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ARTIGO DE REVISÃO / REVIEW ARTICLE / DISCUSIÓN CRÍTICA

A Espiritualidade interpretada pelas ciências e pela saúde


Spirituality interpreted by sciences and health
La espiritualidad interpretada por las ciencias y la salud

Leo Pessini*

RESUMO: O presente estudo objetiva apresentar algumas das preocupações que estudiosos contemporâneos analisam em torno da
questão da espiritualidade, saúde e conhecimento científico e religião. Nesta perspectiva inicialmente aborda-se uma visão de espiri-
tualidade, seguida de uma apresentação crítica da neuroteologia. Posteriormente considera-se a relação entre ciência e religião tendo
como referência algumas pesquisas de renomados investigadores da área. Destaca-se a seguir a posição de harmonia entre conhecimento
científico e religioso de Francis Collins, o Diretor do Projeto Genoma Humano. Finaliza-se apresentando as pesquisas em curso hoje nos
laboratórios que tentam provar que “acreditar” faz bem para a saúde (espiritualidade de evidência).
PALAVRAS-CHAVE: Espiritualidade-ciência. Saúde-religião. Ética-religião.
ABSTRACT: This study aims to present some of the concerns contemporary scholars analyze about the question of spirituality, health
and scientific knowledge and religion. In this perspective one initially presents a view of spirituality, followed by a critical presentation
of neurotheology. We then consider the relationship between science and religion having as reference some research of famous in-
vestigators of the area. Next we emphasize the position of harmony between scientific and religious knowledge of Francis Collins, the
Director of Human Genome Project. We also present research in course in laboratories that try to prove that “to believe” is good for
health (spirituality of evidence).
KEYWORDS: Spirituality-science. Health-religion. Ethics-religion.
RESUMEN: Este estudio presenta algunas de las preocupaciones que los eruditos contemporáneos analizan sobre la cuestión de la espi-
ritualidad, salud y conocimiento y científico y religión. En esta perspectiva se presenta inicialmente una concepción de la espiritualidad,
seguida por una presentación crítica de la neuroteología. Entonces consideramos la relación entre la ciencia y la religión que tiene como
referencia cierta investigación de famosos investigadores del área. Acentuamos después la posición de armonía entre el conocimiento
científico y religioso de Francis Collins, el director del Proyecto del Genoma Humano. También presentamos investigaciones en curso en
los laboratorios que intentan probar que “creer” es bueno para la salud (espiritualidad de la evidencia).
PALABRAS LLAVE: Espiritualidad-ciencias. Salud-religión. Ética-religión.

A discussão e o interesse exis- e internacionais e de entrevistas presentativos, que estudam esta


tencial em torno das questões de com cientistas e pesquisadores pu- temática,a partir de suas práticas
espiritualidade ligada à saúde, a um blicadas na imprensa brasileira. científicas no âmbito da biologia,
viver saudável e feliz, tendo como Nesta perspectiva, no primeiro bioquímica ou neurofilosofia (III).
parceiro o conhecimento científico, momento, apresentamos uma vi- Destacamos em especial, o posicio-
estão na ordem do dia. Não impor- são muito difundida de espiritua- namento do biólogo norte-ameri-
ta se esta espiritualidade não tem lidade formatada na contempora- cano, Diretor do Projeto Genoma
nenhuma referência ao mundo neidade relacionada à natureza e Humano, Francis S. Collins, resga-
transcendente. à busca de um sentido ou signifi- tando a visão e os fundamentos de
Este trabalho, ainda que de for- cado de vida, não necessariamente um cientista que se assume como
ma rudimentar e introdutória, tem vinculada a um ser superior (I). “religioso”, fato até recentemente
o objetivo de elaborar um rápido A seguir, fazemos uma rápida in- considerado impossível de ocorrer
check up do que está acontecendo cursão a respeito da neuroteologia no âmbito da academia (IV). A se-
na contemporaneidade nesta rela- (II). Avançamos discorrendo sobre guir, associamos nossa reflexão à
ção entre ciência, crença e saúde. a questão do conhecimento cien- busca da saúde. Inúmeras pesqui-
Para isto, nos servimos de publica- tífico e religioso tomando como sas hoje estão sendo desenvolvidas
ções de matérias especiais nacionais base autores contemporâneos re- no sentido de provar que a crença,o

* Teólogo. Doutor em Teologia Moral – Bioética. Superintendente da União Social Camiliana. Vice-reitor do Centro Universitário São Camilo.
Membro da Diretoria da Associação Internacional de Bioética. Editor-chefe. E-mail: pessini@scamilo.edu.br

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cultivo de uma fé e a participação em relação às atitudes hipócritas e e desejos. Transporta-nos para um


