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Universidade  Federal  do  Rio  de  Janeiro  

Museu  Nacional  
Programa  de  Pós-­‐‑Graduação  em  Antropologia  Social  
 
 
 
 
 
 
 
 

CAMINHOS  &  FEITURAS  


 
seguindo  ferramentas  de  santo  
em  um  candomblé  da  Bahia  
 
 
 
 
 
 
LUCAS  DE  MENDONÇA  MARQUES  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
2016  
 

CAMINHOS  &  FEITURAS  


seguindo  ferramentas  de  santo  em  um  candomblé  da  Bahia  
 
 
 
 
LUCAS  DE  MENDONÇA  MARQUES  
 
 
 
 
 
 
 
 
Dissertação   de   mestrado   apresentada   ao  
Programa   de   Pós-­‐‑Graduação   em  
Antropologia  Social  do  Museu  Nacional  da  
Universidade   Federal   do   Rio   de   Janeiro  
como  requisito  parcial  à  obtenção  do  título  
de  Mestre  em  Antropologia  Social  
 
 
 
Orientador:  MARCIO  GOLDMAN  
 
 
 
 
 
 
Fevereiro  
2016    

i
CAMINHOS  &  FEITURAS  
seguindo  ferramentas  de  santo  em  um  candomblé  da  Bahia  
 
 
LUCAS  DE  MENDONÇA  MARQUES  
 
 
Dissertação   de   mestrado   apresentada   ao   Programa   de   Pós-­‐‑Graduação   em  
Antropologia  Social  do  Museu  Nacional  da  Universidade  Federal  do  Rio  de  Janeiro  
como  requisito  parcial  à  obtenção  do  título  de  Mestre  em  Antropologia  Social  
 
Aprovada  por:  
 
 
Marcio  Goldman,  Doutor,  Universidade  Federal  do  Rio  de  Janeiro  (PPGAS/MN)  
 
 
Edgar  Rodrigues  Barbosa  Neto,  Doutor,  Universidade  Federal  de  Minas  Gerais  (UFMG)  
 
 
Luisa  Elvira  Belaunde,  Doutora,  Universidade  Federal  do  Rio  de  Janeiro  (PPGAS/MN)  
 
 
Suplentes:  
 
 
Tânia  Stolze  Lima,  Doutora,  Universidade  Federal  Fluminense  (UFF)  
 
 
Gabriel  Banaggia,  Doutor,  Universidade  Federal  do  Rio  de  Janeiro  (PPGAS/MN)  
 
 
 
 
 
Rio  de  Janeiro,  Fevereiro  de  2016  

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M357c

Marques, Lucas Caminhos e Feituras: seguindo ferramentas de


santo em um candomblé da Bahia / Lucas Marques. - Rio de
Janeiro, 2016.

182 f.

Orientador: Marcio Goldman.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social, 2016.
1. Religiões afro-brasileiras. 2. Antropologia. 3. Ferramentas
de santo. I. Goldman, Marcio, orient. II. Título.

iii
   

iv
AGRADECIMENTOS  
 

Essa dissertação não teria sido possível sem o encontro, a presença e a atenção de José Adário
dos Santos, o Zé Diabo. Foi ele quem me possibilitou percorrer os diferentes caminhos que
culminaram neste trabalho, me apresentando um mundo mais que encantador, mágico. É a
ele, portanto, que devo meu maior agradecimento.

Agradeço também a meu orientador, Marcio Goldman, a quem devo, mais que a orientação, a
amizade e, principalmente, a inspiração e a admiração.

De modo semelhante, agradeço a Luisa Elvira e Edgar Barbosa Neto, por aceitarem participar
da banca e por terem realizado contribuições tão fundamentais para a constituição deste
trabalho. Agradeço também a Tânia Stolze Lima e Gabriel Banaggia por aceitarem participar
como suplentes e também por terem, de uma menira ou de outra, contribuído na
elaboraçãodeste trabalho.

Devo agradecer também a CAPES e a FAPERJ por possibilitarem as condições mínimas para
o andamento da pesquisa.

No Museu, os cursos, as reuniões do NAnSi e as frequentes conversas e cervejas com colegas


foram fundamentais para as discussões que me proponho aqui. Assim, não poderia deixar de
agradecer aos cursos que assiti com Olívia Gomes da Cunha, Bruna Franchetto, Moacir
Palmeira, Ana Carneiro, Graziela Dainese, Adriana Facina e Gemma Orobitg. Agradeço
também aos funcionários da secretaria do Museu Nacional, em especial Adriana e Anderson,
e ao pessoal da biblioteca, Marcio e Dulce, por terem me auxiliado com os trâmites
burocráticos e pela gentileza e atenção.

Além disso, agradeço as conversas e cervejas com Natália, Luiza, Clara, Ana Paula, Maurício,
Julián, Clarisse, Cauê, Luis, Carla, Guilherme, Jorge, Felipe, Miguel, Leonor, André, Raúl,
Caio, Danilo, Taiguara, Marlise, Simone, Daniel, Bárbara, Márcio, e todos aqueles que
compartilharam copos e pensamentos comigo neste período.

v
Ao Breno e ao Dennis, que, além de dividir as angústias do mestrado, tornaram minha
residência no Rio um lugar certamente mais amoroso e agradável.

Ainda no Rio, não poderia deixar de mencionar a presença sempre importante de Júlia, Safira,
Ana, Poli, Márcio, Natânia e Tadeu.

Em Salvador, cidade que me captou e acolheu, agradeço ao povo de santo que me recebeu
durante todo esse tempo, em especial a Gilvânia, José, Juquinha, Sidnei, Fátima, Tinho,
Marivalda, Creuza, Ester, Fabiana, Cadinha, Janaílton, Dulce, Josiara, Cátia e Jorge.

Agradeço também aos muitos amigos que fiz e que foram fundamentais para que eu me
apaixonasse cada vez mais por essa cidade: Alana, Paula, Gabriel, Alice, Xuxu, Nana,
Fernanda, Tiago, Marçal, Shine, Safira, Aquataluxe.

Ao Arnon, Thulio e Lucas, pelas presenças constantes, pelas reflexões e sobretudo pelo amor.

As discussões que tive no ECSAS e nos demais espaços que participei também foram
fundamentais para a composição dessa dissertação, e isso se deve sobretudo à atenção e
generosidade de Miriam Rabelo e Iara Souza, além de Dani Félix, Maycon, Paulo e todos os
demais.

Agradeço também ao pessoal da Ladeira da Conceição da Praia e à todos aqueles que lutaram
pelo processo de rexistência na Ladeira, que construíram um dos mais belos movimentos que
tive a oportunidade de participar em minha vida, me ensinando que é possível lutar por uma
cidade melhor: a Dona Ana, Evandro, Seu Edmilson, Simony, Nego Édson, Zé Grande, Paulo
e a todos os demais moradores da Ladeira, bem como à presença fundamental dos apoiadores
Wagner, Vitor, Maura, Maya, Mattijs, Santiago, Thaís e Viviane.

Em Brasília, cidade que nasci e que aprendo cada vez mais a gostar, não poderia deixar de
agradecer aos amigos que, de uma maneira ou de outra, contribuíram para essa dissertação:
Bárbara, Ana Rabelo, Ranna, Noshua, Bia, Bagui, Cláudio, Tiaguinho, Guilherme, Mari,
Rodolfo, Gregório, Letícia, Laura, Wellington, Pedro, Danilo, Paique, Rafa, JM, Aline, Ju,
Flavinha, Luísa, Carol, Ana Lívia, Tiagão, Caio, Rafa.

Ao Farage, pela parceria e amizade.

vi
Ao pessoal de Taguá: Bia, Dani, Peré, Tássio, Marcelinho, Mão, Eduardo, Camila, Thaísa.

Na UnB, a participação no projeto “Transformações Técnicas”, organizado pelo professor


Carlos Sautchuk, também foi fundamental para as reflexões teóricas que apresento aqui.
Portanto, agradeço ao Carlos, Fabiano, Di Deus, Gui, Pedro, Simone e Júlia pelas instigantes
discussões nos encontros que tivemos.

Agradeço também a todos aqueles que contribuíram debatendo ideias ou me ouvindo


apresentar parte do trabalho, como Fábio Mura, Ludovic Coupaye, Marcela Coelho,
Guilherme Sá, Jeremy Deturche, Manuel Lima Filho, Caetano Sordi, Letícia Cesarino, Diego
da Silveira, dentre outros.

Ao Guilherme Moura e sua companheira, Mariana Souza, pelas constantes inspirações


teóricas, políticas e existenciais.

Ao Olavo Souza Pinto, pelas instigantes discussões, pela leitura de parte deste trabalho e,
principalmente, pela parceria e amizade ao longo destes anos.

A Maria, por tornar os meus dias mais felizes e lembrar das presenças que nos afetam, pelo
companheirismo e parceria na vida.

E, por fim, a minha família, minhas tias, meu pai, meu irmão e, principalmente, a minha mãe,
dona Cleuza, cujo agradecimento por tudo ainda teria sido pouco para tanto amor e dedicação.

   

vii
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

caminante, no hay camino,


se hace camino al andar

Antonio Machado, Proverbios y Cantares XXIX, 1910  

viii
RESUMO  

Esta dissertação trata do modo como deuses, pessoas e coisas se relacionam no mundo do
candomblé. Para isso, acompanha os distintos caminhos percorridos pelas chamadas
“ferramentas de santo”: artefatos feitos de ferro que se tornam – ou são preparados para –
entidades das religiões de matriz africana no Brasil (Orixás, Exus, Voduns, Inquices,
Caboclos etc.). A proposta é seguir etnograficamente como as coisas são feitas no candomblé,
através de um processo de composição e agenciamento de distintas forças, que atravessam e
constituem seres, territórios, casas, assentamentos, pedras ou ferramentas. A dissertação busca
explorar o modo como o candomblé parece nos sugerir uma espécie de “ecologia prática” que
escapa ao modelo hilemórfico ocidental, propondo um mundo povoado por forças que
constituem os seres em diferentes modos de existência. Essas forças, para se manterem
“vivas”, demandam um cuidadoso e ininterrupto trabalho ritual, num diálogo contínuo e
improvisativo entre pessoas e deuses por meio das coisas. Por fim, trata-se de reverberar esse
modo de composição para a própria experiência antropológica, propondo outras
possibilidades para lidar com a prática e o pensamento do outro.

   

ix
ABSTRACT  

This thesis deals with the relation between gods, people and things in the world of candomblé,
an afro-brazilian religion. It follows the different paths taken by the so called “ferramentas de
santo”: iron artifacts that become – or are consecrated for – entities that belong to these
religions (Orixás, Exus, Voduns, Inquices. Caboclos, etc.). The purpose is to follow
ethnographically how things are made in candomblé, through an assemblage and composing
process by distinguishable forces that constitute beings, territories, houses, shrines, stones or
ferramentas. The thesis explores how candomblé seems to offer a sort of “practical ecology”
which escapes from an occidental hylomorphic model, proposing a world inhabited by forces
that constitute beings in different modes of existence. These forces, to stay “alive”, demands a
continuous and careful ritual work – in an improvised dialogue between gods and people
through the mediation of things. Finally, this work seeks to resonate this mode of composition
for the anthropological experience itself, proposing other possibilities to deal with the practice
and the other’s way of thinking.

   

x
SOBRE  CONVENÇÕES  E  FICÇÕES  
 
 
Antes de prosseguirmos com a dissertação, é necessário explicitar algumas escolhas que
tomei durante a escrita.

A principal delas, acredito, diz respeito ao uso de nomes fictícios. Com exceção de Zé Diabo
e seu filho, José, todos os demais nomes que vocês encontrarão neste trabalho são fictícios.
Essa escolha foi feita tanto para preservar as pessoas com quem Zé trabalha ou convive,
quanto pelo fato de que não tive tempo suficiente para mostrar e discutir o trabalho com todas
as pessoas envolvidas, escolhendo portanto preservá-las ao menos neste primeiro momento.
Com Zé obviamente não poderia fazer o mesmo, uma vez que foi com ele que aprendi tudo o
que sei sobre candomblé e, como veremos, essa etnografia não é mais do que uma tentativa de
lidar com o encontro com seu caminho. Não farei uma longa reflexão sobre a natureza e o uso
da ficção na antropologia, mas quero lembrar, como escreveu Chinua Achebe (apud
Goldman 2011:427), que “embora toda ficção seja indubitavelmente fictícia, ela também pode
ser verdadeira ou falsa; não com a verdade ou a falsidade de um noticiário, mas em função de
seu desprendimento, de suas intenções, de sua integridade”. Espero, portanto, que eu consiga
ser sincero e verdadeiro com aquelas pessoas que tanto me ensinaram sobre o mundo do
candomblé e suas forças.

No mais, cabe explicitar algumas escolhas estilísticas:

Optei por transcrever as palavras em Iorubá tal qual se costuma transcrevê-las em português
ou, ainda, tal qual consegui escutar durante o campo, atentando para as diferentes pronúncias
e variações existentes no rico universo afro-brasileiro.

Grifei em itálico todos os termos nativos, no contexto específico em que cada um os utiliza.
Em itálico, também, estarão as falas das pessoas com quem convivi, às vezes destacadas do
texto para ressaltar sua importância.

Nas citações, optei, sempre que possível, por deixar as datas das publicações originais no
texto, um vez que o leitor poderá examinar a fonte que consultei nas referências bibliográficas
desta dissertação.

xi
SUMÁRIO  
 

Prólogo  –  O  caminho  de  ida,  1  

1.  Nos  limiares  do  ferro,  16  


Entre  formas  e  forças,  17  
As  ferramentas-­‐de-­‐orixás,  22  
O  jabá  de  Ogum,  34  

2.  A  casa  e  suas  feituras,  46  


Plantando  o  axé,  48  
“Essa  casa  não  é  minha...”,  55  
Topologias  rituais,  62  
Os  pejis  e  seus  santos,  69  

3.  O  assentamento  e  suas  composições,  75  


Construindo  relações,  76  
O  corpo  do  assentamento,  83  
Um  encontro  com  o  otá,  91  
Uma  troca  de  mãos,  96  

4.  A  força  das  coisas,  101  


Tecnologias  rituais,  102  
A  vida  de  um  assentamento,  113  
Cartografia  de  forças,  123  
As  coisas  e  suas  transformações,  128  
Breve  reflexão  sobre  o  fazer  no  candomblé,  137  

Epílogo,  148  

Referências  Bibliográficas,  157  

xii
P RÓLOGO  –  O  CAMINHO  DE  IDA  

Era uma madrugada de segunda-feira do mês de janeiro de 2015. Estávamos na casa de José
Adário dos Santos, mais conhecido como “Zé Diabo”, e acabáramos de realizar um ebó1 para
um cliente que viera de Brasília. Como se tratava de um trabalho considerado ‘pesado’, quem
assumiu o comando do ritual foi Pedro de Alencar, um dos espíritos que acompanham Zé
Diabo. Como de costume, Pedro caminhava com um andar carregado, falava alto e tinha uma
feição risonha, que não largava o sorriso entremeado com baforadas de um charuto sempre à
mão.
O trabalho, feito para exu, já havia terminado; mas mesmo assim Pedro de Alencar
resolveu cantar e dançar algumas cantigas para o orixá, percutindo um agogô2. Enquanto isso,
eu e Jurandir – um amigo e ajudante de Zé Diabo –, tentávamos convencê-lo ao contrário,
pois o horário já estava avançado e não queríamos chamar a atenção dos vizinhos. O esforço,
no entanto, era vão: Pedro, com uma língua sempre afiada, nos dava uma resposta ríspida e
continuava a tocar cada vez mais alto. Foi assim que, percebendo que eu havia desistido de
tentar convencê-lo a parar, ele me entregou duas varetas de madeira – chamadas aguidavis – e
me mandou tocar o atabaque que estava no quarto de Exu. Eu, meio sem jeito, demorei a
entender o pedido; pois, não sendo nem ogã3 nem iniciado, desconhecia quase completamente
o conhecimento prático necessário para executar os toques solicitados. Ainda assim, ao me
deparar com as baquetas em mãos, me atrevi a arriscar alguns toques, me guiando pelas
batidas que Pedro de Alencar fazia com o agogô. Ele me olhava, rindo, e continuava cantando
e dançando dentro do quarto de Exu. Jurandir observava a cena do lado de fora.

1
Ebó é uma oferenda aos orixás, destinadas a atender algum pedido ou fazer alguma “limpeza”. Também pode
ser considerado sinônimo de feitiço.
2
Instrumento idiofônico formado por duas campânulas de metal. É ele que, em geral, inicia os toques para cada
orixá no candomblé.
3
Ogã, no candomblé, refere-se ao cargo dos homens que não são rodantes, ou seja, que não vivenciam a
possessão. Eles podem exercer diferentes funções, como tocar os atabaques, realizar os sacrifícios ou cuidar do
bom andamento das festas.

1
Não sei bem ao certo como nem porquê, mas ouso dizer que a improvisação deu certo
(mais para mim e para Pedro do que para os vizinhos, certamente). Tocamos, por mais de uma
hora, diversos toques para Exu, Ogum, e até arriscamos alguns outros – sem o uso dos
aguidavis – para o caboclo de Zé Diabo, chamado Guarani, e para o próprio Pedro, seu
boiadeiro. Foi então que, ao me ver tocando, Pedro de Alencar parou e, soltando uma risada
que lhe é característica, disse: “Você tá querendo ser muito sabido já. Não vou te passar mais
nada, seu moleque!”.
***
“Não vou te passar mais nada”. Essa frase, retirada de um dos trechos do meu caderno
de campo, foi ouvida por mim em diversas situações durante a pesquisa. No entanto, ao invés
de revelar algum tipo de ‘recusa’ na transmissão de um conhecimento, ela me mostrava,
antes, que algo me havia sido passado – ainda que eu não compreendesse muito bem como
nem a quê esse ‘algo’ se referia. Afinal, o que tinha sido aquilo que eu tinha aprendido sem
nem saber direito que eu estava aprendendo? De fato, foram raras as ocasiões em que
consegui demonstrar que sabia de alguma coisa; mais raras ainda, no entanto, foram as vezes
em que ele explicitamente me forneceu algum tipo de ‘informação’ ou ‘explicação’ sobre o
que estava acontecendo – ao menos, como veremos, no sentido esperado por mim.
Conheci Zé Diabo em fevereiro de 2012 e, desde setembro daquele ano, venho
acompanhando suas andanças entre sua oficina e diversas casas de candomblé – incluindo a
sua própria, localizada num bairro periférico de Salvador – seja fabricando e assentando
ferramentas-de-orixá, seja fazendo ebós, oferendas ou participando de festas e rituais de
feitura. Ferramentas-de-orixás, ou ferramentas de santo, são artefatos que se tornam – ou são
preparados para – entidades das religiões de matriz africana no Brasil: Orixás, Exus, Voduns,
Inquices, Caboclos etc. Em geral, esses artefatos estarão presentes no ibá, conjunto de
artefatos onde é assentado o orixá4, também chamado de assentamento. Zé Diabo fabrica
essas ferramentas há mais de 50 anos, em uma oficina localizada na histórica Ladeira da
Conceição da Praia, em Salvador, Bahia. Aos 68 anos de idade, ele é hoje considerado por

4
O termo “orixá”, neste sentido, pode ganhar um significado nativo mais amplo, que diz respeito ao conjunto de
entidades, sejam elas Orixás, Caboclos, Inquices, Voduns e etc. Como no termo ferramentaria-de-orixás, onde
estas ferramentas podem ser feitas para diversos tipos de entidades, que nem sempre participam do panteão
litúrgico do candomblé de nação Ketu. Realizo aqui uma diferenciação arbitrária entre “Orixá”(entidade do
candomblé Ketu) e “orixá” (entidades afro-brasileiras) somente – e tão somente – para facilitar o entendimento e
evitar explicações repetidas que pausariam o andamento da leitura, embora reconheça de antemão que a maioria
desses termos – como a conhecida noção de axé, para citarmos outro exemplo – são fluidos e carregados de
ambiguidades que variarão a depender do contexto utilizado.

2
boa parte do povo de santo de Salvador como um grande ferreiro ou “ferramenteiro-de-orixá”.
Seu processo de aprendizagem técnica com os metais acompanhou sua aprendizagem com o
próprio candomblé: iniciado na religião aos oito anos de idade, Zé Diabo é também pai-de-
santo (ou babalorixá), possuindo um grande conhecimento em relação a assentamentos, ebós,
feituras, folhas e jogos de búzios.
Entre outubro de 2012 e setembro de 2013, em meu primeiro período de campo,
acompanhei e dei ênfase ao trabalho de Zé Diabo em sua oficina, na fabricação de
ferramentas de orixá (ao processo que ele chama de jabá de Ogum). Ainda que, naquela
época, diversas outras relações – que extrapolavam e muito os limites da oficina – se
impunham sobre minha pesquisa, o meu foco era nos processos técnicos de construção dessas
ferramentas, e nos diálogos estabelecidos, ali, entre o homem, a matéria e os deuses. Essa
pesquisa deu origem à minha monografia de graduação, defendida em fevereiro de 2014,
enquanto uma primeira tentativa de diálogo entre a chamada ‘antropologia da técnica’ e os
estudos de religiões de matriz africana no Brasil (cf. Marques 2014).
Feita a escolha de estudar processos técnicos e suas relações, a questão da participação
e da aprendizagem tornou-se quase um imperativo para minha pesquisa naquela época, se
quisesse compreender minimamente o que se passava na oficina. Zé Diabo costumava
explicava a minha presença às pessoas que chegavam ali dizendo que eu era seu “aprendiz”.
De um mero discurso à sua efetivação, passei então a ajudá-lo, junto com seu filho, José, nas
diversas tarefas que compunham a oficina, como cortar chapas, serrar barras de metal, lixar e
pintar ferramentas, ou mesmo buscar materiais, providenciar almoço ou jogar no bicho. Aos
poucos, fui tendo acesso a tarefas que antes me eram restritas, como soldar e forjar algumas
barras de metal, até que, já no fim do meu primeiro período de campo, pude forjar o meu
primeiro Exu.
Neste segundo período de campo, porém, a situação era um pouco diferente. Voltei
para Salvador em janeiro de 2015, com o intuito de continuar minha pesquisa em torno das
ferramentas de santo; dessa vez, contudo, meu foco recairia sobre as relações estabelecidas
para além e em continuidade com a oficina, ‘acompanhando’ os rituais de feitura,
assentamento, comida etc., ocorridos nas casas de candomblé com as quais, de uma maneira
ou de outra, Zé mantinha relações.
Entretanto, no decorrer da pesquisa logo percebi que essa escolha me exigiria outros
tipos de disposições e afecções. Isso porque, se da primeira vez que estive em campo não

3
foram poucas as vezes em que ouvi a frase “você vai ser ferreiro”; a frase, anunciada logo no
início deste segundo período, depois de eu ter contado à Zé Diabo sobre as intenções da
minha pesquisa, foi: “você vai ser pai de santo”. Isso, como era de se esperar, acarretou em
algumas mudanças substanciais na nossa relação.
De uma espécie de ‘aprendiz’ nas artes da ferramentaria de orixás, eu me tornava, com
o decorrer do tempo, algo como um aprendiz nas artes de feitiços, ebós e assentamentos. De
início, apesar do meu receio inicial com a situação, até cheguei a pensar que essa alcunha me
daria acesso a algum ‘conhecimento’ ou ‘informação’ que não possuía. No entanto essa
pretensão – como fui logo obrigado a perceber – era um movimento de antemão frustrado.
Isso porque ser aprendiz, tanto na arte dos ferros quanto na arte dos feitiços, significava uma
coisa completamente diferente daquilo que inicialmente era esperado por mim. Em ambos os
casos, “ser aprendiz” não queria dizer que, a partir daí, eu receberia uma aprendizagem do
tipo ‘escolar’ até me tornar, de fato, algo como um ferreiro ou um pai-de-santo (ou seja, que
me seria transmitido um corpus organizado de conhecimentos, de ‘informações’ na forma de
representação); antes, dizia respeito ao fato de que eu estava participando das relações que ali
eram estabelecidas – lidando com diferentes forças, perseguindo determinados caminhos – e,
com isso, sendo inevitavelmente transformado pela situação.
Em geral, meus anseios (como os de todo etnógrafo iniciante, acredito) por ‘obter
informações’ – ou, o que é pior, captar ‘o todo’, a ‘cultura’ ou o ‘ponto de vista nativo’ – era
um movimento sempre fadado ao fracasso. Entrevistas, ainda que me foram úteis já no final
da minha pesquisa, como uma forma de sintetizar algumas coisas que tinha ‘captado’,
geralmente não me revelavam mais do que um discurso já preparado para outros
antropólogos, fotógrafos ou curadores de arte que vinham visitar a oficina (que, por ser uma
das últimas ainda em atividade, é referência em Salvador). A grande maioria das perguntas
informais tampouco me eram respondidas diretamente, principalmente se os temas tratados
diziam respeito ao sistema cosmológico do candomblé e, mais especialmente, a temas mais
‘delicados’ como assentamentos, ebós, feituras e feitiços.
De certo modo, poderia dizer que Zé Diabo nunca me considerou um ‘verdadeiro
antropólogo’: alguém que, na visão dele, seria um pesquisador ‘sério’, que, em duas ou três
visitas à oficina, coletaria ‘dados’, através de registros audiovisuais e entrevistas e, depois, lhe
daria algum dinheiro em troca de uma ferramenta. Talvez por minha idade, meus poucos
recursos financeiros ou mesmo minha disposição corporal adotada ao encontrá-lo, não sei ao

4
certo. O fato é que ele nunca me levou muito a sério enquanto ‘pesquisador’, me tratando
mais como um seu ‘aprendiz’, seja nos ofícios com o ferro, seja na arte do candomblé –
afinal, como veremos, para ele eu não estava ali ‘por acaso’. De minha parte, eu sempre
preferi tratá-lo como um amigo e, sobretudo, como um mestre, ao invés de um ‘informante’
ou um ‘nativo’. Essa escolha – que, mais do que metodológica, foi sobretudo afetiva – me
levou a trilhar certos caminhos que pautaram minha experiência (e também minha ansiedade)
em campo: a todas minhas perguntas ‘curiosas’, Zé Diabo ria, mudava de assunto e acabava
não me respondendo.
***
Aos poucos fui percebendo que eu não estava sozinho; ou, ao menos, que eu não era o
único a me inquietar com o fato de que, no candomblé, “aprender não é conceptualizado
como um corpo perfeitamente coerente e unificado de regras e conhecimentos, como algum
tipo de doutrina sobrecodificada e imposta de cima” (Goldman 2005:108).
Presenciei, em inúmeras situações, iniciados das mais distintas posições hierárquicas
do candomblé queixando-se para Zé Diabo de não terem aprendido tal ritual ou cantiga; ou
seja, de que seus respectivos pais ou mães de santo não haviam lhe passado o conhecimento
necessário. Em geral, essa queixa era uma forma implícita de pedir à Zé tal aprendizado, ou,
como dizia ele, de “roubar seu conhecimento”: “Esse povo vem aqui e acha que vai roubar
meu conhecimento assim, do nada? Ah, eu já vi foi muita coisa, meu filho”, me dizia,
terminando sempre com um de seus jargões favoritos: “como diziam os antigos: quem
aprendeu, aprendeu; quem não aprendeu, não aprende mais”.
Aprender ou não no candomblé era uma questão que mobilizava meus amigos durante
o campo – e, como não poderia deixar de ser, me mobilizava também. Se, por um lado, isso se
deve ao fato de que, no candomblé, há muito o que se aprender; por outro, é porque o próprio
conhecimento é alvo de disputas as mais diversas. A princípio, essa afirmativa poderia fazer
eco àquelas tão frequentes nos estudos afro-brasilianistas sobre ‘disputas de poder’, ‘status’
etc. (como, por exemplo, em Capone 2004). Mas, como costumava dizer Lévi-Strauss, “isso
não é tudo”. Pois, se no candomblé conhecimento é poder, temos que levar em consideração,
antes, que tanto um termo (conhecimento) quanto o outro (poder) podem ter acepções bem
distintas daquelas a que estamos acostumados.
“Você sabe ler e escrever, é um menino inteligente, mas não tem conhecimento.
Porque o axé é bem diferente, é saber fazer as coisas”, me dizia Zé Diabo, sempre que

5
comparava o meu ‘conhecimento’ com o que ele possuía. Conhecer, para ele, é sobretudo
saber fazer, ou seja, manipular determinadas forças para alcançar certos resultados. O
conhecimento, assim, é uma espécie de processo que produz “força” (e não apenas uma
‘substância’), e cultivá-lo é adquirir poder, não no sentido de um ‘status’ perante outros pais
ou mães de santo (ou não apenas isso); mas, principalmente, no sentido de força vital, de axé:
uma força que garante a própria existência e continuidade dos seres – garantindo, com isso,
proteção perante os inimigos. É nesse sentido que, no candomblé, aquele que tem
conhecimento (que “sabe fazer a coisa”) é visto em geral como uma pessoa poderosa.
Por conta disso, ‘aprender’ e ‘ensinar’ no candomblé é sempre um movimento
carregado de riscos. Selma, uma mãe de santo muito próxima de Zé Diabo, sempre reclamava
que ela não tinha aprendido o suficiente. Dizia que, como consequência, acabou perdendo seu
caminho, ficando, portanto, vulnerável a malefícios diversos. Zé sempre se compadecia da
situação, mas alegava que não podia fazer muita coisa, uma vez que não tinha sido ele quem
tinha “metido a mão em sua cabeça”, ou seja, a iniciado na religião. Ensiná-la, nesse
contexto, poderia colocar ele próprio também em risco, ao manipular energias que não
haviam sido “feitas” por ele. Para além disso, há o fato de que, uma vez que se ensina algo, a
pessoa que aprende pode utilizar esse conhecimento para atacar aquele que o ensinou: “o gato
só não ensina à onça o pulo”, dizia Zé Diabo, num misto de jocosidade e apreensão. Assim,
se aprender envolve uma série de responsabilidades, ensinar (ou, como veremos, criar as
condições de possibilidade para a aprendizagem) é igualmente perigoso.
No candomblé, aprender é um processo demorado e lento, que requer paciência e,
sobretudo, atenção ao que está se desenrolando. O processo de aprendizagem do candomblé é
sempre um movimento de captura (Goldman 2005); ou melhor, um duplo movimento, de
capturar e ser capturado pelas forças que habitam o mundo. Essa captura, no candomblé, é
chamada por vezes de “catar folhas”, como nos ensina Marcio Goldman:

“Aquele que deseja aprender alguma coisa no candomblé, sabe muito bem, e desde o início,
que é inútil esperar ensinamentos prontos e acabados de algum mestre, e que deve tratar de
ir reunindo, pacientemente, ao longo dos anos, os detalhes que recolhe aqui e ali, com a
esperança de que, em algum momento, esse conjunto de saberes adquira uma densidade
suficiente para que com ele se possa fazer alguma coisa” (ibid.:108-109).

Certa vez, conversando sobre o aprendizado, Zé Diabo me deu uma explicação bem
interessante sobre o que poderia ser esse “catar folhas”:

6
“É como quando você tá na mata, e tem que pegar as folhas pra fazer um negócio. E
não é você achar que alguém vai aparecer e te dizer ‘olha, essa folha usa pra isso,
essa praquilo’. É você olhar quando alguém tá fazendo, e conseguir gravar que tipo
de folha é, e depois ir tateando a mata até encontrar. Aí você primeiro vai
capengando, capengando, chega com a folha errada e o pai de santo manda você
voltar, e por aí vai... Até, quando ver, você já tá sabendo alguma coisa”.

Capturar conhecimento, assim, não é somente reunir ‘dados’ ou ‘informações’ sobre


tal ou qual coisa; antes, trata-se de deixar o conhecimento “enraizar-se nas profundezas do seu
ser” (Cossard 1970:227), através de um engajamento corporal ativo com o ambiente e seus
contextos. É criar-se continuamente através da tentativa, do erro e, sobretudo, da
experimentação: trata-se de “tatear” a mata, “capengar” até conseguir fazer a coisa certa.
Saber, além de envolver força, é portanto parte da própria constituição da pessoa no
candomblé (ver Goldman 1984). É somente através do engajamento prático que esse saber
tornar-se possível, constituindo assim a própria pessoa. O aprendizado, como dizem Rabelo &
Santos (2011:189), “procede pela participação e envolvimento gradativo em contextos de
prática (especialmente ritual) e raramente envolve transmissão sistemática de conteúdos”.
Detinha, uma das filhas de santo de Zé Diabo, sabe bem disso. Ela havia entrado no
candomblé já há algum tempo, embora ainda não tivesse sido iniciada. Já senhora, passou a
frequentar um terreiro em um município vizinho a Caxixi, cidade onde mora, a alguns
quilômetros de Salvador, na região metropolitana da cidade. Foi lá que conheceu Zé Diabo,
que frequentemente fazia trabalhos para a casa. Depois de alguns anos de convívio no terreiro,
Detinha (por motivos que não vêm ao caso agora) acabou rompendo com o pai-de-santo e se
afastando da casa, ato repetido por Zé Diabo pouco tempo depois. Após uma série de
disputas, ela finalmente conseguiu levar os santos que tinha assentado para sua residência. Foi
então que, sabendo que seu caminho era ser mãe de santo, ela começou a montar sua própria
casa de orixá, nos fundos de sua residência – processo que busco acompanhar no capítulo 2
desta dissertação). Zé Diabo passou a ajudá-la, e foi assim que, aos poucos, ela foi se
tornando sua filha de santo – ou seja, também uma espécie de “aprendiz”, embora num grau
muito distinto do meu5.
Seu desejo de ‘aprender’ aumentava a cada dia, ainda mais porque, após os conflitos
com seu antigo pai de santo, saber era uma forma de se proteger de qualquer incidente ou

5
Ainda que, por conta do intenso convívio com Zé e suas práticas, eu também fosse considerado um filho de sua
casa.

7
ataque. Zé Diabo, no entanto, se limitava a realizar os rituais necessários da casa (como
assentar e dar comida aos santos e fazer limpezas e ebós), fazendo com que Detinha
participasse ativamente de cada um deles – ainda que, na maior parte das vezes, sem explicar
os detalhes de cada ação. Detinha se queixava, dizendo que Zé não passava nada e que, desse
modo, ela nunca conseguiria se tornar mãe de santo. Ele retrucava, dizendo que a única
maneira de aprender era fazendo, não ficar sentada esperando que alguém lhe ensinasse.
Aprender, segundo ele, requer paciência: “quem tem pressa chega no cemitério cedo”, como
diz Zé.
No entanto, Detinha vivia um drama espiritual que a colocava em um paradoxo, pois
seu orixá demandava cada vez mais sua iniciação, causando uma série de infortúnios em sua
vida. Assim, ao mesmo tempo em que o único meio de adquirir conhecimento era por meio de
paciência e atenção, suas entidades cobravam cada vez mais que ela trilhasse seu caminho,
que era ser mãe de santo e cuidar de todas as entidades de sua casa.
Apesar de não ter sido feita, Detinha também era acompanhada por um Boiadeiro, que
já possuía certa popularidade na região. Ele realizava atendimentos esporádicos, dando
conselhos e passando rezas e limpezas. Pude acompanhar a primeira festa que Detinha
ofereceu a seu Boiadeiro, em julho de 2015. Nas semanas que antecederam a festa, uma
preocupação tomava conta de Zé Diabo, Detinha e seus familiares: o fato de que Boiadeiro
não saberia como proceder durante a festa. O Boiadeiro precisaria, então, ser educado6, ou
seja, aprender a se comportar minimamente conforme se era esperado durante a festa. Isso
incluía, dentre outras coisas, chegar e sair nos momentos adequados, saber os gestos e danças,
puxar sua salva – que é sua cantiga característica – e, além disso, saber responder um eventual
sotaque7.
Esses ensinamentos, segundo Zé, só poderiam ser passados pela entidade que o havia
batizado – neste caso, o próprio caboclo de Zé Diabo, Guarani. Foi então que, na semana que
antecedeu a festa, Guarani manifestou-se em Zé e chamou o boiadeiro de Detinha à terra.
Observando a cena, imaginei que, chamando o boiadeiro, o caboclo de Zé conversaria com

6
Ao contrário dos orixás, que são feitos, espíritos como Caboclos e Boiadeiros já “nascem prontos”; ou seja, não
demandam iniciação. Assim, o processo de aprendizagem do boiadeiro, ao contrário dos orixás, não é tanto de
formação, mas de domesticação, mudança de comportamento. Apesar de não serem iniciados, eles podem ser
batizados por alguma outra entidade, que se tornará seu “padrinho” e o auxiliará em seu processo de
domesticação.
7
Sotaques são “indiretas” cantadas pelas entidades que visam provocar outra pessoa ou entidade. Para uma
análise pormenorizada sobre o sotaque e suas potencialidades conceituais, ver Siqueira 2012.

8
ele sobre como proceder durante a festa. Logo, porém, vi que (novamente) eu estava
equivocado. Tal qual a situação que ocorrera comigo no caso dos atabaques, o caboclo de Zé,
quando “chegou”, começou a cantar e dançar pela sala da casa. O Boiadeiro, então, passou a
acompanhá-lo, dançando com ele pela casa. Eles dançaram por mais de duas horas, saudando
os atabaques, assentamentos e a porta da casa, além de cumprimentar todos os que estavam na
casa no momento. Tratava-se, portanto, de uma espécie de “ensaio” para a festa: era como se
a festa estivesse sendo realizada naquele momento, mas sem o público e, consequentemente,
sem os perigos suscetíveis de toda festa de candomblé, como fofocas, feitiços, mau-olhado
etc.
O que mais me chamava a atenção nesta estória era o fato de que, com as devidas
proporções, ela guardava semelhanças com a estória vivenciada por mim durante o trabalho
para exu, narrada no início deste texto. Em ambos os casos, foi através da mediação das
entidades que o “conhecimento”, de alguma forma, foi passado. Ou seja, mais do que ensinar,
as entidades exerciam o papel de mediadores do conhecimento: ao transformar o contexto de
aprendizagem, criavam as condições de possibilidade para que a habilidade pudesse se
desenvolver através de um engajamento prático-corporal. Assim, se por um lado Zé Diabo
não costuma passar nada; por outro, os espíritos que o acompanham, como Pedro de Alencar
ou Guarani, são conhecidos por criarem contextos específicos onde, por meio da prática, o
conhecimento seja passado, seja por meio de “ensaios”, seja por meio de receitas, ebós,
limpezas ou trabalhos.
No caso da história de Detinha, era a própria entidade quem ocupava a posição de
aprendiz. Era o Boiadeiro quem deveria aprender a se “portar” minimamente durante a festa,
realizando minimamente aquilo que dele seria esperado – guardando e ressaltando, é claro,
suas próprias especificidades. Como lembra Miriam Rabelo (2014; Rabelo & Santos 2011),
cada entidade ocupa a posição de aprendiz de modo distinto, aprendendo através de seu
próprio modo de existência e de suas características: orixás aprendem por meio da dança e da
relação com o iniciado, caboclos e boiadeiros são “domesticados” para que suas festas possam
ser realizadas, erês aprendem e fazem com que o iniciado aprenda por meio de brincadeiras,
perguntas e por terem um acesso mais “livre” no terreiro, assim como exus e padilhas
aprendem por meio da relação que eles estabelecem com seus “cavalos” e com a casa no qual
ambos estão vinculados, e assim por diante. Isso nos mostra, portanto, que o aprendizado no

9
candomblé envolve não somente os humanos, mas toda uma cadeia de mediadores
responsáveis por transformar o engajamento prático em ‘conhecimento’.
No entanto, vale lembrar que, tanto no ‘ensaio’ do Boiadeiro, onde foi preciso que
Guarani se manifestasse para dançar e cantar com ele, quanto no meu improviso com os
atabaques, o que estava se passando ali não era tão somente um ‘conhecimento’, como se se
tratasse de alguma espécie de “substância” já formada que é passada de um ser para o outro;
ao contrário, tratava-se do desenvolvimento de uma habilidade, um experimento onde o
engajamento prático é, ao mesmo tempo, uma maneira de aprender a aprender, onde, a cada
vez que ele era repetido, aprendia-se mais – um movimento que Bateson (1972:169) chamaria
de deutero-learning.
Assim, se havia alguma espécie de ‘saber’ sendo passado, esse saber era muito mais
da ordem do engajamento corporal com o ambiente do que da ‘explicação’ de algum corpus
ou regra de etiqueta. Poderíamos, como já sugerido por Rabelo & Santos (2011), aproximar
esse modo de aprendizagem ao que Tim Ingold (2010), inspirado no psicólogo James Gibson,
chamou de “educação da atenção”; ou seja, de pensar o conhecimento não enquanto uma
combinação de capacidades inatas e competências adquiridas (enculturação ou obtenção), mas
enquanto um processo de desenvolvimento de habilidades (enskilment). Nesse sentido,
‘ensinar’ não é ‘transmitir informações’, mas orientar uma redescoberta, guiar o noviço num
mundo de práticas, criando um contexto onde, num misto de improviso e imitação, se possa
cultivar uma habilidade (Ingold 2010:21).
***
Ao comparar minha experiência com a experiência vivida por Detinha e seu
Boiadeiro, não pretendo, com isso, ‘igualar’ ambas experiências8 mas, antes, ver nelas um
modo de agenciamento em comum. Igualá-las, aliás, não faria sequer sentido, pois cada
pessoa (ou espírito), ao entrar em relação com o mundo do candomblé, possui uma trajetória
que lhe é específica, que se conecta à religião de distintas maneiras (ver Rabelo 2014). Assim,
cada uma percorre um caminho único, trazendo distintas habilidades e sensibilidades –

8
De certo modo, acredito que é o que Ingold acaba fazendo, ao comparar a aprendizagem do ‘antropólogo’ com
aquela do ‘nativo’, homogeneizando as relações. Nesse sentido, concordo com a crítica elaborada por Sautchuk,
quando este diz: “Creio, porém, ser necessário não tomar esse pressuposto fenomenológico como uma interação
individual, ignorando o peso das diferenças, a começar pelas capacidades de percepção e ação, que são frutos de
engajamentos não livremente agenciados – o antropólogo guarda inúmeras diferenças em relação ao nativo,
mesmo se ambos podem pescar. Assim, creio que a interação prática tem seu valor etnográfico na medida em que
as diferenças de estatuto, de intenção, de envolvimento, de sentido e inclusive de competência numa dada prática
são levadas em consideração, inclusive como instrumentos heurísticos. (Sautchuk 2007, p.21)”.

10
affordances, para falarmos como Gibson (1979) –, que serão transformadas no decorrer do
itinerário. No entanto, tampouco faria sentido dizer que uma experiência é mais ‘plena’ do
que a outra, pois não existe uma experiência única e homogênea do que seja ‘participar’ no
candomblé; ao contrário, só se participa no fazer mesmo: tentando, fazendo, improvisando...
Assim, não se trata nem de propor uma ‘identificação total’ com o outro9; nem,
tampouco, de advogar por uma suposta ‘neutralidade’ na minha experiência com ele. Trata-se,
antes, de pensar a experiência etnográfica enquanto uma forma de ser afetado, como sugere o
pequeno (e célebre) artigo de Favret-Saada (2005). “Ser afetado”, lembra a autora, “não
implica identificar-se com o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo
para exercitar seu narcisismo” (2005:160). Ser afetado é, em suma, experimentar com o outro:
abrir um canal de afecção mútua com ele, uma comunicação involuntária e não-intencional –
de certo modo vacilante e incompreensível, pois não carrega a priori os “estoques de
perguntas” – que a direciona para uma variedade particular da experiência humana10; algo
próximo ao conceito deleuziano de devir, como sugere Goldman (2003:465) .
Se quiséssemos traçar algum tipo de “analogia”, no sentido wagneriano do termo
(Wagner 2010), entre o conceito de afecção apresentado por Favret-Saada e o universo
conceitual proposto por Zé Diabo, poderíamos aproximar a afecção à ideia de caminho. Pois,
como veremos, ter caminho é também ser capturado por esse “canal de afecção mútua” de que
fala Favret-Saada – um canal que te demanda e, principalmente, exige trabalho, cuidado e
prática.
É comum, dentre os praticantes do candomblé, se ouvir a frase: “ninguém está aqui
por acaso”, ou, ainda, “ninguém se inicia porque quer”. Essa frase indica que a agência no
candomblé está para muito além do humano, e que, portanto, a ‘vontade’ de se estar ou não ali
é, primeiramente, dos orixás. Clara Flaksman (2014), em uma etnografia realizada no famoso
terreiro do Gantois, evidenciou bem esse modo de relação, explorando as potencialidades
daquilo que, no candomblé, se chamaria de “enredo”. Ter enredo, diz a autora, é ter uma
relação; ou melhor, um complexo de relações instituídas que independe da ‘vontade’ humana

9
Como diz Goldman (2003:458): “meu argumento básico aqui não é tanto que ‘virar nativo’ seja impossível ou
ridículo, mas que, em todo caso, é uma ideia fútil e plena de inutilidade”.
10
Se os sentidos atribuídos à palavra afeto e suas apropriações foram muitos e variados, Favret-Saada (2005), no
entanto, deixa claro que o sentido de afeto (ou afecção) do qual ela pretende conceder estatuto epistemológico é
menos da ordem da “emoção” e da representação do que de um processo contínuo de afetação mútua – processo
este necessário para estar num campo de relações específicas que de outro modo seriam inacessíveis. Assim, a
ideia de afeto estaria aqui mais próxima à noção espinoziana de afecção – conceito que, nas palavras de Deleuze
(2002), trata de um plano comum de imanência não subjetivada agenciado dinamicamente.

11
ou do ‘acaso’. Enredo, no entanto, é distinto da ideia de caminho, embora ambos sejam
complementares. Pois, se entendi bem, enquanto o enredo é este modo de relação que permeia
o candomblé e suas múltiplas multiplicidades, o caminho, por sua vez, é a necessidade de
cultivar essa relação – de instituir, através da prática, uma conexão entre a pessoa e seu orixá.
Ou seja, enquanto o enredo parece ser uma relação ‘virtual’ (embora bem real) entre a pessoa
e seu orixá, o caminho aparece aqui enquanto a efetivação de seu próprio verbo, indicando a
ação que ele atualiza: ter caminho é enredar. Nesse sentido, como diz a autora (Flaksman
2014:8), “todo mundo tem enredo, mas nem todo mundo tem caminho”, ou seja, embora
todos sejam filhos de orixás, nem todos são demandados para trabalhar o caminho do seu
orixá.
Durante minha pesquisa, ainda que foram raras as vezes em que ouvi a palavra
“enredo”, a palavra caminho era mobilizada com frequência entre Zé e sua rede de relações.
Zé Diabo, embora sendo filho de Oxalá com Omolu, por trabalhar com o ferro também tem de
seguir pelo caminho de Ogum, realizando todos os ritos demandados por esse orixá. Selma, ao
sentir que não tinha aprendido o suficiente, dizia que tinha perdido o seu caminho, e isso lhe
acarretou uma série de infortúnios; Detinha, por sua vez, desde que entrou para o candomblé,
sabia, através das entidades que a acompanhavam, que o seu caminho era tornar-se mãe de
santo – caminho que lhe era cada vez mais demandado pelas entidades.
Através desses exemplos, podemos inferir que o caminho aparece como um modo de
relação entre pessoa e orixá que é ativado no momento mesmo da captura. Não se trata
somente de uma relação pré-estabelecida, que envolve duas entidades já formadas, mas de um
processo. Ter caminho só faz sentido na medida em que se percorre ele (e é por ele
atravessado). O caminho, então, torna-se um percurso que deve ser seguido (como o caminho
de Zé), uma demanda a ser trabalhada (como o caminho de Detinha), uma exigência de
cuidado (como a apreensão de Selma). No entanto, ter caminho tampouco diz respeito à uma
relação teleológica, pois o caminho, ao mesmo tempo, não leva a lugar algum; antes, ele te
indica percursos. Caminhar, nesse sentido, é modificar o próprio caminho. Tornar-se mãe de
santo, por exemplo, era o caminho de Detinha, embora ser mãe de santo não era seu fim
último – era apenas um percurso de seu caminho. Selma, por sua vez, também tinha o
caminho de mãe de santo, mas acabou perdendo-o ao não cultivar uma série de habilidades e
relações necessárias para efetivar seu caminho. Assim, trilhar um caminho é sempre um
movimento arriscado, pois nunca se sabe onde, de fato, se vai chegar ao caminhar.

12
É portanto a partir e através do caminho que a aprendizagem é possível no candomblé.
Saber é, sobretudo, trilhar um caminho. Ao mesmo tempo, só se aprende no candomblé
aquele que possui caminho, ou seja, aquele que, de uma forma ou de outra, foi capturado
pelas forças que habitam o mundo. É por isso que a aprendizagem, no candomblé, envolve
uma espécie de “dupla-captura”: para ‘capturar’ forças, é necessário, antes, deixar-se ser
capturado11. Tal como na etnografia da feitiçaria no Bocage narrada por Favret-Saada (1977),
não há neutralidade possível para aqueles que acessam o conhecimento: quanto mais se sabe,
mais envolvida a pessoa se encontra. É por isso que, para saber, é preciso sobretudo assumir
riscos: “você é forte o suficiente para saber?”, perguntavam à autora (ibid.:29), sempre que
ela tentava estabelecer uma relação de informação com as pessoas com quem ela convivia no
Bocage. O caminho, portanto, é um modo de relação que exige cuidado, em sua dupla
acepção do termo: tanto no sentido de ‘tomar conta’ quanto no sentido de ‘vigilância’,
‘atenção’.
O processo de aprendizado no candomblé, como dito, exige a feitura lenta e gradual
da pessoa, onde habilidades e relações são desenvolvidas e cultivadas. Como já observado por
diversos autores (como Goldman 1984; Santos 1975; Rabelo 2014; dentre outros), a pessoa,
no candomblé, é uma criação contínua e uma composição complexa de diferentes forças. Por
exemplo: ao cumprir as obrigações rituais de sete anos após a iniciação, a noviça (iaô) torna-
se egbome. Com isso, ela assume status de senioridade e, além disso, adquire maior controle
sobre as forças que a permeiam, recebendo o deká (a cuia que contém o axé) que a autoriza,
se os orixás assim desejarem (ou seja, se seu caminho for esse), a abrir sua própria casa de
candomblé. No entanto, passar pelos ritos de sete anos e “poder ser mãe de santo”, não faz
com que a egbome passe, repentinamente, a dominar uma suposta totalidade do corpus de
conhecimento do candomblé – como se, a partir daquele momento, ela conseguisse ‘saber’
tudo ou dominar uma totalidade de forças. Isso porque essa totalidade, aqui, sequer existe:
conhecer é sempre um movimento contínuo de estabelecimento de relações, que envolve
risco, improviso e prática. Estabilizar essas forças não quer dizer que a pessoa está
completamente ‘pronta’, pois sempre haverá algo a aprender, alguma força a ser passada,
composta.

11
É interessante lembrar que, em um de seus textos, Deleuze caracteriza o devir justamente por essa ‘dupla-
captura’: “Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução
não paralela, núpcias entre dois reinos” (Deleuze & Parnet 1998:10). Voltamos, pois, aos devires.

13
Ter caminho é, pois, exatamente isso: assumir a incerteza do saber, compreendendo
que sempre há mais a aprender, a ‘catar’, a capturar. Aprender, ou caminhar, portanto, é
sempre uma composição de diversos fragmentos de saberes, habilidades e práticas. “Catar
folhas”, para voltarmos à expressão utilizada por Goldman (2003, 2005), é reunir esses
detalhes, fragmentos de saber, a fim de, quando necessário, realizar uma espécie de “síntese
plausível”, ou, como diria Rabelo (2014:99), “compor uma totalidade”. Essa totalidade, no
entanto, nunca é tão ‘total’ assim; trata-se, antes, da uma totalidade possível, da totalidade
composta a partir e através do seu próprio caminhar. Assim, reunir esses fragmentos é compor
uma espécie de “síntese sem totalidade” – ou, melhor dizendo, um arranjo, que só é possível
através da prática, da manipulação e modulação de forças.
Trago esta ideia de caminho para o prólogo desta dissertação porque acredito que, de
certo modo, ela acompanhará toda a jornada que realizaremos daqui pra frente, ainda que de
modo implícito. Nesta dissertação, acompanharemos os caminhos percorridos pelas chamadas
ferramentas de santo, artefatos onde cruzam-se os caminhos de deuses, pessoas e coisas. É a
partir destes caminhos que pretendo refletir sobre as distintas feituras existentes no
candomblé, uma arte de compor e modular forças que está presente desde a produção de
objetos sagrados (como otás e ferramentas), até a composição do espaço, da pessoa e das
texturas ontológicas de cada entidade. E é esse arte, portanto, que será o objeto central desta
dissertação.
***
A dissertação está dividida em quatro capítulos. No primeiro capítulo, busco retomar
boa parte do material que resultou em minha monografia de graduação, a fim de apresentar o
que vem a ser uma ferramenta de santo e como ela é composta. Também busco analisar como
certa bibliografia sobre religiões afro-brasileiras tratou da relação entre coisas e deuses no
candomblé e, assim, como eu mesmo penso essa relação. Por fim, trato de apresentar o
trabalho da ferramentaria tal qual praticada por Zé Diabo, seguindo os distintos
agenciamentos que fazem com que o ferro seja transformado e passe a carregar a força do
orixá, através de um engajamento prático e sinergético entre o ferreiro, os materiais e os
deuses.
No segundo capítulo, antes de acompanhar a feitura ritual da ferramenta de santo,
busco voltar o foco à casa de Detinha e suas distintas composições. Assim, acompanho a
criação do terreiro – num processo denominado como plantar o axé – analisando o modo

14
como, no candomblé, se fazem casas e territórios, num processo de composição de forças
distintas. Em seguida, mapeio a forma como essas forças, uma vez criadas, constituem seus
territórios existenciais em uma casa de candomblé, compondo uma espécie de “topologia
ritual” fundamental para a própria manutenção existencial da casa.
É somente no terceiro capítulo, portanto, que retomo os caminhos percorridos por uma
ferramenta de santo que, ao sair da oficina de Zé Diabo, é encaminhada para um terreiro de
candomblé onde passará a fazer parte do assentamento do orixá. O assentamento, assim, será
o mote principal deste capítulo, que explorará como os vínculos entre as entidades e os
humanos são construídos gradualmente através da mediação do assentamento, e como o orixá
pede essa relação – através, por exemplo, do encontro com a pedra-orixá (chamada otá). Em
seguida, exploro o modo como os adeptos do candomblé constroem uma verdadeira
cartografia através das distintas forças que habitam os lugares e coisas, agenciando elementos
que serão fundamentais para compor os assentamentos. Por fim, narro o ritual de uma “troca
de mãos”, que consiste em refazer um assentamento e, assim, recompor as energias que
atravessam deuses e pessoas.
O quarto capítulo e último capítulo busca acompanhar o modo como, uma vez feito, o
assentamento, para se manter “vivo”, precisará de um trabalho ritual constante, e como esse
trabalho ritual é manipulado de distintas formas, através de diferentes técnicas, de modo que a
entidade passe a agir sobre o mundo e sobre seus filhos humanos. Trata-se, assim, de
acompanhar toda uma “ecologia prática” necessária no candomblé para manter as coisas
“vivas”. Em seguida, pretendo, sobretudo, levar à sério a ideia de que, no candomblé, o
mundo é povoado por uma intensidade de forças – sendo o sacerdote, antes, um agente
transformador, que “prepara” lugares, coisas, deuses e pessoas, compondo neles um arranjo
específico de forças. É isso que, enfim, nos levará a uma reflexão sobre a noção de fazer no
candomblé, e como ela escapa ao modelo hilemórfico ocidental.
Por fim, o epílogo busca retomar alguns pontos presentes no prólogo deste trabalho,
refletindo sobre como minha aprendizagem com Zé Diabo não pode ser desvencilhada da
construção da própria etnografia, e o quê, afinal, podemos aprender com isso.

