte der russischen
Formalisten II, p. 63. Sobre a posição de Mallarmé: P. Valéry, Oeuvres complètes
(Pléiade) I, p. 1324.

4 4 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V O L 1

15. Cf. K. Pomorska, op. cit. p. 63. Sobre a tradição de Potebnia: Ambrogio, op. cit.
p. 91 ss.
16. O fato de a práxis lingüística futurista ter ficado atrás de sua teoria (ver F. Scholz,
art. cit. p. 482) é debatido em outro lugar.
17. Cf. “Die Auferweckung des Wortes” (in Texte der russischen Formalisten II, p. 2 ss.) e
“A arte como procedimento”. A influência de Bergson sobre Chklovski foi indicada
por Ambrogio (op. cit. p. 151 s.); cf. também R. Barilli, Poética e retórica, Milão, 1969,
p. 282. Ela é, além disso, confirmada por Jirmunski (“Formprobleme in der russischen
Literaturwissenschaft”, in Zeitschrift für slavische Philologie 1,1924, p. 125). Sobre a
influência de Bergson no simbolismo russo: K. Pomorska, op. cit. p. 56. Uma referên­
cia direta ao filósofo francês também em L. Iakubinski, “Skoplenie odinakovikh
plavnikh v praktitcheskom i poétitcheskom iazikakh” (Sobre a freqüência de consoantes
semelhantes na linguagem prática e na linguagem poética), na segunda antologia
formalista (1917), e depois in Poétika, Praga, 1919, p. 52.
18. Cf. acima (nota 13) a conhecida citação de Krutchônikh em Jakobson.
19. Cf. Striedter, “Transparenz und Verfremdung” (ver nota 8), p. 276 s.
20. Introdução ao vol. I, p. XXIII, como também T. Todorov, “Note sur le langage
poétique”, in Semiótica 1 (1969), p. 326 e R. Lachmann, art. cit. p. 233 s.
21. Cf. também V Vinogradov, “O zadatchakh stilistiki” (Sobre as tarefas da estilística),
in Russkaia retch' I Praga, 1923, p. 288.
22. Cf. Erlich, op. cit. p. 60 ss.; Ambrogio, op. cit. pp. 23 ss., 164 ss.; Pomorska, op.
cit. p. 15 ss.
23. J. Baudouin de Courtenay, “Les lois phonétiques”, in Revue slavistique 3 (1910),
p. 70, trad. russa na coletânea de artigos Izbrannie trudi po obchetchemu iazi-
koznaniiu (Trabalhos escolhidos sobre a ciência geral da linguagem) II, Moscou,
1963, p. 199 s.
24. Cf. o ensaio de Iakubinski “Sobre o discurso dialógico”.
25. Cf. B. Croce, Estética come scienza delVespressione e linguistica generale, Milão,
1902, p. 159 s.; La poesia, Bari, 1966, p. 20 s. Também cabe dentro deste contex­
to a posição negativa de Croce em relação aos gêneros literários.
26. V Vinogradov, “K postroeniiu teorii poetitcheskogo iazika” (Para a elaboração de
uma teoria da linguagem poética), in Poétika 3 (1927), p. 7 s., reprodução in Poétika
I —- V, Munique, 1970 (Slav. Propylaeen 104). Vinogradov critica sobretudo a
compreensão característica da criação verbal como poesia e cita (p. 7, nota 1) uma
colocação correspondente no Grundriss der /Esthetik (trad. alemã da Estética de
1913, p. 41), na qual também se ressalta a não diferenciação entre as formas lite­
rárias e não-literárias.
27. Op. cit. p. 23 ss.
28. Cf. K. Baumgartner, “Der methodische Stand einer linguistischen Poetik”, in
Jahrbuch für Internationale Germanistik 1 (1969), p. 15 ss., sobretudo p. 24 ss.

44 5
LUI Z COSTA LIMA

29. A concepção de Jakobson não pode ser definida, portanto, com relação a este tex­
to sem maiores considerações, como se ele estivesse caracterizando a linguagem
poética através do “conceito de desvio com relação às normas da linguagem pa­
drão” (R. Koepfer, apud U. Oomen, “Zur Erforschung moderner Dichtung. Kritik
und Orientierung”, in Sprache in tecbniscben Zeitalter 34 (1970), p. 124).
30. P. Valéry, Oeuvres complètes (Pléiade) II, p. 1264.
31. Ibid. I, pp. 1293 s., 1372, bem como Cabiers VI, p. 469.
32. Sobre as duas aplicações divergentes da ostranenie, cf. nota 20.
33. Oeuvres complètes I, p. 658.
34. Vol. I, p. 7, bem como pp. 15, 33.
35. Cf. Erlich, op. cit. p. 178; Ambrogio, op cit. p. 146; Striedter, introdução ao vol.
I, p. XXX; Lachmann, art. cit. p. 235 ss.
36. Retch’-postroenie (A arte como procedimento).
37. Depois de Tinianov, Eikhenbaum expressou esse ponto claramente. Segundo ele, “a
palavra quando colocada no verso é de certo modo retirada do discurso habitual,
envolta numa nova aura de importância, e percebida, não contra o fundo do discur­
so em si, mas contra o fundo do discurso versificado”. Veja B. E., “Die Theorie der
formalen Methode”, in B. E., Aufsàetze zur Theorie and Geschichte der Literatur
(edição Suhrkamp 119), Frankfurt, 1965, p. 39 s. (autocitação do estudo Anna
Akbmatova. Opyt analiza (A. A. Tentativa de análise), Petersburgo, 1923, p. 106 s.).
38. Iu. Tinianov, Problema stikbotvornogo iazika (O problema da linguagem poética),
Haia (reedição da edição de 1924), 1963, p. 41.
39. “Die Ode ais oratorisches Genre”, in Texte der russischen Formalisten II, p. 275.
40. Cf. O. Brik, “Rhythmus und Syntax” in Texte der russischen Formalisten II, p. 171.
41. V Vinogradov, “O zadatchakh stilistiki” (Sobre as tarefas da estilística), in Russkaia
retcb' I, Praga, 1923, p. 201; id., O poézii Anni Akhmatovoi (Stilistitcheskie
nabroski) (Sobre a poesia de Anna Akhmatova [Esboços estilísticos]), Leningrado,
1925, p. 5.
42. Cf. por ex., L. Iakubinski, “O dialogitcheskoi retchi”, in Russkaia retch' I, Praga, 1923,
p. 181; entretanto, a tomada de posição é inequívoca (cf., neste artigo, nota 71).
43. Erlich, op. cit. p. 234. Também J. Kristeva, “Pour une sémiologie des paragrammes”,
in Tel quel 29 (1967), p. 56 (reimpresso in J. K., Semeiotikè. Recherches pour une
sémanalyse, Paris, 1969, p. 177 ss.), critica este ponto; entretanto, atinge até mes­
mo com seu conceito da “destruction (spécifique du texte poétique)” a própria
concepção formalista.
44. A concepção geral do formalismo (evoluído) encontra-se expressa muito antes no
julgamento de Tomachevski, segundo o qual, na obra literária, não se trata espe­
cialmente de determinadas expressões que também surgem fora da literatura, mas
da construção artística do material verbal. Cf. Teoria literaturi (Teoria da literatu­
ra), (1926) Moscou-Leningrado, 1928 (reedição 1967), p. 10.

446
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

45. Em tradução na coletânea editada por P. L. Garvin, A Prague scbool reader on


esthetics, literary criticism and style, Washington, 1964, p. 17 ss., reimpr. in S.
Chatman, S. R. Levin Edit., Essays on the language o f literature, Boston, 1967,
p. 214 ss. Em tcheco: Spisovná cestina a jazyková kultura (Tcheco padrão e cul­
tura verbal), Praga, 1932, pp. 123-156.
46. Diz-se, sob o item 3c, 1.° das relações entre uparole poétique” e “langue de communi-
cation”, que (do ponto de vista histórico) elas eram às vezes sentidas “muito nitida­
mente”, às vezes “não eram sentidas de todo”; por outro lado, exige-se, recorrendo
à conhecida formulação de Saussure: “II faut étudier la langue poétique en elle-même”
(Travaux du cercle linguistique de Prague 1, 1929, pp. 18, 21).
47. Pp. 18, 22, 27.
48. P. 18.
49. U. Eco, Opera aperta, Milão, 1967, p. 108, nota 15, fala de uma antecipação por
Chklovski da concepção informativo-teórica.
50. B. Havránek, “The functional differentiation of the standard-language”, na anto­
logia citada de Garvin, p. 3 ss. (em theco: Spisovná cestina a jazyková kultura,
Praga, 1932, pp. 41-79). Garvin traduziu diretamente funkcní jazyk pela expres­
são “functional dialect” (ver op. cit. p. 4).
50a. Cf. “O jazyce básnickém” (Sobre a linguagem poética), in Slovo a slovesnost 6
(1940), p. 113 ss., impresso in J. M., Kapitoly z ceské poetiky, vol. I, Praga, 1948,
p. 78 ss. (resumida sob o título “La langue poétique” in Rapports du Ve Congrès
intern. des linguistes, Bruges, 1939, p. 94 ss.)
51. Além dos autores citados, convém mencionar aqui o ensaio de Iakubinski sobre o
discurso dialógico, em que já se antecipavam em grande parte as considerações a
que Havránek se dedicou.
52. Curiosamente, Jakobson e Tinianov, na sua apreciação da dicotomia de Saussure
parole!langue, igualam a langue à “norma vigente” (“Probleme der Sprach- und
Literaturforschung”, tese 6, in Texte der russischen Formalisten II, p. 389). A exi­
gência que mostram em ver o enunciado individual em sua relação com o comple­
xo de normas vigente não está, porém, em coerência direta com o dogma do desvio.
53. Cf. por ex. S. R. Levin, “Statistische und determinierte Abweichung in poetischer
Sprache”, in Mathematik und Dichtung, editado por R. Gunzenháuser e H. Kreuzer,
Munique, 1965, p. 41 ss.; K. Baumgártner, “Formale Erklaerung poetischer Texte”,
ibid., p. 74 ss.
54. Por essa razão, Levin considera os desvios poéticos como “de certa forma contro­
lados”, em oposição aos desvios não-poéticos, “arbitrários” (art. cit. p. 40; seme­
lhante pensamento encontra-se em M. Bierwisch, cf. nota 56). Levin se esquiva
completamente dessa questão in “On automatic production of poetic sequences”
(Texas studies in literature and language 5, 1963, p. 138 ss., sobretudo na p. 143)
que, entretanto, neste ponto, seria vital.

447
LUI Z COSTA LIMA

55. Cf. por ex. S. R. Levin, “Poetry and grammaticalness”, in Proceedings ofthe nintb
international congress o f linguistics, ed. H. G. Lunt, Haia, 1964, p. 308 ss. Segun­
do K. Baumgártner, através de uma explicação puramente lingüística, um texto só
pode ser considerado “semi-interpretado” (art. cit. p. 68); com essa explicação,
entretanto, não é o texto que seria atingido, mas apenas o desvio.
56. Essa é uma proposta de Bierwisch, “Poetik und Linguistik”, in Mathematik und
Dichtung, p. 61 s. Bierwisch pretende atribuir efeito poético a frases ou desvios
não-gramaticais, nos casos em que eles possuam sua própria regularidade. Segun­
do o autor, trata-se, por um lado, de regras de desvio da gramática da língua e, por
outro lado, de regras de modificação que permitem o destaque de sistemas poéti­
cos anteriores. Este último ponto merece toda a atenção. Encontra apoio na con­
cepção do caráter sistêmico da evolução, que o formalismo tardio desenvolveu;
cf. Iu. Tinianov e R. Jakobson, “Probleme der Sprach- und Literaturforschung”, in
Texte der russischen Formalistem II, tese 4, p. 387 s.
Sobre a pesquisa de J. P. Thorne (“Stylistics and generative grammars”, in Journal
o f linguistics 1, 1965, p. 49 ss.) referente ao interpretar um texto poético como
exemplo de um “dialeto” específico para o qual se deveria construir uma gramáti­
ca, cf. a crítica de W. O. Hendrick, “Three models of the description of poems”, na
mesma revista 5 (1969), p. 1 ss. Críticas a Bierwisch e Thorne também em K.
Baumgártner, Jahrbuch für Intern. Germanistik 1 (1969), pp. 25, 26 s.
57. R. Jakobson, “Die neueste russische Poesie”, in Texte der russischen Formalisten II,
pp. 31, 81.
58. “O zvukakh stikhotvornogo iazika” (Sobre os sons da linguagem dos versos), na
primeira antologia formalista (Sborniki po teorii poétitcbeskogo iazika, Praga, 1916),
reimpresso in Poétika, Praga, 1919, p. 37. Cf. também a caracterização por B.
Tomachevski, “La nouvelle école d’histoire littéraire en Russie”, in Revue des études
slaves 8 (1926), p. 230 s.
59. Sobre a oscilação da terminologia formalista “linguagem poética/prática”, “poe­
sia/prosa” etc., cf. nota 144 neste artigo.
60. Em artigo posterior, “O dialogitcheskoi retchi” (Sobre o discurso dialógico), in
Russkaia retch’ I, Praga, 1923, pp. 101 ss., 112. Aí também sobre a necessidade de
uma abordagem funcional com relação ao conceito de “linguagem literária”(p. 111).
61. P. Valéry, Oeuvres complètes I, pp. 1329 ss. e 1370 ss. Aliás, também Valéry fala de
“emploi pratique du langage”, “langage utile”, e outros (ibid. I. pp. 1325 s., 1331,
1456 s. etc.).
62. É principalmente Jirmunski quem acentua esse ponto em “As Tarefas da Poética”
(incluído neste vol., N. do Org.). Cf. também R. Jakobson, “Randbemerkungen
zur Prosa des Dichters Pasternak”, in Slaviscbe Rundschau 7 (1935), p. 358 s. Uma
prova ‘negativa’ disso é proporcionada pelo favorecimento dos sons que, na sua
forma extrema, deixa perceber a capacidade lingüística da poesia (cf. O. Brik,

448
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

“Rhythmus und Syntax”, in Texte der russischen Formalisten II, p. 211 s.).
O ponto de partida fenomenológico foi transmitido ao formalismo pela obra de
G. Spets, que deu a conhecer na Rússia a teoria de Husserl. Cf. Erlich, op. cit. p.
61 s.; Ambrogio, op. cit. p. 166.
63. Cf. por ex. a diferenciação de G. Grõber entre linguagem “lógica” e “afetiva”
(Grundriss der romanischen Philologie, Estrasburgo, 2.a ed., 1904, vol. I, p. 217),
para a qual se orientava a primeira estilística (“psicológica”) de K. Vossler. Na teo­
ria de Croce, não havia lugar para uma concepção psicológica desse tipo; cf. sua
crítica sobre Grõber em “Di alcuni principi di sintassi e stilistica psicologiche dei
Groeber”, in Problemi di estetica, Bari, 1949, p. 142 ss.
64. Cf. as observações de Ambrogio, op. cit. p. 181, nota 2.
65. Cf. acima nota 58. Na caracterização da “relação emocional com os sons”, Iakubinski
não cita, entretanto, de forma alguma, apenas exemplos tirados da poesia, mas
também biográficos, em parte testemunhos completamente distanciados. Além
disso, afastou-se mais tarde dessas “observações pouco convincentes” (“O dialo-
gitcheskoi retchi”, p. 98). Da mesma forma, o tema de Chklovski sobre a lingua­
gem transracional, “O poèzii i zaumnon iazike” (cf. nota 10 acima), fundamenta a
concepção das mudanças imediatas das emoções sobre os sons.
66. R. Jakobson, “Die neueste russischen Poesie”, in Texte der russischen Formalisten
II, p. 31, como também, com maiores detalhes, in O tchechskom stikhe preimu-
chtchestvenno v sopostavlenii s russkim (Sobre o verso tcheco, principalmente em
comparação com o russo) (Sborniki po teorii poètitcheskogo iazika V), Berlim,
1923, p. 66 ss. Com efeito, falta determinar até que ponto se deve distinguir a
linguagem emocional do meio que lhe corresponde; de qualquer modo, eles não
podem ser identificados com a respectiva aplicação. Aproxima-se desse pensamento
a formulação de Jakobson de que “a poesia pode utilizar os métodos da linguagem
emocional, mas apenas para as suas finalidades” (in Texte der russischen Formalisten
II, p. 31); um exemplo disso encontra-se no trabalho de Tinianov sobre a ode rus­
sa (in Texte der russischen Formalisten II, p. 273 ss.). Quanto ao tema da lingua­
gem emocional, Jakobson o torna claro com o conceito de “emotive function” na
sua obra “Linguistics and poetics”. Cf. Ambrogio, op. cit. p. 182 s., onde também
se fala do desprezo de Tinianov pela igualdade entre ‘emocional’ e ‘poético’ (Pro­
blema stikhotvornogo iazika, pp. 46, 81).
67. Cf. nota 60 deste artigo cit. ensaio sobre o discurso dialógico.
68. Iakubinski denomina a consideração da linguagem em dependência das condições
de compreensão como “a base da moderna ciência da linguagem” (p. 99), noção
que revela uma visão extraordinariamente ampla, levando-se em conta os fatos da
época, mesmo que do ponto de vista atual ela só proceda em relação a uma das
orientações lingüísticas.

449
LU S2 G O S T A U M A

6.9-. Este pensamento de que “para tudo que dizemos ê basicamente indispensável um
ouvinte que saiba do que se trata” já foi declarado por E. D. Polivanov num traba­
lho para a primeira antologia dos formalistas (1916) (“Po povodu ‘zvukovikh jestov’
íaponskogo iazika” [Sobre os gestos orais da língua japonesa], in Poétika, Praga,
1919, p. 27 s.).
70. Cf. L. Iakubinski, “O dialogitcheskoi retchi”, p. 162 s., de onde foram retirados os
exemplos. Á mesma opinião encontra-se mais tarde em B. H avránek, “The
functional differentiation of the .standard language” (veja nota 50), p. 14 (“impos -
sibility o f evaluating individual words detached from their functional utilization”
— grifado no original). Quando, partindo daí, K. Baumgártner, não há muito tempo,
observou em relação a uma frase isolada e desviada que ela não poderia ser “dife­
renciada quanto ao seu status poético” (Jahrbuch für íntern. Germ. 1, p. 25), pode-
se depreender que essa incapacidade de diferenciação é válida para todo enunciado
isolado, ‘correto* ou ‘sob desvio5, tanto para DerHund bellt, quanto para Colorless
green ideas sleep furiously*
71. Quando Iakubinski, sob a rubrica “percepção do discurso incomum” (§ 52), cita, como
caso n.° 5 entre outros, “a percepção da linguagem poética relativa à linguagem quo­
tidiana”, não se consegue ver nisso perfeitamente se o que se quer é significar apenas
ustanovka como característica poética ou então o desvio como objeto de percepção.
72. W. Nowottny, The Language poets use, Londres, 1962, p. 41. Mais diferen-
ciadamente Iu. Lotman, Lektsii po strukturaVnoi poètike (1964), reedição Brown
University, 1968, pp. 110, 131.
73. Cf. Iu. Lotman, op. cit. p. 49, como também as observações gerais de Jakobson (in
E. C. Cherry, For Roman Jakobson, 1956, p. 61 s.) sobre o status do “observateur-
participant” dos lingüistas que trabalham descritivamente, in “Linguistique et
théorie de la communication”, ver R. J., Essais de linguistique générale, trad. e
prefácio de N. Ruwet, Paris, 1963, p. 92 s.
74. Cf. Ambrogio, op. cit. p. 213 ss.; Striedter, introdução ao volume I (passim).
75. Broder Christiansen também compreendeu diacronicamente a qualidade da dife­
rença, mas, como se sabe, não de maneira exclusiva. Cf. Philosophie der Kunst
(1909), Berlim, 1912, p. 123.
76. Essa diferença, talvez Tinianov já a tivesse em vista quando se voltou contra a con­
cepção de tomar a linguagem poética por um “dialeto” (Problema stikhotvornogo
iaika, p. 41). Jakobson já tinha de fato defendido essa opinião no seu escrito ante­
rior “Die neueste russische Poesie” (in Texte der russischen Formalisten II, p. 23).
77. A oposição entre poesia e prosa nem sempre está terminologicamente clara em
Tinianov, já que ele queria significar ora a linguagem poética e a linguagem práti­
ca, ora uma diferenciação formal segundo o critério do ritmo.
78. Cf. a descrição sobre a coloração léxica in Texte der russischen Formalisten II, p.
305 s., como também Problema stikhotvornogo iazika, p. 57.

450
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — ¥OL, 1

79. Cf. vol. I, p. 7 Chklovski atribui interesse fundamental a essa colocação do proble­
ma; depois de ter constatado que “o artístico (aquilo que se pode referir à poesia
de determinada coisa) é o resultado da natureza da nossa percepção”, acrescen­
tou: “Por artístico queremos designar, portanto, as coisas que foram produzidas
por métodos especiais, cuja finalidade consistia em que, com a maior segurança
possível, essas obras fossem compreendidas como artísticas.”
80. Cf. vol I, p. 392 ss., como também Striedter, introdução ao vol. I, pp. XLI, LXI, ss.
81. Já era semelhante em Novalis a caracterização da linguagem poética como “ex­
pressão entre outras por causa da expressão” (cf. S. Vietta, Spracbe und Sprachre*
flexion in der modernen Lyrik, Bad Homburg, 1970, p. 32 ss.).
82. Cf. a apresentação por Ambrogio, op. cit. p. 231 ss.
83. “The set to w ard the message as such, focus on the message for its own sake3 is the
poetic function of language” (“Linguistics and poetics”, in Style in language, ed.
Th. A. Sebeok, Cambridge (Mass.), 1920, p. 356).
84. De forma semelhante, in Oeuvres complètes I, p. 1317 (sobre a palavra na poesia).
85. “O zvukakh stikhotornogo iazika” (Sobre os sons da linguagem poética) (1916),
in Poétika, Praga, p. 38 ss.; sobre a relação com o conteúdo, pp. 45, 49.
86. Cf. os destaques teóricos sobre essa manifestação em Tinianov, Poblema stikbotvor*
nogo iazika, p. 107 s.
87. “A linguagem poética, sendo um caso limítrofe, tende à palavra oral, ou melhor
(na medida em que haja a orientação correspondente) à palavra eufônica, à lin­
guagem transracional” (“Die neueste russische Poesie”, in Texte der russischen
Formalisten II, p. 133 s.).
88. “O zvukakh stikhotvornogo iazika”, p. 43.
89. A. Pagliaro, Ulisse. Ricerche semantiche sulla Divina Commedia, II, Messina
(ristampa), 1967, p. 584 s. (com referência à Escola de Praga); id., Le funzioni dei
linguaggio (corso accademico 1967/68), Roma, 1968, pp. 22, 61.
90. D. Alonso, Poesia espanola, Madri, 1962 (1951), p. 31 s.; G. Genette, “Langage
poétique, poétique du langage”, in Information sur les sciences sociales. VII, 2
(1968), p. 156 ss., republicado in G. G., Figures II, Paris, 1969, p. 145 ss.
91. “On dirait que le language poétique, tout en restant langage, cherche à rejoindre
le ‘cri originei’”, A. J. Greimas, “The relationship between structural linguistics
and poetics”, in Journal o f International Social Science 1 (1967), em francês in A.
J. G., Du sens, Paris, 1970, p. 278 s.
92. Cf. seu artigo “Lingua e poesia secondo G. B. Vico”, in Altri saggi di critica semantica,
Messina, 1961, p. 299 ss., onde se reconhecem uma “veracità essenziale” e
“sorpreendente modernità” à teoria de Vico sobre a revivescência dos signos
lingüísticos e com isso à experiência da realidade na linguagem poética (p. 350).
Cf. também aqui nota 96.

