You are on page 1of 21

A Influência do Género na Contabilidade

Área Temática: História da Contabilidade

Trabalho realizado por


Clementina Ferreira
Doutoranda em Contabilidade
Universidade do Minho/Universidade de Aveiro
Email: cmlaferreiramail.com
Resumo

Parftindo do conteúdo do capítulo sobre género da obra Routledge Companion to Accounting History,
pretendo dar a conhecer o que de novo foi publicado sobre temas nele tratados, mas também sobre outros que
depois de 2006 foram publicados e que identificam novos entraves ao sucesso das mulheres na carreira
contabilística, tais como os ligados ao corpo e ao vestuário ou os que permitam relacionar os ordenados das
mulheres com os ganhos acrescidos que elas trazem às empresas quando assumem posições nos níveis
superiores de gestão. Como principal lacuna da literatura ressalto o facto de não parecer haver estudos que
permitam saber se as dificuldades com que as mulheres portuguesas, escriturárias ou contabilistas, se
confrontam, são ou não idênticas às das suas colegas estrangeiras.

Palavras-chave: Género, Contabilidade, Discriminação, Mulheres, Construção Social

Introdução

A partir do capítulo 20 – Gender do Routledge Companion to Accounting History, decidi elaborar


um trabalho que tivesse a forma de artigo científico cujo conteúdo deveria ser uma revisão crítica de
artigos científicos que constituísse um complemento àquela que o capítulo do livro contém.
Foi assim que procurei em bases de dados aceites como científicas pela comunidade académica, no
caso a ISI Web of Knowledge e a Scopus, artigos sobre a problemática do género cuja data de
publicação fosse posterior a 2006 por ser esta a data mais tardia1 de publicação dos artigos
referenciados por Rihab Khalifa e Linda Kirkham no capítulo em questão. Contudo, alguns dos
artigos escolhidos têm data de publicação anterior a 2006 porque entendi que os seus conteúdos eram
relevantes para este trabalho.
Escolhi 22 dos artigos encontrados, alguns por constituírem uma continuação dos aspetos específicos
tratados por Khalifa e Kirkham e outros por abordarem temas inovadores relativamente aos
anteriores, o que permite ver que a investigação sobre o género e a contabilidade não estagnou.
Temas como o acesso das mulheres à profissão no séc. XIX nos países anglocêntricos bem como
noutros locais e tempos, mulheres pioneiras e a importância das edições especiais de revistas
científicas para a chamada de atenção dos investigadores, são comuns a este e ao trabalho que lhe
serve de base. Dentro dos inovadores temos, por exemplo, a relação entre os ganhos das empresas e a

1
Apenas 1 dos artigos constantes das referências foi publicado em 2007, daí que este ano fosse integrado no intervalo
temporal considerado
1
proporção de mulheres nos níveis hierárquicos superiores das empresas, a importância do corpo e da
identidade do contabilista e as práticas sexistas nas big four.
Há ainda muitas sociedades, muitas comunidades, muitos seres humanos que defendem que às
mulheres cabe o desempenho de funções ligadas à casa, ao lar e à família. Estão as mulheres
biologicamente mais habilitadas do que os homens a cozinhar, a limpar, a tratar de crianças? Não.
(Sayers, 2012; Khalifa e Kirkham, 2009). Biologicamente qualquer um dos sexos está capacitado
para o desempenho destas e doutras tarefas domésticas. A atribuição de papéis distintos a homens e
mulheres, que durante séculos fechou as mulheres em casa, é unicamente resultado de construções e
até manipulações sociais tão velhas quanto o Homem, não fossem as mulheres a ficarem nas
cavernas tratando da alimentação e dos filhos enquanto os homens saíam para caçar por serem quem
mais força física tinha.
A contabilidade enquanto sistema de informação esforça-se por ser objetiva, por construir um
conhecimento objetivo, pois o reconhecimento desta caraterística trar-lhe-á a legitimidade necessária
à aceitação das informações que divulga, i.e., das suas “verdades”. No entanto, enquanto ciência
social, construiu-se e constrói-se em função das finalidades que pretende atingir, certamente que de
forma racional por recurso a conceções intelectuais, o que não lhe diminui a essência mutável e
subjetiva (Lehman, 2012). Esta subjetividade está presente em cada prática implementada, em cada
discurso proferido, em cada decisão tomada por um organismo criador de normas de contabilidade,
por uma organização profissional ou por uma qualquer empresa e quantas vezes estas práticas
organizacionais, discursivas ou não, estas decisões, voluntária ou involuntariamente, afetam,
prejudicam ou discriminam as mulheres!
Cabe também à investigação em contabilidade, nomeadamente à investigação em história da
contabilidade, trazer à luz estas desigualdades, mostrando as razões que lhe estão na base para que os
estudos sobre o género ao revelarem preconceitos profundamente enraizados, ao desafiarem visões
discriminatórias e ao reconfigurarem significados, atinjam o objetivo principal – transformar
(Lehman, 2012). Como afirma Gomes (2008, p. 497) os estudos históricos ganharam uma nova
utilidade pois reconhecem-se-lhes capacidades de informação sobre o papel da contabilidade nas
organizações e na sociedade. Este é o contributo que deles se espera nesta área, a do género.
É sobre esta problemática e a necessidade de alterar o status quo através não só da identificação dos
obstáculos com que as mulheres desde sempre tiveram que lidar, mas também referindo os avanços
já sentidos, que este trabalho se debruça e fá-lo-á partindo, sempre que possível, do capítulo de
Khalifa e Kirkham.
Assim sendo, a esta introdução seguir-se-á uma breve referência à ligação das mulheres à profissão
contabilística para que se possa aferir do longo e valioso contributo que têm dado à perícia técnica e

2
à valorização da própria profissão, para de seguida se fazer uma passagem pelo que aconteceu até
meados do séc. XX, atribuindo à contabilidade doméstica a importância que lhe cabe enquanto fonte
de desigualdades. A secção seguinte dará conta dos avanços já sentidos e das barreiras com que as
mulheres ainda se deparam à entrada na profissão, como no caso da Síria e da Nova Zelândia e
também à progressão na carreira, referindo a questão dos salários e fazendo uma relação entre eles e
o facto de a presença de mulheres nos níveis hierárquicos superiores das empresas ter efeitos
positivos nos ganhos obtidos. Antes da conclusão, é feita referência às diversas fontes de informação
onde a nova história da contabilidade legitima a recolha de dados e também um breve alerta para as
vantagens que o uso de uma metodologia feminista traz a este tipo de estudo.