15
1. N   OS  LIMIARES  DO  FERRO  

No pequeno e instigante livro que Bruno Latour dedicou ao tema do “fetichismo”


(2002), o autor começa nos contando uma história sobre a colonização africana, onde, ao
aportarem seus barcos na costa da África Ocidental, os portugueses, “cobertos de amuletos da
Virgem e dos santos”, demonstraram-se espantados com o fato de que os negros da Guiné
fabricavam seus próprios ídolos, tornando-os objetos de adoração. A esses objetos deram o
nome de fetiches, termo derivado da palavra portuguesa “feitiço”12. Algum tempo depois, em
1760, o filósofo Charles de Brosses, a partir do relato dos viajantes europeus à África, vai
cunhar o termo fetichismo, a fim de designar o modo como os africanos cultuavam seus
deuses, ou seja, por meio da atribuição de poderes sobrenaturais a objetos inanimados –
objetos que, escolhidos ao acaso, se tornariam “coisas encantadas” (fetiches).
Séculos depois, o mesmo espanto dos colonizadores portugueses e do filósofo
iluminista pareceu assombrar aquele que é considerado o pioneiro dos estudos sobre religiões
de matriz africana no Brasil, Raimundo Nina Rodrigues. Em seu estudo sobre O animismo
fetichista dos negros baianos, publicado em 1900, Nina Rodrigues demonstrava-se intrigado
com fato de que, para os negros baianos, tal qual os africanos da costa ocidental, pedras,
árvores ou objetos de ferro, quando consagrados, eram adorados como sendo os próprios
deuses, ou seja, que o que era motivo de adoração não era a “imagem” do santo, mas o
próprio objeto que a ele pertencia. Assim, Xangô – explicava-lhe uma negra baiana – era a
própria pedra de raio onde o santo está encarnado (1900:43); ou ainda, ao falar sobre Ogum,
dizia que “qualquer objeto de ferro pode ser adorado como Ogum, contanto que tenha sido
consagrado pelo feiticeiro” (1900:44).
Passados mais de cem anos dos trabalhos de Nina Rodrigues, podemos dizer, como
observa Marcio Goldman (2009:122), que esse espanto permanece vivo entre os estudiosos
das religiões afro-brasileiras, ora, como fazia Nina, para acusar os adeptos dessas religiões de
12
Ver, para uma história do fetiche e do fetichismo, a trilogia de artigos de William Pietz (1985, 1987, 1988),
além do texto de Goldman (2009), da dissertação de Rogério Pires (2009) e do próprio livro de Latour (2002).

16
“crentes” (ou seja, ingênuos, iludidos ou enganados), ora para dizer que estes objetos
representariam, na verdade, uma outra coisa (a “sociedade”, a “simbologia”, a “arte” etc.) – o
que, no fundo, dá no mesmo. Tanto num caso quanto no outro, parte-se do princípio de que
existe um mundo “profano” (que nós, modernos, conhecemos muito bem) que, por meio de
manipulações rituais, é “sacralizado” (por e para aqueles que ‘creem’). O espanto permanece,
portanto, porque os “fetiches” (que, vistos sob essa ótica, não poderiam ser outra coisa) são
sempre pensados na chave da “consagração”; como se, para os adeptos dessas religiões,
“sagrado” e “profano” significassem a mesma coisa que para os antropólogos, ou seja, fossem
categorias fixas, que não poderiam ‘se misturar’: algo deve ser profano para se tornar sagrado
– diziam os antropólogos desde Durkheim –, e todo o sagrado só pode ser tratado como
crença (a ‘coisa’ é real, os significados são ‘crenças’)
O problema, como lembra Ordep Serra (1995), é que “há fronteiras que só são rígidas
nas páginas das etnografias”; ou, como observa Latour, a “crença na crença” diz mais sobre
nós mesmos do que sobre aqueles que pretendemos estudar. Assim, entre o suposto vão que
separa os domínios do Sagrado e do Profano há uma série de mediações, agenciamentos que
envolvem pessoas, lugares, deuses e coisas. Se seguirmos essas mediações e práticas – ou
seja, se levarmos à sério o que as pessoas fazem e dizem sobre o que fazem – veremos que a
ideia de “consagração” ou “sacralização” diz pouco sobre o conjunto de práticas que
envolvem seres e coisas no candomblé, pois ambas pressupõem a implantação de uma
“anima” em algo supostamente inanimado. No entanto, como pensar nas transformações e
agenciamentos entre materiais e espíritos fora da chave da consagração? É o que tentaremos
fazer nas páginas que se seguem.

ENTRE  FORMAS  E  FORÇAS  

Dentro dos chamados “estudos afro-brasileiros”, os artefatos ligados aos modos de


interação com os deuses sempre desempenharam um papel algo paradoxal: ao mesmo tempo
em que povoaram as páginas das etnografias, raras foram as vezes em que assumiram lugares
de destaque nas análises e construções teóricas dos autores do campo, aparecendo, na maioria
das vezes, de forma periférica e sendo subsumidas à outras dimensões. Foi só recentemente,

17
como lembra Goldman (2009:121), que “um novo interesse pelos objetos materiais do
candomblé parece ter provocado um certo retorno aos tópicos outrora agrupados sob a
confusa e certamente acusatória rubrica de ‘fetichismo’”.
Desde Nina Rodrigues (1900) a antropologia brasileira já se interessava pelo modo
como essas religiões se relacionavam com os objetos, em especial naquilo que ele
pejorativamente classificou como “animismo fetichista”, segundo ele, “uma fase muito
curiosa do animismo em que as suas divindades já partilham as qualidades antropomórficas
das divindades politeístas, mas ainda conservam as formas exteriores do fetichismo primitivo”
(1932:173). Colecionador de artefatos africanos e afro-brasileiros – oriundos, a maior parte
deles, de batidas policiais realizadas nos terreiros de candomblé – Nina Rodrigues dedicaria
um capítulo de sua obra póstuma, Os Africanos no Brasil (2010 [1932]), para abordar “As
línguas e as Belas-Artes nos colonos pretos”, inaugurando assim os estudos antropológicos
sobre a arte negra no Brasil.
Partindo de uma visada evolucionista – cujo objetivo maior era provar a inferioridade
mental do povo negro em relação à raça ariana – Nina vai mostrar, entretanto, que os
inúmeros africanos que aqui chegaram, ao contrário do que se pensava à época, eram
“representantes dos povos africanos mais avançados em cultura e civilização” (1932:171).
Prova disso, segundo ele, eram suas capacidades artísticas na pintura e, principalmente, na
escultura. Assim, o autor vai dedicar uma parte de seus estudos a uma análise minuciosa das
esculturas africanas e afro-brasileiras (feitas principalmente em madeira) tomando-as tanto
enquanto “fetiches” como “obras artísticas”. Essas esculturas representariam, para ele, uma
“fase do desenvolvimento da cultura artística”, onde “no fundo já se encontra a gema que
reclama polimento e lapidação” (:180). Ainda que Nina Rodrigues tenha partido de uma base
evolucionista e racista, foi ele, no entanto, quem primeiro chamou de “arte” a produção dos
artefatos feitos por populações afro-brasileiras, numa época em que esta denominação estava
restrita à produção dos brancos europeus. Ao fazer isso, ele abriu caminho para o que se
chamaria, um pouco mais tarde, de arte afro-brasileira.
Seguindo a linha iniciada por Nina Rodrigues (porém sem a carga evolucionista que o
impregnava), diversos autores, como Arthur Ramos (1949), Manuel Querino, Clarival do
Prado Valladares (1969), Mario Barata (1988) ou Mariano Carneiro da Cunha (1983), para
ficarmos apenas com alguns exemplos, trataram os objetos produzidos pelas populações afro-
brasileiras (em especial as esculturas religiosas) enquanto expressões das capacidades

18
artísticas desses povos, ou seja, sob a égide da “Arte” – sempre tendo a África e o “estilo
artístico africano” como referência. Essas abordagens ligavam a noção de “arte afro-
brasileira” a um domínio majoritariamente religioso; seja na busca de uma “estética”
propriamente afro-brasileira, privilegiando a “forma” dos artefatos e suas permanências e
transformações em relação à África Ocidental ou à sociedade brasileira; seja destacando as
“funções” desses artefatos na cosmologia religiosa afro-brasileira, buscando revelar os
símbolos que estariam “ocultos” por detrás destas insígnias, cores e formatos13.
A essas abordagens somou-se, no decorrer do século XX, uma abordagem de cunho
mais “institucional” da arte afro-brasileira, cuja preocupação política e teórica passou a ser
dar destaque ao papel exercido pela população negra no tocante à produção artística brasileira
– papel que, no mais das vezes, permaneceu marginalizado face ao racismo impregnado no
país. Assim, intentava-se mostrar a forte presença de negros e mestiços nos trabalhos de arte
do Brasil, desde o século XVII – com figuras como Francisco Lisboa, o “Aleijadinho”,
Valentim da Fonseca, o “Mestre Valentim”, ou Francisco das Chagas, o “Cabra” – até o
século atual, com Rubem Valentim, Ronaldo Rego, Mestre Didi, Abdias do Nascimento ou
Agnaldo Manoel dos Santos – figuras que, de uma maneira ou de outra, alcançaram o estatuto
de artistas através de suas obras14 (cf. Araújo 1988; Sodré 2006; Conduru 2013).
Muito já se falou sobre as dificuldades e armadilhas de se definir um conceito
transcultural de arte (cf., por exemplo, Price 1993; Gell 1996 e Ingold 1996) e, sobre isso,
obviamente poderíamos dizer o mesmo a respeito da ideia de arte afro-brasileira15 (cf. Mattos
2014). Não é meu intuito aprofundar essa questão aqui; no entanto, gostaria de chamar a
atenção para algo que parece perpassar os estudos que se dedicam às chamadas “artes afro-

13
Algumas dessas abordagens podem ser exemplificadas pelos trabalhos de Lody (1983), Santos (1967),
Carneiro da Cunha (1983), Sodré (2006) e Mourão (2012).
14
Dentro de um sistema oficial de arte que, como lembra Nelma Mattos (2014), ressoou e ainda ressoa uma
abordagem racista, reproduzida não só pela academia, mas por galerias, museus, colecionadores, entre outros
elementos que se articulam para definir o que é ou não é arte.
15
Mariano Carneiro da Cunha (1983), por exemplo, apesar de definir a arte afro-brasileira como “uma expressão
convencionada artística que, ou desempenha função no culto dos orixás, ou trata de tema ligado ao culto” (:994),
vai, ao mesmo tempo, alargar essa definição, classificando os “artistas afro-brasileiros” segundo quatro grupos
distintos: aqueles que só utilizam temas negros incidentalmente (como Tarcila do Amaral, Lasar Segall ou
Portinari); os que o fazem de modo sistemático e consciente (como Carybé, Mário Cravo Jr., ou mesmo artistas
negros como Rubem Valentim e Abdias do Nascimento); os artistas que se servem não apenas de temas como
também de soluções plásticas negras espontâneas (como Agnaldo Manuel dos Santos – que estranhamente o
autor coloca no segundo grupo –, Guma, Louco ou Heitor dos Prazeres) e, finalmente, os chamados “artistas
rituais” (que incluem, além de Mestre Didi, uma maioria de artistas anônimos, que falariam de valores coletivos
– e onde, muito certamente, o autor incluiria Zé Diabo). Os três primeiros grupos, segundo Carneiro da Cunha,
definiriam o termo afro-brasileiro em seu sentido lato e o último em seu sentido estrito (:1023).

19
brasileiras”: tanto as abordagens formalistas, dedicadas à formas e estéticas, quanto as
abordagens funcionalistas, dedicadas aos símbolos e suas funções – para usarmos uma
distinção estabelecida por Munanga (2004) a respeito da arte africana –, ou ainda, acrescento,
as abordagens de cunho mais institucional, que lidam com o sistema oficial de arte e suas
particularidades, todas elas permanecem analisando os artefatos através de algo que lhes é
externo, subsumindo-os, assim, a outras dimensões, sejam estéticas, sociais, políticas ou
econômicas16. Nestas perspectivas, como vai dizer Latour (2012:110),

“os objetos não fazem coisa alguma sequer comparável ou mesmo conectável à ação social
humana e que, se às vezes ‘expressam’ relações de poder, ‘simbolizam’ hierarquias sociais,
‘agravam’ desigualdades sociais, ‘transportam’ o poder social, ‘objetivam’ a igualdade e
‘materializam’ relações de gênero, não podem estar na origem da atividade social”

Sem negar a importância política das abordagens sobre arte afro-brasileira que
passamos brevemente em revista, que buscam romper as históricas barreiras do preconceito
que assola as populações afro-brasileiras no país, proponho, no entanto, pensarmos em uma
outra abordagem possível, que busque sair dessa aparente dicotomia entre forma e função e se
aproxime mais do que as próprias pessoas fazem e dizem sobre a interação entre coisas,
deuses e pessoas. Trata-se, se quisermos, de algo mais próximo àquilo que Alfred Gell (1998)
definiu como uma “teoria antropológica da arte”, ou seja, o estudo do domínio em que
pessoas, coisas e deuses emergem mutuamente em suas relações sociais.
Em Art and Agency, Gell (1998) vai se opor tanto às teorias estéticas quanto às teorias
semióticas e institucionais para se pensar a arte, afirmando que um objeto de arte só pode ser
definido como tal a partir de um conjunto de relações sociais no qual ele próprio está inserido
e sobre o qual, de alguma maneira, ele intervêm. Assim, para o autor, a arte não é uma mera
“significação” do mundo; antes, deve ser encarada sobretudo enquanto um sistema de ação:

“No lugar da comunicação simbólica, dou ênfase à agência, intenção, causação, resultado
e transformação. Encaro a arte como um sistema de ação cujo fim é mudar o mundo, e não
codificar proposições simbólicas a respeito dele.” (Gell 1998, p.6)

Mais à frente, voltaremos a essa proposição de Gell para problematizar o modo como
este autor entende a relação entre pessoas e coisas (através da noção de agência). Por agora,
basta-nos reter essas mudança de perspectiva que o autor propõe em relação ao estudo

16
A isso eu chamei, em um artigo, de “vida dupla das coisas”: ora, sendo “reais”, as coisas estão condenadas a
nunca entrar no reino social; ora, sendo “constructos sociais”, elas têm sua matéria negada enquanto existência
natural (Marques 2015).

20
antropológico da arte, pois é essa mudança – acompanhada por autores como Marilyn
Strathern, Roy Wagner e Eduardo Viveiros de Castro – que permite que as coisas sejam
tomadas sob uma novo ponto de vista, analisando o conjunto de relações pelos quais elas
próprias emergem.
A coletânea Thinking Through Things, organizada por Henare, Holbraad e Wastell em
2007, dá um passo à mais nessa direção, e talvez hoje seja a referência mais nítida desta nova
agenda teórica e metodológica da antropologia – conhecida, para o bem e para o mal, como
“virada ontológica” – que busca retomar o estudo das “coisas” (não mais objetos ou artefatos)
levando à sério o que os próprios nativos têm a dizer sobre seu universo conceitual, sem
reduzir seus discursos a meras “perspectivas culturais”, “crenças” ou “pontos de vista” – ou
seja, sem reduzir suas conceituações ontológicas a questões epistemológicas. Trata-se,
segundo os autores da coletânea, de uma proposta essencialmente metodológica, que,
inspirada na ideia de simetria advogada por Bruno Latour, busca tomar as coisas tal qual elas
se apresentam (ou, como eles vão dizer, como conceitos), sem assumir a priori que elas
devam “significar”, “representar” ou estar em “função” de algo que lhes seja externo. Um
exemplo desta perspectiva é o artigo escrito por Martin Holbraad (2007), que analisa o poder
à luz dos oráculos de Ifá em Cuba: não se trata de dizer que o pó “representa” o poder,
tampouco que ele é “poderoso”; trata-se, antes, de levar as ontologias nativas à sério, ou seja,
de assumir as consequências de se pensar que, entre os praticantes de Ifá em Cuba, o pó, de
fato, é poder. Assim, a proposta dos autores é de uma metodologia onde as “coisas” elas
mesmas possam ditar uma pluralidade de ontologias – uma ontografia, como vai dizer
Holbraad (2003).
É a partir desta proposta que pretendo abordar as “coisas” e suas relações no
candomblé. Pois se as análises sobre os “objetos” no candomblé em geral foram reduzidas às
formas e funções, minha proposta neste trabalho é seguir o universo conceitual mobilizado
pelas práticas nativas. Assim, veremos que esse “vocabulário hilemórfico” (que separa de
antemão a forma da matéria) talvez não seja suficiente para dar conta do conjunto de relações
e agenciamentos que envolvem deuses, coisas e pessoas no candomblé. Porque antes de uma
questão de ‘formas’, o que parece estar em jogo, no candomblé, são as forças e suas
composições.

21
AS  FERRAMENTAS-­‐DE-­‐ORIXÁS    

Roger Bastide talvez tenha sido o antropólogo que melhor captou aquilo que
poderíamos chamar – usando suas próprias palavras – de uma filosofia sutil do candomblé,
ou, se quisermos, algo como uma espécie de ‘ontologia’ do candomblé. Inspirado nas ideias
de Lévy-Bruhl, Bastide dedica um dos capítulos conclusivos d’O Candomblé da Bahia (1958)
para aprofundar a tese de que o pensamento iorubano – e, logo, o afro-brasileiro – age por
meio da participação, ou seja, por meio da “cristalização de todo um conjunto de
participações entre os homens, as coisas e os orixás” (1958:70). Assim, o candomblé é
pensado não apenas enquanto uma instituição, mas, principalmente, como um sistema de
participações.
Neste sistema – naquilo que ele vai chamar de “princípio de participação” – as coisas
(humanos, ferramentas, elementos da natureza, orixás) ligam-se umas às outras, sendo
atravessadas pelas mesmas “linhas de forças” que lhe conferem existência. Todavia, lembra
Bastide (:184), “tudo não participa de tudo [...] As participações só ocorrem dentro de quadros
bem delimitados”. Assim, para que as coisas participem umas das outras, é necessário que
elas existam dentro de um mesmo domínio do real; ou seja, as participações só podem
ocorrem no interior de um determinado sistema classificatório do cosmos, só operam em
determinadas direções: “A participação não se opera em qualquer direção, é orientada, segue
linhas, e o que chamamos de religião é o conjunto de representações coletivas ou dos ritos que
designam as linhas de força dentro das quais ela pode se processar” (Bastide 1958:256).
Desse modo, ao princípio de participação Bastide acrescenta um outro, inspirado no
pensamento classificatório de Durkheim, que ele vai chamar de “princípio de corte” (Bastide
1955), que cria diferentes domínios onde as participações são possíveis17. Entre os diferentes
domínios operados pelo princípio de corte, diz Bastide (ibid.), “não há ligações”, apenas
analogias, ou aquilo que ele vai chamar – inspirado na obra de Marcel Griaule – de “princípio
de correspondências”18.

17
Entretanto, Bastide parece se distanciar de Durkheim, ao alegar que o princípio de corte se diferencia do
“princípio de classificação” durkheimiano na medida em que esses diferentes domínios não são “encaixáveis”
uns nos outros e, principalmente, ao falar que a classificação no candomblé não é uma classificação de seres
(como a nossa ocidental), mas de forças e participações (Bastide 1958:258-259).
18
Peixoto (2000:110-111) realiza um excelente resumo destes três princípios que regem o argumento bastidiano.

22
É portanto na conjugação destes três princípios, aparentemente inconciliáveis – as
participações de Lévy-Bruhl, as classificações de Durkheim e as correspondências de Griaule
– que Bastide vai esboçar aquilo que seria um “pensamento iorubano”, onde cada parte do
universo pertence e é parte de cada orixá. Assim, a divisão mítica iorubana do universo se
expande para as formas, pessoas, cores, matérias, perfumes, elementos da natureza, datas,
tempos, espaços etc. É isso que leva Bastide, em seu “Estudo do Sincretismo Católico-
Fetichista” (1946), a dizer:

[...] Há correspondência entre o orixá e uma cor, que se especifica nos emblemas, nas
contas do colar, nas vestimentas, com os dias da semana [...] com certos animais (só
podemos mencionar aqueles que servem aos sacrifícios e que já são bem conhecidos dos
estudiosos afro-brasileiros) e ainda com certas plantas, portanto com certas categorias do
mundo animal e vegetal, e enfim com certos astros.
Não se trata, absolutamente, de identificações místicas. Trata-se apenas de participações
entre esses diversos elementos que pertencem ao real, ao social (cerimonial) e ao
sobrenatural. (Bastide 1946:185)

Voltaremos, talvez em bases mais etnográficas, a esses princípios postulados por


Bastide no fim desta dissertação. Por agora, é importante retermos que, no candomblé, como
nota Silva (2008:100), cada entidade possui um conjunto de artefatos que o acompanha e o
manifesta, variando as matérias-primas, as insígnias, as cores, formas e texturas dedicadas a
cada orixá. Ou seja – para voltarmos ao vocabulário de Bastide – cada entidade, em seus
distintos níveis de individuação, “participa” de um determinado domínio do cosmos,
carregando seus materiais característicos, suas cores, suas formas de vir ao mundo, suas
composições, suas preferências alimentares, seus lócus privilegiados etc.
Cada entidade no candomblé possui um conjunto de materiais que a expressa e por
meio da qual ela se materializa no mundo. Dentre estes materiais se encontra a ferramenta de
santo, ou ferramenta-de-orixá, um artefato que se torna, depois de uma série de ações rituais,
o próprio orixá ali materializado, ao fazer parte do assentamento do santo. Cada ferramenta é
fabricada com uma matéria-prima e um formato específicos, ligados ao orixá da qual ela faz
parte. São por meio desses materiais e formas que as entidades irão se materializar no mundo.
Os orixás caçadores (odés), como Exu, Ogum, Oxóssi, Ossain e Oxumarê, por exemplo,
possuem o ferro enquanto matéria-prima principal; outros, ligados às águas, possuem a prata,
o ouro ou o metal branco (latão), como Iemanjá, Oxum ou Oxalá; outros ainda, como Xangô e
Iansã, carregam cobre e bronze, e assim por diante (ver resumo simplificado abaixo).

23
Quadro   1.   Resumo   simplificado   da   relação   dos   orixás   e   suas   matérias-­‐primas   (informações  
retiradas  de  Lody  1974)19  
 
Orixás   Características   Matéria-­‐Prima  (metais)  
Exu   Mensageiro   Ferro  
Ogum   Guerreiro  e  senhor  das  tecnologias   Ferro  
Oxóssi   Caçador   Ferro  e  latão  
Omolu   Senhor  das  doenças  e  da  cura   Ferro  e  metal  branco  
Ossain   Senhor  das  ervas   Ferro  e  metal  branco  
Oxumarê   Deus  do  arco-­‐íris  e  da  transformação   Ferro,  metal  branco  e  latão  
Irôko   Senhor  do  tempo   Ferro  e  metal  branco  
Logun  Edé   Divindade  das  águas  e  das  matas   Latão  
Xangô   Senhor  do  trovão,  fogo  e  justiça   Bronze  e  Cobre  
Iansã   Deusa  dos  ventos  e  tempestades   Bronze  e  cobre  
Oxum   Deusa  da  riqueza,  do  amor  e  da  beleza   Latão  e  Ouro  
Ibejis   Gêmeos  protetores  das  crianças   Metal  branco  e  prata  
Iemanjá   Rainha  do  mar  e  da  fertilidade   Metal  branco  e  prata  
Nanã   Senhora  da  morte,  da  chuva  e  da  lama   Barro  (não  carrega  metais)  
Oxaguiã   Oxalá  jovem  e  guerreiro   Metal  branco  e  prata  
Oxalufã   Oxalá  velho  e  sábio   Metal  branco,  prata  e  chumbo  

Assim, cada entidade deve possuir uma ferramenta específica, feita com o material
característico daquele orixá e respeitando um determinado “padrão” mais ou menos variável.
Essas ferramentas comporão, junto com diversos outros elementos, o ibá do santo, seu
assentamento. Ogum, por exemplo, senhor das tecnologias, do ferro e da guerra, tem como
ferramenta um conjunto de artefatos de ferro: ferramentas de trabalho, espadas, escudos e
facas, ou mesmo peças de automóveis, catracas, bigornas, trilhos de trem e correntes. Em
geral, sua ferramenta consiste num arco onde ficam penduradas uma série de instrumentos
agrícolas forjados em ferro (machados, pás, facas, foices, lanças, martelos, enxadas, tesouras
e etc.), sempre em número sete ou seus múltiplos (três de um lado, quatro de outro; sete em
cada lado; catorze ou vinte e um). Já Oxóssi, por ser um orixá caçador, possui como
ferramenta um arco-e-flecha (ofá)forjado em ferro. A ferramenta de Omolu, por sua vez,
consiste em um conjunto de sete lanças colocadas em um cuscuzeiro de barro, além de um

19
É importante ressaltar que esta lista não comporta todo o panteão de orixás e está longe de ser homogênea e/ou
fixa. Cada nação, ou mesmo cada casa de candomblé comporta sua própria relação de orixás e matérias-primas.
Utilizo-a aqui somente e tão-somente enquanto uma ilustração das diferentes composições dos orixás.

24
arpão de ferro e alguns ides (argolas feitas de metal) torcidos. Ossain, senhor das folhas e das
ervas, tem como ferramenta um pássaro encimado em uma haste de ferro, cercada por outras
seis hastes em formato de lança, rodeada por diversas folhas de metal. A ferramenta de
Oxumarê, a cobra arco-íris, é lança onde, ao seu redor, duas cobras entrelaçam-se. Já o orixá
Tempo possui uma das ferramentas mais peculiares: uma espécie de fornalha com uma grelha,
além de um mastro com uma bandeira de ferro, rodeada por um círculo e uma pequena
escada.
Para além dos orixás de ferro, existem algumas ferramentas características de outros
orixás, que podem compor o ibá ou mesmo serem utilizados durante a dança do orixá. O oxê
de Xangô, por exemplo, é uma espécie de machado de dois gumes, feito com madeira, bronze
ou cobre, que pode compor o assentamento de Xangô e também ser utilizado por ele durante
sua dança. Há também a espada de Iansã, também chamada de alfange; o abebê (leque em
forma circular) de Oxum; a corrente com balangandãs de Iemanjá; o ofá (arco-e-flecha) feito
em latão de Logun Edé; o pilão de Oxaguiã; o opaxorô de Oxalufã, espécie de cajado feito de
metal prateado encimado por um pássaro e rodeado por três círculos, onde, em cada um deles,
dependuram-se uma série de pequenos pingentes; e assim por diante... Cada ferramenta
passará a compor a existência do orixá, em diferentes graus de intensidade, a depender da
matéria-prima e das ações rituais empregadas para canalizar a energia dos orixás nos objetos.
***
Entre todas as ferramenta fabricadas na oficina de Zé Diabo, aquela que é mais
solicitada é a ferramenta de Exu. Exu, como se sabe, é o primeiro orixá no panteão dos deuses
iorubanos, aquele que abre os caminhos. Não se começa nada sem primeiro reverenciar Exu.
Como uma espécie de “hermes negro”, como diria Bastide, Exu é o mensageiro entre os
orixás e os homens, o mundo espiritual e o material, o Orun e o Aiye. Exu, portanto, é um
orixá que atravessa os múltiplos domínios, transitando entre os diferentes mundos e
realizando a comunicação entre eles. O mais ambíguo dos orixás é, também, o mais humano
deles20. Como uma espécie de trickster, Exu é também o orixá da malícia e da sexualidade,
possuindo um enorme falo (ogó) e sendo propenso às inversões e brincadeiras, tendo como
domínio a rua e as encruzilhadas. Orixá do movimento, ele é a própria dinâmica da ação e da
20
Jim Wafer (1991:14), numa das mais instigantes etnografias sobre o candomblé de Salvador, nota que as várias
entidades que povoam o universo do candomblé são dispostas em um continuum entre o espírito e a matéria.
Enquanto os orixás estariam no topo desse continuum, ou seja, no polo do espírito, os humanos estariam na parte
mais baixa, na matéria. Os exus, por sua vez, habitariam as partes mais próximas à matéria, sendo portanto mais
próximas ao humano.

25
transformação, a transversalidade e o princípio de multiplicidade. Cada exu é uma multidão:
ele é um e é muitos, é e não é um orixá, pode fazer tanto uma coisa como outra; em suma,
Exu é a própria variação.
A ferramenta de Exu pode se apresentar das mais variadas formas. Na umbanda, por
exemplo, é muito comum que os assentamentos de Exu possuam imagens e esculturas feitas
de gesso, numa diversidade iconográfica que expressa a multiplicidade de exus que compõem
a intensidade do orixá21: malandros, zé pilintras, tranca-ruas, padilhas, pombagiras, belzebus
etc. (ver Mourão 2012). Já no candomblé, os exus apresentam-se geralmente segundo dois
tipos gerais, como já ressaltado, por exemplo, por autores como Nina Rodrigues (1900) e
Roger Bastide (1958:181): são os chamados “Exus de porta”, ou exus de terra, feitos de
montículos de barro, e os Exus de ferro, ou “ferramentas”, que habitam quartos específicos
destinados à eles, chamados pejis. Enquanto, em geral, os primeiros condensam uma energia
mais “coletiva” da casa, os segundos se expressam na relação com a pessoa e o santo do qual
possui ligações. Essas denominações, no entanto, podem variar substancialmente: na África
Ocidental, por exemplo, entre os nagô-yorubá, essa divisão se dá entre os altares coletivos de
Legbá e as estatuetas antropomórficas dos chamados Exu-Legbá (Carneiro da Cunha 1983).
Já nas religiões de matriz africana do sul do Brasil (como o batuque e a linha cruzada), essa
divisão é entre o Bará e o Exu, um relacionado ao orixá e o outro às multiplicidades que o
compõem. Como adverte Barbosa Neto (2012) a respeito destas últimas, essa diferença está
longe de ser absoluta, e tanto um quanto outro carregam suas próprias multiplicidades, que
podem “passar” entre os diferentes domínios, de um lado a outro.
Assim, nem os exus de terra, nem os de ferro são homogeneamente constituídos, e
podem existir variações significativas entre os dois. Alguns exus de ferro, por exemplo,
possuem formas de ideogramas variados: uma combinação de cruzes, tridentes, lanças,
flechas, espadas e outros adereços que expressam a própria natureza transformativa do orixá.
Estes são chamados por Zé Diabo de figuras, ou simplesmente ferramentas. No entanto, há
outros que possuem um formato antropomórfico: uma escultura forjada em tubos de ferro,
com olhos, boca, nariz e orelhas, mas também chifres, rabo e um órgão sexual avantajado
despudoradamente exposto – estes são os chamados “bonecos de exu”, “escravos” ou ainda
“diabos”. Os dois tipos de ferramentas são igualmente assentadas, embora haja diferenças na

21
Como lembra Wafer (1991:8), o reino de Exu é povoado por uma multiplicidade de exus, que se distinguem
por sexo, idade e status, assim como por seus nomes e qualidades pessoais

26
hora de fazer a “arrumação” delas, ou seja, na hora de assentá-las (diferenças que podem
tanto se expressar nas diferentes nações, ou raízes, quanto dizerem respeito aos distintos
ingredientes, modos de fazer, rituais e etc.). Por vezes, a primeira é vista como uma forma
“superior” do orixá (Exu), enquanto a segunda é tida como uma espécie de “catiço” (exus) de
outro orixá, espíritos inferiores aos orixás que coabitam o mundo e dominam as ruas e
encruzilhadas, além de existirem em diferentes modos e apresentarem-se em casal, com uma
versão masculina (exu) e uma feminina (exua, padilha, pombagira). Entretanto – vale dizer
novamente – essa diferença não é absoluta nem rígida. Exu, enquanto uma figura controversa
e mensageira, é uma energia que coabita os dois mundos. Assim, ele ora é visto como um
orixá, ora como um espírito inferior, a depender da relação que se estabelece com ele.
A ferramenta de Exu, ou “figura”, apresenta-se em ideogramas que fazem relação com
os “pontos riscados” da umbanda, compondo-se de tridentes, lanças, pontas e etc., todas tendo
forte relação com o número 7 (e suas junções 3, e 4) ou seus múltiplos. Compõem-se a partir
dos pontos cardeais, que formam os diferentes domínios do orixá (alto/baixo, esquerda/direita,
ou ainda círculos, globos e redemoinhos). Cada ferramenta expressa uma qualidade distinta:
exu gira-mundo, exu tranca-rua, exu tiriri etc.
Já o “boneco de exu”, ou “diabo”, possui um corpo de ferro cilíndrico forjado,
conformando a cabeça e o tronco do Exu. Barras de ferro são modeladas e soldadas a esse
corpo, formando os braços (cujas extremidades dobradas em círculo formam as mãos) e
pernas. Além disso, o boneco possui um rabo sinuoso, um órgão sexual avantajado (com um
pênis, se do sexo masculino, ou uma vagina com clitóris avantajado, se do feminino) e dois
pares de chifres. Por fim, cada exu carrega consigo uma série de objetos, como facas, espadas,
tridentes, chaves ou outros apetrechos forjados em ferro.
Foi por conta desse tipo de ferramenta de exu que Zé ganhou seu apelido de ofício:
ainda menino, Zé trabalhava na oficina de seu mestre e mentor, Martiniano Prates, no número
18 da mesma Ladeira da Conceição da Praia. Naquela época, Martiniano – que não era feito,
mas que segundo Zé sabia “mexer na coisa” – fabricava portões sob encomenda, agogôs e
pequenas ferramentas de santo que eram vendidas no antigo Mercado Modelo22, para tendas
famosas da época, como a do finado Camafeu de Oxóssi (eternizado nos livros de Jorge
Amado) ou a da finada Naíce. Foi levando essas ferramentas para o Mercado Modelo que Zé

22
Naquela época, o mercado modelo tinha uma estrutura bem diferente da atual, sendo menos turístico e mais
ligado às questões religiosas. Para uma breve história do Mercado Modelo, cf.:
http://www.portalmercadomodelo.com.br/historia-do-mercado-modelo-de-salvador/

27
ganhou o apelido que o acompanha durante toda sua vida: de tanto carregar as estatuetas de
Exu de um lado para o outro do mercado, as pessoas que o viam já danavam a falar: “olha lá
o diabo”, “diabo, venha cá, diabo”. E, como ele gosta de dizer, como nome dado não é nome
escolhido, o apelido acabou pegando, adotado e respeitado: José Adário dos Santos, o “Zé
Diabo”.
Muito já se escreveu sobre a associação de Exu com o Diabo, e não é meu intuito – e
nem tenho tempo e fôlego para tal – lidar com uma questão tão densa como esta neste
trabalho. No entanto, talvez algumas breves palavras sejam necessárias, principalmente pelo
fato de que o boneco de exu é, como o próprio nome já o diz, frequentemente associado à
figura do diabo, possuindo rabos, chifres e tridentes.
Entre todos os orixás, exu é aquele que mais frequentemente (ou quase
exclusivamente) é assentado em sua forma antropomórfica no candomblé. Apesar de outros
orixás e caboclos (como, por exemplo, Iemanjá, Boiadeiros ou Marujos) poderem existir em
estátuas antropomórficas de gesso, essas estátuas não são o orixá em si e, portanto, não
recebem o sangue sacrificial e as honrarias necessárias23,como é o caso das ferramentas e do
otá, a pedra-orixá. No peji, diz José Carlos dos Anjos (2006:78), “o antropomorfismo não
existe”; trata-se de um sistema sem face, onde, ao invés da representação, tem-se a presença.
Exu subverte esse sistema ao possuir um “rosto”, algo tão caro ao regime cristão de
enunciação24. No entanto, esse próprio rosto é ‘desmoronado’, ao ser subvertido com chifres,
rabos, pênis e tridentes: é, como lembra Anjos, o inverso da pureza, a fuga da
territorialização. Exu utiliza-se, assim, do símbolo da religião cristã para subvertê-lo,
transmutá-lo em sua forma antagônica: o diabo – e que, ao mesmo tempo, não é ele
inteiramente. Como lembra Wafer (1991:15), a “confusão” entre exu e o diabo revela não
somente a corrupção de Exu, visto da perspectiva da concepção cristã do mal, mas também a
reinterpretação do diabo ao ser visto pelos termos do candomblé. Assim, ao mesmo tempo em
que Exu foi “demonizado”, o próprio demônio cristão também transformou-se um pouco no
orixá.

23
Ao contrário da umbanda, no candomblé baiano essas imagens exercem uma função análoga àquela dos santos
católicos, como mostra Sansi (2005). Isso não quer dizer, porém, que elas simplesmente “representam” o santo
ou orixá, mas que elas são uma intensidade de força que não chega a ser a materialização plena daquela energia,
como o são as ferramentas e otás.
24
A rostidade, vai dizer Anjos (2006) a partir da obra de Deleuze e Guattari, carrega o racismo como seu
correlato. Afinal, pergunta-se o autor, “qual é a forma humana que melhor representa a potencia sagrada? A
forma homem branco médio qualquer”, a cara de Cristo.

28
Certa vez, ao perguntar para Jorge, um dos ferreiros da Feira de São Joaquim, sobre a
ligação entre o Exu e o diabo, ele me disse: “Eu nunca vi o Diabo, então como que eu posso
dizer que Exu parece com o Diabo? Exu parece com Exu; o Diabo que deve lá parecer com o
que ele é”. Exu é, assim, a própria figura do duplo, da reversão. Ele pode ser ou não ser o
diabo, através de suas múltiplas variações.
A própria composição de rabos e chifres na estatuária de Exu não faz necessariamente
associação com o diabo cristão, e tampouco está associada simplesmente à expansão da
umbanda no Brasil. Mariano Carneiro da Cunha (1983), numa das mais completas análises
sobre as transformações iconográficas da estatuária de Exu no Brasil, tenta mostrar que a
presença de elementos que nós associamos ao demônio cristão, como o chifre, o tridente e o
rabo, eram elementos que já estavam presentes em contexto africano, sendo portanto uma
recriação dos próprios protótipos africanos (como o Exu-Legbá, por exemplo).
Assim, se exu pode ser o diabo, ele no entanto está longe de ser a mesma figura do
regime cristão de enunciação (ao contrário, como vimos, a subverte e a contesta). Não nego,
portanto, a importância política de se desvincular o orixá do demônio cristão, ainda mais em
tempos de constantes e violentos ataques perpetrados pelas religiões cristãs (em especial as
neopentecostais) às religiões de matriz africana no Brasil. Ao mesmo tempo, entre exu e
diabo, prefiro seguir a sugestão de Barbosa Neto, que diz que

a etnografia teria muito a ganhar se considerasse Exu como o conjunto de todas as suas
versões, sem privilegiar qualquer uma delas, e entre as quais cada trabalho específico
deveria, nos seus próprios termos, descrever suas respectivas relações de aproximação e de
afastamento. Deveríamos, portanto, descrevê-lo através do ‘contínuo de suas variações’
(Barbosa Neto 2012:216)

***
As características morfológicas das ferramentas variam significativamente, e cada
orixá parece assumir uma “forma” específica. Mas, afinal, o que dizem essas formas?
À princípio, poderíamos ser tentados a responder que elas simbolizam determinadas
relações, sejam mitológicas, sociológicas ou rituais, ou seja, que por detrás daqueles formatos
peculiares haveriam uma série de significados sociais, muitas vezes desconhecidos pelas
próprias pessoas que produzem tais artefatos. Assim, o oxê de Xangô representaria a realeza
do rei de Oió; as navalhas, cruzes, facas e tridentes que cada exu carrega expressariam as
formas humanas destas entidades quando em vida; os exus e pombagiras seriam
ressignificações de uma iconografia popular medieval; a fonte do assentamento de Iemanjá,

29
carregada de água do mar, simbolizaria o fato de que ela é a rainha das águas, assim como o
ouro de Oxum, a espada de Iansã, ou a ausência de ferro nos assentamentos de Nanã, e assim
por diante... Cada uma destas explicações, como vimos, buscariam algo ‘externo’ ao próprios
materiais para explicar as relações que lhes são constitutivas. As ferramentas-de-orixás
seriam, nesse sentido, meras ‘substâncias materiais’ que representariam a força dos orixás, a
ancestralidade africana, o sincretismo, a sociedade etc. As pessoas, assim, não adorariam
pedaços de ferro, porcelanas, barros ou pedras, mas, antes, se curvariam diante de um
“sagrado-abstrato”, como diz Deoscóredes dos Santos, o famoso Mestre Didi (Santos 1967
apud Sansi 2003) – tal qual o regime de enunciação cristão, que não adoraria a imagem de
seus santos e crucifixos, mas a mística espiritual que eles simbolizam.
O problema desta abordagem, mais uma vez, é que ela deixa de lado o que as próprias
pessoas dizem e fazem com os materiais e suas relações, tratando-as ora como ingênuas, por
‘acreditarem’ estar adorando pedras ou ferros, ora como ignorantes, por não saberem o ‘real
significado de suas insígnias’; pressupondo, assim, “que os atores não saibam o que estão
fazendo, enquanto nós, cientistas sociais, conhecemos a existência de uma força social capaz
de ‘obrigá-los’ a fazer coisas sem querer” (Latour 2012:76). Voltamos, pois, ao problema do
fetichismo...
No entanto, se seguirmos a proposta (política e metodológica) de levar a sério o que as
pessoas fazem e dizem sobre o que fazem, seguindo suas práticas, veremos que as coisas
podem ser um pouco (ou um tanto) diferentes daquilo que nós estamos acostumados a pensar.
Assim, as formas não só dizem sobre determinadas relações, mas, ao contrário, são elas
próprias essas relações. Tomemos como exemplo alguns casos que acompanhei durante meu
trabalho de campo.
Cada orixá possui um determinado “padrão” para suas ferramentas, com formas, cores
e elementos específicos. Apesar disso, a variação neste padrão é primordial para o próprio
sistema ontológico do candomblé. Isso porque, segundo Zé Diabo, cada ferramenta deve ser
única, singular, feita especificamente para aquela relação entre a pessoa e o seu santo. Esta é
uma das diferenças que Zé Diabo acentua entre seu trabalho e as demais ferramentas que são
vendidas nos grandes mercados religiosos, como o Mercado Modelo ou a Feira de São
Joaquim: ao contrário destes, Zé não vende ferramentas “já prontas”, trabalhando somente
com encomendas e pedidos – que, como veremos, chegam por meio de desenhos, sonhos ou
jogo de búzios – evitando a repetição de ferramentas e realizando, por meio da intuição, uma

30
composição única para cada encomenda. Segundo ele, uma ferramenta já pronta não irá
carregar o axé específico feito para aquele artefato, necessário para aumentar a força tanto da
pessoa quanto do orixá. Assim, ainda que exista uma certa “forma” que deve se manter,
variam-se os pequenos detalhes, as insígnias, as posições ou números dos elementos e etc.,
cada variação compondo uma qualidade – e, no limite, uma relação – específica de cada orixá.
Mesmo que a pessoa acabe comprando uma ferramenta que não é exclusiva, como as
vendidas na feira de São Joaquim, em formato “padronizado”, no momento de assentá-la,
algum elemento único, que compõe a relação entre a pessoa e o orixá e que particulariza o
assentamento, será incluído em sua composição, seja o otá, os ingredientes da massa, as
roupas e cores, as insígnias e presentes, a forma de compor cada elemento etc. Cabe ao
ferreiro – e ao babalorixá – saber captar e materializar essa relação específica, compondo um
arranjo singular que expresse e medeie a relação entre pessoa e orixá.
Sempre que, na oficina de Zé Diabo, surgia alguém com uma encomenda que “fugia”
de um certo padrão das ferramentas, esse desenho era motivo de análise e discussão. Essa
discussão, no entanto, não era pautada a partir da “tradição” sobre como as coisas deveriam
ser feitas, tampouco sobre como os elementos não estariam condizentes com uma
“representação” do orixá, mas, sobretudo, buscava-se entender quais eram as relações que
seriam estabelecidas a partir dos formatos. Explico com dois casos mais concretos:
Certa vez, chegaram à oficina um pai-de-santo e seu ogã querendo encomendar uma
ferramenta de exu. Este exu, diziam eles, era um exu muito poderoso, ligado aos cemitérios e
à morte. O desenho que apresentaram trazia a imagem de um boneco (algo como uma caveira)
em cima de um caixão. Zé Diabo pegou a imagem e analisou-a demoradamente. No desenho,
o boneco não tinha face, tampouco carregava algum objeto característico. Zé perguntava o
porquê dessa escolha. O pai-de-santo, porém, não soube responder, alegando que somente
havia desenhado tal qual vinha em sua mente. Zé então fez algumas ponderações sobre o
desenho: “Se a ferramenta vai ser boneco de exu, então ela tem que ter olho, pra poder
enxergar os caminhos, né? Se não tiver cara e ele não enxergar, ele vai ficar sem saber pra
onde ir, sem caminho, e então você pode ficar assim também”, dizia ele, apontando também a
necessidade do exu carregar algum objeto característico: “Esse exu é do cemitério, não é?
Pois então ele tem que carregar uma picareta, uma enxada, alguma coisa pra ele poder
cavar a catacumba. Se ele não tiver nada pra cavar como é que ele vai poder trabalhar?”,
questionava Zé.

31
Outra vez, ainda na oficina, um homem queria encomendar uma ferramenta para
Xangô. Zé, de início, recusou a proposta, alegando que, enquanto ferreiro de Ogum, não
trabalhava com materiais mais “finos”, como cobre, ouro ou latão. O homem, no entanto,
insistia no pedido, trazendo uma imagem de um oxê de madeira e falando que gostaria que Zé
fizesse um igual, mas de ferro. Zé relutava, alegando que, se não fosse alguma qualidade
muito específica de Xangô (ou algum exu que fosse ‘escravo’ deste), não haveria porquê fazer
o oxê de ferro, uma vez que este deveria ser feito de madeira ou cobre. Explicava ao rapaz
que, se assim o fizesse, Xangô não iria ter força nenhuma, pois, para isso, ele precisava da
madeira ou do cobre. Ou seja, era através daqueles materiais que a força de Xangô poderia se
atualizar, concretizando-se no artefato.
As chamadas “insígnias” que cada entidade carrega, assim, não somente ‘representam’
a entidade, mas são fundamentais para atualizar determinadas relações, permitindo assim que
a entidade possa “trabalhar”. Sem a picareta, a pá ou a enxada, ou sem olhos para enxergar o
caminho, exu não trabalharia como queria o pai-de-santo, não possuiria a mesma “força”. A
maioria dos exus tranca-rua, por exemplo, possuem uma chave em uma de suas mãos. Essa
chave, dizem, é fundamental para exu poder abrir e fechar os portões e caminhos. Ela é
manipulada de diferentes formas: pode sair da mão de exu, pode ser trancada com um
cadeado, pode ficar aos pés da entidade, e assim por diante, a depender do ritual e dos fins
desejados. Manipular as formas das ferramentas é ativar as próprias forças pelas quais elas
são capazes de agir no mundo. O mesmo ocorre com as outras ‘insígnias’ dos orixás: sem os
instrumentos agrícolas que a ferramenta de Ogum carrega, ele não poderia “trabalhar direito”;
Oxóssi, sem seu arco e flecha (ofá), não poderia caçar; a ferramenta de Ossain, sem o pássaro
que a encima, ficaria “sem força”; ou ainda Iemanjá, sem ter por perto o elemento que lhe faz
parte, a água salgada em sua fonte, ficaria mais fraca; o mesmo ocorre com os dourados de
Oxum, as colheres de Nanã, o oxê de Xangô, o opaxorô de Oxalá, e assim por diante. Cada
uma dessas ‘formas’, objetos, cores e matérias-primas, mais do que simbolizar a divindade,
visa aumentar sua própria força, sendo fundamental para ativar determinadas relações.
Sempre que eu questionava o por quê de tal ferramenta ser construída de uma maneira
e não de outra, Zé Diabo me dava uma resposta que por muito tempo me pareceu
insatisfatória: “é porque só pode ser desse jeito, o orixá não vai vir se tiver de outra
maneira”, dizia ele, me deixando cada vez mais confuso. No entanto, à medida que meu
trabalho de campo se consolidava, comecei a perceber que, de fato, não havia nada “por

32
detrás” daquela afirmação: nem uma recusa de me explicar algo, nem um desconhecimento
por parte dele das supostas “explicações” (que, afinal, diziam mais sobre mim e minha
ansiedade de querer “respostas” do que sobre ele e sua cosmologia). Para compreender como
se davam aquelas relações, era preciso, portanto, levar à sério suas afirmações, ao menos até o
limite das minhas próprias capacidades de compreensão. Isso porque, de fato, não se podia
fazer um orixá de outra forma – como gosta de falar Zé Diabo: “não se pode fazer orixá de
plástico”. Sua matéria, suas cores e formas não podem ser desvinculadas do modo de
existência do orixá, de sua força.
“Não se pode fazer as coisas de outro jeito”, Zé Diabo costuma repetir. Isso indica
que cada orixá demanda um certo tipo de relação, uma maneira específica de se fazerem as
coisas. Aquilo que poderíamos chamar de “tradição”, no entanto, não diz respeito a nenhuma
ortodoxia, a nenhuma ‘lei’ invariável. Antes, se quisermos, diz respeito a uma espécie de
‘jurisprudência’: não se pode fazer as coisas de outro modo porque senão não funciona, o
orixá fica fraco, sem força. A questão, portanto, parece girar menos em torno de formas e leis
do que de uma “eficácia de forças”, dos efeitos de cada forma.
Tudo se passa então como se cada artefato, antes de ‘representar’ algo, contivesse, em
sua própria forma, a inscrição intensiva da força do orixá. Mais do que “sagrados-abstratos”,
como falava Mestre Didi, devemos então seguir a sugestão de Sansi (2003:175) e tratar os
artefatos no candomblé enquanto “sagrados-concretos”, ou seja, onde a materialidade não
possa ser desvinculada da força que a habita. Assim, não se trata simplesmente do
“simbólico” animando a “matéria”, ou vice-versa. Como vai dizer Rabelo (2008, p.14):

Em outras palavras, se as coisas são carregadas de predicados antropológicos, não é porque


simbolizam conteúdos mentais inconscientes ou valores e normas culturais abstratos
(duplicando ou representando idéias que existem independentemente delas). O sentido que
as anima não é separável de sua materialidade, de sua inerência ao lugar e de sua existência
prática para aqueles que são por elas movidos.

Há, portanto, uma topologia específica da relação entre formas e materiais; um modo
de dispor que é atravessado por uma série de agenciamentos múltiplos, que organiza suas
forças e perpassa sua própria composição interna: seus materiais, suas cores, texturas e
formas. Mais do que apenas “simbolizar” esse modo, os materiais e suas formas não podem
ser dissociados das forças que neles habitam. Eles não apenas ‘indicam’ o santo e sua
presença, mas compõe sua própria força: são por meio deles que os santos se materializam no
mundo. Como diz Anjos:

33
A relação entre o material concreto e a divindade é uma relação de imanência e não de
transcendência. O acutá não remete para um poder que do além se faz representar num
mediador simbólico. O acutá - esta pedra sagrada aqui e agora – já carrega de imediato a
totalidade do ser da divindade. Esta pedra sagrada, aqui e agora, é o xangô, o ogum, a
Iemanjá. (Anjos, 2006, p. 76).