4 5 1
LUIZ COSTA LIMA

93. E. Coseriu, “Teses sobre o tema ‘Linguagem e Poesia’” (1968), in Beitraege zur
Textlinguistik, editado por W.-D Stempel, Munique, 1971, p. 185 ss.; J. Kristeva,
“Pour une sémiologie des paragrammes”, in Tel quel 29 (1967), p. 56, reproduzi­
do em J. K., Semeiotikè. Recbercbes pour une sémanalyse, Paris, 1969, p. 178; J.
L. Houdebine, “Texte, structure, histoire”, in La nouvelle critique 11 (1968), p.
42 ss., reproduzido in Théorie d 5ensemble (Coll. Tel quel), Paris, 1968, p. 270 ss.
(ressaltado, entretanto, como segunda componente da ligação da linguagem dos
textos à práxis histórico-social). Sobre “langage complet” também fala Valéry
(Oeuvres complètes I, p. 1336). Coseriu ressaltou, especialmente, o fato de que
daí se segue obrigatoriamente não apenas a rejeição, mas também a inversão do
dogma do desvio. Cf. também as considerações por G. Genette, art. cit. p. 155 s.
(Figures II, p. 143 s.), como também H. Meschonnic, Pour la poétique, Paris, 1970,
p. 19 s.
As ênfases decisivas deveriam ser estudadas mais de perto. Como, por ex., a fun­
ção comunicativa para Potebnia está perfeitamente ligada com sua noção da lin­
guagem poética (cf. Iu. Tinianov, Problema stikhotvornogo iazika, p. 118), enquanto
Coseriu a considera “alguma coisa adicionada, prática”, “algo secundário” (op. cit.
p. 288).
94. Cf. K. Baumgártner, “Der methodische Stand einer linguistischen Poetik”, in
Jahrbuch für Intern. Germanistik 1 (1969), p. 16 ss. Ambrogio também fala criti­
camente sobre a delimitação entre as funções comunicativa e poética, op. cit. p.
244 s., considerando-a um “astratto dualismo”, típico da lingüística pré-científi-
ca, idealístico-romântica. Sobre a questão do significado da linguagem versus co­
municação, veja U. L. Figge, “Syntagmatik, Distríbution und Text”, in Beitràge zur
Textlinguistik, pp. 171 ss., 180 ss. e 269 ss.
95. Cf. Texte der russischen Formalisten II, p. 415 s. Em 1960, Jakobson moderou essa
concepção com a observação de que a ‘função poética’ “depeens the fundamental
dichotomy ofsigns and objects” (in Style in language, p. 356). T. Todorov chama a
atenção para a mencionada concordância dos primeiros escritos de Chklovski com
o artigo de Jakobson de 1933 (“Note sur le langage poétique”, in Semiótica 1,
1969, p. 326).
96. “Il linguaggio in funzione poética ristabilisce il tramite diretto con il reale, creando
una sintonia fra il ritmo vitale delle immagini e dei sentimenti e il ritmo verbale, e
riscoprendo, inoltre3 mediante il segno linguistico, il rapporto sensitivo e affettivo
con le cose come è proprio delia vita vissuta” (Le funzioni dei linguaggio, p. 22).
97. K. Baumgártner fala, tendo por base versos competentes de Brecht, sobre a
“dominância mutável” da expressão, apelo e apresentação, e crê que, em princí­
pio, não se mantém a separação entre função poética e função comunicativa
(Jahrbuch f Intern. Germ. 1, p. 18). Mas uma poesia não se pode colocar a si mes­
ma em dúvida, enquanto poesia.

4 5 2
TEORIA DA LI TE R ATU R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

98. Fica com isso resolvida a objeção de Ambrogio contra a dialética da expressão/
comunicação, que tornava impossível identificar ideologias, problemas éticos etc.
na poesia (op. cit. p. 249 s.). Toda arte pode também ser recebida “praticamente”,
mas, neste caso, não como manifestação estética.
99. Uma tradução alemã se encontra em preparo.
100. Cf. R. Jakobson, “Die neueste russische Poesie”, in Texte der russischen Formalisten
II, p. 33.
101. Do mesmo modo, Tomachevski, que, no entanto, conta com duas espécies de
prosa literária: uma, com orientação para a expressão, e outra, a que pertencia,
por ex., o romance de aventuras, onde ao leitor só importa o conteúdo (Teoria
literaturi, p. 71).
102. Cf. Iu. Tinianov, Problema stikhotvornogo iazika, p. 86, bem como as observações
de O. Brik, in Texte der russischen Formalisten II, pp. 185 s., 213.
103. Quanto a Sievers, cf. a característica de G. Ungeheuer, “Die Schallanalyse von
Sievers”, in Zeitschrift für Mundartforschung 31 (1964), p. 97 ss.
104. Isso também é documentado exteriormente pelo fato de todo o primeiro volu­
me da antologia Sborniki po teorii poétitcbeskogo iazika I (1916) ter sido dedi­
cado ao som.
105. Vladimir B. Chklovski, “O ritmiko-meloditcheskikh opitakh prof. Siversa” (Sobre
as pesquisas rítmico-melódicas de Sievers), in Sborniki po teorii poét. iazika II
(1917), pp. 87-94.
106. Cf. Erlich, op. cit. p. 217.
107. Cf. a avaliação crítica por Tinianov, Problema stikhotvornogo iazika, p. 28 ss.
108. L. Klages, Vom Wesen des Rhythmus, Zurique, 1944 (relativo ao aparecimento da
escrita, que sem dúvida está estreitamente relacionado com a Dialética-Espírito-
Alma de Klages e que já em 1913 se afirma nas suas etapas essenciais de pensa­
mento, p. 8).
109. Cf. B. Tomachevski, “Vers und Rhythmus”, in Texte der russischen Formalisten II,
p. 223 s.
110. Cf. Iu. Tinianov, Problema stikhotvornogo iazika, p. 37.
111. B. Tomachevski, “Vers und Rhythmus”, in Texte der russischen Formalisten II,
p. 227.
112. ibid., p. 267.
113. “Perspektiva stikha prelomiaet siujetnuiu perspektiva” (Problema stikhotv. iaz.,
p. 120).
114. ibid., pp. 41, 44, como também “Das literarische Faktum”, vol. I, p. 409 e “Sulla
composizione delf Evgenij Onegin” (tradução italiana de um texto não publicado
de Tinianov), in Strumenti critici 1 (1967), p. 166 s.; B. Tomachevski, Teoria
literaturi, p. 71.

4 5 3
LUI Z COSTA LIMA

115. Tinianov, Problema stikhotvornogo iazika, pp. 41, 44; Tomachevski, “Vers und
Rhythmus”, in Texte der russischen Formalisten II, p. 249.
116. No início do segundo capítulo de seu livro (p. 48 ss.), Tinianov desenvolveu a análise
do significado da palavra. Cf. ainda pp. 85 s., 91 ss., como também “Die Ode ais
oratorisches Genre”, in Texte der russischen Formalisten II, p. 305 s. O conceito
de coloração léxica específica é pela primeira vez apresentado de forma conse­
qüente por Ch. Bally no seu já citado Traité de stylistique (1909). Tinianov avalia
sua importância geral para a aplicação da linguagem no seu trabalho para o núme­
ro dedicado a Lenin do L e f (1924) “Slovar* Lenina-polemista” (O dicionário de
Lenin polêmico), reproduzido, in Iu. T., Archaisti i novatori, Leningrado, 1929
(Ed. Munique, 1967), p. 463 ss. O conceito, naturalmente, tem pontos em co­
mum com a teoria da aplicação de Iakubinski.
117. Tinianov analisa essa manifestação em “Die Ode ais oratorisches Genre”, com base
na ode de Lomonossov (in Texte der russischen Formalisten II, p. 301 s.).
118. Problema stikhotv, iaz., pp. 103 ss., 40.
1 1 9 . ibid., p p . 4 0 , 9 8 , 1 1 9 .
120. ibid., pp. 76, 119. Todavia, Tinianov argumenta no primeiro caso quantitati­
vamente: um único verso já seria suficiente como texto poético (referência:
Karamzin e Briusov, cujos versos únicos Tomachevski cita in “Vers und Rhythmus”).
O exemplo de contraste para a prosa, o aforismo, foi, contudo, mal escolhido.
121. Citado por Tinianov, p. 79; veja edição em memória de Ártemis, vol. 24, Gespráche
mit Eckermann, p. 624.
122. Problema stikhotv, iaz., p. 83.
123. In Style in language, pp. 370, 358.
124. Tomachevski também lida com o conceito da substituição, porém, dentro do qua­
dro das unidades métricas do verso (“Vers und Rhythmus”, in Texte der russischen
Formalisten II, p. 243, nota 3).
125. Cf. a apreciação por Erlich, op. cit. p. 212 ss.; Lotman, op. cit. p. 59; Ambrogio,
op. cit. p. 238 ss.; Meschonnic, op. cit. p. 73, nota 2.
126. Em seu escrito O tchechskom stikhe (Sobre o verso tcheco) (Berlim, 1923). Cf.
Erlich, op. cit. p. 219.
127. Problema stikhotvornogo iazika, pp. 35, 29 s.
128. In Texte der russischen Formalisten II, p. 227.
129. Do mesmo modo Brik, “Rhythmus und Syntax”, in Texte der russischen Formalisten
II, p. 193.
130. “Vers und Rhythmus”, in Texte der russischen Formalisten II, p. 239.
131. B. Tomachevski, cit. por B. Eikhenbaum, “Die Theorie der formalen Methode”,
trad. alemã in B. E., Aufsaetze zur Theorie und Geschichte der Literatur (ed.
Suhrkamp 119), p. 36 ( texto russo “Piatistopnii iamb Puchkina”, in B. T., O stikhe,
Leningrado, 1929, p. 182).

4 5 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — ¥01. 1

132. O. Brik, “Rhythmus und Syntax”, in Texte der russischen Formalisten II, p. 193.
133. Problema stikhotvornogo iazika, p. 39 ss.
134. Tinianov, Problema stikhotv. iaz., p. 37.
135. Contudo, como de modo geral no que se refere à entoação da linha do verso,
Tinianov encontra-se aqui em desacordo com sua observação no artigo sobre a
ode, segundo a qual, como conseqüência do conceito de orientação, a nuance fi­
nal do significado deveria ser eliminada (in Texte der russischen Formalisten II, p.
275). Cf. abaixo.
136. J. Cohen, La structure du langage poétique, Paris, 1966, p. 76 s.
137. Problema stikhotvornogo iazika, p. 126 (nota 21). Trata-se aí do segundo trecho
de “Ideen. Das Buch Le Grand”. Não está clara, contudo, a relação que isso tem
com a articulação das linhas (Tinianov cita uma “tarefa de 1843”); nas outras edi­
ções, esse texto é sempre apresentado de forma corrida,
138. Iu. Lotman, op. cit. p. 113 s,
139. Tinianov, Problema stikhotv. iaz., p. 76.
140. “Rhythmus und Syntax”, in Texte der russischen Formalisten II, p. 171,
141. Problema stikhotv. iaz., pp. 37, 38.
142. ibid., pp. 119, 43, como também “Sulla composizione delPEvgenij Onegin”, in
Strumenti critici 1 (1967), p. 167.
143. B. Tomachevski, “Konstrukciia tezisov” (A construção das teses), tradução alemã
in Sprache und Stã Lenins, editado por E Mierau (Reihe Hanser 47), Munique,
1970, p. 163 s.
144. A terminologia certamente não foi homogênea, pelo menos em Chklovski, cf.
Striedter, introdução ao vol. I, p. XXI, bem como “A arte como procedimento”.
145. Tinianov, Problema stikhotvornogo iazika, p. 39.
146. Tinianov, “Sulla composizione delPEvgenij Onegin”, in Strumenti critici 1 (1967),
p. 163, nota 1 (cf. aí também p. 168, nota 2).
147. In Texte der russischen Formalisten II, p. 317, como também in Strumenti critici 1
(1967), p. 167.
148. Cf. por ex. C. F. P. Stutterheím, “Poetry and prose, their interrelations and
transitorial forms”, in Poetics, Poetyka, Poétika, Varsóvia, 1961, p. 225 ss.; J,
Hrabák, “Remarques sur les correlations entre le vers et la prose, surtout sur les
soi-disant formes de transítion”, ibid,, p. 239 ss. Sobre Lotman, cf. nota 150 deste
artigo.
149. No caso de não se excluir da consideração o vers libre e dar-se por satisfeito com as
condições simplificadas (cf. nas “ /Eusserungen” citadas por Lotman, op. cit. p. 56).
150. Essa visão serve de base principalmente às considerações de Lotman, que trabalha
com a sinalização das estruturas de espera, enquanto, por ex., o trabalho de
Stutterheím, por falta dessas considerações, se torna prejudicado,

455
LUIZ COSTA LIMA

151. Problema stikhotvornogo iazika, p. 37 s. (com referência a um testemunho corres­


pondente de Trediakovski); Tomachevski, “Vers und Rhythmus”, in Texte der
russischen Formalisten II, p. 229, nota 1.
152. Cf. por ex. R. Fowler, “Linguistic theory and the study of literature”, in Essays
on style and language, ed. R. Fowler, Londres, 1966, p. 9 ss. (com bibliog); H.-
P. Bayerdãrfer, Poetik ais sprachtheoretisches Problem, Tübingen, 1967, p. 117
(com uma tomada de posição pouco clara); K. Baumgártner, “Der methodische
Stand einer linguistischen Poetik”, in Jahrbuch für Internationale Germanistik 1
(1969), p. 31 s. A questão ainda está por esclarecer em W. A. Koch, “Linguistische
Analyse und Strukturen der Poetizitát” (Orbis 17, 1968), que, por ex., por um
lado, considera certo tipo de frase como poeticamente definido, ou textos re­
correntes como estruturalmente elaborados, para serem poetizados sob “foco”
correspondente (pp. 9, 22), e, por outro lado, encontra, do ponto de vista da
formação do foco, um ponto de partida correto (cf. abaixo nota 155).
153. In Texte der russischen Formalisten II, p. 395.
154. In Style in language, p. 357.
155. S. Bernstein, “^Esthetische Voraussetzungen einer Theorie der Deklamation”, in
Texte der russischen Formalisten II, p. 345 s. Considerações semelhantes em Lotman,
op. cit. pp. 113 s., 131, bem como em W. A. Koch, art. cit. p. 7 s. Cf. também U.
Eco, Apocalittici e integrati. Communicazioni di massa e teorie delia cultura di
massa, Milão, 1964, p. 109 s.
156. Cf. acima nota 70.
157. Essa acepção aproxima-se do pensamento correspondente que T. Todorov apresen­
tou recentemente (“Note sur le langage poétique”, in Semiótica 1, 1969, p. 327 s.).
158. Jakobson fala de “the poetic device of paronomasia” in Style in language, p. 357.
159. “Poesia é a linguagem na sua função estética” (“Die neueste russische Poesie”, in Texte
der russischen Formalisten II, p. 31). Com relação a Mukarovsky, cf. seu trabalho
“La dénomination poétique et la foncion esthétique de la langue”, in Actes du IVe
Congrès intern. de linguistes, Copenhague, 1938, p. 98 ss.; em tcheco in J. M.,
Kapitoly z ceské poetiky, vol I, Praga, 1948, p. 159 ss.; em alemão (“Die poetische
Benennung und die aethetische Funktion”) in J. M., Kapitel aus der Poetik, Frank­
furt, 1967 (ed. Suhrkamp 230), p. 48 ss. O artigo já contém um maior desenvolvi­
mento do esquema da tríade de Bühler no sentido do modelo funcional de Jakobson
de 1960. Cf. também, na nota 50a deste artigo, o trabalho de Mukarovsky repro­
duzido nos Rapports do V Congresso Internacional dos Lingüistas, p. 94.
160. G. Morpurgo — Tagliabue, Linguistica e stilistica di Aristotele, Roma, 1967, p. 354 ss.
161. Trad. alemã segundo a versão de O. Gigon.
162. Cf. a edição comentada da Poética de A. Gudeman, Berlim, 1934, p. 92, e B.
Fabian, “Das Lehrgedicht ais Problem der Poetik”, in Poetik und Hermeneutik 3
(1968), p. 69 s.

4 5 6
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

163. V Chklovski, “Die Auferweckung des Wortes” (in Texte der russischen Formalisten
II, p. 15), “A arte como procedimento”; R. Jakobson, “Die neueste russische Poesie”
(in Texte der russischen Formalisten II, p. 67).
164. G. Morpurgo — Tagliabue, op. cit. p. 354 ss.
165. Tomachtvski situa, por ex., artigos políticos que têm por finalidade incitar à
ação, na prosa (isto é, literatura utilitária); entretanto, a “literatura de agita­
ção”, que influi no “comportamento” do leitor, coloca-a na “poesia” (Teoria
literaturi, Moscou-Leningrado, 1928, p. 5). Cf. também o trabalho de Toma­
chevski no número dedicado a Lenin da L e f (1924) “Die Konstruktion der
Thesen”, em alemão in Sprache und Stil Lenins, Munique, 1970, p. 164. N o
mesmo volume, reconhece B. Kazanski: “As fronteiras entre a poética e a retó­
rica não são claras” (“Lenins Sprache. Versuch einer Analyse der Rhetorik”,
ibid., p. 158). Apesar da mencionada separação em “Was ist Poesie?”, a situa­
ção não ficou de fato completamente esclarecida também no trabalho de
Jakobson de 1960, cf. observação acima sobre a “função poética”. Pouca con­
tribuição deu a este problema R. Barilli, Poética e retórica, Milão, 1969, p. 285
(sobre o formalismo russo).
166. G. W R Hegel, yEsthetik, editado por R Bassenge, vol. II, Berlim, 1965, p. 355 s.
Cf. também p. 357 ss.
167. Cf., finalmente, E. Coseriu in Beitràge zur Textlinguistik, Munique, 1971, p. 284.
168. Segundo Jakobson, a “função referencial” se manifestaria com mais intensidade
na poesia épica (in Style in language, p. 357). Quando, incidentalmente, se contes­
ta que o texto literário tenha de fato um referent (recentemente M. Arrivé, “Postulats
pour la description linguistique des textes littéraires”, in La langue française 3,
1969, p. 6 s.), ainda assim permanece a necessidade de designar a informação, que
é transmitida pela frase ou pelas linhas de frase. Cf. a nota 94, citação do artigo de
U. L. Figge.
169. Cf. J. Mukarovsky, Estetická funkce, norma a hodnota jaho sociální fakty (Praga,
1936), in J. M., Studie z estetiky, Praga, 1966, p. 18 s.; H. Meschonnic, Pour la
poétique, Paris, 1970 (com aguda crítica ao dogma do desvio), pp. 45, 59, nota 1;
W. O. Hendricks, “Three models of the description of poetry”, in Journal o f
Linguistics 5 (1969), p. 17; K. Baumgártner, “Der methodische Stand einer
linguistischen Poetik”, in Jahrbuch für Intern. Germanistik 1, pp. 29, 30.
170. Deve-se ressaltar o caráter funcional dessa acepção, pois quando, por ex., G. O.
Vinokur compreende sob o termo linguagem poética “a linguagem utilizada em
obras poéticas”, quer significar com isso um código especialmente seletivo ou “es­
tilo de discurso”, portanto exatamente o contrário do que acima ficou dito. Cf.
“Poniatie poètitcheskogo iazika” (O conceito da linguagem poética) (1947), in G.
O. V, Izbrannie raboti po russkomu iaziku (Trabalhos escolhidos sobre a lingua­
gem russa), Moscou, 1959, p. 388.

4 5 7
LUIZ COSTA LIMA

171. G. Frank, “Zur Rezeption Bertolt Brechts”, in Kürbiskern 4 (1968), p. 597.


172. Primeiro in Manuskripte (Graz) 23/24 (1968), pp. 35,37, e depois in Die Innenwelt
der Aussenwelt der Innenwelt, Frankfurt, 1969 (edição Suhrkamp 307), pp. 59,
78 s., 39.
173. Cf. aqui nota 116 (em especial, o artigo da L e f no qual se fala da transplantação a
partir do meio original, que só deixa reconhecer a coloração).
174. Cf. J. Wissmann, “Pop Art oder die Realitát ais Kunstwerk”, in Poetik un Herme­
neutik 3 (1968), p. 507 ss. (especialmente p. 517 ss.); G. Dorfles, Artificio e natura,
Turim, 1968, p. 61 (sobre Pop Art). A concepção de Lotman de que se há de dis­
tinguir entre “apresentado” e “apresentador” (só a diferença ou o resto perfazem
o especialmente artístico) não basta — posta de lado a problemática teórica *—
para as criações artísticas mais recentes (op. cit., 23 s.).

4 5 8
cap ítu lo 13 As tarefas da poética
VIKTO R JIR M U N S K I

O texto original deste ensaio foi publicado na revista Natchala (1921), depois, revisto, no livro
Zadatcbi i m eto di izutchenia iskussto (Tarefas e métodos da análise da arte), 1923. A presente
tradução é feita a partir da versão alemã, in Texte der russiscben Formalisten II, op. cit.
R eproduzido com a perm issão da Agência de D ireitos A utorais da URSS (VAAP).

4 5 9
A poética é a ciência que pesquisa a poesia como arte. Atendo-nos ao uso
há tanto tempo consagrado dessa palavra, podemos sem tem or afirmar
que a ciência da literatura, durante estes últimos anos, desenvolveu-se sob
o signo da poética. Hoje, o objeto de interesse científico mais vivo já não
é nem a evolução de uma Weltanschauung (visão de mundo) filosófica ou
de um “sentimento da vida” como ela se oferece com base nos m onum en­
tos literários, nem o desenvolvimento histórico e a mudança da psicolo­
gia social em sua interação com a psicologia individual do poeta criador,
mas sim a pesquisa da arte poética, a poética histórica e teórica. A histó­
ria da poesia encontra-se, portanto, na mesma linha que as ciências de
outras artes. Participa dos mesmos métodos mas distingue-se das ciências
de outras artes pela peculiaridade do material pesquisado. Como ciência
da arte poética, tom a o seu lugar ao lado da história das belas-artes, da
música e do teatro.
Na Rússia, o erudito V N. Veselovski tratou das questões da “poética
histórica” nos seus trabalhos [cf. Sobranie sotchinenii (Obras completas),
Vol. I, São Petersburgo, 1913];1 seu grandioso projeto de realizar uma his­
tória exaustiva da literatura do gênero poético permaneceu inacabado.
Embora, de acordo com o conteúdo geral do primeiro capítulo de sua poé­
tica histórica, tivesse que se aprofundar especialmente na história da poesia
primitiva, seus artigos especiais (“Da história do epíteto”, “O pa- ralelismo
psicológico”, bem como o esboço inacabado “A poética do sujeito”) mos­
traram que, também no seu sistema, as questões teóricas deveriam ocu­
par um lugar decisivo. Os trabalhos de A. A. Potebnia tratavam do
problem a da Poética Teórica [em especial em seu livro Iz zapisok po teorii
slovesnosti (Notas para uma teoria da literatura), Cracóvia, 1905].2 E mes­
mo que o seu sistema, em conjunto, provoque objeções fundamentais, o
m étodo que desenvolveu em seus trabalhos — aproximação da poética à

4 6 1
LUIZ COSTA LIMA

ciência geral da linguagem, a lingüística •— demonstrou-se extraordinaria­


mente proveitoso e conquistou amplo reconhecimento. Por fim, também
os poetas contemporâneos contribuíram decisivamente para a pesquisa
desses problemas, já que em matéria de poesia eram mais entendidos do
que os filólogos eruditos. Valeri Briusov, que durante anos defendera con­
tra amigos e inimigos o valor intrínseco da arte, dedicou alguns dos seus
trabalhos à técnica do verso de Puschkin, Tiutchev e outros. Viatchslav
Ivan ov reuniu em sua “Sociedade de impulsionadores da palavra artística”
(a chamada Academia poética) poetas e filólogos interessados na pesquisa
da forma poética e nos problemas gerais da poesia como arte (1920-1921).
Andrei Bieli reacendeu a pesquisa métrica russa com o seu livro Simvolizm
(O Simbolismo, Moscou, 1920), indicando insistentemente que era neces­
sário pesquisar a arte poética. Em conseqüência dessas influências variadas
durante os anos da guerra (1915-1917), as questões sobre metodologia da
história da literatura provocaram interesse geral nos círculos universitários
de Moscou e de Leningrado (como, por ex., nas assembléias do Círculo
Pucbkin da Universidade de Leningrado); o esforço para uma revisão dos
métodos literário-científicos conduziu na maioria dos casos à conclusão de
que a poesia tem de ser pesquisada, e que a colocação habitual dos proble­
mas da história da cultura quanto ao “material expressivo” da arte da pala­
vra tem de dar lugar a uma poética histórica e teórica. As “Conferências
sobre a metodologia da história da literatura russa”3 de V N. Peretc do ano
de 1914, já se orientavam nesse sentido. Em dezembro de 1916, esses no­
vos temas foram pela primeira vez objeto de discussão pública num con­
gresso de professores da língua e da literatura russas, em Moscou. Em fins
de 1916 e princípios de 1917, apareceram também os primeiros trabalhos
de um grupo de jovens lingüistas e teóricos da literatura [Sborniki po teorii
poétitcbeskogo iazika (Antologia da teoria da linguagem poética), I-II] que
então se reuniram numa “Sociedade para a pesquisa da linguagem poética”
(Opoiaz);4 o trabalho desse círculo, que colocou em destaque especialmen­
te o problema metodológico e o tornou objeto de ampla discussão pública,
representou no curso dos últimos anos um papel especialmente im portan­
te ao abrir novos caminhos às manifestações da literatura.5 Um serviço
decisivo desse grupo foi, acima de tudo, a crítica ao dualismo entre “for­
ma” e “conteúdo” na arte, que presentemente criou o maior obstáculo ao
estabelecimento de uma ciência da poesia (cf. em especial a antologia
Poétika, 1919).
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