em uma comunidade, fazem bem sectárias dos religiosos, que olham universo maior e forja uma comu-
para a saúde e ajudam as pessoas a com desprezo, para quem não acei- nhão entre nós. O segundo exem-
viverem mais, ou seja, ressalta-se a ta as mesmas crenças e tradição re- plo é a natureza. Quer vejamos o
fé como um fator de saúde. ligiosas que eles. Indícios existem mundo como criação de Deus, ou
para se afirmar que a intolerância como um mistério secular que a
Uma visão contemporânea mística de cunho terrorista ganhou ciência está tratando de entender,
maior força ainda com os atentados não há como negar a beleza e a
de espiritualidade
às torres gêmeas de Nova York, em majestade de tudo, de cadeias de
Tendo em vista as sinalizações 11 de setembro de 2001. Foi, sem montanhas, desertos e florestas.
da atualidade, a temática espiri- dúvida, um atentado terrorista ali- Prestemos atenção ou não, a Na-
tualidade vendo sendo alvo de in- mentado por um combustível mís- tureza, sem ser convidada, se im-
teresse junto a diversos segmentos tico de alta combustão, de cunho põe a nós, por meio de sua força
da sociedade; desperta um verda- fundamentalista islâmico. assombrosa de um furacão ou de
deiro glamour, especialmente as Por outro lado, Solomon (2003) um terremoto, curiosamente de-
espiritualidades de cunho oriental: desdenha o que ele denomina de nominados por advogados ateus
dentre outras, o budismo, nas suas “banalidades irrefletidas da nova como “atos de Deus”. O lugar para
variantes, e o hinduísmo. Cons- consciência” que se faz passar por procurar a espiritualidade é aqui
tata-se que o cristianismo institu- espiritualidade não-sectária, tais mesmo, em nossas vidas e em nos-
cionalizado do ocidente perdeu como a crença no poder das pi- so mundo, não alhures. Há também
significativamente o interesse para râmides, do Feng Shui, à mediu- espiritualidade em nosso senso de
muita gente. Se freqüentarmos li- nidade. Diz ele: “[…] entre minha humanidade e camaradagem, em
vrarias, identificaremos que são di- aversão por hipocrisia moralista e meu nosso senso de família (…) e ela
versas as ofertas de espiritualidade desdém por banalidades insensatas da pode ser encontrada nas melhores
no amplo e sedutor supermercado Nova Era, rejeitei erroneamente o que amizades. Mais perto do coração, a
das religiões. Analisemos sem jul- agora vejo ser uma dimensão essencial espiritualidade pode ser encontra-
gar ou moralizar uma perspectiva da vida. A espiritualidade pode ser da em nossas paixões mais nobres,
difundida hoje, principalmente nos separada tanto do sectarismo vicioso em particular no amor.
meios mais cultos e intelectuais. quanto de banalidades irrefletidas. A Sem fazer referência a um ser
No livro Espiritualidade para espiritualidade cheguei a compreender, superior, “Deus” ou “Espírito Su-
céticos: paixão, verdade cósmica e ra- é nada menos que o amor bem pensado perior”, Solomon defende uma es-
cionalidade no século XXI (2003), o à vida”. A razão de escrever a obra piritualidade naturalizada e tenta
filósofo norte-americano Robert C. em questão é de atribuir “[…] um fazer uma jornada pessoal de re-
Solomon, logo no prefácio, confes- sentido não-religioso, não-institucional, descoberta através da filosofia.
sa que nunca entendeu a espiritua- não-teológico, não baseado em escritu- Numa outra perspectiva, es-
lidade. Ou melhor, nunca lhe deu ras, não-exclusivo da espiritualidade, tudiosos como Hardwig (2000)
muita atenção. Quando o assunto um sentido que não seja farisaico, que abordam a dimensão espiritual e a
era discutido, desculpava-se para não se baseie em crença, que não seja espiritualidade como “referindo-se a
se afastar. Diz que não foi educa- dogmático, que não seja anti-ciência, preocupações em relação ao significado
do para ser religioso, mas para ser que não seja místico, que não seja acrí- e valores fundamentais da vida”. Espi-
“moral” na linha do humanismo tico, carola ou pervertido” (Solomon, ritual não implica qualquer crença
secular. Diz textualmente “Crescer 2003, p. 18-19). Diz o que busca: num ser supremo, ou numa vida
como uma das raras crianças de filia- “[…] uma espiritualidade naturaliza- depois desta. Espiritual, então, não
ção judaica (ainda que nominal) numa da de que sempre tive um vislumbre, e significa religioso e os que se deno-
comunidade esmagadoramente protes- é isso que quero perseguir neste livro” minam ateus também têm preocu-
tante significou que a religião sempre (Solomon, 2003, p. 24). pações espirituais como qualquer
me apareceu como uma ameaça”. Ao definir espiritualidade na- outra pessoa. Também William
Olhando para trás, percebeu que turalizada, evoca dois exemplos. Breitbart (2005) conhecido psi-
estava confundindo espiritualidade O primeiro em relação à música, quiatra norte-americano, pesquisa-
e religião, e com o pior da religião, e que nos arrebata. O essencial é que dor na área de cuidados paliativos,
rejeitando as duas por força de me- a música nos tira de nós mesmos, e profundo conhecedor da obra de
dos e preconceitos que carregara dizia o filósofo Schopenhauer. Per- Victor Frankl e seus conceitos de lo-
desde a infância. Mostra-se crítico mite-nos escapar de nossos temores goterapia e psicoterapia baseadas