O  JABÁ  DE  OGUM  

O ferro, na cosmologia Iorubá, pertence ao orixá Ogum, patrono dos conhecimentos


tecnológicos agrícolas e, principalmente, artesão divino que domina os metais. Ogum é o
orixá ferreiro, senhor das guerras e das tecnologias. Ele é o segundo orixá do panteão dos
deuses afro-brasileiros, sendo precedido pelo seu irmão Exu, do qual é estreitamente ligado.
Toda a produção, toda a construção deve passar pelo caminho de Ogum – por isso ele é
também o senhor dos caminhos. Ogum, diz Zé Diabo, “é tudo o que há. Tudo tem que ter
Ogum. Toda ferramenta carrega Ogum, o jabá de Ogum. Não se pode fazer nada sem ele”.
Zé foi iniciado no candomblé ainda menino, aos oito anos de idade, por sua avó
materna, Bárbara do Sacramento. Regido pelos orixás Oxalufã e Omolu, ele, no entanto, tem
todo o seu caminho ligado ao orixá Ogum, do qual possui uma proximidade muito grande por
conta do trabalho com o ferro: “Como todo meu caminho é o ferro, é o jabá de Ogum, então
se segue pelo caminho de Ogum. Oxalá nunca foi ferreiro, Omolu também nunca foi, aí não,
aí eu sigo o caminho de Ogum. É ele que me dá força pra bater no ferro, pra seguir meu
caminho”, diz Zé. Além disso, Ogum acompanha toda sua linhagem genealógica, desde seu
pai até seu avô e bisavô. Trata-se, portanto, de um santo herdado de família, do qual Zé tem
muita proximidade25, realizando honrarias e oferendas constantes.
É por meio do caminho de Ogum e suas técnicas que Zé Diabo se constitui enquanto
ferreiro. Trabalhar com outros materiais – como o cobre, o bronze ou a prata, por exemplo –
requereria outras formas de se relacionar com a matéria e, logo, outros caminhos, outras

25
Certa vez recebi a visita de alguns amigos colombianos, ligados à santería cubana, e levei-os à oficina de Zé
Diabo, para que eles o conhecessem. Durante o encontro, eles ficaram maravilhados com o ambiente da oficina e
com o trabalho de Zé. Quando Zé contou que o santo de cabeça dele não era Ogum, eles duvidaram, falando que
a relação de Zé com este orixá parecia tão forte que, enquanto ele trabalhava, ele parecia ser o próprio Ogum
materializado.

34
forças: “Nasci mesmo é pra trabalhar no ferro, no bruto. Fui criado assim, foi Ogum que me
fez assim. Não dá pra querer colocar chifre em cabeça de cavalo. Não dá”, diz ele. Assim,
Zé Diabo só fabrica ferramentas para os orixás que “trabalham com ferro”, ou seja, para
aqueles que, de uma maneira ou de outra, entram em participação com a força do ferro –
logo, cujas ferramentas são feitas, em sua maioria, por esse material. Em geral, são estes: Exu,
Ogum, Oxóssi, Ossain, Omolu, Tempo (Nação Angola) e Oxumarê. Entretanto, alguns outros
orixás – em determinadas “qualidades” ou sob a forma de “escravos” – podem ser feitos de
ferro, a depender das orientações indicadas pelos búzios. Isso porque cada orixá possui
diversas “qualidades”, níveis de individuação e participação no mundo, que também podem
possuir ou entrar em relação com materiais específicos: há uma qualidade de Iansã, por
exemplo, que não pode levar cobre, e uma qualidade de Exu que só pode vir em pedras
específicas (lateritas).
A técnica, diz Leroi-Gourhan (1965), é sobretudo um modo de relação que propicia a
gênese tanto do artefato quanto do próprio humano. Se voltarmos ao que disse Zé Diabo,
veremos que é por meio dela – e das forças que a habitam – que a própria pessoa do ferreiro é
construída. É a técnica, portanto, que baliza as energias com as quais o ferreiro deve lidar: é a
partir e por causa da forja que Zé Diabo tornou-se ferreiro e, por conta disso, precisou lidar
com uma série de forças: Ogum tornou-se seu padrinho, seu regente guia no trabalho; seu
nome tornou-se Zé Diabo, por remeter-se ao orixá da transformação, e assim por diante... É,
portanto, através da brutalidade da interação gestual com o ferro que Zé Diabo se constrói e
constrói sua relação com o orixá Ogum, imprimindo nos materiais de ferro o próprio fazer
deste orixá – aquilo que ele vai chamar de jabá de Ogum. Por esse motivo, tornar-se um
ferreiro é, mais do que uma escolha, um caminho – caminho este que, segundo Zé, “leva uma
vida para aprender”.
***
Se todo ferro, desde o princípio, já é de alguma forma Ogum, ou contém a energia
deste orixá, não é, no entanto, todo e qualquer ferro que é preparado para ele ou outros
orixás. No candomblé, cada material se diferencia a partir da força que carrega consigo.
Assim, uma mesma matéria-prima pode ser internamente diferenciada: há ferros mais que
contem mais “força” que outros. Os ferros enferrujados, por exemplo, são considerados como

35
aqueles que carregam mais força 26 . Principalmente aqueles provenientes de artefatos
específicos ligados ao orixá Ogum, como parafusos de rodovias, âncoras de navegações
marítimas, pregos, facas, espadas, correntes ou mesmo motores automotivos, catracas, ferros
de construções antigas etc. Em geral, estes artefatos podem compor os assentamentos em sua
forma “bruta”, ou seja, sem precisarem ser transformados pelo ferreiro, compondo a
ferramenta e o assentamento e aumentando assim sua força.
Antigamente, conta Zé, as ferramentas de orixás eram produzidas a partir desses
artefatos, principalmente com ferros retirados de ferroviais ou de navegações marítimas (das
proas e âncoras), pois, além destes ferros serem muito resistentes (com alta densidade e
resiliência), eles também são mais fortes, no sentido de que contêm a força concentrada do
orixá. “Força” e “resistência”, aqui, não são necessariamente distintos, e muita das vezes um
ferro resistente é, também, um ferro “forte”. Isso também se liga ao fato de que a ferramenta,
uma vez feita, passa a acompanhar toda a vida da pessoa, devendo resistir junto com ela.
Hoje em dia, no entanto, Zé Diabo costuma comprar o material em depósitos de
metais usados (ferros-velhos) ou mesmo em lojas especializadas em ferragens e metais. Ainda
assim, ele escolhe minuciosamente cada material, a depender da ferramenta que ele irá
produzir e de acordo com espessuras, formatos e texturas específicas, cada qual com
densidades, ductilidades, resiliências, pesos e pontos de fusão distintos, características que
deverão ser levadas em conta no decorrer do trabalho com a forja – e que não podem ser
desvinculadas da própria força do orixá. Uma chapa de metal mais fina, por exemplo, não
poderia ser soldada com solda a arco, pois a solda corroeria o metal, que acabaria se
dizimando mais rápido, fazendo com que o orixá fique mais fraco.
Para ‘compensar’ o fato de que o material não é “bruto” – ou seja, que o ferro não é
proveniente de artefatos específicos, mas foi comprado em uma loja especializada – Zé
explica que é o trabalho com o ferro que irá fazer com que aquele ferro adquira mais força,
tornando-se assim mais “vivo”, pois carregado pelo jabá de Ogum.

26
Bastide, n’O Candomblé da Bahia (1958:181), traz uma explicação bem interessante para isso. Segundo ele,
as ferramentas de ferro representariam os minérios escondidos na terra viva, que são trabalhados por Ogum.
Assim, diz o autor, “a ferrugem que corrói o ferro lhe dá aparência de esqueleto, de minério enterrado no solo, de
ossada da terra viva; eis porque os Exus de ferro são de ferro enferrujado. Assim se desprende, em toda a beleza
mística, uma estética da vida mineral”.

36
Ao sair do ferro velho, os materiais vão para a oficina, onde sofrerão uma série de
transformações que, gradualmente, individuarão a energia do orixá no ferro, transformando-o
em uma ferramenta de orixá. É, pois, para estes caminhos que nos voltaremos agora27.
No decorrer do seu trabalho, Zé costuma seguir a ordem classificatória dos orixás tal
qual aparecem no xirê, sequência na qual os Orixás são reverenciados ou invocados durante
os cultos a eles destinados. Assim, sempre que há mais de uma ferramenta para fazer, ele
começa seu trabalho com Exu, o primeiro orixá, para depois passar para Ogum, Oxóssi, e
assim por diante, a depender da demanda do momento.
Zé Diabo, como já foi dito, só trabalha com encomendas, pedidos que são específicos
para cada pessoa e orixá. Esses pedidos, em geral, são revelados aos adeptos pelas próprias
entidades, por meio de sonhos ou jogo de búzios. É a partir e através dessa revelação que os
deuses indicam o modo como querem materializar-se, engajando o adepto em uma relação
específica, que pode ser, como veremos mais à frente, de cobrança, desejo, troca, negociação,
encanto etc. Trata-se, portanto, do próprio pedido do orixá, e é por meio desse pedido que a
encomenda da ferramenta será gerada.
Ao chegar na oficina, o cliente em geral traz em suas mãos alguns rascunhos da forma
da ferramenta ou, ao menos, indica para Zé como a entidade gostaria de ser feita. É a partir
dessas informações que Zé Diabo vai interpretar o pedido, buscando traduzir as mensagens da
entidade e acessar seus desejos (sua forma, seus detalhes, suas proporções), que são
materializados em um desenho que ele mesmo faz, em geral rabiscado em um pedaço de
papel jogado ou no próprio chão da oficina. Esse desenho, no entanto, não busca ser uma
reprodução fidedigna ao que será o formato final da oficina – ou seja, ele não se propõe
enquanto um “projeto” (no sentido ocidental de design) da produção. Antes, trata-se de uma
forma de engajamento entre Zé e a própria entidade, no qual ele irá intuir suas formas e
proporções através de um diálogo tensionado que leve em conta, ao mesmo tempo, tanto os
desejos do orixá quanto as formas e transformações que a própria matéria do ferro é capaz de
“aceitar”. Como ele mesmo diz: “tudo tem que ter seu tamanho, seu lugar no mundo. Se tiver
desenhada uma coisa errada, não adianta que o ferro não vai obedecer, ele vai teimar, não
vai querer ser feito assim”. Aqui, as ações do orixá e do ferro não podem ser pensadas como
duas coisas distintas: a própria materialidade do ferro é o orixá, e vice-versa.

27
Para uma análise mais pormenorizada deste processo técnico, remeto o leitor a minha monografia de
graduação (Marques 2014)

37
Depois de desenhadas, as ferramentas devem ser preparadas, ou seja, os ferros devem
ser medidos e cortados para depois irem para a forja. Esta etapa de preparação é essencial
para todo o desenrolar da fabricação, haja vista que ir ao fogo requer um dispêndio de energia
e concentração do qual Zé raramente faz mais de uma vez ao dia. Aqui, um novo modo de
relação entre o ferreiro, a matéria e os deuses é estabelecido28: é na preparação que ele inicia
um diálogo mais intenso com o ferro e os utensílios da oficina, devendo ser sensível às
possibilidades oferecidas por cada um (as barras de ferro “teimam”; se aquecidos, os metais
“obedecem” mais, as chapas são “perigosas”, os martelos “enganam”, etc.). Essa
sensibilidade, no entanto, é sobretudo prática, ou seja, se dá na impressão de um ritmo
específico, uma “ritmicidade” que cria diferença e compõe com os diferentes movimentos ali
em interação – e é nesse complexo sinergético mesmo que se dá o processo de individuação
da ferramenta, como ficará mais claro na próxima fase de produção: a forja.
A forja é, sem dúvida, a parte mais importante da fabricação das ferramentas. É ela
que caracteriza o trabalho e a própria constituição do ferreiro (cf. Diertelen 1964; Childs &
Killick 1993). Antes de “ir ao fogo” – atividade da qual ele realiza somente uma vez ao dia,
em geral pela manhã – Zé cumpre uma série de rituais específicos, necessários, segundo ele,
para deixá-lo com uma “cabeça boa” para o trabalho. Assim, antes de começar seu trabalho,
ele reza um pai-nosso e uma ave-maria, além de tomar seu banho e estar com a cabeça
tranquila, para que assim o trabalho possa se efetivar. Durante a atividade, Zé raramente fala
alguma coisa: só se escuta o barulho do motor do fole, do fogo queimando e das sucessivas
pancadas do martelo na bigorna: “Se ficar falando demais o juízo vai embora”, diz ele.
Enquanto isso, entre as sequências de batidas e a espera do aquecimento das barras, Zé
costuma sempre acender um charuto, cuja fumaça mistura com a fumaça do forno que aquece
os metais . O tabaco, segundo Zé, é para que Exu e Ogum possam “abrir sua cabeça”,
deixando-a “em juízo” para o trabalho. Ao acender um charuto, Zé Diabo, então, invoca os
deuses que irão reger toda aquela atividade: Exu, mestre das dobras, orixá da transformação; e
Ogum, guerreiro das armas, proprietário das técnicas, senhor do ferro e da forja. Toda
atividade, aqui, é sagrada.
Ao mesmo tempo em que a forja exige certa brutalidade do ferreiro, certa força nas
porradas, no gesto técnico de percutir com o martelo e “dobrar” o ferro, também demanda

28
Como certa vez me disse Zé Diabo, quando lhe confessei que pensava que já sabia alguma coisa sobre
ferramentaria-de-orixás: “Uma coisa é desenhar essas ferramentas, outra coisa é pegar no ferro, na mão
grande, sentir o peso do martelo e o calor na cabeça”.

38
um sensibilidade específica e uma habilidade que, para além da força, está permeada de um
conjunto de outros fatores, como ritmos, jeitos e sinergias entre os distintos movimentos. É
preciso haver uma afinação constante entre todos os elementos: o motor do fole, ligado na
energia, provoca a rotação de uma ventoinha que gera vento suficiente para manter a chama
alta e acessa; o carvão, que se consome em contato com o fogo e deve ser calculado para que
dure o tempo da atividade, sendo reposto em pequenas quantidades, a partir de um cálculo
inconsciente entre o ritmo de trabalho e a queima do combustível; o fogo que, próximo, pode
queimar as mãos do ferreiro, e que deve ser regulado – através da quantidade de carvão e do
acionamento ou não do fole – para que atinja uma certa altura e temperatura, a depender da
quantidade de ferro que se vai trabalhar; o ferro que, na fornalha, deve ser aquecido até atingir
certa temperatura – vermelhidão – suficiente para tornar-se maleável (mas não muito, a ponto
de fundir-se) para a ação do martelo; o conjunto martelo/tenaz/bigorna, que é acionado na
medida em que os ferros estão maleáveis e, assim, são percutidos de maneiras distintas, com
gestos específicos para cada tipo de percussão; e, por fim, o ferreiro, Zé Diabo, que deve
saber controlar estes distintos ritmos com tal destreza que o permita interagir com os diversos
elementos e não “perder o tempo” de cada um deles, orquestrando, assim, distintos ritmos e
improvisando em cima deles.
Ir ao fogo, assim, é lidar com uma série de energias que compõem a atividade e se
correlacionam: com Ogum, que é o ferro e a forja; com Exu, orixá da transformação; mas
também com Xangô, que tem o poder do fogo; com Oxum, senhora da água, com Iansã, dona
do vento, e assim por diante... É por isso que, segundo Zé Diabo, para lidar com esse
complexo ritmado é preciso estar sobretudo com a cabeça boa:

“Tanto que, quando eu vou pro fogo, não dá pra ficar parando pra pensar no que
vou fazer não: o fogo tá ali, se consumindo. Então, é pegar e fazer! Por isso que tem
que estar com a cabeça boa, com o ori no lugar... Quando eu faço Ogum, por
exemplo, você já imaginou você tirar 21 ferramentas no fogo tudo da cabeça, uma de
cada tipo? Uma de cada tipo, porque não pode ser tudo de uma coisa só, nem repetir
pode. E tem que tirar tudo daqui ó (aponta para a cabeça). Porque não é você riscar
pra estar olhando não; pega o ferro, bota ali no fogo e vai batendo... É na hora
mesmo que vai saindo, pau-viola. Boto ali e daqui um pouco, quando vi, já bati
tudo...” (Entrevista gravada em 05/09/13)

Certa vez perguntei a Zé como ele fazia para gravar tantos desenhos e criar tantas
ferramentas distintas umas das outras, ao que ele me respondeu:

39
“Tá tudo aqui, na minha cabeça, no meu juízo. É aqui que ficam os desenhos. Tanto
que, quando eu vou desenhar, ou vou bater uma ferramenta no fogo, eu quase não
falo, pra não tirar o juízo, o sentido. Pra fazer essas ferramentas, e depois ir pro fogo,
tem que estar com a cabeça boa. Até na hora de armar, é na intuição, no ori, como
vai ser feito. Tanto que, antes de eu vir trabalhar eu vou rezar o meu pai-nosso, minha
ave-maria, pra depois tomar meu banho, me preparar pra vir pegar no ferro. Se eu
tiver contrariado eu não vou trabalhar, porque senão não vou fazer nada que preste”.

Zé Diabo relaciona o estado de estar com a “cabeça boa” ao conceito afro-religioso de


ori, do qual ele também aproxima ao conceito de intuição. Ori, dentro da literatura sobre
religiões de matriz africana no Brasil (cf. Elbein do Santos, 1975; Verger, 2002) é definido
como o destino pessoal, a cabeça da pessoa, seu centro energético que poderá receber as
forças dos orixás que o povoam, e que também poderá ser constantemente alimentada (através
do “bori”, ritual que consiste em “dar comida à cabeça”). Ori, ao mesmo tempo, é um deus:
um orixá pessoal, senhor da individualidade e da origem na terra. Conta um mito yoruba29 que
toda pessoa, antes de nascer, deve passar na oficina de Ajalá, o oleiro divino, artesão
encarregado de modelar os oris (cabeças). Lá, ela deve escolher seu próprio ori, que é feito de
barro, através dos mais distintos oris que se foram produzidos na casa de Ajalá. Cada ori
indica um destino (odu) na terra, no aiyê, possuindo um orixá que “rege”, além de diversos
tabus específicos para cada orixá e para cada ori. A escolha da cabeça será fundamental para
determinar o caminho da pessoa na terra e, durante sua vida, ela deverá se guiar conforme o
caminho que lhe foi concedido na escolha. Alimentar o ori, através do ritual do bori é, assim,
fortalecer a cabeça, deixando-a forte para que ela não possa se romper.
É interessante pensar que é através da noção de ori que Zé Diabo vai conceber o
diálogo estabelecido entre o ferreiro, a matéria e os deuses, e quais as correlações possíveis
entre seu uso e o conceito citado no mito. Pois é a partir do ori que Zé cria os desenhos,
intuindo suas formas e precisando suas proporções; é a partir dele, também, que Zé consegue
a energia necessária para forjar o ferro e armar a ferramenta. Quando o trabalho não “rende”,
Zé costuma dizer que não está com o ori bom para trabalhar com os ferros, e assim acaba não
trabalhando aquele dia, reservando-se para quando estiver melhor. Enfim, é a partir da ideia
de ori que todas suas habilidades são interrelacionadas e convergidas para a fabricação da
ferramenta.

29
Presente, em diferentes versões, em Elbein dos Santos (1975:236-237) e Rabelo (2014:213), dentre outros.

40
Para trabalhar com o ferro, Zé precisa estar com o ori bom, com a cabeça boa. De
modo semelhante, em meu aprendizado prático com os metais, passei por uma série de etapas
que, no fim das contas, visavam “preparar minha cabeça” para trabalhar com o ferro e a forja.
Essa preparação, no entanto, não é somente ritual (ou seja, não passa somente pelo bori), mas
envolve o próprio engajamento prático com os materiais. Trata-se, portanto, de uma espécie
de sensibilidade hábil de engajar-se com os outros materiais e seres com os quais o ferreiro
interage, estando atento e aberto ao complexo sinergético que ali se desenvolve no decorrer da
atividade. Mais uma vez, o “espiritual” e o “técnico” não podem ser pensados como esferas
separadas.
Assim, se retornarmos ao conceito nativo de ori sendo operado dentro da atividade
sinergética de Zé Diabo com os materiais, poderíamos aproximá-lo àquele de Mente, tal qual
proposto por Gregory Bateson (1970), enquanto um sistema ecológico imanente ao mundo.
Ou seja, a “mente”, assim como o ori, “vaza por todos os lados”, transborda seu interior e se
relaciona com o os gestos, com o martelo, com o fogo, com a barra de metal e com os orixás
que a habitam. Estar com a “cabeça boa”, assim, não é somente ter algo “dentro” da cabeça
que te possibilite interagir com determinadas energias; é, antes, estar inserido em todo um
sistema de informações – que muitas das vezes se encontra nos próprios movimentos e
artefatos – e conseguir interagir com eles de maneira eficaz. Mais do que isso, nos remete à
ideia de que toda atividade dentro da ferramentaria-de-orixás gera uma participação entre as
diferentes forças que ali estão interagindo, e que participar da construção de uma ferramenta é
também deixar um pouco de si nela, canalizar sua energia para aquele material. Ou seja, ao
fazer uma ferramenta, Zé Diabo passa também um pouco de sua própria energia para ela, o
jabá de Ogum. O que diferencia uma ferramenta feita por ele de uma feita por outra pessoa é,
segundo ele, sua capacidade de transmitir (ou canalizar) o axé do orixá para a ferramenta,
através da sua intuição e habilidade. A habilidade não se encontra “do lado de dentro”, mas
nos movimentos itinerantes, nas práticas improvisativas que os dotam de sentido – ou seja,
em todo um complexo sinergético entre deuses, materiais e humanos.
Bateson (1970) nos traz reflexões bastante interessantes para pensarmos nesse
complexo sinergético. Ao descrever o processo de derrubada de uma árvore – ou seja, a
relação entre o homem, o machado e a árvore –, ele vai falar que este processo é um circuito
complexo total, e que, para entendermos o movimento do machado voando pelo ar e
acertando os cortes preexistentes na lateral da árvore, é preciso entendermos as diferentes

41
informações que estão sendo acionadas e diferidas no processo, como o movimento dos
músculos, a retina do homem, seu sistema nervoso e neural, as diferenças de superfície, as
diferenças no movimento do machado, as diferenças no efeito produzido pela pancada, e
assim por diante...
Leroi-Gourhan (1965) vai tratar esses diferentes movimentos enquanto uma
composição de ritmos. Para ele, cada movimento possui uma qualidade rítmica, decorrente de
uma sensibilidade visceral criadora do espaço e do tempo. São os ritmos que criam as formas.
Como ele próprio o diz, “As técnicas de fabrico situam-se desde o início no interior de um
ambiente rítmico, simultaneamente muscular, auditivo e visual, nascido da repetição de gestos
e choques” (1965:118). A qualidade rítmica da qual nos diz Leroi-Gourhan está, no entanto,
menos na repetição do movimento em si e mais na sensibilidade reverberada pelo movimento,
ou seja, no acoplamento entre percepção e ação. O movimento deve ser, sobretudo, sentido. O
ritmo, segundo o autor, produz uma espécie de memória corporal, ou memória dos gestos que
permitem atender as demandas das coisas com as quais se está correspondendo, regendo
assim todo o complexo sinergético de ações e movimentos. É a essa memória que Leroi-
Gourhan se refere quando aciona o conceito de “comportamento operatório”. Trata-se de uma
memória – biológica, físico-motora e sensitiva – que permite que o ferreiro entre numa
espécie de “dança gestual” com o conjunto, composta de ritmos e ressonâncias distintas.
O complexo sinergético de uma atividade como forjar uma barra de metal cria um
conjunto de movimentos entrelaçados, e é esse conjunto de movimentos, ou dança gestual,
que compõe o ritmo da atividade. Henri Lefebvre, em Rhythmanalysis (2004), vai nos dizer
que o ritmo é composto antes pela diferença do que pela repetição. Ritmicidade implica não
só repetição mas repetição com diferença. É a partir da diferença potencial impressa no
movimento – e não apenas de sua “repetição” – que o ritmo se constrói. Essa ideia pode ser
correlacionada com a proposta batesoniana, que visa pensar na transformação da informação
enquanto produção de diferença. Forjar uma ferramenta é, assim, estar aberto – por meio da
intuição, do ori – às diferentes diferenças produzidas pelos movimentos (da matéria, do
utensílio, da pessoa e dos deuses).
Após essa breve incursão no conceito de ori e suas potencialidades teóricas para
pensarmos a prática com os metais, voltemos à fabricação da ferramenta de orixá:
Depois de forjada, a ferramenta é então “armada”, ou seja, suas diversas partes são
montadas por meio da solda. Se na preparação e na forja o diálogo com a matéria e com os

42
orixás era mais gestual do que explícito, na etapa da armação a energia do fluxo-orixá já
parece estar mais nítida. Assim, o diálogo torna-se mais falado, até mesmo ardiloso. É como
se à medida que os ferros são batidos, serrados e montados, mais eles vão adquirindo um
estatuto ontológico de ferramenta de santo, de entidade – vai ganhando vida na própria
interação com o ferreiro e seus gestos. Nesta etapa, o orixá e os instrumentos da oficina
provocam o ferreiro, incitando-o a errar ou dificultando seu trabalho: quebrando a serra,
queimando-o na solda, sumindo materiais, escapando a barra do torno, etc., exigindo sempre
uma “resposta” à altura, seja na forma de um diálogo mais “rude” e falado com a ferramenta,
seja na forma de um engajamento corporal mais “firme” do ferreiro.
Enfim montada, a ferramenta depois é lixada e as vezes pintada com uma fina camada
de verniz. Esta tarefa geralmente era designada a mim ou a seu filho, José, e envolve a
retirada dos excessos de impurezas causadas pela solda – processo que ele vai denominar
como “bater caixa”. Envernizar ou não a ferramenta-de-orixá a coloca em algumas relações
específicas. Segundo Zé Diabo, algumas ferramentas, em especial as de Ogum, não deveriam
ser envernizadas, pois segundo ele, Ogum é um orixá onde “o ferro come cru”, ou seja, onde
o ferro, para receber o sangue sacrificial no terreiro de candomblé, deve estar “puro”, sem a
interferência de tintas ou vernizes. Pois, como veremos, é o contato do ferro com o sangue
que irá mediar a relação entre a pessoa e o orixá. “O pessoal pede pra envernizar Ogum, mas
o certo é deixar o ferro cru. Eu não falo nada, fico só na minha, olhando. Aí quando não me
falam, eu envernizo, mas o certo é deixar cru mesmo, porque Ogum come é no ferro”, diz ele.
Finalizada esta etapa, a ferramenta é posta para secar sob o sol, sempre,
invariavelmente, virada para o lado de fora da oficina – para que a ferramenta-orixá possa
proteger a casa, explica Zé.
***
Ao acompanharmos a “cadeia operatória”30 (Leroi-Gourhan 1965) da fabricação das
ferramentas de orixás e, principalmente, se levarmos a sério uma certa “teoria nativa das
forças” que permeia o universo técnico da oficina de Zé Diabo, é como se, durante todo o
trabalho com os metais, fosse necessária uma espécie de “correspondência energética” entre a
matéria, o utensílio, o ferreiro e os deuses – uma sinergia que conformará o diálogo com o
30
A ideia de cadeia operatória operatória (chaîne opératoire) foi inicialmente formulada por Leroi-Gourhan, e é
pensada enquanto um método, aliado a um esquema teórico, comprometido em entender a natureza e o papel das
atividades técnicas nas sociedades humanas (Schlanger 2005), descrevendo o encadeamento das ações sobre a
matéria. Para uma apreciação de diferentes abordagens, usos e críticas da noção de cadeia operatória, conferir
Schlanger (2005), Lemmonier (1992), Coupaye (2009) e Creswell (1994).

43
material. Durante o trabalho, as interações gestuais do ferreiro devem levar em conta a própria
materialidade dos metais e, mais do que isso, as energias que pulsam neles. É através dessa
interação que o ferro gradualmente vai se tornando uma outra coisa – coisa que, no entanto,
ele já era virtualmente desde o princípio.
Ao ser transformado pelo ferreiro, o ferro passa a ocupar um estatuto ontológico bem
particular: ao mesmo tempo que é um pedaço de ferro, já não é um “pedaço de ferro
qualquer”, já carrega o jabá de Ogum, ou seja, seu trabalho já está inscrito naquele metal.
Como escutei diversas vezes dos clientes de Zé Diabo: “a ferramenta já sai dali viva”. Essa
“vida”, no entanto, é uma vida que ainda passará por diversos outros processos de feitura, por
outros modos de existência. Como explica Zé:

Quando o ferro sai daqui ele é feito no terreiro. Quando um Exu sai daqui, ele não sai
já Exu, aqui ele sai como jabá de ogum, que é o ferro. Então ele vai preparar pra
chamar a entidade do Exu, pra incorporar no ferro. Aí lava ele, vai fazer a
preparação toda. Aí faz a preparação toda. Então aquele ferro, quando chega no
terreiro de candomblé, já não é mais ferro, já desaparece. A ferramenta de Ogum é
aqui. O ferro, quando chega lá, vai lavar, preparar tudo pra assentar. Aqui já sai com
a energia de Ogum.

Assim, ao intervir sobre o ferro, elemento pertencente a Ogum, o ferreiro canaliza, a


partir desses movimentos, gestos e ações ritmadas, diversas energias presentes no mundo – o
fogo, a serra, a solda, a eletricidade, a motricidade humana, etc. – fazendo com que o ferro,
que já era de Ogum, passe a ter seu jabá, seu trabalho. A ferramentaria-de-orixás, então,
poderia ser definida como um processo técnico que visa, mais do que construir artefatos,
canalizar, transformar e modular as energias do ferro, preparando-o assim para receber o orixá
que será assentado na matéria.
Ao sair da oficina de Zé Diabo, a ferramenta vai para um terreiro, onde passará a
compor, junto com diversos outros elementos, o assentamento do santo, ou seja, a própria
expressão material da relação entre a pessoa e o orixá (e também o pai-de-santo e a casa no
qual todos estão vinculados). Para isso, o assentamento também precisará ser feito – numa
composição ritual dos diversos elementos e forças. Depois de sua feitura, ele passará então a
ser constantemente alimentada, recebendo sacrifícios, oferendas, comidas, atendendo pedidos,
sendo lavada, cuidada; em suma, participando ativamente da dinâmica de relações do
universo de práticas religiosas afro-brasileiras.

44
Antes de acompanharmos essa feitura, talvez seja interessante voltar ao terreiro de
Detinha e ao modo como suas múltiplas forças também foram feitas, para entendermos que, o
fazer e o compor de forças parece atravessar os mais distintos âmbitos dentro desses
coletivos, desde a ferramenta e o assentamento, até os quartos, a casa e a própria pessoa.
Fazer, como escreveram Anjos e Oro (2009:80), parece ser “o verbo mais importante desse
regime afro-brasileiro de existência”.

45
2. A    CASA  E  SUAS  FEITURAS  

Localizada em um pequeno vilarejo às margens da rodovia que liga a cidade de


Salvador à Feira de Santana, a casa de Detinha é mais uma entre tantos terreiros da região. No
entanto, ao passear pelas largas ruas do vilarejo, nem mesmo um olhar já treinado seria capaz
de perceber que ali, em meio a humildes residências, igrejas neopentecostais e pequenas
quitandas, haveria um terreiro de candomblé. Não há, em sua fachada exterior, nada que
indique que aquela casa é distinta das demais avizinhadas. Nenhuma inscrição ou portal com
motivos específicos, nem mesmo a tradicional bandeira branca, de Tempo, presente em
diversos candomblés da Bahia, em especial nos de nação Angola. “Ninguém diz que aqui tem
candomblé, que é casa de orixá”, costuma dizer Detinha àqueles que visitam o local.
Contudo, ao cruzar o portão de ferro e atravessar a pequena habitação onde ela e três de seus
filhos residem, ou mesmo ao passar pelo estreito beco de terra batida e ir direto aos fundos da
casa, nos deparamos com um território habitado por diferentes entidades, cada qual com suas
forças específicas, materializadas em quartos, árvores, vasos, potes e lugares.
Mas nem sempre foi assim:
Desde a primeira vez que fui à casa de Detinha, em janeiro de 2015, muita coisa se
transformou até então. Nesse período, uma série de mudanças na composição espacial da casa
ocorreram e, durante meu campo, pude acompanhar aquilo que hoje posso dizer que se tratou
da criação de um terreiro de candomblé, da fundação de um axé31. Em um simples terreno
baldio nos fundos da casa, o terreiro foi aos poucos sendo formado, ganhando cômodos,
muros, portões, aberturas no chão – tendo, enfim, suas forças compostas e estabilizadas
através de uma série de agenciamentos mediados por humanos, deuses e suas diversas
“coisas”.

31
Daniele Evangelista, em um artigo recente (2015), nos traz uma instigante narrativa etnográfica sobre a
fundação de um terreiro no Rio de Janeiro, que traça interessantes paralelos com a descrição que proponho aqui,
embora seu foco recaia principalmente sobre o aspecto jurídico/legal da noção de propriedade, o que não é o
foco deste trabalho.

46
Desde de que Detinha decidiu levar os seus santos para sua residência, após um
desentendimento com seu antigo pai-de-santo, a casa em um curto período de tempo começou
a ganhar contornos outros. “Boiadeiro foi ajudando e a gente conseguiu, com muito esforço,
construir tudo isso aqui”, me dizia Detinha, orgulhosa ao comentar sobre a rápida
transformação do terreiro. No início, um pequeno e precário barraco de madeira foi erguido
nos fundos da casa, onde foram guardados os assentamentos de Exu e de Boiadeiro. Logo,
porém, três habitações – chamadas de pejis, ou quartos-de-santo – foram construídas para
abrigar os assentamentos: uma para os exus, outra para Iemanjá, a dona da cabeça de Detinha,
e a terceira para Boiadeiro, que, em sonho, avisou Detinha que não gostaria de ficar “no
mato”32 e exigiu a construção de um quarto para ele.
Daí para frente uma série de transformações ocorreram: um barracão foi improvisado
sob a terra batida, local onde ocorreu a primeira festa de caboclo da casa, em julho deste ano;
o quarto de Iemanjá precisou ser ampliado, para receber os assentamentos dos outros orixás
que compunham o “enredo” de Detinha e seus familiares; um outro quarto foi criado, para
abrigar o assentamento do Ogum de um dos seus filhos; e, por fim, todos os quartos foram
reformados, alguns ganhando pisos e forros, pinturas e inscrições.
O barracão, inicialmente improvisado para a festa do Boiadeiro, foi pensado para ser
construído na parte de trás do terreno. No entanto, segundo Detinha, Iemanjá ordenou que ele
fosse construído ali onde fora realizada a primeira festa da casa, logo ao lado dos pejis.
Assim, antes da segunda festa da casa, para Iemanjá, o barracão foi erguido: em um chão
cimentado e sob um telhado de amianto (Eternit), sustentado por algumas vigas de madeira e
rodeado por uma pequena mureta, que alivia a temperatura dos dias quentes e cheios –
insuportáveis não fosse o espaço aberto ao vento. Ao redor, algumas árvores e plantas
presentes no terreno foram mantidas, passando a ser utilizadas no culto e tornando-se morada
de distintas entidades e forças. No quintal, os animais (cachorros, gatos, galos e galinhas)
continuaram circulando livremente pelo terreno.
Nesse processo, diversos seres – humanos, não-humanos e mais-que-humanos – foram
chamados para compor e modular as forças do terreiro. Aos poucos, novas entidades foram
assentadas e passaram a compor o axé da casa. Distintas pessoas também participaram
ativamente dessa composição, seja colaborando financeiramente, seja auxiliando nas

32
Boiadeiro, por ser uma entidade próxima aos caboclos (e, logo, por ter relações com os espíritos indígenas),
pode residir “no mato”, em espaços abertos ou nos pés de determinadas árvores; ou mesmo, se for sua vontade,
em pejis ou “aldeias” construídas para eles.

47
exaustivas atividades exigidas pelas ações rituais. Zé Diabo foi, sem dúvida, o grande
responsável pela fundação do axé, dirigindo todas as ações rituais da casa e, com isso,
deixando ali sua própria força – ou, como se diz, sua mão. Gilson, marido de Detinha, foi o
responsável por arrecadar fundos para a construção do terreiro, por vezes dobrando os turnos
de trabalho no abatedouro que o empregava. Além deles, os próprios filhos de Detinha, além
de vizinhos e conhecidos – incluindo eu mesmo – também ajudaram como puderam, a
maioria auxiliando nas atividades cotidianas e rituais da casa. E foi assim que, através do
agenciamento de uma série de pessoas, entidades e materiais, o terreiro de Detinha foi se
constituindo – compondo, assim, sua própria força, seu axé. Mas, afinal, de que força se trata?

PLANTANDO  O  AXÉ  

Carmen Opipari (2009) muito acertadamente chamou a atenção para a polissemia


presente na noção de axé, que, para além de uma “força que assegura a existência dinâmica”
(Santos 1975:40), pode ganhar significados múltiplos, como designar parte dos alimentos que
33
são oferecidos às divindades ; ser utilizado enquanto uma expressão de votos,
agradecimentos ou bênçãos; indicar filiação a alguma casa ou “raiz”34, ou mesmo dizer
respeito ao “fundamento” do candomblé. Axé, como notou Jim Wafer, pode designar o
“ethos” do candomblé e, ao mesmo tempo, sua própria quintessência: “The ethos of
Candomblé – axé in the first sense – is like an organism defined by and sustaining itself by
means of the circulation of its animating force – axé in the second sense – among its parts”
(1991:19). Nesse sentido, as coisas têm axé e, ao mesmo tempo, algumas coisas são, possuem
ou transmitem axé. No entanto, não se trata simplesmente de uma “forma-axé” sobreposta por
um “conteúdo-axé”, mas de uma modulação ininterrupta de forças e fluxos que assumem uma
multiplicidade de expressões, cristalizando-se, por meio da ação ritual, em objetos, pessoas,
lugares e processos (Goldman 2005). Assim, apesar de ser uma força “única” – comparada,
como lembrou Bastide (1958:77), ao mana polinésio ou ao orenda dos iroqueses – essa força

33
No caso aqui estudado, as partes internas dos animais sacrificados são chamadas de axé.
34
Essa “raiz”, como veremos mais a frente, ganha múltiplos significados a depender de seu uso prático e
contextual. No caso do candomblé Ketu, por exemplo, diz-se “raiz” genericamente para indicar alguma das casas
de candomblé mais tradicionais de Salvador: Casa Branca, Gantois, Opó Afonjá, Oxumarê...

48
só existe no momento mesmo em que ela é, de uma forma ou de outra, individuada35,
passando a ser agenciada de distintas maneiras, assumindo em seu fluxo sua própria
multiplicidade ontológica.
A palavra axé também pode ser usada para designar a própria casa de candomblé.
Como lembrou Opipari (2009:86), as pessoas podem se referir a um terreiro de candomblé
como “o axé de Seu Bobó”, “o meu axé”, “o axé da casa deles” etc. Ao fazerem isso, o que
elas estão colocando em evidência é o próprio caráter “participativo” de uma casa de
candomblé. Isso porque, assim como tudo o mais na religião, a casa também precisa ser feita,
posta em participação com as diversas energias que atravessam o mundo, canalizando-as
através de um cuidadoso e ininterrupto trabalho ritual – pois, como diria Bastide, “não há
candomblé sem axé” (1958:76).
Assim, para um lugar se tornar um terreiro, ele precisa, antes, ter o axé fixado, através
de uma série de ações rituais conhecidas como “enterrar” ou plantar o axé36 . Plantar o axé,
ou também fazer o chão, é justamente assentar, no centro do barracão, as forças necessárias
para que o terreiro passe a ser um conglomerado – irradiador e receptor – dessas próprias
forças, colocando-as em movimento. A partir daí, o chão passa a ser carregado de axé e, ao
mesmo tempo, torna-se o axé, constituído por partes de todos os seres – humanos e não-
humanos – que participam do terreiro. O chão, como um todo, é parte fundamental de um
terreiro de candomblé: todo sacrifício no candomblé é conduzido no chão, fazendo com que
os assentamentos sejam deslocados do alto de seus altares para que, no chão, eles possam
comer. Sempre que alguma entidade come, antes dela o chão recebe um pouco de água e do
sangue do animal sacrificado. “O chão”, como observa Miriam Rabelo (2014:260), “demanda
respeito e reverência, é centro e fonte de axé. Mas o axé que concentra e distribui também tem
que ser ativado, despertado e renovado”. Ao plantar o axé, o chão do terreiro torna-se vivo,
uma extensão energética de todos da casa (o axé coletivo) e que, como tal, também deve ser
alimentado periodicamente.

35
Bastide vai dizer que o axé é a “força sagrada, divina, que todavia não pode existir fora dos objetos concretos
em que se encontra, de tal modo que a erva que cura é axé, e que o alimento dos sacrifícios é também axé”
(1958:77, nota 13).
36
É interessante notarmos o uso da palavra “plantar”, vocabulário proveniente da agricultura, para pensarmos as
relações estabelecidas em um terreiro de candomblé – que também pode ser chamado de roça. Isso denota, a
meu ver, uma outra ideia de criação, que não está ligada a uma relação “aditiva” – portanto, hilemórfica – com o
mundo, mas que se liga mais à ideia de cultivo. Plantar o axé é, nesse sentido, cultivá-lo no terreiro, no sentido
de “criar” e ter cuidado

49
Pude participar da cerimônia em que foi plantado o axé da casa de Detinha. Foi um
ritual fechado ao público externo, realizado com as poucas pessoas que faziam parte da casa.
Como as etnografias desta cerimônia são quase inexistentes dentro da literatura antropológica,
decidi narrar, de modo muito resumido, as principais fases deste ritual, precavendo-me de não
abarcá-lo em sua “totalidade” pois se trata de um ritual considerado secreto por alguns
adeptos37.
Zé Diabo foi o responsável por conduzir o ritual de feitura do axé, e foi
acompanhando ele que eu pude participar de todo o processo. Quando chegamos, o buraco
cavado no centro do barracão, de cerca de 50cm de largura e um metro de profundidade, já
havia sido aberto por Gilson, marido de Detinha. Nele seria plantado o axé da casa, que
pertence a Intoto, uma qualidade de Omolu ligada à terra e ao barro.
O ritual de plantar o axé é um ritual de consagração específico, que envolve todos do
terreiro e requer uma dose de concentração e responsabilidade extra, haja vista que o que está
em jogo ali é o próprio axé coletivo da casa. Entretanto, excetuando os inúmeros detalhes –
que, como sabemos, é onde está o fundamento basilar da religião, onde encontra-se seu
segredo (awo) – a cerimônia, para um observador desatento, assemelha-se com a feitura de
um assentamento comum.
A primeira etapa do ritual consiste em extrair o sumo de diferentes folhas, formando
uma espécie de “banho” – chamado de amassi – que servirá para lavar os elementos que irão
para o chão, sendo depois despejado no buraco. Esse ritual é chamado de sassanha, ou cantar
folha, e consiste em esfregar as folhas entre as mãos dentro de uma bacia com água, cantando
cantigas específicas para cada folha no momento em que é retirado seu sumo. Por envolver
folhas, é um ritual ligado ao orixá Ossain, como o próprio nome sugere, e consiste num dos
mais importantes e misteriosos da religião – pois, como ouvi diversas vezes em Salvador, há
37
A questão do segredo no candomblé é mobilizada de distintas maneiras e assume diferentes formas a depender
da relação estabelecida. Se, por um lado, o agenciamento do segredo é o que “move” o candomblé (Johnson
2002), por outro, esse agenciamento não diz respeito somente a uma “estratégia de poder”, como indica o autor,
mas a uma proteção àqueles que, parafraseando Favret-Saada (1977) ainda não são fortes o suficiente para saber.
Ocultar, como ressalta Miram Rabelo (2015b), é também um modo de relação fundamental para a construção da
dinâmica das forças que atuam no mundo do candomblé. O segredo, nesse sentido, faz parte do axé e é também
responsável pela própria configuração relacional do candomblé, separando aqueles que “podem saber” daqueles
que não podem (Halloy 2005). Revelar um segredo é, portanto, correr um risco vital, pois, como nos lembra
Elbein dos Santos (1975:50), a palavra é condutora do poder do axé. No entanto, dentro da minha experiência
em campo, percebi que “revelar um segredo” não é tarefa das mais fáceis, pois o segredo, no candomblé, mora
nos detalhes quase imperceptíveis para aqueles que não comungam do mesmo ethos do candomblé: reside nas
variações musicais, nos pequenos ingredientes, nas formas de cantá-los e prepará-los etc. Nesse sentido, não se
trata de pura e simplesmente “desvendar” algo que estava oculto, mas, na maior parte das vezes, revelar um
segredo é tornar perceptível aquilo que já era, de alguma forma, visível.

50
uma expressão em Yorubá que diz “Kosi Ewe, Kosi Orixá”, que, segundo a tradução usual,
significa: “sem folhas, não há orixá”.
Depois de lavar os diversos elementos que farão parte do ritual, o amassi é misturado
a uma massa de cimento, que contém diversos outros elementos, como terras de locais
específicos (praias, encruzilhadas, cemitérios etc.) e algumas folhas, sementes e raízes, dentre
outras coisas. Após ser misturada, essa massa é dividida entre todos os presentes, onde cada
um coloca, com as mãos, um punhado da mistura no buraco. A ferramenta de Intoto
(construída por Zé dias antes da feitura) é então fincada na massa, de uma maneira específica
e formando um determinado arranjo, que depois é coberto de distintas folhas e uma série de
elementos, entre os quais sementes, moedas, recortes de jornais contendo boas notícias
(raríssimos de encontrar, como brinca Detinha) e velas, dentre outros.
Durante toda a ação ritual canta-se diversas cantigas, a maioria destinadas a Omolu e a
Iroko, orixá fundamental para a criação da casa. O canto é fundamental para ativar a energia
presente em cada material que é composto e misturado no conjunto. É Zé Diabo quem puxa as
estrofes em Iorubá, que são acompanhadas e repetidas por todos os presentes. Palmas, no
ritmo dos toques dos atabaques, também são permitidas, a depender da cantiga que se está
cantando. Através dessa mistura de cantos, palavras, ações e materiais, cada elemento vai
sendo composto dentro do buraco, ativando, nele, a energia do orixá.
Uma vez que o conjunto de elementos foi “assentado” no buraco, o chão (Intoto) passa
a “comer”, ou seja, receber sacrifícios como os demais orixás. Assim, dois galos são
sacrificados dentro do buraco, e o sangue é vertido por todo o conjunto, alimentando o orixá
com a energia vital, com axé. As partes dos bichos são então separadas, num ritual chamado
por Zé de arremate, e parte do animal – como asas, cabeça, pés e rabo – é colocado dentro do
conjunto, enquanto a outra parte vai para cozinha, onde será preparado pelas mulheres junto
com os outros alimentos que não são de procedência animal, chamados comidas secas. Todo
esse processo é igualmente “cantado”. Os diversos alimentos – como acaçás, milho branco,
pipoca, feijão preto, milho etc. – são cuidadosamente preparados pelas mulheres da casa, cada
um de um modo específico, em quantidades determinadas e seguindo determinados preceitos
(a pipoca, por exemplo, deve ser feita com areia da praia, sem o uso de óleo ou sal). Zé
supervisiona toda a ação, enquanto Deuza, a mãe pequena da casa, cuida de sua preparação.
Preparados, os alimentos são postos em diversos alguidares de barro, cuidadosamente
arranjados segundo as preferências do orixá. Depois, cada um dos presentes segura um prato

51
e, em fila, numa espécie de procissão, levam os alimentos para o centro do barracão, onde
serão depositados junto com os outros elementos. É o momento chamado de arriar a comida:
um momento de comunhão, onde cada pessoa deve estar com a “cabeça boa” e pedir coisas
boas durante a entrega. Ao entregar os alimentos para o orixá, é como se cada um deixasse
um pouco de si dentro do axé da casa, que agora passa a ser coletivo, concretizando assim o
fundamento do terreiro. No final, joga-se o obí38 para saber se o orixá aceitou a oferenda.
Enquanto nas obrigações dos outros orixás, como veremos, a comida, depois de alguns
dias, é retirada do peji e despachada em algum local específico, na oferenda que é feita para o
chão do terreiro, ao contrário, as comidas do orixá são deixadas ali, para que a terra
decomponha todo o alimento. Assim, uma vez feito o ritual, o buraco é coberto por uma pedra
e lacrado com cimento. Esta parte do chão do terreiro, assim, se sobressai em relação ao resto
do piso, demarcando onde foi plantado o axé da casa, que fica oculto sob a pedra, longe dos
olhares dos presentes.
Periodicamente (em geral, de ano em ano), a pedra será retirada e o buraco será
novamente aberto, sendo repetidos, desta vez em escala menor, os rituais da oferenda inicial.
Dali por diante, todos que chegarem ao barracão, em especial nos dias de festa, deverão
reverenciar este ponto seja batendo cabeça, ato de deitar-se e tocar a fronte da testa no chão,
em sinal de respeito ao orixá, seja tocando o solo com a ponta dos dedos e levando-os a testa,
a depender do status da pessoa no candomblé. Uma vez feito, o chão torna-se o ponto mais
concentrado de axé da casa, parte essencial e fundante do terreiro.
***
Tão importante quanto plantar o axé é assentar a cumeeira da casa. Ambos são
processos primordiais e complementares para a construção de um terreiro de candomblé. A
cumeeira é um assentamento localizado logo acima do fundamento do chão, o que mostra a
complementaridade entre os dois. Zé Diabo, ao me explicar sobre a complementaridade do
chão e da cumeeira, me dizia que o chão era feito para o “dono da terra”, local onde o sangue
será derramado e para onde, no fim, todos iremos. A cumeeira, por sua vez, pertenceria ao
“protetor da casa” (neste caso, Ogum) e seria como uma espécie de “para-raios”, que
receberia as energias de fora e repeliria as “forças negativas” do terreiro, defendendo-o e

38
Trata-se de um jogo divinatório feito com noz-de-cola e água, tido como “mais simples” que os búzios, pois,
nele, as respostas só podem ser afirmativas ou negativas – por isso o seu uso geralmente ao fim das oferendas,
para saber se a entidade aceitou ou não o presente.

52
estabilizando sua força. O chão e a cumeeira, assim, deveriam sempre andar juntos: uma
cumeeira sem chão perde sua força, e vice-versa.
Com isso, o centro do barracão torna-se o ponto de encontro entre o axé plantado e a
cumeeira da casa, realizando a conexão entre o Aiyê (este mundo, a terra) e o Orun (o outro
mundo, o céu). Enquanto em alguns terreiros, a depender da nação, essa conexão é feita
através de um poste central, que liga o céu e a terra (cf. Bastide 1958: 83-89; 1983:325-333);
em outros, como é o caso da Casa de Detinha, essa ligação é feita no espaço intervalar entre o
chão e cumeeira, criando o centro, ou a coluna de força do barracão39, algo semelhante ao
papel desempenhado pelo poste central. Tanto num caso como no outro, é em volta deste
centro que os iniciados dançam em círculo durante o xirê, série de cantigas que abrem as
festas de candomblé, e é ele o centro irradiador de forças de um terreiro.
Dois rituais acompanham a feitura da cumeeira: primeiro, é preciso assentar o orixá e
alimentá-lo com sangue sacrificial – ritual que, como já disse, só pode ser feito no chão. Em
seguida, trata-se de “arrumar” a cumeeira, suspendendo o assentamento e colocando-o em um
suporte preso ao teto, logo em cima de onde o axé está plantado.
Não pude acompanhar o primeiro ritual, que consistiu em assentar, em um pequeno
alguidar, o orixá revelado pelo jogo como o dono da cumeeira, Ogum. No entanto, ao
participar do segundo ritual, que consiste em colocar o assentamento no alto do barracão,
pude observar detalhadamente o assentamento – que, por não ser fixado na massa, carrega
seus diversos objetos “soltos” no alguidar. Trata-se de uma ferramenta de Ogum pequena, se
comparada as demais da casa, feita inteiramente de ferro e composta por uma lança central e
uma haste de ferro, onde dependuram-se sete pequenas ferramentas agrícolas de cada lado. Na
frente da ferramenta, dentro do alguidar, encontra-se o otá do santo – a pedra que, como
veremos, é o próprio orixá materializado – além de outros elementos, como obis, mel, sal,
azeite de dendê e etc.
Depois de assentado, o conjunto é levado para o centro do barracão, onde será
suspenso e colocado no suporte da cumeeira. Assim como a feitura do chão, trata-se de um
ritual muito importante na dinâmica ritual da casa. Na ocasião, ele foi realizado por Deuza,
que se tornou a mãe pequena do terreiro depois que Zé Diabo chamou-a para ajudar nos

39
Bastide (1958:88-89) vai falar que esse conjunto é a própria imagem do universo, “o microcosmo, ou também
o mundo reconstituído em sua realidade mística, que é a sua verdadeira realidade. E esse mundo não se destrói
porque está sendo perpetuamente criado de novo por uma união sexual que não cessa nunca, simbolizada pelo
poste central”.