Se fizermos abstração da forma superficial de observar que vê no assunto


o “conteúdo” da obra de arte literária (o conteúdo de Otelo: “um homem
mata a mulher por ciúme”...) essa oposição, então, será compreendida na
maioria dos casos do seguinte modo: a diferença entre forma e conteúdo,
conforme as diversas maneiras de considerar, fica em última análise reduzida
a um objeto estético. Por um lado existe a pergunta: o que está expresso no
presente trabalho? (= conteúdo); por outro lado: como está expressa essa
alguma coisa, de que forma exerce sua influência sobre nós e como se faz
sentir (= forma)?
De fato numa divisão dessa natureza entre o que e como na arte trata-se
apenas de uma abstração condicionalmente válida. Amor, tristeza, lutas trá­
gicas da alma, uma idéia filosófica etc., não existem de forma independente
na poesia, mas apenas na forma concreta, assim como estão expressas no
trabalho em questão. Por essa razão, a oposição convencional entre forma e
conteúdo (o “como” e o “quê”) na pesquisa científica leva, por um lado,
sempre à tese de que ambas se fundiram num objeto estético. Todo conteúdo
novo surge na arte necessariamente como forma: não existe em arte nenhum
conteúdo que não tenha tomado uma constituição concreta, i. e., que não
tenha achado sua forma de expressão. Correspondentemente, toda altera­
ção da forma significa também a revelação de um novo conteúdo, pois se,
conforme a sua definição, a forma é compreendida como processo de ex­
pressão relativa a algum conteúdo, não pode haver forma vazia. Por causa de
sua limitação essa divisão é, portanto, pouco proveitosa para o esclarecimento
das particularidades específicas do momento formal na estrutura de uma obra
de arte.
Por outro lado essa divisão contém uma certa ambigüidade. Dá a enten­
der que o conteúdo (o fato psicológico ou a idéia ■ —■amor, tristeza, a trágica
Weltanschauung etc.) existe, na arte, da mesma forma que fora da arte. Na
consciência do pesquisador surge aqui a metáfora consagrada do pensamen­
to pré-científico: a forma é um receptáculo em que é despejado um líquido

— o conteúdo, com suas características já existentes inalteráveis — ou a for­
ma é uma veste com a qual o corpo se cobre, permanecendo sob esse manto
o mesmo que antes. Esse conceito leva, então, ao fato de que “a forma” é
compreendida como adorno exterior, como um apêndice que tanto pode
existir como faltar; leva ainda à pesquisa do conteúdo como realidade fora
da estética que conservara na arte suas propriedades já existentes (de uma
experiência anímica ou de uma idéia abstrata), que não fora modelada de

4 6 3
LUI Z COSTA LIMA

acordo com as leis próprias da arte, mas em correspondência às leis do mun­


do empírico: compara-se o caráter de Tatiana6 com a psicologia da jovem
russa e pesquisa-se o tipo de Hamlet segundo os métodos da psicopatologia;
discute-se sobre a verossimilhança psicológica de qualquer situação condicio­
nada à cena etc. Entretanto, esses fatos do chamado “conteúdo” já não têm,
dentro da arte, existência independente e autônoma de qualquer das leis gerais
da estrutura artística; são “tema” poético, “motivo” artístico (ou “Imagem”),
tomam tanta parte na unidade da obra poética, na elaboração da impressão
estética como qualquer outro fator formal (por ex., a composição, a estrutu­
ra métrica ou o estilo da obra em questão). Em poucas palavras, quando se
compreende sob o termo “formal” o estético, então transformam-se, em
matéria de arte, todos os fatos do “conteúdo” também em manifestações da
forma,
Quando consideramos um monumento literário como obra de arte, ire­
mos julgar cada elemento do conjunto artístico do ponto de vista de sua
ação poética: dentro da poética como ciência da arte poética não pode
existir o dualismo entre o “expresso” e a “expressão”, entre fatos estéticos
e fatos fora da estética. O que não significa naturalmente que um m onu­
mento literário não possa ser considerado de um outro ponto de vista que
eão o estético: a questão da arte como fato social ou como produto da ati­
vidade espiritual do artista, a pesquisa da obra de arte como manifestação
religiosa, moral, ou o reconhecimento de uma manifestação útil perm ane­
cem como possibilidade; é tarefa da metodologia demonstrar se a aplica­
ção desse processo de pesquisa é realizável e onde ficam seus limites
irrevogáveis. Entretanto, em trabalhos científicos sobre os problemas da
poética, tem de ser evitada a confusão Inconsciente das “vivências do
poeta”e das “idéias” dos seus contemporâneos como conteúdo da obra li­
terária, com os procedimentos da arte como “forma”.
A divisão tradicional entre forma e conteúdo, que na arte distingue os
fenômenos estéticos dos extra-estéticos, veio se contrapor uma outra que se
origina das particularidades básicas de uma obra de arte como objeto estéti­
co: a divisão entre material e método (cf. na antologia Poétika o artigo de V
B. Chklovski, “A Arte como procedimento”). Essa contraposição é orientadora
para a pesquisa teórica e a descrição sistemática dos elementos “formais” da
poesia. Entretanto, ela requer, como será demonstrado mais adiante, desen­
volvimento e aprofundamento ligados a uma interpretação teleológica do
estilo como unidade do procedimento.

484
Cada arte serve-se de algum material que toma da natureza. Submete
esse material a uma elaboração especial com auxílio daqueles procedimen­
tos que são característicos a cada uma. Como resultado dessa elaboração,
o fato que já existia na natureza (o material) é elevado à posição de fato
estético e se transforma numa “obra de arte”. Com parando a matéria-
prima da natureza e o material elaborado da arte estabelecemos o proce­
dim ento de sua elaboração artística. É a tarefa da pesquisa literária
descrever histórica mas também comparativa e sistematicamente os p ro ­
cedimentos artísticos do trabalho em questão, de um poeta ou de uma
época inteira. O material da música, por exemplo, são os sons, que na
obra musical possuem uma determinada altura relativa ou absoluta, uma
determ inada duração e intensidade, que estão organizados numa ou nou­
tra forma de contigüidade ou de continuidade, e dessa maneira elaboram
as formas artísticas do ritmo, da melodia e da harmonia. O material da
pintura consiste nas formas óticas organizadas num plano, como ligação
de linhas e manchas de cor das quais as formas da pintura são elaboradas.
A pesquisa da poesia, como a de qualquer outra arte, requer a determ ina­
ção do material como também dos procedimentos utilizados para desse
material criar a obra de arte.
Durante muito tempo houve a convicção de que “as imagens” consti­
tuíam o material da poesia, e até hoje não se está muito distanciado desse
conceito. A estética idealista alemã considerava a obra de arte como a
corporificação de uma idéia numa imagem sensível. Se as imagens óticas
predominam como material da pintura, as imagens sonoras como material
da música etc., então a poesia, como a mais alta forma de arte, conhece
além das cores, sons e odores, também imagens de experiências íntimas. O
valor de uma arte é determinado pelo aspecto concreto de sua apresenta­
ção, sua “perceptibilidade” no sentido mais lato da palavra: esse conceito
aplica-se à figuração principalmente e não apenas à imagem ótica. Quanto
mais completamente uma idéia se corporifica numa imagem tanto mais
completa será a obra de arte. Essa teoria da “perceptibilidade” ou da “figu­
ração” encontra hoje — dissociada de suas bases metafísicas originais —
sua continuação no ensinamento de Potebnia e de sua escola, que inconscien­
temente identificam os conceitos de artístico e simbólico. Essa teoria já foi
submetida à crítica quanto ao problema especial da imagem ótica na poe­
sia, no Laokoon de Lessing. Mas a crítica mais conseqüente desse en­
sinamento encontra-se no livro de Theodor Meyer, Das Stilgesetz der Poesia

4 6 5
LUI Z COSTA LIMA

(A lei do estilo da poesia).7 Vamos ilustrar aqui os argumentos básicos de


Meyer com um exemplo russo bastante conhecido:

Perambulando eu pelas ruas bulhentas,


Entro numa igreja cheia de gente,
Sento-me em meio aos jovens tolos,
Entrego-me então aos meus sonhos...8

Com a leitura dessa poesia surge em nossa imaginação uma série de ima­
gens mais ou menos concretas, isoladas em si mesmas ou detalhadas: a rua
bulhenta — a igreja e os fiéis — os jovens em festejos — o poeta solitário e
pensador. Conforme a qualidade da nossa capacidade de imaginação essas
imagens são mais claras ou mais vagas; os elementos óticos predominam; para
alguns leitores, talvez os acústicos (“ruas bulhentas” — o ruído das carrua­
gens nos paralelepípedos, os gritos dos vendedores etc.); para outros ainda,
as representações verbais abstratas. Daí se compreende que essas imagens que
acompanham uma seqüência verbal são de certo modo subjetivas, indeter­
minadas e completamente dependentes da psique do observador, de sua in­
dividualidade, de sua disposição de espírito etc. Criar arte sobre a base dessas
imagens é impossível: a arte exige execução perfeita, exatidão e não pode,
portanto, ser abandonada à capacidade de imaginação ativa do leitor: não é
o leitor mas o poeta que cria a obra de arte. Nestas circunstâncias as imagens
do poeta não podem concorrer com a música e a pintura no que se refere à
perceptibilidade: na música e na pintura a imagem sensível está esteticamen­
te assegurada; na poesia existe uma complementação do sentido das pala­
vras absorvidas subjetivamente pelo leitor.
Consideremos com atenção o simbolismo poético da poesia de Puchkin
“perambulo pelas ruas bulhentas” — vemos o poeta solitário numa rua no
meio dos passantes. Mas que espécie de cidade é esta, russa ou uma cidade
do exterior? Que espécie de ruas, estreitas ou largas? Em que parte do dia
estamos, manhã ou tarde? Chove ou faz bom tempo? “Ruas bulhentas” — é
uma representação geral; a representação verbal é sempre geral. Na nossa
capacidade de imaginar pode-se formar uma representação concreta, um caso
individual, um exemplo, uma imagem — mas sempre na dependência das
particularidades subjetivas do receptor. O poeta ressalta apenas uma carac­
terística: “ruas bulhentas”. Ele não precisa de imagem concreta ou de
“perceptibilidade” em grande dimensão, ela contradiria a essência do seu

4 6 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

pensamento; ele quer dizer: “por qualquer rua que perambule”, i. e., de tar­
de ou de manhã, com chuva ou bom tempo. O mesmo é válido também para
as imagens dos versos seguintes: “igreja cheia de gente” (que igreja?), “jo­
vens tolos” (quem são esses jovens?). Existem casos em que o pensamento
concreto figurado poderia até cair em contradição com as intenções do poe­
ta. E assim que expressões metafóricas como “os anos voam”, “vamos descer
sob as abóbadas eternas”, “próxima está a hora”, nas quais, de modo geral,
se vê um “simbolismo” reforçado da linguagem (Potebnia e sua escola), têm
sobre nós efeito artístico apenas, porque, no decurso da evolução da lingua­
gem, perderam seu sentido simbólico concreto, e já não despertam em nós
qualquer representação figurativa definida. “Todos desceremos sob as abó­
badas eternas” significa “vamos todos morrer” e seria falso afigurar-se a “ima­
gem”: uma longa procissão que sob as “eternas” abóbadas de pedra descesse.
Portanto, no que se refere à perceptibilidade e à figuração, a poesia não
pode concorrer com a pintura nem com a música. As imagens poéticas são
complementações subjetivas e mutáveis das representações verbais. Se, por
um lado, a palavra e a poesia, no que se refere à perceptibilidade da repre­
sentação, são mais pobres do que as artes plásticas, por outro lado, são mais
ricas no seu domínio próprio.
Cabe aqui, em primeiro lugar, o grande grupo das ligações e das relações
lógico-formais que encontra sua expressão na palavra, mas que fica excluído
das outras artes. “Todas as vezes que eu perambulo pelas ruas”, “sozinho na
rua, na igreja, no meio dos amigos em festejos” ■— esse pensamento pode ser
o elemento essencial de uma obra poética mas não pode ser reproduzido num
quadro. O poeta pergunta: “já perambulaste pelas ruas?”; nega: “eu não an­
dei pelas ruas”. Indica a duração de uma ação, sua repetição etc., “eles se
entretêm ”, “ele se nega”, “ele disse”, “ele começou a leitura”*9 Tudo isso
pertence ao domínio das palavras, mas está fora do alcance da representação
evidente, no quadro. Além disso, cabem aqui também os diversos fatos da
coloração emocional da palavra, da avaliação articulada pelo pensamento e
pela vontade etc. A expressão “jovens tolos” (cf. “A animação dos anos tolos
que se apagou”) contém uma valorização que o poeta expressa juntamente
com a imagem em questão. As expressões “os anos voam”, “as abóbadas eter­
nas”, “a hora está próxima”, que indicam a morte inevitável e próxima, es­
tão sempre para nós ligadas a uma certa coloração emocional.
O domínio da poesia é, portanto, simultaneamente mais amplo e mais
restrito do que o domínio das representações e imagens evidentes. Como

4 6 7
I U 1Z C O S T A LIMA

toda a linguagem humana, também a palavra poética exerce no receptor re­


presentações figuradas e sentimentos determinados pela emoção, pensamen­
tos abstratos e até mesmo ações e julgamentos orientados pela vontade (a
chamada “tendência”). Potebnia, que se aliou à antiga teoria da “percep­
tibilidade”, ressaltou em palavras poéticas a “figuração” comparando-a com
a poeticidade e até mesmo o “artístico”, de modo geral Ovsianiko-Kulikoski,
que se ocupava da lírica e da música, teve de concordar que na arte existia
um outro elemento — emocional [cf. Lirika — kak osobii vid tvortchestva (A
lírica como forma especial de criação) na antologia Voprosi teorii i psichologü
tvortchestva (Questões sobre a teoria e a psicologia da criação) II, 2.a parte,
Cracóvia, 1911, pp. 162-226]. Já vimos acima que também os temas do pen­
samento puro e até mesmo as avaliações e empreendimentos articulados pela
vontade acompanham a percepção poética. Todos os aspectos da vida espiri­
tual humana podem ser atingidos pela poesia.10 Mas naturalmente não é aí
que se encontra a sua peculiaridade específica.
O material da poesia não são as imagens e emoções mas a palavra (slovo).
A poesia é a arte da palavra, e a história da poesia é a história da arte da
palavra. A antiga expressão escolar “Arte da palavra” (slovesnost) corresponde,
nesse sentido, completamente ao nosso pensamento.
Potebnia, que ensinava ser a poesia a arte das “figuras”, foi ao mesmo
tempo o fundador na Rússia da chamada “teoria lingüística” da poesia, que,
no Ocidente, foi pela primeira vez claramente formulada por H erder (cf.
espec. seus Fragmente zur deutschen Literatur, I — II), como também por W.
H umboldt e pelos românticos alemães [A. W. Schlegel, Vorlesungen über
schoene Kunst und Literatur {Conferências sobre belas-artes e literatura), 1801-
1804; A. F. Berhardi, Sprachlehre (Ensino da linguagem), 1801-1803]. Pre­
sentemente esses preceitos encontraram confirmação inesperada nas novas
teorias lingüísticas que também são de interesse para a poética.11
A teoria dos Junggrammatiker (jovens gramáticos) que, até há pouco, do­
minava a lingüística, queria explicar as diversas manifestações da história da
linguagem com base na ação mecânica de “leis sonoras”e com o auxílio de um
“princípio da analogia” compreendido, na mesma forma, mecanicamente, crian­
do assim, de certo modo, um equivalente do sistema da história natural Se, já
no domínio da fonética histórica, uma explicação mecânica desse tipo esbarra
em dificuldades básicas, é portanto completamente impossível o tratamento
mecânico das manifestações verbais nos problemas mais complexos da forma­
ção das palavras da semântica e da sintaxe. E realmente, teorias lingüísticas

4 6 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

modernas vêem no desenvolvimento da linguagem uma certa teleologia inter­


na. Na medida em que a lingüística passa da pesquisa mais externa e abstrata
do passado longínquo da linguagem (a chamada “gramática histórica5’) para a
observação das manifestações vivas em mutação constante da consciência
moderna da linguagem, ressalta necessariamente a representação da mul­
tiplicidade das atividades lingüísticas. “Todo indivíduo”, escreve Baudouin de
Courtenay (no seu artigo “Les lois phonétiques”, Revue slavistique, III, 1910,
p. 70), “dispõe de diversas linguagens Individuais, que, entre outros aspectos,
também se diferenciam do ponto de vista articulatório-acústico: a linguagem
coloquial, a linguagem festiva, a linguagem oficial ou da cátedra universitária,
entre outras (em correspondência com a posição social de cada Indivíduo). Em
momentos diversos da vida utilizamos diversas linguagens na dependência das
condições diferentes do nosso estado de alma, da hora e da época do ano, da
idade, de hábitos lingüísticos antigos e de novas aquisições de linguagem...”
Quando consideramos a estrutura da forma lingüística como estrutura de uma
“atividade” (segundo uma expressão antiga de W. Humboldt e Potebnia), en­
tão encontramos na linguagem diferentes colocações de objetivos, que deter­
minam tanto a escolha da palavra como também os princípios básicos da
estrutura da frase. A diferença entre as tarefas pode ser utilizada para estabele­
cer as particularidades da linguagem poética. Ainda Potebnia (que neste ponto
se aproxima de Herder e dos seguidores alemães) distingue dois tipos de ativi­
dades lingüísticas — a linguagem poética e a linguagem da prosa (científica).
Viu a especificidade fundamental da linguagem poética na figuração (conceito
que, nos tempos modernos como nós vimos, foi submetido a uma crítica
justificada). Recentemente, Iakubinski vem tratando dessa questão (antologia
Poétika, 1919). Propõe “classificar as manifestações da linguagem segundo a
finalidade para a qual o Indivíduo que fala utiliza um determinado material”,
e distingue entre “o sistema da linguagem prática no qual as representações
verbais (sons, morfemas e outros) não possuem valor próprio, mas são apenas
meios de comunicação55e o sistema da linguagem poética, em que “a finalida­
de prática passa a segundo plano e as Interligações verbais adquirem valor In­
trínseco” (p. 37).'12 Embora o conceito da atividade verbal de valor intrínseco
(“uma declaração concentrada sobre a expressão”, conforme a definição de R,
O. Jakobson)13 seja sem dúvida amplo demais para uma definição da lingua­
gem poética, e muitos dos exemplos dessa atividade apresentados pelo pró­
prio Iakubinski não tenham qualquer caráter especificamente estético (por ex.,
quando o herói de um romance fala o “r ” rangente e visivelmente está-se ou­

469
LU I Z C O S T A L I M A

vindo a si mesmo com prazer, ou quando soldados imitam os franceses, falan­


do palavras rápidas incompreensíveis e “se esforçando por dar à voz uma
entonação expressiva”). Mas não deixa, por isso, Iakubinski de mostrar aqui
uma das características essenciais que acompanham o enunciado, tanto poéti­
ca quanto qualquer outra estética, que Kant, no seu sistema da estética, desig­
nou como “uma finalidade sem fim”. A seleção injustificada dessa característica
como único sinal especial é, além do mais, sintomática para a estética e a poé­
tica do futurismo.14 Convém, entretanto, ainda lembrar que uma definição
exaustiva das características do objeto estético e da vivência estética, de acor­
do com a essência desse problema, está fora do campo da poética como ciên­
cia isolada e constitui tarefa da estética filosófica. Independentemente dessa
definição, os sinais específicos do objeto estético nos são sempre transmitidos
na experiência artística intuitiva, que Puschkin, Maiakovski e Nadson igual­
mente atribuem à categoria geral dos valores poéticos (artísticos); e só nos casos
marginais esse valor oscila. No estabelecimento de uma poética, é nossa tarefa
partir de material absolutamente indiscutível, e independentemente da ques­
tão a respeito da essência da vivência artística, examinar a estrutura do objeto
estético, no caso em questão, da obra de arte lingüística.
Só é possível a diferenciação, de acordo com os diversos empreendimen­
tos teleológicos, que na chamada “linguagem coloquial” estão presentes um
ao lado do outro — quando fazemos abstração da realidade concreta da histó­
ria da linguagem. Quando, dessa forma, a diferenciamos, a linguagem prática
tem a tarefa de comunicar um pensamento tão direta e completamente quanto
possível: a economia dos meios para atingir o alvo desejado constitui o princí­
pio básico dessa linguagem. A linguagem prática tem o seu próprio “modo de
proceder”: o estilo telegráfico objetivo. Podem-se aqui considerar as abrevia­
ções soviéticas modernas, exemplos especialmente evidentes desse estilo. A
linguagem científica, parente da linguagem prática, tem uma função mais es­
pecífica — deve poder expressar um pensamento lógico de forma sucinta e
completa. Ainda outras leis determinam a linguagem emocional ou a lingua­
gem do orador, que quer agir convincentemente sobre o sentimento e a von­
tade do ouvinte. A linguagem poética, que é determinada pela função artística,
está sob muitos aspectos próxima dos últimos grupos mencionados: não é por
acaso que a retórica e a poética foram classificadas durante muito tempo numa
mesma categoria de procedimento. Na linguagem coloquial normal existem
todas essas tendências simultaneamente, na história da linguagem lutam umas
contra as outras, e das suas combinações explicam-se diversos fatos da vida

4 7 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

semântica da palavra, da alteração das estruturas sintáticas etc. Queremos, em


seguida, destacar a linguagem científica e poética em sua expressão mais con­
seqüente, para mostrar, num exemplo evidente, a diferença entre ambas em
relação ao processo do uso das palavras e o tipo de ligação entre as palavras.
Tomemos a declaração científica: “Todos os corpos caem.” O conteúdo ló­
gico dessa afirmação, o único considerado essencial para a ciência, não depende
da sua expressão verbal. Podemos substituir as palavras, podemos dizer: “Todo
corpo cai”, “A queda é uma propriedade geral de todos os corpos”. O conteúdo
lógico permanece igual embora o fluxo psicológico do pensamento se altere com
a substituição e escolha diferente de palavras. Podemos traduzir essa afirmação
para qualquer outra língua sem que seu significado se altere. O fim almejado
pela linguagem científica consiste em última análise em substituir as palavras por
símbolos conceituais matemáticos abstratos. Haja vista o pensamento de uma
linguagem algébrica artificial, como apresentou Leibniz, pensamento verdadei­
ramente científico. Como, entretanto, falta essa linguagem, a ciência serve-se de
preferência de termos de línguas estrangeiras que lhe dão a possibilidade de
construir um sistema artificial de palavras conceituais, que na linguagem ainda
não têm sentidos concretos e nenhuma associação geral corrente, formulada com
exatidão. Cria os conceitos por meio de definições condicionadas, atribuindo às
palavras um ou outro sentido abstrato que lhe é necessário. Realmente pode-se
substituir a afirmação científica “Todos os corpos caem” pela fórmula “Todos S
são P”, em que o conceito S é a característica da “constituição corpórea” e P
indica o conjunto de todos os sinais que estão contidos no conceito de queda —
a palavra representa aqui o papel de um meio indiferente para a reprodução do
pensamento. Nesse sentido, a linguagem científica é amorfa: não tem leis inde­
pendentes para a organização do material lingüístico; a peculiaridade de cada
palavra, em separado, e toda relação entre as palavras não é perceptível nessa
linguagem.
Pelo contrário, a linguagem da poesia está organizada segundo princípios
artísticos, seus elementos estão ordenados segundo pontos de vista estéticos,
têm um certo sentido artístico, estão submetidos à tarefa artística geral...