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no sentido, que procura aplicar no são: 1) sentido da vida — a vida é um religião com específicas experiên-
cuidado aos pacientes em fase ter- dom e tem sentido e nunca cessa cias e sentimentos e confundindo
minal, define espiritualidade “[…] de ter, mesmo no último momento; espiritualidade com religião. “Seria
como aquilo que permite que uma pes- ele pode se alterar nesse momen- difícil imaginar um crente em meio a
soa vivencie um sentido transcendente to mas não desaparece; 2) vontade uma experiência mística, dizendo para
na vida. Trata-se de uma construção de sentido — o desejo de descobrir si próprio que tudo não passa de uma
que envolve conceitos de ‘fé’e/ou ‘senti- sentido na existência humana; 3) atividade de seus circuitos neuronais. A
do’”. A fé é descrita “como uma cren- liberdade da vontade — ter a liberda- ciência não lida com o imaterial (embo-
ça numa força transcendente superior, de de descobrir sentido na existên- ra alguns aspectos da física moderna se
não identificada diretamente com Deus, cia e escolher uma atitude diante aproximem). O mais longe que os neu-
nem vinculada necessariamente com a do sofrimento; 4) o sentido na vida robiogistas poderão ir será fazer uma
participação nos rituais ou crenças de - centra-se em três principais fon- correlação entre determinadas expe-
uma religião organizada específica; essa tes: a criatividade, a experiência e a riências com certas atividades cerebrais.
fé pode identificar tal força como externa atitude Frankl afirmava com desta- Sugerir que o cérebro é a única fonte de
à psique humana ou internalizada; é o que para três problemas existenciais nossas experiências seria reducionismo,
relacionamento e a ligação com essa for- inevitáveis: o sofrimento, a morte e ignorando a influência de outros fato-
ça, ou esse espírito, que é o componen- a culpa (Breitbart, 2003, p. 51-52). res importantes, tais como a vontade,
te essencial da experiência espiritual, A seguir apresentamos a mais ambiente externo, sem esquecer a graça
estando vinculados com o conceito de nova linha de especulação em termos divina” (Woodward, 2001).
sentido. O sentido envolve a convicção de avanços do conhecimento do cé- Perguntamo-nos se a chamada
de que se está realizando um papel e um rebro humano, a “neuroteologia”. neuroteologia não passa de uma
propósito inalienáveis numa vida que nova forma refinada de reducio-
é um dom, uma vida que traz consigo Em torno das especulações nismo materialista. Com os pro-
a responsabilidade de realizar o pleno gressos e pesquisas na área da gené-
da neuroteologia
potencial que se tem como ser humano, tica e achados em torno do genoma,
e, ao fazê-lo, ser capaz de alcançar um Na reportagem de capa de uma numa verdadeira caça aos genes,
sentido de paz, alegria ou mesmo trans- das mais importantes revistas inter- na busca de descobrir suas funções
cendência por meio do vínculo com al- nacionais, a Newsweek, 1ê-se: Deus específicas, por exemplo, ouve-se
guma coisa maior do que o próprio eu” no seu cérebro. A ciência dispensa a re- falar se não poderemos identifi-
(Breitbart, 2003, p. 41). Na perspec- ligião? — God in your Brain. Does car o “gene da fé”! Uma pesquisa
tiva deste autor, a espiritualidade é Science Make Religion Unneces- realizada pelo biólogo molecular
uma construção formada por fé e sary? (Begley, 2001). Neste novo americano Dean Hamer, publica-
sentido. O elemento “fé” está fre- campo do conhecimento, denomi- da em seu livro The God Gene: How
qüentemente associado à religião e nado neuroteologia, os cientistas Faith is Hardwired into Our Genes (O
às crenças religiosas, ao passo que buscam as bases biológicas da espi- Gene de Deus: como a Fé está em-
o componente “sentido” parece ser ritualidade. Então a idéia de Deus butida em nossos genes), afirma
um conceito mais universal, que estaria em nossas cabeças como ter encontrado no ser humano o
pode existir tanto em pessoas que uma criação de nosso cérebro? gene responsável pela espirituali-
seguem uma determinada religião Mistério dificilmente decifrável no dade. Esse gene teria a função de
como nas que não têm nenhuma âmbito do circuito racional huma- produzir neurotransmissores que
referência religiosa. no. Nesta mesma matéria especial, regulam o temperamento e o âni-
Ainda segundo Breitbart (2003) publica-se um texto crítico à neuro- mo das pessoas. Os sentimentos
entre as principais contribuições de teologia: A fé é mais que um sentimen- mais profundos de espiritualidade
Victor Frankl, temos a conscienti- to (Faith is More than a Feeling), de seriam resultado de uma descarga
zação da importância da dimensão autoria de Woodward (2001). Diz o de elementos químicos cerebrais
espiritual da experiência humana autor que a neuroteologia confun- controlados por nosso DNA (Sou-
e o componente central do sentido de as experiências espirituais de al- za, 2006, p. 80).
como força motriz ou instinto da gumas pessoas que crêem. Estamos Não resta dúvida que aqui esta-
psicologia humana. Na qualidade procedendo a novas descobertas mos entrando numa área de inte-
de psiquiatra que sobreviveu ao ho- sobre os circuitos do cérebro, tal- ração entre dois mundos distintos,
locausto em Auschwitz, Frankl se vez, mas nada novo sobre Deus. O o científico e o religioso.
tornou uma notoriedade mundial. maior erro destes “neuroteólogos”, Vejamos a seguir como alguns
Alguns de seus conceitos básicos segundo Woodward é identificar autores contemporâneos pesqui-