53
rituais. Ao suspender a cumeeira, Deuza virou em seu santo, Omolu, e foi ele quem conduziu
o assentamento para o teto, não sem antes dançar, com o objeto entre as mãos, pelos quatro
cantos do barracão. O assentamento foi colocado junto com duas quartinhas de barro no alto
do barracão, e em seguida decorado com panos brancos e azuis. Depois que Omolu deixou o
corpo de Deuza, todos bateram paó40 e, assim, o ritual foi encerrado.
***
Mas não é somente a feitura do chão e da cumeeira que faz um terreiro de candomblé.
Para além destes, há uma série de outros agenciamentos necessários para compor o lugar e, à
medida que o terreiro vai ganhando novos adeptos e compondo com diferentes forças, o
próprio espaço vai se transformando, demandando novas feituras e composições. O espaço do
terreiro – tal qual, como veremos, acontece com a ferramenta e o próprio corpo do iniciado no
candomblé – é um território que nunca está totalmente “feito”, ou seja, sempre requer novas
desterritorializações e reterritorializações. Como diz Miriam Rabelo, o mundo do candomblé
é “um mundo que, longe de estar assentado de uma vez por todas, está sempre em processo de
se fazer: afinal cada conexão descoberta pode dar lugar a uma nova busca, pode ensejar o
estabelecimento de novos compromissos” (2014a:249).
Desse modo, há diversas outras feituras que perpassam o espaço de um terreiro de
candomblé. A Casa de Detinha, como já foi dito, não possui uma bandeira branca de Tempo
visível em seu terreiro. Isso não quer dizer, porém, que essa força não esteja presente: a
bandeira, junto com os outros elementos que a compõem, foi “enterrada” no quintal da casa, e
hoje somente um pequeno montículo de terra no canto do quintal indica que essa força está ali
ativada. Ainda no quintal, algumas árvores são amarradas com um pano branco, o que indica,
também, que ali habita um orixá, em geral Iroko. Do mesmo modo, bambuzais ou montículos
de terra também podem ser local de habitação de distintas entidades – sejam exus, eguns,
caboclos ou orixás.
Na entrada da casa, atrás do portão, há um pequeno prato contendo um montículo de
barro. Ali, dizem, encontra-se um exu, também chamado de Exu de porta41. Em alguns
candomblés, este exu possui uma pequena casa construída próximo ao portão da entrada.

40
Trata-se de um gesto ritual que busca fazer a comunicação com os deuses, através de uma sequência de palmas
(em geral, três palmas fortes seguida de mais sete palmas fracas). Ele é realizado em diversos contextos, como
no fim dos sacrifícios, das ações rituais, das entregas das oferendas ou dos resultados afirmativos do jogo de obí.
41
Bastide (1958:181), sobre o candomblé da Bahia, distingue dois tipos de Exus: os Exus de terra, que ficam
próximos às portas dos candomblés, e os Exus de ferro, cultuados em seu próprio peji. Apesar dessa distinção se
operar no caso aqui estudado, ela não é unânime entre os candomblés que já visitei.

54
Detinha ainda não construiu essa casa, mas apesar disso, diz ela, ele foi a primeira entidade a
ser assentada quando ela decidiu criar o terreiro. Este Exu é considerado o guardião da casa,
quem protege o terreiro dos espíritos da rua e daqueles que porventura queiram fazer algum
mal à casa e seus habitantes. Todos os adeptos, antes de entrarem em uma casa de candomblé,
devem pedir licença e saudar este Exu, por vezes oferecendo-lhe algum presente, como
bebidas ou cigarros.
Além disso, cada peji também possui seu próprio chão, que é alimentado na primeira
vez que se sacrifica um bicho de quatro pés (como cabras e bodes) dentro do quarto,
concentrando os axés (as vísceras) dos animais maiores, junto com algumas comidas secas
que, em vez de serem despachadas na rua, são depositadas dentro do buraco escavado no
quarto de orixá (também tampado com uma pesada pedra de mármore). Alguns assentamentos
também possuem seus próprios buracos, ocultos dentro dos altares que os sustentam.
Para além desses exemplos, quaisquer quartinhas, potes, panelas, alguidares ou pratos
podem ter algum fundamento escondido, sendo também um local de concentração de
determinadas forças. O candomblé, como nota Rabelo (2014; 2015a; 2015b), opera através de
um modo específico de compor e concentrar forças: trata-se de um cuidadoso trabalho ritual
que opera por meio de uma composição em camadas, ocultando – seja em buracos no chão,
seja em assentamentos, vasos ou plantas – as múltiplas forças que agem sobre o mundo.
Ocultar, diz a autora, é tanto proteger aquilo que é fonte e veículo de axé, quanto também
define um modo de sociabilidade próprio aos terreiros, que performam na ação ritual a
dinâmica mesma dessas forças; ou seja, a dinâmica da própria multiplicidade, onde coisas e
pessoas são “uma composição heterogênea que nunca se mostra em sua totalidade, havendo
sempre mais forças atuantes no mundo do que aquelas que são objeto explícito de atenção e
cuidado” (2015b:251).

“ESSA  CASA  NÃO  É  MINHA...”  

Alfred Gell, ao falar sobre o modo de composição das casas Maori, numa das mais
belas passagens de Art and Agency (1998), nos traz alguns paralelos interessantes para
pensarmos o estatuto ontológico de uma casa de candomblé. As casas Maori, diz o autor, são

55
como corpos para os corpos (“body for the body”). Entrar nelas é entrar em uma mente, em
uma sensibilidade específica: é entrar no fluxo que se seguiu de todas as casas e de todo
compósito de relações que ali se desenrolou e se desenrola. Isso porque a casa é também o
corpo do ancestral, reinstalado nessa forma. Ela não é simplesmente um traço sobrevivente da
existência ancestral, mas o corpo que ele possui no aqui e agora, e através do qual sua agência
é exercida e sentida (Gell 1998: 253). A casa é uma multiplicidade de corpos conectados: uma
corporificação fractal que se estende espacial e temporalmente.
No candomblé, a casa, tal qual a pessoa, é concebida como um território a ser ocupado
por uma multiplicidade de forças (cf. Anjos 2006:110), um “corpo para corpos”, se
quisermos. Ao criar vínculos com o terreiro, o noviço estabelece uma aliança diádica entre ele
e seu grupo corporado – uma aliança, no entanto, que é múltipla em si mesma, pois envolve,
além dele e da casa, todos aqueles que compõem o axé que ele passa a fazer parte: a mãe-de-
santo e todos seus filhos de santo, além dos espíritos que compõem cada um deles. Pois todos
aqueles que, em diferentes graus de existência, entraram em relação com a casa passam a
constitui-la. Ao entrar em um terreiro, cada um deixa um pouco de si ali – e, ao mesmo
tempo, leva consigo um pouco dos outros. A casa, assim, é antes um compósito de relações,
onde diversas forças – e suas movimentações constantes – são responsáveis por “mantê-la”,
constituindo assim o próprio axé do terreiro.
É nesse sentido que podemos mais uma vez voltar a uma das acepções possíveis para a
palavra axé. Isso porque, como vimos, o “axé da casa” é constituído por uma composição
específica de forças, o que faz com que cada casa seja singular em relação à outra, pois cada
uma possui um “estilo ritual” próprio – como indicado na expressão “cada casa é um caso”,
amplamente trabalhada por Edgar Barbosa Neto em sua tese de doutorado. Barbosa Neto
sintetiza o argumento, ao dizer que:

Se cada casa é um caso é também porque cada chefe é um chefe, cada deus é um deus, cada
lado é um lado, e também porque, de tudo isso, não resultam seres indivisíveis, mas formas
atravessadas por forças variadas, simultaneamente diferentes e inseparáveis, e que fazem de
toda individuação ritual uma maneira singular de compor com a multiplicidade. O que
chamo de estilo é precisamente essa singularidade, isto é, esse modo de composição com
uma matéria que é fundamentalmente força e cuja textura é sempre heterogênea (Barbosa
Neto 2012:23).

Por outro lado, como lembra o autor (ibid.:39), o fato de cada casa ser um caso não
resulta numa paisagem atomística de unidades rituais sem nenhuma conexão entre si. É aí que

56
somos levados a uma outra concepção de axé: axé enquanto filiação, raiz, ou, a depender do
caso, nação. Cada casa possui sua raiz, uma espécie de linha genealógica, ou matriz espaço-
temporal, da qual ela faz parte. Em geral, essa linhagem remete ao pai ou mãe-de-santo do
dono da casa – no nosso caso, portanto, a Zé Diabo. Essa raiz, no entanto, não funciona
apenas em seu plano “vertical”, das formas genealógicas. Na prática ritual, ela atualiza-se no
plano das alianças, das composições horizontais. Assim, citando novamente Barbosa Neto
(2012:85), “aquilo que, de um lado, é raiz, de outro, pode muito bem ser rizoma”.
Não é raro ouvir dos sacerdotes, como explicação para determinadas diferenças nos
detalhes que compõem os rituais, frases do tipo: “fiz do jeito dos antigos”, ou “fiz assim
porque minha casa tem raiz na casa X”, ou ainda “na minha nação a gente faz desse jeito”.
Essas frases, mais do que revelar uma ‘tradição’ que deve ser preservada, indica que a ideia
de raiz, nação, ou ‘povo’ é fundamental para compor o estilo ritual de cada casa. São essas
variações que fazem com que, em cada casa, os detalhes façam toda a diferença: o que vai
dentro de cada assentamento, os “fundamentos” da casa, os toques e suas variações, as
variações litúrgicas, as folhas e comidas, os modos de composição dos santos, e assim por
diante. Cada ‘detalhe’ carrega uma história ligada ao axé da casa, tanto no sentido filiativo
quanto na margem de indeterminação e improvisação de cada casa.
Ao “fazer a casa”, suas raízes são territorializadas na própria terra (no “chão”), e
passam a constituir a força do terreiro, seu axé. A terra – elemento que, como vimos, é
primordial para a territorialização de uma casa de candomblé – é portanto a própria força
generalizada dos ancestrais, ao mesmo tempo em que constitui a força coletiva da casa.
Invocar a terra é, portanto, movimentar e reverenciar essa própria força. É por isso que, em
um terreiro de candomblé, todo sacrifício é antes direcionado à terra e, durante uma festa de
candomblé, sempre que se toca para qualquer orixá, é à terra que os iniciados se dirigem,
tocando-a e levando a mão à cabeça. A terra, uma vez feita, torna-se uma espécie de ancestral
do terreiro42, um centro energético comum a todos os da casa. Cada prática ritual atualiza e
agencia essas raízes, transformando, em variação contínua, filiações em aliançaa.
***
Dito isso, voltemos ao paralelo com as Casas Maori. Tal qual ocorre nessas casas, as
forças que constituem um terreiro de candomblé extrapolam a existência de seu

42
Halloy, a esse respeito, diz: “Lieu d’origine et de finalité de l’existence, « la terre » entretient un lien privilégié
avec le cycle de la vie et de la mort” (2005:153)

57
“proprietário”, sendo antes uma “multiplicidade de corpos conectados”. É por isso que sempre
que eu falava com Zé Diabo sobre “sua casa” ele me reprimia, dizendo: “essa casa não é
minha, essa casa é do meu povo e dos orixás. Casa de candomblé não tem dono, o dono são
os orixás”. A casa não o pertence, mas é parte de um fluxo-força maior do qual ele faz parte e
no qual aglutinam-se as forças dos orixás e daqueles que por ali já passaram, vivos e mortos.
A casa, portanto, é antes uma composição de forças, que se movimenta no decorrer da
existência da casa, como explicita Juana Elbein dos Santos (1975:41), ao falar sobre o “axé do
terreiro:

Uma vez plantado o àse do “terreiro”, ele se expande e se fortifica, combinando as


qualidades e as significações de todos os elementos de que é composto:
a) o àse de cada òrìsà plantado nos peji dos ilé-òrìsà, realimentado através das oferendas e
da ação ritual, transmitido a seus olórìsà por intermédio da iniciação e ativado pela conduta
individual e ritual;
b) o àse de cada membro do “terreiro” que soma ao de seu òrìsà recebido no decorrer da
iniciação, o de seu destino individual, o àse que ele acumulará em seu interior, o inú e que
ele revitalizará particularmente através dos ritos do Borí – “dar comida à cabeça” – aos
quais se adicionam ainda o àse herdado de seus próprios ancestrais;
c) o àse dos antepassados do “terreiro”, de seus mortos ilustres, cujo poder é acumulado e
mantido nos “assentos” do ilé-ibo.

Eu acrescentaria, talvez numa chave menos “tradicionalista” (ou seja, sem eliminar as
ambiguidades e variações do sistema), as diversas relações estabelecidas fora do fluxo da
identidade e da filiação; ou seja, as relações que são compostas através dos múltiplos
devires43 que conectam e atravessam corpos, coisas e lugares. Pois não se trata somente de um
acúmulo ou redução de forças, como num jogo de soma-zero. Antes, trata-se de um engate
bem específico, que envolve pequenas passagens, frestas e transformações.
É comum, no candomblé, relatos de pessoas e terreiros que “viraram” de nações: eram
de Angola e passaram a Ketu, ou eram de Ketu e passaram a Jeje, ou mesmo casas que eram
de Umbanda e se transformaram em terreiros de Candomblé. No decorrer do caminho, as
coisas vão se transformando, através de uma negociação constante que envolve,
principalmente, o desejo das próprias entidades. A casa de Detinha, por exemplo, tem ‘raiz’
em Ketu, ainda que Zé Diabo, quem “fez” a casa, possua raiz na nação Jeje. Para que essa
operação fosse possível, uma série de procedimentos tiveram que ser feitos no decorrer da
“feitura” da casa, pois, como explica Zé, o fundamento das duas nações é diferente. Assim, Zé
43
Como lembra Goldman, a partir de Deleuze & Guattari: “Devir, contudo, não significa nem semelhança, nem
imitação, nem identificação; nem tem nada a ver com relações formais ou com transformações substanciais, e o
devir ‘não é nem uma analogia, nem uma imaginação, mas uma composição’” (Goldman 2005:115).

58
teve que cantar primeiro em Jeje, que é sua raiz, para só em seguida poder cantar em Ketu,
raiz da Casa. Além disso, uma série de ‘detalhes’ foram modificados, de modo que Zé, ainda
que fosse de uma raiz, pudesse fazer outra.
A casa de Detinha, como me explicou Zé Diabo, não poderia ser feita em Jeje, pois os
santos de Detinha são de nação Ketu, e só “aceitariam” ficar em uma casa dessa nação. Zé,
ainda que seja Jeje, sabe os fundamentos do Ketu, o que o permite – através de uma série de
‘frestas’ e ‘engates’- fazer as coisas em Ketu. Mas, para a casa ser feita, foi necessário uma
série de negociações: o Boiadeiro de Detinha, por exemplo, a princípio não queria uma casa
de candomblé Ketu, pois temia, com isso, “perder” espaço para os orixás (algumas casas Ketu
tradicionais sequer cultuam caboclos e boiadeiros). Para que a casa seja feita, foi necessário
assim negociar com o caboclo, prometendo-o que, ainda que a casa fosse de orixás, ele não
perderia espaço, tendo um quarto só para ele e recebendo, anualmente, uma festa em sua
homenagem, todo mês de Julho. Foi somente depois da aceitação do Caboclo que Zé pôde
fazer o fundamento da casa.
A casa, assim, se faz através de uma composição e negociação entre diferentes forças,
que passam a habitar o local e, assim, a fazer parte dele, compondo nele suas próprias forças e
devires. Se o espaço do terreiro, como vimos, parece ser um “espaço esburacado”, repleto de
buracos, passagens e frestas, é esse espaço que permite que, sempre, algo mais possa ser feito
– que mesmo as raízes possam se transformar, que o axé possa ser manipulado e colocado em
movimento constante.
***
Por fim, o que está em jogo aqui, se quisermos, é uma outra concepção de território,
distinta de uma noção ocidental que liga a terra à propriedade individual. O geógrafo Milton
Santos (2000) vai sugerir que existem dois modelos de se relacionar com o território. O
primeiro, próprio ao capitalismo – que poderemos chamar aqui de “tipo-Estado”, ou Maior,
para usarmos o vocabulário proposto por Deleuze & Guattari (1977) – concebe a terra como
um “recurso” a ser utilizado e apropriado pelo capital. O território, assim, é visto a partir de
um esquema hilemórfico, que separa de antemão o organismo de seu ambiente, os habitantes
de suas habitações. A esse modelo hegemônico do território como recurso, Santos vai
contrapor a uma noção – menor, para continuarmos com a oposição proposta – de território
como abrigo, no qual o espaço é, antes, o território em estado de uso. Ou seja, uma noção
onde o território não é desvinculado do uso que se faz dele, onde o ponto de partida não é

59
mais essa divisão ontológica, mas a imersão e o engajamento prático que os seres (humanos e
não-humanos) têm com o espaço que habitam, num processo de composição mútua onde um
não pode ser desvinculado do outro. De modo semelhante, Heidegger, num pequeno e
instigante ensaio (1951), distingue esses dois modos em duas ontologias distintas: uma
relacionada ao “construir” – na qual se pressupõe um “mundo lá fora” pronto para ser
ocupado – e outra relacionada ao “habitar” – que implica num mundo engajado com os seres
que o habitam, ou seja, um mundo que não está “feito” antes de ser habitado.
O candomblé, se quisermos, poderia ser pensado enquanto um modo de habitar o
território, concebendo-o como abrigo de distintas forças e fluxos. No entanto, o território que
ele faz, através de suas ações rituais, não pode ser limitado a uma territorialização espacial –
antes, ele é composto por uma série de agenciamentos múltiplos, que conectam distintos
lugares, coisas e pessoas. É assim que, seguindo uma intuição presente na obra de José Carlos
dos Anjos (2006; Anjos & Oro 2009), busco na obra de Deleuze & Guattari (1997) e, em
especial, nos escritos de Félix Guattari (1992), a ideia de pensar o candomblé enquanto um
território existencial, ou seja, um território composto a partir dos ritmos que ele próprio
agencia. Um território existencial é antes um movimento de forças, composto de matérias de
expressão que ultrapassam os seus agentes. Ele se constitui em intensidade, está “sempre em
vias de desterritorialização, ao menos potencial, em vias de passar a outros agenciamentos,
mesmo que o outro agenciamento opere uma reterritorialização através de sua constante
intensividade” (Deleuze & Guattari 1997:144).
Assim, poderíamos pensar o fazer no candomblé enquanto a constituição de um
território existencial (que “engata” com uma multiplicidade de territórios outros). Terreiros,
pessoas, assentamentos, pedras, colares, vasos, buracos: cada qual constitui um território
existencial intensivo, composto e atravessado por uma série de forças.
No candomblé, o território (o terreiro) é um território vivo, carregado de estórias dos
fazeres que já se fizeram e que se farão naquela terra44: onde o axé foi plantado, o sangue
derramado, a ligação divina atualizada. A terra, e tudo que está sobre ela, ultrapassa o humano
e suas pretensões45. Entretanto, isso não exclui o fato de que, para existir, ela tem que ser feita

44
A geógrafa Doreen Massey (2005: 183), de modo semelhante, vai definir o espaço como uma “simultaneidade
de histórias até então”, onde as histórias e trajetórias compõem o próprio espaço, são parte dele.
45
Sobre a terra e o território, Deleuze & Guattari nos dão uma instigante reflexão: “E sem dúvida a terra não é a
mesma coisa que o território. A terra é esse ponto intenso no mais profundo do território, ou então projetado fora
do território como ponto focal, e onde se reúnem todas as forças num corpo-a-corpo. A terra não é mais uma
força entre as outras, nem uma substância enformada ou um meio codificado, que teria sua vez e sua parte. A

60
por ele – uma feitura que, como vimos, atua por composição de multiplicidades. Assim, mais
que um espaço carregado de histórias, a casa é um espaço que propicia fazeres, cuidados
específicos e diálogos íntimos entre pessoas e deuses. Participar de um terreiro é habitá-lo,
plantar sua própria cabeça (orí) no local, compartilhar com ele sua força, seu axé.
A casa de Detinha foi composta por uma série de agenciamentos que envolveram
conexões com diversos lugares, deuses e coisas. Assim, por exemplo, uma série de elementos,
como terras de lugares específicos, folhas, animais, árvores, notícias recortadas de jornais,
buracos, além de orixás, exus, caboclos e ancestrais são acionados para compor o chão da
casa, que passa a ser atravessado pelas distintas forças que estão e agem sobre o mundo
Compor uma casa é portanto compor uma força territorial – força esta que, como
vimos, está sempre “em vias de se fazer”. Para Bastide (1958:69), através da participação – da
fixação e composição de forças – as casas de candomblé se tornam um “microcosmo da terra
ancestral”, constituindo “mundos à parte, espécies de ilhas africanas no meio de um oceano de
civilização ocidental”. Assim, segundo o autor, “o axé do candomblé deve condensar todos os
axés, exatamente como o terreiro é um resumo de todo o território nagô” (:78). Desse modo,
mais do que uma ‘instituição’, uma ‘forma’ ou uma ‘identidade’, o terreiro pode ser pensado
como uma espécie de complexo irradiador e receptor de diversas forças46, ou, como nos diz
Goldman, uma “máquina de captura” destinada à “captação, à distribuição e à circulação da
força única que, em suas cosmologias, constitui tudo o que existe e pode existir no universo”
(Goldman 2012:279).
Nessa composição, o humano, na maior parte das vezes, é apenas mais um partícipe.
No terreiro de Detinha, como vimos, foi Iemanjá quem decidiu sobre o lugar onde seria feito
o barracão, e foi Boiadeiro, por sua vez, quem exigiu a construção de um peji só para ele.
Como certa vez me disse Zé Diabo: “eu não faço nada aqui, quem faz são os orixás”. Cabe à
ele, portanto, mediar essas forças, modulá-las de modo que elas passem a ocupar territórios
específicos, passando a fazer parte da vida de todos os que habitam um terreiro. Assim, mais
do que uma habilidade, fazer exige uma sensibilidade para captar e manipular as forças que
estão no mundo: agir, no candomblé, é sobretudo compor com uma multiplicidade.

terra tornou-se este corpo-a-corpo de todas as forças, as da terra como as das outras substâncias, de modo que o
artista não se confronta mais com o caos, mas com o inferno e com o subterrâneo, o sem-fundo”(1997:162).
46
Mais uma vez, Bastide já nos dizia que “o templo é algo mais do que um pedaço da África transportado para o
outro lado do oceano, é algo mais do que um local consagrado por nele terem sido enterrados os axés; copiando
a união do céu e da terra, ele auxilia o mundo criado a perdurar, encerrando nas duas cuias o desdobramento
harmonioso das forças da natureza, juntamente com a estrutura e as funções da sociedade”. (1958:89)

61
TOPOLOGIAS  RITUAIS  

Ao passar a fazer parte de um terreiro de candomblé, cada entidade se territorializa de


maneira específica, habitando determinados territórios a partir da própria composição
relacional da casa. Assim, Iemanjá, dona da cabeça de Detinha, se torna também a “dona da
casa”; Intoto, por sua vez, é o dono do chão e Ogum, o da cumeeira. Exu, guardião da entrada,
fica no limiar entre a casa e a rua. Iroko habita as árvores, assim como alguns eguns. Tempo
fica próximo ao barracão, enterrado no quintal da casa. Exus, caboclos, santos e orixás
possuem seus próprios quartos, habitações de onde emanam suas forças. Cada entidade vai
sobrepondo seu território existencial aos territórios já existentes na casa, constituindo então
essa “máquina de captura” do candomblé. Assim, se a casa pode ser pensada como um
compósito de relações, essas relações atravessam a própria topologia das forças, que se
organizam de modo relacional no terreiro. Afinal, como lembra Barbosa Neto (2012:145),
“cada divindade traz consigo a sua geografia”.
Nesta seção, proponho explorar o modo como essas forças constituem seus territórios
existenciais em uma casa de candomblé, compondo uma espécie de “topologia ritual”. Para
isso, teremos que percorrer brevemente algumas das clássicas divisões – amplamente
trabalhadas dentro dos estudos sobre religiões de matriz africana no Brasil (cf. Bastide 1958;
Boyer 1993; Johnson 2002; entre outros) – que pautaram a discussão sobre espaço nessas
religiões. Boa parte dessas divisões já foram relativizadas em duas robustas teses de
doutorado: uma sobre o xangô de Recife, escrita por Arnaud Halloy (2005), e a outra de
Edgar Barbosa Neto (2012), sobre casas de religião em Pelotas-RS. Meu intuito aqui é partir
dessas abordagens para analisar como, no candomblé tal qual praticado por Detinha e Zé
Diabo, essas divisões também não se dão de modo tão “estanque” quanto à princípio
poderiam parecer. Busco, portanto, explorar os efeitos etnográficos de uma abordagem que
não toma essas divisões como “dadas”, mas que procura seguir o modo como essas diferentes
topologias são organizadas e agenciadas no decorrer dos trabalhos rituais. Sigamos.

62
Figura 1. Croqui da casa de Detinha
***
A primeira oposição que à princípio salta aos olhos dentro de um candomblé é aquela
entre a casa e a rua. Elas se opõem como o sagrado se opõe ao profano, o doméstico ao
público, o limpo ao sujo, o seguro ao perigoso. Há uma série de restrições corporais exigidas
para participar de um ritual no candomblé. A pessoa, em geral, deve estar ‘limpa’ para entrar
na casa e participar das atividades. Uma mulher não pode participar dos rituais, sequer
cozinhar a comida dos orixás, se ela estiver de bajé (menstruada), pois seu corpo fica ‘aberto’
e ‘poluído’, assim como fica o corpo daquele que teve relações sexuais ou que teve algum
contato recente com a morte.
De uma forma geral, todos aqueles que chegam da “rua” chegam com o corpo ‘sujo’.
Assim, antes de entrar em um terreiro – em especial aqueles que retornam de algum despacho
realizado – as pessoas recebem uma tigela contendo água limpa e, após passá-la em volta da
cabeça três vezes, despejam a água no chão da rua. Esse é o primeiro ritual que visa “limpar”
o corpo daquele que chega. Depois, o ideal é tomar um banho, seguido de um banho de
amassi, e vestir roupas claras, usando saias (se for mulher) ou roupas de ração, além de cobrir
sempre a cabeça se iniciada. Só depois desse procedimento que ela pode saudar o centro do
barracão e tomar a benção dos mais velhos, iniciando assim as atividades rituais. Durante
algum ritual, especialmente aqueles que envolvem sacrifícios, é importante que nenhuma
pessoa saia da casa, para não se expor aos perigos da rua e não colocar em risco todo o
terreiro. Como nota Halloy (2005:307), no candomblé a rua é considerada como
potencialmente perigosa e poluente, domínio de ‘espíritos maléficos’, como exus e eguns.
Não custa lembrar, como já falamos acima, da presença do exu de porta no limiar entre a casa
e a rua, que visa justamente proteger a casa desses perigos que a rodeiam.

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De modo semelhante, despachar o exu é uma das primeiras coisas a serem feitas antes
de um grande ritual ou festa de candomblé. Este “pré-ritual” também é chamado de padê de
exu, e é feito no centro do barracão, para depois ir para a portado terreiro. Ele garante que a
casa esteja protegida dos perigos presentes na rua, para que, assim, tudo possa correr bem. Se
isso não é feito, como dizem, a casa fica ‘exposta’ à ação (por vezes perturbadora) dos
“espíritos da rua”. Certa vez, durante uma festa de orixá em uma casa de candomblé próxima
à casa de Detinha, uma grande briga aconteceu na entrada do terreiro, levando todos ali
presentes a desconfiarem do pai-de-santo que, supostamente, não teria despachado o exu, ou,
se o tivesse feito, este não teria sido despachado de forma correta. Assim, somos levados a
pensar que o terreiro, tal como nota Brumana & Martinez (1991), funciona como uma espécie
de “sistema defensivo” que busca repelir as forças invasoras que ameaçam seu território.
Mas isso não é tudo. Pois, como temos visto até aqui, essas divisões entre o sagrado e
o profano possuem múltiplas variações e não se estabelecem sem uma série de
agenciamentos. Assim, criticando a ideia de um “exterior ameaçador” homogêneo, Barbosa
Neto (2012:140-141) vai lembrar que o terreiro também se faz através do lugares fora de seu
espaço físico. Há uma série de rituais feitos na “rua”: encruzilhadas, rodovias, cachoeiras,
praias, matas, ferrovias... Cada um desses lugares é carregado de energias que compõem a
própria força da casa, traçando, como veremos mais a frente, uma “cartografia de forças”
específica de cada terreiro.
Se a “rua” por vezes pode fazer parte da casa, a casa também pode ser um pouco a rua.
Isso porque a composição relacional da casa varia de acordo com a ação ritual que está sendo
praticada (Halloy 2005). Lembro-me, por exemplo, de um samba de exu realizado na Casa de
Detinha certa vez. Neste dia, exu não havia sido despachado na porta, e a casa foi “aberta”
para diferentes tipos de entidades: padilhas, pomba-giras, exus, marujos etc. Quando me dei
conta, percebi que o barracão estava cheio, e que eu nunca tinha visto a maioria daquelas
pessoas que incorporavam seus espíritos no meio do samba de roda, solicitando cigarros e
bebidas. A energia da casa estava pesada, mas o ar alegre dos presentes aliviava uma possível
tensão – o que me levou à traçar paralelos com o carnaval, época em que os orixás “voltam
pra África” e os demais espíritos são “soltos na rua”.
Para além disso, há o fato de que, no cotidiano da casa de Detinha, essa separação
entre casa e rua, sagrado e profano, nem sempre é tão rígida. Mesmo durante os rituais, as
pessoas não deixam de brincarem e conversarem entre si, ou pararem para tomar um café e

64
assistir a novela ou algum jogo de futebol. No fundo, portanto, essa separação intransponível
entre o que é “sagrado” e o que é “profano” diz mais sobre uma certa cosmologia judaico-
cristã do que ao candomblé e seu mundo vivido, onde a vida “ordinária” e a vida “religiosa”
coexistem sem necessidade de contradição.
Detinha mora com três de seus filhos, sendo que dois são adolescentes, além dos seus
outros filhos e filhas que a visitam regularmente, dos muitos vizinhos e de seu marido que,
apesar de morar em uma outra vila, está sempre presente. No cotidiano, quando não há
nenhum trabalho ritual ou clientes, pessoas entram e saem da casa sem necessariamente
cumprir os preceitos requeridos nos tempos de trabalho no terreiro. Fora desses períodos,
portanto, essas distinções se tornam mais imprecisas, ainda que elas não deixam de atualizar-
se, sempre que, por exemplo, Detinha chama a atenção dos presentes lembrando-lhes que
aquela era uma casa de candomblé. Como dizem Brumana & Martínez, em uma etnografia
sobre a umbanda em São Paulo:

Quase nunca o terreiro é um edifício construído especifica e exclusivamente para esse fim.
Na maioria dos casos é a adaptação ou o aproveitamento de um espaço na casa do pai ou da
mãe de santo: uma construção no jardim, a ampliação de uma garagem, a adaptação de um
quarto. O terreiro é pois, em geral a casa de seu chefe, não tanto porque ele mora no terreiro
mas porque transformou sua casa em terreiro. Isto faz com que os espaços profanos e
sagrados não estejam nunca totalmente delimitados. Assim como as partes profanas da
moradia são usadas religiosamente (Brumana & Martínez 1991, p. 119).

Isso nos leva a uma segunda oposição presente nos estudos sobre o candomblé, que é
aquela entre o espaço doméstico e o lugar de culto, a morada e o terreiro. Nos casos como o
narrado por Brumana & Martínez – e que se aplica de modo inconteste à casa de Detinha – a
vida “privada” e a vida “religiosa” coexistem num mesmo território, tanto espacial quanto
existencialmente, e um e outro interpenetram-se constantemente.
Apesar dessa coexistência, ao atravessar a casa de Detinha e chegar ao barracão, a
diferença entre os dois ambientes é nítida: a simplicidade da moradia de Detinha contrasta
com a exuberância dos assentamentos e seus pejis. Enquanto na parte da frente a casa é
semelhante às demais habitações do pequeno vilarejo de Caxixi, com cômodos pequenos e
simples e acabamentos rústicos e já desgastados pelo tempo; nos fundos da casa, onde se
encontram o barracão e os pejis, o espaço é mais amplo e o acabamento mais elaborado, com
forros e pisos detalhados. Dentro do maior peji, em frente ao assentamento de Iemanjá, uma
pequena fonte incrustada de conchas e pedras é motivo de orgulho dos habitantes da casa.

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Isso não quer dizer, porém, que essa separação é rigidamente atualizada; antes, como
lembra Halloy (2005:304), quer dizer que, nessas situações onde o espaço dedicado ao culto
dos orixás e a moradia são anexos, chegando por vezes a se confundirem, a prioridade da
ocupação é sempre dos orixás, sob pena de se expor à represálias caso as divindades sintam-se
preteridas ou “desalojadas”. Habitar com os deuses cria uma situação de constante interação e
intimidade: os territórios existenciais de homens e deuses se sobrepõem, e um ganha mais
destaque que o outro a depender das forças relacionais mobilizadas.
Assim como o “profano” invade o “sagrado”, o inverso também pode ser verdadeiro:
entrando na moradia a partir do barracão, uma antessala dá acesso a um pequeno quarto
escuro, local onde Detinha (e por vezes Zé) jogam os búzios – geralmente numa pequena
mesa coberta por um pano branco, com velas, copos d’água e os 16 búzios rodeados por um
conjunto de fios de contas. Neste quarto também há um altar repleto de diversos santos
católicos, como Santa Bárbara, São Jerônimo, São Lázaro, Santo Antônio e Nossa Senhora da
Conceição da Praia47, além de velas, incensos e colares. Ao lado deste quarto, uma passagem
na antessala nos leva ao interior da habitação onde Detinha vive com dois de seus filhos.
Trata-se de uma habitação muito simples, com uma pequena sala, dois quartos, um banheiro e
uma cozinha – fundamental para a preparação dos diversos alimentos utilizados em oferendas,
ebós e nos demais rituais da casa. O cotidiano de Detinha, assim, está repleto de “coisas de
santo”: os quartos com esteiras, a cozinha com comidas de orixá, o banheiro com banhos de
ervas, a sala com os búzios...
Por fim, as divisões entre a casa e a rua, a morada e o terreiro não são tão fixas quanto
parecem, dependendo sempre de composições relacionais que engatam esses espaços em
territórios existenciais específicos, onde essa diferença pode ou não ser atualizada. Isso,
porém, não encerra a discussão sobre a composição de forças e suas topologias, presentes
também no espaço interno aos terreiros, como veremos agora.
Uma outra clássica dualidade presente nos coletivos afro-brasileiros é aquela entre os
orixás (deuses), de um lado, e os eguns (mortos) de outro (cf. Santos 1975:108-109; Bastide
1958:79; Goldman 1984). Essa divisão cosmológica em geral é atualizada na própria
configuração espacial da casa, que opõe o quarto dos orixás, o peji, ao quarto dedicado aos

47
Santos relacionados, respectivamente, com Iansã, Xangô, Omolu, Ogum e Iemanjá.

66
espíritos ancestrais, chamado quarto de balé, ou quarto de egum (Halloy:327-331). Um se
encontra o mais afastado possível do outro, dentro dos limites territoriais do terreiro48.
A casa de Detinha ainda não possui um quarto para os eguns. Isso, porém, não quer
dizer que esta força não esteja ali ativada, tanto na constituição do chão da casa, quanto num
pequeno matagal existente nos fundos do quintal, onde também está assentada uma qualidade
de Iansã que lida com os mortos, chamada Iansã Balé. Esse lugar é evitado pela maioria dos
que frequentam a casa, tido como um lugar “assombrado” por espíritos. Certa noite, enquanto
jogávamos conversa fora sentados no barracão, uma das senhoras presentes se assustou com,
segundo ela, uma mancha branca que ela havia visto rondando os fundos do quintal. Todos
prontamente entramos na casa, cuidando de fechar as portas e as janelas. Só Zé Diabo ficou
do lado de fora, e foi ao assentamento ver o que estava se passando. O receio era de que
algum desses espíritos estivessem “soltos” no terreiro, o que poderia significar diversas
coisas, como um sinal de algum feitiço ou a comunicação de alguma mensagem. Zé ficou
mais de uma hora lá, e eu nunca soube o que de fato ocorreu.
Os eguns, ao contrário dos orixás, devem ser evitados pelos humanos, pois suas
energias, ligadas com a morte, podem causar sérios malefícios à pessoa. Essas entidades não
costumam possuir as pessoas, mas podem se aproximar, encostar nelas49, atravessando-as
com uma energia carregada que deve ser imediatamente retirada por meio de trabalhos de
limpeza e ebós, sob o risco de leva-las à morte. Ao mesmo tempo, é uma energia com a qual
todos devemos lidar, e que, se bem canalizada, incrementa a força da pessoa e do terreiro. É
por isso que, em geral, se assenta eguns em uma casa de candomblé.
Certa vez fui chamado por Zé Diabo para ajudá-lo a assentar um quarto de balé num
terreiro próximo à sua casa, em Salvador. Fomos à noite, e tivemos que esperar até a alta
madrugada, num horário específico, para começarmos os trabalhos rituais. Antes de
começarmos, porém, havia uma dificuldade: encontrar um local adequado para assentar os
eguns. O espaço que a mãe-de-santo havia reservado estava muito próximo ao quarto de
Xangô, orixá que tem pavor ao frio da morte50. Se assentássemos os eguns ali, dizia Zé,
Xangô, que era o dono da cabeça da mãe-de-santo, certamente iria embora. Foi assim que,
depois de muito especular, acabamos improvisando uma solução: assentaríamos o quarto de
48
Em alguns casos essa distância se opera até mesmo entre diferentes cidades, como é o caso dos terreiros de
Egum da Ilha de Itaparica, locais conhecidos por tratar exclusivamente com Eguns e suas forças.
49
Bianca Arruda Soares (2014), em uma bela etnografia sobre os candomblés de Belmonte, no sul da Bahia,
atenta para as diferentes formas de se referir à presença dos múltiplos seres que habitam o mundo do candomblé.
50
Dizem até que Xangô se afasta da cabeça (ori) de seus filhos momentos (ou até dias) antes deles falecerem.

67
Balé num cômodo nos fundos da casa, que antes era usado como lavanderia. Isso porque esse
cômodo ficava mais próximo do assentamento de Omolu, orixá que tem estreitas relações
com a morte, e do quarto dos exus, entidades que também são mais “próximas” aos eguns.
Essa solução é também próxima à encontrada na própria Casa de Zé, em um bairro popular de
Salvador, onde o quarto de balé fica ao lado do quarto dos exus – e oposto ao quarto dos
orixás.
Assim, ao mesmo tempo em que o quarto de balé se opõe ao peji, alguns orixás, ou
determinadas qualidades de orixás, podem se aproximar dos eguns, tornando essa divisão
menos rígida. Iansã, Omolu e Nanã são os mais próximos dos mortos. No entanto, todo orixá
tem algum caminho que o agencia à essa força. Xangô, por exemplo, em sua qualidade de
Aganju, torna-se uma divindade mais próxima dos eguns. Se os orixás são muitos – cada
divindade é uma multidão – os eguns também são internamente diferenciados. Um egum pode
ser um ancestral (pertencente à linhagem genealógica da pessoa), um morto, uma energia
ancestral genérica ou mesmo um espírito qualquer, que pode rondar entre o mundo dos vivos.
Assim, ao mesmo tempo que as pessoas mantêm certa relação de respeito e distanciamento
em relação aos eguns (energias “carregadas”, como dizem), cada adepto possui um ou vários
eguns que o acompanham, e são, por isso, também seus protetores. Zé costuma se referir aos
eguns que o acompanham como “seu povo”, e essa categoria abrange desde familiares por ele
conhecidos como os que ele não alcançou em vida e até mesmo aqueles que não tem uma
relação de parentesco aparente com ele.
Há também eguns que são ‘quase’ exus – e estes, como vimos, também mantém uma
relação de proximidade com aqueles. Alguns exus podem ser assentados no quarto de balé,
como Exu Tranca-Rua, Exu das Almas, Exu Caveira, Exu Tiriri, Maria Mulambo, Sete
Catacumbas, dentre outros. Nesse plano, exus e eguns podem por vezes até se confundir. O
Exu de Porta também é, geralmente, um exu que possui algum tipo de relação com os eguns.
Assim, no episódio do espírito que apareceu na casa de Detinha, uma das precauções tomadas
foi verificar se a vela posta na porta para Exu estava acessa. Antes de assentarmos o quarto de
balé da casa da mãe-de-santo de Salvador, a primeira coisa que fizemos foi cortar um galo
para exu, o dono da porta.
Exus, orixás e eguns, apesar de possuírem distintas “naturezas”, podem, através de
determinados agenciamentos, ser um pouco uns ou outros, fazerem “passar” sua energia entre
esses diferentes domínios, compondo novos arranjos existenciais. Desse modo, apesar da

68
distinção espacial entre o quarto de balé e o peji, há uma série de engates possíveis entre as
múltiplas forças que compõem orixás, eguns e exus (e também caboclos, erês, marujos etc.).
Tudo depende, portanto, do agenciamento que se faz nessa composição de forças: e esses
agenciamentos são repletos de pequenas passagens, frestas, limiares que fazem passar uma
força sobre a outra, sobrepondo distintos territórios existenciais. Eis porque, como escreve
Barbosa Neto, “a morfologia da casa não se expressa apenas através da separação entre
formas discretas, ainda que isso também esteja presente, mas também por meio da conexão
produzida pela força associada aos seres sobrenaturais que vivem dentro dela” (2012:145).

OS  PEJIS  E  SEUS  SANTOS  

Atualmente a casa de Detinha possui quatro pejis, construídos contíguos um ao outro,


todos colados ao barracão. É ali que estão assentadas a maioria das entidades que habitam o
terreiro51, individuadas nos conjuntos de materiais e forças que os compõem, chamados
assentamentos, ou ibás. Os pejis, tal qual a casa, também tornam-se entes vivos ao serem
feitos, e por isso também passam a comer através de uma série de rituais. Sua arquitetura e os
materiais e cores que o compõem se relacionam diretamente com as entidades que serão ali
assentadas. Cada peji possui uma topologia própria, e a disposição espacial dos assentamentos
em seu interior será fundamental para instituir uma série de relações: laços de parentesco e
afinidade entre os santos, a hierarquia das divindades, o encadeamento das ações rituais e a
própria disposição corporal instaurada entre o corpo do adepto e o corpo do assentamento. É
para essa topologia dos pejis e seus santos que nos voltaremos agora.
Ao atravessarmos o beco de terra e chegarmos ao barracão da Casa de Detinha, o
primeiro peji que encontramos é o de Ogum. Trata-se de um pequeno quarto, de paredes
azuladas e fechado por um portão de ferro. Lá habita, soberano, o assentamento do Ogum de
um dos filhos de Detinha, no alto de uma bancada em alvenaria e em cima de dois pedaços de
trilho. Inicialmente ele havia sido assentado no peji dos orixás, mas logo depois da primeira
oferenda recebida, Ogum manifestou, por meio do jogo, seu desejo de ter um peji separado.

51
Digo a maioria e não a totalidade pois, como vimos, algumas entidades habitam outros espaços externos aos
quartos-de-santo, como árvores ou buracos espalhados pelo terreno.

69
Tratava-se de um caso ‘raro’, pois, em geral, esse desejo só pode ser atendido se se tratar do
orixá da mãe-de-santo. Entretanto, ao jogar os búzios, Zé descobriu que esse era um desejo
também de Iemanjá, a dona da casa. Foi então que o quarto de Ogum foi construído, para
abrigar este Ogum e os que porventura possam surgir dos futuros filhos da casa.
Ao lado deste peji, uma porta pintada de vermelho com uma inscrição numérica dá
acesso ao outro quarto, morada dos Exus da casa, tanto os de Detinha quanto os de seus
familiares. Trata-se de um quarto maior que o anterior, cujas paredes e chão são revestidos de
um piso preto-e-branco, além de possuir duas longas bancadas onde se encontram os exus. No
total são doze assentamentos, a maioria disposta em casal: um macho (exu) ao lado de uma
fêmea (exua, pombagira, padilha etc.). O primeiro casal é aquele pertencente à Detinha e seu
orixá, colocado no segundo degrau da bancada, acima dos demais. Depois, seguem os exus do
marido de Detinha, de seus filhos e de alguns participantes da casa. Cada entidade possui um
nome próprio, publicamente conhecido por todos do terreiro, cada qual com suas próprias
cantigas, atuações e particularidades: Tranca-Rua, Tiriri, Gira-Mundo, Maria Molambo, Sete
Saias, Maria Padilha das almas etc.
Fechado por uma grade de ferro pintada de verde, de chão cimentado e mais “aberto”
que os demais, o terceiro quarto pertence aos caboclos, boiadeiros e marujos. Boiadeiro,
entidade que acompanha Detinha, se destaca ao centro do peji, encimado por uma grande
pedra sobre a bancada de alvenaria. Na frente do assentamento ficam dois grandes chifres de
boi e um crânio de bode (o último sacrificado para a entidade); além de duas quartinhas e um
quartinhão. Duas estátuas, de cerca de um metro cada, também ganham destaque no quarto:
uma de um vaqueiro/boiadeiro e a outra de um marinheiro, ambas feitas de gesso. Elas
dividem o espaço com outras imagens de índios, vaqueiros e de São Jorge, assim como com
os demais assentamentos presentes no peji: um assentamento de Marujo, um outro para o
Caboclo e o terceiro para Oxóssi – orixá que, por ser ligado às matas, tem muita proximidade
com caboclos e boiadeiros. Diversas folhas e ramos espalham-se no chão do quarto, além de
velas, charutos, garrafas de cerveja preta e um jarro de barro contendo a jurema, bebida
consagrada a estas entidades. É também neste quarto que ficam guardados os atabaques,
cobertos por um pano branco que só é retirado no momento em que eles são tocados ou no
momento em que estiverem recebendo alguma oferenda – no candomblé, os atabaques
também comem.

70
Por fim, o último quarto é o maior deles. Inteiramente revestido com um azulejo
quadriculado em azul e branco, trata-se do peji onde estão abrigados todos os demais orixás
de Detinha, em especial Iemanjá, a dona da casa. Como veremos mais a frente, cada
assentamento é único, composto de um modo específico, com cores, formas e materiais que
os pertencem e os singularizam. Por agora, basta dizer que os materiais de que são feitos os
assentamentos servem também para compor a própria topologia do peji: os primeiros orixás
são aqueles que “levam ferro” em suas composições, neste caso, Ossain e Ogum52. Em
seguida vêm os santos mais “finos”, cujos assentamentos são feitos de louça. Primeiro vem
Iemanjá, a dona da casa. Ela é colocada acima dos demais, em um segundo pavimento na
bancada dos orixás e sobre um pequeno banco de madeira. Ao lado de Iemanjá estão Oxum e
Oxalá, também compostos de vasilhames e pratos de porcelana, com suas quartinhas e
quartinhões, todos adornados com suas cores características: amarelo para Oxum, branco para
Oxalá. Iansã realiza uma espécie de “transição” entre a porcelana – material de seu
assentamento, da cor vermelha – e o cobre, matéria-prima de uma coroa que repousa acima do
seu ibá. Ao seu lado está Xangô, seu esposo, cujo ibá é feito de madeira com detalhes em
cobre. Por fim, estão os orixás ligados ao barro, Nanã e Omolu, cujos assentamentos são
compostos predominantemente pelo barro, mas também levam madeira, para o caso de Nanã,
e ferro, para o de Omolu. Assim, a ordem dos santos no peji da casa de Detinha é esta:
Ossain, Ogum, Iemanjá, Oxum, Oxalá, Iansã, Xangô, Nanã e Omolu.
Entretanto, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não é somente a
‘matéria-prima’ dos assentamentos que organiza as relações espaciais entre os orixás; ou
melhor: os materiais de cada assentamento não podem ser desvinculados de suas próprias
relações, pois os fluxos que organizam os materiais de cada orixá são os mesmos que
compõem seus laços de parentesco e afinidade. Ogum, Exu, Ossain e Oxóssi, por exemplo,
são santos próximos e, não por acaso, todos levam ferro em sua composição. Mas essa
composição tampouco pode ser reduzida à essas dimensões. Trata-se, antes, de uma topologia
complexa, que relaciona as diversas ligações mitológicas entre os orixás, as relações
alimentares de cada santo, seus fluxos de desejo e o enredo que cada santo em particular pode
traçar com algum outro53, compondo assim a própria atividade ritual da casa. Assim, por

52
Minha hipótese, aqui, é que neste conjunto poderiam ser inclusos outros orixás, como Oxumarê (que Detinha
não tem assentado) e Oxóssi (que se encontra no quarto dos caboclos). Entretanto, essa é uma relação que se
encontra em estado virtual, e que portanto, ao ser atualizada, pode sofrer transformações diversas.
53
Sobre a noção de enredo utilizada na relação entre as divindades, ver Flaksman (2014).

71
exemplo, Nanã e Ogum são colocados de lados opostos, pois, segundo Zé, “eles não se dão
muito bem um com o outro. Nanã não leva ferro em nada, não bate com Ogum54”. Essa
distância atualiza uma disputa presente no plano mais ‘geral’ entre os dois orixás e é
necessária, portanto, para evitar que eles possam entrar em conflito. Essa atualização, porém,
não é efetuada somente no plano espacial, mas nos próprios materiais que compõem cada
orixá: enquanto Ogum é todo feito de ferro, Nanã, por sua vez, rejeita este material em seu
ibá, que é composto majoritariamente por madeira e barro. Iansã, por sua vez, é colocada ao
lado de Xangô, seu esposo. Já Iemanjá, que ocupa a parte mais alta da bancada, é colocada
tanto ao lado de Oxum, que também é um orixá que possui ligações com a água, como ao lado
de Ogum, pois, como me explicaram, aquela Iemanjá em específico teria relações próximas
com Ogum, podendo até comer juntos em determinadas oferendas. A proximidade espacial
atualiza assim uma relação presente entre os dois orixás individuados (o Ogum e a Iemanjá de
Detinha)55.
Arnaud Halloy (2005:318-327) faz uma descrição detalhada da disposição espacial
dos pejis no terreiro onde ele fez sua pesquisa de doutorado, em Recife, apresentando uma
topologia que traça diversas conexões com a que esbocei aqui. O autor enfatiza o modo como
essa disposição se relaciona com a própria atividade ritual da casa, aproximando entidades
que “comem” juntas, ou que, de alguma forma, são relacionadas no decorrer da ação ritual, e
afastando entidades cujo alimento de um é “tabu” para o outro. Penso que, no nosso caso,
poderíamos dizer algo semelhante, mas com algumas importantes ressalvas: de fato,
geralmente santos mais próximos podem “comer” juntos (embora nem sempre seja esse o
caso); entretanto, não encontrei, ao menos na casa de Detinha, uma rígida separação espacial
entre aqueles santos cujo alimento de um é quizila (interdição) para o outro – como o autor
encontrou, por exemplo, na separação entre Iemanjá e Oxalá – embora aqui, como em Recife,
exista um extremo cuidado para não “misturar” as comidas de cada santo. Para além dessas
relações, o que enfatizaria, no caso do terreiro de Detinha, é a importância do fluxo de desejo
dos orixás na composição da topologia do peji. Por exemplo: foi Iemanjá quem pediu, por
meio de sonho, para ficar ao lado de Ogum, assim como foi ela quem demandou a construção
da fonte na frente do seu assentamento e quem “autorizou” a construção de um novo peji para
54
Há diversos mitos bem conhecidos que narram a disputa entre Nanã e Ogum, como aquele presente em Verger
(1997). Por conta de um conflito entre os dois orixás, Nanã não usa nenhum utensílio de ferro em seus rituais,
até mesmo na imolação dos animais que, neste caso, deve ser feito utilizando utensílios de madeira.
55
Lembremos também que, enquanto Iemanjá é considerada a “dona da casa”, Ogum, por sua vez, é o dono da
cumeeira do terreiro.

72
o Ogum de um dos filhos de Detinha – também demanda dos próprios orixás. Assim, quando
Halloy (2005:321) sugere que o peji é uma espécie de reflexo das atividades rituais em curso,
eu sugeriria que o inverso também pode ser verdadeiro: que as atividades rituais são feitas a
partir das diversas linhas de força que compõem as divindades, atualizando e agenciando
relações específicas entre forças e seus fluxos, seja no plano mais “geral” das entidades, seja
em seu plano mais “singularizado”.
Por fim, vale ressaltar mais uma característica presente em todos os pejis: trata-se do
pepelê, uma bancada de alvenaria, de dois ou três pavimentos com cerca de 30cm cada, que
hierarquiza a disposição espacial dos assentamentos. Os santos da mãe de santo geralmente
ficam na parte de cima, impondo reverência e respeito. Os demais ficam um degrau abaixo,
denotando a submissão destes ao santo da iyalorixá. O pepelê verticaliza ainda mais os
assentamentos, que também são compostos de modo vertical (também por camadas, como
veremos mais a frente). Desse modo, o pepelê visa posicionar os assentamentos em alturas
específicas, que se defrontam ao corpo do adepto: os assentamentos nunca devem estar mais
altos que a cabeça do adepto mas, também, não podem ficar muito baixos. Como nota Miriam
Rabelo (2014:205), “o assento põe o corpo do adepto em relação ao corpo do seu santo,
posiciona aquele frente a este”.
Ao receber alguma oferenda, o assentamento é colocado no chão, desce de sua posição
superior para, no chão, receber o sangue que alimentará sua força. Ao mesmo tempo, ao
entrar no peji, o adepto se abaixa, prostando-se diante do assentamento, que se impõe sobre
seu corpo. Assim, enquanto os laços de parentesco, de afinidade, de desejo ou de composição
material organizam as relações “horizontais” do peji, o pepelê, ao hierarquizar os
assentamentos, trata das relações “verticais” entre um santo e outro.
Cada assentamento é disposto de modo a fazer parte de um fluxo de relações entre ele
e os demais, fluxo este regido por uma série de agenciamentos e sobreposições de linhas de
força. Ao percorrermos o modo como os assentamentos são compostos e dispostos dentro dos
pejis, podemos perceber que, no candomblé, cada coisa é meticulosamente trabalhada de
modo a compor, com o ambiente e com as forças que o percorrem, um arranjo específico. Ali
cada detalhe importa, cria agenciamentos específicos com determinadas forças e atua de
modo particular no mundo. Assim, as cores, os materiais, as formas de arranjá-los, os
ingredientes utilizados e a disposição de cada assentamento dentro do peji são fundamentais
para ativar determinadas relações (e, ao mesmo tempo, evitar outras). A frase “A religião está

73
no detalhe”, dita por um pai-de-santo ao antropólogo Edgar Barbosa Neto (2012:264) não
poderia ser mais certeira ao enfatizar essa característica que parece comum às religiões de
matriz africana no Brasil.