Tradução
L u iz a L e it e R ib e ir o

Revisão
F e r n a n d o A u g u s t o R o d r ig u e s

4 7 1
Notas

1. Os presentes artigos do volume mencionado foram novamente publicados em


Istoritcheskaia poétika (Poética histórica), Leningrado, 1940.
2. O volume mencionado contém textos póstumos de Potebnia; foi publicado por
seus discípulos.
3. Cf. V N. Peretc, Kratkii otcherk metodologii (Breve esboço de uma metodologia),
Petersburgo, 1922.
4. Opoiaz — Obstchestivo po izutcheniiu poetitcheskogo iazika.
5. Na Alemanha, Oskar Walzel dedica-se ao problema da Poesia como Arte. Cf. sua
brochura Die künstlerische Form Dichtwerks (A forma artística da obra poética),
Berlim, 1916 (tradução do russo Problema fomi i poézi, com indicações bibliográfi­
cas publicadas pela editora Academia, Petersburgo, 1923). Cf. também Oskar Wazel,
Wechselseitige Erhellung der Künste (Explicações recíprocas das artes), Leipzig, 1917.
6. Personagem feminina principal no romance em versos de Puchkin Evgueni Oneguin.
7. Th. Meyer, Das Stilgesetz der Poesie, Leipzig, 1901.
8. Primeira estrofe de uma poesia de 1829.
9. Duração e repetição da ação são reproduzidas nos exemplos conhecidos através
dos aspectos correspondentes aos verbos russos.
10. A crítica da teoria da “perceptibilidade” ou “figuração”, como a formulou Th.
Meyer, naturalmente não atinge a concepção de figura como “forma interior”.
Nesse sentido a palavra “Figura” não está isenta de uma certa dubiedade, da qual
também sofre, por ex., a concepção de Potebnia. Diferentemente P. N. Sakulin,
Echtche o obrazekh (Mais alguma coisa sobre figuras), in Atenei, 1924,1— II (1927).
11. Em relação a esse problema, cf. Russkaia retch (Discurso russo), Red. L. V Stcherba,
I, Petersburgo, 1923, “Introdução”.
12. Cita-se o artigo de Iakubinski “O zvukakh stikhotvornovo iazika” (“Sobre os sons
da linguagem dos versos”).
13. R. O. Jakobson, “Die neueste russische Poesie”, Praga, 1921, p. 10.
14. Cf. minha crítica ao livro de R. O. Jakobson na revista Natchala (Fundamentos)
n.ü 1, 1921.

As notas 1, 2, 4, 6, 8, 9 e 12 são da autoria do organizador, W-D. Stempel, da


antologia de que foi traduzido este texto. (N. do Org.)

4 7 2
cap ítu lo 14 O ritmo como fator construtivo
do verso
IURI T IN IA N O V

“Ritm, kak konstruktivnii faktor stikha”, capítulo de Problema stikhotvornogo iazika (O proble­
m a da linguagem poética) 1924. Traduzimos m ediante o cotejo da versão norte-am ericana, in
Readings in Russian poetics (organizado por L. Matejka e K. Pormorska), The M IT Press, Mass»
1971, com a versão italiana (II problema dei linguaggio poético, II Saggiatore, M ilão, 1968).
R eproduzido com a permissão da Agência de D ireitos Autorais da URSS (VAAP).

47 3
i

O estudo da arte verbal com porta duas dificuldades. A prim eira procede
do próprio material usado, rotulado de modo mais simples oe conven­
cional como fala, palavra; a segunda advém do princípio construtivo des­
ta arte.
No primeiro caso, o objeto de nosso estudo é algo intim am ente rela­
cionado com nossa atenção cotidiana, e algumas vezes chega a depender
da intimidade desta conexão. M uito facilmente deixamos de considerar
a natureza desta ligação, e, trazendo arbitrariamente para o objeto de nosso
estudo todas as relações que se tornaram usuais em nossa existência coti­
diana, as transformamos nos pontos de partida para nosso estudo de lite­
ratura.1Ao fazê-lo, perdemos de vista a natureza heterogênea e polivalente
que o material pode assumir por seu papel e por sua destinação. Não le­
vamos em conta o fato de que as palavras têm propriedades desiguais,
que dependem dessas funções. Uma propriedade pode ser acentuada em
detrim ento de outras, que sofrem por isso uma deformação e às vezes se
reduzem a um nível de acessório neutro. A grandiosa tentativa ensaiada
por Potebnia de constituir uma teoria de literatura partindo da palavra
cE9v (o uno), até o complexo da obra literária (o todo), estava previa­
mente destinada ao fracasso, pois a essência da relação de cE’v com n<^v
repousa na heterogeneidade e no significado funcional variado deste “E V \
O conceito de “m aterial’ não ultrapassa as fronteiras da forma, sendo em
si mesmo formal. E um erro confundi-lo com momentos estranhos à cons­
trução.
A segunda dificuldade está em considerar a natureza da construção, o
princípio formativo, como um fator estático. Um exemplo servirá como
esclarecimento. Só recentemente ultrapassamos aquele tipo de crítica con­

47 5
LUI Z COSTA LIMA

cebida como discussão (e desaprovação) dos personagens dos romances


como se fossem pessoas vivas. Ademais, ninguém nos pode assegurar o
desaparecimento definitivo daquelas biografias dos personagens e das ten­
tativas de restabelecer, sobre tal base, a realidade histórica. Tudo isso se
funda no pressuposto de um herói estético. Seria, aqui, oportuno lembrar
as palavras de Goethe sobre a ficção artística, sobre as duas fontes de luz
nas paisagens de Rubens e sobre o uso de fatos c o n tra d itó rio s, em
Shakespeare: “Nas regiões superiores da ação da arte, por meio da qual
um quadro se torna de fato um quadro, o artista tem liberdade e pode
recorrer a ficções (...). O artista quer falar ao mundo por meio de um todo
É por Isto que a luz entrando de dois lados, “em bora contra a natu­
reza (...), é superior a esta”. Lady Macbeth, que diz a certa altura: “Ama-
mentei meus filhos com meu selo”, e de quem dizem depois: “Ela não
tem filho”, é justificada, pois Shakespeare “se preocupava com a força
expressiva de cada uma das falas”. Sobretudo, não deveríamos tom ar a
palavra do poeta ou a pincelada do artista num sentido estrito demais:
“... o poeta faz seus personagens dizerem, a um determ inado ponto, exa­
tam ente o que é necessário, exatamente aquilo que melhor produz uma
impressão a esta altura, e não se preocupa especialmente, nem leva em
conta o fato de que os resultados possam contradizer com pletamente as
afirmações feitas noutro lugar”.
E Goethe explica-o a partir do ponto de vista do princípio construtivo
do drama shakespeariano:
“É, de um modo geral, duvidoso que Shakespeare, enquanto escrevia,
pensasse que suas peças seriam impressas e que as pessoas poderiam co­
meçar a contar as linhas, comparando-as e ressaltando os contrastes. E
mais provável que visualizasse um palco. Via suas peças como algo de vivo,
de operante, que passava diante dos olhos e dos ouvidos da platéia, sem
que se pudesse nelas se deter e examinar seus pormenores, devendo, pois,
suas comédias e tragédias terem sim, naquele momento, eficácia e signifi­
cado.”2
Deste modo, a unidade estática do personagem (como, em geral, toda a
unidade estática em uma obra literária) se mostra extremamente instável.
Depende inteiramente do princípio de construção, e pode flutuar no curso
da obra, qualquer que seja o modo pelo qual a dinâmica da obra determine,
em todas as circunstâncias individuais, sua flutuação. Basta que exista um

47 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

sinal de unidade que legitime os casos mais extremos de sua violação real,
obrigando-nos a considerar tais casos como equivalentes da unidade?
Já se tornou óbvio, entretanto, que uma tal unidade não é ingenuamente
reconhecida na unidade estática do personagem; é marcada não pelo signo
de um todo estático, mas pelo de integração dinâmica, da integridade. Não
existe personagem estático, há apenas um personagem dinâmico. É suficien­
te ter o signo do personagem ou seu nome para que, em cada situação, não
observemos o personagem em si mesmo.4
O exemplo do personagem revela a força e a estabilidade dos hábitos
estáticos da percepção. O mesmo se verifica no problema da “forma” de uma
obra literária. Apenas recentemente superamos a conhecida analogia: a for­
ma está para o conteúdo assim como o copo está para o vinho. Mas todas as
analogias espaciais aplicadas à noção de forma valem apenas enquanto tais:
na realidade, na noção de forma infalivelmente se insinua uma nota de
estaticidade, estreitamente ligada à idéia de espaço (em vez disso, devería­
mos conceber as formas espaciais como formas dinâmicas sui generis). O
mesmo é verdadeiro em relação à terminologia. Aventurar-me-ia a afirmar
que em nove dentre dez casos a palavra “composição” subentende implicita­
mente um tratamento da forma como um dado estático. O conceito de “ver­
so” ou de “estrofe” é removido imperceptivelmente da sucessão dinâmica. A
repetição deixa de ser considerada um fator de intensidade diversa segundo
as várias condições de freqüência e de quantidade. Surge a perigosa noção
de “simetria dos fatos composionais”, perigosa pois não podemos de modo
algum falar de simetria onde nos deparamos com a intensificação.
A unidade da obra não é um todo simétrico e fechado, mas sim uma in­
tegridade dinâmica, com um desenvolvimento próprio; entre seus elemen­
tos se coloca não o signo estático da adição e da igualdade, mas sempre o
signo dinâmico da correlação e da integração.
A forma de uma obra literária deve ser entendida como uma entidade
dinâmica.
Este dinamismo se revela, em primeiro lugar, no conceito de princípio
construtivo. Nem todos os aspectos de uma palavra se eqüivalem; a forma
dinâmica não resulta da união e da fusão de tais aspectos (cf. a noção muito
usada de “correspondência”), mas sim da sua interação, e, daí, do realce de
um grupo de fatores em detrimento de outro. Durante este processo, o fator
acentuado deforma os que se lhe subordinam. Em segundo lugar, a sensação
da forma numa tal situação é sempre a sensação de fluxo (e portanto de

4 7 7
IU !Z COSTA LIMA

mudança) da inter-relação entre o fator construtivo subordínante e os fato­


res subordinados. Não há absolutamente necessidade de introduzir uma im­
plicação temporal nesta noção de passagem ou “desdobramento”. O fluxo
dinâmico pode ser tomado em si, fora do tempo, como puro movimento. A
arte vive desta interação, desta luta. Se não percebemos a subordinação, a
deformação de todos os fatores pelo fator que desempenha o papel constru­
tivo, não existe o fato artístico. (“A concordância dos fatores é por si mesma
ema característica negativa do princípio construtivo”, V. Chklovski.) E, se
falta a sensação de uma interação dos fatores (que supõe a presença necessá­
ria de dois aspectos: o subordínante e o subordinado), o fato artístico desa­
parece; torna-se automatizado.
Este processo introduz uma implicação histórica no conceito de “princí­
pio construtivo” e de “material”. Entretanto, a história da literatura nos
demonstra a estabilidade dos princípios fundamentais da construção e do
material. O sistema tônico do verso de Lomonossov era um fator construti­
vo. Sucessivamente, por volta da época em que Kostrov escrevia, este siste­
ma se associava a um sistema determinado de sintaxe e de léxico: seu papel
subordínante e deformador se enfraqueceu, o verso tornou-se automático.
Foi necessária a revolução de Derjavln para que se rompesse esta união e se
transformasse novamente em Interação, em luta e forma. O fato aqui Impor­
tante é o da nova interação, e não simplesmente a Introdução de um fator
qualquer por si mesmo. Por exemplo, ao introduzirmos um metro que já não
é perceptível (que foi apagado precisamente devido a uma fusão firme e ha­
bitual do metro com o sistema acentuado da sentença e com certos elemen­
tos léxicos), fazemo-lo Interagir com novos fatores; renovamos o próprio
metro e revigoramos os novos fatores construtivos nele contidos. (Este é o
papel histórico da paródia poética.) Do mesmo modo, o princípio construti­
vo do metro se reforça pela Introdução de esquemas métricos novos.
As categorias fundamentais da forma poética permanecem constantes: o
desenvolvimento histórico não distribui as cartas nem destról a diferença entre
o princípio construtivo e o material. Pelo contrário, enfatiza sua diferença. É
claro que Isto não elimina o desafio de cada situação dada, com sua correla­
ção Individual de princípios construtivo e material e com seus próprios pro­
blemas de forma dinâmica Individual.
Permltam-me introduzir um exemplo da automatização de um certo sis­
tema de verso, e de como o significado construtivo do metro se salva por
efeito da ruptura do próprio sistema* E interessante notar que o papel de

478
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

ruptura neste caso tenha sido desempenhado exatamente pela oitava que,
nas obras de Apollon Maíkov5 aparece como o modelo da Éíharmonia do
verso”.5
Nos anos imediatamente posteriores a 1830, a tetrapodia lâmblca se
automatizara: “o iambo de quatro pés acabou me enfadando”, escrevia
Puschkin no poema “A Casinha em Kolomna”.
Em 18315Chevirev publicou na revista Teleskop sua dissertação “sobre a
possibilidade de Introduzir a oitava italiana na versificação russa”, com a tra­
dução do sétimo canto da Gerusalemme liberata. Um fragmento foi publica­
do em 1835 na revista O Observador de Moscou^ com a seguinte advertência:
“Este experimento (...) teve (...) a má sorte de aparecer no tempo daquela
harmoniosa monotonia que então era conhecida no mundo da poesia russa
e ainda agradava os ouvidos de todos, embora já começasse a aborrecer. Es­
tas oitavas que infringiam todas as convenções de nossa prosódia, onde se
proclamava um nítido divórcio entre as rimas masculinas e as femininas, onde
o troqueu se misturava com o iambo e onde duas vogais formavam uma síla­
ba apenas; estas oitavas, em suma, que desconcertavam a todos com a sua
violência inovadora, poderiam ser aceitas em um tempo em que o nosso ou­
vido continuava indulgente ao afago de certos sons monótonos e o pensamento
dormitava sob a melodia e a língua reduzia as palavras a meros sons? (...)”.
Esta passagem define bastante bem o automatismo resultante da coin­
cidência habitual do metro com as palavras; era preciso infringir “todas as
convenções” para renovar-se a dinâmica do verso. Estas oitavas suscitaram
uma verdadeira tempestade literária. Dmitrizev escreveu ao conde Viazem-
ski:* “O professor Chevirev e o ex-estudante Bielinski há muito sepultaram
não apenas a geração de nossos velhos mas, não se zangue, a você e a
Batiuchkov e até mesmo a Puchkin. O professor mostrou que nosso metro
amaneirado (expressão muito em voga, então) e nossa linguagem poética
amaneirada de nada servem, e são monótonas (também uma palavra da moda).
A título demonstrativo, publicou no Moskovskii nabliudatei (O Observador
de Moscou) uma tradução em oitavas do sétimo canto da Gerusalemme
liberata.6 Gostaria que você a comparasse à tradução de Raitch e então me
dissesse se encontra nos metros e na linguagem poética de Chevirev a
musicalidade, a força e a expressividade que, em suas próprias palavras, faltam

*Toda a passagem en tre parênteses falta na versão n o rte-am erican a. Cf. op. c it., p. 126.
(N. do O rg.)

4 7 9
LUI Z COSTA LIMA

à poesia russa de nossos tempos (...). Mas é difícil resistir à linguagem de


nossos pais e recomeçar desde o ABC.”7
Tudo nesta luta é típico: a atitude do velho poeta quanto à “musicalidade”
e em geral ao verso como um sistema fixo, a afirmativa de que a revolução
de Chevirev reverte para o ABC (fundamentos elementares), e que Chevirev
tenta estabelecer uma interação dinâmica de fatores dos versos, em detrimento
da desgastada “musicalidade”.
O próprio Chevirev imprimiu um epigrama provocador sobre suas pró­
prias oitavas:8

“O rimador, insatisfeito com o verso russo,


Criou dentro dele uma ousada revolução.
Rompeu os versos com insolência herética,
Despoticamente divorciou todas as rimas.
Iambos e troqueus foram deixados a vagar livremente
E qual o fruto de tantos pecados?
Uma torrente de protestos, ventos e tempestades,
E o mundo fervente da harmonia ensurdecido.”

Puchkin, por seu lado, chamou o verso automatizado de canapé e compa­


rou a nova e dinâmica forma de verso a uma carroça sacolejante disparando
em estradas acidentadas. O “novo verso” era bom não porque fosse mais
musical ou mais perfeito, mas porque recolocava a dinâmica da inter-relação
dos fatores. Deste modo, o desenvolvimento dialético da forma, ao alterar a
correlação do princípio construtivo com os subordinados, salva seu papel
construtivo.

li

Todo o conteúdo da seção anterior nos obriga a dar a devida importância ao


material utilizado no estudo literário. Esta não é uma questão indiferente
para o investigador. A escolha do material inevitavelmente dá uma certa di­
reção a nossas investigações, e, ao fazê-lo, em parte predetermina os resulta­
dos, ou de outro modo limita o seu significado. E claro, portanto, que o objeto
de um estudo que aspire a ser estudo de uma arte deverá ser aquele específi­
co que diferencia esta arte dos outros setores da atividade intelectual, utili­

4 8 0
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS F O N T E S — VOL. 1

zando-os como seu material ou instrum ento. Toda obra de arte é uma
interação complexa de muitos fatores; conseqüentemente, o objetivo de uma
investigação é definir a natureza específica desta interação. Ao mesmo tem­
po, sendo o material limitado e sendo impossível aplicar uma metodologia
experimental, pode-se facilmente presumir que certas propriedades secun­
dárias dos vários fatores, resultantes de sua ocorrência em um determinado
caso, são suas propriedades básicas. Daí as conclusões errôneas, muito di­
fundidas, que são depois aplicadas a situações nas quais certos fatores de­
sempenham um papel decididamente subordínante.
Deste ponto de vista, o material mais complexo e frustrante para estudo
é o que, à primeira vista, pareceria o mais fácil e mais simples: refiro-me ao
campo da arte motivada. Por motivação na arte se entende a justificação de
um fator por meio de todos os outros, a concordância deste fator com os
demais (Chklovski, Eikhenbaum). Cada fator é motivado por meio de suas
conexões com os fatores restantes.9
A deformação dos fatores ocorre, portanto, de modo uniforme. A moti­
vação interna que se dá no nível construtivo da obra atenua, por assim dizer,
as peculiaridades dos fatores, tornando a obra de arte “leve” e aceitável. A
arte motivada é enganadora; Karamzin propunha que “se desse um novo sig­
nificado às velhas palavras, apresentando-as sob nova forma, mas com habi­
lidade bastante para enganar o leitor e ocultar-lhe a novidade da expressão”.10
Mas exatamente por isso, o estudo da função é mais difícil de ser empre­
endido sobre esta arte “leve”. A investigação dessas funções não se refere a
um momento quantitativamente típico, mas sim a um momento qualitativa­
mente característico e, nos elementos comuns a outros campos da atividade
intelectual, ela vê o plus específico da arte. Por isso, nas obras de arte moti­
vadas, o elemento característico é a própria motivação (= dissimulação do
plus), como a sua característica peculiar negativa (Chklovski), e não o inver­
so. Em outras palavras, as funções dissimuladoras dos fatores não podem ser
os critérios de um estudo literário geral.
O fenômeno encontra uma explicação ainda no decurso da história lite­
rária russa. A arte motivada, “exata” e “leve” da escola de Karamzin consti­
tuía uma espécie de oposição dialética aos princípios de Lomonossov, ao culto
da palavra independente na ode “sonora”, “sem significado”. Suscitou uma
tempestade literária, já que os aspectos suaves e motivados foram evidente­
mente encarados como aspectos negativos.11 Assim nasceu o conceito de “le­
veza difícil”. Batiuchkov, contrapondo ao verso deliberadamente “difícil” da

4 8 1
I U iZ COSTA LIMA

ode o verso “leve” da poésie fugitive, afirmava que “os versos leves são os
mais difíceis”. (Em seguida, dirá ao invés: “Quem não escreve versos leves
nos dias que correm?”)
Para se apreciar com equilíbrio, é preciso conhecer, portanto, as funções
dos fatores que se equilibram uns aos outros. E, neste estudo, a maior aten­
ção será reservada à indagação dos fenômenos em que um dado fator é
enfatizado (não motivado).
Referimo-nos aqui àqueles fenômenos que são as combinações, as mistu­
ras de fatores de uma certa série (internamente motivada) com os fatores de
uma outra série estranha (mas também internamente motivada) — i. e., a fe­
nômenos de série mista. O exemplo mais simples de uma tal combinação é
uma Paródia poética, na qual, por exemplo, se estabelece a interação do metro
e da sintaxe de uma certa série (particularizada) com o léxico e a semântica de
outra. Se estivermos familiarizados com uma destas séries, se ela já se deu pre­
viamente em alguma obra literária, no estudo da paródia em questão, nos en­
contramos como na presença de uma experiência na qual algumas condições
foram alteradas, enquanto outras permaneceram inalteradas. Distinguindo as
condições e observando os fatores alterados, podemos tirar algumas conclu­
sões com respeito à relação e dependência existentes entre os dois fatores (suas
funções combinatórias). Também a história da poesia, evidentemente, justifica
esta escolha. As revoluções na poesia se revelam habitualmente, ante o exame
mais escrupuloso, como misturas, combinações entre uma série e outra (pen­
se-se na atenção dispensada por Chklovski a certos “ramos menores”, como
os aspectos cômicos). Por exemplo, os românticos tomaram o chamado trimètre,
que era empregado no verso cômico da poesia francesa do século XVIII, e lhe
concederam o vocabulário, a semântica etc., do estilo elevado, de modo que
ele se tornou a “forma do verso heróico” (Grammont). Um exemplo menos
remoto: Nekrassov combinou um metro geralmente usado na lírica elevada (o
metro da balada) com os elementos léxicos e semânticos (em sentido amplo)
de uma série diferente.12Em nossos dias, Maiakovski misturou a forma do verso
cômico com um sistema de imagens grandiosas (comparem-se suas formas de
verso com as de P. Potemkin e outros membros do grupo Satirikon).
Assim, a fim de evitarmos tirar conclusões teóricas incorretas, devemos
trabalhar sobre materiais que sejam perceptíveis na forma. A tarefa da histó­
ria literária é precisamente revelar a forma. Deste ponto de vista, a história
da literatura, que evidencia o caráter de uma obra literária e de seus fatores,
é uma espécie de arqueologia dinâmica.