As mulheres e a profissão contabilística

Não é recente a presença das mulheres na contabilidade pois, como nos mostram Khalifa e Kirkham,
(2009), há relatos de mulheres neste mundo desde tempos pré-industriais, nas casas fidalgas inglesas
no sec. XVIII, nos seus próprios negócios durante os séc. XVIII e XIX, nas organizações sem fins
lucrativos ou nas instituições públicas e nos departamentos de contabilidade de empresas durante a I
Guerra Mundial, entre outros.
Foram estudos como estes que trouxeram à luz a invisibilidade das mulheres nesta área profissional,
mostrando que se por um lado ela lhes proporcionou algum rendimento e bem-estar também lhes
deve ter infligido mágoa, tristeza e sentimentos de desvalorização, dadas as barreira à entrada ou à
progressão com que tiveram e têm de se haver.
O tempo em que as mulheres eram vistas como intelectualmente incapazes de assumir a profissão, já
lá vai, mas nesses tempos (não muito longinquos pois assim era até meados do séc. XX), o preço que
as mulheres tinham que pagar pelas poucas promoções que conseguiam era, por vezes, a renúncia ao
casamento e à maternidade (Haynes, 2008b). Algumas delas foram pioneiras ao assumirem a
categoria profissional de contabilistas mas esse não foi o caso da maioria que realizava tarefas
consideradas menores e que davam pelo título de escriturárias ou guarda-livros2, conceitos ainda hoje
conotados com menor especialização e menos conhecimentos sobre contabilidade.
O trabalho contabilístico não qualificado, i.e., o trabalho dos escriturários, é tema não muito estudado
(Cooper e Taylor, 2000). Já em 1993, Kirkham e Loft (Khalifa e Kirkham, 2009) tinham mostrado
que a progressiva feminização dos guarda-livros estava diretamente relacionada com a degradação da

2
Um escriturário é, etimologicamente, aquele que está encarregado de uma escrituração e o guarda-livros é o
responsável pela contabilidade de um estabelecimento. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, disponível em
http://www.priberam.pt (acedido em 1 de fevereiro de 2013)
3
imagem da profissão e com a profissionalização e o aumento de reputação do contabilista homem
(Edwards e Walker, 2007). Seguindo um paradigma crítico (influência de Marx e Braverman),
Cooper e Taylor (2000) mostram também como, à luz dos princípios da gestão científica de Taylor, a
experiência profissional foi, durante a segunda metade do séc. XX, um fator de desqualificação que
levou à baixa dos salários destes profissionais. Se nos finais do séc. XIX a maioria dos escriturários
ingleses eram homens, a probabilidade de nos finais do séc. XX um guarda-livros ser uma mulher
jovem que fazia trabalho repetitivo, desqualificado, relativamente mal pago e sem grandes
perspetivas de promoção, mostra a degradação da profissão que até já levou a que organizações de
profissionais como o Institute of Chartered Accountants of Scotland (ICAS) façam certificação de
competências a 2 níveis: a qualificação técnica e a qualificação profissional, partindo, portanto, a
profissão em duas. Esta desqualificação, leva a que as perspetivas futuras destas trabalhadoras não
sejam, segundos os autores, muito animadoras pois podem encontrar-se a trabalhar em instituições ou
gabinetes de contabilidade com edifícios sem condições sanitárias, em equipas completamente
vigiadas, lançando nos computadores listas de números incompreensíveis, sem quaisquer perspetivas
de promoção e com ordenados extremamente baixos (Cooper e Taylor, 2000, p. 576).
Se é certo que às escriturárias e guarda-livros não tem sido atribuído o verdadeiro valor profissional e
social resultante do importante contributo que têm dado à perícia técnica e, apesar de não
reconhecido, à valorização da própria profissão, também o é que alguns dos travões à progressão na
carreira resultam das estruturas patriarcais, dos processos e práticas discriminatórias e também dos
discursos sexistas existentes no processo de profissionalização na contabilidade (Khalifa e Kirkham,
2009).
Exemplo claro disto mesmo é o tipo de relações de género que se estabelecem nas big four, que não
têm tanto a ver com características femininas ou masculinas, mas sim com práticas, discursivas e não
discursivas, formais e informais, cujos efeitos, por vezes involuntários, resultam em várias formas de
desigualdade (Anderson-Gough, Grey e Robson 2005). Nestas empresas há como que um processo
de homossocialbilidade nos processos de recrutamento de pessoal e até de avaliação de desempenho
para efeitos de progressão que faz com que os decisores tendam para pessoas com passados e
experiências idênticas às suas. Quando se diz, por exemplo, que progride quem tiver mais capacidade
de liderança e de trabalho de grupo, na prática, como o decisor é normalmente um homem, está-se
muitas a vezes a dizer que progride quem tiver capacidade para discutir desportos, para ir tomar um
copo e socializar no fim do dia de trabalho. Embora talvez de forma não intencional, estas posturas
contribuem para a perpetuação de uma cultura machista e consequentemente para desigualdades de
género (Anderson-Gough et al., 2005)

4
Através de entrevistas semiestruturadas a estagiários que estão a preparar-se para o exame de acesso
ao Institute of Chartered Accountants in England and Wales (ICAEW), os autores concluem que
apesar de em duas big four existirem políticas expressamente criadas para equilibrar os géneros na
hora da contratação, a verdade é que isso não evita os inconvenientes que o esbater das fronteiras
entre a vida profissional e particular sistematicamente prejudica as mulheres auditoras porque para
elas a família não é, como para muitos homens, apenas um mecanismo de suporte (Anderson-Gough
et al., 2005, p.487).
Sendo a linguagem uma prática social que exerce e reforça as relações de poder (Kornberger, Carter
e Ross-Smith, 2010, p. 788), afirmação que resulta do núcleo da filosofia da linguagem segundo o
qual o mundo é aquilo que dizemos, muita da desigualdade identificada na Sky Accounting3
resultava daquilo que colegas e chefias diziam acerca dos juízos que formulavam sobre o empenho e
a competência técnica daqueles que optaram pelo programa de flexibilidade implementado na
empresa.

A profissão no feminino até meados do séc. XX

Até ao início do séc. XX a profissão na Grã-Bretanha (GB) foi um feudo masculino, no entanto, no
final do séc. XIX havia já um número significativo de mulheres a trabalhar nesta área, facto este que
não é muito conhecido dada a circunstância dos estudos que se debruçaram sobre o emprego
feminino se centrarem em grandes organizações como bancos, seguradoras, caminhos-de-ferro e
correios (Khalifa e Kirkham, 2009; Haynes, 2008b). Outros exemplos da presença das mulheres no
mundo empresarial, dados por Khalifa e Kirkham (2009), referem que algumas mulheres escocesas
do séc. XVI estiveram envolvidas na indústria da cerveja, vendendo, gerindo e realizando tarefas de
guarda-livros, enquanto os seus maridos se preocupavam com o lado mais prático do negócio e
também na Escócia, relatórios de censos, jornais, registos públicos, arquivos de empresas e atas de
organizações, mostram a participação ativa das mulheres no mundo dos negócios e das finanças nos
últimos 150 anos.
De acordo com dados recolhidos no Census Enumerator’s Book (CEB), em 1881 havia na GB 190
mulheres contabilistas, sendo 178 na Inglaterra e País de Gales e 11 na Escócia, representando 1,2%
dos contabilistas e 18% dos guarda-livros. Quanto à sua posição na casa onde viviam, 12,8% delas
eram chefes de família, 59,2% eram filhas, irmãs ou tinham outro grau de parentesco com o chefe de
família, mais 12,8% eram hóspedes pensionistas e 6,1% eram assistentes ou empregadas (Edwards e