74
3. O    ASSENTAMENTO  E  SUAS  COMPOSIÇÕES  

Assentar o santo é uma importante etapa no processo de iniciação no candomblé. É o


momento onde o orixá deixa de ser apenas uma “virtualidade” geral (por exemplo, ‘Iemanjá’)
e passa a ser o santo da pessoa (‘a Iemanjá de Detinha’), atualizando-se no conjunto de
materiais que foram preparados para ele56 (Opipari 2009:191; Goldman 2005). A partir desse
momento, o assentamento se torna uma composição de distintas forças, de pessoas, deuses e
materiais e, ao mesmo tempo, uma extensão energética e corporal da pessoa e seu orixá, uma
materialização da própria aliança íntima e poderosa entre eles, que passam a compor um
bloco indissociável, individuado e personalizado.
A preparação do assentamento geralmente acompanha a feitura do orixá na cabeça da
pessoa, mas nem sempre esse é o caso. Nina Rodrigues, em 1900, já havia observado que “a
feitura do santo compreende duas operações distintas, mas que se completam: a preparação do
fetiche e a iniciação ou consagração do seu possuidor” (1900:75). “Assentar o santo” e “fazer
ou raspar o santo” são portanto processos distintos, embora complementares57: enquanto
assentar o santo é fixar a força do orixá no conjunto de elementos preparados para ele, fazer o
santo é uma operação maior e mais singularizada, pois envolve tanto “a feitura da cabeça” –
ou seja, a iniciação propriamente dita, onde o orixá é fixado na cabeça da pessoa (em seu ori)
– quanto a “feitura do santo” – a composição de seu assentamento. Nesse processo, tanto a
cabeça da pessoa (o ori) quanto a cabeça do assentamento (o otá) entram em participação
direta um com outro. A feitura da cabeça, como lembra Goldman (2005:111), é “a
contrapartida do que se denomina ‘feitura do santo’ (nome também usado para designar o

56
Opipari, em sua etnografia sobre os candomblés de São Paulo (2009:183-189), percebe uma importante
diferença terminológica, também presente nos candomblés da Bahia, entre “orixá” e “santo”. Enquanto o termo
“orixá” é em geral usado para se referir à uma força mais “geral” – ligada às forças da natureza, à cosmologia etc
– o termo “santo” diz respeito à uma força mais singularizada, feita. A autora usa o par virtual/atual, proposto por
Gilles Deleuze (1996) para lidar com os distintos agenciamentos dessas forças.
57
Ao ressaltar essa distinção, pretendo também fazer uma “mea culpa” em relação ao meu trabalho anterior
(Marques 2014), onde, ao não focar nessa distinção, acabo dando a entender que se trata de um único e mesmo
processo.

75
orixá), e pode-se chamar a iniciação de ‘fazer o santo’. O que significa que não apenas a
pessoa, mas também o orixá é construído no processo de iniciação”.
O processo de feitura – de deuses e pessoas – no candomblé parece ser um processo
gradual e não necessariamente teleológico, ou seja, que não culmina necessariamente na
iniciação ou em tornar-se pai ou mãe-de-santo. Conheci diversas pessoas que não são feitas
no santo (e nem, porventura, precisarão ser) mas que, no entanto, possuem seus santos
assentados em algum terreiro. Essas pessoas são chamadas de abiãs, um cargo específico no
candomblé para tratar das pessoas que (ainda) não são feitas, embora possuam ligações com a
casa58. Assim, é possível assentar um santo (ou mesmo as várias entidades que compõem o
enredo da pessoa) sem necessariamente fazê-lo, mas não é possível fazer um santo sem
assentá-lo.
Assentar o santo é um modo de engajamento possível na relação entre a pessoa e seus
orixás, e institui uma nova relação entre os dois. O assentamento cria um poderoso laço entre
a pessoa e o orixá. A partir dele, toda uma história de vínculos, trocas e cuidado é composta –
história que visa aumentar a existência tanto da pessoa quanto do santo (e, logo, da própria
casa na qual ambos se vinculam). Esses laços, como veremos, são criados aos poucos, e se
dão através de um trabalho contínuo de cuidado e manipulação de forças.

CONSTRUINDO  RELAÇÕES  

Roger Bastide, em seu livro O Candomblé da Bahia (1958), já chamava a atenção para
os diferentes “graus” de participação existentes no candomblé, que colocavam homens e
deuses em relações de proximidade e filiação. O mais baixo destes graus, diz o autor, é a
lavagem do colar de contas que, infundido em ervas, constitui a primeira ligação efetiva entre
a pessoa e seu orixá. Através do colar, orixás e pessoas passam a fazer parte um do outro,
atualizando uma relação que já existia de modo virtual. Em geral, as pessoas que se vinculam
a uma casa de candomblé mas ainda não foram iniciadas ou tiveram seus santos assentados

58
Chamo a atenção também para o fato de que, embora grande parte dos estudos sobre o candomblé priorizem
os processos iniciatórios da religião, pouca atenção se têm dado aos processos e “cargos” que não passam
necessariamente pelo crivo da possessão (iaôs), como os ogãs e equedes.

76
(ou seja, os chamados abiãs), possuem, ao menos, um colar de contas simples do orixá dono
de sua cabeça – o que já coloca a pessoa num grau específico de engajamento em relação aos
orixás, demandando certas obrigações e restrições de conduta.
A segunda posição no sistema que entrelaça homens e divindades no candomblé é,
segundo Bastide, o bori, o ritual de “dar de comer à cabeça”, que coloca a divindade e a
pessoa em uma participação muito mais estreita, preparando a cabeça da pessoa para receber
o orixá. No entanto, o próprio bori é internamente diferenciado a partir de seus distintos graus
de participação: existe o “bori de água”, considerado um bori ‘menor’, pois a oferenda
principal envolve água e o obi (noz-de-cola); e o bori propriamente dito, que envolve a
participação do sangue de um animal de duas ou – se a ligação for ainda mais estreita, como
nos casos que precedem a iniciação – quatro patas.
Por fim, ainda seguindo o modelo de Bastide, há a iniciação propriamente dita,
momento em que o santo e a pessoa são feitos concomitantemente, num ritual complexo que
envolve uma série de ebós, restrições e transformações corporais e espirituais onde, ao final
do processo iniciático – que demora semanas e é feito dentro do roncó, local onde a iaô fica
reclusa e que somente poucas pessoas têm acesso – a pessoa renasce em seu orixá, numa festa
pública chamada saída de iaô. A partir desse momento, pessoa e orixá passam a habitar um ao
outro, cada qual sendo uma espécie de “duplo” do outro (cf. Augras 1983).
Apesar desse modelo proposto por Bastide – do qual não pretendo me alongar aqui
pois não é o foco deste trabalho – sintetizar de modo eficaz as trajetórias genéricas de
participação dentro do candomblé, na prática, como observa Rabelo (2014:84), esses
percursos são muito mais complexos do que dita o modelo “ideal”. Esses caminhos, lembra a
autora, não são assim tão lineares quanto se supõe; antes, são carregados de idas e vindas, de
incertezas e hesitações. No fim das contas, cada pessoa vai construindo um modo de
engajamento com as entidades a depender da própria relação que vai sendo criada – uma
relação que envolve, para além da questão da “escolha”, toda uma rede intrincada de
diferentes seres, materiais e caminhos.
Como é muito comum de se ouvir em conversas sobre a religião, ninguém entra no
candomblé “porque quer”. Se, como vimos na introdução deste trabalho, todas as pessoas têm
enredo (ou seja, são de determinados orixás, compostos por determinadas forças), nem todos
possuem caminho. O caminho é um chamado do orixá, uma demanda para ele ser cuidado,
para que determinadas relações sejam estabelecidas. E esse caminho, como vimos, é

77
construído aos poucos, e pode envolver ou não a iniciação. Tudo pode começar com um jogo
de búzios, com um sonho ou mesmo, nos casos mais grave, com uma possessão “bruta” do
orixá na pessoa, fenômeno chamado de bolar no santo. O ponto crucial é que, em um
determinado momento, o santo irá pedir essa relação, demandando sua feitura. A partir daí,
antes da iniciação propriamente dita, há uma série de operações rituais que marcam uma
gradual individuação da pessoa e seus santos: ebós, banhos de amassi, Boris, preparação dos
fios-de-contas da pessoa, assentamento do santo etc., mas que não seguem necessariamente
uma ordem linear de desenvolvimento, ainda que uma operação possa “puxar” a outra. Cada
ação compõe um modo de existência específico, visando canalizar e compor as forças que
aumentarão o seu ser.
Assentar um santo é compor santos e pessoas concomitantemente, através de um
processo contínuo de povoamento e a partir da mediação material do próprio assentamento59.
A pessoa no candomblé, já dizia Bastide (1976:40), é uma criação contínua, uma composição
de distintos elementos num processo gradual de individuação 60 . Assim, cada pessoa é
povoada por distintas entidades: o orixá de frente, dono da cabeça (ori) da pessoa; o segundo
santo, chamado Juntó, que acompanha o orixá de frente; o terceiro santo e os demais orixás
que podem fazer parte do “enredo” da pessoa; além do Exu, “escravo” e protetor da pessoa e
seu santo; do Erê, entidade infantil ligada ao orixá da cabeça; dos Eguns e das demais
entidades que podem habitar e constituir a pessoa no candomblé, como Caboclos, Boiadeiros,
Marujos, Malandros, Padilhas e Pombagiras. A pessoa, enquanto um território existencial, é
portanto constituída e atravessada por uma multidão de seres e forças, cada qual com suas
“qualidades” e especificidades61. Cada entidade pode possuir seu próprio assentamento e,
consequentemente, uma pessoa pode possuir diversos assentamentos.
Nos candomblés de Zé e Detinha, as primeiras entidades a serem assentadas (e as mais
numerosas nos terreiros) são, em geral, aquelas mais próximas aos humanos e à matéria: exus,
pombagiras, padilhas, marujos, caboclos. Essas entidades, como já vimos, são entidades
ambíguas, pois atravessam os distintos planos do mundo: podem tanto ser orixás quanto

59
Goldman, a esse respeito, diz: “Tudo se passa então como se à fabricação da divindade específica (pois, no
Candomblé, o santo é feito) a partir de um princípio geral correspondesse a gênese de um indivíduo ‘novo’ (na
medida em que a ‘cabeça’ também é feita)” (1984:173)
60
É assim também que Goldman (1985) e Opipari (2009) vão definir a pessoa no candomblé, enquanto um
compósito de forças e relações, que se faz aos poucos. Se quiséssemos, poderíamos questionar a própria ideia de
um modelo abstrato de pessoa subjacente às religiões de matriz-africana, onde o ser é antes um devir de distintas
forças e suas composições.
61
Para uma análise clássica e minuciosa sobre a noção de pessoa no candomblé, ver Goldman 1984.

78
espíritos da rua. Assim, como já vimos, cada orixá – e também cada pessoa – possui seu
próprio exu que o acompanha, também chamado seu “escravo”. É por meio desse exu que a
mediação entre homens e deuses se efetivará. Portanto, é preciso que haja essa mediação para
que o enlace entre orixás e iniciandos se efetive – e, portanto, o mais adequado é que essa
entidade já esteja assentada no momento em que se assenta o orixá, pois, como explica Zé
Diabo, é ele quem vai “dar o caminho” para que todo o processo corra da melhor maneira
possível: “Se exu não tiver no lugar dele a coisa desanda, ele se reta. Porque é exu que vai
dar caminho, que vai abrir as portas. É ele quem protege a gente pra não sofrer nenhum mal
e é com ele que a gente deve começar, sempre”. Além disso, essas entidades são consideradas
como “guardiãs”, “compadres” ou “anjos da guarda” dos humanos, sendo, assim, mais
apropriadas e eficazes para trabalhar na resolução dos ‘problemas mundanos’ – o que as faz,
consequentemente, serem mais demandadas.
Depois dos exus, costuma-se assentar o orixá dono da cabeça da pessoa e, por vezes,
seu juntó, o segundo santo. Na medida em que os laços entre a pessoa e o orixá vão se
estreitando, e que portanto acumulam-se forças, novos assentamentos vão sendo demandados,
novas forças vão sendo compostas, até que se assente todo o enredo, ou carrego da pessoa –
ou seja, todos os orixás que compõem a pessoa. Assim, se, como nos diz Anjos, a iniciação
realiza uma aliança diádica entre o filho-de-santo e seu “grupo corporado”, por outro lado,
essa relação também é múltipla em sua natureza – conecta o noviço com uma série de forças,
entidades, pessoas e materiais – forças essas que passam a compor seu ser. Isso porque, como
lembra Anjos mais a frente (2006:110), a pessoa no universo afro-brasileiro é concebida como
um “território a se ocupar por uma multiplicidade de formas”.
***
Mas por que, afinal, se assenta uma divindade? Para que isso ocorra, algum tipo de
relação entre a pessoa e o santo deve ser estabelecida, seja por meio do jogo de búzios, por
sonhos, possessões, aparições, ou mesmo através de pedidos, promessas ou doenças e dramas
pessoais vividos corporalmente pela pessoa. Em geral, trata-se sobretudo de uma relação de
troca, uma espécie de negociação entre a pessoa e a entidade que demanda o cuidado. Essa
troca, no entanto, parte da própria entidade e seu desejo de ser assentada. Assim, do ponto de
vista da pessoa, a troca em geral não começa na dádiva, mas no comprometimento entre

79
pessoa e orixá, ou na dívida entre eles: uma obrigação de cuidar dos santos que a habitam62. É
a partir dessa dívida – e dos efeitos que ela pode gerar – que a pessoa pode ter alguma
margem de negociação: ser curada de alguma doença, arranjar um emprego, parar de beber,
conseguir um namorado, prosperar ou mesmo conter a força do orixá, adiando assim a
iniciação exigida.
Pode acontecer também que algum acontecimento, sonho ou algum outro tipo de aviso
indique que o santo deva ser assentado. Detinha, por exemplo, decidiu assentar Ossain depois
que, por repetidos dias, um pequeno pássaro decidiu se instalar em frente ao assentamento dos
orixás. Ela interpretou aquilo como um sinal da entidade, sinal que depois foi confirmado
através do jogo. A pessoa também pode herdar um assentamento de outra (em geral, pessoas
ligadas por vínculos de parentesco, de sangue ou de santo). Nestes casos, apesar do santo “já
vir pronto”, novas relações e novos vínculos são estabelecidos, demandando novas obrigações
e cuidados. No limite, portanto, todos os orixás podem potencialmente ser assentados, a
depender das diversas relações que são estabelecidas entre deuses e pessoas. Três casos que
acompanhei durante meu trabalho de campo poderão ilustrar melhor essas relações:
Clériton, um dos filhos de Detinha, sonhava em ser jogador de futebol profissional.
No entanto, no pequeno vilarejo de Caxixi, suas chances reais de ir para um grande clube
baiano seriam quase nulas, apesar da destreza técnica apresentada pelo garoto – que pude
presenciar ao participar de uma partida de futebol de rua com ele e seus amigos. Quando
Clériton soube que haveria uma seleção de jovens jogadores (também chamada de “peneira”)
para compor a base do simpático time do Ypiranga, em Salvador, logo falou com Detinha e
Zé sobre seu desejo de tentar. Zé então o aconselhou a pedir para que exu lhe abrisse os
caminhos, realizando uma pequena oferenda para ele na rua antes de participar da seleção e
prometendo-lhe que, caso passasse na peneira, iria assentá-lo. Clériton já sabia, desde antes,
que tinha caminho no orixá, e que, portanto, seus santos demandariam cuidado. Ele fez o que
lhe foi aconselhado e acabou passando na seleção. Assim que voltou de Salvador, ele teve
então que preparar as coisas e assentar seu exu, cumprindo assim a promessa que havia feito.
Três meses depois, já jogando pela base do Ypiranga, Clériton foi chamado para fazer parte
da base de outro grande time de Salvador, o Vitória. Seria a primeira vez que ele receberia um
salário mensal, e para fazer o que ele mais queria: jogar futebol. Isso o motivou, em seguida, a

62
Miriam Rabelo (2014) narra as diferentes trajetórias percorridas pelos adeptos até serem iniciados no
candomblé. Em geral, essas diversas trajetórias carregam um ponto em comum: a recusa inicial das pessoas em
‘cumprir sua missão’ e passarem a cuidar dos espíritos que habitam nelas.

80
assentar o orixá dono de sua cabeça, Ogum, como uma forma de agradecimento e
compromisso com as forças que estavam ajudando-o a trilhar o caminho que ele tanto
desejara.
A história de Jamile, por sua vez, foi um tanto diferente. Certo dia estávamos eu e Zé
Diabo em um bar próximo de sua casa, quando escutamos uma gritaria vindo da casa ao lado.
Todos levantamos curiosos para ver do que se tratava, e logo vimos uma senhora que saia na
porta pedindo ajuda, pois, segundo ela, a filha estaria “endemoniada”. Zé, ao presenciar a
cena, correu para auxiliá-la. Lá chegando, percebemos que a menina, que ainda era muito
nova, havia bolado no santo. Em geral, trata-se de uma situação bastante rara, ainda mais pelo
fato de que Jamile não se encontrava em um terreiro de candomblé, mas em sua própria casa.
Essa situação costuma ser interpretada como um claro sinal deque a entidade que ser feita. Era
a primeira vez que Jamile recebia o santo e, por conta disso, a possessão estava muito forte e
intensa: Jamile se arrastava no chão e seu corpo todo tremia, dando pequenos espasmos
regulares. Parecia Oxumarê, disse Zé, ao ver a situação e os movimentos da menina.
Depois de jogar um pouco de água em sua cabeça e cobri-la com um pano branco
improvisado, o orixá finalmente deixou o corpo de Jamile, dando passagem, no entanto, a
uma Padilha, que soltou uma longa gargalhada e saiu para a rua, solicitando cigarros e
bebidas no bar ao lado. Zé acompanhou a entidade e, depois de conversar algum tempo com
ela, realizando alguns gestos rituais e proferindo certas palavras, conseguiu enfim “despachá-
la”. Só depois disso pudemos nos sentar e conversar com Jamile, que explicou sua história.
Semanas antes, Jamile contou, ela havia encontrado uma cigana no meio da rua e, naquela
ocasião, elas conversaram brevemente sobre algo que estava afligindo a garota: um recente
término de seu relacionamento. Segundo ela, a cigana tinha falado que seu namorado iria
voltar, que ela não deveria se preocupar, o que de fato acabou acontecendo dias depois. Desde
aquele dia, no entanto, ela sonhou repetidas vezes com uma mulher vestida de branco
segurando uma cobra em suas mãos. Era a Padilha, escrava de seu santo, Oxumarê. Zé, ao
ouvir a história, logo chegou a conclusão que se tratava das entidades “cobrando” Jamile e,
como a possessão por Oxumarê tinha atestado, era o próprio santo querendo ser feito. Jamile,
no entanto, além de ser muito nova, não teria nenhuma condição financeira e emocional de
fazer o santo naquela época. Assim, depois de voltar dias depois na casa de Zé e jogar os
búzios, eles decidiram que iriam preparar para assentar as duas divindades – tanto a Padilha
quanto seu santo, Oxumarê – afim de “acalmá-las”, adiando assim uma possível iniciação.

81
Roberto herdou um assentamento de seu pai. Depois que seu pai faleceu, seus
familiares descobriram que, em vida, ele havia mantido um assentamento de Caboclo
escondido no quintal de sua casa. Sem saber o que fazer, Roberto entregou o assentamento
para seu primo, que era do candomblé e saberia cuidar do Caboclo melhor do que ele. Depois
de alguns anos, no entanto, seu primo também acabou falecendo, e o assentamento ficou
novamente sem cuidados. Foi então que, segundo Roberto, o Caboclo do seu pai começou a
aparecer para ele em sonhos, cobrando que ele levasse o assentamento para sua casa. Roberto
até tentou deixar o assentamento em algum terreiro de Candomblé da cidade que morava, mas
todas as vezes que cogitava fazê-lo, algo de ruim acontecia em sua vida, alertando-o que o
Caboclo queria ficar em sua casa. Foi então que ele decidiu procurar Zé Diabo, pedindo-lhe
ajuda para levar o assentamento para casa e cuidar dele – que passou, a partir daí, a receber
uma oferenda anual.
***
Presenciei, durante meu campo, distintas situações e narrativas como essas descritas
acima, onde o assentamento surge a partir de uma espécie de troca ou demanda entre a pessoa
e o orixá. Nessa troca, distintos fatores estão envolvidos: filiações, heranças, doenças,
aflições, curiosidade, contexto, situação financeira, sedução etc. Trata-se, como nota Arnaud
Halloy (2015:61), de uma espécie de “alquimia decisional”, uma combinação de diferentes
fatores que em geral não podem ser reduzidos à uma narrativa totalmente coesa e linear.
Miriam Rabelo (2014), a esse respeito, vai notar que a chegada ao terreiro é marcada por idas
e vindas, por experiências em outras religiões, por intervalos, hesitações e buscas – e esses
caminhos são compostos a partir da própria relação entre a pessoa e suas entidades. Assim,
essa alquimia não pode ser reduzida nem a uma “escolha racional” da pessoa, nem, tampouco,
a uma imposição unidirecional dos deuses. Trata-se de uma relação que, como lembra a
autora, não é nem simplesmente ‘criada’, nem simplesmente ‘atualizada’, mas, sobretudo,
instituída no fazer mesmo.
Na medida em que os laços entre pessoa e orixá vão se estreitando, novas relações vão
sendo demandadas, numa relação de troca que vai se perpetuando e aumentando conforme
mais elementos vão compondo a relação – outras entidades, assentamentos, contas, pedras,
irradiações, possessões, iniciação, obrigações etc. Todas essas relações vão aumentando a
existência tanto da pessoa quanto do orixá.

82
O  CORPO  DO  ASSENTAMENTO  

O assentamento é parte do corpo material do orixá na terra. Ele não ‘representa’ a


divindade, mas é ela própria materializada 63 em um conjunto de materiais que foram
“preparados” para tal. Trata-se, de fato, de uma composição muito peculiar: uma miscelânea
de distintos elementos que são arranjados criativamente e passam, com isso, a compor a força
do orixá. Como observou Miriam Rabelo (2014:206), o corpo do assentamento é um corpo
composto: são pratos, tecidos, sopeiras, alguidares, ferramentas, quartinhas, folhas, areias,
cimento, sementes, além de diversos outros elementos. Trata-se de um corpo vertical,
composto por um núcleo onde, oculto, fica o otá, a pedra-orixá, e mais uma série de
elementos que compõem o fundamento do santo. Cada elemento vai se sobrepondo ao outro,
criando novas camadas que compõem a força do assentamento – e, logo, a força do conjunto
pessoa-orixá.
Mais do que representar o orixá, o assentamento faz fazer uma série de relações,
influindo ativamente na vida da pessoa. Nesse sentido, acredito que a noção de “altar” – ao
menos aquela presente, por exemplo, no catolicismo ‘oficial’ – parece não dar conta do tipo
de relação que é estabelecida entre pessoa e orixá por meio do assentamento. Isso porque,
diferente daquela, o assentamento não é apenas um ‘intermediário’ entre o santo e seu filho
humano, mas um mediador, no sentido empregado por Bruno Latour64 (2012). Ou seja, o
assentamento não apenas transporta a informação de um termo a outro, mas é ele próprio um
agente transformador dessa relação, possuindo especificidades que devem ser levadas em
conta na relação pessoa-orixá. Assim,

Longe de ser uma entidade fechada e acabada, o assentamento parece ser antes um campo
aberto de referências; é ou institui lugar em que se encontram (e se fazem) orixá, filho e
mãe de santo. Efetua mediação importante: mobiliza afetos, “pede” certos percursos,
organiza relações. (Rabelo 2008:8)

63
Nesse sentido, a possessão também é a materialização dos deuses na terra: a pessoa não ‘representa’ o orixá,
mas, no momento da possessão, é o próprio orixá encarnado (cf. Goldman 1984).
64
Ao contrário dos intermediários, que transportam significados ou forças sem transformação, os mediadores,
diz Latour (2012: 65), “transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que eles
supostamente carregam”.

83
Cada assentamento é único, expressa uma história específica da interação entre a
pessoa e o orixá e, mais do que isso, é a própria concretização material dessa relação. Santos e
pessoas fazem-se mutuamente no mundo do candomblé através da mediação material do
assentamento. Como observou Arnaud Halloy (2005:321), um assentamento nunca é somente
“um assentamento de Iemanjá”, mas é a própria aliança pessoa-orixá concretizada: “a Iemanjá
de Detinha”, por exemplo. É através de sua composição que se tece a história desta interação,
seja nas partes que permanecem “ocultas” –como o otá e os fundamentos do santo – seja em
suas diversas camadas que vão se sobrepondo, nos presentes e adornos que os rodeiam, nas
velas queimadas, no desgaste dos materiais em decorrência das oferendas recebidas, na
limpeza do ibá, e assim por diante.
Nesse sentido, o assentamento literalmente cresce junto com a pessoa, acompanhando
seu desenvolvimento: à medida que o enlace entre pessoa e orixá vai se estreitando – ou seja,
à medida que ambos vão se fazendo no mundo do candomblé – o assentamento vai ganhando
novas camadas e composições: novos pratos, quartinhas, alguidares ou ferramentas; assim
como novos presentes, velas e outros elementos, como aqueles que participaram do momento
da iniciação (as contas, o kelê, a umbigueira, o xaorô, os pedaços de cabelo que foram
raspados, dentre outros), além de alçar novas posições no peji, sendo colocados nos degraus
mais altos do pepelê, mais próximo dos assentamentos do sacerdote da casa etc. Assim, como
diz Sansi:

The story of the ‘initiation’ of the person, and of its deepening into the ritual knowledge
and practices of the Orixá cult is the story of the accumulation of spiritual force, axé, in the
assento and in the head, contemporaneously. It is not strange at all to hear this popular
saying in Candomblé: “stones grow” (Sansi 2003:167)

Cada pessoa possui seus próprios assentamentos, que o acompanharão durante toda
sua vida, tornando-se parte constitutiva, uma extensão energética e corporal da pessoa – algo
que Alfred Gell (1998), inspirado nos trabalhos de Marilyn Strathern e Roy Wagner, vai
chamar de “pessoa distribuída”. Como parte da pessoa, manipular um assentamento é
manipular as próprias forças que compõem a pessoa. Por ser composto por camadas, o corpo
do assentamento é um corpo agenciável, que possibilita a manipulação: que se ‘abre’ na hora
de receber as oferendas, dispostas nos pratos que o compõe; que se ‘desmonta’ no momento
do ossé, a limpeza física e ritual; que pode guardar segredos diversos, cartas, pedidos,
fundamentos, e assim por diante. Por conta deste caráter agenciável – e, mais do que isso, por

84
fazer fazer, ou seja, ser capaz de manipular as forças da pessoa e do mundo – o assentamento
é objeto de vigilância e cuidado. O acesso a um assentamento é sempre restrito e controlado, e
não é qualquer pessoa que pode se dirigir a ele e, muito menos, manipulá-lo. Em geral,
somente a pessoa cujo santo reside no assentamento e sua mãe-de-santo que são autorizados a
agenciá-lo, pois, como já dissemos, o assentamento também é um “duplo” da pessoa e do
santo. Assim, manipulá-lo pode causar efeitos diretos na própria pessoa que o possui., ainda
que essas ações, em geral, carreguem sempre um risco em potencial. Ouvi, durante o campo,
diversos causos sobre esse tipo de manipulação, onde uma pessoa, querendo prejudicar a
outra, manipula seu assentamento de modo a lhe causar algum malefício, como, por exemplo,
colocando certas substâncias que são “tabus” para determinados santos, retirando certos
ingredientes, rearranjando certas composições ou mesmo proferindo certas palavras. Por isso
não é qualquer um que pode entrar livremente no peji, sem a autorização e vigilância
constante da mãe de santo (que, também por conta disso, tem poder sobre seus filhos). O
assentamento, portanto, é um objeto que deverá ser cuidado, alimentado e protegido e, como
tal, passará a “pedir” certos tipos de relações, terá desejos, predileções e influirá diretamente
na vida do iniciado.
O arqueólogo Benjamin Alberti (2007), estudando vasos cerâmicos antropomórficos
datados do primeiro milênio d.C, encontrados em escavações no Noroeste da Argentina e
pertencentes as “culturas da Candelaria e do São Francisco”, vai nos trazer um caso que,
guardados os devidos contextos, traz semelhanças e analogias interessantes com o caso dos
assentamentos e suas transformações. Partindo do princípio (simétrico, se quisermos) de que
as cerâmicas antropomórficas utilizadas nas práticas funerárias e os próprios corpos que ali
estiveram/estão presentes não são ontologicamente distintos (isto é, a cerâmica não
“representa” os corpos, ela é parte deles), Alberti vai buscar inspiração na etnologia indígena
amazônica (em especial nos trabalhos sobre o perspectivismo ameríndio) para lidar com a
própria transformação na matéria da cerâmica (sua “forma”). Assim, segundo ele:

Marking the body of the pot can be seen as equivalent to marking the body of the living,
and not a representation of that act. The purpose of marking the human body – to ensure a
minimum of stability to a chronically unstable body – was the same reason behind marking
the pot: to ensure a minimum of stability for the pot (Alberti 2007: 218)

Para o autor, as cerâmicas, ao contrário do que pensavam os arqueólogos, não são


objetos estáveis, fixos e bem delimitados. Isso porque, como já foi dito, as cerâmicas não são

85
apenas “extensões” da pessoa: elas, em certa perspectiva, são a própria pessoa. E, assim como
ela, compartilha da mesma “transformabilidade constitutiva dos corpos”: “All the ceramics
seem to respond to a general concern with bodies and their transformability and instability”
(Alberti 2007: 218). Assim, intervir na matéria da cerâmica é intervir na própria instabilidade
do corpo da pessoa. Por isso, para que se mantenham vivas, as cerâmicas deveriam ser
constantemente tratadas, marcadas, transformadas. A “coisa”, aqui, compartilha de uma
interação constante com o mundo, não através de junção com outros objetos, mas através de
uma interação viva com o ambiente. Concluindo, ele vai nos dizer que:

transformability is constitutive of notions of bodies and not a thing that occurs or is done to
a stable, self-evident body that is subsequently transformed. Pots and other materials are
not separate, durable things of the world that simply add stability or are tools for
transformation, but are part of the fabric of the world. If matter is considered unstable,
then so too are pots. Their fantastical forms are specific instances of intervening in the
world, not a representation of it. (Alberti, 2007: 220)

Assim, tal qual as cerâmicas argentinas, o processo relacional entre pessoa,


assentamento e orixá no candomblé não é independente da própria materialidade da matéria
(neste caso, o ferro); ao contrário, se tece através dele. Por outro lado, esta materialidade não
pode ser separada da própria constituição corporal dos adeptos e, portanto, de sua
transformabilidade e instabilidade. Os assentamentos são feitos para durar, pois são parte
constitutiva das pessoas e, como elas, sofrem os efeitos do tempo e as consequências das
ações que o permeiam.
***
No capítulo anterior, analisamos como os assentamentos são dispostos nos pejis de
modo a formar uma complexa topologia ritual. Agora, proponho percorrermos o modo como
cada assentamento é composto, descrevendo – ainda que genericamente – o “corpo” de cada
assentamento, a fim de explorarmos suas multiplicidades constitutivas. Pois se, por um lado,
esses elementos podem parecer a princípio díspares, por outro, o modo como eles são
agenciados diz muito sobre a multiplicidade e o cultivo da diferença presentes, de maneira
fractal, em todo o sistema do candomblé.
Cada assentamento possui uma forma específica de ser feito, e, com isso, uma
matéria-prima, uma insígnia, um formato e, em suma, um modo de existência próprio. Essas
formas variam em decorrência dos orixás e suas distintas “qualidades” que são assentadas,
mas também da nação de cada casa, do modo como cada casa agencia a relação entre orixás e

86
matérias-primas e, no limite, da própria interação entre a pessoa e seu santo. Assim, os
assentamentos de Ogum, deus da guerra e das técnicas, devem ser constituídos por pedaços de
ferros e ferramentas; Xangô, senhor da justiça, e Iansã, dona das tempestades e da guerra,
cobre e bronze; Oxum, deusa do amor e dos rios, adornos de ouro ou metais dourados; Oxalá,
orixá da criação, deve ser constituído de materiais “finos” como metais brancos e porcelana, e
possui chumbo dentro de seu fundamento; Nanã, senhora da lama e da criação, é feita de
madeira e barro (por conta da contenda com Ogum que já explicamos acima), o mesmo
material de seu filho, Omolu; e assim por diante [Rever Quadro 1 da p.19].
Além da matéria-prima, uma série de outros elementos são levados em conta na
composição dos assentamentos. A cor de cada arranjo, por exemplo, é fundamental para
diferenciar os orixás e revelar suas distintas “qualidades” – e se relaciona fortemente com as
roupas que o santo “veste” quando em terra. Os assentamentos de Oxalá, por exemplo, são em
geral inteiramente brancos, a não ser que o assentamento seja de Oxaguiã (qualidade de Oxalá
novo), que possuirá alguns motivos pintados em azul. Xangô, por sua vez, tem o vermelho
como sua cor característica. No entanto, na qualidade de Xangô Airá, seu assentamento
também é todo branco. O assentamento de Iemanjá em geral é azul, mas também pode ser
branco ou, a depender da qualidade e do “enredo” do santo, pode possuir adornos amarelos,
prateados ou até lilás, e assim por diante. Cada orixá parece se territorializar dentro de um
espectro de cores específico. No entanto, esse espectro possui diversas modulações e
combinações distintas, a depender dos agenciamentos e seus “efeitos” pretendidos.
Alguns assentamentos também são “vestidos” com panos de suas cores específicas,
chamados ojás. Os quartinhões dos santos são então amarrados com os panos segundo uma
amarração específica, com um laço que sobressai. Oxalá, por sua vez, é todo coberto com o
alá, um pano branco utilizado pelo orixá. Já as pombagiras podem ser vestidas com elegantes
vestidos costurados sob medida, além de adornadas com pulseiras e brincos. As roupas dos
assentamentos variam conforme a ocasião ritual, e devem ser trocadas regularmente. Como
me explicou Detinha: “é igual gente, quando vai sair pra uma festa não pode sair com a
roupa de todo-dia, tem que se aprumar, se enfeitar, pra ir pra festa conforme a ocasião. Se
todo mundo na festa veste branco santo não pode vestir vermelho, que é falta de respeito com
o dono da festa”.
As “insígnias”, ou “armas” de cada santo também são fundamentais para compor as
características de cada entidade. Pois cada santo possui um conjunto de insígnias que é

87
utilizado por ele, principalmente nos momentos em que ele “está vestido”, ou seja, quando ele
toma o corpo de um iniciado e dança durante o xirê. Estas insígnias também são guardadas
junto ao assentamento e, igualmente, passam pela preparação ritual. O santo, quando vestido,
carrega em suas mãos a sua insígnia correspondente: o ogó de Exu, espécie de bastão em
formato fálico; a espada de Ogum; o ofá de Oxóssi, pequeno arco-e-flecha feito de metal; o
pássaro de Ossain; as serpentes (também chamadas de dã) de Oxumarê; o xaxará de Omolu,
espécie de bastão confeccionado com palha da costa; o ofá de Logun-Edé, feito de um
material mais “fino”, como metal branco; o oxê de Xangô, machado de dois gumes feito em
madeira ou cobre; a alfanje (espada) e o eruexim, espécie de empanados feito com pelos de
rabo de cavalo; o abebé de Oxum e de Iemanjá, leque redondo com espelho; o ibiri de Nanã,
espécie de cetro feito com nervuras de palmeira; o pilão de Oxaguiã; o opaxorô de Oxalá, e
assim por diante... Cada arma será fundamental para servir de instrumento de atuação do orixá
na terra, no aiyê.
Além das armas, cores e matérias-primas, cada santo tem suas próprias saudações,
seus cantos, seus alimentos, suas substâncias, seus modos de relação, suas folhas e seus
inúmeros ‘detalhes’, ‘fundamentos’, ‘segredos’... Cada variação nestes detalhes, por mais
micro que seja, comporá uma nova relação com a entidade, conformando uma qualidade
específica. Assim, cada assentamento é único, composto por formas, cores e materiais
específicos, que individuam o assentamento instituindo a relação entre a pessoa e seu orixá.
Cabe ao sacerdote saber compor com esses diferentes materiais a fim de que esta interação
seja eficaz, ganhando cada vez mais força.
Vejamos, como exemplo, como são compostos alguns dos assentamentos da Casa de
Detinha:
Os Exus, por serem os mais numerosos da casa, são também os que mais variam entre
si. Cada Exu é composto de uma maneira específica, e cada forma vai indicar um tipo de exu
diferente, um modo de aparição e intervenção específica no mundo. Há uma divisão de gênero
entre os exus: enquanto os exus masculinos são assentados em grandes vasos cilíndricos de
barro, as “exuas” são colocadas em caqueiros mais arredondados, também de barro. Essa
divisão também se efetua na bebidas que são colocadas para cada entidade: enquanto os exus
bebem conhaque ou cachaça, as exuas preferem espumantes ou vinhos, como me explicou
Detinha. As exuas, diferente dos exus, podem ser vestidas com saias rodadas feitas de chapas

88
de ferro ou finos vestidos de tecido feitos sob medida, em geral da cor do orixá que elas são
“escravas”, além de serem adornadas com brincos e pulseiras douradas.
Cada exu carrega algum objeto que o singulariza e que conta um pouco de sua história
e suas “conexões”: são cobras de ferro, leques, cruzes, tridentes, facas ou navalhas. O exu de
Detinha, por exemplo, segura um tridente e um facão; já o de Gilson, seu marido, carrega uma
coroa e um machado, além de usar um chapéu pintado de vermelho, cor predominante de seu
orixá, Xangô. Por ter uma ligação muito grande com o tabaco e uma relação forte com a boca,
a fala, a comunicação, os exus gostam muito de fumar. Assim, na boca de vários deles (e, as
vezes, na ponta de seus chifres), sempre há cigarros e charutos. Acender um cigarro para exu
é, como me disse certa vez Detinha, se comunicar diretamente com a entidade, fazendo com
que ela fale. Ao lado de cada exu ficam suas quartinhas e quartinhões, sempre cheios de água,
além de grossas velas acessas, taças e garrafas de bebida.
O Ogum do filho de Detinha é um dos assentamentos mais robustos da casa. Ele é
todo feito de ferro, desde o alguidar até sua ferramenta. Ogum, como já vimos, é o senhor dos
caminhos, ligado à estradas e ferrovias. Por conta disso, ele é sustentado por dois pedaços de
trilho, além de ser rodeado por sete grandes parafusos enferrujados, retirados de ferrovias.
Dentro do alguidar, além do otá do santo, são colocados pequenos pedaços de metal, peças de
automóveis, correntes, imãs, compondo um conjunto heteróclito de ferros. Na frente do
assentamento ficam suas duas quartinhas e um quartinhão de barro, além de velas, bebidas
alcoólicas e um par de cadacorôs65, instrumento utilizado para chamá-lo durante os rituais.
Já Oxóssi, com seu arco-e-flecha forjado em ferro, fica disposto dentro de um alguidar
de barro onde também se encontram o otá e diversos elementos que compõem o
assentamento, como folhas, sementes, raízes, olhos de boi, ferraduras e búzios. O mesmo
ocorre com os caboclos e boiadeiros, que podem ou não possuir uma ferramenta (feita de
lanças ou arcos). A maioria dos assentamentos de caboclos que conheci possuem também
estátuas antropomórficas, em geral feitas de gesso, de índios, marujos ou vaqueiros. Essas
estátuas, no entanto, não possuem o mesmo estatuto ontológico das ferramentas e otás –
antes, assumem um papel próximo às estátuas dos santos católicos, de mediação entre a
pessoa e seu santo. Ainda ligado à caça e às matas, está Ossain, orixá das folhas, com sua
ferramenta de arcos e pássaro dentro de um alguidar carregado de elementos como folhas,

65
O cadacorô, ou kalakorô, é um instrumento idiofônico consagrado à Ogum, sendo o instrumento por
excelência deste orixá. É utilizado principalmente nos assentamentos de Ogum e Exu, para “chamar” as
divindades.

89
sementes e raízes. Já Oxumarê, orixá dos movimentos, da fortuna e do arco-íris, é composto
por sua ferramenta característica dentro de um alguidar de barro com vários elementos, além
de duas quartinhas coloridas de diversas cores.
Para além dos orixás que “levam ferro”, há diversas outras matérias primas que
compõem os outros orixás. Omolu, por exemplo, realiza uma espécie de “transição” entre o
ferro e o barro: seu assentamento é feito em uma cuscuzeira de barro, onde lanças de ferro
saem de cada um de seus sete buracos. Nanã, por sua vez, é toda feita de barro e madeira,
assentada em uma quartinha de barro, com pratos e sopeira do mesmo material, rodeada de
diversas colheres de pau. O assentamento de Xangô é composto por um pilão de madeira e
uma comprida gamela, onde fica seu otá. Em cima deste conjunto repousa uma coroa de
cobre que leva um de seus maiores símbolos, o oxê, um machado de dois gumes.
Os santos feitos de louça e porcelana são considerados santos mais “finos”, pois
exigem um material mais delicado na composição de seu ibá. Em geral, são compostos por
um alguidar e uma sopeira onde, ao redor, são colocados diversos pratos, utilizados durante
suas oferendas. O otá fica oculto dentro desta sopeira, que só é aberta em dias de obrigação
ou de limpeza (ossé). Cada conjunto de louça possui a cor de seu orixá: azul para Iemanjá,
amarelo para Oxum, vermelho para Iansã, branco para Oxalá e assim por diante. Além disso,
como já vimos, cada ibá é composto por materiais ligados à força do orixá: assim, o
assentamento de Oxum é rodeada de brincos, colares e braceletes dourados; enquanto o de
Iansã contem braceletes e uma espada de cobre, além de búzios, obis e outros elementos.
Oxalá também carrega finos braceletes de metal branco e outros objetos de prata ou latão –
como o opaxorô. É um santo mais velho que os demais – que exige, portanto, mais cuidado.
Por isso, ele é inteiramente coberto com um pano branco, chamado alá, e possui uma vela
que, segundo me explica Detinha, deve sempre permanecer acessa.
O assentamento de Iemanjá é o maior deles, composto por uma grande sopeira de
porcelana azul sustentada por um quartinhão, também de porcelana. Ao redor da bacia onde
vão os pratos e a sopeira, diversos búzios e braceletes de prata (chamados ides). Na frente de
seu ibá, uma escultura de Iemanjá se destaca – a única figura antropomórfica do peji –, ao
lado de dois grandes quartinhões e duas quartinhas, todos azuis, além da já referida fonte, que
é sempre cheia com água do mar.
Cada assentamento possui seu próprio otá, suas quartinhas e seu quartinhão – que
pode ficar na frente dele ou sustentando o conjunto – alguns feitos de barro, outros de louça.

90
As folhas que lavam e compõem cada assentamento também se diferem, assim como os
inúmeros detalhes que cada um traz consigo. São várias as diferenças ressaltadas por cada
assentamento, desde as diferentes roupas e jóias das padilhas e pombagiras, até as folhas que
dão força ao Caboclo e o trilho de ferro que sustenta e dá caminho à Ogum. Cada material
compõe uma relação e evidencia um modo de atuação da divindade no mundo, conformando
sua própria força. Corpos sobre corpos, os assentamentos compõem o sistema relacional do
terreiro, seus laços e territórios, suas diferenças e multiplicidades.
As características morfológicas de cada assentamento variam significativamente, e
cada orixá parece assumir uma forma específica. No entanto, para compreendermos as
relações que são suscitadas e inscritas na materialidade de um assentamento, não basta aqui
descrever suas “formas” ou seu “design”, mas, tal qual fizemos no caso das ferramentas de
santo, devemos seguir também o modo como os assentamentos são produzidos – ou seja,
como orixás são instados a compor nos materiais forças específicas, e como esses próprios
materiais “demandam” a sua relação entre pessoas e deuses.

UM  ENCONTRO  COM  O  OTÁ  

Dentre todas as “coisas” que compõem um assentamento, a pedra do assentamento, o


otá, é certamente a que mais recebe cuidado e atenção por parte das pessoas que a manipulam.
O otá é a “cabeça” do assentamento, sua principal peça, local onde reside e está materializado
o orixá, onde sua força é mais concentrada – ainda que essa força se distribua entre todos os
materiais que compõem um ibá. É por isso que pouquíssimas pessoas podem manipular e até
mesmo ver tais pedras (Sansi 2005). Manipulá-las é manipular o próprio santo – e, portanto,
parte da pessoa.
Arnaud Halloy (2013:137-138), a esse respeito, nos conta sobre um episódio
tragicômico que ocorreu no início de seu trabalho de campo, em Recife. Ao ser convidado
para participar de um ritual de limpeza dos assentamentos (ossé, como é chamado no
candomblé baiano), Halloy, sem se dar conta, acabou jogando fora o otá do santo em que
fazia a limpeza (Iemanjá) junto com o resto das oferendas. A reação das pessoas, segundo ele,
foi coletiva e imediata: uma atmosfera descontraída foi substituída por uma “caça ao tesouro”

91
dramática e emocionante. Isso porque, como lhe foi explicado mais tarde, perder um otá pode
causar um “verdadeiro drama espiritual”. Do mesmo modo, deixar o otá em um terreiro do
qual você rompeu relações pode ser bastante perigoso, pois através do otá qualquer pessoa, se
quiser, pode provocar-lhe algum mal. É por isso que recuperar ao menos o otá do santo para
cuidá-lo em outro ambiente é tão importante pros adeptos. Mais do que uma “forma”, o otá é
portanto o próprio orixá.
Não por acaso, essas pedras receberam especial atenção entre os estudiosos das
religiões de matriz africana no Brasil, desde Nina Rodrigues – que demonstrava-se espantado
com o fato de que a pedra não era a “imagem” de Xangô, mas o próprio orixá materializado –
até os autores contemporâneos, que novamente deram às pedras um lugar de destaque em suas
análises (cf. Sansi 2005; Halloy 2013; Anjos 1995; Rabelo 2008 e Goldman 2009). Não são,
entretanto, quaisquer pedras que são temas de interesse dos adeptos e dos antropólogos; são
somente aquelas que, depois de encontradas, são confirmadas pelo jogo de búzios como sendo
o próprio orixá materializado – e, ao mesmo tempo, sua própria morada. Halloy (2005:515-
517), em sua tese de doutorado, diz que os adeptos do nagô pernambucano distinguem as
pedras em duas categorias, as chamadas pedras “cheches” (que são as pedras “comuns”), e os
otás (que são a pedra-orixá). O autor elenca então três elementos que indicam que uma pedra
pode ser um otá: 1) em função do local onde a pedra se encontra originariamente; 2) as
circunstâncias dessa descoberta e 3) a própria aparência da pedra. Barbosa Neto (2012:277),
por sua vez, vai falar que os batuqueiros distinguem as pedras entre mortas e vivas, quentes e
frias. Já Goldman (2009:122-123) vai sugerir que as pedras se repartem segundo três
possibilidades ontológicas aparentemente distintas: as pedras comuns (que não são o orixá),
as pedras especiais (que podem vir a ser) e os otás (que são os orixás). Essa distinção, lembra
o autor, é apenas relativa, uma vez que mesmo as pedras comuns pertencem a orixás
específicos. Por fim, o que vai determinar se uma pedra é de fato tal orixá é a confirmação no
jogo e a consagração no ritual de assentamento.
O otá, como diz José Carlos dos Anjos (2006), é uma intensidade da força do orixá
presente ou não na pedra. Essa força se faz presente na expressividade mesma da pedra: em
suas cores, seu formato, suas texturas, seus locais de origem. Assim, cada orixá possui um
tipo de pedra característico: pedras redondas, lisas e claras, geralmente achadas perto de
praias, são para Iemanjá e Oxalá; pedras lisas, “douradas” ou em formato de coração,
encontradas em rios, para Oxum; pedras em formato de “seixo duplo” (que lembrem um

92
machado), que “caem do céu”, para Xangô; pedras escuras e “ferrosas”, próximas à ferrovias,
cavernas ou mineradoras, para Ogum; pedras escuras e porosas (“cascudinhas”), com
pequenas manchas brancas, para Omolu; pedras maiores, mais escuras e lisas para os
Caboclos; fragmentos de rochas de formatos grosseiros, maiores e escuros, para Exu; e assim
por diante...
Obviamente, como tudo o mais no candomblé, essas formas podem variar
significativamente, pois uma série de fatores influem no encontro com um otá. O importante,
como notou Roger Sansi (2005), é que estas pedras sejam encontradas pelas pessoas, num
evento fundacional que marca a relação entre pessoa e orixá. Um otá, segundo o autor, não
pode ser comprado ou doado a outra pessoa: deve sobretudo ser achado. Esse encontro se dá
através de um desejo do próprio orixá, que pede para ser achado.
Certa vez, conversando sobre Exu, perguntei a Zé Diabo sobre o que define um otá e
como saber se o encontramos. Ele me disse:

É o exu que pede, na rua, depende. Você vai andando e daí um belo dia encontra uma
pedra que te toca. Aí o exu logo trata de dizer: leva, é essa mesmo. Mas não é
qualquer pedra não, são só as pedras do homem. Depois o jogo vai lá e confirma.

É o santo, através da pedra, que “chama” a pessoa para encontrá-la (cf. Sansi 2005; Goldman
2009), indicando, com isso, seu desejo de ser feito, assentado. Dois episódios ocorridos
durante o meu campo ajudarão a evidenciar essa relação:

Entre abril e maio de 2015, um forte período de chuvas abalou a cidade de Salvador.
Esse período causou graves danos às populações mais vulneráveis que moravam nos becos e
encostas do Centro Antigo, região que inclui a Ladeira da Conceição da Praia, onde fica a
oficina de Zé Diabo. Por conta do histórico descaso do Estado para com essas populações –
em sua grande maioria, formada por negros –, somado a uma forte especulação imobiliária
que visa “revitalizar” a região, uma série de deslizamentos de terra e demolições de casarões
antigos ocorreram neste período66. Foi este o fim, por exemplo, da “Casa das Primas”, antigo
prostíbulo localizado na Ladeira da Conceição da Praia, justamente ao lado da oficina de Zé
Diabo. Sob o pretexto de que o casarão corria o risco iminente de queda – apesar dele, de fato,

66
Para se ter uma ideia, somente no mês de Maio de 2015, 31 imóveis (a maioria tombados como patrimônio
pela UNESCO) foram demolidos no Centro Histórico de Salvador, além de uma série de deslizamentos que
resultou na morte de 21 pessoas na região.

93
ser um dos mais novos da região – a prefeitura, em concordância com o IPHAN e o Estado,
determinou o fechamento do prostíbulo e a derrubada do casarão, apesar das resistências
locais, dando um prazo de 48 horas para que as moradoras saíssem do local.
Menos de 48 horas depois, tratores e retroescavadeiras invadiram o local, derrubando
suas paredes, portas e janelas. Os escombros da demolição invadiram a pista, e só foram
retirados cerca de dois meses depois, após diversas reclamações na prefeitura com a
defensoria pública. Foi justamente neste período que, após um dia de fortes tempestades, Zé
Diabo encontrou, em meio aos escombros, aquilo que segundo ele seria um otá. Tratava-se de
uma pedra de seixo duplo, semelhante à cabeça de um machado, e que, de fato, não
aparentava ser parte da construção em ruínas. Ao olhar para a pedra, Zé logo a reconheceu em
meio aos tantos escombros. “Essa veio lá de cima”, disse ele, enquanto pedia para um dos
meninos que moravam próximo à Ladeira subir nos escombros e pegar a pedra.
Após analisar demoradamente a pedra, Zé finalmente soltou seu veredicto: tratava-se,
de fato, de um otá de Xangô, que segundo ele caíra ali justamente para indicar que, apesar das
injustiças do Homem, Xangô, senhor das justiças, estava tomando conta da situação. O
encontro com a pedra, no decorrer do dia, foi tema das conversas de todos na Ladeira que,
indignados com a truculência do Estado, viram nela um sinal de que as coisas poderiam
melhorar. Zé guardou a pedra em sua oficina, alegando que mais tarde a prepararia em sua
própria casa e, se as coisas saíssem como o esperado, logo todos teriam que dar comida para
aquele Xangô.
Poucos meses depois desse episódio, um novo encontro com otás me evidenciou
aquilo que Sansi (2005:143) chamou, a partir da expressão surrealista, de “hasard objectif”,
ou seja, um encontro dirigido pela própria pedra. Estávamos eu, Zé Diabo e Detinha, na casa
de Roberto, com o intuito dar comida ao caboclo do seu pai, que ele acabou herdando, como
já narrei acima. A casa ficava em uma cidade distante alguns quilômetros de Salvador, na
entrada do recôncavo baiano. Como não se tratava de uma casa de candomblé, o assentamento
acabou sendo improvisado no sótão da casa, onde foi aberto uma pequeno vão a fim de deixar
a área mais ventilada para o Caboclo.
Dois dias depois de oferecer os alimentos, tínhamos que suspender a obrigação e
despachar a oferenda. Como se tratava de um Caboclo, teríamos que despachá-la no meio da
mata. Assim, nos dirigimos a uma região próxima que, segundo Zé, seria o local ideal, pois
era um lugar carregado de força. De fato, tratava-se de um local ideal para rituais desse tipo: o

94
lugar era deslumbrante, com rios, matas e uma estrada de ferro que cortava a paisagem.
Caminhamos a pé por cerca de vinte minutos, entre a mata e a estrada de ferro, carregando as
sacolas com as oferendas. No caminho, conversávamos sobre as diversas folhas sagradas que
existiam no local, e Zé, vez ou outra, tratava de apontar algumas delas. Depois de
encontrarmos o lugar que ele julgou ideal (uma árvore com boa copa e rodeada de um
pequeno matagal), armamos o despacho e acendemos as velas para o Caboclo.
No caminho de volta, percebi que Zé e Detinha pegavam algumas pedras durante o
caminho. Perguntei, um tanto inocentemente, por que faziam aquilo. Podiam ser otás, diziam
eles. Detinha me dizia que aquele era o momento e o local ideal para buscar essas pedras que
“contêm força”. Perguntei, ainda de modo ingênuo, como eu poderia distinguir uma pedra
com força ou não. Ela me falou, então, que a primeira coisa a se fazer era sentir. Algumas
pedras, dizia ela, te chamam a atenção, e você então sente que elas são diferentes. “Só de ver e
tocar nela você já sabe”, disse Detinha, me convidando a experimentar pegar alguma. Eu ri,
meio sem jeito, e acabei não dando muita importância para sua proposta.
Foi então que, andando distraído por entre a região pedregosa, acabei tropeçando em
uma pedra. Zé, percebendo minha topada, deu uma risada, e me pediu para pegar a tal pedra
para ele. Era uma pedra redonda, lisa e branca. Peguei a pedra e a guardei na sacola, junto
com as demais que eles haviam pego. No caminho, ainda paramos às margens do rio a fim de
lavar as pedras com as águas do rio. "Assim dá mais força", me explicava Zé.
Voltamos para Salvador no mesmo dia e, ao deixar Zé Diabo em sua casa, enquanto
estava ajudando-o a carregar suas sacolas, ele pegou a pedra que eu tinha “topado” e me
disse: “toma, essa fica pra você, guarda bem ela que depois a gente vê o que a gente faz”. Eu,
apreensivo, ensaiei recusar sua proposta, mas algo em mim me dizia para levar a pedra.
Talvez, pensei, aquela fosse a minha pedra, o meu otá.
Tudo se passa como se, desde o início, a força do orixá já estivesse inscrita naquela
pedra, e é essa força, portanto, que demandará a relação. No entanto, esse encontro só ocorre
em contextos específicos, em situações minimamente propícias e com pedras com
determinados formatos e estilos condizentes com a força do orixá. Esse fato, menos do que
revelar uma espécie de “escolha dirigida” dos humanos em encontrarem determinadas pedras,
mostra que, no mundo do candomblé, a própria força da pedra não pode ser separada desses
distintos elementos: de seu contexto, seu formato, sua história.