482
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL, 1

Por outro lado, o exame de em fator não se propõe a declarar sua fun­
ção, mas tem por objeto o fator em si; esta pesquisa isolada, que prescinda
da definição da propriedade construtiva, pode ser, portanto, realizada sobre
em material bastante vasto. Mesmo aí, entretanto, há limites, como aqueles
que tacitamente supõe uma série rica de signo construtivo. O estudo do metro
como tal, por exemplo, não pode ser empreendido com os mesmos critérios
sobre o material do verso e sobre o de um artigo de jornal
E mais fácil esclarecer-se a função construtiva de algum fator empregan­
do-se um material literário de série (não motivada) evidenciada ou deslocada.
As situações motivadas, por terem uma característica negativa, são menos
adequadas, exatamente como é mais difícil observar as funções de elementos
formais de uma palavra, quando esta tem uma característica formal negativa.13
Outra obervação faz-se necessária: o princípio construtivo pode ser soli­
damente relacionado ao sistema típico de sua aplicação, mesmo se o concei­
to de princípio construtivo não coincide com o conceito dos sistemas no
âmbito dos quais se aplica. Temos diante de nós Infinitos exemplos em lite­
ratura onde subsistem múltiplos sistemas de fatores em interação; mas nes­
tes sistemas há linhas generalizadoras, repartições que abrangem uma ampla
quantidade de manifestações,
E este fator, esta condição, que se observa nos exemplos extremos de uma
certa série, e sem o qual o fenômeno passa para outra série, o que constitui
a condição necessária e suficiente para o princípio construtivo de uma série
dada.
E se não levarmos em conta esses fenômenos extremos, no limite da sé­
rie, poderíamos facilmente confundir o princípio construtivo com o sistema
em que vem aplicado.
Entretanto, neste sistema, nem tudo é igualmente necessário ou igual­
mente suficiente para atribuir um fenômeno particular a esta ou aquela série
da construção.
O princípio construtivo é reconhecido não nas condições máximas em que
é previsto, mas sim nas mínimas, pois evidentemente estas condições míni­
mas se ligam mais estreitamente a uma dada construção, e, portanto, nelas
devemos procurar as respostas relativas ao caráter específico da construção,

Tradução
L u iz a L o b o

483
Notas

1. Ao colocar o problema deste modo, é claro, não tenho objeções quanto à “relação
da literatura com a vida”. Simplesmente duvido que a questão tenha sido proposta
adequadamente. Podemos falar de “vida e arte” quando a arte já é “vida”? Precisa­
mos buscar alguma utilidade particular da “arte” se não nos preocupamos em pro­
curar a utilidade da “vida”? Coisa diversa é falar de peculiaridade ou de coerência
interna do fato artístico face à vida cotidiana, à ciência etc. Quantos enganos sus­
citaram certos historiadores da cultura por tomarem um “objeto de arte” como
um “objeto da vida cotidiana”! Quantos “fatos” históricos foram estabelecidos os
quais, quando examinados de perto, se mostraram ser fatos literários tradicionais
sobre os quais a lenda apenas inserira nomes históricos! Sempre que a vida cotidiana
penetra na literatura, ela se torna literatura, e como tal deveria ser considerada. E
interessante observar a importância da vida dos artistas nos períodos de crise, de
revolução literária, quando a tendência literária dominante, aclamada por todos,
cai por terra e se exaure, e a nova direção ainda não foi reconhecida. Em tais pe­
ríodos, a própria vida dos artistas se transforma em literatura, tomando o seu lu­
gar. Quando as tradições grandiosas de Lomonossov entraram em colapso, com
Karamzin as minúcias da vida literária cotidiana — correspondência com amigos e
gracejos efêmeros —- tornaram-se fatos literários. E é este justamente o ponto: a
vida cotidiana foi promovida ao status de fato literário. Em uma época em que os
gêneros majestosos dominavam, esta mesma correspondência doméstica consti­
tuía apenas um elemento da existência cotidiana, sem qualquer relação direta com
a literatura.
2. J. P. Eckermann, Gespraecbe mit Goethe 3 (Leipzig, 1885), pp. 108-111. Também
em J. W von Goethe, Conversações com Eckermann.
3. Em “O nariz”, de Gogol, toda a sua essência reside no gracejo com os equivalen­
tes do personagem. O nariz do major Kovalev torna-se de vez em quando “o
Nariz”, que passeia pela Nevski Prospekt etc. “Nariz” decide fugir para Riga,
mas é capturado por um guarda que está entrando numa carruagem de correio.
Ele (!) então é devolvido, envolto em um trapo, a seu dono. O aspecto notável
desta situação grotesca é a equivalência do personagem, a igualdade entre o na­
riz e o “Nariz”, que não se interrompe por nenhum momento. Apenas o gracejo

4 8 4
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — V O u .^ r

neste plano duplo é grotesco. O princípio de unidade em si mesma não é viola­


do, e aí reside o efeito. Assim, a referência à natureza grotesca da obra não priva
o exemplo de sua tipicidade. Os exemplos considerados por Goethe, ao contrá­
rio, não se referem à província do grotesco.
4. Freqüentemente, o signo, o nome próprio, se torna o aspecto mais concreto do
personagem. Considerem-se os nomes onomatopaicos em Gogol. A concretude,
que é um resultado da expressividade articulatória pouco usual de um nome, é de
grande efeito, mas a especificidade da concretude se revela instantaneamente quan­
do tentamos traduzi-la em outra concretude específica. As ilustrações das obras de
Gogol ou os relevos apresentados em monumentos a Gogol destroem a concretude
gogoliana, mesmo que isso não signifique que não possam ter a sua própria
concretude.
5. Usando como exemplo a história da oitava russa, podemos reconstituir o modo
pelo qual, em diferentes períodos, o mesmo fenômeno literário preencheu fun­
ções diferentes. Na década de 1820, o arcaísta Katenin advogava a oitava. Esta
constituía, para ele, a estrofe necessária para os gêneros épicos longos. Na década
de 1830, a oitava desempenhou um papel não genérico, mas, antes, puramente
estilístico.
6. Moskovskii nabliudatel, M. 1835, parte III, p. 6.
7. Pis’ma I. I. Dmitrieva k kn. Viazemskomu (Cartas de I. I. Dmitriev ao Príncipe
Vjazemskij), Starina i Novizna (São Petersburgo, 1898), II, p. 182.
8. Barsukov, ]izn yi trudi M. P. Pogodina (São Petersburgo, 1890), III, pp. 304-306.
9. Assim, V Chklovski emprega adequadamente o conceito de motivação, de acordo
com o qual algum motivo que esteja em sintonia com outros motivos é introduzi­
do inicialmente na trama.
10. Karamzin, Polnoe sobranie sotcbinenii (São Petersburgo, 1848), III, p. 528.
11. Ver S. Marin sobre Karamzin: “Deixai-o chamar um poema de um relatório mi­
litar”, leitura de Beseda Liubitelei Russkogo Slova (São Petersburgo, 1811), III,
p. 121. Para os karamzinistas, a palavra exata era a palavra posta a serviço de
sua época. Era assim que entendiam a precisão. A própria suavidade da palavra
era um elemento formal, muito embora negativo. Ainda mais característico é o
juízo do karamziano P. Makarov sobre I. I. Dmitriev: “Para apreciar-se devida­
mente este amável poeta deve-se ter consciência das dificuldades que ele supe­
rou. Devemos notar como lutou para ocultá-las sob a coloração da leveza.
Devemos discernir os pontos que se mostrariam piores se um ou outro os hou­
vesse escrito.” (Sotchineniia i perevodi I. Dmitrieva, P. Makarov, t. T, c, II, 2.a
ed., 1817, p. 74). Apenas com o desaparecimento dessas condições, quando a
arte se tornou automatizada, esta suavidade pôde surgir como algo evidente por
si, e apenas então pôde surgir a idéia de vislumbrar, neste aspecto negativo da
palavra poética, seu aspecto positivo.

4 8 5
LUI Z COSTA LIMA

12. Ver meu artigo: “Stikhovaia forma Nekrasova”, in Letopis doma literatorov, 1921,
n.° 4.
13. Podemos ver a importância da última exigência no clássico estudo de Grammont:
Le vers français, ses moyens d ’expression, son harmonie. Ele aqui se esforça por
explicar a função expressiva do verso. Partindo exclusivamente do material moti­
vado, chegou a conclusões cuja própria essência é discutível.
As conclusões dizem principalmente respeito ao papel ilustrativo do ritmo e da
harmonia. O ritmo e a harmonia são meios expressivos quando, e apenas quando,
enfatizam o sentido do texto poético, isto é, quando são motivados. Contudo, é
claro que aqui a expressividade do ritmo coincide completamente com a expres­
sividade do texto, de modo que é impossível observá-la. Assim, essencialmente, o
que se está estudando não é a questão da expressividade rítmica, mas a extensão
em que o ritmo é semanticamente justificado (e até mesmo, se me permitem dizê-
lo, a extensão em que um certo tipo de semântica exige um certo ritmo: cf. a aná­
lise da ode de Hugo: “Napoleão I”). Tomando uma situação motivada como típica,
Grammont a elege como norma; e, em conseqüência, declara ilegítimos, errôneos,
todos os casos de ritmo não motivado. Por esta razão considera todo vers libre
moderno, por exemplo, um erro, já que as mudanças em grupos rítmicos não coin­
cidem com as mudanças semânticas. E natural, quando se coloca a questão desta
maneira, que se dê, de antemão, ao ritmo poético as funções que ele tem apenas
no plano comum da fala (emocionalidade e comunicatividade).

4 8 6
c ap ítu lo 15 A tipologia do discurso na prosa
M IK H A IL BA KH TIN

“Tipi prozaitcheskogo slova”, cap. de Problemi tvortchestva D ostoievskogo (Problemas da


obra de D ostoievski), L eningrado, 1925. Traduzim os m ediante o cotejo da versão n o rte-
am ericana, in Readings in Russian poetics, organ. por L. M atejka e K. Pom orska, T he M IT
Press, M ass., 1971 com a suíça in Problèmes de la poétique de D ostoievski, É dition UAge
d ’H om m e, Lausanne, 1970.
R eproduzido com a perm issão da Agência de D ireitos Autorais da URSS (VAAP).
Um conjunto de certos procedimentos verbais empregados na arte literária
tem, recentemente, despertado uma atenção especial por parte dos investi­
gadores. Este conjunto compreende a estilização, a paródia, o skaz (em seu
sentido estrito, o relato oral de um narrador) e o diálogo.
Apesar das diferenças fundamentais entre eles, todos estes procedimen­
tos têm um aspecto em comum: em todos, o discurso mantém uma dupla
orientação, dirige-se ao objeto referencial da fala, como no discurso cotidia­
no, e, simultaneamente, remete a um segundo contexto, ao ato da fala de
um outro emissor. Se ignorarmos este segundo contexto, se aceitarmos a
estilização ou a paródia como aceitamos a fala cotidiana, orientada apenas
para seu objeto referencial, não conseguiremos captar estes procedimentos
no que realmente são. Tomaremos a estilização como estilo correto e vere­
mos a paródia como uma escrita pobre.
O skaz e o diálogo, restritos à única “resposta” de um interlocutor, são
os casos menos evidentes desta dupla orientação. O skaz pode efetivamente
ter, às vezes, apenas uma orientação, correspondente a seu próprio objeto
referencial. Da mesma forma, uma única réplica no diálogo pode muito bem
se referir diretamente ao objeto, sem qualquer meditação. Na maioria dos
casos, entretanto, ambos se orientam para o falar de um outro; o skaz, pelo
fato de que o estiliza, o diálogo, porque o leva em consideração, lhe respon­
de ou a ele se antecipa.
A estilização, a paródia, o skaz e o diálogo são fenômenos de im por­
tância fundamental; requerem uma abordagem totalm ente nova para a
análise do discurso, uma abordagem entretanto irrealizável, dentro do qua­
dro usual dos estudos estilísticos e lexicológicos. O fato é que a aborda­
gem usual trata o uso da palavra dentro dos limites de um único contexto
m onológico, definindo cada item lexical em relação a seu objeto
referencial (o estudo dos tropos) ou em relação às outras palavras do

48 9
LUI Z COSTA LIMA

mesmo contexto, do mesmo ato da fala (a estilística, no sentido estrito


do termo). E verdade que a lexicologia conhece uma abordagem um tan­
to diferente para o uso da palavra. O matiz lexical de uma palavra, por
exemplo, um arcaísmo ou um regionalismo, aponta para um outro con­
texto, no qual a palavra normalmente funciona (como na velha literatura
escrita ou na fala regional). Neste caso, entretanto, estamos lidando com
um sistema de linguagem, não com um contexto concreto da fala; as pa­
lavras em questão não são enunciados de um falar, mas sim um material
de linguagem impessoal, não atualizado em qualquer enunciado concre­
to. Se, no entanto, o matiz lexical for individualizado, mesmo levemente,
isto é, se se refere a algum enunciado determinado pertencente a um outro,
enunciado ao qual a palavra em questão é tomada de empréstimo ou de
acordo com cujo padrão é construída, estaremos novamente lidando com
a estilização, a paródia ou com algum outro fenômeno análogo. Assim, a
lexicologia também permanece restrita a um único contexto monológico,
apenas reconhecendo a relação direta, e não a mediatizada, entre palavra
e referente, sem considerar nenhum outro falar, nenhum segundo con­
texto.
O próprio fato de que existam exemplos de um discurso duplamente
orientado, no qual é um fator essencial a relação com o enunciado de um
outro, obriga-nos a realizar uma classificação completa e minuciosa dos ti­
pos de uso da palavra de acordo com o novo princípio que sugerimos, prin­
cípio que nem a estilística, nem a lexicologia, nem a semântica levaram em
consideração. Não há problema algum em verificar que, além do uso da
palavra carregada de objetivos referenciais diretos e do uso da palavra ori­
entada para a palavra de um outro, ainda existe um terceiro tipo. C ontu­
do, mesmo dentro deste terceiro tipo de uso da palavra (duplam ente
orientada, considerando a palavra do outro), torna-se necessária a diferen­
ciação, porquanto ele abrange fenômenos tão díspares como a estilização,
a paródia e o diálogo. As variantes fundamentais destes fenômenos devem
ser evidenciadas a partir do ponto de vista deste mesmo novo princípio.
Inevitavelmente, surgirá a questão de se é possível, e como tipos heterogê­
neos de uso da palavra que se combinem dentro de um único contexto.
Com base nisto, surge todo um conjunto de novos problemas estilísticos
de que a estilística até agora não conseguiu dar conta. No que concerne ao
estilo da prosa, são estes problemas, precisamente, que têm uma im portân­
cia proem inente.1

49 0
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

Ao lado do discurso imediata e diretamente orientado para o objeto


que nomeia, tornando-se expressivo de algo, discurso que visa à com pre­
ensão igualmente imediata do objeto (primeiro tipo de uso da palavra),
ainda encontramos o discurso representado ou objetivado (segundo tipo).
A variedade mais típica e extensa do uso da palavra representada ou
objetivada é a fala direta dos personagens. Esta fala tem seu próprio ob­
jeto referencial imediato e, contudo, não se coloca no mesmo plano que
a fala direta do autor; ao invés, permanece a uma certa distância da fala
do autor, como se em perspectiva. Aparece não apenas para ser com pre­
endida em termos de seu próprio objeto referencial, mas se transform a a
si mesma em objeto de orientação enquanto palavra característica de per­
sonagens, típica, colorida.
Sempre que o contexto do autor compreende um discurso direto, por
exemplo, o de um personagem, encontramos, no interior de um contex­
to único, dois centros de fala e duas unidades de fala: a unidade constituída
pelo enunciado do autor e a constituída pelo enunciado do personagem.
A segunda unidade, entretanto, não é independente da primeira; lhe é
subordinada e figura como um de seus com ponentes. O tratam en to
estilístico de cada um dos dois enunciados é diferente. A elocução do
personagem é tratada, precisamente, como as palavras de um outro emis­
sor, como palavras pertencentes a um personagem de uma certa indivi­
dualidade ou de tipo específico, isto é, é tratada como um objeto de
compreensão do autor e de forma alguma do ponto de vista de sua p ró ­
pria orientação quanto ao objeto. A fala do autor, ao contrário, é elabo­
rada estilisticamente como uma fala visando a sua significação referencial
direta. Deve ser adequada a seu objeto (informativo, poético ou outro
qualquer); deve ser expressiva, convincente, vigorosa, elegante, e assim
por diante, do ponto de vista de sua missão referencial — denotar, expri­
mir, transm itir ou descrever algo; e seu tratam ento estilístico é simulta­
neamente orientado para a compreensão do referente. Entretanto, se a
fala do autor fosse tratada de modo a revelar os aspectos individuais ou
típicos de uma pessoa em particular, ou de um status social em particular,
ou de um modo literário particular, então, estaríamos tratando com o que
já é estilização, quer o tipo usual de estilização literária, quer de um skaz
estilizado. Este exemplo pertence ao terceiro tipo de discurso, do qual
tratarem os adiante.

4 9 1
LU 11 C O S T A LIMA

O discurso direto orientado para o objeto só conhece a si mesmo e a seu


objeto referencial, e tenciona adequar-se, ao máximo, a este último. Se, du­
rante o período em que está realizando sua função, mostra que imitou ou
retirou algo de alguém, isto de forma alguma altera os fatos — tudo Isso
constitui meramente os andaimes, que o construtor dificilmente poderia dis­
pensar, mas que não fazem parte da estrutura arquitetônica. A Imitação da
palavra de um outro e a presença de todos os tipos de Influências (facilmente
perceptíveis pelo historiador da literatura ou por qualquer leitor competen­
te) não entram ea função que este discurso realiza. Se fosse o caso — se o
próprio discurso marcasse claramente sua referência à palavra de um outro
— então estaríamos novamente tratando do discurso do terceiro tipo e não
do primeiro.
O tratamento estilístico do discurso objetivo “ o discurso dos persona­
gens — se subordina e faz parte das funções estilísticas do contexto do autor,
que porta a autoridade mais alta e definitiva. Tal fato dá margem a uma série
de problemas estilísticos que têm a ver com a Introdução e com a Incorpora*
ção orgânica da fala do personagem diretamente relacionada com o contex­
to do autor. A última Instância de significação e, conseqüentemente, a última
Instância estilística são dadas no discurso direto do autor,
A última Instância de significação exigindo uma compreensão que é pu­
ramente a de objeto ocorre, de modo geral, em qualquer obra literária, mas
nem sempre se apresenta pela fala direta do autor. A fala direta do autor pode
estar totalmente ausente — funcionando, então, a fala de um narrador como
seu substituto composicional, ou, se o caso é de uma peça, sem qualquer
equivalente na composição da obra. Em todos esses casos, a matéria verbal
da obra pertence quer ao segundo, quer ao terceiro tipo de discurso. Uma
peça é quase sempre constituída por enunciados objetivos representados. Mas,
em certas histórias, por exemplo, os Contos de Belkin, de Puschkin, a narra­
tiva (as palavras de Belkin) se constitui de enunciados do terceiro tipo; os
enunciados dos outros personagens pertencem ao segundo tipo. A ausência
de discurso direto e orientado para o objeto é um fenômeno comum. A últi­
ma Instância de significação —*o projeto do autor — é realizada, não pela
fala direta do autor, mas sim pelos enunciados de um outro emissor, enun­
ciados estes intencionalmente criados e desenvolvidos como pertencentes a
alguém diverso do autor. O grau de objetividade da palavra representada de
um personagem pode ser diferente. Basta comparar, por exemplo, as pala­
vras do príncipe Andrei, de Tolstoi, e as de qualquer um dos personagens de

49 2
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL- 1

Gogol, como Akaki Akakievitch. À medida que a força da intencionalidade


referencial das palavras de um personagem aumenta, à medida que, cor­
respondentemente, a objetividade diminui, a relação entre a fala do autor e
a do personagem começa a se aproximar da relação entre as réplicas de um
diálogo. A perspectiva entre elas diminui e podem vir a ocupar o mesmo plano.
Isto, entretanto, só pode ser postulado como uma tendência em rumo a um
limite nunca efetivamente alcançado.
Temos um exemplo de uma relação dialógica entre enunciados direta­
mente intencionais dentro de um único contexto, no ensaio erudito típico,
em que várias afirmações de vários autores são citadas, algumas com o pro­
pósito de serem refutadas, outras com o propósito de corroboração ou de
suplementação. Estas relações binárias (concordância versus discordância,
assertiva versus suplementação, pergunta versus resposta) são de natureza
puramente dialógica. Além disso, tais relações não são, certamente, entre
palavras separadas, sentenças, ou outros segmentos de uma afirmativa, mas
sim entre assertivas totais. No diálogo dramático ou no diálogo dramatiza­
do, introduzido no contexto do autor, estas relações coordenam enunciados
objetivos representados e, portanto, são elas mesmas objetivadas. O que aqui
ocorre não é o confronto de duas instâncias decisivas de significação, mas
sim o confronto objetivo (tramado) de duas posições representadas; confronto
totalmente subordinado a uma instância superior, definitiva, a do autor. Nesta
situação, o contexto monológico não se enfraquece nem se desintegra.
O enfraquecimento ou destruição de um contexto monológico surge
apenas quando dois enunciados igual e diretamente orientados para o obje­
to se encontram. Dois enunciados igual e diretamente orientados para um
objeto referencial, dentro de um contexto único, não podem ocorrer sem
que interajam dialogicamente em um diálogo; não faz diferença de que modo
específico (se pela corroboração e suplementação mútua ou, ao contrário,
pela contradição ou, ainda, através de outra forma dialógica, como, por exem­
plo, pela relação pergunta-resposta). Duas afirmações de mesmo peso sobre
o mesmo assunto, desde que se encontrem reunidas, não se podem alinhar
numa fileira como dois objetos; devem, sim, criar um contexto interno, isto
é, devem entrar em uma relação de significação.
A palavra imediata, direta, plenamente significativa, é orientada para seu
objeto e constitui a instância suprema de significação dentro do contexto
considerado. A palavra objetivada é igualmente orientada para seu objeto
referencial, mas, ao mesmo tempo, ela própria é objeto de outra orientação,

4 9 3
LUI Z COSTA LIMA

a do autor. Esta outra orientação, contudo, não penetra na palavra objetivada;


toma-a como um todo e, sem alterar seu significado ou seu tom, subordina-a a
seus próprios propósitos. Não impõe sobre a elocução-objetivada um signi­
ficado referencial diverso. Uma elocução que se torna objetivada assim se
torna, poderíamos dizê-lo, sem o saber, à semelhança de um homem que,
sem se saber notado, cuida de seus negócios. Uma elocução objetivada soa
exatamente como se fosse uma elocução direta, de uma só vez. Os enuncia­
dos tanto do primeiro como do segundo tipo de discurso têm, cada qual,
uma só intenção, cada qual, uma só voz: são enunciados de uma só voz.
Um autor, no entanto, pode utilizar a fala de um outro buscando seus
próprios objetivos e, desta maneira, introduz uma nova orientação de signi­
ficação em uma palavra, que, contudo, retém sua própria orientação. Sob
estas circunstâncias e, em concordância com o objetivo do autor, tal enunciado
deve ser reconhecido como palavra de um outro emissor. Assim, dentro de
um único enunciado, podem ocorrer duas orientações de significação, duas
vozes. Esta é a natureza da paródia, da estilização, do skaz estilizado.
Agora, chegamos à caracterização do terceiro tipo de discurso.
A estilização pressupõe o estilo; pressupõe que o conjunto de recursos
estilísticos que reproduz tinha, em um dado momento, uma significação di­
reta e imediata e exprimia uma derradeira instância de significação. Apenas
o discurso do primeiro tipo pode ser objeto de estilização. A estilização for­
ça um outro projeto (um projeto artístico-temático) a servir a seus fins, a
suas intenções novas. O estilizador utiliza a palavra do outro como tal e, desta
maneira, lança uma leve sombra objetivada sobre esta palavra. De fato, con­
tudo, a palavra não se converte em um enunciado objetivado. Afinal de con­
tas, o que mais importa para o estilizador é o conjunto de recursos empregados
pelo discurso de uma outra pessoa, precisamente como a expressão de um
ponto de vista particular. Ele trabalha com o ponto de vista do outro. E é
por isso que a leve sombra objetivada incide precisamente sobre este ponto
de vista, o qual se torna convencional. O personagem sempre fala a sério. A
atitude do autor não penetra na fala do personagem. O autor encara o dis­
curso de fora.
A palavra convencionalizada é sempre uma palavra de duas vozes. Ape­
nas o que já foi perfeitamente sério pode-se tornar convencional. O que teve
outrora um valor direto e não-convencional serve agora a novos objetivos,
os quais dele se apoderam, de dentro, e o convertem em convencional. E
isto que distingue a estilização da imitação. A imitação não transforma algo

4 94
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

em uma forma convencional, pois que leva a sério aquilo que imita, tornan-
do-o seu, apropriando-se diretamente da palavra do outro. Neste caso, as
vozes se fundem por completo. Se ouvimos a outra voz, então ouvimos algo
que não constava do plano do imitador.
Embora uma linha divisória absoluta separe a estilização da imitação,
conforme acabamos de mostrar, do ponto de vista histórico, existe entre elas
um conjunto de transições extremamente sutil e por vezes inapreensível.
Quanto mais fraca se torna a seriedade original de um estilo nas mãos de
seus epígonos-imitadores, mais particularmente seus recursos se tornam
convencionalizados e a imitação assim se torna semi-estilização. A estilização
pode, por sua vez, tornar-se imitação, se o ardor do estilizador em seguir seu
modelo destruir a distância entre eles e enfraquecer a possibilidade delibera­
da de sentir o estilo, reproduzido como o estilo do outro. Pois é precisamen­
te a distância que cria a convencionalidade.
O relato de um narrador, que substitui composicionalmente o discurso
autoral, é análogo à estilização. Tal relato pode tomar a forma da língua es­
crita padrão (o Belkin de Puschkin ou os cronistas-narradores de Dostoievski)
ou a forma da linguagem oral (skaz, no sentido direto da palavra). Aqui, tam­
bém, o modo verbal de outro emissor é empregado pelo autor como um ponto
de vista, como uma posição de que o autor necessita para conduzir seu rela­
to. Mas aqui o teor de objetivação que pesa sobre a palavra do narrador é
muito mais forte que na estilização, e a convencionalidade muito mais fraca.
E desnecessário dizer que os graus de uma e de outra variam substancialmente.
Contudo, o discurso do narrador nunca se pode tornar um discurso pura­
mente objetivado, mesmo se ele é um personagem entre os personagens, e
assume apenas uma parte do relato. Afinal de contas, sua importância para o
autor não é apenas sua maneira típica ou individual de pensar, de sentir, de
falar, mas, acima de tudo, sua maneira de ver e representar, pois nisto con­
siste sua função direta como narrador, substituto do autor. Assim, a atitude
do autor, exatamente como na estilização, penetra nos enunciados do
narrador, tornando-os, em um grau maior ou menor, convencionais. O au­
tor não nos mostra a fala do narrador (como é o caso no enunciado objetivo
dos personagens), manipula-a, sim, para seus próprios fins, forçando-nos a
perceber nitidamente a distância entre ele e esta palavra de um outro.
O elemento do skaz no sentido direto (orientação para a fala oral) é um
fator necessariamente inerente a qualquer história. Mesmo se o narrador é
representado como escrevendo a sua história e lhe dando um certo polimento

49 5
LU I Z COSTA LIMA

literário de qualquer forma, não ê um profissional das letras, não dispõe de


um estilo próprio, mas apenas de um modo social ou individualmente defi­
nido de contar histórias, gravitando em torno do skaz oral. Se, por outro
lado, realmente dispõe de um estilo literário determinado que o autor re­
produz em nome do narrador, estamos então lidando com a estilização e não
com o relato do narrador. Há, com efeito, diversas maneiras de introduzir e
motivar a estilização.
Tanto o relato do narrador, quanto o skaz puro podem se afastar de toda
a convencionalidade e tornar-se a direta fala autoral, expressando seu projeto
sem qualquer mediação. É esta, quase sempre, a natureza do skaz em Turgueniev:
quando este introduz o narrador, na maioria dos casos não estiliza uma manei­
ra social e individual distinta da narrativa. Por exemplo, em “Andrei Kolosov”,
a história é narrada por um tipo de homem pertencente ao próprio círculo de
Turgueniev, culto e inteligente. O próprio autor teria falado assim sobre temas
da maior seriedade em sua própria vida. Não há, no caso, nenhum esforço no
sentido de criar um tom “skazizado”, socialmente diferente, ou estabelecer um
modo socialmente diferente de observar e relatar observações; nem há sequer
o menor esforço de criar um modo individualmente característico. O skaz de
Turgueniev é inequivocamente referencial e contém apenas uma voz, que ex­
prime diretamente o projeto do autor. Aqui o skaz é simplesmente um recurso
de composição. A natureza do skaz na narração do Primeiro amor é idêntica à
aí apresentada pelo narrador em forma epistolar.2
E impossível dizer o mesmo sobre Belkin como narrador. Ele é impor­
tante para Puchkin como uma voz separada, diferente e, acima de tudo, como
uma pessoa socialmente distinta, com um diapasão espiritual e um contato
com o mundo próprios. Em seguida, enquanto personagem, Belkin é uma
figura com certas características individuais. Conseqüentemente, as intenções
do autor são, neste caso, refratadas pela fala do narrador; aqui, o discurso é
de dupla voz.
O problema do skaz foi indagado pela primeira vez por B. M. Eikhen­
baum.3 Ele encarou o skaz como exclusivamente orientado para a forma oral
da narrativa, considerando-se, ademais, seus aspectos lingüísticos con­
comitantes (a entoação especial, a disposição sintática, o léxico etc., da fala
oral). Eikhenbaum deixou totalmente de considerar o fato de que, na maio­
ria dos casos, o skaz consiste principalmente numa orientação para o discur­
so do outro, sendo apenas parcialmente, em conseqüência, definido por sua
orientação para a fala oral.