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sadores no âmbito da biologia e o papel social de cada uma. Negar uma prensa brasileira) tentando desqua-
bioquímica refletem esta questão, ou outra é ignorar que o homem é tan- lificar a religião como um mal que
desde a negação da religião e afir- to um ser espiritual quanto racional” anestesia as sociedades e as priva
mação somente da ciência, até os (Gleiser, 2006, p. 9). das virtudes da razão. Os religiosos
que vão defender uma aproxima- O biológo norte-americano Da- conservadores norte-americanos
ção respeitosa, e por que não até vid Sloan Wilson, da Universidade dão a resposta ao defender que nas
uma harmonia de convivência. de Binghamton, autor do livro A escolas públicas norte-americanas
Catedral de Darwin: evolução, religião se deixe de ensinar as teorias de
e a natureza da sociedade (versão em Darwin (evolucionismo) e se subs-
Entre ciência e religião:
inglês), ao ser perguntado se num titua pelos ensinamentos da Bíblia
alimentar o antagonismo? mundo sempre mais explicado pe- (criacionismo).
reforçar a reconciliação? ou los olhos da ciência existe espaço Dennett trata a religião como
construir uma Aliança? para a fé, responde que “Evolucio- um fenômeno natural, não con-
nismo e religião não podem mais ocu- dena quem tem crença religiosa,
Para muita gente, ainda hoje, par lados opostos do pensamento hu- mas afirma que quando se trata
ciência e religião estão em guerra. mano. Sempre haverá espaço para a fé, de explicar a natureza, “os pre-
Num interessante artigo intitulado e ela não está necessariamente limitada ceitos cristãos são incompatíveis
“conciliando ciência e religião”, à religião. Há muita fé na ciência. Eu, com a ciência contemporânea.
Marcelo Gleiser, cientista profes- por exemplo, não entendo muito bem a Não existe nenhuma maneira in-
sor de física que trabalha nos EUA teoria da relatividade de Einstein, mas telectualmente honesta de ciência
(Dartmouth College, Hanover), acredito nela.” e religião coexistirem” (Piza, 2006,
bastante conhecido no Brasil, afir- “[…] quando se pensa na enorme p. D7). Defendendo uma posição
ma “[…] acho extremamente ingê- quantidade de descobertas científicas muito mais radical de materialismo
nuo imaginar ser possível um mun- das últimas décadas, conclui-se que os e ateísmo, temos o biológo inglês
do sem religião. Ingênuo e desne- cientistas, de todas as áreas, precisam Richard Dawkins, autor da publi-
cessário. A função da ciência não é ter fé nas teorias uns dos outros para cação The God Delusion (A desilusão
tirar Deus das pessoas. É oferecer seguir pesquisando” (Sloan Wilson, de Deus). Esta publicação sairá no
uma descrição do mundo natural 2007, p. 85). Brasil ainda este ano pela Editora
cada vez mais completa, baseada Embora declarado pessoalmen- Companhia das Letras. Nesta obra,
em experimentos e observações te como “ateu, mas um bom ateu. Dawkins compara a religiosidade
que podem ser repetidos ou ao me- Como os fiéis, também quero paz na Europa e nos EUA. Em entre-
nos constatados por vários grupos. e um mundo melhor”, David Slo- vista ao jornalista Clive Cookson
Com isso, a ciência contribui para an Wilson afirma que “se um evo- (Financial Times), diz que não quer
aliviar o sofrimento humano, seja lucionista quer descobrir mais sobre a apenas incomodar as pessoas, mas
ele material ou de caráter metafísi- nossa espécie, precisa levar em conta a mudar suas mentes. Os leitores que
co” (Gleiser, 2006, p. 9). ubiqüidade da religião, uma de suas começarem o livro religiosos serão
É importante distinguir o âmbi- características marcantes. Por outro ateus quando o terminarem. Num
to de cada uma. “Enquanto a religião lado, quem está interessado em estudar tom irônico e jocoso, com mais rea-
adota uma realidade sobrenatural coe- uma religião tem de levar em conta a lismo, admite: “Não vou mudar as
xistente e capaz de interferir com a rea- evolução, para não ser enganado pelos mentes de muitos carolas empeder-
lidade natural, a ciência aceita apenas fatos da vida” (Sloan Wilson, 2007, nidos” (Cookson, 2007).
uma realidade, a natural. Aqui apa- p. 85). Outros cientistas apresentam
rece a razão principal do conflito entre Nos EUA, afirma-se que so- uma realidade mais serena nesta
as duas. Para a ciência, não é preciso mente 3% dos cientistas mais res- questão de ciência e fé, a partir de
supor que o que ainda não é acessível peitados, os que estão ligados à Na- suas convicções científicas. Temos
ao conhecimento necessite de explicação tional Academy of Sciences, acreditam como exemplo Píer Luigi Luisi, bio-
sobrenatural. A ciência abraça a igno- em Deus. Temos novos apóstolos químico Italiano da Universidade
rância, o não-saber, como parte necessá- fervorosos do ateísmo contempo- de Roma, e um dos maiores estu-
ria de nossa existência, sem lançar mão râneo, biólogos, como o inglês Ri- diosos da origem da vida, tanto pelo
de causas sobrenaturais para explicar o chard Dawkins, e neurofilósofos, aspecto científico quanto cultural e
desconhecido”. Só podemos falar em como o americano Daniel C. Den- religioso. Ele não tem dúvidas de
conciliação entre ciência e religião, nett, que escrevem livros e artigos que a vida é um fenômeno pura-
segundo Gleiser, “quando ficar claro (amplamente divulgados pela im- mente físico-químico, resultado

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de uma combinação afortunada de Francis S. Collins: derna de cosmologia, evolução e