3
Nome atribuído à big four onde o estudo foi feito
5
Walker, 2007, p. 74). Interessante foi verificar a forte correlação existente entre a percentagem de
mulheres guarda-livros nos 6 condados britânicos estudados e a proporção de contabilistas, sendo
possível que a partir do momento em que havia um número significativo de mulheres guarda-livros
no condado, os homens que desempenhavam funções contabilísticas rotineiras assumiam o título de
contabilistas. Esta é uma possibilidade pois sempre que a profissão de contabilista sofria uma
feminização, ela passava a ser vista como uma tarefa feminina, como ser cozinheira ou costureira
(Edwards e Walker, 2007, p. 74), com a consequente perda de estatuto social!
A baixa percentagem de mulheres contabilistas, 1,2%, confirma que a profissão era naqueles tempos
essencialmente masculina, no entanto, a existência destas mulheres mostra que também a elas o título
era atribuído apesar de estar intimamente relacionado com conceitos de cavalheirismo (Edwards e
Walker, 2007, p. 86).
Algumas destas mulheres são consideradas pioneiras e embora sejam uma minoria e por isso não
representem aquelas que em tão grande número trabalhavam como escriturárias ou guarda-livros, a
verdade é que algum conhecimento a análise das suas histórias de vida nos consegue trazer. Khalifa e
Kirkham (2009, p. 435) falam-nos de Ethel Ayres Purdy, Christine Mosley e M.C.B. Aston,
mulheres que atingiram notoriedade no mundo da contabilidade também por causa das atividades
políticas que desenvolviam, como a de Ethel ligada ao sufragismo na GB ou devido a ligações
sociais como as das outras duas que eram filhas de donos de reputadas firmas de contabilidade do
início do séc. XX.
Outra pioneira foi Ada Bourn, tia de Sir John Bourn, Controlador e Auditor Geral da GB, que apenas
com 18 anos obteve sucesso nos exames da London Society of Accountants, apesar de só a partir dos
21 poder ser seu membro (Broadbent e Kirkham, 2008).
Mary Addison Hamilton (Addie), foi uma das primeiras mulheres membro de uma organização
australiana de profissionais de contabilidade e por isso uma das primeiras do império britânico. Isto
aconteceu nos inícios do séc. XX quando era comum as mulheres sentirem entraves à entrada na
profissão. Ao contrário de todas as mulheres anteriormente referidas, Addie nasceu em 1893 no seio
de uma família humilde e viveu em Perth, com a família, num dos subúrbios mais pobres. Em 1908,
tinha então 15 anos, arranjou emprego no Western Australia Public Service e rapidamente se tornou
o suporte único da família. Estudou assuntos comerciais e também em 1908 fez o exame da
Fremantle Chamber of Commerce (que só por simpatia aceitava candidatos mulheres) e não só
obteve sucesso como obteve a melhor classificação de todos quantos prestaram provas (Cooper,
2008, pp 148-149). Entrou no Institute of Accountants and Auditors of Western Australia (WA
Institute) em 1916 e ingressou no Western Australian Education Department onde apesar de ter sido
a primeira mulher a conseguir um lugar permanente foi manifestamente discriminada porque apesar

6
das suas habilitações académicas e competências profissionais lá trabalhou durante mais de 40 anos,
nunca na secção de contabilidade e sempre com a categoria de escriturária. Este é um exemplo de
como se “formatavam” as mulheres para aceitarem a sua sorte, já que ao ficarem tantos anos no
mesmo posto, negava-se-lhes a possibilidade de desenvolverem as competências necessárias à
promoção (Cooper, 2008, p.150). Addie, contudo, não foi um caso de formatação pois teve atividade
paralela, não só colaborando com inúmeras organizações sociais sem fins lucrativos, como entre
1918 e 1923 ensinou direito e escrituração mercantil e foi responsável por fazer e corrigir exames
destas matérias. Muito interessante e reveladora de mentalidade discriminatória, é a nota que foi
encontrada no seu registo biográfico no serviço público, dizendo que após a sua saída o lugar deveria
ser preenchido por um homem! (Cooper, 2008, p.150)

A importância da contabilidade doméstica

Os registos contabilísticos domésticos, não sendo realizados no âmbito de uma profissão, têm servido
para avaliar o contributo da contabilidade para a liberdade das mulheres no lar, fonte de muito
desequilíbrio por ser um dos locais onde o macho exercia (e por vezes ainda exerce) o seu poder.
No início do séc. XX nos Estados Unidos da América (EUA) e na GB ela servia para desviar as
aspirações femininas de uma carreira profissional e para reforçar o seu papel de consumidor (Khalifa
e Kirkham, 2009), constituindo também uma forma de prestação de contas da mulher ao marido.
Eram diferentes e não discriminatórias as finalidades que ela tinha na Austrália.
A partir da análise de 76 conjuntos de registos de casas australianas datados de 1820 a 1960,
disponíveis em bibliotecas públicas daquele país, Carnegie e Walker (2007b), tentam saber se há
efeitos de género nos registos domésticos e se são instrumento de repressão feminina no lar.
Já naqueles inícios do séc. XIX havia revistas e jornais que tinham como público-alvo as mulheres e
que, porque as consideravam as gestoras do lar, não só as aconselhavam a fazer orçamentos e a
manter registo de todas as despesas e receitas mas também as ensinavam a fazê-lo. Por um lado o
estudo mostrou que na verdade estes conselhos não eram muito seguidos e que orçamentos raramente
eram feitos, sendo-o apenas em épocas complicadas, como crises financeiras ou guerras, e por outro
que não só as mulheres a faziam pois muitos registos feitos por homens foram encontrados, homens
solteiros e viúvos mas também casados.
Ao contrário do esperado, não foi encontrada prova de que as mulheres casadas mantivessem este
tipo de registo para prestar contas aos maridos (Carnegie e Walker, 2007b, p.67), mostrando uma
maior liberdade das mulheres australianas o que é consistente com um sistema de valores mais aberto
e liberal de um território de emigração.

7
O que se viu foi que a contabilidade doméstica australiana sofre o efeito do género já que homens e
mulheres pareciam ter preocupações, interesses ou responsabilidades diferentes, pois assim eram os
registos que faziam. Enquanto as mulheres registavam despesas do quotidiano, como despesas com
comida, roupas e higiene, o que indicia que a sua gestão financeira se desenvolvia à volta da cozinha
e despensa, dos guarda-fatos e das casas de banho e lavandarias, os homens parecem ter tido outro
tipo de responsabilidade financeira que ia para além da gestão corrente já que registavam os
montantes atribuídos às esposas, despesas com energia, seguros, carros, propinas escolares,
investimentos em ações e propriedades, manutenção e conservação das casas e ainda empréstimos e
respetivas amortizações (Carnegie e Walker, 2007a, 2007b)
Do estudo de micro história4 feita a 18 daqueles 76 casos anteriormente referidos (Carnegie e
Walker, 2007a), resultou que alguns lares eram na verdade pequenos negócios uma vez que as
famílias vendiam produtos que fabricavam (compotas) ou que cultivavam (legumes).

