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Meditagées sobre um Cavalinho de Pau ou as Raizes da Forma Artistica O tema deste artigo é um cavalinho de pau bastante comum, Nao é metaférico, nem puramente imaginério, pelo menos nao mais do que 0 cabo de vassoura sobre 0 qual Swift escreveu suas meditagdes. Geralmente se contenta em ocupar seu lugar no canto do quarto de crianga e nao nutre ambigGes estéticas. Na verdade, detes- ta afetagdes. Mostra-se satisfeito com seu corpo de madeira e sua cabeca talhada tos- ala apenas a extremidade superior e serve para prender as rédeas. camente, que assi Como devemos referir-nos a ele? Devemos desctevé-lo como a “imagem de um cava- lo”? Dificilmente os compiladores do Pocket Oxford Dictionary teriam concordado com isso. Eles definem| imagem |como “a imitagao da forma exterior de um objeto”, € certamente a “forma exterior” de um cavalo nao é “imitada” aqui. Tanto pior, podert amos dizer, para a “forma exterior”, esse fugidio resquicio da tradigao filos6fica grega que dominou por tanto tempo nossa linguagem estética. Felizmente, 0 Dictionary regista uma outra palavra que talvez se revele mais apropriad : representagio. Repre~ sentay, lemos ali, pode ser usada no sentido de “invocar mediante descrigio ou retrato ou imaginacio, figurar, simular na mente ou pelos sentidos, servir de ou ser tido por aparéncia de, estar para, ser espécime de, ocupar o lugar de, ser substituto de”. O retrato de um cavalo? Certamente que nao. O substituto para um cavalo? Sim, é isso. Talvez haja nessa formula mais do que o olho pode ver. 1 Primeiramente lancemos nosso corcel de madeira a batalha contra uma multidao de fantasmas que ainda obsedam o jargio da critica de arte. Podemos até encontrar um deles entrincheirado no Oxford Dictionary. O que sua defi igo de imagem implica ¢ que o artista “imita” a “forma exterior” do objeto que esté A sua frente, e 0 espectador, por seu turno, reconhece por essa “forma” 0 “assunto” da obra de arte. E isso o que se poderia chamar a concepgio tradicional da representacio. Seu corolétio é 0 fato de uma obra de arte ou ser uma c6pia fiel, na verdade uma réplica perfeita, do objeto re- presentado, ou envolver algum grau de “abstragao”. Lemos que o artista abstrai a “for- ma” do objeto que ele vé. O escultor, usualmente, abstrai a forma tridimensional, e abstrai da cor; 0 pintor abstrai contornos ¢ cores, ¢ da terceira dimensio. Nesse con- texto, ouve-se dizer que a linha do desenhista constitui um “tremendo feito de abstra~ ao”, porque “nao ocorre na natureza”. Pode-se elogiar ou censurar um moderno Este ensaio foi escrito originariamente como contribuiga A Symposium on Form in Nature and Art, London, 1951. jo obra de L. L. Whyte (ed.), Aspects of Form, 1 2 Meditagées sobre um Cavalinho de Pai escultor da estirpe de Brancusi por “levar a abstracao a scu extremo légico”. Finalmen- te, o rétulo de “arte bstrata” aposto criagio de formas “puras” traz. em si uma impli- cagio semelhante. Nao obstante, basta-nos olhar para 0 nosso cavalinho de pau para perceber que a propria idéia de abstracio enquanto ato mental complexo nos langa em curiosos absurdos. Existe uma velha piada de borequim na qual se conta que um béba- Seria o caso de do tirava polidamente o chapéu diante de cada poste por que passa dizer entio que o alcool agugou a tal ponto seu poder de abstragao que ele conseguiu isolar a qualidade formal de verticalidade tanto do poste quanto da figura humana? Nossa mente, ¢ claro, opera mais por diferenciagio que por generaliza (0, e a crianca, antes de aprender a distinguir espécies ¢ “form: ”, chamaré durante muito tempo de “au-au” todos os quadriapedes de determinado porte! I versal Deparamo-nos aqui, entao, com 0 velho problema dos un aplicados & arte. Recebeu sua formulagio cléssica nas teorias platonicizantes dos Académicos. “O pi tor de histéria”, diz Reynolds, “pinta o homem genérico; 0 pintor de retratos pinta um homem particular, ¢ portanto um modelo defeituoso”®, Trata-se, evidentemente, da teoria da abstragio aplicada a um problema especifico. As implicagées sfo: o retra- to, sendo uma c6pia