moléculas ocorrida 3,5 bilhões de dois mundos distintos, genoma humano, será que ainda
anos atrás. Ainda assim, não acre- existe a possibilidade de uma har-
o espiritual e o científico,
dita que seja possível provar a ine- monia satisfatória entre as visões
xistência de Deus. “Sempre haverá unidos de mundo científica e espiritual?
a questão de quem fez as molécu- Numa rota reflexiva bem dife- Eu respondo com um sonoro sim!
las, e por que existe algo em vez de rente dos cientistas supracitados, “Em minha opinião, não há conflito
não existir nada. São questões que temos também aqueles que não entre ser um cientista que age com seve-
não podem ser solucionadas pela vêem contradição entre a práti- ridade e uma pessoa que crê num deus
ciência. Você pode sempre colocar ca de uma fé com sua atividade que tem interesse pessoal em cada um
Deus no estágio da criação” (Esco- de cientista. Em outras palavras, de nós. O domínio da ciência está em ex-
bar, 2006, A-28). Questionado a pode-se ser um bom cientista e ao plorar a natureza. O domínio de Deus
propósito de sua fé, se acredita em mesmo tempo acreditar em Deus. encontra-se no mundo espiritual, um
Deus, ele diz “não creditar em Deus Um exemplo maiúsculo é o Dire- campo que não é possível esquadrinhar
no sentido tradicional da religião. tor do Projeto Genoma Humano, com os instrumentos e a linguagem da
Desde criança eu sempre questionei Francis S. Collins, que assume ser ciência; deve ser examinado com o co-
o seguinte: tudo bem, mas quem cristão convertido e que acaba de ração, com a mente e com a alma – e
foi que fez Deus? A idéia é de que lançar nos EUA a obra The Language a mente deve encontrar uma forma de
Deus seria uma prima causa. Mas of God: a scientist Presents evidence for abraçar ambos os campos” (Collins,
algo não pode ser criado do nada, belief, que está traduzida para o por- 2007, p. 14).
e se você não tem nada, você não tuguês no Brasil, com o título: A lin- Afirma Collins (2007) que “a
tem nem mesmo a prima causa para guagem de Deus: um cientista apresenta ciência é a única forma confiável
criar alguma coisa”. Avançando na evidências de que Ele existe (Collins, para entender o mundo da natu-
reflexão, afirma que “o dilema so- 2007). De uma forma lúcida e até reza, e as ferramentas científicas,
bre Deus não pode ser solucionado testemunhal, mas sem perder o ri- quando utilizadas de maneira ade-
com lógica. A fé é algo sobre o qual gor típico do pesquisador, tem por quada, podem gerar profundos dis-
não se decide, ou você tem ou você objetivo, como ele enfatiza: “Explo- cernimentos na existência material.
não tem. E eu não tenho. O que rar uma trilha rumo a uma integração A ciência, entretanto, é incapaz de
não significa que eu não esteja em sóbria e intelectualmente honesta”, seja responder a questões como: “por
busca de respostas para perguntas da perspectiva científica quanto da re- que o universo existe?”; “qual o
como “quem sou eu?” ou “qual ligiosa” e, argumenta que “a crença sentido da existência humana?”;
é o significado da vida?”. Ao ser em Deus pode ser uma opção completa- “o que acontece após a morte?”.
perguntado se existe algo sobre a mente racional e que os princípios da fé Uma das necessidades mais fortes
origem e evolução da vida que a são, na verdade, complentares aos da da humanidade é encontrar res-
ciência não explica, levando-se em ciência”. O autor apresenta, na pri- postas para as questões mais pro-
conta também que os defensores da meira parte, a sua trajetória pessoal fundas, e temos de apanhar todo o
teoria do “Inteligent Design” dizem do ateísmo à crença; a seguir, fala poder de ambas as perspectivas, a
que a vida é algo tão complexo que das grandes questões da existência científica e a religiosa, para buscar
só poderia ter sido criado por uma humana (as origens do universo, a compreensão tanto daquilo que
inteligência superior […]” Afirma decifrando o manual de instruções vemos como do que não vemos”
ainda que muitas coisas ainda não de Deus: as lições do genoma hu- (Collins, 2007, p. 14-15).
compreendemos e exemplifica com mano); e, finalmente, na terceira No inicio deste novo milênio,
a consciência. “[…]estamos no pro- parte, fala da “Fé na ciência, fé em finalmente se chegou ao final da
cesso de tentar explicar, mantendo Deus, discutindo o Gênesis, Galileu pesquisa da descoberta do primeiro
a mente aberta. Há muitas coisas e Darwin. A seguir, apresenta qua- rascunho do genoma humano, ou
que a ciência não consegue expli- tro alternativas: 1: ateísmo e agnos- seja, nosso manual de instruções fi-
car”. (Escobar, 2006, A-28). ticismo; 2: criacionismo; 3: design cava pronto. O Presidente Clinton,
A seguir apresentamos um inteligente; 4: biologia. na cerimônia comemorativa do fei-
cientista que se define como reli- Apresentamos alguns desta- to, falava para o mundo inteiro “do
gioso e que, na questão religião e ques de seus pensamentos, que nos mapa mais importante e mais ex-
ciência, mais do que ver antago- questionam pela sua objetividade traordinário já produzido pela hu-
nismo, propõe uma convivência e serenidade. “Eis aqui a pergunta manidade”. No entanto, segundo
harmoniosa. central deste livro: nesta era mo- Collins, a parte de seu discurso que