Os desafios atuais das mulheres contabilistas

Apesar de todas as conquistas femininas, a verdade é que as desigualdades continuam a existir,


embora elas sejam diferentes conforme as zonas do globo. Se é certo que no mundo ocidental elas se
manifestam através do reduzido número de mulheres nos governos, nos níveis hierárquicos
superiores das organizações, de salários mais baixos e de desequilíbrios na repartição das tarefas
domésticas, zonas do globo existem onde as mulheres continuam a lutar contra a pobreza, a guerra, a
exploração sexual, tentando sobreviver e criar os filhos (Haynes, 2008a). Locais existem também
onde não tendo as mulheres este tipo de luta pela sobrevivência da família, os problemas com que se
deparam no mundo dos negócios têm especificidades muito próprias, como as relatadas por Rania
Kamla acerca das reações das empresas ao uso do véu islâmico por parte das mulheres sírias, aos
problemas de integração da mulheres maori na Nova Zelândia, alvo de um estudo feito por Patty
McNicholas, Maria Humphries e Sonja Gallhofer ou ainda os resultantes da situação, por vezes
atípica, das mulheres polacas, relatada por Czarniawska.

Para além das fronteiras anglo-americanas

Com o objetivo de preencher lacunas na literatura sobre as mulheres na contabilidade de países não
anglocêntricos, a síria Rania Kamla, apresenta um estudo no qual tenta conhecer, através da

4
Micro história é a investigação intensiva de um acontecimento, um objeto, uma localidade ou um indivíduo de
aparente importância menor. A ideia é que uma observação “microscópica” revelará factos ou fatores anteriormente
não captados (Carnegie e Walker, 2007a)
8
realização de 22 entrevistas semiestruturadas com mulheres do seu país, os efeitos que a globalização
está a ter nas experiências profissionais das contabilistas árabes. A partir da teoria pós-colonial a
autora tenta mostrar que o uso do véu islâmico é um símbolo de resistência ao colonialismo
económico, cultural e ideológico do ocidente (Kamla,2012).
O uso do hijab (véu islâmico), voluntário na Síria e desencorajado pelo governo, tem vindo a obter
cada vez mais adeptas não só por constituir uma forma de resistência ideológica e cultural ao já
referido colonialismo, mas também por ser entendido como um símbolo de identidade, o que o tem
transformado num instrumento de acesso ao mundo das empresas de origem síria, embora em alguns
casos, algumas empresas privadas mais conservadoras e alguns bancos islâmicos, ele seja razão para
discriminação de quem não o usa ao não lhes ser dada oportunidade de emprego (Kamla, 2012,
p.201).
Contrariamente, nas empresas ocidentais instaladas na Síria, nomeadamente as big four, o hijab é
visto como uma barreira à entrada e à progressão na carreira. “Western . . . companies operating in
Syria are reinforcing stereotypes of veiled women and ignoring the complexity of the veil’s
connotation in Arab societies” (Kamla, 2012, p.201), conotações estas de caráter religioso, social e
até politico já que o véu serve como forma de resistência contra o colonialismo, o imperialismo e a
discriminação de classes sendo simultaneamente encarado como símbolo de autenticidade, de
moralidade e de rejeição do consumismo e da objetificação feminina (Kamla, 2012, p.201). Também
a exagerada preocupação destas empresas com o cliente está a alterar nestes países as noções de
independência e de atenção à família e à comunidade que se repercutem principalmente na vida das
mulheres.
Não bastando que a condição feminina fosse entrave ao trabalho nas empresas de contabilidade,
acresce agora o vestuário que usam, esquecendo que, no caso em apreço, o que está na cabeça das
mulheres é mais importante do que o está sobre ela! (Zuhur, 2008, citado em Kamla, 2012, p.203).
A Nova Zelândia, um dos países de língua inglesa, tem um problema acrescido relativamente às
mulheres na contabilidade, o problema da integração das indígenas de etnia maori. O estudo de
McNicholas, Humphries e Gallhofer (2004), visa também conhecer o impacto da história colonialista
da Aotearoa5 nas experiências das mulheres maori que trabalham em contabilidade, dando-lhes voz,
ouvindo as suas histórias, tentando perceber como a práticas organizacionais impactam nas suas
carreiras contabilísticas. Através de entrevistas semiestruturadas com 13 mulheres maori, tentaram
perceber se a forma como estas mulheres se relacionam com as empresas, continua, propaga e
reproduz a hegemonia ideológica do imperialismo capitalista ocidental ou, se pelo contrário, permitiu

5
Nome maori para Nova Zelândia
9
a inclusão de novos valores e estruturas organizacionais ajudando à autodeterminação do povo
maori.
Concluindo que as organizações, incluindo as de contabilidade, insistem na manutenção de um
sistema de contratação monocultural na medida em que prefere mulheres não indígenas por isso não
detentoras de uma cultura própria, e em práticas nascidas e aceites dentro de um paradigma
colonialista, as maori têm não só de lidar com dificuldades à entrada na profissão, que as não
indígenas já não sentem, o que configura um racismo institucional (McNicholas et al, 2004, p. 89)
que afeta também as hipóteses de progressão na carreira das que conseguem entrar. Acresce o facto
de se não se derem ouvidos às necessidades específicas destes funcionários, ou seja, se não se
respeitarem as suas individualidades, as empresas de contabilidade podem também não ser capazes
de ir ao encontro dos clientes maori (McNicholas et al, 2004, p. 89).
A Polónia é um país sui generis no que toca ao exercício da profissão contabilística uma vez que
desde sempre ela tem sido considerada uma profissão feminina. Contudo, idêntico desvio não existe
relativamente ao estereótipo ocidental no que toca ao prestígio da profissão pois também lá ela é mal
paga e tem baixa reputação (Czarniawska, 2008).
À medida que os modelos anglo-saxónicos de gestão forem sendo introduzidos nas empresas polacas
a profissão foi dividida em 2: por um lado os empregos ligados às finanças que são atribuídos aos
homens e por outro, os de contabilidade propriamente dita que continuam e continuarão no feminino,
por mais uma ou duas gerações (Czarniawska, 2008, p.46)
Recolhendo as suas informações não só em resultados de investigação feitos por outros
investigadores, mas também em obras de ficção, nomeadamente nos romances de Douglas Adams, à
questão sobre quais as razões que justificam a fraca reputação da profissão contabilística na Polónia e
bem assim a baixa de reputação que, um pouco por todo o mundo, a profissão sofreu na sequência de
fenómenos de feminização, Czarniawska formula as seguintes questões: serão as profissões
femininas menos prestigiadas por serem mais mal pagas ou por serem femininas? Será que, pelo
contrário, as profissões femininas são mais mal pagas por terem menos prestígio ou por serem
femininas? (Czarniawska, 2008, p.45). A resposta dada foi que o que justifica esta perda de prestígio
é o desprezo pelas mulheres que é partilhado por homens e mulheres!

