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Não vamos mostrar-vos a morte do autor outra vez. Não, não outra vez! Não, não
iremos dizer nada sobre o assunto, nem sequer falar a favor do esforço
terapêutico, nem sobre a possibilidade da massagem cardíaca ou da eutanásia.
Vamos abordar a questão a partir de uma perspectiva totalmente diferente, a do
processo de subjectivação e das suas relações com o poder. O problema presente
não é tanto o de saber se o paradigma do DJ pode ser estendido à situação de
todos os criadores contemporâneos, ou se qualquer espectador/leitor, por meio do
seu zapping e da sua atenção curta, é comparável a qualquer artista celebrado. A
crise, que deve ser mencionada, é mais vasta e sem dúvida mais antiga; alcançou
o seu apogeu no vigésimo século mas as suas convulsões ainda nos perturbam.
Falamos da crise das singularidades.
As revoltas dos anos 70, em particular as que tiveram lugar em Itália em 1977,
trouxeram ao de cima tanta roupa suja que nenhuma família política ou biológica
a conseguiu lavar totalmente: o colonialismo, cuja herança racista estava de
óptima saúde; o sexismo, apenas mais forte desde 68; os “espaços livres” das
células extraparlamentares que se tinham tornado fontes de micro-fascismos, a
“emancipação” através do trabalho que era a versão pós-moderna de uma
escravatura familiar, etc.
Que estes anos de fertilidade criativa inédita, tanto em termos de formas de vida
como de produção cultural, tenham passado para os livros de história como os
"anos de chumbo" diz-nos muito sobre o que devemos esquecer. O movimento
feminista lançou esta transformação, que dissolveu todos os grupos que
centralizavam as energias desde 68. "Não seremos mães, esposas ou filhas:
destruamos a família!" era o grito ouvido nas ruas. As pessoas exigiam direitos
ao estado mas afirmavam uma estranheza em relação ao estado do mundo, uma
afirmação que se fazia escutar: ninguém queria ser incluído ou descriminado num
novo paradigma. Estes movimentos eram manifestações da greve humana.
Pierre Cabanne: a sua melhor obra foi o uso que deu ao seu
tempo.
Como estás?
A razão pela qual insistimos neste ponto não está relacionada com a superstição
de que o trabalho artístico, ao contrário de outros tipos de trabalho, deve surgir
de uma ligação profunda e directa com a singularidade do autor. É evidente que
se levássemos a cabo o sonho de Foucault e, durante um ano ou mais,
identificássemos as produções apenas pelos seus títulos, omitindo os nomes dos
autores, ninguém conseguiria reconhecer a paternidade de uma determinada obra.
Este debate deveria ter sido encerrado por Fluxus e muitos outros, já que dada a
relativa transparência dos protocolos produtivos adoptados pelo artista e a
acessibilidade dos meios técnicos empregados, um número considerável de
pessoas acaba por, sem o saber, estar a fazer a “mesma coisa” em residências
situadas a milhares de quilómetros. O contrário é que seria espantoso. Quando,
numa noite, depois de beber vinho e de jantar, descobres que estiveste a falar
com um artista internacionalmente famoso que pensavas ser um condutor de
camiões, não podes deixar de comparar esta impressão com aquela produzida
duas semanas antes por um jovem brilhante, extremamente culto, antes de, no
entanto, de visitares o seu site e ver aquilo que ele chamava o seu trabalho
artístico.
Hoje, o lugar do artista acometido pela indecência já não é o objecto que ele
descontextualiza, nem as instalações que fabrica com elementos banais. É o gesto
de querer produzir uma obra “original”, que transforma os autores em múltiplos
de “singularidades quaisquer”. Mas não são somente os artistas “relacionais”
pobres que pretendemos visar. Sob as circunstâncias de produção da
subjectividade artística que acabámos de descrever, somos todos artistas ready-
made e a nossa única esperança é compreender isto o mais rapidamente possível.
Somos todos tão absurdos e deslocados como um objecto vulgar, privado do seu
uso e decretado objecto artístico: quaisquer que sejam as singularidades,
supostamente artísticas. Nas presentes condições, como qualquer outro
proletariado, estamos expropriados do uso da vida, porque, na maior parte das
vezes, o único uso significativo historicamente que podemos fazer disto resume-
se ao nosso trabalho artístico.