exata da “forma exterior” de um homem com todos os seus “de- feitos” ¢ “acidentes”, refere-se A pessoa individual exatamente como o faz 0 nome proprio. Todavia, o pintor que deseja “elevar seu estilo” descura do particular e “ge- neraliza as formas”. Tal pintura ja nao representa um homem dado, mas, sim, a clas- se ou 0 conceito “homem”. Existe uma certa simplicidade falaciosa neste argumento, mas ele estabelece pelo menos um pressuposto injustificado: 0 de que toda imagem desse tipo refere-se necessariamente Nada dis: mos: “Eis um homem”. Estritamente falando, podemos dizer que essa assercio sign algo exterior a ela ~ seja individuo ow classe. "0, porém, precisa estar implicito quando apontamos uma imagem e dize- fica que a imagem em si é um membro da classe “homem”. Tampouco se trata de uma interpretacao tao forgada quanto pode parecer. De fato, nosso cavalinho de pau nio se submeteria a nenhuma outra interpretacio. Pela légiea do racioci deveria representar a idéia mais io de Reynolds, genérica de “cavalidade”. No entanto, quando uma crianga da a uma vara o nome de cavalo, evidentemente nao quer dizer nada desse tipo. A vara nao é um signo que s nifica o conceito cavalo, nem é 0 retrato de um avalo individual. Por sua capacidade de servir de “substituto”, a vara torna-s e cavalo Por si mesma, pertence 3 classe dos “au-aus” ¢ talver faca por merecer até um nome préprio. Quando Pigmaliao delincou uma figura em seu marmore, nao repre: ntou a prin cipio uma forma humana “genérica” e depois, gradativamente, uma mulher particular, Isso porque, embora cle o tenha desbastado e the tenha conferido uma aparéncia de Meditacdes sobre um Cavalinho de Pau 3 vida, o bloco nao se converteu num retrato — nem mesmo no ca ‘0 improvavel de que houvesse usado um modelo vivo. Assim, quando suas preces foram ouvidas e a estatua recebeu vida, era Galat e ninguém mais ~ ¢ isso independentemente de ter sido ta- Ihada num estilo arcaico, idealista ou naturalista. Na verdade, a questio da referéncia independe totalmente do grau de diferenciagio. A bruxa que fez um boneco de cera “generico” de um inimigo talvez tenha querido refe i-lo a alguém em particular. Pro- nunciaria ent2o a formula magica correta para estabelecer esse vinculo — do mesmo modo que escrevemos uma legenda sob um quadro genérico com objetivo idémtico. No entanto, mesmo e: sas réplicas proverbiais da natureza, as efigies do muscu de Madame Tussaud, Inecessitam do mesmo tratamento. As que estio etiquetadas nas galerias so “retratos dos grandes”. A figura da esca da, posta para enganar o visitante, representa “um” recepcionista, um membro de uma classe. Esté ld como um “substi- tuto” do esperado guarda ~ mas nao é mais “genérico” no sentido de Reynolds. m1 Jase tornou bastante familiar a idéia de que a arte é mais “criagio” que “imitacio”, Foi proclamada de varias formas, desde a época de Leonardo, para quem o pintor “Senhor de Todas as Coisas”, a de Klee, que ambicionava criar do mesmo modo que a _Natureza faz‘. No entanto, as implicagdes mais solenes do poder metafis cem quando trocamos a arte por brinquedas. A crianca “faz” um trem ou com alguns blocos ou com lépis e papel. Rodeados como estamos de cartazes e publicagdes cheias ico desapare- de ilustragdes de objetos ou de fatos, achamos dificil abandonar o pré-julgamento de c Pr que todas as imagens devem ser iidas” por referéncia a alguma realidade imaginéria ou real. Somente o historiador sabe 0 quanto é dificil olhar para a obra de Pigmaliao sem compari-la com a natureza. Recentemente, no entanto, fomos forcados a reconhecer © quanto compreendemos mal a arte primitiva ow a egipcia todas as vezes em que su- pomos que o artista “distorce” seu cema ou que até mesmo deseja que vejamos em stia obra o registro de alguma experiencia specifica’. Em muitos casos, essas imagens “re- presentam” no sentido de serem substitutas. O servo ou o cavalo de argila,sepultados nas tumbas dos poderosos, toma o lugar do ser vivo. O idolo toma o lugar do deus. E totalmente irrelevante a questio de saber se ele representa a “forma exterior” da divin- dade particular ou, no caso, de