Dar voz às mulheres

Os entraves com que as mulheres contabilistas têm que lidar, começam com a falta de
reconhecimento ou de valorização das suas reais capacidades, passam por dificuldades de progressão
na carreira até aos níveis hierárquicos mais elevados e vão até problemas de ordem física e

10
psicológica ligados ao corpo e ao tipo de vestuário com que o cobrem (Haynes, 2008b; Kamla, 2012)
e inclusivamente chegam aos estilos de vida que têm.
Os estilos de vida das contabilistas são-lhes impostos por restrições estruturais como afirmam
investigadoras feministas ou, pelo contrário, são consequência de opções tomadas conscientemente
pelas mulheres? A esta pergunta, Gallhofer, Parsey, Roberts e Tarbert (2011) tentam dar resposta
ouvindo as mulheres inscritas no ICAS, através de um inquérito por questionário e de entrevistas
com 14 delas, por forma a encontrar uma compreensão mais holística das escolhas feitas por este
grupo particular de mulheres da classe média e com boas habilitações académicas (Gallhofer et al,
2011, p.440). Durante a última década, um novo argumento surgiu – a teoria da preferência,
sugerindo que as escolhas das mulheres se deviam menos a desigualdades nos locais de trabalho e
mais às suas preferências individuais. É exatamente isto que o estudo pretende verificar.
Em 2003, 23% dos membros do ICAS eram mulheres e em 2008 eram já 28%, mulheres que têm a
sorte de poderem tomar as suas próprias decisões sobre o tipo de relação que querem que haja entre o
trabalho e o seu estilo de vida (work-lifestyle choices). Não são mulheres vítimas do sistema porque
este lhes facilitou a entrada no mundo do trabalho contabilístico a tempo inteiro, são sim mulheres
que acreditam no direito à maternidade, a viver essa maternidade acompanhando os filhos e que por
isso, em determinado momento, optaram por prosseguir uma carreira a tempo parcial. É neste
momento, o da maternidade, que o balanço entre vida privada e trabalho pode trazer alguns
problemas.
A análise dos questionários e das entrevistas forneceu informações sobre os tipos de decisão de
carreiras que as contabilistas escocesas tomaram, sobre o tipo de gestão familiar e profissional pelo
qual optaram e sobre o que motivou essas escolhas. O estudo permitiu concluir que as mulheres
quando se tornam mães preferem trabalhar a tempo parcial, daí que tenham algum cuidado com a
escolha do empregador já que nem todas as empresas oferecem flexibilidade de horário de trabalho.
Na impossibilidade de passarem a regime parcial, algumas, as que não têm dificuldades financeiras,
mudam de emprego ou até passam a trabalhar por conta própria por forma a poderem gerir o tempo
de forma mais articulada com as imposições da vida familiar. A conclusão foi que a escolha do
empregador tem a ver com restrições estruturais mas o estilo de vida resulta de opções das mulheres
(Gallhofer et al, 2011).
A relação trabalho/estilo de vida está também documentada a partir de uma investigação realizada
numa das big four por uma equipa de investigadores, coordenada por Martin Kornberger, a propósito
do programa de flexibilidade que a empresa implementou em 2001. A abordagem metodológica
seguiu a tradição do trabalho de campo qualitativo da contabilidade interdisciplinar. Usaram-se
técnicas de recolha de dados tais como registo em MP3; entrevistas semiestruturadas a 13 gerentes e

11
diretores de 5 divisões diferentes da empresa, embora a maioria fosse da divisão de auditoria, 4
entrevistas a sócios e pessoal sénior dos recursos humanos que trabalhavam em proximidade com os
gerentes; 100 horas de observações a 7 daqueles gerentes e diretores nas suas funções rotineiras, que
foram desde a arrumação de arquivos até visitas a clientes e, por fim, uma entrevista de
acompanhamento com o sócio sénior responsável pelo programa de igualdade de géneros. O que se
viu foi que muitas mulheres decidiam abandonar a empresa quando atingiam a categoria de gerentes,
ou seja, precisamente no momento em que se iniciavam os processos de escolha de futuros sócios.
São normalmente mulheres de vinte e muitos ou trinta e poucos anos que sentem as pressões e os
obstáculos que a ascensão na carreira irá trazer ao estabelecimento de uma vida familiar que
contemple a maternidade (Kornberger et al., 2010).
Quem mais aproveitou a possibilidade de trabalho a tempo parcial ou mesmo trabalho em casa que o
programa de flexibilidade permitia foram as mulheres com família, contudo, o que se verificou foi
que essas pessoas passaram a ser vistas pelos seus pares como “não sérias”. Porquê? Porque o
conceito de bom desempenho incluía fazer o trabalho, gerir as relações sociais que na empresa
aconteciam e estar visível (Kornberger et al., 2010, pp 11-13). Trabalhar com flexibilidade significou
também não servir o cliente de forma adequada por não se estar completamente disponível e
cometido a um serviço 24/7, ou seja, a opção por um horário ou até local de trabalho diferente era
vista como não profissional, donde, estas pessoas passaram a estar irremediavelmente sinalizadas
para observação atenta nas horas de presença na empresa! E assim ficaram talhados para a não
progressão na carreira. Em vez de constituir um instrumento de igualdade entre os géneros, o
programa contribuiu para o aprofundamento das desigualdades.
Ser contabilista implica ter uma identidade própria que acaba influenciando todos quantos a
incorporam, o mesmo é dizer todos quantos exercem a profissão. As mulheres não são diferentes.
Mas o que é ser contabilista? Como é que esta identidade influencia homens e mulheres? Todos
adotam comportamentos, formas de conduta pessoal próprios da profissão, sendo que alguns deles
estão ligados à aparência física, ao vestuário considerado adequado. É assim que os estagiários se
moldam ao que veem e lhes parece ser a identidade profissional (Haynes, 2008b), facto que
obviamente tem impactos nas escolhas de estilo de vida.
Esta noção de personificação enfatiza o corpo vivido, como o sujeito que conhece o mundo através
de perceções corporais mais do que como um objeto de conhecimento científico (Haynes, 2008b,
p.329). Esta problemática fornece também base para explicação das diferenças de tratamento entre
géneros, já que a noção de personalidade de contabilista que vem primordialmente por via do corpo,
se altera no caso das mulheres grávidas. Quando uma mulher engravida rapidamente o mundo toma
conhecimento pois as transformações do seu corpo saltam à vista. O corpo torna-se propriedade

12
pública (Haynes, 2008b, p.345). Este facto e a própria alteração física que ela está a experimentar,
alteram não só a relação da mulher com o seu próprio corpo e o entendimento que dele tem, como
também provocam alterações de natureza psicológica que influenciam o seu eu profissional. Nas
palavras de Haynes (2008b, p.345), as mudanças físicas que ocorrem neste período fazem com que o
corpo seja simultaneamente um recurso através do qual a mulher pode negociar a sua posição social,
uma forma de controlo social e um meio através do qual se pode sentir reduzida a mera biologia. É
assim, por esta via, que muitas vezes o modo como o corpo é avaliado se torna uma forma de
discriminação e de reprodução de desigualdades na profissão, visto que o corpo masculino não tem
destes momentos de alteração (Haynes, 2008b). Apesar disto, as instituições, académicas incluídas,
continuam sem explorar a necessidade de mudar práticas e valores (Broadbent e Kirkham, 2008;
Lord e Robb, 2010).