49 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — ¥01. 1

Nossa concepção do skaz nos parece muito mais substancial para o trata­
mento do problema em suas dimensões histórico-literárias. Cremos que, na
maioria dos casos, o skaz é empregado precisamente em função de uma voz
diferente, socialmente distinta e condutora de um conjunto de pontos de vista
e de avaliações que são exatamente as de que o autor necessita. De fato, é
um narrador que é introduzido, e não é um letrado; em geral, pertence às
camadas sociais mais baixas, faz parte do posto (precisamente a qualidade
que o autor nele valoriza) e traz consigo a fala oral.
O discurso autoral direto não é possível em todos os períodos literários;
nem todo período determina um estilo, já que esse pressupõe a presença de
pontos de vista institucionalizados e valorações sociais institucionalizadas e
duráveis. Estes períodos sem estilo ou enveredam para a estilização, ou re­
vertem a formas extraliterárias de narração que determinam um modo par­
ticular de observar e descrever o mundo. Quando não há forma alguma
adequada para a expressão não mediatizada das intenções de um autor, tor­
na-se necessário refratá-las através da fala de um outro. Além disso, os en­
cargos com que se depara a literatura são por vezes tais, que não há outra
maneira viável para realizá-los, senão por meio de um discurso de dupla voz.
Foi este, exatamente, o caso de Dostoievski.
Acreditamos que Leskov recorreu a um narrador, em primeiro lugar, em
busca de uma fala e de uma percepção de mundo socialmente diferentes, e,
apenas de modo secundário, em busca da qualidade oral do skaz (dado que
se interessava pela fala popular). Inversamente, Turgueniev lançou mão de
um narrador precisamente em busca de uma forma oral de narração que
expressasse diretamente suas próprias intenções. Orientar-se para a fala oral
e não para a fala de um outro era efetivamente uma de suas características.
Turgueniev não podia refratar suas intenções através desta outra fala, nem
gostava de fazê-lo. Manejava o discurso de voz dupla com dificuldade (por
exemplo, nas passagens satíricas e de paródia do Fumaça). Por este motivo,
escolheu um narrador de seu próprio círculo social. Desde que o narrador
tinha inevitavelmente de falar numa linguagem literária, não podia manter a
qualidade oral da narrativa, do princípio ao fim; para Turgueniev era impor­
tante apenas animar sua fala literária com entoações orais. Por contraste, a
atração pelo skaz na literatura contemporânea é, como vemos, uma atração
por outro ato de fala. A fala autoral direta sofre, atualmente, uma crise, que
é socialmente condicionada.

497
LUI Z COSTA LIMA

Não é o momento, agora, para passarmos em revista as provas de todas


as nossas afirmativas em relação à história literária. Deixemo-las permane­
cer no estado de simples suposições. Numa coisa, entretanto, insistimos:
dentro do skaz é preciso manter a estrita distinção entre a orientação para a
fala do outro e a orientação para a fala oral. Além disso, um grande número
de fenômenos de entoação de sintaxe e outros de igual caráter lingüístico
explicam-se no skaz (quando há a orientação do autor para a fala do outro)
precisamente por sua qualidade de voz dupla, pela interseção que estabelece
entre duas vozes e duas expressões. Tal fenômeno não se verifica em Tur­
gueniev, por exemplo, embora seus narradores mostrem uma tendência muito
mais forte para o discurso oral do que os narradores de Dostoievski.
O Icb-Erzãblung (narrativa do eu) é análogo ao relato do narrador: por
vezes, ele é marcado por uma orientação para a fala do outro e, por vezes
(como na narração de Turgueniev), se aproxima e, por fim, se funde com a
fala direta do autor, o que no caso significa trabalhar com o discurso de voz
única, própria do primeiro tipo.
Deve-se ter em mente que as formas de composição não decidem por si
mesmas a questão de qual o tipo de discurso que será empregado. Termos
descritivos como Ich-Erzãhlung, “relato do narrador”, “narração do autor”,
e assim por diante, são apenas termos que concernem à composição. Estes
termos de composição da narrativa gravitam, é verdade, em torno de tipos
específicos de discurso, mas não têm obrigatoriamente ligação com eles.
Todos os exemplos do terceiro tipo de discurso até agora investigados —
a estilização, o relato do narrador e o Ich-Erzãhlung — têm um aspecto co­
mum suficiente para classificá-los como uma variedade especial (primeira)
deste terceiro tipo. O aspecto comum consiste em o autor utilizar a palavra
do outro no sentido de suas próprias intenções. A estilização estiliza um outro
estilo em favor de seus próprios projetos. Tudo que faz é tornar estes proje­
tos convencionais. De modo semelhante, o relato do narrador, nele refra-
tando o projeto do autor, não se desvia de seu estrito limite e guarda os tons
e as entoações que realmente lhe pertencem. O pensamento do autor, ha­
vendo penetrado na fala do outro e tendo nele se instalado, não se choca
com o pensamento do outro, segue a direção que este se imprimiu, conten­
tando-se em torná-la convencional.
Com a paródia é diferente. Aqui, também, como na estilização, o autor
emprega a fala de um outro, mas, em oposição à estilização, introduz naque­
la outra fala uma intenção que se opõe diretamente à original. A segunda

4 9 8
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

voz, depois de se ter alojado na outra fala, entra em antagonismo com a voz
original que a recebeu, forçando-a a servir a fins diretamente opostos. A fala
transforma-se num campo de batalha para intenções contrárias. Assim, a fusão
de vozes, que é possível na estilização ou no relato do narrador (em Tur­
gueniev, por exemplo) não é possível na paródia; as vozes na paródia não
são apenas distintas e emitidas de uma para outra, mas se colocam, igual­
mente, antagonisticamente. E por esse motivo que a fala do outro na paró­
dia deve ser marcada com tanta clareza e agudeza. Pela mesma razão, os
projetos do autor devem ser mais individualizados e mais ricos de conteúdo.
E possível parodiar o estilo de um outro em direções diversas, aí introduzin­
do acentos novos, embora só se possa estilizá-lo, de fato, em uma única dire­
ção — a que ele próprio se propusera.
A paródia permite uma variedade considerável. Pode-se parodiar o estilo
do outro como estilo; pode-se parodiar o modo característico de observar,
pensar e falar típico, social ou individualmente. Além disso, a paródia pode
ser mais ou menos profunda: pode-se limitar a parodiar as formas que cons­
tituem a superfície verbal, mas também pode-se parodiar até os princípios
mais profundos da palavra do outro. Ademais, a paródia em si mesma pode
ser empregada de várias maneiras pelo autor: pode ser um fim em si mesma
(por exemplo, a paródia literária como gênero), ou pode servir à realização
de outros fins positivos (como o estilo parodístico de Ariosto ou de Puschkin).
Mas, em todas as variedades de discurso parodístico possíveis, a relação en­
tre o projeto do autor e o da outra fala permanece a mesma: os dois projetos
estão em disputa, são multidirecionais, ao contrário, pois, da orientação
unidirecional de projetos na estilização, no relato do narrador e formas aná­
logas.
Deste modo, a diferença entre o skaz simples e o skaz parodístico é
fundamental. A luta entre dois projetos no skaz parodístico dá lugar ao
aparecimento dos fenômenos lingüísticos extremamente característicos de
que falamos atrás. Se ignorarmos a orientação para a fala do outro no
skaz e, conseqüentemente, sua natureza de voz dupla, nos interditarem os
de com preender as inter-relações complexas em que podem entrar estas
vozes no discurso skaz, quando elas assumem direções diversas. Na lite­
ratura contemporânea, o skaz possui geralmente uma nuance parodística.
O skaz de Zochchenko, por exemplo, é do tipo parodístico. Nas histórias
de Dostoievski, elementos parodísticos de um tipo especial estão sempre
presentes.

4 9 9
L UI Z C O S T A LI MA

O uso da palavra parodística é análogo ao uso irônico ou a qualquer uso


ambivalente das palavras de um outro emissor, ema vez que também nesses
casos as palavras da outra pessoa são empregadas de modo a transmitir pro­
jetos antagônicos. Em nossa fala cotidiana, é extremamente comum este uso
das palavras do outro, especialmente no diálogo, em que, freqüentemente,
um interlocutor repete de modo textual a afirmação de outro interlocutor,
investindo-a de outra intenção e enunciado-a a seu próprio modo: com uma
expressão de dúvida, de indignação, de ironia, de zombaria, de troça ou algo
semelhante,
Leo Spitzer, em seu livro sobre as particularidades da língua italiana, faz
o seguinte comentário: “Quando reproduzimos em nossa própria fala uma
parcela do que disse nosso interlocutor, ocorre, inevitavelmente, uma mu­
dança de tom, quando nada porque mudaram os emissores. As palavras do
‘outro’ sempre soam em nossa boca como algo estranho, freqüentemente com
uma entoação de zombaria, de exagero ou de troça. (...) Gostaria aqui de
notar, especialmente, a repetição engraçada ou irônica do verbo da pergunta
do interlocutor em nossa resposta subseqüente. Assim fazendo, pode-se ve­
rificar como recorremos a construções não apenas gramaticalmente incorre­
tas, mas até muito ousadas e, por vezes, completamente impossíveis, com o
único fito de repetir, de alguma forma, parte da fala de nosso interlocutor,
conferindo-lhe uma distorção irônica.”4
As palavras de um outro, quando introduzidas em nossa fala, assumem
inevitavelmente uma nova significação própria, ou seja, tornam-se palavras
de duas vozes. Só a inter-relação destas duas vozes pode variar. Retomar a
afirmação de outro sob a forma de interrogação já é suficiente para provocar
o choque de duas significações dentro da mesma palavra, pois não apenas
questionamos a afirmativa do outro, mas também a tornamos problemática.
Nossa fala cotidiana está repleta de palavras de outras pessoas. Com algu­
mas delas, nossa voz se funde por completo e esquecemos de quem eram estas
palavras. Noutras, contudo, implantamos nossas intenções diversas, até mes­
mo antagônicas.
Passemos à variedade final do terceiro tipo de discurso. Nas duas varie­
dades precedentes, exemplificadas pela estilização e pela paródia, respecti­
vamente, o autor utiliza de maneira distinta as palavras de outra pessoa para
expressar as suas próprias intenções. Na terceira variedade, a fala do outro
permanece exterior às fronteiras da fala do autor, mas esta fala a leva em
conta e a ela se refere. Aqui, a fala do outro, em vez de ser reproduzida com

5 0 0
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES _ ,„ V . Y '

uma nova significação, exerce sua ação e, de uma maneira ou de outra, de­
termina a palavra do autor, permanecendo fora de suas fronteiras. E esta a
natureza do discurso em uma polêmica secreta e, igualmente, como regra
geral, na réplica de um diálogo.
Na polêmica secreta, o discurso do autor se orienta para seu objeto
referencial, como em qualquer outro discurso, mas, ao mesmo tempo, cada
afirmativa sobre este objeto é construída de modo que, além de seu signifi­
cado referencial, o discurso do autor traga um ataque polêmico contra a fala
de um outro, contra outra afirmativa, referente ao mesmo tópico. Orientada
para seu objeto referencial, a palavra choca-se aqui com a palavra do outro,
no próprio referente. Este segundo enunciado não é reproduzido; é apenas
subentendido, mas toda a estrutura do discurso seria completamente diversa
não fosse esta reação à fala subentendida do outro. Na estilização, o modelo
real produzido, i. e., o estilo do outro, também permanece fora do contexto
do autor, subentendido. Da mesma maneira, na paródia, a fala real, deter­
minada, aquela que é parodiada, é apenas subentendida. Nestes exemplos,
no entanto, a própria fala do autor ou se coloca como a fala do outro
(estilização), ou reivindica a fala do outro como sua (paródia). Em qualquer
dos casos, opera diretamente por meio da fala do outro e o modelo implícito
(a fala real do outro) apenas fornece o material, e funciona como um do­
cumento confirmando que o autor efetivamente reproduz uma fala determi­
nada do outro. Na polêmica secreta, ao contrário, há uma reação à fala do
outro e tal reação não é menos relevante que o próprio objeto de que se fala
para definir a palavra do autor. Isto muda radicalmente a semântica do dis­
curso: ao lado de seu significado referencial, aparece um segundo significa­
do: a orientação para a palavra do outro. Não se pode compreender total e
perfeitamente esta palavra, se tão-somente consideramos sua significação
referencial direta. A coloração polêmica do discurso também se manifesta
por outros aspectos puramente lingüísticos, como a entoação e a construção
sintática.
Traçar uma nítida linha divisória entre a polêmica secreta e a declarada,
em um caso concreto, é tarefa por vezes bastante difícil. Nem por isso, en­
tretanto, as diferenças de sentido entre as mesmas são menos consideráveis.
A polêmica declarada é simplesmente orientada para a fala refutada do ou­
tro, tomando-a como seu próprio objeto referencial. A polêmica secreta, ao
contrário, orienta-se para um objeto referencial qualquer, que nomeia, re­
presenta, exprime, e é desta maneira apenas indiretamente que atinge a fala

50 1
LUI Z COSTA LIMA

do outro, chocando-se com ela, de alguma forma, no próprio referente. Em


conseqüência, a palavra do outro começa a influenciar de dentro a fala do
autor. E por este motivo que chamamos a polêmica secreta de voz dupla,
muito embora a relação das duas vozes seja aqui de tipo especial. O pensa­
mento do outro não entra explicitamente no discurso, aí apenas se reflete,
determinando o seu discurso o seu significado. A palavra sente intensamente
a seu lado a palavra do outro, falando do mesmo objeto, e é esta sensação
que determina a sua estrutura interna.
A fala da polêmica interna — fala que tem consciência da palavra hostil
do outro — é extraordinariamente difundida, tanto no discurso cotidiano,
quanto no discurso literário, e tem uma enorme importância na formação
do estilo. Na fala cotidiana, são exemplos de polêmicas internas todas as
palavras ofensivas e as palavras empregadas como insultos. Esta categoria
ainda inclui qualquer fala que tenha de antemão determinado não se decla­
rar a si mesma, qualquer fala cheia de reservas, concessões, escapatórias e
assim por diante. E a fala que, por assim dizer, se crispa desde que se encon­
tra na presença da, ou pressente a, palavra do outro, a sua réplica, a sua ob­
jeção. O modo individual da construção da fala própria de uma pessoa é, em
um grau considerável, determinada pela sensação pessoal que lhe provocou
a palavra do outro e pelos meios que teve de a ela reagir.
Na fala literária, o significado da polêmica secreta é enorme. Em todo
estilo, propriamente falando, há um elemento de polêmica interna, consis­
tindo a diferença apenas em grau e espécie. Qualquer discurso literário sen­
te, de maneira mais ou menos aguda, seu ouvinte, leitor ou crítico, e reflete
objeções antecipadas, julgamentos, pontos de vista. Ademais, o discurso lite­
rário sente a seu lado outro discurso literário, um outro estilo. O elemento
inerente ao que se chama reação ao estilo literário anterior e que se apresenta
em cada novo estilo é também uma polêmica interna, por assim dizer masca­
rada por uma antiestilização do estilo do outro e, freqüentemente, acompa­
nhada de uma paródia franca daquele. O significado da polêmica interna para
a formação do estilo é especialmente importante nas autobiografias e nas for­
mas do Ich-Erzàhlung do tipo confessional. Basta lembrar as Confessions de
Rousseau.
Análoga à polêmica velada é a réplica no diálogo (supondo-se que o diá­
logo tenha certo peso e substância). Em tal réplica, qualquer palavra, estando
orientada para o objeto, reage intensamente à palavra do outro, responden­
do-a ou antecipando-a. Este aspecto de réplica e antecipação penetra pro­
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

fundamente no enunciado intensamente dialógico. Um enunciado deste tipo


parece sugar, absorver de algum modo as réplicas do outro, reelaborando-as
ativamente. A semântica do discurso dialógico é de tipo totalmente particu-
larizado. Todas as alterações sutis de sentido que ocorrem no calor da troca
dialógica infelizmente ainda não foram estudadas. A consideração do con-
tra-argumento (Gegenrede) provoca mudanças específicas na estrutura do
discurso dialógico: o diálogo torna-se em si mesmo uma arena de ocorrên­
cias e seu próprio tema recebe uma nova luz, nele se descobrindo novos as­
pectos inacessíveis ao discurso monológico.
Especialmente significativo e importante para nossos objetivos subseqüen­
tes é o diálogo velado (que não deve ser identificado à polêmica velada).
Imagine-se um diálogo entre duas pessoas, no qual as afirmativas do
segundo interlocutor sejam suprimidas, mas, de tal forma, que não se per­
ca o sentido em geral. A presença do segundo interlocutor não é mostrada;
suas palavras não aparecem, mas a profunda impressão destas palavras tem
um efeito determinante sobre todos os enunciados do único interlocutor
que na verdade fala. Sentimos que é uma conversa do tipo mais intenso,
porque cada palavra pronunciada, em toda a sua fibra, responde e reage ao
parceiro invisível, referindo-se a algo fora de si mesmo, além de seus limi­
tes, à palavra impronunciada do outro. Nas obras de Dostoievski, este diá­
logo velado ocupa um lugar im portante, sendo extrem am ente sutil e
profundamente elaborado.
A terceira variedade do terceiro tipo, como vemos, difere em grande es­
cala das duas variedades anteriores do mesmo tipo. Podemos chamar a esta
terceira variedade de ativa, distinguindo-a das outras, passivas. Com efeito,
na estilização, no relato do narrador e na paródia, a palavra do outro é total­
mente passiva nas mãos do autor que a usa. Por assim dizer, ele toma a pala­
vra do outro sem proteção, submissa e indefesa, obrigando-a a servir a seus
próprios fins. De forma contrastante, no diálogo e na polêmica velada, a
palavra do outro influencia ativamente a fala do autor, forçando-a a se mo­
dificar por efeito de sua influência e de sua iniciativa.
É, contudo, possível o papel da fala do outro tornar-se mais ativo em
todas as ocorrências da segunda variedade do terceiro tipo. Quando a pa­
ródia sente uma resistência substancial, um certo vigor e profundidade na
palavra que parodia, assume uma nova dimensão de complexidade, pelos
tons da polêmica velada. Esta paródia já “soa” de modo bem diferente: a
palavra parodiada assume uma ressonância mais ativa, resiste ao projeto

50 3
LUI Z COSTA LIMA

do autor. Um processo dialógico se estabelece dentro da paródia. Ocorrem


fenômenos semelhantes também quando o diálogo velado se combina ao
relato do narrador e, em geral, em todas as manifestações do terceiro tipo,
sempre que existe uma diferença de orientação entre as aspirações do ou­
tro e as do autor.
Quando se dá um decréscimo na objetivação da palavra do outro (sendo a
objetivação, como sabemos, um traço inerente, em maior ou menor grau, ao
terceiro tipo), em todos os exemplos do discurso unidirecional (estilização, rela­
to do narrador unidirecional) ocorre uma fusão entre a voz do autor e a voz do
outro. A distância entre as duas se perde; a estilização transforma-se em estilo; o
narrador se converte em uma simples convenção composicional. No caso do
discurso multidirecional, a diminuição da objetividade e o aumento correspon­
dente da atividade das aspirações próprias à palavra do outro levam inevitavel­
mente à dialogação interna do discurso. Em tal discurso, o pensamento do autor
já não mantém sua influência dominante sobre o pensamento do outro; perde
seu autocontrole e certeza, torna-se inquieto, internamente indeciso e ambíguo.
Sua fala não é apenas de voz dupla, mas também de duplo acento. Seria difícil
dizê-la em voz alta, porque qualquer enunciação real supermonologizaria esta
fala, sem fazer justiça ao outro pensamento nela incluso.
Esta dialogação interna, ligada à diminuição de objetivação nas variantes
multidirecionais do terceiro tipo, não constitui, certamente, uma nova cate­
goria daquele tipo. E apenas uma tendência própria a todas as ocorrências
do tipo em questão (contanto que ele seja multidirecionalmente orientado).
No seu limite, esta tendência leva a um estilhaçamento do discurso de voz
dupla em duas falas, em duas vozes inteiramente separadas e autônomas.
Inversamente, a tendência própria às variantes do discurso unidirecional,
dando-se uma diminuição na objetivação da palavra do outro, leva, em seu
limite, a uma fusão completa das vozes e, conseqüentemente, a um discurso
do primeiro tipo de uma única voz.
Todas as ocorrências do terceiro tipo flutuam entre estes limites.
De nenhum modo exaurimos todas as incidências possíveis do discurso de
voz dupla ou todos os meios possíveis de orientação com respeito à fala do
outro, que dá uma nova complexidade à orientação referencial da fala normal.
Seria possível uma classificação mais profunda e requintada, com uma enume­
ração mais ampla de variedades, e até mesmo de tipos. Contudo, tendo em
vista nossos objetivos, a classificação apresentada nos parece suficiente. Segue-
se a sua representação esquemática.

5 0 4
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM S U A S F O N T E S — VOL. 1

A classificação que esboçamos abaixo traz naturalm ente um caráter


puramente abstrato, conceituai. Um exemplo discursivo concreto pode
pertencer simultaneamente a diferentes variedades e, até mesmo, a dife­
rentes tipos. Também as relações com a fala do outro, em um contexto
concreto, contínuo, não têm caráter estático, mas sim dinâmico. A rela­
ção de vozes no discurso pode mudar profundam ente: elocuções uni-
direcionais podem -se transform ar em m ultidirecionais; a dialogação
interna pode-se tornar mais forte ou mais fraca; um tipo passivo pode-se
ativar, e assim por diante.

1. Discurso direto, orientado imediatamente para seu objetivo referencial,


como a expressão da instância suprema de significação do sujeito falante.

2. Discurso objetivado (a fala de uma pessoa representada).

1. Com predominância de deter­


minações sociotípicas.
2. Com predominância de deter- i Vários graus de objetivação.
minações individualmente ca­
racterísticas.

3. Discurso orientado para a fala do outro (discurso de voz dupla).

1. Variantes unidirecionais
a. Estilização.
b. Relato do narrador.
No caso de diminuição da obje­
c. Fala não objetivada de um
tivação, essas variantes tendem à
personagem que realiza,
fusão de vozes, i. e., tendem ao
em parte, os projetos do
primeiro tipo de discurso.
autor.
d. Icb-Erzãhlung.