O trabalho, contudo, é somente uma parte da vida e está longe de ser a mais
importante.
Sem dúvida foi a este talento de fazer tudo coexistir num dia, esta capacidade de
chamar a tudo e todos “trabalho” que a máquina de extermínio deveu a sua
espantosa eficácia durante a Segunda Guerra Mundial. Foi claramente uma
banalidade paratáxica do mal que transformou um simples empregado em
Eichmann: tudo o que ele fazia, afinal, era elaborar listas; estava só a cumprir as
suas funções.
Quando Brecht, no teatro épico, insiste nos processos que produzem um olhar
estranho tanto por parte do público como dos actores, a suspensão aparece como
o dispositivo técnico aplicado para libertar esse afecto. Em 1931, Benjamin
descreveu o processo do seguinte modo:
Num comentário aos poemas de Brecht, em 1939, Benjamin escreve que “quem
quer que lute pela classe explorada se torna num imigrante no seu próprio país”.
Tornar-se um estranho, um processo que opera por meio de uma paragem
sucessiva de imagens de pensamento, bem como um abandono do eu,
manifestado por uma interrupção e o movimento contrário correspondente.
Mas existirá hoje um meio para a prática de uma tal greve, que não seja sindical
nem corporativista, mas maior e mais ambiciosa? A pergunta é complexa, mas
quiçá devido à nossa singularidade empobrecida somos os primeiros cidadãos da
história para quem a afirmação metafísica do ser humano como ser sem destino
profissional nem social detém um sentido bem concreto. Agamben escreve que
“há definitivamente algo que os seres humanos deveriam assumir, mas este algo
não é uma essência, nem sequer uma coisa: é o simples facto da sua própria
existência como possibilidade ou poder”.
Algumas feministas italianas dos anos de 1970 já perspectivavam uma greve que
seria uma interrupção de todas as relações que nos identificam e subjugam mais
do que qualquer actividade profissional. Sabiam envolver-se numa política que
não era considerada política. Durante a luta pela penalização da violação, pela
legalização do aborto e pela aplicação dos sistemas de quotas pediam
simplesmente à lei para não decretar sobre os seus corpos. Em 1976, o colectivo
pelo salário doméstico, em Bolonha, escreveu que "quando fazemos greve não
deixamos produtos por acabar ou matérias por transformar; ao interromper o
nosso trabalho não paralisamos a produção mas a reprodução da classe
trabalhadora. E isso seria uma greve a sério mesmo para aqueles que
normalmente fazem greve connosco".
Este tipo de greve que interrompe a mobilização total a que todos estamos
submetidos e que permite que nos transformemos pode ser chamado de greve
humana, pois é a mais geral das greves gerais e o seu fim é a transformação das
relações sociais informais que constituem a base da dominação. O carácter
radical deste tipo de revolta reside no seu desconhecimento de qualquer tipo de
resultado reformista com que pudesse ficar satisfeita. À sua luz, a racionalidade
dos comportamentos que adoptamos na nossa vida diária pareceriam inteiramente
ditados pela aceitação das relações económicas que os regulam. Cada gesto e
cada actividade construtiva onde investimos uma parte de nós têm a sua
contrapartida na economia monetária ou na economia libidinal. A greve humana
decreta a falência destes dois princípios e instala outros fluxos afectivos e
materiais.
Notas da edição
Este texto é parte integrante do Dossier \ Claire Fontaine, coordenado por Luhuna Carvalho,
Mariana Pinho e Nuno Rodrigues. Tradução de Luhuna Carvalho e Pedro Augusto. Revisão
de Pedro Levi Bismarck.
Imagens
1. Claire Fontaine, La société du spectacle” 2006.
2. Claire Fontaine, We are all ready-made artists, 2008.
4. Claire Fontaine, Consumption, 2010.
3. Claire Fontaine, Grève Humaine, 2009.
Ficha técnica
Data de publicação: 15 de Março 2016
Etiqueta: Artes \ Escrita
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