Contributos das mulheres

Segundo Sayers (2012), em 2010 os ordenados das mulheres americanas são 77% dos dos homens e
isso deve-se, dizem alguns, aos efeitos desiguais sobre mulheres e homens provocados pelo
casamento já que muitas das responsabilidades familiares, nomeadamente as relativas aos filhos,
recaem sobre as mulheres. Os ordenados mais baixos das mulheres (Sayers, 2012; Lord e Robb,
2010; Broadbent e Kirkham, 2008) provocam no comum das pessoas a sensação de que isso se deve
às suas menores capacidades intelectuais e de trabalho. Sendo os empregadores parte integrante da
sociedade, a subvalorização das capacidades femininas influencia as suas práticas de contratação
(Sayers, 2012, p.523). Partindo da hipótese das assimetrias do casamento, Sayers (2012) afirma que
descontado este efeito ainda se mantém uma diferença residual que segundo a autora se deve a
fenómenos sociais como os acabados de referir e não a diferenças de produtividade como refere
Walter Block, economista cujas ideias a autora refuta dizendo que à medida que a igualdade de
géneros foi aumentando e a sociedade se começou a afastar da estrutura patriarcal tradicional, as
diferenças de ordenados foram-se esbatendo mas não ao ponto de desaparecerem, o que mostra que o
sexismo social está entranhado, é ubíquo e persistente (Sayers, 2012, p.524)
Atualmente decorre em determinados países e organizações, especialmente da América do Norte e da
Europa Ocidental, um debate sobre a eventual necessidade de garantir a presença de uma
determinada proporção de mulheres nos níveis superiores da gestão organizacional. Porquê?
Os ganhos de uma empresa são considerados tão melhores quão melhor for a forma como refletem a
realidade económica por eles relatada. Estudos foram feitos no sentido de verificar se a qualidade dos
ganhos das empresas está de alguma forma relacionada com a presença de mulheres nos níveis
seniores da gestão dessas empresas (Krishnan e Parsons, 2008; Francoeur, Labelle e Sinclair-

13
Desgagne, 2008). Partindo dos pressupostos da teoria de Hofstede segundo a qual a feminilidade é
vista como significado de preocupação com os outros, de preferência pelas relações humanas e pela
qualidade de vida, enquanto a masculinidade está conotada com o atingir objetivos, com a
assertividade, o heroísmo e o sucesso material, Krishnan e Parsons (2008) perguntam se para além
destas diferenças entre os géneros e ainda de outras como a maior aversão ao risco por parte das
mulheres e a maior confiança masculina em questões de dinheiro, haverá também diferenças no que
toca à forma como encaram o relato financeiro. Através da análise de algumas medidas de qualidade
dos ganhos relatados entre 1996 e 2000 por empresas com grande diversidade de género entre os
executivos seniores, onde a proporção de mulheres variava entre 14,3% e 38,3%, e por outras com
pequena diversidade de género nos mesmos níveis hierárquicos, onde as mulheres representavam
entre 0 a 5,1%, concluíram, através de um estudo quantitativo, que a melhoria nos ganhos em
empresas com maior proporção de mulheres nos níveis seniores não vem por via da gestão desses
ganhos mas, apesar de os resultados não mostrarem que a contratação de mais mulheres teria como
consequência uma melhoria nos ganhos relatados, a qualidade desses ganhos está positiva e
significativamente relacionada com a diversidade de género existente nesses níveis (Krishnan e
Parsons, 2008, p. 74).
Simultaneamente, Francoeur et al (2008), usando a estrutura de avaliação de Fama e French por
forma a terem em conta o nível de risco nas comparações do desempenho das empresas, partem de
dados recolhidos nos inquéritos anuais Catalyst 2001-20046 e estimam que quando é elevada a
percentagem de mulheres nestes níveis hierárquicos de empresas canadianas que operam em
ambientes complexos, há ganhos positivos e anormais com crescimento de 0,17% ao mês que os
autores extrapolam para 6% em 3 anos, excesso este que, curiosamente, não existe se as mulheres
ocuparem lugares de administração (Francoeur et al., 2008, p.93). Este facto pode também conter
uma certa dose de discriminação já que pode significar que elas são melhores do que eles no seu
desempenho profissional, uma vez que muitas vezes as funções que neste nível lhes são atribuídas
são menos promissoras o que as obriga a um empenho reforçado para que constituam um sucesso no
longo prazo. É o derradeiro teto de vidro (glass ceiling) com que as mulheres se deparam!
Tal como noutros estudos qualitativos, estes resultados devem ser assumidos com cuidado pois as
situações podem ser diferentes noutros pontos do globo.
Estes são os argumentos que servem para responder à pergunta formulada anteriormente, isto é, os
países e as organizações estão a ponderar a presença de mais mulheres nos altos níveis de gestão

6
Catalyst é a organização líder em pesquisa e consultoria na América do Norte que promove as mulheres no mundo dos
negócios
14
porque elas parecem contribuir para o aumento dos ganhos! Assim sendo, por que razão ganham
menos?

A Nova História da Contabilidade

Pelo já dito até agora vê-se que a perspetiva dominante nas investigações sobre o género não é a de
que a contabilidade é uma mera prática técnica mas sim uma prática social, pois os estudos referidos
têm em comum a preocupação de mostrar as implicações da realidade contabilística no
funcionamento das organizações e das sociedades (Gomes, 2008). Estamos no âmbito da nova
história da contabilidade que leva a uma predominância de utilização das perspetivas interpretativa e
crítica nas abordagens à problemática do género, o que pode acontecer segundo uma miríade de
aspetos e também ao aceitar como válidas fontes de informação alternativas às tradicionais, i.e., aos
arquivos, validando como tal romances, novelas, filmes, revistas, notícias de jornal e até documentos
como blocos de notas que contenham registos de contabilidade doméstica.
Foi a ficção dos romances de Adam Douglas que foi usada por Czarniawska (2008) como fonte de
informação por servir de complemento ao trabalho de campo e à teoria convencional das
organizações, uma vez que ela consegue o que esta às vezes não consegue, combinar o objetivo com
o subjetivo, o destino dos indivíduos com o das organizações e os micro eventos com os macro
sistemas (Czarniawska, 2008, p.33). Embora as observações diretas continuem a ser a principal fonte
de informação, por vezes determinadas práticas, factos e obstáculos podem não ser visíveis ao
investigador por terem ocorrido na sua ausência ou por terem sido temporários e aí a ficção pode ser
uma fonte secundária de recolha de informações (Czarniawska, 2008, p.34). Então, este tipo de obras
pode ser interessante como fonte de ilustração de assuntos sensíveis que são difíceis de observar ou
de retirar de entrevistas, podendo-se delas tirar imagens de trabalhos vulgares em determinados
lugares e épocas, como o trabalho masculino nas finanças e nas economias ocidentais, sendo também
de realçar a sua influência como mecanismo de reprodução dos modelos estabelecidos (como o do
macho implacável no mundos das finanças), influenciando as práticas e as opções de carreira de
quem as vê ou lê (Czarniawska, 2008, p.34).
Os trabalhos já referidos de Carnegie e Walker (2007a e 2007b) são exemplos de utilização de
registos domésticos e artigos de jornais e revistas como fonte primária de recolha de dados. A
aceitação dos pequenos negócios familiares como fonte de informação é também típica da nova
história da contabilidade.
Contudo, não se pode continuar a estudar esta problemática de forma isolada, isto é, como se ela
fosse completamente independente dos outros temas contabilísticos. Apesar de nos últimos 20 anos