uma classe de deménios. O lolo serve de substituto do deus no culto e no ritual ~ é um deus feito pelo homem da mesma forma que 0 cavalinho de pau é um cavalo feito pelo homem: ir além daqui € cortejar o logro*. Ainda existe outro equivoco de que nos devemos guardar. Tentamos muitas vezes, instintivamente, salvar a nossa idéia de “representaco” mediante a sua transposi¢io para outro plano. Quando nao conseguimos relacionar a imagem com um motivo lo- calizado no mundo exterior, comamo-la por um retrato de um motivo que se acha no mundo interior do artista. Muitos escritos criticos (e acriticos) tanto sobre a arte pri- 4 Meditagées sobre um Cavalinho de Pau mitiva quanto sobre a arte moderna traem esse pressuposto. Mas aplicar a idéia natu- ralista de retrato a sonhos e vis6es ~ sem falar de imagens inconscientes ~ suscita toda uma série de questionamentos’. O cavalinho de pau nao retrata a idéia que temos de um cavalo. © terrivel monstro ou a cara engracada que podemos garatujar com 0 mata- borrio nao é projetado de nossa mente do mesmo modo que a tinta é “ex-premida” do tubo de tinta. E claro que toda imagem seré de algum modo sintomética de seu cria- dor, mas pensé-la como uma fotografia de uma realidade ps mal todo 0 proceso da feitura de imagens. existente € compreender Iv Sera que o nosso substituto pode levar-nos adiante? ‘Talvez, se pensarmos de que modo ele poderia tornar-se um substituto. E provavel que o “primeiro” cavalinho de pau (para retomar o linguajar oitocentista) ndo fosse de modo algum uma imagem. Era apenas uma vara que foi qualificada de cavalo porque se podia montat nela (Fig. 1). O tertium: comparationis, o facor comum, era antes a fungio que a forma. Ou, mais pre- cisamente, aquele aspecto formal que atendia a exigéncia minima para o desempenho da fungao ~ pois todo objeto “cavalgavel” serve de cavalo. A ser isso verdade, talvez estejamos em condigdes de cruzar uma fronteira que em geral é considerada fechada e selada. E que, nesse sentido, os “substitutos” penetram fundo até alcangar as fungoes bioldgicas que sio comuns a homens ¢ a animais. O gato corre atrés da bola como se ela fosse um rato. O bebé suga o polegar como se fosse um peito. Em certo sentido, a bola “representa” um rato para o gato; ¢ o polegar, um peito para o bebé. Mas, também aqui, a “representacio” néo depende de semelhangas formais, a nao ser as exigéncias minimas da fungio. A bola nada tem em comum com o rato, exceto que é cagavel; 0 polegar nada tem em comum com 0 peito, exceto que ¢ sugavel. Na qualidade de “substitutos”, eles atendem a determinadas exig@ncias do organismo. Jo chaves que pot acaso servem em fechaduras biolégicas ou psicolégicas, ou moedas falsas que acio- nam a maquina quando sao inseridas na fenda. Na linguagem do quarto de crianga, continua a ser reconhecida a fungio psicolé- gica da “representacio”. A crianga recusaré uma boneca perfeitamente naturalista em favor de alguma “bruxa” monstruosamente “abstrata” que seja mais “fofinha”. E pos- sivel até mesmo que prescinda totalmente do elemento “forma” e tome o travesseiro ou o edredom por sua “chupeta” predileta — um substituto ao qual quer entregar 0 seu amor. Mais tarde na vida, conforme nos dizem os psicanalistas, pode entregar esse mesmo amor a um substituco vivo, digno ou indigno dele. A professora pode “assumir 0 lugar” da mae; um ditador ou mesmo um inimigo pode vir a “representar” o pai. Mais uma vez, o denominador comum entre o simbolo e a coisa simbolizada nao é a “forma exterior” mas a fungio; a mae-simbolo seria merecedora de amor; o pai-imago seria temivel, ou qualquer que seja 0 caso. Meditagées sobre um Cavalinho de Pau 5 Ora, esse conceito psicolégico de simbolizacio parece afastar-nos muito do senti- do mais preciso que a palavra “representagio” adquiriu nas artes figurativas. Haver algum proveito em misturar todas essas acepcécs? E possivel: vale a pena tentar qual- quer coisa para tirar de seu isolamento a fungao da simbolizagao. A “origem da arte” deixou de ser um t6pico popular. Mas a origem do cavalinho de pau pode ser um tema r. onhecido de especulagio. Suponhamos que © dono da vara na qual ele cavalgava galhardamente pela terra tenha decidido, num estado de animo jovial ou magico — e quem saber4 distinguir sempre entre os dois? -, fixar-Ihe rédeas “verdadeiras” e que finalmente até mesmo tenha sido tentado a “dar-lhe” um par de olhos perto da extremidade superior. Um pouco de capim poderia ter feito as vezes de crina, Assim nosso inventor “tinka um cavalo”, Fizera um. Mas duas coisas com res- peito a esse acontecimento ficticio se relacionam de alguma maneira com a idéia das artes figurarivas.