95
UMA  TROCA  DE  MÃOS  

A primeira vez que visitei a casa de Detinha foi em janeiro de 2015. Na ocasião, fui
chamado por Zé Diabo para ajudá-lo a “resolver umas coisas”, embora eu não tivesse ideia do
que se tratava até então. Naquela época, Detinha tinha acabado de romper definitivamente
com seu antigo pai-de-santo, após uma série de desentendimentos entre os dois. Depois de
muito insistir – e contando com a mediação de Zé – ela finalmente conseguiu levar os santos
que tinha assentado para sua casa. Era um casal de exus e sua Iemanjá, da qual ela conseguiu
levar somente o otá – as louças e quartinhas ficaram com o pai-de-santo. O boiadeiro, por sua
vez, já havia sido assentado em sua própria casa, a pedido da entidade – fato que é
interpretado por Detinha como um ‘sinal’ do futuro rompimento, uma espécie de ‘aviso’ da
entidade.
Conflitos entre filhos e pais-de-santo são frequentes dentro do universo do
candomblé67. No limite, eles podem acarretar verdadeiros dramas pessoais, que envolvem
fofocas, feitiços, rompimentos com a casa, afastamentos da religião ou mesmo a criação de
um novo terreiro. Este foi o caso, como vimos, da história de Detinha: foi somente após o
rompimento com seu antigo pai-de-santo que ela decidiu fundar seu próprio axé. No entanto,
desde o início algo já lhe dizia que o seu caminho era aquele, e que, portanto, seus santos
deveriam ficar em sua própria casa (como atestou, por exemplo, o desejo do Boiadeiro de ser
assentado em sua casa).
Em situações de conflito entre pais e filhos de santo, o assentamento em geral assume
um papel central na mediação das tramas relacionais de um terreiro de candomblé, tornando-
se, nesses casos, o próprio objeto de disputa (Rabelo 2014:192). Isso porque, como vimos, a
feitura de um assentamento não envolve somente o bloco pessoa-orixá, mas também o pai-de-
santo que fez o assentamento (quem colocou sua mão) e, por conseguinte, todo o terreiro do
qual ele está vinculado, pois todos participam de uma forma ou de outra de sua feitura, e o
assentamento passa a compor a força da própria casa. Ter muitos filhos-de-santo, assim, é
sinal de possuir muita “força” – pois uma força, como vimos, é sempre uma composição de

67
Ver, por exemplo, Maggie (1976); Rabelo (2014:192-199) e Halloy (2002:662-679), dentre outros.

96
forças. Desse modo, um pai-de-santo que ‘perde’ seus clientes e adeptos (e, logo, seus
assentamentos) é um pai-de-santo que perde sua força.
Para Detinha conseguir levar seus santos do terreiro foi necessário uma série de
embates e negociações, que contaram tanto com a mediação de Zé Diabo como com a do
próprio Boiadeiro. Foi Boiadeiro quem, segundo Detinha, teve a coragem suficiente para
entrar no quarto dos orixás e pegar, escondido, o otá de Iemanjá, do qual o pai-de-santo não
queria abrir mão. Antes disso, Zé Diabo já havia conseguido convencer o pai-de-santo a
entregar-lhe os exus de Detinha. Esse rompimento causou uma série de conflitos – que se
estenderam durante todo o período que permaneci em campo, ganhando novas facetas,
elementos, pessoas e situações.
Uma vez que Detinha levou seus santos para casa, era preciso “tirar a mão” do antigo
pai-de-santo dos assentamentos, ou seja, retirar o axé que ele havia colocado no conjunto de
objetos e refazê-lo, a fim de que ele não pudesse mais ter nenhum poder sobre eles (e, logo,
sobre Detinha e seus santos). Esse ritual é chamado de “troca de mão” e consiste em “trocar”
a feitura do assentamento, agenciando novas forças e compondo novos territórios intensivos.
No candomblé, “colocar a mão” em alguém, ou na cabeça de alguém, é fazê-lo,
participar da composição de sua força; sendo portanto responsável pelo bloco adepto-orixá,
adquirindo poderes de manipular essa força. Quando se vai assentar o santo de alguém,
igualmente fala-se em “colocar a mão” no assentamento e, assim, aquele que botou a mão ali
pode manipular mais facilmente aquela força. Colocar a mão, nestes casos, não deve ser
entendido somente em seu sentido metafórico, que nos remeteria a um plano exclusivamente
espiritual. Ao contrário, essa expressão também pode ser entendida em seu sentido literal,
uma vez a mão, como veremos mais a frente, adquire papel fundamental na feitura dessas
forças: é com a mão (e, também, com os pés), que se realizam grande parte dos rituais. Uma
vez que o pai-de-santo coloca a mão na pessoa, ele se torna o responsável por manter e zelar
da cabeça – e, de certo modo, de toda a existência – da pessoa.
Em geral, a troca de mãos é realizada quando do falecimento do pai-de-santo da
pessoa, principalmente se o iniciado ainda não tiver completado suas obrigações de sete anos,
ou seja, ainda não tiver se tornando ebomi (“dono” de sua própria cabeça). No entanto, em
casos extremos de conflito, ter a mão de um desafeto cuidando de seus assentamentos pode
ser algo muito perigoso, uma vez que, tendo poder sobre o assentamento, o pai-de-santo

97
poderia, se quisesse, causar algum malefício à pessoa, o que exige que esta troca seja feita
ainda em vida – na grande maioria das vezes, a contragosto do próprio pai-de-santo.
“Trocar”, aqui, envolve sobretudo uma disputa de forças entre o antigo pai-de-santo,
que tem a mão sobre o assentamento, o novo pai-de-santo, que deve retirar essa força para
colocar outra em seu lugar, e o iniciado, que estará sujeito à transformação dessas forças –
transformação esta que envolve sua própria existência. Por isso, trata-se de um ritual
carregado de riscos, que coloca em jogo uma série de forças em conflito, envolvendo uma
série de negociações e, principalmente, um “saber-fazer” específico. Selma, a mãe-de-santo
que citamos no início desta dissertação, passou por um drama que evidencia bem essas
relações de poder. Como já disse no prólogo, ela reclamava a Zé que havia “perdido o seu
caminho”, pois quem tinha “metido a mão em sua cabeça” não tinha a ensinado o suficiente.
No entanto, desde o falecimento de sua mãe-de-santo (uma conhecida mãe-de-santo da
Bahia), ela já havia tentado diversas vezes “tirar a mão” da falecida de sua cabeça, mas os
rituais nunca logravam sucesso. Isso porque, diziam, sua mãe-de-santo era muito poderosa, e
somente alguém tão poderoso quanto poderia realizar esse ritual de modo eficaz – ao menos
que o espírito da falecida mãe-de-santo assim o quisesse. “Trocar a mão” envolvia portanto
um risco vital, pois poderia causar a ira da falecida mãe-de-santo, que, por conta de sua força,
poderia causar danos às pessoas envolvidas no ritual. A “troca”, nesse sentido, não envolvia
uma “dádiva”, mas engajava a pessoa e suas forças em uma disputa existencial. E era para
isso, pois, que Zé Diabo havia sido chamado aquele dia na casa de Detinha.
Quando chegamos à casa de Detinha, o casal de exus que ela havia conseguido trazer
da casa de seu antigo pai-de-santo estava guardado junto com o assentamento de Boiadeiro
num pequeno barraco de madeira improvisado no quintal. O otá de Iemanjá, por sua vez,
estava armazenado dentro de casa, em um pote de barro ao lado dos santos católicos. Assim
que chegou, Zé Diabo foi consultar os búzios para Detinha, a fim de saber se o “tempo”
estava bom para realizar o ritual, e se tudo correria bem. Esperamos até um determinado
horário para começarmos os rituais (pois, em geral, não se pode fazer determinados trabalhos
nas chamadas “horas grandes”). Dado o horário específico, ele me chamou para entrar na
pequena habitação onde estavam os santos e ajudá-lo a carregar os exus para o quintal.
Após banhar as duas ferramentas com uma mistura de cachaça e diversas ervas,
falando algumas palavras inaudíveis para mim, Zé Diabo retira o otá de cada santo e, com um
martelo, começa a quebrar os vasos onde as ferramentas estavam assentadas, convidando

98
Detinha a fazer o mesmo. O vaso estava todo preenchido com a massa do orixá (mistura de
cimento, terras específicas e diversos outros ingredientes, como cachaça, amassi, folhas,
moedas, recados, sementes etc). Na medida em que eles iam quebrando a massa, os elementos
eram cuidadosamente retirados e separados em um canto. Zé Diabo agia como um
arqueólogo, escavando o material, separando e investigando cada elemento que ele extraía da
massa – para, segundo ele, ver se o pai-de-santo teria colocado algo estranho (e que
porventura poderia prejudicar Detinha) na composição do assentamento. Depois de fazer isso
com os dois assentamentos, tomando a precaução de não misturar os restos materiais de cada
um deles, Zé retira as ferramentas e, junto com o otá, lava-os com a mistura de folhas e
cachaça. Enquanto isso, fico encarregado de separar os restos dos materiais e colocá-los em
dois sacos, um para cada entidade.
As ferramentas dos exus ficaram secando sob o sol, enquanto terminávamos de
ensacar os restos materiais e colocá-los no porta-malas do meu carro. Depois disso, saímos,
eu, Zé e Detinha, não sem antes deixar um pequeno balde com água na porta da casa, para
quando retornarmos. Dirigi até uma estrada próxima, que cruzava com a rodovia principal.
Foi lá que paramos, pegamos as sacolas e despachamos o conteúdo ao lado da estrada, em um
pequeno matagal que se formava. Enquanto retirávamos os materiais das sacolas, Zé pediu
para que Detinha pisasse em cima dos restos materiais, para que aquela força não tivesse mais
poder sobre ela: “aqui não tem mais a mão dele em nada, não tem mais força. Daqui pra
frente as coisas vão melhorar!”, dizia Zé. Depois disso, uma garrafa de cachaça foi aberta e
derramada três vezes sobre a estrada, deixando o resto ao lado do despacho, para Exu. Assim,
entramos no carro e seguimos em frente, sem podermos olhar trás, dando uma grande volta
para que não passássemos pelo mesmo caminho do qual viemos inicialmente.
No dia seguinte, bem cedo, começamos os preparativos para a outra parte do ritual,
que consistia, agora, em assentar novamente os exus, dessa vez com a mão de Zé Diabo.
Novos vasos e caqueiros foram comprados, assim como arranjados os diversos elementos que
iriam compor cada assentamento. Iemanjá iria ser assentada semanas depois, quando Detinha
finalmente pudesse comprar novos vasos e pratos de porcelana para compor seu ibá.
Para assentar o Exu, primeiro os otás e as ferramentas foram lavadas novamente em
uma nova mistura de folhas (amassi), preparada nas primeiras horas das manhã. Depois disso,
começamos a fazer a massa do assentamento. Enquanto Zé, com as mãos, misturava a
cachaça e as folhas com a terra e o cimento, Detinha ia pouco a pouco colocando na mistura

99
alguns elementos que compunham a força da entidade – elementos dos mais heterogêneos
possíveis, desde sementes e folhas, até poeira de metais, pedidos, envelopes e extratos
bancários, dentre outros. Cada material ia compondo a força do assentamento, incrementando
assim sua existência. Perguntei a Zé, mais tarde, se todo assentamento tinha necessariamente
todos aqueles elementos que foram colocados. Ele me disse que não, que cada assentamento é
feito de uma forma específica: o que tem nele e, principalmente, o modo como ele é feito, é o
que compõe a força de cada santo. Assim, não era tanto pelo acúmulo de elementos, mas pela
composição que era realizada a partir deles que residia a força da entidade. Não se trata,
assim, de uma “fórmula”, uma receita que deveria ser aplicada homogeneamente, mas de uma
composição. Cada assentamento tem seus fundamentos específicos, materiais e forças que vão
compor a força do orixá. No entanto, como veremos, esses fundamentos não são “atributos
fixos”, importam na medida em que são postos num conjunto de relações específicas.
Depois de misturar a massa de cimento com esses diversos elementos, Zé colocou –
sempre com as mãos – a mistura dentro do vaso onde seria plantado o Exu. Dois terços do
vaso foram preenchidos pela massa onde, depois, o Exu foi plantado, tendo sua base fincada
na massa. Enquanto isso, alguns outros elementos (como moedas, sementes, folhas, olho-de-
boi, dentre outros) foram jogados em cima do conjunto. Esperamos algumas horas até a massa
ficar mais rígida, momento em que foi colocado, no pé da ferramenta, o otá do santo, parte
principal do assentamento. Depois disso, Zé invocou algumas palavras e derramou, sobre o
assentamento, um pouco de cachaça, azeite de dendê, sal e mel. Por fim, o obi, ao cair com as
duas metades viradas para cima, confirmou que a entidade havia aceitado o ritual. De um
conjunto de distintas coisas, nascia então Exu – ou, ao menos, um nível de individuação
específico daquele orixá que, como veremos, passará, cada vez mais, a alargar sua existência
através de distintas manipulações rituais. Assim, a feitura de um assentamento opera – tanto
no plano “técnico” quanto no plano do “pensamento” (ou melhor, na não distinção entre um e
outro) – como uma espécie de bricolagem, já tão analisado por Lévi-Strauss n’O pensamento
selvagem (1962), ou seja, através de uma composição de fragmentos heteróclitos que formam,
a partir das distintas qualidades (ou forças) que compõem cada fragmento, um novo arranjo68.

68
Utilizo a ideia de arranjo aqui como uma tradução possível do conceito latouriano de “assemblage” (Latour
2005), uma composição de elementos irredutíveis uns aos outros. Acredito que a ideia de arranjo seja mais fiel
ao universo do candomblé do que “agregado” ou “conjunto”, tanto por ser uma palavra largamente utilizada
pelos adeptos, em especial para falar da composição dos “presentes” feitos para os orixás, quanto por evocar
uma ideia de uma composição sempre tensionada, que dá margem ao cuidado e à improvisação.

100
4. A    FORÇA  DAS  COISAS  

Nina Rodrigues, na transição do século XIX para o XX, hesitava em classificar o


candomblé ora como uma espécie de “fetichismo” (ou seja, a atribuição de vida a objetos
inanimados), ora como um tipo de “animismo difuso” (onde os objetos seriam residências
momentâneas dos deuses) (cf. Goldman 2009:120). Ao falar sobre os assentamentos e seus
“fetiches”, Nina dizia:

“Os ídolos não são, como pensa Bosman, imagens dos deuses, mas simplesmente objetos
em que o Deus gosta de vir habitar e que ao mesmo tempo o mostram aos seus adoradores
debaixo de uma forma material. Aliás, nada obriga o Deus a morar constantemente no
ídolo; entra e sai dele, ou antes acha-se ali sempre presente com mais ou menos
intensidade” (Rodrigues 1900 [2006]:48).

Desde então, essa incerteza permanece latente nos estudos sobre as religiões de matriz
africana, oscilando entre ora considerar o assentamento (e suas ferramentas, otás, e demais
materiais) como sendo o orixá, ora como sendo a morada deles – ora, ainda, como sendo
apenas um “símbolo” que remeteria ao orixá. No entanto, ao contrário do que pensava Nina,
acredito que essa dúvida, longe de provar uma suposta incapacidade lógica do pensamento
metafísico afro-brasileiro, revela, antes, uma incapacidade nossa de lidar com uma ontologia
onde os planos de imanência e transcendência não podem ser pensados em separado. Ou seja,
não se trata de “escolher” entre uma alternativa ou outra – a imanência (são os próprios
deuses) ou a transcendência (são a morada deles) –; antes, trata-se de lidar com uma
metafísica onde os deuses são uma e outra coisa ao mesmo tempo, onde forças atravessam e
constituem corpos, espaços e tempos, em diferentes graus de existência. Como diz Clara
Flaksman, em sua etnografia sobre o terreiro do Gantois, “o candomblé traz em sua
cosmologia uma fórmula de relação em que o ser e o estar não estão separados: o orixá é a
conta e está na conta; Ewá é a cobra e está na cobra; Ogum está no motorista de táxi e é o
motorista de táxi.” (Flaksman 2014:85-86).

101
Assim, ao mesmo tempo em que o assentamento – e, principalmente, o otá – é o
próprio orixá materializado, ele é o lócus material onde os deuses habitam e, também, onde a
relação entre pessoa e orixá se faz: onde as comidas são ofertadas, onde os pedidos são
desejados, as velas são acessas, enfim, toda uma série de agenciamentos que compõem e
movimentam as forças que atravessam pessoas e orixás. Nesse sentido, como vimos, tanto a
noção de “fetiche” quanto a noção de “altar” passam longe de descrever as relações que são
estabelecidas em torno de um assentamento, pois se a primeira pressupõe uma (falsa) relação
de homologia entre santo e material – em geral vista como ilusão –, a segunda advoga por
uma completa separação entre os dois. E me parece que nem a homologia nem a
correspondência são capazes de dar conta desse agenciamento muito particular entre deuses,
pessoas e coisas.
Todas as vezes, por exemplo, em que eu perguntava para Zé Diabo se um objeto era
ou não um Exu, ele ria e respondia: “é e não é”, como que a debochar dessa divisão que eu
tantas vezes insistia em fazer. Assim, a preocupação maior dos adeptos do candomblé não
parece ser se os deuses habitam, são ou representam qualquer coisa. Ou seja, não se trata de
definir em que plano de consistência se encontra a relação entre deuses, coisas e pessoas.
Antes, trata-se do que cada assentamento é capaz de fazer fazer, para usarmos a expressão
latouriana (Latour 2002): quais as forças que ele consegue agenciar e intervir no mundo.

TECNOLOGIAS  RITUAIS  

Uma vez que o ritual de assentamento foi realizado, o assentamento ficará dentro do
peji por alguns dias até ser novamente suspenso para receber sua primeira oferenda animal –
que varia conforme o orixá assentado – onde será derramado o sangue sacrificial que selará a
ligação entre a pessoa, o orixá e o assentamento. O assentamento, então, não vem ao mundo
“pronto”; assim como os humanos, passa por processos contínuos de crescimento e
maturação. Zé Diabo certa vez me explicou de forma didática e simples essa relação:
“Primeiro assenta a ferramenta, pra só depois dar comida pra ela. É igual criança quando
sai da barriga, já sai comendo? Não. Tem que esperar, tem que dar o tempo”. Roger Bastide
(1958:264), de modo semelhante, falava que: “Assim como a personalidade humana se forma

102
gradualmente por meio da divinização, também as divindades só podem existir com a
condição de receber alimentos, sangue, infusões de ervas, oferecidas pelos fiéis.”
É através da comida que a força que liga pessoa e orixá é estabelecida, individuada e
modulada; e, é por meio dela, também, que essa força é capaz de intervir no mundo,
reestabelecendo (ou rompendo) seu equilíbrio (Lody 2006). “O axé”, já dizia Juana Elbein
dos Santos (1977:41), “como toda força, pode diminuir ou aumentar. Essas variações estão
determinadas pela atividade e conduta rituais”. Assim, as chamadas oferendas, comidas ou,
ainda, obrigações são o que garantem a própria existência da divindade que, enquanto força,
precisa ser sempre renovada. Um assentamento que não come, segundo Zé, não chega a ser,
de fato, um assentamento. Mas no candomblé não são só os orixás que comem: o chão, os
atabaques, os agogôs, assim como os colares de contas e os próprios humanos devem receber
o sangue para atualizarem e renovarem as forças que os atravessam. É através, portanto, de
uma série de ações rituais que essas forças aumentarão ou diminuirão, a depender do objetivo
e da eficácia do ritual.
O axé, enquanto força, precisa se movimentar constantemente. Mas quais os canais de
transmissão pelos quais o axé é canalizado? Durante esta dissertação, já vimos alguns deles:
palavras, sons, gestos, artefatos, sinais, sonhos, espíritos ou mesmo pensamentos, dentre as
mais distintas e heterogêneas “coisas”. Em certo sentido, tudo pode, em potencial69, transmitir
axé, atualizando forças que, em estado virtual, constituem as coisas70. No entanto, há certas
substâncias, palavras, sons, coisas ou gestos que realizam essa transmissão de modo mais
eficaz – e, por isso, devem ser manipulados com cuidado dentro do candomblé.
Dentre eles, o sangue é, sem dúvida, o principal veículo transmissor de axé. É o
sangue que realiza a conexão entre pessoas e orixás, reestabelecendo o equilíbrio entre o aiyê
e o orun, o que faz com seu significado no candomblé por vezes seja intrínseco à própria
noção de axé71. Ainda segundo Elbein dos Santos (ibid), esse sangue, no entanto, não se
limita ao “sangue vermelho”, de origem animal, mas pode ser dividido em: sangue vermelho,
sangue branco e sangue preto, cada qual com seus correspondentes nos reinos animal, vegetal

69
Lembrando, com Deleuze (1968), que o atual opõe-se ao virtual, ao passo que o real opõe-se ao potencial. O
potencial, assim, é da ordem do possível, por isso sua indeterminação.
70
Se quisermos utilizar uma linguagem simondoniana, é como se tudo possuísse uma certa “realidade pré-
individual” – que nunca é unitária – e que, no entanto, só entra em cena no processo mesmo de individuação (cf.
Simondon 2002)
71
Wafer (1991:19) já notara que “there is a close link between axé and blood, for which reason the term is
sometimes translated as ‘vital force’”.

103
e mineral. Nesse sentido, sumo de folhas, mel, álcool, saliva, sais, giz, cinzas, ferro, dentre
outros elementos também podem ser considerados “sangue” e, com isso, serem veículos
privilegiados de transmissão de axé.
Ainda que essa afirmação faça sentido nos terreiros que frequentei – pois, de alguma
forma, todos esses elementos são fundamentais para ativar determinadas forças – o sangue de
origem animal continua sendo o elemento primordial para instituir a força do orixá. As
chamadas comidas secas (que não são fruto do sacrifício animal), por exemplo, desempenham
um papel fundamental na composição das ações rituais, e há diversos rituais – como alguns
ebós, agrados ou obrigações menores – que se limitam a essas comidas. No entanto, ainda
assim, para obrigações “maiores” (como as anuais) ou para lidar com determinadas forças, o
sangue continua sendo o elemento mais forte para ativar e modular a relação entre pessoas,
deuses e coisas.
Certa vez, enquanto passeávamos na Feira de São Joaquim, Zé e eu encontramos uma
amiga minha de Brasília, que visitava Salvador. Enquanto sentamos para tomar uma cerveja, a
jovem, que era ligada à umbanda de “mesa branca”72, criticou o candomblé pelo uso do
sangue e, consequentemente, pela imolação animal. Haveria, dizia ela, outros meios possíveis
para “falar” com as divindades, que não passavam necessariamente pelo sangue. Zé Diabo,
como um bom católico, concordou com esta última afirmação, mas sequer chegou a
compreender o absurdo da primeira. Não haveria sentido pensar no candomblé sem a
circulação do sangue, disse ele: “Candomblé sem sangue? Onde já se viu isso? E o axé fica
aonde? Não dá, eu que não me arrisco em fazer essas coisas, depois o foguete estoura é pro
meu lado. Não dá, minha gente, candomblé precisa de sangue sim, senão não tem força”. A
questão, portanto, não era sequer sobre outras possibilidades – certamente as há –, mas,
principalmente, sobre a força que seria estabelecida, e o risco potencial em não estabelecê-la.
A prática do “sacrifício animal” vira e mexe torna-se alvo dos ataques intolerantes e
carregados de preconceito para com as religiões de matriz africana, acusadas de “bárbaras”
por imolarem animais em seus rituais religiosos. Tema que, para uma análise minimamente
séria, precisaria ser aqui longamente debatido, e que certamente já o foi por pessoas muito
mais preparadas do que eu 73 . Deixo aqui, no entanto, algumas breves reflexões para
pensarmos no assunto.

72
Trata-se de uma modalidade da Umbanda mais ligada ao espiritismo kardecista.
73
Ver, por exemplo, Anjos (2015), Flor do Nascimento (2015), Goldman (1984) ou Elbein dos Santos (1975),

104
***
Já vimos que o axé, enquanto força, atravessa tudo e todos, e o que varia portanto são
as intensidades dessa força (os diferentes “graus de existência”, como diria Bastide). No
candomblé, tudo é vivo e compartilha de uma mesma força: humanos, animais, plantas e
minerais são atravessados, em diferentes níveis, por axé. Como observa Flor do Nascimento
(2015), o candomblé não compartilha da concepção – tão cara à história ocidental – de uma
“scala naturae”, ou “cadeia geral dos seres”, que hierarquiza os seres colocando os humanos
no ápice desta cadeia. Antes, o humano é mais um ser atravessado por essas multiplicidades
de força e, como tal, também pode manipulá-las, variando assim suas intensidades. Isso não
significa, porém, que humanos, plantas, minerais, animais e deuses sejam todos iguais. Ao
contrário, cada ser carrega consigo uma intensidade específica, e é essa diferença em
potencial que possibilita a circulação do axé.
Para que as coisas permaneçam vivas no candomblé, é preciso que elas estejam em
constante movimento: que elas sejam alimentadas, cuidadas, movimentadas. É por isso que o
mundo, no candomblé, é um mundo em constante tendência ao desequilíbrio, que precisa ser
reequilibrado: “a força vital que habita em todos os existentes precisa ser mantida em
equilíbrio para que o mundo siga existindo em suas diversas relações” (Flor do Nascimento
2015:63). É com o intuito de reequilibrar – ou melhor, de movimentar – essa força vital que
ocorre a imolação animal, pois é através do sangue, veículo transmissor de axé por
excelência, que essa força pode circular. Assim, o sacrifício no Candomblé se aproximaria
àquilo que Oliver Herrenschmidt (1979) definiu como “sacrifício eficaz”. Em oposição ao
“sacrifício simbólico”, que busca renovar a aliança primordial de deus com os homens, o
“sacrifício eficaz” é aquele que é essencial para a própria ordem do mundo, mantendo assim
seu equilíbrio.
Mais do que isso, o sacrifício no candomblé tem uma função relacional, próxima
àquela já antevista por Mauss e Hubert (1899) no clássico ensaio Sobre o Sacrifício, em que o
sacrifício é pensado enquanto uma troca: ao efetuar o sacrifício, o sacrificante, segundo os
autores, realizaria uma troca com a vítima, doando, com isso, um pouco de si mesmo à ela
que, renascida sagrada, retribuiria essa relação, realizando a comunicação com os deuses. No
entanto, mais do que uma troca de matérias ou espíritos (no sentido de ‘substituir’ uma vida
por outra, como parece sugerir a noção judaico-cristã), o sacrifício no candomblé envolve

dentre vários outros, em especial a literatura produzida pelos próprios adeptos da religião.

105
uma troca de forças74. O ritual, assim, mais do que “consagrar” o animal para abatê-lo, ou
substituir uma vida por outra, visa aumentar sua força, colocando-o em participação direta
com os deuses. Pois humanos, deuses e animais compartilham de uma mesma força, e é ela
que é celebrada e movimentada no ato do sacrifício. Nesse sentido, como nota José Carlos dos
Anjos (2015), “há uma única pessoalidade em metamorfose e renascimento. Por estarem
congregados numa unidade, o sacrifício é um momento especial de fusão de destinos e
renascimentos em uma unidade simultaneamente animal, humana e divina”. E, para que isso
ocorra, tanto os deuses quanto as pessoas e os animais devem consentir com essa troca: o
animal não poderá sofrer e só será imolado em condições muito específicas. Depois do
sacrifício, deuses e humanos compartilham a comida – condição fundamental para os
sacrifícios – compartilhando, portanto, o próprio axé daquele animal, que se desindividuou e
se fractalizou em outros corpos.
O sacrifício, assim, é a base do sistema cosmológico do candomblé, não tanto porque
ele sacia a “sede de sangue” dos deuses, mas porque ele é essencial para colocar o axé em
circulação, movimentar e modular as forças que compõem o mundo. E é por isso que ele pode
servir para os fins mais diversos dentro do candomblé. Para entendermos melhor essas
distintas relações, voltemos aos assentamentos e suas modulações rituais.
Todo assentamento, depois de alguns dias de feitura, deve comer, ou seja, receber a
oferenda de algum animal. Os animais variam segundo as preferências alimentares de cada
orixá, mas, em geral, são divididos em duas categorias: os chamados bichos de pena, que
incluem galos, galinhas, galinhas d’angola, patos, pombos, dentre outros; e os bichos de
quatro pés, que são as cabras, bodes, carneiros e, porventura, bois e porcos. Essas oferendas
serão repetidas anualmente, ou efetuadas em casos de necessidades maiores, como doenças,
aflições, pedidos etc. Trata-se da obrigação do orixá, ou o que eles também chamam de dar
comida ao santo.
Os santos também comem no candomblé: não somente através do sangue, mas a partir
das diferentes comidas que são preparadas para eles. Essas comidas, em geral, são
compartilhadas com os humanos. Assim, como nota Flor do Nascimento (2015), a imolação
animal também faz parte do sistema de alimentação tradicional dos terreiros, um sistema que
é sobretudo comunitário e realizado em comunhão com os deuses: humanos e deuses

74
Halloy, a esse respeito, diz: “L’échange dont il est question dans l’acte sacrificiel s’apparenterait donc plus à
un transfert vital qu’à une simple substitution d’une vie par une autre”. (2005: 220)

106
compartilham dos alimentos, compartilhando assim suas forças vitais. Nesse sentido, a
própria ideia de ‘predação’ poderia ser aqui descentrada: comer é não é apenas ‘consumir’ um
animal, mas entrar em movimento com os deuses, compartilhar com eles da própria força que
sustenta a vida.
Cada santo tem suas preferencias alimentares, que podem ser negociadas a cada
obrigação. Por isso, segundo Zé, é importante que, ao assentar a entidade, não se ofereça um
bicho de quatro pés pela primeira vez, uma vez que, assim, a pessoa irá “acostumar mal” a
entidade, que passará a demandar o mesmo alimento todas as vezes que for receber comida:

“Tem gente que quer dar logo de primeira um boi pra caboclo, pra orixá. Isso não se
faz; quer dizer, tem gente que faz, mas eu que não faço. Porque aí você acostuma o
santo a só comer daquilo e, depois, pra qualquer coisa que for fazer, ou quando tiver
sem dinheiro, ele não vai aceitar outra coisa. Então tem que ir acostumando o santo,
tem que conversar com ele, explicar a situação. As pessoas querem muito luxo, muita
coisa, mas as vezes o que resolve é o simples, mas correto”.

Zé negocia com cada divindade antes das obrigações. É a confirmação no jogo de


búzios, no entanto, que irá dar o veredicto final. Esse veredicto se dá através do desejo da
própria entidade: é ela quem escolhe o que quer comer, ainda que, no caso de exus e caboclos,
essa relação seja mais “negociável” do que com os orixás. A relação, neste caso, é de troca e
comprometimento: cada “pedido” ao santo deve levar em conta uma certa reciprocidade que
poderá ser cobrada com alguma obrigação.
No candomblé pouco se ouve a palavra “sacrifício”; em geral, fala-se em cortar para
tal ou tal divindade. Apesar desse ritual não ser um ritual fechado, poucas pessoas participam
efetivamente dele, e cada uma delas assume diferentes funções no ritual, a depender dos
cargos que ocupam. Aquele responsável por imolar o animal é o axogun, um cargo muito
importante dentro do terreiro, pois é ele o responsável pelo bom andamento do ritual. Trata-se
de um cargo masculino, dado preferencialmente a um ogã de Ogum, que tenha “mão de faca”,
ou seja, caminho para tal. Costuma-se dizer que um axogun nunca deve errar, e que é ele o
responsável por se comunicar diretamente com o deus para quem se sacrifica. Além dele,
somente o babalorixá pode segurar o obé (faca) e imolar o animal. Os demais ogãs, em geral,
auxiliam na imolação segurando os bichos e ajudando a tratá-los. Já as mulheres são as
responsáveis por preparar os alimentos. A iabassê é o cargo feminino destinado àquela
responsável pelo preparo dos alimentos do santo. Ainda que as demais iniciadas possam

107
ajudá-la na comida, é ela quem irá colocar sua mão ali para o orixá, preparando
principalmente o inxé de cada animal, que é a parte mais importante da comida do orixá.
Há toda uma preparação antes de cada obrigação, que deve ser feita em horários e
datas específicas, segundo a finalidade de cada ritual75. Antes de cortar para o santo, os
assentamentos são colocados no chão, na ordem de recebimento das oferendas. As velas são
acessas e as quartinhas e quartinhões cheias com água, assim como o chão do peji é coberto
com folhas de aroeira. As mulheres responsáveis pela cozinha preparam as comidas secas,
cozinhando os acaçás, feijões, milhos, camarões, inhames, entre diversas outras comidas, a
depender do orixá que irá comer.
Antes de toda obrigação, é necessário cortar ao menos um bicho de pena para Exu.
Exu sempre deve comer primeiro, antes que os demais. Nesse sacrifício, um pouco do sangue
também é derramado no chão da casa, para pedir licença ao dono do terreiro. É só depois
desse rito preliminar que os demais orixás podem receber o ejé, o sangue animal.
Os animais, antes de serem imolados, também passam por uma série de preparações
rituais: primeiro, eles são acalmados e descansam à sombra; depois, eles têm suas cabeças (ou
bicos) e pés lavados com água. Algumas penas das aves são retiradas e espetadas em acaçás,
que serão colocados no assentamento do santo, junto ao otá. Em seguida, os animais devem
entrar em participação com todos os participantes do ritual: os bichos de pena são passados
pelo corpo de todos os presentes no peji, nos braços, pernas, troncos e costas. Se se tratar de
um bicho de quatro pés, então cada participante deve tocar sua cabeça na cabeça do animal,
pedindo-lhe, com isso, que ele possa trazer boas energias. O animal deve ser mantido calmo
desde o início e, se estiver muito agitado, não pode ser sacrificado. Os bichos de quatro pés,
por exemplo, devem se “oferecer” ao santo: ao ser chamado, ele deve, por vontade própria, se
encaminhar ao peji, e somente lá dentro que ele é segurado para o corte. Os bichos de pena,
antes de serem imolados, têm seus olhos cobertos com duas folhas da costa (kalanchoe
brasiliensis), e os bichos de pés devem comer um punhado de folhas de aroeira (schinus
terebinthifolius) e ter sua cabeça amarrada com uma corda, numa amarração específica. A
imolação deve ser realizada num gesto rápido e preciso, que busca fazer com que o animal
não se aflija durante o ato, pois qualquer agitação abrupta do animal é sinal de mau presságio
e, no limite, pode interromper o próprio ritual. De modo semelhante, os presentes não podem

75
Em determinadas fases da lua, por exemplo, não se deve dar comida para certos orixás; em outras, o período
torna-se mais propício para feitiços e trabalhos.

108
sentir “pena” dos bichos, pois isso seria um sinal de que o bicho não gostaria de ser
sacrificado. Busca-se, assim, evitar ao máximo o sentimento de ‘dor’ ou ‘sofrimento’, e tratar
o ritual como um movimento de celebração da vida – tanto do animal quanto dos presentes.
Cada animal é imolado de maneira específica, com cantigas e preceitos distintos, que
variam conforme o animal e a divindade destinada. A faca, igualmente, varia de orixá para
orixá, e cada Exu deve possuir seu próprio obé, que não pode ser tocado por mulheres. Para
serem cortados, os animais são suspensos acima dos assentamentos, de modo que o sangue
possa escorrer inteiramente nas ferramentas, otás e bacias. Depois disso, a cabeça do animal é
colocada em frente ao assentamento, enquanto o corpo é retirado para que se possa separar
suas partes. O ritual inteiro é cantado, e as músicas variam conforme as distintas fases do ato:
ao se pegar a faca; antes da imolação; quando os primeiros jorros de sangue são derramados
no assentamento; quando da separação das partes dos animais, e assim por diante. Nos bichos
de pena, separam-se primeiro a cabeça, os pés, as asas, o rabo e a “coroa” do pescoço, que são
minuciosamente arranjados em cima das ferramentas ou na frente do assentamento, de modo a
remontar no conjunto as partes do animal: o rabo é colocado atrás, a cabeça em cima, as asas
do lado e os pés abaixo, formando uma composição muito específica no assentamento. Já nos
bichos de quatro pés, separa-se primeiro a cabeça, depois os pés, o rabo e a região escrotal,
que também são colocados na frente dos assentamentos. Por fim, são colocados sobre os
assentamentos alguns ingredientes, como mel, azeite de dendê e sal. É comum, durante esta
fase, que algumas pessoas recebam seus orixás, bolem ou irradiem em seus santos,
principalmente se se tratar do santo que está comendo no momento.
A fase seguinte do ritual se dá na preparação dos bichos, retirando-lhes as penas ou
couros e dividindo suas distintas partes, que serão cozinhadas e servirão para alimentar todo o
terreiro, num ato de comensalidade coletiva. Quase tudo do animal é aproveitado: o eran
(carne) é assado ou cozinhado, a depender da obrigação do orixá, e os couros em geral são
guardados para servirem de pele para os atabaques. Somente alguns pedaços e vísceras do
animal não poderão ser compartilhadas com os humanos, pois estas compõem o inxé, a
comida propriamente do orixá. As comidas, tanto as secas quanto os erans, carnes do animal,
são colocadas em alguidares e pratos de barro, e cada prato é montado de modo a compor
uma relação específica com cada orixá. Esta fase de preparação é bastante demorada, pois
exige uma elaboração meticulosa de cada alimento, bem como a montagem de cada prato de
modo que seja do agrado de cada orixá.

109
Depois de preparadas, as comidas serão arriadas em frente ao assentamento. Para
isso, cada participante carrega um prato específico, e todos seguem, numa espécie de
procissão, da cozinha até o peji do orixá homenageado, onde todos cantam as cantigas do
orixá, puxadas pelo babalorixá que vai à frente tocando um adjá76. No peji, os pratos são
entregues ao babalorixá da casa, que, antes de arriar, toca três vezes com cada prato no chão.
Os pratos são montados em frente ao assentamento e, com exceção dos que servirão de
alimento para os humanos, ficarão ali por dois ou três dias, tempo suficiente para que o orixá
coma. Depois de arriar a comida, diversas cantigas são cantadas para Exu e para os orixás que
estão recebendo a obrigação. Por fim, é jogado um obi para confirmar se a entidade recebeu
ou não a oferenda.
Em geral, é depois das grandes obrigações anuais para cada orixá que ocorrem as
festas de candomblé, cerimônias públicas onde os santos tomam os corpos dos iniciados e
dançam, ao som do toque dos atabaques, as cantigas do xirê. É nessas festas, também, que as
comidas preparadas na obrigação são distribuídas entre os presentes, que compartilham os
alimentos com os orixás.
Ao fim de três dias (ou, em alguns casos, um a sete), o peji é novamente aberto para
que a comida seja suspensa. O cheiro forte que exala dos alimentos putrificados é sinal de que
a entidade comeu bem. As comidas são então retiradas do peji pelo pai-de-santo (que
novamente toca três vezes o solo antes de suspender cada prato) e separadas para serem
despachadas em locais específicos, a depender do orixá: em estradas, matas, rios, mares etc.
Algumas partes, no entanto, ficam guardadas no terreiro, para serem utilizadas para outras
finalidades rituais. Nada é desperdiçado no candomblé. A cabeça do animal, se for um bicho
de quatro pés, é deixada no próprio assentamento, até que a próxima obrigação seja realizada.
O axé, então, se renova no assentamento e nos seres que o constituem.
***
Mas não é só nas obrigações que o axé do assentamento é movimentado. No dia-a-dia
do terreiro, o assentamento recebe diversas velas, fotos, pedidos, sua quartinha é sempre cheia
com água e ele é constantemente limpo, tudo isso para que a força se renove e a comunicação
entre pessoa e orixá se efetue. O cuidado com os assentamentos, de fato, é um cuidado
cotidiano, que exige atenção, respeito, e um trabalho meticuloso para manter e movimentar

76
Sino metálico de geralmente uma ou três campânulas, utilizado em diversos rituais e nas festas públicas, em
geral pela mãe ou pai-de-santo da casa. Como tudo o mais no candomblé, o adjá também é feito e come.

110
certas forças e relações. O cuidado, como nota Miriam Rabelo (2014:225), constitui
mutuamente pessoa e orixá, colocando ambos em uma esfera sensorial comum, que envolve
uma série de manipulações que agregam os mais distintos elementos: animais, velas, folhas,
pedidos, água, sangue etc.
Sempre que um santo come, é necessário fazer a limpeza do assentamento, num ritual
conhecido como ossé. O ossé é feito periodicamente (ainda que o santo não tenha comido), e
visa limpar o assentamento, tanto no sentido material quanto nas forças que o compõem. O
ossé, como observa Rabelo (2014), é essencial para criar uma relação mútua de cuidado
cotidiano e proximidade entre a pessoa e seu orixá. Cada pessoa em geral faz o ossé em seu
próprio santo e, na sua ausência, somente o pai-de-santo ou alguém por ele encarregado têm a
permissão para realizar a limpeza. Neste ritual, as diversas partes que compõem o
assentamento são desmontadas, e cada uma delas é lavada com uma série de ingredientes.
Primeiro, cada uma das peças é lavada com água e sabão da costa, a fim de retirar os
resquícios de alimentos, penas e sangue que grudaram no ibá. Depois, essas distintas partes
são lavadas com amassi, a mistura de ervas e água. Em seguida, cada orixá é banhado com
ingredientes específicos: alguns orixás, como Exu e Iansã, por exemplo, são banhados de
azeite de dendê; outros, como Oxalá – que não pode ter contato com o dendê – são embebidos
no azeite de oliva, e assim por diante. O otá, os búzios, as contas e os demais elementos que
compõem o assentamento são todos bem lavados, retirando-se todas as impurezas dos
alimentos que impregnaram em seus corpos. Depois disso, todo o conjunto desmontado é
colocado para secar no sol (com exceção de Oxalá, que não pode tomar sol) e por fim
remontado, até o próximo ritual de limpeza.
É a partir dessa série de cuidados que pessoa e orixá fazem-se mutuamente. O
assentamento, como já vimos, é um importante mediador das relações da casa e, mais do que
isso, da relação entre a pessoa e seu santo: é por meio dele que se efetua a comunicação
pessoa-orixá. E essa comunicação está longe de ser um mero exercício de “renovação de fé”;
antes, se faz através de manipulações cotidianas, do que o assentamento é capaz de “fazer
fazer” – ou seja, a comunicação é sobretudo prática.
Os rituais, como notou de forma perspicaz Edgar Barbosa Neto (2012:318), não são
apenas “modos de fazer” determinadas coisas; antes, tratam-se de ações sobre ações,
manipulações que fazem fazer uma série de acontecimentos, que movimentam forças e seus

111
fluxos. Assim, “a ação humana sobre os espíritos é uma ação cujo efeito é criar outra ação
desses espíritos sobre os humanos”.
Se falamos até aqui de “ações” ou “técnicas rituais” para descrever as práticas
existentes no universo do candomblé, esse uso foi tão somente para condensar essas diversas
práticas numa linguagem comum a antropologia. Entretanto, na “prática”, cada prática é
distinta uma da outra, e cada uma visa finalidades e ações diferentes. Assim, para além das
obrigações, há trabalhos, limpezas, ebós, cada qual com suas técnicas rituais específicas,
mobilizando os corpos de maneiras distintas (com ou sem a mediação do assentamento) e
intervindo nas forças que compõem o mundo de diferentes formas, ora para restituí-las, ora
para desorganizá-las77.
Assim, enquanto as obrigações buscam alimentar a divindade e restituir, com isso, a
força que atravessa pessoa e orixá, os trabalhos, ou feitiços, possuem uma finalidade distinta,
fazendo com que a entidade intervenha no mundo em benefício da pessoa que o demandou –
e, porventura (ou como consequência), em malefício de outra. Pois, se por um lado esses
trabalhos são vistos como a prática do “mal”, esse Mal, como bem lembrou Carmem Opipari
(2009:165), não é senão uma consequência do Bem. Cada força pode ser mobilizada para
distintas finalidades, e através de distintos “lados” – como certa vez disse Galo Preto, uma das
entidades com quem Opipari se deparou: “tem sempre o outro lado”. Cada casa de candomblé
mobiliza de modos distintos esses diferentes “lados”, agenciando diferente forças e fluxos e
fazendo-os passar, de um a outro, em variação contínua78. Assim, os feitiços, presentes,
limpezas, ebós, comidas, recados e demais formas de manipulação buscam agenciar essas
distintas forças e colocá-las em movimento.
Cada coisa no candomblé carrega mais ou menos axé, e essas manipulações visam,
portanto, modular essas energias vitais, ora aumentando, ora diminuindo a existência de
coisas e pessoas. Os rituais, assim, parecem ser menos da ordem de uma ortodoxia do que ser
uma questão de tecnologia: quais forças são ativadas, quais materiais foram empregados,
através de quais gestos e com o quê eles se conectam, e assim por diante. Essa modulação de
axé é algo que vai perpassar toda a existência das coisas que, para se manterem vivas,
precisam ser constantemente feitas.
77
Essas diferentes técnicas rituais – e as diferenças entre elas – não serão aprofundadas neste trabalho. No
entanto, remeto os leitores às ricas etnografias de Opipari (2009), Halloy (2005) e Barbosa Neto (2012), que se
aprofundam de maneira mais sólida nessas questões.
78
Para uma robusta análise dos lados e seus agenciamentos nas religiões de matriz africana no Brasil, ver
Barbosa Neto (2012).

112
 A  VIDA  DE  UM  ASSENTAMENTO    

O assentamento atravessa distintos caminhos ao longo de sua existência: é composto,


manipulado, recebe alimentos, velas, pedidos, recebe libações de água, cachaça, azeite, dendê,
mel, sal, passa por novas composições, rearranja-se ao longo do peji, é posto no pepelê, desce
ao chão para receber as oferendas, é saudado, cuidado e até temido. Ao longo do percurso, sua
existência vai se alargando, em conjunto com sua força, que vai se estabilizando em cada
elemento que compõe aquele arranjo muito peculiar de coisas.
Já vimos, no capítulo anterior, que o assentamento é a expressão da relação entre
pessoa e orixá. No entanto, não podemos reduzi-lo a essa interação. Isso porque, a depender
do contexto, os adeptos do candomblé diferenciam muito bem a pessoa de seu santo, ou a
pessoa de seu assentamento (ou seu otá), especialmente em momentos onde essa relação é, de
uma forma ou de outra, colocada em questão. Miriam Rabelo (2014:203-214), em um livro
seminal para esta discussão, narra diversos casos onde o assentamento é visto como um lugar
que propicia encontros, uma confluência de relações. Assim, quando essas relações entram
em zonas de tensão e conflito essa diferenciação é acentuada, na maior parte das vezes com o
intuito de ‘proteger’ o orixá – pois, como escutei algumas vezes em meu trabalho de campo,
“o santo não precisa pagar pelos erros da pessoa”.
Com a querela entre Detinha e seu antigo pai-de-santo vimos que os conflitos em
torno dos assentamentos são frequentes no mundo do candomblé. Em geral, esses conflitos
giram em torno do direito de dispor dos assentamentos: se ele pertence ao noviço (que foi
“feito” nele), ou se ao pai-de-santo que fez o assentamento, que “botou a mão” e possibilitou
o encontro. O problema é que, como vimos, manipular um assentamento é manipular as
próprias forças que compõem as pessoas que participaram de sua feitura. Assim, aquele que
possui o assentamento tem algum poder de ação sobre a vida do noviço – podendo chegar, no
limite, a desfazer a sua própria vida. Esse tipo de ação, no entanto, envolve sempre um risco
em potencial, uma vez que o próprio santo pode resolver reagir a tais tentativas de
manipulação (e o feitiço, desse modo, pode voltar-se contra o feiticeiro).

113
Zé Diabo certa vez narrou um caso desse tipo. Durante uma conversa em sua oficina,
ele nos contou a história de um pai-de-santo que, desgostoso do fato de que uma de suas
filhas-de-santo preferidas havia abandonado suas obrigações no terreiro, resolveu “castigá-
la”, jogando então o otá de sua santa, Oxum, no lixo. Ao fazer isso, contava Zé, o babalorixá
acreditava que a filha-de-santo seria gravemente atingida, o que de fato aconteceu dias depois,
quando a mulher ficou adoecida. O pai-de-santo, porém, não previu que a própria santa – que,
como lembrou Zé, não deveria pagar pela filha – poderia se revoltar com sua situação
degradante, fazendo então com que ele pagasse por seu ato leviano, vindo a enlouquecer
semanas depois. Ao ouvir esta história, Fátima, uma mãe-de-santo amiga de Zé que também
participava da conversa, se horrorizou, afirmando que o orixá nunca poderia ser tratado dessa
forma. Ao refletir um pouco sobre a história, disse: “Eu nunca faria isso, sabe por que?
Porque eu tenho medo e amor, eu respeito os orixás, eu sei do que eles são capazes". Zé
Diabo concordou com Fátima, passando em seguida a nos contar o caso de duas abiãs de sua
casa que abandonaram suas obrigações com os orixás – caso que eu narro abaixo.
Renata e Vanessa conheceram Zé Diabo através de caminhos muito distintos, mas
com uma trajetória em comum: ambas se ligaram a Zé a partir de trabalhos rituais. Renata,
que tinha o candomblé “no sangue” (como se diz daqueles que carregam a religião através de
seus laços de parentesco), adoecera gravemente, e então decidiu jogar com Zé Diabo. Durante
o jogo, o santo de Renata manifestou o desejo de ser assentado ali, na casa de Zé, alegando
que só desse modo ela seria curada. Pouco tempo depois, Zé acabou assentou o santo de
Renata em sua casa – ato que, de fato, deixou-a curada logo em seguida. Vanessa, por sua
vez, não tinha muito contato com o candomblé, mas acabou se consultando com Zé por uma
série de problemas pessoais. Realizou alguns trabalhos rituais e, naquele período, sua padilha
lhe disse, em sonho, que gostaria de ser assentada ali. Zé, em geral, costuma refutar a ideia de
assentar santos de outras pessoas em sua própria casa, pois, por não ter uma estrutura típica
dos tradicionais terreiros de candomblé (com cargos e hierarquias bem delimitadas), ele
prefere se limitar a cuidar de seus próprios santos – que, segundo ele, já demandam muito
trabalho e cuidado. Nestes casos, ele costuma indicar um outro terreiro, de alguém que ele
possua ligações, para a pessoa assentar e cuidar de seus santos. Entretanto, caso os santos
insistam em permanecerem ali (como foram os casos de Renata e de Vanessa), não há outra
alternativa a não ser assentá-los em sua própria casa. Isso, porém, exige um cuidado quase

114
diário com os assentamentos, cuidados com velas, limpezas e oferendas que demandam
dedicação e trabalho da pessoa que assentou o santo na casa.
O problema foi que, com o decorrer do tempo, as duas acabaram afastando-se de suas
obrigações com o santo: Renata tornou-se evangélica e não quis mais saber de candomblé, e
Vanessa, depois de ter seu problema finalmente solucionado, mudou-se de cidade e aparece
muito esporadicamente para visitar Zé. Seus assentamentos, no entanto, continuam ali. Zé
Diabo vez ou outra ainda acende uma vela para cada um, faz o ossé (a limpeza ritual dos
assentamentos) ou oferece algum galo ou galinha para os santos, na ocasião de outras
oferendas. “O santo”, diz ele, “não deve pagar pela pessoa. Então eu continuo cuidando, do
jeito que posso, né? Quando elas quiserem vir e cuidarem, ou levarem as coisas delas, tudo
bem, mas enquanto isso eu vou dando uma agradinho aqui e ali, pra eles não se irritarem
comigo também, e desse jeito eu acabo fazendo com que eles também trabalhem para mim”.
Assim, no peji onde ficam guardados os exus da casa de Zé Diabo, os assentamentos de
Renata e de Vanessa continuam ali, embora ocupem uma posição mais periférica em relação
aos outros assentamentos.
Entrar num peji é portanto entrar numa rede heterogênea de cuidados e afetos, pois
cada assentamento conta uma história específica da interação entre a pessoa e seu santo (Sansi
2009:149). Enquanto alguns assentamentos são alimentados e limpos regularmente, possuindo
velas acessas, presentes e pedidos, os santos daqueles mais negligentes acabam ficando nos
cantos do peji, empoeirados e com teias de aranha, sinal do distanciamento da pessoa com seu
orixá. Alguns terreiros chegam inclusive a separar um quarto específico para colocar os santos
‘abandonados’ pelos seus donos. Como é o caso de Adaílton, um pai-de-santo amigo de Zé,
que nos contou que faz isso buscando “isolar” aqueles santos que, descuidados, acabam
atraindo forças negativas, podendo prejudicar os demais da casa.
Mas não é somente em situações de conflito que a separação entre assentamento e
pessoa se faz presente. Em casos de falecimento, por exemplo, essa separação pode ou não se
dar, a depender das tecnologias rituais empregadas e do desejo do próprio orixá, que pode
decidir continuar habitando aquele conjunto de materiais ou não. No primeiro caso, o
assentamento então será herdado para outra pessoa; no segundo, ele será despachado.