15
os historiadores terem concordado que não é possível escrever sobre história, seja ela de natureza
militar, política, económica, social ou intelectual, sem ter em conta a problemática do género, o
mesmo não parece ter acontecido com a história da contabilidade (Walker, 2008, p.601), e seria
importante que todos entendessem e aceitassem que a não incorporação desta problemática nos seus
trabalhos de investigação os torna incompletos, eventualmente enganadores (Khalifa e Kirkham,
2009).
Prova de que os historiadores da contabilidade não estão ainda muito sensibilizados para a
importância que o género tem no entendimento do que esta ciência é e das suas noções, práticas e
valores, é a existência de números especiais de revistas científicas sobre o assunto, já que eles
acontecem quando o tema, a problemática, ainda não entrou na investigação como fator de
importância inquestionável e adquirida (Walker, 2008; Lehman, 2012).
Os primeiros números especiais sobre o género com algum impacto7 aconteceram em 1992 por
iniciativa das revistas Accounting, Organizations and Society (AOS) e Auditing, Accounting &
Accountability Journal (AA&AJ). Segundo Khalifa e Kirkham (2009), os artigos aqui publicados
versavam, entre outros, sobre

 as dificuldades que eram postas às mulheres no acesso à profissão, por exemplo


através de entraves à certificação das suas competências e conhecimentos
 a relação entre a feminização da contabilidade e as dificuldades que isto trazia à
validação social da profissão
 as tarefas femininas nos escritórios de contabilidade, ou seja, a dificuldade de se ser
aceite como contabilista e a facilidade em se ser escriturária
 a importância que tem pôr o género no cerne da investigação contabilística
We’ve come a long way, afirma Lehman (2012) no artigo em que reflete sobre o legado daquele
número especial da AA&AJ. Muitos estudos foram feitos desde então, sobre velhos e novos temas,
mas muito caminho está ainda por percorrer até que a transformação pretendida seja uma realidade
(Lehman, 2012). Será que estes números especiais inspiraram a produção sistemática e sustentada de
histórias feministas de contabilidade ou de histórias sobre contabilidade e género? (Walker, 2008).
Não, diz o autor.
Outros números especiais foram entretanto preparados, nomeadamente um da Critical Perspectives
on Accounting em 1998, e os números de 2000 e 2008 da AA&AJ, “Accounting at home” e
“Accounting and gender revisited”, respetivamente. Foi neste último que Broadbent e Kirkham, no

7
A AOS já em 1987 tinha no Nº1 do Vol. 12 publicado artigos sobre o género
16
seu Guest Editorial, fazem não só a apreciação dos artigos selecionados para publicação 8, mas
referem que um dia, numa conferência ouviram alguém defender que não há diferenças entre os
ordenados de homens e mulheres e que as diferenças se devem ao facto de normalmente as mulheres
trabalharem em empresas mais pequenas que pagam menos quer a homens quer a mulheres.
Discordando esta posição, partem das suas próprias experiências académicas e profissionais para
tentar reacender a investigação na área através de novas abordagens, afirmando que se é certo que no
mundo ocidental já não há entraves à entrada nas mulheres na profissão, elas continuam a existir
relativamente à promoção. Este tipo de entraves acabou sendo conhecido como o teto de vidro (glass
ceiling) pois apesar de formalmente não existirem, as estruturas maioritariamente machistas de
grande parte das empresas criam uma barreira, um teto invisível (daí o ser de vidro) e é também este
teto que tem não só a sua quota-parte de responsabilidade nos ordenados mais baixos, mas também
na inflexibilidade de horários e na exigência de disponibilidade total para assistência aos clientes,
roubando tempo fundamental para a vida privada e para a família. Sempre que alguma mulher
consegue, com esforço, quebrar este teto, vê-se a braços com um penhasco, igualmente invisível
(glass cliff), pois quando as mulheres chegam ao topo da carreira, quando as coisas correm mal na
empresa, a probabilidade de virem a perder o emprego é maior para elas do que para os homens
(Broadbent e Kirkham, 2008, p.468; Francoeur et al., 2008)

A metodologia feminista

Quando se inicia um trabalho de investigação, a questão principal no seu desenho é encontrar


métodos que de forma fiável separem as preferências subjetivas da estruturação social das
preferências (Ciancanelli, 1998), questão muito pertinente na área da história do género na
contabilidade uma vez que nem sempre as vontades das mulheres são aceites pelo social. Para que
estes trabalhos atinjam efetivamente o fim pretendido, deverão ser feitos segundo uma metodologia
feminista que incorpora 2 objetivos principais (Haynes, 2008, p.544):

 Sensibilidade ao papel do género na sociedade e às diferentes experiências de homens


e mulheres
 Abordagem crítica às ferramentas de investigação no social
Os tipos de perguntas que sustentam esta metodologia são do tipo (Haynes, 2008, p.545)

8
Três dos quais constam das referências bibliográficas deste trabalho, a saber: Walker, 2008; Haynes, 2008 e Broadbent
e Kirkham, 2008
17
 Quais os impactos das relações de género na vida das pessoas?
 Como pode a realidade social ser entendida?
 Como percebem as pessoas as suas experiências?
 Como influencia o poder a produção do conhecimento?
O fim pretendido é chamar a atenção para a existência de desigualdades e para a necessidade de
provocar mudanças, caso contrário “we are just doing the equivalente of stirring chiken´s entrails,
looking inwards rather than outwardly engaging with culture, practice and political institutions”
(Haynes, 2008, p.551), o mesmo é dizer, os estudos que não têm este tipo de preocupação são quase
inócuos.