\Uma delas § que, ao contrario do que se diz as vezes, a comunicacio nao precisa de modo nenhum de entrar nesse processo. E possivel que ele nao tenha querido mostrar seu cavalo a alguém. Este apenas servia de foco para suas fantasias enquanto galopava ~ embora seja muito provavel que ele cumprisse esta mesma fungio para uma tribo para a qual ele “representava” algum demonio-cavalo da forga ¢ da fer- tilidade’. Podemos resumir a moral dessa “estéria de faz de conta” dizendo que a subs- tituigdo pode preceder o retrato; ¢ a criacio, a comunicagao. Resta saber de que modo se pode comprovar uma teoria tao geral. Se se puder fazé-lo, talvez ela lance alguma luz sobre algumas quest6es concretas. Mesmo a origem da lingua, esse notério proble- ma de hist6ria especulativa’, poder ser investigada a partir desse angulo. Pois 0 que aconteceria se a teoria “pow-wow”, que vé a raiz da lingua na imitagao, € 3 teoria “pooh-pooh”, que a vé na interjeigao emotiva, viesse juntar-se mais uma? Poderfamos chamié-la de teoria “nham-nham”, que pressupde 0 cagador primi 1 deitado, insone ¢ faminto, nas noites de inverno, a emitir 0 som do mastigar, nio por comunicacio, mas como um substituto para comer — acompanhado, quem sabe, por um coro ritua- listico que tenta conjurar o fantasma do alimento. v Uma esfera na qual a investigagio da fungio “representacional” das formas fez re~ centemente consideraveis progressos € a da psicologia anima |. Para Plinio e para iname- ros outros escritores depois dele, o maximo de éxito na arte de um pintor naturalista era iludir passaros ou cavalos. © que esta implicito nessas est6rias é que um espectador humano reconhece facilmente um cacho de uvas numa pincura porque, para ele, 0 reco- nhecimento é um ato intelectual. Mas para os pssaros voar em torno de um quadro é sinal de uma ilusio “objetiva® completa, Trata-se de uma idéia plausivel, mas errénea. O mais simples esbogo de uma vaca parece suficiente para pegar uma tsé-tsé na armadilha, porque de algum modo cle pe em movimento 0 aparelho de atragao e “engana” a 6 Meditagées sobre um Cavalinho de Pau mosca. Para esta, poderiamos dizer, a tosca armadilha tem a forma “significante” ~ isto é, biologicamente significante. Segundo parece, no mundo animal, os estimulos visuais desse tipo desempenham papel importante. Quando variamos as formas dos “bonecos” a que viamos os animais reagirem, determinamos a “imagem minima” suficiente para liberar uma reagio especifica"®. Assim, os filhotes de pa saros abririo 0 bico quando virem a mie aproximando-se do ninho, mas fario o mesmo quando hes forem mostra- das duas rodelas escuras de tamanho diferente, com a silhucta da cabeca e do corpo do pissaro “representada” em sua forma mais “genérica”. Alguns ilhotes de peixes podem ser enganados até por dois simples pontos dispostos na horizontal, que tomam pelos olhos da mae, em cuja boca costumam abrigar-se do perigo. A fama de Zéuxis terd de basear-se em realizacdes melhores do que em ludibriar passarinhos. Uma “imagem”, nesse sentido biolégico, nao é a imitagio da forma exterior de um objeto, mas a imitacio de determinados aspectos privilegiados ou relevantes. Aqui parece abrir-se um vasto campo de investigacio. Isso porque o homem nao esta isento desse tipo de reacao"', O artista que procura representar o mundo visfvel no se de- fronta apenas com uma miscelnea neutra de formas que ele procura “imitar”, O nosso € um universo estruturado cujas principais linhas de forga continuam curvadas e mol dadas por nossas necessidades biolégicas ¢ psicolégicas, por mais camufladas que es- culturais