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mais chamou atenção do público tistas e pesquisadores contempo- para a saúde, como o que ocorre
saltou da perspectiva científica para râneos de que ter fé, cultivar uma no nível celular. Fazem-se investi-
a teológica, espiritual. religião é um fator decisivo para se mentos científicos para “descobrir
“Hoje — disse Clinton — estamos viver mais de uma forma saudável. a natureza de Deus” e a importân-
aprendendo a decifrar a linguagem com cia da espiritualidade. Há cientis-
a qual Deus criou a vida. Ficamos ain- tas que buscam caminhos éticos e
Acreditar faz bem
da mais admirados pela complexidade, meios efetivos de como combinar
pela beleza e pela maravilha da dádiva para a saúde? as crenças espirituais de seus pa-
mais divina e mais sagrada de Deus” Outra questão que ganha visi- cientes e as suas próprias, com tra-
(Collins, 2007, p. 10). bilidade é a relação entre religião e tamentos de alta tecnologia. Como
O discurso de Clinton foi cuida- saúde. Busca-se provas científicas exemplo disso, temos o milionário
dosamente preparado por Collins, de que a religião, a fé e espirituali- Sir John Templeton que investe
junto com o redator do discurso do dade, fazem bem e geram bem es- 30 milhões de dólares anuais em
presidente. No seu discurso, Collins tar. Comentamos a seguir material projetos científicos para “explorar
assim se expressa: “É um dia feliz para especial da Revista Newsweek, de 17 a natureza de Deus”. Livros nesta
o mundo. Para mim não há pretensão de novembro de 2003, autoria de área acabam sendo best sellers, como
nenhuma e chego mesmo a ficar pasmo Claudia Kalb, que traz como ma- por exemplo “A Anatomia da es-
ao perceber que apanhamos o primeiro perança (The Anatomy of Hope), de
téria de capa o título: “Deus e saúde.
traçado de nosso manual de instruções, autoria do médico Jerome Groop-
A religião seria um bom remédio? Por
anteriormente conhecido apenas por man, que é uma meditação sobre
quê a ciência começa a crer?” (God &
Deus” (Collins, 2007, p. 11). os efeitos do otimismo e fé sobre a
Health. Is Religion Good Medicine:
Interessante registrar alguns saúde. O NIH (National Institutes of
Why science is Starting to Believe?
dos questionamentos de Collins: Health) tem um orçamento de 3.5
(Claudia Kalb, 2003, p. 40-46).
“O que se passava lá? Por que um milhões de dólares para os próxi-
Pergunta-se, qual é a relação
presidente e um cientista, no co- mos anos a serem aplicados na pes-
entre a fé e a cura? O debate cresce,
mando do anúncio de um marco da quisa em medicina da mente e do
envolve cientistas, crentes e não-
Biologia e da Medicina, se sentiram corpo (mind/body medicine).
crentes, nos EUA inúmeras facul-
impelidos a evocar uma conexão Uma das obras que se tornou
com Deus? Não existe um antago- dades de medicina alteram o cur- um best seller na França foi o livro
nismo entre as visões de mundo rículo de formação de seus futuros “Guérir” (em francês), ou The Ins-
científica e espiritual? Ambas não profissionais para estudar a questão tinct to Heal (em inglês), de autoria
deveriam, ao mesmo, evitar apa- e ensinar os estudantes em como do médico francês radicado nos
recer lado a lado no Salão Leste? lidar com os pacientes em relação EUA, Dr. David Servan-Schreiber,
Quais os motivos para evocar Deus à esta questão, (doença/saúde/ professor de psiquiatria no Centro
nesses dois discursos? Poesia? Hi- fé/cura), além disso, aumentou Médico da Universidade de Pit-
pocrisia? Uma tentativa cínica de muito o número de pacientes que tsburgh. Esta obra foi traduzida
bajular as pessoas religiosas ou de solicitam orações a seus médicos. para o português em 2004 (Ser-
desarmar as que talvez criticassem Segundo pesquisa feita pela revista van-Schreiber, 2004). A obra é um
o estudo do genoma humano como Newsweek, 72% dos norte-america- estudo de tratamento de doenças
se este reduzisse a humanidade a nos são favoráveis a dialogar com crônicas, incluindo depressão, ex-
um maquinário?” seus médicos sobre fé e o mesmo plorando a conexão mente e corpo.
Não, nada disso, muito pelo número dizem crer que rezando a Ao ser perguntado porque escreveu
contrário. Para Collins “a expe- Deus, pode-se curar alguém, mes- o livro ele diz que “descobriu que a
riência de mapear a seqüência mo quando a ciência afirma que maioria dos seus pacientes com proble-
do genoma humano e descobrir determinada pessoa não tem a mí- mas médicos, apresentava também pro-
o mais notável de todos os textos nima chance de cura. blemas psiquiátricos. Isto aprofundou
foi, ao mesmo tempo, uma reali- Deus que havia sido banido da minha consciência da conexão mente-
zação científica excepcionalmente prática clínica já há algum tem- corpo“. Estudos mostram que em
bela e um momento de veneração” po, passa a ser valorizado. Isto em torno de 50 a 70% de problemas
(Collins, 2007, p. 11). grande parte acontece devido ao de cuidados primários em saúde
Nosso último ponto de reflexão aumento da crença dos médicos, tem o estresse como o maior fator
é apresentar a tentativa de provar de que o que ocorre na mente da desencadeador. Medicação para
cientificamente por parte de cien- pessoa pode ser tão importante pressão sanguínea e anti-inflama-