115
Em geral, quando uma pessoa morre seu assentamento é despachado79, ou seja, as
forças que o constituíram são desfeitas e retornam aos polos indiferenciados de força que lhe
originaram. O axé, como observa Juana Elbein dos Santos (1975:252-255) é então restituído à
“matéria-massa” que lhe deu origem, voltando a ter uma “existência genérica”. Os despachos
dos assentamentos são feitos em locais conhecidos por serem fontes irradiadoras e receptoras
de forças: em mares, rios, cachoeiras, matas etc., a depender do tipo de força de cada orixá80.
Junto com o assentamento podem ser despachados também as roupas rituais, insígnias e
demais objetos que foram preparados para a pessoa e seu orixá.
Caso o orixá manifeste o desejo de continuar sendo cuidado, ele então é herdado por
outra pessoa – em geral ligada ao falecido. Este foi o caso, por exemplo, de Roberto, que
herdou o Caboclo de seu pai, como relatado no capítulo anterior. O santo também pode
resolver permanecer no terreiro ou na família da pessoa, passando de geração em geração -
como é o caso do Ogum que atravessa a família de Zé Diabo por gerações Nos grandes
terreiros de candomblé, os assentamentos de pessoas com grau elevado na hierarquia da casa
costumam ficar no terreiro, sendo designado outra pessoa para cuidar dos assentamentos –
uma grande responsabilidade para o mundo do candomblé – a não ser que, por pedido da
própria pessoa ou por consulta nos búzios, se descubra que eles precisam ser despachados.
Pode-se também preservar somente alguns objetos do assentamento, como o otá, as louças ou
os adornos que o enfeitam, deixando-os sob o cuidado de alguém próximo à pessoa falecida.
Tudo isso, no entanto, só poderá ser decidido através do desejo do santo ou do falecido, que
pode transmitir a mensagem por meio de sonhos, aparições ou, principalmente, pelo jogo de
búzios.
Os objetos no candomblé, portanto, podem percorrer diferentes trajetórias, e essas
trajetórias podem ser objeto de disputa. Roger Sansi, em um interessante texto (2005), narra a
história de um otá que ele viu pela primeira vez exposto em um museu em Salvador. Este otá,
diz o autor, havia sido apreendido pela polícia no início do século XX, e acabou parando na
coleção museológica pertencente à Nina Rodrigues onde, décadas depois, apareceu exposto

79
Goldman (2003) relata brevemente um ritual de despacho de santo do qual participou. Para maiores
informações sobre o ritual de despacho, o rito fúnebre e o “desfazer” nas religiões de matriz africana, ver Cruz
(1995) e Machado (2013).
80
Não acompanhei, durante o campo, nenhum ritual de despacho ou de axexê (a não ser aquele referente aos
assentamentos de Detinha, relatado no capítulo anterior). Assim, as informações que trago são fruto tanto de
conversas com Zé Diabo sobre o assunto quanto da leitura da bibliografia sobre o tema, como Elbein dos Santos
(1975), Cruz (1995), Bastide (1958) e Machado (2013).

116
no Museu da Cidade, o que gerou uma série de discussões sobre as origens e destinos da
pedra-orixá e, principalmente, sobre a legitimidade de se expor algo considerado ‘sagrado’ –
ou, ainda, se esta pedra ainda era ou não um orixá, ou seja, se ainda continha ou não axé.
Após reivindicações do movimento negro, o otá acabou sendo retirado da exposição, ficando
armazenado no acervo do museu até que se resolvessem o destino do objeto.
Assim, apesar de vinculado à existência da pessoa, os assentamentos podem traçar
uma “biografia” própria (Kopytoff 1988), ser alvo de diferentes manipulações e, também,
resistir à elas. David Brown, ao falar sobre as relações que giram em torno dos altares da
Santería, os tronos, diz algo que poderia ser replicado ao universo do candomblé e seus
assentamentos:

The throne thus embodies an emergent spiritual and personal biography, in which the
objects themselves, prepared and given by ritual elders, colleagues, friends, or
godchildren, have their own histories and “biographies” (Brown 1996:93 apud Sansi
2005:153).

Ainda que as ideias de “biografia cultural”, de Igor Kopytoff (1988), ou “vida social
das coisas”, de Arjun Appadurai (1988) possam ser interessantes para chamar a atenção para
as diferentes trajetórias percorridas pelos artefatos, há alguns pressupostos presentes nessas
noções que não se adequam ao modo como os assentamentos são compostos no candomblé,
seus caminhos e feituras. O principal deles, acredito, diz respeito ao fato de que, nestas
noções, a “agência” das coisas aparecem sempre como um “atributo”, ou seja, algo que é
atribuído exclusivamente pela ação social humana, que “movimenta” esses distintos objetos.
Ou seja, nestas perspectivas, as coisas são dotadas de múltiplos significados (sociais) a partir
– e sobretudo – do que os atores sociais fazem com ela.
O problema é que, no candomblé, os artefatos não são tão “passíveis” assim: possuem
desejos e predileções, afetam corpos e espíritos, manipulam as energias do mundo e solicitam
determinadas relações. Sendo forças, as coisas não agem tão somente através da ação social
humana (estão longe de serem “constructos sociais”), mas possuem suas próprias conexões,
sua própria “vida”. A “agência” das coisas no candomblé parece portanto sugerir algo bem
diferente daquilo que postulam os chamados estudos de cultura material, e é para essas
especificidades que nos voltaremos agora.
***

117
Ao falarmos da questão da agência, em especial se relacionada a artefatos, o primeiro
antropólogo que em geral nos vem na mente é o britânico Alfred Gell. Em sua obra capital,
Art and Agency (1998), Gell vai propor uma nova abordagem para pensar a relação entre
pessoas e coisas. Ao contrário dos estudos precedentes sobre “cultura material”, que
concebiam a ação enquanto um “atributo” (na maioria das vezes humano), o autor vai propor
uma perspectiva eminentemente relacional para lidar com as práticas e ações que se
desenrolam num conjunto de relações sociais. Nessa perspectiva, a agência torna-se algo que
pode perpassar tanto pessoas quanto coisas, a depender do conjunto de relações mobilizadas
na interação.
É nesse sentido, portanto, que Gell vai propor que os artefatos devem ser tratados
como pessoas; ou, mais precisamente, que eles são agentes sociais. Gell busca na etnografia
melanésia – especificamente nos trabalhos Babadzan, Strathern e Wagner – uma forma de
pensar a pessoa enquanto um “divíduo”, ou seja, não enquanto um “indivíduo constituído”,
mas, antes, como um agregado de relações, uma “pessoa distribuída” pela socialidade que ela
medeia (Strathern 1988). O conceito de pessoa utilizado por Gell se aproxima ao de Marcel
Mauss em seu “Ensaio sobre a Dádiva” (1925), onde a pessoa é pensada, antes, enquanto um
complexo de relações sociais. Partindo da premissa de que objetos são equivalentes a pessoas,
ou seja, de que eles também são conjuntos de relações, os artefatos passam a ser entes que
podem estar na origem e no destino das ações sociais, participando da cadeia de mediações
que ocorrem ao seu redor. Mas se as coisas podem ter agência, como afinal isso ocorre?
Segundo o autor – e inspirado na teoria semiótica de Peirce81 – um material (índice) adquire
agência através de um movimento de “abdução de agência”, uma operação cognitiva
particular que gera uma inferência causal de algo. Dito de outra forma: para Gell, têm agência
tudo aquilo que, por um processo de abdução, causa algo.
No entanto, é justamente ao buscar as ‘causas’ e origens da agência dos artefatos que o
argumento do autor parece se tornar mais frágil, como aponta Leach (2007) numa das críticas
mais contundentes à obra de Gell. Isso porque, ao discutir sobre o meio causal (a intenção da
ação), Gell acaba atribuindo aos objetos uma agência “secundária”, retomando a clássica
distinção ontológica entre pessoas e coisas, na qual humanos, em última instância, seriam
sempre os causadores das agências “primárias”; ou seja, sua abordagem coloca a

81
Entretanto, com diversas imprecisões conceituais de sua obra, como chamam a atenção alguns críticos de Gell,
como Alves (2008) e Layton (2003).

118
intencionalidade do agente num campo maior de relações sociais orquestradas por humanos e
seus “sentidos” e é somente por meio deles que poderíamos ter acesso à “agência das coisas”:

Animals and material objects can have minds and intentions attributed to them, but these
are always, in some residual sense, human minds, because we have access ‘from the inside’
only to human minds, indeed to only one of these, our own. (Gell 1998:17)

Ademais, se Gell está preocupado com a ação dos artefatos, esses próprios artefatos
são tomados como “dados”, ou seja, como seres já constituídos que, a partir daí, passariam a
agir na rede de relações sociais. Gell, no conjunto de sua obra – com exceção, talvez, do
exemplo das casas Maori que citamos anteriormente – parece não se atentar para um fato que,
ao menos no candomblé, me parece fundamental: que os objetos, para “agirem” no mundo,
devem ser constantemente feitos, compostos, modulados – e essa composição não passa só
pelas “ações” ou “intenções” humanas, mas por toda uma trama de seres. No candomblé,
como vimos, a própria matéria não pode ser desvinculada das forças que nela habitam, que a
compõem e que a transformam. Assim, os materiais não são “matérias” passíveis que são
preenchidas com “formas” específicas (símbolos, intenções etc.), mas, ao contrário, são um
agregado muito particular de forças e fluxos.
A abordagem ecológica de Tim Ingold pode nos trazer algumas reflexões interessantes
sobre essa questão. Seguindo sua proposta (Ingold 2007), qualquer tentativa de
“emancipação” das coisas deve levar em conta as características materiais da própria coisa,
pois a coisa (thing) só pode “falar” em seus próprios termos, de acordo com suas próprias
qualidades materiais – aquilo pelo qual a coisa, materialmente, interage com o mundo. A
proposta do autor, portanto, é de dar um “passo atrás”, da materialidade dos objetos para a
matéria ela mesma e seus processos de formação. Assim, deveríamos mudar o foco: de uma
“objetividade” das coisas para os fluxos de matéria e os processos de formação onde eles
passam a existir. Como vai dizer Ingold (2012a, p.431): “It means to think of making as a
process of growth, or ontogenesis”.
A crítica mais contundente de Ingold aos chamados “estudos de cultura material”,
portanto, é que ali os “objetos” ou “indivíduos” já aparecem constituídos, “prontos”. Ou seja,
essas abordagens partem de um modelo hilemórfico, que pressupõe uma forma (morphé)
impondo-se sobre uma matéria (hyle), para pensar nas coisas e seus agenciamentos. Esse
modelo, vai dizer Ingold (2011), retira as coisas do fluxo de vida, do mundo-em-formação.
Segundo o autor, nessa perspectiva as coisas só poderiam ter “agência” se se pressupor, de

119
alguma forma, que elas estão de antemão “mortas”, retiradas desse fluxo. É essa, portanto, a
“inversão” operada pelo autor: ao invés de pressupormos que as coisas estão na vida (ou seja,
que a vida é um “atributo” das coisas, que estas detêm “agência”), Ingold vai dizer que a vida
é que é ontologicamente prévia à distinção pessoas/coisas (ou seja, são as coisas que estão
imersas no fluxo da vida). Assim, o foco do autor recai não nos “objetos”, mas nos materiais
que compõem o mundo vivo. Se, para Gell (1998) – e, de forma um pouco diferente, também
para Latour (2012) – a questão da agência não pode ser resolvida no plano da atribuição de
vida aos seres, mas se situa num plano relacional, numa rede de relações (é somente aí que o
objeto pode ter “intenção”), para Ingold (2011), por sua vez, a vida assume um papel
fundamental na composição dos seres. Mas não se trata de nenhum princípio “biológico” de
vida. Antes, a vida é pensada enquanto linhas de movimento, processos que se desenrolam
dentro do habitar: a vida é um processo, não uma substância. Ao se falar em objetos e suas
“materialidades”, diz o autor, “é como se o mundo tivesse interrompido sua mundificação e
cristalizado na forma de um precipitado sólido e homogêneo, à espera de ser diferenciado pela
sobreposição de uma forma cultural. Nesse mundo estável e estabilizado, nada flui” (Ingold
2012b, p.34).
É, portanto, a partir dos processos de formação da coisa (ou sua “coisificação), que
poderemos questionar se as coisas podem ou não “falar”. Como nos diz Holbraad (2011: 10):
“Asking whether the thing can speak, then, is to ask for it to speak on its own terms – in its
own language, if you like”. As coisas – e não mais “objetos” – navegam num oceano de
materiais. Esse materiais não são atributos fixos, mas estórias, linhas decorrentes da interação
com o ambiente, com o mundo-em-formação. Para Ingold, a coisa é um “acontecer”, ou
melhor, “um lugar onde vários aconteceres se entrelaçam” e, perguntar se as coisas falam ou
não requer, sobretudo, um engajamento prático com essas distintas coisas e suas forças:
“Observar uma coisa não é ser trancado do lado de fora, mas ser convidado para a reunião”
(2012b: 29).
A partir dessa perspectiva, claramente inspirada na fenomenologia (em especial na
obra de Merleau-Ponty), Ingold nos traz alguns elementos para problematizar a díade
coisas/pessoas, problematizando, com ela, o próprio modelo hilemórfico que a subjaz. Em
suma, o que Ingold propõe é um modelo que prime não pela relação entre os termos, mas pelo
movimento de individuação, pelo engajamento mútuo de forças e fluxos.

120
Podemos, a partir daí, ver de que modo essa proposta se relaciona com o mundo de
forças e composições do candomblé. Já vimos que, nele, os materiais não podem ser
separados das forças que os constituem e, portanto, para acessarmos essas forças e seus
agenciamentos é necessário prestar atenção ao próprio processo formativo da matéria – como
as “coisas” se fazem. Assim, os objetos no candomblé não são “dados” ou auto-evidentes; ao
contrário, para se manterem “vivos” (ou seja, com axé), eles demandam um trabalho
constante e ininterrupto de feitura, que envolve alimentos, palavras, cantos, gestos, limpezas,
libações de azeite, mel, sangue etc. Essa série de relações fazem com que os materiais (e as
forças que o compõem) se transformem ao longo do tempo: os ferros corroem, as pedras
escurecem, os barros podem se quebrar, as folhas podem se decompor, as árvores podem
morrer, assim como as pessoas ou até mesmo os deuses (que podem “voltar para África”),
podem desaparecer deste plano82. Isso está relacionado com o próprio ciclo do axé, que pode
aumentar, diminuir, se dissipar, se concentrar etc.
Ao compor um assentamento, pessoa e santo aumentam suas existências, num
processo gradual e perene de acumulação de forças. Quanto mais antigo e mais desgastado
um assentamento, mais força este possuirá, pois é sinal de que recebeu mais oferendas, que o
sangue foi derramado mais vezes sobre ele, que sua existência é mais consolidada. O Ogum
de Zé Diabo, por exemplo, é um de seus santos mais fortes e importantes. Ele foi assentado há
mais de 40 anos, na época em que Zé abriu a sua própria oficina – local onde permanece até
hoje. Trata-se de um assentamento imponente, não tanto pelo tamanho, mas pelas marcas que
traz de seu longo tempo de existência: os ferros que compõem a ferramenta estão
completamente desgastados, enferrujados e corroídos, sinal das intemperes do clima, mas
também das inúmeras oferendas que já recebeu, das libações de azeite, sangue, sal, mel,
cachaça e etc. Zé Diabo se orgulha da antiguidade dessa ferramenta e, de alguma maneira, o
desgaste dos materiais é sinal da força dessa relação:

“Esse Ogum aqui tá comigo desde que eu cheguei aqui na oficina, e vai continuar até
eu ir embora desse mundo. Porque ele não foi feito desses ferros fracos que são usam
hoje em dia por aí, ele tem força, foi feito com um ferro forte, daqueles de navio. Por
isso que, por mais que ele fique corroído, ele resiste, não vai romper fácil”, diz Zé.

82
Karin Barber (1981), em um excelente e fundamental artigo, discute como, para os Yorubá da Nigéria, é o
cuidado dado às entidades que conferem a elas suas existências. Lá, diz a autora, os homens criam seus próprios
deuses, uma vez que o poder do orixá depende da atenção que a ele é devotada.

121
Assim, a existência de Ogum não pode ser desvencilhada da materialidade do próprio
ferro: é por meio dele, de seu desgaste, das ações que o corroem e que o modificam, que a
relação pessoa-orixá-material se faz. Poderíamos dizer o mesmo sobre os outros materiais que
compõem o mundo do candomblé. Tomemos como exemplo as quartinhas de barro. O barro é
um elemento primordial no candomblé, ligado ao orixá Nanã, à terra e à criação do corpo83
(cf. Elbein dos Santos 1977:233). Todo assentamento deve possuir uma quartinha, que sempre
deve estar cheia de água limpa. Ainda que a quartinha de alguns orixás possa ser feita de
louça – como a das iabás (santos femininos como Oxum, Iemanjá ou Iansã) ou dos orixás
funfun (Oxalá e Oxaguiã) – a maioria das quartinhas é feita de barro (e ainda esses orixás
possuem ao menos uma quartinha de barro). Isso porque, segundo me foi explicado, é através
do barro que o orixá “respira”. Assim, ao ser preenchido com água, o barro transpira, fazendo
com que a água de seu interior evapore com o tempo. É por isso que a água das quartinhas
deve ser reposta constantemente: a água da quartinha nunca pode secar. É, portanto, através
da transpiração do barro que o cuidado entre pessoa e orixá se faz; a quartinha lembra, então,
que tudo no candomblé é vivo e requer constante cuidado e atenção.
Há, portanto, toda uma “ecologia prática” no candomblé para lidar com as coisas e
suas transformações. Pois, se o axé pode ser visto como uma força que é ontologicamente
prévia à própria distinção entre pessoas e coisas, ao cristalizar ambos (ou seja, ao fazê-los), é
necessário um trabalho constante de manutenção e composição de forças. Dito de outra
forma, se tudo no candomblé é “vivo”, essa vida só é possível se inserida na própria malha
que a constitui, nesse engajamento mútuo entre forças e fluxos.
A princípio, a abordagem ecológica de Ingold pode então nos ajudar a pensar em toda
essa “malha”84 relacional que envolve forças e fluxos no candomblé, nos chamando a atenção
para os processos de formação das “coisas”, para suas itinerâncias e transformações. No
entanto, se seguirmos o modo como pessoas, coisas e deuses são feitos no candomblé, se
concretizando, atualizando e diversificando continuamente, veremos que essa ecologia prática
do candomblé – ou melhor, essa ecosofia, para usarmos a expressão de Félix Guattari (1990)
– nos coloca algumas questões que se distanciam do modo como Ingold pensa o mundo e suas
relações. A principal delas, acredito, diz respeito à própria noção de vida. Isso porque, a meu
83
Lembremos também do mito de Ajalá, que fala que o ori é feito de barro.
84
A “malha” (meshwork), diz Ingold (2011), ao contrario da “rede” (network) latouriana, não “conecta” pontos
pré-existentes; antes, ela toma as interações como linhas, ao longo das quais as coisas são continuamente
formadas, se emaranham e formam agregados (coisas). Assim, ela é antes da ordem da prática improvisativa e da
transformação.

122
ver, ao propor uma espécie de “vitalismo generalizado” à todas as coisas, Ingold acaba
homogeneizando o próprio conceito de “vida”, como se tudo participasse da mesma forma da
“coisificação” da coisa. E isso, como já vimos até aqui, não poderia estar mais distante do
universo do candomblé e suas relações. Pois se no candomblé tudo é vivo e está permeado de
axé, as coisas, no entanto, possuem diferentes graus de existência: elas existem “mais” ou
“menos”, de acordo com as distintas intensidades de força que as percorrem. Não se trata,
como diz Bastide (1958:257), de uma identificação lógica, mas de “toda uma série de graus
de participação, desde as associações simples até as identificações”. Ou seja, se no candomblé
tudo é “vivo”, isso não quer dizer, no entanto, que tudo é vivo de maneira igual, ou ainda que
a própria “vida” é uma coisa só – ainda que perpasse a tudo e a todos. Entre o “ser” e o “não-
ser” existe uma infinidade de possibilidades, de modulações distintas que tornam as coisas
distintas: se tudo está feito, algumas coisas, no entanto, devem ser feitas, lapidadas sua
energia.

CARTOGRAFIA  DE  FORÇAS    

Em um mundo povoado de forças as mais distintas, que se territorializam em locais e


materiais específicos, os adeptos do candomblé constroem toda uma cartografia para lidar
com essas multiplicidades. Assim, certos lugares, coisas, datas e contextos são atravessados
por energias específicas, possuindo mais força do que outros. Saber manejar e compor com
esses elementos é fundamental para ativar certas relações, atingir determinados objetivos ou,
ainda, incrementar sua própria força.
Em O Candomblé da Bahia (1958), Roger Bastide – que, como vimos, considerava o
candomblé enquanto um sistema de participações – sustenta que o espaço sagrado seria
aquele “fechado entre os muros ou os limite do terreiro” (1958:81). Outros lugares fora dos
limites dos candomblés, argumenta o autor, também poderiam ser considerados sagrados, mas
somente na medida em que se tornam um prolongamento exterior do terreiro (ibid.:82), ou
seja, na medida em que são postos, de uma maneira ou de outra, em participação com ele.
Para sustentar esse argumento, Bastide vai trazer como exemplo a festa de Iemanjá, realizada
anualmente no dia dois de fevereiro na praia do Rio Vermelho, em Salvador. Para ele, ainda

123
que no dia da festa as águas daquela praia sejam ‘sagradas’ (tratadas com reverência e até
mesmo utilizadas para fins curativos), “no dia seguinte, nesse mesmo lugar, a água não era
mais do que água salgada comum” (1958:83). O mesmo aconteceria, segundo ele, com o
Dique do Tororó, represa utilizada nos festejos de Oxum, onde, nos dias de celebração, aquela
água carrega “toda espécie de virtudes curativas e profiláticas” mas, no dia seguinte, aquele
local não é mais sagrado. Ainda que este argumento de Bastide possa soar verdadeiro – pois,
de fato, nesses dias a força do orixá está presente de modo muito mais intenso nas águas
destes locais – o autor parece não levar em conta o fato de que, fora destas datas, estes locais
são, no mínimo, locais propícios para receber a força do orixá. Assim, tanto a praia do Rio
Vermelho quanto o Dique do Tororó, para ficarmos somente nestes dois exemplos, são
constantemente utilizados como pontos para despachos, ebós e feitiços, o que me parece
demonstrar a força destes locais ainda que fora destas datas específicas. E essas forças não
são tão facilmente manipuláveis assim. Não acredito, por exemplo, que caso mudassem os
locais dos festejos do dia dois de fevereiro, os adeptos do candomblé aceitariam de bom grado
essa mudança85.
Seria possível, portanto, pensar em uma inversão na lógica da realização desses
festejos: não é porque se revência os orixás nestes locais que eles se tornam “sagrados”, mas é
pelo fato desses lugares serem carregados de forças (ainda que virtuais) que as festas são
realizadas neles. É o que propõe Edgar Barbosa Neto em sua tese de doutorado (2012). Ao
apontar algumas fragilidades presentes no argumento de Bastide – que acaba, segundo ele,
por reduzir a sacralidade às fronteiras da casa, sobrepondo assim o princípio de corte ao
princípio de participação; ou seja, mantendo uma ruptura intransponível entre os domínios do
“sagrado” e do “profano” – Barbosa Neto vai propor uma “inversão” no argumento
bastidiano, radicalizando assim o próprio princípio de participação: para ele, “a sacralidade do
terreiro (ou da casa) resulta de sua conexão (ou participação) com aquilo que está fora dele”
(Barbosa Neto 2012:144). Assim,

“O caso é que essa cosmologia é inseparável de toda uma geografia, composta justamente
por aqueles lugares que Bastide supôs como irremediavelmente profanos até seu contato
com o terreiro, mas que, na verdade, são algumas das fontes primordiais de onde emana o
axé que anima a sua existência e a vida em geral” (ibid.:144).

85
Tal resistência aconteceu, por exemplo, no caso narrado na belíssima etnografia de Anjos & Oro (2009), onde
a prefeitura proibiu a procissão marítima da festa de Iemanjá em Porto Alegre.

124
Tendo a concordar com a posição do autor, uma vez que, no candomblé, o local de
onde se retira (ou se despacha) os “ingredientes” para compor assentamentos, ebós ou feitiços
é fundamental para compor suas forças. Nesse sentido, acredito que, mais uma vez, o par
virtual/atual proposto pelo filósofo Gilles Deleuze (1998) pode nos ajudar a pensar os modos
como lugares, deuses, pessoas e coisas são atravessados por distintas intensidades de forças.
Pois não há algo como uma “chave” que, através da participação, permite ‘ligar’ ou ‘desligar’
o caráter sagrado do local; antes, é preciso pensar nessa cosmologia enquanto um
atravessamento de forças, que são atualizadas com maior ou menor intensidade a depender
das técnicas rituais empregada e dos modos de participação entre pessoas, deuses e coisas.
***
Os locais considerados com mais “força” do que outros são, em geral, lugares
carregados dos elementos dos orixás: matas, estradas de ferro, praias, rios e cachoeiras. Mas
não se trata de quaisquer matas, estradas ou rios: como lembrou Sansi (2003:176), se o
candomblé pode ser tomado como um “culto à natureza”, essa natureza não é, ou não é
apenas, uma natureza abstrata e genérica, mas feita de lugares e coisas concretas, específicas e
localizadas. Desse modo, assim como há pedras que são mais “fortes” que outras, há
determinadas cachoeiras, matas, praias ou cruzamentos que possuem mais “força”, pois são
locais atravessados por intensidades de forças específicas onde, como explica Zé Diabo, as
entidades gostam de “passear”, de estar, de residir e, ao mesmo tempo, de ser.
Esses locais, no entanto, não se limitam ao espaço da “mata”, e encontram-se no
próprio espaço da cidade – presentes, por exemplo, em igrejas, ruas, encruzilhadas, becos,
pedras, montes e lagos específicos. Nina Rodrigues, por exemplo, já falava, no final do século
XIX, da existência de uma “Pedra de Ogum” em Salvador, local tido como sagrado e
carregado da força deste orixá, onde as pessoas iam depositar suas oferendas (1900:43).
Roger Bastide (1958:82), do mesmo modo, também falava sobre alguns “lugares
privilegiados, como o Dique, Montserrat, a praia do rio Vermelho etc.”.
A cidade, desse modo, parece ser toda cartografada a partir das suas distintas forças e
intensidades. Algumas encruzilhadas são mais “perigosas” do que outras, pois carregam a
força de Exu de modo mais intenso (ainda que toda encruzilhada possa ser morada de exus),
assim como alguns becos, lagos, praias, estradas. Há certos locais em Salvador conhecidos
por serem pontos de despacho de ebós e feitiços, como o próprio dique, a estrada de São
Lázaro, o Montserrat etc. Não é raro, ao passar por estes locais, cruzar com velas, alguidares e

125
oferendas deixadas nas margens da pista – pontos que, segundo os mais precavidos, é sempre
bom evitar cruzar86. Quem passeia pela cidade vira e mexe também encontra algumas árvores
envoltas em um pano branco, chamado ojá87, o que indica a força do orixá presente naquela
árvore, provavelmente fruto de alguma ação ritual.
A Feira de São Joaquim, mercado tradicional de artigos religiosos, também é vista
pelos adeptos como um ambiente carregado de forças, onde uma série de energias são
movimentadas e mobilizadas cotidianamente – local ideal para comprar os animais, as contas,
cadeiras ou roupas de santo. No entanto, para além dos mercados religiosos, a cidade oferece
outros locais para buscar certos ingredientes, otás, folhas, terras, sementes. Assim, por
exemplo, as ruas do pelourinho, formadas por suas pedras em paralelepípedo, são propícias
para encontrar otás para exus – pois, como diria Zé Diabo, aquelas pedras carregam toda a
história da África no Brasil. Além disso, folhas e sementes de árvores específicas na cidade
também são exploradas, como os diversos pés de Iroko plantados em volta do Dique do
Tororó, ou as árvores da região da Mata Escura, dentre outros. As águas também possuem
seus locais específicos de busca, como rios específicos, praias ou águas benzidas em
determinadas igrejas, como a do Senhor do Bonfim, a igreja de São Lázaro ou a de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos. Essas igrejas, assim como a Igreja da Conceição da Praia, ou
a igreja de São José, são também lugares muito frequentados pelo povo de santo, e fazem
parte do próprio circuito de iniciação no candomblé: durante o ritual de iniciação, a inicianda
deve realizar uma procissão por três igrejas distintas (em geral as três primeiras), assistindo
uma missa em cada uma delas. Além disso, um dos ebós necessários para a concretização da
iniciação de uma iaô é chamado de “ebó de igreja”, e consiste, dentre outras coisas, em
assistir a uma missa e, no final, distribuir pães na porta da igreja. Grandes estabelecimentos
comerciais (shopping centers), cemitérios ou feiras também são lugares privilegiados para
buscar certos elementos, como poeiras, terras ou demais ingredientes. Cada elemento da
cidade territorializa uma força específica que, em composição com outras forças, aumenta a
força do ritual.
Os terreiros, nesse sentido, servem como ponto de localização e concentração de
forças. Não é raro, por exemplo, ver adeptos do candomblé se localizando na cidade a partir

86
Reza a lenda que o serviço de recolhimento de lixo da prefeitura da cidade seleciona pessoas específicas
(preparadas ritualmente) para recolher estes ebós e feitiços das ruas.
87
O ojá, amarrado no dorso, também é utilizado como vestimenta pelas mulheres iniciadas sempre que estas
estão dentro de um terreiro de candomblé.

126
dos terreiros de candomblé. Zé Diabo, por exemplo, traça toda uma cartografia da cidade
através de seus distintos terreiros: “fulano mora perto da casa branca”, “aquele lugar fica
próximo ao terreiro de sicrano”, e assim por diante... Os espaços na cidade vão se
territorializando à medida que as distintas forças que povoam o mundo vão sendo compostas e
manipuladas.
O fluxo temporal também é importante para composição dessas forças. Bastide foi
preciso a esse respeito, ao dizer que:

“Se o espaço dos candomblés nos conduz, assim, a uma geografia religiosa, do mesmo
modo o estudo do tempo nos leva ao calendário das festas. Cada mês, cada dia e talvez cada
hora tem suas qualidades específicas, suas virtudes especiais, que os distinguem, separando
os momentos e impedindo-os de se confundirem na impessoalidade, na homogeneidade do
calendário dos astrônomos” (1958:89).

Assim, datas específicas são mais propícias para certos tipos de trabalho. O período entre o
carnaval e a semana santa – conhecido como quaresma – é, por exemplo, um momento
propício para se trabalhar com exus e eguns, pois, nesse período, como me disseram, os orixás
“voltam para África”, se distanciando do plano terrestre, que passa a ser ocupado por essas
outras entidades, sendo portanto um momento favorável à prática da feitiçaria. A maioria dos
terreiros em Salvador não abrem suas portas durante esse período, limitando-se a fazer
pequenos trabalhos emergenciais.
Há também determinados meses nos quais algumas forças estão mais intensas do que
outras. Assim, para se assentar entidades ou fazer determinados trabalhos é preciso dialogar
com as próprias variações temporais das forças. Certa vez, uma mãe de santo surgiu na
oficina de Zé Diabo querendo plantar Intoto (o axé da casa) no mês de abril. Zé prontamente
sugeriu que ela mudasse a data, alegando que, se ela o fizesse naquele mês, o assentamento
sairia “fraco”: “Plantar Intoto e Egum em abril não dá. Onde já se viu? Porque abril é
Oxóssi, então não tem força suficiente pra esses orixás. Mas aí se plantar em junho ou
janeiro, aí sim você vê a força lá, porque é mês deles”, disse ele. Sempre que Zé vai fazer
algum ritual, ele também observa o calendário lunar, pois, igualmente, as fases da lua são
fundamentais para ativar determinadas forças: não se assentam alguns orixás em lua nova ou
minguante, assim como os exus são assentados preferencialmente na transição da lua cheia.
Para além disso, há as chamadas horas grandes: meio dia, meia noite, seis da manhã e seis da
tarde. Nestes horários deve-se evitar sair na rua e não se pode realizar trabalhos para os orixás

127
– a não ser que o intuito do trabalho seja outro, como a feitiçaria (cf. Barbosa Neto 2012:335-
336).
Durante o período que acompanhei as andanças de Zé Diabo pela oficina e por
diversos terreiros de candomblé, pude escutar diversas conversas sobre onde encontrar
determinados “fundamentos”, ou sobre como compor com elementos de modo que os rituais
ganhem maior força. Cada nação, casa e, no limite, cada adepto traça sua própria cartografia a
partir das forças que se territorializam no mundo, montando circuitos específicos para ebós,
despachos, limpezas ou feitiços, que envolvem feiras, praias, lagos, becos, encruzilhadas,
cemitérios, igrejas, ou, ainda, meses, fases da lua, dias e horas específicas. São essa série de
circunstâncias, seres e elementos – materiais e espirituais – que farão com que as “coisas” no
candomblé ganhem cada vez mais força.

AS  COISAS  E  SUAS  TRANSFORMAÇÕES  

A relação entre deuses e humanos passa, em grande parte, pela mediação das coisas:
de alimentos, do sangue, dos ferros, das pedras, das folhas... São por meio delas, e de suas
composições heterogêneas, que a força do orixá se faz presente no mundo. E é por meio delas,
também, que essas forças são movimentadas, fazendo e desfazendo formas, casas,
assentamentos e, no limite, a própria vida. Claro que há planos “invisíveis” nessas religiões –
habitados por orixás, caboclos, exus, erês, eguns e demais ‘espíritos’. O interessante, no
entanto, é que é por meio da manipulação ritual – de coisas à princípio muito “terrestres” –
que esses planos são mobilizados, e que, reciprocamente, agem diretamente sobre o mundo.
Material e espiritual, assim, estão completamente imbricados e, no limite, chegam a se
confundir. Isso porque essa força, o axé, atravessa esses distintos planos, constituindo deuses,
pessoas e coisas. Aos humanos cabe, portanto, canalizar essas forças, direcionando os fluxos a
fim de que o mundo possa lhes ser favorável. E essa mediação – que envolve sobretudo uma
habilidade ritual – é feita por meio de coisas, canalizando, nelas, forças específicas dos orixás.
Assim, colares, pedras, instrumentos musicais, árvores, assentamentos, quartos, casas
ou mesmo territórios e, também, as próprias pessoas e seus oris, são todos feitos, preparados
ritualmente e compostos por uma série de forças distintas. E, como tudo que é feito, essas

128
distintas “coisas”, para se manterem “vivas”, devem passar a comer constantemente,
renovando e mantendo em equilíbrio as forças que os compuseram.
No entanto, se o mundo do candomblé é povoado de “coisas”, essas coisas são
atravessadas por distintas intensidades de axé, e, portanto, existem em diferentes modos de
existência, conformando variados graus de participação. Algumas coisas, ao serem feitas – ou
seja, ao entrarem em participação direta com os orixás por meio da manipulação ritual – se
tornam a própria expressão material (e ao mesmo tempo a morada) dos deuses no mundo:
assentamentos, otás, ferramentas de santo, árvores, o chão do terreiro e o próprio humano,
que é feito em seu orixá no processo de iniciação. Outras coisas, por sua vez, são feitas (ou
preparadas) para serem um canal de mediação importante entre os deuses e os homens. É o
caso, por exemplo, dos colares de contas, que são ritualmente preparados para serem
mediadores entre a pessoa e seu orixá e, ao mesmo tempo, são uma parte do orixá que a
pessoa leva em seu pescoço88 (cf. Bastide 1953). Os instrumentos musicais, responsáveis por
chamar as divindades para a terra, como os atabaques (o rum, o rumpi, e o lé), os agogôs ou
os kalacorôs, também realizam essa mediação, uma vez que eles também são ritualmente
preparados e recebem obrigações anuais, com sangue animal, que renovam suas ligações com
os deuses. O mesmo se pode dizer, ainda, para as cadeiras – como a cadeira da mãe-de-santo e
as cadeiras dos ogãs, por exemplo –, ou ainda para uma série de outras coisas, como artefatos
de barro, palha, madeira ou metal; ou mesmo os animais, que entram em participação com os
deuses para mediar sua relação com os humanos. Todas essas coisas, ao serem preparadas
(seja com o amassi, seja com o sangue ritual), tomam parte ativa nessa relação.
Há também certas coisas que funcionam como veículos transmissores de axé, sendo
essenciais para canalizar e potencializar as forças, compondo assim as distintas feituras.
Destes, o sangue, como vimos, é o principal deles, mas existem também as folhas, os
minerais, a água, o álcool, o mel, o sal, o azeite de dendê, o sabão da costa, a saliva, a
manteiga de karité (também chamada de ori), dentre outras substâncias que visam transmitir o
axé para outros corpos, humanos ou não. Ainda neste ‘grupo’, há os diversos alimentos que
visam mediar a relação pessoa-orixá, alimentando os deuses e transmitindo o axé, como, por
exemplo, o milho branco, os feijões preto, marrom, branco, fradinho, o camarão, o milho
vermelho, a abóbora, o tabaco, o quiabo, a banana, o coco, o inhame, dentre vários outros,
sem contar o erã (carne) e o inxé (vísceras) dos animais. Esses alimentos devem ser

88
Uma parte que, como lembra Flaksman (2014:83), é ao mesmo tempo a totalidade do orixá.

129
cuidadosamente preparados por pessoas específicas e se tornam, assim, “comidas de santo”: o
amalá de Xangô, o abadô de Omolu, o axoxô de Oxóssi, o padê de Exu, o acarajé de Iansã,
o omolocum de Oxum, o ebô de Oxalá e assim por diante... Essas comidas, como vimos, além
de servirem de alimento para os deuses e poderem ser utilizados em ebós e oferendas,
alimentam os próprios humanos, que compartilham com os deuses do axé de cada alimento.
Se tudo no candomblé é feito, algumas coisas, no entanto, já “nascem feitas” ou
preparadas, como é caso, por exemplo, dos chamados abikus, crianças que já nasceram feitas;
ou mesmo dos caboclos, que, como dizem, “não tem pai nem mãe”; ou, ainda, o caso de
algumas pedras (otás), locais, artefatos ou árvores, em especial os pés de Iroko89 – como me
disse certa vez Zé Diabo, todo pé de Iroko já é o orixá, independente dele estar com um ojá
(pano ritual que envolve as árvores) ou não. Nesses casos, a intensidade de axé que cada
elemento carrega é tão grande que ele já nasce feito. Isso não isenta, porém, o trabalho ritual,
que será então o de preparar, arrumar ou batizar essas coisas para que se possa manipulá-las.
No fundo, tudo o que constitui o mundo (e que é, portanto, matéria dos orixás) pode
potencialmente vir a ser atualizado, canalizado e modulado com a força do orixá; ou seja,
pode vir a ser feito, preparado ou, ainda, transmitir axé. Isso porque cada coisa, mesmo antes
de ser feita, já carrega consigo, ainda que potencialmente, a energia do orixá. Algumas
pessoas, por exemplo, não precisam ser feitas, pois não possuem caminho para o orixá (ainda
que possuam enredo). Ainda assim, esse caminho pode mudar e, potencialmente, ela pode
necessitar da feitura. O mesmo se pode dizer em relação à pedras, árvores, estatuetas e até
mesmo territórios. Atualizar ou não essa força do orixá (em estado virtual), é sempre uma
possibilidade em aberto – pois, no fundo, o mundo do candomblé é um mundo imprevisível,
aberto à referências as mais diversas.
É claro que essa breve lista que trouxemos está longe de ser exaustiva ou fixa, pois
uma e outra coisa, como veremos, podem atravessar distintos modos de existência, e, no
limite, tudo pode ser tanto uma coisa quanto outra (serem os orixás, serem suas moradas,
transmitirem axé, e assim por diante). O que nos interessa, portanto, é como essas forças
passam de um estado a outro, constituindo corpos e agindo sobre o mundo através de um
cuidadoso e intermitente trabalho ritual. É isso, em suma, que tentei explorar aqui: ao invés de
se perguntar o que é tal força, trata-se de perguntar o que ela pode, com o quê ela se conecta e
como ela se mantém. Ao invés, portanto, de analisar as formas e funções das coisas, o que

89
Na Bahia, Iroko são as árvores também conhecidas como Gameleira-branca.

130
parece estar em jogo aqui são os materiais e suas forças, e, com isso, seus modos de
composição.
Marcel Mauss (1934) foi o primeiro antropólogo a pensar a técnica não como uma
simples relação instrumental do humano com o mundo “exterior” mas enquanto um processo
ontogênico de seres e coisas, ou seja, um conjunto de relações – simultaneamente lógicas e
históricas – entre seres e coisas (cf. Schlanger 1991, 2005). Essa concepção, embora pouco
difundida no Brasil (como bem o sintetiza Sautchuk 2010), ganhou notoriedade na França
sobretudo a partir dos desdobramentos feitos por um aluno de Mauss, André Leroi-Gourhan.
Segundo Leroi-Gourhan, cada matéria solicita determinados gestos e modos de
relacionamento. Assim, tanto os artefatos (Leroi-Gourhan 1945), quanto os próprios humanos
(1965) não podem ser pensados sem os gestos que os engendram e lhes dão sentido. É como
se cada material carregasse uma espécie de “estória condensada”, como nos diz Ingold
(2007), que deverá ser levada em conta no momento de seu trato. Essas estórias criarão
possibilidades distintas em seu trabalho – affordances, para falarmos como Gibson (1979) – e,
assim, exigirão certos tipos de relação, certos utensílios, certos gestos e modos de fazer.
Um material, vão dizer Deleuze e Guattari (1997:43), a partir de Espinoza, é "um
conjunto de elementos que varia de acordo com suas conexões, suas relações de movimento e
repouso, os diversos agenciamentos individuados onde ele entra". Essa definição cairia bem
ao mundo do candomblé, uma vez que, nele, os materiais não são conhecidos pelo que são,
mas pelo que fazem, ou melhor, pelo que fazem fazer a partir de suas próprias qualidades
materiais e das forças que as percorrem.
Os materiais, assim, não são apenas ‘matérias-primas’, tampouco possuem atributos
‘fixos’ e ‘imutáveis’; antes, são um agregado heterogêneo de forças e fluxos, uma composição
específica, que atua conforme aquilo que o atravessa e com aquilo que se conecta. Se cada
material possui uma força, essa força é sempre relacional: sempre se pode fazer alguma coisa
com ela, conectá-la com outras, criar outras conexões. Basta, para isso – e isso não é pouca
coisa – de uma boa dose de ousadia e savoir-faire, afim de transformar as distintas coisas e
agenciá-las de diferentes maneiras. Cada tecnologia ritual busca abrir essas múltiplas
“passagens”, conectando distintas forças a fim de produzir determinados efeitos. O milho
branco, por exemplo, é o alimento por excelência de Oxalá, e é, por isso, muito utilizado em
ebós que visam “acalmar” a cabeça da pessoa – pois Oxalá, como sabemos, é um orixá ligado
à paz e à tranquilidade – sendo também um alimento sempre presente nas obrigações, em

131
geral o último a ser entregue (Oxalá é o último dos orixás na sequência ritual do xirê). No
entanto, aqueles que sabem “mexer na coisa”, como diria Zé Diabo, podem fazer com que o
milho branco, ao mesmo tempo, se torne um dos elementos mais poderosos para realizar
feitiços. Tudo depende, mais uma vez, da forma como essa força é canalizada, com o que ela
se conecta e como ela é feita90. O mesmo se pode dizer com todos esses outros elementos –
cada coisa possui suas passagens, suas linhas de fuga que permitem transformar seus próprios
modos de existência, alterando seus fluxos e forças.
Para entendermos esses distintos “fazeres” presentes no candomblé, é preciso
percorrermos o modo como as distintas forças parecem se arranjar: como lidar com universo
que já parece de antemão pleno?
***
Marcio Goldman (2009), em um texto mais que inspirador para as discussões aqui
propostas, vai nos relatar sobre a feitura de uma estatueta de Exu (de 15cm, feita de ferro e
extremamente fálica) que ele havia comprado em um mercado de artigos religiosos. Passados
alguns anos após comprar a estatueta – que, até então, ocupava um lugar na sala de seu
apartamento – ele resolveu “prepará-lo”, tendo então que conceder-lhe um lugar dentro do
terreiro no qual estava envolvido em sua pesquisa (Matamba Tobenci Neto, em Ilhéus). Ao
prepará-lo, ele teria agora que alimentá-lo periodicamente, oferecendo-o diversas oferendas
como cachaça, azeite, mel e sangue animal. Assim, lembra o autor, o Exu estava se
transformando em algo muito diferente do que fora até então: de uma estatueta ornamental de
Exu, ele havia ganhado o seu Exu (protetor).
Arnaud Halloy (2013), ao pesquisar os assentamentos no culto de Xangô em Recife,
vai tratar esse processo enquanto um processo de transformação ontológica, ou o que ele
chama de “ontological hybridisation process”. A primeira etapa desta dinâmica ontológica
dos objetos é aquela na qual um objeto natural ou artefato é transformado em um “objeto-
deus”, isto é, um objeto material que é uma divindade, ou ao menos parte de sua atualização
material. A segunda etapa, por sua vez, é aquela que conecta os objetos aos corpos, ou seja,
que transforma o “objeto-deus” em um “objeto-corpo” (object-god/ object-body), tornando-se
um objeto pessoal fruto da relação triádica entre objeto, deuses e corpos. Transformado em
90
Barbosa Neto (2012), em sua tese de doutorado, narra por exemplo um feitiço chamado “a mão virada de
Oxalá, que, ao inverter as ordens de um ritual para Oxalá, visa produzir o efeito contrário a este. Talvez sua
etnografia, junto com a bela etnografia de Carmem Opipari (2009), estejam entre os melhores relatos dessas
distintas manipulações rituais presentes nas religiões de matriz-africana no Brasil – religiões que, como o autor
vai dizer, existem “nos detalhes”.

132
um “objeto-corpo”, orixá-assentamento-pessoa tornam-se um bloco indissociável,
singularizado e personificado (o meu orixá).
Ainda que esse percurso proposto por Halloy seja interessante para pensar as distintas
transformações pelas quais as coisas passam no candomblé, algo da história contada por
Goldman ainda permanece. De um simples pedaço de ferro icônico, a estatueta converteu-se
numa divindade particular. Porém, pergunta Goldman, será que foi somente isso que
aconteceu? Ou seja, será que desde o início já não havia algo – além de ferro – na estatueta,
uma vida que deveria entrelaçar-se à dele? Como ele mesmo vai dizer, “tudo se passa então
como se a ‘preparação’ do exu libertasse alguma coisa nele já contida” (2009, p.126).
Roger Bastide, ao falar sobre o ”princípio de participação”, vai elencar duas condições
básicas para que a participação ocorra. A primeira delas, diz ele (1983 [1953]:367), é que “a
participação só pode existir entre coisas ligadas de antemão entre si, por pertencerem a uma
mesma categoria de realidade, a um mesmo plano do cosmo, a um mesmo registro mítico”.
Assim, resume o autor:

A corrente das forças unificadores não pode passar entre, por exemplo, uma pedra de
Xangô, uma planta de Oxóssi e um filho de Oxum. A participação não se opera em
qualquer direção, é orientada, segue linhas, e o que chamamos de religião é o conjunto
dessas representações coletivas ou dos ritos que designam as linhas de forças dentro das
quais ela se pode processar. (Bastide 1958:256)

A segunda característica da participação, segundo Bastide, é que, para que ela ocorra,
é necessário que ela seja manipulada, ou seja, que um certo número de regras determinadas
sejam obedecidas (1953:369). Desse modo, diz Bastide, “a participação deve ser definida
menos como uma categoria de pensamento do que como uma categoria de ação”91 (Bastide
1958:256). A preparação de um objeto é, assim, um processo de manipulação, bastante
material. Como nos diz Roger Sansi, sobre a feitura do santo:

‘Making the saint’ is a very concrete, material process: it is not exactly a religious
revelation or conversion, nor a schooling of the myths, songs and prayers, but it is
essentially about learning to deal with the ‘saint’, understand its requirements, and fulfil
them satisfactorily. (2005, p.141).

Retomando e ampliando a noção de “participação” presente na obra de Bastide,


Goldman vai dizer que o candomblé possui aquilo que ele chama de um “monismo de base”,
91
Fernanda Peixoto (2000:108), ao comentar esta passagem, nota que “Bastide toma de empréstimo a noção de
participação tal como desenhada por Lévy-Bruhl mas retira-a do plano da ideação. Menos que elemento
definidor de uma mentalidade, a participação é uma espécie de operador que orienta a ação”

133
uma força (axé) “que constitui tudo o que existe e pode existir no universo, através de um
processo de diferenciação e individuação, sobre variados graus de participação” (2009:123).
Essa força, segundo o autor, existiria em excesso, em um plano “virtual” que seria
“atualizado” através da manipulação ritual. Assim, cada ser se constituiria como “uma espécie
de cristalização ou molarização resultante de um movimento do axé que, de força geral e
homogênea, se diversifica e se concretiza ininterruptamente” (Goldman, 2005, p.109). Não se
trata de representações, propriedades ou controles dessas forças sobre as coisas; são, antes,
fluxos de agenciamento que são atualizados em diferentes níveis. Para dar conta desse tipo de
relação, o autor aciona o conceito de devir, tal qual formulado por Deleuze e Guattari,
tratando-o não como uma analogia, identidade ou imitação, mas enquanto uma composição
Goldman, radicaliza o princípio de participação de Bastide – através da díade
virtual/atual proposta por Gilles Deleuze – para ressaltar a própria manipulação, ou
atualização de forças no mundo92. Assim, se o candomblé, como pensa Bastide, opera por
meio de uma série de classificações de seres e coisas (segundo suas cores, formas,
circunstâncias, etc.), essas classificações, ou “princípios de corte”, servem menos para limitar
a ação do que servir como um “guia” dela:

O mais importante, assim, não seria o fato de que as manipulações sejam feitas de acordo
com as classes ou as participações, mas as manipulações em si mesmas. O que significa,
em suma, que as ações de classificar e participar talvez sejam mais importantes que as
classes e participações em si mesmas, e que estas talvez sirvam apenas, no final das contas,
para serem ultrapassadas – funcionando, então, mais ou menos como pontos de apoio ou
trampolins para a ação e a criação. (Goldman 2005:118)

Não se trata, portanto, somente de pensar as organizações e classificações do cosmo


segundo os orixás (como por vezes parece supor Bastide), mas de seguir as diversas
composições que os materiais fazem uns com os outros e com as forças que os permeiam.
Trata-se, em suma, de pensar menos as “funções orgânicas” e mais o “funcionamento
maquínico” de cada material (Deleuze & Guattari 1997a). Menos as formas e mais as forças e
seus modos de composição.
***
A partir dessa perspectiva ‘ontogênica’, podemos voltar à oficina de Zé Diabo para
pensar nos processos transformativos pelos quais o ferro pode passar. Todo ferro, como já

92
Como diz Deleuze (1996:51), é na relação necessária entre os planos virtual e atual que o plano de imanência
se localiza. É preciso, portanto, pensar nos termos (atual/virtual), mas na relação entre eles – relação que, no
caso do candomblé, é de manipulação.