tejam as influéncias bemos que em nosso mundo existem certos motivos privilegiados, aos quais respondemos com uma facilidade quase excessiva. Um dos mais proeminentes deles é 0 rosto humano. Seja por instinto ou por um aprendizado muito precoce, estamos certamente sempre inclinados a separar os tracos expressivos de um rosto do caos de sensagdes que o rodeia, ¢ a reagir As suas menores variacdes com medo ou alegria. Todo 0 nosso equipamento perceptivo é de algum modo hiper- sensibilizado nesse sentido da visio fi iondmica", ¢ a mais insignificante insinuae: nos basta para criar uma fisionomia expressiva que “olha” para nés com surpreendente oy intensidade. Num estado de forte emogao, no escuro ou numa crise de febre, a libera- cio desse gatilho pode assumir formas patolégicas, Podemos descobrir caras no dese ho do papel de parede, e trés ma cis dispostas num prato podem parecer para nés dois olhos ¢ um nariz de palhago. O que ha de espantoso na facilidade que 6 “fazer” um rosto com dois pontos ¢ um risco, mesmo que sua constelagio geométrica possa variar enormemente com a “forma exterior” de uma cabeca real? A conhecida piada gréfica do “rosto reversivel” poderia muito bem ser tomada por um modelo de experimentos que continuam possiveis nesse sentido (Fig. 2). Mostra até que ponto o grupo de for- mas que se podem ler como uma fisionomia tem prioridade sobre tod: turas. Vé-se que a parte de cima forma um rosto convincente e desintegra a que esta de as_outras lei cabeca para baixo numa mistura de formas que é aceita como um esquisito toucado!’. Em bons desenhos dessa espécie precisamos de muito esforco para distinguir as duas faces a0 mesmo tempo, e talvez nunca o consigamos totalmente. Nossa resposta auto- mitica & mais forte do que nossa consciéncia intelectual. Meditacées sobre um Cavalinho de Pau 7 Vista a luz dos exemplos biolégicos discutidos acima, nada ha de surpreendente nesta observagio. Podemos aventar a hipétese de que esse tipo de reconhecimento automético depende de dois fatores: a semelhanga ¢ a relevancia biolégica, e de que é possivel que os dois se achem numa espécie de ra io inversa. Quanto maior relevancia bioldgica tem um objeto para nés, mais depressa o reconhec mais tolerantes cmos — serio, portanto, nossos padrées de correspondéncia formal. Numa atmosfera carrega- da de erotismo, 0 menor indici o de semelhanga formal com as fungées sexuais gera a resposta desejada, ¢ © mesmo se aplica aos simbolos oniricos investigados pot Freud Do mesmo modo, © homem faminto se empenhara na descoberta de alimento — pode varrer 0 mundo a menor promessa de comida. © morto de fome pode até mesmo pro- jetar comida em toda a sorte de objetos disparatados — como faz Chaplin em A Cori- da do Ouro, quando seu imenso companheiro Ihe aparece de repente sob a forma de uma galinha. Terd sido uma exper que salmodiam “nham-nham” a ver a cobigada presa nas manchas ¢ formas irregulares das escuras paredes da caverna? Sera que descobriram talvez, gradativamente, essa ncia semelhante que estimulou nossos cacadores experiéncia nos profundos recessos misteriosos das rochas, da mesma forma que Leo- nardo saia em busca de paredes derrufdas para ajudé-lo em suas fantasias visuais? Fi- nalmente, sera que foram induzidos a encher esses esbogos “legiveis” com terra colorida ~a fim de terem & mao pelo menos algo “lanceével” que pudesse “representar” © comestivel de alguma maneira magica? Nao ha meio de testar essa teoria; mas, se € verdade que os artistas das cavernas freqiientemente “exploraram” a formagio natural das rochas", isso, juntamente com 0 cariter “eidético” de suas obras", pelo menos nio contradiria nossa fantasia. Pode ser, afinal de contas, que 0 grande naturalismo dos pincores das cavernas tenha desabrochado bastante tardiamente. Talvez corresponda a0 nosso tardio, derivativo e naturalista cavalinho de pau. VI Eram necessérias, portanto, duas condigées para transformar uma vara em nosso cavalinho de pau: a primeira, a de que sua forma tornasse possivel cavalgé-loj\a segun= dale talvez decisiva — & que esse cavalgar fosse importante. Felizmente, nao € preciso