50 5
LUI Z COSTA LIMA

2, Variantes multidirecionais
a. Paródia em todas as suas
graduações.
b. Narração parodística. No caso de diminuição da objeti­
c. Ick-Erzãhlung parodístico. vação e da ativação do pensamen-
d. Fala de um personagem / to do autor, essas variantes en­
representado parodistica- tram em diálogo interior e ten­
mente. dem a se dividir em duas palavras
e. Qualquer relato de outra (duas vozes) do primeiro tipo.
pessoa com um acento al­ %

terado.

3. Tipo ativo (fala do outro re­


fletida)
a. Polêmica velada, interna. A fala do outro age de dentro;
b. Autobiografia e confissão as formas de relação entre as
polemicamente coloridas. <( duas vozes podem variar ampla­
c. Qualquer fala consciente mente e diferentes são os graus
da fala do outro. de sua influência deformante.
d. A réplica no diálogo.
e. Diálogo velado.

O plano da investigação de discurso que propusemos, com seu ponto focal


na relação de uma fala com outra, tem, segundo acreditamos, um significado
excepcionalmente importante para a compreensão da prosa artística. O dis­
curso poético, no sentido estrito, exige a uniformidade de todas as palavras,
sua redução a um denominador comum, sendo este, quer do discurso do
primeiro tipo, quer de certas variedades diluídas dos outros tipos. E claro
que podem existir obras poéticas nas quais nem todo o material da fala é
reduzido a um denominador comum, mas estes casos constituem ocorrências
raras, como, por exemplo, a lírica “prosaica” de Heine, Barbier, Nekrassov e
outros. Uma das peculiaridades essenciais da ficção em prosa é a possibilida­
de que ela abre de se empregarem diferentes tipos de discurso, mantendo
intacta, ao plano de uma obra isolada, a sua distinta expressividade, sem a
redução a um denominador comum. Aqui, reside uma profunda diferença
entre o estilo em prosa e o estilo em poesia. Mesmo na poesia, no entanto,
toda uma série de problemas cruciais não pode ser resolvida sem que se con-

50 6
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

sidere o sistema de investigação aqui proposto, porquanto tipos diferentes


de discurso exigem, em poesia, um tratamento estilístico diferente.
A estilística contemporânea, que ignora este plano de investigação, é efeti­
vamente a estilística do primeiro tipo de discurso apenas, isto é, da fala direta
pertencente ao autor e orientada para o referente. A estilística contemporânea,
que se enraíza na poética do neoclassicismo, não conseguiu, até o momento,
abandonar as normas e esquemas neoclássicos. A poética neoclássica era orien­
tada para o discurso intencional direto e de uma só voz, inclinando-se de certo
modo para a fala convencional e estilizada. O discurso semiconvencional, semi-
estilizado é o que dá o tom na poética clássica. E, até hoje, a estilística tem toma­
do como sua orientação exatamente esta fala direta semiconvencional, que, na
verdade, ela identificou com a fala poética per se, Para o classicismo, o que existe
é a palavra da língua; as palavras que não pertencem a ninguém, as palavras
reificadas, entram no léxico poético e, do tesouro da língua poética, esta palavra
passa diretamente para o contexto monológico de um enunciado poético dado.
Assim, alimentada de classicismo, a estilística reconhece tão-só a existência e a
viabilidade de um discurso em um contexto fechado. Ignora as transformações
que surgem em um discurso quando passa de um enunciado concreto para ou­
tro e quando estes enunciados se orientam um em relação ao outro. Reconhece
apenas as mudanças que se originam quando as palavras mudam de um sistema
da língua para um enunciado monológico poético. Presume-se que a viabilidade
e a função das palavras no estilo do enunciado concreto constituam a face visí­
vel de sua viabilidade e de sua função no sistema da língua. Ignora-se a relação
dialógica interna que possa existir entre uma palavra em um contexto e a mesma
palavra no contexto de outra fala, nos lábios de outra pessoa. E dentro deste
quadro que a estilística tem operado até agora.
O romantismo trouxe consigo palavras diretas, de sentido pleno, sem
nenhuma inclinação para a convencionalidade. O romantismo se carac­
teriza pela fala direta do autor, expressiva ao ponto de se esquecer de si
mesma, sem qualquer refração pelo meio verbal do outro. Na poética
romântica, concedia-se uma importância considerável às variantes da se­
gunda categoria e, particularmente, à última variante do terceiro tipo,5
mas, de todo modo, o discurso diretamente expressivo, levado a seu limi­
te — discurso do primeiro tipo — a tal ponto dominava que, no terreno
do romantismo, não se podiam produzir mudanças fundamentais do ponto
de vista de nosso problema. Neste aspecto, a poética do classicismo foi
muito afetada. Além do mais, a estilística contem porânea está longe de
bastar, até mesmo para tratar do romantismo.

5 0?
LUI Z COSTA LIMA

A ficção em prosa, especialmente o romance, é por completo inaces­


sível a esta estilística. Ela não pode ser aplicada com êxito senão em pe­
quenos setores da arte da prosa, os que são para a prosa os m enos
característicos e menos cruciais. Para o prosador, o m undo se m ostra re­
pleto de palavras dos outros; orienta-se entre elas e necessita ter um ou­
vido arguto para perceber e identificar suas características. Deve in ­
corporá-las no nível de sua própria fala, mas, de tal modo, que este nível
não seja destruído.6 Trabalha com uma palheta verbal muito rica e utili-
za-a excepcionalmente. E nós, quando lemos uma obra em prosa, tam ­
bém devem os nos orien tar m uito sutilm ente en tre todos os tipos e
variedades de discurso acima analisados. Além de tudo, até na vida coti­
diana, esta mesma sensibilidade nos permite escutar distintam ente todas
essas nuances da fala das pessoas à nossa volta; e nós mesmos trabalha­
mos com essas cores de nossa palheta verbal. Estamos prontos a detectar
o mais imperceptível desvio de entoação, o mais ligeiro contraponto de
vozes em qualquer coisa de interessante que outra pessoa nos diz, no co­
mércio comum da vida. Todos esses relances verbais, reservas, derivati­
vos insinuações, impulsos, não escapam à nossa audição, e não são alheios
ao nosso próprio uso. E isso ainda torna mais surpreendente o fato de
que, até agora, toda esta situação não tenha encontrado um conhecimen­
to teórico bem determinado, uma avaliação devida. Em teoria, analisa­
mos apenas a relação estilística de elementos dentro de uma mensagem
fechada, de encontro a um fundo de categorias lingüísticas abstratas. Ape­
nas estes fenômenos de uma só voz estão ao alcance daquela estilística
lingüística superficial que até agora, a despeito de to d o o seu valor
lingüístico, foi capaz de registrar na criação literária apenas os traços e os
depósitos deixados na periferia verbal das obras por objetivos literários
que ela ignora. A natureza realmente viva do discurso na prosa não é aces­
sível a este quadro; ele é mesmo muito estreito para a poesia.
O problema da orientação da fala para um enunciado do outro tem, tam­
bém, um significado sociológico da mais alta ordem. A fala é, por sua natureza,
social. A palavra não é um objeto tangível, mas um meio sempre móvel e alterá-
vel de comunicação social. Nunca remete a uma única consciência, a uma única
voz. Seu dinamismo consiste em passar de um falante para outro, de um contex­
to para outro, de uma comunidade social para outra, desta para aquela geração.
Através deste dinamismo, a palavra não esquece sua via de transferência e não

5 0 8
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

pode se libertar, completamente, do poder que têm sobre ela os contextos con­
cretos em que entrou. De maneira alguma ocorre que cada membro da comuni­
dade de falantes aprenda a palavra como um elemento neutro da língua, livre
das intenções e desabitada das vozes de seus usuários anteriores. Pelo contrário,
ele recebe a palavra de um outro e conduzida pela voz do outro. A palavra entra
no seu contexto a partir de outro contexto, permeada pelas intenções de outros
falantes. Seu próprio pensamento já encontra a palavra ocupada.
Deste modo, a orientação da palavra entre as palavras, a sensação diver­
sa provocada pela palavra do outro e pelos diferentes meios de reagir a ela,
talvez constituam os problemas mais cruciais da sociologia do uso da lingua­
gem, de qualquer tipo de uso da linguagem, inclusive o artístico. Cada grupo
social, em cada período histórico, tem sua própria percepção individual da
palavra, seu próprio diapasão de possibilidades verbais. De nenhum modo a
instância de significação do artista pode ser sempre expressa em uma fala
direta, a escapar de toda refração, de toda convenção. Quando não se tem
sua própria “palavra definitiva”, qualquer projeto criador, qualquer pensa­
mento, sentimento ou experiência deve-se refratar através do meio consti­
tuído pela palavra do outro, pelo estilo do outro, pela outra maneira, com o
qual é impossível fundir-se diretamente e sem reservas, sem distância e refra­
ção. Se um dado grupo social tem à sua disposição um meio de refração dotado
de autoridade e decantado, dominará o discurso convencionalizado em uma
de suas variedades. Se um tal meio não existe, preponderará então o discur­
so multidirecional, de voz dupla: a fala parodística em todas as suas varieda­
des ou um tipo especial de fala semiconvencionalizada, semi-irônica (a do
final do classicismo). Nestes períodos, especialmente, quando o discurso
convencionalizado é o preponderante, a fala direta, sem reservas e não re-
fratada, aparece como uma palavra bárbara, rude e selvagem. A fala culta é a
fala refratada através do meio canônico e dotado de autoridade.
Qual o tipo de discurso que domina em um certo período, em uma certa
situação social, quais são as formas de refração da fala e o que serve como
meio de refração — todas essas questões têm a maior importância para a
sociologia da palavra artística.

Tradução
L u iz a L o b o

5 0 9
Notas

1. A classificação de tipos e variedades de discurso oferecida abaixo não contém exem­


plos, uma vez que o capítulo seguinte apresenta um extenso material a partir das
obras de Dostoievski para cada caso discutido.
2. Boris Eikhenbaum comenta com muito acerto, mas de um ponto de vista diverso,
esta peculiaridade da narração de Turgueniev: “Extremamente desenvolvida é a
forma na qual o autor motiva a introdução de um narrador especial a que se confia
o cuidado da narração. Entretanto, com muita freqüência, esta forma tem um ca­
ráter totalmente convencional (como em Maupassant ou Turgueniev), atestando
apenas a vitalidade da tradição do narrador como personagem especial na histó­
ria, Nestes casos, o narrador permanece o mesmo que o autor e o motivo de sua
introdução desempenha o papel de uma simples entrada no assunto” (Boris
Eikhenbaum, Literatura: teoriia, kritika, polemika, Leningrado, 1927, p. 217).
3. Inicialmente, no artigo “Kak sdelana ‘Chiniel’” (“Como se fez O capote”) na cole­
ção Poétika (1919). Depois, particularmente, no artigo “Lesskov i sovremennaia
proza” (“Leskov e a prosa contemporânea”), ibid., p. 210 ss.
4. Leo Spitzer, Italienische Umgangssprache (Leipzig, 1922), pp. 175-176,
5» Em virtude de seu interesse pelos costumes de um povo (não como uma categoria
etnográfica), o romantismo deu uma enorme importância para as diferentes for­
mas de skaz enquanto ele refrata a palavra do outro como tipo social e como ca­
racterização individual. Para o classicismo, a “fala folclórica” (no sentido de outro
tipo de fala típica social e individualmente) constituía uma fala puramente objetivada
(nos gêneros baixos). Entre as variantes do terceiro tipo, o Ich-Erzaeblung polêmi­
co (particularmente o tipo confessional) foi especialmente importante no roman­
tismo,
6, A maioria dos gêneros de prosa, particularmente o romance, são gêneros constru­
tivos: seus elementos são enunciados inteiros, embora estes enunciados não sejam
plenamente qualificados de direito e se subordinem à unidade monológica.

5 l 0
cap ítu lo 16 O dominante
R O M A N JA KO BSO N

Originalmente escrito em tcheco» como conferência pronunciada na Universidade Masaryk,


em Brno, na primavera de 1935. Esta tradução é feita de acordo com a versão em inglês, “The
Dominant”, in Readings in russian poetics, L. Matejka e K. Pomorska (eds.)» The MIT Press,
Cambr., Mass. 1971.
Os direitos da tradução foram graciosamente cedidos pelo autor.

5 1 1
Os três prim eiros estágios da pesquisa formalista foram sumariamente
caracterizados do seguinte modo: (1) análise dos aspectos fônicos do tra­
balho literário; (2) os problemas de significado no interior da tram a da
poética; e (3) integração de som e sentido num todo inseparável. Neste
último estágio, a idéia de dominante revelou-se muito útil; foi uma das
mais centrais e profícuas noções dentre as elaboradas pela teoria formalista
russa. Pode-se definir o dominante como sendo o centro de enfoque de
um trabalho artístico: ele regulamenta, determina e transform a os seus
outros componentes. O dominante garante a integridade da estrutura. E
ele que torna específico o trabalho. O traço típico da linguagem “conti­
da” é obviamente seu padrão prosódico, a escrita em verso. Poderia pare­
cer que isto é uma simples tautologia: o verso é o verso. No entanto,
devemos nos lembrar constantemente de que o elemento que torna espe­
cífica uma determinada variedade de linguagem domina a estrutura toda
e assim sendo atua como seu constituinte obrigatório e inescapável, do­
minando todos os elementos e exercendo influência direta sobre cada um
deles. Por sua vez, o verso não é apenas um conceito simples nem uma
unidade indivisível. Ele é em si um sistema de valores; e como em todo
sistema de valores ele detém uma hierarquia própria na qual existem va­
lores superiores e inferiores e um valor primeiro entre todos, o dom inan­
te, sem o qual (no interior da trama de um dado período literário e uma
determinada vertente artística) o verso nem pode ser concebido nem ava­
liado como verso. Na poesia tcheca do século XIV, por exemplo, a carac­
terística maior do verso não era o esquema silábico, mas a rima, pois havia
poemas com números diferentes de sílabas por versos (os chamados ver­
sos “desmedidos”) que eram, apesar disto, aceitos como versos, ao mes­
mo tempo em que os versos não rimados não eram tolerados. Em con­
trapartida, na poesia tcheca realista da segunda metade do século XIX, a

5 13
LUI Z COSTA LIMA

rima se mostrava dispensável, ao passo que o esquema silábico aparecia


como componente obrigatório e sem o qual o verso não era verso; para
esta escola, o verso livre era algo tão inaceitável quanto a arritmia. Na
atualidade, nem o padrão silábico nem o padrão de rima são considera­
dos obrigatórios para o verso; pelo contrário, o com ponente obrigatório
é uma integridade de entonação: a entonação passa a ser o dominante do
verso. Se estabelecêssemos comparações entre o verso medido e regular
da antiga Aleandríada tcheca, os versos rimados do período realista e o
verso rimado e medido da atualidade, observaríamos que nos três casos
os mesmos elementos (rima, esquema métrico e unidade entonacional)
estariam presentes, mas que haveria uma diferença na hierarquia de valo­
res, com obrigatoriedades específicas diversas e mudança dos elementos
considerados indispensáveis. A posição destes elementos específicos de­
term ina o papel e a estrutura dos demais componentes.
O dominante pode ser estudado não apenas no trabalho poético de um
artista isolado, de um dado cânone poético ou entre as normas de determi­
nada escola poética, mas também na arte de uma época, então encarada
como um todo particular. É evidente, por exemplo, que na arte da Renas­
cença o dominante, o cume dos critérios estéticos do tempo, estava nas artes
visuais. Outras artes orientavam seus próprios caminhos na direção das artes
visuais e eram valorizadas de acordo com a proximidade que alcançavam
em relação ao objetivo que visavam. Por outro lado, na arte do Romantis­
mo, o valor supremo esteve no terreno da música. Assim, a poesia rom ân­
tica também se orientou na direção da música: a poesia romântica é dirigida
para a música, seu verso se concentra no musical, com uma entonação que
procura imitar a melodia musical. O foco sobre o dominante — dado que
é na realidade externo ao trabalho poético — altera substancialmente a
estrutura do poema no que concerne à tessitura sonora, à estrutura sintáti­
ca e elenco de imagens; altera também os critérios métricos do poema, sua
composição e distribuição de suas estrofes. Na estética realista o dominan­
te era a arte verbal e a hierarquia dos valores poéticos modificou-se em
coerência com isto.
'« Acrescente-se que na medida em que tomamos o conceito de dominante
como ponto de partida, a definição de um trabalho artístico em comparação
com outras séries de valores culturais sofre modificações substanciais. Por
exemplo, a relação entre o trabalho poético e outras mensagens verbais ad<

5 14
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 1

quire uma demarcação mais nítida. Considerar o trabalho poético equiva­


lente a uma função estética ou, mais precisamente a uma função poética,
enquanto lidamos com matéria verbal, é algo que caracteriza as épocas em
que se exalta a “arte pura”, a arte auto-suficiente, o princípio da “arte pela
arte”. Em seus primeiros passos, a escola formalista ainda conservava alguns
traços típicos desta tendência. Mas esta é uma tendência indiscutivelmente
equivocada: o trabalho poético não se confina exclusivamente à função poé­
tica; ele contém muitas outras funções além desta. Com efeito, as intenções
de um trabalho poético freqüentemente mantêm uma relação de estreita
proximidade para com a filosofia, a didática social etc. Assim como um tra­
balho poético não se encerra em sua função estética, as funções estéticas não
se limitam ao trabalho poético; o discurso de um orador, a conversação cor­
riqueira, os artigos de jornal, os anúncios, um livro científico —■todos podem
conter considerações estéticas, expressar uma função estética e freqüen­
temente lidam com as palavras valorizando-as em si, para além de sua fun­
ção referencial.
Em direta oposição ao ponto de vista monístico rígido, está a visão
mecanicista, que reconhece a multiplicidade das funções de um trabalho
poético e o considera (intencionalmente ou não) como um aglomerado me­
cânico de funções. Uma vez que o trabalho poético tem também uma função
referencial, alguns defensores do segundo ponto de vista às vezes o conside­
ram como sendo um documento da história cultural, das relações sociais, da
biografia. Contrastando com o monismo e o pluralismo unilaterais, há um
ponto de vista que associa uma consciência das múltiplas funções dos traba­
lhos poéticos com uma compreensão de sua integridade, quer dizer, da fun­
ção que lhe confere unidade e lhe é sobredeterminante. Segundo tal ponto
de vista, um trabalho poético não pode ser considerado como cumpridor de
uma função estética apenas, ou de uma função estética associada a outras
funções; o trabalho poético se diria então uma mensagem verbal que tem na
estética a sua função dominante. Evidentemente os sinais que apontam para
a instrumentalização da função estética nem são imutáveis e nem sempre uni­
formes. Cada cânone poético concreto, cada série temporal de normas poé­
ticas — por sua vez —■compreende elementos específicos e indispensáveis
sem os quais o trabalho não pode ser identificado como poético.
A definição da função estética como sendo o dominante num trabalho
poético nos permite determinar a hierarquia das diversas funções lingüísti­
cas que ocorrem no trabalho poético. Na função referencial o signo tem uma

5 1 5
LUI Z COSTA LIMA

conexão interna mínima com o objeto designado, pelo que o signo como tal
se reveste de importância mínima; por seu turno, a função expressiva exige
uma relação mais íntima e direta entre signo e objeto e, portanto, requer maior
atenção para com a estrutura interna do signo» Em comparação com a lin­
guagem referencial, a linguagem emotiva — que desempenha primariamen­
te uma função expressiva — costuma estar mais próxima da linguagem poética
(que visa precisamente ao signo como tal). As linguagens poética e emotiva
freqüentemente se superpõem, razão pela qual são também freqüentemente
tomadas uma pela outra. Se numa mensagem verbal a função dominante é a
estética, tal mensagem pode, com certeza, utilizar muitos instrumentos da
linguagem expressiva; mas todos estarão submissos à função decisiva do tra­
balho, isto é: deixam-se transformar pelo dominante.
As pesquisas referentes ao dominante tiveram resultados importantes para
a visão formalista da evolução da literatura. No caso da evolução da forma
poética, não se trata apenas do aparecimento e da extinção de determinados
elementos, mas também de desvios nas relações mútuas entre os diversos
componentes do sistema; em outras palavras, desvios do dominante. Consi­
derada uma série de normas poéticas •— ou, mais especificamente, uma série
de normas poéticas válidas para determinado gênero poético —■,vemos que
elementos que inicialmente apareciam como secundários passam a essenciais
e primários. Por outro lado, elementos que apareciam como dominantes
passam a subsidiários e opcionais. Nos primeiros trabalhos de Chklovski,
definia-se o trabalho poético como simples soma de recursos artísticos e o
evoluir do poético aparecia como sendo apenas a substituição de alguns des­
ses recursos. Com o ulterior desenvolvimento do formalismo, surgiu a con­
cepção precisa do trabalho poético como sistema estruturado, uma série
regular e hierarquicamente ordenada de recursos artísticos. A evolução poé­
tica é um desvio nesta hierarquia. A hierarquia dos recursos artísticos se
modifica dentro da trama de um gênero poético determinado; mais: a modi­
ficação altera a hierarquia dos gêneros poéticos e simultaneamente a distribui­
ção dos recursos artísticos entre gêneros. Gêneros que apareciam inicialmente
como vias secundárias, variantes subsidiárias, aparecem agora na linha de
frente, enquanto gêneros tidos como canônicos passam para a retaguarda.
Vários trabalhos da escola formalista tratam períodos da história da literatu­
ra russa sob este ponto de vista. Gukovski analisa a evolução da poesia no
século XVIII; Tinianov e Eikhenbaum, juntamente com alguns discípulos
estudam a evolução da prosa e da poesia russas na primeira metade do sécu­

5 16
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOL. 1

lo XIX; Viktor Vinogradov estuda a evolução da prosa russa a partir de Gogol;


Eikhenbaum estuda a evolução da prosa de Tolstoi em comparação com a
prosa russa e européia moderna. A imagem da história da literatura russa se
modifica substancialmente; torna-se incomparavelmente mais rica e mais
monolítica, mais sintética e ordenada do que o eram os membra disjecta do
círculo erudito literário de antes.
Mas os problemas da evolução não se limitam à história literária. Surgem
também questões relativas a alterações das relações entre artes individuais e
neste aspecto o exame acurado de regiões de transição é particularmente fértil;
por exemplo, uma análise da região de transição entre pintura e poesia —
como é o caso da ilustração — ou uma análise da região limítrofe entre música
e poesia como na romança.
Finalmente, o problema das modificações nas alterações mútuas entre as
artes e outros domínios culturais próximos entre si aparece especialmente
no que concerne às relações entre a literatura e outros tipos de mensagens
verbais. Aqui, a instabilidade dos limites, a alteração de contexto e de exten­
são em setores individuais, parece especialmente elucidativa. Os gêneros
transicionais mostram um interesse especial para os pesquisadores. Em cer­
tos períodos eles foram considerados extraliterários e extrapoéticos enquanto
em outros podem preencher importantes funções literárias, por conterem
elementos que logo virão a ser exaltados pelas “belas letras”, ao mesmo tem­
po em que as formas literárias canonizadas não contam com eles. Esses gêne­
ros transicionais são, por exemplo, as várias formas de littérature intime —
cartas, diários, anotações, narrativas de viagens etc. — que em certas fases
(como na literatura russa da primeira metade do século XIX) cumprem pa­
pel de destaque entre os valores literários.
Em outras palavras, desvios contínuos no sistema de valores artísticos
levam a desvios contínuos na avaliação de diferentes fenômenos artísticos.
Valores que, segundo o ponto de vista de um sistema velho, eram tidos como
desprezíveis ou considerados imperfeitos, matéria de diletantes, aberrações
ou pura e simplesmente erros, heresias ou sinal de decadência podem apare­
cer, à luz de um sistema novo, como valores totalmente positivos. Os versos
dos poetas (líricos do romantismo russo tardio) Tiutchev e Fet foram criticados
pelos críticos realistas que neles viram erros, descuido etc. Turgueniev, que
publicara esses versos, corrigiu seu ritmo e estilo para melhorá-los e ajustá-
los à norma vigente. A edição que daí resultou passou a ser a versão canônica
e somente na modernidade os textos originais foram reabilitados e reconhe­

5 17
LUIZ COSTA LIMA

cidos como um passo inicial na direção de uma nova forma poética. O filólogo
tcheco J. Král rejeitou os versos de Erben e Celakovski, considerando-os
errados e ultrapassados — segundo o ponto de vista da escola realista —
enquanto a modernidade exalta esses mesmos versos precisamente por cau­
sa daquelas características em nome das quais haviam sido condenados pelo
cânone realista. O trabalho do grande compositor russo Mussorgski não
correspondia às exigências da instrumentalidade musical vigente no final do
século XIX e Rimski-Korsakov, mestre contemporâneo da técnica de com­
posição, remodelou-os segundo o gosto que à época prevalecia; a nova gera­
ção, no entanto, recuperou os valores rebeldes decorrentes da ausência de
sofisticação de Mussorgski suprimindo os retoques de Rimski-Korsakov de
composições como o “Boris Godunov”, por exemplo.
O desvio e a transformação das relações entre componentes artísticos
individuais passaram a ocupar um lugar central nas investigações formalistas.
N o campo da linguagem poética essas investigações dem onstraram uma
importância que se estendeu à pesquisa lingüística em geral por haver in­
troduzido maneiras de superar e resolver os hiatos entre o método histórico
diacrônico e a sincronia do corte transversal no tempo. A pesquisa formalis­
ta demonstrou claramente que o desvio e as modificações não são meramen­
te dados históricos (primeiro havia A, depois A l apareceu em seu lugar), mas
sim que o desvio é também um fenômeno sincrônico de experiência direta,
um valor artístico altamente relevante. O leitor de um poema ou quem
contempla um quadro tem vividamente em seu espírito a presença de duas
ordens: o cânone tradicional e a novidade artística que é um desvio em re­
lação a ele. E contra a base de tal tradição que se concebe a renovação. Os
estudos formalistas trouxeram à luz o fato de que este simultâneo manter a
tradição e fugir dela compõem a essência de todo novo trabalho artístico.