Conclusão

As capacidades intelectuais femininas já não são razão de impedimento de acesso à profissão de


contabilista, mas algumas mulheres ainda continuam a senti-las, seja porque têm uma cultura própria
como as mulheres maori de Aotearoa, seja porque o seu vestuário não cai nos padrões normalizados
da cultura predominante, a ocidental, que vê peças como o hijab islâmico constituírem ameaça aos
valores porque pugna e não como símbolo de uma identidade própria.
Hoje as principais desigualdades de género estão ligadas à progressão na carreira, seja por motivos
ligados a fenómenos como o da homossociabilidade que leva a que valores informais, como discutir
futebol ou ir tomar um copo no fim do dia de trabalho, se tornem decisivos na hora de promover, seja
por práticas discursivas, formais ou informais, que refletem raciocínios sexistas sobre o que é ser
profissional e competente, ou até por fenómenos que têm a ver com a incorporação de uma
identidade profissional que se desmancha, ou pelo menos sai lascada, em períodos em que o corpo, e
consequentemente a apresentação física das mulheres, sofre alterações provocadas pela gravidez. A
vontade, a opção das mulheres pela maternidade que é consequência de um direito que lhes assiste,
mas que antes de tudo é uma necessidade imperiosa de Vida e que enquanto tal deveria ser
reconhecido, na realidade constitui mais uma barreira a transpor sempre que a contabilista quer optar
por uma carreira a tempo parcial.
O fenómeno que parecia passado mas que através do estudo de Czarniawska (2008) se mostra
presente na Polónia, o da relação feminização, profissionalização e desqualificação social da
profissão, ou não se entende dada a inegável qualidade de trabalho das mulheres, veja-se o caso das
mulheres pioneiras, ou entende-se através da hipótese de desprezo pelas mulheres que a
investigadora diz todos, homens e mulheres, sentirem! Erradicando este desprezo, alterando a forma
como as crianças são educadas e a sua forma de socialização, então a contabilidade ajustar-se-á
(Czarniawska, 2008, p.46). Será?
18
As novas tendências da investigação nesta área parecem ser a liberdade do corpo (Haynes, 2008b), a
passagem de emprego a tempo integral para tempo parcial para as mulheres que querem continuar a
sua carreira sem terem que desistir da maternidade (Galhofer et.al, 2011), o impacto nos resultados
das empresas provocado pela presença de mais mulheres nos níveis hierárquicos superiores de gestão
(Krishnan e Parsons, 2008; Francoeur et al, 2008), embora outros, como as mulheres e a literatura do
desenvolvimento, significado de histórias, poder, raça e trafego de escravas sejam sugeridos por
Lehman (2012).
Esta revisão de literatura permitiu identificar duas lacunas nos trabalhos de investigação. A primeira
tem a ver com o facto de nada parecer ter sido escrito sobre a realidade portuguesa, valendo a pena
tentar conhecer os sentimentos das mulheres portuguesas que trabalham em contabilidade. A segunda
tem a ver com a relação entre os ganhos das empresas e as mulheres que trabalham em níveis
hierárquicos mais baixos, ou seja, os ganhos dependem apenas das decisões de topo? São estas
perguntas que poderiam dar origem a projetos de investigação futura.
A investigação sobre o género na contabilidade não estagnou embora se defenda que ainda não é
suficiente (Walker, 2008; Khalifa e Kirkham, 2009; Lehman, 2012), mas igualmente importante é a
introdução explícita desta problemática em todos os estudos contabilísticos, questionando e não
aceitando noções sexistas de competência, de empenho, de prática e até do que é ser contabilista, por
forma a quebrar o ciclo de perpetuação destas noções e do desequilíbrio de poder (Khalifa e
Kirkham, 2009). Ela deve continuar a ser um assunto substantivo para a comunidade contabilística
académica pois também ela lhe sente os efeitos (Broadbent e Kirkham, 2008; Lord e Robb, 2010).

Referências bibliográficas

ANDERSON-GOUGH, F., GREY, C. & ROBSON, K. 2005. ‘‘Helping them to forget..’’: the
organizational embedding of gender relations in public audit firms. Accounting,
Organizations and Society 30, 469-490.
BROADBENT, J. & KIRKHAM, L. 2008. Glass ceilings, glass cliffs or new worlds?: Revisiting
gender and accounting. Accounting, Auditing & Accountability Journal, 21, 465-473.
CARNEGIE, G. D. & WALKER, S. P. 2007a. Household accounting in Australia: a microhistorical
study. Accounting, Auditing & Accountability Journal, 20, 210-236.
CARNEGIE, G. D. & WALKER, S. P. 2007b. Household accounting in Australia: Prescription and
practice from the 1820s to the 1960s. Accounting, Auditing & Accountability Journal, 20, 41-
73.
CIANCANELLI, P. 1998. Survey Research And The Limited Imagination. Critical Perspectives on
Accounting, 9, 387-389.
COOPER, C. & TAYLOR, P. 2000. From Taylorism to Ms Taylor: the transformation of the
accounting craft. Accounting Organizations and Society, 25, 555-578.

19
COOPER, K. 2008. Mary Addison Hamilton, Australia's first lady of numbers. Accounting History,
13, 135-161.
CZARNIAWSKA, B. 2008. Accounting and gender across times and places: An excursion into
fiction. Accounting, Organizations and Society, 33, 33-47.
EDWARDS, J. R. & WALKER, S. P. 2007. Accountants in late 19th century Britain: a spatial,
demographic and occupational profile. Accounting and Business Research, 37, 63-89.
FRANCOEUR, C., LABELLE, R. & SINCLAIR-DESGAGNE, B. 2008. Gender Diversity in
Corporate Governance and Top Management. Journal of Business Ethics, 81, 83-95.
GALLHOFER, S., PAISEY, C., ROBERTS, C. & TARBERT, H. 2011. Preferences, constraints and
work-lifestyle choices: The case of female Scottish chartered accountants. Accounting,
Auditing & Accountability Journal, 24, 440-470.
GOMES, D. 2008. The Interplay of Conceptions of Accounting and Schools of Thought in
Accounting History. Accounting History, 13, 479-509.
HAYNES, K. 2008a. Moving the gender agenda or stirring chicken's entrails?: Where next for
feminist methodologies in accounting? Accounting, Auditing & Accountability Journal,, 21,
539-555.
HAYNES, K. 2008b. (Re)figuring accounting and maternal bodies: The gendered embodiment of
accounting professionals. Accounting, Organizations and Society, 33, 328-348.
KAMLA, R. 2012. Syrian women accountants’ attitudes and experiences at work in the context of
globalization. Accounting, Organizations and Society, 37, 188-205.
KHALIFA, R. & KIRKHAM, L. M. 2009. Gender. In: EDWARDS, J. R. & WALKER, S. P. (eds.)
Routledge Companion to Accounting History. 433-450. Nova Iorque: Routledge.
KORNBERGER, M., CARTER, C. & ROSS-SMITH, A. 2010. Changing gender domination in a
Big Four accounting firm: Flexibility, performance and client service in practice. Accounting
Organizations and Society, 35, 775-791.
KRISHNAN, G. V. & PARSONS, L. M. 2008. Getting to the Bottom Line: An Exploration of
Gender and Earnings Quality. Journal of Business Ethics 78, 65–76.
LEHMAN, C. 2012. We've come a long way! Maybe! Re-imagining gender and accounting.
Accounting, Auditing & Accountability Journal, 25, 256-294.
LORD, B. & ROBB, A. 2010. Women students and staff in accountancy: The Canterbury tales.
Accounting History, 15, 529-558.
MCNICHOLAS, P., HUMPHRIES, M. & GALLHOFER, S. 2004. Maintaining the empire: Maori
women's experiences in the accounting profession. Critical Perspectives on Accounting, 15,
57-93.
SAYERS, R. C. 2012. The Cost of Being Female: Critical Comment on Block. Journal of Business
Ethics, 106, 519-524.
WALKER, S. P. 2008. Accounting histories of women: beyond recovery? Accounting, Auditing &
Accountability Journal, 21, 580-610.

20

You might also like