grande esforgo de imaginagio para entender como o cavalo pode converter-se nesse foco de desejos e aspiragdes, porque nossa linguagem ainda carrega as metéforas mol- dadas por um passado feudal, quando ser cavalheiro era ser cavaleiro. A mesma vara que devia representar um cavalo em tal cenrio ter-se-ia tornado o substituto de algo diferente em outro. Poderia ter se tornado uma espada, um cetro ou ~ no contexto do culto aos ancestrais — um fetiche que representasse um chefe morto. Encarada do ponto de vista da “abstragdo”, essa convergéncia de sentidos numa tinica forma apre- senta grandes dificuldades, mas, da perspectiva da “projecao” psicol6gica de significa dos, ela se torna mais facilmente inteligivel. Afinal, foi construfda toda uma técnica de 8 Meditacées sobre um Cavalinho de Pau diagndstico na pressuposicao de que os significados lidos em formas idénticas por pessoas diferentes nos dizem mais sobre os leitores do que sobre as formas, Na esfera da arte, j4 se mostrou que 4 mesma forma triangular que € 0 padrao favori tas tribos indigenas americanas adjacentes sao atribuidos significados diferentes, que refletem as principais preocupagées dos povos em questio", Para o estudioso dos es- tilos, a descoberta de que é possivel fazer uma forma bisica representar varios objetos pode tornar-se ainda mais significativa. E que, embora pareca dificil de engolir a idéia de que pincuras realista io sendo “estilizadas” de forma deliberada, a idéia oposta es de um vocabulirio limitado de formas simples estar sendo usado para a construcio de representacées diferentes ajustar-se-ia muito melhor aquilo que conhecemos da arte primitiva. VII Tao logo nos familiarizamos com a idéia de que a “representagio” € uma ocorrén- cia biunivoca enraizada em disposic6es psicolégicas, podemos adquirir condigées de aprimorar um conceito que se revelou totalmente indispensavel a0 historiador da arte, o obstante, se mostra um tanto insatisfaté mas que, 0 de “imagem conceitual”. Por essa expressao entendemos o modo de representacio que mais ou menos co- mum aos desenhos infantis ¢ 4s varias formas de arte primitiva e primitivista. Ja foi por demais descrita a grande distancia que separa esse tipo de imagens de qualquer expe- rigncia visual”. A explicagio mais aventada para esse fato é que a cr ianca (€ o homem primitivo) nao desenham 0 que “véem”, mas o que “conhecem", De acordo com essa idéia, o tipico desemho infantil de um hominculo é, re mente, uma enumeragio gré- fica dos tragos humanos de que a crianga se recorda!*. Representa 0 contetido do “con- ccito” infantil de homem. Falar, porém, de “conhecimento” ou “realismo intelectual” (como fa zem os franceses") aproxima-nos perigosamente da falacia da “abstragio”. Voltemos, portanto, ao nosso cavalinho de pau. Ser totalmente correto dizer que cle € constituido dos tragos que formam 0 “conceito” de um cavalo, ou que ele reflete a imagem de meméria dos cavalos que vimos? Nio, porque essa formulac3o omite um fato: a vara, Se tivermos em mente que a representacio é originalmente, a criagio de substitutos a partir de material dado, alcangaremos talvez um terreno mais firme. Quanto maior for o desejo de cavalgar, menor pode ser o namero dos tragos ne: rios para compor o cavalo. Mas, num determinado estégio, cle precisa ter olhos — pois ‘de que outro modo poderia enxergar? No nivel mais primitivo, portanto, poder-se-ia identificar a imagem conceitual com o que chamamos de imagem minima + ou seja, aquele minimo que o fard ajustar-se a uma fechadura psicolégica. A forma da chave depende do material de que foi fabricada, ¢ da fechadura. Seria um erro perigoso, po- rém, equiparar a “imagem conceitual”, tal como a vemos utilizada nos estilos hist6ri- cos, a essa imagem minima fundamentada psicologicamente. Ao contrario. Tem Meditagdes sobre um Cavalinho de Paw 9 impressio de que a presenca de tais esquemas é sempre sentida, mas também de que eles so tao evitados quanto explorados. Devemos contar com a possibilidade de um “estilo” ser um conjunto de convengées nascidas de tenses comples

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