Tradução
J o r g e W anderley

5 1 8
índice de nomes

Abrams, M. H., 194, 262, 273, 290 Auerbach, E., 379-380, 385
Abusch, A., 190 Auerbach, S., 196
Adorno, Th. W, 171, 182
Agostinho, sto., 65, 213 Baader, R X. v, 158, 192
Akhmatova, A., 446 Bach, E., 314
Alighieri, v. Dante Bachelard, G., 279
Alonso, D., 317,337-338,340,379-388, Bacon, R, 120, 132
390, 393-396, 397-400, 403-405, Baeumler, A., 194
408,428,451 Baggesen, 194
Ambrogio, L, 269, 290, 443, 445-446, Bakhtin, M. M., 271-273,283,290,487
449, 450-454 Bally, CL, 379,382,418,422,425,454
Amoretti, G. V, 195 Balzac, H. de., 47
Antoine, G., 44, 54 Banville, Th., 44
Apel, K.-O., 95 Barbier, 506
Apollinaire, G., 51, 57-58 Barck, K., 193
Aragon, L., 48, 53, 56 Barilli, R., 445, 457
Ariosto, 386, 400, 499 Barrère, J.-B., 182
Aristóteles, 4 0 ,1 0 5 ,1 6 6 ,2 0 1 ,2 5 5 -2 6 0 , Barthes, R., 8 6 ,2 1 8 ,2 2 6 ,2 7 6 ,2 9 0 ,4 4 3
288, 290, 439-440 Basch, V, 263, 290
Arrivé, M., 457 Bassenge, R, 171, 457
Artaud, A., 52, 240, 243, 245 Batiuchkov, 479, 481
Assézat-Tourneux, 183 Batteux, 116-119, 157-158, 183
Assis, M. de, 93, 287 Baudelaire, CL, 44, 49, 55, 414, 436
Ast, A., 70 Bauer, G., 193-194
Asturias, M. A., 57 Baumgártner, K., 166, 4 45, 4 4 7 -4 4 8 ,
Aubin, 187 450, 452, 456-457
Auer, A., 196 Báumler, A., 111, 181-182

5 19
LUIZ COSTA LIMA

Bayerdãrfer, H.-R, 456 Boite, J., 337


Becker, R. Z.3 195 Bonnefoy, I., 50, 57
Beckett, S., 240, 243 Bonno, G., 197
Beckmann, J., 128-130, 131, 138, 142, Booth, W. C., 282, 290
182, 184, 186 Bordona, D., 339
Beckson, K., 291 Bormann, C. v., 95
Bécquer, G. A,, 332, 339 Born. B. de, 405
Beer, R., 394 Bousono, C., 332
Beke, V., 54 Braemer, E., 135, 182, 185
Belinski, V. G., 157, 192 Braunreuther, K., 188-189
Belleau, R., 375 Bray, R., 183
Benjamin, W , 7 , 9 9 ,1 1 2 ,1 1 5 ,1 3 6 ,2 1 4 - Brecht, B., 99-100, 102, 115, 181-182,
2 1 5 ,2 1 9 1 9 5 ,4 5 2
Bense, M., 44, 55 Bremond, a., 48
Berger, B., 337 Brentano, C., 173, 196
Berger, P., 56 Bresson, 44, 55
Bergson, H .3 417, 445 Breton, A., 47, 52
Berhardi, A. R, 468 Brik, O., 430-431, 433-434, 444, 446,
Bernal, J.5 169, 184 448-449, 453-455
Bernstein, S., 424, 439, 456 Briusov, V, 415, 454, 462
Bertuch, 126 Brooks, CL, 256, 290, 361
Beuchot, A., 185 Brunetière, R, 263-264, 267, 290
Bieli, A., 415, 417, 435, 443, 462 Brunot, R, 188
Bierwisch, M., 447-448 Bubner, R., 95
Binnick, R. I., 314 Buffon, G.-L. L., 43
Bion, W. R., 244, 251 Bühler, K., 456
Black, M., 57 Burmeister, B., 185
Blanchot, M., 240, 251
Bloch, B., 302 Campe J. H., 126, 184
Bloomfield, L., 301 Campo, A. dei, 337
Blumenberg, H., 183 Camus, A., 240
Boaventura, são, 132 Cândido, A., 2 219
Boccaccio, 281 Caramuel, 320, 323
Boehm, G., 94 Casa, delia, 397
Bofill, 339 Castelvetro, L., 260
Bohannan, L., 286, 290 Castillejo, C. de, 330, 339
Boileau, N ., 26, 157, 260-261, 290 Castro, E. V. de, 35, 61

520
TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VO L, 1

Celakovski, 518 C outinho, A., 9


Cervantes, M. de, 381 Creuzer, 373
Chapelain, J., 118 Croce, B., 2 6 4 -2 6 6 ,2 6 8 ,2 7 4 ,2 8 8 ,2 9 1 ,
Chardieu, 109 344, 382, 386, 414, 418, 428, 445,
Chateaubriand, F.-R., 178, 197, 240 449
Chatman, S., 304, 315-316, 447 Cruz, San J. de la, 379, 383-384, 386,
Chénier, A., 396 397

Cherry, E. C., 450 cummings, e. e., 305


Chevalier, J. C., 52, 61 Curtius, E. R., 337, 382, 386-387
Chevirev, 479-480
Chklovski, ¥ B., 47, 54, 269, 271-272, D ’Alembert, 121, 125, 216, 130, 137,
290, 416-417, 419-420, 422, 426, 183
429-431, 440, 444-445, 447, 449, D 5Aubignac, 47
451-453, 455, 457, 464, 478, 481^ Dahnke, H.-D., 191
482, 485 Daniel, M. L., 205, 218
Chladenius, J. A., 66 Dannhauser, J., 65
Chomsky, N ., 43 D ante, A., 259, 290, 330, 385-386, 390
Chouillet, J., 181-182, 184 Darwin, Ch., 263
Christiansen, B., 420, 450 Daumal, 143
Claudel, P., 48 De Maistre, J., 26
Clément, 186 De Sanctis, F., 384
Clérambault, G. G. de, 243 Deleuze, G., 204, 216, 219
C ohen, J., 39, 47-48, 52, 54-56, 434, Derrida, J., 246
455 Derry, T. K., 183
Cohen, R., 291 Descartes, R., 18, 299
Colbert, 106 Desnos, R., 47, 56
Coleridge, S. T., 265 Dibelius, 382
Colet, L., 56 Dickens, Ch., 280
Collingwood, R. G., 85 D id ero t, D., 121-126, 130-131, 135,
Condillac, 110, 182 137-138, 146, 158, 170, 183-184,
Consiglio, C., 339 186
Corneille, P, 168, 170 Dilthey, W , 6 7 -6 8 ,7 0 ,7 3 -7 4 ,84-85395,
Coseriu, E., 285-286, 290, 452, 457 385
Costa Lima, L., 7, 9, 63, 97, 181, 212, Dmitriev, I. I., 485
219, 249, 253, 289, 337, 396 Dmitrizev, 479
Courier, P. L., 386 Dohm , Ch. W., 148, 189
Courtenay, B. de, 418, 424, 445, 469 D o n n e ,]., 344, 3 9 8 ,4 0 0

52 1
LUI Z COSTA LIMA

Dorfles, G., 458 Fet, A. A., 517


Dostoievski, 47, 381, 495, 497, 498- Fichte, 158
4 9 9 ,5 0 3 ,5 1 0 Figge, IL L., 452, 457
Dresdner, A., 106, 181 Firbas, J., 310, 315
Drubig, B., 315 Firth, J. R., 303
Dryden, J., 260-261, 291 Flaubert, G., 4 3 ,4 6 -4 7 ,5 9 ,6 0 ,2 3 9 ,2 4 0
Du Bellay,J., 55, 360, 398 Flitner, 187
Du Bos, a., 107-110 Floresta, H., 180
Duchet, C., 52, 61 Fodor, J. A., 314-315
Fonagy, 43-44, 54
Eckermann, J. P., 484 Fontenelle, B. Le Bovierde, 262
Eco, U., 447, 456 Fontius, M., 84
Eichner, H., 195 Forster, 114, 141-142, 148, 163, 170-
Eikhenbaum, B., 443, 446, 454, 481, 1 7 1 ,1 7 4 ,1 8 2 ,1 8 7 ,1 8 9 ,1 9 3 ,1 9 5 -
496, 510, 516-517 196
Einstein, A., 32 Foucault, M., 84-85, 202, 218
Eliade, M., 219 Fowler, A., 270,281-282,286,288,291
Eliot, T S., 40, 5 3 ,5 7 , 380, 400 Fowler, R., 315, 456
Elliott, D., 314 Francastel, P, 53
Else, G., 256-257, 291 Frank, G., 458
Éluard, P, 47-48, 51, 57 Frazer, J. 279
Empédocles, 439 Frederico II, 109
Engels, R, 1 6 9 ,1 8 1 -1 83,186,188,195 Fregoli, L., 237
Enkvist, N. E., 295 Fréron, 186
Erben, 518 Freud, S., 2 2 4 ,2 3 1 ,2 3 7 ,2 4 1 ,2 4 6 ,2 4 9 -
Erlich, V, 42 1 ,4 4 3 ,4 4 5-446,449,453- 250
454 Friedlaender, P, 363, 374
Ernesti, J. A., 70 Friedrich, H., 443
Espinosa, P, 325, 340 Fruchon, P, 94
Eurípides, 389 Frye, N., 279-283
Exner, F., 184
Gadamer, H.-G., 67-70, 75-92, 94-95
Fabian, B., 456 Galileu, 66, 151
Faral, E., 337 Galperin, I. P, 303, 314
Ferguson, A., 113-114, 146-147, 150, Galvão, W. N., 205, 218
1 5 2 ,1 8 2 ,1 8 8 Garve, C L , 145, 153, 161, 164, 185,
Ferreres, R., 34^ 187-188, 190-191, 193

5 2 2
TEORIA DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — VOl. 1

Garvin, E, 54, 447 Gundolf, 382


Gautier, Th., 349 Gunzenhaeuser, R., 447
Geesemann, 382 Gutenberg, 139
G enette, G., 428, 451-452 Gutiérrez, 399
Gennep, v., 42
Gentz, 155 Habermas, J., 82, 87-90, 94-95
Giegel, H. J., 95 Haeckel, 263
Giel, 187 Haferkorn, H. J., 193-196
Gierke, O. v., 188 Halliday, 303, 311-312
Gigon, O., 456 Hamburger, K., 192, 281
Godoy, I. de T. y, 340 Handke, E, 442
G oethe, ]. W. v., 113, 117, 127, 149, Harms, R. T., 314
163, 167, 169, 174-175, 1 7 7 4 7 8 , Harris, Z., 302, 310, 314
180, 193-194, 196-197, 215, 219, Hasan, R., 315
250, 274-275, 291, 356, 370, 373, Hatin, E., 197
381, 3 9 8 ,4 3 2 , 476, 484 Hausenblas, K., 315
Gogol, N. V., 443, 484, 485, 493, 517 Hauser, A., 106, 181, 183
Gómez, G., 339 Havránek, B., 422, 424, 447, 450
Góngora, L. de, 3 2 2 -3 2 3 ,3 7 9 -3 8 6 ,3 9 8 , Haym, R., 154, 192
400 Hegel, G. W E, 1 2 8 ,1 3 0 ,1 4 7 ,1 6 6 ,1 8 4 ,
G ottlieb, J. H .5 122 188, 194, 201-202, 217-218, 440,
Gourney, W , 54 457
Gracq, J., 46 Heidegger, M . , 67 -6 8 ,7 4 ,8 0 -8 1 , 8 6 ,9 5 ,
Graham, I. A., 371 385
Grammont, 44, 486 H eidolph, K. E., 315
Greco, el, 400 H eine, H., 121, 127, 434-435, 506
Green, A., 211 Helvétius, 109
Greimas, A. J., 49, 182, 276, 428, 451 H em pfer, K. W , 277, 279, 291
Grim m , E M , 125-126, 184 Hendricks, W. O., 315, 448, 457
Grimm, J., 444 H eráclito, 213, 219
Grõber, G., 449 Herdan, G., 315
Gudeman, A., 456 H erder, J. G., 111, 117, 130-145, 182,
Guevara, 363 185-187, 468-469
Guiraud, E, 43-44, 54 H ernadi, E, 274, 2 8 8 ,2 9 1
Gukovski, 516 Heródoto, 439
Gulyga, A., 184 Herrera, 397
Gumbrecht, H. U., 287-289, 291 H ettner, H. I., 169, 195

5 2 3
LUI Z COSTA LIMA

Hill, A., 302, 308-309, 314^315 Jirmunski, V, 443, 445, 459


Hinz, B., 183 Johnson, Dr., 261
H irsch jr, E. D., 83, 86, 91, 95 Jolles, A., 206, 208, 218, 275-276, 291
Hobbes, Th., 146 Jonas, W , 191
Hoffmann, v., 192 Joos, M., 302
Hoffmeister, J., 184, 194 Jouanny, R .,182
H ofstaetter, W , 189 Joyce, J., 56, 275, 2 8 1 ,2 9 1
Home, 167 Jung, C. G., 211, 219, 279
H om ero, 65, 69, 257, 259, 349, 363,
439 Kafka, E , 41, 53
Hopkins, G. M., 360, 414 Kagan, M., 183
H orácio, 105, 262, 264, 291, 341, 383, Káhler, S. A., 189
388-397, 403-406 Kaiser, W , 194
Horkheimer, M., 171 Kant, L, 111, 136, 147, 151, 154, 157-
Houdebine, J. L., 452 158, 160-161, 163, 166, 1 8 2 ,1 9 3 ,
Hrabák, J., 455 203, 217, 470
H ugo, V., 2 6 ,4 7 ,5 1 ,5 3 ,5 6 ,5 8 -5 9 ,2 6 2 , Karamzin, N. M., 270, 454, 481, 484-
2 9 1 ,3 9 8 ,4 8 6 485
H um boldt, W. v., 141-143, 145-146, Katenin, 485
148-149, 151, 153, 155, 187-192, Katz, J. J., 314^315
1 9 4 ,4 2 3 ,4 6 8 ,4 6 9 Kazanski, B., 457
Husserl, E., 204, 218, 276, 449 Keats, J., 343-345, 349-368, 369-375
Hutcheson, 110 Kerényi, K., 211, 219
Kerleroux, E, 52, 61
Iakubinski, L., 423-425, 427-428, 445- Kerner, 191
447, 449-450, 454, 469-470, 472 Khliebnikov, 414-415, 417, 419, 424
Iser, W , 79-90, 93-94, 288 Kimmerle, H ., 84
Ivanov, V , 462 Kiparsky, P., 314
Kirchner, J., 197
Jacob, M., 46, 54, 56 Klages, L , 431, 453
Jakobson, R., 35, 42-43, 54, 57, 274, Klaus, G., 183
291, 417-418, 420, 424, 427-429,Klein, M ., 244
433, 437-440, 442, 444-450, 452^ Klemm, E, 183
4 5 3 ,4 5 6 -4 5 7 , 469, 472, 511 Klemperer, V, 291
Jauss, H. R., 75, 79-91, 95, 267, 285, Klien, M ., 195
291 Klingender, E D., 186
Jean, R., 56 Klinger, E M., 142, 187

52 4
TEORI A DA L I T E R A T U R A EM SUAS FONTES — V OL . 1

Klotz, G., 97 Leibniz, 471


Kochl, W. A., 44-55, 456 Leiris, M.» 57
Koepfer, R., 446 Leitzmann, A., 189
Koffman, S., 250 Lenin, ¥ L, 1 8 8 ,4 3 5 ,4 5 4 , 457
Kolchanski, 54 Lenz, J. M. R., 143, 187
Koller, H., 2 5 8 ,2 9 1 León, fr. L. de, 388, 390, 404
Kommerell, M., 259» 291 Lerch, E., 57, 291
Kõrner, 192 Leskov, 497
Kosselek, A., 185, 187 Lessing, G. E., 1 1 7 ,1 3 6 ,1 6 3 ,1 6 5 ,1 7 0 ,
Kostrov, 478 177, 179, 193-194, 197, 361, 3 7 § ?
Král, J., 518 465
Krauss, W., 181» 184, 190 Levin, S. R., 43, 46, 54-55, 306, 315,
Krenzlin, N ., 193 447-448
Kretschmer, ]., 94 Lêvi-Strauss, CL., 5 7 s 250, 276, 291
Kreuzer, H ., 447 Lichtenberg, H., 219
Krieger, M., 288 Lineu, 129
Kristeller, P. O., 116, 183 Linge, D. E., 95
Kristeva, J., 52-53, 446, 452 Lispector, Cl., 93
K rutchônikh, 415-416, 444-445 Littré, E., 188
Kuhn, H ., 284, 291 Lobo, L., 313, 483, 509
Kuhns, R., 288 Locke, J., 110
Kurella, A., 168, 195-196 Lomonossov, 436, 454, 481
Longino, 267-268
La Chapelle, 109 Lorca, E G., 332, 335
La Fare, 109 Lorrain, J., 54
La Harpe, 157 Lotman, I., 40, 53, 57, 435, 440, 450,
La M ettrie, 109 454-456, 458
La Motte, 262 Luís XIV, 106, 109, 127
Labé, L., 55 Lukács, G., 1 0 2 -1 0 3 ,1 7 2 -1 7 3 ,181,193,
Lacan, J., 224, 244, 250 195, 212, 219, 270, 292
Lachmann, R., 444, 445, 446 Lunt, H. C., 315, 448
Lamartine, A. de, 46 Luxemburgo, R. de, 152, 191
Lanson, G., 185
Laporte, 240 Macfarlan, ]., 188,190
Lasson, 194 Macherey, P, 60
Lautréamont, 56 Maiakovski, 470, 482
Legum, S., 314 Maikov, 479

5 2 5
LUI Z COSTA LIMA

Makarov, P, 485 Misgeld, D., 94


Malherbe, 423 Mittenzwei, W , 196
Mallarmé, S., 413, 414, 416, 443-444 Moericke, E., 354, 370
Malraux, A., 240 Molière, 162-163, 193
Marcuse, H., 175-176, 196 Moncrif, 197
Marín, R., 3,38, 340 Montaigne, M. E. de, 386
Marin, S., 485 Moreno, C. F., 219
Marinetti, F. T., 424 Moritz, K. Ph., 1 1 4 ,1 3 4 ,1 4 9 -1 5 1 ,1 5 6 ^
Markov, V, 443-444 157, 159-161, 166-172, 174-177,
Marmontel, 157 1 8 2 ,1 8 5 , 190, 193-196
Martins, E , 9 Morpurgo-Tagliabue, 439-4 4 0 ,4 5 6 -4 5 7
Marx, fC, 69, 100-102, 108-109, 113- Mounin, G., 49, 52-53, 57
114, 148-149, 158, 163, 165, 170, Mourot, J., 54, 56
181-188, 190, 192-196, 203 Mukarovsky, J., 54, 421-422, 439-440,
Matejka, L., 511n 456-457
Mathesius, W , 310 Müller, P, 185
Matoré, G., 182 Muncker, F., 194
Mattenklott, G., 194 Musset, A. de, 46
Maupassant, G. de, 510 Mussorgski, 518
Mayer, H., 195
Medvedev, P N ., 2 7 1 -2 7 3 ,2 8 3 ,2 9 2 ,4 4 4 Nadson, 470
Mehring, F., 123, 134, 192 Napoleão I, 486
Meinecke, F., 186 Naumann, M., 180, 193
M elo, J. L. de, 348 Naumann, P, 97
Mendelssohn, 117, 159 Naves, R., 185
Mendes, A., 368 Nekrassov, 482, 506
Mercier, 127, 184 Nerval, G. de, 42
Mereau, S., 196 Newton, I, 151
Meschonnic, H., 35, 52, 61, 452, 454, Nickel, 315
457 Nietzsche, F., 217, 219
Meyer, A., 9 Nist, J., 314
Meyer, Th., 465-466, 472 Novalis, 414, 451
Michaux, H., 52 Nowottny, 425-426, 450
Mierau, F., 455 Nunes, R., 199
Milic, L .T .,3 1 6
Minor, J., 194 Ohmann, R., 302, 308-309, 315
Mirabeau, 191 Olinto, H. K., 97, 180, 396

5 2 6
TEORSA DA LITERATURA EP SUAS FONTES — VOL. 1

Tan, 435 Valéry, P, 15n, 19n, 1 1 2 ,1 8 2 ,4 1 4 ,4 2 0 ,


Tasso, T., 386, 400 423, 427, 444, 446, 448, 452
Tate5A., 267-268, 292 Valia, 260
Teócrito, 335, 349 Vassallo, L., 249
Thalheim , H .-G ., 185 Vega, L de, 326, 3 2 7 ,3 3 9 ,3 8 1
Thibaudet, A., 43 Veniero, D., 321-322
Thomas, D., 305 Vernant, J.-P., 85, 95
Thompson, S. A., 314 Veselovski, V N ., 461
Thorne, J. R., 306, 315, 448 Viazemski, 479
T hrax, D., 185, 259 Vicente, A. Z., 338

Tinianov, I, 2 6 9 -2 7 3 , 283, 292, 421, Vicente, G., 331, 339

426, 430-437, 439-440, 442, 446^ Vico, G .B .,3 8 6 , 4 2 8 ,4 5 1


Vida, 396
455, 473, 516
Vietta, S., 443, 451
Tischbein, 178
Villon, Fr., 397
Tiutchev, 462, 517
Vinci, L. da, 30, 106, 116, 183
Todorov, T., 39-40, 47, 52, 54-57, 443,
Vinogradov, 288, 421, 445-446, 517
445, 452, 456
Vinokur, G. O., 457
Tolstoi, L N ., 47, 492, 517
Vischer, E T., 160, 193
Tomachevski, B., 270, 292, 430-431,
Voegelin, 444
434-435, 437, 446, 448, 453-457
Voltaire, E-M . A., 131-132, 136, 158,
Tomás, são., 132
1 7 0 ,1 8 5 , 262, 385
Torre, E de, 337, 338
Vossler, K., 73, 267, 382, 418, 449
Trabant, J., 273, 292
Trãger, C., 177, 186, 191-192, 196 Wagner, A. L., 192
Trediakovski, 456 Wagner, R. L., 50, 55, 57
Treue, W , 187 Wahl, H., 184
Trotski, L., 415, 443 Wais, K., 186
Tschernyschewski, 192 Walzel, O., 382, 472
Turgot, 146 Wanderley, J., 518
Turgueniev, I. S., 436, 4 96-498, 510, W ard, A., 197
517 Warren, A., 218
Tzara, T., 49, 57 Wasserman, E. R., 343-345, 349-368,
369-375
Uhlig, L., 172 Weber, D., 195
Unamuno, M. de, 381 Weber, P., 97
Ungeheuer, G., 453 Weinrich, H., 315

52 9
LUI Z COSTA LIMA

Weisse, C. F., 164 Wolf, F. A., 70


Welcker, 373 Wolff, C., 66, 167
Wellek, R., 105, 181, 197, 204, 218
Wieland, C. M., 126, 164, Xenofonte, 219
Wiese, B. v., 192
Williams, T. J., 183 Zelter, 178, 197
Wimsatt, jr. W K., 256, 292 Zochchenko, 499
Winckelmann, J. J., 167 Zola, É., 47
Winnicott, D. W , 238 Zorn, 187
Wissmann, J., 458

530

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