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A ESPIRITUALIDADE INTERPRETADA PELAS CIÊNCIAS E PELA SAÚDE

tórios, bem como anti-depressivos, Periódicos científicos de reco- dade. Esta pesquisadora no entanto
são simplesmente paliativos para nhecida credibilidade científica, descobriu algo que a deixou estu-
problemas interiores, lembra o Dr. como a britânica Lancet e a Norte pefata. As pessoas que freqüentam
Servan-Schreiber. Continua di- americana, New England Journal Igreja têm 25% de redução em
zendo que “Não é novidade o fato de of Medicine, entraram na discussão mortalidade, isto significa que elas
que o amor é importante para a saúde. da temática religião e ciência. Per- vivem mais em relação às pessoas
Mas não sabíamos até muito recen- cebe-se dois lados antagônicos, os que não freqüentam. “Isto é real-
temente, que a harmonia e conexões que negam tudo radicalmente e os mente poderoso”, afirma.
emocionais são necessidades biológicas, que valorizam tudo em termos de Num esforço para compreen-
que se situam praticamente no mesmo fé. Alguns cientistas, como Prof. der as diferenças em saúde entre
nível da alimentação, ar e controle de Richard Sloan, da Universidade de crentes e não crentes, cientistas
temperatura”. Ao ser perguntado Columbia, num artigo para a revis- começam a estudar os compo-
sobre o papel da espiritualidade e ta Lancet ataca os estudos sobre a nentes individuais da experiência
oração em relação à saúde respon- fé e cura, acusando-os de metodo- religiosa. Escaneando o cérebro
de: “A espiritualidade tem um papel logia fraca e pensamento soft. Ele eles descobriram que a meditação
essencial. Mas existe espiritualidade não acredita que a religião tenha pode mudar a atividade cerebral e
saudável e não saudável. Se a oração um lugar na medicina e que in- fortalecer a resposta imunológica.
produz um estado de calma, amor e sen- centivar os pacientes para práticas Outros estudos mostraram que a
so de pertença, isso tem uma correlação espirituais pode mais causar danos meditação pode diminuir as batidas
física positiva em relação à saúde. Mas que bem. No entanto, de forma cardíacas e a pressão sanguínea, re-
se a espiritualidade é moralista, não respeitosa o Prof. Sloan diz que duzindo conseqüentemente o es-
é necessariamente saudável. Existem os médicos devem se sentir livres tresse corporal.
técnicas que foram desenvolvidas que para encaminhar os pacientes para De forma geral, os estudos sobre
são positivas. Por exemplo, Inácio de os capelães hospitalares, na pers- a oração não mostram resultados
Loyola fala de concentrar-se em grati- pectiva de que a conversação reli- claros, e até mesmo pesquisadores
dão na oração. Expressar gratidão pelo giosa precisa continuar. Ninguém que valorizam o componente re-
mundo como ele é, produz um estado duvida que em tempos de dificul- ligioso na vida das pessoas, duvi-
físico e mental positivo, independente- dade, a religião traz conforto para dam que se possa testar a oração,
mente de ser um religioso ou secular. No um número grande de pessoas, diz provando resultados. Os estudos
livro de Victor Frankl “Man´s Search Sloan. “A questão é se a medicina pode levantam questões que ninguém
for Meaning” (O Homem em busca de acrescentar algo a isso, minha resposta pode responder: Uma oração ex-
sentido) Frankl apresenta uma mu- é não”, diz ele. Outros como o Dr. tra pode significar uma diferença
lher que está morrendo num campo Harold Koening, pioneiro na pes- entre vida e morte? A oração pode
de concentração. Ela pode ver folhas quisa sobre fé e medicina, da Uni- ser dosada como se dosa os remé-
numa árvore através da pequena ja- versidade de Duke, acredita que dios? Rezar mais e fervorosamente
nela do seu quarto. Vendo vida, não existe uma crescente evidência que significa um melhor tratamento
necessariamente Deus, mas natureza, aponta para os efeitos positivos da por parte de Deus? Certamente na
lhe traz conforto.” (Newsweek, p. religião sobre a saúde e que afastar mente de muitos, estas questões
46, entrevista concedida a Ginny a espiritualidade da clínica é uma cheiram quase sacrilégio.
Power em Paris. Cf. também David irresponsabilidade. Patrick Theillier, Chefe da clí-
Servan-Schreiber, 2004, p. 177- O prestigioso Instituto Nacional nica médica em Lourdes na Fran-
192). Ao ser perguntado, o que de Saúde (NIH) dos EUA criou uma ça, encarregado de documentar
dizer das pessoas que atribuem sua comissão específica para avaliar o relatos de peregrinos que dizem
melhora no estado de saúde, por- estado das pesquisas em torno do ter sido curados no santuário, diz:
que outros rezaram por elas, o Dr. tema: fé, espiritualidade e saúde, a “Como médico, não posso dizer que esta
Servan-Schreiber diz que “não sei fim de encontrar um sentido fren- cura é milagrosa. Mas como católico
o que dizer, pois não posso explicar a te a excessiva produção de dados e praticante, posso reconhecer que ela é
partir de nossos sistema convencional trabalhos sobre esta questão. Mui- milagrosa”. Kenneth Pargament,
de crenças”. Este médico pergunta tas produções são irrelevantes, se- um professor de psicologia na Bo-
como rotina de atendimento aos gundo Llynda H. Powell, uma pes- wling Green State University de
seus pacientes se a vida espiritual quisadora na área de epidemiologia Ohio, estudou os métodos religio-
deles é um aspecto importante de que revisou mais de 150 trabalhos sos de lidar de quase 600 pacientes
sua saúde. na área de pesquisa em espirituali- com doenças que iam desde uma