134
vimos, contém a força de Ogum; entretanto, há alguns ferros que são mais “vivos” do que
outros, como os ferros de ferroviais, de embarcações marítimas, pedaços de automóveis ou de
construções antigas e ferros-velhos. Quando transformados pelo ferreiro, através de uma série
de dobras, rupturas, transformações e gestos, o ferro passa a ocupar um estatuto ontológico
bem particular: de um pedaço de ferro, o material se transforma em uma ferramenta
trabalhada por alguém que tem a “mão de axé”. Com isso, o artefato passa a carregar o Jabá
de Ogum, um intensidade da força do orixá que é atualizada na própria matéria e fará com que
o ferro fique “mais forte”, com mais axé.
Esse axé, portanto, é atualizado na medida em que o próprio jabá se faz: no martelar
do ferro na bigorna, na serra, no fogo, na solda... O jabá de Ogum, nesse sentido, compõe um
território existencial (ferramenta-orixá) materializado nos ferros que ele transforma. Essa
transformação, como vimos, é feita através de uma sinergia de ritmos, que compõem e
“dobram” os ferros. É através do ritmo de cada material que os gestos são encadeados, que as
energias são trabalhadas, que o fogo é agenciado para tornar o ferro maleável, e assim por
diante... A ritmicidade cria a diferença, imprimindo no ferro os fazeres do orixá.
O ritmo, nesse sentido, denota a própria transformação realizada pelo tempo: o tempo
do fogo, da forja, da solda, do martelo – são esses tempos que imprimem os ritmos
necessários para criar os artefatos. Como me disse Zé Diabo certa vez: “Quem manda aqui é o
tempo, não as horas”. Mas o tempo por vezes também pode ser o próprio ferreiro, sendo
responsável por enferrujar o ferro, transformando-o em bruto, cru, tornando-o, assim, mais
forte. Se é o tempo que enferruja as ferramentas, é o tempo também que apodrece os
alimentos, fazendo com que os orixás “comam”. E é o tempo, também, que amadurece as
pessoas e suas relações com os deuses (pois “quem tem pressa chega no cemitério cedo”,
gosta de dizer Zé Diabo). O Tempo, no candomblé, também é um orixá93 (ou inquice, como
se diz na nação Angola) – talvez um dos mais misteriosos que existam. Senhor do tempo e das
estações, é o orixá das transformações, do movimento. O tempo, nesse sentido, transforma
tudo, fazendo com que as “coisas” atravessem diferentes modos de existência.
Depois de sair da oficina, a ferramenta é encaminhada para um terreiro de candomblé,
onde, em composição com o otá e com diversos outros elementos, passará a compor o
assentamento do santo, um conjunto heterogêneo de coisas que, compostas e trabalhadas
ritualmente, passam a ser o próprio orixá materializado e, ao mesmo tempo, um fundamental

93
No candomblé Ketu, ele é aproximado ao orixá Iroko.

135
mediador na relação entre o orixá e seu filho humano (e, consequentemente, na relação entre
este bloco e todo o terreiro). Essa composição, como vimos até aqui, é feita por camadas, por
um agregado heterogêneo de distintos materiais, cada qual com sua própria força, que é
composta e individuada no assentamento através de distintos rituais. É nesse sentido que a
força que a ferramenta carrega será então fundamental para aumentar a própria força do
assentamento, um bloco pessoa-orixá que se faz na medida em que são compostas as relações
materiais do arranjo.
Um vez feito, através dessa composição, o assentamento é alimentado com o sangue
sacrificial que ativará e renovará seu axé, num ritual que deverá ser renovado constantemente.
Além disso, o assentamento passa a demandar um cuidado cotidiano e permanente, devendo
ser lavado com folhas específicas, libado com distintas substâncias como azeite, dendê ou
mel, além de exigir velas, pedidos e uma série de outras trocas que estreitarão a relação entre
a pessoa e seu orixá. À medida que essas trocas vão se estreitando, o assentamento cresce
(literalmente, pois composto por camadas verticais de materiais diversos) junto com o
desenvolvimento espiritual da própria pessoa e de seu orixá.
Durante esse processo, o assentamento – a ferramenta, o otá, os vasos de barro e os
diversos ingredientes que o compõem – sofrerá diversas transformações: além de “crescer”
junto com a pessoa, agregando novos elementos à sua composição, ele também pode se
desgastar: os ferros podem se corroer, as pedras podem escurecer, os vasos podem se romper,
e assim por diante. Esse desgaste é fruto das próprias manipulações rituais, das libações de
sangue, azeite, mel, da maresia ou da própria ação do tempo. Pode acontecer, em alguns raros
casos, algum acidente ou, ainda, uma manipulação maliciosa de outra pessoa, que pode, como
vimos, retirar ou acrescentar elementos ao assentamento, interferindo diretamente na vida da
pessoa que o possui. Assim, para que um assentamento se mantenha “vivo”, é preciso uma
manipulação incessante, que visa “equilibrar” – um equilíbrio sempre instável, como vimos –
as forças que o compõem e, logo, as forças das pessoas e seus orixás.
Nesse processo, portanto, as coisas vão atravessar diferentes modos de existência –
modos estes que possuem certa temporalidade e transformabilidade: as forças transformam-se
fazem-se e desfazem-se, aumentam ou subtraem suas existências. Se utilizamos aqui o
exemplo do ferro e dos assentamento, o mesmo, no entanto, poderia ser dito para outras
“coisas”, como pedras, árvores, pessoas ou até mesmo deuses. Trata-se, se quisermos, de uma
espécie de “travessia ontológica”, como notou Holbraad (2012) para o caso da divinação afro-

136
cubana: é como se tudo no candomblé atravessasse distintos territórios existenciais, que se
constituem através da modulação e da composição de forças, em um engajamento contínuo de
pessoas, deuses e coisas.

BREVE  REFLEXÃO  SOBRE  O  FAZER  NO  CANDOMBLÉ  

“O candomblé é uma religião da mão”. Foi com essa frase que uma mãe-de-santo do
Rio de Janeiro definiu o candomblé para o antropólogo Paul Johnson (2002:35). De fato, ela
nos revela uma característica fundamental das religiões de matriz africana: o fato de que,
como escrevem Anjos e Oro (2009:80), “fazer é o verbo mais importante desse regime afro-
brasileiro de existência”. Uma religião da mão ou, como diria Barbosa Neto, uma “religião de
artífices”, onde ‘colocar a mão’ em algo é fazê-lo, participar de sua composição.
Diversos autores já chamaram a atenção para esse caráter quase ‘artesanal’ das
religiões de matriz africana. Nina Rodrigues, em 1900, já falava de toda uma “ciência”, uma
“perícia” necessária por parte dos sacerdotes para a condução dos rituais. Roger Bastide, por
sua vez, caracterizava o candomblé enquanto um “saber fazer”, ou seja, mais como uma
categoria da ação do que do pensamento (1958:256). O próprio Johnson (2002:12), ao refletir
sobre a explicação dada pela mãe-de-santo, vai falar que o candomblé é mais uma religião de
práticas do que de doutrinas.
Mas, afinal, do que se tratam essas práticas? Edgar Barbosa Neto, em sua tese de
doutorado, sintetiza o argumento ao dizer que “o aspecto propriamente artesanal, ou artístico,
dessas religiões consiste em saber usar todas essas forças para fazer e desfazer formas, como,
por exemplo, casas, corpos e, no limite, a própria vida” (Barbosa Neto 2012:265). Juana
Elbein dos Santos (1977:33), de modo semelhante, disse que o propósito mais geral dos ritos
no candomblé é assegurar que o axé seja “liberado, canalizado, fixado temporariamente e
transmitido a todos os seres e objetos”.
No decorrer deste trabalho, vimos como a mão – e os gestos que ela engendra – é
fundamental para esse processo de feitura e composição de forças. Colocar a mão, tirar a
mão, trocar a mão ou, ainda, virar a mão são todas manipulações rituais – bastante práticas –
que visam compor, canalizar, modular e transformar as forças que atravessam pessoas, coisas

137
e deuses. É ainda, por exemplo, a mão de axé de Zé Diabo que permite que um ferro, ao ser
transformado em sua oficina, saia de lá com o Jabá de Ogum, ou, para citarmos outro
exemplo, é a mão de faca que dá caminho ao ogã para que ele se torne axogun, responsável
pelos rituais de corte. A mão, portanto, parece assumir um lugar central nessa composição de
forças: coloca-la é, com isso, deixar um pouco de si nos seres e coisas.
Mas como se dão essas distintas manipulações? Minha hipótese – que perpassou todo
este trabalho e que, a esse momento, já deve estar bastante óbvia – é que o candomblé nos
oferece uma noção de fazer bastante distinta da noção ocidental; ou seja, que não pensa o
fazer enquanto um ato de criação ex-nihilo, separando de antemão a forma da matéria, o ser
do devir. Antes, no candomblé, o fazer deve ser pensado menos enquanto uma criação e mais
como um processo de composição e individuação de uma série de forças que, no entanto, já
existem em excesso no mundo.
***
Essa ideia, como já vimos, está brilhantemente exposta e trabalhada em um dos textos
de Marcio Goldman (2009). A partir do fato de que o axé pode ser pensado como uma força
que atravessa tudo o que existe e pode existir no universo, segundo diferentes modulações,
diferenciações e individuações, o autor vai dizer que o que candomblé nos propõe é uma
“teoria alternativa do processo de criação”, que se assemelharia menos à concepção ocidental
do fazer artístico da pintura – um fazer que, como notou Leonardo da Vinci, opera per via di
porre, criando na tela coisas que antes não existiam – e mais ao processo do fazer na escultura
– que funcionaria, ao contrário, per via di levare; ou seja, é sobretudo um processo de
subtração (o que não implica em redução de potência), ou melhor, de lapidação, de
atualização de virtualidades que, no entanto, já existiam enquanto realidades (ibid.:128-129).
Com o intuito de explicitar melhor como se desenrola esse processo, um dos exemplos
que Goldman vai trazer à tona é uma teoria elaborada por Jaco, um artista plástico de Ilhéus
ligado ao terreiro Matamba Tombenci Neto, onde o autor realizou seu trabalho de campo. Jaco
elabora móveis rústicos de madeira através de um processo criativo bem específico, como
conta Goldman:

Ele explica que, no começo, tem apenas uma vaga ideia do que deseja fazer. Já que não
utiliza madeira industrial nem derruba árvores, começa então a procurar na mata aquilo de
que precisa, recolhendo cada pedaço que imagina poder servir. Com o tempo, esses pedaços
vão-se encaixando por meio de um diálogo estabelecido pelo artista com a matéria que deve
trabalhar. Trata-se, diz Jaco, de descobrir, na madeira, a forma que o seu estado actual
oculta e que ele lhe deve devolver. (Goldman 2009:128).

138
É a partir desse modelo que Goldman vai pensar a ontologia do candomblé: é comose
tudo existisse em “excesso”, em estado virtual, e o papel do sacerdote é então o de “lapidar”,
em pessoas e coisas, esse excesso de existência, tornando suas forças mais ‘controláveis’ e
‘evidentes’. O processo de “feitura”, desse modo, é mais um processo de subtração e
descobrimento do que de adição ou revelação. A partir desse modelo de criação proposto por
Goldman, através do trabalho com madeira elaborado por Jaco 94 , proponho, para
finalizarmos, retornar à fabricação das ferramentas de santo para refletirmos como esse
processo pode nos trazer algumas novas ideias sobre o fazer no candomblé.
Marianno Carneiro da Cunha (1988), ao falar sobre a produção de artefatos nas
religiões afro-brasileiras e suas relações com as técnicas tradicionais africanas, vai notar que
os padrões técnicos na produção de ferramentas de santo em ferro seguem padrões
semelhantes à produção das estatuárias africanas feitas em madeira. Assim, diz o autor
(:1088), a estatuária contemporânea de Exu, feita em ferro, parece ser uma espécie de
“desdobramento plástico” das tradicionais esculturas africanas de Exu, feitas em madeira.
Ainda que essa análise feita pelo autor seja fundamental para pensarmos nas relações de
continuidade existentes entre os processos técnicos utilizados na madeira e no ferro, acredito
que o trabalho com o ferro nos traz algumas particularidades que talvez sejam importantes
explorar. Isso porque, se as demais técnicas tradicionais africanas operavam por adição, como
no caso do trabalho com a argila, ou subtração, como no caso da madeira, a forja parece
operar através de um processo que não é nem tanto uma coisa nem outra; ou seja, ela não
opera nem por adição, nem por subtração, mas sobretudo através de dobras, transformações e
modulações do ferro. Vejamos como isso se dá na oficina de Zé Diabo:
Como vimos no primeiro capítulo, a ferramenta de santo é produzida através de um
diálogo sinergético entre o ferreiro, a matéria (o ferro), e as forças que a percorrem (os
deuses). Esse diálogo se dá através dos gestos que o ferreiro, em consonância com todo o
ambiente que o envolve, executa sobre o metal.

94
Cecília Mello, em seus trabalhos sobre os movimentos culturais do extremo sul da Bahia (2003; 2010), vai
fornecer uma descrição detalhada da técnica artística de Jaco e seus irmãos, que consiste no reaproveitamento da
madeiras mortas através de uma espécie de “revelação”, estabelecida por meio do diálogo com os materiais –
técnica que Mello aproxima da ideia de bricolagem de Lévi-Strauss, onde “o bricoleur não fala apenas com as
coisas, mas através das coisas: narrando, através das escolhas que faz entre possíveis limitados, o caráter e a vida
se seu autor. Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si” (Lévi-Strauss
1962:38). Essa técnica é usada por Mello (2003) como uma analogia da própria ideia, elaborada pela autora e
presente no seu campo, de “afroindígena”, uma relação entre “afros” e “indígenas” que não é da ordem da
justaposição, fusão ou similitude, mas que conecta ambos mantendo-os em suas diferenças – ou seja, é da ordem
do devir.

139
Durante o tempo que passei com Zé Diabo em sua oficina, me arrisquei a tentar
aprender um pouco sobre esse processo prático com os metais. No princípio, apesar das
minhas insistências, passei alguns meses limitado a ajudar Zé nas atividades “periféricas” das
oficina, como pegar as ferramentas que ele precisava, comprar carvão, jogar no bicho ou
cortar e lixar alguns materiais. Ele se recusava a me deixar ir para o fogo, alegando que ele
era muito perigoso e que eu ainda não estava preparado, ou seja, nem o meu corpo nem o
meu ori estavam minimamente aprontados para a atividade. Foi somente no fim do meu
primeiro período de campo, após uma série de insistências e imprevistos, que Zé finalmente
permitiu que eu forjasse, com sua ajuda, meu primeiro Exu. Foi nessa experiência prática,
carregada de mal-entendidos e incapacidades, que pude perceber (porque corporalmente) todo
esse diálogo com a série de coisas e seres que permeavam o trabalho da ferramentaria. Foi
durante essa experiência que Zé Diabo me explicou:

“É assim ó, é só você ir compassado, conversando com o ferro também. Se ele quer


virar pra cá, então você ajeita, mas ajeita seguro e faz ele virar pro outro lado. Vai
ajeitando com a tenaz e apoiando na bigorna, que aí ele vai seguindo pra onde você
quiser. Se não respeitar isso, não adianta o tamanho da porrada, que vai só deixar o
ferro todo torto [...] Aqui é prática, não adianta. São anos pegando no ferro,
dobrando eles. Aí com um tempo a gente vai se acostumando, e o ferro acostuma com
nossa porrada também. Mas daí vai tempo e paciência pra ficar aqui, ralando no
fogo”.

Forjar uma ferramenta, assim, exigia um diálogo específico com o ferro e as energias
que nele habitam: era preciso, através dos gestos, ir “compassando, conversando com o
ferro”, para, assim, conseguir fazer com que o ferro “siga para onde você quiser”. O ferro, a
princípio, resiste às pancadas e à manipulação; para transformá-lo, é preciso prática, se
“acostumar” com o ferro, criar uma relação específica com ele.
As “porradas” deveriam ser mais sentidas que pensadas, pois se davam no curto
momento em que o ferro, sólido, se tornava um semi-plástico. Aquele momento era único e
muito vezes irreversível. Ali, era preciso não somente “agir” sobre o metal, mas
principalmente seguir suas próprias linhas de variação, interagindo com o martelo, a bigorna,
a tenaz, o fogo, o carvão, o vento e mais uma série de forças. Para lidar com esse momento –
conseguir seguir as linhas do metal, interagir com o fogo, incorporar a tenaz e o martelo,
sentir os desejos do orixá pulsando no ferro e etc. – era preciso uma espécie de “memória
corporal”, ou memória dos gestos que permitissem atender as demandas das coisas com as

140
quais se está correspondendo, regendo assim toda o complexo sinergético de ações e
movimentos. É a essa memória que Leroi-Gourhan se refere quando aciona o conceito de
“comportamento operatório”. Trata-se de uma memória – biológica, físico-motora e sensitiva
– que permite que o ferreiro entre numa espécie de “dança gestual” com o conjunto, composta
de ritmos e ressonâncias distintas. Entretanto, para lidar com esta “dança”, é preciso levar em
conta que o próprio ferro carrega uma memória, ou, no nosso caso, uma força. Assim, os
gestos devem acompanhar a própria força do ferro, que oferecerá resistências, limites,
caminhos. Como diz Zé, “O ferro aguenta, não dobra fácil”.
O trabalho de Zé Diabo, portanto, é menos de uma criação do que de uma modulação
entre os distintos elementos, seguindo as linhas de variação produzidas através da interação
entre o fogo, o ferro e os gestos proporcionados pelo martelo. Zé se comporta como um
verdadeiro maestro nesta orquestra arranjada de ritmos, cadências, atividades, movimentos e
energias distintas, improvisando e acionando movimentos no decorrer da atividade produtiva,
seguindo, assim, as próprias linhas do metal.
Deleuze e Guattari, nos Mil Platôs (1997b), mais especificamente no capítulo sobre
Nomadologia, vão tratar da metalurgia, em especial no modo como sua prática foge – no
sentido de linha de fuga mesmo – do reducionismo presente no modelo hilemórfico.
Inspirando-se em autores como Leroi-Gourhan e Simondon, Deleuze e Guattari vão falar que
a metalurgia – visto para eles como uma ciência menor – transborda as oposições entre forma
e matéria: “na metalurgia, as operações não param de situar-se de um lado e de outro dos
limiares, de sorte que uma materialidade energética transborda a matéria preparada, e uma
deformação ou transformação qualitativa transborda a forma” (1997:97). Assim, ao invés de
pensar o fazer enquanto interação entre forma e matéria, os autores vão pensar em termos de
fluxos e forças, de itineração, onde a matéria vaza e o ferreiro, enquanto itinerante, deve lidar
com esses fluxos. Como vai dizer Ingold, “we have here an unbroken, contrapuntal coupling
of a gestural dance with a modulation of the material. Even iron flows, and the smith has to
follow it” (2012b, p.434). A metalurgia, assim, não seria próxima nem da pintura, nem da
escultura, mas principalmente da música:

Jamais a matéria e a forma pareceram mais duras que na metalurgia; e, contudo, é a forma
de um desenvolvimento contínuo que tende a substituir a sucessão das formas, é a matéria
de uma variação contínua que tende a substituir a variabilidade das matérias. Se a
metalurgia está numa relação essencial com a música, não é apenas em virtude dos ruídos
da forja, mas da tendência que atravessa as duas artes, de fazer valer, para além das formas
separadas, um desenvolvimento contínuo da forma, para além das matérias variáveis, uma

141
variação contínua da matéria: um cromatismo ampliado arrasta a um só tempo a música e a
metalurgia; o ferreiro músico é o primeiro "transformador" (Deleuze & Guattari
1997b:100)

Assim, o que a metalurgia – e a ferramentaria de orixás – parece nos oferecer é um conceito


de fazer que escapa tanto ao modelo hilemórfico, que opera separando uma forma pura de
uma matéria inerte, quanto ao monismo substancialista, que pressupõe uma unidade atômica
já constituída. Pelo contrário, na metalurgia as forças e fluxos não param de operar durante o
processo, em variação contínua, num processo que o filósofo Gilbert Simondon (2002) vai
chamar de princípio de individuação.
Para Simondon, tanto o modelo hilemórfico – que separa a forma da matéria – quanto
o monismo substancialista – que pressupõe uma unidade atômica já constituída – partem de
indivíduos já constituídos e dados para pensar sua constituição. Foi tentando escapar à ambas
alternativas, então, que Simondon vai elaborar um modelo que prima pelo processo de
individuação, ou seja, pela ontogênese contínua do ser, ontogênese essa que não está restrita a
sua “criação”, mas que se perpetua em todas as suas fases, desde o ser “pré-individual” até as
constituições (sempre instáveis) dos indivíduos. Essa ontogênese não diz respeito à gênese do
indivíduo mas, antes, ao devir do ser. O ser, para Simondon, exprime seu próprio devir; ou
melhor, ser e devir são uma coisa só (Simondon 2002, p.25). Há, para o autor, uma espécie de
“realidade pré-individual” que é caracterizada pelo próprio princípio de individuação. Assim,
o ser não possui uma unidade de identidade mas, antes, uma unidade transdutiva, ou seja,
uma unidade que só se mantém a partir de um sistema tensionado e saturado de relações e
mediações, em equilíbrio meta-estável – e que, para se manter, deve estar em constante
movimento e tensão. A relação é, ela mesma, uma modalidade do ser; ou seja, ela é
simultânea aos termos cuja existência ela garante, sendo um aspecto da ressonância interna de
um sistema de individuação. Assim, a individuação não esgota por inteiro a realidade pré-
individual, somente cria mediações – a partir da interação com o meio – que constituem seres
através de um sistema metaestável, onde o devir é o próprio ser.
Acredito que o vocabulário proposto por Simondon – certamente muito mais
complexo do que essa breve exposição esboçou – pode ser interessante para traçarmos
algumas analogias, ou “conexões parciais” (Strathern 2004), com alguns aspectos do processo
criativo de Zé Diabo e, de um modo geral, com a própria noção de fazer no candomblé.

142
Fazer, se voltarmos à oficina de Zé Diabo, parece ser menos um ato de criação do que
uma correspondência. Não se trata tanto de ‘adicionar’ ou ‘subtrair’ elementos, mas de dobrá-
los, segui-los através de seus caminhos e canalizar seus fluxos para certas direções. Cabe ao
ferreiro, portanto, compor com as distintas forças que atravessam seres e coisas. Ao fazer isso,
ele deixa um pouco de si na ferramenta, sua mão. Ao mesmo tempo, para voltarmos ao nosso
exemplo, o ferro, ainda que trabalhado pelo ferreiro, permanece sendo e não sendo um
“simples pedaço de ferro”, ou seja, há algo nele que permanece, que ainda precisa ser feito,
manipulado – intermediado, assim, pela relação que se dá no limiar entre a oficina e o
terreiro. No candomblé, coisas, deuses e pessoas atravessam diferentes processos de
individuação, formando “unidades transdutivas” que participam umas das outras e que, como
tal, só se mantém através de um equilíbrio que é sempre instável, ou seja, requer um constante
cuidado e manipulação, através de um engajamento contínuo entre os seres. E esse
engajamento, mais uma vez, é feito através de um processo ininterrupto de composição de
forças.
***
Em 1973, um ano antes de vir a falecer, Roger Bastide escreveu um texto fundamental
para as discussões que me propus neste trabalho. O texto, chamado “O princípio de
Individuação (contribuição a uma filosofia africana)”, vai analisar a noção de pessoa na
África Negra a luz do clássico problema – ocidental – da forma e da matéria.. Acredito que
algumas linhas do problema colocado por Roger Bastide – a partir sobretudo dos
“pensamentos africanos” – traçam paralelos interessantes com a complexa obra de
Simondon95. Isso porque, ao discutir sobre a noção de pessoa na África Negra, Bastide vai
dizer que o indivíduo, entre os africanos, não é uma unidade indivisível, mas, ao contrário,
que ele só existe concretamente “dans le réseau qui le relie au temps des Ancêtres, à l'espace
du Mystère vivant, aux Totems et aux Dieux. Sorti de ce réseau, il n'est plus rien” (Bastide
1973:39). Portanto, a pessoa africana, para Bastide, é constituída por uma pluralidade de
elementos que não parariam de variar entre si – pois a pessoa participa de distintos elementos
do cosmo, segundo diferentes modos de existência. Assim, diz o autor, “ces variations
pourraient s'exprimer, géométriquement ou mécaniquement, par un seul système, qui serait
95
Não acredito que este texto de Bastide e a obra de Simondon tiveram algum tipo de relação histórica, ainda
que parte da tese de Simondon sobre a individuação já havia sido publicada na França na década de 60 – época
em que Bastide era professor na universidade de Sorbonne. O chamado “problema da individuação” é um
problema clássico na filosofia ocidental, perpassando diferentes filósofos, desde Aristóteles e Santo Agostinho,
até Bergson, Deleuze e até mesmo o psicólogo Carl Jung.

143
un système de «composition des forces» - ou bien encore, philosophiquement, par un seul
système, qui serait celui du jeu des dialectiques, de complémentarité, de conflits, de
renforcement, d'exclusion, entre des principes discontinus”(ibid.: 40). A pessoa, assim, é
antes uma sistema de tensão entre essas diferentes composições. Para voltarmos a Simondon,
mais do que uma “substância” que é atualizada em corpos, deuses e coisas, essa composição
de forças é sobretudo um processo, onde tanto a “forma” quanto a “matéria” emergem no
movimento mesmo que lhes dá sentido (cf. Simondon 2002).
No candomblé, se o fazer pode ser pensado como uma atualização de virtualidades,
essa atualização, como lembra Opipari, “não pressupõe uma individualização no sentido
ocidental do indivíduo, isto é, de unificação do Ser, mas uma singularização e uma
personificação” (ibid:197). Singularizar uma força não é, portanto, criar uma unidade
indivisível, uma “identidade”; mas, antes trata-se de compor um arranjo específico que, para
se manter, deverá ser sempre mobilizado, atualizado.
É o que vimos, por exemplo, no processo de criação de um assentamento. Se, a
princípio, poderíamos pensar nesse processo enquanto uma “adição” de distintos elementos
em um conjunto em comum – algo como uma bricolage –; por outro lado, ao seguirmos a
prática de composição destes distintos materiais, vemos que o que importa não é tanto a
“substância” em si, mas as forças que a atravessam, e como ela é, através de um processo que
também envolve modulação de forças, agenciada com outras forças. Desse modo, não se trata
tanto de uma composição de substâncias, mas de forças: o “fazer”, assim, é menos um ato que
envolveriam “agências” do que uma composição de forças. Como diz Diana Espírito Santo
(2015) sobre a relação entre espíritos e coisas nas religiões afro-cubanas:

[...] seria errôneo supor que “espíritos” e “coisas” denominam e implicam agências
separadas por definição, ou que a “agência” em si requer um só “agente”, pensante,
intencional, humano ou não. Na maioria das vezes, a agência aqui não pertence a
determinadas formas espirituais, objetos ou elementos naturais por si só, mas à sua
combinação, montagem e reconfiguração para fins designados em determinados momentos.
A potência e a eficácia ritual derivam em grande parte da sinergia de forças, e não do seu
desdobramento autônomo, em que algumas sinergias podem durar mais tempo do que
outras, se aproximar mais ou menos com o que poderíamos chamar de “espírito” e/ou de
“coisa”, e até mesmo do que poderíamos considerar como uma “pessoa”, ou tendo
características de pessoa. (Espírito Santo 2015:216).

Em suma, todo esse processo, se quisermos, poderia ser pensado como uma espécie de
composição e estabilização de uma série de forças que se encontram nos mais distintos

144
materiais e no mundo. Assim, a força do orixá – que sempre existiu – é feita no processo
mesmo de sua individuação. O assentamento, atravessado por essa nova força que agora foi
feita (o orixá), e, ao mesmo tempo, a própria expressão material desse orixá, passa a ser um
canal de mediação e intervenção no mundo, fazendo fazer uma série de relações. No entanto,
se assentar é, de alguma forma, estabilizar uma força, essa estabilização parece nunca se
completar: a força precisa ser sempre renovada, movimentada, modulada, num processo
contínuo que perpassará toda a vida da pessoa e, como vimos, poderá até ir para além dela.
Toda estabilização de forças no candomblé – das pessoas, das coisas, dos deuses – parece se
manter através de uma espécie de “equilíbrio meta-estável”, como diria Simondon (2002), ou
seja, um equilíbrio que só se mantém de modo tensionado, que requer um fazer constante e
que nunca esgota as possibilidades de novos agenciamentos, novos fazeres. Como nos diz
Goldman (2005), o fato de no candomblé tudo já existir de alguma forma em excesso não
quer dizer que não há nada a se fazer; muito pelo contrário: são porque as energias estão em
excesso no mundo que elas precisam ser manipuladas, feitas, fabricadas.
Sempre há algo a se fazer no candomblé: alguma energia a compor, algum ritual que
te possibilite determinadas coisas, alguma exigência de obrigação... Fazer, assim, é criar
passagens por entre um mundo repleto de forças: agenciar, canalizar certas energias para
certos objetivos, criando territórios existenciais compostos por distintas forças. E essas
passagens sempre criarão certos efeitos, que precisarão ser lidados no decorrer da vida. “Tudo
que se faz aqui, um dia pode voltar pra gente, então a gente tem que ficar sempre precavido”,
me dizia Selma, uma mãe-de-santo amiga de Zé Diabo.
O processo de feitura de deuses, pessoas e coisas no candomblé é um processo que se
faz mutuamente, através de uma atualização gradual e ininterrupta. Não se trata de uma
trajetória linear e pautada somente pela ação humana, tampouco de “eventos” que ocorrem em
uma estrutura comum; trata-se, antes, de um processo de atualização de virtualidades que já
estavam presentes nos seres – que, de algum modo, pediram essa relação – e que, a partir
disso, são compostas com outras forças e outros seres. Trata-se, assim, daquilo que Miriam
Rabelo chamou, a partir de Merleau-Ponty, de uma relação de instituição, ou seja, não apenas
reencontrar uma relação que já existia, mas tomar parte na história, ativando-a no presente.
Como é bem sabido no mundo do candomblé, ninguém entra ali “porque quer”, mas por uma
escolha dos próprios orixás, por um caminho. Percorrer esse caminho é ser mais um pouco
daquilo que sempre se foi. Isso, no entanto, não quer dizer que o caminho seja algo como um

145
destino inescapável, ou uma relação oculta que deva ser desvendada; antes, o caminho deve
sobretudo ser feito, instituído, e essa feitura envolve uma boa dose de improvisos e incertezas,
além de uma série de habilidades que são desenvolvidas no caminhar mesmo. Como a autora
mesmo diz:

Fazer o santo de alguém é fazer acontecer, um para o outro, pessoa e orixá. Fazer acontecer
significa enfrentar risco: as coisas podem não se dar conforme esperado e, no limite, a
relação proposta pode não ser efetuada. Significa também – e principalmente – que muito
trabalho (experiência, jogo de cintura e habilidade) é requerido para conduzir a feitura
(Rabelo 2014:92)

Esse fazer, assim, poderia ser pensado enquanto um cultivo de relações, no sentido
agroecológico mesmo. Cultivar, aqui, não é tanto “agir”, mas “compor com”, lidando com o
“tempo” de cada maturação e com suas próprias imprevisibilidades. Não é sem razão,
acredito, que diversos verbos utilizados para falar sobre o fazer no candomblé denotam esse
tipo de relação de cultivo: “plantar”, “enterrar”, “botar a mão” e assim por diante. A criação,
assim, envolveria mais criatividade do que uma “agência” propriamente dita – uma
criatividade para colocar em relação distintas forças de modo que elas produzam
determinados efeitos.
Desse modo, fazer envolve saber fazer – canalizar forças, fixá-las em territórios,
casas, corpos, assentamentos e objetos. “Todo ritual é manipulação de forças sagradas, mas
não é qualquer um que se pode meter a manipular”, já dizia Bastide (1958:264). Manipular
forças carrega sempre um risco em potencial, pois nunca se tem plena certeza do resultado
final; há sempre um quê de imprevisibilidade, de indeterminação – isso ou aquilo pode não
surtir efeito, não dar resultado. A pessoa deve estar preparada para fazer, para lidar com certas
energias, senão aquelas energias podem voltar-se contra ela mesma. Pululam os relatos, no
candomblé, de feituras que não “deram certo”, ou que foram feitas de forma errada, “dos pés
pelas mãos”, como se diz. É preciso, nesses casos, testar outras possibilidades, compor outras
forças. Isso porque saber fazer, como já vimos, não é deter uma suposta totalidade de
conhecimento sobre as forças e suas composições. Não há algo como uma receita fixa e
homogênea para lidar com essa composição de forças. Muito pelo contrário: o “segredo” do
candomblé reside em seus pequenos detalhes, nas possíveis variações, nos ingredientes, no
modo de conectá-los, nas palavras inaudíveis, nas variações de folhas e líquidos... São esses
pequenos detalhes que os adeptos buscam “catar” aqui e ali, a fim de aumentar o seu
repertório de possibilidades. Mas o fazer só se aprende assim mesmo: fazendo. É preciso

146
experimentar composições, agenciamentos, testar forças, improvisar. Cada feitura – seja de
pessoas, casas, assentamentos ou feitiços – é uma espécie de alquimia, cuja prova final é o seu
funcionamento ou não.
O candomblé, já dizia Sansi (2005:142), não é só “treinamento”, mas uma arte. Essa
arte, no entanto, poderia ser pensada enquanto potência de vida. Paul Klee, o mais músico dos
pintores – como dizem Deleuze & Guattari (1997a) – em sua Théorie de l’art moderne (1985)
já havia captado esse modo de criação que lida mais com movimentos que com substâncias. A
forma é o fim, a morte. O dar forma é vida, dizia Klee (1985:34). O artista, assim, não
“reproduz” o visível, mas, antes, torna visível: ele não “cria” a obra, mas participa do
conjunto de sua criação (ibid.:46).
Poderíamos, portanto, pensar o candomblé enquanto uma arte de compor e descompor
vidas, modulando as forças que atravessam os distintos seres – uma vez que, nele, os seres
existem mais ou menos, de acordo com seus distintos graus de participação (Bastide
1983:271). Compor linhas de força, no candomblé, é compor linhas de vida – por isso da
responsabilidade tão grande daquele que “bota a mão” na cabeça de outra pessoa. A arte do
candomblé, assim, está em tornar e manter as coisas vivas, através de um cuidadoso e
ininterrupto trabalho ritual, num mundo povoado de forças instáveis e em desequilíbrios
iminentes. Assim, além de uma arte da vida, o candomblé é também uma arte dos efeitos:
trata-se de lidar com suas eficácias, de compor com forças que fazem fazer. Desse modo, o
fazer carrega sobretudo uma dimensão ética: fazer coisas é ter cuidado com elas, lidar com
suas reações e responsabilidades. Pois, como já dizia Riobaldo, personagem do famoso livro
de Guimarães Rosa: “Viver é mesmo negócio muito perigoso”.

147
E PÍLOGO  

O  próprio  Don  Juan  me  deu  a  tarefa  de  escrever  sobre  as  premissas  da  feitiçaria.  
Certa  vez,  muito  casualmente,  nos  primeiros  estágios  do  meu  aprendizado,  ele  
sugeriu  que  eu  escrevesse  um  livro  para  fazer  uso  das  notas  que  eu  sempre  tomei.  
Eu  tinha  acumulado  resmas  de  anotações  e  nunca  considerei  o  que  fazer  com  elas.  
Argumentei  ser  uma  sugestão  absurda,  pois  eu  não  era  escritor.  
-­‐  É  claro  que  você  não  é  escritor  –  disse  ele  –,  então  terá  de  usar  a  feitiçaria.  
Primeiro,  precisa  visualizar  suas  experiências  como  se  você  estivesse  revivendo-­‐
as,  e  assim,  verá  o  texto  em  seu  sonhar.  Para  você,  escrever  não  será  um  exercício  
literário,  mas  antes  uma  prática  de  feitiçaria.  
Carlos  Castañeda,  The  power  of  Silence  

Quando comecei meu trabalho de campo na oficina de Zé Diabo, minha ansiedade


para ‘saber’ estava relacionada, sobretudo, à construção da minha própria etnografia (afinal,
eu tinha que ter alguma coisa para escrever sobre). Não conhecia muita coisa sobre
candomblé e menos ainda sobre ferramentaria de orixás96. Conheci Zé meio ‘por um acaso’97:
após sofrer um incidente durante o carnaval de Recife, em 2012, decidi ir para Salvador, a fim
de visitar uns amigos e aproveitar para jogar búzios em uma casa que eles tinham alguma
ligação, com o intuito de descobrir o que poderia ter me causado tal incidente. Foi durante
esta curta visita que, aproveitando a sugestão de um amigo de Brasília, resolvi conhecer a
oficina de Zé Diabo. Meu primeiro encontro com ele98, carregado de silêncios, me despertou
o desejo de estudar mais à fundo o tema das ferramentas de santo. Foi assim que, meses
depois, consegui uma bolsa de mobilidade acadêmica e voltei a Salvador, onde morei,
primeiramente, por mais de um ano.
Naquela época, ao chegar à cidade, demorei algum tempo até me ambientar e visitar
novamente a oficina de Zé Diabo. Quando finalmente o fiz, este segundo encontro (que
96
Embora já tivesse alguma afinidade com a temática afro-religiosa, através de uma pesquisa de iniciação
científica sobre o tema da patrimonialização dos terreiros de matriz africana em Brasília, orientado pelo
professor José Jorge de Carvalho e, sobretudo, através de um grande amigo, estudante de antropologia e iniciado
na religião.
97
Lembrando que, no candomblé, os acasos nunca são tão casuais assim…
98
Narrado de forma mais pormenorizada em minha monografia de graduação (Marques 2014).

148
narrarei logo mais) me deixou completamente afetado – e, de certo modo, fascinado com seu
universo –, me fazendo voltar ali por diversas vezes, até, de fato, começar meu trabalho de
campo. Depois de algumas visitas regulares, finalmente ‘criei coragem’ para contar a Zé
sobre minhas intenções de escrever sobre sua vida e, principalmente, sobre seu ofício. Ao
contar-lhe a ideia, ele me ouviu de modo atento e, após me olhar demoradamente, disse:
“Então você quer escrever sobre mim? Você sabe que, pra isso, você vai ter que falar sobre o
caminho do ferro, o jabá de Ogum, porque é o meu caminho, e pra escrever você vai ter que
seguir o meu caminho...”.
Hoje, revivendo estas notas através da leitura do meu caderno de campo, percebi que,
ao seguir o seu caminho, eu estava também construindo o meu próprio caminho, um percurso
que passava necessariamente pelo aprendizado com os ferros, pelos caminhos de Ogum. Ou,
nas palavras de Zé, de algum modo o meu caminho havia se cruzado com o dele, fazendo
com que eu também participasse do seu caminho. Assim, se todo caminho é menos um fim do
que um percurso, a ideia de “ser ferreiro” ou “ser pai de santo” era também um modo de dizer
que, de alguma forma, o meu caminho passava um pouco por devir o caminho de Zé. E é
claro que, ao trilhar esse caminho, devir algo que não sou carrega sempre um risco em
potencial, pois isso requer novas composições de forças.
Aos poucos, fui então percebendo que a aprendizagem só seria possível dentro de seus
próprios termos. A única maneira de ‘aprender’ algo com ele seria, pois, realizar o que para
mim haveria de mais próprio à prática etnográfica, qual seja: deixar-se guiar por suas práticas,
levando a sério seus modos de conceber e agenciar mundos (Viveiros de Castro 2002;
Goldman 2003; 2014).
Foi a partir daí, então, que decidi seguir as diversas “feituras” que ele agenciava, como
Zé fazia e desfazia forças em ferramentas, casas, corpos ou assentamentos, acompanhando
essas feituras e seus processos. A etnografia, portanto, não poderia ser outra coisa senão esse
próprio percurso. Como a aprendizagem no candomblé, ela deveria ser escrita de modo
também vacilante, sem se preocupar em ‘reter uma totalidade’, mas, antes, compondo
fragmentos, “catando folhas” aqui e ali, a fim de produzir uma espécie de ‘arranjo’ que não
busque falar sobre ‘O Candomblé’, ou ‘As Ferramentas de Orixás’ (enquanto sistemas
perfeitamente lógicos ou coerentes), mas que explore alguns processos que me afetaram
sobretudo a partir da experiência do encontro – sobre o meu caminho e o caminho de Zé.

149
Acredito que abandonar essa pretensão de “falar sobre” e buscar “falar com”, ou
“através de”, é, sobretudo, abandonar a distância que mantém a etnografia apartada da
experiência vivida (cf. Ingold 2013) , distância esta responsável pela objetificação do nativo,
ou por aquilo que Eduardo Viveiros de Castro (2002) chamou de “regras do jogo
antropológico”, no qual o antropólogo (o eu da relação) é aquele que detém o poder de
discorrer sobre o discurso do nativo (o outro), enquanto este tem uma relação “natural”,
“irreflexiva” sobre o sentido de seu próprio discurso. Nesse sentido, lembra Viveiros de
Castro (2002:115), “A matriz relacional do discurso antropológico é hilemórfica: o sentido do
antropólogo é forma; o do nativo, matéria”. Como nos diz Favret-Saada, ao definir o Outro, a
etnografia acaba agindo como se nós já soubéssemos, de antemão, o que ele é, deixando de
lado os próprios modos criativos sobre como as pessoas definem seu próprio universo
conceitual. Ao fazer isso, diz a autora (1977:37), a antropologia não faz mais do que ser um
espelho dela mesma!
Foi buscando fugir desse “modelo hilemórfico” de pensar a etnografia que decidi
seguir o modo como deuses, pessoas e coisas são feitas, agenciadas e moduladas no
candomblé. Para isso, foi preciso levar a sério a máxima – explorada desde Bastide – de que o
candomblé deve ser pensado menos por um questão de formas e funções do que por forças e
suas composições. Ou seja, trata-se de seguir essas distintas feituras e seus caminhos, nessa
arte de compor e descompor vidas.
Em suma, essa dissertação poderia ser resumida como uma tentativa de lidar
etnograficamente com um universo que é povoado de forças distintas, que atravessam
diferentes seres e os constituem. A partir daí, vimos que o que o universo do candomblé nos
sugere é um modo de fazer coisas, deuses e pessoas que se distancia tanto do hilemorfismo
quanto do monismo substancialista, operando por uma composição de diferentes forças e
modulando suas passagens e variações nos seres. Esse modo de fazer sugere também uma
espécie de “ecosofia prática”, uma vez que as coisas, no candomblé, só se mantêm vivas
através de um equilíbrio tenso e instável, requerendo, com isso, sempre novos fazeres e
composições.
É com base nisso, portanto, que poderíamos reverberar esse sistema para pensarmos a
própria etnografia. Ou seja, como sugere Goldman,

“em lugar de imaginar que aplicamos formas de conhecimento estáveis aos conteúdos que
aprendemos no campo, trata-se de imaginar a possibilidade de transformar os próprios

150
procedimentos de conhecimentos por meio dos que podem nos ser ensinados por aqueles
com quem convivemos no campo.” (Goldman 2011:424)

Nesse sentido, a etnografia deveria ser vista menos enquanto uma criação e mais enquanto
uma composição de um arranjo – arranjo que, para ser composto, requer o encontro com
diferentes linhas de forças, requer caminhar por caminhos outros, devir outras possibilidades e
lidar com o imprevisível delas. Ao mesmo tempo, esse arranjo nunca se estabiliza por
completo; pelo contrário, ele é sempre instável e repleto de “linhas de fuga”. A dissertação,
assim, é apenas um momento, uma fase dessa composição que, para se manter, precisará de
outros fazeres, de novas composições – e, principalmente, de uma relação que, uma vez
instituída, deverá ser sempre cuidada.
É claro que, ao realizar esse arranjo – que resultou na escrita dessa etnografia, embora
não se reduza a isso – não se trata de pura e simplesmente ‘reproduzir’ o discurso de Zé Diabo
sobre seu caminho e suas filosofias. Não estamos falando aqui de representação. Ao seguir os
caminhos de Zé, como vimos, construí meu próprio caminho; ou melhor, cruzei o meu
caminho com o dele. Esse processo (devir-caminho) não se dá sem uma série de
transformações, num movimento contínuo de tradução. No entanto, como notou Viveiros de
Castro (2010:76), se a tarefa da antropologia se aproximaria daquela da tradução, essa
aproximação só se torna possível porque o equívoco é sua dimensão constitutiva: “traduzir é
instalar-se no espaço do equívoco e habitá-lo”. Marcio Goldman, em um texto recente,
sintetiza a questão, ao dizer que “a tradução antropológica não tem nada a ver com
representação, explicação ou compreensão; tem a ver com agenciamentos. Fazer antropologia
significa a construção de um discurso indireto livre no qual se imbricam a palavra nativa e
aquela da antropologia” (Goldman 2014:22).
Por fim, esse arranjo é apenas um arranjo possível, a minha maneira de traduzir e
agenciar o cruzamento desses caminhos. Não se trata, como lembrou Roy Wagner, de
“aprender” uma nova cultura, nem tampouco de “virar nativo” – ideia “tão inútil quanto
permanecer no aeroporto ou no hotel fabricando histórias sobre os nativos” – mas, antes,
trata-se de assumir um universo outro de modo a experimentar, com ele, uma transformação
em meu próprio universo (Wagner 2010:37). Trata-se daquilo que Malinowski (1935) muito
sabiamente chamou de “teoria etnográfica”, ou seja, nem tanto uma ‘teoria nativa’, nem,
tampouco, uma ‘teoria científica’ (ver Goldman 2003), mas uma teoria que é gerada pelo
encontro mesmo – pelo cruzamento de caminhos. Acredito que seguir esse caminho é,

151
também, uma maneira de sair da velha discussão presente nos estudos afro-brasileiros entre
uma visão ‘desde dentro’ e uma visão ‘desde fora’, debate que, como nos lembra Serra
(1995:9), pode ser resumido a “um eterno jogo de solteiros e casados – já previamente
empatado, de comum acordo”. A fim de fugir desse debate99, pretendi traçar uma escrita que
esteja implicada no momento mesmo da experiência, do encontro; uma maneira que, ao
mesmo tempo em que busca elaborar um sistema conceitual que faça jus às escolhas lexicais
nativas, opere algumas transformações – “simetrizações antropológicas”, como diria Goldman
(2014) – nessas escolhas, de modo a tratar as ideias e práticas de Zé Diabo como verdadeiras
filosofias, capazes – acredito eu – de desestabilizar os nossos próprios pensamentos.
Trata-se, em suma, de traçar uma cartografia de seus agenciamentos, no sentido
empregado por Deleuze e Guattari (1980). Cartografar não é ‘representar’ ou ‘significar’; é,
antes, um ato transformativo que se faz na própria experiência. Isso porque escrever – ou
compor um arranjo possível – não se dá sem uma série de transformações e afecções. A
escrita não é uma prática apartada da experiência vivida, não é, portanto, uma ‘mera
descrição’. Antes, escrever é também, potencialmente, vir a ser – assumir o risco de colocar-
se potencialmente num caminho outro, que passa a ser, também, o meu próprio caminho. É
como pegar o caminho de volta100, capturar novamente o que do seu caminho ficou em mim.
A etnografia, assim, é também uma forma de criar e agenciar mundos, cruzar caminhos,
estabelecer vias a partir do encontro. Caminhar.
***
Salvador, 23 de outubro de 2012. Terça-feira:
Após algum tempo me ambientando na cidade de Salvador, finalmente criei coragem
para voltar à oficina de Zé Diabo. A primeira (e última) vez que tinha ido lá havia sido em
fevereiro de 2012, ocasião em que conheci Zé Diabo. No entanto, desde então, já havia me
mudado para Salvador (em setembro deste ano) e até agora não tinha sequer voltado à oficina,
tampouco falado sobre meus planos em realizar a pesquisa com ele. O medo e a ansiedade de
um etnógrafo de primeira viagem tomavam conta do meu corpo.
Após descer no ponto de ônibus em frente ao mercado modelo, caminhei à pé até a
Ladeira da Conceição. Ao subir a íngreme ladeira, no entanto, percebi que sua oficina estava
99
Em sua dissertação de mestrado, Gabriel Banaggia (2008) sintetizou de modo perspicaz esse debate,
oferecendo, a partir da crítica, novas e instigantes possiblidades interpretativas para pensar com o candomblé e
suas etnografias.
100  Aquilo  que  Marilyn  Strathern  (2014:350)  vai  chamar  de  “momento  etnográfico”  –  a  afetação  mútua  do  

campo  e  a  escrita.  

152
fechada. De início, uma certa frustração se abateu sobre mim. Havia ligado para ele dias antes
e, por telefone, combinamos que aquele seria um bom dia para a visita. Assim, cheguei a
pensar que, não querendo ser incomodado, ele havia resolvido fechar às portas à minha
presença. Resolvi então perguntar do seu paradeiro na oficina ao lado, onde alguns homens
trabalhavam. Um senhor negro, alto, com uma conta de Ogum no pescoço me recebeu e,
depois de ouvir minha pergunta, disse que Zé Diabo provavelmente estaria “comendo água”
em algum bar próximo, na Cidade Baixa, e que se fosse para eu encomendar ferramentas seria
melhor voltar outro dia. Após ouvir de mim que só gostaria de conversar com Zé, esse senhor
(que acabou se tornando meu amigo depois, Raimundo) me disse para procurar em algum dos
bares que ficavam embaixo da ladeira. “Pode perguntar pra qualquer pessoa que ela vai
saber quem é Zé. Até cachorro na rua se você perguntar te leva até ele”, disse ele.
Depois de quase desistir da ideia, decidi seguir em frente e procurá-lo nos bares
indicados. À princípio, ninguém sabia onde ele estava. Um dos senhores, porém, me disse que
provavelmente ele estaria em um bar mais afastado, no bairro do Comércio, e me indicou a
direção a seguir. Lá chegando, avistei de longe um senhor elegantemente vestido, de calça e
sapato branco e com uma camisa amarela. Era Zé Diabo.
Me aproximei e me (re)apresentei a ele que, ao menos, parecia ter lembrado de mim.
Zé parecia visivelmente embriagado, falando alto e batucando na bancada do bar, enquanto os
homens ao lado riam e faziam brincadeiras entre si. Sentamos no balcão para tomar uma
cerveja, enquanto Zé retrucava as brincadeiras que lhe eram direcionadas pelos demais
presentes no bar. As pessoas estranhavam minha presença al e vira e mexe uma ou outra
tentava puxar assunto, perguntando de onde eu vinha e o que estava fazendo ali. Zé, no
entanto, parecia não se importar com isso: batucava, dançava e falava algumas palavras em
yorubá, me tratando como alguém que ele já conhecia. Depois de parar e me olhar
profundamente nos olhos, ele então perguntou qual era meu orixá. Eu, sem jeito, respondi que
não tinha certeza. Ele então soltou uma longa e demorada gargalhada.
Para mim, ele estava visivelmente embriagado, apesar dele constantemente falar:
“Você pensa que Diabo tá bêbado, mas Diabo não tá bêbado”. Cheguei a pensar, então, que
ele poderia estar “incorporado” em alguma entidade, pois, de fato, ele estava muito diferente
do que quando nos encontramos na primeira vez. Depois de tomarmos duas cervejas, os
rapazes do bar me ajudaram a carregá-lo de volta para sua oficina, pois ele dizia que queria

153
fumar seu charuto. Tivemos muita dificuldade em carregá-lo, pois ele estava com um andar
cambaleante e, a cada dois ou três passos, parava para fazer alguma graça ou dançar.
Chegando na oficina, Zé se sentou e pediu para eu acender seu charuto com a faísca da
máquina de solda. Eu, obviamente, não consegui fazê-lo, mas por sorte carregava um isqueiro
na mochila. Após dar duas ou três baforadas em seu charuto, Zé parou seu olhar em mim.
Seus olhos eram acinzentados e seu olhar muito profundo. Eu, um pouco incomodado, tentei
puxar algum assunto, mas ele não me respondia, me olhava e fumava seu charuto. Depois de
algum tempo, ele então disse: “fala pro Diabo pra você voltar aqui. Hoje é terça-feira, dia de
Ogum, e nada nesse mundo é por acaso”, e, então, se deitou no banco da oficina. Percebendo
que ele havia dormido, eu então resolvi sair. Na saída, Raimundo, que tinha visto a cena, me
chamou e disse: “pronto, agora ele só sai daí amanhã. Se você quiser voltar aqui pode ligar
pra mim que eu te aviso como que ele está”. E foi assim que eu voltei para casa, ainda
intrigado com tudo o que ocorrera, com o que ele me falara e com seu olhar tão profundo.

Salvador, 13 de janeiro de 2015. Terça-feira:


Já havia algum tempo que não visitava Zé Diabo. As matérias do mestrado me
demandavam muito tempo, e, por conta dos trabalhos finais, ainda não tinha tido tempo para
visitá-lo, desde de que eu voltei para Salvador, no fim do ano passado. Como de costume,
deixei para reencontrá-lo em uma terça-feira, dia de Ogum e, consequentemente, dia em que
ele mais costuma trabalhar.
No entanto, ao chegar à ladeira, percebo que a porta da oficina estava fechada.
Provavelmente ele estaria no bar de Dona Ana, ao lado, pensei. Mas ele também não estava
lá. Evandro, marido de Dona Ana, me disse que Zé estava em sua oficina, provavelmente
dormindo ou fumando seu charuto. Eu vou até a oficina e, depois de bater algumas vezes na
porta e dizer quem eu era, escuto a voz de Zé Diabo me falando para entrar. Zé estava sentado
no banco da oficina, fumando seu charuto. Eu entrei e lhe pedi a benção. Ele então me
mandou sentar.
Como tantas outras vezes, logo percebi que ele estava “diferente”: que falava alto,
cantava, dançava e proferia palavras em yorubá. Nessas situações, qualquer tentativa de
conversa costuma ser motivo para brincadeiras, frases de duplo-sentido, respostas ríspidas. Eu
já estava acostumado com esse seu estado corporal e, na maioria das vezes, entrava também
na “brincadeira”. Dessa vez, no entanto, havia algo diferente. Depois de cantar e conversar

154
um pouco, ele ficou sério e olhou demoradamente em meus olhos. Perguntou, então, se eu
sabia quem ele era. Eu preferi não responder, devolvendo o olhar. Foi então que ele se
levantou, deu uma baforada em seu charuto, e, com uma voz firme, me disse: “Meu nome
chama-se Pedro de Alencar”. Era a primeira vez, depois de todo esse tempo de convívio, que
a entidade que habitava Zé Diabo finalmente me dissera seu nome. Na semana seguinte, Zé
me chamou para ir sua casa para ajudá-lo em um trabalho para Exu, para um tal cliente que
viera de Brasília...

155
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