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A ESPIRITUALIDADE INTERPRETADA PELAS CIÊNCIAS E PELA SAÚDE

gastroenterite até câncer. Aqueles que isto também passe a ocorrer piritualidade e cura, presenciamos
que pensavam que Deus os estava nas escolas médicas brasileiras que hoje uma grande abertura, profun-
punindo ou abandonando-os eram estão introduzindo a discussão so- da inquietação e espírito de busca.
em torno de 30% mais suscetíveis bre bioética nos seus currículos. Va- Claro que a medicina moderna exi-
de morrer nos próximos dois anos. loriza-se sempre mais o ser huma- ge provas científicas. Nesta última
“Lutas espirituais são sinais verme- no como um todo. As pessoas de- década, pesquisadores realizaram
lhos e precisam ser encaradas seria- sejam ser tratadas, com dignidade muitos estudos tentando mensu-
mente, diz Pargament. “Não quere- e como gente e não simplesmente rar cientificamente os efeitos da fé
mos transformar a profissão médica em identificas como doenças ou partes e espiritualidade sobre a saúde hu-
clero e capelães, mas tratar estas lutas do corpo doente. Acredita-se que mana. Perguntas cruciais são feitas
isoladamente dos problemas médicos ambientes humanizados são fatores e busca-se respostas nada fáceis: A
dos pacientes é miopia”. de saúde e cura. Os valores huma- religião pode ajudar na regressão de
Koenig(2000),diretor do Centro nísticos, que até há pouco tempo um câncer? Diminuir a depressão?
para o Estudo da Religião e Espiri- simplesmente não eram conside- Ajudar na recuperação de uma ci-
tualidade e saúde, da Universidade rados importantes, são retomados rurgia mais rapidamente? A fé em
de Duke, lidera o movimento para no cuidado em saúde. Deus, pode afastar a morte que se
uma melhor compreensão da reli- avizinha? Até o momento, os re-
gião do paciente e crenças espiri- sultados não são tão precisos, pois
tuais no âmbito da prática médica. Reflexões finais os estudos inevitavelmente vão
Ele defende que os médicos devem de encontro à dificuldade de usar
valorizar as histórias espirituais de Finalizamos nossa reflexão métodos científicos para responder
qualquer paciente com o qual irão lembrando Albert Einstein, que questões de ordem fundamental-
estabelecer uma relação, pergun- escreveu: “A ciência sem religião é mente existenciais. Como medir o
tando: “A religião é fonte de conforto incompleta, a religião sem ciência é poder da oração?
ou estresse? Você tem alguma crença cega”. Einstein tornou-se um cren- Enfim, a discussão sobre a
religiosa que influencia no processo de te no Deus criador impessoal: “Eu relação entre fé/espiritualidade/
decisão de sua vida? credito no deus de Spinoza, que se doença/cura/saúde não vai cessar
Não perguntar a respeito da reli- revelou na pacífica harmonia de tão cedo, acreditamos que apenas
gião do paciente pode trazer conse- que o que existe não é um Deus esteja se iniciando. A busca de en-
qüências sérias, diz Dr. Susan Stan- que se preocupa com fatos e ações tendimento científico prossegue,
gle, da Universidade da Califórnia, dos seres humanos”. Como um desde os laboratórios digitais sofisti-
CLA, ao lembrar de um paciente dos maiores cientistas de todos os cados da neurobiologia que buscam
muçulmano que necessitava de tempos, Einstein encontrou um “explorar Deus”, até o leito de mui-
medicação, mas estava observando caminho de acreditar em ambos, tos doentes crônicos que clamam
o Ramadan e não podia beber ou Deus e Ciência. É provável que ele por saúde e cura, invocando Deus
comer durante o dia. Após ouvir a não creditasse em um deus pessoal sem exigir provas. Temos muitas
história dos valores espirituais do ou no Deus Bíblico, mas os fatos perguntas, dúvidas e os resultados
paciente, a médica escolheu medi- da ciência levaram-no a inevitável encontrados por este caminho são
car uma vez ao dia após o por do conclusão que ambos, Deus e ciên- até certo ponto decepcionantes.
sol. “Se nós não tivéssemos conversado cia devem coexistir. O que podemos Pergunta-se se este é o caminho
sobre isto, eu teria prescrito a ele medi- aprender a partir desta realidade? correto de se encontrar respostas à
cação 4 vezes ao dia e ele simplesmente Certamente teremos que descobrir questão fundamental de Deus e sua
não teria tomado”, ela diz. nosso caminho original e único, intervenção no mundo da vida hu-
Temos no horizonte de busca “descobrindo a noção do belo em mana. É uma discussão que envolve
da cura de doenças crônicas e da relação ao mundo material, mas cientistas, pessoas que se definem
“saúde perfeita”, sinais interessan- também como ser humano conti- como pesquisadores céticos, agnós-
tes de valorização do componente nuar a se encantar e explorar o que ticos, ateus e crentes piedosos.
fé e espiritualidade relacionado à existe no nosso interior, exterior e Lembramos Santo Agostinho
saúde. Já lembramos que muitas para além de nós próprios” (Breit- que dizia: “se compreendes, não é
faculdades de medicina nos EUA bart, 2005, p. 15). Deus”. Claro que não podemos
estão oferecendo cursos específicos De um período de fechamento abdicar da compreensão racional
sobre espiritualidade ou integrando e até hostilidade da medicina cien- da realidade que nos cerca, valori-
o tema nos currículos. Esperamos tífica em relação à temática, fé/es- zando o conhecimento científico e

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A ESPIRITUALIDADE INTERPRETADA PELAS CIÊNCIAS E PELA SAÚDE

muito menos devemos renunciar Na perspectiva da fé cristã, temos sário respeitar. Não podemos mais
de “dar razões à nossa esperança”. a certeza e nutrimos a convicção absolutizar um conhecimento em
Temos uma sabedoria plurimilenar de que Deus é amor, e onde existe detrimento de outro. Nenhum co-
que nos é legada pelas religiões no amor aí está Deus, a vida se afirma nhecimento em si esgota a realida-
âmbito das diferentes culturas, en- e a saúde é uma realidade palpável. de de nossas vidas e natureza como
quanto o empreendimento cientí- Mesmo na morte, existe vida! O um todo. Certamente o conheci-
fico, é ainda bastante jovem, tem investimento tem que ser feito no mento da racionalidade científica
pouco mais de cinco séculos. Exis- amor, desde o âmbito individual até é importante,assim como outros
te muito ainda o que se descobrir. o sócio-político, que adquire nome tipos de conhecimento, tais como
Nossa profunda convicção é que de justiça, equidade e solidariedade a música, a literatura, a cultura e
Deus não se deixa revelar como no âmbito dos povos. O amor é im- as religiões. Querer captar todo o
prisioneiro de circuitos digitais da portante para a saúde humana. A mistério de Deus nas malhas da ra-
inventividade científica, e muito descoberta de Deus se faz nesta di- zão não deixa de ser um ato de or-
menos no âmbito da razão humana reção e não existe evidência maior gulho. Para finalizar e deixar como
orgulhosa de si. Se assim fosse es- de Deus do que o amor. uma provocação, retomamos o que
taríamos criando um deus à “nossa Esta é uma área em que temos diz Píer Luigi Luisi, bioquímico ita-
própria imagem e semelhança” an- “múltiplas visões”. Estamos fren- liano: “O dilema sobre Deus não pode
tes que propriamente sermos “ima- te a um pluralismo de convicções ser solucionado com lógica. Ou você tem
gem e semelhança de Deus”. e opções, perante o qual é neces- fé ou você não tem”.

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Recebido em 22 de dezembro de 2006


Aprovado em 18 de janeiro de 2007

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